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LEITURAS DE

GILBERTO FREYRE*

Apresentação
Ricardo Benzaquen de Araújo

A iniciativa de comemorar o centenário de nascimento de Gilberto (*) Novos Estudos agradece a


colaboração da Fundação Gil-
Freyre com a publicação de quatro prefácios a livros seus escritos por berto Freyre, em especial a
Jamille Barbosa.
importantes intelectuais estrangeiros — dois franceses, um português e um
norte-americano — confirma, em primeiro lugar, a excelente acolhida de
sua obra nos círculos acadêmicos internacionais. Além disso, a leitura
desses textos torna mais saliente um aspecto sem dúvida relevante, mas não
muito evidente entre nós: o de que a própria qualidade da reflexão de
Gilberto parece ter permitido que os seus livros fossem avaliados não só
como uma interpretação da cultura brasileira mas também, sobretudo no
que se refere aos autores europeus, como uma espécie de espelho no qual
outras sociedades poderiam ser visualizadas com maior nitidez.
Tal procedimento, aliás, é particularmente claro nos textos de Fer-
nand Braudel e Lucien Febvre. Braudel, por exemplo, insiste no fato de que
a "inteligência aguda" que atravessa as páginas de Casa-grande & senzala
não deve ser entendida como se fosse "imposta, à moda francesa, como
uma construção preconcebida, lógica, autoritária". Assim, ao contrário da
razão clássica, de orientação cartesiana, preocupada em descartar o corpo
e suas paixões para produzir um conhecimento geométrico, exato e
espiritual, a argumentação de Gilberto dá a impressão de "tornar visíveis a
realidade, a cor, o perfume dos seres e das coisas", fazendo com que o
Brasil se descortine diante de nós "com o cheiro das suas plantas, florestas,
casas, cozinhas, seus corpos brilhantes de suor".
Aberto às propriedades sensíveis, Casa-grande & senzala poderia
muito bem ser então contrastado com Cité antique, de Fustel de Coulanges,
uma das mais significativas análises da antigüidade greco-romana elabora-
das pela historiografia francesa: ambos fundam a vida social nas práticas e
relações domésticas, mas, enquanto o livro de Fustel desenvolve um
raciocínio "intelectualizado e sensato", Gilberto entoa uma "música corpó-
rea, fascinante, irresistível", composta pela experiência e pela memória.
Já o prefácio de Lucien Febvre a Casa-grande & senzala, se assume
um tom bem diverso do de Braudel, muito mais irônico, concorda com ele
no que diz respeito à maneira pela qual o livro deve ser examinado: o

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LEITURAS DE GILBERTO FREYRE

Brasil, mais u m a vez, será confrontado c o m a Europa, só q u e agora a


comparação terá c o m o b a s e o m o d o pelo qual cada sociedade lida c o m
a relação entre diferentes grupos étnicos e culturais. Desse m o d o , o
europeu termina p o r ser descrito, de forma quase rabelaisiana, c o m o
o b c e c a d o pela possibilidade de se construir u m a "civilização única" e
ocidental, visto q u e , "prisioneiro de sua reverência p o r tudo aquilo q u e
pensou, construiu, inventou e realizou, n ã o c o n s e g u e oferecer [...] outra
coisa s e n ã o invenções de branco, criações de branco q u e ele insiste em
chamar de 'progresso'. Panem et circenses! Nós fizemos as estradas, a
cédula eleitoral e o cinema. C o m prudência, digamos, q u a n t o à cédula
eleitoral".
No Brasil, em vez disso, seria possível encontrar u m a situação em q u e
haveria ao m e n o s um certo intercâmbio de experiências, pelo qual "cacos
de crenças e nacos de c o n c e p ç õ e s de m u n d o e de vida se mesclavam e
frutificavam", d a n d o assim origem a u m a sociedade culturalmente mestiça.
Esta mestiçagem, a propósito, tem um sentido e m i n e n t e m e n t e sincrético,
incapaz de implicar q u a l q u e r uniformização — "cacos", "nacos" —, na
medida m e s m o em q u e "jamais foram rompidos os laços entre os negros do
Brasil e suas civilizações africanas de origem. Gilberto Freyre oferece
múltiplas evidências — e n ã o será seu tradutor, Roger Bastide, q u e o
contradirá. E [...] n ã o se trata a p e n a s de plantas, de objetos, de ingredientes,
de paramentos. Mas de ritos, de danças e, mais além, de maneiras de
pensar, de sentir, de representar o m u n d o e o destino".
Vale a p e n a destacar, ainda, q u e a leitura feita por Febvre de Casa-
grande & senzala, valorizando a proximidade q u e marcava as relações
estabelecidas entre os g r u p o s antagônicos q u e p o v o a v a m a sociedade
colonial, está longe de implicar u m a idealização do nosso passado. Ao
contrário, ele ressalta q u e "a vida dos índios no contato c o m os colonos
nada tinha de idílico. T a m p o u c o a vida dos negros [...]. São fartos os
testemunhos e relatos de atos aterradores: negros amarrados vivos à b o c a
de canhões para serem d e s p e d a ç a d o s , mulatas muito queridas de seus
senhores cujos olhos e r a m arrancados p o r o r d e m de esposas ciumentas e
servidos na sobremesa, sangrando, ao marido infiel". C o m o se vê, a
dimensão antinômica e paradoxal da reflexão de Gilberto, pela qual um
valor positivo é s e m p r e s u c e d i d o p o r um negativo, u m a crítica s e m p r e se
segue a um elogio, s e m q u e jamais se alcance um meio-termo, u m a síntese,
é claramente percebida pelo n o s s o autor.
O prefácio escrito p o r Antônio Sérgio a O mundo que o português
criou t a m b é m privilegia a c o m p a r a ç ã o entre o Brasil e a Europa, mas o faz
por um c a m i n h o próprio, q u e inclui u m a p a s s a g e m obrigatória p o r
Portugal, m e d i a d o r indispensável da sua avaliação da reflexão de Gilberto
Freyre. Com efeito, a q u e s t ã o q u e mais o interessa, na v e r d a d e levantada
por u m a interpretação de Casa-grande & senzala realizada pelo ensaísta
brasileiro Almir de Andrade — intelectual estreitamente ligado ao Estado
Novo brasileiro —, p o d e ser resumida do seguinte m o d o : até q u e p o n t o a
índole flexível e plástica do português, q u e tanto facilitou a sua adaptação

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RICARDO BENZAQUEN DE ARAÚJO

aos trópicos, n ã o teria sido a responsável pelo seu relativo fracasso no


rigoroso ambiente europeu?
Conhecido opositor do regime Salazar, Antônio Sérgio vai r e s p o n d e r
a Almir de Andrade de duas maneiras, a m b a s até certo p o n t o influenciadas
por Gilberto Freyre. Na primeira, ele sublinha o próprio caráter a m b í g u o de
que se revestira, em Casa-grande & senzala, a figura do português, s e m p r e
"indefinido entre a Europa e a África, n e m intransigentemente de u m a n e m
de outra, mas das duas", para enfatizar tanto a sua herança européia q u a n t o
o equívoco interpretativo do seu opositor. Na segunda, contudo, sua
posição parece se afastar da de Gilberto, p r o d u z i n d o até m e s m o u m a
alternativa que, no mínimo, complementaria a ótica culturalista q u e norteia
a argumentação deste último. Isto ocorre p o r q u e a busca de u m a explica-
ção para o insucesso p o r t u g u ê s em relação aos demais países e u r o p e u s
seria fundada no fato "de q u e os fatores agroclímicos da nossa metrópole
não nos dão c o n d i c i o n a m e n t o francamente benéfico a n e n h u m a casta de
cultura básica q u e p u d e s s e ministrar fundamento sólido a qualquer pujante
criação social, s e n d o q u e o m e s m o se n ã o p o d e dizer das regiões da Europa
de além-Pireneus, o n d e vivem p o v o s q u e e x c e d e r a m o nosso p o r aquilo
que conseguiram em seus próprios lares". Definindo "cultura básica" c o m o
aquela "cujos p r o d u t o s são de valor primário para a sustentação da vida do
homem, ou q u e têm assegurada u m a grande venda, [como] o açúcar no
século XVII", Antônio Sérgio deixa claro q u e o êxito da colonização
portuguesa no Brasil se d e u pela o p o r t u n i d a d e de se encontrar aqui "pela
primeira vez condições de ambiente francamente propícias para tirar da
terra uma cultura básica", condições q u e incluíam "facilidades de terreno e
de condições de clima no q u e toca ao crescimento da própria planta, e
também facilidades de energia hidráulica para a necessária elaboração do
seu produto: eis o q u e o p o r t u g u ê s foi encontrar no Brasil; eis o q u e a sorte
lhe recusou na Europa".
Lidamos, evidentemente, c o m u m a explicação de c u n h o materialista,
que não deixa m e s m o de apontar c o m o u m a das causas da decadência de
Portugal o caráter e x t r e m a m e n t e injusto da estrutura socioeconômica do
país, em especial no tocante à sua d i m e n s ã o agrária. Mesmo aqui, contudo,
ainda parece haver um certo diálogo c o m Gilberto Freyre, já q u e Antônio
Sérgio não deixa de convocar c o m o testemunha das boas condições de
cultivo da cana no Brasil a q u e l e q u e talvez seja o mais desconcertante entre
os clássicos escritos p o r Gilberto nos anos 1930, Nordeste, um livro muito
mais próximo da ecologia h u m a n a da Escola de Chicago do q u e do
culturalismo associado a Franz Boas e à antropologia de Colúmbia.
Entretanto, em q u e p e s e a m e n ç ã o a Nordeste, tenho a impressão de q u e
aqui realmente se cava um fosso entre os dois autores, sobretudo p o r q u e
Antônio Sérgio p a r e c e partilhar c o m Almir de Andrade u m a premissa q u e
dificilmente seria aceita — pelo m e n o s inteiramente — pela postura
relativista de Gilberto Freyre: a de q u e Portugal se caracterizaria precisa-
mente por se constituir em um fracasso em c o m p a r a ç ã o c o m os outros
países europeus.

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LEITURAS DE GILBERTO FREYRE

Temos, p o r fim, o texto de Frank T a n n e n b a u m q u e prefacia a edição


norte-americana de Sobrados e mucambos. Bem diferente dos anteriores,
distante de qualquer p r e o c u p a ç ã o comparativa em relação aos Estados
Unidos, ele enfatiza p o r é m um a r g u m e n t o de grande interesse, q u e , de
forma mais ou m e n o s saliente, p o d e ser encontrado nos outros três
prefácios: o fato de q u e Gilberto Freyre "conseguiu m u d a r a imagem q u e
o Brasil fazia de si m e s m o " , invertendo o sentido q u e se emprestava à idéia
de mestiçagem e transformando a sua obra em p o n t o de partida para u m a
revalorização da tradição nacional. Assim, ao contrário do México, o n d e
u m a revalorização semelhante exigiu "uma revolução sangrenta, um
sofrimento inenarrável e a p e r d a de milhões de vidas, no Brasil q u e m
conseguiu isso foi um h o m e m e um livro", o q u e torna patente q u e o
alcance da contribuição de Gilberto n ã o d e v e ficar restrito, para o b e m e
para o mal, à pura história intelectual.
Esse argumento, p o r conseguinte, já começa a nos conduzir para fora
da reflexão de Gilberto Freyre, ou seja, em direção ao conjunto de
problemas, ainda p o u c o pesquisados, q u e importam n o estudo d a recep-
ção do seu p e n s a m e n t o no Brasil, da influência intelectual q u e ele exerceu
e dos usos públicos p o r ele recebidos. Tais problemas, em virtude m e s m o
do p o n t o ressaltado p o r T a n n e n b a u m , c h a m a m a atenção para a necessi-
d a d e de se investigar a transformação de Gilberto em u m a espécie de mito
— até certo p o n t o , c o m a sua própria e ativa colaboração.
C o m o se p e r c e b e , então, o e x a m e destes p o u c o s e breves prefácios
levanta questões q u e e n v o l v e m d e s d e o r e c o n h e c i m e n t o da d i m e n s ã o
teórica e universal da reflexão de Gilberto Freyre até a avaliação das
conseqüências políticas e concretas da publicação de seus livros, implican-
do portanto toda u m a a g e n d a de trabalho para a pesquisa. Esta talvez seja,
de fato, u m a excelente maneira de se c o m e m o r a r o centenário de qualquer Ricardo Benzaquen de Araújo
é professor do Iuperj e da
autor. PUC-RJ.

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