Anda di halaman 1dari 152

Coleção Dialética

Volume 10

Obras do Autor

Introdução ao pensamento de Martin Heidegger (1966)


Compreensão e finitude — estrutura e movimento da interrogação
heideggeriana (1967)
História e ideologia (1972) — Movimento (2a edição, 1982)
A questão do método na filosofia (1973) — Movimento (2a edição, 1983)
Metalinguagem e compreensão nas ciências humanas (1975)
Melancolia (1976) — Movimento
Instauração do sentido (1977) — Movimento
ERNILDO STEIN

A Questão do Método
na Filosofia
Um estudo do m odelo heideggeriano

terceira edição

£ E D ITO R A M OVIM ENTO


Capa
Mário Ròhnelt
Revisão
Myrna Bier Appel

FICHA CATALOGRÁFICA

(Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte,


Câmara Brasileira do Livro, SP)

Stein, Ernildo, 1934 —


S833q A questão do método na filosofia: um estudo do mode­
lo heideggeriano. Porto Alegre, M ovim ento, 1983.
170 p.

Bibliografia.
1. Ciência — Filosofia 2. Heidegger, Martin,
1889 — — Crítica e interpretação 3. Metodologia
I. Título.
CDD-101.8
-193
73-0355 -501

índices para catálogo sistemático:

1. Alemanha: Filosofia 193


2. Ciência: Filosofia 501
3. Filosofia alemã 193
4. Filósofos alemães 193
5. Metodologia: Filosofia 101.8
6. Métodos filosóficos 101.8

1991
Direitos desta edição reservados à
Editora Movimento
Banco Inglês, 252
Morro de Santa Tereza
90640 — Porto Alegre, RS — Brasil
ÍNDICE

Prefácio ........................................................ 7
Introdução — Os postulados metodológicos
da questão própria da Filoso­
fia ......................................... 11

I
EXPOSIÇÃO E ANÁLISE

1. As intuições heideggerianas e o movi­


mento fenomenológico ......................... 29
2. A recepção crítica da fenomenología na
obra de Heidegger................................. 55
3. A fenomenología como ontologia her­
menêutica ............................................. 79

II
INTERPRETAÇÃO E CRÍTICA

4. A ambigüidade do método heideggeria-


no e os métodos filosóficos atuais . . . 97
5. 0 confronto sistemático-crítico com a
História da F ilosofia............................. 113
6. A radicalização da fenomenología hus-
serliana e uma nova teoria do ser . . . . 135
PREFACIO

O núcleo deste trabalho ampliou-se e tomou forma


numa reflexão sobre a obra de Heidegger, realizada ao
longo de vários anos. O livro representa o estágio final
de uma leitura que se orientou em duas questões funda­
mentais: o método e o objeto da Filosofia e a relação
entre ambos. Estou convencido de que método e objeto
devem ser pensados num movimento unitário que é ex­
clusivo da reflexão filosófica. Tanto do ponto de vista
sistemático como do ponto de vista histórico, a compre­
ensão de método e objeto deve realizar-se de maneira
totalizante. Chamar a atenção para tal estado de coisas
é oportuno, particularmente hoje, quando as discussões
metodológicas sustentam um intercâmbio entre Filosofia
e Ciência, de que ambas têm somado resultados positivos.
E como poucas outras entre as contemporáneas, a obra
de Heidegger pode orientar para o necessário discerni­
mento, a fim de não se confundir o que deve ser distingui­
do na discussão metodológica.
A área que aqui estudo foi pouco explorada até ago­
ra. Na bibliografia heideggeriana não existe obra alguma
que se detenha na análise da questão do método e
sua relação com o objeto propriamente dito da Filo­
sofia. Meu trabalho de livre-docência era em parte uma
primeira tentativa de perguntar pela estrutura e movimen­
to da interrogação heideggeriana. Porém, o interesse que
me movia não visava uma interpretação do método. Ape­
nas alguns aspectos da exposição imánente da fenomeno­
logía heideggeriana foram aqui aproveitados. Ligam-se
agora a um outro contexto. Quem conhece a obra de
Heidegger poderá compreender facilmente como se man­
teve esta lacuna na discussão do método nos estudos

7
heideggerianos. O Filósofo faz apenas uma exposição
provisória no § 7 de Ser e Tempo e, em seus trabalhos
posteriores, as referências à fenomenología tornam-se
cada vez mais raras. Além disso, o tipo de reflexão que
Heidegger realiza parece tirar vantagens do silêncio em
torno do método. Toda a temática da obra parece até
opor-se a qualquer discussão metodológica, sobretudo
com as ciências. Um certo pathos que perpassa a lin­
guagem heideggeriana dá uma conotação claramente crí­
tica às observações sobre a questão do método que se
desenvolveu desde a Modernidade. Tal estado de coisas
contribuiu para formar-se uma linha que predomina na
interpretação da obra de Heidegger e que se inspira nas
aparências antimetódicas. Para ele a Filosofia que leva
a sério a universalidade de seu objeto deve movimentar-
se fora e além dos estreitos limites do método.
É, entretanto, uma grande ilusão pensar que a Filoso­
fia se distingue das ciências, porque se imagina que o
pensamento nela se exerce à margem de qualquer trans­
parência metódica. Talvez a interpretação da obra de
Heidegger caia nesta ilusão porque se esposa uma falsa
concepção de método em Filosofia e por isso faltam as
condições para descobrir, na interrogação heideggeriana,
o movimento unitário de método e objeto. Quisera mos­
trar, através das análises que seguem, como Heidegger
articula, na marcha de todo o seu pensamento, de tal ma­
neira as relações entre objeto e método, que pensá-los
separados ou apenas destacar o objeto falha as próprias
intenções do Filósofo.
Na Introdução traço um roteiro que antecipa e resu­
me meu projeto de interpretação. Para tal fim recorro ao
debate metodológico atual e confronto Hegel e Heidegger
para que se veja, de modo global, a solução que deram
ao problema das relações entre método e objeto no pen­
samento filosófico e em que se distinguem. No capítulo
primeiro exponho, em breves traços, o movimento feno-
menológico, procurando determinar o lugar que Heideg­
ger nele ocupa e que elementos foram para isso deter­
minantes. O capítulo segundo se detém na articulação
do método fenomenológico, no contexto da obra de Hei­
degger. O capítulo terceiro estuda o caráter hermenêu­
tico da fenomenología heideggeriana. O capítulo quarto,

8
que abre a parte propriamente interpretativa e crítica,
analisa a ambigüidade do método heideggeriano que o
distingue dos outros métodos e mostra, ao mesmo tempo,
sua atualidade. No capítulo quinto, procuro delimitar o
modelo em que se funda a fenomenología heideggeriana
e exponho a maneira como este se faz presente na inter­
pretação da Historia da Filosofia. Neste capítulo torna-se
manifesto o que separa o método especulativo-hermenéu-
tico dos métodos lógico-analítico e especulatívo-dialéti-
co, em face dos textos da tradição filosófica. O capítulo
sexto pretende ser um confronto global do pensamento
de Heidegger com a metafísica ocidental. Para realizá-lo
escolhi o problema da relação do pensamento heidegge­
riano com a filosofia da subjetividade, analisando as con-
seqüências da radicalização da fenomenología husserlia-
na e com isto da superação da subjetividade, para a teo­
ria do ser desenvolvida por Heidegger.
O leitor atento descobrirá sem dificuldade que o livro
não é apenas uma exposição da fenomenología heideg­
geriana, nem só uma interpretação e discussão crítica
dos problemas do método e suas relações com a questão
do sentido do ser. A análise entra no debate metodoló­
gico atual, para tomar urna determinada posição em face
da questão do método na Filosofia. A repetida confronta­
ção a que levo os métodos lógico-analítico, especulativo-
dialético e especulativo-hermenêutico não é arbitrária nem
ocasional. Estas denominações marcam as três direções
em que as investigações filosóficas se desenvolvem atual­
mente: a) a analítica da linguagem com suas múltiplas va­
riantes; b) a escola da teoria crítica e as diversas tendên­
cias que visam dar uma solução dialética ao problema
da relação entre teoria e praxis; c) a hermenéutica filosó­
fica que procura mostrar como a compreensão não é pri­
meramente um elemento metódico na interpretação dos
textos, mas urna forma de exercício da vida social, vida
que, em última análise, é uma comunidade de linguagem.
Estas três direções não são apenas áreas de discussões
imanentes à Filosofia como tal; por elas se canalizam as
diversas maneiras de compreender a relação da Filosofia
com as ciências, sobretudo com as ciências humanas.
Informações sobre a bibliografia utilizada podem ser
extraídas das notas apostas à Introdução e aos capítulos.
E.S.
9
NOTA PARA A SEGUNDA EDIÇÃO

A Editora Movimento oferece-me a oportunidade de


realizar a segunda edição deste texto, após dez anos de sua
publicação. É um livro de que sempre gostei e que foi rece­
bido com simpatia pelos leitores. Ocupa certamente o lugar
central entre meus trabalhos sobre a obra de Heidegger e
representou aqui no Brasil, e em círculos informados no
exterior, urna nova via de acesso — e das mais produtivas -
a Ser e Tempo e à questão do método na filosofia. Nada
perdeu de sua atualidade. Espero elevar a discussão ali ini­
ciada a um novo patamar e dar-lhe as dimensões a que ace-
nava com a publicação de Práxis e Totalidade. Esta a razão
porque nada acrescento aqui do estimulante material que
emerge da obra postuma. Preservo assim também a especi­
ficidade de seu discurso e a articulação bem sucedida do
tema.

Porto Alegre, 15 de março de 1983.

Ernildo Stein

10
INTRODUÇÃO

OS POSTULADOS
METODOLÓGICOS DA QUESTÃO PRÓPRIA
DA FILOSOFIA
1 O controle metódico do exercício da razão huma­
na é hoje, mais que em qualquer outra época, o ideal de
grande parte do pensamento filosófico. Cada vez mais o
poder da razão parece residir em sua capacidade de
orientar-se pelo método na exploração dos temas centrais
da Filosofia. Tal confiança no procedimento rigoroso e
crítico se inspira, antes de mais nada, nos resultados obti­
dos pelas ciências, na aplicação de seus métodos especí­
ficos, e se apóia no instrumental que a nova lógica, a ana­
lítica da linguagem e a lingüística desenvolveram. É urna
verdadeira revolução que se observa em diversas áreas
da Filosofia, resultado já das múltiplas tentativas para apa­
relhar a reflexão filosófica com estes novos recursos. Tem-
se a convicção de que finalmente também na Filosofia o
trabalho do pensamento e sua exteriorização na lingua­
gem podem ser controlados, tanto em seu funcionamen­
to como em seus resultados. Desta maneira, o nível crí­
tico que se passa a exigir da Filosofia recebe sua mais
alta expressão no procedimento metódico que orienta o
uso da razão. Muitas direções do pensamento filosófico
preocupam-se em incorporar uma instância crítica ampia
e eficiente para garantir maior objetividade na análise de
suas questões fundamentais. A Filosofia espera libertar­
se assim de uma espécie de complexo que sempre pare­
cia acompanhá-la em seu contato com as ciências. O
trabalho filosófico não apenas não deve ficar devendo
mais em rigor às ciências; ele deve ser metodicamente
assim construído que se torne acessível para qualquer
um que tenha certa experiência no campo científico.

1. 1 Partindo-se deste pressuposto, enfrenta-se a


História da Filosofia como um terreno em que é preciso
fazer uma severa seleção e divisão. De um lado, situam-
se aqueles que em toda a história do pensamento fizeram
tentativas de submeter a filosofia a um controle, desen­

12
volvendo regras de procedimento metódico; de outro, se
alinham os que não corresponderam a esta exigência de
rigor e clareza. Descartes, Leibniz, Kant recuperam um
lugar de honra ao lado daqueles que, nas primeiras déca­
das do século vinte, se mantiveram afastados do "renas­
cimento da metafísica”, como Frege, Russel, Carnap, Wit-
tgenstein, Quine e outros. Todos estes dedicaram seus
talentos, primeiro a purificar a filosofia dos problemas
"aparentes e falsos”, para então construírem um pensa­
mento metódico e controlável. Pensadores como Dilthey,
Husserl, Scheler, Merleau-Ponty, Heidegger são abandona­
dos junto de Espinoza, Fichte, Schelllng, Hegel, Marx e
outros. Em todos estes, diz-se, falta o rigor na reflexão,
a consciência de um método que ponha ordem nos resul­
tados, quando não se procura até encontrar sinais de irra­
cionalismo em suas filosofias.
Mesmo que tenhamos carregado as linhas para acen­
tuarmos o contraste e simplificado muito para sermos con­
ciso, esta divisão pode ser observada pelo olhar atento
que se debruça sobre a paisagem da filosofia contempo­
rânea. A questão do método em Filosofia domina em
grande proporção as discussões no campo filosófico, quer
para dividi-lo em duas facções, quer para dar a uma delas,
não apenas a hegemonia, mas a razão sobre a outra. E
não resta dúvida, no momento atual está com nítida van­
tagem o grupo daqueles pensadores que persegue um
trabalho metódico na Filosofia e exige um controle críti­
co dos resultados. Sua vantagem não resulta apenas da
combatividade e publicidade que lhe é garantida, aumen­
tando sua audiência; há uma espécie de consenso tácito
de que neste campo a Filosofia deve ainda recuperar mui­
to tempo perdido.

1. 2 Este despertar para a necessidade do método


na filosofia é profundamente salutar. É preciso, no entan­
to, descobrir que um certo radicalismo turbou os olhos
para distinções indispensáveis. Esta falta de discerni­
mento conduziu a um unilateralismo, o qual, se conscien­
te, não seria esposado. Os modelos que comandam a
reflexão sobre o método, sobretudo no campo lógico-ana­
lítico, são, em grande parte, emprestados das ciências;
antes de mais nada, daquelas que permitem diferentes

13
graus de formalização. Um tal pensamento filosófico uti­
liza uma linguagem unívoca que promete ser a garantia
de máxima clareza e perfeita comunicação, além de asse­
gurar o melhor rendimento com um máximo de economia.
Esta parcial transposição do método científico para
o campo filosófico trouxe consigo uma restrição indevida
do objeto da Filosofia. A escolha do método atua sobre
a delimitação do objeto; este se reduz a proporções com­
patíveis com um método ao qual interessa primeiro que
tudo clareza e rigor no controle dos resultados da refle­
xão filosófica. O método não se adequa ao objeto da Fi­
losofia; da exterioridade ele reduz o objeto, dando-lhe a
sua medida.
Não é mais o confronto com o objeto da Filosofia
que dá a medida do método; o método impõe suas dimen­
sões e determina a amplitude e o alcance da questão tipi-
ficadora da Filosofia. A busca de segurança e resultados
suprime a universalidade do questionamento filosófico e,
em casos extremos, elimina o conteúdo da Filosofia, re­
servando-lhe apenas uma função crítica. Uma tal compre­
ensão da questão do método em Filosofia suprime para
si mesma a possibilidade de ver que na História da Filoso­
fia está atuante uma outra concepção de método, que
não se opõe necessariamente à primeira, nem se apre­
senta como simples alternativa; ela pode antes incluir
aquela. Não precisa, portanto, renunciar ao controle crí­
tico de seu modo de proceder e de seus resultados; pode
recorrer a todos os novos instrumentos que a lingüística,
a analítica da linguagem e os processos de formalização
da lógica põem à disposição do pensamento atual. É, no
entanto, um método que se adequa ao objeto do pensa­
mento; que não é exterior ao questionamento filosófico,
mas acompanha o próprio movimento da questão propria­
mente dita da Filosofia.
O método na Filosofia — que engioba e antecipa to­
dos os outros métodos — não pode ser preparado de ma­
neira exterior ao objeto da Filosofia, nem construído a
partir de um modelo de ciência particular. O pensamento
que analisa a questão propriamente dita da Filosofia, des­
dobra, na intimidade do próprio questionamento do obje­
to, os passos metódicos, numa unidade de pensamento,
método e objeto. É um processo especulativo e totaliza-
dor que respeita a universalidade da questão e da tarefa
da Filosofia e que se transfere para a linguagem filosófica.
Desta maneira, a linguagem filosófica carrega em seu
bojo algo da universalidade e inexauribilidade do próprio
objeto que exprime, não podendo, em momento algum, ser
reduzida à univocidade e transparência características dos
signos empregados pela ciência. A linguagem que corres­
ponde ao movimento especulativo e totalizador tem um
funcionamento semântico que só se compreende através
de uma hermenêutica que toma em consideração o objeto
que tal linguagem exprime.

2 Hegel foi o primeiro a expor com clareza a neces­


sidade de o método na Filosofia coincidir com o próprio
movimento do pensamento voltado para o objeto. No pre­
fácio da Fenomenología do Espírito, o Filósofo fala de que
talvez se imponha dizer algo mais preciso sobre “o método
deste movimento ou da ciência”, isto é, da Filosofia. Pas­
sa então a caracterizar o método da Filosofia: ”0 concei­
to de método já reside, porém, no que foi dito e sua expo­
sição mesma faz parte da Lógica ou antes é ela mesma.
Pois o método não é outra coisa que o edifício do todo,
erguido em sua pura essencialidade” (1). Em Filosofia,
portanto, pensamento, método e objeto coincidem num
único movimento; este é o movimento especulativo que
em Hegel também assume o caráter dialético.
Depois de explicar que o que até ele era “o sistema
de representações relacionadas com o método filosófico
pertence a uma cultura passada”, Hegel faz a crítica da
insuficiência do conceito de método das ciências para a
Filosofia, referindo-se explícitamente à Matemática. ‘‘Não
é difícil verificar que a mania de apresentar um princípio,
aduzir razões para confirmá-lo e de refutar de maneira
igual, também por meio de razões o princípio oposto, não
é a forma em que se pode manifestar a verdade. A ver­
dade é o movimento de si em si mesma; aquele método,
porém, é o conhecimento que é exterior à matéria” (2).
A verdade da Filosofia só se atinge por um movimento
interior a ela mesma; o método científico é exterior ao
próprio objeto (matéria) e por isso jamais poderá coinci­
dir com seu movimento. E o Filósofo continua: ‘‘Se, po­
rém, a necessidade do conceito rejeita tanto a marcha

15
incontrolada da conversação e do debate como a mar­
cha rígida do aparato científico”, ela não deve recorrer à
“negação do método que é o pressentimento e o entusias­
mo e ao arbitrio do discurso profético, que despreza, não
apenas aquela Ciencia (a Filosofia, E .S .), mas a cientifi-
cidade como tal” (3). Hoje, diría Hegel, a Filosofia deve
evitar tanto a linguagem ordinária como a camisa de for­
ça da linguagem unívoca das ciências e não deve cair,
no entanto, num tipo de linguagem poética e mítica, em
que a presença do objeto não comanda o movimento da
reflexão. A linguagem que corresponde ao método espe­
culativo, próprio da Filosofia, se articula de maneira tal
que se deixa conduzir pela questão propriamente dita da
Filosofia, substituindo progressivamente a antecipação de
uma visão imprecisa pelo rigor de um dizer que reproduza
a amplitude e harmonia de um movimento de totalização.
Hegel só compreende o método especulativo enquan­
to é simultaneamente dialético. Isto significa que o movi­
mento que o pensamento realiza na interioridade do pró­
prio objeto surge na auto-reflexão em que é suprimida a
dualidade sujeito-objeto e elevada para dentro da dinâ­
mica do conceito e da idéia. Este processo de auto-refle­
xão perpassa toda a complexidade da questão propria­
mente dita da filosofia e se conduz pelo modelo triádico
(tese, antítese, síntese), para pensar o todo e cada um
dos momentos no movimento de totalização. O modelo
triádico não é, entretanto, um esquema exterior que o pen­
samento utiliza para articular o objeto; o modelo triádico
já é o movimento unitário de pensamento e objeto propria­
mente dito da filosofia. O caráter dialético do método es­
peculativo de Hegel é a garantia de que pensamento, mé­
todo e objeto da Filosofia mantenham uma unidade dinâ­
mica que se articula em círculos até elevar-se à idéia
absoluta. É esta como télos propriamente a garantia da
unidade do lógos em todo o movimento. A idéia absoluta
possibilita o movimento de totalização através do método
especulativo-dialético, porque é a totalidade já sempre an­
tecipada. Ainda que para Hegel esta totalidade seja um
aspecto constitutivo essencial do pensamento especulativo-
dialético, isto não significa que tudo seja dado a priori,
que se faça supérfluo o trabalho da razão, que esteja eli­
minada a produtividade semântica, que se exclua a gênese

16
do sentido. O movimento, no entanto, está esboçado, aô
menos em sua direção fundamental. Uma questão essen­
cial permanece por isto suspensa: Até que ponto os pres­
supostos onto-teo-lógicos constituem o elemento de apoio
da filosofia hegeliana e, desta maneira, vinculam o objeto
da Filosofia e seu método a urna determinada concepção
da Filosofia: a onto-teo-logia e a metafísica da subjetivida­
de?
3 Ao lado de Hegel foi Heidegger aquele que pro­
curou distinguir, de maneira explícita, o método adequado
à questão própria da Filosofia. E neste esforço de separar
os campos, o Filósofo elaborou para o método em Filosofia
um estatuto especulativo que só permite comparação com
a empresa de Hegel. Afasta-se, porém, deste, sob dois
pontos de vista: a) Heidegger faz do caráter onto-teo-ló-
gico da metafísica ocidental o alvo mais importante de
sua crítica e dele faz depender a substância do método
especulativo-dialético de Hegel; b) do caráter onto-teo-ló-
gico e do predomínio do pensamento da subjetividade na
metafísica ocidental Heidegger faz depender o esqueci­
mento da questão por excelência da filosofia: a questão
do ser. Sem sacrificar a dimensão especulativa do méto­
do em Filosofia, deve o método ser determinado de ma­
neira tal que se evite fazer do caráter onto-teo-lógico sua
substância e do pensamento da subjetividade seu veículo;
só assim o método se poderá comensurar com a questão
fundamental da Filosofia: a questão do ser.
Acompanhemos os momentos principais que marcam
a atitude de Heidegger em face da questão do método
em Filosofia. Para tal é importante que se observe que
o Filósofo fala de três concepções diferentes de método:
do método científico que toma formas específicas, depen­
dendo das ciências que o utilizam; do método próprio da
Filosofia que se desenvolve desde Descartes e perpassa
toda a metafísica da subjetividade; e do método que o
Filósofo esboça de forma provisória no § 7 de Ser e Tempo
e que se revela em exercício nas principais instâncias de
sua obra filosófica, dando-lhe unidade e dimensão espe­
culativa.
3.1 Heidegger fala do método científico apenas quan­
do caracteriza o seu método ou a idéia de método que sur­

17
giu com o movimento da subjetividade. Assim refere-se,
no início de Ser e Tempo, a ‘‘uma simples técnica para a
manipulação dos objetos, técnica da qual mesmo as ciên­
cias teóricas oferecem muitos exemplos” (4). E mais adian­
te, em Ser e Tempo, novamente procurando especificar o
seu método diz: “Autêntica reflexão metódica — que cer­
tamente deve ser distinguida da vazia discussão da téc­
nica — dá, por isso, ao mesmo tempo esclarecimento
sobre o modo de ser do ente tematizado” (5). Nas aná­
lises em O Niilismo Europeu, o Filósofo explica: “Método
não deve ser aqui compreendido “metodológicamente”
como modo de investigação e pesquisa. . . (6). E noutra
passagem do mesmo livro, novamente procurando carac­
terizar o método introduzido na Modernidade por Des­
cartes, Heidegger afirma: “Método não é agora mais
apenas a ordenada sucessão dos diversos passos da refle­
xão, demonstração, exposição e sistematização de co­
nhecimentos. .. ” (7). Em sua conferência Hegel e os
Gregos o Filósofo faz, no entanto, depender o desenvolvi­
mento das ciências modernas da absolutização do método
em Hegel e na Filosofia Moderna. Ao falar do “método”
como “a alma do ser”, ele aconselha que não se julgue
tal afirmação de Hegel tão fantástica, pois “quando a
física moderna vai em busca da fórmula do mundo, revela-
se nisto o seguinte: O ser do ente se dissolveu no método
da total calculabilidade” (8). Citemos, por fim, a passa­
gem de uma carta de Heidegger que data de 1950. “Mas
para este diálogo entre Filosofia e Ciências o pressuposto
básico é que as ciências particulares exijam de uma vez
prestação de contas a si mesmas. Isto somente poderá
acontecer quando elas a partir de seu próprio trabalho, a
partir de seu objeto, deparem com o que ali é o incontor-
nável: que em toda parte já o ser é pensado e dito no ente.
Isto que para as ciências é o incontornáve! deve ser expe­
rimentado como o inacessível para elas, com seus instru­
mentos (metodológicos, E. S. ), para que assim se faça
ouvir o apelo do pensamento e do que é digno de ser
pensado. Perceber o incontornável como o inacessível, eis
a experiência da essencial lim itação das ciências” (9).
O método das ciências deve assumir a consciência
de seus limites; somente assim se evitará a tenta­
tiva inútil de aplicá-lo ao objeto propriamente dito da Fi­

18
losofia que lhe é inacessível. Não há, portanto, um sen­
tido depreciativo nas referências ao método das ciências.
Heidegger procura salvar a autonomia do pensamento filo­
sófico contra uma tendência metodológica que impera nas
ciências modernas e que pode ser desmascarada como o
imperar da subjetividade. Desta tendência nasce a pre­
tensão de as ciências (não reconhecendo seus limites)
quererem impor seu método à Filosofia.
3 .2 O segundo conceito de método é analisado por
Heidegger a partir do início do pensamento da subjetivida­
de. Com a decadência da Idade Média e o fim de uma se­
gurança dogmaticamente fixada, inicia-se a “ procura de
novos caminhos”. ‘‘A questão do “método”, isto é, a ques­
tão da “ escolha do cam inho", a questão da conquista e
fundamentação de uma segurança fixada pelo próprio
homem, passa para o primeiro plano. “Método” não deve
ser compreendido aqui “metodológicamente” como modo
de investigação e pesquisa, mas metafisicamente como
caminho para uma determinação essencial da verdade, que
pode ser fundamentada exclusivamente pela capacidade
do homem” (10). E numa outra passagem do livro O Niilis-
mo Europeu: “O verdadeiro é apenas o seguro, o certo.
Verdade é certitude e para esta permanece decisivo que
nela sempre o homem como sujeito esteja certo e seguro
de si mesmo. Por isso, para a garantia da verdade como
certitude, é necessário, em sentido essencial, o procedi­
mento, o garantir previamente. O “método” recebe agora
um peso metafísico, que é, por assim dizer, suspenso na
essência da subjetividade.” . . . “método é agora o nome
para o pro-cedimento que assegura e conquista o ente
para pô-lo a seguro como objeto para o sujeito. Neste sen­
tido metafísico entende Descartes “ methodus” quando
afirma: “ Necessária est methodus ad rerum veritatem in­
vesti gandam” . Heidegger traduz: “Necessário (essencial­
mente necessário) é o método para descobrir as pegadas
da verdade (certitude) do ente e para segui-las”. E con­
clui: “Em comparação com o “método” assim entendido,
todo o pensamento medieval é essencialmente destituído
de método” (11).
3. 2. 1 Falando do método em Hegel, Heidegger o si­
tua dentro do pensamento da subjetividade. Método não é

19
mais, no entanto, simplesmente o instrumento para garan­
tir a verdade como certitude para o sujeito. Em sua con­
ferência que traz o título Hegel e os Gregos, Heidegger
afirma: “Hegel designa a “dialética especulativa” também
simplesmente de “o método”. Com esta expressão ela não
se refere nem a um instrumento da representação, nem
apenas a uma particular maneira de a Filosofia proceder.
“O método” é o mais íntimo movimento da subjetividade,
“a alma do ser”, o processo de produção, através do qual
a tessitura da totalidade da realidade do absoluto é efe­
tivada”. . . . “O primeiro livro de Descartes, Filósofo através
do qual, segundo Hegel, a Filosofia e, com ela, a Ciência
Moderna, pisou terra firme, traz o título: “ Discours de Ia
méthode” (1637). O método, quer dizer, a dialética espe­
culativa, é para Hegel o rasgo fundamental de toda a rea­
lidade. O método determina, por isso, enquanto tal movi­
mento, tudo o que acontece, isto é, a história” (12).
Se Heidegger já fala com suficiente clareza da di­
mensão especulativa e totalizadora do método hegeliano
na passagem citada, muito mais incisiva torna-se sua aná­
lise do movimento unitário de pensamento, método e coisa
propriamente dita da Filosofia, em seu texto que traz o
título: O fim da Filosofia e a tarefa do pensamento. Para
diferenciar a dimensão da questão que investiga com o
modelo binário de seu método, Heidegger expõe sua inter­
pretação do elemento especulativo do método de Hegel.
“O método (em Hegel) não se orienta apenas na questão
da Filosofia. Ele não apenas faz parte da questão como
a chave faz parte da fechadura. O método pertence muito
antes à questão, porque ele é “a questão mesma” (13).
Método e questão propriamente dita da Filosofia não
apenas se correspondem; eles coincidem e se identificam.
Noutra passagem Heidegger afirma ainda: “O todo se
mostra primeiramente apenas em seu vir-a-ser. Este acon­
tece ao realizar-se a exposição da questão. Na ex-posi-
ção, tema e método tornam-se idênticos. Esta identidade
se denomina em Hegel: o pensamento pensado. Com ele
a questão propriamente dita da Filosofia chega a sua ma­
nifestação. Esta questão é, contudo, historicamente deter­
minada: a subjetividade” (14). “Apenas o movimento do
pensamento, o método, é a questão por excelência” (15)-

20
Estas passagens são suficientes para compreender­
mos o lugar que Heidegger descobre para a questão do
método em Hegel. O método não é exterior à questão pró­
pria da Filosofia; ele se adequa e coincide com ela. Sob
este ponto de vista, o método se conjuga com o próprio
movimento do pensamento; o método possui caráter tota­
lizador e especulativo. Mas para Hegel, e Heidegger o
acentua, a questão da Filosofia é a subjetividade e na
medida em que esta determina o método, este também é
a subjetividade. Este elemento da subjetividade destacado
por Heidegger já resume também a crítica a Hegel: A filo­
sofia da subjetividade é a causa do esquecimento do ser;
a ela se deve a dissimulação da questão fundamental da
Filosofia, a questão do ser. Em Hegel, onde a Filosofia
atingiu a sua plenitude metodológica pelo método espe-
culativo-dialético, realiza-se também a plenitude do vela-
mento da questão do ser.

3 .3 Para superar este velamento da questão, do ser,


Heidegger propõe a sua concepção de método. A fenome­
nología heideggeriana pretende ser um método que se
situa nos antípodas da subjetividade, exigindo para isto
o retorno ao fundamento da metafísica, tanto sob o ponto
de vista do portador da metafísica, através da analítica
existencial, quanto sob o ponto de vista da história da
metafísica, através de um confronto sistemático-crítico
com a História da Filosofia. Quer para a analítica existen­
cial, quer para a superação da metafísica, Heidegger aplica
o método fenomenológico, fundado num modelo binário:
velamento-desvelamento. A aplicação do método fenome­
nológico a estas duas frentes visa pensar o ser que, na
medida em que está velado, deve ser conduzido ao des-
velamento.
Também o método fenomenológico heideggeriano
terá caráter especulativo e totalizador; conduzido pela
questão fundamental da Filosofia: a questão do ser, coin­
cidirá com o próprio movimento desta questão, tanto ao
servir para explicitação do sentido do ser pela analítica
existencial, como para o confronto sistemático-crítico com
a história da metafísica ocidental, visando este a supera­
ção do pensamento da subjetividade e o desvelamento da
história do ser. Se no que diz respeito ao caráter espe­

21
culativo e totalizador a fenomenología heideggeriana se
aproxima formalmente de Hegel, dele se distancia, contu­
do, enquanto o método hegeliano se torna dialético. A dia­
lética sempre ronda um pensamento que se apóia num
modelo binário como no caso da fenomenología heideg­
geriana. A dupla face do ser, o velamento e desvelamento,
facilmente poderiam sugerir uma solução dialética. “A
dialética se insinua constantemente lá, onde se nomeiam
elementos que se opõem” (16). Mas o recurso à dialética
significaria para Heidegger a renuncia a urna das críticas
fundamentais que faz à metafísica ocidental: de que sua
constituição é onto-teo-lógica e que leva ao esquecimento
da diferença ontológica. Pois Heidegger sabe que a dia­
lética hegeliana despojada de seu caráter onto-teo-lógico
torna-se um movimento vazio. “Assistimos hoje a um re­
nascimento do pensamento hegeliano; o pensamento do­
minante dificilmente poderá ser libertado das engrenagens
da dialética. Mas é uma engrenagem que nada mais move,
porque a postura fundamental de Hegel, sua metafísica
cristão-teológica é abandonada; pois somente nela a dia­
lética de Hegel possui seu elemento de apoio” (17). Acei­
tar a dialética em sua plenitude seria assumir o pensa­
mento onto-teo-lógico; isto a coerência de seu pensamen­
to não permite. Recorrer à dialética sem o conteúdo onto-
teo-lógico seria buscar um método despojado da questão
fundamental que o movia. Desta dialética afirma Heideg­
ger: “O método da mediação dialética falha os fenôme­
nos. . . .A dialética é (então) a ditadura da ausência de
questionamento. Em sua rede se asfixia qualquer questão”
(18). Por tudo isto o modelo binário que constitui a base
do método fenomenológico heideggeriano não pode acei­
tar parentesco algum com o modelo dialético (triádico).
Heidegger se afasta do método especulativo-dialético
de Hegel sobretudo porque a subjetividade constitui seu
estatuto fundamental. Desde o projeto de Ser e Tempo a
superação do pensamento da subjetividade é vista como o
caminho para o redimensionamento da questão do ser. E
o esboço do método fenomenológico recorre a um modelo
que o liberte das conotações subjetivas que apresentava
em Husserl. Hegel permanece, entretanto, o único autor
que é sempre lembrado quando se analisa Heidegger, ainda
que a questão da Filosofia na concepção de Hegel se dis­

22
tancie, de certa maneira, mais da questão que move Hei­
degger que qualquer outra posição metafísica. A ampli­
tude do projeto de ambos e o poder especulativo que
conduz sua concretização torna-os, no entanto, muito pró­
ximos. Um simples paralelo poderia talvez descobrir se­
melhanças e correspondências entre os dois pensadores
referentes tanto aos conteúdos que abordam, quanto a seu
modo de enfrentar a História da Filosofia. Estas não se­
riam, no entanto, mais que justaposições cujo caráter ex­
terior se poderia comprovar facilmente. Por quê isto? De
maneira global se dirá: Porque Hegel é o maior dos meta­
físicos e seu projeto é levar o pensamento metafísico à
sua plenitude; Heidegger se situa fora da metafísica e
persegue uma questão cujo esquecimento possibilitou o
surgimento da metafísica. Ambos realizam seus projetos
num movimento especulativo de amplitude e alcance úni­
cos. Criticar aspectos de um com argumentos tirados de
outro conduz por isso a resultados discutíveis e significa
sempre mover-se numa discussão puramente exterior. O
que se pode observar de semelhante em ambos os pensa­
dores é o movimento especulativo e totalizador dentro do
qual realizam seu questionamento fundamental. O caráter
unitário de método e questão propriamente dita da Filoso­
fia é pressuposto básico tanto para Hegel como para Hei­
degger. Isto constitui sua comum grandeza. Dois mundos
estranhos entre si, se revelam, no entanto, quando se de­
termina a questão propriamente dita da Filosofia e o ele­
mento que sustenta o método: Em Hegel se consuma a
Filosofia; em Heidegger se articula a tarefa do pensa­
mento.
Ainda que tenham em comum o caráter especulativo
e totalizador, os métodos de Hegel e Heidegger estão com­
prometidos com dois mundos diferentes: as duas concep­
ções da questão propriamente dita da Filosofia. Em Hegel
o pensamento ocidental se encontra consigo mesmo na
auto-reflexão total e todas as instâncias da Filosofia rece­
bem sua unidade no movimento da subjetividade. A Filo­
sofia se consuma, na medida em que, ao passar por Hegel,
atinge sua possibilidade suprema. A filosofia de Hegel é o
momento da epifanía em que a razão toma consciência de
si mesma e pode acompanhar pela reflexão seu movimen­
to unitário através da História da Filosofia. A passagem

23
da categoria centrai da substância para a categoria da
subjetividade resume o processo todo. Heidegger desco­
bre neste mesmo movimento da tradição metafísica um
outro elemento que lhe dá unidade. Mas este elemento é
como que a outra face do pensamento da subjetividade. O
processo em cujo centro se move a subjetividade conduz,
segundo Heidegger, a um progressivo velamento do obje­
to propriamente dito da Filosofia. Latente em todo o mo­
vimento da razão, toma forma o esquecimento da questão
do sentido do ser. A radicalização da categoria da subjeti­
vidade, através da interpretação existencial do ser-aí, con­
duziu à descoberta deste processo paralelo.
Na medida em que o exercício da reflexão atinge em
Hegel um momento decisivo, Heidegger vê a necessidade
de articular como tarefa do pensamento aquilo que, na epi­
fanía da razão, suporta sua mais radical dissimulação. En­
quanto que em Hegel o que foi pensado chega à sua auto-
transparência, em Heidegger o que permaneceu impen­
sado, naquilo que foi pensado, se manifesta. O elemento
da totalização afirma-se em ambos. Em Hegel, o método
especulativo torna-se dialético por força da questão por
excelência da Filosofia; por força desta mesma questão, o
método especulativo torna-se, em Heidegger, hermenêu­
tico. Em Hegel, o pensamento onto-teo-lógico e a conse-
qüente subjetividade impõem a dialética na interpretação
do objeto do pensamento. Em Heidegger, a questão do
sentido do ser, levantada sem compromissos com a onto-
teo-logia e o problema da subjetividade, exige a hermenêu­
tica para a realização da tarefa do pensamento. O método
especulativo-dialético somente é possível e necessário
para um pensamento que toma como questão fundamental
a mediação como caminho para a idéia absoluta. O mé­
todo especulativo-hermenêutico (19) é o único possível e
necessário para um pensamento que articula sua nova
tarefa apoiado na estrutura binária de velamento e desve-
lamento: a questão do sentido do ser.
Para Hegel o organon do método, a partir do qual
se articula a questão da Filosofia, é a razão (sobretudo
como lugar da passagem da autoconsciência para a es­
fera do espírito); para Heidegger o organon que susten­
ta o método, a partir do qual se articula a questão da
Filosofia, é a compreensão (sobretudo como movimento

24
antecipador da analítica existencial e fio condutor para
a questão do sentido do ser). Em Hegel, a subjetividade
enquanto finitude é imersa num processo em que finito e
infinito são sobressumidos numa síntese suprema; por
isso a razão é sempre o lugar de passagem de um movi­
mento que a ultrapassa. A razão enquanto especulativa
deverá ser por isso sempre dialética. Em Heidegger, o ser-
aí enquanto finitude está entregue a si mesmo; por isso
o movimento da compreensão é circular (o círculo herme­
nêutico). A compreensão enquanto especulativa será sem­
pre hermenêutica.
Em ambos os métodos, tanto no especulativo-dialé-
tico como no especulativo-hermenêutico, revela-se uma
pretensão de totalidade. Com uma diferença: enquanto
no primeiro esta totalidade é dada como real, no segundo
é apenas um movimento que jamais se plenifica, um mo­
vimento de antecipação de sentido. A razão como Hegel
a compreende possui caráter onto-téo-lógico e seu suporte
é a subjetividade; a compreensão, na concepção de Hei­
degger conduz necessariamente à superação da onto-teo-
logia e à radicalização da subjetividade. Entre o método
especulativo-dialético e o método especulativo-hermenêu­
tico, na medida em que o primeiro dispõe, como organon,
da razão ligada à subjetividade e o segundo se constitui
a partir da compreensão ligada ao ser-aí, há um abismo.
Entretanto, o caráter especulativo e totalizador da concep­
ção da questão propriamente dita da Filosofia dá-lhes uma
proximidade que sempre sugere a possibilidade de uma
comparação, da qual pode resultar a melhor compreensão
da especificidade de ambos, mas por isso mesmo, também
a descoberta da distância que os separa.

25

NOTAS — INTRODUÇÃO

1. Hegel, G .W .F . — Phaenomenologie des Geistes, Félix Meiner,


Hamburg 19256, p. 40.
2. Hegel, G .W .F . — Phaenomenologie, p. 40.
3. Hegel, G .W .F . — Phaenomenologie, p. 41.
4. Heldegger, M. — Sein und Zeit, Max Niemeyer Verlag. Tübingen
1963W, p. 27.
5. Heldegger, M. — Sein und Zeit, p. 303.
6. Heidegger, M. — Der europaeische Nihilismus, Günther Neske,
Pfullingen 1967, p. 109. Este volume se compõe de textos extraí­
dos do II vol. de Nietzsche, obra de dois volumes publicada em
1961.
7. Heidegger, M. — Der europaeische Nihilismus, p. 146.
8. Heidegger, M. — Wegmarken, Vittorio Klostermann, Frankfurt
a .M . 1967, p. 260.
9. Carta de Martin Heidegger dirigida a Hermann Zeltner, profes­
sor de Filosofia da Universidade de Erlangen-Nürnberg. Citação
autorizada pelo Prof. Zeltner.
10. Heidegger, M. — Der europaeische Nihilismus, p. 109.
11. Heidegger, M. — Der europaeische Nihilismus, p. 146.
12. Heidegger, M. — Wegmarken, p. 259-60.
13. Heidegger, M. — Zur Sache des Denkens, Max Niemeyer Verlag,
Tübingen 1969, p. 70.
14. Heldegger, M. — Zur Sache des Denkens, p. 68.
15. Heidegger, M. — Zur Sache des Denkens. p. 68.
16. Heidegger, M. — Der europaeische Nihilismus, p. 226.
17. Heidegger, M. — Zeichen, em: Neue zürcher Zeitung, 2 1 .IX. 1969,
N.° 579, p. 51.
18. Heidegger, M. — Zeichen, ibidem.
19. Apenas urna vez, em toda a sua obra, o Filósofo utiliza a ex­
pressão “ especulativo-hermenêutico” . No opúsculo Fenomeno­
logía e Teologia (V. Klostermann, Frankfurt 1970), ao definir sua
posição diante da linguagem, caracteriza-a como “ especulativo-
hermenéutica” , afirmando que ela amadureceu da “ interrogação
pela questão propriamente dita do pensar filosófico” (p. 39).

26
I
EXPOSIÇÃO E ANALISE
1
AS INTUIÇÕES HEIDEGGERIANAS
E
O MOVIMENTO FENOMENOLÓGICO
1 Ainda que as experiências iniciais tenham deixa­
do traços indeléveis no caminho de Heidegger, o fator de­
terminante de seu pensamento foi, no entanto, o encon­
tro com a fenomenologia. Seus primeiros trabalhos ma­
nifestavam profundos laços com a problemática corrente
da tradição alimentada pelo neo-aristotelismo, neotomis-
mo e neokantismo e as soluções dadas pelo filósofo, dentro
deste horizonte, às questões básicas da filosofia, se con­
duziam pelo esquema onto-teo-lógico (1). Foi a descoberta
da fenomenologia que desencadeou os novos recursos
que o conduziram às regiões distantes de um pensamento
que se afirma em confronto com toda a tradição filosófi­
ca ocidental. É preciso, no entanto, reconhecer o vigor
das intuições de Heidegger quando se verifica quanto o
Filósofo marcou a fenomenologia com sua problemática.
Analisar sua posição dentro do movimento fenomenológi-
co será, portanto, destacá-lo como um pensador que ul­
trapassou a situação concreta da corrente fenomenológi-
ca que o recebera e desenvolveu um método fenomeno-
lógico próprio.
O sopro de renovação da filosofia européia continen­
tal trazido pela obra de um desconhecido livre-docente, as
Investigações Lógicas de Edmund Husserl, publicadas no
início deste século, só tem similar no movimento grandio­
so do idealismo alemão, única corrente filosófica ¡media­
tamente anterior que se aproxima, pela riqueza de suas
conseqüências, do movimento fenomenológico.
A história da fenomenologia começa com os traba­
lhos de Husserl do século passado, que giravam em torno
da matemática e da psicologia. Os estudos realizados em
Leipzig, Berlim, Viena e Halle sofrem a influência de Franz
Brentano e Karl Stumpf. A atividade docente exercida em
Halle e, logo a seguir, em Gottingen não fazia suspeitar
a gestação da obra que subitamente conquistou os inte­
resses acadêmicos, em 1900 e 1901: Investigações Lógicas.

30
O primeiro volume trazia como subtítulo: Prolegómenos à
Lógica Pura. No segundo volume o subtítulo para as Cin­
co primeiras Investigações é: Pesquisas sobre a Fe­
nomenologia e Teoria do Conhecimento. A Sexta Investi­
gação trazia como subtítulo: Elementos de uma Elucida­
ção Fenomenológica do Conhecimento. A introdução ao
segundo volume explica o papel da fenomenologia na bus­
ca de uma lógica pura: “A fenomenologia pura representa
um domínio de pesquisas neutras, no qual as diferentes
ciências tem suas raízes. De um lado, ela é útil à psico­
logia enquanto ciência empírica. Pelo seu método puro e
intuitivo ela analisa e descreve a generalidade de sua es­
sência, — especialmente enquanto fenomenologia do pen­
sar e conhecer — , as vivências da representação, do juízo,
do conhecimento, que a psicologia submete à sua investi­
gação de ciência empírica, concebendo-os empíricamente
como classes de acontecimentos reais em relação com a
realidade natural animal. Por outro lado, a fenomenologia
revela as “fontes” de onde “decorrem” os conceitos fun­
damentais e as leis ideais da lógica pura, até aos quais é
preciso fazê-los remontar se se quiser fornecer-lhes “a
clareza e distinção” necessárias para uma compreensão
crítica da lógica pura. A fundação da lógica pura sobre a
teoria do conhecimento, ou mais precisamente, sobre a
fenomenologia, compreende pesquisas de uma grande di­
ficuldade, entretanto, também de uma importância sem
igual” (2).
Esta descrição do sentido e alcance da fenomenolo­
gia já contém em germe todos os desdobramentos essen­
ciais do pensamento de Husserl. Já trouxe, por isso mes­
mo, a primeira decepção em meio aos encantos suscita­
dos pelo primeiro volume no qual se perseguia uma lógi­
ca pura, contra as pretensões do psicologismo. No segun­
do volume vinha claramente exigida a descrição dos atos
conscientes, o que se revelava como apelo explícito à psi­
cologia. Este contraste com o anti-psicologismo do pri­
meiro volume das Investigações Lógicas seria compreen­
dido a partir da publicação da obra programática de Hus­
serl, em 1913: Idéias para uma Fenomenologia Pura e Filo­
sofia Fenomenológica (3). No entanto, trazendo luzes para
a situação conflitante dos dois volumes das Investigações
Lógicas, as Idéias foram um escândalo ainda maior. Pra-

31
ticamente todos os discípulos que tinha em Gottingen viam
como impossível a conciliação entre as intenções descri­
tivas das Investigações e as intenções transcendentais das
Idéias. A redução transcendental dividira ainda mais os
ânimos.

2 Heidegger confessa, em 1963, sua perplexidade


diante das publicações de Husserl: “A repetida abordagem
das Investigações Lógicas não me satisfez, porque não
conseguia superar uma dificuldade básica. Esta se refe­
ria ao problema de como se deveriam realizar os modos
de proceder do pensamento chamado fenomenológico. O
inquietante desta interrogação brotava da ambigüidade
que, à primeira vista, se apresentava na obra de Husserl.
O primeiro volume, que apareceu em 1900, traz a refuta­
ção do psicologismo na lógica, demonstrando que a dou­
trina do pensamento e conhecimento não se deixa funda­
mentar na psicologia. Opondo-se a isto o segundo volu­
me, aparecido no ano seguinte e três vezes maior, contém
a descrição dos atos conscientes básicos para a edifica­
ção do conhecimento. Impunha-se, portanto, contudo,
uma psicologia. A que outra finalidade se destinaria o § 9
da Quinta Investigação sobre: O significado da delimita­
ção de Brentano dos “fenômenos psíquicos” ? Assim re­
cai, com sua descrição fenomenológica dos fenômenos
conscientes, na posição do psicologismo, que precisamen­
te refutara. Se, entretanto, tão grosseiro erro não podia
ser atribuído à obra de Husserl, que seria então a descri­
ção fenomenológica dos atos conscientes? Onde estaria
o que é próprio da fenomenología se ela não é nem lógi­
ca nem psicologia? Surgia aqui uma disciplina filosófica
de espécie inteiramente nova ou mesmo com posição e
dignidade próprias? (4). E então Heidegger confessa que
“o ano de 1913 trouxe uma resposta” (5) com a publica­
ção das Idéias para uma Fenomenología Pura e Filosofia
Fenomenológica.
“A “fenomenología pura” é a “ciência básica” da fi­
losofia por ela caracterizada. “Pura” significa: “fenome­
nología transcendental”. Enquanto “transcendental”, po­
rém, é tomada como ponto de partida a “subjetividade”
do sujeito que conhece, age e valora. Ambas as expres­
sões “subjetividade” e “transcendental” indicam que a

32
“fenomenología” consciente e decididamente se inserirá
na tradição filosófica moderna. Isto, no entanto, de tal
modo que a “subjetividade” “transcendental” alcançava
uma determinação mais originária e universal, através da
fenomenología. A fenomenología reteve como sua esfe­
ra temática “as vivências da consciência”, mas, agora,
na exploração da estrutura dos atos da vivência, projeta­
da e garantida sistematicamente, unida à exploração dos
objetos vivenciados nos atos, sob o ponto de vista de sua
objetividade. Neste projeto universal de uma Filosofia Fe­
nomenológica podia ser apontado o lugar sistemático para
as Investigações Lógicas que filosoficamente tinham per­
manecido neutras. Apareceram no mesmo ano de 1913,
em segunda edição. A maioria das Investigações havia
sido evidentemente submetida, neste meio tempo, a “pro­
fundas reelaborações”. A Sexta Investigação, “a mais im­
portante no que se refere à fenomenología”, contudo, foi
retida. Também o ensaio Filosofia como Ciência Rigorosa,
publicado no primeiro volume da recém-fundada revista
Lógos (1910/1911), recebeu também somente através das
Idéias para uma Fenomenología Pura, a suficiente funda­
mentação de suas teses programáticas” (6).

3 Se Husserl formou ¡mediatamente escola, susci­


tando novas esperanças pela amplidão de horizontes não
dogmáticos que descerrava com a dimensão descritiva
de sua fenomenología, na medida em que, no entanto, dis­
sipava a ampla neutralidade com a determinação transcen­
dental, ele mesmo dividiu seus seguidores. Mas, as ten­
dências, concepções e especializações que formaram os
diversos grupos se uniam sob a palavra de ordem do mo­
vimento fenomenológico: “às coisas mesmas”. Ela escon­
dia em si o principio axial de toda a fenomenología: cada
espécie de ente tem seu modo próprio de se revelar ao
investigador e, constatações filosóficas, para terem sen­
tido, somente podem ser feitas quando fundadas nesta
auto-revelação. Assim, era preciso aprender os modos di­
ferentes de acesso às coisas mesmas. Leitura e erudição
não bastavam para se obterem resultados. Era necessá­
rio exercitar-se no instrumento que ajudaria no progresso
da filosofia. Trabalhar com grandes fenomenólogos era,

33
portanto, o primeiro atestado de competência para o tra­
balho fenomenológico (7).
Desta maneira múltiplas direções se uniam sob um
mesmo nome. O problema que surgia ¡mediatamente se
referia ao fato de que a fenomenología husserliana, que
se distinguía pelo seu método, servia para caracterizar
correntes que precisamente discordavam do método ori­
ginal de Husserl. Não se contradizia tal filosofia, que se
distinguía pelo seu método, permitindo que com seu nome
fossem marcados outros métodos? Isto parecerá menos
paradoxal quando se observa que a própria fenomenolo­
gía de Husserl apresenta diversas fases em sua evolução.
Oskar Becker distingue na filosofia de Husserl entre obje­
tivismo fenomenal e constituição idealística transcenden­
tal (8). Wilhelm Szilasi constata três fases: fenomenología
descritiva, fenomenología transcendental e fenomenología
transcendental-constitutiva (9). Walter Biemel distingue
quatro etapas do pensamento de Husserl: para a primeira
etapa seria marcante a Filosofia da Aritm ética (1891); para
a segunda etapa seriam decisivas as Investigações Lógicas
(1900); para a terceira etapa se deveria ver um sinal nas
Idéias para uma Fenomenología Pura e uma Filosofia Fe-
nomenológica (1913); a quarta etapa, enfim, seria a da
Crise das Ciências Européias e a Fenomenología Trans­
cendental (1935) (10). Gerhard Funke distingue, finalmen­
te, na fenomenología de Husserl, momentos que são ao
mesmo tempo diferentes sob o ponto de vista filosófico e
com relação ao objeto. Haveria um momento psicológico,
um momento formal-lógico e significativo-lógico, um mo­
mento constitutivo transcendental, um momento de metafí­
sica da consciência, e, afinal, um momento histórico-crí-
tico (11). Cada um destes momentos, além de mudar de
objeto, possui uma perspectiva determinante particular.
Estas etapas e momentos não se dão necessariamente
numa sucessão cronológica.
Assim, a fragmentação das escolas fenomenológicas
seria motivada pela atitude fundamental de Husserl. Esta
sucessão de momentos sugere mudanças profundas para
quem as observa de fora. Nas intenções de Husserl, po­
rém, vinha bem definida desde o começo do século a meta
de suas reflexões. As diversas tendências que se mani­
festaram no movimento fenomenológico devem ser loca-

34
tizadas nas experiências individuais de cada um dos que
aderiram ao movimento e na diversa recepção da fenome­
nología. Esta, porém, enquanto chamado à sinceridade e
radicalidade na interrogação filosófica, veio abrir novos
horizontes para a elaboração das intuições e experiências
daqueles que a ela aderiram. Tendo presente isto se com­
preenderão melhor os motivos da progressiva separação
entre Heidegger e Husserl.
Nas fenomenologías parciais, que passaram a cons­
tituir as diferentes escolas fenomenológicas a partir da
fenomenología de Husserl, podem-se destacar cinco cor­
rentes principais: 1) A fenomenología descritiva de Gottin-
gen, com: Adolf Reinach, Alexandre Koyré, Hedwig Con-
rad-Martius, Theodor Conrad, Johannes Daubert, Jean He-
ring, Herbert Leyendecker, Román ingarden, Kurt Sfave-
nhagen, Ernst W. Hocking, Wilhelm Schapp e Moritz Gei-
ger. 2) A fenomenología transcendental de Freiburg im
Breisgau, com: Edith Stein, Fritz Kaufmann, Oskar Becker,
Marvin Farber, Wilhelm Szilasi, Ludwig Landgrebe, Eugen
Fink e Martin Heidegger. 3) A fenomenología psicológico-
descritiva de Munique com: Alexandre Pfãnder, Aloys Fis-
cher, Gerda Walther, Moritz Geiger (numa fase de sua evo­
lução), August Gallinger, Dietrich von Hildebrand e Herbert
Spiegelberg. 4) A fenomenología dos valores de Colônia
com: Max Scheler, Hendrick Gerardus Stocker, Heinrich
Lützeler, Paul Ludwig Landsberg e Nicolai Hartmann. 5)
A fenomenología hermenêutica de Marburgo (1923-1928)
e Freiburg im Breisgau (a partir de 1928), sob a orientação
de Martin Heidegger, com: Paul Tillich, Rudolf Bultmann,
Hans-Georg Gadamer, Gerhard Krüger, Karl Lõwith, Hel-
muth Kuhn, Franz Joseph Brecht, Karl-Heinz Volkmann-
Schluck e Walter Brocker (12).
“Olhando globalmente estas diversas tendências, per­
cebe-se como é problemático determinar se é possível e
em que medida se deve designar tudo isto fenomenología.
Pois, o realismo ingênuo do grupo de Munique está a lé­
guas de distância do idealismo transcendental do grupo
de Freiburg, e separa-se infinitamente do objetivismo dos
valores do grupo de Colônia o grupo de Marburgo, que se
caracteriza pela hermenêutica do ser, absolutamente de­
sinteressada dos entes enquanto tais” (13).

35
4 Em meio a estas tendências tão diversas, a inten­
ção profunda de Husserl de elaborar “uma filosofia como
ciência rigorosa” era esquecida, e Husserl rodeado de
discípulos já era um solitário diante de sua “tarefa infini­
ta”. Todo o seu esforço para construir uma fenomenolo­
gía transcendental, para chegar à filosofia como ciência
rigorosa que substituiría as múltiplas tentativas positivis­
tas, psicologistas, historicistas e materialistas, desembo­
cando numa luta de visões de mundo, era visto como uma
recaída no idealismo kantiano. Seus ex-colegas junto a
Brentano, Meinong e Kraus, os círculos de Gottingen e Mu­
nique, Max Scheler e Nicolai Hartmann viam nas preferên­
cias pelas análises da subjetividade um grande risco e o
conhecimento que tinham das ligações de Husserl com
Natorp parecia comprovar as tendências Kantianas do fun­
dador da fenomenología.
Desta maneira Husserl terá visto sua mudança para
Freiburg, em 1916, como uma verdadeira libertação e como
a abertura de um novo horizonte de esperanças. Ele via
a nova cátedra como o lugar ideal para realizar o progra­
ma traçado nas Idéias. “Também minha atividade acadê­
mica em Freiburg impulsionava a orientação de meus in­
teresses para a fundamental universalidade e o sistema”,
declara ele em 1921 (14).

4. 1 Na universidade de Freiburg Heidegger entra


em contato com Husserl. Ele está perplexo e confuso em
face da multidão de problemas que lhe haviam suscitado
suas intuições e seu contato com a obra de Husserl. “Na­
quele tempo era-se, muitas vezes, surpreendido com a
constatação “evidente” de que, com “a fenomenología”,
surgira um novo movimento filosófico em meio à filosofia
européia. Quem teria chegado a negar a veracidade de
tal afirmação? Mas um tal tipo de cálculo histórico não
acertava o que acontecera através da “fenomenología”,
isto é, já através das Investigações Lógicas. Isto nunca
foi dito e ainda hoje mal se deixa dizer com exatidão. Os
esclarecimentos programáticos do próprio Husserl e suas
explicações metodológicas antes reforçavam o malenten­
dido de que através da “fenomenologia” era exigido um
novo começo da filosofia, que negaria todo o pensamento
passado. . . . O encanto que emanava das Investigações

36
Lógicas provocou nova inquietação que ignorava sua ra­
zão de ser, ainda que permitisse pressentir que ela brota­
va da impotência para chegar ao exercício do modo de
pensar chamado “fenomenología”, apenas pela literatura
filosófica. Só lentamente a perplexidade se esvaía e custo­
samente se resolvia a confusão, desde o momento em que
eu pessoalmente tive permissão de me encontrar com Hus­
serl, em seu lugar de trabalho” (15).

5 Quem eram estes dois homens que assim se en­


contraram? O que os aproximara no trabalho e o que mo­
tivou a ruptura de Heidegger com Husserl? A resposta
pode ser dupla. De um lado, deve-se olhar para a biogra­
fia de ambos e de outro, para as experiências e intuições
pessoais que já então marcavam seu caminho na refle­
xão filosófica.

5. 1 De Husserl nos testemunham Wilhelm Szilasi


e Karl Lowith. O primeiro diz: “Suas preleções, das quais
eu ouvi muitas, não tinham particular sucesso. Falava,
por assim dizer, para si, sem pathos, sem ambição literá­
ria, de modo marcante, como se o pensamento falasse por
si mesmo, independente de quaisquer considerações, in­
dependente de atualidades, mantendo em mira apenas a
“tarefa infinita” (sua palavra preferida). Ao falar ele fi­
xava um ponto longínquo “infinito”, cuja visibilidade po­
dia sugerir. Não se preocupava, entretanto, em atingir
com sua explicação a todos. A estranha concentração de
sua dedicação desprendida dava-lhe uma dignidade e uma
autoridade, que ainda transparecem de seu espólio lite­
rário.” .. . “Sempre permaneceu fiel a si mesmo. Nada
de exterior podia desarvorá-lo. Sua alegria tranqüila e sua
bondade despretenciosa envolviam sua figura para todos
os que tinham ocasião de dele se aproximar” (16). E Lõ-
with confessa: “Recebí a notícia da morte de Husserl em
Freiburg. Nesta cidade amiga, com a catedral vermelha,
cidade que se ergue nas encostas da Floresta Negra não
longe do Reno, iniciei, retornando da guerra, nos círculos
de uma juventude aberta, ainda à procura de seu próprio
caminho, meu estudo junto a Husserl e Heidegger. Se me
pergunto hoje, após vinte anos, pelo que aprendí com
Husserl, talvez nem a ele a resposta satisfizesse. Sua dou-

37
trina da “redução” à consciência pura, muito em breve
perdeu em interesse, enquanto as interrogações entusias-
madoras a que arrastava o jovem Heidegger cada vez nos
fascinavam mais. Ficamos, entretanto, devendo a maior
gratidão ao mais velho. Tinha sido ele que, através da
arte da análise metódica, da clareza na exposição e do
rigor humano da formação científica nos ensinava a to­
marmos pé numa época de dissolução interna e externa
de tudo o que era estável, obrigando-nos a evitar toda a
linguagem grandiloquente, a provar cada conceito na intui­
ção dos fenômenos e a lhe responder suas perguntas em
troco miúdo em lugar de grandes notas. Era um “cons­
ciencioso espírito”, como Nietzsche descreve tal homem
no Zaratustra. Inesquecível é para mim como aquele gran­
de pesquisador das menores coisas lecionava, naqueles
dias em que se temia uma ocupação de Freiburg pelas
tropas francesas, com grande tranqüilidade e segurança,
como se a seriedade da pesquisa científica por nada no
mundo pudesse ser perturbada” (17).
De Heidegger testemunha Gadamer: “O primeiro en­
contro com seu olhar mostrava quem era e quem é: um
visionário. Um pensador que vê. Parece-me ser esta a qua­
lidade que sustenta a originalidade de Heidegger em meio
a todos os professores de filosofia de nossa época. Isto
se revela no fato de que as coisas que expõe numa lin­
guagem muito própria, que não evita o barbarismo e vai
contra os padrões em voga, sempre poderão ser vistas
como que intuitivamente. Tal não ocorre apenas em evo­
cações momentâneas suscitadas pela palavra acertada e
que provocam lampejos intuitivos: isto se dá de tal modo
que toda a análise conceituai que é exposta não avança
de um pensamento a outro num processo discursivo li­
near, mas, partindo dos diversos ângulos, sempre desem­
boca no mesmo, dando com isto à descrição conceituai
por assim dizer a plasticidade da terceira dimensão do
real palpável. Quando Heidegger expunha, em sua cáte­
dra, seus pensamentos preparados minuciosamente e vi­
vamente apresentados até à minúcia no instante da expo­
sição, ele via o que pensava e fazia com que os ouvintes
o vissem. Husserl tinha razão, quando nos primeiros anos
após a primeira guerra mundial, perguntado sobre a feno­
menología, respondia: “A fenomenología — somos eu e

38
Heidegger” (18). E Gadamer conclui apontando para urna
possível ruptura entre Husseri e Heidegger motivada pelo
diverso horizonte humano de ambos. ‘‘Husseri terá logo
pressentido nos anos vinte que seu discípulo Heidegger
não era colaborador e continuador do paciente trabalho
intelectual de sua vida. O súbito impacto causado por
este, seu incomparável fascínio, seu temperamento vio­
lento deviam tornar-se suspeitos para o paciente Husseri
do mesmo modo como, há muito, se Ihe tornara suspeito
o fogo vulcânico de Max Scheler. Realmente o discípulo
de urna tal arte do pensamento era bem diferente de seu
mestre. Era oprimido pelas grandes interrogações e pelas
coisas radicais, sacudido até as últimas fibras de sua exis­
tência, inflamado pelo problema de Deus e da morte, do
ser e do nada, sentindo-se chamado para a tarefa do pen­
samento imposta à vida. Os problemas cuja urgência pe­
sava sobre uma geração revolvida, sacudida em sua edu­
cação tradicional e no orgulho de sua cultura, mutilada
pelo horror das batalhas da primeira guerra mundial, to­
dos estes eram também os seus problemas” (19).

5. 2 Quando um tal homem se encontrou com Hus-


serl, ela já trazia poderosas intuições, toda uma experiên­
cia no exercício da docência e dos trabalhos elaborados.
Acompanhava-o a intuição da problemática ontológica
suscitada pela leitura da obra de Brentano sobre Aristó­
teles: Sobre o Significado M últiplo do Ente Segundo Aris­
tóteles. As soluções que Heidegger dera até aí às suas
primeiras interrogações se inseriam simplesmente no âm­
bito das respostas tradicionais. O problema último do sen­
tido e do ser recebera uma solução onto-teo-lógica em sua
tese de livre docência. Ele confessa que, desde o início
quando aprendia o “ver” fenomenológico, não se sujeita­
va a todas as exigências metodológicas do mestre: "O en­
sino de Husseri consistia na forma de um gradual exer­
cício do “ver” fenomenológico, que ao mesmo tempo exi­
gia o abandono da utilização não crítica de conhecimen­
tos filosóficos e também a renúncia a trazer para o diálo­
go a autoridade dos grandes pensadores. Eu, entretanto,
podia tanto menos separar-me de Aristóteles e dos outros
pensadores gregos quanto mais claramente a intimidade
com o ver fenomenológico fecundava a interpretação dos

39
escritos de Aristóteles. Não podia prever, em verdade, de
imediato, as conseqüências práticas que traria o recurso
renovado a Aristóteles” (20). Heidegger insistia sempre
no retorno às Investigações Lógicas. “Quando em 1919,
eu mesmo ensinando-aprendendo na proximidade de Hus-
serl, exercitava o ver fenomenológico e ao mesmo tempo
experimentava no seminário uma nova compreensão de
Aristóteles, mais uma vez meu interesse se voltou para a
Sexta Investigação. A distinção nela elaborada entre in­
tuição sensível e intuição categorial revelava-me seu al­
cance para a determinação do “múltiplo significado do
ente” (21). “Assim, pois, Husserl, magnânimo sem, no en­
tanto, no fundo aceitar, viu como eu, paralelamente às mi­
nhas aulas e exercícios de seminário, trabalhava semanal­
mente nas Investigações Lógicas, com alunos mais adian­
tados, em grupos de trabalho particulares. A preparação
deste trabalho se tornou para mim muito fecunda. Con­
duzido mais por um pressentimento que guiado por uma
compreensão fundamentada, experimentei nela o seguin­
te: O que se realiza para a fenomenología dos atos cons­
cientes, como o auto-mostrar-se dos fenômenos, é mais
originariamente pensado por Aristóteles e por todo o pen­
samento e existência dos gregos como alétheia, como des-
velamento do que se presenta, seu desocultamento, seu
mostrar-se. O que as investigações fenomenológicas re-
descobriram como a atitude básica do pensamento se
apresenta como o traço nodal do pensamento grego e tal­
vez mesmo da filosofia enquanto tal. Quanto mais isto se
clarificava tanto mais insistentemente voltava a pergunta:
A partir de onde e como se determina o que, segundo o
princípio da fenomenología, deve ser experimentado como
“a coisa mesma”? É ela a consciência e sua objetividade,
ou é o ser do ente em seu desvelamento e velamento?
Assim fui levado ao caminho da pergunta pelo ser, ilumi­
nado pela atitude fenomenológica, outra vez e de maneira
diferente que antes inquietado pelas questões que me en­
volveram desde a leitura da dissertação de Brentano” (22).
Estas confissões bem revelam o clima em que Hei­
degger participou da experiência de Husserl e em que
assimilou e praticou o ver fenomenológico. A questão
ontológica estava muito mais presente que no interesse
sistemático de Husserl; além disso, o exercício do ver

40
fenomenológico abrira-lhe novas perspectivas para o
questionamento do ser- Este que assim tomou corpo tor­
nava-se simultaneamente uma problematização de toda a
sua experiência anterior, na medida em que as soluções
dadas a partir da tradição onto-teo-lógica não se mostra­
vam genuinamente filosóficas, mas uma presença da teo­
logia na filosofia. O fato de esta ser a resposta que toda
tradição dera, levou Heidegger a confrontar-se com toda
a metafísica ocidental. O problema do ser que lhe vinha
de Aristóteles e o método fenomenológico de o abordar
que herdara de Husserl instauraram um outro horizonte
de interrogação no espírito do Filósofo. À medida em
que se mostravam os frutos da análise dos pensadores
gregos, Heidegger descobria uma série de elementos no­
vos. “Pela experiência imediata do método fenomenoló­
gico nas conversas com Husserl, preparava-se o conceito
provisório de fenomenología que a Introdução a ‘‘Ser e
Tempo” (§ 7) exibe. Também a interpretação revolucioná­
ria das palavras chaves do pensamento grego: Lógos (tor­
nar manifesto) e phainestai (mostrar-se) muito contribuiu
para a determinação do conceito de fenomenología. Um
novo estudo de Aristóteles (em particular do Livro Nono
da Metafísica e Livro Sexto da Ética a Nicômaco) levou a
uma nova compreensão do aletheúein como desvelar e à
caracterização da verdade como desvelamento, ao qual
pertence todo o mostrar-se do ente. “Através da com­
preensão de alétheia como desvelamento reconhecí o tra­
ço fundamental da ousia, do ser do ente: a presença”.
( . . . ) “A inquietante pergunta, sempre viva, pelo ser en­
quanto presença (presente) se transformou na pergunta
pelo ser sob o ponto de vista do seu caráter temporal”.
( . . . . ) “Com a provisória elucidação da alétheia e ousia
resultaram claros o sentido e alcance do princípio da feno­
menología “às coisas mesmas”. No trabalho de penetra­
ção não mais apenas literário, mas no exercício da feno­
menología permanecia contudo em meu horizonte a per­
gunta pelo ser suscitada por Brentano. Desta maneira
impôs-se a seguinte questão: deve-se determinar realmen­
te a consciência intencional ou mesmo o eu transcenden­
tal como “a coisa mesma”. Se a fenomenología define o
método característico da filosofia enquanto o mostrar “das
coisas mesmas” e se a questão-guia da filosofia perma­

41
nece, desde a antiguidade e pelas mais diversas formas,
a pergunta pelo ser, então o ser deverá permanecer a pri­
meira e última “coisa mesma” (23).
Compreendido o ser como velamento e desvelamen-
to, decidido que o ser é “a coisa mesma”, estabelecido
que o ser desde a antiguidade se dá como tempo, deter­
minado que o método da filosofia é o mostrar fenomenoló-
gico, está resumida toda a problemática heideggeriana e
o que a separa das experiências e das intenções de Hus-
serl. Tarefa fundamental da filosofia será, portanto, para
Heidegger, captar o ser como velamento e desvelamento
através de um método e no horizonte adequados. O mé­
todo será a fenomenología esboçada em Ser e Tempo.
O horizonte será o tempo que desde a antiguidade se liga
ao ser. Para analisar o ser vinculado ao tempo é preciso
partir daquele ente que esconde em suas estruturas o tem­
po enquanto seu sentido: o ser-aí. É preciso, portanto,
partir da facticidade do ser-aí, em cujas estruturas radica
a temporalidade, para determinar o ser como tempo. Tal
é possível sem que se corra o risco de errar a analítica
porque o único ente cujo ser consiste em compreender o
ser, é o homem. Desta maneira, uma hermenêutica das
estruturas do ser-aí, realizada pelo método fenomenológi-
co hermenêutico, conduzirá ao horizonte em que se pode­
rá questionar o sentido do ser que é o tempo. Porém,
questionar o ser no tempo e a partir da temporalidade do
ser-aí é movimentar-se na finitude: é compreender a ques­
tão do ser fora do contexto da tradição metafísica. Assim
se estabelece uma interrogação ontológica que não visa
mais responder às questões básicas, apelando para uma
teologia natural cujo objeto, determinado a partir de uma
imagem temporal, não poderá explicar o tempo. Heideg­
ger rompe, portanto, com suas primeiras respostas onto-
teo-lógicas e se debruça, mediante o método fenomenoló-
gico, sobre a finitude do ser-aí e a finitude do conceito
de ser. Esta interrogação se realizará através do círculo
hermenêutico que repousa na constituição circular do ser-
aí; este se movimenta no ser, enquanto o ser nele se ma­
nifesta e simultaneamente o sustenta. No pensamento de
Heidegger instaura-se desta maneira uma ontologia sob o
signo da finitude.

42
Tal desenvolvimento necessariamente o situaria num
confronto com o pensamento de Husserl, na medida em
que este visava a redução transcendental, que se conduz
pela imagem do pensamento onto-teo-lógico da tradição
metafísica. “Entrementes, a “fenomenologia" no sentido
husserliano foi ampliada para uma determinada posição
filosófica prefigurada por Descartes, Kant e Fichte. Para
ela a historicidade do pensamento permanece absoluta­
mente estranha. Contra esta posição filosófica se levan­
tou a pergunta pelo ser desenvolvida em Ser e Tempo, e
isto, como hoje ainda o creio, com base numa fidelidade
mais concreta ao princípio da fenomenologia” (24).

6 Para melhor penetrarmos no elemento profundo


que separou os caminhos da interrogação de Heidegger
e Husserl, vamos analisar mais em detalhe o problema
central do mundo da vida. Neste conceito se fixa, em últi­
ma análise, uma preocupação comum entre os dois filó­
sofos. Para Heidegger a facticidade da vida, o ser-no-
mundo, o mundo da vida será o ponto de partida necessá­
rio para sua interrogação, e, ao mesmo tempo, o elemen­
to fundamental que sustenta sua crítica à fenomenologia
transcendental de Husserl. Para este o problema do mun­
do da vida será o fator decisivo que o leva a uma revisão
da radicalidade de sua redução e, portanto, dos funda­
mentos de sua fenomenologia transcendental. A questão
que provocou discussão e está ainda insolvida se resume
na seguinte pergunta: Quem colocou o problema do mun­
do da vida em primeiro lugar? Heidegger ou Husserl?
Este usara o termo já por volta de 1920 (25) mas somente
desenvolveu a problemática que envolve a partir de 1934
(26). Ser e Tempo de Heidegger tem na idéia de mundo
da vida (ser-no-mundo) um de seus elementos axiais. A
obra é inconcebível sem a idéia fundamental de ser-no-
mundo. E é precisamente nesta idéia que se funda toda
a crítica latente à insuficiência ontológica da redução
transcendental de Husserl, que perpassa Ser e Tempo.
Por outro lado, a obra de Husserl, A Crise das Ciências
Européias e a Fenomenologia Transcendental, obra que
o fundador da fenomenologia escreveu a partir de 1934,
preocupa-se intensamente com o problema do mundo da
vida; a análise representa sob muitos aspectos uma tenta-

43
ti va de resposta às alusões e críticas latentes que perpas­
sam Ser e Tempo.
Para compreendermos como se instalou a divergên­
cia entre Husserl e Heidegger a partir da idéia de mundo
da vida, vamos retroceder em nossa análise até o momen­
to em que se prepara esta questão nos gregos. Mostrar-
se-á como, desta maneira, a idéia do mundo da vida é o
elemento axial da obra de Heidegger e a base para a crí­
tica a seu mestre e, simultaneamente, o elemento que
ameaça toda a fenomenología transcendental porque pro-
blematiza a radicalidade da redução na filosofia de Hus­
serl (27).
No livro De Anima, Aristóteles faz a seguinte consta­
tação: “Já que nós percebemos o fato de vermos e ouvir­
mos, é necessário que se perceba o fato de ver ou com a
vista ou com outro sentido: mas então o mesmo sentido
dirigirá sua atenção para o ver e para a cor que tem pela
frente. E assim dois sentidos dirigiríam sua atenção so­
bre a mesma coisa ou um sentido prestaria atenção a si
mesmo” (28). O problema da consciência da percepção
a que Aristóteles se refere aqui é retomado, de passagem,
no livro doze da Metafísica, em que ele discute a possi­
bilidade de o pensamento se ter a si mesmo como objeto;
isto parece impossível já que o ser do que pensa e do
que é pensado é diferente: “Entretanto, a ciência, a per­
cepção sensível, a opinião e a inteligência tem mani­
festamente um objeto sempre diferente delas mesmas e
somente se ocupam de si acessoriamente” (29). Portan­
to, a reflexão sempre é passageira, jamais é total e a cons­
ciência de si (autoconsciência) nunca é plena; pois mer­
gulha de maneira permanente numa camada mais profun­
da onde a consciência se exerce diretamente.
Os escolásticos designam esta mesma situação com
as expressões: actus exercitus e actus signatus. Estes
dois conceitos indicam o conhecimento reflexivo (actus
signatus) e o conhecimento direto (actus exercitus). É
possível perguntar, e perguntar porque se pergunta. O
ato de ouvir um som é a consciência direta, e a consciên­
cia reflexa está no fato de dar-se conta de que se está
ouvindo um som. Portanto, é possível que nem todos os
actus exerciti sejam atingidos plenamente pelos actus
signati. Diferentes áreas dos atos diretos podem ficar ocul-

44
tas ou se tornar inacessíveis aos atos reflexos. Nem toda
a experiência pode ser recuperada pela reflexão por cau­
sa da própria condição finita do homem.
Franz Brentano, baseando-se nas passagens supra­
citadas de Aristóteles, distingue entre “percepção inte­
rior” e “observação interior”. A percepção interior cor­
responde aos actus exerciti e a observação interior aos
actus signati. Husserl se liga a esta distinção de Brenta­
no, desenvolvendo a doutrina deste de que a consciência
interior já sempre é dada na memória pela existência de
uma estrutura “horizontal” da consciência. Husserl insis­
te no horizonte retencional. “O conceito de intencionali-
dade da consciência, o conceito de constituição da cor­
rente da consciência, mesmo o conceito do mundo da vida,
são elementos que servem para desenvolver esta estrutu­
ra de horizonte da consciência” (30).
Entretanto, precisamente a distinção entre os actus
exerciti e os actus signati levanta um problema que se
resumiría para Husserl no problema do mundo da vida.
Se nem todo o actus exercitus pode transformar-se em
actus signatus ou ao menos só transformar-se parcialmen­
te; se o esforço de reflexão não chega a esgotar constan­
temente o conhecimento direto e as vivências concretas;
se o esforço de reflexão chega mesmo a ocultar dimen­
sões dos actus exerciti; então, impõe-se a seguinte ques­
tão: pode a redução transcendental ao ego atingir a exi­
gida radicalidade? É possível que a reflexão e redução
transcendental recuperem radicalmente o mundo da vida
na consciência transcendental?

6. 1 Gadamer assim, comenta, este problema cru­


cial que se punha para o velho Husserl: “A questão deci­
siva na realização do programa fenomenológico, traçado
nas Idéias em 1913, seria a seguinte: seria a planejada re­
dução deveras radical? Devia-se perguntar se na constru­
ção da produção de sentido na consciência, a partir do
eu originário transcendental, realmente tudo o que tinha
valor alcançava sua legitimação transcendental ou se
neste processo de legitimação se escondiam ainda cren­
ças encobertas sem que pudessem ser observadas, tor­
nando, assim, suspeitas tanto a justificação como a evi­
dência de tal processo. Transcorreu pouco tempo para

45
que Husserl reconhecesse que a suspensão geral da afir­
mação ontológica da realidade que ele exigira para se
opor à consciência posicionai da ciência alcançara algo
definitivo e constante no ego transcendental. Este último
era, no entanto, algo vazio com o qual não se sabia bem
o que fazer. Husserl reconheceu de maneira particular
que ao menos dois pressupostos desapercebidos tinham
ficado retidos neste ponto de partida radical: De um lado
fora retido o pressuposto de que o eu transcendental en­
cerrava em si o “todos nós” da comunidade humana e de
que a auto-interpretação transcendental da fenomenolo­
gía de modo algum levantara expressamente o problema
de como era propriamente constituído pelo eu transcen­
dental, além do mundo pessoal do eu, o ser do “tu” e do
“nós” (o problema da intersubjetividade). De outro lado,
Husserl reconheceu que a suspensão universal da tese da
realidade não bastava, na medida em que a suspensão
da afirmação sempre atinge apenas o objeto expresso do
que a intencionalidade tem em vista e não o que está im­
plícito no que a intencionalidade visa e as implicações
anônimas que são constantemente dadas em todas aque­
las intenções. Estas implicações tornam-se, entretanto,
comprometedoras para a radicalidade da redução trans­
cendental, na medida em que a crítica ao objetivismo da
ciência pressupõe o valor do mundo da vida sem legiti­
mação e prova constitutiva (IV, 136). Assim, Husserl che­
gou a elaborar uma teoria dos horizontes, os quais no fim
se cerram no horizonte universal do mundo, que compre­
ende toda a nossa vida intencional” (31). Tendo em vista
tudo isto, Husserl procura mostrar na obra, A Crise das
Ciências Européias, que todo o mundo da vida, da crença
do mundo que sustenta o chão da experiência natural da
vida do pensamento humano deve ser suspenso e encon­
trar sua constituição no eu transcendental. Isto era abso­
lutamente necessário para se salvar a radicalidade da re­
dução transcendental. Por isso Husserl procura assumir
todos os actus exerciti do mundo da vida na consciência
transcendental.
Aqui pode ser surpreendido o núcleo em que reside
um elemento decisivo de ruptura entre Husserl e Heideg-
ger que se junta a todos aqueles que já analisamos. Ser
e Tempo se ocupa diretamente da analítica do mundo da

46
vida na medida em que o homem é um ser-no-mundo
como facticidade. A primeira vista a analítica transcen­
dental que Heidegger realiza da quotidianeidade poderia
dar realmente a impressão de que a obra do discípulo de
Husserl se inseria na análise e nas intenções da fenome­
nología husserliana. Que isto não passasse de aparência
devia-se às experiências e intuições profundas que o pró­
prio Heidegger já trazia consigo de suas análises da his­
tória da filosofia, enriquecidas por seu método fenomeno-
lógico. Sua preocupação essencialmente ontológica vi­
sava a analítica do ser-aí como o ponto de partida privi­
legiado para recolocar a questão do ser contra toda a
tradição transcendentalista e subjetivista da metafísica
ocidental. Por isso o filósofo rompia, em Ser e Tempo, o
círculo de ferro da reflexão e procurava mostrar a impor­
tância de caráter decisivo da análise do ser-no-mundo no
qual mergulha toda a reflexão como em seu chão nunca
inteiramente retomado ou recuperável pela consciência
reflexa. O mundo da vida não se apresenta, portanto,
para Heidegger como um desafio para a radicalidade re­
flexiva, mas antes a reflexão recebe dele seu objeto e
movimento. O mundo da facticidade do ser-aí era para
Heidegger a área em que se impunha o problema do ser
caso se quisesse fugir do objetivismo ingênuo.
Gadamer fala desta interpretação heideggeriana como
de um novo horizonte que se descerrava em meio ao ra­
cionalismo da reflexão transcendental: “A possibilidade
de anular (fazer retroceder) esta passagem da intenção
imediata e direta para a intenção reflexiva, parecia, na­
quela época, um caminho que se abria para a liberdade:
Era a promessa da libertação do inevitável círculo da re­
flexão, a reconquista do poder evocador do pensamento
conceituai e da linguagem filosófica, a qual era capaz de
garantir à linguagem do pensamento uma posição digna
ao lado da linguagem da poesia” (32).
Heidegger descobriu nos actus exerciti uma camada
mais profunda da experiência humana do mundo, situada
além da atitude objetivante da consciência, que se deve­
ria constituir em campo específico da filosofia. ‘‘Que com
isto, entretanto, se impunha uma tarefa ontológica de pen­
sar o “ser” que não era o ser “objeto”, isto a consciência
filosófica em geral notou através da crítica de Heidegger

47
ao conceito de pura subsistência (Vorhandenheit) em
Ser e Tempo’’ (33).

6 .2 É em Ser e Tempo, onde se movimenta ainda


numa analítica transcendental, que Heidegger esboça uma
fenomenologia, que procura pensar esta camada de reali­
dade do ser-no-mundo, do mundo da vida, das vivências
cotidianas, que se ocultam nos actus exerciti. Heidegger
não sonha em reduzir esta realidade a um horizonte trans­
cendental do puro eu, conforme o modelo husserliano.
Pelo contrário, para Heidegger o papel da fenomenologia
consiste em se inserir nesta realidade que escapa à total
autotransparência e nela manifestar aquilo que ali se oculta
à reflexão, assim como a partir de si se manifesta, isto é,
ocultando-se para a radicalidade reflexiva. Heidegger que­
ria atingir desta maneira o ser do ente, muito além das dis­
simulações da vida em seu acontecer concreto, assumindo
o ser como velamento e desvelamento reciprocamente im­
bricados. Para Heidegger a fenomenologia de modo algum
pode corresponder às exigências da radicalidade husser-
liana de autofundar a própria facticidade na total transpa­
rência. O fato de o ser-aí ser facticidade faz com que ele
seja irredutível a urna total transparência reflexiva. Sua fac­
ticidade é existência. “A “essência” do ser-aí é sua exis­
tência” (34), é uma afirmação que Heidegger insere no
inicio de Ser e Tempo e que aponta para a irredutibilidade
do ser-aí, porque este é existência e como tal deveria
ser posto entre parênteses para se proceder à sua redução
eidética. Não sendo porém ele essência, a redução é im­
possível; e urna vez posto entre parênteses não mais se
recuperaría para a reflexão, pois sem existência o ser-aí
não é mais.
A análise do ser-aí enquanto ser-no-mundo deveria
mostrar como o ser-aí jamais se esgota, em sua determi­
nação ontológica, na pura objetivação. O ser-aí já vem
sempre envolto na autenticidade e inautenticidade, na ver­
dade e na não-verdade, no velamento que acompanha todo
o desvelamento. Desta maneira a fenomenologia não será
mais o instrumento de redução de tudo à subjetividade,
nem um caminho para transformar tudo em “objeto”. A
fenomenologia heideggeriana vigiará o âmbito do vela­
mento e desvelamento em que residem todas as essências.

48
Este âmbito é o lugar em que se dá a abertura do ser no
ser-aí. O Filósofo procura precaver-se principalmente
contra a tentação da constituição do eu transcendental
porque, além de julgar insustentável o acesso a este eu
pela via da redução ou por outro caminho, ele entrevê no
recurso ao eu transcendental uma repetição do modelo da
metafísica ocidental: a nóesis noéseos, o pensamento de
pensamento, o Deus na sua absoluta autopossessão, mo­
delo inacessível da interrogação filosófica. A fenomenolo­
gia transcendental, na medida em que era conduzida pelo
modelo de presença constante, visava precisamente eli­
minar toda dimensão táctica, assumindo todo o mundo da
vida no eu transcendental. Além de Heidegger não admi­
tir a possibilidade da redução ele criticava nela a ausência
de uma preocupação ontológica tanto em torno do ser
posto entre parênteses na redução, como do ser que cons­
titui o ser-aí. A sua fenomenologia devia velar a manifes­
tação do ser no âmbito da diferença ontológica, na ambi-
güidade de velamento e desvelamento, em que homem e
ser se comunicam.

7 A fenomenologia heideggeriana se tornaria urna


meditação da finitude. A idéia de verdade e não-verdade,
de velamento e desvelamento aponta para a incompletude
de toda a compreensão do ser e da verdade na medida em
que se dão na facticidade do ser-aí. Mas esta finitude da
compreensão não é simplesmente uma limitação nas pos­
sibilidades de objetivação. Heidegger se move num ter­
reno anterior à relação sujeito-objeto; aí nem é possível
a idéia de frustração diante do todo inobjetivável. Ele pro­
cura pensar o ser e a verdade da facticidade do ser-aí como
distintivos desta facticidade e marcas da finitude. Por isso
ele renuncia às possibilidades da dialética e da solução
teológica, porque não contribuem para a compreensão da
finitude. “O entrelaçamento de ocultamento e desoculta-
mento, presença e ausência, que Heidegger procura pen­
sar, não é, neste sentido, “dialético” e não é pensado como
uma experiência limite de uma “presença originária” e de
uma verdade “absoluta” (35).
A finitude da compreensão do ser em que se movi­
menta o ser-aí se revela precisamente no seu modo de
acesso ao ser e no modo de acesso do ser a ele. Na com­

49
preensão do ser prevalece o velamento; o homem somente
compreende o ser ligado ao velamento imposto péla fini-
tude do próprio homem. A compreensão do ser é o sinal
da finitude. A reflexão transcendental é apenas um alibi
da finitude e uma tentação de fugir ao ámbito ambivalente
do velamento e desvelamento em que mergulha a factici-
dade do ser-aí. O horizonte transcendental revela urna
indigência do ser-aí e a sua condenação à finitude. “Para
que se tome a sério a finitude como o chão de toda a ex­
periência do ser parece-me essencial o fato de ela se negar
toda a complementação dialética. Sem dúvida, é “eviden­
te” o fato de que a finitude é uma determinação privativa
do pensamento e que enquanto tal pressupõe uma infini-
tude, talvez também o seja o fato de que a “imanência fe-
nomenológica” pressupõe seu oposto, a transcendência, ou
a história (de outra maneira) a natureza. Quem negará isto?
Acho, porém, que de Kant aprendemos, de uma vez para
sempre, que tais caminhos “evidentes” do pensamento
não são capazes de mediar o conhecimento possível a
nós entes finitos. A dependência da experiência possível,
a legitimação através desta experiência, permanece o alfa
e omega de todo o conhecimento que obriga” (36).
É preciso ter claramente presente a opção de Hei-
degger por uma teoria do ser que se desenvolve, me­
diante o método fenomenológico, na finitude da compre­
ensão, no “a caminho” de um questionamento sempre
ligado ao tempo. Heidegger permanece na diferença
imánente do ser como velamento e desvelamento e não é
intenção sua resolver o problema metafísico pelo seu mo­
vimento na finitude. Nele está, sobretudo, a busca de uma
fidelidade radical ao ser na sua ambiguidade, no seu vín­
culo com o homem. Não se trata de fechar os horizontes
possíveis da transcendência; positivamente está em ques­
tão um debruçar-se sobre os fundamentos em que mergu­
lha toda a consciência transcendental, o escavá-los mos­
trando a positividade da finitude. Disso só podia resultar
um choque frontal com as intenções de Husserl.

8 Apesar da amizade que os ligava, falam com sufici­


ente clareza as críticas à posição de Husserl, contidas numa
carta de Heidegger ao Mestre, opinando sobre o artigo
“ Fenomenologia” para a Enciclopédia Britânica. Eis como,

50
já em 1922, Heidegger via o problema da fenomenología
transcendental: “Concordo que o ente no sentido do que
o senhor designa “mundo” não pode ser explicado, em sua
constituição transcendental, pelo retorno a um ente da mes­
ma espécie. Assim, entretanto, não se diz que o que cons­
titui o lugar do transcendental não seja de modo algum
um ente; o problema que se anuncia é o seguinte: qual é
o modo de ser do ente, no qual se constitui “mundo” ? Este
é o problema central de Ser e Tempo, isto é, uma ontologia
fundamental do ser-aí. Trata-se de provar que o modo de
ser do ser-aí humano é totalmente diferente do modo de
ser dos outros entes e que, precisamente, enquanto é o
que é, esconde em si a possibilidade da constituição trans­
cendental. Esta é uma possibilidade central da existência
do fáctico em si mesmo. Esta existência, o homem con­
creto em si mesmo, jamais é um “fato mundano real”,
porque o homem jamais é puramente subsistente, mas,
existe. E o “admirável” consiste no fato de que a consti­
tuição existencial do ser-aí possibilita a constituição trans­
cendental de tudo o que é positivo. ( . . . ) Aquilo que cons­
titui é não um nada, portanto, algo e um ente, ainda que
no sentido do positivo. A pergunta pelo modo de ser do
próprio constituinte não pode ser evitada. O problema do
ser tem, portanto, referência universal ao constituinte e
constituído. Que significa ego absoluto à diferença do pu­
ramente anímico? Qual é o modo de ser deste ego abso­
luto — em que sentido é o próprio eu fáctico; em que sen­
tido não o é? Qual é o caráter da posição em que o ego
absoluto é posto? Em que medida não há aqui uma positivi-
dade?” (37). Estas perguntas de Heidegger mostram, com
suficiente clareza, como o problema do mundo da vida es­
tava na raiz da discordância entre as concepções de Hus­
serl e Heidegger no referente à fenomenología e à tarefa
do labor filosófico.
Portanto, ainda que tenha sido decisiva a presença de
Husserl na elaboração das intuições heideggerianas, nos
momentos decisivos os caminhos se separam. A fenome­
nología que Heidegger elaborou, premido por grandes in­
terrogações que trazia de sua juventude, se constituiría no
instrumento que aprofundaria sempre mais as diferenças
entre os dois filósofos. Por isso Husserl poderia dizer,
diante da acolhida triunfal de Ser e Tempo, cujo autor

51
Husserl acusava de “ter caído no antropologismo trans­
cendental” (38): “Filosofia como ciência, como ciência
séria e exata, sim como ciência apoditicamente exata —
o sonho está no fim.” (39). A “tarefa infinita” deveria es­
perar por melhores tempos, porque, justamente, viera per­
turbar o projeto da fenomenología transcendental aquele de
quem Husserl poucos anos antes dissera: “A fenomenolo­
gía — isto somos eu e Heidegger”.
Em 1962, voltando-se em seu espírito para a fenome­
nología, Heidegger disse: “Hoje parece que o tempo da
filosofia fenomenológica passou. Já é julgada como algo
do passado, que apenas é consignado ainda historicamen­
te ao lado de outros movimentos da filosofia. Entretanto,
em sua essência a fenomenología não é um movimento.
Ela é a possibilidade do pensamento — que periodicamen­
te se transforma e somente assim permanece — de corres­
ponder ao apelo do que deve ser pensado. Se a fenome­
nología for assim compreendida e guardada, então pode
desaparecer como expressão em favor da questão do pen­
samento cuja manifestação permanece um mistério” (40).

52
NOTAS — 1

1. Die Kategorien — und Bedeutungslehre des Duns Scotus, Tü­


bingen 1916, pp. 98, 108, 235, 241. Em Mein Weg in die Phaenomeno-
logia Heidegger declara: “ Do professor Cari Bralg ouvl pela primeira
v e z ... da importância de Schelling e Hegel para a teologia especula­
tiva à diferença do sistema doutrinai da escolástica. Desta maneira,
a tensão entre ontologia e teologia especulativa como estrutura da me­
tafísica, penetrou no horizonte de meu questionamento” , Zur Sache
des Denkens, Tübingen 1969, p. 82.
2. Husserl, E. — Logische Untersuchungen, Max Niemeyer Verlag,
Tübingen 1968, Vol. I § 1.
3. Husserliana, Vol. III.
4. Mein Weg in die Phaenomenologie, em: Zur Sache des Den­
kens, Tübingen 1969, pp. 83-84.
5. Mein Weg in die Phaenomenologie, em: Zur Sache des Den­
kens, p. 84.
6. Mein Weg in die Phaenomenologie, em: Zur Sache des Denkens,
pp. 84-85.
7. Gadamer. H.-G. — Die Phaenomenoiogische Bewegung in
Philosophische Rundschau, 11. Jahrgang, Heft 1/2, Mai 1963, p. 3.
8. Becker, O. — Die Phitosophie Edmund Husserls in Kanstudien
XXXV, 1930, pp. 119-150.
9. Szilasi, W. — Einfuhrung in die Phaenomenologie Edmund Hus­
serls, 1959, pp. 7, 51, 92.
10. Biemel. W. — Die Entscheidende Phasen der Entfaltung von
Husserls Philosophie, 1959.
11. Funke, G. — Phaenomenologie: Metaphysik oder Methode?,
1966, p. 85.
12. Funke, G. — Phaenomenologie: Metaphysik Oder Methode?,
1966, pp. 82 e segs. — Gadamer, H-G. — Vide Die Phaenomenoiogische
Bewegung, passim. Ambos os autores expõem as diversas tendências
das escolas fenomenológicas, tomando como ponto de referência o
livro de Spiegelberg, H. — The phenomenological Movement, 2 Vols.,
Den Hag, 1960.
13. Funke, G. — Vide o. c. p. 83.
14. Mein Weg in die Phaenomenologie, em: Zur Sache des Den­
kens, p. 87.
15. Mein Weg in die Phaenomenologie, em: Zur Sache des Den­
kens, p. 85.
16. Schneeberg, G. — Nachlese zu Heidegger, Dokumente zu sei-
nem Leben und Denken, Bern 1962.

53
17. Husserl, E. — Philosophie ais Strenge \Wissenschaft, Ed. por
Wilhelm Szilasi, Anhang 105-106.
18. Gadamer, H-G. — Martin Heidegger em: Neue Sammlung, 5.
Jahrgang, Heft 1, 1965, pp. 2-3.
19. Gadamer, H-G. — Martin Heidegger, p. 3.
20. Mein Weg in die Phaenomenologie, em: Zur Sache des Den-
kens, p. 86.
21. Mein Weg in die Phaenomenologie, em: Zur Sache des Den-
kens, p. 86.
22. Mein Weg in die Phaenomenologie, em: Sur Sache des Den-
kens, p. 87.
23. Ein Vorwort. Carta de Heidegger a William Richardson, em:
Philosophisches Jahrbuch, Freiburg Munchen 1965, Ano 72 — Vol. 2,
p. 398.
24. Ein Vorwort, p. 399.
25. Husserliana IV, p. 372 (Beilage XII).
26. Husserliana VI.
27. Gadamer, H-G. — Phaenomenologische Bewegung, passim.
28. Peri Psyches 425 b, 12-15.
29. Metafísica 1047b, 35-37.
30. Gadamer, H-G. — Phaenomenologische Bewegung, p. 23.
31. Gadamer, H-G. — Phaenomenologische Bewegung, p. 21-22.
32. Gadamer, H-G. — Heidegger und die marburber Theologie,
em: Zeit und Geschichte, Dankesgabe an R. Bultmann zum 80. Gebur-
tstag, p. 483.
33. Gadamer, H-G. — Phaenomenologische Bewegung, p. 24.
34. Sein und Zeit, p. 142.
35. Gadamer, H-G. — Phaenomenologische Bewegung, p. 39.
36. Gadamer, H-G. — Phaenomenologische Bewegung, p. 40.
37. Husserliana IX, pp. 601-602.
38. Husserliana V, p. 140.
39. Husserliana VI, Beilage XXVIII.
40. Mein Weg in die Phaenomenologie, em Zur Sache des Den-
kens, p. 90.

54
2
A RECEPÇÃO CRITICA
DA FENOMENOLOGIA
NA OBRA DE HEIDEGGER
1 Na introdução de Ser e Tempo, que trata da expo­
sição da questão do sentido do ser, após mostrar a meta
da analítica ontológica do ser-aí e de apresentar a tarefa
de uma destruição da historia da antologia, Heidegger des­
dobra o método de sua investigação (1).
Desde o inicio o autor previne contra a tentação que
é aproximar da tradição filosófica a análise esboçada.
Ainda que a “característica do objeto temático da inves­
tigação (ser do ente, sentido do ser em geral)” (2) pareça
apontar para os métodos da ontologia tradicional, é pre­
ciso atentar que o método da ontologia permanece muito
problemático se se procura conselho junto às ontologias
históricas da tradição ou tentativas congéneres. Heidegger
toma o termo ontologia num sentido formal e amplo. Assim,
o método não pode ser fornecido por nenhuma das onto­
logias existentes. Isto porque Heidegger usa a palavra
ontologia num sentido que não coincide com nenhuma dis­
ciplina filosófica até ai existente. Não quer corresponder á
tarefa de urna disciplina já constituida. Pelo contrário,
anuncia que aqui só é possível construir urna disciplina a
partir das necessidades inerentes a questões precisas e a
partir de um método inspirado pelas exigências das “coisas
mesmas” (3).
O filósofo não se liga a nenhuma posição ontológica
da História da Filosofia. Procura situar sua reflexão e aná­
lise dentro da problemática fundamental da filosofia em
geral. Tomando a análise como guia, a questão do sentido
do ser se insere na questão fundamental da filosofia. Fe-
nomenologicamente será tratada esta questão, diz Heideg­
ger; e acentua logo sua posição pessoal diante da fenome­
nología, mostrando que em seu trabalho não seguirá um
ponto de vista qualquer ou urna determinada tendência.
“Porque a fenomenología, enquanto continuar a compre­
ender a si mesma, não é nem pode tornar-se uma ou outra
coisa” (4). Com a expressão “fenomenología” Heidegger

56
determina um conceito de método. Ela não visa caracteri­
zar os conteúdos dos objetos da pesquisa filosófica. Ape­
nas caracteriza o “como”, a maneira de proceder da filo­
sofia. Mas o método não é algo exterior e puramente téc­
nico. Ele se liga tanto mais à discussão das coisas mesmas
quanto mais amplamente determina o movimento básico de
uma ciência. Com tais pressupostos recebe Heidegger o
conceito husserliano de fenomenología e o transforma cri­
ticamente submetendo-o a um processo de interpretação
etimológica.
Para fugir às sistematizações infundadas, às desco­
bertas casuais, ao uso de conceitos apenas aparentemen­
te elaborados, às questões imaginárias, que durante gera­
ções se divulgam como problemas, é que Heidegger as­
sume a fenomenología enquanto lhe traz a máxima: “às
coisas mesmas”. Ainda que este apelo oculto na feno­
menología pareça algo óbvio, enquanto expressão do prin­
cípio de todo conhecimento científico, o Filósofo diz que
vai precisá-lo na medida em que se faz necessário para
iluminar a marcha de seu trabalho. “Exporemos apenas
um conceito provisório de fenomenología” (5). O motivo
que o leva a fazer esta exposição provisória do conceito
de fenomenología não é decisão arbitrária, mas imposição
do próprio caminho da reflexão. Somente a Terceira Seção
da Primeira Parte possibilitaria ir além de uma determi­
nação provisória. No fim da segunda seção Heidegger ace­
na para esta questão; somente quando elucidados o
sentido do ser e as relações entre ser e verdade a partir
da temporalidade da existência, seria possível o desenvol­
vimento de “uma idéia da fenomenología diferente do con­
ceito provisório exposto na Introdução” (6). Esta terceira
seção nunca apareceu como havia sido planejado. É talvez
por isso que uma ampla explicitação do conceito de feno­
menología não foi realizada até hoje. Mas como veremos
mais adiante, é possível descobrir em obras posteriores de
Heidegger a presença implícita de um conceito de feno­
menología que é mais definitivo que aquele elaborado na
obra Ser e Tempo. Este conceito que se faz presente,
sobretudo no Segundo Heidegger, vem profundamente im­
bricado com a própria análise da questão do ser.

57
2 Heidegger fará a exposição provisória do conceito
de fenomenología partindo de uma interpretação etimoló­
gica dos radicais que compõem a palavra: phainómenon e
lógos.
Aparentemente a palavra “fenomenología” se consti­
tuiu de modo igual como teologia, biologia, sociologia e
seria assim a ciência dos fenômenos.

2. 1 Primeiro vem analisado o conceito de fenôme­


no. “A palavra grega phainómenon, à qual remete o termo
“fenômeno”, deriva do verbo phainesthai, que significa:
mostrar-se; então phainómenon significa: aquilo que se
mostra, o manifesto. Phainesthai é o infinitivo médio de
phaino: trazer ao dia, colocar na luz; phaino pertence à
raiz pha como phõs, a luz, a claridade, isto é, aquilo em
que algo pode tornar-se manifesto, visível em si mesmo.
Devemos reter como significação da palavra “fenômeno” :
aquilo que se mostra em si mesmo, o manifesto. Os phai-
nómena, “fenômenos”, são, portanto, o conjunto daquilo
que está ou pode ser trazido à luz e que os gregos, por
vezes, identificavam simplesmente com tà ónta (os entes,
o ente). O ente, portanto, pode mostrar-se, a partir de si
mesmo de diversas maneiras, conforme o modo de acesso
a ele” (7).
Mas o ente pode parecer aquilo que realmente não é.
Assim, se mostra como aquilo que ele não é. Tal maneira
de se mostrar se designa o parecer. Desta maneira o se­
gundo sentido grego de phainómenon aponta para o que
aparece, “o aparente”, “a aparência”. Os dois significa­
dos de phainómenon — “fenômeno” como aquilo que se
mostra e “fenômeno” como aparência, estão unidos pela
própria estrutura do conceito; o primeiro, porém, funda­
menta o segundo. Atribuímos, diz Heidegger, à palavra
“fenômeno” o sentido positivo e original de phainómenon
e distinguimos o fenômeno da aparência, que é uma mo­
dificação privativa do “fenômeno” (8).
Após esta distinção inicial, Heidegger procura distin­
guir, do fenômeno enquanto aquilo que se mostra e do
fenômeno enquanto aparência, o fenómeno-índice ou o
puro fenômeno. O fenómeno-índice pode ter quatro cono­
tações. Primeiro, é o anúncio daquilo que não se mani­
festa. Todos os sintomas, símbolos, indicações, apresen­

58
tações possuem a estrutura fundamental formal do fenôme-
no-índice no primeiro sentido. Em segundo lugar é o anún­
cio enquanto ele próprio é um fenômeno — aquilo que,
em sua manifestação, aponta aquilo que não se manifesta.
Em terceiro lugar, fenómeno-índice pode ser usado para
designar o significado primário de fenômeno, entendido
como manifestação em si. Em quarto lugar, fenómeno-
índice pode ter o sentido de puro fenômeno. Isto acontece
quando o anúncio fenomenal que na manifestação de si
indica o não-manifesto é alguma coisa que surge ou ema­
na do não-manifesto, de tal maneira que o não-manifesto
é pensado como aquilo que é essencialmente incapaz de
se manifestar. Assim o fenômeno-índice torna-se sinônimo
de produção ou coisa produzida, sem que estas constituam
o verdadeiro ser do que produz. “Esta não-manifestação
dissimuladora não é contudo uma simples aparência” (9).
Afinal o fenômeno-índice pode transformar-se em pura
aparência. Isto acontece quando este, enquanto anúncio
fenomenal, implica em sua constituição um fenômeno que
pode transformar-se privativamente numa aparência.
Mas o que Heidegger visa é a determinação do con­
ceito fenomenológico de fenômeno. Se no conceito de
fenômeno enquanto aquilo que se mostra em si mesmo
permanece indeterminado qual o ente que é tido como fe­
nômeno e se não se decide se o que se mostra é um ente
ou o caráter ontológico de um ente, então se conquistou
o sentido puramente formal do conceito de fenômeno. Tal
conceito formal pode ser aplicado e então tem-se o con­
ceito vulgar e o conceito fenomenológico de fenômeno.
Heidegger traz dois exemplos elaborados no horizonte da
problemática kantiana. “Quando se entende por aquilo que
se manifesta o ente que segundo Kant é acessível à intui­
ção empírica, faz-se uma aplicação correta da noção for­
mal de fenômeno. Segundo este uso, a idéia de fenômeno
corresponde à noção vulgar desta palavra” (10). ( . . . ) “No
horizonte da problemática kantiana, se poderia caracte­
rizar o que se entende fenomenologicamente por fenômeno
(reserva feita sobre outras distinções), dizendo-se: o que
no fenômeno, em sentido vulgar, se manifesta sempre de
modo prévio e implícito, ainda que não temáticamente,
pode ser levado a manifestar-se temáticamente; e o que

59
assim se manifesta por si mesmo (“as formas da intuição")
é fenómeno da fenomenología" (11).
Para a compreensão geral do conceito fenomenoló-
gico de fenômeno é necessário penetrar, segundo Heideg-
ger, no sentido formal do conceito de fenômeno e sua apli­
cação correta no sentido vulgar.
2. 2 Antes de estabelecer o conceito provisorio de
fenomenología o Filósofo passa à determinação do signi­
ficado de lógos. Mostra que as divergencias sobre o con­
ceito de lógos resultam da falta de uma interpretação que
revele seu significado fundamental. Mesmo quando o sig­
nificado fundamental é reduzido ao discurso, lógos só é
explicado, em sua denotação radical, pela determinação
do que se entende por discurso. A historia do significado
atribuido a lógos e as interpretações múltiplas e arbitrá­
rias da filosofia mascaram de tal maneira o sentido de
discurso, que lógos passa a ser interpretado como razão,
juízo, conceito, definição, razão suficiente ou relação.
Enunciação e juízo eram o significado fundamental de
lógos. Isto ocorreu, sem dúvida, devido às variações se­
mânticas por que passaram os diversos termos com que
lógos foi traduzido. A passagem do grego para o latim e
deste para as línguas nacionais terminou obstruindo pro­
fundamente o acesso às dimensões originárias das pala­
vras primitivas.
“Pois lógos, no sentido de discurso, significa deloun,
tornar manifesto aquilo sobre que se discorre no discurso.
Aristóteles explicou mais precisamente esta função como
apophainesthai. O lógos faz ver (phainesthai) alguma coisa,
a saber, aquilo sobre que se discorreu; ele o faz ver
àquele que discorre (forma média) ou àqueles que discor­
rem entre si. O discurso “faz ver” apò. . ., a partir daquilo
sobre que se discorre. No discurso (apóphansis), enquanto
é autêntico, o que é dito se deve haurir daquilo de que se
laia, de tal modo que a comunicação discursiva torne ma­
nifesto e assim acessível aos outros naquilo que é dito
aquilo de que se fala. Tal é a estrutura do lógos como
apóphansis’’ (12).
Após afirmar que a realização concreta do discurso
acontece na linguagem, na notificação vocal, em que algu­
ma coisa é dada a ver; depois de mostrar que o lógos

60
somente é capaz de revestir a função estrutural de synthe-
sis porque como apóphansis consiste em fazer ver mos­
trando, Heidegger liga o mesmo lógos a verdadeiro e falso.
O lógos pelo fato de fazer ver pode ser verdadeiro e falso.
O elemento original da alétheia não se encontra na ade­
quação. “O ser-verdadeiro de lógos como aletheúeln sig­
nifica que este lógos retira do velamento o ente do qual
fala, através do légein como apophaínesthai; ele o faz ver,
o descobre como desvelado (alethés)” (13). A importância
decisiva do sentido da alétheia para a elaboração do con­
ceito de fenomenologia consiste no fato de ter conduzido
à descoberta do binômio velamento-desvelamento.
O lógos não é o lugar primordial da verdade porque
é um modo determinado de fazer ver. Ainda que se de­
termine que a verdade faz parte do juízo, para os gregos
o verdadeiro reside mais originalmente na alsthesis, en­
quanto apreensão sensível de alguma coisa. É nela e no
noein, incapaz de encobrir, que se dá o verdadeiro desve-
lamento. A síntese já explica e faz ver um ente mediante
outro ente e assim mais facilmente pode ocultar. Por isso
a verdade do juízo é sob muitos aspectos derivada. O lógos
não significa apenas légein; sendo também aquilo que ele
indica, o legómenon como hypokeimenon, pode significar
fundamento, ratlo.
Assim, Heidegger encerra a análise da interpretação
do discurso apofântico que procurou elucidar a função
primária do lógos.

3 Determinados os dois elementos que compõem a


palavra fenomenologia, Heidegger passa a determinar o
conceito provisório de fenomenologia. “A palavra feno­
menologia pode ser assim formulada em grego: légein tà
phainómena; ora, légein significa apophainesthai. Feno­
menologia significa então: apophainesthai tà phainómena:
fazer ver a partir de si mesmo aquilo que se manifesta, tal
como a partir de si mesmo se manifesta. Este é o sentido
formal que se dá ao nome de fenomenologia. Não outra
coisa que o que vem expresso na máxima acima formulada,
é assim enunciado: "às coisas mesmas” (14).
Dentro da tradição metafísica, sobretudo da escolás­
tica, levantam-se objeções contra a aplicação do método
fenomenológico heideggeriano à análise da questão do ser;

61
baseiam-se elas na afirmação de que este não é o cami­
nho adequado para analisar a questão do ser. O impulso
fenomenológico não seria capaz de romper a imanência,
e por isso toda sua interrogação se perdería no plano
finito e histórico. O método fenomenológico poderia ser
admitido como preparador do terreno para uma posterior
e necessária reflexão metafísica.
Husserl e alguns de sua escola viam por sua vez na
conceituação de fenomenología heideggeriana um perigo­
so desvio para o antropologismo; sobretudo porque se
recusavam a aceitar a redução transcendental, não alcan­
çando desta maneira a universalidade necessária para a
abordagem da questão do ser.
Ainda que o longo caminho de Heidegger tenha tra­
zido novos elementos para a formulação do conceito de
fenomenología e tenha mesmo levado o autor a silenciar
sobre o método, acenando apenas de passagem para
alguns aspectos novos, devemos ver, contudo, na análise
que vem esboçada na letra C do § 7, ao mesmo
tempo uma resposta às objeções que vinham de ambos os
lados e uma abertura para uma nova posição dentro da
História da Filosofia. Aqui permanecem latentes elemen­
tos que silenciosamente desabrocharão em trabalhos pos­
teriores; sem eles as últimas posições do Filósofo são in­
compreensíveis.
A simplicidade do esboço provisório da fenomenolo­
gía é apenas aparente. O que desnorteia é que Heidegger
procede mais por afirmações taxativas que por explica­
ções, o que muito esconde o clima histórico e o contexto
de problemas em que emergiu sua fenomenología. A vio­
lência na interpretação etimológica do termo já indica a
decisão de impor um conceito novo. É preciso, aliás, que
se constate, já desde o início de Ser e Tempo, que o con­
ceito de interpretação que nascerá das discussões do pro­
blema hermenêutico já está presente na provisória elabo­
ração do método. Por isso a própria análise do conceito
de fenomenología é projetiva e antecipadora. A palavra é
carregada com um sentido que progressivamente se im-
porá no contexto.

3.1 A clareza exige que examinemos primeiro o que


Ser e Tempo diz sobre a fenomenología a fim de nos vol-

62
tarrnos depois para as considerações esparsas nas obras
posteriores.
Heidegger procura dar à dimensão formal da feno­
menología aquela envergadura que a comensure com o
apelo para a volta às coisas mesmas, lançado pelo mo­
vimento fenomenológico iniciado por Husserl. Mas no sen­
tido que dá à fenomenología já vai implícita uma renúncia
ao movimento fenomenológico. A palavra não traz mais a
conotação objetiva das “coisas mesmas”, dos fenômenos
em seu sentido vulgar. Ela indica o modo de acesso, de
tratamento daquilo que deve ser questionado (15).
Heidegger, porém, procura transformar este conceito
formal de fenomenología no conceito fenomenológico. Fe­
nômeno, em sentido privilegiado, é aquilo que, “primeira­
mente e o mais das vezes, justamente não se manifesta,
o que está velado em face do que primeiramente e o mais
das vezes se manifesta, ainda que pertença ao mesmo
tempo e essencialmente àquilo que primeiramente e o mais
das vezes se manifesta, e de tal maneira que constitua seu
sentido e fundamento” (16). A fenomenología é, portanto,
o instrumento e método que dá acesso, não só ao fenôme­
no no sentido vulgar, mas ao fenômeno no sentido feno­
menológico (17). E este é o que primeiramente e o mais
das vezes não se dá como manifesto. A este visa a feno­
menología heideggeriana.
Os primeiros parágrafos de Ser e Tempo mostraram
a situação concreta da questão do ser, a necessidade de
uma repetição explícita da questão do sentido do ser; pro­
varam a necessidade de partir da analítica existencial; ex­
puseram o sentido positivo da tarefa de uma destruição
da história da ontologia. A fenomenología pretende preci­
samente ser o método que permita o encaminhamento
destas questões. Ela é assim formulada em sua estrutura
formal para poder ser aplicada no âmbito da obstrução
da questão do ser, na esfera do esquecimento do sentido
do ser, no horizonte da determinação desveladora do sen­
tido do ser. O que em sentido mais próprio permanece
velado, cai no estado de dissimulação ou se manifesta de
maneira distorcida, não são determinados entes, mas o ser
do ente. "A fenomenología tomou como tarefa, como seu
objeto temático, aquilo que reclama ser fenômeno em sen­
tido privilegiado e em virtude de seu conteúdo inalienável”

63
(18). O ser não é fenômeno. A fenomenología procurará
transformá-lo em fenómeno no sentido fenomenológíco,
como aquilo que se oculta no que se manifesta, e con­
tudo, constitui o fundamento de tudo o que assim se ma­
nifesta. O método deve adequar-se, portanto, ao modo de
manifestação do ser, deve ser o caminho para recolocar a
questão do sentido do ser.
A explicitação do sentido do ser será o papel da onto­
logia em seu sentido lato. Esta explicitação não pode
tomar como instrumento nenhum método tradicional. Pois
foi a tradição que permitiu o velamento, a dissimulação e
a distorção do sentido do ser do ente. Desta maneira, a
ontologia que é a meta de Heidegger recebe um novo ins­
trumento. “A fenomenología é o modo de acesso ao que
deve tornar-se o tema da ontologia; ela é o método que
permite determinar o objeto da ontologia, legitimando-o.
A ontologia somente é possível como fenomenología. O
conceito fenomenológíco de fenómeno visa o ser do ente
enquanto aquilo que se manifesta, seu sentido, suas mo­
dificações e derivações” (19).
É difícil que esta afirmação tome seu sentido radi­
cal e inequívoco neste contexto. Ela foi acompanhada
desde o começo de críticas vindas de várias direções.
Somente sua aplicação na análise da questão do ser po­
dería mostrar em seus resultados a positividade desta
afirmação. O fato mais claro que vem atestar esta situa­
ção talvez resida na aceitação dos resultados da refle­
xão de Heidegger por parte daqueles que não admitem seu
método. Mesmo as profundas considerações de Heideg­
ger sobre o ser são fruto da aplicação da fenomenología;
progressivamente, porém, esta vai sendo calada em favor
do próprio objeto da ontologia heideggeriana.
Os equívocos surgem particularmente da interpreta­
ção da exposição provisória do conceito de fenomenolo­
gía; esta parecia lançar o pensamento de Heidegger con­
tra toda a tradição. Sua finalidade no entanto era pene­
trar no chão esquecido da tradição, recolocando a ques­
tão do sentido do ser. A ontologia na mente de Heidegger,
somente era possível como fenomenología. A determina­
ção do horizonte para a manifestação do ser, através da
analítica existencial, somente podia ser realizada median­
te o método fenomenológíco. A elaboração do sentido do

64
ser, partindo do modo de o ser se desvelar no homem, ve­
lá n do se naquilo que constitui em sua radicalidade, so­
mente era possívél como fenomenologia. O ser que se
manifesta de múltiplos modos somente podia ser captado
mediante um instrumento adequado às diversas condições
de sua eclosão. Afinal a ontologia no sentido lato que
Heidegger lhe dava exigia a fenomenologia para corres­
ponder às exigências de seu objeto. Heidegger transfor­
mou a fenomenologia husserliana radicalizando-a: Isto sig­
nifica a superação da ontologia ingênua de Husserl por
uma nova ontologia.
Entretanto, a análise do sentido do ser não pode ser
visada diretamente. Ainda que o fenômeno em seu senti­
do fenomenológico seja sempre o ser e as estruturas on-
tológicas, este, contudo, se apresenta enquanto ser do
ente. Assim, a manifestação do ser exige que primeiro
se analise o ente. Por isso o fenômeno em sentido vulgar
adquire relevância fenomenológica. Daí o sempre estar
incluída na meta de tal análise a tarefa preliminar de asse­
gurar fenomenologicamente o ente exemplar de onde pos­
sa partir o questionamento propriamente dito. Portanto,
ainda que a fenomenologia pretenda ser um instrumento,
o método da ontologia, ela exige, contudo, que seja pre­
cedida por uma análise fenomenológica do ente privile­
giado a partir do qual se possa então realizar a análise
fenomenológica do fenômeno do ser. Já no início Heideg­
ger tem isto presente, quando as explicações dadas sobre
as tarefas da ontologia estabelecem a necessidade de uma
ontologia fundamental que tome por tema um ente privile­
giado tanto no plano ontológico como no ôntico: o ser-aí.
As estruturas deste ente serão analisadas para que desve­
lem o horizonte em que se afirma a questão do sentido do
ser em geral. É na analítica do ser-aí que a fenomenolo­
gia assume uma dimensão hermenêutica, explicitadora.
Esta hermenêutica das estruturas fundamentais do ser-aí
adquire quatro dimensões como ainda se mostrará.

3. 2 Ao fim da exposição provisória da fenomeno­


logia o Filósofo mostra como é possível que o ser, enquan­
to “o transcendeos por excelência” (20), pode, contudo,
e deve mesmo ser problematizado a partir do ser-aí. “O
ser e a estrutura ontológica estão além de todo ente e de

65
toda determinação ôntica possível que seja da ordem do
ente” (21). A transcendência do ser-ai implica privilegia­
damente a possibilidade e necessidade da individuação
mais radical. "A questão do sentido do ser é a mais uni­
versal e a mais vazia; contém, entretanto, ao mesmo tem­
po, a possibilidade de se concretizar e de se concentrar
num ser-aí, individual” (22). É por isso que se torna pos­
sível analisar o ser a partir do ser-aí. "A universalidade
do conceito de ser não exclui o caráter “especializado” de
nosso estudo; este se propõe, realmente, ascender ao ser
pelo caminho de uma interpretação particular, de um ente
determinado, o ser-aí, esperando obter através dele o ho­
rizonte necessário a uma compreensão e a uma explici­
tação possíveis do ser em geral” (23). Esta individualiza-
ção do estudo do ser no ser-aí, como ponto de partida, é
mesmo necessária. Desta maneira, a fenomenología deve
ser primeiramente hermenêutica. “Toda a exploração do
ser como transcendens é conhecimento transcendental. A
verdade fenomenológica (enquanto ela é uma revelação do
ser) é veritas transcendentalis” (24). Conhecimento trans­
cendental é aquele que parte do ser-aí. Assim o estudo
e a análise do transcendente por excelência é transcen­
dental, isto é, se individualiza na transcendência do ser do
ser-aí. A verdade fenomenológica, que é o desvelamento
fenomenológico do ser, somente é possível a partir do
desvelamento das estruturas do ser-aí, sendo por isso ver­
dade transcendental.
“Ontologia e fenomenología não são duas disciplinas
diferentes, que, entre outras, pertencem à filosofia. Estas
duas expressões caracterizam a própria filosofia, segun­
do seu objeto e seu método. A filosofia é ontologia feno­
menológica universal, que parte da hermenêutica do ser-
aí; esta, enquanto analítica existencial, dá o fio condutor
de toda a problemática filosófica, fundamentando-a sobre
a existência, de onde brota toda a problemática e sobre a
qual ela repercute” (25).
O esboço provisório da fenomenología levou Heideg-
ger à elaboração formal do conceito de fenomenología,
que, no fim do § 7, recebe.seu conteúdo pela determinação
da hermenêutica. A analítica do ser-aí é a concretização
da dimensão formal da fenomenología, imposta pela pri­
vilegiada situação ôntico-ontológica do ser-aí. A máxima

66
individualização do "ens como o transcendeos por exce­
lência" é exigida como ponto de partida. Por isso a ver­
dade (o horizonte, a abertura, o sentido) do ser será ne­
cessariamente veritas transcendentalis que parte da ana­
lítica do ser-aí. A fenomenología hermenéutica funda, por­
tanto, a veritas transcendentalis, o horizonte de abertura
no ser-aí concreto, que permite a interrogação pelo senti­
do, pela verdade do ser em si mesmo. A verdade que
emerge da fenomenología hermenêutica é verdade trans­
cendental. Especialmente a fenomenología hermenéutica
do ser-aí, em suas estruturas e sua temporalidade, visa
urna abertura para a questão do ser. O tempo fundado na
temporalidade do ser-aí, analisada pela analítica existen­
cial, é transcendental. A meta da fenomenología hermenéu­
tica do ser-aí é a explicação do tempo como o horizonte
transcendental da questão do sentido do ser. O tempo
fundado na temporalidade do ser-aí é transcendental por­
que conota a abertura do ser-aí. O desvelamento apofán-
tico das estruturas e da temporalidade do ser-aí descobre
as condições em que a transcendência do ser emerge na
transcendência do ser-aí. Isto, porém, não é uma análise
abstrata da origem da transcendência. É uma análise da
facticidade, da dimensão fenomenológica da existência
em seu acontecer concreto.

3. 3 Após haver explorado o acontecer táctico da


transcendência do ser-aí e de a partir déla ter determina­
do a temporalidade das estruturas do ser-aí, Heídegger es­
tabelecería o tempo como horizonte transcendental da
questão do sentido do ser. Isto, no entanto, permaneceu
projeto. Deve-se ver nisto o impasse do método fenome-
nológico hermenêutico? Se visava desvelar as estruturas
do ser-ai táctico, ele contudo não pôde penetrar na gêne­
se do acontecer do ser-aí, na raiz da existência táctica,
porque ela não se dá como facticidade. A pergunta que
se impõe ¡mediatamente é a seguinte: tem a explicação
do tempo possibilidade de ser o horizonte transcendental
da questão do sentido do ser? E ainda: é possível a in­
terrogação pelo sentido do ser num horizonte transcenden­
tal? E afinal: não é o ser o lugar da emergência deste ho­
rizonte transcendental e, portanto, não está seu sentido
aquém deste horizonte?

67
O problema reside na questão: é possível ou não que
a explicitação do tempo leve ao sentido do ser? A explica­
ção do sentido de ousia no pensamento de Heidegger e
a análise da viravolta melhor situariam a questão. O que,
porém, nos interessa agora diretamente é a atitude de
Heidegger diante da fenomenología, depois que ela, en­
quanto fenomenología hermenêutica, levou a um impasse.
As análises da fenomenología hermenêutica cessaram
após as tentativas nos trabalhos que surgiram em torno
de Ser e Tempo. Isto, porém, não representa uma renún­
cia e uma rejeição da fenomenología como momento ne­
cessário no caminho da reflexão.
No prefácio da nona edição de Ser e Tempo, Heideg­
ger explica: “Entretanto, o caminho traçado, ainda hoje
permanece necessário, se a questão do ser deve inspirar
nessa existência’’ (26). Uma carta de 1962 confirma-o:
“A problematização de Ser e Tempo, contudo, de modo
algum é abandonada” (27). “A problematização de Ser e
Tempo é completada de modo decisivo no pensamento
da viravolta. Completar somente pode aquele que abarca
o todo. Somente esta complementação oferece a determi­
nação suficiente do ser-aí, quer dizer da essência do ho­
mem pensada a partir da verdade do ser enquanto tal” (28).
Ser e Tempo visava desdobrar a verdade do ser a
partir da analítica do ser-aí realizada pela fenomenología
hermenêutica. Já aí, porém, se afirmava a necessidade
de esta analítica ser refeita após uma profunda discussão
do conceito de ser (29). Nesta discussão do sentido do
ser não seria aplicável o método fenomenológico herme­
nêutico. Continuaria Heidegger com o método fenomeno­
lógico para determinar e esclarecer a idéia de ser em
geral? Os trabalhos posteriores mostram que o método
continua comandando a interrogação, apesar das poucas
referências explícitas.

4 Num texto que se originou da visita do professor


Tezuka da Universidade Imperial de Tokio em 1953/1954,
Heidegger aponta certos elementos que nos podem con­
duzir na abordagem da fenomenologia que surge diante
da tarefa da viravolta: determinar a verdade do ser e,
assim, a partir dela, a verdade do homem. A conversa
tratava do sentido do título de uma preleção que Heideg-

68
ger realizara em 1923: Expressão e Fenômeno. Falava ele
de uma nova dimensão da hermenêutica enquanto esta
descobre uma nova relação do homem com a diferença
ontológica entre presença e presente. O professor japo­
nês diz que Heidegger abandonou o âmbito da subjetivi­
dade “através do aprofundamento da relação hermenêu­
tica com a diferença ontológica” (30). "Procurei-o ao
menos, replica Heidegger. As representações principais,
que sob os nomes “expressão”, “vivência” e “consciên­
cia”, determinam o pensamento moderno, se deveríam
tornar problemáticas no que se refere a seu papel deter­
minante” (31). O interlocutor, porém, objeta que o título
da preleção de 1923: Expressão e Fenômeno, parece si­
tuar a problemática dentro da relação sujeito-objeto. Hei­
degger reconhece que muitas coisas ficaram obscuras na­
quelas aulas e diz que não é possível sair de um salto da
esfera de representação dominante. Além disto o pensa­
mento de Heidegger, na sua discussão com o pensamento
moderno, pretendia, antes de tudo, recuperar mais origina­
riamente o passado-presente. Ele chama atenção para a
palavra “repetição” que vem no título do § 1 de Ser e
Tempo. Esta repetição aponta para um retomar, um re­
cuperar, um reunir daquilo que se esconde no pensamen­
to antigo. E para isto se exige “atenção para os indícios
que conduzem o pensamento para o âmbito de sua ori­
gem” (32). Estes indícios não são do autor e são apenas
poucas vezes perceptíveis como o eco apagado de lon­
gínquo apelo. Para mostrar que não mais coloca a rela­
ção sujeito-objeto como fundamento da distinção Expres­
são e Fenômeno ele recorre a Kant. O conceito de fenô­
meno em Kant repousa no fato de que tudo o que se
apresenta já se transformou em objeto da representação.
Todo o fenômeno em Kant deve ser experimentado como
ligado à oposição ao sujeito. Isto é necessário para, an­
tes de mais nada, podermos experimentar originariamente
o aparecer do fenômeno.
“Os gregos, diz Heidegger, foram os que, pela pri­
meira vez, experimentaram, enquanto tais, os phainómena,
os fenômenos. Mas nisto é-lhes absolutamente estranha
a caracterização do que se presenta pela objetividade;
phainesthai significa para eles: chegar a se manifestar e
assim aparecer como fenômeno. O aparecer como fenô­

69
meno permanece o traço básico da presença do que se
presenta, na medida em que o que se presenta emerge
no desvelamento” (33). O Filósofo usa a palavra “fenô­
meno” no sentido grego, ao menos na medida em que
este exclui o sentido kantiano. Mas, a distinção feita con­
tra Kant não basta. Quando se usa a palavra “objeto”
para o que se presenta, querendo dizer que o que se
presenta subsiste em si e por si, rejeitando-se assim a
explicação kantiana da objetividade, ainda não se pensa
o aparecer enquanto fenômeno no sentido grego; porém,
ainda que em sentido muito velado, no sentido cartesiano:
a partir do eu enquanto sujeito (34).
Heidegger, entretanto, também não pensa o aparecer
do fenômeno no sentido grego. “Nosso pensamento atual,
afirma ele, tem a tarefa de pensar mais radicalmente que
os gregos o que eles pensaram” (35). “Pensando a pre­
sença mesma como o aparecer enquanto fenômeno, en­
tão, reina na presença o emergir na clareira (abertura) no
sentido do desvelamento. Isto acontece no desvelar en­
quanto abertura de uma clareira. Esta abertura de uma
clareira permanece, contudo, em si mesma, sob qualquer
ponto de vista enquanto acontecimento. Inserir-se no pen­
samento deste impensado significa: ocupar-se mais ra­
dicalmente daquilo que foi pensado em grego, descobri-
lo na origem de seu ser. O olhar que descobre isto é, a
seu modo, grego e, contudo, sob o ponto de vista do que
foi descoberto, não mais, nunca mais grego” (36).
Aquilo que é assim descoberto pelo olhar desvelador
apresenta-se como o fenômeno no sentido fenomenoló-
gico, no Segundo Heidegger, após a viravolta. Aqui se
mostra algo fundamental. Manifesta-se a mesma relação
que pouco acima fora apontada como resultado da nova
dimensão hermenêutica. O sentido fenomenológico de
fenômeno desponta aqui ligado novamente ao hermenêu­
tico. Isto, porém, não acontece mais no horizonte de pro-
blematização de Ser e Tempo. Pode-se observar aqui cla­
ramente a presença da viravolta. Nela a relação sujeito-
objeto está superada e a dimensão do método fenome­
nológico, tanto como a da hermenêutica são transporta­
das para outro plano. A dimensão hermenêutica brota
do próprio ser, assumindo o homem como mensageiro.
“Pois, na origem do aparecimento do fenômeno, dirige-

70
se ao homem aquilo em que se esconde a diferença de
presença e do que se presenta” (37). Esta diferença já
sempre se comunicou ao homem, ainda que ocultamente.
Na medida em que o homem é homem ele ouve esta men­
sagem. O homem mesmo, sem prestar atenção, ouve esta
mensagem. Ele é obrigado a ouvi-la. Assim, o homem
está numa relação hermenêutica de sentido novo. Ele
traz a notícia da mensagem. “O homem é o mensageiro
da mensagem que lhe inspira o desvelamento da dife­
rença” (38).
Esta análise realizada por Heidegger em A Caminho
da Linguagem entreabre o âmbito no qual podemos situar
o método fenomenológico após a viravolta. O fenômeno
no sentido fenomenológico se instaura numa nova relação
entre ser e homem em que o ser assume a hegemonia
na sua manifestação, fazendo com que o próprio homem
o atinja como fenômeno. A verdade transcendental mer­
gulha agora na verdade fenomenológica enquanto onto-
lógica. A abertura transcendental emerge da clareira do
próprio ser, enquanto velamento e desvelamento. A ver­
dade, o sentido, a abertura, a esfera do projeto do próprio
ser fazem do homem seu mensageiro.

4 .1 Se no texto examinado, o fenômeno e a feno­


menología assumem uma forma que os insere no próprio
acontecer do ser, no texto que examinaremos a seguir,
eles emergem na esfera do questionamento do pensamen­
to. O mostrar e manifestar do fenômeno se apresenta,
aqui, como traço especificador e fundamental do pensa­
mento. A fenomenología coincide com o próprio binômio
velamento-desvelamento do ser. Pensar o que se presen­
ta enquanto se retira é coincidir com o ser enquanto
fenômeno.
Heidegger enfoca a questão a partir da afirmação de
que a ciência não pensa. Mas o fato de não pensar é uma
vantagem para a ciência, pois lhe assegura um acesso
possível ao domínio dos objetos que corresponde a seus
modos de pesquisa. Ainda que a ciência não pense, ela,
contudo, nada pode sem o pensamento. “A relação da
ciência com o pensamento é somente então autêntica e
fecunda, quando se tornou visível o abismo que separa
as ciências e o pensamento e quando aparece que não se

71
pode estender sobre ele nenhuma ponte. Não há ponte
que conduza das ciências para o pensamento, a não ser
o salto” (39). O salto não nos revela apenas o outro lado,
porém, uma região absolutamente nova. A região do pen­
samento nunca pode ser objeto de demonstração se esta
significa: “derivar proposições conforme a questão dada,
a partir de premissas adequadas, através de cadeias de
raciocínios”. Heidegger reduz assim o pensamento a uma
dimensão original. Falando da fuga do pensamento em
que se movimenta o homem moderno, distingue dois tipos
de pensamento: o pensamento que calcula e o pensamen­
to que medita: “Existem dois tipos de pensamentos; am­
bos por sua vez e a seu modo justificados e necessários:
o pensamento que calcula e o pensamento que medita o
sentido” (40). O pensamento que medita o sentido é o
pensamento “não científico”. É somente este pensamen­
to que pode buscar o sentido do ser. Portanto, se a feno­
menología visa o desvelamento do sentido do ser é deste
pensamento que ela se alimentará.
“Quando uma coisa se manifesta apenas enquanto
ela aparece a partir de si mesma, permanecendo ao mes­
mo tempo velada, querer ainda provar ou exigir que seja
provada tal coisa, de modo algum é julgar conforme a
regra superior e mais rigorosa de conhecimento: é unica­
mente fazer uma conta utilizando um certo sistema de
medida, um sistema inapropriado” (41). Eis um outro modo
de expressão do sentido heideggeriano de fenômeno. A
ontologia é fenomenología, porque seu “objeto”, o ser, é
o que se manifesta, velando-se nos entes. O ser somente
se manifesta quando a partir de si é mostrado, assim como
em si mesmo se mostra: isto é apophaínesthai tà phainó-
mena. O ser é fenômeno no sentido fenomenológico: mos-
tra-se, portanto, ocultando-se.
Heidegger aprofunda mais sua explicação: “Pois, há
uma coisa que somente se manifesta de modo que apare­
ça no próprio ato pelo qual se esconde, nós só respon­
demos bem se atraímos a atenção sobre ela e se nos im-
pomos a nós mesmos a regra de deixar aparecer, no des­
velamento que lhe é próprio, aquilo que se mostra. Mos­
trar assim simplesmente é um traço fundamental do pen­
samento. É o caminho em direção daquilo que desde
sempre e para sempre dá que pensar ao homem” (42).

72
Demonstrar é a via comum de acesso a todas as verdades
científicas. Mostrar, porém, podemos poucas coisas. So­
mente estas podem ser liberadas através de um ato indi­
cador que as convida a vir ao nosso encontro. Mas estas
coisas não são apenas raras. Raramente elas se deixam
mostrar assim. Aquilo que faz o homem pensar é o ser, o
ser no estranho modo de entrar em relação com ele. Pois,
seu desvelamento próprio é ocultar-se. É por isso que o
método fenomenológico que se aplica ao fenómeno no
sentido fenomenológico consiste em mostrar aquilo que
em seu próprio ato de manifestação se vela.
Todo o pensamento se exerce, portanto, diante da-
quilo que se nos presenta enquanto se retrai. Este presen-
tar-se do ser se dá sempre no movimento de velamento,
de reserva. Ele sempre permanece enigma porque sua
plenitude mais reserva em si do que mostra. O homem
está envolto e atraído por aquilo que se mostra enquanto
se retira. Assim, ele é aquele que mostra o que se escon­
de. A essência do homem consiste em mostrar no ente
o ser que nele se desvela e nele se retrai.
É preciso observar o fato de que Heidegger liga sua
fenomenología ao problema do pensamento. Pensar para
ele é, entretanto, pensar o ser. O verdadeiro, o único pen­
samento essencial é o pensamento do ser. O ser enquan­
to fenômeno no sentido fenomenológico é determinante
do pensamento. É o fenómeno do ser que nos faz pensar
e é o único digno de ser pensado. Heidegger resumirá
toda a sua posição diante do pensamento ocidental na
questão: Que significa pensar?

4 .2 A presença da fenomenología na obra de Hei­


degger assume um alcance que abarca e envolve toda a
temática central do filósofo: o pensamento do ser. A con­
dição provisoria que é retratada em Ser e Tempo evoluiu
para um desdobramento imánente à própria discussão do
objeto da ontologia heideggeriana. As metamorfoses da
fenomenología heideggeriana estão condicionadas pelas
mudanças de perspectiva em torno da mesma preocupa­
ção central. Da análise até agora realizada já ressalta a
necessidade de penetração mais radical em alguns ângu­
los novos que a fenomenología fol tomando ao longo do
caminho do pensamento do Filósofo. A fenomenología

73
hermenêutica aplicada à analítica existencial teve uma
presença decisiva no ponto de partida de Heideg-
ger e no confronto do pensamento fenomenológico
deste com o de Husserl. Depois silenciou, para apenas
de passagem se referir a ela, apontando para uma radi­
cal mudança de sentido da hermenêutica nos últimos anos.
Se continuou presente a inspiração primeira da fenomeno­
logía como hermenêutica, a dimensão formal de fenome­
nología no sentido fenomenológico se concretizou envolta
nas reflexões de Heidegger sobre o problema do ser. Já
não se tratava mais de discutir a analítica existencial como
ponto de partida escolhido para a interrogação pelo senti­
do do ser; o decisivo então se tornara a análise e medi­
tação do próprio sentido do ser. Nesta meditação a feno­
menología tomou força nova e silenciosamente orientou
a lenta progressão da discussão do próprio sentido do ser.
O ser como fenômeno no sentido fenomenológico envol­
ve em si os novos horizontes da fenomenología. Surge,
porém, uma terceira perspectiva do contexto da obra de
Heidegger como ontologia fenomenológica; suas análises
da História da Filosofia, enquanto procuram penetrar no
impensado dos textos da Tradição (o que se vela no que
foi pensado) são reflexões fenomenológicas sobre as es­
peculações dos filósofos. A partir desta direção a feno­
menología assume uma perspectiva riquíssima para a
compreensão da obra do Filósofo. Sem dúvida aqui se faz
notar a presença da destruição fenomenológica da histó­
ria da ontologia que fora projetada em Ser e Tempo, so­
bretudo em seu sentido positivo. O importante é verificar
que “a fenomenología oferecia as possibilidades de um
caminho" (43). Enquanto caminho ela se confunde com
o próprio caminhar. “Ela é a possibilidade do pensamen­
to — que periodicamente se transforma e, somente assim,
permanece — de corresponder ao apelo do que deve ser
pensado. É a fenomenología assim compreendida e guar­
dada, então, ela pode desaparecer como título, em favor
do objeto de pensamento, cuja manifestação permanece
um mistério” (44).

5 Já em 1926, Heidegger apresentara a fenomenolo­


gía num âmbito que procurava deixá-la aberta às surpre­
sas da fortuna andeja de um longo caminho filosófico:

74
"Nossas explicações relativas ao conceito provisório de
fenomenología mostram que para ela o essencial não con­
siste em se realizar como “movimento filosófico". Além
da atualidade situa-se a possibilidade. Compreender a fe­
nomenología quer dizer: captar suas possibilidades” (45).
Antes de encerrarmos a análise da recepção crítica
da fenomenología na obra de Heidegger é necessário que
assinalemos a importância da alétheia na gênese da feno­
menología heideggeriana. Em 1962 o Filósofo confessa:
“Com a provisória elucidação de alétheia esclareceram-
se o sentido e o alcance do princípio da fenomenología:
“às coisas mesmas” (46). E qual o sentido que Heidegger
descobriu na alétheia? “Um novo estudo dos tratados de
Aristóteles (em particular do Livro Nono da Metafísica e
Sexto Livro da Ética a Nicômaco) propiciou uma nova com­
preensão do aletheúein como desocultar e a caracteriza­
ção da verdade como desvelamento ao qual pertence todo
o mostrar-se do ente” (47). Com estas palavras Heideg­
ger descreve sua evolução antes de Ser e Tempo. Por­
tanto, a idéia de fenomenología como o mostrar das coi­
sas mesmas, assim como a partir de si se mostram, está
vinculada à interpretação heideggeriana de alétheia. Da
alétheia advém, sobretudo, a dimensão de ambiguidade
da fenomenología, enquanto ela deve desvelar aquilo que
a partir de si sempre se oculta e vela nos entes.
Na Introdução de Ser e Tempo o Filósofo já aproxi­
ma aletheúein e apophainesthai. “O “ser-verdadeiro” do
lógos como aletheúein significa que este lógos retira da
obscuridade o ente do qual fala, pelo légein como apo­
phainesthai; ele o faz ver, o descobre como desvelado
(elethés)” (48). E no § 44 Heidegger repete: o ser-ver­
dadeiro do lógos como apóphansis é o aletheúein confor­
me o modo do apophainesthai: fazer ver o ente — retira­
do da dissimulação — na sua não-dissimulação (ser-des-
coberto). A alétheia que Aristóteles identifica com o prãg-
ma, com os phainómena, significa as “coisas mesmas”, o
que se mostra, o ente segundo seu modo de ser-desco-
berto” (49).
Numa declaração de 1963 Heidegger confirma ainda
uma vez mais a ligação entre fenomenología e alétheia:
“O que se realiza para a fenomenología dos atos conscien­
tes, como o automostrar-se dos fenômenos, é pensado

75
mais originariamente por Aristóteles e por todo o pensa­
mento e existência dos gregos como alétheia, como des-
velamento do que se presenta, seu desocultamento, seu
mostrar-se” (50). Não é, entretanto, esta aproximação ex­
terna que mostra a dependência essencial entre fenome­
nología e alétheia em sua profundidade. Alétheia e fe­
nomenología perpassam todo o movimento fundamen­
tal do pensamento de Heidegger; da alétheia a ambivalên­
cia passa pela fenomenología para caracterizar radical­
mente a analítica da circularidade do ser-aí e o problema
da viravolta enquanto pensamento do ser como historia.
Não se pode conceber a fenomenología heídeggeríana sem
a presença da alétheia já no início da elaboração provi­
soria de seu método fenomenológico. Somente na medida
em que a alétheia perpassa toda a obra de Heidegger está
nela também presente a fenomenología. A alétheia inspi­
ra a fenomenología, mas, esta é a via de acesso ao ser
que acontece como alétheia, como velamento e desvela-
mento.
A fenomenología atingiu Heidegger não só quando
este já estava munido de poderosas intuições; a recepção
do método foi construída através de muitos anos. Como
resultado temos urna fenomenología levada a sua extre­
ma radicalização e que com Husserl tem apenas em co­
mum a mesma palavra de ordem: “às coisas mesmas”.
NOTAS — 2

1. SZ (Se/n und Zeit), §§ 1-8.


2. SZ 27.
3. SZ 27.
4. SZ 27.
5. SZ 28.
6. SZ 357.
7. SZ 28.
8. SZ 29.
9. SZ 30.
10. SZ 31.
11. SZ 31.
12. SZ 32.
13. SZ 33.
14. SZ 34.
15. No processo de radicalização da fenomenologia husserliana,
Heidegger questiona não apenas o modo como se dão “ as coi­
sas mesmas” , mas interroga pela condição de possibilidade do
próprio dar-se em geral.
16. SZ 35.
17. SZ 352.
18. SZ 35.
19. SZ 35.
20. SZ 38.
21. SZ 38.
22. SZ 39.
23. SZ 39.
24. SZ 38.
25. SZ 38.
26. SZ V.
27. Ein Vorwort. Carta de Heidegger a William Richardson, em Philo-
sophisches Jahrbuch, Freiburg München, 1965, Ano 72 — Vol. 2,
p. 400.
28. Ein Vorwort, pp. 400-401.
29. SZ 333.
30. US (Unterwegs zur Sprache), 130.
31. US 130.
32. US 151.
33. US 132.
34. US 133.
35. US 133.

77
36. US 135.
37. US 135.
38. US 136.
39. VA (Vortraege und Aulsaetze), 134.
40. Gelassenheit, 15.
41. VA 134.
42. VA 134.
43. US 92.
44. Mein Weg in die Phaenomenologie. em: Zar Sache des Denkens,
90.
45. SZ 38.
46. Ein Vorwort, p. 398.
47. Ein Vorwort, p. 398.
48. SZ 33.
49. SZ 219.
50. Mein Weg in die Phaenomenologie, 87.

78
3
A FENOMENOLOGIA
COMO
ONTOLOGIA HERMENÉUTICA
1 Kant resumiu os problemas da filosofia na ques­
tão: que é o homem? Não tentou, porém, uma solução ra­
dical. Segundo Heidegger, o fato de Kant não ter dado
uma resposta satisfatória à questão do ser e da verdade
se deve à insuficiente análise do homem. A ausência de
uma analítica do homem para atingir uma ontologia fun­
damental levou Kant ao impasse. Já no projeto que fixou
a tarefa da segunda parte de Ser e Tempo: a destruição
da história da ontologia, Heidegger promete um estudo
do capítulo da doutrina do esquematismo para interpre­
tar então, a partir daí, a questão do tempo. Só assim se
mostraria porque a investigação da problemática da tem-
poralidade não conduzira Kant a resultados definitivos.
Heidegger aponta para um duplo elemento que impediu
uma verdadeira compreensão do tempo: “primeiro, de
modo geral, a omissão do problema do ser e, paralela­
mente, a falta de uma ontologia explícita do ser-aí, ou,
na linguagem kantiana, a falta de uma analítica ontológica
prévia da subjetividade do sujeito” (1).
O problema do esquematismo devia, segundo Heideg­
ger, ser posto à luz, para que a palavra “ser” pudesse ter
um sentido suscetível de legitimação fenomenal. Kant o
entrevira na Crítica da Razão Pura: “Este esquematismo
de nosso entendimento no que se refere aos fenômenos
e suas formas puras é uma arte oculta nas profundezas
da alma humana e cujo mecanismo verdadeiro será difícil
arrancar um dia à natureza, para expô-lo descoberto
diante de nossos olhos” (2).
É pela analítica existencial que Heidegger queria che­
gar ao fenômeno da temporalidade, para então abordar a
questão do sentido do ser. Para recolocar a questão do
sentido do ser, de modo expresso, era necessária uma
explicitação ontológica do ser-aí. Tal se fazia necessário
porque “compreensão do ser é em si mesma uma deter­
minação ontológica do ser-aí”. Porque a “característica

80
ôntica do ser-aí consiste no fato do ser ontológico” (3),
— o que não quer dizer que tenha elaborado uma onto­
logia, — e porque reservamos o nome ontologia para a
investigação explícita e teórica do sentido do ser, o ser-aí
assume uma característica pré-ontológica. Isto quer di­
zer: o ser-aí é ao modo da compreensão do ser. Todas
as ontologias que se ocupam de questões ontológicas não
características do ser-aí radicam, portanto, na estrutura
ôntica do ser-aí que incluí em si uma compreensão pré-
ontológica do ser. Por isso, o nome ontologia fundamen­
tal dado à analítica existencial. Esta ontologia fundamen­
tal é ponto de partida para qualquer problematização
ontológica.
O ser do ser-aí é a existência. A explicitação da es­
trutura ontológica da existência visa a compreensão da
constituição da existência. O conjunto das estruturas que
constituem a existência é a existencialidade. A analítica
destas estruturas tem o caráter da compreensão existen­
cial. Estas estruturas tem o nome de existenciais. Heideg­
ger os distingue radicalmente das categorias; estas são
determinações do ente que não é ser-aí (4). Os existen­
ciais tem caráter dinâmico, enquanto as categorias são
extáticas. Para as ontologias antigas toda a explicitação
ontológica era realizada tendo por referência o modelo
da ontologia das coisas intramundanas. As coisas pura­
mente subsistentes (Vorhandenheit) eram o elemento de­
terminante também para a compreensão da existência.
Heidegger problematiza esta tendência do homem de se
orientar sempre, na interrogação pelo ser dos entes, pelos
entes subsistentes, pela ontologia da coisa (5).
Em Ser e Tempo o Filósofo critica e rejeita particular­
mente a ontologia da coisa, enquanto modelo da compre­
ensão ontológica do homem. Mais tarde, sua crítica se
volta também contra o transcendentalismo enquanto este
reduz a compreensão do ser em geral ao horizonte da sub­
jetividade. A analítica existencial das estruturas do ser-aí
era o ponto de partida para qualquer questão ontológica.
Explicitamente, as análises se voltam contra o domínio da
ontologia da coisa, mas, implicitamente, já reside nelas
também a possibilidade de superação da posição da sub­
jetividade transcendental. Esta superação só se tornou
possível pela radicalização do princípio da subjetividade;

81
sobretudo enquanto este era representado pela fenome­
nología husserliana. O sentido positivo da analítica exis­
tencial, porém, e sua meta determinante eram a retomada
da questão do sentido do ser. Assim, a elaboração na
constituição ontológica do ser-aí se apresentava como um
caminho (6) para a ontologia, no sentido amplo que Hei-
degger dava ao termo para fugir de qualquer determina­
ção de escola (7).

2 O caminho que o Filósofo escolheu para a elabo­


ração da ontologia é o método fenomenológico. Emer­
gindo da explicitação das tarefas da ontologia a necessi­
dade de uma ontologia fundamental, cujo tema é a ana­
lítica existencial do ser-aí a ser realizada de tal modo
que levasse ao problema central da questão do sentido
do ser, qual será o método a comandar tal empresa? Hei-
degger responde com o método fenomenológico concreti­
zado na hermenêutica. A analítica do ser-aí será realiza­
da através da descrição fenomenológica como explicita­
ção. “O lógos da fenomenología do ser-aí possui o ca­
ráter do hermeneúein que anuncia à compreensão do ser,
incluso no ser-aí, o sentido autêntico do ser em geral e
as estruturas fundamentais de seu próprio ser” (8).
Heidegger assume o termo “hermenêutica” no senti­
do de ontologia da compreensão. Por isso sua fenome­
nología é uma ontologia hermenêutica. “Hermenêutica
não significa, em Ser e Tempo, nem a teoria da arte de
interpretar, nem a própria interpretação, antes, porém, a
tentativa de determinar primeiramente a essência da in­
terpretação, a partir do hermenêutico” (9). O hermenêu­
tico é, justamente, o elemento ontológico da compreen­
são, enquanto ela radica na própria existencialidade da
existência. O ser-aí é em si mesmo hermenêutico, en­
quanto nele reside uma pré-compreensão, fundamento de
toda posterior hermenêutica. A compreensão é o modo
de ser do ser-aí enquanto existência. A compreensão é
um existencial; é o existencial fundamental, em que resi­
de o próprio “aí”, a própria abertura, o próprio poder-ser
do ser-aí. O ser-aí é, portanto, em sí mesmo hermenêuti­
co, enquanto já sempre se movimenta numa compreen­
são de seu próprio ser. A compreensão prévia de sua exis­
tência já demonstra uma presença da idéia do ser em

82
geral. O sentido do ser que é buscado já é alcançado
pré-ontologicamente na compreensão do ser-aí. Isto é o
hermenêutico em si mesmo; dele irrompem todas as outras
dimensões da hermenêutica.
Os quatro sentidos que a hermenéutica recebe em
Ser e Tempo: — tudo o que se refere à explicitação, ela­
boração das condições de possibilidade de toda análise
ontológica, analítica da exfstencialidade da existência e
metodologia das ciências históricas do espirito — residem
no hermenêutico em si mesmo, que é a condição do ser-
aí que já sempre se compreende em seu ser. Toda a obra
Ser e Tempo quer ser, primariamente, urna analítica da
existencialidade da existência que é possível graças à
condição hermenêutica do próprio ser-aí. Desta analíti­
ca existencial emergem, então, os outros três sentidos: a
explicitação enquanto reside na própria compreensão; a
elaboração das condições de possibilidade de toda a aná­
lise ontológica, enquanto a analítica existencial desco­
bre o sentido do ser e as estruturas básicas do ser-aí
como horizonte para toda a pesquisa ontológica dos entes
que não são ser-aí; e, por fim, a metodologia das ciências
históricas, enquanto a analítica existencial elabora onto-
logicamente a historicidade do ser-aí como condição ônti-
ca da possibilidade da história (10).
É preciso atentar cuidadosamente para a dimensão
profunda do elemento hermenêutico na obra Ser e Tempo,
para se compreenderem as metamorfoses posteriores da
fenomenología enquanto ontologia hermenêutica. Apesar
de a fenomenología hermenêutica visar diretamente a ana­
lítica existencial, penetra ela mais profundamente na obra
de Heidegger; silenciosamente talvez, como a análise pos­
terior mostrará. Se em Ser e Tempo a fenomenología her­
menêutica visa a explicitação das estruturas existenciais
do ser-aí, analisando o homem enquanto abertura para o
ser, posteriormente, esta fenomenología hermenêutica, já
explícitamente ontologia hermenêutica, orientará sua aten­
ção para o ser, enquanto emerge na clareira que instau­
ra no homem.

3 Tanto na meditação sobre o sentido da fenomeno­


logía em geral, como em nossa presente consideração da
fenomenología hermenêutica, surpreende-nos uma nova

83
face, a partir da qual podemos falar da viravolta (Kehre)
ou do Segundo Heidegger. Esta mudança de visualização
em que o ser toma preponderância não é casual nem ar­
bitrária, como mostra explícitamente o estudo do círculo
hermenêutico e da viravolta. Ela já vem prevista em Ser
e Tempo. Repetidas vezes observa Heidegger que a ana­
lítica existencial somente pode ser plenamente sucedida
a partir da elaboração da própria questão do sentido do
ser.
Temos, já nas primeiras páginas, a afirmação de que:
“Assim, depende também a possibilidade do desenvolvi­
mento da analítica do ser-aí do exame prévio da questão
do sentido do ser em geral” (11). Isto se faz necessário
porque a compreensão que o ser-aí tem de seu ser impli­
ca constantemente numa certa compreensão do ser em
geral ou de uma idéia prévia do próprio ser.
Igualmente, quando analisa o problema dos existen­
ciais e das categorias, ele mostra que o ente, que a eles
corresponde, reclama em cada caso um tipo primordial­
mente diferente de interrogação: o ente é um quem (exis­
tencia) ou um que (subsistência no sentido mais lato). Só
se poderá tratar das relações entre estes dois modos que
formam os caracteres do ser quando urna vez explicitado
o horizonte da questão do ser (12).
Quando Heidegger fala do ser-aí como compreensão,
como projeto; quando afirma que “todo o projeto do ser-aí
em direção a suas possibilidades já antecipa uma compre­
ensão do ser” surge o mesmo problema. “Entretanto, a
explicitação última do sentido existencial desta compreen­
são do ser somente será atingida quando forem também
atingidos os limites de todo este trabalho, sobre o funda­
mento da interpretação temporal do ser” (13).
A elaboração da temporalidade do ser-aí, enquanto
quotidianeidade, historicidade e intratemporalidade, leva
Heidegger a insistir em que o ser-aí somente atinge sua
total transparência ontológica no horizonte da elucidação
do ser que não tem as características do ser-aí. “Todos
os seres disponíveis e subsistentes, porém, e tudo aquilo
de que podemos dizer “é”, além do ser-aí, somente po­
dem ser explicitados mediante urna suficiente elucidação
da idéia de ser em geral” (14). Portanto, enquanto não
for conquistada esta idéia de ser em geral a análise do

84
ser-aí será incompleta e obscura. “A análise existencial-
temporal (do ser-aí) exige, por sua vez, uma repetição re­
novada no âmbito da discussão básica do conceito de
ser” (15).
Ao falar da interpretação existencial da ciência, o Fi­
lósofo diz que ela somente pode ser realizada ‘‘quando o
sentido do ser e a “unidade” entre ser e verdade forem
esclarecidos a partir da temporalidade da existência” (16).
Mesmo a fenomenología apenas receberá sua verda­
deira dimensão como método, no interior do próprio mo­
vimento de redimensionamento da questão central do sen­
tido do ser e da exposição da “unidade” entre ser e ver­
dade (17).
A quotidianeidade também somente atingirá sua de­
limitação conceituai completa com a conquista do sentido
do ser em geral. “Todavia, pelo fato de com o nome quo­
tidianeidade, em última análise, nada mais se visa que a
temporalidade, e esta constituir o ser do ser-aí, a suficien­
te delimitação conceituai da quotidianeidade só pode ter su­
cesso no âmbito da discussão básica do sentido do ser em
geral e suas possíveis modificações” (18).
A discussão da questão da historicidade também
aponta para a necessidade da presença da questão do
sentido do ser em geral, para ser compreendida em sua
radicalidade. Ao discutir o modo de como a historicidade
pode ser compreendida filosoficamente, em sua diferen­
ça com o ôntico, e de como ela pode ser conceituada “ca-
tegorialmente”, Heidegger mostra que isto somente ocor­
re se for possível reduzir a uma unidade originária o “ônti­
co” e o “histórico”, unidade em que possam ser compa­
rados e diferenciados. Isto, por sua vez, somente é pos­
sível quando compreendido que a questão da historicida­
de é uma pergunta ontológica pela constituição ontoló-
gica de um ente historial; que a questão do ôntico é urna
pergunta ontológica pela constituição ontológica do ente
que não tem a característica do ser-aí, do subsistente no
sentido mais ampio; que o ôntico é apenas urna área do
ente. “A idéia do ser compreende “o ôntico” e “o histó­
rico”. É ela que deve poder ser “diferenciada generica­
mente” (19). Mas, Heidegger conclui: “O problema da
diferença entre o ôntico e o histórico somente pode ser
elaborado, como objeto de pesquisa, se ele mesmo se ga-

85
rantiu antes, mediante a elucidação fundamental-ontoló-
gica da questão do sentido do ser em geral, o fio con­
dutor” (20).
A questão da intratemporalidade novamente remete
para uma solução posterior: “A questão se de fato e como
ao tempo pertence um “ser”, porque e em que sentido o
chamamos de ente, somente pode ser respondida quan­
do se mostrou em que medida a própria temporalidade,
na totalidade de sua temporalização, torna possível algo
tal como compreensão do ser e abordagem de ente” (21).
A discussão sobre o que é o ser e o que é o tempo
novamente nos situa no horizonte da questão do sentido
do ser em geral. Dá-se o ser — não o ente — somente
se há verdade. E verdade somente é na medida e enquan­
to é ser-aí. Ser e verdade “são” co-originários. Somen­
te se pode questionar, concretamente, o que significa que
o ser “é”, já que deve ser distinguido de todo o ente,
quando estiver elucidado o sentido do ser e o alcance da
compreensão do ser em geral. Somente então se poderá
explicar, adequadamente, o que constitui o conceito de
uma ciência do ser enquanto tal, as suas possibilidades
e modalidades. A delimitação de uma tal pesquisa e de
sua verdade desencadeará a determinação ontológica da
pesquisa que é descobrimento do ente e de sua verda­
de” (22). “Tem (o tempo) afinal um “ser” ? E se não tiver,
é ele, então, um fantasma ou “mais ente” que qualquer
outro ente possível? A análise que progride na direção
de tais questões se chocará com as mesmas “barreiras”
que já se ergueram para a provisória discussão da uni­
dade de verdade e ser” (23). Portanto, a discussão do
que “é ” ser e do que “é” tempo também é remetida para
o momento da elucidação do sentido do ser em geral.
No último parágrafo de Ser e Tempo Heidegger trans­
fere ainda uma vez a solução da analítica existencial e de
outras perguntas básicas para o horizonte da resposta
ao problema do sentido do ser. “A analítica temática da
existência, por sua vez, necessita primeiro da luz que
emana da idéia do ser em geral, a ser antes elucida­
da” (24). “Será mesmo possível procurar a resposta, en­
quanto a questão do sentido do ser em geral permanece
obscura e informulada?” (25).

86
Esta longa série de procrastinações que emergem dos
diversos capítulos de Ser e Tempo, mostram a incomple-
tude da fenomenología hermenêutica, animam a procurar
outros aspectos da fenomenología hermenêutica que po­
sam trazer nova luz sobre as análises feitas em Ser e Tem­
po. Todos estes textos vem igualmente mostrar que a feno­
menología só alcança seu pleno desdobramento como onto­
logia hermenêutica, como interpretação do ser. Se exami­
narmos apenas as passagens inventariadas, teremos os se­
guintes problemas a serem explicitados posteriormente: as
relações entre ser-aí e os outros entes; a explicitação
última do sentido existencial da compreensão: o proble­
ma dos entes subsistentes e disponíveis; a analítica exis-
tencial-temporal; o problema da interpretação existencial
da ciência; o desenvolvimento do conceito de fenomenolo­
gía; a suficiente delimitação conceituai da quotidianei-
dade; o problema da diferença entre o ôntico e o histó­
rico; o problema da intratemporalidade; o fato e o modo
de como o ser faz parte do tempo. A própria questão do
“ser” de Ser e Tempo é remetida para o horizonte da elu­
cidação do sentido do ser em geral.

4 Ainda que a filosofia não se esgote na fenomeno­


logía hermenêutica e ainda que o Segundo Heidegger, de­
pois da viravolta, tenha-se preocupado com o questio­
namento do sentido do ser, sobretudo na História da Filo­
sofia, podemos, contudo, descobrir nos anos posteriores
a 1930 referências a Ser e Tempo que abordam o proble­
ma da fenomenología hermenêutica. O horizonte destas
auto-interpretações lança nova luz sobre a presença e
análise do homem no pensamento de Heidegger. A feno­
menología hermenêutica está ocultamente presente nas
discussões sobre as relações entre ser e homem. É verda­
de, que o ponto de partida, o elemento determinante é,
agora, explícitamente, o ser. A dimensão hermenêutica do
homem é um dom do ser. Todas as dimensões básicas de
Ser e Tempo podem ser repensadas a partir da problemáti­
ca da viravolta; por isso todo o Segundo Heidegger deve
ser compreendido a partir de Ser e Tempo.
O texto da Introdução, que Heidegger retoma no fim
de seu livro, mantém esta abertura de horizontes e afirma
a presença necessária de Ser e Tempo na obra posterior:

87
“A filosofia é ontologia fenomenológica universal, qué
parte da hermenéutica do ser-aí; esta, enquanto analítica
da existência, dá o fio condutor de toda problemática filo­
sófica, fundando-a sobre esta existência, da qual toda
problemática irrompe e sobre a qual toda a problemática
repercute” (26).
A dimensão fenomenológica universal da ontologia já
foi antes analisada. Mas, esta ontologia reside e parte da
hermenéutica. Por isso a fenomenología é ontologia her­
menêutica. O desvelamento do hermenêutico no ser-aí,
pela analítica existencial, é o ponto de partida necessário
para a ontologia. Este principio caracteriza toda a obra
de Heidegger. Toda a concepção das estruturas do ser-aí,
do problema da verdade, do ser e do tempo, das outras
ontologias, e mesmo o problema de Deus, somente podem
ser visualizados dentro da perspectiva que Ser e Tempo
estende sobre todo o pensamento de Heidegger. Tam­
bém o Segundo Heidegger, em todas as suas considera­
ções e projetos, está ligado ao princípio hermenêutico.
Por isso sua concepção de ser, sua posição relativa ao
vínculo entre ser e homem, tomam um cunho próprio,
que não pode ser confundido com outras posições da filo­
sofia atual. O método fenomenológico marcou sua onto­
logia com o caráter hermenêutico.

5 Se da analítica existencial emerge toda a proble­


mática e nela repercute, então sempre permanecerá ne­
cessário o caminho traçado em Ser e Tempo para quem
quiser inspirar-se na questão do ser. Por isso o interesse
em desvendar, no Segundo Heidegger, a presença indis­
pensável do homem no redimensionamento da questão
do sentido do ser. Aqui não se trata mais de uma análise
que se efetua no horizonte de Ser e Tempo com a qual
Heidegger explorara as estruturas do ser-aí, para captar
fenomenologicamente a constituição do “aí”, como com­
preensão, abertura, lugar da transcendência; na viravolta
a presença omnicompreensiva do ser revela as estruturas
do homem enquanto o ser nele as instaura, como escuta,
clareira. Há, sem dúvida, uma presença hermenêutica,
que Heidegger revela, pela primeira vez explícitamente,
no livro A Caminho da Linguagem, precedida e acompa­
nhada pelos sinais da viravolta.

88
Já em sua obra intitulada Nietzsche, confessa a ne­
cessidade de instaurar outro horizonte, para ser possível
auscultar o impensado na História da Filosofia, corres­
pondendo mediante a destruição ao que nela vem oculto.
Diz textualmente: “A tradição da verdade sobre o ente,
que se desenvolve como “metafísica”, se desdobra numa
acumulação e obstrução da originária essência do ser,
que a si mesmo não mais conhece. Nisto reside a neces­
sidade da destruição, tão logo se tenha tornado necessá­
rio um pensamento da verdade do ser (confer. Ser e
Tempo). Mas esta destruição, assim como a “fenomeno-
logia” e toda interrogação hermenêutico-transcendental,
ainda não é pensada como história do ser” (27).
Em Ser e Tempo a interrogação gira em torno do ser
da verdade, enquanto abertura, compreensão do ser-aí.
O pensamento da verdade do ser, coincide com a história
do ser e se dirige à abertura e compreensão que o ser
instaura no homem. Então, emerge a questão do “ser e
sua verdade na relação com o homem” (28)- Neste âm­
bito a fenomenología e a hermenêutica devem passar por
uma transformação. A analítica do ser-aí ainda apresenta
traços acentuados do pensamento transcendental, ainda
que a intenção seja superá-lo. A fenomenología herme­
nêutica pode ser pensada na viravolta como história do
ser, onde a interrogação transcendental, “cujo caráter
de horizonte é apenas a face de um aberto que nos en­
volve voltada para nós” (29), cede seu lugar ao acontecer
do ser que instaura e funda a transcendentalidade. O ca­
minho que levou Heidegger até aqui passou pelo pensa­
mento da subjetividade da Filosofia Moderna, superando-
o pela radicalização da fenomenología husserliana.
No diálogo, citado anteriormente, com o professor ja­
ponês, Heidegger observa: "Não terá passado desaperce­
bido que não emprego mais, em meus escritos posterio­
res a Ser e Tempo, os nomes “hermenêutica” e “hermenêu­
tico” . .. “Abandonei um ponto de vista anterior, não para
trocá-lo por um outro, mas, porque a posição de outrora
foi apenas uma interrupção na caminhada. O permanen­
te no pensamento é o caminho. E os caminhos do pensa­
mento escondem em si a possibilidade misteriosa de ne­
les podermos avançar retrocedendo, de o próprio caminho
de retorno nos conduzir para frente” (30). A fenomenolo-

89
gia hermenêutica representa, portanto, uma etapa no pen­
samento de Heidegger. Esta etapa se comensura com o
Primeiro Heidegger. Mas, na viravolta, esta etapa retorna
situando-se apenas num outro horizonte.

5. 1 O Filósofo confessa o motivo que o levou a


deixar de lado os nomes hermenêutica e hermenêutico.
“Isto não aconteceu, como muitos pensam, para negar o
significado da fenomenología, mas para deixar o caminho
de meu pensamento numa região sem nome” (31). Con­
fessa, porém, que diante do público não se consegue pas­
sar sem nome. Então procura mostrar que a utilização da
palavra hermenêutica “não foi arbitrária, mas justamente
própria para clarificar minha experiência com a fenome­
nología em suas intenções” (32). Esta análise leva-o para
além do sentido ontológico da hermenêutica em Ser e
Tempo. Condu-lo para o coração da temática que pola­
riza os interesses do Segundo Heidegger.
“A expressão “hermenêutico” se deriva, diz Heideg­
ger, do verbo grego hermeneúein. Este se liga ao subs­
tantivo hermeneús. Através de um jogo mental, que mais
se impõe que o rigor da ciência, o substantivo pode ser
ligado ao nome do deus Hermes. Hermes é o mensageiro
dos deuses. Cabe a ele trazer a mensagem do destino;
Hermeneúein é aquela exposição que comunica à medida
em que tem possibilidades de escutar uma mensagem.
Tal exposição se torna explicação daquilo que já vem dito
pelos poetas os quais, segundo a palavra de Sócrates no
diálogo de Platão lon (33), “são mensageiros dos deuses” :
hermenes eisin tõn theõn” (34). “Através do que foi dito
se torna claro que o hermenêutico não é primeiramente a
explicação, mas, antes disto, já o trazer uma mensagem
e comunicação” (35). Heidegger diz que usou a palavra
hermenêutico neste sentido mais originário para “carac­
terizar, com seu auxílio, o pensamento fenomenológico,
que lhe abriu o caminho para Ser e Tempo. Tratava-se
e trata-se ainda de levar o ser do ente a se manifestar; é
claro que não ao modo da metafísica, mas de tal maneira,
que o próprio ser se manifeste como fenômeno. O pró­
prio ser, — significa: presença do que se presenta, isto é,
a diferença ontológica de ambos a partir da unidade sim­
ples. É ela que assume o homem para seu acontecer

90
(wesen) enquanto fenômeno. 0 homem acontece então
como homem na medida em que corresponde à inspira­
ção da diferença ontológica e, assim, a comunica na men­
sagem que dela procede. O que prevalece e sustenta a
vinculação do ser humano com a diferença ontológica é
desta maneira a linguagem. Ela determina a relação her­
menêutica” (36).

5. 2 Estas observações de Heidegger, que são ex­


pressas através do jogo engenhoso com os radicais de
palavras que penosamente se transpõe para o vernáculo,
apresentam-nos a hermenêutica como estendendo-se, qual
arco, sobre toda a obra do Filósofo. O jogo mental que
se anuncia na aproximação, etimológicamente duvidosa,
entre a palavra hermeneúein e o deus Hermes, permite a
Heidegger dizer que, aquilo que por toda parte surge em
seus últimos trabalhos, já se escondia em Ser e Tempo.
A analítica existencial que desvelaria as estruturas do ser-
aí, para então colocar a questão do sentido do ser, pro­
cedia como a fenomenología hermenêutica. Mas, esta fe­
nomenología não deixaria de ser hermenêutica, ao se ten­
tar a abordagem da questão do sentido do ser em geral.
Ela apenas tornaria explícito seu caráter de ontologia her­
menêutica. O hermenêutico em Ser e Tempo, põe a tônica
na abertura do ser-aí, no ser da verdade, enquanto as obras
posteriores se concentram na verdade do ser, isto é, na
abertura que o próprio ser instaura no homem. Esta aber­
tura é, em ambos os casos, a dimensão hermenêutica. Atra­
vés dela se dá a manifestação do ser do ente. Em Ser e
Tempo as considerações se concentram sobre o “aí”, en­
quanto lugar em que o ser se manifesta. Depois, a medi­
tação se volta para aquele que é a fonte do “aí”. O sentido
do ser, visado como meta, é o próprio ser enquanto instaura
o “aí” no homem, como clareira em que o ser se mani­
festa; o sentido do ser é a verdade do ser. Heidegger
tratou primeiro de analisar o lugar em que se manifesta o
ser enquanto fenômeno no sentido fenomenológico, em
sua relação com o lugar de sua manifestação. A manifes­
tação hermenêutica do ser enquanto fenômeno que o ho­
mem realiza é a própria mensagem que recebe do ser.
Se o homem realiza um papel hermenêutico é porque o
ser faz com que comunique e assim possibilita a comuni-

«)1
cação de sua mensagem. Heidegger explora a carga se­
mântica do verbo “ wesen” , que precisamente exprime a
dimensão fenomenológica do acontecer do próprio ser. O
ser acontece como fenômeno enquanto presença do que
se presenta, enquanto clareira do que se manifesta; sem­
pre, porém, se oculta como unidade simples de que emer­
ge a diferença ontológica. O Filósofo afirma que o que
determina a vinculação hermenêutica do homem com o
acontecer do ser, enquanto fenômeno, é a linguagem. Em
outra passagem diz: “Naquela locução (a linguagem é a
casa do ser) não viso o ser do ente metafisicamente re­
presentado, mas o acontecer fenomenológico (wesen) do
ser, mais exatamente, a diferença ontológica entre ser e
ente. Esta diferença ontológica, entretanto, sob o ponto
de vista do ser digno de ser pensado” (37). Para Heideg­
ger o ser acontece como fenômeno na linguagem. Por
isso ela é a casa do ser. Isto toma seu sentido próprio
quando temos presente que ele distingue “entre “ser" en­
quanto “ser do ente” e “ser” enquanto “ser” sob o ponto
de vista do sentido que lhe é próprio, isto quer dizer, sob
o ponto de vista da verdade (clareira) do ser (38). Este
acontecer do ser, sob o ponto de vista de seu sentido, é o
que se busca, segundo o projeto de Ser e Tempo, no acon­
tecer do tempo.
Quando Heidegger fala da vinculação hermenêutica do
homem com o acontecer do ser como fenômeno, não fala
de um vínculo no sentido de relação. O fato de o homem
estar numa vinculação hermenêutica, é assim explicado:
“A palavra “vinculação” procura dizer que o homem é
utilizado em sua essência, que ele, enquanto acontece
como homem, pertence a um “uso”, que o solicita” (39).
Esta solicitação é hermenêutica. Isto quer dizer que o ho­
mem é solicitado “para trazer uma comunicação”, “para
guardar uma mensagem” (40).
“O homem está “numa vinculação” diz o mesmo que:
o homem acontece como homem “num uso” que o chama
para guardar a diferença ontológica que não se deixa elu­
cidar nem a partir da presença, nem a partir do que se
presenta, nem a partir da relação mútua entre ambos. Por­
que somente a diferença ontológica desdobra a clarida­
de, isto é, a clareira, na qual o que se presenta enquanto
tal e a presença podem ser distinguidos pelo homem que

92
pela sua própria essência está na vinculação, isto é, no
uso da diferença ontológica. Por isso também não pode­
mos mais dizer: vinculação com a diferença ontológica,
pois, ela não é nenhum objeto da representação, mas o
imperar do “uso” (41).
Estas observações resumem muitas páginas. Não é
preocupação nossa explorar as filigranas da linguagem.
Interessa-nos, diretamente, ver nestas análises a nova di­
mensão que a fenomenología hermenêutica atinge no Se­
gundo Heidegger. O homem é efetivamente colocado a
serviço da manifestação do ser. É seu mensageiro. É usa­
do para que o ser se possa manifestar enquanto fenômeno.
Mostrem estas observações com as quais o Filósofo pro­
cura manifestar a multiplicidade de ângulos que exprimem
— aqui, do ponto de vista hermenêutico — , sua única
preocupação: o sentido do ser, a verdade do ser, a clarei­
ra do ser, a manifestação do ser, o ser enquanto fenôme­
no no sentido fenomenológico, acontecendo como vela-
mento e desvelamento (42). O método fenomenológico
visa abrir caminho para esta questão: Esta a razão porque
a fenomenología deve ser vista como ontologia herme­
nêutica (43).

93
NOTAS — 3
1. SZ 24.
2. SZ 23.
3. SZ 12.
4. SZ 44.
5. SZ 437.
6. SZ 436.
7. SZ 27.
8. SZ 37. Desta maneira, a fenomenología é ontologia fundamental
em dols sentidos: urna vez enquanto analisa as estrutu­
ras fundamentais do ser-aí e outra enquanto busca o
sentido do ser que então será o fundamento de qualquer
ontologia.
9. US 98.
10. SZ 37-38.
11. SZ 13.
12. SZ 45.
13. SZ 147.
14. SZ 333.
15. SZ 333.
16. SZ 357.
17. SZ 357.
18. SZ 372.
19. SZ 403.
20. SZ 403.
21. SZ 406.
22. SZ 230.
23. SZ 420. Estas questões serão objeto de exame e interpretação
da conferência Tempo e Ser publicada em: Zur Sache
des Denkens.
24. SZ 436.
25. SZ 38 e 437.
26. SZ 38 e 436.
27. Nietzsche II, 415.
28. E¡n Vorwort, 401.
29. Gelassenheit, 39.
30. US 99.
31. US 131.
32. US 120.
33. Platão — Ion 534 e.
34. US 121.
35. US 122.
36. US 122.
37. US 118.
38. US 110.
39. US 125.
40. US 126.
41. US 126.
42. Â base de todas estas expressões está o modelo binário em que
se fundamenta o método fenomenológico. Vide capítulo quinto.
43. A problemática estudada no presente capítulo pressupõe a inter­
pretação heideggeriana do círculo hermenêutico e da constitui­
ção circular do ser-aí. Para isto vide minha tese de livre-docên-
cia: Compreensão e finitude — Estrutura e movimento da inter­
rogação heideggeriana, Ética Impressora, Porto Alegre 1967.
II
INTERPRETAÇÃO E CRITICA
4
A AMBIGUIDADE DO MÉTODO
HEIDEGGERIANO
E OS
MÉTODOS FILOSÓFICOS ATUAIS
1 Nas discussões metodológicas da filosofia atual
impõe-se, cada vez com mais clareza, o domínio do méto-
to dialético de um lado e do método lógico-analitico de
outro. O primeiro se perfila sob a influência sempre maior
das ciências sociais, sobretudo da sociologia; o segundo
Se apoia nas conquistas no campo da linguística, nos pro­
cessos de formalização e nos domínios da lógica. A po­
larização entre sociologism o dialético e positivismo lógico
parece cada vez maior. E, para um futuro não remoto,
anuncia-se uma “perfeita disjunção na oposição entre
dialética e lógica”. “Não há dúvida que se destacam dos
dogmáticos de viseira, de um e de outro arraial, aqueles
que têm em mira uma “síntese”. Mas, justamente esta meta
pode ser unicamente estabelecida com base na idéia de
que lógica e dialética juntas constituem o todo da filoso­
fia que hoje ainda merece ser discutida. O que não se
resolve nesta alternativa, ou não é filosofia ou é “de on­
tem” (1).
Heidegger é por muitos julgado como um filósofo “de
ontem” ; isto se dá particularmente por causa de seu mé­
todo. É relativamente fácil distinguir entre o método feno-
menológico como Husserl o entendia e as pretensões me­
todológicas dos analistas lógicos da linguagem. O primei­
ro quer atingir a verdade mediante uma análise crítica da
intencionalidade da consciência. A analítica da lingua­
gem procura a verdade pela análise crítica da linguagem.
Trata-se do deslocamento de interesses, de uma área para
a outra, com o qual se prometem melhores resultados e
mais rigor sob o ponto de vista do método. Mas a distân­
cia que separa as duas posturas metodológicas é enorme.
A oposição chega a se basear no arbítrio; depende de
motivações. Exemplo para isto: quando Merleau-Ponty
perguntou a Ryle: "Não é nosso programa o mesmo?”,
este respondeu: “Espero que não” (2).

98
O método fenomenológico, assim como o entende
Heidegger, é ainda mais radicalmente recusado pelos ana­
listas da linguagem; nem mesmo um tal diálogo sobre as
pretensões de ambos é possível. A fenomenología, assim
como Heidegger a formula sob o ponto de vista do méto­
do, parece ser definitivamente “de ontem” para os que
se ocupam em pôr clareza e ordem nas proposições filo­
sóficas.

1 .1 Já a determinação inicial do método fenome­


nológico leva Heidegger a delimitar seus contornos de
maneira tal que fica explícito: a) a verdade que busca o
método fenomenológico não se pode comparar de manei­
ra alguma com a verdade que resulta como conseqüência
do método dialético; b) nem é a verdade que se pretende
atingir com a argumentação lógico-formal, a certeza como
retitude e exatidão. O § 7 de Ser e Tempo o diz clara­
mente: a verdade é o desvelamento daquilo que a partir
de si mesmo se mostra velado. O método fenomenológi­
co exige o passo de volta, para trás dos fenômenos no
sentido vulgar, manipulados pela lógica; procura o âmbi­
to em que se dá o fenômeno no sentido fenomenológico
que deve ser levado à manifestação. Disto decorre como
conseqüência interna ao próprio método uma ambiguida­
de que já se revela de maneira clara no fato de o filósofo
só poder desenvolver as análises com seu método, utili­
zando a linguagem que é controlada pelas regras da ló­
gica mesma. Ao nível do próprio discurso se insinua uma
ambiguidade que perpassará todas as proposições. Des­
ta maneira, a própria determinação do método fenomeno­
lógico heideggeriano parece fugir, em última instância, ao
controle da lógica das proposições. E não apenas isto: a
lógica mesma torna-se ambivalente; Heidegger pretende
descobrir nela dois níveis; o nível mais profundo determi­
na e condiciona o outro. É um círculo que vem afirma­
do na própria lógica: Ela que deve controlar as proposi­
ções só o pode na medida em que pressupõe o nível pro­
fundo destas mesmas proposições como condição de sua
própria possibilidade. Esta ambiguidade do método fe­
nomenológico, como vem definido provisoriamente em Ser
e Tempo, perpassará toda a obra de Heidegger.

99
Mas a frustração da lógica das proposições, ou me­
lhor a problematização com que ela nada pode fazer, não
deve levar a urna tentativa de interpretar dialeticamente
o método heideggeriano. Nada há em seus pressupostos
que se aproxime do processo dialético, sobretudo de sua
necessidade e movimento teleológico. As proposições cen­
trais da obra de Heidegger não são proposições especula-
tivo-dialéticas no sentido hegeliano.

2 V\Jittgenstein, dois anos após a publicação de


Ser e Tempo, já suspeitava de que problema fundamental
se tratava no questionamento heideggeriano. Numa bre­
ve observação diz o autor do Tractatus: “Posso imaginar
o que Heidegger quer dizer com ser e angústia. O ho­
mem tem o instinto de se jogar contra os limites da lin­
guagem” (3). Contra as tendências do fundador da feno­
menología, Heidegger liga o movimento básico de sua
obra-prima ao problema da linguagem. Esta assume papel
condutor na elaboração de seu método e na realização da
analítica existencial. No método fenomenológico, como
“interpretação ou hermenêutica universal”, como revisão
crítica dos temas centrais transmitidos pela tradição filo­
sófica através da linguagem, como destruição e revolvi-
mento do chão lingüístico da metafísica ocidental, se des­
cobre um indisfarçável projeto de analítica da linguagem.
Mas como o método fenomenológico visa o redimensiona­
mento da questão do ser, não através de uma abstrata teo­
ria do ser, nem numa pesquisa historiográfica de questões
ontológicas, porém numa imediata proximidade com a pra­
xis humana, como existência e facticidade, a linguagem
— o sentido, a denotação, — não é analisada num siste­
ma fechado de referências, mas ao nível da historicidade.
Se no método dialético podemos encontrar uma certa mís­
tica teleo-lógica (teleo-trópica) da palavra; no método do
positivismo, uma certa tecno-lógica da linguagem, encon­
tramos no método fenomenológico de Heidegger uma cer­
ta onto-lógica do dizer, isto é, uma explicitação da dimen­
são pré-ontológica da linguagem, ligada à compreensão
do mundo como horizonte da transcendência.
O método fenomenológico, enquanto método herme­
nêutico lingüístico, não se desliga da existência concre­
ta, nem da carga pré-ontológica que na existência já vem

100
tivismo lógico, sempre é um excesso que a clareza e a
linearidade da linguagem proíbem e para o método dialé­
tico é muito pouco porque omite a pretensão de atingir o
absoluto.
Os dois métodos que monopolizam as atenções na
crista da onda de sua atualidade, tem razão, em suas crí­
ticas contra o método fenomenológico heideggeriano. A
ambigüidade em que nele aparece a lógica: de um lado,
se afirma que falha o essencial, porque vem presa ao fenô­
meno no sentido vulgar; de outro, subsiste, porém, a abso­
luta necessidade de seu uso para poder-se dizer alguma
coisa daquele âmbito em que se vela o fenômeno no sen­
tido fenomenológico. Tal ambigüidade está lonae da trans­
parência que evitaria confundir questões filosóficas verda­
deiras com aquelas que são apenas questões nascidas da
linguagem. Os que defendem o método dialético apontam
para a distância que separa o método fenomenológico da
história e da praxis: por mais que se analise a quotidianei-
dade, a existência, a angústia, a preocupação, sempre a
analítica existencial parece manter-se longe do concreto
acontecer histórico e das questões que agitam a socieda­
de. Tem-se a impressão de assistir ao desfile de esque­
mas, arquétipos; de estar caminhando num céu rarefeito
em que são decompostos e articulados os momentos es­
senciais do acontecer humano, num ensaio que nunca
chega ao confronto definitivo com a vida.
No entanto, ambos os métodos assim flagrados em
sua crítica, movem-se sobre pressupostos que eles pró­
prios não são capazes de explicitar; e estes necessaria­
mente devem ser respeitados já que são condições de sua
própria possibilidade. Tal dependência não diminui a im­
portância e o porte de seu trabalho e de seus resultados,
tanto no âmbito da clarificação da verdade na linguagem
para a comunicação intersubjetiva, como no âmbito da
operacionalização da verdade empírica para a praxis hu­
mana. Estes pressupostos devem, porém, ser explicita­
dos, se a filosofia não quiser renunciar à sua tarefa de
buscar metódica, crítica e sistematicamente, as razões
últimas. Esta explicitação não será certamente uma ex­
plicação positiva nem se resumirá em “definições opera-

101
donáis” ; ela somente se dará por um processo de apro­
ximações que não podem ser legitimadas por demonstra­
ções e argumentos apodícticos. A clareza metódica será
sempre, em face dos outros métodos, turbada por um con­
teúdo nunca esgotável nas proposições. É isto que dá
esta característica ambivalente ao método fenomenoló­
gico como Heidegger o compreende.

3 Urna vez situado no contexto das discussões atuais,


passamos à análise resumida de certas particularidades e
elementos distintivos do método fenomenológico heideg-
geriano. Desta maneira será possível diferenciá-lo dos
demais métodos que em filosofia tem hoje vigência.
Não é fácil atingir um ponto de vista a partir do qual
se possa refletir, fora da imanência da obra, sobre o pro­
blema do método em Heidegger. O Filósofo lhe dá uma
importância muito grande; uma verdadeira exposição, po­
rém, nunca apresentou. Há apenas a apresentação pro­
visória do § 7 de Ser e Tempo. Por isso resta, como úni­
co recurso a prometer um resultado apreciável, destacar
certos momentos de sua análise da coisa mesma, em que,
de um modo ou outro, se surpreendem modos de proceder
que assinalam o método fenomenológico e mostram seu
caráter ambíguo. Mas, fugindo da simples repetição da
linguagem que o filósofo utiliza para examinar seu objeto,
corre-se o risco de cair numa espécie de metalinguagem
descritiva da linguagem-objeto do Filósofo, repetindo-se
certamente com muito menos felicidade o que o autor
disse, sem, no entanto, conseguir destacar os aspectos re­
levantes do método. Além disso, as observações metalin-
güísticas (metateoréticas) de Heidegger vão, de maneira
tão íntima, fundidas com a análise da coisa, que o tentar
separar implica em perder uma dimensão importante de
ambas. Talvez o controle de certas implicações teoréti­
cas e gnosiológicas de seu método possa servir de instân­
cia corretiva. Claro é desde o início que o Filósofo diz da
fenomenología: “ Fenomenología significa primariamente
um conceito de método. Caracteriza o como e não o quê.
Quanto mais autêntico este conceito, ( . . . ) tanto mais ori­
ginariamente está ele enraizado na discussão com as coi­
sas mesmas” (4).

102
O que penso ser o fator determinante e individuali-
zador do método fenomenológico é a descoberta que Hei­
degger fez de que existe um prim ado da tendência para o
encobrimento (5). Se não levar em consideração tal es­
tado de coisas a análise filosófica corre o risco de ser in­
gênua e de falharem seus propósitos. Esta convicção do
Filósofo assume um papel importante na auto-compreen-
são de seu método. Ao invés de pensar, como Husserl e
outros filósofos, que diante de nós a realidade se estende
à espera da rede de nossos recursos metodológicos que
a aprisionem, Heidegger afirma que o homem e o essencial
nas coisas tendem para o disfarce ou estão efetivamente
encobertos. Por isso, ele se volta para o como, buscando
o modo de levar o objeto de sua investigação à revelação.
No começo o Filósofo ainda fala do “ser dado” (Gegeben-
sein)-, depois já se trata do “encontro” (Begegnung)-, mais
adiante já surge o termo “descoberta” (Entdecktheit)-, pa­
ralelamente se usa a palavra “revelação” (Erschlossenheit);
enfim passa a dominar o “desvelamento” (Unverborge-
nheit)\ às vezes este último vem estilizado no termo “cla­
reira” (Lichtung). Todos estes termos estão afinal ligados
à palavra phaínesthai. Trata-se sempre de um empenho
para abrir um ámbito em que aquilo que está velado se
mostra a partir de si mesmo. É o ser que se deve revelar
sob o ente.
Mas, já que o ser somente se revela sob o ente, num
retorno sobre o ser-ai, torna-se decisivo perseguir e pôr a
nu os modos de dissimulação em que primeiramente e o
mais das vezes se situa o próprio ser-aí, na sua cotidia-
neidade. Heidegger descobre o ser-aí no movimento de
fuga de si mesmo, numa tentativa de não se assumir na
sua totalidade, como preocupação, que se articula em
existência, facticidade e decaída ou ser-adiante-de-si, ¡á-
ser-em e ¡unto-dos-entes. O ser-aí se vela para si mesmo,
encobre suas possibilidades e assim barra a possibilida­
de de uma revelação de ser. A atitude do Filósofo, para
contornar a fuga do ser-aí de si mesmo, é partir da análi­
se da quotidianeidade e descobrir nela o homem no movi­
mento de fuga. Somente, urna vez realizada a analítica do
ser-aí quotidiano, se descobre como o ser-aí pode assu-
mir-se, pela decisão enérgica, na sua verdade, para des­
cobrir que sempre está simultaneamente na não-verdade.

103
Este interesse pela não-verdade é o sinal da fuga de si
mesmo.
O existencial em que se concentra a possibilidade de
sucesso do método fenomenológico é o da compreensão.
Desde sempre o homem é compreensão, compreende-se
em seu ser e nele já antecipa urna implícita compreensão
de ser em geral. O que importa é explicitar esta compre­
ensão. É através déla que se atinge, não apenas o ser-aí
numa instância decisiva, mas ao mesmo tempo, “ a trans­
parência metódica do processo compreensivo-explicativo
da interpretação do ser” (6).
Por que reside no compreender a possibilidade da
transparência metódica do método fenomenológico?

4 Detenhamo-nos em Ser e Tempo. Quando se exa­


mina a obra em seus detalhes, nos recursos técnicos de
sua composição, nos diversos níveis de exposição, nas
idas e vindas de suas análises, depara-se com uma espé­
cie de astucia que o filósofo aguça cada vez mais, para
contornar metodicamente a tendência para o encobrimen­
to que espreita no objeto do método fenomenológico: o
ser e o ser-aí. É uma espécie de habilidade do analista
que dispõe de tal maneira as antenas do seu método e as
controla, que o que de si se encobre se mostra. Para isto
é decisiva a hipótese da compreensão como existencial,
que pode ser metodicamente explicitada em sua articula­
ção. É por ela que o ser-aí sempre está aberto, antecipa um
sentido que o orienta, ainda que só o faça voltando-lhe
sempre as costas, em fuga de si mesmo, por não suportar
a estrutura nadificante que acompanha a preocupação.
Na compreensão, como Heidegger a estiliza em Ser
e Tempo, nos §§ 31 e 32 esboça-se a matriz do método fe­
nomenológico. Pois, pela sua explicitação se descobre
que a compreensão possui uma estrutura em que se ante­
cipa o sentido. Ela se compõe de aquisição prévia, vista
prévia e antecipação. Desta estrutura explicitada nasce a
situação hermenêutica em que é possível apoiar-se para
a efetivação do projeto que se tem em vista. Aqui, porém,
situa-se o instante que é preciso deter para apanhar a re­
flexão do filósofo em seus implícitos pressupostos meto­
dológicos. A análise realizada nos §§ 31 e 32 parece pu­
ramente voltada para a descoberta da estrutura do exis-

104
tendal “compreensão”. Este é tratado pela linguagem-
objeto. O Filósofo descreve algo. No § 63, entretanto,
ocorre urna parada metodológica, imposta pela circulari­
dade do método fenomenológico. Nela Heidegger realiza
uma reflexão metateorética, que como metalinguagem se
distancia do objeto ser-aí, para se deter na importância
metodológica daquilo que foi exposto na analítica da com­
preensão nos §§ 31 e 32. Desta maneira se revela então
toda a envergadura do círculo inevitável para quem utiliza
o método fenomenológico como Heidegger o faz, partindo
implicitamente da compreensão. O Filósofo só pôde an­
tecipar uma exposição provisória do método (§ 7) porque
os dados para a compreensão mais profunda do método
só estariam disponíveis após a explicitação do ser-aí quo­
tidiano. Portanto, o método é compreendido quando já se
analisou com ele aquilo para o qual foi elaborado. A cir­
cularidade está em que se pressuponha aquilo que deve
ser atingido pelo método; o caminho que conduz ao obje­
to só pode ser trilhado se pressuposto o conhecimento
do objeto. Toda a explicitação do ser-aí quotidiano repou­
sa, portanto, num pressuposto. O caráter metódico da
analítica existencial não se evidencia ainda na exposição
provisória do método fenomenológico; só na segunda sec-
ção de Ser e Tempo a explicitação do método revela sua
situação e alcance.

4. 1 Resumamos, rapidamente, o caminho do Filó­


sofo: Ele quer expor o sentido da preocupação, que é a
temporalidade. Mas o projeto de atingir a temporalidade
como sentido ontológico do ser-aí é uma antecipação do
sentido. No § 32 (7), Heidegger dissera: “o círculo da
compreensão pertence à estrutura do sentido”. Então
também a busca do sentido da preocupação deve mover­
se no círculo hermenêutico. Dentro deste círculo se terá
que atingir uma situação hermenêutica que permite a in­
terpretação do sentido da preocupação. Somente então
suas ‘‘antecipações estarão fundadas na conformidade com
“as coisas mesmas” (8). A análise da compreensão, na
analítica do ser-aí quotidiano, já supunha o método, mas
com esta “clarificação da compreensão mesma se garan­
tiu a transparência metódica do processo compreensivo-
explicativo da interpretação do ser” , diz Heidegger (9),

105
ao encerrar a analítica da quotidianeidade. As razões da
análise da compreensão, na primeira secção de Ser e
Tempo, contudo, não são puramente temáticas, nelas se
esconde um interesse metodológico, que é explícitamente
referido no § 63.
No início do § 45, a situação hermenêutica é introdu­
zida como conceito válido para o método fenomenológico
que Heidegger já utilizara em toda a primeira secção,
pressupondo-o provisoriamente. A situação hermenêutica
é ligada com a aquisição prévia, vista prévia e antecipa­
ção, instâncias características da explicitação (interpreta­
ção). Estas três componentes da explicitação são chama­
das de “pressupostos". Destes “pressupostos" fala então o
Filósofo, no fim do § 62 (10), como passagem para o pa­
rágrafo propriamente metodológico (§ 63) no corpo de
Ser e Tempo. “Mas não está na base da interpretação
ontológica da existência do ser-aí até aqui realizada, uma
determinada concepção ôntica da existência autêntica, um
ideal táctico do ser-aí? É, realmente, assim. Este fato não
pode apenas não ser negado e confessado obrigatoria­
mente; ele deve ser compreendido, a partir do objeto te­
mático de investigação, em sua positiva necessidade. A
filosofia não deverá jamais querer negar seus “pressu­
postos", mas também não apenas confessá-los. Ela com­
preende os pressupostos e conduz, justamente com éles,
aquilo para que são pressupostos para um radical desdo­
bramento. Esta função tem a consideração metódica ago­
ra exigida” (11).
No § 63, o Filósofo descreve, então, “a situação her­
menêutica conquistada para a interpretação do sentido do
ser da preocupação e o caráter metódico da analítica exis­
tencial em geral". O que sempre suscita estranheza ao se
reler este parágrafo tão surpreendente, é o fato de que
nele não se faz referência alguma ao § 7 em que o mé­
todo fenomenológico é provisoriamente exposto. Os dois
§§ tem, sem dúvida nenhuma, vínculos inegáveis. Há,
porém, uma diferença que me parece não ser casual e
que dá outra dimensão ao § 63. Enquanto o § 7 é posto
na Introdução a Ser e Tempo, o § 63 surge no corpo da
exposição sistemática da analítica existencial. Foi o obje­
to mesmo da análise que impôs “à marcha da investiga­
ção uma parada” ? (12). Penso que Heidegger dá uma res-

106
posta rápida, mas suficiente para nos orientar na questão
que nos interessa. No § 61, que introduz o capítulo sobre
“o auténtico poder-ser-total do ser-aí e a temporalidade
como o sentido ontológico da preocupação”, o Filósofo
fala do “esboço do passo metódico” (13). “Método autén­
tico se funda na adequada visão antecipadora sobre a
constituição fundamental do “objeto” a ser explorado, res­
pectivamente, da área do objeto. Autêntica reflexão me­
tódica — que certamente deve ser distinguida da vazia
discussão da técnica — dá, por isso, ao mesmo tempo
esclarecimento sobre o modo de ser do ente tematiza-
do”(14). As referências do § 7 ao ser-aí (ente tematizado)
são raras e exteriores. Tem-se mesmo a impressão que
aquele parágrafo serve muito mais para participação no
debate sobre o que é fenomenologia. O verdadeiro cará­
ter do método fenomenológico não pode ser explicitado
fora do movimento e da dinâmica da própria análise do
objeto. O ser-aí impõe, por causa de sua estrutura parti­
cular, que a consideração metódica se realize dentro da
sistemática análise de seu ser e sentido. A introdução ao
método fenomenológico é, portanto, somente possível, na
medida em que de sua aplicação se obtiveram os primei­
ros resultados. Isto constitui sua ambigüidade e sua intrín­
seca circularidade. A “constituição fundamental do obje­
to” e “o modo de ser do ente tematizado” estão implica­
dos na exposição do método. Mas, como a “constituição
e o modo de ser” do ser-aí só resultam de uma análise
existencial, deve primeiro ser suposto o método. Sua ex­
plicitação só terá lugar no momento em que tiver sido
atingida a situação hermenêutica necessária.
Uma comparação poderá esclarecer a questão. Witt-
genstein diz na sentença número 6.54 de seu Tractatus:
“Minhas proposições se elucidam do seguinte modo: quem
me entende, por fim as reconhecerá como absurdas, quan­
do graças a elas — por elas — tiver escalado para além
delas. (É preciso, por assim dizer, jogar fora a escada
depois de ter subido por ela).” (15) Tornadas claras as
proposições obscuras com o auxílio das análises do Trac­
tatus, joga-se fora a escada que conduziu para a clareza.
A filosofia não trata propriamente de conteúdos. Ela im­
porta como caminho, como método. Uma vez que o mé­
todo prestou seu serviço torna-se inútil. Só se fala daquilo

107
de que se pode falar claramente, (discurso científico).
“Deve-se calar sobre aquilo de que não se pode (é impos­
sível) falar”, é a última sentença do Tractatus (16).
A postura de Heidegger, em Ser e Tempo, é absoluta­
mente diferente. O filósofo prepara provisoriamente seu
método para iniciar a analítica existencial. Urna vez rea­
lizada parte da análise, isto é, atingida a situação herme­
nêutica que permite determinar o sentido do ser do ser-aí,
o filósofo pára. Descobre que o método se determina a
partir da coisa mesma. A escada para penetrar nas estru­
turas existenciais do ser-aí é manejada pelo próprio ser-aí
e não pode ser preparada fora para depois dar acesso ao
objeto. Não há propriamente escada que sirva para pene­
trar no seu ‘‘sistema”. A escada já está implicada naquilo
para onde deveria conduzir. O objeto, o ser-aí, já sempre
traz consigo a escada. Há uma relação circular. Somente
se sobe para dentro das estruturas do ser-aí, porque a
gente já se move nelas. Esta antecipação não-crítica do
método é consequência inevitável da circularidade do pro­
cesso hermenêutico. Quem, para desenvolver seu método,
parte da compreensão como estrutura fundamental do
homem, sempre pressupõe de algum modo em exercício
aquilo que visa com o método.

4 .2 Após a análise da morte, da consciência e da cul­


pa (na segunda secção de Ser e Tempo) Heidegger atingiu
a posição metódica, isto é, a situação hermenêutica, ne­
cessária para a explicitação do sentido do ser do ser-aí,
que é propriamente a meta perseguida em toda a análise
anterior. Agora o método alcançou a necessária profun­
didade e expressão, paralelamente à análise para que ser­
viu. “O ser-aí está colocado originariamente dentro da
aquisição prévia, isto é, sob o ponto de vista de seu autên­
tico poder-ser-total; a vista prévia condutora, a idéia da
existência, conquistou sua determinidade, através da clari-
ficação do seu mais autêntico poder-ser; com a estrutura
ontológica do ser-aí, concretamente elaborada, tornou-se
tão distinta sua particularidade ontológica, em face de
todos os entes puramente subsistentes, que a antecipação
sobre a existencialidade do ser-aí possui uma articulação
suficiente para conduzir com segurança a elaboração con­
ceituai dos existenciais” (17).

108
Este resumo do que fo¡ até então atingido mostra que
a antecipação realizada pelo filósofo, ao iniciar a análise
da quotidianeidade, realmente conduziu a um ponto em que
o método recebe, na verdade, sua transparência, a partir
de dentro da própria marcha da analítica. Por isso, a expo­
sição do método só podia ser provisória e exterior, provi­
sória porque exterior. “O caminho até aí percorrido” (18),
analisando o ser-aí, revelou também porque o método
fenomenológico foi, de inicio, provisorio. Heidegger expõe
como teve que lutar com o primado da tendência para o
encobrimento que reside no ser-ai. Era preciso romper
com a atitude da fuga e da recusa de se assumir em sua
nadificação que caracteriza seu ser quotidiano. “Metodica­
mente se exigiu” (19) para isto “violência”.
Só após tal “violência” (20), que repousava sobre
uma hipótese, o método intimamente ligado ao ser-aí e à
pré-compreensão de ser, teria conquistado seu estatuto
fundamental. Só a descoberta da tendência para o enco­
brimento e a fuga própria ao ser-aí daria razão ao método
antes apenas esboçado.
A ambigüidade e complexidade do método fenome­
nológico heideggeriano funda-se certamente na hegemo­
nia da tendência para encobrimento; mas, tal tendência é
destacada porque somente assim se pode instaurar uma
distância entre o fenômeno no sentido vulgar e o fenô­
meno no sentido fenomenológico, entre os múltiplos entes
e o ser. Pois, não se trata de alcançar o ser por um pro­
cesso de abstração (isto não é possível, por que já acom­
panha e condiciona a abstração), mas a partir do ser-aí,
das estruturas originárias que o constituem. E este está,
primeiro e o mais das vezes, envolvido na articulação dos
entes, ocupado com a sua familiaridade. Assim que o mé­
todo fenomenológico heideggeriano, em contraste com ou­
tros métodos que se propõe em Filosofia, deve adequar-se
a um fenômeno que só se mostra sob o velamento. Distan­
cia-se, assim, tanto do método do positivismo lógico, que
deliberadamente foge das análises de seus pressupostos,
para optar por um sistema fechado de reverências, em que
predomina a univocidade e clareza; como se diferencia
também do método dialético que aposta, de antemão, numa
totalidade, a partir da qual suas proposições se iluminam
e na qual se apoiam, mantendo, contudo, ao nível em que

109
são enunciadas, uma contradição que apenas se resolve
no todo.
A ambiguidade das proposições basilares do pensa­
mento heideggeriano não nasce de algum secreto
amor ao crepuscular e nebuloso. Nem amplia o Filósofo o
conceito de verdade como desvelamento, até o indefi­
nido, porque julgue supérflua a verdade que se legitima e
define operacionalmente. Nem pretendem suas tiradas pro­
féticas e afirmações enfáticas abafar as conquistas deli­
mitadas e restritas de uma linguagem que lida com moeda
miúda e só dá passos em regiões já iluminadas. A clareza
com que viu a fixidez de um pensamento ontológico e
a convicção de que contudo a ontologia ainda era de
algum modo necessária, fê-lo enveredar pelo caminho da
radicalização fenomenológica. O fato de seu método fe-
nomenológico ser sustentado entre as duas alternativas
metodológicas atuais, torna sua compreensão mais difícil,
mas não o dispensa de sua contribuição necessária.

5 Numa análise quase linear da estrutura e do movi­


mento da interrogação heideggeriana, podem-se isolar as
instâncias fundamentais que determinam esta ambigüidade
que vimos ligada a seu objeto. Não foram preocupações
formais e procura de critério de clareza que impeliram o
filósofo para a investigação. São antes poderosas intui-
ções, que teimosamente perseguidas, dão-lhe o material
para seu método e suas análises ontológicas.
Antes do aparecimento de Ser e Tempo, análises de
Aristóteles lhe revelaram, como impacto decisivo, o con­
teúdo e a carga ambivalente da palavra alétheia. Não que
o filósofo tirasse deste semantema, por um passe de má­
gica, toda a temática. Mas a interpretação polarizadora
de alétheia, como velamento que é negado, como desve­
lamento sempre referido a velamento, deu-lhe, como con­
fessa, impulso decisivo para a radicalização da fenome­
nología no sentido husserliano, elaborando seu método
fenomenológico. Este joga implicitamente com os dois
pólos da alétheia: aquilo que é preciso ser desvelado está
primeiramente, o mais das vezes, velado. A fenomenología
recebe sua ambigüidade da alétheia. Enquanto a fenome­
nología é utilizada para a analítica da facticidade e da
existência, ela se torna hermenêutica; passa a se movi-

110
mentar num circulo hermenêutico. Esta circularidade, que
não é apenas característica da compreensão, mas através
dela, do próprio ser-aí, também apresenta urna ambigüi­
dade que acompanha toda a obra de Heidegger. Pelo
método fenomenológico se desvendou esta circularidade,
que passa, por sua vez, a possibilitar uma verdadeira pe­
netração na fenomenologia. A estrutura circular da inter­
rogação heideggeriana leva-o ao que chamará de viravolta
(Kehre). Na estrutura circular do ser-aí se revela que a
análise do ser-aí pressupõe uma compreensão do ser; mas,
uma compreensão do ser, supõe, quando quer ser explí­
cita, urna analítica do ser-aí. A Kehre é um movimento
pelo qual o Filósofo, urna vez realizada a mediação pela
analítica, se volta para o ser e a partir dele analisa o ho­
mem. A estrutura circular do ser-aí, de início reduzida
ao ámbito da analítica, se converte em movimento — na
historia de um pensamento — pelo qual este se volta
para o ser. O caráter hermenêutico da fenomenologia
toma então um sentido mais ampio e radical, determi-
nando-se a dimensão hermenêutica não mais só a partir
do homem, mas a partir do ser. Círculo hermenêutico e
Kehre não se sucedem na obra do filósofo, mas se entre­
laçam, destacando-se um outro, conforme se queira enfa­
tizar o problema do ser-aí ou o problema do ser. Se após
o movimento da Kehre, o filósofo retorna como que à sua
primigênia inspiração, que reside na alétheia, não se
pode falar de arbitrariedade. É ainda o impulso originário
da alétheia, como velamento e desvelamento, que comanda
a reflexão do último Heidegger.
Assim, alétheia, fenomenologia, circulo hermenêutico,
viravolta, podem ser designados: o momento de eclosão,
o método, a estrutura e o movimento da interrogação hei­
deggeriana (21). Com isto apenas se assinala a dimensão
formal da questão para a qual se quis chamar a atenção
pelas observações até aqui feitas. Mas, os quatro ele­
mentos formam uma unidade pela qual se pode apanhar
o pensamento do Filósofo como um todo disseminado em
múltiplas análises fragmentárias. Neste todo o método
fenomenológico não pode ser destacado como um instru­
mento à parte. Se ele conduz o todo, recebe dele, por
sua vez, o que o individualiza como método.

111
NOTAS — 4

1. Theunissen, M., in Philos. Rundschau, Ano 15, Janeiro, 1968,


Caderno 1/2, p. 136.
2. In La Philosophie Analytique, Cahiers de Royaumont, Paris, 1962,
Avant-propos.
3. Wittgenstein, L. — Gesprache, aufgezeichnet von Friedrich Wals-
mann, Ed. Suhrkamp, 3.° Vol., Frankfurt am Main 1967, p. 65.
4. Sein und Zeit, p. 27.
5. Ver Tugendhat, E. — Der Wahrheitsbegriit bei Husserl und Hei-
degger, Ed. Waiter de Gruyter & Co., Berlim 1967, p. 323.
6. Sein und Zeit, p. 230.
7. Sein und Zeit, p. 153.
8. Sein und Z eit,. p. 153.
9. Sein und Zeit, p. 230.
10. Sein und Zeit, p. 310.
11 Sein und Zeit, p. 310.
12. Sein und Zeit, p. 303.
13. Sein und Zeit, p. 301.
14. Sein und Zeit, p. 303.
15. Wittgenstein, L. — Tractatus-Logico-Philosophicus, Trad. de José
Arthur Giannotti Comp. Ed. Nacional e Ed. Universidade de São
Paulo, São Paulo, 1968, p. 129.
16. Wittgenstein, L. — Tractatus Logico-Philosophicus, Ed. Suhrkamp,
Frankfurt am Main 1969, p. 115. Discordo de Giannotti na tra­
dução desta sentença, Wittgenstein refere-se aqui ao metadiscurso
i, é, àquilo que constitui o próprio Tractatus.
17. Sein und Zeit, p. 311.
18. Sein und Zeit, p. 311.
19. Sein und Zeit, p. 313.
20. Sein und Zeit, pp. 311 e 313.
21. Ver minha Tese de Livre-Docência: Compreensão e Finitude —
Estrutura e movimento da interrogação heideggeriana, Ética Im­
pressora, Porto Alegre, 1967.

112
O CONFRONTO SISTEMÁTICO-CR1TICO
COM A HISTORIA DA FILOSOFIA
1 A quem leu com atenção os capítulos segundo e
terceiro, que se ativeram a uma exposição imánente do mé­
todo fenomenológico heideggeriano, não terá passado de­
sapercebido a quase exaustiva repetição de certos termos,
um ir e vir entre determinados modelos lingüísticos, a
queda em alguns estereótipos. São como que parâmetros
a partir dos quais se articula progressivamente o sentido
do todo, através de combinações e polarizações. Esta es­
trutura vocabular é de tal maneira organizada que se for­
mam verdadeiros campos semânticos em que uma palavra
só tem significação na relação com as outras palavras do
conjunto. Não apenas as palavras devem ser compreendi­
das interrelacionadas, também as proposições são essen­
cialmente determinadas pelo conjunto.
A idéia matriz do método repousa no binômio vela-
mento-desvelamento tirado da interpretação etimológica
da palavra alétheia — alfa privativo + velamento; inter­
pretação que evolui e se radicaliza na obra do Filósofo,
até finalmente resumir nesta palavra grega o objeto da
filosofia. A tarefa da filosofia deve ser analisada no inte­
rior do espaço criado pela tensão semântica resultante da
relação que os dois pólos velamento-desvelamento man­
tém entre si. O modelo binário mantém-se, ainda que
mudem os termos polares: ocultar-mostrar, esquecer-lem-
brar, pensado-impensado, verdade-não-verdade, essência-
não-essência, dependendo sua força significativa sempre
de certas variáveis: homem, ser, História da Filosofia, Era
da Técnica. “Velar", “ocultar”, “esquecer”, têm sentido
positivo quando se referem a um comportamento do ser;
possuem, no entanto, sentido negativo quando resultam de
um comportamento do homem. “Desvelar”, “mostrar”,
“lembrar” possuem um sentido negativo quando se referem
apenas ao que é dado no sentido vulgar e superficial;
adquirem, no entanto, um sentido positivo quando apontam
a atitude fenomenológica em face do ser. Mas o poder ex­

114

i
pressivo destes binômios não depende apenas das variá­
veis; sua força significativa se modifica a partir de certos
contextos em que aparecem. Um é seu sentido na analítica
existencial, outro na interpretação da história do ser; e
outro ainda na análise da Era da Técnica. Sua tensão bipo­
lar sustenta, no entanto, um vínculo que garante uma uni­
dade profunda. Neste reside a compreensão especulativa
e totalizante em que o Filósofo resume a questão do pen­
samento (1).

1 .1 Tal uso de uma terminologia profundamente


ambígua, é, no entanto, apenas um aspecto da questão.
A linguagem é assim manipulada para que se aproxime
cada vez mais da estrutura ambígua e circular do processo
da compreensão que procura articular a estrutura circular
do ser-aí que por sua vez está numa relação circular com
o ser. E toda esta circularidade se repete novamente
no confronto do Filósofo com a História da Filosofia. Ain­
da que este modelo binário pareça muito simples, sua
combinação com certas variáveis e sua resultante modifi­
cação semântica; sua transposição para os diversos níveis
de interpretação e análise; a correlação que se estabelece
entre as variáveis nos diversos níveis e os próprios níveis;
a tentativa de reproduzir com este modelo e sua ampliação,
à estrutura da compreensão, do ser-aí e de sua relação
com o ser, estrutura essencialmente ambígua e circular,
eleva, no entanto, a linguagem que nele se apóia, a um
âmbito em que ela se torna veículo do movimento de
totalizaçáo buscado por Heidegger (2).
Uma análise lógica dos termos e das frases, uma
interpretação linguística das componentes sintáticas ou
semânticas, ainda que pudessem preparar o terreno para
uma interpretação filosófica, não seriam capazes de atingir
o nível semântico em que se move a linguagem de Heideg­
ger. A linguagem especulativa construída pelo Filósofo a
partir do modelo binário tem seu próprio modo de signi­
ficação. Não será uma análise da estrutura lógico-semân-
tica dos textos heideggerianos que alcançará o funciona­
mento semântico do discurso especulativo neles desen­
volvido.
Partindo do modelo que se baseia no binômio vela-
mento-desvelamento, Heidegger desenvolveu um método

115
que tunda o discurso especulativo, isto é, que permite ex­
por, num único movimento, e reciprocamente imbricados, a
dinâmica do pensamento, do método e da questão pro­
priamente dita. Isto pode ser designado movimento de
totalização e tem seu próprio funcionamento semântico.

2 Vamos observar, neste capítulo, como se articula


a presença do método fenomenológico heideggeriano no
confronto sistemático-crítico com a Historia da Filosofia.
Para isto será levada em conta a unidade da exposição,
que Heidegger conserva, mesmo em suas referências
breves á História da Filosofia. Esta unidade na exposição
somente é possível porque o método esboçado lhe permite
captar num único movimento o processo do pensamento,
o método e a questão propriamente dita que busca no
diálogo com a tradição filosófica. Torna-se assim pos­
sível a leitura especulativa dos textos dos filósofos; esta
leitura é, devido a seu caráter especulativo, sempre
totalizadora. Esta compreensão global da Historia da
Filosofia não torna o confronto com ela acrítico. Pelo con­
trário, a pretensão de totalização leva Heidegger a re­
construir o pensamento da tradição de tal maneira que,
pela crítica metodicamente realizada, o torna transpa­
rente e o conduz a uma unitária visão sistemática. Tanto
a crítica como a perspectiva sistemática se fulcram no
movimento especulativo que Ihe permite realizar a com­
preensão unitária de pensamento, método e objeto.
Na interpretação da Historia da Filosofia o Filósofo
explora o mesrno modelo binário que utiliza ao expor a
analítica existencial e ao falar da questão do ser. Deve-se
até afirmar que o binômio velamento-desvelamento leva
Heidegger a pensar numa unidade a analítica do ser-aí a
questão do ser e o movimento da Historia da Filosofia. A
radical compreensão das duas primeiras áreas só será
possível quando inseridas na interpretação do pensamento
da tradição filosófica, e este só pode ser captado em sua
amplitude e sentido quando compreendido a partir da ana­
lítica existencial e da questão do ser. O processo de vela-
mento que acontece no pensamento ocidental e o desvela-
mento que deve ser levado a cabo pela destruição fenome-
nológica é apenas então possível quando se recolocou de

116
modo adequado a questão do ser, redimensionamento que
por sua vez depende dos resultados da analítica existencial.

2. 1 Para melhor descobrirmos a especificidade do


método heideggeriano, exporemos primeiro a posição de
dois métodos em face da Historia da Filosofia, os quais
nos parecem muito produtivos e, a partir de seus pontos
de vista, justificáveis: de um lado, o método lógico-analítico
e, de outro, o método especulativo-dialético. Ambos se
distinguem, no entanto, de maneira clara, do pensamento
de Heidegger em seu confronto metódico com a Historia
da Filosofia.
O método que aqui chamamos lógico-analítico é aque­
le que emprega grande parte das conquistas da lingüística,
dos processos de formalização e da análise lógica da lin­
guagem para abordar os textos dos filósofos. É por isso
que o confronto com a Historia da Filosofia se faz imánente
ao problema da linguagem. Não é a partir da questão
mesma do pensamento que se desencadeia a análise, mas
a partir de um sistema de predicadores (3) que se construiu
com todo o controle da lógica, em confronto com um
outro sistema de predicadores que se submete ao mesmo
controle, para assim reconstrui-lo e poder avaliá-lo em sua
consistência. Quem emprega tal método quer ser ao mes­
mo tempo sistemático e crítico. Sistemático na medida em
que o leitor dos textos da tradição procura ampliar seu
conjunto de predicadores sistematicamente até então cons­
truidos. Crítico porque submeteu não apenas seu sistema
de predicadores a urna rigorosa análise lógica, mas busca
submeter a terminologia do autor em questão ao mesmo
minucioso sistema de controle lógico-lingüístico. Este mé­
todo procura fugir tanto de uma posição dogmática que
absolutiza seu próprio sistema de predicadores e só aceita
o texto do autor quando traduzível para a sua terminologia,
como de uma posição ingênua que renuncia a uma lingua­
gem crítica e refletida e transporta (traduz) a linguagem
do autor para o nível ou da linguagem ordinária ou da
linguagem culta, sendo, porém, esta também não controla­
da criticamente (4).
O método lógico-analítico pode assumir, em face de
um texto da tradição filosófica, três posturas: a) transpor
a linguagem do autor para a própria, quando a termino-

117
logia do texto concordar de alguma maneira com a lingua­
gem criticamente elaborada do leitor; b) ampliar o próprio
sistema de predicadores, quando no texto do autor apare­
cerem determinados termos que até então haviam esca­
pado ao leitor na análise sistemática do objeto; c) aban­
donar termos já introduzidos em seu trabalho sistemático
quando surgir uma contradição entre a terminologia do
autor em questão e sua própria, se houver possibilidade
de comprovar que a do autor é preferível; quando isto
não puder ser comprovado rejeita-se a terminologia do
autor (5).
Este método, baseado no uso crítico da linguagem na
abordagem do objeto, tem, não há dúvida, uma contri­
buição muito positiva a dar tanto para a elaboração de
uma linguagem rigorosa como para uma interpretação
cautelosa e sistemática dos textos. Quem, no entanto, pode
garantir que no movimento de análise do objeto o sistema
de predicadores não sofre mudança de sentido e de uso,
podendo o mesmo acontecer no movimento da História
da Filosofia? Não se pende aqui demasiadamente para o
terreno em que se elabora a linguagem científica, não se
respeitando assim o caráter específico da linguagem es­
peculativa? No método lógico-analítico parece esconder-
se alguma coisa do preconceito do positivismo lógico
contra o pensamento especulativo, próprio da Filosofia.
No confronto de dois conjuntos de predicadores imánente
à linguagem perde-se a presença dinâmica da questão pro­
priamente dita e trunca-se o movimento do pensamento
sempre comprometido, em seu exercício, com o objeto
mesmo da reflexão filosófica. A História da Filosofia é
usada para ampliar um sistema de predicadores que até
o momento do contato com os textos se construiu com
o controle da análise lógica. Não se é capaz de ver a
História da Filosofia como o acontecer unitário do
pensamento e da questão mesma conduzido pelo
método. Não apenas o método permanece exterior à coisa;
mas por causa do método a própria relação da linguagem
com a coisa é exterior. À clareza e ao esforço de facilitar
a comunicação sacrifica-se o movimento totalizante do
pensamento e da linguagem filosófica.

118
2. 2 Bem outra é a atitude do método especulativo-
dialético em seu confronto com a História da Filosofia. Pelo
fato de, no pensamento dialético, o método se adequar à
questão mesma, de desenvolver-se numa espécie de coin­
cidência com a questão propriamente dita da Filosofia, a
interpretação da História da Filosofia deve ser realizada
como a esfera em que se processa a unidade de pensa­
mento, método e objeto. Esta a razão porque o método
especulativo-dialético não aborda a História da Filosofia
nem de maneira exterior, nem de tal modo que a apresente
fragmentária. O pensamento da tradição é visto como um
todo, e cada intérprete já sempre se move neste todo, no
qual pode pensar adequadamente a questão mesma de
que se ocupa a filosofia. Ainda que o método dialético não
possa constituir-se desligado do próprio movimento do
pensamento que se desenvolve sobre o objeto e do cons­
tante retorno do pensamento sobre si mesmo, não se pode
dizer que o pensamento dialético sacrifique a clareza à
totalização e a linguagem rigorosa à embriaguez da pa­
lavra. Não deixa, no entanto, de ser extremamente penoso
desdobrar o funcionamento semântico da linguagem espe­
culativa utilizada pelo pensamento dialético, devido às
múltiplas relações e conotações exigidas pelo esforço de
totalização.
Toda esta complexidade do pensamento especulativo-
dialético em si mesmo se transfere para o confronto sis-
temático-crítico com o pensamento da tradição filosófica.
Esta complexidade pode, entretanto, ser apresentada de
maneira tal que pareça muito simples, quando se destaca
o modelo triádico pelo qual se procura expressar esterioti-
padamente o movimento dialético. Para Hegel trata-se, por
exemplo, de pensar a História da Filosofia como um pro­
cesso de posição, oposição e superação; tese, antítese e
síntese, na medida em que a questão mesma da Filosofia
progride desta maneira através dos diversos autores da
tradição. O movimento da questão mesma na História da
Filosofia é um progressivo sobressumir das contradições
num nível superior onde são mantidas numa unidade que
novamente será levada junto com sua antítese a uma
nova síntese. A razão se move neste suceder-se de opo-
sições e sínteses, unida ao objeto mesmo da Filosofia
que progride em direção de sua sempre maior explicitação.

119
Ainda que o pensamento dialético cultive o rigor da
linguagem, o controle metódico da palavra não se separa
da discussão da questão propriamente dita. É por isso
que o confronto crítico-sistemático com os autores da
História da Filosofia, sob o ponto de vista do método dia­
lético, possui um caráter totalizante em que o controle da
linguagem não pode ser feito de maneira exterior ao pró­
prio objeto; e o autor não pode ser visto isolado do movi­
mento global da História da Filosofia, porque assim se
fragmentaria a questão que conduz o pensamento e o mé­
todo.
Hegel e muitos outros pensadores dialéticos especi­
ficam a questão propriamente dita para então afirmarem
que ela deve ser o ponto de referência de toda a inter­
pretação do pensamento filosófico ocidental. A dificul­
dade sempre reside na compreensão plena e adequada
desta questão da qual cada autor que utiliza o método
especulativo-dialético faz depender a unidade do movi­
mento da História da Filosofia. Em todo caso parece-nos
que a compreensão dialética do todo da História da Filoso­
fia é mediada pela exata e rigorosa determinação da ques­
tão mesma, portadora tanto do movimento como da uni­
dade em foco (6).
Desta cuidadosa determinação da questão mesma
através da linguagem adequada depende o nível crítico
do pensamento dialético; e o caráter sistemático do con­
fronto com a História da Filosofia não consistirá em pri­
meiro lugar na edificação de um conjunto rigoroso de pre­
dicadores para emprego do intérprete dos autores da tra­
dição, mas na capacidade de articular o sentido que
manifesta a questão mesma na história do pensamento.
Não temos a pretensão de ter dito o essencial para
a compreensão do que significa confronto sistemático-crí-
tico com a História da Filosofia. No caso do pensamento
especulativo-dialético devemos reconhecer que neste
pensamento se preserva o estatuto especulativo e totaliza­
dor sem o qual a linguagem da filosofia dificilmente se
distingue do sistema de sinais próprio do pensamento
científico (7).

2. 3 Numa de suas conferências Heidegger carac­


teriza sua postura em face da História da Filosofia distin-

120
guindo-a da postura especulativo-dialética de Hegel. “Qual
é lá (em Hegel) e aquí (em Heidegger) a medida para o
diálogo com a historia do pensamento?”, pergunta o
Filósofo e responde: “Para Hegel a medida para o diálogo
com a Historia da Filosofia significa: penetrar na força
e no ámbito do que foi pensado pelos primeiros pensado­
res.” . .. "Hegel encontra a força individual de cada pen­
sador naquilo que por ele foi pensado, na medida em que,
como degrau singular, pode ser sobressumido no pensa­
mento absoluto. Este somente é absoluto porque se move
em seu processo dialético-especulativo e para isto exige
a gradação” (8). O Filósofo passa então a delimitar sua
posição: “Para nós a medida para o diálogo com a tradição
historial é a mesma, enquanto se trata de penetrar na força
do pensamento antigo. Nós, porém, não procuramos a
força no que foi pensado, mas em algo impensado; o que
foi pensado recebe deste seu espaço essencial. Mas so­
mente o já pensado prepara o ainda impensado que sempre
de modos novos se manifesta em sua superabundância.
A medida do impensado não conduz a uma inclusão do
anteriormente pensado, num desenvolvimento e sistemática
sempre mais altos e superadores, mas exige a libertadora
entrega do pensamento tradicional ao âmbito do que dele
já foi e continua assim reservado. Este passado-presente
perpassa originariamente a tradição, precede-a constan­
temente, sem, contudo, ser pensado propriamente e en­
quanto o originário” (9)
Este confronto que Heidegger estabelece entre si e
Hegel mostra, de maneira precisa, as semelhanças e dife­
renças entre os dois modos de comportamento diante da
História da Filosofia. Ambos os filósofos descobrem no
movimento da história do pensamento uma presença cons­
tante da questão propriamente dita da filosofia. Ambos
insistem na necessidade de o pensador penetrar neste
movimento do pensamento antigo para descobrir o elemen­
to que lhe dá unidade. Em ambos a análise da questão
do pensamento não pode ser separada do confronto com
a História da Filosofia. Ambos, enfim, utilizam uma lin­
guagem especulativa e totalizante, na qual o método se
desdobra em consonância com a questão propriamente
dita do pensamento.

121
O texto revela, entretanto, também os três aspectos
que separam profundamente os dois pensadores (10):
a) Hegel busca em cada pensador da História da Filo­
sofia o elemento fundamental por este pensado; Heidegger
persegue em cada pensador da História da Filosofia algo
impensado no que este pensou, b) Para Hegel cada pen­
sador é, com aquilo que pensou, um momento dentro de
um processo triádico em que as contradições são supri­
midas (tiradas, elevadas e conservadas) num nivel superior;
para Heidegger o elemento impensado no pensamento de
cada autor da tradição é o mesmo que perpassa toda a
História da Filosofia e que é progressivamente encoberto,
c) O movimento triádico em Hegel exige como ponto de
referência e convergência um momento em que todas as
contradições se suprimem. Este ponto não precisa ser
objetivamente alcançável, mas deve constituir sempre o
horizonte a partir do qual os diversos momentos de opo­
sição recebem seu sentido e unidade. O ponto de refe­
rência e convergência, que para Hegel é a condição do
movimento ascensional do processo dialético, é interpre­
tado por Heidegger justamente como aquilo que é a causa
radical do encobrimento do elemento impensado na Histo­
ria da Filosofia. Para Heidegger jamais se suprime a ten­
são entre pensado e impensado, velamento e desvela-
mento e para ele não existe a convergência para um ponto
determinado dentro de Historia da Filosofia a partir do
qual se pudesse pensar uma unidade. O que, no entanto,
novamente há de comum nesta extrema oposição é o fato
de cada um dos filósofos estar convicto de ser o momento
no qual a Historia da Filosofia pára para descobrir em si
mesma, ou o movimento do espírito em direção de si mes­
mo, ou o fato de que nela se processa um progressivo
velamento da questão fundamental. Por isso em Hegel e
Heidegger, o pensamento especulativo — dialético e o pen­
samento fenomenológico hermenêutico são tão próximos
e, contudo, residem “em montanhas separadas” (11).

2 .4 Do que foi exposto até agora pode-se concluir


que a atitude de Heidegger diante da História da Filosofia
é eminentemente especulativa. A questão decisiva de que
se ocupa sua investigação não é em momento algum pen­
cada de maneira exterior ao todo do pensamento ociden-

122
tal. O modelo binário de velamento e desvelamento em
que se apóia o método fenomenológico hermenêutico para
o desenvolvimento da analítica existencial e para o redi­
mensionamento da questão do ser é até mesmo transposto
para o ámbito da Historia da Filosofia que para Heidegger
é a Historia da Metafísica Ocidental. O confronto heideg-
geriano com esta, sob o ponto de vista tanto sistemático
quanto crítico, é realizado através do método fenomeno­
lógico, o que significa que o Filósofo esquematiza, sé-
guindo o modelo binário, toda a História da Filosofia, ante­
cipando e projetando um sentido que somente um longo
processo de interpretação pode confirmar ou rejeitar. É
verdade que o fio condutor da questão do ser representa
o constante ponto de referência para este processo de
interpretação, dando unidade e coerência a todo o projeto
sobre a Historia da Filosofia. Mas esta interpretação é tão
complexa, devido aos pressupostos que o Filósofo coloca,
que só dificilmente poderá escapar a generalizações infun­
dadas e falsas ilações.
3 Vamos analisar agora os diversos passos que o
Filósofo percorre e sistematizar os resultados colhidos
pela sua interpretação da Historia da Metafísica Ocidental.
Uma passagem do livro Sendas Perdidas pode servir de
síntese para a postura que Heidegger assume diante da
Historia da Filosofia: “A metafísica funda urna época, na
medida em que Ihe dá o fundamento de sua forma essen­
cial, através de urna determinada explicação do ente e de
urna determinada concepção da verdade. Este fundamento
perpassa todas as manifestações que caracterizam urna
época” (12).
Como funda a metafísica urna época e qual o modo
de ela caracterizar esta época? Heidegger o diz num
texto de sua obra intitulada Nietzsche: “A tradição da
verdade sobre o ente, que se desenvolve como “metafí­
sica”, desdobra-se num encobrimento e obstrução da
originária manifestação do ser, que não tomam mais cons­
ciência de si. Nisto reside a necessidade da “destruição”
desta obstrução, tão logo se tenha imposto como neces­
sário um pensamento da verdade do ser. Esta destruição,
porém, do mesmo modo como a “fenomenologia” e toda
a interrogação hermenêutico-transcendental não é ainda

123
pensada como historia do ser” (13). E como se tornou
possível este encobrimento e esta obstrução da originária
manifestação do ser pela “metafísica” ? Heidegger o ex­
plica; basta voltarmos mais para trás e determo-nos numa
passagem de Ser e Tempo: “A compreensão de ser, que
primeiro se impõe ao ser-aí e que ainda hoje não foi
superada fundamental e expressamente, encobre ela mes­
ma o fenômeno original da verdade” (14).
A tendência do ser-aí é perder-se na articulação do
ente e assim encobrir o fenômeno original do próprio ser.
Esta tendência passou a predominar desde o começo da
metafísica ocidental, tornando-se esta assim a história do
encobrimento e da obstrução da questão do ser. Desta
maneira a metafísica marca toda a época que se estende
dos gregos até nós, através de uma explicação do ente
em que a questão do ser é encoberta e esquecida. Uma tal
explicação afeta todas as manifestações características
desta época. Assim a História da Metafísica Ocidental
será chamada por Heidegger de história do esquecimento
do ser, de niilismo, querendo o Filósofo dizer com isto que
nada mais há com o ser nesta história, na medida em
que nela o ser é velado.

3. 1 Assim se compreende porque Heidegger pensa


a analítica existencial numa unidade com a História da
Metafísica Ocidental e a própria História do Ocidente, po­
dendo aplicar às três áreas o método fenomenológico,
e apoiando-se, para isto, no modelo binário de velamento
e desvelamento. O fio condutor é a questão do ser que o
Filósofo busca explicitar, determinando o sentido do ser.
No início de Ser e Tempo se afirma a conveniência de “re­
colocar a questão do sentido do ser” (15). Mais tarde o
Filósofo explicará: “No tratado Ser e Tempo fez-se a ten­
tativa de determinar a essência do homem, tomando como
ponto de referência a questão da verdade do ser e não
mais a questão da verdade do ente. Esta essência do
homem é ali caracterizada, num sentido bem deli­
mitado, como ser a í” (16). Esta analítica do ser-aí
era considerada por Heidegger o ponto de partida neces­
sário para o redimensionamento da questão do ser, porque
o homem é o único ente que em seu ser já antecipa uma
implícita compreensão de ser. Esta pré-compreensão é,

124
porém, o mais das vezes encoberta, pois primeiro se impõe
ao ser-aí em sua quotidianeidade uma "compreensão de
ser que. . . encobre. . . o fenômeno original da verda­
de” (17). Daí a tarefa da analítica das estruturas existen­
ciais do ser-aí para arrancá-lo desta "compreensão q u e . ..
ainda hoje não foi superada fundamental e expressamen­
te” (18). As duas secções da Primeira Parte de Ser e
Tempo que foram publicadas se propõem como finalidade
explicitar as estruturas do ser-aí para revelá-lo em sua
autêntica condição como ente que em seu ser compre­
ende o ser. Heidegger empregou para este trabalho o
método fenomenológico baseado no binômio velamento-
desvelamento (19). Assim pôde mostrar a ambiguidade do
compoj-tamento do ser-aí sempre se movendo na tensão
entre abertura e dissimulação, autenticidade e inautenti-
cidade, existência e decaída, compreensão do ser e arti­
culação dos entes. Esta ambigüidade característica do
ser-aí se transferirá para a História da Filosofia que Hei­
degger interpreta como metafísica, porque o fundamento
desta emerge da ambivalente relação entre homem e ser.

3 .2 O comportamento ambíguo do ser-aí diante da


questão do ser pode vir expresso nesta questão quando
definida como questão da diferença ontológica, a distinção
entre ser e ente. É a partir dela que Heidegger mostra
como a estrutura binária de velamento e desvelamento sur­
ge na esfera da metafísica. “Funda-se a distinção entre ser
e ente na natureza humana de tal maneira que esta pode
ser caracterizada a partir dela ou funda-se a natureza do
homem nesta distinção?” (20). "É a partir do domínio
desta questão que se esboça o modo como e a perspectiva
a partir da qual atingimos um sentido mais originário da
metafísica. . . Tentamos penetrar no fundamento da meta­
física para desta maneira experimentarmos a distinção
entre ser e ente, ou mais exatamente, aquilo que sustenta
a própria distinção como tal: a relação do homem com o
ser” (21). A relação do homem com o ser leva, pela ten­
dência natural do homem à dissimulação, a um velamento
do ser em favor da articulação do ente. Toda a História da
Metafísica Ocidental, pelo fato de não ter prestado atenção
a esta ambígua relação do homem com o ser, tornou-se
a história do esquecimento do ser. E ela pôde chegar

125
a constituir-se numa tal história em que nada mais há com
o ser (niilismo) porque “toma o homem como um dado,
como natureza puramente subsistente, que então carrega­
mos com a relação com o ser. A isto corresponde o
inevitável antropomorfismo que conseguiu até sua justifi­
cação metafísica, através da metafísica da subjetivida­
de” (22). A subjetividade que assim caracteriza a meta­
física ocidental é por isso o sinal e a causa do esqueci­
mento do ser. Causa porque nela se esconde a atitude
ingênua diante do ser-aí na medida em que este não é
visto em seu caráter ambíguo na relação com o ser; sinal
que é preciso ser interpretado para se compreender a
necessidade de uma analítica existencial que exponha a
estrutura binária e ambígua do ser-aí para então se
problematizar a “essência da metafísica” considerada
mesmo intocável como área que nenhum questionamento
filosófico pode ultrapassar” (23). Uma tal analítica do ser-aí
levaria necessariamente a uma “reflexão da metafísica
sobre a metafísica”, o que seria então uma “metafísica da
metafísica” (24). Esta é no fundo a meta da ontologia
fundamental de Heidegger, desenvolvida em Sem e Tempo.
O Filósofo afirma, porém: “Esta destruição, assim como
a “fenomenología” e todo o questionamento hermenêutico-
transcendental, não é ainda pensada como história do
ser” (25). A destruição, isto é, a penetração e o redimensio­
namento da metafísica ocidental, deve ser interpretada
como tendo por finalidade atingir a questão por excelência
do pensamento que perpassa toda a metafísica: a questão
ser pensada como uma história que se desdobra à sombra
da subjetividade. Do mesmo modo a fenomenología e a
análise hermenêutico-transcendental não devem parar
numa analítica existencial, mas radicalizá-la de tal ma­
neira que a questão da relação do homem com o ser se
transporte para o âmbito da História da Metafísica Oci­
dental, para nela descobrir uma longa história do esque­
cimento do ser.
Orientando-se pelo modelo binário de velamento-des-
velamento, esquecimento e lembrança, Heidegger conse­
gue uma radicalização do método fenomenológico, mos­
trando que a subjetividade carrega em si mesma a possi­
bilidade de desvelar sua ambigüidade pela analítica
existencial e que é possível descobrir uma história desta

126
subjetividade que comanda a metafísica ocidental e está
nas raízes do esquecimento do ser. A radicalização da
fenomenología como Husserl a concebera conduziría o
pensamento de Heidegger não apenas a lançar de forma
nova a questão do ser, mas o faria descobrir que um tal
questionamento não é possível sem um confronto com a
metafísica ocidental (26).

3 .3 A aplicação do método fenomenológico conduz


Heidegger a interpretar também a época a que a meta­
física dá “o fundamento que perpassa todas as suas
manifestações”. Também esta época é marcada pela
condição ambivalente do ser-aí e pelo esquecimento do
ser que constitui a História da Metafísica Ocidental. Hei­
degger a denomina de Era da Técnica. “Pela represen­
tação da totalidade do universo técnico reduz-se tudo ao
homem e chega-se, quando muito, a reivindicar uma ética
para o universo da técnica. Cativos desta representação,
confirmamo-nos na convicção de que a técnica é apenas
um negócio do homem. Passa-se por alto o apelo do ser
que fala na essência da técnica” (27). Heidegger mostra
como a tendência do homem para o esquecimento do
ser, para a dissimulação do ser, que perpassa a metafísica
ocidental, invade também a época atual e lhe dá o caráter
ambiguo, que pode ser descoberto em todas as suas mani­
festações. Também aqui realiza-se o esquecimento da
verdadeira relação do homem com a natureza por causa
do esquecimento do ser, esquecimento imposto à era da
técnica pela metafísica. “Enquanto a meditação sobre o
universo da Era Atômica apenas aspira . . . realizar o em­
prego pacífico da energia atômica, o pensamento perma­
nece a meio caminho. Por essa mediocridade o universo
técnico é confirmado ainda mais e, para o futuro, em seu
predomínio metafísico” (28). Portanto, na interpretação da
era da técnica procura Heidegger os mesmos sinais de
velamento da questão do ser herdadas pe!a metafísica; para
isto sempre recorre ao mesmo modelo binário que carac­
teriza seu método fenomenológico. No desafio que Hei­
degger enfrenta, dedicando-se a uma interpretação da era
atual, parece-nos residir a possibilidade de o Filósofo me­
diar suas afirmações sobre a História da Metafísica Oci­
dental. O fato de não tê-lo feito com a necessária am­

127
plitude e apenas com uma radicalidade cujo sentido ainda
deve ser descoberto, suscita sempre novas críticas dos
que vêem no processo da mediação o elemento de aferição
da verdade de uma filosofia (29).
4 Da análise até agora realizada podem ser desta­
cados os.momentos essenciais do confronto de Heidegger
com a História da Filosofia.
4 .1 A estrutura fundamental do método fenomeno-
lógico atravessa todas as análises dos autores da tradição,
explorando o Filósofo sempre o modelo binário de vela-
mento e desvelamento. Mas o emprego do método é espe­
culativo, sendo desenvolvido constantemente em unidade
com a questão propriamente dita do pensamento.
4. 2 Heidegger desdobra seu pensamento em cons­
tante diálogo com a História da Filosofia, mostrando
sempre como a questão do sentido do ser deve passar
também pela destruição (adentramento) da História da On­
tologia que atravessa toda a metafísica ocidental.
4 .3 Já por causa do método fenomenológico, a in­
terpretação heideggeriana da História da Filosofia não po­
derá ser dialética no sentido hegeliano, sem contudo deixar
de ser especulativa. A unidade que o Filósofo aponta no
pensamento ocidental é a presença constante da mesma
questão fundamental, ainda que a história deste pensa­
mento seja a história do esquecimento desta questão.
4. 4 O Filósofo descobre uma radicalização progres­
siva do esquecimento do ser na História da Filosofia. Esta
radicalização não é, porém, conduzida, por uma neces­
sidade e movimento teleológico. Heidegger procura de­
tectar apenas o jogo de luz e sombras, de velamento e des­
velamento que marca esta História da Filosofia, mostrando
um caminho para descobrir esta ambiguidade.
4. 5 Heidegger não procura o contato com a História
da Filosofia para ampliar um sistema filosófico pessoal.
Este contato possui um caráter sistemático que está disse­
minado pela sua obra e que cresce organicamente dentro
do movimento tensional que lhe vem da visão totalizadora
da História do pensamento, como história que acontece no

128
processo de abertura e dissimulação, velamento e desve-
lamento.
4 .6 A visão sistemática de Heidegger é assim es­
truturada porque se desdobra dentro do círculo hermenêu­
tico. O elemento profundo que a expressão “círculo
hermenêutico” procura mostrar é a perene incompletude
do questionamento do ser e da História da Filosofia. A
impossibilidade de suprimir a polaridade de velamento
e desvelamento numa síntese, provoca uma tensão em que
o movimento de totalização sempre ancora no fragmen­
tário e em que o fragmentário só adquire sentido quando
envolvido na antecipação de uma totalidade que sempre
está em movimento de auto-supressão.
4. 7 Deve-se ver, portanto, na interpretação siste­
mática que Heidegger faz do pensamento ocidental, não
tanto a intenção de expor o fracasso de toda uma época;
o Filósofo quer chamar a atenção para uma condição
inelutável em que se movimenta toda a interrogação pelo
sentido do ser. Heidegger não abriu um caminho para a
supressão da História da Filosofia que se estende até
hoje; sua contribuição reside no fato de ter mostrado que
existe uma estrutura polar de velamento e desvelamento
perpassando não apenas o pensamento de cada pensador,
mas toda a História da Metafísica Ocidental.

4. 8 O grande problema reside no modo como o


Filósofo expôs ou deveria expor a sua concepção da
História do Pensamento Ocidental, pois ele mesmo parti­
cipa desta história e nesta medida não pode saltar fora da
estrutura polar que a caracteriza. Por isso toda a obra de
Heidegger não é apenas um confronto com a metafísica
ocidental, mas uma constante problematização do modo
de expor sua interpretação (30). Isto é, sem dúvida, a
marca de todo o pensamento que procura avançar com a
questão fundamental da filosofia; é a marca de todo pen­
samento especulativo.

4. 9 Heidegger enfrenta, em última análise, o pro­


blema de uma linguagem que seja crítica sem deixar de
ser especulativa e que ao ser especulativa não deixe de
ser suficientemente crítica. Resumindo a questão: como

129
realizar o controle da linguagem sem terminar numa rela­
ção puramente exterior à questão fundamental e como fun­
dir a linguagem com esta questão fundamental sem perder
o controle da linguagem? O confronto crítico com a lin­
guagem dos filósofos da tradição metafísica tem a finali­
dade de resolver esta questão. Permanece, entretanto,
aberto o problema: Não participa a linguagem especula­
tiva da polaridade — velamento e desvelamento — da
questão do ser que perpassa a Historia da Metafísica Oci­
dental? Onde estão os limites da crítica da linguagem e
onde começam as fronteiras da linguagem especulativa?

4. 10 Em parte seguindo tendências de sua época,


em parte conduzido pela intuição de que há um vínculo
entre o filósofo e o filólogo, Heidegger construiu sua
linguagem, explorando recursos que a etimologia oferece
para introduzir urna certa tensão semântica nas palavras,
adequando-as às exigências da expressão do objeto do
pensamento. Na interpretação dos autores da tradição filo­
sófica Heidegger utilizou sua interpretação etimológica
muito pessoal dos termos filosóficos para com ela se apro­
ximar da estrutura binária e ambígua de pensado e im­
pensado que espreitava em cada texto clássico. Estes
recursos exercem na linguagem do Filósofo a função de
uma certa crítica da linguagem (31).

5 Ainda que se possam encontrar, esparsas pelas


obras de Heidegger, referências negativas ao predomínio
da razão e da lógica, só o exame do uso que o Filósofo
faz do método, tanto na analítica existencial quanto na
interpretação da História da Filosofia, revela a constante
presença do trabalho da razão e o emprego do rigor ló­
gico. É certo que aqui o trabalho da razão não é exterior
ao próprio movimento interno da questão propriamente dita
da filosofia, nem o emprego puramente técnico da lógica
é distante de uma produtividade semântica que inaugura
uma verdadeira gênese do sentido. Pode-se aplicar de
maneira cabal a afirmação de Jean Ladrière ao conjunto
da linguagem heideggeriana: “O conjunto de proposições
do sistema age à maneira de um filtro transformador. No
ponto de partida temos termos que tem sentidos já fixados
por toda uma história, e temos por outro lado uma espécie

130 _
de visão flutuante, de esquema organizador que apenas
é sugerido por um sistema parcial. Trata-se de fazer pas­
sar os termos escolhidos por uma metamorfose tal que eles
terminem por encontrar efetivamente uma articulação con­
ceituai adequada à visão inicial. A arte do filósofo — pois
há incontestavelmente um aspecto estético na construção
especulativa — consiste em descobrir as frases que garan­
tirão os encontros propícios, em dispor seu discurso de
maneira a fazer aparecer, definitivamente, um organon iné­
dito de significações, capaz de substituir a incerteza de
uma visão pelo rigor objetivo de um dizer” (32).
A articulação dos termos, nas obras de Heidegger,
possui realmente esta capacidade de conduzir sua visão
inicial — sua antecipação de sentido — a uma expressão
especulativa, a um rigor no dizer que manifesta um campo
de significações que não se podia suspeitar nos termos
inicialmente escolhidos. É disto que advém uma certa
frustração que invade todas as tentativas de uma análise
puramente lógica da linguagem heideggeriana. Desfeita
a articulação conceituai, rompidos os vínculos estabeleci­
dos entre os termos, nada mais resta que semantemas
vacantes. Por outro lado, nesta capacidade de acordar
novos campos de significação, de provocar metamorfoses
numa linguagem adormecida, está a originalidade e o valor
dos resultados que Heidegger conquistou no diálogo e
confronto sistemático-crítico com os autores da História
da Filosofia.

131
NOTAS — 5

1. Estes pares de significantes, ao mesmo tempo excludentes e


complementares, tem sua origem na distinção de níveis que
Heidegger introduz em Ser e Tempo quando fala de ôntico e an­
tológico e, re'erindo-se ao comportamento do ser-aí, de auténtico
e inauténtico.
2. O termo totalização pode sugerir, ainda mais quando aparece
na expressão “ movimento de totalização” , um tipo bem defini­
do de pensamento na História da Filosofia, a saber, o pensa­
mento especulatívo-dialético, que não apenas antecipa a tota­
lidade como horizonte, mas já a possui determinada como fim
e meta do movimento. Ainda que totalização sempre implique
o caráter especulativo de um pensamento, não inclui necessa­
riamente o caráter dialético. Considero aqui o movimento es­
peculativo como um processo antecipador da estrutura da com­
preensão e consequência de toda projeção de sentido; este
movimento se exprime na linguagem filosófica que assim toma
uma qualidade própria através da qual surge uma textura única,
compreensiva do real, mas sempre ultrapassando a experiência
presente. O movimento de totalização está ligado ao círculo da
compreensão, ao círculo hermenêutico.
3. “ A expressão “ predicador” é formada através de recurso à ex­
pressão gramatical “ predicado” e é ao mesmo tempo dele dis­
tinto. O predicado gramatical é parte componente de uma fra­
se, parte que, via de regra, contém predicadores; o predicador,
entretanto, é uma espécie de palavra que também pode ocorrer
no sujeito gramatical” , Kamlah W. — Lorenzen P. — Logische
Propedeutk — Vorschule des vemünltigen Redens, Mannheim
1967. Vide "predicator” introduzido por R. Carnap em "Meaning
and Necessity” , 2. ed., 1956.
4. A linguagem culta, mesmo aquela que vem utilizada e desenvol­
vida por filósofos, participa quase sempre da falta de rigor e
exatidão da linguagem ordinária. Ao lado destas é possível
uma linguagem que seja construída cuidadosamente com todos
os recursos da lógica e analítica da linguagem; a esta pode­
riamos designar de ortolinguagem. A ortolinguagem não é ne­
cessariamente uma linguagem formalizada. Paul Lorenzen da
Universidade de Erlangen-Nürnberg procura construir uma tal
linguagem de maneira dialogai. Vide ainda o livro de Patzig, G.
— Sprache und Logik, Goettingen, 1970.

132
5. Resumo aqui o modo de proceder diante da História da Filoso­
fia, proposto por Paul Lorenzen.
6. Vide “ Üer spekulative Satz" na obra de Puntel, L. B. — Analogie
und Geschichtlichkéit, 1, Ed. Herder, Munique 1969, pp. 381-391.
7. Para a compreensão da diferença entre linguagem filosófica e
linguagem científica, vide o excepcional trabalho de Ladrière, J.
— Langage scientifique et langage spécuiatif, em: Revue Phi-
losophique de Louvain, números 1 e 2, 1971, pp. 92-132 e 150-282.
8. Que é isto — a filosofia? — Identidade e diferença, Livraria
Duas Cidades, São Paulo 1971, pp. 76-77.
9. Que é isto — a filosofia? — Identidade e diferença, pp. 77-78.
10. Estes aspectos parecem-me constituir as razões das discordân-
cias entre os seguidores da teoria critica de Frankfurt e aqueles
que se ligam a hermenêutica filosófica. Vide Hermeneutik und
ideoiogie Kritik, mit Beitraege von Apel, Bormann, Bubner, Gada-
mer, Giegel, Habermas, Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main 1971.
11. As análises até agora feitas tinham sempre a finalidade de acen­
tuar as diferenças entre ambos, ou para dar razão a um ou a
outro. Além disso foram sempre por demais exteriores ao ver­
dadeiro ductus do pensamento de ambos.
12. Holzwege, Vittorio Klostermann, Frankfurt, a. M. 1950, p. 69.
13. Nietzsche II, p. 415.
14. Sein und Zeit, p. 225.
15. Sein und Zeit, p. 1.
16. Nietzsche II, pp. 199-200.
17. Sein und Zeit, p. 225.
18. Sein und Zeit, p. 225.
19. O uso do método fenomenológico para a analítica existencial
exigiu, entretanto, um desdobramento complexo de aspectos e
implicações que só uma profunda análise poderá mostrar. No
capítulo precedente procuramos mostrar o que significou a fide­
lidade ao emprego especulativo do método; o primeiro grande
problema é a exposição do método fenomenológico hermenêu­
tico, para que não seja compreendido como exterior ao movi­
mento da questão propriamente dita.
20. Nietzsche II, 244.
21 . Nietzsche II, 245-246.
22. Nietzsche II, 246.
23. Nietzsche II, 246.
24. Nietzsche II, 246.
25. Nietzsche II, 415.
26. Ver Nietzsche II: Der Europaeische Nihilismus, pp. 7-232 e Die
Seinsgeschichíliche Bestimmung des Nihilismus, pp. 233-296.
27. Que é isto — a filosofia? — Identidade e diferença, p. 60.
28. Que é isto — a filosofia? — Identidade e diferença, p. 67
29. Assim como considero a interpretação heideggeriana da histó­
ria da metafísica ocidental uma filosofia da História da Filoso­
fia, assim penso que podem ser encontrados elementos de uma
filosofia da história nas interpretações que o Filósofo realiza do
niilismo europeu, sobretudo da Era da Técnica. Determinar se
uma tal filosofia da história possui caráter otimista ou pessi­
mista seria questão de interpretação. Não há dúvida que na

133
linguagem de Heidegger se faz notar uma certa retórica expres-
sionista que parece sugerir urna escatologia do ser. Uma aná­
lise do valor das metáforas usadas neste contexto deveriam abrir
caminho para a interpretação de sua visão da História.
30. O problema da exposição constitui sempre um dos momentos
cruciais de uma filosofia que possui caráter especulativo. Para
que a exposição não seja exterior ao próprio movimento do
objeto propriamente dito, o Filósofo se vê levado a situar-se
dentro do movimento da História da Filosofia, o que muitas
vezes dá a impressão de que toda a História da Filosofia se
desenvolveu em função dele e por ele passa.
31. A consciência que Heidegger tinha do problema da linguagem
mostra a seguinte passagem de Ser e Tempo, p. 39: "Acrescen­
temos uma observação relativa a linguagem das análises que
seguem, a qual não é nem refinada nem “ bela” : uma coisa é
exprimir-se sobre o ente referindo e narrando, e outra coisa é
captar o ente em seu ser. Não são apenas as palavras que o
mais das vezes faltam para esta última tarefa, mas sobretudo a
“ sintaxe” ."
32. Langage scientilique et tangage spéculatit, em: Revue Philoso-
phique de Louvain, números 1 e 2, 1971, p. 279.

134
6
A RADICALIZAÇÃO DA FENOMENOLOGIA
HUSSERLIANA E UMA NOVA TEORIA
DO SER
1 Ainda que Kant tenha reduzido todo o conheci­
mento racional a uma dimensão puramente formal e te­
nha eliminado todo o conteúdo do pensamento que trans­
cende a experiência sensível, tornando, portanto, impos­
sível o conhecimento do ser, eremos, contudo, que os pro­
blemas críticos por ele levantados trouxeram uma contri­
buição definitiva para a ontologia. A impossibilidade de
retornar a uma situação pré-crítica deve ser levada a sé­
rio por qualquer filosofia que tenta elaborar uma ontolo­
gia da realidade que transcende o sujeito. O conheci­
mento metafísico não se pode enclausurar em seus limi­
tes históricos por temor da crítica do conhecimento. A
razão transcendental não deve afugentar a razão metafí­
sica. A exploração positiva daquela deve conduzir a um
avanço nos problemas da ontologia. O envolvimento da
subjetividade na ontologia poderá confluir para novas pos­
sibilidades da interrogação metafísica.
A filosofia transcendental cresceu muito além das pre­
tensões de Kant, e revelou suas virtualidades escondidas,
na exploração que dela fizeram muitos pensadores. Em
Heidegger o processo de radicalização da fenomenología
husserliana conduziu estas virtualidades do pensamento
transcendental a um dos momentos mais altos de sua ex­
pressão. Sigamos algumas etapas para ver qual o cami­
nho que nos levou até lá (1).

2 Do transcendente ao transcendental

2 .1 A teoria do ser da tradição aristotélico-tomista


visa a explicação metafísica da realidade objetiva dos
entes finitos, múltiplos e mutáveis. Tal ontologia resolve
a questão da existência da realidade universal recorren­
do ao fato bíblico da criação. No plano ontológico o ser
dos entes é explicado pela teoria da participação (de ori­

136
gem platônica) e no plano gnosiológico ele é pensado
pela analogia (de origem aristotélica). O ser aparece
numa tríplice perspectiva: é o horizonte em que se desen­
volve o processo analógico, é o fundamento comum da
participação que sustenta os entes e é a realidade subsis­
tente (Deus), causa última do ser dos entes. O ser possui
caráter lógico, ontológico e teológico. A realidade se
explica onto-teo-logicamente (2).
A possibilidade de o homem conhecer esta realidade
é deduzida da própria explicação dada pela ontologia.
O conhecimento humano participa da mesma origem do
homem: o conhecimento do ser tem sua raiz última no
intelecto agente que é uma certa participação da luz divi­
na. Os problemas que permanecem insolvidos se resu­
mem num: o homem explica a realidade pela ontologia e
esta explicação se torna a possibilidade de o homem po­
der explicá-la (conhecê-la). O homem possui um conhe­
cimento sistemático do real e a possibilidade deste co­
nhecimento sistemático se explica pelo próprio conheci­
mento. O círculo se torna justificável porque tem sua
origem e termo em Deus. Deus está no começo de mi­
nha explicação (conhecimento), por isso, atinjo o real.
Eu não reconhecería Deus como fundamento das coisas
(e não haveria ontologia) se Deus não fosse, pelo fato de
eu participar de sua luz, o fundamento do meu reconhe­
cimento dele nas coisas. Desta maneira, o problema do
conhecimento não tem propriamente consistência na tra­
dição aristotélico-tomista. O conhecimento se explica
onto-teo-logicamente (3).
Toda filosofia que quiser dar uma explicação objeti­
va da realidade como um todo e, ao mesmo tempo, justi­
ficar esta explicação, move-se num círculo, porque o ho­
mem faz parte da realidade como um todo. Ele não é
um espectador imparcial que comenta o espetáculo; faz
parte dele. Tal filosofia poderá fugir do absurdo na me­
dida em que erige um ponto fixo que está no começo
do real a ser conhecido e, simultaneamente, no começo
do conhecimento que explora o real. Ela tenderá neces­
sariamente ao sistema, porque possui um ponto de apoio
suficiente para levantar toda a realidade para dentro de
sua oculta sistematicidade. Uma ontologia deste tipo sem­
pre guarda em si um determinado dogmatismo e implica

137
inelutavelmente num sacrifício da postura crítica. A apa­
rente tranqüilidade desta ontologia nasce de seu funda­
mento absoluto que lhe garante o domínio do real e a
certeza do conhecimento.
Esta concepção ontológica faz uso do método obje­
tivo e não problematiza absolutamente a possibilidade de
acesso à realidade transcendente ao sujeito. Na explica­
ção desta realidade ela se nivelará, sob o ponto de vista
do método, com as teorias científicas que também se
ocupam do mundo objetivo; isto conduzirá a contradi­
ções inevitáveis (4).

2. 2 Historicamente esta ontologia entrou em crise


com a discussão do problema dos universais. Qual o grau
de realidade dos conceitos? Qual a relação entre o sin­
gular concreto e o conceito universal? São as idéias ina­
tas ou são elas resultado da ação do intelecto? Não re­
pousa a inteligência na força espontânea do intelecto
agente? Não é, entretanto, um tal intelecto reduzido ao
momento de participação de uma luz não humana? Qual
então o valor da abstração e da intuição?
A crise da ontologia é a crise do fundamento. Posto
em dúvida o fundamento, onde repousa o conhecimento?
É preciso encontrar um novo fundamento. Então os pro­
blemas do conhecimento metafísico se transformam numa
metafísica do conhecimento. Em Descartes eclodiram ex­
plícitamente as interrogações sopitadas havia muito tem­
po. O fundamento é buscado na subjetividade. A reali­
dade transcendente é posta em dúvida. Pela primeira
vez, a ontologia do real objetivo parte do problema do
conhecimento. O sujeito é condição de possibilidade do
conhecimento do real (5).
Aos poucos, todas as discussões voltam-se para a
questão da possibilidade de conhecimento do mundo que
transcende o sujeito. A ontologia deixa de ser propria­
mente uma preocupação primeira. Perde-se a noção de
ser da tradição aristotélico-tomista nos meandros da filo­
sofia moderna. Ela se volta para a subjetividade e para
o problema do conhecimento. O transcendental toma o
lugar do transcendente.
Para Kant o objetivo da interrogação não é o conteú­
do do conhecimento, mas as formas em que ele nos é

138
dado. E estas são as condições que brotam da subjeti­
vidade. O transcendental surge com o problema crítico.
O método transcendental deduz da subjetividade não ape­
nas as condições de possibilidade de conhecimento, mas
a própria, condição de possibilidade dos fenômenos. O
problema do singular e do universal são resolvidos no
interior da subjetividade. Não há mais conhecimento me­
tafísico; interessa apenas a metafísica do conhecimento.
O método transcendental torna-se a estrada real em
que se desenvolve todo o pensamento moderno. Ele igno­
ra a ortodoxia aristotélico-tomista da escolástica, que, ao
longo de muitos séculos, se mantém numa torre de mar­
fim e fora do verdadeiro movimento filosófico (6). Toda
reflexão filosófica se faz transcendentalmente e não de
modo objetivístico. É a partir do sujeito que se discutem
os problemas do real. Desaparece a preocupação de
desenvolver uma teoria do ser no sentido clássico de ex­
plicação objetiva da realidade como um todo. A retoma­
da da discussão do problema do ser também só poderá
ser feita transcendentalmente. A própria ontologia se tor­
nará um problema de teoria do conhecimento.
A descoberta do método transcendental representa
um progresso do movimento filosófico e torna-se impos­
sível ignorá-lo. Desviar-se dele é retroceder. Permanece
apenas a possibilidade de, através dele, ir além. Isto sig­
nificaria concretamente: Depois que a ontologia se trans­
formou em teoria do conhecimento é possível recuperar
através desta uma nova ontologia? Esta a ser elaborada
transcendentalmente, (tendo como centro o homem), se
tornaria simultaneamente o fundamento da ontologia tra­
dicional e da própria teoria do conhecimento. Assim, o
problema do ser será levantado a partir do homem e a
pergunta pelo ser será sua condição privilegiada (7).

3 Nas raizes da diferença ontológica

3. 1 A crise da ontologia tradicional e, paralela­


mente, a crise do conhecimento no sentido clássico, con-
fluiu para a problemática transcendental. A partir de en­
tão o homem assume explícitamente o fato de ele mesmo
sempre estar envolto em todas as interrogações ontoló-

139
gicas. Isto torna o problema do conhecimento uma área
central da filosofia moderna. Não há, evidentemente, uma
evolução linear. A subjetividade, no entanto, permanece,
clara ou inconfessadamente, o eixo unificador de todos
os principais pensadores. Tanto a metafísica geral como
as três metafísicas especiais — cosmología, psicologia
racional e teologia natural — que resumem o objeto da
especulação, segundo Christian Wolff, eram concebidos
objetivisticamente, na linha de fidelidade ao pensamento
clássico, tudo é problematizado a partir do sujeito, que
toma muitas formas. Pensa-se transcendentalmente, isto
é, dentro do horizonte das possibilidades da consciência.
Na raiz da problemática transcendental se esconde a •
questão da responsabilidade crítica. Esta foi esquecida
pelo idealismo absoluto, que, em vez de uma progressiva
conquista da posição transcendental, coloca como dogma
e ponto de partida a transcendentalidade de todo o real,
(todo o real é racional, todo racional é real). Todo o co­
nhecimento tem ainda, no idealismo, um fundamento abso­
luto, mesmo que este seja posto de modo inverso ao da
tradição. Nesta o conhecimento se justifica a partir de
Deus e no idealismo Deus se justifica a partir do conheci­
mento (8).
É no criticismo pós-hegeliano, elaborado pelos neo-
kantianos, que se retoma a verdadeira dimensão crítica e
se explora insistentemente a problemática gnosiológica.
Na filosofia ocidental podem ser tentadas três respostas
à pergunta pela garantia da validez do conhecimento: ela
é dada ou por um ente determinado real ou ideal, ou por
um princípio metafísico que reside além do ente, ou en­
tão pelo próprio sujeito. O criticismo neokantiano opta
pela última instância. O pensamento não deve ter outra
origem que a si mesmo. É verdade que o neokantismo
se perdeu na busca unilateral de um fundamento do co­
nhecimento científico. Reduziu sua preocupação com a
questão do conhecimento aos estreitos horizontes da epis­
temología. Entretanto, o fermento da posição transcen­
dental impediu toda esta época do movimento criticista
de cair no psicologismo. Esta foi a tentação constante
para resolver o problema do conhecimento, no fim do
século passado e no começo deste. Por entre tropeços
e descaminhos foi estabelecida a distinção entre a lógi­

140
ca da filosofia e a lógica da experiência, entre a objeti­
vidade lógica do objeto da experiência e o objeto em si
mesmo.
Lotze é o primeiro que distingue entre o significado
do ser e o conteúdo do ente. Emil Lask mostra a neces­
sidade de se partir, no problema do conhecimento, não
da experiência, mas de categorias ontológicas. O ponto
de partida é a lógica da filosofia e não a lógica da expe­
riência. Portanto, não o ente mas o ser é a questão pri­
meira a ser resolvida. O ser era visto então como condi­
ção de possibilidade da compreensão do ente. Deste
modo o ser se identificava com o sentido. Lask definia o
sentido como toda a esfera do compreensível em oposi­
ção à opacidade do real. O ser devia ser interpretado,
desta maneira, como a condição de possibilidade do co­
nhecimento dos entes (9).

3. 2 Surge assim, dentro da problemática gnosio-


lógica, a questão do ser. Em meio ao deserto das postu­
ras criticistas, centrada em questões muitas vezes ape­
nas epistemológicas, nasce a questão da distinção entre
o ser e o ente. “Assim, o reino dos objetos se cinde no
momento da objetividade e naquilo que é objetivo, no ser
e nos conteúdos entitativos, ou em síntese, em ser e
ente. . . ” (10).
A diferença ontológica nasce da tentativa de resol­
ver o problema epistemológico. O ente é objeto do co­
nhecimento científico e o ser objeto da filosofia. A filoso­
fia fundamenta a ciência, o conhecimento do ser é a con­
dição de possibilidade do conhecimento do real.
No terminal da filosofia moderna, nascida da crise
do pensamento metafísico e instaurada como metafísica
do conhecimento, retorna a questão clássica da filosofia
tradicional: a questão do ser. Este ser nada mais tem a
ver com a constituição onto-teo-lógica da metafísica clás­
sica. A filosofia transcendental se perdera em caminhos
distantes do problema do ser e talvez, no instante mais
pobre do movimento da Filosofia Moderna, perdida no
terreno epistemológico, renasce o que de início fora es­
quecido.
O método transcendental escondia possibilidades
mais ricas. Uma delas foi explorada, nesta mesma época,

141
por Husserl. Este procurou superar o psicologismo, cons­
tituindo uma lógica pura através do método fenomenoló-
gico. A fenomenología de Husserl consiste no desvela-
mento universal e metódico da transcendentalidade da
consciência. Esta transcendentalidade é a própria inten-
cionalidade como Brentano a entendia. Husserl quer mos­
trar pela sua fenomenología que tudo o que conhecemos
no quotidiano tem um sentido transcendental; este é dado
pela nossa consciência que possui em si a possibilidade
da relação objeto-sujeito. A transcendentalidade do nos-
so eu permite que algo se dé para nosso conhecimento.
Este eu, no entanto, não é o eu psicológico, por isso ele
pode tornar-se a sede da lógica pura, para assim se po­
der fugir ao psicologismo.
Também em Husserl reina soberano o método trans­
cendental e também nele a problemática dominante é a
do conhecimento. A dimensão crítica da fenomenología
husserliana oferecería possibilidades não previstas para
a discussão responsável dos problemas do conhecimento.
Não deixa de causar surpresa para o estudioso des­
cobrir como Heidegger, que se iniciou em sua juventude
no pensamento da escolástica suareziana e scotista e
que manteve desde cedo contato com os gregos, recebeu
os impulsos mais decisivos da fenomenología husserlia­
na e da problemática neokantiana. Mais surpreendente
ainda é o fato de Heidegger ter herdado um elemento
fundamental de seu pensamento dos arraiais neokantia-
nos (11). A diferença ontológica, cuja envergadura se
desdobrou muito com o labor do filósofo, Ihe foi ao me­
nos possibilitada pelas análises de Emil Lask (12). O pen­
samento de Heidegger que se quer nos antípodas do pro­
blema gnosiológico deve-lhe, contudo, algo de essencial.
É certo que o filósofo supera de longe a problemática e o
estilo de análise dos neokantianos. Impõe-se, entretanto,
a pergunta: não há no pensamento do filósofo urna pro­
blemática tipicamente transcendental, portanto, um pro­
blema de metafísica do conhecimento? Então Heidegger
se situaria dentro do movimento da subjetividade do pen­
samento moderno (13). É o que se deverá resolver pro-
gressivamente na análise.

142

i
4 A intenção heideggeriana e o problema do co­
nhecimento

4. 1 Um estilo de pensamento afeito aos moldes da


ontologia escolástica, preocupado com uma explicação
objetivista da realidade universal, não esconderá seu en­
tusiasmo perante as novas teorias do ser, nascidas da
corrente moderna. A primeira impressão parece desco­
brir um reflorescimento da ontologia, após a exaustiva
jornada das filosofias da subjetividade. Entretanto, a ex­
periência transcendental realizada pelo pensamento mo­
derno jamais poderá reconduzir ao estágio que a antece­
deu. Não há retorno possível ao passado objetivista. As
conseqüências da história da filosofia transcendental im­
põe certas atitudes críticas e especulativas irredutíveis.
O progresso da reflexão filosófica exige sua continuação.
Busca-se, freqüentes vezes, estabelecer um confron­
to entre o pensamento do ser de Heidegger e as teorias
ontológicas da tradição clássica. A comparação tem sus­
citado recíprocas condenações e poucos resultados fo­
ram experimentados. A quem toma consciência do mo­
mento que cerca as instâncias decisivas do desenvolvi­
mento de Heidegger, não restam muitas esperanças de
que um dia se realize um encontro com a tradição onto-
teo-lógica. A idéia da analítica do ser-aí e a problemá­
tica da compreensão do ser são manifestações da filoso­
fia moderna. Sem a filosofia transcendental as novas
idéias de Heidegger seriam impossíveis. Sem as preo­
cupações vigentes na filosofia do início do século, em
torno da metafísica do conhecimento, Heidegger não te-
ría elaborado seu pensamento original. Basta observar­
mos a presença de alguns elementos, centrais em sua
reflexão, e disto nos convenceremos.
A idéia do sentido como esfera da compreensão é
tipicamente neokantiana. Heidegger fará da interrogação
pelo sentido do ser o tema central de suas análises. A
distinção entre ser e ente nasceu no contexto das dis­
cussões gnosiológicas do neokantismo. Heidegger fará da
diferença ontológica o horizonte do questionamento do
sentido do ser. O ser-aí como ponto de partida para a
interrogação pelo sentido do ser tem vínculos inegáveis

143
com a questão do sujeito na filosofia transcendental. A
procura de uma superação da relação sujeito-objeto é a
preocupação repetida nos meios neokantianos; o proble­
ma da condição de possibilidade é tema central do pen­
samento transcendental. Ambos são aspectos essenciais
das análises do Filósofo.
Se, ao lado disto, observarmos a influência que Hus-
serl recebeu dos neokantianos e a que exerceu, com sua
fenomenología, sobre Heidegger, completa-se o quadro
de fatores da filosofia transcendental que atingiram o fi­
lósofo. Com isto não pretendemos excluir outras influên­
cias, como as de Brentano e as da escolástica. Estas, no
entanto, receberam a tonalidade do contexto de interes­
ses que giram em torno das questões gnosiológicas e
transcendentais.

4. 2 Queremos, com estas afirmações e verificações,


reduzir ao horizonte de problemas próprios da filosofia da
subjetividade e da gnosiología, as experiências fundamen­
tais do pensamento heideggeriano? Isto é impossível e o
conhecimento que hoje temos de seu pensamento de
modo algum permite limitá-lo ao estreito horizonte do neo-
kantismo. O que se impõe é reconhecer que Heidegger,
por suas raízes, é um pensador que nasceu da Filosofia
Moderna e que toda a sua elaboração da questão do ser
implica também num problema gnosiológico. A profunda
originalidade do Filósofo se instaura a partir de sua ex­
periência radical da problemática da modernidade e da
exploração radical das possibilidades da filosofia da sub­
jetividade. Somente assim pôde ele superá-la. Esse ca­
minho, entretanto, nunca o faria voltar ao pensamento
objetivístico da tradição clássica. Heidegger pôde criti­
car radicalmente a insuficiência ontológica tanto do neo-
kantismo como do próprio pensamento husserliano porque
carregava consigo a ambos como herança e como expe­
riência primeira.
Visto que a temática da obra de Heidegger surge
amadurecida dentro do pensamento transcendental, tam­
bém ele se movimenta na esfera da crise do fundamento
que caracteriza a Filosofia Moderna. Também ele vai em
busca de um fundamento para o conhecimento que não

144
mais será encontrado na onto-teo-logia. Depois das dú­
vidas iniciais assume a herança neokantiana ali onde, em
Emil Lask, ela chegara a recolocar a questão do ser, a
questão da diferença ontológica. Por mais acerbas críti­
cas que o Filósofo desenvolva em sua obra contra os
problemas da teoria do conhecimento, ele não poderá es­
conder que foi dela que surgiram suas interrogações ini­
ciais. Não apenas isto; como pensador da filosofia em
situação de crise do fundamento, o problema do conheci­
mento sempre o perseguirá.
Dito isto, não se deve esquecer que Heidegger levou
toda a sua interrogação para muito além. Torna-se até
mesmo difícil, numa análise imánente, destacar em suas
obras a problemática do conhecimento. É que o filósofo
se move apenas na interrogação pelo sentido do ser e não
se detém para expor quais são a partir daí as conseqüên-
cias para o conhecimento dos entes. Que o sentido do
ser é a condição de possibilidade de qualquer conheci­
mento ôntico fica, no entanto, evidenciado. Para a com­
preensão disto é preciso captar mais claramente a inten­
ção fundamental de Heidegger (14).
Tanto no pensamento neokantiano como na fenome­
nología de Husserl a intenção fundamental se concentra­
va na busca daquela esfera em que reside toda a expe­
riência ôntica dos objetos. Além da lógica da experiência
deveria haver uma lógica pura. Por isso ambos fugiram
de todas as questões tácticas ou de conteúdo psicológico.
Husserl levou esta atitude até a radicalidade do eu trans­
cendental. Só assim pensava encontrar a condição onto­
lógica do conhecimento ôntico. A transcendentalidade da
consciência permitiría descobrir a correlação entre cogi-
tatio e cogitatum, entre sujeito e objeto.
Heidegger destaca-se de todas estas tentativas por
uma afirmação ousada e totalmente nova: já na minha
vida concreta estou ligado à questão do ser. Só posso
ser transcendentalmente, isto é, compreendendo a mim
mesmo em meu ser. O fato de me compreender em meu
ser é a primeira e originária abertura da qual deve partir
toda teoria sobre o ser. O que originária e implicitamente
já sempre acontece enquanto me compreendo em meu
ser deve se explicitado para que alcance o verdadeiro
horizonte para o questionamento do sentido do ser. Não

145
preciso, portanto, ir em busca da minha transcendentali-
dade recorrendo a um eu superior e puro, basta explicitar
minha existência concreta onde, desde que sou, aconte­
ce compreensão de ser. Meu tato de ser homem repousa
nesta compreensão ontológica.
Toda a busca da transcendentalidade, e a própria
intencionalidade, tem como esfera anterior possibilitante
o fato da compreensão de ser. Todo o conhecimento dos
entes somente é possível nesta esfera da compreensão
do ser. A diferença ontológica é algo de absolutamente
inseparável da minha própria existência.
Esta transcendentalidade táctica pode ser comprova­
da pela análise transcendental do ser-aí, que é o nome
para o homem enquanto abertura originária para a com­
preensão do ser. É o que Heidegger realiza em sua obra
Ser e Tempo. Progressivamente, no entanto, o filósofo
descobre que eu mesmo emerjo da abertura originária da
compreensão do ser. Não apenas as coisas se dão no ho­
rizonte da minha compreensão de ser. Não apenas as
coisas, eu mesmo sou o dom que é dado nesta compre­
ensão. Assim, o ser torna-se o âmbito que não se dá sem
mim e do qual, contudo, emerjo. A fenomenología de
Heidegger constitui, desta maneira, uma dupla ontologia
fundamental: A ontologia do ser-aí e a ontologia do ser
que seria a condição de possibilidade de toda e qualquer
ontologia (regional).
Já o nome ontologia fundamental revela a idéia da
busca do fundamento, característica da filosofia moderna
e transcendental. A analítica existencial confluiría para
a ontologia fundamental na medida em que a análise do
ser-aí fosse o ponto de partida necessário para a busca
do sentido do ser. A análise do sentido do ser seria a
ontologia fundamental para todas as ontologias dos diver­
sos entes. Em tudo isto torna-se inconcebível um retorno
ao objetivismo do pensamento tradicional. Tudo procede
transcendentalmente. Mesmo a ontologia fundamental
construída a partir da análise do sentido do ser pressupõe
a análise transcendental do ser-aí. Esta dupla ontologia
suscita, sem dúvida, enquanto constitui um círculo (her­
menêutico), graves problemas de exposição. E as ques­
tões da estrutura e do movimento da interrogação hei-
deggeriana bem o demonstram.

146

L
Surge, assim, no pensamento de Heidegger, uma teo­
ria do ser elaborada a partir da problemática transcenden­
tal e, num sentido radical, da do conhecimento. Como foi
isto possível? Que ser é este que é objeto da nova onto­
logia, que se constitui nos antípodas do pensamento da
tradição clássica?

5 Uma nova teoria do ser

5. 1 A fenomenología transcendental de Edmund


Husserl abriu o caminho para a progressiva constituição
de urna nova ontologia a partir da experiência da filosofia
moderna. A ontologia clássica não alcançou grande ma­
turidade no questionamento da questão do ser. Este era
considerado como algo evidente e universal, sempre sub-
sumido na interrogação pelo ente finito, permanecendo
de certo modo inefável e indefinível. Assim, a ontologia
da tradição carecia de radicalidade, distraindo-se com o
problema dos entes. O pensamento moderno da subje­
tividade não foi capaz de reconstituir uma ontologia des­
de sua matriz inspiradora. Husserl com sua descoberta
da intencionalidade e com a tematização do ente no como
de sua revelação, isto é, enquanto dado, descerrou o es­
paço para uma radical pesquisa ontológica (15).
A teoria heideggeriana do ser depende, em sua ex­
plicitação, diretamente da descoberta de Husserl. Pouco
lhe teria valido o conjunto de suas experiências, mesmo
no que diz respeito ao problema da diferença ontológica,
inspirado em Lask, sem a idéia da redução e constituição
da fenomenología husserliana. Seria através dela que a
filosofia moderna daria como fruto, na filosofia, de Heideg­
ger, uma nova ontologia (16).
Husserl procurara superar a ontologia tradicional no
que ela possuía de ingenuidade objetivística, (o que se re­
velava, por exemplo, na idéia de que o ser podia obter-se
pela via da abstração), mostrando que o ser somente pode
ser encontrado através da redução transcendental. Hus­
serl estava convicto de que o ser se fundava na correla­
ção entre o dado e a consciência. A ontologia, portanto,
deveria ser necessariamente uma fenomenología. Heideg­
ger percebeu logo que isto era insuficiente, porque Hus-

147
serl carregava consigo assim um implícito sentido de ser.
Era este que deveria ser buscado e que levaria a uma su­
peração do estágio atingido por Husserl. Foi o que Hei-
degger fez. Segundo ele, a ontologia ultrapassada pela
fenomenología exigia uma nova ontologia. Ele criticava
Husserl em dois aspectos: a omissão do problema do ser
daquele ente posto entre parênteses na redução e cons­
tituído na constituição e a omissão do problema do ser
daquele que constitui (o homem) (17). Heidegger pergun­
ta então como se dá o ser do ente em geral e como se dá
o ser do homem. Isto de início se resumiría na problema-
tização daquele ente através do qual se abre qualquer
possibilidade de espaço em que algo se dá. Este é a aber­
tura originária do ser-aí enquanto se compreende como
ser, o que quer dizer, do ser-aí enquanto ser-no-mundo.
No ser-aí se abre a possibilidade de qualquer encontro
(esta é a palavra que substitui, em Heidegger, a expres­
são “¡mediatamente dado” de Husserl) (18).
Assim, a temática fenomenológica se situa, para Hei­
degger, da seguinte maneira:
1 — O modo como se dão os entes intramundanos
não é a esfera do simplesmente objetivo.
2 — O modo como se dá aquele que constitui e seu
ser não podem ser pressupostos como objetivos.
3 — Não basta perguntar pelos diversos modos como
se dá o ente; o importante é perguntar como é possível
o próprio dar-se. Como é possível que algo esteja des­
coberto? — perguntará Heidegger. O fato de algo estar
descoberto, manifesto e de poder ser encontrado se dá
porque tudo o que encontramos é experimentado enquan­
to ente. Deste modo, a pergunta pelo sentido do ser e a
pergunta pela abertura do ser-aí coincidem. O sentido do
ser e a facticidade do ser-aí tornam-se questões inse­
paráveis (19).
A questão do ser residirá, então, para Heidegger, na
abertura do ser-aí e na revelação do ente. Nelas deve
ser pensado o fato de algo dar-se e a possibilidade deste
dar-se. O ser não é mais abstraído objetivamente dos en­
tes, chega-se a ele pelo recurso transcendental à com­
preensão do ser pelo ser-aí. Sob este aspecto Heidegger
não foge, como tampouco Husserl, da problemática do
pensamento da subjetividade. Mas, Heidegger vai mais

148
longe. O ser é, de certo modo, projeto do ser-aí. Desta
maneira, forma este o horizonte em que todo o ente é com­
preendido. O ser-aí, no entanto, não é presença originá­
ria, como o eu transcendental de Husserl. Seu ser é tem-
poralidade, não é seu próprio fundamento, porque acon­
tece como historicidade indisponível. O ai do ser-aí, que
é abertura sem a qual não se dá a revelação do ente, sur­
ge dum ámbito a partir do qual o ser-aí se encontra con­
sigo mesmo. Então se impõe claramente, que o ser-aí
não pode exercer a função de fundamento, o que ainda
era típico da subjetividade da filosofia moderna e da feno­
menología de Husserl (20).
O espaço de onde emerge o ser-aí, e onde se revela
o ente, é o mundo, o desvelamento, a clareira, o aconteci-
mento-apropriação (Ereignis), ou o ser. Isto é experimen­
tado pela compreensão radical da diferença ontológica.
O ser que é assim exposto por Heidegger surge da supe­
ração e radicalização da subjetividade e da postura trans­
cendental. Este ser não pode mais ser entendido como
determinação do ente. Pelo contrário, todo o ente é com­
preendido enquanto emerge do ámbito do ser. O ser, para
Heidegger, é aquele espaço, abertura ou clareira, em que
acontece qualquer ente. Ele se manifesta como tempo (21).
As expressões usadas pelo filósofo para dizer o ser reve­
lam que ele é o acontecer de uma clareira, em que se dá
o desvelamento de todo ente.

5 .2 O ser, assim compreendido, nunca foi pensado


pela tradição. Aqui Heidegger tem razão quando diz que
a ontologia tradicional esqueceu o ser. Efetivamente, o
ser heideggeriano é produto da radicalização da fenome­
nología no sentido husserliano (22). Primeiro era neces­
sário superar a ontologia objetivística, mediante a feno­
menología transcendental, colocando a problemática do
ser a partir do homem. Não sendo isto suficiente era pre­
ciso dar o segundo passo: além de Heidegger realizar a
ontologia fundamental, enquanto analítica existencial, rea­
liza a ontologia fundamental, enquanto elaboração do
sentido do ser. Foi isto possível pela via fenomenológi-
ca? O terceiro passo, dado pelo Segundo Heidegger,
permite suspeitar a resposta: o sentido do ser é a pró­
pria clareira, o mundo, o desvelamento. A fenomenología

149
(desaparecida como expressão) se resume no papel de
vigiar a diferença ontológica e, nela, o acontecer de vela-
mento e desvelamento, que são duas faces do ser (23).
A idéia heideggeriana de ser é estranha a toda tradi­
ção metafísica; e mesmo que nascida no contexto da ex­
periência moderna da subjetividade, ultrapassa, contudo,
qualquer teoria de ser da filosofia transcendental. E, ain­
da que radicado na problemática do conhecimento, (resol­
vendo-a até em seu fundamento), ela permite a elabora­
ção de uma ontologia fora da concepção onto-teo-lógica e
fora das tentativas do pensamento subjetivista. Tem Hei-
degger o direito de chamar seu “ser” de ser? Nisto, sem
dúvida, ele não insistiria muito. Mais de uma vez tem dito
que, ao usar outras palavras para dizer o que põe de
conteúdo na palavra “ser”, quer mostrar que nela(s) ex­
prime algo bem diverso que o ser da tradição (24).
A idéia de ser que Heidegger amadureceu permite-
lhe a constituição de uma ontologia, (este nome também
não é imprescindível), que se alimenta de uma área não
tematizada da tradição. Esta área, aliás, é intematizável
sem a experiência transcendental concentrada no pensa­
mento husserliano. Pouco afeitos à linguagem que emerge
da radicalização e, somente assim, superação da subje­
tividade, assalta-nos a tentação de pôr Heidegger diante
da alternativa do subjetivismo e objetivismo. Isto seria
ignorar a distância que de ambos mantém o filósofo.
Tudo o que os pensadores da filosofia ocidental perse­
guiram como objeto de sua meditação dava-se e se dá
numa abertura que, ela só, representa o espaço em que
jogam a luz e a sombra (25). É a clareira (Lichtung), na
palavra de Heidegger. Este termo não procede de uma
afirmação ingênua; ele traz em si todas as etapas da feno­
menología. A clareira não é uma simples afirmação de
um espaço transcendente (fora o independente do ho­
mem), nem simplesmente o horizonte transcendental (no
interior e dependente do homem). Enquanto surge da re­
cíproca apropriação entre ser e homem ela é a reconcilia­
ção da ontologia do transcendente com o pensamento
transcendental. A clareira, (enquanto palavra que resume
o legado heideggeriano), é a superação do objetivismo
e do subjetivismo (26).

150
6 O projeto que está na base de Ser e Tempo se
propunha a superação do esquema sujeito-objeto e o en­
contro entre aquilo que transcende o homem e a dimen­
são transcendental. O caminho para a realização de um
tal projeto seria a analítica existencial, isto é, a determi­
nação da essência do homem a partir de sua relação com
o ser, sendo esta essência denominada em sentido claro
e preciso de ser-aí. A partir dos resultados desta analíti­
ca existencial seria respondida a questão do sentido do
ser. Numa passagem de sua obra, Nietzsche, o Filósofo
fala do fato de um tal questionamento não ter sido com­
preendido e aponta duas razões fundamentais: de um
lado, a tendência irresistível da maneira de pensar da Fi­
losofia Moderna de sempre representar o homem como
sujeito, tomando toda reflexão sobre o homem como an­
tropologia; de outro lado, a própria origem e contexto
histórico-filosófico em que surgiu Ser e Tempo. Anali­
sando este segundo aspecto o Filósofo refere as dificul­
dades de um pensamento que visa superar a filosofia da
subjetividade pela radicalização desta própria subjetivi­
dade. “De outro lado, porém, a causa da não compreen­
são reside no próprio ensaio, que pelo fato de talvez con­
tudo, ser algo que amadureceu no contexto histórico e
não ser algo “artificial”, vem do que tem vigência até hoje
(o pensamento da subjetividade), mas disto se procura
libertar e por isso mesmo necessária e constantemente
aponta ainda para o caminho do que se desenvolveu
até o tempo presente; invoca até o seu auxílio, para con­
tudo, dizer algo inteiramente diferente. Este caminho, po­
rém, se interrompe num ponto decisivo. (Ser e Tempo per­
manecería uma obra inacabada E. S.). Esta interrupção
se funda no fato de o caminho encetado e o próprio en­
saio incidirem contra sua vontade no risco de novamente
tornarem-se apenas uma fortaleza da subjetividade e de
eles mesmos impedirem os passos decisivos, isto é, sua
satisfatória exposição num único movimento essen­
cial” (27).
Mesmo inacabada, a tentativa de Ser e Tempo, como,
o próprio Filósofo o afirma, foi o primeiro passo necessá­
rio para o projeto de superação da subjetividade pela ra­
dicalização e adentramento na metafísica ocidental. A
continuação desta mesma tarefa constituem os elementos

151
nodais da obra do Segundo Heidegger. A interpretação
das obras posteriores que não levasse em conta os re­
sultados da analítica existencial só levaria a equívocos.
Até os últimos trabalhos a questão do sentido do ser se
impõe como determinante e a estrutura binária do méto­
do fenomenológico-hermenêutico comanda todas as
análises.
Um dos últimos textos, em que o Filósofo expõe de
maneira coerente e global sua visão do fim da filosofia e
da tarefa que resta para o pensamento, é apresentado
de maneira reveladora: “O texto que segue faz parte de
um contexto maior. É a tentativa sempre repetida desde
1930, de dar uma forma mais radical ao questionamento
de Ser e Tempo. Isto significa: submeter o ponto de par­
tida da questão em Ser e Tempo a uma critica imánente.
Através disto deve esclarecer-se em que medida a
questão critica que pergunta pela questão do pensamen­
to, pertence necessária e constantemente ao pensamento.
Em consequência disto se modificará o título da tarefa
Ser e Tempo” (28). E no fim da análise Heidegger per­
gunta: “Seria a expressão para a tarefa do pensamento
em vez de Ser e Tempo: Clareira e Presença (Sein und
Zeit: Lichtung und Anwesenheit)" (29).
A nova teoria do ser, que no Segundo Heidegger con­
duz à própria supressão do termo “ser”, recorre a nomes
cada vez mais descomprometidos com a onto-teo-logia,
para reduzir os riscos da subjetividade. O que Heidegger
pensa com a palavra “clareira” não foi efetivamente te-
matizado por nenhuma ontologia; na medida em que ser
é pensado como clareira, a ontologia que o Filósofo visa
constituir “coincide com a radicalização da fenomenolo­
gía; o einai coincide com o phainesthai” (30).

152
NOTAS — 6

1. Ao seguirmos os passos que levaram, através da filosofia trans­


cendental, até a nova teoria do ser de Heidegger, não queremos
afirmar uma espécie de processo necessário imánente ao pen­
samento da subjetividade. Trata-se apenas de apontar uma
cadeia de influências que se estende de Kant a Heidegger e na
qual foi-se transformando o pensamento do ser, que caracteri­
zava a tradição metafísica.
2. Traço básico de toda a obra de Heidegger é a crítica ao cará­
ter onto-teo-lógico da metafísica ocidental. O Filósofo interpreta
a onto-teo-logia como tentativa fracassada de pensar a dife­
rença entre ser e ente. Ver a conferência A constituição onto-
teo-lógica da metaiisica em Que é isto — a filosofia? Identi-
tade e diferença de M. Heidegger, Livraria Duas Cidades, São
Paulo 1971.
3. Este modelo onto-teo-lógico circular impede o pensamento to­
mista de descobrir um caminho para uma verdadeira critica do
conhecimento.
4. Ainda que o pensamento neopositivista faça do pensamento
metafísico tradicional, alvo preferido de sua crítica, ambos pos­
suem um elemento essencial em comum: uma ontologia ingênua;
a diferença reside apenas no fato de a onto-teo-logia desenvol­
ver esta ontologia, enquanto que para o neopositivismo ela cons­
titui um pressuposto que este ignora. Ver o trabalho de Ernst
Tugendhat — Die sprachanalytische Kritik der Ontologie em: Das
Problem der Sprache, Ed. por H.-G. Gadamer, Munique 1967,
pp. 483-493.
5. Ver E. Stein — A filosofia e a tarefa da verdade em: Revista
Chronos 2, Caxias do Sul 1968.
6. Ver a tentativa de um redimensionamento do pensamento tomis­
ta em confronto com Kant, Hegel e Heidegger, realizada por L.
Bruno Puntel em sua obra Anafogie und Geschichtlichkeit 1, Ed.
Herder, Freiburg 1969.
7. Ser e Tempo é a primeira obra que se propôs realizar sistema­
ticamente o que vinha implícito em todo o movimento da Filo­
sofia Moderna: analisar a questão do ser a partir do homem.
Heidegger, porém radicalizou a filosofia da subjetividade para
superá-la; isto lhe possibilitou a constituição de sua teoria
do ser.
8. Hegel permanece, entretanto, uma alternativa válida para a re­
novação do pensamento do ser; sua inexaurível capacidade de
revelar novos ângulos para quem o estuda, tem sido compro­
vada pela singular história dos diversos hegelianismos. Hegel
não entra, porém, na linha evolutiva que conduziu para a ques­
tão do ser posta por Heidegger; em parte para desvantagem
deste, não há dúvida. Tal fato tem suas razões históricas: a
formação de Heidegger realizou-se num clima neokantiano e
num dos momentos menos felizes da tradição hegeiiana.

153
9. Ver Emil Lask — Gesammelte Scbritten, Editados por Eugen
Herrigel, Vols. I e II, Tübingen 1923.
10. Emil Lask — Die Logik der Philosophie und die Kategorienlehre
(1911), em: Gesammelte Schriften Vol. II. Ver Manfred Brelage -
Studien zur Transzendentalphilosophie, Berlim, 1965.
11. A presença da problemática do neokantismo é bem maior no
pensamento de Heidegger do que as referências explícitas do
Filósofo fazem suspeitar. Sobretudo nas discussões com Cas-
sirer mostra-se, entretanto, como foi crítica a recepção do neo­
kantismo e como Heidegger não deixa de chamar constante­
mente atenção para a unilateralidade das preocupações episte­
mológicas dos neokantianos. As interpretações de Kant mos­
tram como no fundo se abre, em Heidegger, uma nova visão
de Kant.
12. Heidegger mesmo fala de seu estudo de Emil Lask: “ É claro que
temporariamente este domínio (da preocupação com a relação
entre ontologia e teologia especulativa) retrocedia diante do
que Rickert tratava em seus exercícios de Seminário: Os dois
escritos de Emil Lask, seu aluno, que caiu como simples sol­
dado, já em 1915, no front da Galicia. . . . Os dois escritos
de Emil Lask — A lógica da filosofia e a doutrina das Catego­
rias. Um estudo sobre o âmbito do dominio das formas lógicas,
(1911) e A doutrina do iuizo, revelavam por sua vez. com sufi­
ciente clareza, a influência das Investigações lógicas de Hus-
serl.” Ver Martin Heidegger — Zur Sache des Denkens, Max Nie-
meyer Verlag, Tübingen 1969, p. 83.
13. O contato de Heidegger com o movimento da subjetividade le-
vou-o a uma radicalização tal das intenções últimas do pensa­
mento transcendental que o transformou por dentro. Mostrou
que a subjetividade carrega em si mesma a possibilidade de
auto-superação pela radicalização em que se assume como
círculo, rompendo desta maneira a tendência para a absolutiza-
ção de si mesma.
14. Ver a observação crítica que faz Dieter Henrich sobre a inter­
pretação heideggeriana da autoconsciência e sobre o ponto de
partida de Heidegger, em: Selbstbewusstsein publicado no livro
de homenagem ao septuagésimo aniversário de H.-G. Gadamer,
intitulado Hermeneutik und Dialektik, 2 Vols., J. C. B. Mohr, Tü­
bingen 1970, pp. 257-284 (em particular pp. 281-2).
15. Tugendhat E. — Der Wahrheitsbegriff bei Hussert und Heidegger,
Ed. Walter de Gruyter, Berlim 1967, p. 262.
16. Ver minhas observações sobre a mudança que sofreu o concei­
to de ser em sua passagem pela filosofia transcendental em:
Nota do tradutor no volume de minhas traduções de Heidegger:
Sobre a essência da verdade — A tese de Kant sobre o ser,
Livraria Duas Cidades, São Paulo 1970, pp. 9-13.
17. Ver as observações que Heidegger fez à margem do artigo
Fenomenología escrito por Husseri para a Enciclopédia Britâ­
nica Husserliana IX, p. 602.
18. Tugendhat E. — Der Wahrheitsbegriff bei Husseri und Heidegger,
p. 270.

154
19. Tugendhat E. — Ibidem p. 270.
20. Ainda que Heidegger utilize a expressão “ ontologia fundamen­
tal", o termo “ fundamental” perdeu a conotação que possuía
na Filosofia Moderna. O ser-ai não poderá ser mais concebido
como fundamento porque sua constituição é circular. Ainda que
o acesso ao ser se realize através do ser-ai, este não se com­
preende sem que seja pressuposta uma relação originária com
o ser. Para Heidegger esta relação já está sempre em exercí­
cio no comportamento do ser-aí em face dos entes.
21. A referência ao supra-sensível e atemporal constituiu um ele­
mento básico da idéia de ser desenvolvida pela metafísica. Hei­
degger, entretanto, procurando conquistar o âmbito a partir do
qual fosse possivel compreender a intrínseca multiplicidade dos
modos de ser, através da unitária idéia de ser, ligou o ser ao
tempo. A temporalidade e historicidade tornam-se o estatuto
necessário de sua ontologia. A teoria heideggeriana do ser bus­
ca o sentido do ser no horizonte do tempo. Assim Heidegger
supera os limites da metafísica e prenuncia uma nova interpre­
tação do ser. A história é elevada ao nível da ontologia. Desta
maneira o Filósofo determina o elemento nodal do ser da tra­
dição como presença.
22. Esta radicalização leva a uma nova concepção do método. Pen­
samento, método e questão do ser são pensados numa unidade.
É isto que caracterizamos, em capitulo anterior como dimensão
especulativa da filosofia heideggeriana.
23. O conceito de fenomenologia no Segundo Heidegger coincide
com o pensamento do ser, enquanto o ser é pensado com o
modelo binário de velamento e desvelamento. No Segundo Hei­
degger está quase totalmente ausente o processo de mediação
que se realizou em Ser e Tempo. Por isso muitos intérpretes de
Heidegger vêem na pura gratuidade da escuta do ser uma es­
pécie de mística. Não concordo com tal interpretação; penso
ser possível apontar para elementos do Segundo Heidegger que
representam o papel de mediadores de sua teoria do ser.
24. De resto o Segundo Heidegger parece reter ainda o termo “ ser”
para não perder o contato com a tradição onto-teo-lógica e me­
tafísica. Os termos Ereignis e Lichtung denotam uma dimen­
são em que a idéia de ser está mediada e subsumida junto
com elementos nunca antes pensados pela metafísica ocidental.
25. Ver o ensaio Das Ende der Philosophie und die Aulgabe des
Denkens em: Zur Sache des Denkens de Heidegger, Max Nie-
meyer, Tübingen 1969. Neste ensaio o Filósofo estiliza, numa lin­
guagem depurada e rigorosa, a sua Concepção de Lichtung
(clareira) a partir do conceito de alétheia.
26. “ A questão do ser como tal situa-se fora da relação sujeito-
objeto” afirma Heidegger em sua obra Nietzsche II Vol. p. 199.
27. Heidegger, M. — Nietzsche, vol. II, pp. 199-200.
28. Heidegger, M. — Zur Sache des Denkens, p. 61.
29. Heidegger, H. — Zur Sache des Denkens, p. 80.
30. Tugendhat, E. — Der Wahrheitsbegriff bei Husseri und Heideg­
ger, p. 277.

155

Anda mungkin juga menyukai