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São Paulo, 2013
Realização
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SUMÁRIO
COMEÇO DE CONVERSA
12 Das Organizadoras
12 ENCONTROS
18 Projetos
ENCONTRO
74 Para uma estética do despertar – José Fernando Azevedo
UMA CARTA
138 Da natureza dos encontros – Cristiane Paoli Quito
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146 Biografias
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RUMOS ITAÚ CULTURAL 2010/2012
“O teatro é um encontro.”
Grotowski
Para tanto, em 2006, foram convidados como consultores Antônio Araújo, diretor
do Teatro da Vertigem, José Fernando Azevedo, diretor do Teatro de Narradores, e
Maria Tendlau, codiretora do Coletivo Bruto, para que repensassem o conceito do
programa junto ao Núcleo de Artes Cênicas do instituto.
O primeiro desafio foi definir um eixo de discussão que pudesse atravessar todo o
país. O tema escolhido foi teatro de grupo, que pautou encontros e reflexões nas
cinco regiões do Brasil. Representantes de 140 grupos de teatro (39 do Nordeste;
31 do Sudeste; 20 do Sul; 30 do Norte e 20 do Centro-Oeste) reuniram-se sob uma
metodologia que organizava as discussões propostas pelos participantes.
Esse mapeamento gerou o livro Próximo Ato: Teatro de Grupo, que apresenta um
dossiê histórico-geográfico do teatro de grupo no Brasil, além de textos dos profis-
sionais da área que ministraram palestras durante os encontros. Ao todo, 26 autores
discorrem sobre a ideia de grupalidade, como elaboração da experiência e dos mo-
dos de produção dos coletivos teatrais.
Esse percurso favoreceu uma escuta das demandas de todas as regiões e municiou
a criação de um programa Rumos* para a área de teatro, cujo enfoque não poderia
ser outro senão o encontro, nesse caso específico para fins de pesquisa. Assim, em
2010, foi aberto um edital público nacional para inscrições de projetos compartilha-
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dos entre dois grupos que tivessem uma questão comum de estudo para desen-
volver – fosse de prática artística, pedagógica, de reflexão teórica etc.
Uma comissão mista e independente formada por sete profissionais das cinco regiões
do país [Fernando Villar (Centro-Oeste); Pita Belli (Sul); Olinda Charone (Norte);
Hebe Alves (Nordeste); José Fernando Azevedo, Maria Tendlau e Antônio Araújo
(Sudeste)] selecionou 12 projetos de pesquisa. Vinte e quatro grupos, de 12 estados
brasileiros, receberam financiamento para os encontros, as viagens, as hospedagens e a
manutenção das pesquisas durante um semestre. Entre 26 de agosto e 3 de setembro
de 2011, cerca de 200 artistas de teatro se reuniram na sede do Itaú Cultural para com-
partilhar entre si e com o público os resultados dos encontros de pesquisa.
Em 2012, os grupos viajaram para ministrar oficinas em São Luís, Blumenau, Brasília,
Porto Velho, Guaçuí, Recife, João Pessoa e Belém. Cada uma das cidades recebeu
a visita de uma dupla.
*O Rumos Itaú Cultural, criado há 15 anos, tem como objetivo mapear, fomentar e difundir
a produção artística no país e contribuir, assim, para a reflexão sobre a realidade cultural do
Brasil. Este edital não trabalha com a lógica de prestação de contas e de contrapartidas.
Sonia Sobral
Gerente do Núcleo de Artes Cênicas do Itaú Cultural
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COMEÇO DE CONVERSA
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COMEÇO DE CONVERSA
DAS ORGANIZADORAS
Movimento #1:
Um edital lançado em março de 2010 solicita o envio de “projetos de pesquisa que vi-
sem o convívio, a troca e o compartilhamento de formas de criação” entre dois grupos
de teatro ao longo de um semestre. O edital não visa a criação de espetáculos, mas
incentiva o encontro para pesquisa e experimentação entre grupos ou coletivos com
práticas de investigação. Dos 228 projetos enviados, 12 são selecionados. Exemplos: a
Cia. Brasileira de Teatro de Curitiba desenvolve com o grupo Espanca!, de Belo Ho-
rizonte, o projeto Troca de Pacotes; o grupo Ói Nóis Aqui Traveiz, do Rio Grande do
Sul, desenvolve com os Clowns de Shakespeare, do Rio Grande do Norte, o projeto
Conexão Música da Cena − RN/RS. Os valores de apoio variam de acordo com a
distância entre as cidades dos grupos parceiros (mesma ou distinta região do Brasil).
Movimento #2:
Cada duo realiza, no mínimo, dois encontros presenciais – nas sedes de cada um
dos grupos. Esses encontros, dependendo das diretrizes do projeto, podem tam-
bém se estender à cena artística local, por meio de workshops, palestras, seminários
e apresentações. Além das experiências presenciais, cabe a cada dupla elaborar
um blog ao longo do período. Os blogs são tanto espaços de encontro entre os
grupos quanto portais abertos para que o público interessado possa acompanhar
o desenvolvimento das pesquisas e interagir. Uma vez finalizado o projeto, os blo-
gs permanecem on-line e tornam-se, assim, arquivos dos processos desenvolvidos
para a memória do programa Rumos.
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Movimento #3:
Movimento #4:
Depois do evento em São Paulo, os grupos viajam por 11 cidades brasileiras; cada
dupla se desloca para uma cidade e ministra oficinas em forma de encontros. São
elas: Cuiabá, Blumenau, Guaçuí (ES), Belém, Recife, entre outras.
Movimento #5:
COMEÇO DE CONVERSA 13
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aqueles em que um coletivo plural busca a concretização de um projeto comum. A
artista e gestora Maria Tendlau reflete sobre espelhos e espelhamentos, sobre rela-
ções de identificação, desidentificação, afirmação de identidade e desconstrução de
identidade a partir dos encontros vividos e de suas manifestações.
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espetáculo? Ou ainda, o que é um espetáculo? Que possibilidades dramatúrgicas
estão em questão quando apresentamos processos? Que tipos de experimentos
cênicos surgiram a partir deste edital, destes modos de encontro? Foi o momento
de avaliar e, a partir daí, imaginar rumos para o Rumos.
Por fim, resta dizer que o movimento #6 desta composição se faz com você. Trata-se
do seu encontro com este trabalho e os desdobramentos que possam advir.
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12 ENCONTROS
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12 ENCONTROS
PROJETOS
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CIATEATROAUTÔNOMO pergunta aos IRMÃOS GUIMARÃES/NÚCLEO RESTA POUCO A DIZER:
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pois desse reconhecimento básico partem o entendimento das características dessa
arte e os pressupostos para o desenvolvimento de metodologias de trabalho. É im-
portante salientar que, neste caso, a expressão “objeto animado” é entendida em seu
mais amplo sentido, englobando bonecos, máscaras, formas animadas etc. Como
tarefa, coube aos grupos analisar alguns dos procedimentos corriqueiros utilizados
na interpretação do ator animador em relação ao objeto animado, dentro do pro-
cesso de trabalho de cada um, levando em consideração as características híbridas
que surgiram a partir do início do século XX e a exacerbação das formas heteróge-
nas na poética cênica do teatro de bonecos brasileiro.
20 R U M O S T E AT R O | E N C O N T R O
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de ferro Madeira−Mamoré e surgimento de Porto Velho) foram realizados um estu-
do e uma pesquisa cênica que tiveram como foco narrativas e memórias, buscando
na oralidade as crenças, os costumes e os traços culturais de diferentes tempos, a
partir de fatos históricos e da importância da presença dos trabalhadores de diversas
etnias (nacionalidades) no período da construção da ferrovia.
No Rio (menção à cidade do Rio de Janeiro) foram realizados um estudo e uma pes-
quisa cênica que tiveram como foco a cameloturgia: a cena e o chapéu, tendo como
base o camelô de rua e a dramaturgia popular, além de relacionar a cameloturgia à
tradição milenar do “chapéu”. O roteiro, a dramaturgia fragmentada e de improviso
dos camelôs é a mesma dos artistas de rua e da cultura popular. O cameloturgo é o
dramaturgo das suas histórias e de sua arte, assim como os eternos e atraentes bor-
dões, verbetes, brados e trovas dos feirantes. O encontro entre os grupos culminou na
criação de um texto inédito construído para uma encenação/montagem.
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Foto Rubens Chiri
Clowns de Shakespeare e Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz
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produção para desenvolver qualquer ação é primordial. A partir disso, os sujeitos,
os grupos e outros fatores podem definir a postura política diante das condições.
Para tanto, o teatro possível pode ser uma abordagem que permite uma postura
proativa do que se apresenta como dificuldade. Para o intercâmbio, foram reali-
zados encontros presenciais em Brasília e em Alta Floresta. Os estudos dirigidos
aconteceram virtualmente e se tornaram momentos de exposição dos resultados
dos trabalhos e também de debate. Os temas norteadores dos estudos e dos
seminários foram o processo de formulação de hipóteses em experiências tea-
trais − em busca de um teatro possível; o planejamento estratégico situacional; a
radicalidade, a ruptura e a rigorosidade no trabalho de grupo; as necessidades de
manutenção da obra artística e sua influência no processo de produção; e estudos
sobre o conceito de dramaturgia e o teatro pós-dramático.
“De volta pra casa. Tomada a distância necessária de tempo e espaço. Agora
consigo compreender que o Teaf é uma escola, aberta e livre, sem um mé-
todo tradicional, uma escola construída informalmente, que vem passando
de mão em mão, mantendo-se viva. Quando da nossa primeira visita a Alta
Floresta, discutíamos nas nossas mesas-redondas, literalmente redondas e
democráticas; o que buscávamos não era uma crítica sobre o trabalho pro-
duzido, mas o entendimento do processo vivido e em que estágio estamos
dentro desse processo, o que temos em comum e o que pode ser compar-
tilhado e que atenda ao interesse de cada um.”
Postado por José Regino em
http://teatroflorestaseantas.blogspot.com.br.
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“Quais são os fios que nos ligam ou seremos wireless por natureza? Ainda
há um encontro aqui (a desenrolar-se), ainda há um contraste: uma única e
exclusiva chama sexual nos acenderá por alguns instantes, seja que tipo de
entrada USB for, transformando-nos nos grandiosos bichos urrantes pelo que
somos tão conhecidos internacionalmente, como país, como célula, como
tecnologia malfadada ao eterno conhecimento que temos de nós mesmos,
se tão edificantes por um lado, tão curiosamente inábeis que se nos deixam
por outro. Se hoje me depilo aqui, amanhã não mais, o que é um pelo para
quem está cagado? O que é o desejo, que nos une em eletricidade, identi-
dade e nos separa em realização?”
Postado por salsichaotainha em
http://salsichaotainha.wordpress.com.
CIASENHAS DE TEATRO +
NÚCLEO ARGONAUTAS DE TEATRO
Narrativas Urbanas na Terra sem Lei
Tanto Terra sem Lei quanto Narrativas Urbanas eram projetos que tinham a cidade na
mira de sua criação. O primeiro desenvolveu sua dramaturgia a partir de documen-
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Foto Ivson Miranda
Espanca! e Cia. Brasileira de Teatro
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tos existentes, enquanto o segundo se interessou, como o próprio nome já diz, pelos
acontecimentos urbanos veiculados pela mídia. O desenvolvimento dos dois projetos
manteve um interesse na ação propositora do ator para a dramaturgia, radicalizada
como jogo. Dessa forma, os atores se aproximaram daquilo que podemos chamar, a
título explicativo, de posição performática. Podemos considerar que uma definição
possível disso é a aproximação do intérprete daquilo que ele faz, sem mediações, ao
menos num momento inicial, da dramaturgia ou da direção, comprometendo artista e
arte no limite possível, expondo sua ação ao público, pedindo sua interferência.
Uma poderosa ferramenta para isso foi o treinamento de Viewpoints, sistema de-
senvolvido por Anne Bogart, nos Estados Unidos, com o qual a CiaSenhas começa-
va a trabalhar. O Núcleo Argonautas desenvolvia a mesma ideia, somada a outras
técnicas, como o Círculo Neutro, a Coordenação Motora de M.M. Béziers, a técnica
Alexander e o Kempo Indiano. Mas trabalhar com as proposições do Viewpoints
possibilitou, sobretudo, o alargamento das possibilidades expressivas da ação física,
relacionado ao espaço que se quer ocupar/revelar e aos outros intérpretes, agindo
em conjunto. Nesse projeto, o desejo foi viabilizar um aprofundamento, desta vez
comum aos dois grupos, no estudo de Viewpoints.
Depois dessa experiência, em que o cruzamento dos Argonautas com a CiaSenhas foi
pontual, embora intenso, e que ocorreu depois do término do projeto dos Argonautas,
foi proposto ao Rumos realizar um encontro presencial dos grupos para investigação
conjunta, seguido de dois experimentos cênicos diferentes criados em simultaneidade
e, por fim, um experimento comum aos dois grupos. Na segunda fase do projeto houve
dois experimentos simultâneos, em que cada grupo era responsável por uma ação
cênica em suas cidades de origem – CiaSenhas num espaço aberto/público e Núcleo
Argonautas num espaço fechado. Na terceira fase houve o compartilhamento desses
dois experimentos entre os dois grupos e a criação de uma terceira experiência, comum
a todos. O mais importante desses experimentos foi a relação estabelecida com o públi-
co. A ideia era colocar a obra em profunda relação com esse desejo, colocá-la no risco
mesmo da experimentação da linguagem, aproximando o ator do performer e con-
taminando a cena teatral com um acontecimento que se desejava não representativo.
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LUME (SP) E OPOVOEMPÉ (SP)
Composição de Matrizes ou Matrizes em Composição?
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ESPANCA! (MG) E CIA. BRASILEIRA DE TEATRO (PR)
Um Outro Si Mesmo – Troca de Pacotes
“Eu procurava um título pra começar. Algum nome, um pedaço de frase, uma
palavra qualquer. Pra começar a dizer pra vocês. Ou melhor, pra começar a
escrever o que eu deveria dizer pra vocês. Ou melhor, pra começar a escrever
o que eu deveria falar, não dizer, falar. Com vocês, não pra vocês. Isso. Eu pro-
curava um título pra começar a escrever o que eu deveria falar com vocês esta
noite. Eu imagino que vocês esperem alguma coisa de mim. Que, pelo menos
esta noite, vocês esperem alguma coisa de mim. Sim, a expectativa. É sobre o
que poderíamos falar esta noite. Não sobre esperanças, isso já é outra história.
Não sobre esperanças, isso… as esperanças (silêncio; ri).”
Postado por Marcio Abreu em
http://espanca.com/ciabrasileira.
O projeto desenvolvido teve como foco a criação de cenas a partir de olhares para as
cidades envolvidas e da reflexão sobre as formas de gestão e organização em coletivos
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teatrais. As ações foram organizadas no blog www.doconcretoaomangue.blogspot.com
em duas janelas. A primeira, intitulada “janela de criação”, possibilitava a troca mensal
entre os grupos de três imagens de suas respectivas cidades e, a partir desse estímulo
imagético, disparavam seus processos de criação. Na “janela de gestão”, mensalmente
as companhias trocavam um relato sobre um desafio de gestão, administração e/ou
convívio e pensavam em estratégias para o seu enfrentamento. Nos encontros presen-
ciais, que tiveram a participação de Luiz Fernando Marques, diretor do grupo XIX de
Teatro (SP), foram realizados uma mostra de cenas curtas, experimentos no espaço
urbano e discussões sobre as questões levantadas nas duas janelas. Esse encontro triplo
gerou ainda mais olhares para pensar o fazer coletivo e sua relação com a cidade.
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Foto Ivson Miranda
Lume e OPOVOEMPÉ
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“Abuso”, segundo o dicionário Houaiss:
Acepções: substantivo masculino
1. uso incorreto ou ilegítimo; abusão, excesso
2. uso excessivo ou imoderado de poderes
3. aquilo que se opõe aos bons usos e costumes
4. qualquer ato que atente contra o pudor; sedução, desonra
5. regionalismo (Brasil):
aborrecimento, maçada
6. regionalismo (Brasil):
enjoo, fastio a comida ou bebida
Locuções:
a. de autoridade
Rubrica: termo jurídico.
m.q. abuso de poder
a. de confiança
violação da crença na probidade moral de outrem ou de compromisso
por ele assumido
a. de confiança pública
Rubrica: termo jurídico.
m.q. peculato
a. de poder
Rubrica: termo jurídico.
abuso de direito praticado por autoridade pública; abuso de autoridade
Postado por angu & bagaceira em
http://projetoabuso.blogspot.com.br.
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CIA. DOS ATORES (RJ) E OS FOFOS ENCENAM (SP)
(Re)Soluções para Ontem: Inventar o Passado
Não houve a busca pela criação de um espetáculo em conjunto, mas sim a divisão
das angústias e alegrias das salas de ensaio; o pensamento nos mecanismos de
construção e o entendimento do “colaborativo” que se dá em cada grupo. A mostra
desse processo foi um recorte de alguns experimentos cênicos da sala de ensaio e
uma conversa com o público presente sobre essas trocas.
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CLOWNS DE SHAKESPEARE (RN) E
TRIBO DE ATUADORES ÓI NÓIS AQUI TRAVEIZ (RS)
Conexão Música da Cena
A partir da prática dos grupos, o projeto Conexão Música da Cena prevê uma série
de atividades relativas à investigação da linguagem musical no teatro. Além da troca,
em si, entre os grupos dos dois Rios Grandes – com encontros, seminários e oficinas
programados no mês de abril em Porto Alegre e em agosto em Natal –, foi feito
um mapeamento eletrônico dos profissionais ligados à música para cena no país. A
partir do levantamento desses profissionais – músicos, compositores, arranjadores, di-
retores musicais etc. – foi enviado um formulário com questões sobre a prática desses
profissionais, no intuito de realizar um primeiro levantamento sobre quem trabalha
nessa área no Brasil. O registro desse processo desenvolvido pelos grupos – tanto nas
atividades à distância quanto nos encontros presenciais – pode ser acompanhado no
blog e em edições especiais das publicações Cavalo Louco − Revista de Teatro da Tribo
de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz e Revista Balaio, do Grupo de Teatro Clowns de
Shakespeare – com relatos detalhados dos processos vivenciados.
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EXERCÍCIOS DE FORMAÇÃO:
CULTURA DE GRUPO E OS RUMOS DO TEATRO
KIL ABREU
Mobilizado pela cultura dos coletivos, que nos últimos anos ganhou raízes razoavel-
mente firmes em vários lugares do país, o projeto acabou por oportunizar espaços
em que foram reunidas (por vezes confrontadas) experiências criativas, impressões
sobre o ofício e as suas circunstâncias. Por isso, a ideia de formação se estende aqui
para além do seu sentido mais imediato – o de uma importante pedagogia que a
reunião entre artistas sempre favorece. Artistas que se articulam para fazer e para
ver, para falar e para ouvir, para pôr em andamento as tarefas do seu próprio labora-
tório inventado – poético, estético, político.
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KIL ABREU
CRIAR, FORMAR, RELACIONAR
Nesta passagem talvez seja útil pensar um pouco nas ideias de forma e criação.
Sob determinado ponto de vista da estética, criar é sinônimo de formar, de ordenar,
de promover sínteses. E formar é, antes de tudo, relacionar (por continuidade, por
extensão, por oposição, por contraste, por afirmação, por omissão). Mas relacionar e
ordenar não são operações só da esfera da arte. Elas fazem parte da vida cotidiana,
ainda que, sem dúvida, na arte essas formações se anunciem em estratégias singu-
lares. É o que nos diz Fayga Ostrower. E é coisa que se assenta sobre uma necessi-
dade orgânica, essencial. Ela defende:
PESQUISA
Com base nas proposições iniciais feitas pelos grupos e nas visitas aos blogs,
nos quais foram relatados os processos de trabalho, é possível afirmar que as
motivações que mobilizaram os artistas são muito diversas. Dito que o projeto
não demandou a criação de espetáculos, e sim o intercâmbio inspirado na pros-
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EX ERC Í C I OS D E FO R M AÇ ÃO :
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Foto Rubens Chiri
Cia. dos Atores e Os Fofos Encenam
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EX ERC Í C I OS D E FO R M AÇ ÃO :
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pecção artística em área de interesse comum aos proponentes, é natural que o
entendimento e a eleição dos pontos angulares do trajeto sejam variados.
Em alguns casos, ele não é mais que uma intuição fundamental e um chamado ao
jogo, com grande espaço para a construção do corpo da investigação durante o
próprio processo (como no intercâmbio dos grupos Espanca! e Cia. Brasileira de
Teatro). Em outros, a intenção é estabelecer a troca de procedimentos, técnicas,
treinamentos. O campo de possibilidades aparece, desde logo, razoavelmente de-
terminado no repertório dos grupos (como no encontro entre o Lume e OPO-
VOEMPÉ). Certas vezes, ainda, os temas disparadores antecedem a pesquisa de
linguagem no sentido estrito (CiaSenhas e Núcleo Argonautas, por exemplo).
A música na cena foi o que motivou a proposta dos Clowns de Shakespeare (RN)
junto à Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz (RS). Com a realização de semi-
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KIL ABREU
nários, oficinas e debates, firmou-se aqui o interesse pela compreensão do assunto e
da sua aplicação em um viés ao mesmo tempo artístico e pedagógico.
A pesquisa do Lume – o ator que em seu corpo cria estados, associa significados,
recria seres, figuras e singularidades – encontrava-se pela primeira vez com a do
OPOVOEMPÉ – o ator invisível misturado aos pedestres, disponível a um coro
urbano cotidiano, que borra a hierarquia arte-público [...]. Ao mesmo tempo, fica
a certeza de que uma singularidade exacerbada impediria nossa coralidade in-
visível. Precisávamos e precisamos ainda ir pra rua com um corpo pedestre. Só
1. assim podemos criar o ato relacional não mediado que propomos.1
Cristiane Zuan Esteves, no blog do projeto
Composição de Matrizes ou Matrizes em Com- CIDADE E SUJEITO
posição? (lumeopovoempe.wordpress.com/O
povo em pé/Lume), 24/06/2011. Em um segundo bloco, propõe-se que estejam projetos nos quais os aspectos de
linguagem, ainda que indispensáveis e devidamente pautados, não apareçam no
primeiro plano da investigação. Os assuntos parecem anteceder os meios, que per-
manecem em vista, mas em posição diferente dos aqui já relatados. Chama a aten-
ção nesse campo dos assuntos o trânsito evidente entre indivíduo e sociedade ou,
mais especificamente, entre sujeito e cidade.
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dramaturgia por ele convocada. O encaminhamento ao espetacular é reduzido
em favor da ideia de intervenções, movimentos na direção do outro em espa-
ços abertos ou fechados.
Uma pesquisa cênica do Porto (Porto Velho) ao Rio (Rio de Janeiro) foi o que reuniu os
grupos O Imaginário (RO) e Será o Benidito?! (RJ) em torno da oralidade e da camelo-
turgia. O ponto de chegada era a sistematização de dramaturgias inspiradas na narrativa
popular. Os materiais de base foram memórias a respeito da construção da estrada de
ferro Madeira-Mamoré, especialmente aquelas colhidas no Porto de Santo Antônio do
Madeira, em Rondônia, e as formas abertas de encenação observadas no dia a dia do
camelô carioca. A aparente distância entre as fontes se estreita no apelo que ambas esta-
belecem em direção ao meio (as ruas, a floresta, os rios) e os percalços da sobrevivência.
Nesse grande “teatro rústico” das artes de rua, três elementos sempre marcaram e
delimitaram o acontecimento dessas performances urbanas. Tem-se “o que fala”,
“o que para e escuta” e “o que se oferta”. Seja o camelô, o saltimbanco, o curandei-
ro, o músico, o circense, o repentista, o capoeirista, o mágico ou um bom contador
de histórias, haverá sempre uma linguagem estética de cena com base no camelô
de rua e na dramaturgia popular. O roteiro, as cenas e a dramaturgia vão ser frag-
mentados e de improviso.2 2.
Blog do projeto oralidadecameloturgia.blogs-
[...] pot.com.br. Postado por Será o Benidito?!, em
24/08/2011.
O povo beiradeiro é um povo que trilha caminhos. Pelo rio, pela mata e também
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KIL ABREU
grupo Bagaceira (CE) apresentaram o projeto Abuso − Conexões Coletivas. Mas
a intenção foi ampliar o sentido da problemática social para outras direções, o que
também resultou na busca de leituras mais particulares do tema.
Para a Cia. dos Atores (RJ) e para Os Fofos Encenam (SP) a questão lançada foi o
sagrado pessoal. Com base em materiais que estão em processo (O Pentateuco, es-
petáculo do grupo de São Paulo) ou já formalizados (Auto-Peças, do grupo carioca) o
assunto é discutido pelas duas companhias a partir das abordagens em curso, que vão
do sagrado brasileiro às leituras individuais que foram feitas sobre o assunto.
CRUZAMENTOS
Como já se disse, é evidente que o relato das pesquisas organizado desta ma-
neira não define todos os seus termos, em geral mais dialéticos do que se pode
supor a partir daqui. Para ficar em alguns exemplos, o trabalho dos Argonautas
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EX ERC Í C I OS D E FO R M AÇ ÃO :
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Foto Ivson Miranda
Grupo de Teatro Celeiro das Antas e Teatro Experimental de Alta Floresta
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EX ERC Í C I OS D E FO R M AÇ ÃO :
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com a CiaSenhas previa, além dos temas apontados, procedimentos técnicos já
em curso na experiência dos dois grupos, como o treinamento a partir da técnica
de Viewpoints e do círculo neutro, entre outros. Assim como o encontro entre os
Clowns de Shakespeare e o Ói Nóis Aqui Traveiz se desdobrava em interesses
mais fundos, da ordem do rendimento estético e político mais ampliado, ainda
que o centro do projeto tenha sido o lugar da música na cena. São casos que
ilustram a complexidade produtiva que se pode intuir da maioria dos acordos
criativos assimilados nesta edição do Rumos.
De volta ao princípio desse quadro, talvez seja possível indicar alguns lances do
processo de formação cultural que está em pleno movimento no teatro – o que
seria objeto de outra reflexão mais detida. Por ora, retomemos Raymond Williams.
“Formações são mais reconhecíveis como tendências e movimentos conscientes
(literários, artísticos, filosóficos) que normalmente podem ser deduzidos de suas
produções formativas” (Williams, 2011). Formações podem ser deduzidas de suas
obras, sejam elas acabadas ou não. Ou podem ser deduzidas não apenas das obras
acabadas, mas do próprio processo que as gera.
Entretanto, diz ainda Williams que um processo formativo, quando olhado vertical-
mente, indica uma realidade ainda mais complexa, seja no sentido de afirmar valores
de época (por vezes na contramão do desejo dos próprios artistas), seja no sentido de
contestar as formações hegemônicas ou colocá-las em movimento. Não há dúvida de
que os exercícios formativos levados a cabo nesta edição do Rumos Teatro são uma
pequena e variada amostra de um processo cultural que se inscreve no teatro – e cer-
tamente tem alcance para além dele –, invade a vida ordinária e provavelmente volta
à cena, com os filtros da sensibilidade, das subjetividades em jogo.
Trata-se de uma teia de relações criativas nas quais grupos de artistas são convida-
dos a pensar a sua arte – na escolha e na afinação dos meios expressivos (sempre
emprenhados de decisões éticas, visões responsáveis sobre a vida); na discussão de
assuntos que disparam a necessidade de investigar tais meios. Exercícios de forma-
ção, portanto, que nos localizam em um lugar diante do mundo: aquele em que nós
mesmos decidimos, provisoriamente ou não, estar.
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KIL ABREU
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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EX ERC Í C I OS D E FO R M AÇ ÃO :
C ULT UR A DE G R U P O E OS R U M OS D O T E AT RO
12 ENCONTROS
REDE DE ENCONTROS
CECÍLIA ALMEIDA SALLES
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C EC Í L I A A L M E I DA S A L L E S
O projeto gerou diferentes formas de apresentações públicas, com todas as difi-
culdades de escolher recursos teatrais para mostrar pesquisas em andamento. Ao
mesmo tempo, os relatos dos processos que vieram à tona em conversas posteriores
às apresentações me fizeram pensar sobre o potencial dos encontros. Ao tentar
compreender alguns dos desdobramentos de tal projeto, a partir das discussões so-
bre processos de criação como rede, eu poderia localizar seu campo de atuação na
ação geradora da interação entre os coletivos, mais especificamente, na expansão
das redes de cada grupo a partir da relação com o outro.
Trago Eisenstein (1987) para esse diálogo. O cineasta, atraído pelo coletivismo do
trabalho, fala no capítulo “Construção de Pontes” de seu livro Memórias Imorais so-
bre colaborações, comandos e hierarquias e ressalta algo bastante interessante ao
definir os processos em equipe: trata-se do entrelaçamento de atos individuais com
a ação geral. Essa visão tem desdobramentos instigantes para refletir sobre o modo
de ação do coletivo: são indivíduos ou sujeitos que viabilizam as produções em equi-
pe que devem ser vistas como uma ação geral e comum a todos. Antônio Araújo
(2011), diretor do Teatro da Vertigem, aborda essa questão ao discutir o processo
colaborativo. Ele diz que se interessa particularmente pelo tensionamento dialético
entre a criação particular e a total, na qual todos estão submersos.
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Foto Ivson Miranda
Espanca! e Cia. Brasileira de Teatro
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Falemos um pouco mais sobre esse indivíduo imerso em uma coletividade que bus-
ca a concretização de um projeto comum. Vincent Colapietro (1989 e 2003), filó-
sofo norte-americano, afirma que o próprio sujeito não é uma esfera privada, mas
um agente comunicativo. É distinguível, mas não separável de outros, pois sua iden-
tidade é constituída pelas relações com outro. O sujeito não é só membro de uma
comunidade, mas tem também a forma de uma comunidade. Sob essa perspectiva,
consciência, engenhosidade, criatividade e outras características atribuídas a agen-
tes criativos são sempre funções de sua constituição cultural e localização histórica.
A dialógica cultural favorece o calor cultural que a propicia. Há uma relação recí-
proca de causa e efeito entre o enfraquecimento do imprinting (normalizações), a
atividade dialógica e a possibilidade de expressão de desvios, exploração de brechas
que, para Morin, são os modos de evolução inovadora.
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retores, iluminadores etc. interagem com seu entorno, alimentando-se e trocando
informações; ao mesmo tempo, o projeto teatral em curso, um sistema aberto, age
como detonador de uma multiplicidade de interconexões com a cultura. Essa ques-
tão é, de algum modo, um dos focos do Rumos, pois o programa envolve encontros
de grupos de diferentes regiões do Brasil. Estamos diante do poder gerador da “plu-
ralidade de pontos de vista e intercâmbio de ideias” para explorações de desvios,
entrada de novidades, expansões de limites etc.
Trago ainda Steven Johnson (2011), pensador norte-americano das mídias, para
ampliar nossa discussão sobre o potencial das interações. No livro De Onde Vêm as
Boas Ideias, ele parte de uma grande diversidade de análise de processos criativos
em diferentes campos em busca dos modos como as novas ideias são formuladas.
Ao procurar por “propriedades e padrões compartilhados que ocorrem reiterada-
mente em ambientes de excepcional fertilidade” (Johnson 2011, p. 20), ele encontra
aquilo que denomina “redes líquidas”. O autor relata descobertas no ambiente de
um laboratório de pesquisa em biologia molecular. Ele parte da pesquisa que Kevin
Dunbar, psicólogo na McGill University, fez sobre o trabalho nesse ambiente. Foi
observado que a maioria das ideias importantes vinha à tona durante reuniões re-
gulares de laboratório, nas quais vários pesquisadores se encontravam e, de maneira
informal, apresentavam e discutiam seu trabalho mais recente.
Ao observar o mapa da formação de ideias criado por Dunbar, podia-se ver que o
ponto de partida da inovação não era o microscópio, mas a mesa de reunião. O fluxo
social da conversa em grupo transforma esse estado sólido privado numa rede líquida.
É o potencial gerador das interações que Antônio Araújo (2011) discute, sob o ponto
de vista do diretor, no caso dos processos que se propõem a ser colaborativos. Parece
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que nesse ambiente o potencial de uma rede fluida se amplia. Ao relatar o processo
de O Paraíso Perdido, Tó diz: “Praticávamos uma criação a todo tempo integrada, com
mútuas contaminações entre os artistas envolvidos” e convidados. Ele confessa ser
bastante estimulado por leituras e discussões teóricas e, principalmente, pelo material
sujo e impreciso que vai surgindo das improvisações dos atores em sala de ensaio.
“Minha imaginação é como que provocada por elementos fora de mim e o corpo do
ator, nesse sentido, funciona como uma espécie de gatilho. A experiência e a presença
do outro são enzimas para meus mecanismos criativos.” A partir dessas reflexões, fica
claro o quanto a interação como método é estimulante: supõe a turbulência dos en-
contros e propicia a exploração de brechas e a expansão de limites.
Morin (2010) discute os campos de conflitos nas produções em equipe e, mais uma
vez, amplia nosso olhar para além da aparente especificidade do teatro. Ao propor
uma sociologia da ciência, afirma que muito do que acontece no universo acadêmi-
co é mais geral do que se quer acreditar: “Como sabemos, o grande problema de
toda organização viva – e, sobretudo, da sociedade humana – é que ela funciona
com muita desordem, muitas aleatoriedades e muitos conflitos”. E dá o exemplo
de Roma: conflitos, desordens e lutas que marcaram sua história não foram apenas
a causa de sua decadência, mas também de sua grandeza e de sua existência. A
interação entre sujeitos, conflitos e embates é, portanto, constituinte-chave da exis-
tência social: causa de “grandezas e decadências”.
O autor também afirma que as relações entre cientistas são de natureza amigável e
hostil, de colaboração e competição, regidas pelo jogo de verificação. Isso nos leva
a um interessante questionamento que será discutido mais adiante: quais são as
regras do jogo de outras atividades coletivas, como o teatro?
Essa discussão tem, a meu ver, dois desdobramentos que parecem estar intima-
mente ligados: modos de trabalho e constituição de um projeto comum. Como
se constrói o pacto relativo ao modo como o grupo ou os grupos, no caso, vão se
organizar na construção de um projeto comum?
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o potencial e as dificuldades da interação de projetos pessoais com um projeto co-
mum; no caso da interação entre grupos, a complexidade é ampliada.
Ao mesmo tempo, caímos em questões ligadas ao modo de trabalho, que diz res-
peito ao entrelaçamento de atos individuais com a ação geral em meio a colabora-
ções, comandos e hierarquias, assim como desordem, muitas aleatoriedades e con-
flitos. A possível falta de definição de funções no desenvolvimento do trabalho entre
grupos pode acarretar dificuldades na definição desses critérios.
Antônio Araújo (2011, p. 14) diz que “apesar de não comungarmos da filosofia da
extinção dos papéis dentro de uma criação, acreditávamos em funções artísticas
com limites menos rígidos, estanques, e praticávamos uma criação a todo tempo
integrada, com mútuas contaminações entre os artistas envolvidos”.
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Acredito que optar por um processo colaborativo implica a adesão dos membros do
grupo e a consciência da adoção de um modo de trabalho. Por outro lado, a falta de
definição pode causar impasses e conflitos que venham a dificultar o andamento do
processo. E, como vimos, a maneira como o grupo se organiza está estreitamente
relacionada aos critérios das tomadas de decisão que tornam o processo viável.
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C EC Í L I A A L M E I DA S A L L E S
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CALVINO, Italo. Seis Propostas para o Próximo Milênio. São Paulo: Companhia das Le-
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COLAPIETRO, Vincent. Peirce’s Approach to the Self: a Semiotic Perspective on Human Sub-
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JOHNSON, Steven. De Onde vêm as Boas Ideias. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
MORIN, Edgar. O Método 1: a Natureza da Natureza. Trad. Ilana Heineberg. Porto Alegre:
Sulina, 2002.
___________. Ciência com Consciência. 13ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
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R E D E D E E N CO N T R O S
12 ENCONTROS
O REFLEXO E A MEDUSA
MARIA TENDLAU
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MARIA TENDLAU
Explico a partir do relato do professor: Guapi é um município litorâneo da Colômbia
de onde se avista a Ilha de Gorgona. Essa ilha abrigava, até 1983, um presídio de se-
gurança máxima, posteriormente desativado por denúncias de violação dos direitos
humanos. Por sua história, foi apelidada de Ilha do Esquecimento. O presídio foi criado
em um momento de crescente violência no país, principalmente nas áreas rurais, em
razão das revoltas contra o governo opressor e arbitrário. Esses dados são conjugados
no espetáculo, que mistura registros documentais e ficção. Os espelhamentos estão
presentes o tempo todo e há, sobretudo, a presença do inimigo, como insinua a sinop-
se. A mediação em vídeo de imagens reais da festa em Guapi também auxilia, como
um instrumento de olhar oblíquo que se protege do afrontamento.
A Medusa morta por Perseu era chamada também de Górgona, mesmo nome da
ilha-presídio, que pode ser vista desde Guapi e que se posiciona de modo especular
diante do vilarejo. Mas seria possível olhar sua história de frente, sem o auxílio do
espelho? Neste caso, como no mito, a visão pode ser petrificante, paralisadora. A
simples negação do que é visto − reação possível diante das visões terrificantes −
pode interferir no reconhecimento desse “monstro”. Para olhar e matar a Medusa
é necessário o artifício. A história da ilha não figura diretamente na peça, apenas a
história da Festa dos Santos Inocentes e a violência vivida na Colômbia. A ilha e o
seu passado, como Medusa, não são encarados e o espelho, nesse caso, opera um
ensinamento sobre a necessidade de não esquecer. Cabe lembrar do significado
mais óbvio do espelhamento, que é o do próprio reconhecimento. Rever-se, ver-se,
lembrar-se. A Festa dos Santos Inocentes remete aos anos de opressão do povo
negro e, de uma forma carnavalesca (no sentido medieval do Carnaval, em que
os papéis são invertidos), opera como uma lembrança na carne para a população
de Guapi que se oferece ao chicote. Mas, no festejo, as chicotadas são desferidas
por homens negros vestidos, na maioria, com saias, como mulheres. O exercício do
não esquecimento é comandado pelos “oprimidos” como tirocínio necessário aos
descendentes daqueles que, de fato, foram chicoteados. E, aqui, apenas a retóri-
ca não dá conta desse passado. É preciso lembrar, espelhar/mimetizar, no corpo.
Resta a pergunta: com quem devemos nos identificar? É esse o jogo de reflexos
que permite acertar o inimigo. Enfim, tomo emprestada essa imagem para falar de
alguns aspectos do programa Rumos Teatro para compartilhamento dos processos
de desenvolvimento das pesquisas.
O edital do Rumos Teatro foi escrito a partir de uma experiência ampla, da qual
fui convidada a participar do conselho curatorial: a realização de sete edições do
Próximo Ato – Encontro Internacional de Teatro Contemporâneo pelo Itaú Cultu-
ral, especialmente nos últimos anos, quando o encontro passou a focar o teatro
de grupo no Brasil. Percorrendo alguns centros regionais e tentando agrupar
coletivos teatrais de diferentes partes do país para o debate a respeito de um
teatro criado e gerido em grupo, fomos, coletivamente, delineando um possí-
vel denominador para esses agrupamentos e talvez uma ideia de país que os
acompanhava. O que nos aproximava e o que nos separava em nossas práticas
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poéticas e atuações políticas? A precariedade como elemento constitutivo des-
sas práticas nos deu norte para buscar o que unia coletivos tão diversos. O olhar
para a identidade, para o que evocava o termo “teatro de grupo”, e mesmo o que
definia, a partir do interior dos coletivos, seu pertencimento a esse “tipo de fazer”,
acompanhou todos os encontros.
Em 2010, o edital da primeira edição do programa Rumos Itaú Cultural Teatro foi
lançado, propondo que os grupos se encontrassem em seus espaços de trabalho
para uma troca mais efetiva. A troca oferece o espelho, esse primeiro a que me refiro:
penso-o como o artefato de reconhecimento, como o olhar mediado para si mesmo.
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MARIA TENDLAU
para o outro refletisse o olhar para si. E não caberia, nesse caso, apenas a retórica.
Seria preciso viver o reflexo no corpo, na prática da construção poética, sob o risco
do enfeitiçamento por nossa própria imagem.
O segundo espelho ao qual me refiro é o que espelha a mim como indivíduo his-
tórico. É como o espelho/escudo convexo de Perseu – reflete minhas feições, mas
também a Medusa e todos os heróis que restaram petrificados. É o espelho da iden-
tificação e não da identidade.
Tudo isso parece óbvio. Mas a questão que coloco é: quanto da consciência des-
se lugar limítrofe que ocupamos e quanto da consciência sobre nossa arte como
pública se espelha na cena que produzimos? Na quinta edição do Próximo Ato,
o conselho curatorial propôs uma provocação vinda da tese-manifesto “Uma
Estética da Fome” (1965), de Glauber Rocha. Nenhuma defesa de Glauber, em
si, mas a utilização de sua perspicácia para pensar a cena. Segundo Glauber, por
condicionamento econômico e político, chegamos a um raquitismo filosófico
e nos tornamos impotentes. O resultado da impotência para ele seria, por um
lado, a esterilidade e por outro a histeria. A esterilidade seria caracterizada pelos
exercícios formais vazios que não alcançam, nas palavras dele, a plena possessão
das formas. E a histeria apareceria de três maneiras: nos discursos inflamados,
nas reduções políticas por intransigência e nos apelos paternalistas de uma arte
dita popular. Para Glauber, a originalidade de uma arte brasileira (refere-se, no
caso, ao cinema novo) seria “nossa fome” e a miséria dessa fome é que, embora
fosse sentida, não era compreendida.
A fome, em nosso caso, aparece na cena de muitas maneiras – sendo algumas cor-
respondentes à sintomatologia apontada pelo cineasta –, mas, para além do seu sur-
gimento, nos resta a tarefa de sua compreensão. E como compreendê-la a não ser
por sua conformação no discurso poético que produzimos? O amadurecimento da
cena, desse ponto de vista, se daria pela identificação de três elementos. Primeiro, a
identificação de nossa inserção social, seja como reconhecimento de nossa própria
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MARIA TENDLAU
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Relembro momentos em que os relatos se esmeravam para trazer aos demais gru-
pos uma planificação de suas pesquisas, saindo de seu ambiente para entrar em
um campo por vezes estéril de uma apresentação formal de objetivos, métodos e
dificuldades, como se isso fosse ser o mais preciso e inequívoco possível. Também
houve relatos que se contentaram em explanar o fazer de cada grupo, esquecendo
em diversas ocasiões que o passo adiante deveria ser o “entre dois”. Mas espelho é
espelho, e, vez ou outra, nos escapa da face um sinal, uma expressão, que nos repre-
senta mais que tudo. Curioso como podíamos ver, mesmo que contradizendo as fa-
las, os momentos em que o risco se apresentava e que o desvio pareceria mais forte.
Saboreei especialmente os silêncios do encontro, como quando um grupo se atinha
diante, talvez, de sua inviabilidade, de seu fim iminente ou de um desacordo interno
qualquer, e ali apareciam as razões e desejos mais originais dos artistas. Como me
referi, a paralisia da identidade, em nosso caso, às vezes é mais potente quando per-
dida por alguns instantes. Também foram especiais os momentos de honestidade
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MARIA TENDLAU
cortante, como quando um grupo disse do outro: éramos próximos demais e isso fez
com que ultrapassássemos certos limites. Não deu, brigamos.
No caso da Medusa como metáfora para o que nos cerca, relembro experimenta-
ções formais que trouxeram para o discurso poético, o que me pareceu uma espé-
cie de necessidade de novos espaçamentos, fossem proximidades ou separações
(quem sabe em paralelo às distâncias e às aproximações que envolviam a troca
entre grupos de lugares diferentes). Espaçamentos que anunciavam uma neces-
sidade de chegar ao outro, de ir até ele, de não esperar que ele viesse até si. Uma
invasão de fronteira para fora do espaço protegido e idealizado do “teatro”, espe-
lho convexo e não plano. Onde o que me é mais íntimo se torna público e onde
o que é mais público invade minha intimidade? Mencionaria os experimentos que
envolveram espaços urbanos e espaços privados ou confinados. Essa troca de lu-
gares foi vivida esteticamente de várias maneiras: num elevador, num quarto de
hotel televisionado, numa barraquinha para uma pessoa, mas que acolheu umas
sete, num banheiro. Confidências foram para uma faixa de pedestres, vibradores
para o hall de uma instituição, lençóis para um jardim. Às vezes estávamos muito
longe, outras, próximos demais. Nesses novos espaços, um jogo de assumir o lugar
do outro, repetir ações, imitar, falar de novo. O público ora é incitado a falar, ora é
abandonado na observância – jogo de assunção de lugares. Onde você se poria?
O inimigo lá – muito perto de mim e de você.
Agora, passado quase um ano, no momento desta escrita, imagino que uma de-
cantação do que realmente aconteceu naquela semana intensa tenha sido ope-
rada em cada um dos que dela participaram. Tenho de dizer que foi maravilhoso
estarmos todos juntos – único. Mas me interessa (descontados os excessos cau-
sados por uma idealização que me acomete) que esse compartilhamento tenha
favorecido a formação de um substrato fértil para a continuidade de cada uma das
práticas dos grupos, sejam elas ligadas aos modos de criar, sejam elas ligadas às
formas de se organizar. Mas, sobretudo, que sejam elas a conjugação do que vejo
no espelho sobre mim e a potência da espada de Perseu ao matar a Medusa, na
cena, na minha atuação política, no meu estar coletivo. Interessa, sobretudo, o que
este exercício de mirada ao espelho mobiliza como avanço crítico nas construções
do discurso poético. Esta, a potência política da troca para além da real força de
uma articulação nacional.
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JOSÉ FERNANDO AZEVEDO
NHAR
ENCONTRO
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PA R A U M A E S T É T I C A D O D E S P E RTA R
ENCONTRO
Mas aqui, onde o encontro era como uma clareira no asfalto... aqui, onde nossos
corpos não substituem outros corpos, era de outra ordem o vínculo que imaginávamos:
era mais que vínculo – poderíamos dizer: era uma aliança. Levamos tempo demais
para entender que a cena era um apelo. Levamos tempo demais ensaiando aproxi-
mações, com medo das distâncias, e sequer percebemos a conversão do tempo e essa
presença tão intimamente odiada do medo. Adiamos como quem desafia o acaso,
como se a cada abrir de olhos pudéssemos reordenar os fatos. Com um ímpeto infantil
de encurtar caminhos, desviando sempre. Mas não há desvio que não nos devolva
àquilo que somos. Não se trata de falar como quem desenha labirintos, mas forjar, no
choque das palavras, outros encontros: com quantas vozes se faz um coro? Não há,
no tempo que é nosso, mais do que somos. Não há, nas esperas que vivemos, mais do
que queremos. Não há, no tempo que virá, mais do que fizemos...
Teatro de Narradores, trecho de “Cidade Fim”
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JOSÉ FERNANDO AZEVEDO
I
Uma operação ideológica sem precedentes está ocorrendo no Brasil, uma espécie
de mutação social e mesmo antropológica e cultural. A julgar pelos jornais e por
certa “crítica”, toda uma classe, em menos de uma década, desapareceu. Ope-
rários, trabalhadores das mais diversas categorias e seus filhos foram, por assim
dizer, abduzidos pela “nova classe média brasileira”, e esta seria a grande novidade
de uma sociedade sempre à espera do futuro. O fundo falso dessa operação é a
própria nota estatística, que revela o absurdo da conta. O fato é que uma espécie
de conversão imaginativa se opera no seio da sociedade brasileira, de modo que
pensar assim, a partir dessa novidade – a considerar o significado da classe média
entre nós, aqui em São Paulo em particular (plataforma de onde falo), mas não
apenas, é certo –, não deixa de configurar uma reação. Vivemos um tempo de
reação. Estamos todos em perigo.
Nesse sentido, já não basta repetir como bordão o clichê fundador segundo o qual o
teatro é encontro, nem mesmo entoar o mantra característico de certa fenomenolo-
gia da cena e sua metafísica das presenças, segundo a qual o teatro não é uma, mas
1. duas atividades – fazer/ver;1 ideias que têm servido para as mais fundas mistificações
Por exemplo, Denis Guénoun, O Teatro É Ne- e que, não sendo falsas, servem todavia à dissimulação da impotência diante de
cessário? Trad. Fátima Saadi. São Paulo: Editora uma exigência cada vez mais incontornável: para além do consumo de formas ou
Perspectiva, 2004. da vivência mística do outro, o teatro se impõe como uma espécie de comunidade
imaginada2 que se quer efetiva. Não se trata de retomar o mito da comunidade per-
2. dida; longe de qualquer utopia regressiva, a expressão aqui designa antes um tipo
Faço aqui um uso remanejado do conceito ela- de aliança, ou mesmo a capacidade de imaginá-la.
borado por Benedict Anderson, Comunidades
Imaginadas: Reflexões sobre a Origem e a Difu- II
são dos Nacionalismos. Trad. Denise Bottman.
São Paulo: Companhia das Letras, 2008. A cena dos grupos fez, nos últimos 15 anos, a crônica do desmanche sociopolítico-
econômico-cultural empreendido de maneira programática desde o final dos anos
1980. Paralelamente a isso, a sociedade fazia uma espécie de conversão. O primeiro
movimento levou os grupos a projetarem um vínculo de imaginação com a parte da
sociedade interessada na transformação social, em muitos casos, pressupondo esse
campo sem ter dele a experiência efetiva. Dos grupos então se exigia clareza de
posição, uma vez que o passo seguinte deveria implicar radicalização. Do que se vê,
a radicalização não veio, ou veio imaginária e estetizada, ou parcial e tomada por um
esquerdismo localizado, ou deflagrada em consequência do movimento anterior,
mas movida por um ressentimento cifrado na falsa oposição centro-periferia.
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PA R A U M A E S T É T I C A D O D E S P E RTA R
Foto Rubens Chiri
Cia. Irmãos Guimarães
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JOSÉ FERNANDO AZEVEDO
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PA R A U M A E S T É T I C A D O D E S P E RTA R
Ocorre que, precisamente aí, um dado surpreendente e talvez novo se produziu.
Os grupos, que por susto ou inércia, ou as duas coisas, pareciam estar um passo
atrás – em parte recuo, em parte compasso de espera –, veem converter essa posi-
ção numa plataforma insuspeitada de trabalho. E em que consiste essa plataforma?
Ali, onde a cena dos grupos parece ir na contramão do estado geral da sociedade
integrada à felicidade a crédito; ali, onde a cena dos grupos continua a desenhar a
fisionomia mórbida de um processo em fim de linha e a contabilizar as promessas
não cumpridas – é precisamente ali que o teatro de grupo preserva sua atualidade.
E isso porque essa cena permanece descrevendo a realidade como um sonho ruim
do qual precisamos acordar.
III
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JOSÉ FERNANDO AZEVEDO
NARRADORA – O teatro está em obras.
Os atores encenam uma peça sobre conflitos no campo.
Estudam o tema da arte do passado à procura do próprio tempo.
[...]
IV
O teatro é uma prática e, enquanto tal, sua realidade é a de uma produção. Aquele
ver e aquele fazer conformam relações de produção, de modo que o estágio do
“consumo” (ver um espetáculo), quando criticamente projetado, subverte-se em
novo estágio de produção. Foi com Brecht que compreendemos: “pela contradição
que é constitutiva da mediação do capital, no mesmo movimento em que o fluxo
da produção industrial se universaliza, ganhando valor determinante, ele universaliza
também a separação. Vale dizer: no mesmo passo em que se impõe a produção
como condição inescapável para o trabalho da obra, impõe-se, contraditoriamente,
também a separação entre produção e consumo, criando-se no fluxo da produção
a ilhota de não produção, [...] para a esfera artística [...]: ‘Não há direitos fora da pro-
dução’. [...] Se produzir torna-se condição para o próprio conhecimento, o exercício pro-
dutivo, inescapável, deve necessariamente processar-se, assim, como enfrentamento
contínuo da separação entre produção e consumo. [...] Se a luta pelo ultrapassamento
da dicotomia produção-consumo se fará [...] na direção predominante de um au-
mento do fluxo produtivo, o empuxo mesmo nesse rumo implicará fazer passarem
6. um no outro produção e consumo [...]”.6
José Antonio Pasta, Trabalho de Brecht: Bre-
ve Introdução ao Estudo de uma Classicidade V
Contemporânea. São Paulo: Editora Ática, pp.
222-223. No campo da política, trata-se de um programa antimimético ou, se quisermos, de
um programa de esquerda. Como escreve Beatriz Sarlo: “Uma esquerda é, por defi-
nição, antimimética. E uso a palavra para afastar-me de todas as práticas de mimese
que hoje caracterizam a política: as pesquisas, a construção de uma opinião pública
que reproduza as condições existentes, o alinhamento político, conservador, a todos
os medos sociais, a aquiescência automática diante das relações de poder estabe-
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80 R U M O S T E AT R O | E N C O N T R O
JOSÉ FERNANDO AZEVEDO
VII
Por um lado, em alguns casos, pode tratar-se de simples recuo, quando não, uma
fixação pela imagem já ultrapassada de um país desmanchado. Por outro, e este,
sem dúvida, o caso que interessa, talvez se desenhe aí a plataforma para a crítica
efetiva de uma sociedade que sempre esteve no futuro, não porque trazia em seu
funcionamento as marcas de uma felicidade nova e cabocla, mas porque nunca sou-
be esconder a fisionomia real do progresso e da modernidade – dissimulados em
liberalismo e democracia na metrópole do capitalismo. Esse encontro marcado com
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JOSÉ FERNANDO AZEVEDO
a verdade, tudo indica, nunca esteve tão próximo. E o teatro dos grupos, a julgar pela
cena que produz, intuiu os termos desse encontro.
Por isso, entre tantas outras razões, não nos interessa mais certa historiografia que ten-
de a abordar a trajetória do teatro brasileiro na chave dos ciclos e seus turning points: o
espetáculo da vida das companhias, dos grupos dos anos 1960, dos grupos dos anos
1970, da década do diretor, da retomada dos grupos... O outro lado dessa história é
que cada um desses momentos cifra uma inflexão no interior de um processo que,
pelo menos desde 1948, se faz constante e agravado: um esforço de modernização e
simultânea integração da cena local a um circuito mundial. As viradas ou interrupções
foram sempre determinadas por transformações produtivas (na sociedade, no teatro).
O que talvez devamos de uma vez por todas ressaltar é que o “teatro brasileiro
moderno” já nasce mundial, precisamente porque é moderno. Nosso teatro, ali-
ás, “galho secundário” desde a origem, já nasce mundial e moderno naquilo que
apropria e empenha. Mesmo se o parâmetro histórico é o romantismo, não será
menor e menos importante o fato da apropriação deslocada de formas e proce-
dimentos e o esforço de ajustar o foco face ao “assunto nacional”. Quase dois
séculos depois, continuamos levados pela mesma oscilação, em tudo ideológica,
entre um certo cosmopolitismo sempre renovado, de um lado, e, de outro, um
empenho por inscrever-se nas nossas contradições, nem sempre com escuta
para o significado efetivo destas.
Mais uma vez, a Companhia do Latão deu forma àquele adiamento, em cenas anto-
lógicas de seu O Nome do Sujeito (1999), intuição primeira de elaborações cênicas
que atravessariam a cena dos grupos na primeira década do século. Essa cena, em
seus melhores momentos nos últimos 15 anos, tem sublinhado as linhas desse pro-
cesso, num trabalho de formalização radical de nossa formação supressiva (para usar
a expressão crítica de José Antonio Pasta). Um caso exemplar nessa direção é o
Frátria Amada Brasil (2006), do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos (SP).
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VIII
IX
JOAQUIM: Boa noite. Obrigado por terem vindo. Desculpem começar assim,
cortando o sonho de vocês, mas para que tanto suspense? Todas as histórias do
mundo já foram contadas.
Essa é só mais uma história de uma família comum, que toma café, em que um
briga com o outro, em que um adoece, enfim: com nossos problemas cotidianos.
No começo, o telefone vai tocar, porque meu irmão, que mora longe, está com mui-
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JOSÉ FERNANDO AZEVEDO
tas saudades de nós. Depois nós vamos ficar aqui, convivendo com nossos hábitos
particulares; até que, no final, o telefone vai tocar novamente, nós vamos atender e
receber a notícia de que meu irmão se suicidou. A nossa história é essa.
Vocês são grandes, eu sou grande, ninguém aqui é pequeno... todo mundo aqui
sabe onde está. Todos sabem que amanhã eu vou repetir as mesmas coisas que eu
estou falando agora. Todos sabem que amanhã eu vou entrar nesse lugar e dizer:
Boa noite. Obrigado por terem vindo, mas todas as histórias do mundo já foram
contadas... Essa é só mais uma história de uma família, assim como a de vocês. No
começo, o telefone vai tocar, porque meu irmão está com muitas saudades de nós,
depois nós faremos algumas coisinhas comuns do dia a dia de uma família, até que,
no final, o telefone vai tocar novamente, nós vamos atender e receber a notícia de
que meu irmão se suicidou. A nossa história é essa.
No final, haverá aplausos. Minha família vai abrir as portas desse lugar para que
vocês possam continuar suas vidas, continuar regando suas plantas, continuar
criando seus animais de estimação...
Tenho certeza que ao final, durante os aplausos, eles vão se levantar, fixar o
olhar em mim, olhar para minhas roupas para ver se estou bem, fazendo ques-
tão de mostrar que estão aqui, presentes, que fazem parte de mim, que não
importa esses outros que estão aplaudindo e sim a “nossa ligação”, que me
querem bem, apesar de qualquer coisa, apesar de qualquer porta que não te-
nham aberto para mim.
9. Nós vamos colocar uma música para que vocês saiam daqui com uma sensação
Texto de Grace Passô, dramaturgia elaborada agradável. Nós aqui temos o hábito de colocar uma música para suportar a rotina,
no processo de criação do espetáculo do grupo preencher o silêncio com competência e ajudar a expressar nossos sentimentos.
Espanca!. Belo Horizonte, maio de 2009, não
publicado. Com música tudo é mais fácil.9
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Foto Rubens Chiri
Clowns de Shakespeare e
Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz
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JOSÉ FERNANDO AZEVEDO
E N CO N T R O 87
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X
Num encontro promovido pelo Tablado de Arruar (SP), em 2008, sobre as relações
entre o teatro e a cidade, Reinaldo Maia10 falava algo mais ou menos assim: a gen- 10.
te se trata mal! Falta entre nós afeto político! Afeto político não é condescendência Dramaturgo, diretor e ator, um dos fundadores
compassiva de comunidade eclesial de base, não! Afeto político: eu tenho de saber do Grupo Folias (SP), foi um dos articuladores
quem é a minha história.11 Quem conheceu o Maia reconhece o tom, mas pode es- do Movimento Arte Contra Barbárie, partici-
tranhar o tema. Ao menos o modo como o enunciara. Mas a questão parece cen- pou da redação da lei de fomento e integrou o
tral. Esquecemos cedo demais. Entre as gerações de grupos houve, por assim dizer, conselho nacional do Redemoinho; faleceu em
transições canceladas, de modo que o teor próprio de um movimento como o Arte abril de 2009.
Contra Barbárie12 não é assimilado senão de forma mítica. E isso porque esquecemos
o sentido daquele encontro que foi o movimento. É, sem dúvida, sinal de um tempo, 11.
por exemplo, uma plenária que efetive um encontro de gerações (as do Arte Contra Tablado de Arruar, Teatro sobre a Cidade: Deba-
Barbárie juntavam gente como José Renato Pécora,13 Fernando Peixoto,14 César Viei- tes e Conversas 2005-2009. São Paulo: Hedra,
ra,15 Ilo Krugli,16 Eduardo Tolentino,17 Luíz Carlos Moreira18 e o próprio Maia para citar 2010, p. 94.
alguns e já indicar o atravessamento de décadas, além de toda a “galera nova” que
chegava e ia se formando), num processo mais que acelerado de formação política. 12.
A questão era essa: o encontro como formação política. O grupo implicava então um Movimento surgido a partir do lançamento de
duplo movimento: internamente, formação estética, no confronto diário com meios um manifesto com o mesmo nome, em 1999,
e formas de produção; externamente, formação política, um abrir-se ao aprendizado articulado por artistas e grupos de teatro da ci-
de uma luta que se revelava eficaz na medida em que alimentava o trabalho em sala dade de São Paulo.
de ensaio. Foi da imbricação desses movimentos que se produziu o melhor da cena
naqueles anos. Houve, por assim dizer, naquele momento, uma aposta tácita: as vozes 13.
em cena deveriam dar corpo às posições públicas, não como mera transposição, mas Diretor e ator, fundador do Teatro de Arena
como mediação para novas formas, novas percepções. Estavam aí muitas de nossas (SP), em 1953. Faleceu em maio de 2011.
contradições. Mas, ainda assim, era uma aposta clara. A Oresteia – o Canto do Bode
(2007), do Folias, talvez seja o último capítulo desse processo. 14.
Ator, tradutor, escritor e diretor, esteve ligado
Essa experiência do encontro trazia consigo um aspecto decisivo. Não se tratava ao Teatro Oficina (SP) nos anos 1960.
naquele momento de um “mero” caso de “troca estética”, mas, efetivamente, de um
processo de formação. Uma dimensão esvaziada: agora, há como que uma ansieda- 15.
de por essa troca estética, mas se negligencia o fato de que ela só acontece como Nome adotado por Idibal Piveta durante a dita-
consequência de um encontro anterior. Quando dois ou mais grupos se encontram dura, quando, como advogado, defendeu pre-
há, ou deveria haver, a ampliação de um campo público de pensamento e criação – sos políticos. É diretor e dramaturgo, fundador
a não ser que se entenda a sala de ensaio como um espaço íntimo, privado: mais que integrante do grupo Teatro União e Olho Vivo,
um mero compartilhamento, deveria ser já uma intervenção. Tuov (SP), atuante desde 1969.
XI 16.
Diretor, dramaturgo e ator do grupo Teatro
Em São Paulo, entre 2008 e 2009, alguns grupos se encontraram quase semanal- Vento Forte (SP).
mente, cada vez numa sede, para compartilhar ideias, conversar sobre os espetá-
culos, as dificuldades e, de uma maneira mais aberta, visitar a “cozinha” do outro (a 17.
expressão era do Marco Antônio Rodrigues19 e isso, em geral, acontecia literalmen- Diretor do grupo Tapa, fundado em 1979 no Rio
te). Encontros para jantares coletivos depois dos espetáculos ou às vezes em ma- de Janeiro, e que migrou para São Paulo em 1986.
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nhãs de domingos, para cafés. Os grupos puseram-se a rever trajetórias e a refletir
sobre o que vínhamos fazendo, sobre o estágio em que nos encontrávamos, para
muitos já um limite. Mas a percepção mais interessante ali foi a seguinte: o trabalho
18. dos grupos tornou-se, sem dúvida, uma referência; é possível que alguém nascido
Diretor e dramaturgo do grupo Engenho Te- em 1990 não tenha visto mais que espetáculos de grupos. Ocorre que um aspecto
atral, fundado em 1979 (inicialmente com o desse trabalho ressaltava aos olhos. Em meio a experimentações dramatúrgicas e
nome Apoena). remanejamentos do trabalho de encenação, essa trajetória dos grupos acabou por
se definir numa fisionomia nova da cena, cifrada, sem dúvida, na figura do ator. O
19. ator não como a estrela, nem mesmo o mito do ator como o elemento último do
Diretor teatral, articulador do movimento Arte teatro, mas o ator como um mediador.
Contra Barbárie e do Redemoinho, foi um dos
fundadores do grupo Folias, do qual afastou-se Dos anos de aprendizado dos grupos – que em São Paulo, para a maior parte desses
em 2010. grupos, surgidos desde o final dos anos 1990, coincidiu com os anos de implantação
da lei de fomento – resultou a formação de uma geração de atores definitivamente
significativa. E em que consiste o trabalho desse ator mediador? Ele é o portador
não apenas de uma identidade poética, mas sua voz tende a definir a fisionomia de
uma fala, é coro. Aí, a evidência de que os processos de criação são processos emi-
nentemente públicos, processos de formação explicitados no corpo presente desse
portador que é o ator.
XII
Esboços de uma plataforma para uma nova temporada que, tudo indica, ainda será
no inferno? Sem dúvida, a pergunta formulada cenicamente em 2009, pela Com-
panhia São Jorge, se politicamente dimensionada nestes tempos em que ameaça a
reação, permanece.
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ENCONTRO
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S U E LY R O L N I K
mais curiosamente ainda, esta também tenha sido privilegiada pelos modernistas
na construção de seu argumento, uma outra etapa, descrita e pensada por Vi-
veiros de Castro, parece fornecer uma chave importante para as questões que
pretendo abrir aqui. Segundo o autor, após ter sido capturado, o prisioneiro era
entregue às mulheres da tribo e com elas permanecia por alguns meses ou até
alguns anos. Mas o prisioneiro não era maltratado pelas mulheres; pelo contrário,
conviviam amistosa e divertidamente. Ao longo desse período, elas iam prepa-
rando e decorando o ibirapema, bastão de madeira com o qual ele seria morto.
No dia da execução, toda a tribo reunia-se na praça pública. Levado para a praça,
“decorado de plumas e pintado, o prisioneiro travava com seu matador, também
paramentado, diálogos cheios de arrogância [...]. Tinha que ser idealmente morto
com uma só pancada de ibirapema, que lhe deveria esfacelar o crânio”. Depois
disso, é que se devorava seu corpo seguindo um rigoroso ritual de distribuição de
suas partes, e o matador retirava-se para seu resguardo. Aqui vem o ponto que
mais nos interessa: “após ter matado o inimigo, o executor mudava de nome e
era marcado por escarificações em seu corpo durante um prolongado e rigoroso
resguardo”.3 E assim, com o decorrer do tempo, nomes iam se acumulando, a
cada incorporação do confronto com um novo inimigo, acompanhados de seus
respectivos desenhos entalhados na carne: e, quanto mais nomes gravados em
seu corpo, mais prestigiado seu portador. A existência do outro − não um, mas
4. muitos e diversos – era assim inscrita na memória do corpo, produzindo impre-
Segundo os mesmos autores, os portugueses visíveis devires da subjetividade. Não por acaso, o único aspecto de sua cultura
queriam usar a prática de captura de inimigos que os Tupinambás recusaram-se ferozmente a abandonar foi a antropofagia:4
para fazer escravos, mas os índios resistiam. esse ritual de iniciação ao fora e ao princípio heterogenético da produção de si e
Quando não dava para escapar às ordens dos do mundo que ele implica. Mantê-lo a qualquer custo – não seria uma forma de
colonizadores, eles preferiam oferecer-lhes exorcizar o perigo de contágio pelo princípio identitário e a dissociação do corpo
seus familiares para a escravidão, em vez de que o caracteriza, o qual regia a subjetividade e a cultura do colonizador?
entregar-lhes seus inimigos e abrir mão do ritu-
al antropofágico, com a matança em terreiro e Ao propor a ideia de antropofagia, a vanguarda do modernismo brasileiro extra-
suas demais etapas. pola a literalidade da cerimônia indígena para dela extrair a fórmula ética da exis-
tência de uma incontornável alteridade em nós mesmos que preside esse ritual
5. e fazê-la migrar para o terreno da cultura. Com esse gesto, a presença atuante
Assim o descreve o antropólogo brasileiro desta fórmula num modo de criação cultural praticado no Brasil, desde sua fun-
Darcy Ribeiro: “A colonização no Brasil se fez dação, ganha visibilidade e se afirma como valor: a devoração crítica e irreverente
como esforço persistente de implantar aqui do outro sempre múltiplo e variável. E, se agregarmos à fórmula modernista o
uma europeidade adaptada nesses trópicos e que nos indica a etapa do ritual indígena antes mencionada, definiríamos a mi-
encarnada nessas mestiçagens. Mas esbarrou, cropolítica cultural antropofágica como um processo contínuo de singularização,
sempre, com a resistência birrenta da natureza e resultante da composição de partículas de inúmeros outros devorados e do dia-
com os caprichos da história, que nos fez a nós grama mutável em função de suas marcas na memória do corpo. O mais óbvio
mesmos, apesar daqueles desígnios, tal qual é entendê-lo como uma resposta poética − e com sarcástico humor – à necessi-
somos, tão opostos a branquitudes e civilida- dade de afrontar a presença impositiva das culturas colonizadoras (o que torna
des, tão interiorizadamente deseuropeus como patético seu mimetismo deslumbrado pela intelligentzia local); mas, na verdade,
desíndios e desafros”. (Em: O Povo Brasileiro. é também e talvez, sobretudo, uma resposta à exigência de assumir e positivar o
A Formação e ou Sentido do Brasil. São Paulo: processo de hibridação trazido por sucessivas ondas de imigração que configura,
Companhia das Letras, 1995.) desde sempre, a experiência vivida no país.5
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Foto Rubens Chiri
Será o Benidito?!
E N CO N T R O 93
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KNOW-HOW ANTROPOFÁGICO 6.
Cartografia Sentimental. Transformações Contem-
Nos anos 1960 e 1970 culmina, em vários países do Ocidente, um longo processo porâneas do Desejo (São Paulo: Estação Liberdade,
de absorção e capilarização das invenções do modernismo: estas transbordam o 1989, esgotado). 2a ed; revisada com novo prefácio
território restrito das vanguardas artísticas e culturais e tomam vulto numa ampla e (Porto Alegre: Sulinas / UFRG, 2006); 5a ed; 2011.
ousada experimentação cultural e existencial de toda uma geração, no contexto do 7.
movimento que se designou “contracultura”. Este consistiu numa reação epidérmica Um golpe de Estado em 1964 submeteu o Bra-
à sociedade disciplinar, que acompanha o capitalismo industrial, com sua subjetivi- sil a uma ditadura militar que durou até 1985,
dade e cultura identitárias, que compunham a figura do assim chamado burguês em quando – ainda indiretamente – foi eleito o
sua versão hollywoodiana do pós-guerra. primeiro presidente civil do país. As primeiras
eleições diretas ocorreram em 1989.
Assim, também no Brasil, reatualizou-se, naquele período, o ideário antropofá- 8.
gico da vanguarda local. Reavivado e transfigurado, este foi um aspecto crucial A contracultura e a militância, dois polos do
da originalidade desse movimento no país em diferentes campos da cultura. movimento da geração dos anos 1960−1970,
Isso dava aos brasileiros um certo know-how para a experimentação de outras foram ambos objetos do terrorismo do Estado
políticas de subjetivação, de relação com o outro e de criação que se buscava durante a ditadura no Brasil.
internacionalmente na contracultura. 9.
Schizoanalyse et Anthropophagie. Em:
Foi certamente meu intenso envolvimento com a experiência contracultural, e a ALLIEZ, Eric (Org.). Gilles Deleuze. Une Vie
necessidade de atualizá-la em conceito de modo a integrá-la à cartografia do pre- Philosophique (Paris: Synthélabo, col. Les Em-
sente, o que me levou alguns anos depois a conceber a noção de “subjetividade pêcheurs de Penser en Rond, 1998. p. 463-476).
antropofágica”. Assim, eu a descreveria em linhas gerais: a ausência de identifi- Trad. brasileira: Esquizoanálise e Antropofagia,
cação absoluta e estável com qualquer repertório e a inexistência de obediência Gilles Deleuze. Uma Vida Filosófica. São Paulo:
cega a qualquer regra estabelecida, gerando uma plasticidade de contornos da Editora 34, 2000. pp. 451-462.
universos, acompanhada de uma liberdade de hibridação (no lugar de atribuir Na América Latina em geral – e mais ampla-
valor de verdade a algum em particular); uma coragem de experimentação levada mente no Brasil –, as obras de Guattari, Deleuze,
ao limite, acompanhada de uma agilidade de improvisação para criar territórios e Foucault e de toda uma tradição filosófica em
suas respectivas cartografias (no lugar de territórios fixos com suas representa- que estas se inserem (Nietzsche, em particular)
Utilizei este conceito pela primeira vez em 1987, em minha tese de doutorado, publi- em problematizar as políticas de subjetivação
cada em 19896 – exatamente o ano do fim da ditadura no Brasil7 e da queda do muro no contemporâneo e fazer face aos sintomas
de Berlim. Se destaco esses fatos, é porque naquele contexto tratava-se de nomear e que delas decorrem. No Brasil, essa singulari-
reafirmar este modo de subjetivação que havíamos inventado nos anos 1960 e início dade alastrou-se pelas práticas terapêuticas em
dos 1970, no bojo do movimento contracultural. É que tal modo havia sido alvo da instituições públicas e em consultórios privados
truculência da ditadura militar ao longo dos anos 1970 e início dos 1980, que reativara e (até mesmo entre os psicanalistas), bem como
enrijecera o princípio identitário – como sói acontecer do ponto de vista micropolítico na formação universitária (há programas de
nesse tipo de regime.8 Alguns anos depois, em 1994, quando escrevi Esquizoanálise e doutorado nessa linha de investigação em várias
Antropofagia,9 ainda se fazia necessário afirmar esse modo de subjetivação, mas o foco universidades). Para dar uma ideia da extensão
então era compreender a ampla recepção do pensamento de Deleuze e Guattari no desse movimento, os integrantes do grupo de 30
Brasil, desde sua primeira obra conjunta, O Anti-Édipo, no campo da saúde mental, profissionais que assumiu o Ministério de Saúde
com o qual eu estava envolvida naquela época. Isso se verificava em várias práticas e no primeiro mandato do governo Lula situam-se
vertentes teóricas da clínica, até mesmo na psicanálise (o que, aliás, continua vigente todos neste background.
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11. ainda hoje, redescoberto e reinventado a cada geração).10 Um fenômeno que também
Subjetividade Antropofágica/Anthropopha- aconteceu, mesmo que com menor intensidade, em outros países da América Latina.
gic Subjectivity. Em: Herkenhoff, P. e Pedro- Pude então elaborar neste texto a ressonância que eu constatava entre a teoria do
sa, A. (Edit.). Arte Contemporânea Brasileira: desejo, proposta por esses autores, e o modo de subjetivação predominante no Brasil
um e/entre Outro/s, XXIVa Bienal Interna- que eu havia qualificado como “antropofágico”. Essa parecia ser a razão pela qual a
cional de São Paulo. São Paulo: Fundação esquizoanálise se havia revelado fecunda para o exercício da clínica no país.
Bienal de São Paulo, 1998. pp. 128-147. Edição
bilíngue (português/inglês). Em 1998, quando retomei esse conceito,11 já era outro o problema que eu me sentia
12. convocada a enfrentar: a política de produção de subjetividade e de cultura inventada
As noções de “capitalismo cognitivo” ou “cultu- pela geração dos anos 1960/1970 passava a predominar sob o regime do capitalismo
ral”, propostas a partir dos anos 1990, principal- financeiro transnacional, que então se estabelecia por todo o planeta. Transfigurada
mente por pesquisadores atualmente associa- nesse seu desdobramento, tal micropolítica tornava-se dominante (daí a já consagra-
dos à revista francesa Multitude, são em parte da ideia que qualifica o novo regime de “capitalismo cognitivo” ou “cultural”12). Em-
um desdobramento das ideias de Deleuze e bora essa mudança tivesse começado já no final dos anos 1970, na Europa Ocidental
Guattari relativas ao estatuto da cultura e da sub- e na América do Norte e, a partir de meados dos anos 1980, na América Latina e na
jetividade no regime capitalista contemporâneo. Europa do Leste (com a dissolução dos regimes totalitários, em grande parte engen-
13. drada pelo próprio neoliberalismo), demorou pelo menos duas décadas para que
Cf. “Manifesto Antropófago” [1928]. Em: A Uto- seus efeitos perversos se fizessem sentir e se colocassem como problema – como
pia Antropofágica, Obras Completas de Oswald acontece com toda mudança histórica de tal envergadura. Só agora se tornava possí-
de Andrade. São Paulo: Globo, 1990. vel percebê-los, o que impunha a necessidade de distinguir políticas da plasticidade,
da fluidez de hibridação e da liberdade experimental de criação que caracterizam o
que eu havia chamado de subjetividade antropofágica. Descrevi essas diferenças, na
época, propondo os conceitos de “baixa” e “alta antropofagia”, inspirada no próprio
manifesto, no qual encontrei a noção de “baixa antropofagia”, definida como “pes-
te dos chamados povos cultos e cristianizados”.13 Designei também tais diferenças
como “antropofagia ativa” e “reativa”, evocando Nietzsche.
POLÍTICAS DA CRIAÇÃO
O critério que adotei para distinguir essas políticas da subjetividade antropofágica foi
da reação ao processo que dispara o trabalho de criação. Referia-me à dinâmica pa-
radoxal entre dois vetores concomitantes: de um lado, o movimento em direção ao
plano extensivo, perceptível, com seu mapa de formas e representações vigentes e sua
relativa estabilidade; de outro, o movimento em direção ao plano intensivo, impercep-
tível, e as forças do mundo que não param de afetar nossos corpos, uma alteridade
que nos habita na qual se redesenha, constantemente, o diagrama de nossa textura. Tal
dinâmica tensiona os territórios em curso e seus respectivos mapas e acaba colocando
em crise nossos parâmetros de orientação no presente. É nesse abismo e na urgência
de produzir sentido que se convoca o trabalho do pensamento, entendido aqui como
criação e não como revelação, explicação ou ilustração. Já no momento desse impul-
so inaugural do trabalho de criação se definirão suas diferentes políticas – em função
do quanto se toleram os colapsos de sentido, o mergulho no caos, nossa fragilidade.
Apontei dois polos opostos neste processo, embora eles não existam como tais, pois na
realidade muitos são os matizes entre eles, e sempre cambiantes.
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Criar a partir do mergulho no caos para dar corpo, de imagens, palavras ou gestos,
às sensações desta tensão entre os dois vetores, participa da tomada de consistên-
cia de uma nova cartografia de si e do mundo que traz as marcas da alteridade que
conturba seus atuais contornos. Um processo complexo e sutil que requer um longo
trabalho. Não seria algo assim o que faziam os Tupinambás em seu prolongado e
rigoroso resguardo no ritual antropofágico?
Contudo, a criação pode resultar de uma denegação da escuta do caos e dos efeitos
da alteridade em nosso corpo, em vez de fazer-se a partir dela. Neste caso, a cartogra-
fia se realiza por meio do mero consumo de ideias e imagens prêt-à-porter. A intenção
é recompor rapidamente um território de fácil reconhecimento, na ilusão de silenciar 14.
as turbulências provocadas pela pulsação deste duplo vetor a borrar nossos contornos. É evidente que o foco aqui abrange apenas
Produz-se assim uma subjetividade aeróbica, portadora de uma flexibilidade acrítica, parte das políticas de produção de subjetivida-
adequada ao tipo de mobilidade requisitada pelo capitalismo cognitivo. de e cultura em confronto na atualidade. Ou-
tras forças participam desse confronto, entre as
Pois bem, ambas as políticas de criação que acabo de descrever trazem todas quais os novos fundamentalismos que surgiram,
as características que enumerei anteriormente daquilo que chamei de subjeti- exatamente, com a instalação do neoliberalis-
vidade antropofágica. No entanto, elas resultam da ação de forças totalmente mo e sua flexibilidade capitalística. Nesse tipo
distintas, as quais se diferenciam essencialmente por incorporar ou não os efei- de regime, o princípio identitário reatualiza-se
tos disruptivos da existência viva do mundo em nosso corpo, como propulsora em suas formas mais extremistas.
do trabalho de reinvenção do presente.
15.
Em suma, estava claro naquele momento que, se nos anos 1960/1970 era pertinente “Zombie Anthropophagy”. Em: Curlin Ivet, Ilic
opor ao capitalismo industrial (com sua sociedade disciplinar e sua lógica identitária) Natasa (org.), Collective Creativity Dedicated
uma lógica híbrida, fluida e flexível, agora se havia tornado um equívoco tomar esta to Anonymous Worker. Kunsthalle Fridericia-
última como um valor em si – já que esta passara a constituir a lógica dominante do num: Kassel, 2005. Edição bilíngue (alemão/in-
neoliberalismo e sua sociedade de controle. É, portanto, no próprio interior dessa glês). Em francês (versão reduzida): “Anthropo-
lógica – entre diferentes políticas da flexibilidade, da fluidez e da hibridação – que phagie Zombie”. Em: Mouvement: “L’Indiscipline
passavam a se dar os embates no traçado das cartografias de nossa contempora- des Arts Visuels”, nº 36-37, pp. 56-68. Paris:
neidade globalizada.14 Artishoc, sept-décembre 2005. Em espanhol:
Antropofagia Zombie. Em: Brumaria 8: “Arte
ANTROPOFAGIA REATIVA y Revolución. Sobre Historia(s) del Arte”, Docu-
menta 12 Magazine Project, 2007.
Mais recentemente, em um ensaio que escrevi a esse respeito, senti necessidade de
15
criar uma nova noção, a partir da ideia de subjetividade flexível16 proposta por Brian 16.
Holmes, para evidenciar o contexto histórico que eu tinha em mente – a política de A noção de subjetividade flexível inspira-se
subjetivação dos anos 1960/1970 e seu destino capitalístico – e deixar a qualificação parcialmente na “personalidade flexível” su-
de “antropofágica” para sua versão brasileira. Problematizo o processo que levou a gerida por Brian Holmes, a qual desenvolvo
esse desdobramento da política contracultural de subjetivação e de criação e a des- da perspectiva dos processos de subjetivação
crevo mais precisamente. Aponto ainda a confusão que muitos da geração dos anos (V. Holmes, Brian, “The Flexible Personality”.
1960/1970 fizeram entre essas duas políticas da subjetividade flexível e o estado de Em: Hieroglyphs of the Future. Zagreb: WHW/
alienação patológica que tal confusão provocou. Examino, por fim, a especificidade Arkzin, 2002).
de tais efeitos em países recém-saídos de regimes ditatoriais, particularmente aque-
les cujo passado fora marcado por um singular e ousado experimentalismo – como é
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S U E LY R O L N I K
o caso de muitos países da América Latina e da Europa do Leste. Nesses contextos,
paralisado pela micropolítica das ditaduras, tal experimentalismo teria sido reativa-
do com a instalação do capitalismo cultural, mas, para ser diretamente canalizado
para o mercado, sem ter passado pela elaboração da ferida da potência de criação,
condição para reativar sua vitalidade poético-política. Isso fez com que o advento
do novo regime tendesse a ser vivido nesses países como uma verdadeira salvação.
O capitalismo cultural parecia liberar as forças de criação de sua repressão por um
regime tacanha e, mais do que isso, as celebrava e lhes dava o poder de exercer um
papel de destaque na construção do mundo que então se instalava. Esse fato agra-
vou a confusão entre o modo contracultural e sua versão capitalística, bem como os
17. efeitos nefastos daí decorrentes.17
O leste da Europa compartilha com a América
Latina situações que fizeram com que a instala- No Brasil, um terceiro fator somou-se ainda a essa complexa situação: precisamente,
ção da flexibilidade capitalística gerasse efeitos a presença da tradição antropofágica. Se esta havia desempenhado um papel na ra-
similares aos sugeridos no texto (o que merece- dicalidade crítica da experiência contracultural dos jovens brasileiros nos 1960/1970,
ria ser objeto de uma pesquisa em comum). No agora, ao contrário, ela tendia a contribuir para uma adaptação soft ao ambiente
entanto, há um fenômeno totalmente distinto neoliberal (inclusive de boa parte dessa mesma geração, já entre seus 35 e 45 anos).
que entra em jogo em alguns países do leste O país provou ser um verdadeiro campeão atlético da flexibilidade a serviço do
europeu, nesse mesmo contexto, que é justa- mercado. Alguns dos sinais desse fenômeno: as agências brasileiras costumam ven-
mente o surgimento dos fundamentalismos de cer todos os concursos internacionais de publicidade; as novelas da Rede Globo de
toda espécie, tal como mencionado na nota 14. Televisão são difundidas em mais de 200 países; a mulher brasileira, segundo as es-
tatísticas, é a que mais se identifica e se submete aos padrões ideais do corpo femi-
nino estabelecidos pela mídia, o que coloca o Brasil no topo do ranking do consumo
de cosméticos, de remédios para emagrecimento e de cirurgias plásticas. Aliciada,
sobretudo, em seu polo mais reativo, essa tradição produziu um tipo de figura que
chamei então de “zumbi antropofágico”.
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P O L Í T I C A S D O F LU I D O, H Í B R I D O E F L E X Í V E L
ao longo do século XX, no campo específico da arte, as exposições internacionais
converteram-se num dispositivo privilegiado para o desenvolvimento de narrativas
planetárias. Elas concentram e compõem, num só espaço e tempo, o maior número
possível de universos culturais – tanto do lado das obras, como de seu público.
No campo das artes plásticas, essas forças tomam corpo não só nas próprias obras,
mas em suas exposições e nos conceitos curatoriais que expressam, nos textos crí-
ticos que as acompanham e nas diretrizes dos museus ou outros espaços institucio-
nais que as acolhem – e, por fim (ou início?), em todas as práticas artísticas que se
fazem numa deriva para além do terreno institucional da arte, na qual tem embarca-
do parte da produção contemporânea.
A força que predomina hoje nesse território é, sem dúvida, a da denegação de tais
turbulências, própria de uma flexibilidade reativa: a baixa antropofagia, como acima
descrito. A arte, na qual se confina em nossa cultura a insistência do corpo no pensa-
mento e do pensamento no corpo, é a fonte privilegiada pelo capitalismo cognitivo,
para extrair energia de invenção para a produção de suas cartografias prêt-à-porter,
vazias e sem relevo, adaptáveis para o consumo em qualquer ponto do planeta.
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S U E LY R O L N I K
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P O L Í T I C A S D O F LU I D O, H Í B R I D O E F L E X Í V E L
Foto Ivson Miranda
Teatro do Concreto
ENCONTRO
Este ensaio, ainda que breve, pode ser visto como o compartilhamento de uma refle-
xão específica, em processo, cujo ponto de partida é o encontro. O gatilho de uma
reflexão pode levar muitas vezes a desdobramentos imprevisíveis; ele pode viabilizar
a percepção de especificidades ou construir ampliações de ordem associativa. Nesse
caso, percorrerei um caminho de mão dupla: mesmo considerando o ponto de partida
em questão por meio do território em que atuo – as artes da cena –, buscarei conside-
rar diferentes implicações que emergem do tema “encontro” a fim de problematizá-lo.
Nas artes da cena o encontro representa um termo familiar, que permeia há séculos
esse campo artístico. Desde a sua origem no Ocidente − talvez essa observação
possa ser generalizada −, os espetáculos e manifestações cênicas são relatados
como eventos que marcaram fatos e mudanças de várias naturezas e que se tor-
naram possíveis primeiramente por meio de uma condição que, até pouco tempo,
era considerada sine qua non nas artes da cena: a relação presencial entre artista e
público. É possível reconhecer aqui uma primeira implicação que emerge da noção
em exame, que vê o encontro como relação presencial.
ENCONTRO E CONFRONTO
Mas, se considerarmos outros âmbitos, como aquele das artes da cena, é possível
perceber a parcialidade da implicação referida; ela se revela claramente insuficiente.
Apesar de a relação presencial ainda ser vista como condição necessária para o
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M AT T EO B O N F I T TO
estabelecimento do encontro nas artes da cena,1 esse âmbito envolve muitos ou-
tros aspectos, dentre os quais aqueles colocados por Jerzy Grotowski. De fato, o
diretor polonês, no final da década de 1960 do século XX, reitera o encontro como
o traço pertinente mais importante do teatro. Ele diz: “O teatro é um encontro”.2
Para Grotowski, naquele momento, o teatro representava um dispositivo por meio
do qual um encontro particular entre atores e espectadores se daria e, nesse caso,
tal termo adquire conotações específicas. Aqui a noção de encontro envolve a pro-
dução de uma série de ocorrências expressivas, entre elas, uma espécie de choque
perceptivo desencadeado pelo ator, que, a partir da exploração de uma gama de
procedimentos,3 irradia sobre o espectador emanações sensíveis constitutivas de
suas “ações paradoxais” e, ao envolvê-lo, convida-o tacitamente a fazer o mesmo.
Independentemente da apreciação crítica que pode ser feita hoje sobre essa
1. abordagem artística, vários aspectos podem ser apontados a partir da noção de
Digo “ainda” em função do fato de muitas ma- encontro proposta por Grotowski. O diretor polonês, ao elaborar essa noção nos
nifestações cênicas contemporâneas ocorre- termos mencionados, além de torná-la específica, contradiz de certa forma o que
rem virtualmente, dispensando assim a relação ela pode sugerir a priori. Impregnado de conotações provenientes de diversos
presencial com os espectadores. contextos e esferas de conhecimento, o encontro parece sugerir em muitos casos
2. certa convergência, uma sintonia entre olhares, um contato que afirma e reforça
Grotowski, Jerzy. Em Busca de um Teatro Pobre. pressupostos. Essa conotação emerge, sobretudo, de certos discursos religiosos
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. que fazem do encontro um meio de divulgação e imposição da própria visão de
3. mundo: o fiel garante a própria salvação na medida em que sela seu encontro
Desde a via negativa, que envolve a eliminação com um ser supremo e aceita seguir os preceitos de sua doutrina. Em vez disso,
de obstáculos e resistências, até o “ato total” de ser geradora de um processo apaziguador, que de maneira assertiva agrega
em que a transparência das reações mentais e semelhanças, a noção proposta pelo diretor polonês parece propor a instauração
físicas do ator se manifestaria diante do público. de fricções: sensíveis, emocionais e intelectuais.
Ver Grotowski (1971), op. cit.
O encontro, visto como instaurador de fricções perceptivas, pode ser reconhecido
também no trabalho desenvolvido por diferentes artistas da cena, entre eles Peter
Brook. Através da sua concepção de contador de histórias, é possível perceber uma
relação intrínseca entre exposição da própria subjetividade e a busca de um exercí-
cio de alteridade. Ao colocar o público como parte integrante do processo criativo
e fazer com que o seu contador de histórias percorra diversas etapas criativas, Brook
associa a escavação da própria subjetividade por parte do ator a um deslocamento
do que lhe é imediatamente familiar. Tal associação funciona como um eixo dos
4. processos criativos e é incorporada nos seres ficcionais atuados pelos atores.4
Ver Bonfitto, Matteo; A Cinética do Invisível.
Processos de Atuação no Teatro de Peter Brook. Independentemente das especificidades que permeiam o trabalho de Grotowski
São Paulo: Perspectiva, 2009. e Brook, é interessante notar como as noções de encontro propostas por eles re-
cuperam de certa forma o sentido originário do termo em latim − incontrare − que
remete ao mesmo tempo a um encontro e a um confronto, ou a um encontro entre
5. adversários. Nesse sentido, as proposições feitas pelos diretores mencionados pa-
Espinosa, Baruch; Ética. São Paulo: Ed. Autên- recem se alinhar ao paralelismo psicofísico apontado por Espinosa, assim como ao
tica, 2008. seu conceito de encontro, central em suas elaborações sobre a ética.5 Para o filó-
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E N CO N T RO − D E S LO C A M E N TO − E X P E R I Ê N C I A
No que diz respeito à concepção de encontro, pontos de contato entre eles são
passíveis de reconhecimento. Espinosa se refere ao encontro como um fator de po-
tencialização da vida em muitos sentidos, que remete a uma capacidade que deve
ser cultivada de constante afetação, que emerge por sua vez do estabelecimento
das relações. Ao explorar, no caso de Grotowski, a via negativa e as práticas de auto-
penetração e, no caso de Brook, o que chamou de “centelhas de vida” e “momento
presente”,6 ambos colocam em relevo exatamente a capacidade de irradiação e de 6.
afetação que envolve a relação entre ator e público. Essa capacidade, mesmo emer- Ver Grotowski (1971), op. cit; e Bonfitto (2009),
gindo de procedimentos diversos, representa um aspecto fundamental do fenôme- op. cit.
no teatral visto como encontro, tal como proposto por eles.
O entrelaçamento entre encontro e confronto foi até esse ponto do ensaio visto
por meio de referências que podem ser relacionadas ao teatro, assim como ao cha-
mado teatro performativo.7 Desse modo, a fim de ampliar o horizonte de reflexão 7.
proposto aqui, cabe considerar igualmente o campo da arte da performance. Tal A noção de teatro performativo, tal como pro-
campo, acredito, pode oferecer especificidades ainda não examinadas e que estão posto por Josette Féral, é como um campo hí-
profundamente relacionadas com o entrelaçamento em questão. Para adentrar esse brido de manifestações cênicas que assimilaram,
campo, utilizarei como estudo de caso uma performance de Marina Abramović da em termos expressivos, aspectos provenientes
qual tomei parte intitulada The Artist Is Present. da performance artística. Ver Féral, Josette. “Por
uma Poética da Performatividade: o Teatro Per-
FLUXO E DESLOCAMENTO formativo.” Em: Sala Preta, no 8, 2008, pp. 197-210.
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M AT T EO B O N F I T TO
tura do museu, Marina já estava sentada em uma das cadeiras, e lá permaneceu,
sem pausa, até o seu fechamento, por várias semanas.
Quando entrei no átrio, me deparei com uma situação que me causou um impacto
imediato e gerou muitas impressões e sensações ambíguas. Da maneira como se
encontrava, esse átrio − enorme em suas dimensões e praticamente vazio, ocupado
somente por uma mesa e duas cadeiras, invadido por luzes brancas, frias, e utilizado
como espaço de passagem que dava acesso a outras exposições, assim como à li-
vraria − havia se tornado absolutamente dispersivo. Centenas de pessoas circulavam
livremente, conversando, pedindo informações, fazendo comentários em voz alta;
muitas delas observavam com curiosidade aquela situação estranha na qual vemos
uma mulher com um vestido longo azul, sentada de frente para outra pessoa, ambas
se olhando, em silêncio, por um tempo imprevisível.
Poucos instantes antes da entrada no espaço fui instruído a não falar; o conta-
to com ela deveria ser somente visual. Entro caminhando e sento na cadeira em
frente a Marina. Como já mencionado, há uma mesa entre nós. Eu a observo, ela
está com o rosto direcionado para baixo, como se estivesse se recompondo ou
se preparando para o estabelecimento do contato comigo. Ela ergue o rosto e
estabelecemos contato pelo olhar. A descrição e a análise a partir desse momento
tornam-se, uma vez mais, complexas, sobretudo em função da simultaneidade de
percepções, sensações, visualizações e associações que emergem nesse momen-
to. Embora permanecendo a certa distância, há muitas pessoas em volta, obser-
vando, comentando, tirando fotos. Quatro câmeras, fixadas nos quatro lados do
espaço, ficam permanentemente ligadas. A luz branca das torres incide sobre o
espaço tornando-o ainda mais claro e dispersivo.
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neidade que permeou esse instante. Escrever sobre essa experiência se revela uma
tarefa ainda mais árdua que as descrições anteriores; é como tentar capturar um
furacão com um cata-vento.
O contato com os seus olhos gera, com o passar do tempo, uma espécie de afunila-
mento do espaço e uma diluição do tempo cronológico. Seus olhos já não são mais
seus olhos, são caminhos, portais que permitem o acesso não mais a imagens ou falas,
mas a qualidades. Ao mesmo tempo, as sonoridades produzidas pelo ambiente vão se
tornando cada vez mais distantes, até se transformar em uma frequência quase contínua.
Há uma imersão mais e mais profunda em um fluxo muito diferente daquele inicial.
Não o “fluxo-turbilhão”. Não um fluxo, mas diferentes fluxos, que podem gerar ou
não um percurso. Percebo-me em um “fluxo-exploração”, como se esse contato nos
guiasse por caminhos desconhecidos e imprevisíveis, onde cada micromovimento é
percebido e absorvido pelo outro. As quase imperceptíveis mudanças de inclinação
da coluna, as quase imperceptíveis mudanças de eixo da cabeça são aqui bifurca-
ções, atalhos que abrem possibilidades. Percebo-me agora em um “fluxo-navega-
ção” que, apesar de uma aparente estabilidade, pode ser interrompido a qualquer
momento e que é permeado por diferentes intensidades de olhar, do extremo olhar
exterior que colhe cada estímulo e se transforma a partir disso ao extremo olhar in-
terior, que funciona como uma isca para outras inesperadas realidades. Percebo-me,
então, em um “fluxo-expansão” gerado por esse circuito, que alarga o horizonte per-
ceptivo e que, por meio do contato direto, dissolve as fronteiras entre o eu e o outro.
Percebo-me nesse território, criado pelo entrelaçamento desses fluxos, não sei exata-
mente onde termino e onde começa o outro, que é permeado por forças não contro-
láveis intelectualmente que me carregam para um lugar no qual os sentidos emergem
de diferentes lógicas, não explicáveis, não traduzíveis em fórmulas ou modelos.
Os fluxos que formam esse território são interpostos, por sua vez, por oscilações.
Mas tais oscilações, em vez de fazerem com que o processo retorne ao ponto
zero, abrem espaço para novos percursos. Essas oscilações não levam à circulari-
dade do eterno retorno, mas a labirintos de espirais. Em alguns instantes, me vejo
em um lugar no qual todos os estímulos gerados pelo ambiente e pelo contato
direto com Marina parecem convergir para um amálgama, em que os seus mate-
riais constitutivos não podem ser dissociados. Em outros, me noto em um lugar
no qual já não há cadeiras, mesa, atrium, museu, pessoas ou cidade de Nova York.
Somente intensidades. Experiência profunda, concentrada, vida em estado sólido.
106 R U M O S T E AT R O | E N C O N T R O
M AT T EO B O N F I T TO
Estou novamente sentado na cadeira. Mas agora é como se as fronteiras tivessem se
diluído também nesse caso. Percebo uma fusão, como se estivesse completamente
enterrado nela, como se fosse “corpo-cadeira”. Percebo que poderia ficar ali indefini-
damente e, ao ter essa percepção, tomo consciência que concluí a minha participação.
De fato, tendo participado de The Artist Is Present, constatei que minha impressão
inicial como observador-espectador dessa performance não havia absolutamente
colhido o seu potencial. Tive uma impressão genérica e, nesse sentido, me deixei cair
na armadilha criada pelas próprias condições em que a performance foi proposta.
Desse modo, a opção por tais condições revela, dentre outras implicações, uma, a
meu ver, fundamental: a visão, sentido mais cultivado e privilegiado nos dias de hoje,
não necessariamente funciona como veículo de experiências, não garante a vivência
de experiências, não necessariamente as captura. Não se trata aqui de enfatizar sim-
plesmente a correlação entre o ver e o saber ou entre o ver e o não saber. Aqui, tal
aspecto está relacionado com a distância existente entre visão e participação direta,
considerados como fatores constitutivos da experiência. Nesse caso, essa distância
se revelou como um abismo intransponível.
INICIAÇÃO E EXPERIÊNCIA
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Foto Rubens Chiri
Núcleo Argonautas e CiaSenhas de Teatro
108 R U M O S T E AT R O | E N C O N T R O
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e sobre o adensamento perceptivo que emerge do entrelaçamento entre encontro
e confronto, tais aspectos ligados à experiência são reconhecíveis. De fato, a fricção
entre encontro e confronto abre muitas vezes espaço para um “sair de si”, gerando
assim a necessidade de ir além dos próprios pressupostos, crenças e hábitos.
110 R U M O S T E AT R O | E N C O N T R O
M AT T EO B O N F I T TO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FÉRAL, J. F. “Por uma Poética da Performatividade: o Teatro Performativo”. Em: Sala Preta,
no.8, 2008. p. 197-210.
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E N CO N T RO − D E S LO C A M E N TO − E X P E R I Ê N C I A
ENCONTRO
NO METAPLANO, O ENCONTRO
ANDRÉ LEPECKI
“No entanto”, diz-nos Serres, pois teria que o dizer, uma vez que a vida também nos
demonstra isso mesmo, “por vezes, há concordância”. E essa concordância só pode
ser entendida como pertencendo dupla, simultânea e paradoxalmente à ordem do
incrível e à ordem do mundano. Aliás, é a improvável mundanidade da concordância
que transporta o mundo para além do seu plano corriqueiro e assim fabrica, entre-
tece ou faz um metaplano para a existência. Poderíamos chamar-lhe o metaplano do 1.
miraculoso, do acontecimento, ou do encontro: “A coisa mais incrível no mundo é Michel Serres, The Parasite (Minneapolis: Uni-
que por vezes concordância, compreensão, harmonia, existem. Leibniz supôs Deus versity of Minnesota Press, 2007), p. 121, tradu-
por via desta Lei-Milagre”, conclui Serres, não sem certo espanto.1 ção minha do inglês.
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A N D R É L E P EC K I
A primeira vez que se viram, a improbabilidade do que se desenrolava ali mesmo, no
entre-eles, criou, antes de mais, uma não-visão.
Suponhamos, como agentes desse incrível, improvável, porém muito real acon-
tecimento de uma provisória harmonia emergindo por entre o bafafá do mundo
(acontecimento cujo outro nome, para Serres, é “milagre,” e para nós “encontro”),
não Deus, como queria Leibniz, mas dois seres humanos. Mas de-ontologizemos
logo esses seres. Retiremos mesmo deles a categoria de “ser” e o gênero “humano”.
O que nos sobra? Dois modos de individuação. Ou melhor: duas vidas. No plano
cacofônico do mundo, suponhamos essas duas vidas circulando por entre a orques-
tra de “eus” alardeando suas identidades. E não sejamos ingênuos: essas duas vidas
também participam da proliferação do mundo-ruído, também elas, volta e meia,
têm de martelar convictamente no instrumento chamado “elas mesmas” – sob pena
de ser soterradas pela falação dos outros.
Assim, vislumbravam apenas o que o clarão que tudo encobria, ou melhor dizendo,
que todo o entre-eles preenchia, deixava entrever: uma mão esquerda, forte; uma
linha de braço, decidido; um modo geral de inclinação do tronco; tecelares cabelos;
uma orelha; lábios movendo-se em autonomia; uma perna de um, uma perna de ou-
tro; um olho talvez míope outro talvez não. E pouco mais. Mais tarde, na memória
de ambos, essa entrevisão era já só amálgama de brilho puro, áureo azul, como em
algumas obras de Yves Klein.
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Foto Rubens Chiri
Grupo Bagaceira de Teatro e Coletivo Angu de Teatro
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N O M E TA P L A N O, O E N CO N T R O
Coup de foudre, diz-se em francês ao brilho súbito e estonteante-cegante que recobre
e define o metaplano do encontro enamorado. A enciclopédia esclarece que o relâm-
pago é um fenômeno eletromagnético que deriva da diferença de potencial que se
estabelece entre dois corpos em relação. Uma singularidade se define aí. Porém, para
dois seres humanos (sem ontologia e sem gênero) que se encontram verdadeiramente,
na mais raríssima improbabilidade, a questão não é mais a de uma física do relâmpago,
mas de uma metafísica diferencial do encontro – como compor para o encontro um
metaplano que receba e prolongue o desejo em seu desdobrar singular-relacional.
116 R U M O S T E AT R O | E N C O N T R O
A N D R É L E P EC K I
transcendência. Ou seja, é o ponto de diferenciação de um tipo muito específico de
encontro, num mundo feito deles. Esse ponto de contato e de diferenciação não se
reduz ao espaço infinitesimal de sua geometria, mas é antes um ponto proliferante
que se espraia como metaplano singular, em que o encontro pode expressar os seus
mais puros devires, a sua consistência singular. Encontro de matéria com matéria
(todos os atuais, todos os virtuais se entrelaçando no encontro) ressoando numa
cocomposição mútua o que ainda não existia, nem se imaginava existível.
Seguem pela cidade, mal se conhecem, mas sob o fulgor do brilho amoroso entram
em concórdia e em movimentação. O perambular agora, apesar de se dar em cami-
nhos, veredas e carris, não é mais um agito, mas antes condensação e distensão de
tempos insuspeitados no pleno do mundano. Coisas do coração, sístole e diástole.
Concórdia. Tudo se ralenta. Param em frente à água; ou quem sabe é um jardim. Pou-
co importa. A água adensa o tempo e o jardim liquefaz as durezas dos egos. Interessa
a criação de um vácuo pleno de existência no plano do mundo buliçoso. Metaplano.
No encontro, acha-se um entrelugar que apesar de flutuante é totalmente localizável
e feito de elementos bem enraizados e corpóreos. No jardim ou praia descobrem em
silêncio a ressonância harmônica improvável.
Estamos agora no final do filme. Faltam poucos minutos para as 7 horas da noi-
te. A angústia de Cléo chega ao paroxismo. E então, o encontro. Nele, tudo no
mundo permanece o mesmo. As árvores, os jardins e, durante bastante tempo,
mesmo o modo de ser de Cléo, sua singularidade, seu modo de individuação,
suas angústias. Mas, o encontro sendo encontro, é a própria substância corporal
que se rearranja, num realinhamento energético. Tudo é igual, menos o modo de
distribuição de forças, que rearranja molecularmente a carne, fazendo-a brilhar
e vibrar de modo mais alegre. O encontro tendo acontecido, trata-se agora de
outra questão. A de “não ser indigno com relação àquilo que nos acontece”, na
6. fórmula que Deleuze usa parafraseando os estoicos.6 Ou seja, trata-se, antes de
Gilles Deleuze, Logic of Sense. New York: tudo, de saber como não ser indigno perante o acontecimento, trata-se de saber
Columbia University Press, 1990, p. 149, tra- fazer o acontecimento acontecer e desdobrar-se em mais acontecimento. Pouco
dução minha do inglês. importa que não saibamos de antemão como fazê-lo. O que importa é o desejo
de querer fazê-lo pleno, mesmo que nunca se saiba de antemão o que virá a ser.
Não se trata mesmo de construir algo sob espécie de alguma imagem do desejo
que o preexistiria e o amarraria. Trata-se de ousar fazer com o outro o fazer-se do
encontro. Agarrar o evento e com ele entretecer o metaplano.
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N O M E TA P L A N O, O E N CO N T R O
Por que privilegiar o encontro amoroso? Porque ele não tem de ser, antes de mais
nada, um encontro de paixão. A paixão é descabelada, agitada, egoica. O encontro
amoroso é o encontro cordial, ou seja, etimologicamente, o que é relativo ao cora-
ção. O encontro de coração a coração, ressoa e reecoa as fibrilações singulares do
cada qual numa disritmia plena, porém concordante na diferença: “A diferença na
intensidade é ao mesmo tempo o objeto do encontro e o objeto para o qual o en-
contro aumenta a sensibilidade. Não são os deuses que são encontrados; estes não
são mais do formas para o reconhecimento. O que é encontrado são os demônios,
potências de salto, do intervalo, do intensivo ou do instante, que preenchem a dife-
rença com o diferente”.7 O que Serres chama de “harmonia”, Deleuze de “intensivo”, 7.
eu chamo de concórdia: fazeres do entre-corações. Tem de ser assim o encontro Gilles Deleuze, Difference et Répétition. Paris:
miraculoso e raro: nasce de si mesmo por via da ousadia de desejar fora de quais- PUF, 1993, pp. 188-9, tradução minha do francês.
quer planos preconcebidos de desejo; por via da ousadia de escapar às coreografias
sociais que alinhavam desde sempre as possibilidades de diálogos entre as partes.
Ao contrário, trata-se de uma coreografia incalculável8 de gêneros, afetos, toques, 8.
trocas já fazendo o impossível. Jacques Derrida, “Incalculable Choreogra-
phies”, Bodies of the Text. Eds. Ellen W. Goell-
O câncer existe, mas Cléo já não tem a morte interiorizada. Em poucos minutos, no me- ner e Jacqueline Shea Murphy. New Bruns-
taplano do encontro, ela entra num movimento de devir enamorado onde sua boca ganha wick: Rutgers University Press, 1995, tradução
uma outra voz e onde encontra por fim a resposta certa à pergunta angustiante. E a res- minha do inglês.
posta é sem esperança − e por isso mesmo plena de alegria: é a única que faz o meta-
plano brilhar no coup de foudre diferencial do encontro pleno. À questão, “quanto tempo
tenho para viver?” o metaplano do encontro responde, sem angústia: “Toda a nossa vida”.
II
No entanto...
No entanto, o encontro comporta também choques, colisões, esbarros. Esses en-
contrões nos revelam a dureza no mundo, dureza que não deve deixar de ser con-
siderada, mesmo em teorias e práticas que associam a potência do devir ao puro
fluxo.9 Por mais que consideremos a fluidez dos sólidos e suas modulações físicas e 9.
semânticas, as suas capacidades “acontecimentais”, não se pode negar que um dos Encontramos tal associação (com nuances es-
acontecimentos inescapáveis da matéria é a sua capacidade de se opor, de resistir, pecíficas, obviamente) em todo Gilles Deleuze
de comprimir, de bloquear, de ir-contra. É por isso que, quando o iniciado se encon- e em Henri Bergson, mas também em Alfred
tra no mais profundo transe meditativo, já em pleno devir-molecular, entrando na N. Whitehead e William James. Para sua ver-
duração e se fundindo com a matéria do mundo, o Mestre Zen deve chegar por de- são mais recente e potente, veja o livro de Brian
trás dele, silenciosa e sorrateiramente, e fustigar brutalmente suas costas com varas Massumi Semblance and Event (Cambridge,
de bambu. A vergastada no lombo é a necessária lição de dureza no meio do fluxo Mass: MIT Press, 2011).
da matéria, a lição do enrijecimento que o corpo-em-devir deve receber de modo a
saber agenciar o fluxo da matéria na direção do metaplano (que, lembremo-nos, é
sempre mundano e supraordinário).
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A N D R É L E P EC K I
Lembremo-nos de que o corpo-sem-órgãos de Deleuze e Guattari comporta mes-
mo a necessidade de criar sistemas de fluxo por via de agenciamentos de nódulos
duros, de modo que se façam circular as intensidades. Uma coisa é a dissolução da
matéria. Outra coisa é desejar o acontecimento do devir por via de todos os atribu-
tos da matéria – incluindo sua capacidade de diferir, de ir contra, de se opor.
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N O M E TA P L A N O, O E N CO N T R O
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Foto Ivson Miranda
Erro Grupo
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N O M E TA P L A N O, O E N CO N T R O
ENCONTRO
UM BOM ENCONTRO?
JOSÉ GIL
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JOSÉ GIL
O que é o tom? É o que se transmite por debaixo das mensagens, através da voz. É a
tonalidade das palavras, seu ritmo, sua velocidade e sua lentidão, sua altura, sua aspereza
ou seu aveludado, o espaço sonoro que ali se abre e afasta ou aproxima, entrava ou
estimula a voz do outro. Mil determinações não verbais compõem o tom da fala. Se as
duas falas têm tons que se ajustam, então acontece o encontro. Mas o que significa aqui
“ajustar”? E um encontro não é muito mais do que a possibilidade de efetuar uma boa
conversa? O que se tece e entretece num encontro não se joga só através da ou com a
linguagem: porque há encontros não apenas entre indivíduos, mas também entre seres
e coisas. Sucedem bons encontros com livros, com uma obra de arte, com cidades ou
paisagens. Com uma sensação, com pensamentos, com meu próprio corpo.
O que é interessante no exemplo de Céline é que são as palavras que recobrem o não
verbal que, mais do que uma intencionalidade consciente, as determina. As palavras
abrem o espaço da emissão de todos esses elementos do tom e os dois que falam,
tateiam-se subverbalmente com pseudópodes, tentam, não acertam, erram, recome-
çam, atraem-se, tocam-se. Até que pode acontecer que essas tentativas e erros se
cruzem subitamente num mesmo regime de intensidade e ritmo. Diríamos então que
“a conversa pegou”. O que quer dizer “pegou”? Que encontraram o tom que permite
a um e a outro conversar como se de amigos há muito conhecidos se tratasse. Podem
agora dizer o que quiserem que o seu diálogo funciona, a troca de fluxos de fala circula
num plano contínuo que reúne os dois corpos num laço afetivo permanente, aparen-
temente durável. Esse laço compõe a textura do plano: independentemente das pa-
lavras ditas, forças mais fortes do que as que drenam as mensagens mantêm a ligação
dos corpos. Se a conversa “pegou” foi porque as palavras, as mensagens, as significa-
ções verbais são agora levadas por uma força mais forte que dá outro nexo (que não o
lógico e o semântico) à troca dos fluxos verbais. Essas forças emanam dos corpos e da
linguagem, alargam-se para além deles, para além dos seus atributos empíricos e dos
significados das mensagens: são a-significantes e a-subjetivas. Pertencem e formam o
que poderemos chamar de o inconsciente do corpo e o inconsciente da linguagem. No
entanto, são elas que provocam novas conexões de palavras de um e outro falante que
vão conversando sempre, no movimento da onda.
Psicanalistas e psicólogos (como Françoise Dolto e Daniel Stern) mostraram que a lin-
guagem, para o bebê, se forma, desde o nascimento, a partir do sentido que tomam
os fonemas que produzem sensações subtis no cavum, nos tecidos da boca, quando
expirados ou inspirados; que são acompanhados de afetos que formam um sentido que
se confunde com o ritmo dos movimentos-signos dos efeitos corporais. Assim se cons-
trói um inconsciente da linguagem, na medida em que a criança passa dos fonemas
aos morfemas e às sequências mais complexas da linguagem verbal (correspondentes
a “fases” – por exemplo, erógenas – da sua evolução). A linguagem verbal inscreve no
corpo e guarda em si os estratos mais arcaicos das primeiras fases do sentido do prazer
ou desprazer corporal ligado à repetição dos fonemas ouvidos pelo bebê. Por isso a lin-
guagem se encontra literalmente inscrita no corpo. E também por isso o inconsciente da
linguagem recobre parcialmente o inconsciente do corpo.
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U M B O M E N CO N T R O?
Foto Ivson Miranda
Cia. Silenciosa
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JOSÉ GIL
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Compreendemos como o movimento de procura do “mesmo tom”, num diálogo en-
tre desconhecidos, compromete o corpo e traços não linguísticos inscritos na própria
linguagem. É com o inconsciente do corpo e com o inconsciente da linguagem que os
dois falantes lançam os seus pseudópodes para ver se se encontram.
Quererá isso dizer que um encontro é um contato ou uma comunicação entre in-
conscientes? E que, quando as duas falas “pegam”, é porque os dois inconscientes se
fundiram um no outro? Se tal sucedesse, a continuação da conversa seria inconcebí-
vel: a “fusão” das duas falas as afogaria numa sopa amorfa, em que as suas singula-
ridades se perderiam. Por definição, deixaria de haver “encontro” – por desapareci-
mento da individuação dos que se encontraram-fundiram. O encontro supõe, então,
ao mesmo tempo qualquer coisa como uma osmose entre os que se encontram e
a conservação da sua plena singularidade. Uma “síntese disjuntiva”, na terminologia
deleuziana. É assim que o laço que nasceu tece o plano da circulação das forças (das
falas) na medida em que estas se desenvolvem. O laço forma-se antes do plano e os
seus movimentos formam o plano.
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JOSÉ GIL
um híbrido, resultado do enxerto de uma parte da imagem noutra parte da outra
imagem, essa imagem inconsciente é como o seu avesso vazio, o espaço vazio
que toda a hibridação produz.
É paradoxal que o espaço vazio nasça da própria indiscernibilidade das forças: estas
compõem microcaos que tendem a autonomizar-se, mas que produzem ao mes-
mo tempo o esboço de um diagrama de forças, quer dizer, o traçado de uma linha
de fuga. Porque, ao atrair as forças, o microcaos intensifica-as, o que as faz tender
para o movimento inverso: a singularização, por meio do ritmo. E o movimento
que tende a reunir as forças mantendo a sua singularidade no meio do microcaos
traça um diagrama. Este, impedindo as forças de se homogeneizar no caos, leva-as
a uma individuação maior, na direcção de um “fora” (no seio mesmo da singulari-
dade). Ora, elas só podem ganhar um maior espaço de singularização a partir de
um campo vazio de forças. O diagrama traça o trajeto que vai de uma singulari-
dade a outra, de uma força singular a outra, que as liga e as faz escapar do caos. E,
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U M B O M E N CO N T R O?
escapando ou “saltando por cima do caos”, atam o laço que vai tecer o plano de
imanência em que as forças singulares se vão desenvolver ao mesmo tempo que
desenvolvem o que as permite comunicar (o plano). O diagrama é a figura ou o
mecanismo do laço que prende as forças no encontro. Mas como é que o traçar do
diagrama cria e amplifica simultaneamente o espaço vazio – se é verdade que esse
mesmo movimento liga forças a outras forças? As forças são tensões, intensidades
e estas nascem de diferenças. O diagrama permite ligar forças diferentes através
das suas diferenças (e não das suas semelhanças). Como é isso possível? Porque as
diferenças se convêm. Porque, num amor, o que vincula é aquilo que do outro me
vem (através do diagrama) e aumenta a minha singularidade (multiplica as minhas
forças que brotam dos espaços vazios aumentados), isto é, o que do outro mais
me diferencia: eis o que a ele me une e o que prende às dele as minhas diferenças.
“Gosto dela [da pedra] por ela ser uma pedra […] / Gosto dela porque ela não tem
parentesco nenhum comigo.”, diz Alberto Caeiro (Fernando Pessoa).1 1.
Alberto Caeiro, Poemas. Lisboa: Ed. Ática,
O que me convém é a força da diferença que desenvolve as minhas diferenças 1963, p. 82.
internas, o espaço das minhas próprias forças diferenciais que fazem proliferar em
mim outros afetos, pensamentos, criações de possibilidades, heterogeneizações de
sensações. Outros espaços internos e externos, outros ritmos e plasticidades tem-
porais. Por isso eu posso ter encontros com sensações minhas e com outros corpos
virtuais meus que se expressam, se actualizam e que eu descubro pela primeira vez.
Um bom encontro é aquele que, como dizia Espinosa, aumenta a minha potência
de agir e, portanto, a minha alegria. E a minha potência de agir é tanto maior quanto
maior for a minha capacidade de ser afetado. O bom encontro alarga em quantida-
de, diversidade e intensidade o campo da minha experiência.
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JOSÉ GIL
2. recém-nascido.2 É ainda possível atestar o seu carácter “originário” associando-o
Ver D. Stern, Le Monde Interpersonnel du Nour- aos “neurônios-espelho” das neurociências.
risson. Paris: PUF, 1999.
Ao corpo capaz de todas estas funções chamaremos corpo-espelho-de-forças
(CEF). Distingui-lo-emos, assim, do corpo que espelha formas que descreveu
Merleau-Ponty. A expressão que o designa não é muito feliz, já que obriga a insistir
nas características particulares deste “espelhamento” (que Stern também sublinha):
não se trata de uma relação entre original e cópia, nem de uma relação de imitação
de intensidades ou de formas, nem de uma fusão de afetos, nem de empatia ou
simpatia; nem de semelhança ou de analogia entre forças que se recebem e que se
emitem. Se é possível falar de “espelhamento” é porque entre a mãe e o bebê passa
um mesmo ritmo. Assim, o espelhamento de forças é, antes de mais, uma concor-
dância de ritmos, na expressão afetiva. Mas nós sabemos que o ritmo, ao contrário
3. da cadência que repete o mesmo, traduz o diferente.3
Deleuze, Guattari, Mille Plateaux. Paris:
Minuit, 1980, p. 385. Cf. em Stern, op. cit., o (Talvez o termo corpo-espelho-de-forças não seja tão inadequado como parece.
exemplo da mãe que entra em concordância Talvez seja o nosso desconhecimento ainda da natureza dos espelhos que nos leva
afetiva com o bebê que vocaliza sons do grave a crer que eles refletem uma cópia fiel da forma original.)
ao agudo, levantando e baixando o braço com
o mesmo ritmo. Como age o CEF no encontro? Em todo o encontro há uma parte, maior ou menor,
de acaso. Este constitui essencialmente o encontro (pois a sua abolição total implicaria
a abolição de todo o elemento diferente: nada se encontraria com nada, pois tudo
seria já conhecido, “encontrado”). O fortuito traz uma perda dos quadros de referência
(espácio-temporais, relacionais, cognitivos, afetivos, corporais) daquele que encontra
inesperadamente um outro ou outra coisa. Isso induz imediatamente um microcaos
perturbador desses quadros, o qual, por sua vez, se pode manifestar ao nível macro:
não se sabe o que dizer, que postura adotar, tem-se gestos embaraçados ou hesitan-
tes. Para sair do microcaos procura-se o “tom”, isto é, o diagrama de que poderá sair o
trajeto do desejo em adequação com o desejo do outro.
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U M B O M E N CO N T R O?
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JOSÉ GIL
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U M B O M E N CO N T R O?
Foto Rubens Chiri
Grupo Bagaceira de Teatro e Coletivo Angu de Teatro
pando para a constituição do indivíduo (por narcisismo especular: a imagem que
o outro reflete é um outro “eu”, capto o outro como imagem de mim). Nos dois
casos arruína-se o encontro: no primeiro, o caos afunda-se num buraco negro;
no segundo, o espelhamento tende a abolir as diferenças, na própria diferencia-
ção numérica: 1+1=1.
Mas o efeito maior do espelhamento está por referir: a emissão de vida que se
projeta e depois se reflete no corpo-espelho. A esse fenômeno, psicólogos e
etnólogos chamaram “antropomorfização” e “animismo”, termos mal escolhidos
porque não se trata de transferência de formas, mas de forças; nem resulta de um
juízo atributivo, mas de uma projeção real de forças. O CEF, ao emitir partículas
virtuais, comunica vida aos seres e às coisas. Acorda nestes a vida que as atravessa
e reflete-a, para o corpo emissor, transformando-o. Nesse sentido, o espelhamen-
to supõe não só a emissão de partículas virtuais, mas toda uma “subjectividade
do meio”4 própria do meio-mapa que reflete o desejo emitido. O mundo, como 4.
a paisagem, é um meio de forças de vida em que o CEF mergulha e encontra Deleuze, Critique et Clinique. Paris: Minuit,
outros corpos que reenviam a todos a vida que os atravessa. A força que o CEF 1993, p. 81.
lança “levando” as partículas é a vida. A palavra trocada é “levada” pelo incons-
ciente da linguagem que drena uma força vital (por isso, há palavras que matam
literalmente, como o sabe bem a feitiçaria; ou se mata pela “honra” – que contém,
no sangue, a força da vida –, como bem o sabem os etnólogos).
O acaso rasga o espaço à volta e dentro do corpo. Quanto mais fortuito for o encon-
tro, mais necessariamente será um bom encontro. Para tanto, convém desejar o acaso.
Eliminar a razão suficiente e o princípio de causalidade. Dispor-se a acolher o acaso no
caos e microcaos que temos sempre em reserva. Quanto mais espaços vazios nasce-
rem, mais encontros se tornam possíveis, porque maior é a margem do acaso que os
acompanha. Um encontro extremamente fortuito multiplica-se em múltiplos encon-
tros fortuitos – e assim indefinidamente. Um bom encontro – que aumenta a alegria
a potência de agir – é um multiplicador de encontros. Um bom encontro é um mul-
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JOSÉ GIL
tiplicador de singularidades. Dois homens que se encontram formam uma multidão.
Porque todas as coisas se animam e proliferam, os seres elevam-se, entram na ima-
nência da terra ao ar, do exterior ao interior, da consciência ao inconsciente, do um à
multiplicidade, do corpo ao espírito. O bom encontro aumenta a potência do mun-
do fazendo os corpos levitarem. Da sua leveza irradia o máximo poder de devir. O
devir-mundo dos que tiveram a sorte de se encontrar.
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U M B O M E N CO N T R O?
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JOSÉ GIL
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DA N AT U R E Z A D O S E N CO N T R O S
UMA CARTA
de experiências inusitadas
sonhados
do convívio criativo
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C R I S T I A N E PAO L I Q U I TO
entre grupos vindos de todo o Brasil
troca
e certamente do confronto
teatro conflito!
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DA N AT U R E Z A D O S E N CO N T R O S
fantasmas
a fricção
um na sede de outro
risco
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C R I S T I A N E PAO L I Q U I TO
a plateia
mas é incrível
U M A C A RTA 141
DA N AT U R E Z A D O S E N CO N T R O S
deve ainda reverberar por recepção e absorção
do universo teatral
da ruptura, do viver
Rumos
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C R I S T I A N E PAO L I Q U I TO
“escolas” diferentes do fazer teatral
certezas abaladas,
acolhendo diferenças e
semelhanças
intensas
U M A C A RTA 143
DA N AT U R E Z A D O S E N CO N T R O S
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BIOGRAFIAS
BIOGRAFIAS
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I N S T I T U TO I TA Ú C U LT U R A L
Eleonora Fabião é atriz, performer e teórica da performance. Professora adjunta e
coordenadora do curso de direção teatral da Escola de Comunicação da Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na qual leciona desde 1997, é doutora em
estudos da performance pela Universidade de Nova York e mestre em história so-
cial da cultura (PUC/RJ). Suas últimas performances investigam relações pessoais
em escala pública. Lecionou recentemente na Universidade de Nova York, na Freie
Universität Berlin e na Norwegian Theater Academy, entre outras instituições. Con-
duziu workshops e palestras no evento Próximo Ato: Encontro Nacional de Grupos
Teatrais, promovido pelo Itaú Cultural em diferentes regiões do Brasil.
147
BIOGRAFIAS
vários artigos sobre o trabalho do ator, publicou os livros O Ator Compositor (2002)
e A Cinética do Invisível (2009), ambos pela Editora Perspectiva. Desenvolveu pes-
quisas sobre o trabalho do ator e do performer junto ao The Graduate Center
(Cuny), em Nova York, e à Freie Universität de Berlim. Leciona no departamento
de artes cênicas da Unicamp e é um dos fundadores do Performa Teatro − Núcleo
de Pesquisa e Criação Cênica (www.performateatro.org).
Sonia Sobral é gerente do Núcleo de Artes Cênicas do Itaú Cultural, desde 1999.
Participou da criação de diversos projetos, entre os quais se destacam o Rumos
Dança, mapeamento e fomento nacional de dança contemporânea; o Próximo
Ato – Encontro Internacional de Teatro Contemporâneo e o Rumos Teatro, encon-
tro nacional de teatro de grupo. Entre os projetos que coordena estão a Enciclo-
pédia Virtual de Teatro, a Enciclopédia Virtual de Dança e a Ocupação – programa
com exposições e tratamentos de acervos de artistas brasileiros, como José Celso
Martinez Corrêa, Flávio Império, Ballet Stagium e Nelson Rodrigues. Organizou
a coleção Cartografia Rumos Itaú Cultural Dança 2006−2007 e a coorganizou no
biênio 2009−2010.
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I N S T I T U TO I TA Ú C U LT U R A L
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BIOGRAFIAS
FICHA TÉCNICA LIVRO
Organização
Cristina Espírito Santo
Eleonora Fabião
Sonia Sobral
Coordenação Geral
Núcleos de Artes Cênicas e Comunicação
Direção de Arte
Jader Rosa
Projeto Gráfico
LuOrvat Design
Produção Editorial
Lívia G. Hazarabedian
Edição
Roberta Dezan
Coordenação de Revisão
Polyana Lima
Revisão
Ciça Corrêa (terceirizada)
Karina Hambra (terceirizada)
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I N S T I T U TO I TA Ú C U LT U R A L
FICHA TÉCNICA DVD
Direção Edição
Cassandra Mello Cassandra Mello
Fred Steffen
Coordenação geral
Núcleo de Artes Cênicas Finalização
Fred Mauro
Organização de conteúdo
Cristina Espírito Santo Mixagem
Eleonora Fabião Estúdio Audiorama (Dipa)
Sonia Sobral
Trilha sonora (abertura e créditos)
Câmeras Estúdio Audiorama | Márcio Arantes
Cassandra Mello
Fred Steffen After effects
Paulo Plá Marina Hiromi
Captação de som Autoração do DVD
Cauê Dok Erika Togniolo
Cristina Rangel
Dipa Equipe do Núcleo Audiovisual do Itaú Cultural
Paula Bertola
Produção Karina Fogaça
Débora Carillo Rodrigo Lorenzetti
Rafael Ghirardello
Rodrigo Faria Produção
Ateliê Eletrônico
Assistência de câmera e logger Itaú Cultural
Alexandre Turina
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BIOGRAFIAS
Centro de Documentação e Referência Itaú Cultural
Catalogação na publicação (CIP)
Rumos Itaú Cultural Teatro 2010-2012 : Encontro / organização Cristina Espírito Santo,
Eleonora Fabião, Sonia Sobral. – São Paulo : Itaú Cultural, 2013.
156 p. ; + 2 DVDs
ISBN 978-85-7979-039-3
1. Artes cênicas. 2. Companhias de teatro. 3. Teatro contemporâneo. 4. Rumos
Itaú Cultural Teatro. I. Título.
CDD 792
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tipografia Verlag
papel alta alvura 90g/m2
impressão Gráfica Editora Aquarela S/A
tiragem 2000
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BIOGRAFIAS
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I N S T I T U TO I TA Ú C U LT U R A L
155
BIOGRAFIAS
Realização
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I N S T I T U TO I TA Ú C U LT U R A L