Anda di halaman 1dari 121

Cadernos IHU em formação é uma publicação em formato digital que oferece edições monotemá-

ticas, com debates de problemáticas atuais através da colaboração de especialistas de diversas áreas.
Este caderno busca reunir entrevistas e artigos produzidos na Revista IHU On-Line, no Notícias do
Dia do IHU, nos Cadernos IHU ideias, além de colaborações inéditas.
Consequências do Outono:
rua, juventude e desencontro político
Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS
Reitor
Marcelo Fernandes Aquino, SJ
Vice-reitor
José Ivo Follmann, SJ

Instituto Humanitas Unisinos – IHU


Diretor
Inácio Neutzling, SJ
Gerente administrativo
Jacinto Schneider

Cadernos IHU em formação


Ano 10 – Nº 46 – 2014
ISSN 1807-7862
Editor
Prof. Dr. Inácio Neutzling – Unisinos
Conselho editorial
Profa. Dra. Cleusa Maria Andreatta – Unisinos
Prof. MS Gilberto Antônio Faggion – Unisinos
Prof. MS Lucas Henrique da Luz – Unisinos
Profa. Dra. Marilene Maia – Unisinos
Dra. Susana Rocca – Unisinos
Conselho científico
Prof. Dr. Celso Cândido de Azambuja – Unisinos – Doutor em Psicologia
Prof. Dr. Gilberto Dupas (?) – USP – Notório Saber em Economia e Sociologia
Prof. Dr. Gilberto Vasconcellos – UFJF – Doutor em Sociologia
Profa. Dra. Maria Victoria Benevides – USP – Doutora em Ciências Sociais
Prof. Dr. Mário Maestri – UPF – Doutor em História
Prof. Dr. Marcial Murciano – UAB – Doutor em Comunicação
Prof. Dr. Márcio Pochmann – Unicamp – Doutor em Economia
Prof. Dr. Pedrinho Guareschi – PUCRS – Doutor em Psicologia Social e Comunicação
Responsável técnico
Caio Fernando Flores Coelho
Revisão
Carla Bigliardi
Projeto gráfico e editoração
Rafael Tarcísio Forneck

Cadernos IHU em formação / Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Instituto Humanitas Unisinos. – Ano 1, n. 1 (2005)- .– São Leopoldo:
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2005- .
v.
Irregular, 2005-2012 ;Semestral, 2013-.
Publicado também em forma impressa, 2005-2008.
Publicado exclusivamente on-line (desde 2009): <http://www.ihu.unisinos.br/cadernos-ihu-em-formacao>.
Descrição baseada em: Ano1, n. 1 (2005); última edição consultada: Ano 9, n. 45 (2013).
ISSN 1807-7862
1. Sociologia. 2. Religião. 3. Ética. I. Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Instituto Humanitas Unisinos.
CDU 316
2
17
Bibliotecária responsável: Carla Maria Goulart de Moraes – CRB 10/1252

Universidade do Vale do Rio dos Sinos


Instituto Humanitas Unisinos
Av. Unisinos, 950, 93022-000 São Leopoldo RS Brasil
Tel.: 51.35908223 – Fax: 51.35908467
www.ihu.unisinos.br
Sumário

Apresentação
A cultura do ressentimento é venenosa.................................................................................. 5

As manifestações renovarão os mecanismos existentes ou criarão novos?


Entrevista especial com Rodrigo Nunes.................................................................................. 8

“A força bruta é a ação de quem não tem argumentos”


Entrevista especial com Antonio Martins................................................................................ 17

“Chegamos a um ponto em que, antes de entender, reagimos. E, frequentemente, reagimos mal”


Entrevista especial com Leandro Beguoci............................................................................... 22

“Eu não sou o jovem pobre, favelado, sem perspectiva. Eu tô podendo”


Entrevista especial com Lucia Mury Scalco............................................................................ 27

Os direitos humanos e a violência social


Entrevista especial com Salete Valesan................................................................................... 31

As manifestações e a luta por outro modelo de democracia


Entrevista especial com Ricardo Antunes................................................................................ 33

Potencialidades e limites dos levantes da juventude no século XXI


Entrevista especial com Jorge Barcellos.................................................................................. 41

“O devir-multidão dos excluídos e de todos os que são incluídos somente na extensão necessária
para serem explorados”
Entrevista especial com Adriano Pilatti................................................................................... 49

Manifestações expõem fragilidades e limites do projeto constitucional-republicano de


democracia (Relatos das manifestações da IHU Online).............................................................. 53

As ruas em movimento e a democracia direta


Entrevista especial com Bruno Lima Rocha............................................................................ 64

“A juventude está protagonizando um dos maiores movimentos da década, mas tem os seus
erros”
Entrevista especial com Jorge Barcellos.................................................................................. 69

“O levante de junho: uma potentíssima bifurcação dentro da qual ainda estamos”


Entrevista especial com Giuseppe Cocco................................................................................ 77
“Vivemos um momento constituinte. É preciso pensar, atuar, propor como nunca”
Entrevista especial com Hugo Albuquerque........................................................................... 86

Monstro e multidão: a estética das manifestações


Entrevista especial com Barbara Szaniecki............................................................................. 92

Expectativas sociais: o combustível das manifestações


Entrevista especial com Hervé Théry..................................................................................... 100

A esquerda e o desejo por trás do rugido da plebe


Entrevista especial com Bruno Cava...................................................................................... 103

Grito da Seca e Revolta do Busão


Entrevista especial com Tárzia Medeiros................................................................................ 109

Para ler mais............................................................................................................................... 112


Apresentação

A cultura do ressentimento é venenosa

Esta reportagem feita para o Instituto Humanitas Unisinos – IHU


por Luciano Gallas é um relato da participação do Prof. Dr. Luiz
Werneck Vianna no evento Constituição 25 anos: Repúbli-
ca, Democracia e Cidadania promovido pelo IHU em 2013.

Para o professor Luiz Werneck Vianna, da praticadas pela polícia mais diretamente e pelo
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janei- Estado de forma mais ampla, correspondem a
ro – PUC/Rio, ao saírem em manifestações pelas um momento de características distintas daquelas
ruas do país em junho, os jovens tinham o pro- primeiras manifestações de junho e de julho.
pósito de denunciar que “foram expulsos da es- “Além da superfície, havia algo encoberto
fera pública, da possibilidade de participação. O que apareceu. Uma ideia de ressentimento: ‘eu
Brasil cresceu muito rápido, teve êxitos conside- fiquei de fora, agora eu quero o meu, e quero
ráveis, mas este Estado não foi capaz de oferecer agora, não quero trabalhar por isso’. Não nasce
cidadania”. Segundo sua avaliação, neste exato uma cultura do trabalho daí. Da cultura do res-
momento, entretanto, “estamos nos comportando sentimento, o que nasce é a violência”, enfatiza
como profetas do caos, da crise. Eu via os jovens Luiz Werneck Vianna. “Os jovens foram às ruas
se organizando para participar das jornadas de recusando a política. Eles são contra a política,
junho, preparando faixas, se pintando. Foi uma mas enquanto eles são contra, os outros fazem
experiência muito rica. Mas já estamos distantes [política], inclusive contra os jovens. Por outro
da jornada de junho, estamos vivendo agora ou- lado, os partidos confirmam sua trajetória de er-
tro clima. Faltou política para dar continuidade ros. E este esvaziamento dos partidos é perigoso.
àquela mobilização. Parece que não vai resultar Então, qual seria o caminho?”, questiona o pro-
nada deste processo”. fessor, para quem a multidão não tem instinto so-
Werneck fez sua análise durante palestra re- bre a história. “Os jovens foram mobilizados para
alizada na tarde de 31-10-2013 na Sala Ignacio a ação social? Não foram. O que se quis deles?
Ellacuría e Companheiros, no Instituto Huma- Que eles fossem consumidores. E eles se torna-
nitas Unisinos – IHU, intitulada A evolução ram um exército de consumidores. A pauta juve-
processual, participação, representação e demo- nil não está voltada, por exemplo, para a questão
cracia progressiva a partir da Constituição Federal ambiental”.
de 1988, a qual integra a programação do evento
Constituição 25 Anos: República, Democracia e
Cidadania. Violência
Para o professor, as manifestações recentes
realizadas em São Paulo e no Rio de Janeiro, as Na avaliação de Luiz Werneck Vianna, é a
quais tiveram entre seus objetivos denunciar a violência que difere um momento e outro das
violência cotidiana de viesses classista e racista, manifestações que tomaram as ruas do país. “A

5
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

questão está na violência como vocalização das Liberalismo


reivindicações. É triste ver uma assembleia de
professores apoiar a violência nas manifestações, “Este tema, da esfera pública, que é do impé-
como ocorreu com os black blocs, como se eles rio, passa para a república como se tivesse havido
fossem a vanguarda das reivindicações. Ninguém o deslocamento do público pela esfera privada,
tem controle sobre o que está aí. A cultura do como se a sociedade brasileira tivesse sido capaz
ressentimento é uma cultura venenosa”, frisa o de se organizar e reivindicar direitos. O tema da
professor. Para ele, contribuem para este cenário esfera pública já estava na carta de 1891. En-
o esvaziamento dos movimentos sociais, a partir tretanto, uma coisa é o país legal, outra coisa é o
do momento em que os mesmos conquistaram país real”, pondera Werneck Vianna. A constitui-
maior participação na estrutura estatal e que ção de 1891, de características liberais, a primeira
parte de suas lideranças foi incorporada ao go- do período da república, estabeleceu uma organi-
verno, e a incapacidade dos partidos de se man- zação política que culminou no domínio do esta-
terem protagonistas da ação pública, tendo em do de São Paulo sobre toda a confederação. “Isso
vista o foco nos resultados eleitorais e na manu- foi minando a ordem. E a ordem estabelecida era
tenção do poder. refratária aos movimentos sociais. Não admitia a
greve, por exemplo. Era o liberalismo ortodoxo”.

Transição
Alternativas
O professor lembra que a Constituição
Federal de 1988 foi elaborada em um momen- De acordo com Werneck, a precedência do
to de transição, após o fim do período de regime público sobre o privado se manteve na Consti-
militar e durante o início do processo de reaber- tuição de 1934. Entretanto, entre esta e a cons-
tura política. Assim, há várias questões de confli- tituição anterior, há uma grande mudança social.
tos presentes no documento, como são os casos Como lembra o professor, o Brasil presenciou
relacionados à posse da terra e à preservação o surgimento da classe operária, testemunhou
de direitos de comunidades tradicionais, como a realização de duas grandes greves nacionais,
os indígenas e os quilombolas. “É interessante assistiu a fundação do Partido Comunista e
observar como o intérprete constituinte operou acompanhou a Semana de Arte Moderna. No
neste quadro de incertezas, de conflitos. A cons- mundo, a União das Repúblicas Socialistas Sovié-
tituinte oferece uma leitura da nossa história. O ticas implementa seus planos quinquenais, estou-
intérprete percebeu que havia uma tradição re- ra a Crise de 1929 e os Estados Unidos firmam
publicana. No império, o tema da esfera pública o New Deal. “É um mundo que está procurando
era central”, enfatiza. novas alternativas. Na Europa, há um momento
Conforme Werneck, é possível perceber este muito conturbado. Ocorre a Revolução de 1917,
movimento de continuidade no documento apro- a primeira revolução operária do mundo. E um
vado pela Assembleia Constituinte de 1988 em corporativismo começa a avançar, católico de um
relação à nossa tradição republicana. “Não fomos lado, secular de outro”.
uma sociedade criada com base no livre interes-
se e no mercado. Ao contrário da sociedade dos
Estados Unidos, cujo processo se deu de baixo Autoritarismo
para cima. Nós éramos o caso único na história
de um Estado portador de uma teoria política vol- Este momento de profundas mudanças dá
tada para a criação de uma nação, baseada no lugar, a partir da década de 1930, à ascensão de
liberalismo. O direito administrativo, o direito do movimentos de cunho autoritário em todo o Oci-
Estado, foi preponderante na nossa constituição, dente. No Brasil, Getúlio Vargas instaura o Estado
e não o direito civil”. Novo e outorga a Constituição de 1937, trans-

6
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

formando os sindicatos em correia de transmissão Quem é Luiz Werneck Vianna


do Estado e esvaziando a presença liberal no texto.
“Quando o Estado Novo cai, imediatamente Luiz Werneck Vianna é professor-pesqui-
são retomadas as principais instituições políticas, sador na Pontifícia Universidade Católica do Rio
assim como os sindicatos. O papel do público ga- de Janeiro – PUC-Rio. Doutor em Sociologia pela
nha outra conotação, e seu conceito autoritário Universidade de São Paulo, é autor de, entre ou-
passa a ser visto como um projeto de nação. Anti- tros, A revolução passiva: iberismo e americanis-
gos protagonistas são incorporados, assimilados, mo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997); A
sem que o novo encontrasse passagem. Se é que judicialização da política e das relações sociais no
havia passagem. O fato é que esta dimensão do Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999); e Democra-
público ganha uma aura de nacionalista, de anti- cia e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte:
-imperialista. O regime militar vai concordar com UFMG, 2002). Sobre seu pensamento, leia a obra
esta experiência. Em seu primeiro ciclo, há decla- Uma sociologia indignada. Diálogos com
rações neste sentido”, afirma Werneck, antes de Luiz Werneck Vianna, organizada por Rubem
completar: “Há uma natureza constitutivamente Barboza Filho e Fernando Perlatto (Juiz de Fora:
autoritária em nossa sociedade. A Constituinte de Ed. UFJF, 2012).
1988 criou meios para contê-la, entre os quais o
Ministério Público, a ação popular e a ação direta
de inconstitucionalidade. Portanto, não apostou
todas as suas fichas no sistema de representação”.

7
As manifestações renovarão os mecanismos
existentes ou criarão novos?

Entrevista especial com Rodrigo Nunes

“No Brasil, o maior movimento de massa tações e os movimentos sociais tradicionalmente


desde as Diretas Já aconteceu sem que as gran- organizados, surgidos durante a redemocratiza-
des organizações de massa tivessem um papel ção do país. “Perguntar se um tipo de organiza-
central”, pontua o filósofo. ção vai substituir o outro é como perguntar se o
As manifestações que se iniciaram no país pires vai substituir o prato de sopa: são objetos
desde junho do ano passado relacionadas à semelhantes, mas que servem a fins distintos, e
“convergência de três tendências históricas”, das possuem uma forma adequada a sua finalidade.
quais duas são “irreversíveis”: o uso das redes A organização é sempre uma resposta a uma si-
digitais, que gerou uma “autocomunicação de tuação específica”, esclarece. E acrescenta: “Não
massa”, e a “queda vertiginosa dos custos de me parece que as organizações de massa tradi-
organização”, pontua Rodrigo Nunes, autor do cionais deixarão de existir, pelo menos no médio
livro The Organisation of the Organisationless: prazo. O que certamente muda é a ideia de que
Organisation After Networks (A Organização dos elas sejam o único modelo de organização viável,
Sem Organização: Organização Depois das Re- de que quem não se organiza como elas não está
des), que será publicado nos próximos meses. organizado. ‘Organizar-se’ deixa de ser sinônimo
Por outro lado, assinala, a terceira “tendência de ‘organizar-se assim’”.
histórica”, compreendida como a crise dos me- Rodrigo Guimarães Nunes é doutor em
canismos de representação, não será soluciona- Filosofia pelo Goldsmiths College, Universi-
da rapidamente. dade de Londres, e professor da Pontifícia Uni-
Para compreender o fenômeno que está versidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio.
ocorrendo, Nunes utiliza o conceito “sistema- É colaborador de diversas publicações nacionais
rede”, a partir do qual se pode compreender e internacionais, como Radical Philosophy,
como as manifestações nas ruas e nas redes es- Mute, Le Monde Diplomatique, Serrote, The
tão conectadas. “Os sistemas-rede não são um Guardian e Al Jazeera. Como organizador e
mero agregado de indivíduos; são internamente educador popular, participou de diferentes inicia-
diferenciados, com zonas mais esparsas e núcleos tivas ativistas, como as primeiras edições do Fó-
mais densos, mais orgânicos, mais organizados. rum Social Mundial e a campanha Justice for
Normalmente, são estes núcleos que têm o papel Cleaners, em Londres. Além disso, foi membro
de convocar, definir protocolos, garantir um míni- do coletivo editorial de Turbulence, uma revista
mo de estrutura, inclusive física, às ações”. influente entre os movimentos sociais da Europa
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On- e da América do Norte na segunda metade da
Line por e-mail, Nunes também avalia as diver- década passada.
gências e aproximações entre as novas manifes- Confira a entrevista.

8
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – O senhor define os fenôme- sindicais com carros de som, camisetas, jingles,
nos que têm ocorrido no Brasil desde junho “showmícios”, às vezes até militantes pagos, são
do ano passado, e em vários outros países hoje menores que protestos convocados no Fa-
nos últimos três anos, como “movimento cebook. Estas duas tendências são, em princípio,
de massa sem organizações de massa”. O irreversíveis.
que isso significa? A terceira é uma crise dos mecanismos de
Rodrigo Nunes – Durante muito tempo, se acre- representação que tem caracterizado as socie-
ditou que um movimento de massa de grande dades modernas do século XVIII para cá: voto,
porte, mobilizando um grande número de pesso- parlamento, partidos, sindicatos. Fatalmente, ela
as em escala nacional, só poderia existir na con- respinga também nas instituições da esquerda.
dição de ser impulsionado por organizações com Mais óbvia e urgente em países como Egito e Tu-
muitos membros, uma estrutura formal, uma lide- nísia, ela é sentida mesmo nas democracias mais
rança instituída. antigas, que foram corroídas por dentro pelo fi-
Isso foi um motivo de grande crise para a nanciamento privado de campanhas, os lobbies
esquerda mundial desde os anos 1980 e no Bra- corporativos, a concentração da mídia e da ri-
sil desde a década de 1990, porque os sindicatos queza. Não à toa, o “eles não nos representam”
encolheram, os partidos e movimentos perderam espanhol é um dos slogans que mais circulou nos
capacidade de mobilização. Logo, grandes movi- últimos anos.
mentos pareciam estar se tornando impossíveis. Note-se que apenas o terceiro ponto tem a
Foi também a crise dos partidos à esquerda do ver com uma disposição subjetiva. Várias análises
PT desde 2002, que tentaram, justamente, criar ficam apenas neste nível, frequentemente para
novas centrais sindicais, novos organismos de re- lamentar que se tenha perdido a fé em projetos
presentação estudantil. coletivos de grande escala, porque só a renova-
Os últimos três anos provaram que é possível ção das organizações de massa existentes seria
que um movimento de massa se constitua na au- capaz de resolver a crise da representação. Mas
sência deste tipo de organização. Pode-se discutir elas perdem de vista o fato de que a organização
em que medida isso é bom ou ruim, mas o fato é em rede não é uma escolha consciente, sem ser,
inquestionável: no Brasil, o maior movimento de antes, o próprio modo como a vida pessoal e pro-
massa desde as Diretas Já aconteceu sem que fissional da maioria das pessoas se dá. As pessoas
as grandes organizações de massa tivessem um não se organizam politicamente em rede porque
papel central. elas querem – embora muitas também conscien-
temente prefiram fazê-lo –, mas porque elas já es-
IHU On-Line – O que mudou no modo de tão organizadas assim. É de se esperar que, se as
as pessoas se organizarem e quais são as pessoas vivem e se percebem vivendo cada vez
razões dessas mudanças? mais em rede, o modo como elas se expressam
Rodrigo Nunes – Parece-me claro que estamos politicamente também tenha essa forma.
vivendo a convergência de três tendências históri- Uma das questões em aberto hoje é: estes
cas, pelo menos duas das quais são irreversíveis. movimentos que estão ocorrendo, para quem a
Primeiro, a generalização crescente do uso crise da representação é um problema central,
de redes digitais de diversos tipos (e-mail, Twitter, renovarão os mecanismos existentes, constituirão
Facebook, Whatsapp, Reddit, etc.), o que cria a novos mecanismos, ou caminharemos para uma
possibilidade daquilo que Manuel Castells cha- crise cada vez mais aguda da democracia?
mou de “autocomunicação de massa”.
Segundo, como consequência direta, uma IHU On-Line – O que diferencia estes movi-
queda vertiginosa dos custos de organização: mentos dos movimentos sociais tradicionais?
ações coletivas, que no passado seria impossí- Rodrigo Nunes – A própria categoria de “movi-
vel organizar sem estruturas formais, agora são mento” é problemática para falar do que estamos
tarefas relativamente simples. Manifestações vendo. “Movimento”, mesmo que não necessaria-

9
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

mente implique estruturas formais como aquelas um movimento se organiza, que estratégia, que
dos movimentos sociais “tradicionais”, inevita- táticas usa), por um lado, e um ecossistema, por
velmente sugere uma certa unidade de objetivos, outro. Você não consegue explicar o que ocorre
práticas, identidade. Em contraste, alguns pesqui- num ecossistema apenas pela ação de um agente
sadores têm usado o conceito de “sistema-rede”. – digamos, o Movimento Passe Livre (MPL). Você
Eu tento defini-lo com clareza no livro que será precisa observar como todos agem sobre todos,
publicado este ano. direta e indiretamente. A segunda perspectiva
O sistema-rede é um sistema com diversas não invalida a primeira, obviamente, mas a pri-
camadas, cada uma das quais é uma rede: a rede meira está contida na segunda.
de pessoas na rua, de perfis do Facebook, de
contas do Twitter, de espaços físicos em que as IHU On-Line – O senhor critica também a
pessoas se encontram. As camadas não são re- oposição que às vezes se faz entre “redes”
dutíveis uma a outra. Nem todo mundo está em e “ruas”.
todas, e a rede no Twitter é diferente daquela do Rodrigo Nunes – É uma dicotomia falsa. A
Facebook, que é diferente daquela do mundo fí- maioria esmagadora dos manifestantes está em
sico. Os laços são outros, os nós são outros. Mas ambas, e a ação das duas se complementa, se co-
elas pertencem todas ao mesmo sistema, ou seja, munica, se amplifica. São duas camadas distintas,
interagem todo o tempo. mas pertencem ao mesmo sistema.
Pensar nestes termos nos permite ver como Imagine que ninguém daqueles que foram ao
coisas que não estão direta ou conscientemente primeiro ato de junho de 2013, digamos mil pesso-
ligadas se comunicam. Por exemplo, como os as, tivesse postado imagens e relatos no Facebook,
“rolezinhos”, cujos organizadores talvez não esti- no Youtube, no Twitter; o alcance teria sido bem
vessem inicialmente pensando em política, foram menor, menos gente teria saído às ruas no ato se-
rapidamente politizados; ou como o Bom Senso guinte. Mas como quem ia num ato usava as redes
FC, cujos membros provavelmente não estiveram digitais para discuti-lo e comentá-lo, no próximo ia
nas ruas em junho, foi influenciado pelos pro- mais gente, que por sua vez fazia o mesmo e alcan-
testos. Permite, ainda, entender como diferentes çava ainda mais gente, que também ia no próximo
grupos tomam a dianteira em diferentes lugares – até que as imagens e relatos de repressão fizeram
e momentos, ou como as pautas e reivindicações a coisa explodir. Cria-se um efeito de retroalimen-
vão se conectando, se diferenciando, se transfor- tação, um feedback positivo. É assim que o meio
mando (das tarifas à Copa, da Aldeia Maracanã digital permite ir muito além da capacidade ime-
ao “Onde Está Amarildo?” e ao “Fora Cabral”, de diata de mobilização de quem está convocando,
volta às tarifas). ao mesmo tempo que expande esta capacidade.
Ou seja, não estamos falando de um movi- Aliás, não é preciso estar na internet para es-
mento, com base social claramente delimitada, tar exposto a seus efeitos: o seu amigo se indigna
liderança definida, processos claros de tomada com o que leu no Facebook, a liderança do seu
de decisão, mas de um sistema complexo de inte- movimento muda de posição depois de um de-
rações contínuas, dentro do qual pode haver de bate no Twitter, a TV muda a notícia por causa
tudo: movimentos tradicionais, partidos, sindica- do vídeo no Youtube. Como diz um amigo, nem
tos, pequenos coletivos, redes informais de ami- todo mundo está na internet, mas todo mundo
gos, indivíduos “soltos”. E, portanto, diferentes que está na internet está no mundo. Não existe
identidades, objetivos, práticas. “a internet” e “o mundo real”: a internet está den-
É a diferença entre analisar um indivíduo iso- tro do mundo e age dentro dele, respondendo ao
lado e como ele interage com o ambiente (como que a cerca.

10
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO


não são um mero agregado de indivíduos; são in-
ternamente diferenciados, com zonas mais espar-
sas e núcleos mais densos, mais orgânicos, mais
“Não existe ‘a internet’ e ‘o organizados. Normalmente, são estes núcleos que
mundo real’: a internet está têm o papel de convocar, definir protocolos, ga-
dentro do mundo e age rantir um mínimo de estrutura, inclusive física, às
dentro dele, respondendo ações. Isto porque eles têm mais capacidade exe-
ao que a cerca” cutiva, já têm um certo reconhecimento entre as
pessoas, têm as assembleias mais cheias, adminis-
tram as páginas mais frequentadas, as contas de
Twitter mais seguidas.
Imersos num fluxo contínuo Como a mediatização permite, mesmo a
quem não tem muitos membros, alcançar e mo-
Nós vivemos em um ambiente cada vez mais bilizar um grande número de pessoas, uma orga-
mediatizado, tanto pela comunicação de mas- nização relativamente pequena pode gerar efei-
sa como pela autocomunicação de massa. Este tos antes só possíveis com uma grande estrutura.
é um dos motivos pelos quais os custos de or- Com isso, estes grupos podem permanecer relati-
ganização caíram. No tempo das Diretas, ainda vamente pequenos e, portanto, mais flexíveis, in-
sob a ditadura e com um bloqueio completo da formais, “horizontais”. Mas são eles que tendem
mídia, você realmente precisava de organizações a ter maior peso na estruturação da ação coletiva
com estrutura nacional, de lideranças que viajas- do sistema-rede. É o caso do Movimento Passe
sem pelo país, etc. Mas hoje estamos cada vez Livre (em São Paulo e agora no Rio), do Bloco
mais imersos num fluxo contínuo de informação e de Lutas (Porto Alegre), dos Comitês Populares
afetos que nos chegam por diferentes meios – do da Copa.
qual, ainda por cima, podemos participar, dando
nossas opiniões, fazendo propostas, expressando
sentimentos. Fins distintos
Isto não se dá “na rede”, nem “na rua”; se dá
no movimento entre uma e outra. E quando pro- Agora, perguntar se um tipo de organização
cessos de retroalimentação se estabelecem, deter- vai substituir o outro é como perguntar se o pires
minadas informações, afetos, palavras e imagens vai substituir o prato de sopa: são objetos seme-
passam a dominar as interações nas ruas, nas lhantes, mas que servem a fins distintos, e pos-
redes digitais, na mídia tradicional. E aí um ato suem uma forma adequada a sua finalidade. A
de mil pessoas vira o assunto de todas as conver- organização é sempre uma resposta a uma situa-
sas no dia seguinte, uma decisão tomada por 50 ção específica. Trabalhadores rurais, numa gran-
pessoas consegue a adesão de milhares no Face- de dispersão geográfica e com pouco acesso à
book, uma frase dita no Twitter é reproduzida em internet, não vão se organizar da mesma maneira
centenas de cartazes. que a juventude urbana, embora os dois grupos
possam estar conectados de diferentes maneiras,
IHU On-Line – Os movimentos sociais tra- e nenhuma forma de organização seja mais “real”
dicionais deixarão de existir, então? que a outra. Ambas são reais, as realidades é que
Rodrigo Nunes – Se você observar bem, a or- são diferentes. Os sindicatos, tal como existem
ganização mais “orgânica” não deixou de existir; hoje, não dão conta de um imenso setor não for-
mas é como se, assim como tudo mais nas últimas mal, flexível e precarizado, mas formas de ação
décadas, ela tivesse passado por um downsizing. coletiva adequadas a esta realidade precisam ser
É preciso uma boa dose de pensamento mágico elaboradas.
para achar que o que temos são indivíduos iso- Não me parece que as organizações de mas-
lados convergindo “do nada”. Os sistemas-rede sa tradicionais deixarão de existir, pelo menos no

11
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

médio prazo. O que certamente muda é a ideia sem sido “puro sangue”: muita gente que saiu às
de que elas sejam o único modelo de organização ruas não necessariamente se identificaria como
viável, de que quem não se organiza como elas “de esquerda”, embora possa defender pautas
não está organizado. “Organizar-se” deixa de ser progressistas.
sinônimo de “organizar-se assim”. Contudo, abertura implica menor coesão,
dificultando a definição de estratégias, diluindo
mensagens no meio de muito ruído, expondo o
A esquerda e a visão do átomo isolado sistema-rede ao risco de tentativas de apropria-
ção, como se viu no Brasil.
Uma das razões do preconceito que a es- A questão é: vale mais um ecossistema pe-
querda “tradicional” nutre contra os “não tradi- queno e homogêneo, ou um grande, heterogêneo
cionais” parece ser a ideia de que, fora das orga- e difícil de controlar? Não existe resposta certa,
nizações de massa que as agrupariam, as pessoas mas são escolhas que precisam ser feitas conti-
existem apenas como átomos isolados. As pes- nuamente, e cada uma tem seu preço. Quando
soas que estão nas ruas seriam, então, meros aconteceu a tentativa de ressignificar o que estava
indivíduos “expressando sua subjetividade”. Isto ocorrendo como um movimento “anticorrupção”
é evidentemente falso. Por mais atomizantes que e “antigoverno”, houve uma resposta clara no
sejam as condições de vida hoje, as pessoas exis- sentido de aumentar o “fechamento”: “coxinhas,
tem sempre dentro de diferentes redes familiares, fora das ruas, este é um movimento de esquer-
profissionais, afetivas, políticas. As pessoas estão da”. Barrou-se a tentativa de apropriação, mas
sempre agindo coletivamente, em graus maiores mandou-se para casa também muita gente que
ou menores de consistência ou formalização; e não era necessariamente “de direita”. Foi uma
normalmente é de núcleos mais organizados que oportunidade perdida de dialogar com pessoas
partem as principais iniciativas. É um cenário que estavam participando da política pela primei-
mais fragmentário e complexo, sem dúvida, mas ra vez.
nem por isso caótico.

IHU On-Line – Quais podem ser as desvan- Fluxo contínuo de interações


tagens deste tipo de organização?
Rodrigo Nunes – Desvantagens e vantagens Há outros limites, também. Como a vonta-
são faces da mesma moeda. Usa-se uma metáfo- de coletiva vai se formando dentro de um fluxo
ra da informática para distinguir um ativismo de contínuo de interações, o processo de tomada
“código fechado” (identidade definida, bandeira, de decisões é mais dinâmico, não está concen-
camiseta, lideranças, etc.) de um ativismo de “có- trado em um lugar. Por outro lado, muito do que
digo aberto”, relativamente aberto a diferentes se faz corre o risco de ser de curto prazo, reativo,
identidades, práticas, táticas, compreensões. Isto uma resposta mais ou menos automática não à
não quer dizer que código fechado e aberto se conjuntura como um todo, mas àquela coisa que
excluam: dentro de um sistema-rede de código aconteceu ontem.
aberto você tem zonas de código fechado, e aber- Mas não é impossível que um pensamen-
tura e fechamento são sempre relativos, existem to de mais largo prazo se desenvolva a partir
em graus. É óbvio, porém, que o poder de mobi- das redes. Experiências como o Rolling Jubi-
lização do código aberto é muito maior, porque lee nos Estados Unidos, a Plataforma de los
se comunica com muito mais temas, muito mais Afectados por la Hipoteca na Espanha e o
pessoas. O código fechado exige uma conversão, UK Uncut na Inglaterra, o próprio Movimento
o código aberto, apenas conexão. Alguém duvida Passe Livre (MPL) no Brasil, demonstram isso.
que, se os protestos de junho tivessem sido só dos E aí voltamos à questão da irreversibilidade: se
movimentos tradicionais, teriam sido bem meno- é fato que a política cada vez mais terá a forma
res? Aliás, também teriam sido menores se tives- das redes, é preciso pensar a partir delas para

12
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

desenvolver suas capacidades imanentes de au- “do lado de cá”: a geração anterior virou repre-
tocompreensão e ação estratégica. Não adianta sentante, a nova não se sente representada.
ficar se lamentando. Para quem acredita que o Se os “mais velhos” forem sinceros em rela-
telos de toda ação coletiva é sempre a constitui- ção ao slogan “Para o Brasil Continuar Mudan-
ção de um partido, a resposta a dar é a seguinte: do”, terão de reconhecer que, hoje, a energia para
hoje, se for surgir um partido, será de dentro das a mudança vem da mais nova. Os protagonistas
redes. Como, aliás, é o caso de uma experiência da política das ruas – e um compromisso com a
interessantíssima como o Partido X na Espanha, política das ruas era uma das características da
que propõe uma inovação realmente original da geração formada na redemocratização – são essa
forma partidária. nova geração.
Essa clivagem geracional, aliás, passa por
IHU On-Line – Qual o legado dos movimen- dentro das ruas também. Há muita gente de par-
tos sociais tradicionais para as novas mani- tidos ou movimentos mais tradicionais que está
festações de massa? Em sua intervenção no nas ruas, vivendo o choque. Por isso, há alguns
Conexões Globais, o senhor falou em um meses, eu dizia: o antagonismo principal não é
“conflito de gerações políticas”. entre esquerda institucional e ruas, mas entre
Rodrigo Nunes – Quando falo de geração, quem reconhece que algo de novo se passou de
não é no sentido de idade. Uma geração se forma junho para cá e quem não reconhece. A condição
em relação a um evento, ou eventos, aos quais para o diálogo é que se reconheça que há algo
ela responde. O PT, a CUT, o MST são projetos novo, fora das coordenadas que definiram a polí-
da geração do período da redemocratização, tica brasileira da redemocratização até aqui. Com
que chegou ao poder, produziu mudanças im- quem acha que junho não muda nada, não há
portantes, mas cuja energia de transformação se conversa possível.
exauriu. Não sou eu que digo isso, é o Secretário- Qual é o legado importante da geração da re-
Geral da Presidência da República! democratização, que se exprime ou exprimiu nas
organizações de massa que ela construiu? Além


de um conceito específico de organização de
massa, ao qual ela atribuía centralidade, aquela
geração foi guiada pela ideia de que a população
“Parece-me que desde junho do mais pobre deve se tornar protagonista da políti-
ano passado se cristalizou uma ca. Trata-se de uma certa noção do “popular”, da
nova geração política no país, importância do trabalho de base, da formação de
lideranças, que tem sua origem nas Comunidades
gestada no período em que o
Eclesiais de Base da Teologia da Libertação.
projeto da geração anterior
Isto é, aliás, a origem de uma confusão (ou
tanto se realizou quanto
chantagem) comum, porque as organizações de
revelou seus limites” massa criadas na década de 1980 tinham base
popular; faz-se uma oposição entre “quem está
Parece-me que desde junho do ano passado nas ruas” (subentenda-se: a classe média) e as
se cristalizou uma nova geração política no país, “organizações populares”. Em muitos casos, po-
gestada no período em que o projeto da geração rém, isto é uma miragem. É olhar para as orga-
anterior tanto se realizou quanto revelou seus li- nizações tais como elas são hoje e enxergá-las
mites. Ela se organiza de outras formas e é mo- como elas eram na década de 1980. Vá para um
vida não só pelo tema da pobreza, mas também comício sindical, vá para o meio do Black Bloc,
por preocupações que se tornaram secundárias aí me diga, sem entrar em nenhum outro mérito:
para aquele projeto: meio ambiente, direitos indí- qual é o mais “popular”? Sem falar que, desde
genas, diversidade sexual, direito à cidade. Acima junho, temos visto muito mais mobilização nas
de tudo, ela experimenta a crise de representação favelas e nas periferias. Pode-se responder que

13
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

são fenômenos pontuais que, se não forem or- vai conseguir realizar, mas ainda assim serve e
ganizados, não vão resultar em nada. É verdade. orienta suas escolhas práticas. Mas movimentos
Mas, de novo, a organização pode tomar diferen- distribuídos se caracterizam não por serem plena-
tes formas, e estes processos ainda estão muito mente horizontais, mas por possuírem liderança
no início. As classes populares não são monopólio distribuída. Como eles são mais informais e fle-
das “organizações populares” formadas décadas xíveis, as funções de liderança estão distribuídas
atrás – e estas organizações, aliás, deveriam estar no tempo e no espaço e podem ser assumidas em
se perguntando por que perderam a penetração diferentes momentos por diferentes grupos, indi-
que um dia tiveram. víduos, etc. Neste sentido, não seriam movimen-
Embora muitos na esquerda tradicional os tos “sem líderes”, mas o contrário: com muitos
critiquem como pequeno-burgueses, “coxinhas líderes, atuais e potenciais. A função de liderança
de esquerda”, etc., grande parte de quem está está disseminada e circula, podendo ser ocupada,
nas ruas não me parece alheia à questão de como em princípio, por qualquer um.
envolver a população mais pobre como agente
da política. Podem ainda não ter ideias claras
de como resolvê-la, mas o problema está posto, Ação coletiva
inclusive na prática de vários grupos: o MPL de
São Paulo e vários Comitês da Copa têm base Neste caso, “direção” é quem dirige, no mo-
popular, há grupos que trabalham com os sem- mento em que dirige; quem consegue canalizar e
teto ou moradores de favelas, o Bloco de Lutas estruturar a atenção e a ação coletiva para uma
dialoga com a base do Sindicato dos Rodoviários tarefa determinada num instante determinado.
de Porto Alegre. A direção existe em ato, dentro de um proces-
so contínuo de formação de vontade coletiva e
IHU On-Line – Os novos manifestantes re- tomada de decisão. Pelos motivos práticos que
cebem críticas por não apresentarem uma vimos acima, é mais provável que núcleos mais
liderança ou direção tal qual a dos antigos organizados assumam essa função a maior parte
movimentos. Qual é o significado dessa do tempo. Mas isto é diferente de você ter uma
“horizontalidade” e da ausência de estru- estrutura formalmente designada como “repre-
turas formais? sentante” ou como “direção”, que será reconhe-
Rodrigo Nunes – Em primeiro lugar, é bom no- cida como tal mesmo quando não estiver diri-
tar que você não tem um único movimento mar- gindo nada.
chando sozinho, mas vários grupos de tamanho O descompasso entre uma concepção e ou-
médio ou pequeno e um grande número de indi- tra ficou patente em junho. Há uma maioria de
víduos soltos. Alguns grupos têm mais autoridade jovens estudantes nas ruas, logo o governo cha-
moral, mais experiência, mas nenhum conseguiria ma a União Nacional dos Estudantes para con-
se impor sobre os demais. As pessoas não aten- versar; mas eles não têm nenhum papel efetivo
tam para essa diferença e ficam cobrando uma nos protestos, portanto não têm nada para nego-
“direção” que é objetivamente impossível, como ciar com o governo. Eis a crise da representação
se não tê-la fosse apenas uma opção subjetiva. em um capítulo: o sistema político aloca a deter-
Em segundo lugar, ao invés de “movimentos minadas organizações a função de representar
horizontais”, prefiro falar em “movimentos dis- determinados segmentos, mas o segmento está
tribuídos”. O “horizontalismo” é uma ideologia, se organizando completamente à revelia de seu
segundo a qual seria possível eliminar completa- “representante”. Então, você vai concluir que a
mente todos os diferenciais de poder; mas basta culpa é da realidade, que não está conforme o
estudar as redes um pouco para ver que nunca sistema? Não, a culpa é do sistema, que está cla-
são totalmente planas ou igualitárias. A horizon- ramente em defasagem com a realidade. A rua
talidade tem valor como “ideia regulativa” no não mente, não porque tenha sempre razão, mas
sentido kantiano: algo que você sabe que nunca porque é sintoma de alguma coisa real.

14
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Na verdade, muitos ataques à falta de “di- que as pessoas acreditem que é possível mudar
reção” provêm justamente da recusa de setores o mundo sem tomar o poder; elas duvidam que
da esquerda institucional em aceitar que a crise seja possível mudar o mundo tomando o poder!
da representação afeta também as instituições da Se você sai das ruas e vira Estado, perde a ala-
esquerda. A única direção legítima para um mo- vancagem que permitiria fazer com que o siste-
vimento de massa teria de vir das organizações de ma político saia do próprio eixo, pare de girar em
massa constituídas, dos partidos? Então por que falso.
eles não fizeram este movimento antes?

IHU On-Line – Diante deste quadro de “ho- Potenciais


rizontalização” e “liderança distribuída”,
como vislumbrar negociações ou mudan- Aí entra a questão dos tempos e escalas.
ças no campo político? Em virtude da convergência de crises mundiais
Rodrigo Nunes – Há três questões a distinguir (capitalista, ecológica, da representação) e do
aí: a capacidade de implementar mudanças, os crescimento da mobilização, há um sentimento
tempos e escalas das mudanças, a elaboração e bastante compartilhado hoje de que é possível e
negociação de programas positivos. necessário lutar não somente na curta, mas tam-
Começo do início. Embora se ouça uma re- bém na longa escala. Não só reduzir as passagens,
tórica anarquista difusa, é evidente que reivin- mas transformar o sistema de transporte público;
dicações como passe livre e desmilitarização da não só punir abusos, mas transformar a polícia;
polícia são dirigidas ao Estado e, portanto, exi- não só eleger representantes, mas transformar a
gem mediações institucionais. Porém, se é ver- política. Há tempos não havia um período tão pe-
dade que você dependerá do Estado para im- rigoso, mas também tão rico em potenciais.
plementar certas transformações, não é o caso Inevitavelmente, porém, a longa escala en-
que você precise virar Estado para fazê-lo. Um volve altos e baixos, vitórias e derrotas, avanços e
exemplo? A redução das tarifas foi imposta pelas recuos. Ela nem é linear nem se mede pelos tem-
ruas aos governos. Por enquanto, é uma vitória pos curtos dos ciclos eleitorais. Pelo contrário: se
pontual, impede que se faça algo, mas não cria você sempre submete o objetivo de longo prazo
nada novo. Mas digamos que pelos próximos às circunstâncias da próxima eleição, está apenas
três anos a pressão popular consiga barrar os se iludindo que ainda o persegue. Há quem diga:
aumentos; inevitavelmente, então, será preciso “olhem o Egito, eles acabaram com uma ditadura;
discutir as outras questões levantadas em 2013, olhem a Espanha, a direita se elegeu”.
que os prefeitos até aqui preferiram ignorar: o Em primeiro lugar, isso é esquecer que o
lucro das empresas, o financiamento do sistema Egito antes tinha uma ditadura, que a esquerda
de transporte, o passe livre universal. Aí se en- espanhola há anos fazia governos de direita. As
tra numa outra fase, em que será preciso combi- pessoas deveriam ter ficado quietas, então?
nar mobilização nas ruas, propostas concretas e Em segundo lugar, lá os movimentos estão
agentes capazes de fazer a mediação. Isto é mais falando de algo mais profundo que uma troca de
complicado, porque é muito mais fácil criar um governo; e você não pode julgar um jogo longo
consenso negativo(“não aos aumentos”) que um na segunda rodada. É como estar na Rússia em
consenso positivo (“como financiar o transporte julho de 1917 e dizer: “está vendo? Só o que os
público”). bolcheviques fizeram foi substituir o Czar por um
O que é pouco provável é que os movimen- governo burguês!”. Aliás, era o que o Partidão di-
tos atuais ponham todas as fichas na institucio- zia para os fundadores do PT: “Parem de agitar!
nalização. Não porque sejam “pós-modernos” ou Vocês vão fazer com que a ditadura endureça de
tenham lido muito John Holloway, mas porque novo!”.
não crêem que o sistema político tal como é possa Fazer política é correr riscos, e os ganhos são
responder a suas demandas mais radicais. Não é proporcionais aos riscos que se corre. Por outro

15
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

lado, quanto mais ambicioso, mais um movimen- riamente uma coisa má, significa apenas saber ti-
to deve ter maturidade, estratégia, saber construir rar o melhor de oportunidades. Neste sentido, é a
apoios, diversificar suas táticas. E isto inclui saber essência da ação prática. Se alguém conseguir se
criar suas próprias mediações institucionais. posicionar como mediador, e logo ficar claro que
está negociando em seu próprio interesse, aca-
bará rapidamente desconstituído. O “oportunista
Organização do sistema-rede do mal”, que explora as oportunidades para seus
próprios fins, também é um “mau oportunista”,
Entramos, então, na questão da elabora- não vai durar. Mas não é impossível que quem
ção e negociação de programas. Se você tem assuma este papel – uma organização, um grupo,
um ecossistema complexo, parcialmente estrutu- indivíduos – o faça bem. A posição de represen-
rado, mas não hegemonizado por núcleos mais tante numa situação como a que atravessamos
organizados, como isso ocorre? Neste ponto, os é, na verdade, extremamente ingrata, porque a
movimentos tradicionais parecem realmente le- legitimidade está no fio da navalha todo o tempo.
var vantagem: eles constroem agendas, preparam Manter-se legítimo implica entender que os limites
quadros, fazem formação política, mobilizam as da legitimidade são muito estreitos, que é preci-
bases, botam as lideranças para negociar. so escutar mais que falar, colocar-se na posição
Mas é impossível que isto ocorra dentro de de veículo ao invés de protagonista. Como diria
um sistema-rede? Não creio. Os grupos “espe- Maquiavel, ao “oportunista virtuoso” não basta a
cializados” já têm muita apropriação sobre seu Fortuna, é preciso virtù.
tema. O MPL tem um debate sofisticado sobre o João Pedro Stédile declarou recentemente:
transporte público, e a Articulação Nacional dos a mobilização “da juventude” é legítima, porque
Comitês da Copa, sobre a questão urbana. Nestas é sintoma de problemas estruturais latentes, mas
e em outras áreas, é preciso saber criar os fóruns quem tem que apresentar um “programa de mu-
onde propostas e estratégias possam ser discu- danças” são os “movimentos sociais organiza-
tidas. Não grandes assembleias, que dificilmente dos”. Note-se a equivocidade desta expressão:
funcionam para estes fins, mas diferentes espaços ela se refere a qualquer tipo de organização, a
que se comuniquem e se construam um sobre a organizações nos moldes tradicionais, ou espe-
base do outro: debates com especialistas, entre os cificamente àquelas constituídas nos anos 1980,
movimentos, aulas públicas, audiências públicas. já reconhecidas como tal? Ainda parece haver
Quem está na academia pode ter um papel im- aí uma certa resistência ao novo protagonismo,
portante aí, caso se ponha à disposição. À medida mesmo que misturada com o reconhecimento ex-
que as ideias vão se formando, é possível testar sua plícito de que os protestos também abrem opor-
recepção online, em assembleias, ver como as pes- tunidades políticas para o MST. É óbvio que estes
soas respondem, ir reformulando-as, conquistando novos movimentos terão que desenvolver suas
adesão. Lembremos que, aqui no Brasil, a reforma próprias mediações com o tempo; mas digamos
do direito autoral e o Marco Civil da internet fo- que movimentos como o MST queiram também
ram parcialmente construídos em processos assim. tentar ocupar este espaço e o façam da maneira
Pode não ser perfeito, mas nenhum processo é. certa – escutando mais que falando, atentando
Mas e quem seriam os mediadores? A lide- para o terreno em que se movem, respeitando as
rança distribuída é um cenário propício para o diferenças. Quem diz que não poderíamos ter re-
“oportunismo”, mas oportunismo não é necessa- sultados interessantes?

16
“A força bruta é a ação de quem não tem argumentos”

Entrevista especial com Antonio Martins

“Infelizmente até agora não temos visto ne- comportamento em relação à violência, a qual
nhum comportamento de civilidade da polícia. deve ser tratada como um “tabu”. Em conversa
(...) Tudo indica que em certo sentido a polícia com a IHU On-Line, por telefone, ele chama a
está procurando criar e provocar violência”, ava- atenção para atitudes violentas que permeiam a
lia o jornalista. sociedade brasileira, como o caso de “pessoas
As críticas à atuação policial nas sucessivas que provavelmente não eram da polícia” e “que
manifestações que ocorrem em várias cidades acorrentaram um garoto negro a um poste no Rio
brasileiras desde os protestos massivos de junho de Janeiro. Ou a outro caso, que também foi re-
passado reiteram, na avaliação de Antonio Mar- velado nesta semana, de um assassinato, com tiro
tins, a existência de uma “violência endêmica do a queima roupa, também por populares, de um
Estado contra a sociedade”. Assim, “a violência garoto que foi apontado como ladrão na periferia
principal parte do Estado, parte da polícia e é do Rio de Janeiro”.
incomparavelmente mais brutal do que as ações Antonio Martins é jornalista e editor do sítio
que os Black Blocs têm realizado”, pontua, em Outras Palavras. Participou da construção do
entrevista à IHU On-Line. Fórum Social Mundial e integra seu Conselho
Crítico também das ações dos Black Blocs, Internacional.
Martins é enfático: “Já se tornou claro que essa Confira a entrevista.
tática de promover a violência estética contra sím-
bolos do capitalismo desencadeia e legitima uma IHU On-Line – Como avalia a atuação da
violência muito mais potente e muito mais brutal polícia nas diversas manifestações que es-
no Estado e, mesmo de elementos da sociedade tão ocorrendo em todo o país? A atuação
que são despolitizados, uma onda geral de violên- policial foi abusiva? Quais são as causas?
cia. Então, se não nos distanciamos disso, acaba- Antonio Martins – Ela tem sido violenta, abusi-
mos, para o conjunto da população, transmitindo va e estranha. Há registros de episódios de uma
a imagem de que a violência é natural, porque a violência indiscriminada e aparentemente sem
polícia bate, mas os Black Blocs também ba- objetivo concreto nem de proteger pessoas – que
tem. Qual o percentual da sociedade que com- supostamente seria o papel da polícia –, e muito
preende esse sentido estético da violência contra menos de proteger o patrimônio. São episódios
o capitalismo? 1%, 2%? Para a maioria da popu- como, por exemplo, os do dia 13 ou 14 de ju-
lação isso é parte da ‘geleia geral’ da violência”. E nho em São Paulo, em que a polícia encurralou
dispara: “Na ausência de um projeto, às vezes no os manifestantes e atirou balas de borracha sem
desespero, a única forma que o sujeito enxerga nenhum objetivo do ponto de vista da função
de enfrentar o capitalismo é destruindo vidraças policial.
de banco, ou às vezes jogando ‘rojão’ contra a Em outubro ocorreram outros episódios,
polícia”. como o quase incêndio da Câmara Municipal do
Para o jornalista, as transformações sociais Rio de Janeiro, ou também aquele episódio estra-
passam necessariamente por uma mudança de nhíssimo em que um coronel teria sido agredido

17
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

por manifestantes. Esses episódios foram marca- banco, latas de lixo ou terminais de ônibus, a polí-
dos pelos seguintes paradoxos: havia manifestan- cia tem meios, tem efetivo e tem de ter treinamen-
tes promovendo depredações em São Paulo, no to para controlar essas pessoas ou para detê-las,
Terminal de Ônibus do Parque Dom Pedro, e no se for o caso. Tem uma reportagem muito boa da
Rio de Janeiro, na Câmara Municipal, e existem Tânia Caliari, na Retrato do Brasil, sobre como
registros de repórteres de que a polícia assis- a atuação policial, ao tratar todos os manifestan-
tiu a esses casos e não agiu em relação a esses tes de modo igual e ao responder a todos com
manifestantes. Ela deveria ter agido, não com violência, parece provocar mais violência.
violência, mas para proteger o patrimônio. Não O Black Bloc é um fenômeno estrangeiro
tem sentido depredar um terminal de ônibus. e surgiu no Brasil a partir do momento em que
Nesses mesmos dias, a polícia dispersou com houve, em São Paulo e no Rio de Janeiro, ações
selvageria manifestantes que estavam cantando muito violentas, muito indiscriminadas, inclusive
na Praça da Sé. da polícia. Então, será que não há, em certo sen-
Infelizmente até agora não temos visto ne- tido, interesse de criar a sensação de que os mani-
nhum comportamento de civilidade por parte da festantes são violentos também, e que, portanto,
polícia. As manifestações de junho foram quase a violência é naturalizada, e assim a violência po-
sempre pacíficas. As manifestações mais recen- licial é muito maior?
tes, inclusive as de 2014, têm registrado alguns


episódios de violência, porém ocorrem em mani-
festações pequenas, e não em manifestações in-
controláveis em que a polícia não pode atuar de
maneira civilizada. “Devemos tratar esse tipo de
Então, o que me chama mais a atenção, além violência como um tabu, como
da brutalidade, é esse comportamento muito er- algo que deve ser proibido,
rático. Para complementar, episódios que ocorre- como algo que não é aceitável,
ram no Rio de Janeiro demonstraram que pesso- como argumento daqueles que
as da polícia agiam exatamente como os Black não têm argumento”
Blocs, ou seja, atirando rojões. Tudo indica que,
em certo sentido, a polícia está procurando criar,
provocar violência. IHU On-Line – Mas por outro lado, o senhor
faz amplas críticas aos black blocs. Como
IHU On-Line – A polícia recebe muitas críti- interpreta, nesse sentido, o discurso deles
cas por não estar preparada para lidar com de que se trata de uma estética da violên-
os manifestantes. É possível evitar um con- cia, de uma violência justificada e, ao mes-
flito? Em que consistiria uma polícia prepa- mo tempo, como vê as ações de depreda-
rada para lidar com essas manifestações? ção do patrimônio público e privado nas
Antonio Martins – Não sou especialista em manifestações? São ações justificáveis?
táticas de ação policial, porém nós verificamos, Antonio Martins – A violência principal parte
inclusive com base em experiências internacio- do Estado, parte da polícia e é incomparavel-
nais, que mesmo nas manifestações em que há mente mais brutal do que as ações que os Black
pessoas dispostas a praticar atos de violência, a Blocs têm realizado. Eles se dizem partidários
polícia não pode ter o papel de reagir com mais de uma violência estética contra os símbolos do
violência. Primeiro porque ela fere e atinge pes- capitalismo, e a maior parte das ações deles foi
soas que são pacíficas; segundo porque ela repre- mesmo nesse sentido, embora tenha havido mais
senta o Estado, portanto não pode se colocar na recentemente outras que se transformaram em
posição de vingadora. Se existe algum manifes- ações contra pessoas também.
tante que está atirando “rojão” contra outro mani- Agora, as últimas semanas têm demonstrado
festante ou contra os policiais, se está depredando que a violência na sociedade brasileira é endê-

18
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

mica e é praticada principal e esmagadoramente Não se trata de uma condenação dos meni-
por aqueles que apoiam e querem manter o ca- nos por princípio, mas taticamente isso está se re-
pital, ou até mesmo por ações de elementos da velando um tiro no pé. Por trás disso precisamos
sociedade que não são muitas vezes da polícia, entender um problema maior: estamos em uma
mas que expressam uma brutalidade conserva- situação no Brasil em que se perdeu aquilo que
dora. Estou me referindo, por exemplo, às pesso- chamo de horizonte utópico; é uma situação dife-
as que provavelmente não eram da polícia, que rente e grave em relação a tudo que vivemos nos
acorrentaram um garoto negro a um poste no Rio últimos 30, 40 anos, porque a maior parte da es-
de Janeiro. Ou a outro caso, que também foi re- querda entrou no Estado. Depois de um primeiro
velado nesta semana, de um assassinato, com tiro ciclo de algumas mudanças sociais importantes,
a queima roupa, também por populares, de um o Estado está paralisado e gere uma sociedade
garoto que foi apontado como ladrão na periferia extremamente desigual. Em contrapartida, não
do Rio de Janeiro. tem surgido, entre aqueles que são das esquer-
Então, nós que somos anticapitalistas e que das tradicionais, um projeto de transformação so-
queremos superar o capitalismo, deveríamos as- cial. Então, as pessoas ficam perdidas em meio a
sumir claramente uma distância em relação a esse uma sociedade muito desigual. Nesse sentido, os
tipo de violência gratuita. Não estou debatendo Black Blocs são, em geral, pessoas muito jo-
as formas revolucionárias em determinados mo- vens, sinceramente anticapitalistas, mas que es-
mentos muito específicos da história da sociedade tão sem um projeto. Então, na ausência de um
em que é necessário reagir, romper. As socieda- projeto, às vezes no desespero, a única forma que
des estão preparadas para fazer grandes transfor- o sujeito enxerga de enfrentar o capitalismo é des-
mações, e há uma resistência. Muitas vezes você truindo vidraças de banco, ou às vezes jogando
precisa agir com certa dose de violência para su- “rojão” contra a polícia. Não podemos isolar as
perar essa resistência, mas não é nada disso que ações dos Black Blocs de um problema maior,
está acontecendo no Brasil. Aqui nós temos uma que é a falta de um projeto utópico e a necessida-
violência endêmica do Estado contra a socieda- de de reconstruir esse projeto utópico. Então, não
de, e devemos nos distanciar completamente dis- tentaria resolver o problema dos Black Blocs
so. Devemos tratar esse tipo de violência como simplesmente criticando-os, mas sim frisando a
um tabu, como algo que deve ser proibido, como necessidade de reconstituir um horizonte utópico.
algo que não é aceitável, como argumento da-


queles que não têm argumento. Nós devemos
mostrar que a força bruta é a ação de quem não
tem argumentos.
Já se tornou claro que essa tática de pro- “Em que país nós
mover a violência estética contra símbolos do temos hoje um
capitalismo desencadeia e legitima uma vio- projeto concreto de
lência muito mais potente e muito mais brutal transformação social que
no Estado, e mesmo de elementos da socieda- não seja mais do que
de que são despolitizados, uma onda geral de slogan?”
violência. Então, se não nos distanciamos dis-
so, acabamos, para o conjunto da população,
transmitindo a imagem de que a violência é IHU On-Line – É possível esperar a resposta
natural, porque a polícia bate, mas os Black deste “projeto utópico” das esquerdas?
Blocs também batem. Qual o percentual da Antonio Martins – Não sei quem será essa es-
sociedade que compreende esse sentido estéti- querda. Não sei se serão os ativistas ou os mili-
co da violência contra o capitalismo? 1%, 2%? tantes que estão nos governos. Mas para mim
Para a maioria da população isso é parte da isso não é um problema brasileiro, é um proble-
‘geleia geral’ da violência. ma mundial. Em que país nós temos hoje um

19
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

projeto concreto de transformação social que IHU On-Line – Como interpreta a supos-
não seja mais do que slogan? Nós passamos ta criação de uma tropa de choque de dez
por muitas mudanças políticas nos últimos anos, mil homens para atuar durante a Copa do
teve o período do neoliberalismo, depois teve Mundo? Como entender a reação do Es-
o período de reemergência da sociedade civil a tado e o modo como tem lidado com as
partir dos Fóruns Sociais. Mas a partir de 2009 manifestações?
surge outro fenômeno, que é o contra-ataque dos Antonio Martins – É uma atitude péssima,
capitalistas. No mundo todo há um processo de porque esperávamos do governo federal e de
destruição dos sistemas de solidariedade, dos sis- pessoas como o ministro José Eduardo Cardozo,
temas de previdência social, dos serviços sociais que tem um passado democrático, que servissem
– a Europa é um caso típico –, e ainda não en- de contraponto a essa violência que tem sido pa-
contramos respostas para isso. Na Espanha, cen- trocinada pelas polícias estaduais e por alguns
tenas de milhares de manifestantes do 15-M estão governos estaduais claramente ligados a projetos
há dois anos organizando manifestações e a cada antipopulares e neoliberais. Ao invés disso, o go-
vez o governo aprofunda as medidas de destrui- verno federal, que teria poderes de em certo sen-
ção do estado de bem-estar social. tido enquadrar esse comportamento das polícias
O Egito teve uma revolução e depois uma estaduais, tem reforçado e procurado fazer uma
contrarrevolução. Você vê o que está aconte- suposta articulação das medidas de segurança em
cendo na Ucrânia, onde quem está liderando as relação à Copa sem criticar essas atitudes que só
provocam a população.
manifestações sociais são os neonazistas. É uma
Então, essa história da Força Nacional é exa-
situação difícil, porque ao contrário do que se via,
gerada, porque ela não tem efetivo; esses 10 mil
por exemplo, a partir de 1999 – naquela época
policiais são os mesmos que participam das tro-
havia o esboço de criação de uma alternativa com
pas de choque estaduais, os quais serão treina-
os Fóruns Sociais Mundiais –, a crise aprofundou
dos e colocados em determinado momento sob
o ataque aos sistemas sociais. Nós ainda não en-
responsabilidade e comando da Força Nacional.
contramos uma resposta à altura. Essa resposta
exige recompor o horizonte histórico, exige pen-
IHU On-Line – Em que consiste o manual
sar para o capitalismo do século XXI quais seriam
produzido pelo Estado Maior das Forças
os pontos de um programa de transformação: é a
Armadas? Qual a orientação do manual
renda cidadã para todos? É a redução da jornada para os militares?
de trabalho? É o apoio às redes de economia so- Antonio Martins – Essa é mais uma das coisas
lidária? Nós precisamos mudar isso, mas não sei estranhas. Infelizmente o ministro Celso Amorim
se essa mudança irá partir do que nós chamamos tem razão em certa medida quando diz que não
de esquerda; dificilmente. Mas tem de partir de está criando a possibilidade da intervenção das
algum sujeito social que se proponha a superar Forças Armadas nas manifestações populares,
o capitalismo. Esse para mim é um dos grandes porque já existe base legal para isso. Ele argu-
desafios. menta que está criando um protocolo para que
essa ação não seja realizada sem parâmetros, po-
rém, do nosso ponto de vista – e do dele, que se


diz de esquerda, crítico às desigualdades da socie-
dade –, deveria se limitar ao máximo àquilo que
a lei permite. E o manual, ao contrário, é baseado
“Nós precisamos mudar em termos muito parecidos com a doutrina de
isso, mas não sei se essa segurança nacional do início ao fim, só não fala
mudança irá partir do claramente em inimigo interno, mas é aquela lógi-
que nós chamamos de ca e linguajar de repressão ao movimento social.
esquerda; dificilmente” Então, felizmente, o Ministro disse que vai passar

20
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

um “pente-fino”, que vai rever completamente Cardozo falou várias vezes sobre isso, mas até
esse manual. agora, nada. Qual vai ser o protocolo de atuação
Em primeiro lugar, as Forças Armadas não das polícias durante os protestos que irão ocorrer
deveriam jamais atuar na defesa da ordem pú- na Copa do Mundo? Não sabemos, mas é funda-
blica. As Forças Armadas são – e isto é uma ban- mental saber.
deira histórica da esquerda – para a defesa da Elas vão atuar da forma brutal como têm
soberania nacional, a defesa do território. Nós atuado as polícias estaduais? Então, em certo
precisamos ter polícias preparadas para a defesa sentido a existência de um protocolo é bom, mas
da ordem pública. Em segundo lugar, a existência esse protocolo, da forma que foi redigido pelo Es-
de manuais de ação, seja de qual corpo de segu- tado Maior das Forças Armadas, é um retrocesso
rança for, é uma coisa positiva. Nós não temos ao tempo da ditadura.
manuais de atuação, e o ministro José Eduardo

Por Patricia Fachin

21
“Chegamos a um ponto em que, antes de entender,
reagimos. E, frequentemente, reagimos mal”

Entrevista especial com Leandro Beguoci

“Talvez a surpresa com os rolezinhos tenha coisas, era um dos poucos caminhos que alguém
sido tão grande porque a periferia, finalmente, poderia almejar nessa vida. Mas os discursos têm
está se tornando visível. E nós, finalmente, esta- consequências. E ainda não é possível saber quais
mos percebendo que ela não é aquilo que nós serão elas se as condições econômicas e políticas
achávamos que era”, declara o jornalista. mudarem rapidamente”, avalia.
“Os rolezinhos tiveram um lado amplamen- Leandro Beguoci é editor da revista digital
te positivo: mostrar quão pobre é nosso debate Oene, professor da FAAP Pós-Graduação, de São
político e escancarar as consequências negativas Paulo, no curso de Comunicação Multimídia e co-
deste debate miserável. Porque poucas coisas po- lunista da revista VIP.
dem ser mais constrangedoras e reveladoras do Confira a entrevista.
que um shopping pedindo à polícia que barre,
na marra, a entrada de eventuais consumidores. IHU On-Line – Nas discussões sobre os ro-
Quando a truculência vira categoria de pensa- lezinhos, além do preconceito em relação
mento, olha, é hora de mudar de rumo”, pondera às camadas sociais mais pobres, percebe-se
o jornalista Leandro Beguoci em entrevista con- certa tendência de sintetizar o assunto a
cedida por e-mail à IHU On-Line sobre os rolezi- conflitos partidário-eleitorais ou a grandes
nhos e a reação da sociedade a eles. projetos ideológicos. Na sua avaliação, há
“Ao longo das últimas semanas, a reação aos motivação política na organização dos ro-
rolezinhos mostrou que nós não sabemos muito lezinhos? Ou o que estes jovens querem é
bem como lidar com esses jovens e com o que ascender socialmente?
eles representam. É um fenômeno novo. A maior Leandro Beguoci – Os meninos e meninas que
parte desses meninos se declara apolítica, diz ter vão ao shopping paquerar, dar uma volta, se di-
horror à política, e afirma que só quer dar uns vertir e desejar alguns dos produtos que estão na
beijos, se divertir e ser feliz – de preferência, com vitrine não praticam um ato político-partidário –
seus tênis supercaros. Eles só vão se sentir ex- ao menos não na forma como entendemos polí-
cluídos se o acesso a esse mundo de consumo tica hoje, no senso comum. Não há uma crítica
for cortado. Isso pode acontecer tanto pela reação à sociedade na ocupação dos shoppings, estes
intempestiva dos shoppings e da polícia, que es- espaços meio públicos, meio privados. Não há
tão criando um problema grave onde não havia um posicionamento sobre a agenda do dia. Não
confronto, quanto pela situação do país, que está há uma defesa de um ou outro partido. É apenas
com a economia cambaleando e não consegue uma reunião de jovens que sempre existiu. Mas,
mais oferecer aumentos expressivos da renda, agora, é ampliada pelas redes sociais, que dão es-
como aconteceu nos últimos anos. Nós, ao longo cala a fenômenos que aconteciam, no passado,
dos últimos anos, dissemos a uma geração inteira de forma limitada, e pela queda do desemprego
de pessoas que consumir, comprar suas próprias e acesso ao crédito, que aproximam, em parcelas,

22
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

o orçamento dos mais pobres dos produtos que aparece, ora acalma, sobre o uso de espaços hí-
antigamente só as pessoas de classe média pode- bridos, como shoppings, sobre quem tem direito a
riam comprar. frequentar esses espaços e sobre como as pessoas
Porém, a reação aos rolezinhos e as conse- devem se comportar neles. No final das contas,
quências a eles são políticas, mas políticas num há uma disputa de poder aí, sobre o que se con-
sentido clássico. Se política é originalmente o tra- venciona chamar de bom ou mau comportamen-
to das coisas que acontecem na cidade, das rela- to. Porém, é preciso muita cautela e sangue frio
ções de poder que ocorrem na cidade, em uma para se colocar em qualquer um dos lados desse
das definições mais antigas do termo, então os conflito. A maior parte dos rolezinhos aconteceu
rolezinhos são políticos por natureza. nas periferias de São Paulo. Logo, são pessoas
Porém, estão longe, muito longe, de política pobres recriminando outras pessoas pobres, por
como entendemos hoje: como instrumentos de uma série de razões que apontei no texto no co-
uma guerra entre siglas que querem conquistar meço do mês [em 14-01-2014]: disputa sobre o
e manter o poder. Não há nada disso neles. Po- uso do espaço, diferenças comportamentais entre
rém, ficou claro que as forças que disputam as pessoas de idades diferentes, desejo de se diferen-
eleições no Brasil quiseram, de uma forma ou de ciar. É um problema complexo, um sinal de que o
outra, se apropriar dos rolezinhos. Algumas, aliás, Brasil vem se tornando uma sociedade cada vez
tentando filiar os meninos, sem avisá-los, a uma mais complicada. A pessoa pode ser completa-
sigla que apoia o governo federal. Por outro lado, mente contra o rolezinho e ser de esquerda, ven-
vários dos críticos do rolezinho tentaram transfor- do nos meninos uma manifestação de um desejo
mar os meninos e as meninas em símbolos claros egoísta e individualista de ocupar um espaço a
de uma degradação moral e de uma desordem qualquer preço sem se importar com os outros.
que eles associam às políticas do governo federal. E outra pessoa pode ser de direita e ser a favor
Como qualquer visita ao shopping Itaquera [em dos rolezinhos, vendo nelas a livre expressão do
São Paulo] mostra, nenhum dos dois tem a me- desejo individual de pessoas livres em fazer o que
nor ideia do que está fazendo e dizendo. E ambas bem entendem. Portanto, uma dicotomia elite
as correntes deram razão às mais variadas críticas x pobres, a meu ver, não se aplica no caso dos
que se faz do conceito de política hoje: como uma rolezinhos.
ferramenta para acumular e aumentar seu poder Entretanto, a reação do Estado a eles mostra
em relação aos grupos rivais, desprezando qual- o quanto o debate político está empobrecido. Em
quer outro valor que não a acumulação de poder. vez de entender o problema, o governo de São
É por isso que eu tenho usado a palavra “política” Paulo e os shoppings trataram de enviar a polí-
com cautela. cia para revistar e impedir, de forma arbitrária,
O conceito de política está tão desgastado a entrada dos meninos e das meninas nos sho-
por mau uso que perdeu praticamente toda a sua ppings. E aí se vê o quanto a política, a política
composição. Ele se esvaziou, e significa tantas que se ocupa das relações de poder na cidade, é
coisas para tantas pessoas que hoje mais confun- necessária. Porque essa política, para administrar
de do que esclarece. Na maior parte das vezes, o conflito, parte primeiro da compreensão do pro-
para muitas pessoas, fazer política significa agir blema para, em seguida, elaborar e aplicar me-
de maneira questionável para obter benefícios didas que acalmem ou solucionem os conflitos.
indeclaráveis. Chegamos a um ponto em que antes de entender,
reagimos. E, frequentemente, reagimos mal.
Os rolezinhos tiveram um lado amplamen-
Discutir a cidade te positivo, portanto: mostrar quão pobre é nos-
so debate político e escancarar as consequências
Os conflitos que aconteceram a partir dos negativas deste debate miserável. Porque poucas
rolezinhos mostram que, sim, precisamos discutir coisas podem ser mais constrangedoras e revela-
a cidade. Há um conflito na sociedade que ora doras do que um shopping pedindo à polícia que

23
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

barre, na marra, a entrada de eventuais consu- confronto, quanto pela situação do país, que está
midores. Quando a truculência vira categoria de com a economia cambaleando e não consegue
pensamento, olha, é hora de mudar de rumo. mais oferecer aumentos expressivos da renda,
como aconteceu nos últimos anos. Nós, ao longo
IHU On-Line – Nas redes sociais, uma série dos últimos anos, dissemos a uma geração inteira
de elogios aos rolezinhos consideram estas de pessoas que consumir, comprar suas próprias
manifestações como uma resposta ao pre- coisas, era um dos poucos caminhos que alguém
conceito e à invisibilidade social que afli- poderia almejar nessa vida. Mas os discursos têm
gem a população de baixa renda. É possível consequências. E ainda não é possível saber quais
conciliar estes significados com o desejo serão elas se as condições econômicas e políticas
de participar de uma sociedade de consu- mudarem rapidamente.
mo capitalista?
Leandro Beguoci – Acho que essas reações nas IHU On-Line – Quem é o jovem que parti-
redes sociais, infelizmente, são tentativas de en- cipa dos rolezinhos? É possível definir um
quadrar os rolezinhos dentro de uma categoria perfil social, econômico, étnico, cultural
à qual eles não pertencem. É uma tentativa de para ele?
adaptar a realidade ao conceito, e não o concei- Leandro Beguoci – Algumas pesquisas recentes
to à realidade. Quem frequenta os shoppings das vêm tentando entender quem são, o que querem,
periferias de São Paulo não é invisível naquela onde moram. Mas o fato é que conhecemos mui-
parte da cidade. Pelo contrário, é bem visível e faz to pouco sobre a periferia das grandes cidades
questão de ser, com roupas caras e música alta. do Brasil. Dois grupos são bastante desconheci-
Somos nós, olhando os pobres e vendo neles dos no país: as pessoas muito ricas e as pessoas
coisas que gostaríamos que eles fizessem, e não pobres que moram nas periferias das grandes ci-
o que eles de fato fazem. Esse erro de avaliação dades. Há grandes estudos sobre a classe média
leva a diagnósticos complicados. tradicional, há estudos clássicos sobre as pessoas
O rolezinho é diversão de jovens pobres. Eles muito pobres das zonas rurais, mas ainda se sabe
se sentem completamente confortáveis em uma pouco sobre quem são e como pensam as pes-
sociedade que estimula e glorifica o consumo exa- soas que moram nas bordas das nossas maiores
cerbado. E não só a sociedade. O governo federal cidades e nas nossas regiões metropolitanas.
teve, nos últimos anos, um papel fundamental em Eu vim de uma cidade pobre da região me-
associar consumo a pertencimento, em associar tropolitana de São Paulo. Embora esteja ao lado
consumismo tanto à realização pessoal quanto a da maior cidade do país, as práticas político-par-
uma espécie de patriotismo em 12 parcelas iguais tidárias na cidade onde cresci são semelhantes ao
sem juros. Em 2008, o presidente Lula incentivou que existe de pior nos lugares mais remotos do
as pessoas a continuar consumindo para impedir Brasil. Mas a gente praticamente não fala disso.
que o país entrasse em crise. Parece que coronelismo só acontece nos rincões.
Ao longo das últimas semanas, a reação aos Olha que coisa: o Philip Roth é um dos maiores
rolezinhos mostrou que nós não sabemos muito escritores americanos vivos e várias das suas obras
bem como lidar com esses jovens e com o que são sobre Newark, uma área muito semelhante à
eles representam. É um fenômeno novo. A maior Grande São Paulo. Quantos escritores brasileiros
parte desses meninos se declara apolítica, diz ter retratam, com essa qualidade, a vida em Itaquera
horror à política, e afirma que só quer dar uns ou Pirituba, Franco da Rocha ou Diadema? Há
beijos, se divertir e ser feliz – de preferência, com pouquíssimos estudos e livros sobre essas áreas
seus tênis supercaros. Eles só vão se sentir ex- que estão tão perto, mas tão longe.
cluídos se o acesso a esse mundo de consumo Talvez a surpresa com os rolezinhos tenha
for cortado. Isso pode acontecer tanto pela reação sido tão grande porque a periferia, finalmente,
intempestiva dos shoppings e da polícia, que es- está se tornando visível. E nós, finalmente, esta-
tão criando um problema grave onde não havia mos percebendo que ela não é aquilo que nós

24
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

achávamos que era. Porque, afinal, não existe Leandro Beguoci – Nós não sabemos como
uma única periferia... lidar com multidões. Isso é curioso, já que duas
das nossas maiores manifestações culturais são


tomadas por milhares de pessoas. Em jogos de
futebol, qualquer movimento é tratado com cas-
setetes da polícia. A espiral de violência, alimen-
“Precisamos ser mais curiosos.
tada pela polícia e pelos torcedores organizados,
Empatia não é apenas se solidarizar
resultou num padrão de comportamento. Na
com as pessoas que apanham da
dúvida, porrada. Em vez de dissipar o confron-
polícia. Empatia também é entender to, nós o intensificamos com mais violência. A
essas pessoas e vê-las como parte outra é o Carnaval das avenidas, do Rio e de
fundamental do país” São Paulo. A espontaneidade dos blocos de rua
foi substituída por uma parada com organização
IHU On-Line – O que a reação da sociedade militar. É impressionante a semelhança entre
em relação aos rolezinhos diz sobre a pró- uma parada militar e um desfile de Carnaval. A
pria sociedade? divisão por blocos, o ritmo da bateria, o tempo
Leandro Beguoci – Mostra que a sociedade não rigidamente cronometrado. Ou nós espancamos
conhece uma ampla parte dela mesma e ignora as multidões ou nós exigimos que elas tenham
mudanças profundas que aconteceram no país um comportamento absolutamente regrado.
nas últimas décadas. O que mais me chama a Não conseguimos, ainda, elaborar soluções mais
atenção é a falta de curiosidade das pessoas de moderadas, mais flexíveis, que se adaptem aos
classe média, mesmo as que têm mais empatia diferentes contextos. Na dúvida, vem a fórmula
pelas pessoas mais pobres, pelo que acontece a pronta. Basta ver como as prefeituras e as po-
alguns quilômetros das casas delas. Para muitas lícias têm dificuldades em lidar com blocos de
pessoas, à direita e à esquerda, o único contato Carnaval. Perto da minha casa, neste domingo,
com a periferia acontece durante as conversas dia 2 de fevereiro, teve um bloco. Moro em uma
com a empregada doméstica ou com a faxineira área de classe média, a 20 minutos de ônibus da
do escritório. Precisamos ser mais curiosos. Empa- avenida Paulista. Estava tudo muito bom, tudo
tia não é apenas se solidarizar com as pessoas que muito bem, quando veio a polícia, pediu a auto-
apanham da polícia. Empatia também é entender rização. Sem autorização, sem bloco. E então o
essas pessoas e vê-las como parte fundamental bloco foi desfeito como se fosse uma manifesta-
do país que estamos construindo. Elas não são ção violenta.
apenas uma mancha azul ou vermelha no mapa Os shoppings e os rolezinhos formam mais
a cada dois anos. um capítulo da nossa incapacidade de olhar para
os problemas, entendê-los e propor uma solução.
IHU On-Line – Argumentos contrários Muita gente dentro de um shopping vai causar
aos encontros organizados em shoppings problema. Os corredores são estreitos. Um tumul-
levantam a bandeira da segurança. Não to pode ter consequências trágicas. Isso significa
apenas no que se refere a furtos e arras- que os rolezinhos têm de ser reprimidos a borra-
tões, mas também no que diz respeito a chadas? Não. Qual é a solução? Hoje, não sei.
eventuais riscos associados à entrada de Aliás, alguém sabe quantas pessoas podem estar
dezenas ou centenas de pessoas ao mesmo num shopping ao mesmo tempo? A gente não
tempo em um mesmo prédio. Também cri- sabe nem qual é a capacidade máxima dos shop-
ticam o comportamento dos jovens, que, pings, nem se eles estão respeitando essa capaci-
ao pular, correr, cantar pelos corredores, dade. Nós começamos a discutir tumultos, multi-
afastariam parte dos frequentadores tradi- dões, sem saber ao certo quantas pessoas podem
cionais e prejudicariam os lojistas. O que estar, juntas, nesses lugares. É mais um capítulo
pensa destes argumentos? do festival de certezas fundadas em quase nada

25
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

que assola o país. Em vez de pensar sobre novos Leandro Beguoci – Os governos do Brasil, ao
problemas, nós queremos soluções de prateleira. longo dos últimos anos, venderam a ideia de que
consumir é glorioso. Difundimos a ideia de que a


melhor forma de fazer parte da sociedade é com-
partilhar símbolos de consumo. Não estou recri-
minando o consumo por si, mas sim a sua versão
“Precisamos ser mais curiosos. descontrolada.
Empatia não é apenas se solidarizar Quando a população de baixa renda passa
com as pessoas que apanham a ostentar, ela está dando a sua versão sobre o
da polícia. Empatia também é que vem escutando ao longo dos últimos anos.
entender essas pessoas e vê-las É uma releitura muito particular da mensagem
como parte fundamental do país” que vem ouvindo. Consumo, para pessoas que
têm uma vida muito sofrida, é um caminho para
a felicidade, por mais efêmera que seja. Um tênis
IHU On-Line – Qual é o significado do sho- Mizuno de mil reais é uma tentativa de mostrar
pping para os jovens que participam dos que, sim, estou melhorando de vida e faço parte
rolezinhos? do mesmo mundo que você. A ostentação é só
Leandro Beguoci – Os shoppings são lugares um capítulo natural desse discurso de consumis-
confortáveis, seguros, para fazer compras, ver e mo exacerbado.
ser visto. Seja no Cidade Jardim, um shopping de Se você está dizendo para as pessoas “con-
alta renda em São Paulo em que só se entra de sumam para ser felizes, consumam para mostrar
carro, seja no shopping Itaquera. O sentido social que conseguiram melhorar de vida, consumam
dos shoppings é o mesmo para várias pessoas de para ajudar o país”, o que você espera que as
várias partes da sociedade, e talvez isso explique pessoas façam? E isso não acontece apenas entre
a imensa atração que exerce sobre nossas cidades os mais pobres. Até mesmo as pessoas mais críti-
violentas e carentes de opções de lazer. cas dos males do consumismo exacerbado osten-
Na periferia, onde a violência e a carência de tam um pouquinho de vez em quando, seja em
áreas de lazer são muito maiores, os shoppings se viagens para destinos alternativos e caros, seja
tornam ainda mais atraentes. Nas áreas de classe consumindo produtos naturais, muito bem feitos,
média, você pode ir a um cinema de rua e depois saudáveis e... extremamente caros.
tomar um café numa livraria bonita e bem deco- O eterno desejo de se diferenciar dos outros
rada. Na periferia, não. Os jovens que vão aos ro- e, ao mesmo tempo, de fazer parte de uma par-
lezinhos cresceram acostumados a ter o shopping cela da sociedade que se admira, foi canalizado
como única referência de lazer. pela via do consumo. É quase como se dissés-
A mensagem dos shoppings, espalhada por semos que não há vida fora do consumo – e de
toda a sociedade, é ainda mais forte nessas áreas muito consumo.
em que o cheiro de esgoto perfuma o ar e o ba-
rulho de tiroteio se tornou banal. O shopping pro- IHU On-Line – Há relação entre as mani-
mete conforto e segurança. Imagine como essa festações do ano passado que agitaram o
promessa é lida em lugares em que praticamente Brasil e os rolezinhos?
não há conforto e segurança? Leandro Beguoci – Hoje, em fevereiro de 2014,
a única coisa que vejo em comum entre os ro-
IHU On-Line – Como explicar a ostentação lezinhos e as manifestações é a reação a eles.
e apropriação de marcas de grife pela popu- A violência da reação uniu fenômenos muito
lação de baixa renda? diferentes.

Por Luciano Gallas e Andriolli Costa

26
“Eu não sou o jovem pobre, favelado, sem perspectiva.
Eu tô podendo”

Entrevista especial com Lucia Mury Scalco

“Para as classes populares, o direito a ter “A marca da roupa é muito valorizada pelo grupo,
acesso a bens como educação, saúde, habita- contribuindo para o processo de identificação e
ção confunde-se semanticamente com consumo classificação. Neste sentido, tênis, calça jeans, bo-
(compra de uma mercadoria). A inclusão social se nés, roupas e objetos são sinônimos de status e de
dá através da dimensão do consumo”, descreve a prestígio”, complementa.
antropóloga. Lucia Mury Scalco é socióloga e antropólo-
“O contexto social e econômico desses jo- ga. Possui mestrado e doutorado em Antropologia
vens de periferia realmente aponta para um uni- Social pela Universidade Federal do Rio Grande
verso marcado pela escassez de recursos, mas do Sul – UFRGS, quando desenvolveu pesquisas
nossa pesquisa mostra que, através do consumo, com os títulos “FaLa K É NóIs”: etnografia de
é possível (na visão desses jovens) inverter essa um projeto de inclusão digital entre jovens
realidade, pois, ao aflorar abundância e riqueza de classes populares em Porto Alegre e O
material, eles fazem do ato de se vestir uma ação Consumo das novas tecnologias pelas clas-
que subverte a ordem estabelecida e dada (qual ses populares, respectivamente. Atualmente, re-
seja, de pobreza e discriminação)”, afirma a an- aliza investigações sobre os temas classes popula-
tropóloga Lucia Mury Scalco. Ela lembra a frase res, inclusão digital, novas formas de apropriação
de um dos garotos ouvidos durante a elaboração das informações e do conhecimento, juventude e
da sua pesquisa para exemplificar a análise feita: consumo.
“Eu não sou o jovem pobre, favelado, sem pers- Confira a entrevista.
pectiva. Eu tô podendo”.
Em entrevista concedida por e-mail à IHU IHU On-Line – Há especificidades regio-
On-Line, a pesquisadora avalia as motivações nais ou há uma identidade comum entre
dos jovens para realizar os chamados rolezinhos, os jovens que participam de rolezinhos nos
passeios em grupo organizados nos shoppings shoppings em cidades diversas do país?
para fazer compras e experimentar sensações de Lucia Mury Scalco – Acredito que as práticas
prestígio e de poder. “Ficou evidente, na etnogra- culturais juvenis combinam elementos do capita-
fia que realizei junto com a colega Rosana, que lismo global com a cultura local. Naturalmente os
a prioridade deles não era meramente vestir-se jovens do Morro da Cruz, em Porto Alegre, princi-
bem, mas simplesmente existir: ser visto, ser re- pal local onde desenvolvo minhas pesquisas, são
conhecido e ter prestígio. O interessante é que, influenciados pelo que o sociólogo Renato Ortiz
ao invés de haver uma contradição entre miséria denominou de mundialização da cultura; nesse
e ostentação, descobrimos que estávamos diante sentido, os tênis, bonés e seu vestuário são refe-
de duas categorias complementares, em que a se- rências importantes para os jovens. Essas referên-
gunda era fruto da primeira”, pondera a autora. cias, que o autor chamou de “desterritorializadas”,

27
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

fazem parte de uma nova gramática compartilha- de distribuição de renda e ao aumento da linha
da entre todos os jovens do mundo. Porém, esses de crédito, cujo efeito mais aparente e imediato
símbolos e objetos são ressignificados localmente, é a ampliação do poder de compra. Mas na nos-
e o território, o local, também atua como defini- sa etnografia encontramos jovens muito pobres,
dor para o pertencimento a um grupo, bem como que se encaixariam perfeitamente numa classe D.
na construção da sua identidade. Ressalto que, para a antropologia, essa classifica-
ção quantitativa é pouco representativa, pois ado-
IHU On-Line – Qual sua avaliação sobre as tamos uma perspectiva mais abrangente – a de
motivações destes jovens para participar cultura popular, que não é definida apenas pelo
dos rolezinhos? capital econômico (poder de compra ou faixa sa-
Lucia Mury Scalco – As motivações para os ro- larial), mas também pelo capital simbólico e social
lezinhos são, além das dimensões de prestígio e desse jovem.
de poder, uma clara estratégia para exercer o po-
der de circular nos shoppings, como normalmen- IHU On-Line – Sendo assim, até que ponto
te fazem os outros jovens da mesma idade. Ficou pode-se afirmar que os rolezinhos são um
evidente, na etnografia que realizei junto com a fenômeno decorrente das políticas públi-
colega Rosana Pinheiro-Machado, que a priorida- cas de distribuição de renda implementa-
de deles não era meramente vestir-se bem, mas das no Brasil nos últimos governos?
simplesmente existir: ser visto, ser reconhecido e Lucia Mury Scalco – Não acredito nessa afir-
ter prestígio. O interessante é que, ao invés de ha- mação. Os social que vivemos no país. Eles ex-
ver uma contradição entre miséria e ostentação, pressam o desejo dos jovens da periferia de parti-
descobrimos que estávamos diante de duas ca- ciparem da nossa sociedade, de frequentarem os
tegorias complementares, em que a segunda era mesmos lugares e territórios que os demais jovens.
fruto da primeira. O abismo social que vivemos é tão estrutural e ar-
raigado que as classes médias e altas nem o per-
IHU On-Line – Os rolezinhos são frequen- cebem. Acredito que seria uma simplificação ligar
tados apenas pela juventude da periferia? o Bolsa Família, por exemplo, que tem o seu valor
Não haveria a participação também de jo- em torno de 150 reais, com o consumo de marcas
vens de classe média? por parte dos jovens da periferia. Isso revela cla-
Lucia Mury Scalco – Acredito que os jovens de ramente o pensamento moralista e conservador
classe média também marcam encontros nos sho- que impera na nossa sociedade, que pressupõe
ppings, comemoram o final de semestre, como o que, para os pobres, o consumo é (ou deveria ser)
vídeo que circula na internet, e a palavra “rolé” é norteado somente pela utilidade, pela necessi-
uma gíria usada por muitos jovens, que significa dade e a sobrevivência. Todo o gasto que foge
passear, dar uma volta, se divertir. Mas o que tem disso é supérfluo e, consequentemente, irracio-
despertado tanto medo e rancor é, isto sim, os ro- nal. O consumo ostensivo de marcas caras ou as
lezinhos organizados pela juventude da periferia. longas prestações no crediário transformam-se,
nesta visão, em alternativas incorretas. Não há
IHU On-Line – Se estes jovens usam roupas muitas saídas para o consumidor de classes po-
de marcas e grifes, eles (suas famílias) pos- pulares: ele deve apenas alimentar sua prole.
suem um certo poder aquisitivo. É possível
então identificar estes jovens com grupos IHU On-Line – O que significa para esses
integrantes das classes C e D que estão em jovens utilizar roupas de marca? Que valo-
ascensão econômica? res estes jovens apreenderam da sociedade
Lucia Mury Scalco – Sim, acredito que é possí- de consumo?
vel associar esses jovens da periferia como mem- Lucia Mury Scalco – O vestuário tem uma di-
bros das chamadas classes e também relacionar mensão central para os jovens que pesquisamos,
esse aumento de consumo a políticas públicas e podemos afirmar que, literalmente, o ser e ter

28
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

se fundem para esses jovens. Por exemplo, ao tígio. Especificamente sobre consumo popular, a
questionarmos sobre a importância das roupas e Antropologia do Consumo contribui chamando
o quanto se paga por elas, um rapaz respondeu: a atenção para a dimensão simbólica presente
“Custa muito caro, mas vale. É diferente de comi- no ato da compra, refutando a visão simplista do
da, come e acaba; roupa não. Roupa é importante. pensamento puramente economicista, onde a es-
Aparência é tudo, mostra quem tu é”; “Tu não é cassez, a necessidade e a lógica da sobrevivência
ninguém sem marca – a roupa que tu está usando seriam categorias para explicar o consumo dessa
mostra quem tu é –, na vida se é o que se tem”. parcela da população brasileira, em que a neces-
Os valores que eles apreendem da sociedade sidade é a variável explicativa da demanda.
de consumo é que é preciso “estar na moda” para Portanto, ao nos depararmos com jovens
serem incluídos socialmente, e que vale a pena, que vestem marcas originais literalmente dos pés
sim, realizar grandes sacrifícios para conseguirem à cabeça, mas cujas famílias muitas vezes passam
esse fim. fome, há uma tendência reducionista de classifi-
Eles acreditam que o consumo material pode car esse ato como irracional e supérfluo. Porém,
transmutar exclusão em inclusão. Sob essa pers- como atestam as etnografias e a teoria antropo-
pectiva, acreditamos que o consumo de roupa de lógica, sabemos que as dimensões simbólicas do
marca pelos jovens da periferia deve ser tratado consumo se sobrepõem às práticas, na medida
como uma forma de agência, empoderamento e em que um símbolo socialmente valorizado é tão
cidadania. vital para a existência humana quanto o alimento.
Finalizando, para as classes populares, o direito a
IHU On-Line – Qual o significado do shop- ter acesso a bens como educação, saúde, habita-
ping para estes jovens, tendo em vista que ção confunde-se semanticamente com consumo
eles poderiam se reunir em praças ou ou- (compra de uma mercadoria). A inclusão social se
tros locais públicos? dá através da dimensão do consumo.
Lucia Mury Scalco – Sempre existiram encon-
tros de jovens em shoppings. Os motivos são mui- IHU On-Line – Participar de um rolezinho
tos: conforto, segurança, praticidade, lazer, praça no shopping tem algum caráter de enfren-
de alimentação, etc. São lugares centrais para tamento, de ocupação, ou possui mais este
o consumo, e onde acontece a sociabilidade. É desejo de ser incluído na sociedade?
muito mais um espaço de encontro, é um lugar Lucia Mury Scalco – Acho perigosas as gene-
simbólico que confere prestígio e que agora, cada ralizações sem um aprofundamento etnográfico,
vez mais, os jovens das classes populares querem mas pelo que acompanhei acredito que sim, exis-
ocupar e usufruir. te um caráter de enfrentamento e de ocupação,
talvez ainda impulsionado pelas manifestações
IHU On-Line – Nesta linha, o que estes jo- do ano passado. Mas, paradoxalmente, não é um
vens nos revelam sobre os valores e os pre- movimento de protesto contra os shoppings, con-
ceitos de nossa própria sociedade? tra o consumo, e sim uma adesão a essas práticas.
Lucia Mury Scalco – Que o consumo é uma ca-
tegoria central para o entendimento da moderni- IHU On-Line – Estes jovens, como de resto
dade e que a Antropologia traz muitas contribui- a nossa sociedade como um todo, carecem
ções para o entendimento desse fenômeno, uma de uma formação política consolidada.
vez que dá voz e tenta entender as motivações Este fato pode favorecer sua manipulação
e lógicas dos sujeitos. Observamos que, para os com fins partidário-eleitorais?
jovens, a marca da roupa é muito valorizada pelo Lucia Mury Scalco – Acredito que não exista
grupo, contribuindo para o processo de identifica- esse risco, pois o nosso sistema político tradicio-
ção e classificação. nal (partidário-eleitoral) está tão em crise que não
Neste sentido, tênis, calça jeans, bonés, rou- possui representatividade e legitimidade para es-
pas e objetos são sinônimos de status e de pres- ses jovens. Não penso que haja espaço para al-

29
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

gum tipo de manipulação e não concordo com IHU On-Line – Vivemos a sociedade da ex-
a avaliação feita de que os jovens não têm uma clusão, que mede o valor da pessoa pelas
formação política consolidada. É uma ampla dis- suas posses e trata com autoritarismo, vio-
cussão, porém somente esse distanciamento que lência e preconceito aqueles que não geram
vivemos com as classes políticas já é um posicio- riqueza econômica. Ao querer fazer parte
namento e um recado para a classe política: “vo- desta lógica, estes jovens não são contrá-
cês não nos representam”. rios à transformação social?
Lucia Mury Scalco – Acredito que o movimen-
IHU On-Line – É possível conceber uma re- to é paradoxal e foge um pouco daquelas velhas
lação entre o comportamento dos jovens dicotomias com as quais estamos acostumados a
que querem ter acesso aos bens de consu- refletir a realidade. Não é um movimento de pro-
mo e o comportamento das elites que alme- testo tradicional, de revolta e crítica, é de adesão,
jam compartilhar os hábitos de consumo de inclusão. Mas a novidade está em que agora
europeus e estadunidenses? Este compor- mais incisivamente procuram e reivindicam espa-
tamento de viés consumista não é observa- ço e direitos.
do em todas as camadas sociais?
Lucia Mury Scalco – Sim, com certeza o consu- IHU On-Line – Gostaria de acrescentar
mo é uma categoria central para o entendimento algo?
da modernidade, como eu disse antes. Consumo Lucia Mury Scalco – O contexto social e econô-
existe em todas as classes sociais, e especifica- mico desses jovens de periferia realmente aponta
mente os jovens da periferia não podem ser re- para um universo marcado pela escassez de re-
duzidos a meros consumistas desenfreados, eles cursos, mas nossa pesquisa mostra que, através
não podem ser vistos somente pela lente econô- do consumo, é possível (na visão desses jovens)
mica, que sempre põe em relevo as suas penúrias inverter essa realidade, pois, ao aflorar abundân-
e carências. Não é só reprodução. Existe agência, cia e riqueza material, eles fazem do ato de se ves-
protagonismo e escolhas. O consumo entre esses tir uma ação que subverte a ordem estabelecida
jovens é um ato que negocia custo-benefício, ra- e dada (qual seja, de pobreza e discriminação).
zões práticas e simbólicas, dinheiro e amor, efe- Termino com uma frase de um dos meninos com
meridade e duração. o qual conversamos: “Eu não sou o jovem pobre,
favelado, sem perspectiva. Eu tô podendo”.

Por Luciano Gallas

30
Os direitos humanos e a violência social

Entrevista especial com Salete Valesan

“Promover o desenvolvimento sem consi- seus principais avanços e desafios, com foco no
derar a garantia dos direitos humanos não vai respeito às diferenças, na participação social, na
ajudar a superar as desigualdades que existem na redução das desigualdades e no enfrentamento a
nossa sociedade atual”, afirma a pedagoga. todas as violações de direitos humanos.
“Estamos longe de ter justiça social, política,
ambiental e econômica como princípios que nos IHU On-Line – Houve equilíbrio na repre-
regem na vida em comunidade. Quanto mais na sentação de organizações estatais e dos
dinâmica do mercado, que alimentamos e repro- movimentos sociais entre as 730 entidades
duzimos em forma de desenvolvimento. Promo- envolvidas na organização das atividades?
ver o desenvolvimento sem considerar a garantia Salete Valesan – Podemos dizer que sim. Uma
dos direitos humanos não vai ajudar a superar as das diferenças entre o Fórum Social Mundial –
desigualdades que existem na nossa sociedade FSM e o Fórum Mundial de Direitos Humanos
atual”, destaca Salete Valesan, em entrevista con- – FMDH é esta. No FSM o Comitê Organizador
cedida por e-mail à IHU On-Line, ao comentar é composto somente pela sociedade civil e no
a realização do Fórum Mundial de Direitos FMDH é composto pela representação da diver-
Humanos – FMDH, organizado em dezembro sidade da sociedade. Isso foi fundamental para o
de 2013 em Brasília. resultado do Fórum.
Salete Valesan é pedagoga e psicopedago-
ga. É mestre em Educação pela Universidade IHU On-Line – Quais foram os principais
de São Paulo – USP, coordenadora executiva na debates realizados? Que deliberações fo-
Sede Brasil da Faculdade Latino-Americana de ram produzidas?
Ciências Sociais – Flacso e coordenadora da área Salete Valesan – Os temas gerais foram: os direi-
de Participação, Sociedade Civil e Processos de tos humanos como bandeira de luta dos povos –
Mobilização da mesma instituição. Participa da com foco nos movimentos sociais; a universalização
militância dos movimentos sociais e populares, de direitos humanos em um contexto de vulnerabi-
incluindo as organizações do Fórum Social Mun- lidades; e a transversalidade dos direitos humanos.
dial e do Fórum Mundial de Educação. De 1980 Já as deliberações são diversas. Como a
a 2003, atuou como professora e coordenadora criação e fortalecimento de campanhas, redes
pedagógica nas redes pública e privada de ensino e fóruns; o lançamento da próxima Conferên-
em São Paulo. cia Nacional de Direitos Humanos para 2015; a
Confira a entrevista. consolidação de grupos de estudos, pesquisas e
publicações; a decisão das próximas edições do
IHU On-Line – Quais foram os principais FMDH – em dezembro de 2014 no Marrocos e em
objetivos do Fórum Mundial de Direitos dezembro de 2015 na Argentina.
Humanos – FMDH realizado em Brasília?
Salete Valesan – Promover um espaço de deba- IHU On-Line – O direito à comunicação
te público sobre direitos, em que sejam tratados foi um dos temas debatidos no FMDH. A

31
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

promoção dos direitos humanos encontra natureza contra as mulheres. Se considerarmos as


espaço nas redes sociais? E nas mídias meninas, as adolescentes e as jovens que sofrem
tradicionais? violência, teremos um quadro assustador.
Salete Valesan – Nas redes sociais, mídias livres
e alternativas, sim, pois faz parte da sua nature- IHU On-Line – Em que aspectos a socieda-
za. Nas mídias tradicionais, ao mesmo tempo que de brasileira precisa evoluir em relação aos
existe uma possível promoção dos direitos huma- direitos de grupos sociais marginalizados?
nos, também existe um culto ao sensacionalismo Salete Valesan – Na aceitação de que é exclu-
que sempre promove mais espaço para a divulga- dente, injusta e preconceituosa. Estamos longe de
ção da perversidade, da violência e da reprodu- ter justiça social, política, ambiental e econômica
ção do preconceito. como princípios que nos regem na vida em comu-
nidade. Quanto mais na dinâmica do mercado,
IHU On-Line – O que a recente publicação que alimentamos e reproduzimos em forma de
de um anúncio no sítio Mercado Livre ven- desenvolvimento. Promover o desenvolvimento
dendo crianças negras, em suposto tom hu- sem considerar a garantia dos direitos humanos
morístico, revela sobre o respeito aos direi- não vai ajudar a superar as desigualdades que
tos humanos em nossa sociedade? existem na nossa sociedade atual.
Salete Valesan – Revela uma sociedade medíocre
e preconceituosa. Que está perdendo valores fun- IHU On-Line – Poderia citar exemplos de
damentais da vida em grupo, como a ética, a liber- iniciativas em andamento no Brasil que
dade, a justiça e o estado democrático de direitos. contemplem a garantia e a defesa dos direi-
tos humanos?
IHU On-Line – De que instrumentos a so- Salete Valesan – Muitas, tanto pelo Estado
ciedade brasileira dispõe hoje para exercer como pela sociedade civil. Seguem alguns: Esta-
o direito à comunicação? tuto da Criança e do Adolescente – ECA; Estatuto
Salete Valesan – Das ruas para as mobilizações, da Juventude; Estatuto do Idoso; Lei Maria da
das tecnologias livres e criadas pela militância, Penha; Lei de Acesso à Informação – LAI; Comis-
dos espaços de mídia livre e alternativa, das re- são Nacional da Verdade; Comissão da Anistia;
des sociais, de algumas legislações, dos espaços Pastorais da Criança, da Juventude, da Terra e a
de atuação na comunicação como os conselhos, Carcerária; Programas de Proteção de Testemu-
comissões e comitês e da sua militância corajosa nhas, de Vítimas e de Defensores dos Direitos Hu-
que atua por meio de campanhas, redes, movi- manos; Ouvidorias; Disque Denúncia; Diretrizes
mentos sociais, ONGs, jornais, rádios, TVs, tabloi- Nacionais da Educação em Direitos Humanos;
des, muros, paredes, internet, disque denúncias, Plataforma DHESCA; Mecanismo de Combate à
Lei do Acesso à Informação... Pouquíssimo na Tortura; Secretaria de Políticas para as Mulheres;
grande imprensa, que define e organiza o que é Secretaria de Política de Promoção da Igualdade
direito à comunicação a partir do mercado. Racial; Secretaria de Direitos Humanos; e Conse-
lhos Nacionais.
IHU On-Line – Nesta mesma perspectiva,
o que pode ser dito sobre os direitos das IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algo?
mulheres? Salete Valesan – É fundamental a integração
Salete Valesan – Aqui no Brasil há um parado- dos três poderes – Legislativo, Executivo e Judi-
xo. Ao mesmo tempo que avançamos em políti- ciário – com a sociedade brasileira para construir
cas públicas para promover e garantir os direitos o que o Fórum Mundial de Direitos Humanos
das mulheres, incluindo aqui a criação da Secre- deixou como legado que é uma nova cultura dos
taria de Políticas para as Mulheres, o Con- direitos humanos no Brasil.
selho Nacional e a Lei Maria da Penha, ainda
temos um índice alarmante de violência de toda a Por Luciano Gallas

32
As manifestações e a luta por outro modelo de democracia

Entrevista especial com Ricardo Antunes

“Os novos descontentes do mundo percebe- que não há mais alternativas para responder a
ram que o capitalismo é profundamente destru- esta sociedade violenta. Eu imagino, porque não
tivo, ainda que tenham percebido isso intuitiva- há ainda muitos estudos sobre isso, que a maior
mente”, afirma o cientista social Ricardo Antunes parte dos jovens que estão nos Black Blocs não
“O parlamento não está nas mãos do povo, são filhos da classe média alta, mas são jovens da
o Poder Executivo não está nas mãos do povo, periferia, que vivem a violência cotidiana na sua
o Poder Judiciário não está nas mãos do povo, porta, no seu bairro, na sua rua, através da polícia
de tal modo que estas manifestações intuitivas, que reprime”.
embrionariamente, espontaneamente, estão di- Ricardo Antunes possui mestrado e douto-
zendo que querem mais democracia direta, mais rado em Ciências Sociais, respectivamente pela
assembleias populares, maior representação dire- Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e
ta”, afirma o professor Ricardo Antunes. Para ele, pela Universidade de São Paulo – USP. Realizou
a democracia direta “é o oposto desta democra- pós-doutorado na University of Sussex, no Reino
cia formal [atual], a qual, se permite liberdade de Unido, e obteve o título de Livre Docência pela
manifestações, ainda que restritas, é ao mesmo Unicamp, onde atualmente é professor titular de
tempo profundamente antidemocrática no que Sociologia. É organizador de Riqueza e Miséria
diz respeito a uma autêntica participação popular, do Trabalho no Brasil (São Paulo: Boitempo Edi-
que só ocorre efetivamente quando é inspirada torial, 2006) e de Riqueza e Miséria do Trabalho
em uma democracia mais direta”. no Brasil Vol. II (São Paulo: Boitempo Editorial,
Nesta entrevista, concedida à IHU On-Line 2013), e autor, entre outras obras, de O continen-
por telefone, Ricardo Antunes identifica nos jo- te do labor (São Paulo: Boitempo Editorial, 2011),
vens estudantes trabalhadores, ou trabalhadores Adeus ao trabalho?: ensaio sobre as metamorfo-
estudantes, o principal polo de organização das ses e a centralidade no mundo do trabalho (São
manifestações de junho de 2013 no Brasil. “Estes Paulo: Cortez, 2010), Os Sentidos do Trabalho:
são os novos descontentes do mundo, os quais ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho
perceberam que o capitalismo é profundamente (São Paulo: Boitempo Editorial, 1999) – a última,
destrutivo, ainda que tenham percebido isso in- publicada nos Estados Unidos, Inglaterra/Holan-
tuitivamente: o transporte não funciona, a saú- da, Itália, Argentina, Venezuela e Colômbia.
de não funciona, e assim por diante, entre tan- Confira a entrevista.
tos problemas que apareciam nas manifestações,
manifestações estas que é preciso estudar e que IHU On-Line – Como as manifestações de
é preciso compreender”, destaca o docente. Ele junho/julho no Brasil podem ser interpreta-
enfatiza também que, se as manifestações de ou- das no contexto da luta de classes?
tubro tornaram-se mais violentas, é “porque há Ricardo Antunes – Em várias dimensões, desde
a violência policial e há a violência da socieda- que eu tenha uma noção ampla de luta de classes
de. Alguns destes grupos [de jovens] entendem e que eu compreenda também que as manifesta-

33
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

ções tiveram dentro delas um caráter policlassista. comércio, nos call centers, nesta ampla gama de
Mas estas manifestações têm uma conexão com o atividades que foram mercadorizadas, privatiza-
trabalho. Em termos gerais, é possível dizer, pelo das e que exigem a presença de um jovem traba-
menos no que se refere às grandes manifestações lhador, onde a rotatividade é alta, onde os salários
que ocorreram nas capitais – São Paulo, Rio de são baixos. Isso que grotescamente o governo e
Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Salvador, seus ideólogos chamaram de classe média, e que
Recife, Vitória e tantas outras –, que o polo so- não é classe média, é o trabalhador que ganha
cial predominante era composto pelo estudante mil, mil e poucos reais, que paga 200 reais, 300
que trabalha ou pelo trabalhador que estuda. É reais para uma faculdade privada e que, mesmo
aquele jovem estudante/trabalhador ou jovem quando tem algum desconto, algum benefício –
trabalhador/estudante que trabalha no setor de como o ProUni, por exemplo –, paga caríssimo
serviços urbanos e que sai de madrugada de casa, por um transporte coletivo.
pega trem, porque mora na periferia, depois pega
metrô, depois pega ônibus... Ele vai trabalhar du-
rante o dia e, ao terminar seu trabalho, o salário Levante contra o sistema
permite que ele pague uma faculdade privada,
entre tantas faculdades de massa que muito co- Esta população manifestou seu desagravo, o
bram e pouco oferecem. seu descontentamento, a sua rebeldia, contra o
Estes jovens dependem, digamos vitalmente, sistema destrutivo que domina a vida nas cida-
das condições de vida urbanas que estão tão de- des. É neste sentido um levante que transcende
gradadas. Nós sabemos que o transporte público a classe trabalhadora, porque reúne contingentes
foi privatizado, que a saúde pública está degrada- das camadas médias, dos estudantes, das peque-
da e que resta a alternativa dos convênios para nas burguesias urbanas. Entretanto, embora ele
grande parte da população, porque o SUS, embo- transcenda a classe trabalhadora, ela foi predo-
ra seja um projeto importante, enfrenta escassez minante [nas manifestações]. Há várias pesquisas
de recursos comparativamente com o que deve- feitas que mostram que algo em torno de 70% do
ria ter. Se o país desse atenção central à saúde, contingente que lá estava marcando presença era
o SUS não estaria degradado, a previdência em formado por trabalhadores destes setores que eu
geral não estaria degradada. Então essas mani- citei. Ou seja, eram jovens que trabalham. De tal
festações de massa questionaram essa comoditi- modo que estas manifestações não passaram ao
zação, que é uma expressão que começa a estar largo da classe trabalhadora. Outra coisa: a clas-
presente em diversas partes do mundo – vem de se trabalhadora, digamos assim, mais tradicional,
commodities, é a mercantilização da res publica. aquela que está na fábrica metalúrgica, na fábrica
Estas manifestações, a partir de um dado mo- química, no ramo têxtil, nos bancos, naturalmen-
mento, em que elas se tornaram manifestações te não podia sair do trabalho, parar, fazer uma
de massa, passaram a ter um caráter policlassista, greve para participar de uma manifestação de rua
reunindo também estudantes universitários que favorável ao passe livre.
não trabalham, estudantes secundaristas que não Quem acompanha a vida social do país vê
trabalham, e pais, mães, amigos dos estudantes. que, depois de junho, nós já tivemos greves mui-
Quando começou a brutal repressão da po- to importantes no Brasil, como a dos professores
lícia, as manifestações deixaram de ser de três, públicos – aliás, estes estavam muito presentes
quatro, cinco, dez mil, para ser de 100, 200, 300 nas manifestações –, os quais vivem uma brutal
mil manifestantes. A partir deste momento, hou- degradação das condições de ensino, uma brutal
ve um alargamento da base social das manifesta- degradação das condições de trabalho e de sa-
ções. Porém, e isso é vital, estas manifestações en- lário, uma brutal degradação da escola pública,
contraram o seu principal polo social neste novo e que compreende um proletariado dos serviços
proletariado urbano, neste novo proletariado não públicos. Mas aqueles setores que estão nas fábri-
industrial de serviços, que atua nos fast foods, no cas, nas empresas, os quais talvez tenham aderido

34
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

muito pouco às manifestações, só quando saíam artigo no início das rebeliões no Brasil na Folha
do trabalho podiam participar de uma e de outra de São Paulo, chamado Fim da letargia. Acabou
manifestação. De qualquer forma, desde junho aquele período em que se acreditava que o Bra-
estes estão fazendo greves, como a dos petro- sil avançava para um país em desenvolvimento,
leiros, como a dos bancários, dos metalúrgicos. que iríamos ser a sétima economia do mundo, ou
São várias as greves que têm ocorrido no país. a quinta economia do mundo. Este mito ruiu, e
Porque é muito difícil uma categoria de trabalha- com ele o projeto do PT, o projeto do PSDB e,
dores paralisar uma fábrica e fazer uma passeata junto com eles, o projeto de todos estes agrupa-
pelo passe livre; mas é muito plausível, como tem mentos tradicionais.
ocorrido, que elas parem o trabalho das fábricas O que não quer dizer que, nas próximas elei-
para lutar por melhores condições de trabalho, ções, são estes jovens trabalhadores que vão de-
melhores salários, direitos do trabalho que estão cidir, porque há uma questão muito importante
sendo burlados, etc. Este é o primeiro elemento para se investigar nestes fenômenos, que é um
amplo do qual eu queria falar. fosso, um cânion, entre as manifestações das pra-
ças públicas, das ruas, das avenidas, e o proces-
so político institucional, o processo parlamentar
Descontentamento mundial e mesmo o processo político-eleitoral. Só para
citar um exemplo recentíssimo: a eleição do pri-
O segundo elemento é que estas rebeliões meiro turno do Chile, que é outro país que nos
não ocorrem só no Brasil. Nós as estamos vendo últimos três anos tem vivenciado rebeliões muito
desde o Egito, a Tunísia, o Iraque, a Síria e vários importantes dos estudantes, rebeliões estas que
outros países do Oriente Médio. Elas explodiram atingiram e se ampliaram também para a classe
também na Grécia, em Portugal, na Espanha, trabalhadora no último ano e meio. Nesta elei-
com os indignados, chegou à Itália, Reino Uni- ção, como o voto tornou-se não obrigatório no
do, Alemanha, França, resultou no Ocuppy Wall Chile, mais de 50% da população, entre ela parte
Street. Antes disso, dois ou três anos atrás, houve desta juventude, não foi votar. O absenteísmo no
a rebelião inglesa dos bairros mais populares de Chile é enorme, é grande na Espanha, é grande
Londres, como em Brixton, a partir de quando em Portugal e é maior ainda nos países em que o
esta explosão se espalhou para várias cidades, voto é obrigatório, nos quais este absenteísmo está
como Birmingham e Manchester, e inclusive para presente nas justificativas de ausência de voto, no
outros países do Reino Unido. De tal modo que voto nulo, no voto em branco. Quando a votação
há um cenário mundial de insatisfação e descon- é livre, e não obrigatória, as eleições se mostram
tentamento. Este cenário tem a prevalência das marcadas sempre por altos níveis de absenteísmo.
classes mais populares e, dentro destas classes po- É mais ou menos neste cenário que eu penso que
pulares, daqueles contingentes mais precarizados nós podemos ver a dimensão de luta de classes e
e dos desempregados das classes trabalhadoras. as dimensões políticas destes movimentos.
No meu entendimento, não é possível pen-
sar nestes movimentos sem relacioná-los com esta IHU On-Line – De que forma a questão do
condição muito viva deste contingente da classe trabalho impacta sobre os jovens presentes
trabalhadora, que sabe que não é classe média, nestas manifestações?
que sabe que lutou, que entrou na faculdade, que Ricardo Antunes – Este jovem acreditou no
acreditou que os seus empregos iriam melhorar, mito de que teria trabalho: qualificando-se ao ter-
acreditou que estudando teria mais qualificação, minar a faculdade, ele teria melhores salários e
e que, ao terminar a faculdade privada, salvo ra- teria melhores condições de vida. Entretanto, em-
ríssimas exceções, em termos de trabalho e salá- bora ele possa conseguir emprego, a rotatividade
rio, não obtenha nenhum salto no que concer- é alta – o emprego no call center, por exemplo, é
ne a um emprego mais qualificado. Este mito de terrível; o emprego no comércio é terrível, a rotati-
que o país ia bem desmoronou. Eu publiquei um vidade é igualmente alta. Além disso, assim como

35
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

há o aumento do emprego formal, há também o então passam a ser mais profundas em bairros da
aumento da informalidade, da terceirização, que periferia que passam por dificuldades na saúde
frequentemente é mais informal do que formal. pública, por exemplo, ou resultam na ocupação
Eles acreditaram no mito de que estudando o tra- de estradas por uma população que tem que pa-
balho estaria garantido, de que fazendo uma fa- gar pedágio para andar quatro ou cinco quilôme-
culdade o trabalho seria quase uma consequência tros pela rodovia para se deslocar de um bairro a
natural. Entretanto, agora, estes jovens percebem outro, e que paga caríssimo para fazer isso.
que o trabalho é precário, e que ainda assim é Houve manifestações de vários tipos. O Rio
preciso suar a camisa para consegui-lo. de Janeiro tornou-se a cidade mais politizada.
Este jovem depende do trabalho, ele não Houve uma combinação explosiva de um gover-
pode sonhar em viver sem um trabalho. O mito no estadual altamente corrupto – as manifesta-
da carochinha de uma sociedade sem trabalho é ções da imprensa são suficientes para demonstrar
grotesco. As populações pobres, que no Brasil se isso – e um governo municipal altamente com-
conta na casa das dezenas de milhões, os jovens prometido com determinados projetos nefastos.
pobres, dependem do trabalho como a única for- Bastaria dizer que se gastou muito dinheiro – e
ma de se inserir socialmente e de preservar a sua imagina-se quem sejam os proprietários dos ter-
sobrevivência. Nenhum jovem está satisfeito em renos com vínculos com o governo – para receber
viver das “migalhas” do Bolsa Família, que é um o Papa [Francisco], depois choveu e mudou tudo.
programa puramente assistencial, sem nenhum É um desmando completo. Em uma cidade em
significado estrutural profundo. De tal modo que que a favelização é objeto de uma disputa entre
o sonho de conquistar um trabalho melhor está o narcotráfico de um lado e a milícia de outro, a
sendo cotidianamente vilipendiado e fraudado. É cada dia um pobre desaparece. A pretexto de se
preciso lembrar ainda que este jovem trabalhador combater a criminalidade, um Amarildo desapa-
que estuda ou este jovem estudante que precisa rece a cada dia.
trabalhar para estudar, para pagar sua faculdade, Esta luta fez emergir o fenômeno dos Black
precisa de duas horas e meia, três horas por dia Blocs. As manifestações tornaram-se mais
para ir trabalhar e de outro tanto para voltar, uti- violentas porque há a violência policial e há a
lizando ônibus lotados, transportes que tratam o violência da sociedade. Alguns destes grupos
trabalhador como gado. No caso das trabalhado- entendem que não há mais alternativas para
ras, tem ainda uma questão de gênero vital, por- responder a esta sociedade violenta. Eu imagi-
que frequentemente estas jovens, estas mulheres no, porque não há ainda muitos estudos sobre
trabalhadoras entram em trens, metrôs, ônibus, e isso, que a maior parte dos jovens que estão nos
são apertadas, assediadas. Então a vida no tra- Black Blocs não são filhos da classe média
balho é um sofrimento cotidiano. E isso faz com alta, mas são jovens da periferia, que vivem a
que o mito de ter um bom trabalho sofra uma violência cotidiana na sua porta, no seu bairro,
corrosão. na sua rua, através da polícia que reprime. Isso
criou este quadro. E, se não é mais possível ter
IHU On-Line – Avaliações semelhantes manifestações todo dia de 200 mil, 300 mil pes-
podem ser produzidas sobre as manifesta- soas, é possível ter manifestações de 10 mil, 5
ções de outubro (que denunciam a violên- mil, 2 mil, 500 pessoas em várias regiões e várias
cia racista e classista presente nas regiões áreas, construindo-se formas distintas de mani-
urbanas)? festação do descontentamento social.
Ricardo Antunes – Claro, só que veja bem: não
é possível manter um conjunto de manifestações IHU On-Line – Estes protestos foram convo-
de massa ao longo de vários meses. Assim como cados e organizados a partir principalmen-
ocorreu na Espanha, as manifestações brasileiras te das redes sociais. As plataformas digitais
têm um caráter de explosão, expansão e refluxo. são hoje o principal espaço de “convivên-
Mas elas são também manifestações polissêmicas, cia” social e laboral?

36
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Ricardo Antunes – Laboral certamente não, lência tem pervertido é o espaço da mobilização
embora o espaço internético midiático e as re- rápida, ágil, em um tempo quase virtual, como é
des [sociais] tenham se tornado referência para o mundo internético.
as manifestações no mundo inteiro, do Oriente
Médio à Europa, dos Estados Unidos ao Brasil, IHU On-Line – Que ser social (sujeito) está
Chile e Argentina. É muito importante lembrar presente nestas manifestações?
que, durante as primeiras manifestações, as quais Ricardo Antunes – Este ser social é um jovem
reuniam mil, 2 mil, 3 mil trabalhadores em São que não tem experiência de luta política nas
Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Curitiba, Vi- grandes massas, não tem experiência de ação
tória, Belém, Salvador, a imprensa se referia aos política. Apesar de serem muito espontâneos, os
participantes como “vândalos e baderneiros”. movimentos só ocorreram, só atingiram 50, 60,
Não havia violência nenhuma, mas [os manifes- 100, 200 mil pessoas, porque houve manifesta-
tantes] eram baderneiros porque paravam a Ave- ções organizadas do Movimento Passe Livre, que
nida Paulista ou a Marginal Tietê [em São Paulo], já existe há vários anos, desde 2007, 2008, em
e isso trazia baderna, segundo a voz uníssona da várias capitais, entre as quais cito Porto Alegre,
imprensa. Ou porque paravam a Avenida Brasil Florianópolis, São Paulo, Vitória, Salvador, Belo
[no Rio de Janeiro], e assim sucessivamente. A Horizonte, entre tantas outras, para tentar não ex-
imprensa tratou isso duramente. cluir nenhuma. Nas manifestações do comecinho
De qualquer forma, há uma ambiguidade de junho, estavam presentes os setores jovens, a
espetacular nas redes sociais. Ao mesmo tempo juventude de esquerda, PSOL, PSTU, PCB, o Mo-
que as redes sociais permitem que um império vimento Passe Livre, que é uma organização mais
destrutivo como o norte-americano, este verda- horizontalizada, mas que inclui os autonomistas,
deiro estado terrorista, controle a vida de milhões os anarquistas, militantes socialistas, marxistas, os
de pessoas – eles sabem a vida, os hábitos de partidos de esquerda, grupamentos menores, mo-
consumo, para quem se telefona, com quem se vimentos sociais como o dos sem teto.
fala; estes e-mails hoje são todos censurados –, Quando as manifestações começaram, não
é também pela internet que os jovens, especial- foi a direita que chamou estas manifestações. A
mente os jovens dessociabilizados da vida urbana direita tentou, inclusive setores de direita fascis-
– aqueles que enfrentam a lei da selva; porque tas tentaram, pegar carona no movimento num
você briga para entrar no ônibus, você briga para momento em que a imprensa começou a ver que
entrar no carro e, para fazer um trajeto de cinco a mobilização era irreversível e tentou conduzi-lo
quilômetros que levaria cinco minutos, você leva para um movimento não político contra os par-
uma hora e meia –, se organizam, que permite tidos, apenas contra a corrupção, e assim tentar
a, digamos assim, volatilidade das manifestações, desgastar algumas bandeiras e enfatizar outras.
pois é muito rápida a sua organização pelas redes Lembro que houve manifestações, e participei de
sociais. algumas aqui em Campinas, onde resido, em que
No meu modo de ver, e enfatizo isso com havia estudantes de 12, 13, 14 anos participando,
muito destaque, as redes sociais não causam as para muitos dos quais era, inclusive, o primeiro
rebeliões, as redes sociais permitem que as rebe- aprendizado de que é preciso sair da toca, de que
liões explodam, aflorem. Uma manifestação de ninguém faz manifestação só de casa pela inter-
rua pode ser convocada em poucas horas e por net, que a internet é muito importante como uma
milhares de pessoas. Este é um elemento novo. As mídia social de massa, mas que a manifestação
redes sociais, portanto, não são o espaço do lazer. implica ir para a rua, para a praça pública, e que
Claro que nós sabemos, por outro lado, que há só pela praça pública, pela manifestação de gran-
muitos trabalhos que são conectados pela inter- des contingentes, é que isso muda.
net, os quais você faz da sua casa – você pode tra- E o resultado é que as passagens baixaram
balhar de casa, no seu escritório, no seu quarto, de preço, que os pedágios baixaram, que o Con-
onde for. Mas o espaço que a internet por exce- gresso [Nacional] tratou de correr com algumas

37
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

coisas. Nós todos lembramos aquele dia em que a ção jovem; têm também corte generacional, são
massa tomou a cúpula do Congresso. Por pouco estudantes, meninos e meninas, jovens trabalha-
ela não invadiu o Congresso, o Palácio do Planal- dores homens, jovens trabalhadoras mulheres; e
to. Quer dizer, o país esteve em suspensão duran- têm cortes étnicos – se você analisa outras partes
te três, quatro, cinco, seis dias, quando ninguém do mundo, percebe que são os imigrantes que es-
sabia o que iria acontecer. Em um primeiro mo- tão se rebelando. É um contingente novo que se
mento, havia partidos, grupamentos, juventude, diferencia, no caso brasileiro, daquele estudante
militantes neste movimento. Entretanto, de repen- que foi para a rua pelo impeachment de Collor
te ele expandiu para um amplo leque da juven- [de Melo], que era o estudante universitário, ma-
tude. Em muitas das manifestações, os institutos joritariamente ligado à universidade pública. O
de pesquisa divulgaram um dado de que aquela estudante de hoje passa da casa dos 7 milhões
era a primeira manifestação que essa “estudanta- que estão frequentando o ensino superior, a gran-
da” ia, primeira vez, a uma passeata. Isso mudou de maioria em faculdades privadas, ultraprecárias
a qualidade destes participantes e hoje eles sa- e cada vez mais trasnacionalizadas, que cobram
bem que têm força se forem coletivamente para caro e que venderam a ilusão do sucesso que nun-
as ruas. ca chega. Então estes são os novos descontentes
do mundo, os quais perceberam que o capitalis-
IHU On-Line – No que este sujeito se difere mo é profundamente destrutivo, ainda que te-
do jovem da década de 1990, que organi- nham percebido isso intuitivamente. O transporte
zou as manifestações dos caras-pintadas? não funciona, a saúde não funciona, e assim por
Ricardo Antunes – Em muito. Eu tenho dito o diante, entre tantos problemas que apareciam nas
seguinte: na nova morfologia do trabalho, o tra- manifestações, manifestações estas que é preciso
balhador das cidades, o proletariado de serviços, estudar e é preciso compreender.
o trabalhador dos hotéis, dos shoppings, o tra-
balhador do supermercado, aquele que trabalha IHU On-Line – Você citou que temos de
nos fast foods, aquele que trabalha nas empresas aprender com as manifestações. Elas serão
de telefonia (call centers), estes novos trabalha- capazes de propor alternativas ao modelo
dores não têm ainda uma representação sindical de democracia representativa?
nem política sólida. Os trabalhadores e as traba- Ricardo Antunes – Podemos falar muito sobre
lhadoras de call centers, por exemplo, são hoje o que aconteceu, sobre como foram as manifes-
aproximadamente 1 milhão e 600 mil pessoas no tações, mas podemos falar pouco sobre que con-
Brasil, das quais entre 70% e 80% são mulheres. sequências teremos. A primeira coisa que posso
E são poucos os sindicatos que as representam. dizer com tranquilidade, e isso é mais ou menos
Isso é um indicativo de que são sujeitos diferen- evidente, é que as manifestações mostraram que
tes. A juventude de hoje acreditou que, estudan- existia um fosso, sobre o qual eu falei na primei-
do como seus pais, teria melhores empregos. Isso ra pergunta, e que este era um fosso enorme. Se
demonstrou não ser verdadeiro. Na Espanha, na nós fizermos uma pesquisa hoje: “qual é a ins-
população entre 17 e 23 anos, hoje o nível de tituição no Brasil cuja crise de credibilidade é a
desemprego passa de 60%. Então o jovem olha maior de todas?”, não paira nenhuma dúvida de
para o lado, vê o pai com 45 anos, engenheiro, que a resposta principal será “o parlamento”. A
desempregado, olha para o outro lado, vê a mãe, população sabe que o parlamento brasileiro hoje
economista, quarenta e poucos anos, desempre- é fundamentalmente um centro de negócios,
gada. Ele vai falar: “para que eu vou estudar?”. lobbies, transações, interesses dominantes, se-
Por isso é uma geração que ni estudia, ni trabaja jam estes interesses dos bancos, do agronegócio,
– não estuda e não tem trabalho. dos grandes industriais, enquanto os interesses da
Em uma síntese: as manifestações são as re- população passam longe. Basta dizer que atual-
beliões deste novo contingente jovem. Estas ma- mente está em debate no parlamento a terceiri-
nifestações têm um corte geracional, é uma gera- zação cabal da sociedade brasileira, sobre a qual

38
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

escrevi recentemente um artigo na Folha de São periferia que via a manifestação pelo passe livre
Paulo. Se este projeto do [deputado Sandro] Ma- e que pensava: “se é para pedir o passe livre, eu
bel (PMDB-GO) passar, teremos uma nova falésia também entro nessa”. Assim, as manifestações
social no Brasil. Quer dizer, vamos ter um pro- demonstraram que, na massa, algumas bandei-
cesso ainda maior de corrosão social, de fratura ras podem se tornar vitais. O grande filósofo
social, porque um país onde a terceirização da ati- húngaro marxista Georg Lukács, de quem foi
vidade fim é implantada, como se já não bastasse publicado agora recentemente no Brasil o volu-
a tragédia da terceirização das atividades meios, é me 2 de sua monumental Para uma ontologia do
um país que trata a classe trabalhadora como um ser social (São Paulo: Boitempo Editorial, 2013),
contingente sem direitos. e eu tive o prazer de fazer a nota de orelha do
Outra coisa que é possível perceber nas ma- livro, diz em um dado momento da obra que a
nifestações: elas não querem consertar essa de- vida cotidiana é uma infindável manifestação de
mocracia. Estão mostrando que esta democracia se e mas: “será que eu faço isso?, será que eu
que é chamada de democracia é muito curiosa, faço aquilo?, o que eu vou fazer hoje?, o que
porque, na origem etimológica da palavra, de- eu vou fazer amanhã?”. São os se e mas que
mocracia é poder do povo, e o parlamento não nós nos perguntamos no nosso dia a dia, mas
está nas mãos do povo, o Poder Executivo, o que não alteram as nossas vidas. “Será que eu
Poder Judiciário não estão nas mãos do povo, vou comer hoje na minha casa ou vou comer
de tal modo que estas manifestações intuitivas, fora?”, isso não altera a minha vida, mas nós nos
embrionariamente, espontaneamente, estão di- perguntamos.
zendo que querem mais democracia direta, mais Diz Lukács, entretanto, que, quando algu-
assembleias populares, maior representação dire- mas questões cruciais se condensam, unificam
ta. Você imagina o papel importante que teria se a vida cotidiana, e as populações trabalhadoras
os representantes eleitos tivessem seus mandatos percebem que são questões vitais, elas se fun-
revogados toda vez que deixassem de represen- dem. Bastaria lembrar dois eventos em dois con-
tar condignamente, segundo as bandeiras para as textos muito diferentes: a Revolução Francesa de
quais foram eleitos, os seus representados. Então 1789, que tinha como lema liberdade, igualdade,
estamos vendo o nascimento, digamos assim, de fraternidade – na qual burgueses e sans-cullotes,
embriões e germes de uma democracia direta, como eram chamadas as classes populares na
que é o oposto desta democracia formal, a qual, França, lutaram juntos pela igualdade, pela fra-
se permite liberdade de manifestações, ainda que ternidade e contra o absolutismo dos reis e o
restritas, é ao mesmo tempo profundamente anti- controle excludente e manipulador da igreja – e a
democrática no que diz respeito a uma autêntica Revolução Russa de 1917, de outubro, cujo lema
participação popular, que só ocorre efetivamen- era pão, paz e terra – pão porque a população
te quando é inspirada em uma democracia mais tinha fome, paz porque ela não aguentava mais
direta. lutar a I Guerra Mundial, que não era uma guer-
ra dos trabalhadores russos, mas sim do governo
IHU On-Line – A reivindicação de políticas russo, e terra porque, se você tem o controle so-
públicas efetivas de transporte, saúde e bre ela, você produz, sobrevive, gera alimentos.
educação pode tornar-se bandeira de luta Estas palavras de ordem puseram o povo russo
unificada de estudantes e trabalhadores de em movimento. Fiz esta digressão para dizer que
vários setores no Brasil de hoje? sim, que estas manifestações de massa tendem a
Ricardo Antunes – Pode. E já se tornou, por- aproximar estudantes e trabalhadores se elas fo-
que, em São Paulo, as manifestações iniciaram rem capazes de condensar em algumas questões
nos primeiros dias de junho com muitos estu- da vida cotidiana a aproximação destes amplos
dantes da USP [Universidade de São Paulo], mas contingentes de massas assalariadas jovens que
já agregava os estudantes da periferia e o mundo formam o contingente maior, o polo de propulsão
do trabalho. De repente, já era o trabalhador da destas manifestações.

39
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – A institucionalização dos do qual praticamente não haverá mais retorno.
movimentos sociais seria algo desejável? Só tem vigência duradora o movimento social
Ricardo Antunes – Seria uma tragédia. Quan- que não perde a sua base, a sua autenticidade, a
do o movimento social se institucionaliza, ele per- sua democracia da vida cotidiana, a sua represen-
de a força que tem. Os eventos da CUT [Central tação direta e o exercício da democracia direta.
Única dos Trabalhadores] e do PT são excepcio- Tudo isso é ceifado e tolhido pelos movimentos
nais neste aspecto. O PT nasceu como um partido em processo de institucionalização.
de massa, um partido arraigado na classe traba- Por isso considero que é mais do que visível,
lhadora, dos trabalhadores da indústria, da classe que só não vê quem não quer, que estas mani-
trabalhadora do campo, dos assalariados médios, festações de rua não querem a institucionaliza-
do funcionalismo público, e o seu processo de ção. Elas querem o direito das massas, das praças
institucionalização – a primeira eleição, a segun- públicas, das assembleias, dos modos de direção
da eleição, a eleição seguinte, e assim sucessiva- e representação mais horizontais, dizerem o que
mente – o converteu em um partido da ordem. E querem e porque lutam. Este é pra mim o princi-
Marx dizia que um partido da ordem é um par- pal resultado de todas estas manifestações. É cla-
tido que representa essencialmente os interesses ro que abre-se aí um desafio, e este é mais difícil:
das classes dominantes. como esta miríade de movimentos sociais, esta
O segredo dos movimentos sociais é não miríade de movimentos de rebeliões, revoltas,
perder a vitalidade das bases que eles represen- manifestações da periferia, no campo, na cidade,
tam, o que supõe direções colegiadas, manifes- no mundo rural, nas grandes cidades, nas peque-
tações em assembleias, democracia direta. O nas e médias cidades, como elas vão conseguir
representante pode ser destituído se deixar de ter laços de aproximação, de identidade e de or-
representar as bases do movimento. E tudo isso ganicidade capazes de enfrentar de modo mais
a sua institucionalização elimina. Um sindicato, poderoso os poderosos interesses do capital. Este
quando vira um sindicato institucional, perde a é o cenário. É difícil, mas nós podemos dizer o
sua vitalidade. Não estou com isso dizendo que seguinte: é muito mais fácil você pensar como se
estes movimentos sociais não devam participar pode enfrentar os poderosos interesses do capital
de lutas institucionais, devem sim participar. Mas com alta mobilização nas ruas do que você pen-
as lutas institucionais só podem ter algum sentido sar em como enfrentar os interesses poderosos
quando a prevalência delas está nas lutas sociais do capital sem nenhuma manifestação de massa.
e quando assumem uma atuação política distinta Portanto, nós podemos dizer que, desde junho,
e radical, no sentido de ir às raízes. Quando o este país não é mais o mesmo, ainda que nós não
movimento social abandona a sua base social e possamos dizer nada além disso e muito menos
vai para a institucionalidade, é um primeiro passo prever como serão os próximos passos.

Por Luciano Gallas

40
Potencialidades e limites dos levantes da juventude no século XXI

Entrevista especial com Jorge Barcellos

Para o professor Jorge Barcellos, é preciso ‘ouvir os anseios do povo’, mas precisa parar para
ter cuidado com os excessos sob o risco de nos ouvir”, pondera.
tornarmos uma sociedade fascista Jorge Alberto Soares Barcellos é licenciado
“Os movimentos das ruas são importantes, e bacharel em História pela Universidade Fede-
sua consciência é notável, mas a adoção de for- ral do Rio Grande do Sul e mestre e doutor em
mas de violência, seja qual for o motivo, introduz Educação pela mesma universidade. Possui expe-
os seus atores no campo da guerra. Esse é o meu riência de magistério nos ensinos médio e supe-
limite para as manifestações das ruas: elas só têm rior, além de publicações nas áreas de história,
legitimidade se são pacíficas, se não cedem à vio- educação e política educacional. Atualmente é
lência de Estado”, afirma Jorge Barcellos, profes- Coordenador do Memorial da Câmara Municipal
sor e coordenador do Memorial da Câmara Mu- de Porto Alegre, onde é responsável pelo projeto
nicipal de Porto Alegre, em entrevista por e-mail à Educação para Cidadania. É membro do Con-
IHU On-Line. Ele tem uma postura muito crítica selho da Escola do Legislativo Julieta Battistioli,
em relação àquilo que considera excessos das da Câmara Municipal, e professor convidado do
manifestações de ruas que ocorreram em todo o Studio Clio e do Sistema de Ensino Galileu (SEG).
Brasil, mas se debruça, particularmente, sobre os Recebeu a Menção Honrosa do Prêmio José Reis
eventos ocorridos na capital gaúcha. de Divulgação Científica e o Troféu Expressão da
Jorge Barcellos considera que a violência FINEP, ambos em 2006, pelas atividades do Pro-
das ruas gera uma sociedade fascista. Para ele, a jeto Educação para Cidadania da Câmara Muni-
falta de diálogo entre Estado e manifestantes gera cipal de Porto Alegre, sob sua coordenação.
um círculo vicioso no qual os argumentos de am- Confira a entrevista.
bos os lados levam sempre a uma discussão em
que todos são vítimas e algozes. Por outro lado, IHU On-Line – Existem limites às mani-
argumenta que a questão emergente diz respei- festações? Até onde vai a legitimidade do
to à relação entre os manifestantes e a imprensa. manifesto?
“Minha questão não é a relação entre os manifes- Jorge Barcellos – Primeiro, minha interpreta-
tantes e o Estado, mas entre os manifestantes e a ção é apenas como observador. Não tenho par-
imprensa. Essa falta de diálogo é que me preocu- ticipado dos manifestos nem de qualquer grupo
pa. (...) O problema é justamente esse, substituir organizado. O que talvez seja uma vantagem,
uma verdade – a da imprensa – por outra – a do pois minha posição aproxima-se daquilo que os
movimento, considerada ‘a’ verdade”, ressalta. antropólogos chamam de “estranhamento”, isto
Apesar de todas as críticas, Jorge Barcellos reco- é, frente ao envolvimento intenso dos atores, re-
nhece a importância do movimento: “Para mim, velado pela intensidade das manifestações, talvez
a juventude está protagonizando um dos maiores um olhar de fora ajude a compreender as caracte-
movimentos da década, mas tem os seus erros. O rísticas dos movimentos. Acredito que, para com-
Estado tem diante de si a oportunidade única de preender os limites das manifestações, devemos

41
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

procurar entendê-las a partir de um referencial veja-se o debate em torno da exposição Sensa-


adequado. A teoria sociológica clássica, evidente- tion, a qual tentou também romper a barreira dos
mente, não é suficiente para dar conta da energia limites, com seu tom mórbido, com sangue hu-
social posta em ação. Eu diria que para um mo- mano e cadáveres de animais. A primeira questão
vimento pós-moderno é preciso uma teoria pós- colocada foi: isto é arte? Do mesmo modo, ape-
moderna. Por isso eu prefiro tentar entender o lando à violência ou cedendo de alguma forma a
movimento das ruas – movimento de junho, as ela, a questão que se coloca é: isto é contestação?
manifestações, ou como quer que o denomine- E, de igual maneira, o que estava em jogo na
mos genericamente – a partir de outras categorias arte: chamar a atenção de forma disruptiva para
e contribuições de autores não muito comuns na transformá-la mais uma vez em ativo financeiro, e
sociologia. não é por outra razão que obras de arte passaram
Por exemplo, se tomamos o pensamento de a ser um dos investimentos do sistema bancário.
Paul Virilio, arquiteto e instigante filósofo francês, Assim, as contestações que ultrapassam o limite
autor de El procedimiento silencio (Buenos Aires: da sociabilidade e caem na violência, transfor-
Paidos, 2001), que fez reflexões sobre a função mam o movimento social em outra coisa. E, da
da guerra e a militarização da vida cotidiana, não mesma forma que Jacques Ranciére – outro autor
é paradoxal que, no dia seguinte aos primeiros que se coloca ao lado destas perspectivas ditas
quebra-quebras protagonizados pelos Black Blocs, pós-modernas – sentenciou que a arte modernis-
moradores e pequenos comerciantes tenham ado- ta só foi modernista porque anunciou uma aber-
tado a transformação de seus espaços em bunkers, tura do tempo e a imagem de uma nova socieda-
os mesmos descritos por Virilio em seus trabalhos? de possível, que tipo de sociedade a violência das
Não é notável esta transformação do espaço urba- ruas – aqui, nossa ultrapassagem de limites – en-
no? As paliçadas ainda estão lá, na Borges de Me- carna? Minha resposta é: uma sociedade fascista.
deiros, uma das principais avenidas do Centro de
Porto Alegre, e, é claro, principalmente no prédio IHU On-Line – Considerando os diversos
onde mora o Prefeito? Por quê? Porque para Virilio programas sociais e de desenvolvimento do
a guerra se faz por si própria e pela percepção, e Estado – Bolsa Família, Prouni, PAC, etc.
toda a batalha implica em um campo e em mé- –, o Brasil apresenta, em relação a outros
todos de percepção que permitam tanto o ataque períodos, um cenário favorável do ponto de
quanto a defesa. Minha interpretação é, nesse sen- vista econômico e social. Por que surgem
tido, bastante conservadora: os movimentos das manifestações neste ambiente?
ruas são importantes, sua consciência é notável, Jorge Barcellos – Uma obra recente que trata
mas a adoção de formas de violência, seja qual dos avanços sociais nos governos Lula e Dilma foi
for o motivo, introduz os seus atores no campo da organizada por Emir Sader e chama-se 10 anos
guerra. Esse é o meu limite para as manifestações de governos pós-neoliberais no Brasil (São Paulo:
das ruas: elas só têm legitimidade se são pacíficas, Boitempo Editorial, 2013). Nela está descrito o
se não cedem à violência de Estado. Se o fazem, significativo avanço no campo social com a in-
elas introduzem a lógica da guerra no interior das clusão de 16 milhões de famílias no mercado de
cidades. Por isso, muito cedo, dentro da lógica de consumo moderno. É claro que tal inclusão per-
ultrapassar os limites, os grupos violentos fizeram de valor se não estiver associada a espaços de
uso da mesma retórica libertária: não é quebra- criação de renda. Por esta razão a agenda macro-
quebra, é estética. econômica da reindustrialização é ainda central,
e o crescimento positivo, ainda que decrescente
(2003 a 2006: 3,5; 2007-2010: 4,6; 2010-2012
Estética e guerra despencando de 2,7 para 1,0), e a intervenção do
governo na taxa de juros revelaram uma econo-
Ora, não me parece consolidada hoje sequer mia conduzida adequadamente – dentro de um
a ideia de uma arte contemporânea ou Body Art, contexto saído da crise de 2008. Quer dizer, não

42
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

estávamos tão mal na economia, houve o efeito dizer, práticas militantes que alimentam o forneci-
de minimizar no social eventuais perdas. Isto é, mento entre sociedade e partidos, entre dirigen-
poderia ter sido pior. Não foi por intervenção do tes, militantes e simpatizantes, de um continuum
governo. No que se refere às classes mais baixas, onde as relações são porosas. “O Partido se apoia
já que indicadores apontam para uma redução da em redes relacionais que se entrecruzam”, diz Fre-
taxa da pobreza de 26,7% em 2006 para 12,8% deric Sawicki, notável cientista político. Para mim
em 2008. A classe média, para falarmos nos gru- trata-se de outra forma de recrutamento, proces-
pos mais próximos do movimento das ruas, ele- so de consolidação de relações entre grupos que
vou-se de 38% para 52% da população. colaboram entre si para um projeto, ainda que de
modo indireto. Arriscaria dizer que, indiretamen-
te, este movimento está buscando fortalecer a
Dois grupos extrema-esquerda (PSOL e assemelhados) como
alternativa ao PT, ex-esquerda e agora centro –
Uma razão que eu encontro para a emergên- esquerda – numa visão otimista. É o tipo de rede
cia das manifestações é o fato de que beneficiários de consolidação apontada por Sawicki no pensa-
das políticas sociais e manifestantes não integram mento do politicólogo francês Michel Dobry, pois
o mesmo grupo. O que é uma obviedade, já que relaciona grupos sociais inicialmente separados.
podemos localizar nos rincões os beneficiários O que as manifestações não querem é assumir
das políticas públicas – além, é claro, no círculo seu laço com a extrema esquerda e seu projeto de
das periferias urbanas, e no centro das cidades oposição ao atual governo. Isto não é suficiente
mais desenvolvidas o movimento das ruas. Ainda para explicar o movimento, reconheço, mas é um
vejo como um movimento no qual predominam dos pontos que eu considero chave.
universitários, a maior parte insatisfeita, de for-
ma geral, com as políticas públicas. Preocupa-me, IHU On-Line – A crítica presente nas ma-
no entanto, a força que adquiriu no seu interior nifestações se referia ao modelo de demo-
o movimento anarquista. Como um movimento cracia representativa em si ou às práticas
de classe média urbana, a juventude universitária políticas?
que ocupa as ruas representa, por outras razões, Jorge Barcellos – Evidentemente, trata-se de
o retorno dos estudantes, como fizeram em 1964, uma crítica de senso comum às práticas políticas.
não contra um Estado autoritário e a censura, Não vejo sucesso em um movimento que critique
mas contra um Estado que beneficiou os pobres o modelo de democracia que instalamos, deseja-
somente. Eu diria: uma classe média afastada da mos e estamos construindo. Não estamos sequer
pobreza não viu as melhorias sociais. Claro que deixando de considerar que é uma democracia
foram num contexto populista, com problemas imperfeita, uma democracia em que parte da po-
de mudança de condição de vida, etc. Mas, em lítica não faz o seu papel, mas que é a democra-
1964, eram jovens marxistas nas ruas; hoje são cia representativa que temos. A crítica é senso co-
jovens anarquistas. Minha pergunta é: por que mum porque recolhe do imaginário dos meios de
o anarquismo emergiu triunfante? A razão que comunicação de massa os fragmentos de crítica
encontro é que os anarquistas encontraram um no ar – corrupção, roubalheira, do que estão jus-
notável espaço de manobra para assumir a cen- tamente ausentes toda a referência aos avanços
tralidade do movimento. Primeiro, pelo incentivo sociais. É a matéria de expressão – para usar uma
de partidos ou a possibilidade de militar em um. frase da psicanalista Suely Rolnik – apropriada
pelas massas de forma acrítica. A minha observa-
ção é que o componente de crítica ao modelo de
Partidos democracia representativa existia apenas naque-
les grupos anarquistas mais radicais. E de fato,
Não nos enganemos, nestas práticas políticas observando algumas páginas de diretórios acadê-
ainda predominam a organização em rede, quer micos de universidades, ainda no início do ano,

43
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

chama a atenção que alguns já estavam estudan- se, 1984), tem caracterizado o uso de estratégias
do a questão da auto-organização, por exemplo. militares no meio urbano. Para ele, não é ne-
É notável que os grupos se arrisquem a criticar cessário portar armas para ser um militar, basta
a democracia representativa, pois o contra-argu- experimentar a mentalidade militar: “Sem o sa-
mento em voga no pensamento moderno é jus- ber, já somos todos soldados civis. E alguns de
tamente o de que o capitalismo hoje não precisa nós sabem disso. O grande golpe de sorte, para
mais de democracia. o terrorismo da classe militar, é que ninguém o
reconhece. As pessoas não reconhecem a parte
militarizada de sua identidade, de sua consciên-
Democracia representativa cia”. Em sua obra posterior, Velocidade e Políti-
ca (São Paulo: Estação Liberdade, 1996), Virilio
O filósofo esloveno Slavoj Zizek disse isso do aponta como elemento da mentalidade militar o
caso chinês, no que é acompanhado pelo escritor “modo de movimento nas cidades”. Ele observa
alemão Ingo Schulze ao pé da letra. Não dá para que Engels caracterizou a vida de Paris nas ruas
arriscar questionar justamente a validade ética da do século XIX como sendo “onde a vida circula
democracia representativa, pois a alternativa é mais intensamente”. Por essa razão, os contin-
muito pior. A crítica só pode ser entendida como gentes revolucionários tendem a nascer não nos
um oportunismo radical da extrema esquerda que locais de produção, como fábricas, mas nas ruas
ideologiza o debate político de parcelas da juventu- das cidades: “a massa não é um povo, mas uma
de e o capitaliza em seu benefício para questionar multidão de passantes”, diz Virilio. Assim foi em
o status quo. É claro que a democracia representa- Porto Alegre com a tomada, pelo movimento da
tiva possui limites, dados justamente pelas práticas juventude, de ruas e avenidas pensadas como es-
políticas. Mas há um notável avanço no combate paços de ocupação e/ou enfrentamento. Décadas
à corrupção, no incentivo à atuação fiscalizadora atrás, num dos piores momentos da história, dizia
das prefeituras, nos portais de transparência, nos Joseph Goebbels a esse respeito: “quem conquis-
processos levados a cabo pelo Ministério Público, tar a rua, conquistará também o Estado”. Por isso
a própria transparência existente na Lei do Or- o primeiro território de ocupação dos jovens ma-
çamento, na participação para a elaboração de nifestantes foi o asfalto, vias como as Avenidas
emendas, etc. Borges de Medeiros, João Pessoa e Ipiranga. Para
Virilio, a estratégia de ocupar as ruas é sempre mi-
IHU On-Line – O fenômeno das manifesta- litar e aqui cumpre um papel paradoxal, já que na
ções de 2013 reinaugurou uma prática polí- luta pelo transporte é a própria massa de estudan-
tica que foi muito vigente durante o regime tes que se torna o primeiro transporte coletivo,
militar – as marchas nas ruas. No entanto, definindo a cidade como seu front de batalha. As
possui características particulares corres- massas desesperadas de Engels que em 1848 “re-
pondentes à nossa época. O que se man- clamavam pão, trabalho ou morte” foram substi-
tém daquele período e o que é exatamente tuídas pelas massas estudantis que reclamam por
novo? “transporte, saúde, educação”. Diz Virilio, “já é
Jorge Barcellos – Gostaria de analisar a mani- tempo de se render às evidências: a revolução é
festação que envolveu a Câmara Municipal, espa- movimento, mas o movimento não é uma revolu-
ço onde trabalho. Lamento contrariar a maioria ção”. A invasão do legislativo inaugura uma nova
dos universitários, mas minha posição é bastan- etapa nessa estratégia, a da conquista das insti-
te conservadora. Minha questão é se seu lado tuições. Ela foi marcada por uma sociabilidade
progressista é suficientemente forte para superar interna festiva e dionisíaca, com seus momentos
o seu lado reacionário. Vejamos pontos pouco de festa, congraçamento e alegria, como descreve
abordados nas análises do movimento. O filóso- o sociólogo francês Michel Maffesoli em sua obra
fo e urbanista Paul Virilio, desde Guerra Pura: a O Nascimento das Tribos (São Paulo: Editora Fo-
militarização do cotidiano (São Paulo: Brasilien- rense Universitária, 2006), a qual se contrapunha

44
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

uma militarização no melhor estilo SS, com con- veículo burguês apenas, é uma visão simplificada.
trole de acesso externo do prédio do legislativo, É obvio que há jornalistas de todos os matizes, que
uso de rádios de comunicação, fiscalização da há uma luta interna, e negar o diálogo em nada
entrada e saída de funcionários, rondas internas acrescenta ao movimento social. Ao contrário, há
e administração dos fluxos da cidade no parla- interessantes dissensos entre os jovens justamente
mento, frente a uma Guarda Municipal estupefa- nesse ponto, uma vez que houve manifestações
ta. É preocupante o fato de que um movimento de lideranças publicadas na ZH, contrariando seu
social sinta-se no direito de impor o custo de suas discurso. Essa questão ficou evidente também no
operações às instituições – na invasão do parla- caso da Câmara Municipal.
mento, a paralisação das atividades, o desrespei-
to aos símbolos do legislativo – porque o gesto é
expressão da apropriação do conceito de “dano Imprensa
colateral”. Zygmund Bauman, em Danos Colate-
rais (Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2013), lem- Depois de invadirem o plenário, os jovens
bra que esse é outro ingrediente da “mentalidade realizaram a assembleia do movimento e o pri-
militar”, definido pelo menosprezo dos efeitos de meiro encaminhamento foi a questão do controle
uma guerra particular pelos organizadores. Bau- da informação. Ela deveria ser transparente entre
man alerta para o detalhe de que tal posição é os participantes, entre os integrantes do bloco, daí
sempre duvidosa, os “danos” acontecem ou por- a necessidade formal de apresentação e vedado
que não foram previstos pelos organizadores, ou o seu acesso à imprensa tradicional, acusada de
porque foram considerados “menos importantes” manipuladora e ideologicamente comprometida
e cujo sacrifício é considerado suportável pelos com o capital. Pela apresentação dos participan-
movimentos. Neste instante, o movimento proje- tes, ficamos conhecendo os integrantes do mo-
tou sobre si mesmo o espelho de sua desapari- vimento: Federação Anarquista Gaúcha, Fren-
ção. É que para o filósofo esloveno Slavoj Zizek, te Nacional dos Torcedores, Frente Autônoma,
a violência simbólica é muito mais grave que a Centro de Cultura Libertária do Bairro Azenha,
real, o que na Câmara foi representado pelo con- Centro de Estudantes de Ciências Sociais, Cole-
gelamento de sua soberania. Fim do espaço dos tivo Vamos à Luta, Unidos pra Lutar, estudantes
representantes. de diretórios acadêmicos da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul – Ufrgs. Alguns estudantes
IHU On-Line – A falta de diálogo entre os apresentavam-se como integrantes de três mo-
manifestantes (caracterizado nos mais vio- vimentos sucessivos, e outros de outras cidades,
lentos) e o Estado (caracterizado na polí- como Campo Bom e Novo Hamburgo. Grupos
cia) é sintoma de que tipo de relação? Que de todos os perfis e ideologias: Grupo Anarco-Fe-
desafios estão postos à convivência destes minista, Levante Popular da Juventude, Coletivo
dois entes? Ovelhas Negras, Coletivo Kizomba, Coletivo Pu-
Jorge Barcellos – Esta falta de diálogo já foi tinhas Aborteiras e estudantes dos cursos de ciên-
bem caracterizada pelos analistas de plantão. Os cias sociais, odontologia, comunicação, biologia,
argumentos já fazem parte do debate: insensibili- engenharia e de cursos pré-vestibulares. Havia
dade do Estado, autoritarismo das corporações, também professores e pelo menos um servidor da
numa relação que faz de ambos vítimas e algozes. área de saúde. Mas como fazer uma democracia
Sinto pela perda de um trabalho no campo dos baseada no controle da difusão de informações?
direitos humanos que parcela da polícia fazia e Rodrigo Brizola, da Frente Autônoma, apregoa na
que depois dos movimentos e reações ficou desa- assembleia que só ficariam os meios de comuni-
creditado. Agora, minha questão não é a relação cação com os quais o grupo “tenha confiança”.
entre os manifestantes e o Estado, mas entre os A partir daí tomar o poder passa pelo controle
manifestantes e a imprensa. Essa falta de diálogo da informação e impedir o acesso da “mídia tra-
é que me preocupa. Achar que Zero Hora é um dicional” é referendado pelos inúmeros coletivos

45
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

presentes. A recusa da “mídia tradicional” não é tas ações são a atualização da invasão do Palais
hegemônica: Matheus Gomes, do DCE da Ufrgs Royal, de Paris, mas enquanto no Ancien Régime
e integrante do movimento, publica no dia 19 de a tomada da moradia do rei significava a tomada
julho artigo de opinião em Zero Hora, na “mídia do Estado, a tomada do plenário da Câmara sig-
burguesa” que critica. Assim como a função dos nificou a privatização por uma classe do espaço
sans-culottes durante a revolução francesa era da soberania popular. As imagens de violência
exercer a delação de suspeitos, vigiar bairros e que circularam na Internet mostram, na expressão
imóveis, efetuar prisões, os novos revolucionários do sociólogo francês Jean Baudrillard, que “trans-
outorgaram-se a si a tarefa de controle da impren- gredimos tudo, inclusive os limites da cena e da
sa livre. Isso é um problema. verdade”. A tentativa de invasão da TV Câmara
Por outro lado, os jovens fizeram a grande re- por “suspeita” de servir de abrigo a jornalistas e
volução da informação ao criarem seus próprios a expulsão de jornalistas do prédio da Câmara
veículos de comunicação via Internet. Com suas ocorre nesse contexto de exercício e legitimação
páginas no Facebook e a criação de um canal de da violência e de controle da informação, intimi-
televisão online (Catarse.com), os jovens fizeram dando funcionários e trabalhadores.
sua revolução particular no modo de organização
dos movimentos sociais. A partir de agora, todo
movimento social deve aos jovens uma nova for- Redes Sociais
ma de difusão de informações em tempo real.
Mas o problema é justamente esse, substituir uma Nas redes sociais, o movimento partiu para
verdade – a da imprensa – por outra – a do mo- a justificação de seus atos em nome da “causa”,
vimento, considerada “a” verdade. Onde fica o criticando as “supostas” vítimas. Suspeito que a
direito à livre interpretação? vinda de autores como o filósofo esloveno Slavoj
Zizek a Porto Alegre tenha criado o fermento ra-
IHU On-Line – A polícia continua presa às dical nas lideranças locais da extrema esquerda.
práticas do século XX? Quais sãos os de- Ao invés de ouvirem o que sua crítica cultural ao
safios em relação à garantia da segurança capital tem de construtivo para a uma nova inter-
pública e do direito de se manifestar? pretação do mundo, preferiram as suas passagens
Jorge Barcellos – Para começar, consideremos que elogiam a violência. “O projeto comunista
o poder de polícia da própria Câmara no seu in- do século XX era utópico precisamente na medi-
terior: ele foi zero. A conquista do prédio da Câ- da em que não era suficientemente radical (grifo
mara foi uma vitória simbólica, já que a guerra “é meu)”, diz Zizek. Pior, ele insiste que essa resistên-
a continuação da política por outros meios”. Mas cia deve incluir o uso do terror: “Lembrem-se da
o fato de que tenham conseguido fazer o desloca- defesa exaltada do Terror na Revolução Francesa
mento do movimento das ruas para às instituições feita por Badiou, na qual ele cita a justificativa da
não significa que tenham tido sucesso em sua re- guilhotina para Lavoisier: “A República não preci-
volução. Para mim, novamente, a garantia do di- sa de cientistas” diz Zizek. Não é o que vemos no
reito de se manifestar exclui a necessidade de vio- interior dos movimentos de jovens quando é tole-
lência. Somente isso nos dá condições de exigir rada a sua violência no legislativo sob a alegação
do Estado repressão aos seus agentes, somente de que a do Estado é pior? Nenhuma violência
isso dá condições de cobrar das autoridades paci- pode ser tolerada de nenhum lado, essa é a ques-
ficação. Como garantir o direito de se manifestar, tão. Por isso a retomada pelo Estado dos objeti-
se os mesmos jovens que foram vítimas da trucu- vos e fins da sua estrutura policial é um ponto da
lência das abordagens policiais, por breves instan- agenda política.
tes reproduziram as estratégias de seus algozes no Projetos de direitos humanos no interior da
interior do legislativo? As cenas são conhecidas: corporação precisam ser efetuados, qualificação
um fotógrafo agredido, um presidente intimidado, de seus membros naquilo que se convencionou
um parlamento isolado, símbolos ultrajados. Es- chamar de bases da segurança pública coletiva

46
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

precisa ser reforçada. Não se admite que a cor- ta do espaço do poder, mas isso não significa a
poração permita que a mentalidade da “caçada” tomada do poder.
ressurja das cinzas no seu interior. Ela foi frequen- Reconhecimento público tem relação com
te no antigo regime, na repressão aos movimen- isso, solidariedade e negociação, estabelecer rela-
tos sociais e foi substituída pelas estratégias de ções com o diverso, fundamento da política nega-
controle a distância. Policial armado com balas do pelo movimento anarquista. Não posso negar
de borracha que fere manifestante tem de ter pu- a existência do Estado simplesmente porque sei
nição exemplar porque a agressão desvirtua as exatamente como funciona uma sociedade sem
finalidades do distanciamento que o controle das Estado: basta ver o que ocorre nas regiões mais
massas exige. Mas não é admissível ver policiais pobres do centro africano ou do extremo oriente.
que socorrem vítimas serem agredidos, como um Tenho reforçado a ideia de que os jovens devem
policial da capital no meio de manifestação. ser os primeiros a se mobilizar para a construção
de políticas sociais, de fortalecimento da função
IHU On-Line – Que alternativas são possí- social do Estado, o que não é feito no contexto da
veis para alcançarmos o “reconhecimento violência. O notável ativismo político deve fundar
mútuo” proposto por Richard Sennet? as novas discussões via redes de Internet sobre
Jorge Barcellos – Este é um autor que tem problemas e suas soluções.
muito a dizer sobre os movimentos. Lembro da
pergunta de uma colega simpatizante do movi- IHU On-Line – Que respostas o Estado deu
mento: “De que lado você está?” O sociólogo desde as manifestações de junho? Na sua
americano Richard Sennet em Juntos: os rituais avaliação, por que alguns grupos mantêm
dos prazeres e a política da cooperação (Rio de ações sistemáticas?
Janeiro: Record, 2012) critica justamente isso, o Jorge Barcellos – Para mim, a luta política vai
autoritarismo presente na obrigatoriedade de se continuar. Os movimentos de jovens não vão
decidir por um lado sem avaliação, pois a partida- parar. A parcela radical poderá ter momentos de
rização da vida política é responsável pela men- recuo, mas retornará logo em seguida. É que a es-
talidade do “nós-contra-eles”, justamente o que tratégia do movimento é a mesma dos revoltosos
ocorreu nas redes sociais em Porto Alegre. Como de 1789, a da ofensiva permanente. No que vai
Zizek sugere em Bem vindo ao deserto do real dar, eu não sei. Espero que o desejo democrático
(São Paulo: Boitempo, 2003), na opção entre a dos jovens seja vitorioso, mas temo que os jovens
pílula azul e a vermelha tornada famosa na cena possam dar espaço para as características autori-
do filme Matrix, a obrigação de optar entre fan- tárias que observo, seu “dark side”. Por isso a fala
tasia e realidade não é suficiente, por isso Zizek da deputada federal Manuela D’Ávila é exemplar:
requer uma terceira pílula, que lhe permita ver “a “Não vou me tornar igual àqueles que comba-
realidade na ilusão em si mesma”. É o que todos to”. Engana-se quem pensa que a ocupação do
temos de fazer, encontrar uma outra forma de rei- legislativo foi um objetivo, não foi. Foi uma “ex-
vindicar o que é certo sem ceder à violência. O periência” que deu aos jovens o gosto do poder
movimento das ruas não vai parar. Ele é jovem, é e por isso todo cuidado é pouco. Iniciou-se uma
autêntico, mas tem contradições. Há muitos gru- nova etapa no movimento das ruas. Os jovens es-
pos no seu interior disputando a hegemonia e se tiveram diante de um passo perigoso em direção
alimentando das mais diferentes ideias. Sua es- ao Estado de Emergência, mas souberam nego-
tratégia é clara: sair das ruas para as instituições. ciar e honrar o acordo com o Estado. Os jovens
Os “erros” do movimento precisam se avaliados precisam recusar a possibilidade de entrar em
internamente pelos jovens e pela sociedade. Os guerra contra o Estado. “Só a troca nos protege
jovens querem uma revolução sim, é seu direito, do destino”, diz Baudrillard. Mas o Estado preci-
suas reivindicações são legítimas, mas a tomada sa recusar criminalizar o movimento. Estamos no
do legislativo nada mais foi do que o “desvio do pior momento para fazer generalizações. Como
velho assalto social” (Virilio), uma tomada abrup- diz Virilio, num mundo onde a velocidade dos

47
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

fatos supera sua compreensão, a necessidade de guém tem condições de sabê-lo”, simplesmente
parar toma sentido político. A repressão de Es- porque não sabemos os limites de nossos afetos e
tado se faz mais por sua desestruturação interna ações. Quem fica nu acredita que o corpo afeta,
do que por uma finalidade de governo. É preciso que pode desestruturar o mundo. Os pelados da
parar para refletir. As ações radicais dos jovens câmara querem atualizar a ideologia da “libera-
se mantêm por um misto de desesperança, raiva, ção do corpo” dos anos 1960-1970, revolta con-
vazio existencial e falta de projeto. Por isso a inter- tra a moralidade e autoridade. “Exibir-se torna-se
pretação de Jean-Luc Nancy é atual: “a verdade o contrário de representar”, diz Jeudy, os jovens
da democracia é que não se trata de uma forma nus não toleram uma única representação do cor-
política entre outras, ela quis ser na era moderna po belo, jovem, objeto do Capital ou do corpo po-
a refundação integral da coisa política. É o nome lítico, poder legítimo, mas sempre às voltas com a
de um regime de sentido cuja verdade não pode corrupção. O corpo exibido sempre é um sintoma
submeter-se a nenhuma instância ordenadora, da raiva do espelho da representação, diz Jeudy.
nem religiosa, nem política, nem científica, nem Sua experiência imediata do corpo nos quer dar
estética, porque se compromete por inteiro com uma interpretação da sua visão de política. Há
o “homem” enquanto risco e possibilidade de si quem diga “que mal tem o nu se a política é por-
mesmo. Ela deve ser o lugar dos meios de abrir nográfica?” Não, não é a mesma coisa. Ter raiva
e manter abertos os espaços de suas obras” diz da representação do corpo perfeito do capital não
o autor de La verdad de la democracia (Madrid: é a mesma coisa que ter raiva da representação
Amorruto Editores, 2009). Para mim, a juventude política simplesmente porque não se pode ter rai-
está protagonizando um dos maiores movimentos va de algo que se ajudou a construir. A Câma-
da década, mas tem os seus erros. O Estado tem ra tem representantes dos jovens, vereadores de
diante de si a oportunidade única de “ouvir os esquerda que acompanharam suas assembleias e
anseios do povo”, mas precisa parar para ouvir. ajudaram a legitimar o movimento. A participa-
ção do PT e do PSOL acabou produzindo uma
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo? divisão política no próprio legislativo, agora entre
Jorge Barcellos – Um ponto pouco explorado simpatizantes e opositores à invasão do plenário,
do lado agressivo das manifestações foi que sua e nas relações do legislativo com o governo esta-
violência não foi somente contra pessoas, mas dual – solicitada por seu presidente, a Brigada
contra símbolos. Na Câmara Municipal, mensa- Militar não compareceu. Para suas lideranças,
gens foram afixadas na cruz existente no plenário o nu foi uma extravagância juvenil imposta no
e a galeria dos presidentes e a dos vereadores fo- espaço público, mas para parte da sociedade e
ram alvo de manifestações no caso do episódio demais vereadores a cena significou violência à
do nu, um caso a parte. Claro, antes de criticar, instituição. Se os jovens queriam fazer sua vin-
precisamos entender por que os jovens se “pela- gança pessoal à representação política, como
ram” na câmara. Eles querem no fundo saber: o apela o grupo Anonymous, o que conseguiram
que pode o corpo? Como diz Henry Pierre Jeudy, não foi vingança, foi sedução (Baudrillard), isto
em O corpo como objeto de arte (São Paulo: Edi- é, desviaram o olhar da sociedade dos verdadei-
tora Estação Liberdade, 2002), a resposta é “nin- ros objetivos do movimento.

Por Ricardo Machado

48
“O devir-multidão dos excluídos e de todos os que são incluídos
somente na extensão necessária para serem explorados”

Entrevista especial com Adriano Pilatti

“A força desses movimentos não é de caráter de as respostas institucionais irresponsavelmente


militar, é política, e a juventude que os anima pre- limitarem-se à repressão dos protestos.
cisa entender isso pra valer. Parece que a maioria “A força desses movimentos não é de caráter
já entendeu”, avalia o cientista político sobre as militar, é política, e a juventude que os anima pre-
manifestações que surpreenderam o Brasil no 2º cisa entender isso pra valer. Parece que a maioria
semestre de 2013. já entendeu. Atos gratuitos de violência são in-
“Esses jovens guerreiros lutam pela realiza- trinsecamente equivocados, a vida livre exige que
ção dos objetivos fundamentais da República, a violência seja usada apenas como autodefesa,
por uma sociedade livre, justa e solidária, pelo e quando não houver outra forma de resistir à
desenvolvimento digno desse nome, pela erradi- violência, à repressão. O fato é que a repetição
cação da pobreza e redução das desigualdades, rotineira de eventuais atos de violência gratuita
pelo bem de todos e todas e de cada um sem acaba por legitimar a repressão e afastar a grande
preconceitos nem discriminações. E o fazem radi- maioria que, a não ser em situações realmente ex-
calizando, em geral positivamente, o exercício das cepcionais, não concorda com esse tipo de con-
liberdades de pensamento, expressão, reunião, os duta”, destaca o cientista político.
direitos de participação, resistência e autodefesa”, Adriano Pilatti é graduado pela Faculdade de
afirma o advogado e cientista político Adriano Pi- Direito da Universidade Federal do Rio de Janei-
latti, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. ro – UFRJ, mestre em Ciências Jurídicas pela Pon-
Para ele, as manifestações organizadas no tifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Brasil no 2º semestre de 2013 caracterizam-se – PUC-Rio e doutor em Ciência Política pelo Insti-
por incidir simultaneamente sobre o conteúdo e a tuto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro
forma das políticas públicas, de forma a garantir – Iuperj, com pós-doutorado em Direito Público
as condições básicas de bem-estar social, ao mes- Romano pela Universidade de Roma I – La Sa-
mo tempo em que incide sobre as possibilidades pienza. Foi assessor parlamentar da Câmara dos
de expressão, representação, ação e decisão po- Deputados junto à Assembleia Nacional Consti-
líticas e governamentais, refletindo a potência e tuinte de 1988. Traduziu o livro Poder Constituin-
as contradições da nova composição do trabalho te – Ensaio sobre as Alternativas da Modernidade,
metropolitano. “Quando uma geração se levanta de Antonio Negri (Rio de Janeiro: DP&A, 2002).
‘por uma vida sem catracas’, esse impulso pode É autor do livro A Constituinte de 1987-1988 –
produzir uma nova fundação da democracia, mu- Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica
danças positivas, mais justiça, mais igualdade, e Regras do Jogo (Rio de Janeiro: Lumen Juris,
liberdade e bem-estar. Ou então uma frustração 2008).
cujos efeitos podem ser desastrosos”, destaca Pi- Confira a entrevista.
latti, advertindo para os riscos existentes no caso

49
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – As manifestações de junho/ nou com os russos” que eles se satisfariam em
julho no Brasil geraram uma expectativa de comer três vezes por dia e ter vaga na escola. A
transformação para uma sociedade mais garantia de um patamar mínimo de direitos em
democrática e participativa. As manifesta- matéria de nutrição, educação, saúde, etc. não
ções de outubro, que denunciavam a vio- produz saciedade ou resignação.
lência e foram violentamente reprimidas, Os levantes iniciaram um novo ciclo nas lutas
modificaram esta expectativa? por direitos relativos ao transporte, aos espaços
Adriano Pilatti – Penso que uma eventual mo- públicos, à informação, à segurança, à educação,
dificação de expectativas deve-se mais à atitude à participação, à representação. O direito de con-
dos poderes constituídos diante das manifesta- tar politicamente de forma autônoma, de partici-
ções e o que elas expressavam: a resposta cen- par diretamente das decisões da pólis e fruir dos
trada na repressão, a falta de disposição para serviços da cidade. Em diferentes níveis e ques-
abrir canais de diálogo com essa juventude tões, os jovens questionam a plutocracia que,
mobilizada. As manifestações puseram e põem de dentro das estruturas da democracia atual,
em cheque as deficiências da representação, a impede o exercício de direitos fundamentais. As
captura das instituições e serviços públicos pe- contestações que têm animado os levantes ques-
los interesses das grandes corporações, a de- tionam simultaneamente as dimensões política e
negação concreta da democracia participativa econômica – e, por conseguinte, ética e social –
consagrada na Constituição, a denegação de dos circuitos de comando e exploração que pro-
direitos sociais, os limites das liberdades públi- duzem e reproduzem as desigualdades e a dene-
cas, o modelo de segurança pública, modelo de gação de direitos.
comunicação social. As respostas positivas a es-
sas contestações foram até aqui pífias, ao passo IHU On-Line – As manifestações são vul-
que sobrou arrogância, autoritarismo, insensi- neráveis a manipulações reacionárias? As
bilidade diante da fantástica contribuição críti- recentes situações de violência envolvendo
ca à construção da democracia no Brasil que policiais e manifestantes seriam indicati-
foi oferecida em cada cartaz, faixa, refrão das vos deste risco?
manifestações, em cada ocupação, em cada ato Adriano Pilatti – Muitos, eu inclusive, tiveram
de resistência ao longo desses meses. Enquanto essa preocupação num determinado momento,
os poderes constituídos mantiverem essa im- após 20 de junho. Não vejo esse risco no momen-
permeabilidade em face do que vem das ruas, to, nem a médio prazo. Ao contrário: o reacionaris-
[mantiverem] esse padrão repressivo de respos- mo que tem estado nas ruas de julho até aqui é
ta, não há razão para ser otimista. o do Estado, é o da mídia, é o do big business
interessado nos megaeventos. Enfim, é o das eli-
IHU On-Line – O Brasil vive um momento tes dominantes alinhadas contra os manifestan-
de certa estabilidade econômica, de redu- tes. Não vem destes. A radicalização do conflito
ção da desigualdade e de inclusão social. trouxe o risco do estreitamento das liberdades de
Neste cenário, o que leva os jovens mani- manifestação e expressão, da repressão política
festantes a tomarem as ruas? travestida em procedimentos de caráter policial-
Adriano Pilatti – A estabilidade é precária, as judicial, da desqualificação e satanização de ma-
desigualdades diminuíram, mas permanecem nifestantes pela mídia. Houve atos, pelo menos
enormes, as políticas de inclusão produziram contextualmente, equivocados que deram mar-
avanços mas não conseguem sequer “incluir” sa- gem e pretexto para tudo isso. Não é preciso
tisfatoriamente doentes em hospitais, crianças nas incidir em qualquer forma de “moralismo” para
escolas, passageiros nos veículos de transporte, verificar que se tornaram, ao menos contextual-
etc. Não incluem os cidadãos pobres em geral, e mente, contraproducentes. Mas, ao que parece,
os pobres negros em particular, entre aqueles que neste momento há uma intensa reflexão interna
são respeitados pelas polícias. Ninguém “combi- ao movimento sobre isso.

50
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – A repressão policial violenta IHU On-Line – Estes jovens manifestantes
às manifestações e protestos é um indicati- constituem a única força capaz de provocar
vo do autoritarismo de “nossa democracia”? aberturas e mudanças na sociedade brasi-
Adriano Pilatti – Indica pelo menos os seus li- leira contemporânea?
mites, inclusive os de classe. Indica tudo que de Adriano Pilatti – Creio que nem eles se veem
autoritário permanece nas estruturas de Estado e assim. O que se expressa nas ruas através da mo-
delas se alimenta. Indica o quanto há de pluto- bilização dos corpos e das mentes desses jovens
crático no Estado Democrático de Direito. Revela é uma dimensão nova, potente, determinante ao
que o padrão de formação, treinamento e respos- menos a médio e longo prazo, do devir-multidão
ta das forças policiais à contestação de rua ainda dos pobres, dos excluídos e de todos os que são
é o mesmo da ditadura militar-empresarial, com incluídos apenas e tão somente na extensão ne-
resíduos que remontam às milícias que caçavam cessária para serem explorados. Na medida em
negros fujões no Império. que se aproxime de outros movimentos e possa
Revela que a demofobia contamina também com eles se comunicar e cooperar, penso que
o Judiciário e o Ministério Público. E permite su- tende a contagiá-los com muitos de seus aspectos
por que as autoridades se autocondenam (pois positivos: sua horizontalidade, sua composição
mais cedo ou mais tarde serão fatalmente “puni- múltipla, a reivindicação e o respeito pela auto-
das” por isso) a entregar a mediação às polícias nomia de todos os que nele se integram. No Rio,
porque não podem atender as reivindicações em torno deles acabaram se integrando e coope-
que contrariam as forças econômicas de que se rando advogados, socorristas, midialivristas, pro-
tornaram reféns. Permite supor que já venderam fessores, camelôs, sem teto, ameaçados de remo-
a coisa pública e precisam entregá-la, pois esse ções, feministas, minorias de gênero, etc.
tipo de credor não aceita calote, e pode destruir Nos setores mais engajados e mobilizados,
o devedor. Talvez esteja aí o fio da meada do essas mobilizações inspiraram um renovado e di-
impasse. fuso desejo de autonomia, de participação livre,
de novas formas de ação e participação. Desde
IHU On-Line – Uma manifestação que faça junho estou convencido de que “o sal da terra”
uso da violência pode influenciar positiva- está hoje nas ruas.
mente a sociedade?
Adriano Pilatti – A força desses movimentos não IHU On-Line – O que pode ser dito sobre o
é de caráter militar, é política, e a juventude que atual ciclo de lutas por direitos impactado
os anima precisa entender isso pra valer. Parece por estas manifestações?
que a maioria já entendeu. Atos gratuitos de vio- Adriano Pilatti – Que ele incide simultanea-
lência são intrinsecamente equivocados, a vida li- mente sobre o conteúdo e a forma das políticas
vre exige que a violência seja usada apenas como públicas, que ele se caracteriza simultaneamen-
autodefesa, e quando não houver outra forma de te por uma dimensão substantiva, relativa à ga-
resistir à violência, à repressão. O fato é que a rantia de condições básicas de bem-estar, e por
repetição rotineira de eventuais atos de violência uma dimensão processual, relativa às formas de
gratuita acaba por legitimar a repressão e afastar expressão, representação, ação e decisão políticas
a grande maioria que, a não ser em situações e governamentais. Que ele expressa a potência e
realmente excepcionais, não concorda com esse as contradições da nova composição do trabalho
tipo de conduta. De outra parte, é preciso lembrar metropolitano, que ele tende à multiplicidade dos
que grande parte desses distúrbios ocorre quando atores, das ações e de seus objetivos. E o funda-
as polícias usam gratuita ou desnecessariamente mental: que ele está apenas começando; que se
de violência contra manifestantes. Os padrões de as respostas institucionais forem apenas repressi-
uso da força pelas polícias contra manifestantes vas, elas não só serão ineficazes como perigosas
entre nós são coloniais, vergonhosos e também e, por isso mesmo, irresponsáveis. Quando uma
não exercem boas influências. geração se levanta “por uma vida sem catracas”,

51
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

esse impulso pode produzir uma nova fundação que nossa luta é pelo art. 3º, através do art. 5º?”
da democracia, mudanças positivas, mais jus- Esses jovens guerreiros lutam pela realização dos
tiça, mais igualdade, liberdade e bem-estar. Ou objetivos fundamentais da República, por uma
então uma frustração cujos efeitos podem ser sociedade livre, justa e solidária, pelo desenvol-
desastrosos. vimento digno desse nome, pela erradicação da
pobreza e redução das desigualdades, pelo bem
IHU On-Line – Que relação pode ser identi- de todos e todas e de cada um sem preconceitos
ficada entre as manifestações e a Constitui- nem discriminações. E o fazem radicalizando, em
ção Federal de 1988? geral positivamente, o exercício das liberdades de
Adriano Pilatti – Em agosto passado, os me- pensamento, expressão, reunião, os direitos de
ninos e meninas resistentes do “Ocupa Cabral”, participação, resistência e autodefesa. Essas lutas
a segunda das três ocupações que aconteceram são constituintes e, por isso mesmo, retiram do
perto da casa do governador fluminense, me con- papel para a rua o que há de melhor no progra-
vidaram para dar uma aula sobre o seu exercício ma de reformas da Constituição Cidadã, nas
de liberdade e a Constituição de 1988, a primeira chamadas políticas públicas constitucionalizadas,
de uma série que realizaram. Foi uma das minhas na Carta de Direitos, nos Princípios Funda-
mais prazerosas aulas em 27 anos de magistério. mentais. O verbo constitucional se faz carne na
Falávamos sobre as liberdades constitucionais que potência constituinte dos meninos e meninas que
eles estavam exercendo e o fundamento constitu- enfrentam a plutocracia, a representação corrom-
cional de seus propósitos e reivindicações. Então pida e as hordas policiais para exigir mais igual-
um deles “perguntou”, com aspas, pois a per- dade, mais liberdade, mais democracia.
gunta já trazia a resposta: “Então podemos dizer

Por Luciano Gallas

52
Manifestações expõem fragilidades e limites do projeto
constitucional-republicano de democracia

Cinco participantes das manifestações que No último mês de junho, fomos todos surpre-
surpreenderam o Brasil entre os meses de junho endidos por várias manifestações país afora. As
e julho narram suas experiências, impressões e marchas se tornaram grandes como há décadas
avaliações dos protestos. São homens e mulhe- não se via, embora seus objetivos e anseios fos-
res, jovens e adultos, de profissões e formações sem (e ainda são) pouco definidos. Como vários
culturais distintas, que estiveram presentes em outros brasileiros, fui às ruas por curiosidade. Es-
atos organizados nas cidades de Belo Horizonte, perava que fosse o início de uma mudança com
Brasília e Rio de Janeiro. a qual sonhava já há tempos, uma virada à es-
Os depoimentos foram realizados a partir querda, um levante popular, o povo assumindo
de convite feito por meio do Facebook, uma das seu papel de líder da nação. O que vi nas ruas,
principais ferramentas utilizadas nas convocações porém, foi bastante diferente do que imaginei.
para os protestos. Daniel Teixeira, mestrando no Estive nas ruas nos três jogos da Copa das
Departamento de Antropologia do Museu Nacio- Confederações realizados em Belo Horizonte. No
nal – UFRJ, também deu contribuição à coleta primeiro cheguei tarde. Peguei um ônibus e me
destes depoimentos, sugerindo nomes de pessoas dirigi à região da Pampulha, onde fica o estádio
que participaram das manifestações e que, solida- Mineirão. No caminho, fui tentando ligar para
riamente, enviaram seus textos. amigos e ter notícias do que estava ocorrendo.
Eis os textos. Nenhum me atendeu. Já havia se passado cer-
ca de quatro horas desde que a marcha partira
da Praça Sete de Setembro, no centro da cidade.
Tive notícias, por familiares, de que os confrontos
“Do dia pra noite todas já estavam ocorrendo e que a polícia tentava dis-
as grandes TVs, rádios e persar os manifestantes.
Chegando próximo à UFMG, vi uma fila inter-
jornais viraram apoiadores minável de viaturas da polícia. Fiquei algum tem-
das manifestações, o po sentindo o clima do ambiente. Muitas pessoas
cantavam, riam e tocavam instrumentos, mas a
que ajudou a aumentar qualquer barulho mais alto a correria recomeça-
va. O cheiro de gás lacrimogêneo ainda era forte
a sensação de que algo no ar. Algumas pessoas derrubavam grades e a
estava errado” cerca da universidade estava no chão. Fui cami-
nhando com o restante dos manifestantes de vol-
Gabriel Machado é morador de Belo Horizonte e gra- ta à praça Sete e vi no caminho várias pichações
duando do curso de graduação em Engenharia de em protesto à Copa, à Fifa e às políticas públicas
Computação do Centro Federal de Educação Tecno- implementadas pelo prefeito e pelo governador.
lógica de Minas Gerais – CEFET-MG. Ainda eram apenas rascunhos das pichações que
seriam feitas nas próximas manifestações.
Confira o depoimento.

53
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Desci procurando um ônibus, porém tive que que o cenário era diferente. Além de vários car-
andar mais de uma hora até passar o primeiro. O tazes de “Fora Dilma” e coisas do tipo, havia um
trânsito continuava fechado e os veículos passa- bloco de esquerda que nunca imaginei ver unido.
vam lentamente. Pela praça Sete passam milhares Vários partidos, que em outras situações estariam
de pessoas durante o dia e, à noite, tomam conta se digladiando, se uniram em um grupo maciço
da cena os bares e os frequentadores dos quartei- para se proteger e levantar bandeiras em comum.
rões fechados: hippies, punks, jovens de periferia Algo raro de se ver. Fomos “armados” de carta-
e de classe média, grupos de surdos-mudos, mo- zes/escudos, feitos de cartolina e papelão grosso,
radores de rua, além de carrocinhas de cachorro- com o objetivo de nos proteger de eventuais tiros
quente e a polícia. Nesse lugar, se encontravam de bala de borracha (eles funcionaram maravi-
cerca de três mil pessoas, várias ainda segurando lhosamente bem).
cartazes e outras apenas conversando e avaliando Iniciamos a marcha em direção ao estádio e
o dia. Passado algum tempo, um grande grupo de fiquei impressionado com a quantidade de pes-
manifestantes chegou vindo da Pampulha. Depois soas que estava nas ruas. Ao chegarmos à UFMG,
fui embora – tinha que trabalhar no dia seguinte. cerca de nove quilômetros depois, tive notícias de
Já em casa acompanhei pela PosTV o desenrolar que ainda havia pessoas saindo do centro da ci-
do protesto, que terminou em bruta pancadaria no dade. A quantidade de manifestantes, estimativa
centro da cidade, com manifestantes quebrando sempre tão flutuante, chegou a 200 mil em algu-
bancos e grandes lojas e policiais reprimindo forte- mas fontes. Chegando lá, o cenário era ainda pior
mente. Não houve nenhuma boa notícia. do que no primeiro dia. Além da Polícia Militar,
Nos dias seguintes a essa primeira manifes- estavam nas ruas o Exército e a Força Nacional
tação fui recolhendo relatos de amigos que me de Segurança, estes dois últimos dentro do cam-
contaram do horror que passaram. Bombas atira- pus da UFMG, fato inédito até durante a ditadura.
das para o alto, manifestantes correndo desespe- A polícia havia montado uma barreira na avenida
rados, cavalaria avançando sobre as pessoas, tiros Antônio Abrahão Caram, ao lado do campus, em
de borracha, cassetetes e desespero generalizado. frente ao viaduto José de Alencar.
Vários conhecidos levaram tiros de borracha. Uma Fomos para perto da barreira, para ver, ouvir
amiga levou um golpe de cassetete na cabeça que e sentir o clima. O que vimos foi assustador. Ao
a fez levar vários pontos – há um vídeo que mostra lado do Batalhão de Choque estavam pelo me-
ela se levantando do chão e caindo em seguida nos 50 homens da força nacional, ocultos pela
com o golpe dado pelo policial. Nenhum destes vegetação junto à cerca do campus. Vimos várias
conhecidos estava em enfrentamento com a po- pessoas incitando os manifestantes sobre a polí-
lícia, nenhum deles reagiu ou arremessou algo e cia, que já atirava algumas bombas de gás lacri-
todos levaram os tiros direto no corpo, mostrando mogêneo. Entre elas estava um homem, já pra lá
que a polícia simplesmente ignorou a instrução de dos 50, de camisa regata e com quase dois me-
ricochetear no chão as balas de borracha. tros de altura que gritava para os manifestantes
Nas conversas que tive depois dessa primei- “vamos pra cima deles! Vamos, é nossa chance!”.
ra marcha, as impressões que compartilhei com Outro homem, esse sem camisa e na casa dos 40,
meus amigos foram de que, além de desprepa- gritava, nervoso e bravejante, “avancem! Vamos!
rados, não éramos um grupo unificado. Grande Pra cima deles!”.
parte das pessoas ia às ruas sem noção do que Os manifestantes nada faziam além de assis-
exigir de nossos governantes. Muitos cartazes tra- tir. Algumas poucas pessoas arremessavam, lá de
ziam dizeres vagos como “abaixo a corrupção” trás, pedras e rojões. E então a polícia resolveu
ou “valorização da saúde”, numa clara demons- reagir. Sem nenhum sinal visível, bombas de gás
tração de que a ação política ainda é algo muito e de efeito moral voaram da barreira do choque
distante de nossa realidade. e de dentro do campus. Várias balas de borracha
No segundo jogo, fomos à manifestação vieram em nossas direções e, nessa hora, ficamos
mais preparados. Chegamos à praça Sete e vimos felizes por estarmos com nossos escudos. A sensa-

54
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

ção do gás foi horrível, senti vontade de vomitar e assustadoras: um grupo de manifestantes mais or-
senti minha garganta fechando. Saímos correndo. ganizado, além de quebrar várias lojas, queimou
Alguns poucos foram para a frente e começaram carros de concessionárias, soltou foguetes e ro-
a chutar e devolver as bombas. Muitas pessoas jões na polícia e transformou a Pampulha em um
correram para cima do viaduto, de onde várias cenário digno de filme de ação. A polícia respon-
caíram e dois morreram durante as manifesta- deu à altura.
ções. Passamos vinagre num pano para aliviar a Não sei de onde surgiu a ideia da Assem-
sensação de sufocamento e ardência. bleia Popular Horizontal, mas a convocação foi
Depois disso resolvemos que já tínhamos vis- feita pelo Facebook e a plenária aconteceu de-
to o bastante e fomos para a casa de uma amiga baixo do Viaduto Santa Tereza, no centro de Belo
em um bairro vizinho. Eram cerca de 17h. Ficamos Horizonte. Nesta primeira, havia cerca de mil pes-
lá fazendo uma avaliação da manifestação e a sen- soas. Tudo aconteceu em clima de paz e alguns
sação de derrota era unânime. Todos se sentiam atos foram marcados. Naturalmente havia vários
desnorteados e tinham a sensação de que algo de integrantes de partidos, de movimentos sociais e
muito ruim estava para acontecer. Nos esconde- de organizações não governamentais, mas tam-
mos todos lá até depois das 22h e ficamos ouvindo bém havia muitos autônomos, não vinculados a
os helicópteros e sentindo o cheiro do gás, que se nenhuma instituição, além de policiais disfarça-
espalhava pelo bairro. Todas as notícias que rece- dos. Outras assembleias ocorreram e marcou-se
bemos foram sobre a violência policial: além das já um ato para um sábado de manhã, em frente à
habituais bombas e balas de borracha, a cavalaria Câmara dos Vereadores. Nesse dia, havia sido
avançava em massa e os helicópteros auxiliavam a marcada uma sessão extraordinária para votar
lançar bombas e a espalhar o gás. Fui pra casa de uma proposta enviada pelo prefeito Márcio La-
táxi com um casal de amigos e continuei acompa- cerda para diminuir o preço da passagem de ôni-
nhando pela PosTV a manifestação, que acabou bus. A proposta previa uma isenção de um im-
de forma semelhante à anterior. posto municipal para que a passagem abaixasse
Entre o primeiro e o segundo protestos em 10 centavos.
Belo Horizonte, a mídia nacional mudou o dis- A manifestação ocorreu com confronto da
curso completamente. Enquanto antes se falava polícia, que atirou gás de pimenta a esmo, e ter-
de baderneiros e vândalos, agora se falava do gi- minou com uma ocupação da câmara que durou
gante que havia acordado. Do dia pra noite todas uma semana. Esta ocupação, por um lado, con-
as grandes TVs, rádios e jornais viraram grandes seguiu uma reunião com o prefeito e outra com
apoiadores das manifestações, o que ajudou a o governador, mas, por outro, desmobilizou a
aumentar a sensação de que algo estava errado. assembleia, pois a mesma passou a ser marcada
Apesar desse sentimento ruim, via-se que todos em cima da hora e dentro da própria Câmara de
estavam tão desorientados quanto eu: o governo, Vereadores. Depois de uma semana de ativida-
a mídia, a polícia e o restante dos manifestantes. des, decidiu-se por desocupar a câmara e realizar
Nas conversas que tive depois da segunda mar- uma ocupação cultural de uma tarde no centro da
cha, cheguei à conclusão de que toda essa violên- cidade. Ao final de todo este processo, conquis-
cia desnecessária da polícia, os agentes infiltrados tou-se a diminuição da passagem de ônibus em
provocando vandalismo (o que foi flagrado em 15 centavos. Entretanto, o mais importante des-
vídeo mais de uma vez) e a reviravolta na opinião sa questão, a abertura das planilhas de custo das
da mídia faziam parte de um plano para deslegi- empresas de ônibus, não aconteceu.
timar as marchas. Desde então, o movimento de rua esfriou vi-
No jogo seguinte, cheguei na praça Sete com sivelmente em Belo Horizonte. Ainda assim, con-
certo atraso. A massa já havia saído e poucas cen- tinuam acontecendo assembleias nas quais várias
tenas de pessoas ocupavam a rua despretensio- pessoas tentam reverter a metodologia para algo
samente. Fiquei um tempo por lá e fui cuidar de realmente democrático e horizontal. Vários grupos
outras coisas. As notícias que recebi depois foram se formaram, vários contatos foram feitos e os gru-

55
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

pos que já existiam se fortaleceram. Espero que al- ras de partidos na multidão. Isso deixa muitas
guma mudança significativa ocorra e que tudo isso pessoas preocupadas. Algumas falavam em teo-
não tenha sido em vão. Espero que essa balançada rias da conspiração, em fascismo, em golpe.
na inércia do povo tenha um efeito positivo e que Havia dias eu tinha percebido que, daquilo
as pessoas cobrem mais de seus representantes. ali, qualquer partido sonharia em se apossar. Na
Espero que esse movimento não dê uma guinada segunda-feira da mesma semana, três dias antes
à direita. Espero, principalmente, que uma nova da manifestação do dia 20, um militante vestido
forma de representatividade surja para que tenha- com a camiseta de um partido tentou falar com
mos realmente voz diária na política e não apenas a polícia em nome da manifestação. Foi pronta-
de dois em dois anos. Venceremos! mente desacreditado e expulso. Tenho certeza de
que havia outros partidos, de todo tipo de orien-
tação ideológica, querendo tentar o mesmo. Eu
fiquei satisfeito, porque tenho o receio dos pro-
“O Facebook era uma testos se mercantilizarem. De pessoas receberem
miríade de opiniões cachês de partidos para usar camisetas e empu-
nhar bandeiras nesses protestos. Basta pensar em
humildes, ironias vagas, como as coisas são nas eleições. Daqui a pouco
desconfianças tenebrosas e estão até distribuindo santinho. Enfim...
Cheguei sozinho, passei horas perambulan-
certezas absolutas” do pelo gramado do Congresso e no Eixo Monu-
mental, principalmente no lado do Palácio Itama-
Mozart Teixeira é morador de Brasília, estuda biblio- raty. Ali, o fluxo de pessoas vindas da rodoviária
teconomia na Universidade de Brasília – UNB e faz e do Museu Nacional para o protesto chamava
estágio no Senado Federal. atenção, por ser aparentemente interminável.
Confira o depoimento. Muito bonito naquele momento, mas também um
prelúdio dos problemas que estavam por vir.
A violência na repressão policial aos protes- Anoiteceu. Alguns amigos chegaram da Uni-
tos do dia 13/06 desencadeou em uma insatisfa- versidade de Brasília (UnB) e nos encontramos
ção que chegou até as portas do Congresso Na- embaixo da bandeira do estado de Minas Gerais.
cional. Foi em 20/06 que Brasília viu seu terceiro Nos dirigimos ao gramado e nos unimos àquele
e maior protesto, como não se via, talvez, desde coro colossal de palavras de ordem e frases de
1992. Nunca me esquecerei do que ocorreu na- efeito, do tipo “policial, pai de família, não defen-
quele dia. da essa quadrilha!”, “Copa do Mundo, eu abro
Por volta das 17h, no meu estágio na biblio- mão! Quero dinheiro pra saúde e educação!”,
teca do Senado, já era notória a inquietação no ar, “Brasil, vamos acordar! Um professor vale mais
mas só ao sair do expediente em direção ao protes- que o Neymar!”. Alguns dizem que os protestos
to é que fui entender a real gravidade da situação. se pautam em conceitos vagos e amplos demais.
Andei sozinho a pé no trecho entre a parada de Eles tentam determinar quais são as pautas co-
ônibus localizada ao lado do Palácio do Planalto e mentando o que se grita nas ruas. Não entendem
os ministérios. Eram centenas de metros de tropas que nenhuma multidão de dezenas de milhares
da polícia, o que me deixou tenso. Mas nenhum de pessoas se expressa através de discursos ela-
policial mexeu comigo. Não me revistaram, nada. borados, declamados em uníssono.
Calmamente, cheguei ao protesto. A característica mais marcante ali foi o cará-
Por volta de 18h20min, cheguei ao grama- ter cosmopolita da manifestação. Lá havia pes-
dão em frente ao Congresso Nacional e, realmen- soas de todo tipo, que entre si discordavam com
te, nunca vi tanta gente na minha vida. Nesse frequência: sobre se deviam ou não (tentar) inva-
momento, o clima era leve, festivo. Rapidamente dir o Congresso; depredar ou não o patrimônio
constatei que não era possível encontrar bandei- público; insultar, ou até agredir, ou não a polícia;

56
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

se você devia ou não correr ao chegarem as bom- de tiro? Para um cara que já vivenciou tiroteio
bas de gás lacrimogêneo. A maioria parecia ten- em túnel ali, colado com Copacabana, qual o real
der a um certo pacifismo, mas os elementos beli- significado de umas bombinhas de gás lacrimogê-
cosos acabam, em algum momento, sendo mais neo e umas balas de borracha?
ruidosos. E realmente se fizeram notar. A tentativa de invadir o Palácio do Itamaray
E aí o caos deu as caras. falhou. Achei estranho. Já viram aquele lugar?
Metade das bandeiras dos estados foram rou- Um espelho d’água raso e pouco extenso, vidro
badas ou queimadas. Eu mesmo, junto com alguns pra todo lado. Ouvi dizer que conseguiram fazer
amigos, me peguei discutindo aos berros com duas uma pichação na área externa. Achei estranho,
garotas que queriam queimar uma delas. Agora, em mas também desconheço a tática usada pela se-
retrospecto, acho que isso foi uma grande perda de gurança para impedir as pessoas de entrarem ali.
tempo. Lamento as bandeiras terem sido queima- Respirei aliviado. Do lado de fora, uma barraca
das, discordo de quem o fez, mas percebo que não que sobrou de algum desses eventos “pão e circo”
estou em posição de julgar qual a forma mais ou da Esplanada dos Ministérios foi atingida pelas
menos apropriada de protestar contra tantos moti- chamas que atearam em uma caçamba de entu-
vos de descontentamento que estão nas profunde- lho cheia de lixo. Mas pelo menos não era a tela
zas há muito tempo, e só agora vieram à tona. Paz e Concórdia, de Pedro Américo, que estava
O gás foi se acumulando em grande quan- pegando fogo dentro do palácio.
tidade a poucos metros do Congresso, entre as As coisas foram ficando gradualmente mais
bandeiras e o espelho d’água. A multidão segu- calmas. A massa antes concentrada no gramadão
rou a onda o quanto pôde. Ao nosso lado, pe- se dispersou. Alguns ambulantes aproveitavam
daços de lixo pegavam fogo. Em dado momento pra vender água, refrigerante, cerveja e comida.
a situação ficou insuportável, confesso que até Pessoas compartilhavam vinagre com quem pe-
entrei um pouco em pânico. Então alguém gritou dia a todo momento. A multidão oscilava entre
“vamos pro Itamaraty!”. Se algum dia eu desco- momentos de simpatia e antipatia com os PMs,
brir que isso partiu de algum agente de seguran- que, inclusive, levaram uma faixa com palavras
ça pública, não ficarei nem um pouco surpreso. de apoio à manifestação – um de meus amigos
Mas também não vou pôr minha mão no fogo entrou no espelho d’água pra ajudar a segurar a
por isso. Um cesto tão grande dificilmente pas- faixa e mostrá-la, para a multidão e para a pró-
sa sem ter alguma maçã podre. A multidão subiu pria polícia em momentos alternados.
em direção ao Itamaraty fugindo do gás. Algumas A multidão ficou em um vai-e-volta por causa
pessoas pareciam ter mesmo intenção de invadir. do gás, até dispersar de vez. Na confusão mental
E a gente foi atrás, pra ver no que ia dar. daquele espetáculo babilônico todo, me descuidei
Houve corre-corre. Muitas bombas caindo, e deixei cair meu celular, que já estava sem bate-
barulhos de tiro de borracha. Nos abrigamos atrás ria de tantos telefonemas e mensagens que iam e
de uma Kombi, para nos proteger mais do corre- vinham a todo momento. Na saída, paramos pra
corre da multidão do que de qualquer outra coi- catar alguns restos de bomba e encontramos uma
sa. Levou alguns minutos para percebermos que bala de borracha. Paramos pra ver como ficou o
era uma zona aquilo ali, mas não era o fim do Itamaraty no fim da manifestação. Acabamos con-
mundo. De repente até começamos a nos habitu- versando com dois PMs que, muito cordiais, expli-
ar com o gás lacrimogêneo. caram que concordavam com as reivindicações
Às vezes me pergunto se não é esse o pro- dos manifestantes, entendiam seus motivos e com-
blema, de nos acostumarmos com coisas demais. partilhavam muitas das suas opiniões e interesses
Os paulistanos e cariocas, com o Comando Ver- gerais. Disseram também que acharam linda a
melho, o Primeiro Comando da Capital (PCC), manifestação da segunda-feira anterior, enquanto
arrastões e milícias ao longo dos anos, será que que, a do dia 20, um fracasso total.
não estão ficando habituados ao quebra-quebra? Cheguei então em casa e abri o Facebook.
Será que não estão perdendo o medo de barulho Vi que as informações não paravam de chegar.

57
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Era uma miríade de opiniões humildes, ironias Participei de duas manifestações no Rio de
vagas, desconfianças tenebrosas e certezas abso- Janeiro, ambas durante o mês de junho, em um
lutas. Discussões, textos e textos e textos, vídeos momento crucial do processo de reivindicações:
e vídeos e vídeos. Com tudo que surgiu na rede a do dia 17 de junho, que teve seu desfecho na
relativo a esse assunto naqueles primeiros dez Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj),
dias, um sujeito sério e analítico pode se ocupar e a de 20 de junho, que seguiu à Prefeitura. É
por muito tempo, talvez até o resto do ano. Esses preciso ressaltar que, apesar de estar em grande
protestos não são como os da Turquia, aonde há grupo, depositava minha confiança no senso do
um alvo pontual para a insatisfação popular. A meu namorado, já que compartilhamos a deci-
presidente Dilma Rousseff até pode estar com a são de não irmos até o fim – no sentido de não
aprovação em queda, mas passa longe de ser um nos envolvermos naquele ponto da passeata em
Erdogan (o primeiro-ministro turco, Recep Tayyip que a linha tênue entre violação de direitos hu-
Erdogan). Há quem fale em impeachment. Eu in- manos e o exercício cidadão de expressão desa-
terpreto isso um pouco como um eco de 1992; parece. Estive em ambas as passeatas desde o
aquele não foi um ano qualquer e eu, que na início, sempre combinando o encontro por volta
época ainda nem sabia ler, ainda me lembro da- de 17h.
quela situação maluca de inflação e insegurança Nos ambientes que frequentei, nos arredo-
total relativa aos rumos do país. E de como tudo res do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
parecia estar bem a partir do momento em que o da UFRJ, havia em suspenso uma certa tensão.
então presidente Fernando Collor de Mello tinha Contudo, apesar do preparo para qualquer tipo
sido botado pra correr. de situação, incluindo máscaras, vinagre, capas
Pra mim é clara a relação com o mensalão de chuva, ninguém planejou uma reação mais
(esquema de corrupção envolvendo pagamentos específica e direta, uma retaliação mais agressiva.
a parlamentares) e uma decepção. Duas décadas Na primeira manifestação, percorremos a aveni-
separam esses dois momentos emblemáticos (im- da Rio Branco sem grandes alardes. Chegamos a
peachment de Collor e mensalão) e muitos dos descansar um pouco próximo à avenida Nilo Pe-
agentes políticos da primeira época são os que çanha, mas sem de modo algum conseguir avistar
estão aí hoje. O Collor sofreu impeachment em o fim da carreata fervorosa que passava. Até que
1992, foi execrado pela mídia e opinião pública, soubemos que o fim não seria mais na Cinelân-
mas hoje está no Senado. A política brasileira às dia, que o front da manifestação queria ir até
vezes toma rumos que até o capeta duvida, só pra a Alerj. Claro que é aí que toca a sirene... Mas
depois voltar ao que era antes, como um grande meu intento era de não dispersar tão cedo, pois
hímen complacente que não cede nunca. é quando estamos em grupos pequenos que os
policiais militares atacam e ganham força. Mes-
mo assim, andei com meu namorado a passos
bem menos ansiosos que meus amigos, deixan-
“Transitamos por toda a do uma boa distância dessa galera que queria
passeata sem realmente muito ir à Alerj.
Ouvi o primeiro estouro, e logo muitos se
achar um ambiente próprio desesperaram. Conseguimos manter a calma da
às nossas reivindicações” galera apesar desse primeiro susto, pois o pânico
poderia acarretar incidentes diversos. Sentamos
Camila Falconi é moradora do Rio de Janeiro, gra- no chão gritando “calma” a todos, e aderiram –
duanda em Produção Cultural na Universidade Fede- quando cheguei em casa naquele dia soube que
ral Fluminense – UFF onde também é estagiária, além esse primeiro estouro era a invasão da Alerj, o
disso, trabalha na Galeria de Arte Patrícia Costa. primeiro molotov. Chegamos mais perto de nos-
sos amigos, mas notamos que não havia mais jei-
Confira o depoimento. to: vimos fogo e ouvimos alguns tiros. Olhei para

58
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

o meu namorado e entendemos que era para ir cape nem muito acesso a transportes. Quando
embora. Em alguns momentos corremos por vir vimos a segunda bomba de gás lacrimogêneo, e
uma multidão desesperada em nossa direção, jogada muito próximo de nós, seguimos ao me-
mas conseguimos desviar pelas ruas ou acalmar trô. Foi um sufoco. Muito exprimidos por todo o
os que passavam. Pegamos o metrô para escapar trajeto e sem muitas saídas caso um grande grupo
do problema. Percebemos que saímos na hora entrasse em pânico, sempre entoávamos palavras
certa, pois cerca de cinco minutos depois um me- de calma aos jovens que logo saíam correndo as-
nino com ferimentos de bala de borracha entrava sim que ouviam um estouro. Conseguimos pegar
carregado na estação. a estação de metrô aberta (ela foi bloqueada pou-
Na segunda manifestação, os três dias que co depois de entrarmos) e seguimos para casa.
a separaram do primeiro manifesto pareciam Chegamos exatamente a poucos minutos de tudo
semanas, meses. A galera era completamente virar um caos, como tinha sido prometido e pla-
outra. Tínhamos então o nosso núcleo, com dez nejado pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, que
cabeças, mais ou menos, mas nos sentíamos dispersou toda a multidão. Diversos amigos nos-
sós. Transitamos por toda a passeata, por toda sos ficaram presos na faculdade, ameaçados com
a avenida Presidente Vargas, sem realmente os boatos de que os policiais estavam parando
achar um ambiente próprio às nossas reivindi- qualquer transeunte e o prendendo por vanda-
cações. Alguns grupos mais nacionalistas, ou lismo. Felizmente todos chegaram bem em casa,
ufanistas, seja como for, eram compostos de após algumas horas de confinamento madrugada
meninos e meninas muito jovens, o que me adentro.
deixava muito apreensiva. Jovens adolescentes
que provavelmente nunca foram em uma pas-
seata e já participavam de uma manifestação
de um milhão de pessoas, preenchendo todo o
“Vi pessoas de todas as
centro do Rio de Janeiro. Estavam muito prosas idades que tinham em
no começo, mas poderiam facilmente entrar em
desespero. comum uma sensação: a
Outro grupo presente era o dos anarquis- coisa está demais e talvez
tas, muito preparados ao combate aberto com a
polícia, por toda a sua vestimenta e palavras de eu possa contribuir para
ordem. Não me senti muito segura ali justamente
por serem um grande alvo para ataques repres-
ela melhorar”
sores. Tinha também muitos carros elétricos, trios
Helena Ribeiro é moradora do Rio de Janeiro, gradua-
elétricos, tentando abafar qualquer grito do povo,
da e mestranda em Filosofia pela Universidade Federal
para que seus alto-falantes fizessem ouvir o dis-
do Rio de Janeiro – UFRJ e graduanda em Direito pela
curso dos respectivos partidos. Ainda havia aque-
Universidade Estácio de Sá – Unesa.
les que perseguiam pessoas com algum sinal de
ter um partido, de ser comunista ou mesmo de ser Confira o depoimento.
homossexual. Um amigo meu, com uma camisa
do Che Guevara e com um broche da Juventude Sou heterossexual; branca; ficha limpa; nun-
do PT, foi encurralado por esse grupo quando já ca fumei maconha e nunca tomei um porre... E
havíamos saído, conseguindo escapar com a aju- sou manifestante mesmo!
da de outros. Entrei nas manifestações após o dia 20/06,
Com a presença de setores intolerantes na quando soube que o governo do Rio desrespei-
passeata, ficamos receosos com a panela de pres- tara a Constituição Federal ao reprimir violenta-
são formada em torno da Prefeitura, em especial mente as manifestações. Minhas bandeiras são
porque aquela região não tem muitas vias de es- a defesa do Estado democrático de direito e a

59
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Constituição Federal. Também fui às ruas pela “Os partidos, a


queda da Proposta de Emenda Constitucional
(PEC) 37/2011 – que tornava privativa das po- academia, a polícia e os
lícias Federal e Civil a investigação sobre infra- jornalistas procuravam
ções penais, limitando a atuação do Ministério
Público, rejeitada pelo plenário da Câmara dos desesperadamente
Deputados no dia 25/06 –, pela queda da cha-
mada “cura gay” – o Projeto de Decreto Legis-
identificar, e por vezes
lativo 234/2011), o qual alterava resolução do até direcionar, líderes,
Conselho Federal de Psicologia que veta aos
psicólogos participar de terapias voltadas à alte- objetivos e pautas das
ração da identidade sexual do paciente ou que manifestações. Falharam
tratem a homossexualidade como doença, reti-
rado da pauta da Câmara dos Deputados no dia em grande medida”
03/07 – e contra a homofobia.
Eu sempre fazia o trajeto programado nas Caio Lobato é morador do Rio de Janeiro – RJ, gra-
manifestações e, se não houvesse nenhum ato duando em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia
posterior, eu ia embora, para não ficar em pé, pa- e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de
rada, esperando “seu lobo” chegar... Vi pessoas Janeiro IFCS – UFRJ e membro do Comitê Editorial
de todas as idades que tinham em comum uma da Revista Habitus – revista da Graduação em Ciên-
sensação: a coisa está demais e talvez eu possa cias Sociais da UFRJ.
contribuir para ela melhorar. Pessoas em coro Confira o depoimento.
cantando e xingando. Palavrões... como canta-
vam palavrões... até eu cantei! O que me pareceu Perdido. Sim, perdido, devo confessar, por
um ritual catártico. mais dolorido que o seja – nenhuma outra palavra
Quanto aos ditos “vândalos”, não concor- poderia descrever com melhor exatidão como me
do com suas atitudes. Considero que eram um encontrava naquele singular dia 10. Era minha
tipo “cobrador” a la Rubem Fonseca ou então era primeira participação direta nas múltiplas mani-
gente infiltrada que queria tirar a legitimidade do festações que assolaram o Brasil no mês de junho
ato democrático. De qualquer forma, não os vi e que persistiram nas semanas seguintes ainda
nas manifestações. chacoalhando com força algumas cidades. Nem
Se eu tivesse que resumir em uma frase as mesmo os mais altos catedráticos ousam afirmar
manifestações, eu diria que vi o povo defender com sua completa segurança e sisudez habitual se
os DIREITOS FUNDAMENTAIS do nosso Esta- os poucos atos que ainda teimam em prosseguir
do democrático de direito. Ainda que alguns capturando a atenção dos telejornais seriam os
não conheçam o conceito, era isso que faziam comuns e não tão temidos tremores secundários
intuitivamente. após grandes terremotos ou se são sinais precur-
De outra parte, vi muitos funcionários pú- sores de um abalo sísmico ainda maior que esta-
blicos, os policiais, “lobotomizados”, sem a me- ria por vir. Mas não nos adiantemos – façamos o
nor noção de cidadania, respeito, alteridade... que exige qualquer manual voltado a escritores
homens-máquinas programados para combater iniciantes, insistindo em relembrá-los do básico:
pessoas que não ofereciam o menor perigo à comece pelo início. Às 18h do referido dia, par-
ordem. ticipava eu de mais um encontro editorial da re-
Lembrando a terceira lei de Newton, pode- vista da qual faço parte, no Instituto de Filosofia e
mos dizer que a toda ação há sempre uma reação Ciências Sociais da UFRJ (IFCS), no Largo de São
oposta e de igual intensidade. Nesse sentido, os Francisco, centro do Rio de Janeiro. Com a reu-
políticos que nos aguardem, pois a força está ape- nião já se alongando insossamente para seu fim,
nas começando a se fazer sentir. arroguei-me o direito de, entre uma fala e outra,

60
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

puxar meu celular e teclar rapidamente uma men- Cruzando as apertadas ruas do Saara, es-
sagem de texto, enviando-a a dois destinatários: paço de comércio popular no centro do Rio po-
“Como está o ato?”. sicionado entre o já referido IFCS e a avenida
Requisitava informações a amigos sobre a Presidente Vargas, deparei-me com uma cena
passeata que se desenrolava a algumas cente- que parecia saída de reportagens de cenários de
nas de metros dali, posicionando-se fisicamente guerra. Bombas explodiam por todo o lado, jo-
na avenida Presidente Vargas e politicamente vens ativistas corriam perseguidos por várias mo-
contra o aumento de R$ 0,20 das passagens no tos policiais, nuvens de gás se espalhavam pelo
município do Rio de Janeiro. A manifestação do camelódromo. Trabalhadores recém-saídos do
dia 10 era o seguimento do que ocorrera quatro trabalho tentavam desesperadamente se abrigar
dias antes, quando, em parte incentivados pelas nas lojas, que eram apressadamente fechadas
passeatas em São Paulo convocadas pelo agora pelos comerciantes, muitos aterrorizados. Con-
já famoso Movimento Passe Livre (MPL), cerca trolando a adrenalina, continuei avançando e
de 100 ativistas se manifestaram pacificamente, cheguei à Presidente Vargas. Mais trabalhadores
no mesmo espaço, no mesmo horário e com a confusos, muita correria, dezenas de homens da
mesma pauta. Como fora informado por co- PM fechando a avenida, enquanto o barulho das
nhecidos, não muito diferente de sua inspiração bombas prosseguia.
paulista, os cariocas que protestaram no dia 6 Subitamente, deparei-me com o que iden-
foram recepcionados por bombas de efeito mo- tifiquei como os referidos black bloc passando
ral e gás lacrimogêneo disparadas pela tropa à minha frente, seguindo no sentido inverso ao
de choque da Polícia Militar do Rio de Janeiro. pretendido inicialmente pela passeata. Muito di-
Como estudante de Ciências Sociais e há anos ferente dos grupos organizados que veríamos
participante um tanto quanto flâneur de alguns chegar a algumas centenas de ativistas caracteris-
círculos variados de ativismo político no RJ, os ticamente vestidos de preto nas semanas seguin-
relatos me entusiasmaram e aquiesci em parti- tes em manifestações no Rio, os que passavam
cipar do próximo a alguns amigos. Era com es- por mim naquele instante não contavam mais do
tes que tentava me comunicar disfarçadamente que algumas dezenas de pessoas. Em sua maioria
durante a referida reunião. Duas respostas cur- abaixo de vinte anos, alguns poucos vestidos com
tas se sucederam rapidamente: “Pau comendo”; a cor negra, corriam a plena velocidade pelas lar-
“Black bloc”. gas calçadas da Presidente Vargas, acossados e
A última me deixou atônito. Diferentemente perseguidos por um grupo muito superior de po-
do agora, em que o “black bloc” estampa capas liciais empregando balas de borracha, cassetetes
de revistas de grande circulação e é tema especial e tasers indiscriminadamente e indiferentes aos
de reportagens em canal de notícias nacionais, transeuntes presos no meio do conflito.
até aquele momento só era possível observar esta Sem saber o que fazer, desorientado em
tática de luta anticapitalista a partir de vídeos, meio à confusão, liguei para um amigo, que me
textos e artigos sobre manifestações em outros atendeu prontamente. Encontramo-nos e me es-
hemisférios, além oceanos, não em nossas praias pantei que ele, também acostumado a passeatas,
tupiniquins. Ansioso para ver o que ocorria, dei estava assustado. Começou a me explicar que ti-
fim à reunião que já se arrastava e rumei rapida- nha visto a polícia iniciar o confronto, o que foi
mente à manifestação. Em meus anos de ativismo seguido por manifestantes quebrando vidraças de
desde o ensino médio, mesmo não me conside- algumas agências bancárias e de um prédio do
rando um militante e nunca tendo me filiado a Banco Central. Passamos a andar juntos, obser-
nenhuma organização, já havia participado de vando os danos feitos pelos ativistas e a ação de
dezenas de passeatas, visitado e participado de grupos do Batalhão de Choque fazendo varredu-
ocupações, chegando mesmo a ver a tropa de ras e prisões a esmo pelo agora deserto Saara,
choque em ação – nada disso havia me prepara- que estaria cheio fosse um dia como qualquer ou-
do para o que testemunharia. tro. Os manifestantes tinham se dispersado, mas

61
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

os reencontramos seguindo a Presidente Vargas. res de brasileiros, nascidos em nosso querido país
Umas poucas dezenas se aglomeravam em frente do futebol, cantando a plenos pulmões “Não vai
à Delegacia Estadual da Criança e do Adolescen- ter copa” e indo ao Maracanã aos milhares para
te, prestando solidariedade a alguns detidos para protestar em dia de jogo da seleção. Veria um
ali encaminhados. Este grupo, ao qual nos inte- dia de paralisação geral dos sindicatos com uma
gramos, multiplicar-se-ia até uma centena de pes- passeata de dezenas de milhares. Acompanharia
soas com a chegada crescente de mais ativistas. durante madrugadas a transmissão ao vivo dos
Unidos, ainda bloquearíamos por alguns minutos Ninjas e sua nova modalidade de mídia alterna-
o trânsito de quatro pistas da Presidente Vargas, tiva, cobrindo indubitavelmente melhor (nenhu-
ato pelo qual seriamos alvo de mais bombas e ma outra palavra se aplicaria) do que os maiores
tiros por parte da tropa de choque antes de en- canais de televisão. Todos estes fatos integram
cerrar a noite. apenas uma diminuta listagem do que consegui
Perdido, foi como me encontrei ao fim da- vivenciar, de forma relativamente direta, em mi-
quele dia. Estava imerso num misto de surpresa, nha própria cidade.
encantamento, animação e preocupação, senti- Perdidos. Sim, perdidos, assim deveriam se
mentos que ainda se reproduziriam amplamente confessar os partidos, os políticos, os analistas na
pelas semanas seguintes pelos múltiplos aconte- academia, a polícia nas ruas, os governantes em
cimentos. Participaria de plenárias envolvendo seus palácios e os jornalistas em suas redações
milhares de participantes de diferentes perfis e frente à onda de manifestações. Procuravam de-
ideias em tentativas de deliberar de forma demo- sesperadamente identificar, e por vezes até ten-
crática e horizontal, sem representantes, novos tavam apontar e direcionar, líderes, objetivos,
atos e os rumos do movimento. Ocorreriam três grupos, rumos, pautas. Falharam em grande me-
ocupações – duas em frente à residência do go- dida. Assim como falharam todos os grupos que
vernador e uma, ainda que muito breve, na Câ- observei em primeira mão tentando direcionar
mara dos Vereadores. Presenciaria enfrentamen- univocamente a multidão num sentido desejado,
tos com a polícia, alguns alcançando o nível de seja em passeatas ou em plenárias. Creio que há
batalhas campais chegando a envolver blindados, uma raiz em comum para os erros de agentes tão
munições de borracha e também letais, bombas, diversos: lidar com tal efervescência coletiva ten-
cassetes, escudos e tasers por parte de policiais, e tando explicá-la somente através de concepções
barricadas, estilingues, pedras, fogos de artifício, e categorias usualmente empregadas para pensar
bombas de tinta, escudos e molotovs por parte movimentos sociais e manifestações; estas con-
dos manifestantes. cepções usuais não se aplicam facilmente à nova
Haveria passeatas com centenas de milhares forma de ebulição social.
agremiando punks, anarquistas, comunistas, mili- Indico aqui apenas algumas das singulari-
tantes partidários, movimentos sociais, sindicatos, dades, incomuns para o contexto brasileiro, que
ativistas LGBTT, manifestantes independentes, se apresentam: articulação em rede pulverizada,
nacionalistas, internacionalistas, coletivos artísti- com grande uso da internet como ferramenta de
cos, velhos e jovens, direitistas e esquerdistas, os mobilização; profusão das mais inúmeras rein-
mais diversos grupos e pautas, muitas vezes até vindicações ao mesmo tempo no mesmo lugar;
mesmo contraditórios entre si. Ficaria sitiado pela ações na rua realizadas no âmbito de uma di-
polícia junto a uma centena de outros jovens den- versidade de táticas incluindo desobediência
tro de universidades federais. Observaria destrui- civil, ação direta e uso de humor e frivolidade
ção por manifestantes de carro de rede de tevê, na crítica de autoridades; união no mesmo es-
agências bancárias, ônibus, estabelecimentos co- paço de grupos e pessoas de posicionamentos
merciais, pontos de ônibus, etc. Testemunharia a políticos os mais variados; um desprezo pelas
polícia atacando pessoas indefesas, praticando formas tradicionais de política e mobilização,
prisões arbitrárias, impondo toques de recolher e compreendidas aqui como partidos, eleição de
atacando hospitais. Assombrar-me-ia com milha- representantes e lideranças formais com rituais

62
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

de investidura. Isso tudo se traduz em formas de lá se consciente ou inconscientemente, talvez se


organização que tendem a desenvolver caracte- poste para além de 68. A barricada não abre “o
rísticas como ênfase na horizontalidade e no ca- caminho”, como no original francês, mas “cami-
ráter assembleístico, divisão em grupos de traba- nhos”, no plural, sugerindo o que parece figurar
lho e tomadas de decisão por consenso. Afinal, como diversas possibilidades.
como compreender e desenvolver uma chave de É como se a sociedade, entendida da forma
análise capaz de dar conta deste novo que surge mais ampla possível, não aparecesse aos mani-
de forma multifacetada? Onde estaria o ponto festantes como algo inexorável, transcendente
de ligação entre os black blocs, missas de sétimo aos cidadãos e dotada da única e melhor forma
dia para manequins, a mídia Ninja, os cantos de possível de organização, aquela que só poderia
“acabou o amor, isso aqui vai virar a Turquia”, ser modificada por certos meios institucionais já
os palhaços com sua “Tropa de Nhoque”, as pa- instituídos. Parece que esta massa de pessoas que
lavras de ordem contra Eike Batista, as Marcha vai à rua, recusando-se a ser objeto de sentidos e
das Vadias, a tarifa zero e os enigmáticos mani- rótulos fáceis, declara categoricamente: a socieda-
festantes que apareceram aos milhares pelas ruas de é fruto de nossas próprias ações e está aberta
trajando ao mesmo tempo a bandeira nacional e a grandes intervenções imaginativas. Não à toa,
a máscara do revolucionário inglês católico Guy no centro do estopim de todos os acontecimentos
Fawkes popularizada pela HQ anarquista V de estava o Movimento Passe Livre. Esse anti-herói
Vingança? avesso a se posicionar como o líder; contendo em
Por enquanto, só vislumbro uma forma de seu núcleo mais ativo jovens, recém-ingressos nos
conciliar estes discursos e práticas fora do comum, seus vinte anos; operando de forma abertamen-
que seguem ganhando espaço e se contrapondo te apartidária; se organizando internamente com
à doxa ao encontrar vagas correspondências com destaque radical à horizontalidade e à autonomia,
as crises acobertadas que vivemos em nosso co- o que o leva a tomar decisões por consenso dos
tidiano. O tempo deu voltas e 1968 retorna a nos participantes; e dotado de uma proposta ousada,
interpelar com sua exigência: “A imaginação ao a tarifa zero, colocada fora dos programas políti-
poder”. No dia 17 de julho, continuando a onda cos cotidianos e apregoada por políticos dos mais
de protestos do mês anterior, ocorreu no bairro do diversos partidos como impossível. Não a esmo
Leblon, na zona sul do Rio, mais um ato contra o decolou: propunha novos métodos e arranjos
governador Sérgio Cabral. Não diferente de mui- para se combater velhos problemas e questões,
tos atos nas semanas anteriores, houve enfrenta- como o transporte público e o desenvolvimento
mento entre manifestantes e a polícia e depreda- democrático de projetos para a cidade.
ção de bancos e lojas comerciais – o que foi ficou Enquanto grandes mudanças mensuráveis
largamente conhecido pela profusa disseminação não aparecerem como fruto das movimentações,
nos jornais do saque ocorrido na loja da Toulon. se é que haverá tais mudanças, talvez seja isto
Em meio às barricadas erguidas durante os inters- que esse movimento – ou estes movimentos, se
tícios do confronto, dois manifestantes estendiam levarmos a sério sua pluralidade – tem de mais in-
uma faixa, prontamente fotografada e filmada por teressante a nos dizer: se trata de um laboratório,
vários dos repórteres que ali se encontravam. “A de convites para transpor e romper limites, para
barricada fecha a rua mas abre novos caminhos”. experimentar outras formas de ação, de organiza-
Ali, naquela frase escrita em garranchos de tinta ção, de democracia, de política e de sociedade.
preta em tecido branco, havia mais do que uma O Brasil se declara agora no século XXI. Cabe a
simples paráfrase dos grafites que se espalharam nós decidirmos como e em que direção isto se
por Paris naquele maio de 68. O autor, sabe-se desdobrará.

63
As ruas em movimento e a democracia direta

Entrevista especial com Bruno Lima Rocha

“Hoje precisamos de uma cultura política “O conceito dos Black Blocs é – por sua
que desconstrua lideranças carismáticas e devote natureza – pulverizado, e os governos de turno es-
ao coletivo e ao indivíduo associado, organizado tão reprimindo uma nova cultura política, apenas
em grupos de interesse ou de ideias, o protago- isso. Temos de pensar na violência sistemática da
nismo da política”, afirma o jornalista e cientista repressão de uma polícia militarizada e que en-
político. cara a população como sendo um alvo suspeito
“Precisamos de modelos democráticos nos permanente. No Brasil, a segurança é patrimonial
quais o tempo social seja compartilhado tam- e voltada contra a pobreza. A revolta das ruas é
bém com a participação política, além do lazer decorrente desta percepção, e não o contrário”,
(ócio criativo), do descanso e do processo pro- destaca.
dutivo. Isso só se assegura com a democracia Bruno Lima Rocha é cientista político, com
de tipo direto, participativo, deliberando em mestrado e doutorado pela Universidade Fede-
coletivo e formando politicamente uma ampla ral do Rio Grande do Sul – UFRGS, e jornalista
parcela da população. A democracia represen- graduado pela Universidade Federal do Rio de
tativa está superada porque a figura do tribuno Janeiro – UFRJ. É professor de Relações Interna-
como alguém acima, e não a serviço de quem o cionais na ESPM-Sul e de Comunicação Social –
elegeu, é algo próximo do absurdo. Hoje preci- Jornalismo na Unisinos.
samos de uma cultura política que desconstrua Confira a entrevista.
lideranças carismáticas e devote ao coletivo e
ao indivíduo associado, organizado em grupos
IHU On-Line – Qual foi a contribuição dos
de interesse ou de ideias, o protagonismo da
protestos pela redução do preço das passa-
política”. A análise é do professor Bruno Lima
gens ocorridos no início de 2013 em Porto
Rocha, que concedeu entrevista por e-mail à
Alegre para as manifestações que eclodi-
IHU On-Line.
ram pelo país em junho?
De acordo com o cientista político, vivemos
Bruno Lima Rocha – Total. Se não houvesse
hoje uma crise de representação, marcada pela
os protestos, aliás, organizados todos os anos a
ausência de instrumentos de democracia direta e
partir do verão de 2005, as passagens urbanas
por uma prática política voltada à governabilida-
em Porto Alegre não teriam sofrido a redução. As-
de – portanto, caracterizada pelo barramento das
sim, podemos analisar uma situação clássica. O
mobilizações sociais. “É preocupante imaginar
protesto social levou a um impasse político, con-
que as únicas esquerdas válidas para o Estado
siderando que a Justiça se viu obrigada a intervir,
brasileiro venham a ser as agrupações eleitorais
“emparedando” o prefeito José Fortunatti (PDT).
de todo tipo, as que reforçam o modelo de inter-
Repito, se não fosse a mobilização convocada
mediação, o partido de tipo burguês, ou quando
pelo Bloco de Lutas e o empenho das forças
muito uma vanguarda autoconvocada que insiste
político-sociais que o compõem, nada haveria
na ‘tática’ eleitoral”, enfatiza ele.

64
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

acontecido. Lembro-me de haver escutado nas planilhas, deram-se as condições técnicas para a
maiores emissoras de rádio do estado declara- execução de algo que já havia sido ganho na rua.
ções tanto do prefeito como do vice (Sebastião Uma ação de estilo jacobino – aliás, corretíssima
Melo, PMDB) afirmando que o aumento era ine- – como a das operações federais a respeito de
xorável. Ou seja, o Poder Executivo da capital supostos crimes contra o Estado e o mercado fi-
não retrocederia mesmo tendo a maior parte dos nanceiro, levadas a cabo pelo ex-delegado federal
votos no conselho que executa ou refuta os au- Protógenes Queiroz (hoje deputado federal pelo
mentos. Uma vez que houve esta vitória pontu- PCdoB/SP) e com o aval do juiz Fausto de Sanctis,
al, como se diz na política, “abriu a porteira”, resultou numa reversão de expectativas e na pu-
criou-se um precedente, levando o exemplo nição dos operadores policiais e jurídicos. Quan-
para São Paulo e Rio. Uma vez que o início dos do o que está em jogo é o interesse popular, só
protestos organizados pelo Movimento Passe as ruas decidem, e, por vezes, o Poder Judiciário
Livre (MPL-SP) sofreu uma brutal repressão da pode acompanhar ou o Poder Executivo vir a re-
Polícia Militar na Avenida Paulista – sendo que o verter uma decisão já tomada em função do ônus
governo de Geraldo Alckmin (PSDB) comanda a político daí decorrente.
PM e a causa tinha como alvo o aumento apro-
vado pelo [prefeito paulistano e] ex-ministro da IHU On-Line – As manifestações de junho
Educação Fernando Haddad (PT) –, percebeu-se também foram precedidas pelos protestos
a unidade política para conter as forças sociais durante a Copa das Confederações – no
e políticas (à esquerda da tal da governabilida- jogo de abertura, em Brasília, e nas parti-
de). O resultado, com o advento dos atos no Rio das seguintes do Brasil. Estes protestos pe-
– sendo que tanto o governo fluminense como diam menos recursos para os megaeventos
o carioca também são alvos de investigação e e mais recursos para a saúde e a educação.
escândalos de grande envergadura –, foi a na- Como eles contribuíram para as manifesta-
cionalização das manifestações e sua decorrente ções seguintes, organizadas principalmen-
radicalização. te pelo Movimento Passe Livre?
Bruno Lima Rocha – Esta parte da jornada de
IHU On-Line – A partir desta pressão popu- protestos é muito interessante. Os Comitês Popu-
lar e de um pedido de liminar protocolado lares da Copa iniciaram ainda em 2010 e eram
pelo PSOL, o juiz Hilbert Maximiliano Oba- coordenações de entidades de base e ativistas re-
ra, da 5ª Vara Judicial da Fazenda Pública, mando contra a maré do ufanismo advindo da
suspendeu em abril o reajuste das tarifas escolha do país como sede do evento da FIFA em
alegando “fortes indícios” de aumento abu- 2014 e do COI [Comitê Olímpico Internacional]
sivo. A decisão do magistrado tem mérito em 2016. Mas, a partir do mau exemplo e das
individual ou é um indicativo de que a voz más consequências da Copa do Mundo da África
das ruas está pressionando o imobilismo do Sul para a população mais pobre do país –
estatal? estive lá em um congresso em julho de 2012 e
Bruno Lima Rocha – Mérito coletivo. Eu sem- constatei os efeitos, além de ter contato com vasta
pre afirmei que considerava “menos utópico” literatura a este respeito –, somado ao aumento
querer estabelecer outra forma de vida em so- da navegação por internet, fazendo com que as
ciedade, querer uma revolução social ou trans- minorias organizadas tivessem uma base de re-
formação radical e profunda, do que reformar o cepção, opinando a respeito do tema para além
sistema capitalista com idealismo de tipo liberal da “futebolização” cotidiana, vimos algo inimagi-
radical ou jacobino. É certo que o juiz procedeu nável no país.
de forma correta, mas sem a pressão popular e a Nunca se imaginou um movimento de multi-
falta da legitimidade do aumento – reforçada com dões protestando contra a realização de um even-
as suspeitas sobre a nota técnica do ano anterior to esportivo no Brasil, menos ainda um evento
– e a recusa das concessionárias em abrirem suas teste para a Copa do Mundo

65
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Isto representa um câmbio na cultura política Há uma percepção de conluio e corrupção


do país, encerrando a estampa de que vivemos endêmica entre o poder político e o agente econô-
de “pão e circo” ou então do “futebol como ópio mico (como no episódio lamentável do Papódro-
do povo”. É interessante observar que tais mani- mo, conhecido também como Piscinão de Gua-
festações não eram contra o esporte como cultura ratiba), e esta ideia atravessa os protestos, assim
de massas, mas julgavam – e seguem julgando como a CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito]
– inapropriadas as exigências da FIFA e os gastos na Câmara de Vereadores [do Rio de Janeiro] a
decorrentes. respeito dos concessionários de linhas de ônibus.
Os protestos e a questão da Copa no Bra- A violência no Rio explode também em função
sil foram reforçados pelo evento do Pan-ame- da desaparição forçada do pedreiro Amarildo e
ricano do Rio, em 2007, quando o orçamento do agendamento desta luta. A palavra de ordem
estourou, as obras não foram bem feitas (vide “a polícia que reprime na avenida é a mesma que
a cobertura do estádio do Engenhão) e houve mata na favela” unifica setores importantes e gera
uma explosão de violência policial na cidade uma identidade comum.
do Rio e em sua área metropolitana (conhecida
como Rio Body Count). Ah, não podemos nos IHU On-Line – Dentro desta perspectiva, é
esquecer da tentativa de demolição do conjun- possível apontar para onde a democracia
to arquitetônico do Maracanã (Estádio Célio representativa irá nos levar?
de Barros, Parque Aquático Júlio Delamarque, Bruno Lima Rocha – Para onde já estamos.
Aldeia Maracanã), cuja resistência ganhou vi- Uma crise de representação, a ausência de meca-
sibilidade e expôs relações pouco ou nada or- nismos de tipo democracia direta – por isso a tra-
todoxas entre o Poder Executivo do Rio e os gédia da ausência dos elementos de democracia
grupos interessados na gerência da obra após eletrônica de forma plebiscitária que constavam
sua privatização. Mudou a pauta do país, e isso no relatório original da reforma política – e o re-
é uma vitória do movimento popular e mérito forço da lógica do descolamento do representante
dos pioneiros que organizaram os Comitês Po- para os supostos representados. Infelizmente, no
pulares da Copa. jogo real, assume-se a máxima que “voto é ma-
rketing, o resto é política”. A democracia repre-
IHU On-Line – Este conjunto de manifesta- sentativa gera o pacto pela tal da governabilidade
ções tem alguma relação com os protestos e necessita do estancamento das mobilizações
realizados em outubro em São Paulo e no populares.
Rio de Janeiro, marcados pela violência?
Bruno Lima Rocha – Sim, tem sim. Observe-se IHU On-Line – E a violência poderá nos le-
que, no Rio, a luta se qualifica com a junção do var para onde?
Sindicato Estadual dos Profissionais em Educa- Bruno Lima Rocha – A violência policial elevou
ção (SEPE) e os manifestantes de junho. O au- o nível de protesto no Brasil e isso pode implicar
mento da violência policial eleva a capacidade de uma escalada repressiva e de perseguição política
resposta da utilização da tática conhecida como como a que já estamos vivendo em forma inicial
“Black Bloc”. Já em São Paulo, os protestos aqui no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro.
mais populares têm o perfil típico da revolta das É preocupante imaginar que as únicas esquerdas
periferias ou então dos movimentos em defesa da válidas para o Estado brasileiro venham a ser as
moradia. Não posso esconder o fato de que, por agrupações eleitorais de todo tipo, as que refor-
vezes, são convocados protestos de forma desvin- çam o modelo de intermediação, o partido de
culada da luta popular mais cotidiana (como a tipo burguês, ou quando muito uma vanguarda
dos trabalhadores em educação), mas, se tomar- autoconvocada que insiste na “tática” eleitoral. O
mos o Rio como epicentro da continuidade após conceito dos Black Blocs é – por sua natureza
julho, a situação lá se assemelha ao narrado no – pulverizado, e os governos de turno estão re-
filme Tropa de Elite 2. primindo uma nova cultura política, apenas isso.

66
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Temos de pensar na violência sistemática da re- Bruno Lima Rocha – São dois temas distintos.
pressão de uma polícia militarizada e que enca- Já afirmei em outras ocasiões que o anarquismo
ra a população como sendo um alvo e suspeito organizado, o anarquismo que se manifesta atra-
permanente. No Brasil, a segurança é patrimonial vés da Coordenação Anarquista Brasileira (CAB),
e voltada contra a pobreza. A revolta das ruas é é diretamente responsável pela existência mesma
decorrente desta percepção, e não o contrário. das manifestações. Não se trata de hegemonia,
mas de influência, de participação direta, de tra-
IHU On-Line – A democracia representativa balho de base de no mínimo uma década, de ha-
está superada? ver insistido na rearticulação do tecido social mes-
Bruno Lima Rocha – Sim e não. Não está por- mo durante o “co-governo” atual (Lula e Dilma).
que é um instrumento considerado válido pela Esta é a contribuição do anarquismo conhecido
maior parte das forças políticas. E sim porque esta como de linha especifista, ou organicista, ou or-
democracia não garante o mando do povo (demo ganizado politicamente.
+ cratos) como nos explicam os radicais gregos Já o emprego da tática conhecida como
do termo. Precisamos de modelos democráticos Black Bloc não passa pelas federações ou co-
nos quais o tempo social seja compartilhado tam- letivos filiados na CAB, mas sofre influência da
bém com a participação política, além do lazer transmissão de símbolos advindos da chamada
(ócio criativo), do descanso e do processo pro- autonomia europeia, que depois deriva para os
dutivo. Isso só se assegura com a democracia de protestos antiglobalização (como Seattle 1999
tipo direto, participativo, deliberando em coletivo e Gênova 2001) e assume o emprego atual. As
e formando politicamente uma ampla parcela da denúncias da violência cotidiana são parte cons-
população. A democracia representativa está su- titutiva do pensamento anarquista desde sua es-
perada porque a figura do tribuno como alguém truturação na ala federalista da 1ª Associação In-
acima, e não a serviço de quem o elegeu, é algo ternacional dos Trabalhadores (AIT, 1864-1871),
próximo do absurdo. Hoje precisamos de uma quando o pensamento político que entende a
cultura política que desconstrua lideranças caris- liberdade individual e coletiva como confluentes
máticas e devote ao coletivo e ao indivíduo asso- com a justiça social e a igualdade de direitos se
ciado, organizado em grupos de interesse ou de expressa por dentro das lutas operárias e popu-
ideias, o protagonismo da política. lares da época. Como o anarquismo também é a
expressão ideológica do antimilitarismo, este con-
IHU On-Line – É possível conceber um mo- junto de ideias fornece os elementos para expres-
delo de organização política democrática sar estas denúncias.
sem a presença de partidos?
Bruno Lima Rocha – Sem partidos de tipo bur- IHU On-Line – Como se manifestam as vio-
guês, de tipo intermediário, sim. Sem vanguardas lências praticadas pelo Estado e pela orga-
autoeleitas e autoimbuídas da liderança da classe nização do capital no cotidiano?
ou qualquer outra sensação semelhante de “des- Bruno Lima Rocha – Creio que parte desta per-
tino histórico”, também. Sem minorias organiza- gunta eu respondi antes. Mas posso reforçar que
das, ideológica e politicamente organizadas, não. o modelo pós-fordista, que nos obriga a trabalhar,
Precisamos de organizações políticas não eleito- estar conectados, estudar em turnos extras e fazer
rais para que a população entenda que a política cursos de formação infindáveis, acaba operando
pode estar a serviço das maiorias, trabalhar para como elemento de violência, sujeitando os sen-
organizar o tecido social e não tomar proveito de tidos, uma versão cibernética do que Foucault
suas expressões sociais. conceitua como a subordinação dos corpos para
o mundo do trabalho – ou para a ação militar. As
IHU On-Line – Qual é a contribuição do violências do Estado no cotidiano são visíveis, e
anarquismo para as manifestações de ju- por isso mesmo os brasileiros têm uma péssima
nho e de outubro? apreciação das polícias visíveis. Já o mundo do

67
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

trabalho nos força a pensar de forma individual, IHU On-Line – Gostaria de comentar algum
nos atomiza, nos fragmenta, gera a “individua- ponto adicional?
ção”, fruto da fragmentação social. Eu diria que a Bruno Lima Rocha – Entendo que o debate a
violência do modelo pós-fordista é mais constran- respeito da soberania popular e do destino cole-
gedora do que a violência física da repressão poli- tivo está seriamente ameaçado pela crescente cri-
cial ou das formações paralelas, como as redes de minalização dos protestos sociais no Brasil. É pre-
narcotráfico ou os para-policiais (a exemplo das ciso atenção sobre o tema e um posicionamento
milícias no Rio). político. 2014 não será um ano tranquilo para o
país, em todos os sentidos.

Por Luciano Gallas

68
“A juventude está protagonizando um dos maiores
movimentos da década, mas tem os seus erros”

Entrevista especial com Jorge Barcellos

“A luta política vai continuar. Os movimentos uma verdade – a da imprensa – por outra – a do
de jovens não vão parar. A parcela radical po- movimento, considerada ‘a’ verdade”, ressalta.
derá ter momentos de recuo, mas retornará logo Apesar de todas as críticas, Jorge Barcellos
em seguida. É que a estratégia do movimento é reconhece a importância do movimento: “Para
a mesma dos revoltosos de 1789, a da ofensiva mim, a juventude está protagonizando um dos
permanente. No que vai dar, eu não sei”, afirma maiores movimentos da década, mas tem os seus
o Coordenador do Memorial da Câmara Munici- erros. O Estado tem diante de si a oportunidade
pal de Porto Alegre. única de ‘ouvir os anseios do povo’, mas precisa
“Os movimentos das ruas são importantes, parar para ouvir”, pondera.
sua consciência é notável, mas a adoção de for- Jorge Alberto Soares Barcellos é licenciado
mas de violência, seja qual for o motivo, introduz e bacharel em História pela Universidade Fede-
os seus atores no campo da guerra. Esse é o meu ral do Rio Grande do Sul e mestre e doutor em
limite para as manifestações das ruas: elas só têm Educação pela mesma universidade. Possui expe-
legitimidade se são pacíficas, se não cedem à vio- riência de magistério nos ensinos médio e supe-
lência de Estado”, afirma Jorge Barcellos, profes- rior, além de publicações nas áreas de história,
sor e coordenador do Memorial da Câmara Mu- educação e política educacional. Atualmente é
nicipal de Porto Alegre, em entrevista por e-mail à Coordenador do Memorial da Câmara Municipal
IHU On-Line. Ele tem uma postura muito crítica de Porto Alegre, onde é responsável pelo projeto
em relação àquilo que considera excessos das Educação para Cidadania. É membro do Con-
manifestações de ruas que ocorreram em todo o selho da Escola do Legislativo Julieta Battistioli,
Brasil, mas se debruça, particularmente, sobre os da Câmara Municipal, e professor convidado do
eventos ocorridos na capital gaúcha. Studio Clio e do Sistema de Ensino Galileu (SEG).
Jorge Barcellos considera que a violência Recebeu a Menção Honrosa do Prêmio José Reis
das ruas gera uma sociedade fascista. Para ele, a de Divulgação Científica e o Troféu Expressão da
falta de diálogo entre Estado e manifestantes gera FINEP, ambos em 2006, pelas atividades do Pro-
um círculo vicioso no qual os argumentos de am- jeto Educação para Cidadania da Câmara Muni-
bos os lados levam sempre a uma discussão em cipal de Porto Alegre, sob sua coordenação.
que todos são vítimas e algozes. Por outro lado, Confira a entrevista.
argumenta que a questão emergente diz respei-
to à relação entre os manifestantes e a imprensa. IHU On-Line – Existem limites às mani-
“Minha questão não é a relação entre os manifes- festações? Até onde vai a legitimidade do
tantes e o Estado, mas entre os manifestantes e a manifesto?
imprensa. Essa falta de diálogo é que me preocu- Jorge Barcellos – Primeiro, minha interpreta-
pa. (...) O problema é justamente esse, substituir ção é apenas como observador. Não tenho par-

69
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

ticipado dos manifestos nem de qualquer grupo grupos violentos fizeram uso da mesma retórica
organizado. O que talvez seja uma vantagem, libertária: não é quebra-quebra, é estética.
pois minha posição aproxima-se daquilo que os
antropólogos chamam de “estranhamento”, isto
é, frente ao envolvimento intenso dos atores, re- Estética e guerra
velado pela intensidade das manifestações, tal-
vez um olhar de fora ajude a compreender as Ora, não me parece consolidada hoje sequer
características dos movimentos. Acredito que, a ideia de uma arte contemporânea ou Body Art,
para compreender os limites das manifestações, veja-se o debate em torno da exposição Sensa-
devemos procurar entendê-las a partir de um tion, a qual tentou também romper a barreira dos
referencial adequado. A teoria sociológica clás- limites, com seu tom mórbido, com sangue huma-
sica, evidentemente, não é suficiente para dar no e cadáveres de animais. A primeira questão
conta da energia social posta em ação. Eu diria colocada foi: isto é arte? Do mesmo modo, ape-
que para um movimento pós-moderno é preciso lando à violência ou cedendo de alguma forma a
uma teoria pós-moderna. Por isso eu prefiro ten- ela, a questão que se coloca é: isto é contestação?
tar entender o movimento das ruas – movimento E, de igual maneira, o que estava em jogo na
de junho, as manifestações, ou como quer que o arte: chamar a atenção de forma disruptiva para
denominemos genericamente – a partir de ou- transformá-la mais uma vez em ativo financeiro, e
tras categorias e contribuições de autores não não é por outra razão que obras de arte passaram
muito comuns na sociologia. a ser um dos investimentos do sistema bancário.
Por exemplo, se tomamos o pensamento de Assim, as contestações que ultrapassam o limite
Paul Virilio, arquiteto e instigante filósofo francês, da sociabilidade e caem na violência, transfor-
autor de El procedimiento silencio (Buenos mam o movimento social em outra coisa. E, da
Aires: Paidos, 2001), que fez reflexões sobre a mesma forma que Jacques Ranciére – outro autor
função da guerra e a militarização da vida coti- que se coloca ao lado destas perspectivas ditas
diana, não é paradoxal que, no dia seguinte aos pós-modernas – sentenciou que a arte modernis-
primeiros quebra-quebras protagonizados pelos ta só foi modernista porque anunciou uma aber-
Black Blocs, moradores e pequenos comerciantes tura do tempo e a imagem de uma nova socieda-
tenham adotado a transformação de seus espaços de possível, que tipo de sociedade a violência das
em bunkers, os mesmos descritos por Virilio em ruas – aqui, nossa ultrapassagem de limites – en-
seus trabalhos? Não é notável esta transformação carna? Minha resposta é: uma sociedade fascista.
do espaço urbano? As paliçadas ainda estão lá,
na Borges de Medeiros e, é claro, principalmente IHU On-Line – Considerando os diversos
no prédio onde mora o Prefeito? Por quê? Porque programas sociais e de desenvolvimento do
para Virilio a guerra se faz por si própria e pela Estado – Bolsa Família, Prouni, PAC, etc.
percepção, e toda a batalha implica em um cam- –, o Brasil apresenta, em relação a outros
po e em métodos de percepção que permitam períodos, um cenário favorável do ponto de
tanto o ataque quanto a defesa. Minha interpre- vista econômico e social. Por que surgem
tação é, nesse sentido, bastante conservadora: os manifestações neste ambiente?
movimentos das ruas são importantes, sua cons- Jorge Barcellos – Uma obra recente que trata
ciência é notável, mas a adoção de formas de dos avanços sociais nos governos Lula e Dilma foi
violência, seja qual for o motivo, introduz os seus organizada por Emir Sader e chama-se 10 anos
atores no campo da guerra. Esse é o meu limite de governos pós-neoliberais no Brasil (São
para as manifestações das ruas: elas só têm legiti- Paulo: Boitempo Editorial, 2013). Nela está des-
midade se são pacíficas, se não cedem à violência crito o significativo avanço no campo social com
de Estado. Se o fazem, elas introduzem a lógica a inclusão de 16 milhões de famílias no mercado
da guerra no interior das cidades. Por isso, muito de consumo moderno. É claro que tal inclusão
cedo, dentro da lógica de ultrapassar os limites, os perde valor se não estiver associada a espaços de

70
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

criação de renda. Por esta razão a agenda macro- tralidade do movimento. Primeiro, pelo incentivo
econômica da reindustrialização é ainda central, de partidos ou a possibilidade de militar em um.
e o crescimento positivo, ainda que decrescente
(2003 a 2006: 3,5; 2007-2010: 4,6; 2010-2012
despencando de 2,7 para 1,0), e a intervenção do Partidos
governo na taxa de juros revelaram uma econo-
mia conduzida adequadamente – dentro de um Não nos enganemos, nestas práticas políticas
contexto saído da crise de 2008. Quer dizer, não ainda predominam a organização em rede, quer
estávamos tão mal na economia, houve o efeito dizer, práticas militantes que alimentam o forneci-
de minimizar no social eventuais perdas. Isto é, mento entre sociedade e partidos, entre dirigen-
poderia ter sido pior. Não foi por intervenção do tes, militantes e simpatizantes, de um continuum
governo. No que se refere às classes mais baixas, onde as relações são porosas. “O Partido se apoia
já que indicadores apontam para uma redução da em redes relacionais que se entrecruzam”, diz Fre-
taxa da pobreza de 26,7% em 2006 para 12,8% deric Sawicki, notável cientista político. Para mim
em 2008. A classe média, para falarmos nos gru- trata-se de outra forma de recrutamento, proces-
pos mais próximos do movimento das ruas, ele- so de consolidação de relações entre grupos que
vou-se de 38% para 52% da população. colaboram entre si para um projeto, ainda que de
modo indireto. Arriscaria dizer que, indiretamen-
te, este movimento está buscando fortalecer a
Dois grupos extrema-esquerda (PSOL e assemelhados) como
alternativa ao PT, ex-esquerda e agora centro –
Uma razão que eu encontro para a emergên- esquerda – numa visão otimista. É o tipo de rede
cia das manifestações é o fato de que beneficiá- de consolidação apontada por Sawicki no pensa-
rios das políticas sociais e manifestantes integram mento do politicólogo francês Michel Dobry, pois
o mesmo grupo. O que é uma obviedade, já que relaciona grupos sociais inicialmente separados.
podemos localizar nos rincões os beneficiários O que as manifestações não querem é assumir
das políticas públicas – além, é claro, no círculo seu laço com a extrema esquerda e seu projeto de
das periferias urbanas, e no centro das cidades oposição ao atual governo. Isto não é suficiente
mais desenvolvidas o movimento das ruas. Ainda para explicar o movimento, reconheço, mas é um
vejo como um movimento no qual predominam dos pontos que eu considero chave.
universitários, a maior parte insatisfeita, de for-
ma geral, com as políticas públicas. Preocupa-me, IHU On-Line – A crítica presente nas ma-
no entanto, a força que adquiriu no seu interior nifestações se referia ao modelo de demo-
o movimento anarquista. Como um movimento cracia representativa em si ou às práticas
de classe média urbana, a juventude universitária políticas?
que ocupa as ruas representa, por outras razões, Jorge Barcellos – Evidentemente, trata-se de
o retorno dos estudantes, como fizeram em 1964, uma crítica de senso comum às práticas políticas.
não contra um Estado autoritário e a censura, Não vejo sucesso em um movimento que critique
mas contra um Estado que beneficiou os pobres o modelo de democracia que instalamos, deseja-
somente. Eu diria: uma classe média afastada da mos e estamos construindo. Não estamos sequer
pobreza não viu as melhorias sociais. Claro que deixando de considerar que é uma democracia
foram num contexto populista, com problemas imperfeita, uma democracia em que parte da po-
de mudança de condição de vida, etc. Mas, em lítica não faz o seu papel, mas que é a democra-
1964, eram jovens marxistas nas ruas; hoje são cia representativa que temos. A crítica é senso co-
jovens anarquistas. Minha pergunta é: por que mum porque recolhe do imaginário dos meios de
o anarquismo emergiu triunfante? A razão que comunicação de massa os fragmentos de crítica
encontro é que os anarquistas encontraram um no ar – corrupção, roubalheira, do que estão jus-
notável espaço de manobra para assumir a cen- tamente ausentes toda a referência aos avanços

71
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

sociais. É a matéria de expressão – para usar uma dos universitários, mas minha posição é bastan-
frase da psicanalista Suely Rolnik – apropriada te conservadora. Minha questão é se seu lado
pelas massas de forma acrítica. A minha observa- progressista é suficientemente forte para superar
ção é que o componente de crítica ao modelo de o seu lado reacionário. Vejamos pontos pouco
democracia representativa existia apenas naque- abordados nas análises do movimento. O filóso-
les grupos anarquistas mais radicais. E de fato, fo e urbanista Paul Virilio, desde Guerra Pura: a
observando algumas páginas de diretórios acadê- militarização do cotidiano (São Paulo: Brasi-
micos de universidades, ainda no início do ano, liense, 1984), tem caracterizado o uso de estra-
chama a atenção que alguns já estavam estudan- tégias militares no meio urbano. Para ele, não é
do a questão da auto-organização, por exemplo. necessário portar armas para ser um militar, bas-
É notável que os grupos se arrisquem a criticar ta experimentar a mentalidade militar: “Sem o
a democracia representativa, pois o contra-argu- saber, já somos todos soldados civis. E alguns de
mento em voga no pensamento moderno é jus- nós sabem disso. O grande golpe de sorte, para
tamente o de que o capitalismo hoje não precisa o terrorismo da classe militar, é que ninguém o
mais de democracia. reconhece. As pessoas não reconhecem a par-
te militarizada de sua identidade, de sua cons-
ciência”. Em sua obra posterior,Velocidade e
Democracia representativa Política (São Paulo: Estação Liberdade, 1996),
Virilio aponta como elemento da mentalidade
O filósofo esloveno Slavoj Zizek disse isso do militar o “modo de movimento nas cidades”. Ele
caso chinês, no que é acompanhado pelo escritor observa que Engels caracterizou a vida de Pa-
alemão Ingo Schulze ao pé da letra. Não dá para ris nas ruas do século XIX como sendo “onde a
arriscar questionar justamente a validade ética da vida circula mais intensamente”. Por essa razão,
democracia representativa, pois a alternativa é os contingentes revolucionários tendem a nascer
muito pior. A crítica só pode ser entendida como não nos locais de produção, como fábricas, mas
um oportunismo radical da extrema esquerda nas ruas das cidades: “a massa não é um povo,
que ideologiza o debate político de parcelas da mas uma multidão de passantes”, diz Virilio.
juventude e o capitaliza em seu benefício para Assim foi em Porto Alegre com a tomada,
questionar o status quo. É claro que a democracia pelo movimento da juventude, de ruas e aveni-
representativa possui limites, dados justamen- das pensadas como espaços de ocupação e/ou
te pelas práticas políticas. Mas há um notável enfrentamento. Décadas atrás, num dos piores
avanço no combate à corrupção, no incentivo à momentos da história, dizia Joseph Goebbels a
atuação fiscalizadora das prefeituras, nos portais esse respeito: “quem conquistar a rua, conquis-
de transparência, nos processos levados a cabo tará também o Estado”. Por isso o primeiro terri-
pelo Ministério Público, a própria transparência tório de ocupação dos jovens manifestantes foi o
existente na Lei do Orçamento, na participação asfalto, vias como as Avenidas Borges de Medei-
para a elaboração de emendas, etc. ros, João Pessoa e Ipiranga. Para Virilio, a estra-
tégia de ocupar as ruas é sempre militar e aqui
IHU On-Line – O fenômeno das manifesta- cumpre um papel paradoxal, já que na luta pelo
ções de 2013 reinaugurou uma prática polí- transporte é a própria massa de estudantes que se
tica que foi muito vigente durante o regime torna o primeiro transporte coletivo, definindo a
militar – as marchas nas ruas. No entanto, cidade como seu front de batalha. As massas de-
possui características particulares corres- sesperadas de Engels que em 1848 “reclamavam
pondentes à nossa época. O que se mantém pão, trabalho ou morte” foram substituídas pelas
daquele período e o que é exatamente novo? massas estudantis que reclamam por “transporte,
Jorge Barcellos – Gostaria de analisar a mani- saúde, educação”.
festação que envolveu a Câmara Municipal, espa- Diz Virilio, “já é tempo de se render às evi-
ço onde trabalho. Lamento contrariar a maioria dências: a revolução é movimento, mas o movi-

72
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

mento não é uma revolução”. A invasão do legis- dade do Estado, autoritarismo das corporações,
lativo inaugura uma nova etapa nessa estratégia, numa relação que faz de ambos vítimas e algozes.
a da conquista das instituições. Ela foi marcada Sinto pela perda de um trabalho no campo dos
por uma sociabilidade interna festiva e dionisía- direitos humanos que parcela da polícia fazia e
ca, com seus momentos de festa, congraçamen- que depois dos movimentos e reações ficou desa-
to e alegria, como descreve o sociólogo francês creditado. Agora, minha questão não é a relação
Michel Maffesoli em sua obra O Nascimento entre os manifestantes e o Estado, mas entre os
das Tribos (São Paulo: Editora Forense Univer- manifestantes e a imprensa. Essa falta de diálogo
sitária, 2006), a qual se contrapunha uma mili- é que me preocupa. Achar que Zero Hora é um
tarização no melhor estilo SS, com controle de veículo burguês apenas, é uma visão simplificada.
acesso externo do prédio do legislativo, uso de É obvio que há jornalistas de todos os matizes, que
rádios de comunicação, fiscalização da entrada há uma luta interna, e negar o diálogo em nada
e saída de funcionários, rondas internas e ad- acrescenta ao movimento social. Ao contrário, há
ministração dos fluxos da cidade no parlamen- interessantes dissensos entre os jovens justamente
to, frente a uma Guarda Municipal estupefata. É nesse ponto, uma vez que houve manifestações
preocupante o fato de que um movimento social de lideranças publicadas na ZH, contrariando seu
sinta-se no direito de impor o custo de suas ope- discurso. Essa questão ficou evidente também no
rações às instituições – na invasão do parlamen- caso da Câmara Municipal.
to, a paralisação das atividades, o desrespeito
aos símbolos do legislativo – porque o gesto é
expressão da apropriação do conceito de “dano Imprensa
colateral”.
Zygmund Bauman, em Danos Colaterais Depois de invadirem o plenário, os jovens
(Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2013), lembra que realizaram a assembleia do movimento e o pri-
esse é outro ingrediente da “mentalidade militar”, meiro encaminhamento foi a questão do controle
definido pelo menosprezo dos efeitos de uma da informação. Ela deveria ser transparente entre
guerra particular pelos organizadores. Bauman os participantes, entre os integrantes do bloco, daí
alerta para o detalhe de que tal posição é sempre a necessidade formal de apresentação e vedado
duvidosa, os “danos” acontecem ou porque não o seu acesso à imprensa tradicional, acusada de
foram previstos pelos organizadores, ou porque manipuladora e ideologicamente comprometida
foram considerados “menos importantes” e cujo com o capital. Pela apresentação dos participan-
sacrifício é considerado suportável pelos movi- tes, ficamos conhecendo os integrantes do movi-
mentos. Neste instante, o movimento projetou so- mento: Federação Anarquista Gaúcha, Frente Na-
bre si mesmo o espelho de sua desaparição. É que cional dos Torcedores, Frente Autônoma, Centro
para o filósofo esloveno Slavoj Zizek, a violência de Cultura Libertária do Bairro Azenha, Centro
simbólica é muito mais grave que a real, o que na de Estudantes de Ciências Sociais, Coletivo Va-
Câmara foi representado pelo congelamento de mos à Luta,Unidos pra Lutar, estudantes de di-
sua soberania. Fim do espaço dos representantes. retórios acadêmicos da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul – Ufrgs.
IHU On-Line – A falta de diálogo entre os Alguns estudantes apresentavam-se como
manifestantes (caracterizado nos mais vio- integrantes de três movimentos sucessivos, e ou-
lentos) e o Estado (caracterizado na polí- tros de outras cidades, como Campo Bom e Novo
cia) é sintoma de que tipo de relação? Que Hamburgo. Grupos de todos os perfis e ideolo-
desafios estão postos à convivência destes gias: Grupo Anarco-Feminista, Levante Popular
dois entes? da Juventude, Coletivo Ovelhas Negras, Coletivo
Jorge Barcellos – Esta falta de diálogo já foi Kizomba, Coletivo Putinhas Aborteiras e estudan-
bem caracterizada pelos analistas de plantão. Os tes dos cursos de ciências sociais, odontologia,
argumentos já fazem parte do debate: insensibili- comunicação, biologia, engenharia e de cursos

73
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

pré-vestibulares. Havia também professores e lência. Somente isso nos dá condições de exigir
pelo menos um servidor da área de saúde. do Estado repressão aos seus agentes, somente
Mas como fazer uma democracia baseada isso dá condições de cobrar das autoridades paci-
no controle da difusão de informações? Rodrigo ficação. Como garantir o direito de se manifestar,
Brizola, da Frente Autônoma, apregoa na assem- se os mesmos jovens que foram vítimas da trucu-
bleia que só ficariam os meios de comunicação lência das abordagens policiais, por breves instan-
com os quais o grupo “tenha confiança”. A partir tes reproduziram as estratégias de seus algozes no
daí tomar o poder passa pelo controle da infor- interior do legislativo? As cenas são conhecidas:
mação e impedir o acesso da “mídia tradicional” um fotógrafo agredido, um presidente intimidado,
é referendado pelos inúmeros coletivos presentes. um parlamento isolado, símbolos ultrajados.
A recusa da “mídia tradicional” não é hegemôni- Estas ações são a atualização da invasão do
ca: Matheus Gomes, do DCE da Ufrgs e integrante Palais Royal, de Paris, mas enquanto no Ancien
do movimento, publica no dia 19 de julho artigo Régime a tomada da moradia do rei significava
de opinião em Zero Hora, na “mídia burguesa” a tomada do Estado, a tomada do plenário da
que critica. Assim como a função dos sans-culottes Câmara significou a privatização por uma classe
durante a revolução francesa era exercer a dela- do espaço da soberania popular. As imagens de
ção de suspeitos, vigiar bairros e imóveis, efetuar violência que circularam na Internet mostram, na
prisões, os novos revolucionários outorgaram-se expressão do sociólogo francês Jean Baudrillard,
a si a tarefa de controle da imprensa livre. Isso é que “transgredimos tudo, inclusive os limites da
um problema. cena e da verdade”. A tentativa de invasão da
Por outro lado, os jovens fizeram a grande re- TV Câmara por “suspeita” de servir de abrigo a
volução da informação ao criarem seus próprios jornalistas e a expulsão de jornalistas do prédio
veículos de comunicação via Internet. Com suas da Câmara ocorre nesse contexto de exercício e
páginas no Facebook e a criação de um canal de legitimação da violência e de controle da infor-
televisão online (Catarse.com), os jovens fizeram mação, intimidando funcionários e trabalhadores.
sua revolução particular no modo de organização
dos movimentos sociais. A partir de agora, todo
movimento social deve aos jovens uma nova for- Redes Sociais
ma de difusão de informações em tempo real.
Mas o problema é justamente esse, substituir uma Nas redes sociais, o movimento partiu para
verdade – a da imprensa – por outra – a do mo- a justificação de seus atos em nome da “causa”,
vimento, considerada “a” verdade. Onde fica o criticando as “supostas” vítimas. Suspeito que a
direito à livre interpretação? vinda de autores como o filósofo esloveno Slavoj
Zizek a Porto Alegre tenha criado o fermento radi-
IHU On-Line – A polícia continua presa às cal nas lideranças locais da extrema esquerda. Ao
práticas do século XX? Quais sãos os de- invés ouvirem o que sua crítica cultural ao capital
safios em relação à garantia da segurança tem de construtivo para a uma nova interpretação
pública e do direito de se manifestar? do mundo, preferiram as suas passagens que elo-
Jorge Barcellos – Para começar, consideremos giam a violência. “O projeto comunista do século
o poder de polícia da própria Câmara no seu in- XX era utópico precisamente na medida em que
terior: ele foi zero. A conquista do prédio da Câ- não era suficientemente radical (grifo meu)”, diz
mara foi uma vitória simbólica, já que a guerra “é Zizek. Pior, ele insiste que essa resistência deve
a continuação da política por outros meios”. Mas incluir o uso do terror: “Lembrem-se da defesa
o fato de que tenham conseguido fazer o desloca- exaltada do Terror na Revolução Francesa feita
mento do movimento das ruas para às instituições por Badiou, na qual ele cita a justificativa da gui-
não significa que tenham tido sucesso em sua re- lhotina para Lavoisier: “A República não precisa
volução. Para mim, novamente, a garantia do di- de cientistas” diz Zizek. Não é o que vemos no
reito de se manifestar exclui a possiblidade de vio- interior dos movimentos de jovens quando é tole-

74
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

rada a sua violência no legislativo sob a alegação autêntico, mas tem contradições. Há muitos gru-
de que a do Estado é pior? Nenhuma violência pos no seu interior disputando a hegemonia e se
pode ser tolerada de nenhum lado, essa é a ques- alimentando das mais diferentes ideias. Sua es-
tão. Por isso a retomada pelo Estado dos objeti- tratégia é clara: sair das ruas para as instituições.
vos e fins da sua estrutura policial é um ponto da Os “erros” do movimento precisam se avaliados
agenda política. internamente pelos jovens e pela sociedade. Os
Projetos de direitos humanos no interior da jovens querem uma revolução sim, é seu direito,
corporação precisam ser efetuados, qualificação suas reivindicações são legítimas, mas a tomada
de seus membros naquilo que se convencionou do legislativo nada mais foi do que o “desvio do
chamar de bases da segurança pública coletiva velho assalto social” (Virilio), uma tomada abrup-
precisa ser reforçada. Não se admite que a cor- ta do espaço do poder, mas isso não significa a
poração permita que a mentalidade da “caçada” tomada do poder.
ressurja das cinzas no seu interior. Ela foi frequen- Reconhecimento público tem relação com
te no antigo regime, na repressão aos movimen- isso, solidariedade e negociação, estabelecer rela-
tos sociais e foi substituída pelas estratégias de ções com o diverso, fundamento da política nega-
controle a distância. Policial armado com balas do pelo movimento anarquista. Não posso negar
de borracha que fere manifestante tem de ter pu- a existência do Estado simplesmente porque sei
nição exemplar porque a agressão desvirtua as exatamente como funciona uma sociedade sem
finalidades do distanciamento que o controle das Estado: basta ver o que ocorre nas regiões mais
massas exige. Mas não é admissível ver policiais pobres do centro africano ou do extremo oriente.
que socorrem vítimas serem agredidos, como um Tenho reforçado a ideia de que os jovens devem
policial da capital no meio de manifestação. ser os primeiros a se mobilizar para a construção
de políticas sociais, de fortalecimento da função
IHU On-Line – Que alternativas são possí- social do Estado, o que não é feito no contexto da
veis para alcançarmos o “reconhecimento violência. O notável ativismo político deve fundar
mútuo” proposto por Richard Sennet? as novas discussões via redes de Internet sobre
Jorge Barcellos – Este é um autor que tem mui- problemas e suas soluções.
to a dizer sobre os movimentos. Lembro da per-
gunta de uma colega simpatizante do movimento: IHU On-Line – Que respostas o Estado deu
“De que lado você está?” O sociólogo america- desde as manifestações de junho? Na sua
no Richard Sennet em Juntos: os rituais dos avaliação, por que alguns grupos mantêm
prazeres e a política da cooperação (Rio de ações sistemáticas?
Janeiro: Record, 2012) critica justamente isso, o Jorge Barcellos – Para mim, a luta política vai
autoritarismo presente na obrigatoriedade de se continuar. Os movimentos de jovens não vão
decidir por um lado sem avaliação, pois a partida- parar. A parcela radical poderá ter momentos de
rização da vida política é responsável pela men- recuo, mas retornará logo em seguida. É que a es-
talidade do “nós-contra-eles”, justamente o que tratégia do movimento é a mesma dos revoltosos
ocorreu nas redes sociais em Porto Alegre. Como de 1789, a da ofensiva permanente. No que vai
Zizek sugere em Bem vindo ao deserto do real dar, eu não sei. Espero que o desejo democrá-
(São Paulo: Boitempo, 2003), na opção entre a tico dos jovens seja vitorioso, mas temo que os
pílula azul e a vermelha tornada famosa na cena jovens possam dar espaço para as características
do filme Matrix, a obrigação de optar entre fan- autoritárias que observo, seu “dark side”. Por isso
tasia e realidade não é suficiente, por isso Zizek a fala da deputada federal Manuela é exemplar:
requer uma terceira pílula, que lhe permita ver “a “Não vou me tornar igual àqueles que combato”.
realidade na ilusão em si mesma”. É o que todos Engana-se quem pensa que a ocupação do legis-
temos de fazer, encontrar uma outra forma de rei- lativo foi um objetivo, não foi. Foi uma “experiên-
vindicar o que é certo sem ceder à violência. O cia” que deu aos jovens o gosto do poder e por
movimento das ruas não vai parar. Ele é jovem, é isso todo cuidado é pouco. Iniciou-se uma nova

75
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

etapa no movimento das ruas. Os jovens estive- jovens se “pelaram” na câmara. Eles querem
ram diante de um passo perigoso em direção ao no fundo saber: o que pode o corpo? Como diz
Estado de Emergência, mas souberam negociar e Henry Pierre Jeudy, em O corpo como objeto
honrar o acordo com o Estado. de arte (São Paulo: Editora Estação Liberdade,
Os jovens precisam recusar a possibilidade de 2002), a resposta é “ninguém tem condições de
entrar em guerra contra o Estado. “Só a troca nos sabê-lo”, simplesmente porque não sabemos os
protege do destino”, diz Baudrillard. Mas o Estado limites de nossos afetos e ações. Quem fica nu
precisa recusar criminalizar o movimento. Esta- acredita que o corpo afeta, que pode desestru-
mos no pior momento para fazer generalizações. turar o mundo.
Como diz Virilio, num mundo onde a velocidade Os pelados da câmara querem atualizar a
dos fatos supera sua compreensão, a necessidade ideologia da “liberação do corpo” dos anos 1960-
de parar toma sentido político. A repressão de Es- 1970, revolta contra a moralidade e autoridade.
tado se faz mais por sua desestruturação interna “Exibir-se torna-se o contrário de representar”,
do que por uma finalidade de governo. É preciso diz Jeudy, os jovens nus não toleram uma única
parar para refletir. As ações radicais dos jovens representação do corpo belo, jovem, objeto do
se mantêm por um misto de desesperança, raiva, Capital ou do corpo político, poder legítimo, mas
vazio existencial e falta de projeto. Por isso a inter- sempre às voltas com a corrupção. O corpo exibi-
pretação de Jean-Luc Nancy é atual: “a verdade do sempre é um sintoma da raiva do espelho da
da democracia é que não se trata de uma forma representação, diz Jeudy. Sua experiência imedia-
política entre outras, ela quis ser na era moderna ta do corpo nos quer dar uma interpretação da
a refundação integral da coisa política. É o nome sua visão de política. Há quem diga “que mal tem
de um regime de sentido cuja verdade não pode o nu se a política é pornográfica?” Não, não é a
submeter-se a nenhuma instância ordenadora, mesma coisa. Ter raiva da representação do cor-
nem religiosa, nem política, nem científica, nem po perfeito do capital não é a mesma coisa que
estética, porque se compromete por inteiro com ter raiva da representação política simplesmente
o “homem” enquanto risco e possibilidade de si porque não se pode ter raiva de algo que se aju-
mesmo. Ela deve ser o lugar dos meios de abrir dou a construir.
e manter abertos os espaços de suas obras” diz o A Câmara tem representantes dos jovens,
autor de La verdad de la democracia (Madrid: vereadores de esquerda que acompanharam suas
Amorruto Editores, 2009). Para mim, a juventude assembleias e ajudaram a legitimar o movimento.
está protagonizando um dos maiores movimentos A participação do PT e do PSOL acabou produ-
da década, mas tem os seus erros. O Estado tem zindo uma divisão política no próprio legislativo,
diante de si a oportunidade única de “ouvir os agora entre simpatizantes e opositores à invasão
anseios do povo”, mas precisa parar para ouvir. do plenário, e nas relações do legislativo com o
governo estadual – solicitada por seu presiden-
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo? te, a Brigada Militar não compareceu. Para suas
Jorge Barcellos – Um ponto pouco explora- lideranças, o nu foi uma extravagância juvenil im-
do do lado agressivo das manifestações foi que posta no espaço público, mas para parte da socie-
sua violência não foi somente contra pessoas, dade e demais vereadores a cena significou vio-
mas contra símbolos. Na Câmara Municipal, lência à instituição. Se os jovens queriam fazer sua
mensagens foram afixadas na cruz existente no vingança pessoal à representação política, como
plenário e a galeria dos presidentes e a dos ve- apela o grupo Anonymous, o que conseguiram
readores foram alvo de manifestações no caso não foi vingança, foi sedução (Baudrillard), isto
do episódio do nu, um caso a parte. Claro, an- é, desviaram o olhar da sociedade dos verdadei-
tes de criticar, precisamos entender por que os ros objetivos do movimento.

76
“O levante de junho: uma potentíssima bifurcação
dentro da qual ainda estamos”

Entrevista especial com Giuseppe Cocco

“Todas as “máscaras” do Estado já caíram. ções, evangélicos, etc.) que passam por cima das
Hoje não temos um Estado de Direito, mas um próprias instâncias partidárias”.
Estado de Polícia, de repressão e perda das liber- Nesta crítica, o sociólogo manifesta especial
dades democráticas”, assevera o sociólogo. surpresa sobre a postura assumida pelas esquer-
“A forma espúria de agir do Estado, ou con- das do país, especialmente o governo, que ou ba-
luio generalizado entre forças de polícias e crime tem de frente e repreendem as manifestações, ou
organizado, no meio da histeria repressiva con- maquiam suas próprias ações para dar a enten-
tra o tráfico de drogas, funciona como principal der que são provedores das liberdades democrá-
mecanismo de legitimação da guerra contra os ticas, ocultando ocorrências como a “Chacina
pobres e contra suas mobilizações democráticas”, da Maré” ou abusos como o caso do pedreiro
afirma Giuseppe Cocco. Em entrevista concedi- Amarildo. Independente a isso, para ele, o povo
da por e-mail à IHU On-Line, o sociólogo critica continua lutando. “É a multidão que está na fren-
a postura autoritária dos que se opuseram e se te, praticando e inovando nas formas de luta e
opõem às manifestações populares que ocorrem voltando a dar credibilidade à política, em parti-
no Brasil, ainda que hoje com menos força, desde cular junto aos jovens”, pondera. “O melhor da
o meio do ano. juventude brasileira está na rua”.
“Em junho, os partidos tradicionais (de go- Giuseppe Cocco é graduado em Ciência
verno e de oposição) criticavam o movimento por Política pela Université de Paris VIII e pela Uni-
não ter organicidade, lideranças e ‘projeto’. Ca- versità degli Studi di Padova. É mestre em Ciên-
beria perguntar: quais são, hoje, a organicidade cia, Tecnologia e Sociedade pelo Conservatoire
e os projetos dos partidos?”, provoca ele. “Que National des Arts et Métiers e em História Social
projeto tem esses ‘deputados e senadores’, que pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). É
não seja a mera ocupação do aparelho de poder doutor em História Social pela Université de Paris
assim como ele é? E qual seria o projeto dos par- I (Panthéon-Sorbonne). Atualmente é professor
tidos de esquerda?” Para ele, é justamente na fal- titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro
ta de organização formal e na multiplicidade das – UFRJ e editor das revistas Global Brasil, Lu-
singularidades que jaz a força das manifestações, gar Comum e Multitudes. Coordena a coleção
“sem lideranças e, por isso, mais potentes”. A Política no Império (Civilização Brasileira).
Cocco questiona o papel assumido hoje pe- Confira a entrevista.
los partidos, que “parecem funcionar como coali-
zões espúrias de estratégias personalistas, grupos IHU On-Line – O que as manifestações do
de interesse econômico que formam bancadas chamado Outubro Brasileiro nos ensinam
bem pouco ‘republicanas’ a partir do peso de de- no que se refere às possibilidades efetivas
terminados lobbies (agronegócio, telecomunica- da democracia direta?

77
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Giuseppe Cocco – As manifestações de ou- constitucionais de manifestação e livre opinião.


tubro são a continuidade e o desdobramento E isso com base em relatórios da Polícia Federal
daquelas de junho. No conjunto elas ensinam sobre atividades que não são crimes.
muitas coisas, inclusive sobre as possibilidades Ou seja, o Ministro da Justiça se transfor-
efetivas de democracia direta. Antes de tudo, ma em Ministro de Polícia e o Estado faz cair sua
elas nos ensinam que a “democracia direta” só máscara para aparecer explicitamente o que é:
existe nos termos da radicalização democrática. um Estado de Polícia. Confesso que fiquei espan-
O movimento não apenas nos diz que a separa- tado diante da “reação” (e quero enfatizar mesmo
ção da fonte (o povo) vis-à-vis do resultado (os esse termo “reação”, pois é a raiz de outro termo:
representantes) é imoral, mas explícita, e torna “reacionário”) da esquerda em geral, sobretudo
visível que essa dimensão imoral do poder está da esquerda de governo, em particular do PT e
baseada na violência de suas polícias. Ou seja, de alguns dirigentes e até de alguns amigos. Meu
o movimento teve a capacidade de mostrar para espanto aumenta a cada dia. Se da Presidenta
o Brasil e para o mundo as dimensões perversas Dilma (que, como disse um viral na internet de
do monopólio estatal do uso da força no Brasil; um artista carioca, “Já foi Sininho e hoje virou
um regime de terror de Estado que, por meio Capitão Gancho”) não esperava nenhuma sensi-
do regime discursivo sustentando pela mídia da bilidade, não digo “social”, mas sequer política,
elite neoescravagista, é tratado como se fosse de outros esperava uma postura diferente, pelo
“externo” e independente dos governos, até o menos progressista e esclarecida.
ponto em que, no Rio de Janeiro, a solução se- O fato é que a esquerda de poder e o PT (que
ria seu aprofundamento por meio da chamada me interessa) não fizeram, e não fazem, nenhum
“pacificação”. esforço para abrir os governos que lideram à nova
Seria irônico se não fosse o cúmulo do cinis- demanda de participação e de “democracia real
mo escravocrata. É que a forma espúria de agir já”. Ao contrário, assistimos a uma postura arro-
do Estado, ou conluio generalizado entre forças gante e reativa, nos moldes do Ministro da Justi-
de polícias e crime organizado, no meio da his- ça se transformando docilmente em Ministro de
teria repressiva contra o tráfico de drogas, fun- Polícia. Essa postura enfatiza o que já sabíamos:
ciona como principal mecanismo de legitimação que as brechas de transformação dos governos
da guerra contra os pobres e contra suas mobi- Lula foram definitivamente fechadas pela Dilma;
lizações democráticas. Como sempre fez, desde que as experimentações em termos de orçamen-
junho, o poder multiplica os boatos sobre partici- to participativo não apenas foram encerradas faz
pação do narcotráfico nas mobilizações democrá- tempo, mas foram totalmente sobrevalorizadas. O
ticas. Na senzala – ou seja, nas favelas, subúrbios OP (Orçamento Participativo) não deixou rastros
e periferias – o terror anda a pleno vapor, quer a políticos de nenhum tipo.
polícia seja do PSDB, do PT, do PSB ou do PMDB.
É um terror estatal com vieses classistas e, so-
bretudo, racistas. Os ventos de junho continuam Democracia produtiva
soprando (não apenas em outubro, mas também
em novembro), e o outono já virou uma primave- De toda maneira, apesar desse vazio políti-
ra que anuncia o carnaval. co desanimador, hoje é o horizonte inovador de
O levante de junho não foi uma explosão uma democracia produtiva que temos diante de
efêmera, mas uma potentíssima bifurcação dentro nós. Podemos apreender suas dimensões em três
da qual ainda estamos. Nessa bifurcação, as pos- grandes níveis:
sibilidades de democracia direta nos aparecem A) a ruptura – parcial e temporária, mas real
ao mesmo tempo potentes e ativamente bloque- – das dimensões totalitárias construídas em torno
adas, literalmente criminalizadas por um Ministro do consenso da “governabilidade”;
da Justiça que transforma em crime, com apoio B) a multiplicação de assembleias (muitas
entusiasta da imprensa hegemônica, os direitos delas chamadas de “populares”) e ocupações de

78
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Câmaras e Assembleias Legislativas em muitíssi- lizações praticamente diárias, que se sucederam


mas cidades; e em julho, agosto e setembro até se massificarem
C) a forma produtiva do “movimento”. novamente nos dias 7 e 15 de outubro, são o
As três dimensões fazem do levante de ju- terreno de uma multiplicidade de iniciativas: ad-
nho-outubro um momento constituinte. Num pri- vogados da OAB, grupos de advogados ativistas,
meiro nível, pelo decreto de redução das tarifas grupos de primeiros socorros, coletivo projetação,
de transportes (no caso do Rio Grande do Sul, autoformação nas ocupações, músicos e bandi-
o governo Tarso teve a coragem de promulgar nhas, uma multidão de mídias produzindo desde
o Passe Livre para os estudantes) e uma série inúmeros streamings e documentários passando
de outros decretos da plebe. No Rio de Janeiro, por todos os tipos de registros fotográficos. A de-
tratou-se, sobretudo, do entorno do Maracanã e mocracia que o movimento desenha é constituti-
do recuo parcial do Prefeito (embora falso) nas va e é mesmo produtiva. O fato de um processo
políticas de remoções de favelas. No segundo ní- de subjetivação que mostra toda a potência das
vel, as ocupações de “parlamentos”, além de tra- redes e das ruas.
duzir-se em decretos do tipo daqueles do primeiro
nível (“recuos” pontuais dos governos) visaram IHU On-Line – A ausência de um projeto
transformar a crítica da representação no terreno político unificador das pautas dos manifes-
concreto de um aprofundamento democrático, de tantes levou à dispersão e à imobilidade?
invenção de novas instituições. Foi isso o que ocorreu após a redução do
Recorrendo mais uma vez ao Rio de Ja- preço das passagens, principal pauta das
neiro, as sucessivas ocupações da Câmara dos manifestações de junho em várias cidades
Vereadores (e da praia do Leblon, em baixo da brasileiras?
residência do Governador, sem contar o sem Giuseppe Cocco – Parece que foi exatamente o
número de manifestações na frente do Palácio contrário o que aconteceu: não houve dispersão,
Guanabara, na frente da Alerj ou a breve ocu- mas difusão e multiplicação de manifestações,
pação na frente da residência do Prefeito Mu- reivindicações, assembleias e reuniões. Pelo me-
nicipal) mostraram que o movimento de junho nos no caso do Rio, não houve sequer um dia
não era efêmero, mas capaz de abraçar as lutas de “imobilidade”, mas uma mobilização diária,
mais difíceis como aquela contra a máfia dos modulada em escalas diferentes. A multidão pas-
ônibus (cobrando uma CPI transparente e de- sou a fazer-se pela multiplicação difusa de inicia-
mocrática). Sendo que a luta contra a máfia dos tivas de lutas novas e antigas. O movimento de
ônibus não é apenas uma luta pela reforma ur- junho teve a capacidade de colocar pautas que
gente da gestão do sistema de transportes, mas eram tão urgentes como inalcançáveis até então,
também pela democracia: todo mundo sabe como na questão dos transportes urbanos. Claro,
que esses “lobbies” se constituem nos maio- os esforços dos jovens do Movimento pelo Passe
res entraves ao sistema democrático, inclusive Livre (MPL) estão na base disso, mas é a primeira
aquele representativo! vez que a luta sobre o preço das passagens e a
A ocupação da Câmara do Rio mostrou toda qualidade dos transportes se consolida nas ocu-
sua potência de novo terreno de luta democrática pações de Câmaras e Assembleias Legislativas
quando passou a ser usada e renovada pelos pro- para que todo o sistema de gestão seja objeto de
fessores da rede municipal. Não é por acaso que democratização.
foi duramente reprimida: o poder não pode com O movimento de junho foi se metamor-
certeza tolerar que a democracia real se instale. foseando numa constelação de movimentos e
Seria um exemplo insuportável. iniciativas, conectando entre elas as lutas mais
Enfim, com o outono virando primavera, a diversas: desde aquelas dos favelados contra as
persistência do movimento nos mostra as dimen- remoções ou a violência policial, até aquelas dos
sões produtivas e, nesse sentido, constitutivas do usuários massacrados nos transportes todos os
horizonte democrático que ele define. As mobi- dias, passando pelos movimentos de categorias

79
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

como a dos bancários, dos petroleiros e, sobretu- Projetos dos partidos


do, dos professores.
Os professores do Rio de Janeiro encontra- Lembremos que, em junho, os partidos tra-
ram no levante de junho e, principalmente, em dicionais (de governo e de oposição) criticavam o
sua persistência a inspiração para lutar. Os profes- movimento por não ter organicidade, lideranças
sores experimentaram, nas misturas com o Ocupa e “projeto”. Caberia perguntar: quais são, hoje,
Câmara e os jovens da tática Black Bloc, novas a organicidade e os projetos dos partidos? Por
formas de luta e organização, de tipo metropolita- um lado, é difícil defender que os diferentes par-
no: a forma sindical (o SEPE) saiu extremamente tidos de governo tenham alguma organicidade.
enfraquecida (e até objeto de críticas violentas) Eles parecem funcionar como coalizões espúrias
ao passo que, em sua última fase, o movimento de estratégias personalistas, grupos de interesse
foi experimentando formas embrionárias de orga- econômico que formam bancadas bem pouco
nização territorial, algo como novas Câmaras do “republicanas” a partir do peso de determinados
Trabalho Metropolitano que chegaram a viver nas lobbies (agronegócio, telecomunicações, evan-
conexões entre as diferentes acampadas. Não dá gélicos, etc.) que passam por cima das próprias
para saber com quanto fôlego, mas as acampadas instâncias partidárias. Que projeto tem esses “de-
do Leblon e da Câmara foram retomadas nesses putados e senadores”, que não a mera ocupação
dias. do aparelho de poder assim como ele é? E, qual
A greve dos professores municipais não foi seria o projeto dos partidos de esquerda?
mais a tradicional greve absenteísta do setor pú- Aqueles que fazem oposição se confirmaram
blico, mas uma luta sensacional de ocupação e como fundamentais, em particular o PSOL do
resistência, inclusive diante da repressão policial. Rio de Janeiro. Contudo, a “esquerda de oposi-
É isso que levou, no dia 1º de outubro, a uma ção” sai muito mal desses cinco meses de lutas.
batalha campal de horas e horas no centro do Rio Quando ainda tem cidadania no movimento, isso
de Janeiro (sendo a repressão policial a única ar- não impede que o movimento os transponha to-
gumentação usada pelo governo PMDB-PT para talmente. Por outro lado, é evidente que a “es-
“negociar” com os grevistas) e, no dia 7 de outu- querda de oposição” não representa nenhuma
bro, à volta da multidão na Avenida Rio Branco. alternativa eleitoral, e eu continuo convencido de
Mais de 100 mil pessoas marcharam, numa que até o movimento mais radical precisa de al-
repetição de junho que agora não tinha mais gum momento eleitoral. Quanto ao PT, qual é seu
nenhum tipo de ambiguidade. Uma grande ma- projeto? Difícil dizer, pois não há nenhum, a não
nifestação de esquerda, atravessada e enrique- ser “continuar no governo”. É ainda pior se per-
cida pelas diferenças e por milhares de jovens guntamos: qual projeto a Presidenta Dilma imple-
que aderiram – talvez pela primeira vez – à tática mentou em seu mandato? Em termos de políticas
Black Bloc. públicas, não houve nenhuma inovação.
No dia 15 de outubro, novamente dezenas A marca da Dilma foi a volta do economicis-
de milhares de pessoas ocuparam a Rio Bran- mo, e isso em torno de duas falácias: a primeira
co. A multidão está na rua e persiste em seu foi a aposta na economia material das commodi-
fazer-se. Não uma massa homogênea e manipu- ties, dos megaeventos, das megaobras e dos glo-
lada (aquela que a mídia neoescravagista gostaria bal players (a grande indústria multinacional); a
de ver na rua) e sequer a identidade categorial e segunda – complementar a essa – foi a ideia de
corporativa que os sindicatos (pelegos ou supos- que a mudança de modelo econômico viria de
tamente “radicais”) conseguem colocar, mas uma cima para baixo, pela decisão-decreto de “baixar
multiplicidade de singularidades, sem lideranças a taxa de juros”.
e por isso mais potentes. É a multidão que está Quando Dilma fala que gosta de engenheiros
na frente, praticando e inovando nas formas de e não de advogados, ela está sendo muito since-
luta e voltando a dar credibilidade à política, em ra, nos faz entender que ela é mesmo autoritária.
particular junto aos jovens. Não se trata apenas de “jeito”, do gosto pelos en-

80
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

genheiros que fazem os cálculos das barragens ou luio com a tradicional política de terror, essa sim
dos estádios, diante dos “chatos” dos advogados mascarada por trás da clivagem de raça e classe,
que ajudam os índios e os pobres a desconstruir que mantém a senzala em “seu lugar”.
essas equações para mostrar os impactos ambien- No plano da nova política econômica (a
tais e sociais. Trata-se mesmo de uma maneira manutenção dos subsídios à grande indústria e a
de pensar a política como uma engenharia social, tentativa de baixar os juros), esta acabou refor-
uma teleologia do progresso a ser implementada, çando as tendências inflacionistas que já estavam
inclusive pela força (a polícia, sem esquecer que presentes. O levante de junho foi, inicialmente, a
se trata da polícia brasileira, que mata oficialmen- afirmação de que só uma mobilização democráti-
te cinco pessoas por dia), como fizeram Lenin e ca é capaz de romper a ciranda mortífera que liga
Stalin com a “industrialização forçada”. Só que as duas inflações: a dos juros e aquela dos preços!
agora, o ridículo é que o totalitarismo é para per- Tornando-se primavera, o outono é também a
mitir a qualquer custo que a Copa da FIFA acon- base para reafirmação da própria noção de pro-
teça nos moldes dos interesses da FIFA. O nacio- jeto. O “projeto” que interessa é aquele que não é
nalismo é sempre assim: em nome do interesse unitário, mas múltiplo, aquele que é aberto a ou-
nacional, abrem-se avenidas para o neocolonia- tro processo de produção de subjetivação, aquele
lismo interno e, pois, externo. que não se separa do processo de sua constitui-
Logo que foi eleita, Dilma mostrou a que ção: o único jeito de a “política” voltar a ser ética
veio: a destruição do Ministério da Cultura foi em- (e crível para os jovens) é de manter a fonte e
blemática, mas também a afirmação de seu estilo o resultado juntos num processo continuamente
autoritário, com a demissão de Pedro Abramo- aberto. O único projeto que interessa é justamen-
vay, justamente por ter anunciado um elemento te aquele que não é projeto, ou seja, onde não há
de projeto (a reforma – urgente e necessária – da nenhuma teleologia totalitária, mas o máximo de
política de repressão das drogas). Um episódio constituição democrática.
que mostra o caráter arrogante e autoritário da
Presidenta e a submissão dócil de seus ministros –
IHU On-Line – Que relação pode ser feita
a começar pelo que deveria ter defendido o Pedro
entre aquelas primeiras manifestações e as
Abramovay, o Ministro da Justiça –, que pratica-
mais recentes, que passaram a ser identifi-
mente não tomaram nenhuma iniciativa nestes
cadas pelos atos de violência? Trata-se da
três anos.
continuação de um mesmo fenômeno ou
Nada foi produzido pelos ministros. Ima-
são situações isoladas uma da outra?
ginem o que teria acontecido com Tarso Genro
Giuseppe Cocco – Não há diferença entre as
quando tomou a corajosa decisão de conceder
primeiras manifestações e aquelas que persistiram
refúgio ao Battisti. O fato é que os elementos
ao longo desses meses: por exemplo, as primei-
originais do governo Dilma foram desastrosos e
ras manifestações no Rio de Janeiro, no início de
apagaram o pouco que havia de “esquerda” no
junho, tinham muita pouca gente e já eram ca-
pragmatismo “lulista”: no plano das megaem-
racterizadas pela determinação de uma nova ge-
presas, temos a falência de Eike Batista – que
ração de jovens em resistir aos ataques da polícia
envolve BNDES, CEF e FGTS – e as dificuldades
e dar às manifestações algum nível de efetividade.
pesadas da Petrobras que levaram ao Leilão de
Contrariamente ao que a mídia e os intelectuais
Libra (e levarão ao aumento do preço da gasolina
ligados ao governo afirmam hoje, foi essa carac-
porque a produção dos poços tradicionais caiu);
terística marcante das manifestações que as mas-
os megaeventos se mostraram como impopulares
sificou. Ao passo que os governos achavam que o
justamente em junho, durante a Copa das Con-
“rodo” policial teria afugentado os manifestantes,
federações – como se faz para gastar bilhões em
em particular aqueles politizados de classe média
embelezamento (no Porto Maravilha) quando mi-
que – segundo seus cálculos obsoletos – deviam
lhões de pessoas ao lado convivem com rios de
constituir o núcleo duro das mobilizações.
esgoto a céu aberto? Só mesmo por meio do con-

81
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Não apenas isso não afugentou, mas massi- violência do poder e seus sistemas de (in)justiça,
ficou e, dentro da massificação, foi se construindo como do caso Amarildo, o pedreiro torturado,
a capacidade de resistir e até de praticar ações assassinado e feito desaparecer na sede da UPP
diretas de tipo simbólico. Desde o início o poder da PM da Rocinha do Rio de Janeiro. A mesma
da mídia e a mídia do poder tentaram impor a coisa aconteceu com os mais de 10 moradores
separação entre os manifestantes “ordeiros” e os assassinados na favela da Maré em junho, duran-
“vândalos” e não funcionou. Não funcionou por- te o movimento, pela “Tropa de Elite” da PM
que, apesar das mistificações seguidas da mídia, do Rio e em relação à qual sequer existe um pro-
as práticas da autodefesa e das ações diretas res- cedimento disciplinar. O movimento mostrou que
peitaram limites políticos precisos que não permi- os moradores da senzala não têm cidadania nem
tiram que a elas se colasse o discurso da violência direito de lutar. A chacina da Maré foi um recado
e do medo. claro, genuinamente neoescravagista, aos pobres:
A maioria da população, sobretudo da po- vocês não têm direito de lutar e se lutarem serão
pulação jovem e pobre, passou a enxergar nessas mortos. Essa é a democracia que vivemos: não
práticas uma brecha de luta efetiva. Trata-se, pois, nos grotões do Brasil remoto, mas na metrópole
de uma continuidade e de um amadurecimento, olímpica, o Rio de Janeiro. E isso num governo
como vimos na volta da multidão para a Avenida estadual do PT e do PMDB.
Rio Branco nos dias 7 e 15 de outubro. Contudo,
podemos e precisamos sistematizar a questão da
violência em três momentos de reflexão: a violên- A tática Black Bloc
cia já existe e a novidade foi a brecha democrática;
a questão da tática Black Bloc; e a repressão. Porém, milhares de jovens pobres descobri-
ram, em junho, que havia uma brecha para lutar.
O Brasil dos megaeventos, das Copas e das Olim-
A violência píadas não pode repetir nas ruas e praças o que
faz nas favelas, periferias e subúrbios todo santo
A mídia e o poder sempre tentam dizer que dia. Não é por acaso que isso aconteceu durante
a violência vem do protesto, ou seja, da mani- a Copa das Confederações.
festação democrática. Trata-se de uma operação A luta foi contra, mas dentro: dentro e con-
sistemática de mistificação que assistimos em suas tra. Essa brecha é claramente democrática, pois
formas explícita e assassina nos últimos eventos por meio dela os jovens pobres (mesmo que na
de São Paulo – ao passo que alguns jovens estão maioria sejam os mais dinâmicos – prounistas,
em prisão preventiva com a gravíssima acusação reunistas, etc.) encontraram a possibilidade de lu-
de “tentativa de homicídio” de um policial (que tar, fugindo ao duplo mecanismo racista e assassi-
não sofreu nenhum ferimento grave), os policiais no que normalmente é usado para controlá-los: o
que assassinaram friamente dois adolescentes arbítrio da polícia e aquele do narcotráfico, sendo
(em momentos diferentes e logo depois) são in- que às vezes ele toma o nome de “milícia”.
diciados por “homicídio culposo”. Pior, jornais Ao mesmo tempo, os jovens que encontra-
como O Globo (que tem uma longa e mortífera ram essa brecha não acreditam na representação
história de apologia do arbítrio policial) chegaram e querem muito mais e melhor. Não querem ne-
a fazer manchetes que invertiam propositalmen- nhuma bandeira que não seja aquela que eles
te o sentido dos fatos: “Protesto contra morte de mesmos afirmam e produzem em sua luta. Além
jovem termina em violência”. Ou seja, a justa in- disso, me parece, esses jovens, e mais em geral
dignação popular contra a violência assassina do os jovens que decidiram entrar para a política em
Estado sofre uma inversão grosseira, até ofensiva junho, pensam que o único modo de fazê-lo é
à inteligência do leitor. conseguir certo nível de efetividade, ou seja, fi-
O que o movimento fez e faz não é prati- cando nas ruas nas maneiras mais autônomas e
car a violência, mas tornar explícita e visível a determinadas possíveis.

82
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Deve haver outras explicações que eu desco- Contudo, parece que a tática Black Bloc
nheço, mas olhando para o Rio de Janeiro, onde tem uma dimensão estética que também pode
a tática Black Bloc se apresentou explicitamente funcionar como uma identidade e isso, a meu ver,
(se eu não estiver errado) apenas no dia 30 de é um problema. Em primeiro lugar porque pode
junho, nas manifestações de protesto durante a servir para os desenhos da repressão que procu-
final da Copa das Confederações, creio que as ra exatamente isolar fenômenos de organização
bandeiras negras do anarquismo foram aquelas que não existem. Em segundo lugar porque pode
que a grande maioria desses jovens elegeu como ingenuamente atribuir às dimensões estéticas da
sendo internas a uma luta que é, antes de tudo, ação direta um peso político que na realidade não
uma luta contra a representação e afirma a ne- tem. Por exemplo, a quebra dos caixas eletrônicos
cessidade de formas de organização radicalmente se parece com a quebra dos relógios nas velhas
horizontais, sem liderança. revoluções do século XIX. Da mesma maneira
Eu nunca fui anarquista e não acredito no que o proletariado industrial não conseguia com
“anarquismo” porque penso que a luta é pela isso deter os ritmos do tempo do assalariamen-
invenção de novas instituições. Mas não adianta to, o proletariado metropolitano não conseguirá
querer que a “realidade” se encaixe nas nossas deter os fluxos das finanças quebrando os cai-
ideias. É preciso que as ideias se adéquem à rea- xas eletrônicos dos bancos (aliás, nisso os Black
lidade. A referência (global) à tática Black Bloc Blocs estão sendo muito próximos da Dilma e
parece ter respondido ou correspondido a algu- de sua tentativa fracassada de deter as taxas de
mas inflexões totalmente brasileiras e cariocas. juros). Ficando nessa estética, a luta corre o ris-
A primeira é a necessidade desses jovens co de cair numa armadilha. Enfim, os adeptos da
oriundos das periferias e dos subúrbios de se tática Black Bloc podem acabar “presos” nessa
mascarar para poder lutar (há como que uma dimensão estética, repetindo-a sistematicamente
inversão: não usam máscaras por serem Black e ingenuamente. Em suma, a dimensão estética
Blocs, mas se chamam de Black Bloc para po- corre o risco de sobredeterminar aquela política,
derem usar as máscaras e chegar mascarados nas e penso no mote de Walter Benjamin (o filósofo
manifestações do mesmo modo que as bandeiras comunista alemão vítima do nazismo): a luta pela
pretas da anarquia lhe parecem as únicas – mas politização da arte continua atual.
não exclusivas – que afirmam a horizontalidade
radical de sua luta).
A explicitação da tática Black Bloc é tam- A repressão
bém – e paradoxalmente diante do processo de
criminalização do qual são objeto – a definição de Chegamos assim à questão da repressão:
uma ética da resistência e da ação direta, ou seja, o que está acontecendo – e em nível federal –
de “limites” dentro dos quais manter essas duas é escandaloso. A Polícia Federal – a mando da
práticas que o movimento de junho e seus desdo- Presidenta e do Ministro de Justiça – divulga na
bramentos, ao longo dos meses de julho, agosto, imprensa a existência de listas de “suspeitos” de
setembro e outubro, colocaram em pauta. A tática praticarem atividades totalmente constitucionais:
Black Bloc foi um sucesso midiático inespera- liberdade de opinião e de manifestação, articu-
do. São eles que chamam a atenção de todos os lações políticas e culturais internacionais. Não dá
tipos de mídia. De onde vem esse “sucesso”? Da nem para acreditar.
percepção de que nessa tática há uma brecha de- Em junho, dirigentes do PT e do governo
mocrática capaz de colocar na rua a questão da chamaram para o perigo do “golpe”, falaram de
paz e da justiça social: é essa tática que conseguiu coxinhas e também de “fascismo e barbárie” nas
dar o nome de Amarildo a todos os pobres sem manifestações. Tive um vivo debate com meu
nome massacrados arbitrariamente pelo Estado: amigo Tarso Genro, na presença de Boaventura
cinco por dia, segundo as estatísticas publicadas de Souza Santos, em Lisboa (em julho deste ano),
pelo O Globo. durante o qual ele falava de fascismo e da “mar-

83
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

cha sobre Roma”. Ora, o fascismo é um fenôme- o próprio Secretário de Segurança José Mariano
no estatal, nacionalista e identitário: totalmente o Beltrame disse – se “segurou” e o uso das armas
contrário dos discursos, das bandeiras e da esté- letais foi extremamente limitado (embora preocu-
tica destes garotos. Quem tem ares de fascismo pante no dia 15 de outubro). O que isso significa?
é Vargas, ao qual Emir Sader comparou o Presi- Que o uso sistemático do ato de resistência para
dente Lula. Quem é ambíguo é o nacionalismo matar, torturar e dar sumiço nos pobres é uma
que circula na esquerda neodesenvolvimentista prática que vigora por meio de uma autorização
(inclusive, como vimos no Leilão de Libra, faz de fato por parte dos governos. No caso das ma-
como o fascismo: retórica nacionalista e política nifestações, para manter sua imagem externa e
entreguista). evitar também uma revolta generalizada, os go-
Fascismo e xenofobia é fazer demagogia nos vernos conseguiram fazer passar o “recado” para
vistos (bem-vindos) para os médicos cubanos e sua PM e que não querem fazer passar no que diz
deixar irregulares os milhares de trabalhadores respeito à sua atuação na Maré, na Rocinha, nos
bolivianos em São Paulo. Enfim, fascistas são as subúrbios do Rio e nas periferias de São Paulo.
polícias de qualquer estado do Brasil que podem Só mesmo esse Ministro de Polícia para não ver
matar e torturar a rodo sem que o senhor Ministro a enorme brecha para a paz que haveria, e abrir
de Justiça constitua força tarefa nenhuma. Fas- mesas de negociação. Só mesmo a arrogância
cismo e barbárie são as condições das prisões no potencialmente totalitária da Presidenta e dos se-
Brasil, para onde o próprio Ministro disse que não tores majoritários do PT de não fazer autocrítica
gostaria de ir. sobre 10 anos de (não) políticas da juventude.
O fascismo é um fenômeno estatal, organi- O melhor da juventude brasileira está na rua. O
zado e estruturado em torno da radicalização dos que foi feito nos governos Lula e Dilma? Alguém
valores tradicionais: a nação, a família e até a raça sabe?
(e o anarquismo diante disso – quer a gente goste
ou não dele – é uma contradição nos termos). O IHU On-Line – Disso decorreria que as ma-
fascismo já está presente e dominante no Brasil e nifestações recentes estão permeadas por
não precisa de nenhum golpe, a não ser aquele uma cultura do ressentimento?
que o próprio governo está dando na democra- Giuseppe Cocco – O único ressentimento que
cia. Quem colocou o exército na rua foi o governo eu vi (e vejo) é o que se encontra nas análises
federal para proteger o leilão das reservas estraté- desses “acadêmicos” que estão paradoxalmente
gicas de petróleo. A quebra do Estado de direito desarmados teoricamente para entender o que
aconteceu por obra do Estado do Rio (e surpreen- acontece e aconteceu. Descobrem que as catego-
dente aprovação do Cardozo) na prisão indiscri- rias que usavam não servem para nada e tentam
minada e em massa de 200 pessoas com o único desqualificar o que acontece e tentam exorcizar
critério de estarem na escadaria da Câmara dos os trabalhos teóricos que os anteciparam. O caso
Vereadores do Rio de Janeiro, exercendo o direi- mais triste é o da Marilena Chauí. Numa entrevista
to constitucional de manifestação. Essa operação na Revista CULT, ela faz uma série de considera-
sim é de “tipo” nazista: prisão indiscriminada, em ções infundadas sobre o pensamento de Foucault,
massa, por retaliação. Agamben e Negri e começa declarando “ter leva-
Não se trata apenas de dizer que nenhuma do um susto quando descobriu que os meninos
força-tarefa foi constituída entre o Ministro da do MPL tinham usado as redes para chamar pelas
Justiça e os Secretários de Segurança do Rio e mobilizações”. Como se as redes fossem uma op-
de São Paulo para deter os assassinatos sistemáti- ção e não a nova base material do trabalho e das
cos de pobres (os “Amarildo”) pelas PMs de todos lutas, a condição ontológica dentro da qual vive-
os estados. Há uma outra evidência, terrível, que mos. Esse descolamento entre o pensamento e a
somente Cardozo e Dilma não querem ver: no análise material (ou seja, o fato de que quando
Rio de Janeiro, ao longo de cinco meses de mo- ela fala de “classes” mobilize uma mistura estra-
bilizações de rua e enfrentamentos, a PM – como nha de sociologia marxista ortodoxa com mora-

84
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

lismo psicológico que pouco tem a ver coma te- Do mesmo jeito, quando publicamos, em
oria spinozista dos afetos) explica talvez o fato de 2005, GlobAL: biopoder e lutas em uma
que ela não tenha se tocado quando criminalizou América Latina globalizada (Rio de Janeiro:
os jovens que estão na rua, logo para a máquina Record, 2005), dizíamos que os novos governos
mortífera que é a PM do Rio (em agosto). eram interessantes na medida que seriam atra-
vessados pelos processos de subjetivação – quer
IHU On-Line – Como este quadro se rela- dizer, pelas lutas – capazes de construir uma alter-
ciona com o conceito de multidão, de An- nativa ao neoliberalismo e ao neodesenvolvimen-
tonio Negri? tismo. Dessa maneira, Negri e eu antecipamos,
Giuseppe Cocco – Totalmente. Os conceitos por um lado, que as brechas do governo Lula
de trabalho imaterial e de multidão se mostram teriam produzido essa nova subjetividade e que
totalmente adequados diante do que está acon- esta não teria se reduzido ao lulismo. Por incrível
tecendo e confirmam a dimensão pioneira dessas que pareça, o regime discursivo hegemônico no
teorizações. O que temos nas ruas, sociologica- PT foi aquele de comparar Lula a Vargas e, de
mente, é o trabalho imaterial metropolitano que maneira totalmente bipolar, de reduzir a mobiliza-
luta sobre a mobilidade e a democracia ao mes- ção social à mobilidade estatística (a emergência
mo tempo. E essas lutas “fazem” multidão, cons- de uma Nova Classe Média). Pelo visto, quem é
tituem uma multidão de singularidades que co- chamado a preencher esse vazio da teoria e da
operam entre si, se mantendo tais. A “multidão” política hegemônica no PT e no governo é a Po-
não é positiva em si (como diz de maneira infun- lícia Federal.
dada a historiadora da filosofia falando de Negri),
mas é afirmação, constituição. Fora disso, o que
observamos é a fragmentação social, a perda de Veja também:
direitos. O movimento de junho nos mostra que
não precisamos voltar às grandes massas fabris Mobilização reflete nova composição técnica
para lutar. Pelo contrário, “nunca antes na história do trabalho imaterial das metrópoles. Entrevista
deste país” houve um movimento tão forte e tão especial com Giuseppe Cocco, publicada nos Ca-
autônomo, muito mais do que o novo sindicalis- dernos IHU Ideias nº 19 sob o título #VEMpra-
mo do qual veio Lula. RUA – Outono brasileiro? Leituras, disponível em
http://bit.ly/ihuid002

85
“Vivemos um momento constituinte. É preciso
pensar, atuar, propor como nunca”

Entrevista especial com Hugo Albuquerque

“Existe hoje no Brasil, pela primeira vez des- ção”, que criou, “em escala global, uma disposi-
de os anos 1970, um duro questionamento sobre ção multitudinária da vida e do trabalho. Essa é
as regras do jogo. Por isso, diz-se que vivemos em a novidade, a maneira como a multidão emerge
um ‘momento constituinte’”, afirma o jurista. historicamente”. E acrescenta: “O Black Bloc
O atual momento social e político do Brasil, e o avanço do anarquismo e do autonomismo
onde se evidencia “melhora dos indicadores de entre os jovens, em detrimento do partido e das
vida” e “o esgotamento das instituições políticas”, bandeiras socialistas clássicas, são uma marca
reflete o fato de que a “maior parte das esquer- deste novo mundo”.
das deixou de propor uma alternativa ao sistema Albuquerque refuta as críticas de violência
para, vejamos só, tornar-se parte dele”, avalia feitas aos Black Blocs e afirma que, ao avaliar
Hugo Albuquerque, em entrevista concedida à o movimento, “o que importa não é a violência
IHU On-Line, por e-mail. física, nós não vivemos em um sistema no qual a
O jurista compara as manifestações que estão violência física realmente importa, não estamos
ocorrendo no país desde junho com o movimento na Idade Média: a modernidade se assenta so-
europeu de maio de 68. “Cá como lá, a tensão bre violências psicológicas, sujeições voluntárias
entre as esquerdas que pretendem humanizar o e que tais. No caso, imagino que algo como o
Estado, e o capitalismo, e todo esse sistema que Black Bloc incomode por ser uma organização
desumaniza e objetifica qualquer um, terminou horizontal, anônima e de multidão: eles não po-
por piorar as esquerdas. Ambas as experiências dem ser efetivamente passíveis de uma ordem,
mostram que a tentativa de humanizar o sistema não têm nome. Por outro lado, os movimentos
levou à desumanização de quem pretendeu isso”, reivindicatórios precisam sair da estética e chegar
pondera. à política”.
Hugo Albuquerque interpreta as manifesta- Hugo Albuquerque é jurista e mestran-
ções recentes como uma manifestação da “mul- do em Direito pela Pontifícia Universidade
tidão”. Tal conceito, explica, representa “uma Católica de São Paulo – PUC-SP. Faz par-
expressão de coletividade humana que emerge te da rede Uninomade e é editor do blog
não pela homogeneidade, como o ‘povo’ ou a www.descurvo.blogspot.com.
‘sociedade’, mas sim por diferenças intensas que Confira a entrevista.
se desdobram continuamente. O Quilombo dos
Palmares e uma série de outros eventos resis- IHU On-Line – Que semelhanças percebe
tentes da nossa história são multitudinários”. A entre o Brasil de hoje e a Europa dos anos
diferença, entretanto, das manifestações de anos 1960, à época de maio de 68, considerando
atrás com as de hoje está amparada na “revolu- as manifestações que aconteceram em am-
ção das tecnologias de informação e comunica- bos os lugares?

86
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Hugo Albuquerque – As semelhanças são Hugo Albuquerque – Existe hoje no Brasil,


enormes. O Brasil dos anos 2010, a exemplo pela primeira vez desde os anos 1970, um duro
da Europa do final dos anos 1960 e 1970, vive questionamento sobre as regras do jogo. Por isso,
um cenário paradoxal: de um lado, registramos diz-se que vivemos em um “momento constituin-
uma grande melhora dos indicadores de vida, en- te”. Não que as pessoas comuns e os movimentos
quanto, de outro, o esgotamento das instituições não lutem para constituir direitos o tempo todo,
políticas, sobretudo porque a maior parte das mas existem momentos nos quais isso atinge uma
esquerdas deixou de propor uma alternativa ao massa crítica relevante, como agora. Neste exato
sistema para, vejamos só, tornar-se parte dele e, momento, existem algumas conquistas tópicas,
quem sabe, dar-lhe uma face mais humana. Só o consenso gerencial que virou praxe da políti-
que cá como lá, a tensão entre as esquerdas que ca brasileira está na defensiva, existem medidas
pretendem humanizar o Estado, e o capitalismo, repressivas pesadas sendo tomadas e algumas
e todo esse sistema que desumaniza e objetifica questões centrais: Como avançar? Como criar
qualquer um, terminou por piorar as esquerdas. uma nova institucionalidade? Como fazer brotar
Ambas as experiências mostram que a tentativa dessas multidões novas formas de organização
de humanizar o sistema levou a desumanização sem cair na impotência ou voltar ao Estado? Na
de quem pretendeu isso. Aliás, até antes disso, a Grécia, por exemplo, a explosão inicial dos movi-
Alemanha do pós-Primeira Guerra Mundial expe- mentos foi seguida de uma depressão geral. No
rimentou algo parecido, tanto que Walter já fazia mundo árabe, as primaveras encontraram seu
a crítica das políticas social-democratas, isto é, o termidor muito rápido, na forma de novas com-
profundo equívoco daquelas em venerar o pro- posições autoritárias. Mas agora a luta é não cair
gresso técnico e construir a emancipação humana nos baixos dos terrorismos em voga, do tipo “eu
pelo aumento do Estado – como se fosse possí- tenho medo”, nem se tornar um crédulo que feti-
vel racionalizá-lo e transformá-lo em um agente chiza processos históricos.
transformador. Por exemplo, os vinte centavos foram o es-
As esquerdas brasileiras atuais, surgidas do topim das manifestações em São Paulo, o que
ciclo de lutas dos anos 1970 contra a Ditadura foi fundamental para as jornadas de junho. Mas
Militar, intuíam já no nascedouro uma certa crí- no duro, o preço da tarifa não baixou realmente:
tica à social-democracia – e à União Soviética –, simplesmente, os vinte cents que iriam ser pagos
mas ao mesmo tempo possuíam uma ilusão com pelo usuário são pagos, agora, pelo contribuinte
o progresso técnico e o estado de bem-estar so- na forma de subsídio às concessionárias. E, an-
cial. Dilma fez uma opção pelo gerencialismo em tes disso, parte do sobredito preço já era subsi-
vez da política, pondo fim a essa ambiguidade, diada. O recuo do reajuste é até mais justo, só
que foi uma das grandes marcas do governo Lula, que esconde problemas. Um deles é que muitas
embora para melhor. É claro, as lutas brasileiras vezes o usuário se confunde com o contribuinte,
dos anos 1960 e 1970 foram culturalmente muito e mesmo o contribuinte mais rico, cujo dinheiro
influenciadas pelo Maio de 68, mas aqui tinham dos tributos pagos vai para financiar o usuário de
outra natureza política e histórica, do mesmo transporte público, poderia ter os seus recursos in-
modo que a globalização, a revolução comunica- vestidos em algo mais útil se, de repente, o preço
cional e o giro produtivo geram ao mesmo tempo real das passagens fosse efetivamente minorado.
uma onda de levantes multitudinários pelo mun- A questão que insurge é: este preço real das pas-
do, mas eles têm diferenças temáticas importantes sagens de ônibus é justo? Se não, como baixá-lo?
de canto a canto – no caso, o Brasil parece muito Nesse sentido pontos como uma tarifa zero
a Europa de antes. me parece interessante, no entanto, é preciso
criar um sistema único de transporte público in-
IHU On-Line – Quais são os reflexos das tegrado, uma fonte de financiamento justa para
manifestações de junho hoje, cinco meses tanto e, também, um modelo melhor que os das
depois? atuais concessões, na qual uma empresa priva-

87
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

da ganha uma licitação e torna-se uma figura de antes, ser destruída. A vítima sofre a pior das vio-
peso na política municipal, ainda mais por não ter lências que é, precisamente, a sua desumaniza-
acontecido uma reforma política. E não adianta ção, a violência física posterior é só consequência.
sair do mercado para cair numa velha empresa É o velho apanhou ou morreu porque “deu moti-
estatal, como a antiga CMTC em São Paulo, que vo”, porque é um pária, um Homo sacer.
simplesmente não funcionava, ou melhor, funcio- Além do mais, até bem pouco tempo, mani-
nava conforme os interesses restritos da casta bu- festações reivindicatórias no Brasil eram pacíficas
rocrática que a administrava, a despeito de seus como em nenhuma outra parte do globo, mas já
trabalhadores e usuários. Isso precisa ser trazido eram tratadas à base de muita violência – e ati-
à tona. Não é uma crítica moralizante do movi- vistas eram socialmente estigmatizados, indepen-
mento, mas questões de ordem polêmica, isto é, dentemente do que propusessem. Só que o nível
táticas e estratégicas. de violência policial cresceu desta vez a ponto de
radicalizar como nunca os movimentos – e em vez
IHU On-Line – Como vê a crítica de que as de dar a outra face, os ativistas passaram a conter
manifestações foram esvaziadas por conta a tentativa de supressão policial usando de força.
da violência? Ainda assim, o que se vê no Brasil não é nada
Hugo Albuquerque – É um argumento ruim, diferente do registrado na Europa em manifesta-
sem dúvida. Em primeiro lugar, as manifestações ções. Mas uma coisa é discrepante: a violência da
não foram esvaziadas em parte alguma. Em se- polícia, uma das que mais mata no mundo.
gundo lugar, a violência deflagradora, desde o Não só o aparato judicial brasileiro tem au-
início, é de origem policial. Aliás, se você analisa torizado essa violência. Existe pouco empenho na
os inúmeros vídeos, fotos, textos e relatos sobre apuração dos crimes praticados por policiais no
essas manifestações, constata-se que, quase sem- período. Só que paralelamente a isso, ocorre ago-
pre, quando os manifestantes usaram da força, foi ra uma grande comoção social em casos como o
em caráter defensivo. Existem alguns poucos ca- do pedreiro Amarildo no Rio e o do garoto Dou-
sos de policiais que foram agredidos gratuitamen- glas na Zona Norte de São Paulo: infelizmente,
te nesse processo, mas comparado com a quan- gente pobre e inocente morria todo o tempo nas
tidade gigantesca e a intensidade das agressões mãos da polícia, mas isso felizmente começa a in-
realizadas por eles contra os manifestantes, não dignar as pessoas agora. Só que o policial que
há como equiparar nada. É possível fazer uma matou Douglas irá responder processo por homi-
crítica estratégica e política dessas manifestações, cídio culposo – isto é, sem intenção de matar –
mas embarcar num rema-rema moralista apenas em liberdade, enquanto os agressores do coronel,
favorece a criminalização dos movimentos sociais em recente manifestação, responderão presos por
e a violência de Estado. tentativa de homicídio. Existem dois pesos e duas
medidas aí.

Violência IHU On-Line – Qual é a gênese dos Black


Blocs? Como e por que esse fenômeno se
É preciso acrescentar que a violência policial formou?
é algo que, por natureza, não tem simetria com a Hugo Albuquerque – Não é difícil descobrir
violência praticada por pessoas comuns: a coisa é como o Black Bloc surgiu: na Berlim Ocidental
outra, a violência de Estado tem natureza pecu- do início dos anos 1980. Depois o fenômeno teve
liar, pois ela é aquela na qual o agredido não tem sucesso nas marchas alterglobalistas dos anos
a quem recorrer. Ele é atacado por quem está ali, 1990. Mas é preciso lembrar o seguinte: o que
em tese, para protegê-lo, e para ser atacado dessa se passava com a Alemanha Ocidental naquela
maneira ele precisa ser rotulado como causador época? Simples, era a crise da social-democracia,
de algo, pois para que um policial use de força que, depois de um longo governo, rompeu o diá-
contra alguém, a imagem pública dessa precisa, logo com os movimentos sociais, ambientalistas,

88
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

etc. A partir daí, temas importantes de direitos Hugo Albuquerque – Pela polarização à qual
civis, a questão da energia nuclear e que tais fica- eu me referi inicialmente. Quem deflagrou a vio-
ram de fora da agenda. É a mesma época em que lência, me parece, não foram os manifestantes,
a ala ambientalista do partido social-democrata mas agora existe muito ressentimento, angústia,
rompe com ele e funda o Partido Verde. Era a flutuações de ânimos, etc. E muita repressão: pela
mesma coisa na Itália com o partido comunista primeira vez na nossa história existe um consenso
local: uma aliança entre capital e trabalho a bem entre as elites políticas de que é preciso reprimir,
do desenvolvimento, do progresso. Sindicatos de sim, não há mais alguém pelos ativistas, ao mes-
braços dados com o capital nacional. O Black mo tempo que as pessoas estão enfurecidas. Isso,
Bloc, embora não propriamente violento à ma- ao meu pensar, só se resolve com uma sincera
neira de organizações como a Fração do Exército interlocução política.
Vermelho, expressou o horror e a revolta de toda
Do Black Bloc, o que importa não é a vio-
uma juventude com a perspectiva política desu-
lência física, nós não vivemos em um sistema no
mana, previsível e absolutamente vazia: na qual
qual a violência física realmente importa, não es-
todos marcham numa estrada monótona, onde
não há perdão para quem se recusar a seguir essa tamos na Idade Média: a modernidade se assenta
trilha para o futuro. sobre violências psicológicas, sujeições voluntá-
rias e que tais. No caso, imagino que algo como o
IHU On-Line – Os Black Blocs fazem par- Black Bloc incomode por ser uma organização
te da multidão? O que os diferencia e os horizontal, anônima e de multidão: eles não po-
aproxima? dem ser efetivamente passíveis de uma ordem,
Hugo Albuquerque – A multidão é muita coisa, não têm nome. Por outro lado, os movimentos
ela é um conceito, uma expressão de coletividade reivindicatórios precisam sair da estética e chegar
humana que emerge não pela homogeneidade, à política.
como o “povo” ou a “sociedade”, mas sim por
diferenças intensas que se desdobram continua- IHU On-Line – Em que consiste o poder
mente. O Quilombo dos Palmares e uma série constituinte da multidão? Qual é o poder
de outros eventos resistentes da nossa história são constituinte das ruas?
multitudinários. A diferença agora é que a revolu- Hugo Albuquerque – É uma ideia do filósofo
ção das tecnologias de informação e comunicação italiano Antonio Negri, que, baseado na meta-
criou, em escala global, uma disposição multitudi- física de Spinoza, rompe com a separação está-
nária da vida e do trabalho. Essa é a novidade, a tica e primária entre poder constituinte e poder
maneira como a multidão emerge historicamen- constituído que nós aprendemos nos bancos das
te. E as revoltas dessa multidão se expressam de faculdades de Direito. Essa ideia modernista de
um modo diferente do que no século XIX, com que houve uma revolução, mas adveio uma nova
a classe trabalhadora, uma dessas formas, aliás, ordem, benigna, é coisa de Napoleão: a constitui-
são as greves metropolitanas. O Black Bloc e o ção – na forma de um contrato burguês – adveio
avanço do anarquismo e do autonomismo entre e a revolução acabou. Sem dúvida alguma, uma
os jovens, em detrimento do partido e das ban- pura peça retórica que transforma o evento des-
deiras socialistas clássicas, são uma marca deste tituinte de uma velha ordem, e constituinte da li-
novo mundo. berdade, em um mito fundador domesticado que
fundamenta a obediência absoluta à nova ordem.
IHU On-Line – Por que essas manifesta- Isso serviu para que tudo mudasse sem nada mu-
ções ocorrem, em alguma medida, sob a dar na França pós-revolução, quando a aristocra-
linguagem da violência? Em que consiste cia traiu camponeses, baixo clero, trabalhadores,
a “violência simbólica” e a “estratégia per- mulheres para apenas tomar o lugar que era da
formática”, como os Black Blocs definem? burguesia. O poder constituído é uma farsa histó-
Ela é justificável? Quais os limites dessa rica, que vem a legitimar a violência de um setor
manifestação? sobre o outro, criminalizando a eventual resistên-

89
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

cia dos oprimidos. De certa forma, o PT – até o oficiais e, a partir delas, podemos ser comanda-
governo Lula – sempre deu vazão a esta potên- dos. Apesar de todos os mecanismos de pesos e
cia constituinte, mesmo que com ambivalências, contrapesos, o Estado pode emitir uma decisão
constituiu direitos e melhorou a vida dos povos final que não é passível de contenção pelos ci-
brasileiros. Uma vez que ele deixou de fazer isso, dadãos. E isso independe do governo, de quem
aconteceu o óbvio: o fluxo da correnteza represou esteja lá, é algo próprio da forma de organiza-
e arrebentou a barragem. ção estatal. Daí que toda crítica moral(ista) a um
determinado governo é ingênua ou muito mal-
IHU On-Line – Como interpreta as críticas intencionada. Quando os cidadãos comuns se or-
aos Black Blocs e às manifestações que ganizam da mesma forma, eles colocam o Estado
ocorreram em junho? Trata-se de duas crí- em choque.
ticas específicas a cada movimento, ou é
uma única crítica? IHU On-Line – O que significa o Estado não
Hugo Albuquerque – Bem, eu acho que exis- ter fundamento? Qual é a alternativa ao
tem pessoas realmente incomodadas pelo abalo à Estado?
ordem, outras com sincero temor sobre os rumos Hugo Albuquerque – O Estado estabelece
do que pode acontecer – o uso desses eventos identidades, nomeando, mas ele próprio não tem
para instituir um regime reacionário – e um ânimo nome, ele ordena, mas em último caso não é or-
igualmente sincero de outro lado – às vezes exa- denável. Olhem o mito do deus judaico: deus não
gerado, mas muitas vezes equilibrado. Eu penso tem nome, pois é ele quem nomeia, ele quem dá
que isso tudo é muito complicado. Mas estou mais nome aos filhos e, por isso, seria indigno que es-
preocupado com quem gerou mais violência e tes o nomeassem. Ora essa, não se trata de um
pode gerá-la mais ainda; eventuais atos exacerba- fenômeno lógico, mas de uma questão ideológica
dos cometidos por algum adepto da tática Black óbvia: deus não pode ser nomeado, pois se fos-
Bloc precisam ser vistos na sua real dimensão: se, poderia ser comandado também. Ele tem uma
uma infração, uma desobediência civil, um ato mera identidade genérica, uma identidade mera-
individual ou em grupo. Não foram os Black mente descritiva e não prescritível. Com o Estado
Blocs que sequestraram, torturaram, cegaram ou ocorre o mesmo. E o Estado, que e’ um fenômeno
mataram alguém nesse período de tempo. próprio da modernidade, é feito à imagem e se-
Eu poderia fazer “n” críticas ao método de melhança de deus. É uma máquina política que,
ação dos Black Blocs e mascarados em geral, conceitualmente, se caracteriza pela pretensão de
mas evito fazer para não embarcar nessa onda de onisciência, da onipotência e da onipresença,
criminalização. isto é, a divina providência que tudo pode (como
Direito penal não é panaceia. O que me as- em um totalitarismo) inclusive escolher nada po-
susta mesmo nesse momento é a violência poli- der (em um neoliberalismo). No plano histórico,
cial, a aplicação contra civis da Lei de Segurança Estado é uma forma de organização política las-
Nacional, as prisões arbitrárias e em massa, o cer- treada por um corpo permanente de burocratas,
ceamento de defesa de muitos dos acusados de cuja praxe mantém uma continuidade hermética
terem feito algo nestes últimos meses. é permanente, é a exceção permanente à qual se
refere Benjamin: um mundo ordenado por vilões,
IHU On-Line – Em que fundamenta a afir- por administradores, um monte de engrenagens
mação de que “o Estado é anárquico como objetificadas e objetificantes. Mudam-se as “ca-
a tradição teológica é anárquica”? beças” e permanecem os burocratas. Eles vivem
Hugo Albuquerque – É uma ideia agambenia- do trabalho vivo parasitariamente. E essa lógica
na. O Estado, a exemplo do deus-pai da mitologia se sustenta em uma lógica meramente econômi-
abraâmica, não tem fundamento. Isto é, ele é “an- ca, algo transportado desta vez do patriarcalismo
archon”, sem fundamento, em grego. Ele cria as greco-romano, no qual a cidade era composta por
identidades das pessoas, nossas identidades são várias casas (oikias) comandadas por um dono

90
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

(“dominus” ou “despotes”) que pelo título públi- eles usando de sua mesma racionalidade, só que
co do “dominium” exercia mando absoluto sobre de forma positiva. Posto isso, qual a alternativa
sua família, servos e escravos. Platão é o primeiro que existe para o Estado? Que com Estado não
pensador que, no afã de resolver os problemas existem alternativas, mas sem ele, elas se tornam
políticos (da Atenas de então), propugna por uma possíveis. O mundo viveu muito tempo sem a for-
lógica econômica de ordenação política que, a ma de organização estatal. É uma ideia inventa-
rigor, suprimiu a própria política. Não à toa, os da pelos pensadores burgueses e pré-burgueses
vários fascismos do século 20º converteram seus como Hobbes, mas cuja realização histórica só se
líderes em figuras patriarcais – com a diferença deu mesmo com as revoluções que a burguesia
que a ideia de eugenia acabou sendo transforma- solapou: a Gloriosa, a Americana e, sobretudo,
da em critério para a fidelidade. Atente-se que eu a Francesa. Perguntar-se sobre alternativas ao
não chamei ninguém de “vilão” à toa: o “villicus” Estado, é como indar o que seria de nós sem as
romano era quem administrava a Casa, quem fa- armas de fogo. De tal sorte, o erro histórico das
zia o trabalho sujo e duro de acordo com a vonta- esquerdas, da Rússia do século 20 até a América
de do “dominus” (ou muitas vezes influenciando- Latina de hoje, passando pela social-democracia
-o). O Estado é uma multiplicidade de “villicus”. europeia ocidental, foi tentar ocupar algo que,
Vejamos nos que o Estado, qualquer um que seja, por natureza, é inocupável, muito pelo contrário.
possui uma face visível e benigna (o Parlamento,
o diplomata) e outra, secreta e terrível (o interior IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
dos gabinetes, os sistemas de espionagem), o que Hugo Albuquerque – Acho que vivemos um
só é possível porque ele vive em absoluta liberda- momento fascinante, que precisa ser visto sem
de e não é sujeito a nada. Isso o Marques de Sade medo ou esperança, sem desespero ou vontade
já tinha observado, quando dizia que a realização de segurança, mas com alegria e equilíbrio. Tere-
constitucional dos Estados se dava anarquica- mos saudade desses dias no futuro, pelos motivos
mente. Só que o Estado, ou melhor, seus agentes, bons ou maus. É preciso pensar, atuar, propor
entram em pânico quando alguém se volta contra como nunca.

91
Monstro e multidão: a estética das manifestações

Entrevista especial com Barbara Szaniecki

“As análises mais acertadas nesse primeiro disciplinados, deslocamentos de sentidos etc.”.
momento foram as dos próprios manifestantes em Segundo ela, pela estética também é possível
seus movimentos coletivos e singulares. Apesar “ouvir e analisar as emissões e composições das
da diversidade das demandas, eles visivelmente vozes dos cidadãos que, nessa expressão, criam
se reconheceram e se encontraram na crítica aos dispositivos expressivos mais dialógicos, discursos
atuais governantes da nação e gestores das cida- mais polifônicos e, mais uma vez, deslocamentos
des”, diz a pesquisadora. de sentidos”.
“Se existe algum discurso coletivo por todo o Barbara Szaniecki é graduada em Comuni-
Brasil, trata-se menos de demanda por uma refor- cação Visual pela École Nationale Supérieure des
ma política genérica e mais por uma escuta con- Arts Décoratifs, mestre e doutora em Design pela
tínua sobre questões concretas e, em particular, Pontifícia Universidade Católica. Atualmente é
aquelas que dizem respeito à gestão das cidades”, coeditora das revistas Lugar Comum, Global/
avalia Barbara Szaniecki em entrevista à IHU Brasil e Multitudes. No momento, desenvolve
On-Line por e-mail, ao analisar as manifestações pesquisa de pós-doutorado intitulada “Tecnolo-
que tomaram as ruas das cidades brasileiras. gias digitais e autenticidade: o estatuto da ima-
Apesar de as reivindicações girarem em tor- gem fotográfica na linguagem visual contemporâ-
no de temáticas centrais como moradia, trabalho, nea” na Escola Superior de Desenho Industrial da
mobilidade e lazer, Barbara assinala que é impos- UERJ. É autora do livro Estética da Multidão.
sível extrair um “discurso coletivo” e um “consen- Confira a entrevista.
so” no momento. Do mesmo modo, as respostas
oferecidas pela presidência da República tratam IHU On-Line – Como avalia as manifesta-
de “uma consulta pontual e cuja forma determi- ções que ocorreram nas últimas semanas
na assuntos por demais abstratos”. E acrescenta: em várias cidades brasileiras? O que é pos-
“Se ‘discurso coletivo’ houver, este será o de uma sível extrair do discurso coletivo?
demanda por diálogo permanente com nossos Barbara Szaniecki – Foram 15 dias incandes-
representantes e instituições políticas, ou seja, a centes, literalmente. Uma incandescência que
extensão no tempo e no espaço de uma ‘multipli- animou boa parte da população e assustou boa
cidade de discursos’”. parte de nossos governantes. Assustou porque,
Barbara Szaniecki também avalia as mani- embora iniciada com uma demanda muito espe-
festações a partir de uma análise estética, pela cífica – a queda do preço da passagem de ônibus,
qual é possível “observar e analisar os posiciona- os famosos 20 centavos –, as demandas rapida-
mentos e os movimentos dos corpos de cidadãos mente se multiplicaram. Aqui, a multiplicação das
que saem de sua rotina produtiva e aderem à ma- demandas indica, sobretudo, a multiplicidade de
nifestação política que atravessa o espaço urbano atores sociais. E foi essa multiplicidade o que se
e, nesse atravessamento, criam nos espaços públi- ignorou nas primeiras análises dos observadores
cos usos mais compartilhados, percursos menos da mídia, dos partidos, das ONGs e da academia,

92
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

entre outros. Talvez as análises mais acertadas Confederações e uma fotografia de uma manifes-
nesse primeiro momento foram as dos próprios tante beijando um soldado durante a manifesta-
manifestantes em seus movimentos coletivos e ção da quinta 27 de junho no Rio de Janeiro.
singulares. Apesar da diversidade das demandas, Na primeira, impressiona a soltura do cor-
eles visivelmente se reconheceram e se encontra- po bamboleante do manifestante em franco con-
ram na crítica aos atuais governantes da nação traste com a rigidez dos corpos disciplinados dos
e gestores das cidades. Contudo, essa crítica co- PM alinhados logo atrás. A disposição dos corpos
mum tem aspectos diferentes dentro do espectro em cena tem muito a dizer sobre o que estava
político tradicional e suscita, por sua vez, receios acontecendo em termos estético-políticos naquele
diferentes. Digamos, muito resumidamente, que espaço-tempo.
à direita impera o medo da revolução esquerdista Na segunda fotografia, nos faz sorrir a ter-
enquanto à esquerda impera o medo do golpe di- nura com que o soldado programado para repri-
reitista. Com base em categorias e métodos socio- mir acaba por ceder ao beijo não programado da
lógicos e políticos abstratos ou arcaicos demais, manifestante. Há também muito o que aprender
o risco de erro de interpretação é grande. Faz-se ao comparar os corpos daqueles que foram cha-
necessário então ir a campo com a mente aberta mados de “vândalos” com os dos policiais: das
e o corpo alerta. roupas, aos gestos e aos movimentos, está pre-
A análise estética faz sentido aqui porque sente ali uma multiplicidade de discursos que são
a estética é política. Jacques Rancière pode ser estéticos sem deixar em momento algum de ser
uma boa referência. Pela estética, podemos ob- políticos.
servar e analisar os posicionamentos e os mo- Todos esses registros são interessantes em si,
vimentos dos corpos de cidadãos que saem de na sua superfície imagética. Em termos de com-
sua rotina produtiva e aderem à manifestação posição e uso (ou não) da cor, algumas fotografias
política que atravessa o espaço urbano e, nesse são belíssimas, mas não é exatamente isso que
atravessamento, criam nos espaços públicos usos nos interessa aqui. É preciso “entrar na imagem”
mais compartilhados, percursos menos disciplina- (fotografia ou vídeo) e sentir os corpos. É preciso
dos, deslocamentos de sentidos etc. Pela estética também “entrar no som” e ouvir as vozes que po-
também podemos ouvir e analisar as emissões e lifonicamente disputam o ruído uníssono do carro
composições das vozes dos cidadãos que, nessa de som. Ou seja, é preciso estar presente nas ma-
expressão, criam dispositivos expressivos mais nifestações para sentir e ouvir, e muito eventual-
dialógicos, discursos mais polifônicos e, mais uma mente entender o que está em jogo, sobretudo as
vez, deslocamentos de sentidos. Para essas ques- demandas não ditas, mal-ditas e malditas.
tões Mikhail Bakhtin permanece uma importante O que é possível extrair do discurso coletivo?
referência teórica. Em todo caso, é preciso enten- Eu diria que não há no momento um “discurso
der estética como algo além do olho, do olhar, da coletivo” e, portanto, há uma total impossibilidade
imagem e do campo do visível. de se extrair de todos esses corpos e vozes, con-
senso algum. A resposta dos poderes constituídos
foi a da reforma política. Plebiscito ou referendo,
Estética pouco importa, pois em ambos os casos se trata
de uma consulta pontual e cuja forma determina
A estética parte do olhar, mas não se restrin- assuntos por demais abstratos. Se “discurso co-
ge ao campo do visível e ainda menos à produ- letivo” houver, este será o de uma demanda por
ção de imagem. Quando falamos em estética, a diálogo permanente com nossos representantes e
introdução do corpo e da voz é fundamental. Por instituições políticas, ou seja, a extensão no tem-
exemplo, circularam nas redes duas imagens bem po e no espaço de uma “multiplicidade de discur-
interessantes: uma fotografia de um manifestan- sos”! O que fazer?
te rebolando com bambolê na manifestação em Representantes políticos perguntam aflitos
frente ao Maracanã no último dia da Copa das se existe uma metodologia para apreender o dis-

93
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

curso coletivo (eventualmente para capturá-lo tos, mas ao mesmo tempo traz a possibilidade do
mercadológica ou eleitoralmente) ou uma teoria esvaziamento ou banalização do significado.
adequada para analisá-lo. Enquanto isso, con- Comecemos com o termo multidão: este foi
sultores, especialistas e todo tipo de novos repre- durante muito tempo, séculos talvez, associado
sentantes tentam vender alguma solução mágica. a grupos não controláveis. Multidão estava mais
Um caminho a meu ver pode ser o da observa- para “turba” do que para “povo” (corpo social
ção das articulações entre as redes e as ruas, e criado pelo Estado e que se manifesta, por sua vez,
sua contínua expansão. Sábado passado, por no cotidiano como “cultura popular” e nas eleições
exemplo, os hastags mobilizadores da passeata com o “voto popular”) ou para “massas” (grupos
pela permanência do Horto entre outras comu- sociais determinados pelo mercado e que se mani-
nidades do Rio ameaçadas de remoção, pela de- festa, por sua vez, nas formas do espetáculo e nos
mocratização da mídia e pela pacificação da po- estilos de vida próprios do consumo). Em 2005 é
lícia eram: #RioSemRemoções #FicaHorto lançado Multidão [1] no Brasil, mas já em 2003
#VivaaVilaAutódromo. em sua vinda ao país, em várias palestras, Negri
Mas voltando o olhar aos registros (fotogra- apresentou o conceito de multidão por pelo menos
fias e vídeos) dos cartazes e das performances três perspectivas distintas, mas complementares e
realizadas ao longo da manifestação daquele dia, que proponho reapresentar rapidamente.
seria possível não apenas criar uma infinidade de Pelo viés sociológico, Negri analisava a trans-
outros hashtags (#Sejamídia #RedeGlobo- formação de sociedades com economias basea-
DeCorrupção #ViolênciaéUPP #FavelaéCi- das no trabalho organizado disciplinarmente na
dade #FavelaTemHistória) como, sobretudo, fábrica fordista a sociedades com economias
concluir que os discursos não apenas são múlti- baseadas em produções em redes sociais e tec-
plos como eles estão, eles também, em movimen- nológicas difusas nas metrópoles e, nessas asso-
to! O que os torna inapreensíveis nesse momento ciações mais cooperativas do que em relações su-
é revelador da potência do movimento. Em ter- bordinadas, ele apreendia novos caminhos para
mos de teoria, alguns conceitos de Antonio Negri a emancipação e autonomia dos trabalhadores.
têm se mostrado pertinentes e até proféticos. Analisava também a própria forma do trabalho
sempre mais predominantemente imaterial. Des-
IHU On-Line – Pode nos explicar em que sa percepção, decorria o segundo viés, que é po-
sentido aborda a metáfora do monstro e lítico: novas formas produtivas demandam novas
como ela pode ser aplicada à sociedade formas políticas.
brasileira e, mais recentemente, às mani- Se o trabalho na fábrica gerou o sindicato
festações que aconteceram nos últimos (que, por sua vez, provocou o nascimento de
dias? partidos ligados às causas dos trabalhadores), as
Barbara Szaniecki – A metáfora do monstro novas associações produtivas nas metrópoles de-
parece se adequar aos acontecimentos dos últi- mandam novas organizações políticas. Essas, de
fato, não chegaram a se concretizar. Talvez seja
mos dias no Brasil. Quando digo “parece”, mani-
esse descompasso entre as atuais potentes formas
festo minha cautela, mas também a necessidade
de produção (novas formas de se relacionar, de
contínua de testar nossas ferramentas teóricas. colaborar, de cocriar, em suma de produzir) por
Multidão e monstro são duas ferramentas impor- um lado e, por outro, as velhas formas de po-
tantes para tentar dar conta das transformações lítica o que gera aquilo que se chama “crise da
no Brasil nos últimos anos e das manifestações representação”.
dos últimos dias. Nos últimos anos, ouvimos falar Em terceiro lugar, o viés ontológico leva à per-
de classe C pra cá, classe C pra lá. De repente, gunta “o que é a multidão?” Uma questão delicada
estouram as manifestações e começamos a ouvir visto que, à diferença das classes sociais – velhas
multidão pra cá, multidão pra lá. O mesmo acon- ou novas classes médias no nosso caso – se defi-
tece com o termo monstro. A difusão dos termos nem por dados e estatísticas a priori, a multidão
talvez indique sua pertinência com relação aos fa- se constitui e se define nas lutas, nos processos.

94
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Biopolítica talvez não exista uma diferença tão marcada. In-


tuitivamente, eu utilizaria “multidão” para apre-
Podemos retomar essa questão mais adiante ender os sujeitos que promoveram e foram pro-
aprofundando a questão da biopolítica. Mas já te- movidos junto com as transformações no Brasil
mos aqui alguns elementos suficientes para abor- dos últimos anos e utilizaria “monstro” para abor-
dar as transformações recentes no Brasil como dar as subjetividades atuantes nas manifestações
constituição da multidão. Pelo primeiro viés, en- dos últimos dias. Avancemos com um texto fun-
tendemos que a abordagem sociológica e econo- damental no qual Negri analisa o processo consti-
micista em termos de classe C seja importante, tuinte do monstro em dois momentos, sendo que
no sentido que houve efetivamente uma grande esses dois momentos não são necessariamente
transformação da sociedade brasileira nos últimos subsequentes.
anos com os governos Lula por meio do aumento Em um primeiro momento, é possível asso-
do salário mínimo e da distribuição de renda por ciar monstro a um “corpo sem órgãos” tal como o
meio de programas específicos e, portanto, do au- definiam Gilles Deleuze e Félix Guattari: o mons-
mento do acesso ao crédito e ao consumo. tro é corpo sem órgãos, pois não tem estrutura
Mas essas conquistas não se limitaram aos definida e não tem funções orgânicas determina-
planos de inclusão e homologação preparados das. É apenas uma intensidade, mas não neces-
pelos economistas neoliberais e tematizados pe- sariamente uma intenção. O monstro é a carne
los marqueteiros eleitorais. Elas foram o terreno da multidão. Não quer dizer que ele seja um está-
de produção de uma subjetividade que, hoje, gio anterior à multidão (uma pré-multidão) que,
expressa outros desejos: desejos de se formar e por sua vez, seria um estágio anterior à forma-
se informar, de se expressar, de comunicar e de ção das classes sociais ou formatação dos corpos
circular, em suma, de exercer sua cidadania. institucionais.
A estagnação no campo da comunicação e o
O monstro não é um estágio pré ou pós
retrocesso no campo da cultura desde a chegada
qualquer coisa, o monstro está sempre aí: são as
de Dilma ao poder são alguns dos sintomas da
possibilidades que resistem e insistem por trás, ao
negligência por parte de governantes, que se aco-
lado, por baixo, por dentro e para fora daquilo
modaram com resultados de eleição e pesquisas
que chamamos de realidade. Em um segundo
de opinião, e de arrogância por parte daqueles
momento, é possível associar monstro ao General
que não se preocuparam em promover o diálogo
Intellect tal como o concebeu Marx. General Intel-
com a população.
lect é a inteligência produtiva e politizada de que
No Brasil, a multidão se fez: uma multi-
falei antes que, entre outras coisas, põe em xeque
dão em grande parte constituída pela juventude
oriunda das classes populares, das periferias e as figuras do “grande intelectual” e do “grande
das favelas, mas não apenas. Apesar das imensas artista”, pondo em evidência que suas obras são
dificuldades encontradas em nossas metrópoles fruto de processos mais coletivos que, contudo,
em termos de moradia, de transporte, de lazer e não eliminam as singularidades presentes.
de tudo, a multidão é superprodutiva, hiperinfor- A constituição do General Intellect no Brasil
mada, ultraconectada e cheia de opinião. Quem pode ser relacionada às políticas, ao longo dos
imaginava que fosse possível separar a produção governos Lula, na educação superior (Reuni,
da política se enganou. Quem imaginava contro- ProUni e Cotas, investimentos em graduação,
lar essa potência em termos de mercado consumi- pós-graduação e extensão nas universidades
dor ou de curral eleitoral se enganou. federais e nos órgãos de fomento assim como
movimentos de pré-vestibulares e formações al-
ternativas que se beneficiaram dessas políticas
Multidão x monstro indiretamente) e na área cultural (em particular
no Programa Cultura Viva – com seus Pontos
E aqui chegamos, enfim, ao monstro! O que de Cultura, Ação Griô e Cultura Digital – inicia-
distingue multidão de monstro é difícil dizer, pois do na gestão de Gilberto Gil no Ministério da

95
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Cultura e que teve na figura de Célio Turino um e misturado, tanto as formas de emprego flexível
idealizador visionário). – que demandam uma atualização constante da
O monstro é sublime. Nem belo nem feio, dita “empregabilidade” – quanto as formas de pro-
nem bom nem mau, nem verdadeiro nem fal- dução autônoma exigem mais e mais mobilidade.
so, ele desconfigura nossas certezas estéticas e Jamais se circulou tanto pelas cidades, por
políticas e, nesse movimento, promove simulta- necessidade sim, mas também por desejo de ou-
neamente angústia e alegria. Contagia. O termo tras experiências urbanas e relações humanas.
“monstro” foi utilizado na mídia nos últimos dias, Um dos reflexos dessa intensa circulação é o nó
equivocadamente, para ressuscitar à esquerda e à no trânsito por conta do transporte coletivo de
direita as paranoias de um golpe totalitário. má qualidade e o consequente recurso ao carro
O monstro é a face mais politizada da mul- individual. E a tendência é piorar caso a deman-
tidão superprodutiva, hiperinformada, ultraco- da seja atendida apenas em termos de redução
nectada e cheia de opinião de que falei acima. A da passagem em vez de melhorias quantitativas e
meu ver, o “monstro” não tem nada de autoritá- qualitativas no sistema como um todo. Se o caos
rio, muito pelo contrário, ele é um terreno de ex- no trânsito me deixa relativamente pessimistas
perimentação e de inovação – estético e político porque envolve decisões imediatas não apenas
– fundamentalmente democrático. O “monstro” é técnicas como também políticas, a percepção do
a verdadeira democracia: aquela na qual formas, desejo de circulação urbana, casado com o de
conteúdos, princípios e processos são indissociá- mobilidade social, que é visível entre os traba-
veis. Por que ter medo? lhadores cognitivos e culturais – e particularmen-
te entre os jovens –, me deixa otimista quanto à
IHU On-Line – Em que medida aponta tais possibilidade de des-hierarquização do espaço
manifestações como uma des-hierarqui- urbano nesse momento monstruoso.
zação do espaço urbano? Quais as conse- Minha reflexão assume aqui o caso especí-
quências disso? fico do Rio de Janeiro. Porque diferentemente
Barbara Szaniecki – Essa é mesmo uma per- das outras cidades brasileiras, o Rio não acolhe
gunta das mais instigantes. Pois como escrevi aci- apenas um megaevento (a Copa) e sim uma sé-
ma, se existe algum discurso coletivo por todo o rie deles com impactos consideráveis. E porque,
Brasil, trata-se menos de demanda por uma refor- por sua configuração muito especial – tradicional-
ma política genérica e mais por uma escuta con- mente conhecida pela distinção nas zonas centrais
tínua sobre questões concretas e, em particular, entre “favela” e “bairro”, “morro” e “asfalto” ou
aquelas que dizem respeito à gestão das cidades. “assentamento informal” e “cidade formal” entre
Não por acaso o estopim foi a questão do trans- outras denominações, além das periferias –, o Rio
porte público. se tornou uma espécie de laboratório de políticas
A mobilidade é um tema central no urbanis- públicas. Nos últimos anos, acostumamo-nos a
mo moderno, junto com a moradia, o trabalho ouvir o discurso das UPPs.
e o lazer. E ela se torna ainda mais central na
contemporaneidade. Por quê? Porque se na era
moderna a mobilidade era definida por trajetos Megaeventos
relativamente determinados como o de casa ao
trabalho e do trabalho a casa, tendo a variável Em tempos de megaeventos (Rio+20 em
de lazer nos momentos de repouso semanal, na 2012, Copa das Confederações e Jornada Mun-
contemporaneidade, a esse tipo de mobilidade, dial da Juventude em 2013, Copa do Mundo em
são acrescentadas inúmeras outras. 2014 e Jogos Olímpicos em 2016), as UPPs ins-
Por serem formas que misturam geração de taladas nas favelas cariocas seriam a garantia da
renda, formação profissional continuada, produ- segurança dos eventos e da circulação dos cida-
ção e circulação de informação, acesso ao consu- dãos na cidade. É o modus operandis do poder:
mo e desejos de sociabilidade, e tudo isso junto ênfase no medo e implementação de uma forma

96
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

de controle do governo sobre a sociedade com articularam por meio de reuniões em cada uma
um novo discurso. delas potencializando-se reciprocamente e forta-
O caso do Rio de Janeiro é novo, mas o lecendo globalmente as lutas por moradia – como
tema é velho: Foucault tem ampla literatura a também abriu, com sua criatividade, outras possi-
respeito. Em paralelo à implementação das UPPs, bilidades de vivências na cidade.
deu-se um forte movimento de especulação imo- Nas universidades públicas no centro ou pró-
biliária que afetou todos os cariocas (de modo ximas ao centro da cidade, jovens e adolescentes
desigual como sempre, mas afetou todos) no que das favelas, das periferias e mesmo dos territórios
diz respeito à moradia. Os moradores de favelas, mais longínquos da região metropolitana vêm es-
quando não são removidos à força, são removi- tudar e compartilhar saberes e fazeres. Nas redes
dos pelo aumento dos custos dos serviços num fe- e nos espaços sociais e culturais – lonas, cineclu-
nômeno conhecido como “remoção branca”. Os bes, lan houses, lajes, etc. – das periferias e das
moradores dos bairros também têm sofrido com favelas, jovens e adolescentes de todos os cantos
preços abusivos de aluguéis, mas o processo não da cidade vêm trocar arquivos, músicas, livros,
é certamente comparável em termos de violência. filmes, ideias, danças, trejeitos, modas, afetos e
O Rio de Janeiro virou uma cidade global- amores. No Rio de Janeiro, ao medo do confron-
mente cara para se morar. Em maior ou menor to respondeu o desejo do encontro.
grau, estamos sendo removidos em prol do sucesso A multidão se constituía aí nos milhões de
de um modelo urbano inadequado à configuração agenciamentos, deslocamentos e desdobramen-
social e cultura carioca no que ela já tem de extre- tos pela cidade. Instituições como universidades
e ONGs entre outras formas instituídas deram al-
mamente hierarquizada e que o modelo imposto
guma base a essa produção de novos sentidos e
pelos atuais poderes públicos só faz hierarquizar
valores, mas foram os movimentos que fizeram
ainda mais criando centros gentrificados (me refiro
toda a diferença.
não apenas à gentrificação do centro ligado à zona
Em suma, a des-hierarquização urbana não
portuária na qual resiste o Morro da Providência
está dada e os episódios de repressão no centro
como também a eliminação de qualquer alterida-
da cidade seguidos da matança na Maré são ain-
de na Barra da Tijuca com a possível remoção da
da fortes indicadores de hierarquias perversas que
Vila Autódromo entre outras comunidades) ou “re-
persistem. Contudo, depois de um período em que
vitalizados”, isto é, esvaziados das formas de vidas
o Rio de Janeiro parecia estar sob o jugo de po-
que ali se constituíram e no aguardo da vinda de deres incontornáveis (o dos padrões internacionais
estilos de vida que não se sabe se virão. de segurança para megaeventos e o das especu-
lações do mercado imobiliário local e global) e,
pior, parecia haver consenso e aceitação da situ-
Des-hierarquização do espaço urbano
ação como único destino possível, as monstruosas
manifestações dos últimos dias – com sua reivin-
Diante desse quadro, o que garantiu alguma
dicação inicial de redução da passagem e integra-
possibilidade de des-hierarquização do espaço
ção progressiva de pautas como a da moradia, da
urbano (em seus aspectos sociais e culturais) foi
educação, da cultura, da comunicação, de uma
justamente a circulação que mencionei acima:
segurança cidadã entre outras – abriram outros
uma circulação eventualmente funcional no senti-
devires apresentando novas possibilidades de des-
do de estar relacionada às exigências do trabalho
-hierarquização do espaço urbano especificamente
contemporâneo, mas sobretudo uma circulação
e, com elas, de des-hierarquização da atividade
desejante de outras experiências urbanas e rela-
política. Poiésis e práxis, mais uma vez, juntas.
ções humanas. A dimensão mais qualitativa que
quantitativa dessa circulação foi responsável não IHU On-Line – Que estética surge a partir
apenas pela resistência ao modelo hierarquizante de tais manifestações? O que ela significa?
de cidade – as resistências das favelas e das ocu- Barbara Szaniecki – Para responder, farei inicial-
pações ameaçadas de remoção, por exemplo, se
mente algumas considerações sobre o que tenho

97
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

visto nas manifestações – concretas e virtuais – para do outro gera alteridades radicais. A semiofagia
em seguida tentar responder mais conceitualmen- da multidão, aquela que une redes e ruas. Teo-
te. Observei, por exemplo, nas ruas e nas redes, a ria? Sim, mas não apenas. Estamos falando do
produção de cartazes. Nas ruas, chama a atenção que fazemos no nosso dia a dia: toma emprestado
a proliferação de cartazes individuais em cartão ou uma máquina aqui, remixa um signo lá, articula
cartolina entre outros materiais toscos, as escritas com outras produções acolá.
à mão na urgência ou no capricho em função do O trabalho da multidão supõe saberes e fa-
momento ou do talento, as ilustrações caricaturais zeres cooperativos e colaborativos. Em muitos
e as fotografias sem retoques “profissionais” que, à casos, são produções quase sem autoria ou que
primeira vista, podem ser interpretados como revi- exige outros modos de autoria, desde os aspectos
val das ondas “do-it-yourself” (faça-você-mesmo) legais até os gêneros expressivos. E se esse traba-
de hippies, punks ou anárquicos, ou ainda como lho material e imaterial da multidão é analógico
expressão do “popular” ou “vernacular”: provavel- ou digital não importa tanto. Mas é sempre o caso
mente é tudo isso junto mas não apenas. de perguntar a quem interessa essa dicotomia que
Em todo caso, multiplicam-se as formas ex- prioriza agentes, práticas e produções de tecnolo-
pressivas relacionadas a formas de vida que resis- gia digital ao mesmo passo que invabiliza agentes,
tem aos padrões globais de cidade. Como trilha práticas e produções de tecnologia analógica ou
sonora, a apropriação da música “vem pra rua” de baixa tecnologia em geral. Como se o “novo”
utilizada por uma montadora se tornou ironica- estivesse inequivocadamente assegurado com o
mente um dos slogans do movimento e disputa os digital e o “velho” estivesse fatalmente atrelado
ouvidos com carro de som e com o barulho das ao analógico. Como se não existissem formas de
bombas. Nas redes, cartazes remixaram a repres- exploração 2.0 e de representação 2.0 e como se
são a pessoas carregando vinagre ou a máscara não resistissem importantes formas de emancipa-
do filme “V de Vendetta” num “V de Vinagre”. ção 1.0 e de expressão 1.0.
Também são numerosos os cartazes (ou me- É até possível afirmar com esse ciclo de
mes) que caricaturam, carnavalizam ou caniba- monstruosoas manifestações que, num momento
lizam a imagem de representantes políticos que em que o ativismo estava limitado (acomodado)
pouco nos representam assim como as insígnias ao Facebook e ao Twitter com seus hashtags e pe-
ou logomarcas do seu poder, em particular às da tições online, foi a volta às ruas quem fez toda a
FIFA nos ultimíssimos dias. diferença! Nas ruas e nas redes as formas analó-
De modo geral, é visível, nos cartazes das gicas e digitais demonstram que não são antagô-
redes, um uso mais acentuado dos recursos high nicas e sim complementares. Produzem, por sua
tech (imagens realizadas com softwares de ima- vez, novos agenciamentos estéticos e políticos.
gem e de composição tipográfica) se comparados Como qualificar essa estética? Anos atrás,
aos recursos low tech e gambiarras dos cartazes ao descrever a resistência à Guerra do Iraque
das ruas (os cartões e cartolinas com escritas à em 2003, eu a havia descrito como uma estéti-
mão de que falamos), pois esses usos dependem ca da multidão [2]. Naquele momento, iniciei a
de vários fatores: acesso social, nível educacional análise com a produção de cartazes expandin-
e universo cultural, entre outros. Mas o tom cari- do-a em seguida para as manifestações como
catural, carnavalesco e antropofágico é frequente um todo: dos inúmeros objetos que a compu-
em todos. Uma faixa que traduz esse espírito foi a nham (cartazes, faixas, bandeiras, etc.) aos cor-
“Unfair Players” que juntava numa mesma ima- pos dos manifestantes.
gem tipográfica a FIFA, a polícia e Anastasia em Considero que as manifestações desses últi-
Belo Horizonte. mos dias no Brasil poderiam ser pensadas dentro
O carnaval de Bakhtin, aquele que subver- desse quadro teórico – de estética da multidão –
te os poderes opressores e se desdobra em obras mas, diante do impacto e sobretudo da desme-
polifônicas. A antropofagia de Oswald, aquela dida que assistimos e vivemos, fico tentada em
que transmuta a tristeza em alegria – a alegria é qualificá-la como uma estética do monstro e, por
a prova dos nove – e, após devoração e digestão essa denominação, indico as subjetividades que a

98
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

produzem. Estética do monstro porque é o Cor- ria o centro da cidade como lugar de moradia, de
po sem Órgãos (Deleuze e Guattari) e o General lazer e de negócios. E por “outros”, os outros de
Intellect (Marx) mencionados acima que a produ- sempre: moradores de baixa renda que fizeram
zem. Mas, além de atribuir essa produção a esse da zona degradada seu lugar de existência e de
sujeito – corpo e intelecto – em contínua consti- resistência. As vidas das ocupações são removi-
tuição e jamais plenamente constituído, podemos das. As vidas das favelas são removidas.
qualificá-la ainda mais, em sua poiésis e em sua No Morro da Providência, favela histórica do
práxis, no seu produzir e no seu agir: eu diria que Rio de Janeiro, são muitas as famílias ameaçadas
se trata de uma estética da ocupação da cidade, de remoção para a construção de um teleférico
em conflito com a estética de espetacularização que mais servirá aos turistas do que aos morado-
da cidade, ainda dominante mas profundamente res que já manifestaram inúmeras vezes sua in-
abalada nos últimos dias. satisfação com as soluções apresentadas. Apesar
disso, em lugar de optar por um projeto baseado
IHU On-Line – Quais são as principais práti- em experiências de mixidade social, o poder pú-
cas de resistência à sociedade de controle? blico optou por um projeto de gentrificação social.
Que perspectiva política é possível vislum- Em suma, estamos realmente no terreno de
brar numa sociedade controlada pelo bio- confronto entre poderes que se exercem sobre
poder e pela biopolítica? Em que medida as a vida (biopoderes) e potências da própria vida
manifestações podem romper com a lógica (biopolítica). Retomemos então em O cenário da
biopolítica? Deseja acrescentar algo? inauguração do MAR [5]. O Museu brilhava, os
Barbara Szaniecki – Para não me estender na convidados brindavam: os três níveis governo, a
teoria sobre o tema – já tratada intensa e exten- família Marinho e a “classe criativa” (aqueles que
sivamente por autores como Michel Foucault [3], se reconhecem como tal). Do lado de fora, movi-
Antonio Negri e Giusepe Cocco [4] –, abordarei a mentos sociais e culturais manifestavam batendo
biopolítica a seguir a partir de um episódio de que lata e executando performances. Pela primeira
pouco se falou na mídia no ano passado que fo- vez depois de muitos anos, ruidosa e provoca-
ram as manifestações na frente do Museu de Arte doramente, o Monstro mostrou a sua cara. Não
do Rio no dia de sua inauguração na zona por- poderia imaginar que meses depois as manifesta-
tuária. O exemplo é, de fato, muito significativo. ções fossem tomar as ruas como tomaram, mas,
A zona portuária do Rio de Janeiro vem retrospectivamente, considero bastante significati-
passando por um importante processo de “revi- vo que o primeiro sintoma de monstruação tenha
talização” dentro de uma tentativa de retomada se dado aqui no Rio de Janeiro pelo viés da arte
econômica, social, cultural e artística baseado na e da cultura, que pareciam ultimamente adorme-
dita Economia Criativa. Não negamos a impor- cidas por grandes consensos.
tância de reforma da infraestrutura local e mesmo
do projeto de revalorização do centro da cidade
por meio da liberação do acesso ao chamado wa- Notas da entrevistada
terfront – o espelho d’água da Baía da Guanaba- [1] HARDT, Michael. NEGRI, Antonio. Multidão. Rio de Ja-
ra – para o usufruto do carioca e, sobretudo, para neiro: Record, 2005.
a marcar um novo ciclo virtuoso para a cidade. [2] SZANIECKI, Barbara. Estética da Multidão. Rio de Janei-
ro: Record, 2007.
Mas cabe aqui perguntar: Que projeto de “re-
[3] Michel Foucault em Nascimento da Biopolítica e Segu-
vitalização” é esse que em nome da vida de uns rança, Território, População.
exclui a vida de outros? Quem são os uns e quem [4] COCCO, Giuseppe e NEGRI, Antonio. GlobAL – Bio-
são os outros? Por “uns” podemos entender o tu- poder e luta em uma América Latina Globalizada. Rio de
rismo de brasileiros e estrangeiros mas também, Janeiro: Record, 2005.
[5] Um artigo recente de minha autoria sobre esse evento:
sem muita certeza, uma classe média que retoma- http://naborda.com.br/2013/texto/sobre-museus-e-monstros/

Por Patricia Fachin

99
Expectativas sociais: o combustível das manifestações

Entrevista especial com Hervé Théry

“As manifestações deram uma sacudida Hervé Théry é graduado em História e em


que o Brasil ainda não conhecia”, assinala o Geografia pela Université Paris I. É também mes-
geógrafo. tre e doutor em Geografia pela mesma instituição.
Surpreso com as manifestações que to- Trabalha como pesquisador do Centre National
maram as ruas brasileiras nas últimas semanas, de la Recherche Scientifique, professor visitante
Hervé Théry, pesquisador francês, aponta as de- da USP, pesquisador convidado da Universidade
sigualdades sociais como uma das causas dos pro- de Brasília – UnB e diretor do Observatoire Hom-
testos. “Muitas pessoas acharam que o aumento mes-milieux OHM.
de 20 centavos era irrisório para gerar essa ma- Confira a entrevista.
nifestação, mas há tanta desigualdade de renda
no país que, para uma parcela significativa da po- IHU On-Line – Que relações o senhor esta-
pulação, 20 centavos (que vai a 40 centavos por belece entre as manifestações que ocupa-
dia e, assim, a 2 reais por semana), acaba sendo ram as ruas brasileiras nas últimas sema-
uma despesa grande”, aponta na entrevista a se- nas e as desigualdades sociais que existem
guir concedida por telefone à IHU On-Line. Na no país?
avaliação do geógrafo, as manifestações “abrem Hervé Théry – Tem uma relação parcial, ape-
possibilidade para o que ontem parecia impossí- sar de o pontapé inicial ter sido o aumento do
vel, mas que agora pode ser pensado como algo preço da passagem do transporte público. Muitas
possível, a exemplo de uma reforma política ou pessoas acharam que o aumento de 20 centavos
uma política fiscal diferente”. era irrisório para gerar essa manifestação. Mas há
Autor de Atlas do Brasil: Disparidade e tanta desigualdade de renda no país que, para
dinâmicas do território, Hervé Théry comenta uma parcela significativa da população, estes 20
que ao publicar a primeira edição do estudo, em centavos (que vai a 40 centavos por dia e, assim,
2003, tinha a expectativa de que o PT reduzisse a 2 reais por semana), acaba sendo uma despesa
as desigualdades sociais e as disparidades entre grande.
ricos e pobres. Dez anos depois, afirma, “serei
menos afirmativo, porque muitas estruturas que IHU On-Line – Em que regiões do país as
estavam no modelo de desenvolvimento do PT desigualdades predominam?
foram descartadas. O sistema econômico mudou Hervé Théry – Na publicação intitulada Atlas
pouco, políticas sociais regrediram, mas em com- do Brasil: Disparidade e dinâmicas do território,
pensação algumas medidas mudaram a perspec- escolhemos não falar em desigualdades, porque
tiva da sociedade, como o aumento significativo esse termo já faz um julgamento sobre o sistema.
do salário mínimo”. E acrescenta: “Trata-se de Optamos por mostrar as diferenças nas diversas
uma agenda social que consiste em dar um pouco regiões do país. Obviamente as regiões Sul e Su-
mais aos pobres para que fiquem felizes, do que deste se destacam em ralação às regiões Norte e
realmente romper com a condição de pobreza”. Nordeste. É possível observar cinturões de pobre-

100
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

za em volta de cidades de classe média imedia- Hervé Théry – Quando publicamos a primei-
ta. Há quem diga que as desigualdades no Brasil ra edição do nosso atlas, em 2003, escrevemos
são tantas que chegam a ser fractais, repetindo-se na orelha do livro: “Esse é o Brasil que o PT vai
em cada escala. As regiões brasileiras são mais mudar”. Havia a expectativa de que este partido
ou menos ricas, e dentro de cada estado as capi- teria herdado um Brasil e iria construir outro. Dez
tais são mais ricas, tendo cidades mais ou menos anos depois, serei menos afirmativo, porque mui-
pobres. tas estruturas que estavam no modelo de desen-
volvimento do PT foram descartadas. O sistema
IHU On-Line – As manifestações apontam econômico mudou pouco, políticas sociais regre-
alguma mudança na resolução das desi- diram, mas em compensação algumas medidas
gualdades sociais? mudaram a perspectiva da sociedade, como o
Hervé Théry – Para ser honesto, eu não havia aumento significativo do salário mínimo. Como
previsto essas manifestações. Muitos especialis- milhões de brasileiros ganham o salário mínimo,
tas brasileiros também não conseguiram prever milhares de dezenas de pessoas passaram da mi-
essa onda de protestos. Tais manifestações abrem séria para uma pobreza mitigada, que introduziu
possibilidade para o que ontem parecia impossí- esperança e aumentou as expectativas, as quais
vel, mas que agora pode ser pensado como algo constituíram combustível das passeatas. Pessoas
possível, a exemplo de uma reforma política ou que pensavam que, graças a essas mudanças,
uma política fiscal diferente. Não digo que tudo mudariam de vida ainda esbarram em problemas
mudará de um dia para o outro, mas pode mudar que não tinham antecipado.
a perspectiva. A popularidade da presidente di- Tem de se considerar também que algumas
minuiu e alguns ministros já mudaram bastante o regiões que estavam muito atrasadas começaram
discurso. Então, essas manifestações deram uma a recuperar o atraso, especialmente o Nordeste,
sacudida que o Brasil ainda não conhecia. não tanto através da renda e da criação de em-
prego, mas das transferências do programa Bolsa
IHU On-Line – Por que as manifestações fo- Família e de um melhor atendimento nas escolas.
ram uma surpresa para o senhor? Isso fez com que o Nordeste saísse de índices mui-
Hervé Théry – Quem vive no Brasil ou é brasi- to baixos. Trata-se de um reequilíbrio.
leiro sabe que há uma tendência na cultura do
país de resolver pessoalmente as dificuldades com IHU On-Line – Como romper com a agenda
o apoio da família e dos amigos, e raramente se social brasileira assistencialista e resolver
recorre a uma ação coletiva, muito menos a de problemas de ordem estrutural?
sair às ruas. Olhando a retrospectiva, as últimas Hervé Théry – Esse é o “x” do problema. São as
manifestações foram as Diretas Já, na década questões estruturais que supõem uma mudança
de 1980, e a manifestação do impeachment profunda do sistema, porque o que foi feito até
do presidente Collor, em 1992. Em 2002 não então pode ser chamado de assistencialismo. Ou
teve manifestação, porque foi a eleição do Lula, e seja, trata-se de uma agenda social que consis-
2012 acaba de passar. Então, vamos ver, de dez te em dar um pouco mais aos pobres para que
em dez anos, esse tipo de onda, sem nenhuma fiquem felizes, e não realmente romper com a
regularidade e nenhuma periodicidade obrigató- condição de pobreza. Acho que ninguém discu-
ria. Costumo dizer que gostaria que os franceses te muito que as duas alavancas principais para
resmungassem e manifestassem menos e que os sair do desenvolvimento e crescer são educação e
brasileiros se manifestassem mais. emprego. Outros casos conhecidos historicamen-
te, como no Japão, na Coreia do Sul, em Singa-
IHU On-Line – Que avaliação faz dos dez pura, mostram um esforço em educação para que
anos da gestão do PT no governo nacional as pessoas se qualifiquem mais e tenham empre-
em termos de políticas sociais para dimi- gos qualificados. É isso que cria um crescimento
nuir as desigualdades? rápido.

101
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Na França, a educação é universal desde Veja também


1870. E o crescimento econômico forte, o mila-
gre francês, ocorreu exatamente 20 anos depois #VEMpraRUA: Outono Brasileiro? Leituras, Ca-
com a nova geração mais qualificada. Não é ne- dernos IHU ideias, no. 191
nhuma surpresa que o investimento em educação A esquerda e o desejo por trás do rugido da plebe.
custa caro, dá retorno lento, mas é a chave do Entrevista especial com Bruno Cava.
sucesso. Quem tem medo do poder constituinte?

102
A esquerda e o desejo por trás do rugido da plebe

Entrevista especial com Bruno Cava

“Eu mesmo vi vários companheiros, gover- tação de governos, de um conjunto de políticas


nistas ou não, com nojo das manifestações. Mui- urbanas, de todo um projeto de Brasil e de brasi-
tas pessoas vão de verde-amarelo, cantam o hino leiro”, afirma na entrevista a seguir concedida por
nacional, e simplesmente não têm o discurso que e-mail. Para Cava, os protestos também sinalizam
a esquerda gostaria de ouvir. Algumas se com- o desenvolvimento brasileiro negativo e suas re-
portariam como num show ou micareta, outras percussões no mundo do trabalho. “O projeto de
‘distorcem’ a luta partindo para a depredação ou brasileiro por trás do novo Brasil é um brasilei-
a pilhagem, outros seriam teleguiados pela gran- ro preparado para os desafios desse mundo do
de imprensa... A esquerda passa a acusar pulsões trabalho. E o mundo do trabalho, hoje, quer di-
incontroláveis em meio aos protestos, que seriam zer ‘empregabilidade’, uma condição precária e
organizados e protagonizados por massas amor- flexível. O sujeito tem de se adaptar a cobranças
fas, passionais, volúveis”, critica o pesquisador. sucessivamente maiores, tem de prestar um ‘cui-
Em entrevista à IHU On-Line, Bruno Cava, dado de si’ voltado ao empreendedorismo, criati-
mestre em Direito pela UERJ, ao analisar as ma- vidade, sagacidade”.
nifestações que estão ocorrendo em todo o país, Bruno Cava é graduado e pós-graduado em
assinala que “a esquerda ainda alimenta a preten- Engenharia de Infraestrutura Aeronáutica pelo
são de guiar as ‘massas’, iluminando o caminho Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA, gra-
da revolução. A esquerda acha que está com a duado em Direito pela Universidade do Estado
razão. O que está fora de seu campo só contém do Rio de Janeiro – UERJ e mestre em Direito na
uma carga errática e perigosa, que precisa ser linha de pesquisa Teoria e Filosofia do Direito. É
controlada. É o procedimento típico da época das blogueiro do Quadrado dos loucos e escreve
Luzes: me delimito definindo a não razão, o que é em vários sites; ativista nas jornadas de 2013 e
irracional. Aí você tem a Marilena Chaui falando nas ocupas brasileiras em 2011-2012; participa
pejorativamente em ‘magia’ dos protestos, ou o da rede Universidade Nômade, e é coeditor das
Tarso Genro que chegou a apontar uma ‘hipnose revistas Lugar Comum e Global Brasil.
fascista’. Deveríamos, aliás, declarar uma mora- Confira a entrevista.
tória sobre o termo ‘fascista’. Ele tem sido usado
quase como um mecanismo de defesa, para se IHU On-Line – A que atribui a adesão mas-
proteger de uma alteridade que ameaça a própria siva ao Movimento Passe Livre e às recor-
identidade. Parece tão deslocado, quanto alguns rentes manifestações que se seguiram?
setores da extrema-direita, que acusam o governo Bruno Cava – Em primeiro lugar, tem o fator
Dilma de planejar um golpe ‘comunista’”. global. Não falar dele seria deixar passar uma
A exemplo das manifestações que aconte- peça muito importante no quebra-cabeça. Como
cem sucessivamente em diversos países, no Brasil não ver pontos em comum entre o que está acon-
elas “chacoalharam consensos, bagunçaram as tecendo no Brasil e na Turquia, ou no Egito, como
previsões e análises. Elas vêm erodindo a susten- parte do ciclo global disparado pelas revoluções

103
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

árabes, em 2011? Multidões saem para as ruas, to, agora a intranquilidade reina nos gabinetes.
se encontram, se organizam, exprimem a indigna- Mudou, de um modo fundamental, a percepção,
ção acumulada. Não ficam só no grito: ocupam, o que já é muita coisa.
acampam, geram mídia, debates, propostas, apa- Então você tem a conjuntura global, mas por
recem novos grupos e coletivos. Autoconvocadas que pegaria no Brasil? Afinal, estivemos por vários
principalmente pelas redes sociais, elas se organi- anos na contratendência da crise do capitalismo,
zam de maneira transversal, sem um centro, sem aproveitando a oportunidade para conjugar cres-
ideologia, bandeira ou liderança unificadas. Pelo cimento econômico com inclusão social. Quem
contrário, nos protestos, frequentemente emer- disse que as revoltas só acontecem em tempos de
gem narrativas conflitantes, pautas fragmentárias, recessão? O maio de 68 não aconteceu no auge
quereres muitas vezes contraditórios e inconciliá- dos Trinta Gloriosos, como ficou conhecido o
veis. As manifestações são imediatamente acusa- período de prosperidade europeia do segundo
das de não ter direção política, de apresentar de- pós-guerra? Em certo sentido, aquela foi uma in-
mandas vagas ou nenhuma, de não ter futuro. A surreição contra o sucesso da sociedade de bem-
reação das agremiações políticas mais tradicionais estar social, de que a Europa Ocidental se tornou
e da grande imprensa é de perplexidade, descon- paradigma. Embora, de fato, aqui no Brasil esteja-
fiança, chegando até ao desdém. Quando muito, mos bem longe das condições de um país europeu
demonstram alguma condescendência, como se dos anos 1960, aconteceram melhorias importan-
fossem manifestações ingênuas, e necessitassem tes, e uma grande fração da população brasileira
urgentemente de uma requalificação por parte de vive melhor do que há 10 ou 20 anos. O que ocor-
quem entende do assunto. re é que também existe uma crise do crescimento.
Contudo, apesar dos narizes torcidos, em Sem muita consciência disso, o governo alimentou
pouquíssimo tempo os protestos viram e reviram o monstro que agora quer devorá-lo.
a cena política e provocam mudanças duradou- Por um lado, ao valorizar os pobres, ao pro-
ras. Vão contagiando multidões noutros cantos, piciar condições para a integração no mercado de
transmitindo o ímpeto por longas distâncias, de trabalho (formal ou não), também se fortaleceram
maneira imprevisível, nas velocidades próprias da as ferramentas políticas, culturais, comunicativas,
era digital. Nas revoluções árabes, derrubaram cujo contraefeito é uma capacidade superior tam-
ditaduras que até pouco tempo eram conside- bém de agir e demandar. O ciclo se retroalimenta,
radas sólidas como pedra. Na Europa, puseram e as pessoas querem cada vez mais, elevando o
a nu a “ditadura financeira” em que os estados- nível de exigências. É o que o cientista político
nações e a própria União Europeia não passam Giuseppe Cocco, da UFRJ, chama de “mobi-
de filiais subservientes, aplicando as receitas ela- lização produtiva dos pobres”, o que conforma
boradas por bancos, fundos e especialistas mul- uma nova composição social. O processo implica
timilionários. Nos Estados Unidos, as ocupações uma série de transformações, que os indicadores
repuseram no vocabulário político a palavra “ca- econômicos ou tabelas estatísticas não captam,
pitalismo”, trespassando o diálogo cada vez mais porque são transformações que tangem à subje-
anódino dos partidos. No Brasil, de maneira bas- tividade. Aumenta o poder criativo, intensifica a
tante similar, as manifestações chacoalharam con- produtividade combinada dos grupos sociais, o
sensos, bagunçaram as previsões e análises. Elas que Marx chama, nos Grundrisse, de expansão
vêm erodindo a sustentação de governos, de um do “trabalho vivo”.
conjunto de políticas urbanas, de todo um pro-
jeto de Brasil e de brasileiro. Até semanas atrás,
tinha-se a sensação de que tudo isso ia de vento O projeto brasileiro
em popa, mas agora ficou confuso. Antes acha-
vam que apenas algumas minorias – seja da elite Por outro lado, o desenvolvimento brasileiro
ressentida, seja de um esquerdismo cronicamente também tem um lado negativo. Integrar as pes-
“problemático” – estariam insatisfeitas. No entan- soas no “mercado interno” significa, igualmente,

104
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

incluí-las no mundo do trabalho subordinado, fracasso para constranger as pessoas a trabalhar


em circuitos que exploram o tempo de vida para tanto e em condições tão desfavoráveis.
extrair valor. O projeto de brasileiro por trás do É aí, no encontro entre a “mobilização pro-
novo Brasil é um brasileiro preparado para os dutiva dos pobres” (que querem mais e melhor)
desafios desse mundo do trabalho. E o mundo e o descarrego das culpas acumuladas diante do
do trabalho, hoje, quer dizer ‘empregabilidade’, crescimento do Brasil, que a expressão global
uma condição precária e flexível. O sujeito tem “pegou” por aqui. Foi essa conjunção que condu-
de se adaptar a cobranças sucessivamente maio- ziu centenas de milhares aos atos começados pelo
res, tem de prestar um “cuidado de si” voltado MPL. O que permitiu o encontro foi a situação
ao empreendedorismo, criatividade, sagacidade. crítica dos transportes coletivos. Eles continuam
Tem que se qualificar de maneira permanente, desconfortáveis, lentos e superlotados, apesar do
competir ferozmente por vagas disputadíssimas, crescimento de renda e consumo. Continua um
tem de permanecer atento para as ameaças e lugar de sofrimento, abuso sexual, irritação per-
oportunidades de um mercado cambiante. Em manente. A mobilidade urbana em dias de sema-
certo sentido, junto com a inclusão social, aparece na cai a quase zero. Não por acaso, no noticiário
também uma montanha de expectativas, exigên- das grandes cidades, haja tantas brigas, depreda-
cias e cobranças. O sucesso se torna tangível para ções, delinquências, incêndios propositais, sabo-
a “nova classe média”, mas isso também quer di- tagens miúdas de ônibus e estações. Essas expres-
zer que o fracasso passa a rondar cada um como sões esparsas de insatisfação são um sintoma das
uma sombra individual. tensões saturadas, e não apenas marginalidade
O sociólogo Jessé Souza, em Os batalhado- gratuita.
res do Brasil, propõe-se a pesquisar os dramas,
as angústias, os sonhos dessa nova composição
social, emergente no governo Lula, de quem o Problema político
mercado exige a qualificação. No livro, é narra-
do o esforço gigantesco dos pobres em construir Ao contestar mais um aumento da passa-
para si um futuro no “capitalismo brasileiro”, gem, boa parte da população se viu representada
empenhando a integralidade do tempo de vida na atuação do MPL. Só que, desta vez, as pes-
em projetos ferrenhos, incertos, extremamen- soas estavam mais preparadas para se organizar,
te demandantes. Ele descreve como os pobres tinham mais canais para a insatisfação, outras
batalham abnegadamente para, contra todos mídias em que se apoiar além da imprensa con-
os preconceitos e privações, adquirir estrutura vencional. E dentro de uma conectividade mui-
material, cultural e emocional, a fim de escapar to grande com o que está acontecendo nas lutas
da desventura da miséria, dos estigmas da ralé. globais. Isso mudou a percepção: em vez de me
Para ajudar a entender os protestos no Brasil, sentir culpado por não ter conseguido comprar o
um livro que pode ser lido em paralelo é a A conforto de um carro, percebo como se trata de
fábrica do homem endividado (ainda sem edi- uma condição coletiva e que, portanto, pode ser
ção em português), de Maurizio Lazzaratto. Nes- resistida coletivamente. O sofrimento diário nos
se livro, a culpa é abordada como o motor do ônibus, metrôs e trens passa a ser subitamente en-
capitalismo contemporâneo. A dívida de cada tendido não mais como resultado de um fracasso
um perante a sociedade capitalista, mais do que individual, mas como violência de classe.
mensurada em dinheiro, é medida pelas expec- A culpa, enfim, não é nossa. A culpa é do
tativas interiorizadas, por uma exigência subjeti- sistema de transportes, do governo da cidade.
va que nos impele, incansavelmente, para longe “Estão fazendo algo conosco!” Quer dizer, está-se
do fracasso. O fracasso é sempre culpa nossa, diante de um problema político. Essa percepção
uma responsabilidade individual, em vez de pro- alastrada pelas redes torna subitamente possível
duto de um sistema político-econômico que pre- uma luta de grandes proporções. As delinquên-
cisa da aceitação da própria lógica de sucesso e cias e revoltas miúdas se agrupam para se trans-

105
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

formar num grande ato político de recusa. E não de imprensa... A esquerda passa a acusar pulsões
seria a pecha de vandalismo a apagar a chama da incontroláveis em meio aos protestos, que seriam
indignação, diante de uma condição degradante organizados e protagonizados por massas amor-
da vida que é experimentada cotidianamente por fas, passionais, volúveis. Daí essa obsessão, por
milhões de pessoas. O vandalismo sempre esteve assim dizer psicanalítica, de muitos comentaristas
lá, latente, localizado, como a manifestação mais da esquerda, tentando revelar a verdade do dese-
passional de uma revolta cotidiana. jo por trás do “rugido da plebe” e seus compro-
Desse estopim, em pouco tempo, disparou missos libidinosos mais aparentes.
um processo constituinte. Entrou em cena o “tra- Ora, a verdade do desejo não existe no caso,
balho vivo”, a capacidade de cooperação e orga- porque o próprio desejo está criando novas ver-
nização, para espessar mais e mais indignações, dades. Uma razão pré-programada de esquerda
para multiplicar mais e mais demandas, ligando não enxerga as transformações que estão acon-
os muitos pontos de atrito espalhadas pela socie- tecendo. A pessoa pode adotar o verde-amarelo,
dade brasileira. Com isso, os protestos ganharam mas a simples presença nas marchas, discussões
impulso, e se rechearam de pautas do direito à e organizações transforma os sentidos implicados.
cidade e à crítica do sistema político. Podem ter se entusiasmado com imagens na TV
(da Turquia, de São Paulo etc.), mas chegam à
IHU On-Line – Essas manifestações não es- rua e veem a realidade do controle violento so-
tão atreladas a movimentos sociais tradi- bre a cidade. A esquerda pode mudar de atitude,
cionais nem a partidos de esquerda tradi- e alguns já mudaram. Em vez de se refugiar na
cional. O que isso significa? própria “zona de conforto”, onde conhecemos
Bruno Cava – Em primeiro lugar, que o campo os coletivos, discursos e territórios, a esquerda
de esquerda, como se autodefine, ainda é muito pode mergulhar na multidão e pesquisar-com
iluminista. Ainda alimenta a pretensão de guiar as (copesquisar). É melhor do que ficar desejando
“massas”, iluminando o caminho da revolução. A querer que tudo passe logo, que possamos retor-
esquerda acha que está com a razão. O que está nar a nossas marchinhas anódinas de 100 ou 150
fora de seu campo só contém uma carga errática cupinchas, sem qualquer real incômodo ao poder
e perigosa, que precisa ser controlada. É o proce- constituído.
dimento típico da época das Luzes: me delimito A realidade está solta, sem gentileza para os
definindo a não razão, o que é irracional. Aí você esquemas, e por isso mesmo existem grupos de
tem a Marilena Chaui falando pejorativamente direita tentando capturá-la. Por isso, em vez de
em “magia” dos protestos, ou o Tarso Genro que se fechar em sua própria razão iluminada, o caso
chegou a apontar uma “hipnose fascista”. De- talvez seja adotar a perspectiva da relação. Isto
veríamos, aliás, declarar uma moratória sobre o é, de que maneira esses protestos transformam a
termo “fascista”. Ele tem sido usado quase como própria esquerda, a luta, a produção de subjeti-
um mecanismo de defesa, para se proteger de vidade. Essas transformações estão encarnadas
uma alteridade que ameaça a própria identidade. em que sujeitos, com que forma de organização?
Parece tão deslocado, quanto alguns setores da Está faltando uma antropologia perspectivista nas
extrema-direita, que acusam o governo Dilma de lutas, menos para “salvar” o ciclo de lutas, do que
planejar um golpe “comunista”. a própria esquerda tradicional.
Eu mesmo vi vários companheiros, governis-
tas ou não, com nojo das manifestações. Muitas IHU On-Line – As manifestações represen-
pessoas vão de verde-amarelo, cantam o hino na- tam uma consciência de classe? Em que
cional, e simplesmente não têm o discurso que sentido?
a esquerda gostaria de ouvir. Algumas se com- Bruno Cava – Sobre as manifestações, Marcos
portariam como num show ou micareta, outras Nobre, da Unicamp, escreveu um ensaio em for-
“distorcem” a luta partindo para a depredação ou mato instantbook, chamado “Choque de demo-
a pilhagem, outros seriam teleguiados pela gran- cracia”, onde ele caracteriza a mobilização como

106
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

sendo “antipeemedebista”. Por peemedebismo, A composição social ambivalente está no


o filósofo designa uma lógica de governabilida- DNA do levante, e é aí que precisa ser perscrutada
de que aprisiona o sistema político brasileiro. É a luta de classe, ou seja, o momento de ruptura
uma lógica de acordões e vetos seletivos, que com um presente estagnado.
engessa qualquer mudança e reproduz conti-
nuamente o bloco hegemônico no poder. O IHU On-Line – Por outro lado, como per-
peemedebismo seria resultado de muitas déca- cebe manifestações propostas pelos movi-
das de destroçamento da cultura democrática mentos tradicionais a exemplo da CUT, do
no Brasil, quase um déficit de “consciência de MST, e das centrais sindicais? É um movi-
classe”, sem real polarização das forças sociais, mento dentro do atual movimento?
o que até se manteve nos governos Lula e Dil- Bruno Cava – Nesta altura, não dá para delimi-
ma. Marcos Nobre se contrapôs, por exemplo, tar um “dentro” e um “fora” do movimento atual.
a André Singer, preferindo caracterizar o nosso Está tudo em disputa. A própria linha está em dis-
“espírito da época” com a ideia de peemedebis- puta. Quero dizer, agora tudo é zona de transição,
mo, em vez do lulismo. uma franja de recomposição. Essa recomposição
Mas as manifestações quebraram as pernas pode ser de classe, desde que organizada a par-
do argumento. Não adianta falar, agora, que te- tir das transformações (políticas, antropológicas,
riam despontado manifestações antipeemedebis- biopolíticas) que vem acontecendo nos últimos
tas, como se isso não tivesse nada a ver com todo tempos. A CUT, por exemplo, tem muito a ganhar
um conjunto rico de requalificações durante os se conseguir se deixar pautar pelas lutas dos pre-
últimos 10 ou 15 anos. Na realidade, as condi- cários, do trabalho informal em geral, que vem se
ções para que esse nível de mobilização e cultura tornando onipresente. O MST, por sua vez, se em-
democrática pudessem ocorrer foram fortalecidas penha em muitas atividades formuladoras de alter-
nesses governos. Paradoxalmente, contra os pró- nativas ao desenvolvimento. Vale lembrar que, no
prios governos. Como se houvesse dois lulismos, Egito de 2011, os sindicatos e as ligas campesinas
para complexificar um pouco a tese de Singer. exerceram um papel crucial, miscigenando-se às
Um “lulismo de estado”, que governa des- mobilizações organizadas diretamente pela juven-
de cima, numa lógica macroeconomicista, refor- tude conectada nas redes sociais.
mista, repleta de mediações e estruturas para ci-
mentar o apoio tanto do grande capital (bancos, IHU On-Line – Ao longo dos governos Lula
empresas, fluxos de investimento) quanto da po- e Dilma, houve muito incentivo à compra
pulação (massificação das políticas sociais, publi- de automóveis no país. Como entender o
cidade, aliança com as igrejas e “terceiro setor”). alto investimento em transporte individual
É possível que Dilma, imagem da boa gestão e em detrimento do transporte coletivo?
qualidade tecnocrática, com pouca ou nenhuma Bruno Cava – Não dá para culpar o indivíduo
atenção à relação com os movimentos e as trans- de querer ter um carro particular. Chega a ser
formações desde as bases, seja a maior figura perverso você favorecer a elevação da renda da
dessa face. população para, a seguir, culpá-la por querer con-
E um “lulismo selvagem”, um contraefeito sumir. A crítica ao consumismo agora que os po-
das políticas sociais, talvez nem tanto desejado, bres consomem têm uma impostação elitista insu-
que ampliou as capacidades de organização, portável. O objetivo principal nunca foi dividir o
enunciação, autovalorização e mobilidade de bolo, mas comê-lo. O que se deve perguntar não
uma porção enorme de brasileiros. A figura de é por que as pessoas preferem carros particula-
Lula possivelmente guarde essa ambivalência res ao transporte coletivo. Mas, sim, na metrópole
fundamental. Se, por um lado, tinha em Dilma a brasileira, por que é preferível andar de carro e
sua principal assessora, ele soube manter-se co- não ônibus ou metrô. A resposta é evidente. En-
nectado, em alguma boa medida, às tendências tão como tornar o transporte coletivo preferível?
desde baixo. Mais barato, mais rápido, mais seguro?

107
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – Quais são os principais défi- pública, o que o força a reduzir as margens do ca-
cits do transporte público brasileiro? pital, os riscos do investimento, e a lucratividade
Bruno Cava – É outra pergunta que não exige colhida a título de juros. O dinheiro se torna mais
grandes conhecimentos sobre urbanismo, arqui- barato para as pessoas, e o governo é tensionado
tetura ou engenharia de transportes. Pensada em seus acordos e conchavos de governança. Ou
desde cima, desde os gabinetes, negociatas elei- seja, a luta da tarifa zero, que as pessoas já se con-
torais e conchavos, a cidade brasileira do século sideram representadas e participam, é uma luta
XXI funciona como uma grande fábrica de valor. que pode tornar insustentável a atual forma de
As linhas e fluxos são organizados para condu- planejar e governar a cidade. Daí outra realidade,
zir a população de regiões-dormitórios para os outra forma mais democrática, tende a ocupar o
centros de serviços, e vice-versa. A locomoção é lugar. Essa é, sem dúvida, uma luta pelo direito à
taxada de maneira que qualquer outra utilização cidade.
(digamos, ir ao cinema no domingo) exija um dis-
pêndio que, para muitos, é demasiado oneroso. IHU On-Line – Como avalia a proposta de
Nos dias úteis, a superlotação e a lentidão desa- um plebiscito para votar a reforma políti-
conselham qualquer deslocamento que não seja ca? Quais as possibilidades e implicações
no circuito casa-trabalho. Todo o sistema parece dessa proposta?
sempre à beira do colapso, bastando problemas Bruno Cava – É mais um sintoma de que o
localizados para estancar o escoamento. Em algu- medo mudou de lado. Essa oferta por si só já
mas cidades, como São Paulo ou Rio de Janeiro, demonstra a tremenda força das manifestações.
essa situação está se generalizando para todos os O poder constituído não faz concessões à toa.
horários do dia. A resposta dos governos tem sido Começará a testar a força dos protestos, barga-
construir grandes canais viários, corredores de nhando medidas e propostas que permitam-no
ônibus e linhas expressas. retornar à tranquilidade dos gabinetes e seus
Enquanto isso, as pessoas vão resistindo projetos negociados desde o alto. Independente-
como podem. Subsiste um verdadeiro ódio con- mente dos plebiscitos, reduções do preço da pas-
tra os ônibus, o alvo preferencial em quase todos sagem, “pacotões” de emergência, não se pode
os tumultos. É onde os corpos se chocam com perder de vista que tudo isso é uma conquista
esse projeto de cidade, sobre o que não temos direta do poder constituinte que ocupou as ruas.
nenhuma ingerência. Sequer podemos participar A continuação dessas vitórias, a transformação
de decisões relativas a nossos bairros e comuni- disso em novas instituições, na regeneração das
dades. Nesse contexto, a pauta da tarifa zero não existentes, depende da continuação das lutas,
poderia ser mais oportuna. Vai no calcanhar de de sua permanente reinvenção e remotivação.
aquiles do problema: a exploração que esse siste- O tumulto é o pulmão das democracias, e esse
ma difusamente violento se apropria a cada dia. propósito constituinte não pode ser esquecido.
A estratégia não é nova e está inserida numa luta Os plebiscitos, assim, podem ser boas oportuni-
maior por renda (indireta). Consiste em bombar- dades para a reafirmação de propósito. Conces-
dear o governo para que incremente a despesa sões? Sim, obrigado. Mas a gente quer é mais.

Por Patricia Fachin

108
Grito da Seca e Revolta do Busão

Entrevista especial com Tárzia Medeiros

“Trazer para a capital do estado do Rio poderosos de Natal, o das empresas de ônibus,
Grande do Norte a manifestação Grito da Seca que fazem um lobby muito grande e financiam a
foi importante. Conseguimos juntar (...) mais de maioria das campanhas eleitorais, principalmente
cinco mil pessoas. A Revolta do Busão, de forma do poder Executivo”.
solidária, se juntou ao Grito da Seca e participou Tárzia Medeiros é comunicadora popular da
do ato conosco para pressionar o governo do es- ASA.
tado e o governo federal na busca de alternativas Confira a entrevista.
viáveis para essas comunidades”, avalia a comu-
nicadora popular da Articulação no Semiárido IHU On-Line – O que é a Revolta do Busão?
Brasileiro – ASA. Tárzia Medeiros – A Revolta do Busão é um
As manifestações de jovens nas redes sociais movimento que surgiu há quase dois anos, com
há dois anos, criticando a gestão da ex-prefeita de um outro movimento chamado Fora Micarla,
Natal, Micarla de Sousa (PV), continuam ativas que denunciou a corrupção na gestão da ex-pre-
na capital do Rio Grande do Norte. O movimen- feita de Natal, Micarla de Sousa (PV). À época
to, que ficou conhecido no Twitter com a #Fora- jovens estudantes e sindicalistas se mobilizaram
Micarla, hoje chama a atenção com a Revolta visando para pressionar o poder Legislativo para
do Busão e o Grito da Seca. Cerca de cinco mil que instalasse uma comissão especial de inquéri-
pessoas passaram a semana manifestando sua in- to. Eles ocuparam a Câmara dos Vereadores por
dignação com o aumento do preço das passagens onze dias, onde montaram um acampamento
de ônibus, e com as políticas públicas que não chamado Primavera sem Borboleta, em alusão às
geram resultados diante da estiagem que atinge o manifestações da Primavera Árabe, e ao símbolo
semiárido brasileiro. da prefeita (borboleta). Esse movimento ganhou
Tárzia Medeiros, comunicadora popular da muita força através de convocações feitas por
Articulação no Semiárido Brasileiro – ASA, está meio das redes sociais.
acompanhando as manifestações e comenta, em Quando houve o primeiro aumento das
entrevista à IHU On-Line, que, embora os dois passagens, o movimento Fora Micarla mudou
movimentos não tenham nenhuma relação, eles o tema da reivindicação e passou a se chamar
decidiram “fazer um ato em comum” para pres- Revolta do Busão. Fizemos uma pressão mui-
sionar os governos federal e estadual diante da to forte e conseguimos derrubar o aumento da
atual situação do transporte público e dos proble- passagem. Durante a campanha do atual prefeito,
mas do semiárido. Segundo ela, as manifestações Carlos Eduardo Alves (PDT), houve a promessa
“estão sofrendo um processo de criminalização de que não haveria reajuste no preço das passa-
tanto da ação truculenta da polícia quanto do gens, mas poucos meses depois de assumir a pre-
aparato da Polícia Federal, do BOPE, do Batalhão feitura ele assinou o reajuste do preço.
de Choque. (...) Sofremos uma violência muito Vários estudos de técnicos da área urbana
grande porque enfrentamos um dos setores mais demonstram que o preço da passagem em Na-

109
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

tal, levando em conta a quilometragem rodada não critica somente o aumento da passagem, mas
pelos ônibus e o percurso que eles fazem na ci- reivindica o passe livre para estudantes, idosos e
dade, comparando com outras capitais, é um dos desempregados, e pela melhoria das condições
mais caros do país, porque Natal é uma cidade de transporte.
com 800 mil habitantes. Em cidades como Reci-
fe, que tem mais de dois milhões de habitantes, IHU On-Line – E o que são as manifesta-
a passagem custa R$ 2,25. Em Natal, o valor da ções do Grito da Seca?
passagem era R$ 2,20 e aumentou para R$ 2,40. Tárzia Medeiros – O Grito da Seca vem sendo
A partir desse aumento a Revolta do Busão construído há pelo menos dois meses. Inicialmen-
começou a se reunir em plenárias, e nos últimos te, não tinha nenhuma ligação com a Revolta do
dez dias o movimento começou a organizar atos Busão. Ele coincidiu com o aumento da passa-
e marchas nos quais cerca de três mil pessoas têm gem e aí a juventude foi para as ruas. O Grito da
participado. Seca decidiu se juntar com a Revolta do Busão
Ocorre que as manifestações estão sofrendo para fazer um ato em comum.
um processo de criminalização tanto da ação tru- O Grito da Seca foi construído pelo Fórum
culenta da polícia quanto do aparato da Polícia do Campo – FOCAMPO, que congrega várias en-
Federal, do BOPE, do Batalhão de Choque. Até tidades, movimentos sociais, que atuam na zona
estudantes seminaristas de 15 anos foram es- rural com os movimentos do campo. O MST e
pancados, presos de forma indevida. Sofremos a Articulação no Semiárido Brasileiro – ASA se
uma violência muito grande porque enfrentamos juntaram à manifestação, além de algumas pasto-
um dos setores mais poderosos de Natal, o das rais sociais, movimentos urbanos, como o Comitê
empresas de ônibus, que fazem um lobby mui- Popular da Copa. A pauta é reivindicar e questio-
to grande e financiam a maioria das campanhas nar as alternativas que estão sendo apresentadas
eleitorais, principalmente do poder Executivo. pelos governos federal e estadual, e amenizar os
impactos da estiagem prolongada da região semi-
IHU On-Line – Qual a situação do transpor- árida. Algumas alternativas que foram apontadas
te público em Natal? fortalecem a lógica da indústria da seca, a lógi-
Tárzia Medeiros – Os ônibus são precários e cir- ca de levar e trazer água através de carros-pipa
culam lotados, com pessoas em pé. As empresas na mão das prefeituras do interior. Essas políticas
não disponibilizam frotas de ônibus para dar con- propiciam o uso político do acesso à água, à ter-
ta da demanda. Vivemos numa cidade da região ra. A distribuição de água através de carro-pipa
Nordeste em que faz muito calor, os ônibus não tira a autonomia das pessoas e vincula a distribui-
têm ar condicionado, e as frotas não são renova- ção de água como se fosse uma obrigatoriedade
das. Toda a vez em que as empresas aumentam de vinculação política. É possível investir em al-
o preço da passagem, prometem que a frota será ternativas mais eficazes para que as famílias e as
expandida, que os ônibus terão ar-condicionado, comunidades rurais tenham mais autonomia para
mas nada disso é feito. O poder Executivo nunca acessar o seu direito à água.
exige a contrapartida de as empresas cumprirem Trazer para a capital do estado do Rio Gran-
com as promessas. Essa também é uma revolta de do Norte a manifestação Grito da Seca foi im-
e um dos motivos pelos quais estamos nos orga- portante. Conseguimos juntar, no último dia 21,
nizando. Como a qualidade do transporte públi- em Natal, mais de cinco mil pessoas. A Revolta do
co é muito ruim, as pessoas começam a comprar Busão, de forma solidária, se juntou ao Grito da
motos e carros para ter alternativas de circular na Seca e participou do ato conosco para pressionar
cidade, e isso tem gerado um caos. Nunca teve o governo do estado e o governo federal na busca
engarrafamento em Natal, mas hoje não é possí- de alternativas viáveis para essas comunidades.
vel andar sem ficar 40 minutos parado no trânsito As pessoas perderam os seus rebanhos e
em trechos mais críticos, que levam para a Zona hoje, apesar de a chuva ter caído um pouco, não
Norte e Zona Sul. Então, a Revolta do Busão consideramos que a estiagem acabou. Foi uma

110
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

chuva passageira, que não dá conta de produ- comunidades rurais para viabilizar a produção de
zir nada. O plantio de feijão e de milho, que é a alimentos, a perfuração de 500 postos em regi-
principal cultura da região, ainda precisa de um ões onde a seca está muito grande, e estes poços
período de chuva mais intensa para poder se via- poderiam servir para retirar a água e encher as
bilizar. A estiagem ainda não passou e a situação cisternas. Essas questões ainda estão no campo
das famílias das comunidades rurais ainda é mui- das promessas.
to crítica.
O MST ocupou o espaço do centro adminis- IHU On-Line – Gostaria de acrescentar
trativo na capital, onde está localizada a gover- algo?
nadoria, e ficaram acampados até hoje (23-05- Tárzia Medeiros – No dia 21, o juiz federal,
2013), dia da negociação da pauta com o governo Magnus Delgado, proibiu a manifestação de ocu-
do estado. Hoje eles levantaram o acampamento par a BR 101, que é a via de entrada em Natal, e
e estão marchando junto com a Revolta do Bu- disse que quem obstruísse parcial ou totalmente a
são. Novamente devem passar pela prefeitura, BR 101 iria preso em flagrante. Por causa disso, o
que é onde a Revolta do Busão deve fazer um juiz sofreu uma reprimenda do Ministro do Supe-
protesto para continuar pressionando para que rior Tribunal, Joaquim Barbosa. Organizar-se, rei-
o valor da passagem volte ao seu preço anterior. vindicar e fazer atos são direitos constitucionais.
Depois disso vão seguir para outro órgão do go- A atitude do juiz é algo que não tem amparo na
verno federal para poder negociar a pauta. Constituição.
Esta atitude do juiz deve servir de alerta, por-
IHU On-Line – Quais as repercussões des- que nos próximos meses será aprovada a Lei da
sas manifestações? Copa, que cria um estado de exceção no Brasil.
Tárzia Medeiros – No dia 21-05, depois da Durante a Copa do Mundo será proibida qual-
marcha, teve uma audiência com a governadora quer tipo de organização política, qualquer tipo
Rosalba Ciarlini, e o que conseguimos de concre- de organização de marchas e de protestos. Então,
to foi a perfuração de dez poços que o MST já é como se fosse um ato do AI-5, no período da di-
vinha reivindicando há dois anos, e agora o go- tadura. Então, o que aconteceu em Natal precisa
verno assinou a ordem de serviço. A pauta era as- servir de exemplo para os movimentos sociais de
sistência técnica nas áreas de assentamento e nas todo o Brasil.

111
Para ler mais

14/08/2013 – As manifestações de 2013. “O impasse da ordem das linguagens da temporalidade.” En-


trevista especial com Eugênio Bucci
09/01/2014 – Uma outra leitura do não vai ter Copa e a disputa histórica das Jornadas de Junho
17/01/2014 – Rolês têm a ver com junho?
23/01/2014 – A brecha de junho está aberta: aprofundar a democracia
11/02/2014 – A única pessoa condenada pelas jornadas de junho de 2013…
17/09/2013 – “O pior saldo das manifestações seria o cinismo”
17/09/2013 – Lei antimáscara não vai diminuir violência em manifestações, diz pesquisador
27/09/2013 – Pesquisadores analisam manifestações
28/11/2013 – Copa FIFA 2014: a Copa das manifestações
06/01/2014 – “Manifestações de junho conseguiram destravar a luta popular”
14/01/2014 – Os traços de envelhecimento do PT e sua intolerância para com as manifestações juvenis
27/01/2014 – Ação da polícia questiona seu preparo para futuras manifestações
12/02/2014 – Lista de pessoas mortas e feridas no Brasil em manifestações
03/02/2014 – Governo prepara campanha para defender realização da Copa no País
07/02/2014 – Argumentos para continuar protestando contra a Copa do Mundo no Brasil
10/02/2014 – Protestos fizeram governo mudar discurso sobre Copa
12/02/2014 – Líder do MST diz que protestar durante a Copa do Mundo é um erro
27/01/2014 – Ação da polícia questiona seu preparo para futuras manifestações
27/01/2014 – ‘Polícia chegou batendo em todo mundo’, conta estudante
03/02/2014 – Policiais assumem não ter treinamento adequado para lidar com protestos
04/02/2014 – “PM cria monstros”, diz ex-policial que defende desmilitarização
12/02/2014 – Qual é o futuro das polícias brasileiras?
30/10/2013 – Governo quer conhecer grupo Black Bloc, diz ministro
30/10/2013 – Governo admite não ter compreendido ‘black blocs’, mas busca diálogo
30/10/2013 – Black blocs, o assassinato do menino Douglas e o inferno anunciado…
02/11/2013 – Por que os black blocs incomodam-tanta gente
05/11/2013 – Nem black nem bloc
12/02/2014 – Invasores e black blocs

112
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

12/02/2014 – Black blocs recebem apoio de internautas pelas redes sociais


03/07/2013 – 191ª edição – #VEMpraRUA: Outono Brasileiro? Leituras.
02/07/2009 – 34ª edição – A crise mundial do capitalismo em discussão
Copa do Mundo. Para quem e para quê? Revista IHU On-Line, nº. 422
A crise capitalista e a esquerda. Revista IHU On-Line, nº. 287
O capitalismo cognitivo e a financeirização da economia. Crise e horizontes. Revista IHU On-Line, nº. 301
Direito à cidadania. A política social brasileira em debate. Revista IHU On-Line, nº. 373
29/01/2014 – Rolezinhos preocupam as grifes de moda
27/01/2014 – Os rolezinhos nos acusam: somos uma sociedade injusta e segregacionista
25/01/2014 – Shoppings ‘ignoram potencial de consumo da classe C’ ao coibir rolezinhos
24/01/2014 – Rolezinhos e possível volta de protestos desafiam governantes
24/01/2014 – Rolezinho e roleta-russa
22/01/2014 – Kaique e os rolezinhos: o lugar de cada um
21/01/2014 – Os debates extremados à direita e à esquerda estão ignorando as pessoas que participam
do rolezinho. É hora de entender a periferia
21/01/2014 – O rolezinho é bom para pensar o Brasil
21/01/2014 – ‘Rolezinhos’ têm raízes na luta pelo espaço urbano
20/01/2014 – Pastor promove “rolezinho” gospel e jovens leem a Bíblia em shopping
17/01/2014 – Pra onde vão os rolezinhos
17/01/2014 – Rolezinhos nos shoppings do Brasil proliferam e chegam à imprensa europeia
16/01/2014 – Etnografia do Rolezinho
24/01/2014 – Rolezinho e roleta-russa
22/01/2014 – Kaique e os rolezinhos: o lugar de cada um
21/01/2014 – Os debates extremados à direita e à esquerda estão ignorando as pessoas que participam
do rolezinho. É hora de entender a periferia
21/01/2014 – O rolezinho é bom para pensar o Brasil
21/01/2014 – ‘Rolezinhos’ têm raízes na luta pelo espaço urbano
20/01/2014 – Pastor promove “rolezinho” gospel e jovens leem a Bíblia em shopping
17/01/2014 – Pra onde vão os rolezinhos
17/01/2014 – Rolezinhos nos shoppings do Brasil proliferam e chegam à imprensa europeia
16/01/2014 – Etnografia do Rolezinho
16/01/2014 – Repressão em SP faz “rolezinhos” se multiplicarem
15/01/2014 – “Rolezinhos” se espalham pelo País
20/01/2014 – O rolê da ralé
17/01/2014 – Rolês têm a ver com junho?

113
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

13/01/2014 – MA barra comissão de Direitos Humanos em Pedrinhas


11/12/2013 – Fórum Mundial dos Direitos Humanos reúne mais de 5 mil em Brasília
10/12/2013 – Para especialistas, Brasil vive momento decisivo para garantir direitos humanos
04/12/2013 – A terra e a crise dos direitos humanos na Colômbia
22/11/2013 – Políticos evangélicos em campanha contra avanços no campo dos direitos humanos e
sociais: desinformação, confusão e retórica do terror
12/09/2013 – Dossiê denuncia violações de direitos humanos nas obras da Copa em Curitiba
11/09/2013 – Ditadura chilena. “É preciso esclarecer todos os crimes”, diz advogado experiente em di-
reitos humanos
06/03/2006 – Movimentos sociais reavaliam Lula
28/05/2013 – ONU e ativistas denunciam violações de direitos humanos na preparação da Copa no
Brasil
21/05/2013 – Direitos humanos e desenvolvimento
05/10/2012 – Fotos do dia. Um dia de protestos
15/06/2013 – Por dentro da ‘tropa de choque’ dos protestos
15/06/2013 – Movimentos e entidades protestam contra a violência policial nos protestos de jovens pelo
transporte público
06/11/2013 – Autoridades buscam ‘fórmula’ para punir violência em protestos
15/07/2013 – Monstro e multidão: a estética das manifestações. Entrevista especial com Barbara
Szaniecki
16/07/2013 – Manifestações do Outono Quente do Brasil em debate no IHU
14/08/2013 – As manifestações de 2013. “O impasse da ordem das linguagens da temporalidade.”.
Entrevista especial com Eugênio Bucci
13/07/2013 – Centrais sindicais dizem que manifestações foram um ‘sucesso’
19/07/2013 – O sentido das manifestações não seria a refundação do Brasil?
08/08/2013 – Com vandalismo. Documentário sobre as manifestações no Ceará
09/09/2013 – Com medo da violência, classe média esvazia manifestações
17/09/2013 – “O pior saldo das manifestações seria o cinismo”
17/09/2013 – Lei antimáscara não vai diminuir violência em manifestações, diz pesquisador
27/09/2013 – Pesquisadores analisam manifestações
28/11/2013 – Copa FIFA 2014: a Copa das manifestações
08/01/2014 – Alckmin cria primeiro batalhão da Polícia Militar com função antiterrorista
08/01/2014 – RJ cria Batalhão de Grandes Eventos, que atuará na Copa e em protestos
22/09/2012 – Fotos do dia. Uma sexta-feira de protestos
#VEMpraRUA: Outono Brasileiro? Leituras. Caderno IHU Ideias, nº 191
A potência das ruas em debate. Revista IHU On-Line, nº 434

114
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

10/10/2013 – Black Blocs são bem-vindos desde que se submetam às tradições da categoria, diz sindi-
cato de professores no Rio
09/10/2013 – “Por que eu apoio os Black Blocs”
09/10/2013 – SP e Rio endurecem e Black Blocs serão tratados como organização criminosa
02/10/2013 – Tropa de Choque investe contra professores e ativistas do Black Bloc no Rio
22/08/2013 – O Black Bloc está na rua
08/08/2013 – Black Blocs e Anonymous protestam contra a Rede Globo e entram em confronto com a
polícia no Rio
30/10/2013 – Governo quer conhecer grupo Black Bloc, diz ministro
30/10/2013 – Black blocs, o assassinato do menino Douglas e o inferno anunciado…
02/11/2013 – Por que os black blocs incomodam-tanta gente
06/11/2013 – Autoridades buscam ‘fórmula’ para punir violência em protestos
29/10/2013 – Paraguai. Protestos contra o projeto de privatização
28/10/2013 – Os protestos de junho entre o processo e o resultado
24/10/2013 – O desafio da esquerda (sobre os protestos de junho)
23/10/2013 – Para Dilma, pactos assumidos em meio a protestos de junho estão virando ‘realidade’
15/10/2013 – Grandes protestos voltarão em 2014, diz ativista
28/09/2013 – Protestos foram uma resposta ao ‘peemedebismo’ da política
27/09/2013 – Pesquisadores analisam manifestações
17/09/2013 – Lei antimáscara não vai diminuir violência em manifestações, diz pesquisador
14/09/2013 – Marilena Chauí: “Não. As manifestações de junho não mudaram o país”
09/09/2013 – Com medo da violência, classe média esvazia manifestações
02/08/2013 – Moradores da Rocinha, “Ocupa Cabral” e “black blocs” fazem manifestações no Rio
10/07/2013 – Expectativas sociais: o combustível das manifestações. Entrevista especial com Hervé
Théry
19/06/2013 – A busca por reconhecimento e participação política: o combustível das manifestações.
Entrevista especial com Luiz Werneck Vianna
25/06/2013 – Mobilização reflete nova composição técnica do trabalho imaterial das metrópoles. Entre-
vista especial com Giuseppe Cocco
03/07/2013 – Junho 2013. O Modelo Liberal Periférico e o Desenvolvimento às Avessas. Entrevista es-
pecial com Reinaldo Gonçalves
02/07/2013 – Precariado: a espinha dorsal dos protestos nas ruas das 353 cidades brasileiras. Entrevista
especial com Giovanni Alves
27/06/2013 – “A disputa política está nas ruas”. Entrevista especial com Rudá Ricci
12/07/2013 – As tensões das manifestações de junho e do Dia Nacional de Lutas
11/07/2013 – Sindicatos aderem às manifestações e governo precisará de “tato”, afirma jornal francês

115
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

05/07/2013 – As manifestações de rua e a resposta do governo


02/07/2013 – CUT prepara manifestações contra PL da terceirização
01/07/2013 – ‘Epidemia’ de manifestações tem quase 1 protesto por hora e atinge 353 cidades
29/06/2013 – Manifestações nas ruas. Um cansaço e uma nova forma de expressão
28/06/2013 – A polissemia das manifestações populares
26/06/2013 – Centrais convocam manifestações e marcha para colocar nas ruas pauta do mundo do
trabalho
26/06/2013 – Do “não” ao “vamos”: faltam Lulas e Tancredos nas manifestações
19/06/2013 – A busca por reconhecimento e participação política: o combustível das manifestações.
Entrevista especial com Luiz Werneck Vianna
02/07/2013 – Precariado: a espinha dorsal dos protestos nas ruas das 353 cidades brasileiras. Entrevista
especial com Giovanni Alves
27/06/2013 – “A disputa política está nas ruas”. Entrevista especial com Rudá Ricci
05/07/2013 – As manifestações de rua e a resposta do governo
02/07/2013 – CUT prepara manifestações contra PL da terceirização
01/07/2013 – ‘Epidemia’ de manifestações tem quase 1 protesto por hora e atinge 353 cidades
01/07/2013 – “Tenho confiança na acelerada pedagogia das manifestações”
29/06/2013 – Manifestações nas ruas. Um cansaço e uma nova forma de expressão
28/06/2013 – A polissemia das manifestações populares
26/06/2013 – Centrais convocam manifestações e marcha para colocar nas ruas pauta do mundo do
trabalho
26/06/2013 – Do “não” ao “vamos”: faltam Lulas e Tancredos nas manifestações
26/06/2013 – Manifestações de rua abalaram propostas históricas do PT
24/06/2013 – As manifestações e o direito à política
20/06/2013 – País contempla “atônito” manifestações dos últimos dias, diz Gilberto Carvalho
17/06/2013 – ‘’As manifestações contra a tarifa são válvulas de escape’’
30/03/2013 – 10 anos de PT no governo e o desafio de uma esquerda socialista de massas. Entrevista
especial com Valter Pomar
01/07/2013 – Uma esquerda à altura da crise da República
25/06/2013 – A ‘’esquerda’’ discute o que fazer
22/06/2013 – Esquerda ou direita?
15/06/2013 – Direita e Esquerda: das revoluções liberais ao capitalismo globalizado
19/06/2013 – A busca por reconhecimento e participação política: o combustível das manifestações.
Entrevista especial com Luiz Werneck Vianna
02/07/2013 – CUT prepara manifestações contra PL da terceirização
01/07/2013 – ‘Epidemia’ de manifestações tem quase 1 protesto por hora e atinge 353 cidades

116
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

01/07/2013 – “Tenho confiança na acelerada pedagogia das manifestações”


29/06/2013 – Manifestações nas ruas. Um cansaço e uma nova forma de expressão
28/06/2013 – A polissemia das manifestações populares
26/06/2013 – Centrais convocam manifestações e marcha para colocar nas ruas pauta do mundo do
trabalho
26/06/2013 – Do “não” ao “vamos”: faltam Lulas e Tancredos nas manifestações
26/06/2013 – Manifestações de rua abalaram propostas históricas do PT
24/06/2013 – As manifestações e o direito à política
08/07/2011 – Movimentos virtuais chegam às ruas de Natal. Entrevista especial com Mozart de Albu-
querque Neto
27/06/2011 – “Fora Micarla”. Movimento nasceu e cresceu nas redes sociais
29/10/2011 – “”As redes sociais e a internet deram ao mundo um novo fôlego em termos de cidadania’’.
Entrevista especial com Paulo Faustino
10/08/2011 – A democracia está sendo transformada pelas redes sociais. Entrevista especial com Ronal-
do Lemos
06/07/2011 – 15M. A força que brota das redes sociais. Entrevista especial com Esther Vivas
16/10/2012 – A eleição das redes sociais
21/05/2013 – #RevoltadoBusão usa flores e corações em resposta à força policial

117
Temas dos Cadernos IHU em formação

Nº 01 – Populismo e Trabalhismo: Getúlio Vargas e Leonel Brizola


Nº 02 – Emmanuel Kant: Razão, liberdade, lógica e ética
Nº 03 – Max Weber: A ética protestante e o “espírito” do capitalismo
Nº 04 – Ditadura – 1964: A Memória do Regime Militar
Nº 05 – A crise da sociedade do trabalho
Nº 06 – Física: Evolução, auto-organização, sistemas e caos
Nº 07 – Sociedade Sustentável
Nº 08 – Teologia Pública
Nº 09 – Política econômica. É possível mudá-la?
Nº 10 – Software livre, blogs e TV digital: E o que tudo isso tem a ver com sua vida
Nº 11 – Idade Média e Cinema
Nº 12 – Martin Heidegger: A desconstrução da metafísica
Nº 13 – Michel Foucault: Sua Contribuição para a Educação, a Política e a Ética
Nº 14 – Jesuítas: Sua Identidade e sua Contribuição para o Mundo Moderno
Nº 15 – O Pensamento de Friedrich Nietzsche
Nº 16 – Quer Entender a Modernidade? Freud explica
Nº 17 – Hannah Arendt & Simone Weil – Duas mulheres que marcaram a Filosofia e a Política do século XX
Nº 18 – Movimento feminista: Desafios e impactos
Nº 19 – Biotecnologia: Será o ser humano a medida do mundo e de si mesmo?
Nº 20 – Indústria Calçadista: Quem fabricou esta crise?
Nº 21 – Rumos da Igreja hoje na América Latina: Tudo sobre a V Conferência dos bispos em Aparecida
Nº 22 – Economia Solidária: Uma proposta de organização econômica alternativa para o País
Nº 23 – A ética alimentar: Como cuidar da saúde e do Planeta
Nº 24 – Os desafios de viver a fé em uma sociedade pluralista e pós-cristã
Nº 25 – Aborto: Interfaces históricas, sociológicas, jurídicas, éticas e as conseqüências físicas e psicológi-
cas para a mulher
Nº 26 – Nanotecnologias: Possibilidades e limites
Nº 27 – A monocultura do eucalipto: Deserto disfarçado de verde?
Nº 28 – A transposição do Rio São Francisco em debate
Nº 29 – A sociedade pós-humana: A superação do humano ou a busca de um novo humano?
Nº 30 – O trabalho no capitalismo contemporâneo
Nº 31 – Mística: Força motora para a gratuidade, compaixão, cortesia e hospitalidade
Nº 32 – Paulo de Tarso desafia a Igreja de hoje a um novo sentido de realidade
Nº 33 – A família mudou. Uma reflexão sobre as novas formas de organização familiar
Nº 34 – A crise mundial do capitalismo em discussão
Nº 35 – Midiatização: Uma análise do processo de comunicação em rede
Nº 36 – O Universal e o Particular
Nº 37 – Mulheres em movimento na contemporaneidade
Nº 38 – As múltiplas expressões do sagrado
Nº 39 – Usinas hidrelétricas no Brasil: Matrizes de crises socioambientais
Nº 40 – Campanha da Legalidade: 50 anos de uma insurreição civil
Nº 41 – Memória e justiça: quando esquecer é imoral
Nº 42 – Rio+20: “Que futuro queremos?”
Nº 43 – A grande transformação no campo religioso brasileiro
Nº 44 – Tecnociência e saúde
Nº 45 – Agamben

Anda mungkin juga menyukai