DE CARLA KINZO
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A MULHER Q
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QUE DIGITA
DE CARLA KINZO
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APRESENTAÇÃO
MARCOS GOMES
apoio
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Eu não contei algo do meu passado para que vocês o
conheçam, mas sim para que vocês saibam que nunca o
conhecerão.
Elie Wiesel
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– que, apesar de não terem nomes próprios (são designadas
pelas funções que ocupam), comportam-se segundo certa noção
de realidade, a qual o leitor (espectador) reconhecerá como
verossímil. Acontece, porém, que, por trás dessas convenções
dramáticas, Kinzo irá promover algumas torções na forma,
sobretudo ao inserir, por meio da narração, o processo de
construção de uma personagem em cena. Mas também ao
deslocar vetores de força essenciais para fora do palco, que, além
de ampliarem a tensão interna, distorcem aos poucos a própria
noção de realidade – esse desajuste, no entanto, quanto mais
afasta o real, mais se aproxima de sua essência.
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o outro, e é por meio dela que podemos recolocar no centro do
debate as questões de classe que legitimam a violência de uma
minoria branca, masculina e misógina, sobre uma maioria negra,
pobre e periférica. São as questões transversais, como também
o é a questão étnica, que talvez, ainda hoje, de alguma forma
consigam tornar evidentes as ideologias que oprimem extratos
gigantescos da população. Se há alguma possibilidade de transpor
essa barreira e iluminar as atrocidades de um modo de vida
perversamente transparente, que atribui valores diferentes à vida,
essa possibilidade só existe no encontro com o outro, com aquele
que não pode, ou não consegue mais, se omitir.
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A MULHER QUE DIGITA
de Carla Kinzo
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“Às vezes, a perfeição acontece, e essa foi uma dessas
vezes [...]; o horror perfeito descrito por uma voz capaz
de abrangê-lo sem esforço [...]”
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Personagens
Cenário
Anoitece.
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(Breu)
(Tempo)
(Mulher que digita olha para a Mulher que dita, que pensa)
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MULHER QUE DITA: No dia em que tudo aconteceu, ela fez
só uma casa. Precisava enviar aquela carta.
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(Tempo)
MULHER QUE DITA: Ela sentiu que alguma coisa não estava
certa. Talvez as pessoas saibam, numa fração de segundo, que
uma coisa muito ruim vai acontecer. Não é assim? Hein? Você
não acha? Mas é tão rápido, ou é tão inexplicável, que a razão não
dá atenção. Mas o corpo – puro instinto – reage, à revelia. Ela dá
um passo pra trás, quase querendo fugir; o corpo titubeia. Você já
sentiu isso? Mas a cabeça, má que é, diz: “segue. Não é nada, você
está louca”. Sem dar atenção à reação do corpo diante do perigo,
ela segue.
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MULHER QUE DIGITA (confusa): Espera. Espera só um
pouquinho, acho que preciso voltar...
MULHER QUE DIGITA: Você disse que ela... Que talvez ela
tivesse reconhecido essa pessoa. É isso?
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MULHER QUE DITA: Avançamos bem.
(Tempo)
(Mulher que dita servindo uma xícara de café para a Mulher que
digita)
(Tempo)
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MULHER QUE DIGITA: Tá certo. Um café.
(Tempo)
MULHER QUE DITA: Você não acha que ela seria uma boa
personagem?
MULHER QUE DIGITA: Hum. Não deve ser isso que gerou
o bloqueio na escrita?
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alguém com quem dividir essa parte do processo, ainda mais com
essa pressa de entregar os originais.
Ou tem, não sei.
Mas acho que agora estamos conseguindo seguir. Você não acha?
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MULHER QUE DITA: É. Também. Não é?
MULHER QUE DITA: Alguma coisa. Vou usar o que der para
escrever.
(Tempo)
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Paramos em “seu corpo já dobrava a esquina”.
(Tempo)
(Elas se olham)
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Não, assim que ela dobrar a esquina ele não irá dizer nada. Ela
então o reconhece. Hesita primeiro. Mas caminha em sua direção.
Não, ela não o reconhece. Ela pressente. Assim que ela dobrar
a esquina ele também pressente. Sim, é ela. Caminha em sua
direção e...
(Tempo)
(Tempo)
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MULHER QUE DITA: Os séculos passam diante dela, os
museus como testemunhas dos naufrágios, farrapos de guerras,
ruas sem saída.
(Tempo)
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digita, que lê, que não tem ideia?
MULHER QUE DITA: Eu não sei, não sei como te dizer isso.
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MULHER QUE DITA: Sim. Sim, é isso. Mas agora eu não sei
como seguir.
MULHER QUE DIGITA: Sabe sim. Olha só: você pode seguir
nessa toada, suspendendo o ponto em que essa mulher duvida, na
esquina. E conta a história dela de trás pra frente; ela em sua casa,
sei lá, com as filhas, com a mãe, então os motivos que poderiam
ter levado a tudo isso vão se desenhando...
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MULHER QUE DITA: Eu não estou encerrando por hoje. Só
preciso pensar em como dizer isso. Pra você.
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MULHER QUE DIGITA: Eu não devia ter falado o nome dela
tão alto.
(Tempo)
(Tempo).
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MULHER QUE DITA: Tenho tido dificuldades para dormir.
MULHER QUE DITA: O que você acha que são esses ruídos?
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MULHER QUE DITA: Esses gritos?
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mês curto, você não gosta de dever, se preocupa em fazer a
coisa certa, e, como uma mulher correta, você me pressiona pra
produzir as 15 páginas por dia até o final da semana, ou vamos
estourar o prazo, isso não pode, claro, você aceita meus dois cafés
de pausa, não vão te atrapalhar no andamento do trabalho, claro,
mas o terceiro pode te atrasar, imagina estar na rua na hora do
toque de recolher, isso não, nunca! Você sempre está em casa
muito antes, vai dormir na sua cama de lençóis exemplarmente
esticados muito antes do horário em que todas aquelas mulheres
deveriam estar na cama, sem pensar na razão de tudo isso, não é?
Você prefere não pensar nisso.
MULHER QUE DIGITA: Eu não sei. Você tem razão, não faz
sentido, não sei. Ou faz, sei lá. Não entendo de gatos.
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MULHER QUE DITA: Eu não acredito que você possa
acreditar numa coisa dessas!
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para viver. Para viver os dias. Para suportar. Eu vi o rosto deles.
Eu podia me matar, me deixar matar, mas me mantenho viva pra
tentar contar o que aconteceu. Meu filho era um menino, tinha só
15 anos; eles entraram em casa, o executaram, dormindo, depois
colocaram uma arma na mão dele”.
MULHER QUE DITA: “Depois viram que não era ele quem
eles estavam procurando, mas como ele era pobre e preto, como
eu, preta e pobre, tudo bem. Dá no mesmo. Muito tempo eu não
consigo me manter viva pra contar isso”.
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MULHER QUE DIGITA: Acho que. Acho que já temos
bastante coisa pra hoje. Tá ficando tarde.
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(Elas param e ouvem, assombradas)
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MULHER QUE DIGITA: É disso que eu estou falando.
(Tempo)
(Elas se olham)
(Tempo).
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MULHER QUE DIGITA: Fica no thriller, qual o problema?
As pessoas precisam disso pra viver! É importante também, por
que não? Ou arruma um outro jeito de dizer isso que você está
querendo dizer, sem dar nome a todas as coisas! Às vezes nomear
tudo pode ser um problema.
(Tempo).
(Tempo)
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MULHER QUE DIGITA: É temporário... Essa situação toda é
temporária.
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MULHER QUE DITA: Não seja estúpida! Pensa: quem é esse
homem que estava na esquina? Acha que é ex-marido, que foi
bandido? Você vai ter mesmo coragem de sair sem saber?
MULHER QUE DIGITA: Mas eu não fiz nada, não preciso ter
medo de nada!
(Tempo)
(Tempo)
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MULHER QUE DIGITA: Mas presta atenção: é um tiro no pé
escrever as coisas dessa maneira.
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MULHER QUE DIGITA: Eu sou apenas a mulher que digita,
não sei escrever histórias; o que eu faço é ouvir, copiar, repetir,
ouvir, copiar, repetir, ouvir...
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muito antes do horário em que todas aquelas mulheres deveriam
estar na cama. E você também não dorme.
(Elas se olham)
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MULHER QUE DITA: “é porque você tem como ajudar essas
mulheres”
(Mulher que dita faz menção de sair, dirige-se à porta. Mulher que
digita vai atrás dela e a impede, com o corpo, como pode)
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MULHER QUE DIGITA (lutando com a Mulher que dita):
Não adianta sair, não adianta, eu não vou ficar no seu lugar, essa
decisão não é sua, não vou te soltar, você sabe continuar isso,
você vai saber seguir de outra maneira; eu não fico na sua casa, ela
não é minha, não é isso que vai me fazer dormir, não vai aliviar o
uso dos remédios para dormir, imagina, escrever! – e você, você
está apenas com medo de fazer o que é preciso ser feito, mas as
coisas que precisam ser feitas têm a força que nos leva a terminá-
las!
(Elas se largam)
(Elas se olham)
(Tempo)
(Finalmente: silêncio)
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MULHER QUE DITA: Ouve.
(Mulher que digita olha para a Mulher que dita. Toma coragem)
(Elas se olham)
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(Tempo)
(E sai)
FIM
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Prefeitura de São Paulo João Doria
Secretaria de Cultura André Sturm
Neste espetáculo cada profissional, além de ser responsável pela sua área, é
também pela concepção geral da obra.
realização apoio
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R. Vergueiro, 1000 / CEP 01504-000
Paraíso / São Paulo SP / Metrô Vergueiro
11 3397 4002
ccsp@prefeitura.sp.gov.br
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