Na espiritualidade de Jesus, a nossa espiritualidade.
Por Levy da Costa Bastos
I. Nos caminhos da espiritualidade: aspirações e anseios
As Escrituras Sagradas nos alertam que, sem santificação ninguém verá o Senhor (Hb 12,14) . A forma com que a afirmação é feita não deixa espaço para dúvida quanto à urgência e seriedade do assunto. Está formulada quase que como um ultimato. É como se dissesse: ou nos santificamos, ou corremos o risco grande e grave de não vermos a face de Deus, de não podermos estar em Sua presença. Santidade não é, portanto, uma opção. É sim uma necessidade. É parte constitutiva da vida cristã. E se olharmos retrospectivamente a história do Cristianismo vamos poder notar que, de fato, o tema esteve sempre no centro da atenção dos cristãos e cristãs. A todo momento apareceram pessoas que se viam incomodadas com uma espiritualidade mediana, com o pouco cuidado que muitos pareciam ter com a coisas de Deus, como a sua forma de vivenciar sua fé. Eram homens e mulheres em quem ardia o desejo de serem totalmente tomadas por Deus e por Sua graça. Tinham “sede de Deus”. Com a “constantinização” do Cristianismo deu-se uma ruptura drástica no Cristianismo. Ao tornar-se religio licita a Igreja cristã passou a ter o reconhecimento do estado. Deixou paulatinamente as catacumbas e foi, também aos poucos se aproximando dos palácios. Isso teve consequências. A comunidade cristã, que até então contava com inúmeros mártires, agora não está mais sob ameaça, pois cessou a perseguição. Seguir a Cristo deixou de ser uma questão de compromisso radical. De um Cristianismo de conversão e convicção profundas, surge uma nova forma de adesão. Por decreto imperial as pessoas são feitas discípulos de Cristo. A espiritualidade perde, assim, sua substância profética e missionária. Em vez de Maranata (vem Senhor Jesus!), ela prefere rogar a Deus para que Ele retarde a Sua vida (pro mora finis), pois os cristãos passaram a se sentir confortáveis neste mundo. O Reconhecimento que o poder imperial deu à Igreja, fez com que a espiritualidade cristã perdesse sua vitalidade. Ela foi esvaecendo e passou a ser como uma árvore viçosa: que é bonita exteriormente, mas sem frutos. Tinha, da piedade, somente a forma, mas lhe faltava e correspondente energia (2 Tm. 3,5). A Igreja cristã deste período foi cumulada de bens materiais, e com tanta prata e tanto ouro já não estava mais em condições de dizer ao coxo da porta formosa “levanta e anda” (At. 3,6). Este tipo de Cristianismo meramente formal fez surgir o descontentamento de muitos dentro da Igreja. Para alguns não era mais possível viver uma espiritualidade autêntica em meio a uma geração corrompida. Ansiavam por estar na presença de Deus, mas sentiam-se perturbados em meio à leniência espiritual de seus irmãos e irmãs. Isso precipitou o surgimento de uma espiritualidade separada do mundo. Os mosteiros eram a forma destes cristãos responderem ao chamado de Deus por santidade. Somente entre os seus iguais, na comunhão dos que partilhavam o mesmo propósito, é que entendiam ser possível cultivar uma espiritualidade integral e transformadora. O efeito colateral neste movimento foi que os santos (para vivenciaram livremente sua santidade) se isolaram do mundo e das pessoas. Esqueceram de que os discípulos de Jesus Cristo são chamados a serem o sal que dá sabor ao mundo e que, por isso, impedem a degradação da sociedade. Os monges desta época (cenobitas ou anacoretas), ainda que movidos das melhores intenções acabaram por corroborar e fortalecer um equívoco, a saber: o de crer que só possível cultivar uma autêntica espiritualidade distanciado da realidade. Entre a igreja e a sociedade foi construído um profundo poço. A fé já não se interessava mais pelas coisas que aconteciam na polis. Perdeu, assim, sua chance (missão, pode-se dizer) de atuar de modo transformador na política. Já desde muito cedo a espiritualidade cristã sofreu uma influência da filosofia platônica, especialmente em sua concepção dualista da vida. Num certo sentido isso teve um efeito danoso. Especialmente por mediação de Santo Agostinho a santidade se preocupou em mortificar o corpo e realçar a dimensão espiritual de nossa existência. Esta visão unilateral (distorção mesmo) foi prejudicial, trazendo ainda hoje resultados efeitos. Não somente porque na esteira do platonismo, hostilizava o corpo, mas também acabava por afastar os cristãos e as cristãs do mundo. A teologia helênica via a deus com uma entidade apático e impotente ante aos sofrimentos do mundo. Isso se difundiu na espiritualidade cristã, na medida em que esta passou a conceber a vida cristã como fuga dos reais conflitos da existência humana. Como retirada do mundo. Também o estoicismo contaminou a fé cristã por meio de seu dualismo que via o corpo como algo mau, enquanto que a alma seria a parte boa da existência. Isto tornou a espiritualidade cristã um exercício ascético, não poucas vezes desumanizante. Ao contrário disto, a espiritualidade cristã deve, conduzir à glorificação do corpo e não à sua destruição, pois este é o templo do Espírito Santo (1 Co. 6,19). II. Jesus, o santo de Deus, paradigma de nossa espiritualidade. Jesus Cristo viveu uma espiritualidade transbordante, por isso é que fazer a vontade de Deus era para Ele algo tão importante quanto comer (Jo. 4,31-34). Ele soube cultivar uma profunda experiência de comunhão com Deus, daí dizer que Ele e o Pai eram um só (. Em Suas obras, se deixava revelar o ser de Deus (Jo. 12,44-50). Os Evangelhos relatam com recorrência o fato de que Ele se retirou do convívio das pessoas para (em solitude) estar na presença de Deus (Mc. 1,35-39). Oração não era para Ele um conceito sem vida ou um ritual sem vida. Já desde o início de Seu ministério Ele esteve sempre em união espiritual com Deus Pai (Mt. 13, 13-17; 4, 1-11). Por meio da oração Ele foi capaz de submeter a própria vontade á vontade do Pai. Sim, Ele enfrentou os mais dolorosos momentos de Sua, como o Getsêmani, sob a fortaleza que esta relação possibilitava (Mt. 26, 36-46). Sua relação com Deus se assemelhava a de um filho que de modo terno se dirige ao pai usando a mais afetuosa das expressões. Deus era para Ele o paizinho querido (Mc 14, 36). O mistério de Deus inundou Sua vida de modo totalizante. Jesus Cristo viveu sim uma santidade plena. Integral e integradora. Nas horas e ansiedade e dúvida, ela o susteve no caminho da serviço aos homens. Para isso Ele veio (Mc. 10,45). Mas a espiritualidade que Jesus cultivou foi também uma espiritualidade conflitiva. Ele não se eximiu dos enfrentamentos da vida. Das lutas que o compromisso com a vontade de Deus demandava. Jesus Cristo soube conciliar a ternura com a firmeza. Foi simples, mas também prudente (Mt. 10,16). Jesus Cristo mostrou aos seus discípulos que às vezes na vida é necessário enfrentamento e o conflito. Não há como conciliar a luz com as trevas. O discípulo aprende com seu mestre que a espiritualidade verdadeira não pode tergiversar quando se trata de fazer a vontade de Deus. É preciso ter atitude crítica diante dos poderes deste mundo. A ordem de Deus deve desinstalar a (des)ordem do mundo. Isso explica o fato de Jesus não ter aceitado que fosse feito comércio na casa de Deus. O lugar santo onde somos chamados para orar e adorar a Deus não pode ser convertido em mercado (Mc. 11,15-19). Jesus também não endossou políticas e políticos desonestos que procuravam alienar o povo de sua realidade. Os chamou pelo verdadeiro nome: raposas (Lc. 13,31- 35). A espiritualidade de Jesus o levou também a denunciar a manipulação do sagrado. Pôs a descoberto e denunciou uma falsa espiritualidade, que outra coisa não fazia, senão usar do nome de Deus para manter as pessoas oprimidas (Mt. 16,6; 18,6; 23,13-36). Jesus Cristo viveu uma espiritualidade vital, isto é: Sua santidade Ele a experimentou no convívio com as pessoas. Nunca se restringiu ao Templo ou à Sinagoga, ainda que estes locais de devoção tivessem grande significação par Ele (Lc. 4,16). Mas Jesus foi um santo que pregava nas praças, visitava gente proscrita, conversava com prostitutas, acolhia as crianças e fazia delas o paradigma da mais pura santidade (Mc. 10,13-16). Jesus não fazia distinção absoluta ente a esfera do profano e do sagrado? Para Eles, a adoração verdadeira não está limitada pelo espaço. Deve ser autêntica. Pura e simplesmente, verdadeira (Jo. 4,19-24). Por isso é que Ele ia às festas e aceitava convites de quem quer que fosse. Até mesmo em casamentos e por razões as mais corriqueiras, Ele realizava milagres (Jo. 2,1-12). Com Jesus Cristo pode-se aprender que a boa e saudável espiritualidade deve desembocar numa nova vitalidade, uma nova alegria e prazer pela vida, o que necessariamente deve levar à superação da apatia doentia e possibilitar a paixão pela vida, tendo aí o seu critério de verdade e relevância. Quanto mais próxima deste ideal ela estiver, mais libertadora será. Nem sempre temos nos perguntado pelo sentido mais profunda da experiência da salvação. Somos salvos da morte e mal sim, mas ainda fica uma questão pouco respondida. Para que somos salvos por Deus? Que consequências tem a salvação de Jesus Cristo. Numa palavra pode-se responder a esta pergunta com a afirmação de que a salvação deve nos levar também à comunhão e ao serviço. Ela é uma grandeza koinônica e diaconal. Jesus Cristo veio ao mundo para nos salvar (Jo. 3,17). Sua morte viabiliza nossa restauração à imagem de Deus, desfigurada pelo pecado. A salvação é, então, o âmago de toda espiritualidade. É, sim, seu desencadeador. Quando somos salvos por Deus em Cristo, abre-se diante de cada um de nós a possibilidade da realização plena de todas as nossas potencialidades como filhos e filhas de Deus. A salvação nos dá paz com Deus e conosco mesmos. Mas não fica só nisso. Ela cria comunhão e comunidade de irmãos e irmãs. Ele nos comissiona. Nos envia ao mundo. Nos faz testemunhas de uma notícia boa e alvissareira. Ele leva ao compromisso com o mundo. Por isso é que quando somos salvos por Deus, não nos isolamos ou fugimos da vida e do mundo. Mas o que é, então a salvação? Salvação é o nome para uma experiência subjetiva, pela qual Cristo nos redime do pecado e do peso da Lei, fazendo surgir, não somente a nova criatura, como também uma comunidade de vida plena. Tem, portanto, uma dimensão comunitária. Somos salvos para vivermos numa comunidade de irmãos e irmãs que também encontraram em Cristo o sentido definitivo para suas vidas. A salvação não coroa, pois, o individualismo da pessoa salva. A salvação se concretiza na relação de doação aos irmãos e irmãs e na reconciliação com o nosso semelhante. Podemos, assim, dizer que uma das mais contundentes verdades da fé é de que, só é realmente salvo quem se abre para os outros. Quem quer ser um Cristo no mundo. Quem se vê desafiado a fazer do mundo o espaço privilegiado de sua ação misericordiosa. (1. Jo. 3,16). Espiritualidade autêntica trabalhar e transformar o mundo de acordo com a vontade de Deus. Deixar-se inspirar por Jesus Cristo e Sua espiritualidade, tem portanto, consequências revolucionárias. III. Por onde vai nossa espiritualidade? Amor que supera o perfeccionismo. Santidade pode ser interpretada como um projeto de vida que se orienta pela prática amor, este visto como exigência incondicional. São João não deixa dúvidas sobre isso quando diz: “Amados, amemo-nos uns aos outros, porque o amor procede de Deus; e todo aquele que ama é nascido de Deus e conhece a Deus” (1. Jo. 4,7). Mas o que isso significa para a vivência de uma espiritualidade integral e salugênca? Todos temos ouvido falar sobre os males que causam o perfeccionismo. Ele não é só um erro de medida. É também de intensidade. Pessoas perfeccionistas têm muita dificuldade de aceitar os próprios erros. Pessoas perfeccionistas são incapazes de perdoarem a si mesmas. Estão sempre ansiosas por atingir uma meta. O que, em princípio não é nada mau, mas o problema surge quando elas estabelecem alvos muito mais altos do que realmente poderiam atingir, daí a recorrente frustração. As Escrituras Sagradas nos lembram que nós devemos nos colocar no caminho da perfeição sim, mas elas também nos recordam de que só Deus é perfeito. O que para Ele já é uma realidade, para nós ainda é um projeto de vida. Uma esperança. Deus é perfeito e nós estamos no caminho da perfeição, isto significa que ainda não chegamos lá. Somos seres incompletos, à busca de um sentido sempre novo para a vida. Estamos em devir, seres em construção. Nada mais, nada menos que isso. E exatamente aí reside a importância do cultivo da espiritualidade. O perfeccionismo não nos permite reconhecer nossas fragilidades. Ele é sempre uma voz que vem e nos acusa, nos acha em falta, em dívida. Onde as faltas são rigorosamente proibidas e punidas, não pode haver graça. A lei não combina com o Evangelho. Este a supera. A lei nos lembra que somos limitados e devedores, mas o Evangelho vem para nos fazer sorrir, pois nos recorda que Deus é misericordioso. Sempre perdoador. Relacionamentos profundos e duradouros se constroem quando as exigências recíprocas não extrapolam o nível do que é razoável. Quando não desandam em culpa. Na base de relações saudáveis está a tolerância e a aceitação da outra pessoa tal qual ela é. Não amamos pessoas sem defeito. Amamos pessoas, apesar de seus defeitos. Isso porque sabemos que elas são sempre mais que suas faltas e limitações. São seres abertos para novas possibilidades. Quem ama de fato, vê em seu irmão e irmã, alguém que pode todos os dias ser transformado. Que tem energia dentro de si, que o habilita a ser sempre mais. Que tem o Espírito de Deus que o impulsiona a dar passos (mesmo vacilantes) adiante. Quem ama, não condena o seu irmão porque ele ou ela ainda não é desse ou daquele jeito esperado, mas o acolhe, mesmo assim, pois sabe que toda pessoa é um mistério que se abre e desabrocha quando é amada. Quem ama perdoa e perdoa sempre, pois sabe que a falibilidade é algo que faz parte de cada um de nós. Errar é algo constitutivo da vida humana. Os erros e os acertos estão presentes em todo ato “arriscado” de viver. Os erros não precisam ser vistos diferente do que realmente são: processos da vida. O perdão cura a todos, tanto os que perdoam, quanto quem é perdoado. Neste sentido ajuda muito quando vemos a vida como uma caminhada. Sim, a vida é uma jornada que demanda nosso empenho e dedicação. Saímos de um ponto, mas não sabemos quando a concluímos. Nesse caso ajuda muito saber que estamos em construção. Viver é existir. Tornar-se algo. Por isso é que sempre continuarão existindo pessoas que mesmo sendo imperfeitas, são muito felizes e que também fazem outras pessoas felizes. Amor é procedente de Deus. Com Jesus Cristo aprendemos que o amor humano tem muitas facetas. Ele pode ser a linda expressão de encontro e companheirismo de amigos e amigas. O amor entre amigos faz nossas vidas mais significativas. Pobre é aquele ou aquela que não tem amigos verdadeiros. Quem encontrou um amigo, encontrou o que há de mais precioso na vida, pois nunca estará só. Mas sabemos que existe uma forma mais sublime de amor. É aquele que procede de Deus. É uma forma de amor caracterizado pela doação e pela entrega incondicional. É o amor que se fundamenta que procede de Deus. Ele é uma dádiva Sua a todos nós. Em Cristo, Sua vida e morte, pudemos ver como este amor se faz realidade. Como ele reage nas mais diferentes circunstâncias da vida. É, sim um tipo de amor que não faz barganha, mas se entrega, sempre sem esperar uma contrapartida. É gratuito. Pura graça! Quem procura vivenciar sua espiritualidade em comunhão fraterna. Reconheceu que no isolamento não há vida verdadeira. E isso é maravilhoso, pois vivemos num mundo que cultua o individualismo e a competição. Se um cair, o outro pode ajudar a levantar-se. Mas a vida em comunhão tem também os seus desafios. Precisamos a aprender todos os dias a arte da partilha, da reciprocidade, do respeito. No mundo, mas libertos do mal. A fé cristã não vive só de conceitos e dogmas. Para ser relevante, necessita de uma mística. De uma santidade. Mas como identificar essa santidade? O que determina a santidade do Espírito de Deus, não é o isolamento em relação ao mundo. O atributo “santo” dado ao Espírito refere-se à Sua ação santificadora da vida em geral e da renovação de toda a face da terra. O Espírito de Deus revela Sua condição de santidade no engajamento libertador em todos os âmbitos da vida, visando a irrupção definitiva da Nova Criação, quando da implantação do Reino eterno de Deus. Jesus Cristo foi alguém que esteve sempre no convívio e no contato com as pessoas. Nada do que fosse humano, lhe era estranho. Andou pelas trilhas de Seu mundo, sentiu as angústias e inquietações do povo, especialmente dos mais pobres. Conhecia bem as pessoas e não se deixava enganar por elas. Esteve no mundo, mas sem se deixar contaminar ou fascinar pelas coisas mundanas. Ao vocacionar Seus discípulos Ele os preparou para que estivessem sempre atentos às artimanhas e contradições da vida, mas Ele não os retirou do mundo. Sua oração pelos Seus discípulos foi para que não fossem tirados do mundo, mas, isto sim, libertos do mal (Jo. 17,15). Espiritualidade cristã se inspira em Cristo e em Sua espiritualidade. Não foge, portanto, da vida, do mundo, da realidade. Cristãos e cristãos que se deixam inspirar pela santidade de Cristo sabem discernir entre o que significa amar o mundo (seus valores e tentações) e amar àqueles que estão no mundo. Uma espiritualidade autêntica nos ajuda a nos engajar pela transformação do mundo, nos capacita a ser sal e luz. A darmos um sentido ao sem-sentido da vida. E isto sempre sem se deixar contaminar (Mt. 5,13-16). Cristão que cultivam a espiritualidade intensamente como foi a de Jesus, fazem do mundo o alvo de sua ação missionária. Constroem, desse jeito, ali sua paróquia.