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1116 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

Sobre o cuidar e o ser cuidado na atenção


domiciliar
About caring and being cared for in home care

Sandra Maria Luciano Pozzoli1, Luiz Carlos de Oliveira Cecílio2

RESUMO O objetivo deste artigo é evidenciar experiências do cuidar e ser cuidado e apresen-
tar a visão de cuidadores familiares sobre um Serviço de Atenção Domiciliar. É um estudo de
caso que aplica a cartografia como ethos no campo de pesquisa para captar as experiências
durante as visitas domiciliares e entrevistas com cinco cuidadoras. Para análise da dimensão
empírica, foram eleitos Planos de Corte e, dentro destes, Planos de Visibilidade para exercício
da reflexividade. A alteridade vivida pelos cuidadores e a sobrecarga de responsabilidades são
algumas expressões captadas no campo de pesquisa que indicam a necessidade de associar
serviços de saúde a serviços de apoio sociais.

PALAVRAS-CHAVE Serviços de assistência domiciliar. Assistência domiciliar. Cuidadores.


Serviços domésticos.

ABSTRACT The purpose of this article is to highlight experiences of caring and being cared of and
present the perspective of family caregivers about a Home Care Service. It is a case study that
applies the cartography as ethos in the research field to capture experiences during home visits
and the interviews with five caregivers. The empirical research analysis used Cutting Plans, of
which Visibility Plans were applied as for reflexivity exercise. Otherness lived by caregivers and
their responsibility overload are some expressions captured in the field of research that reveals
the need to associate health services with social support services.

KEYWORDS Home care services. Home nursing. Caregivers. Homemaker services.

1 Universidade Federal de
São Paulo (Unifesp) – São
Paulo (SP), Brasil.
sandrapozzoli@gmail.com

2 Universidade Federal de
São Paulo (Unifesp) – São
Paulo (SP), Brasil.
luizcecilio60@gmail.com

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 115, P. 1116-1129, OUT-DEZ 2017 DOI: 10.1590/0103-1104201711510

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Introdução seja realizado em espaço conhecido, com sig-


nificado afetivo para a pessoa doente e que,
A dependência de cuidados por longo prazo minimamente, preserva certa autonomia do
no ambiente domiciliar e a dedicação de cui- doente (LACERDA, 2010).
dadores a essas pessoas dependentes têm Para Agich (2008, P. 32-33), a autonomia é “ir-
sido objeto de estudo de vários pesquisa- remediavelmente dependente do contexto”.
dores, que revelam as diversas dificuldades O autor considera que para se tentar desen-
associadas ao cuidar, atividade quase sempre volver uma definição de autonomia deve-se
exercida de modo solitário. tomar como ponto de partida uma análise
Pesquisas revelam que de 83,1% (GAIOLI; ética e prática do cuidado de longo prazo,
FUREGATO; SANTOS, 2012) a 93,4% dos cuidadores por considerar que a autonomia é um ideal
são mulheres (FELGAR, 2004). Desde a pesqui- cultural significativo. A autonomia está re-
sa de Karsch (2004), realizada no início da lacionada à independência, o que se contra-
década de 1990, há a constatação de que os põe ao cuidado de longo prazo, pois a pessoa
cuidadores estão em casa, cuidando de seus que depende desse tipo de cuidado sente-se
familiares com dependência, sem quase vulnerável a essa condição de dependência,
nenhuma orientação e, em sua maioria, estão “vê-se como um fardo, como uma pessoa
sozinhos nas tarefas de cuidado. menos completa” (AGICH, 2008, P. 40).
Segundo Cruz et al. (2010), Muniz et al. (2016) Se refletirmos sobre nossa condição
e Gutierrez, Fernandes e Mascarenhas (2017), humana, daremos conta do quanto somos
dentre as dificuldades listadas por cuidado- vulneráveis, dado que estamos frequente-
res estão os conflitos familiares, a cobrança mente expostos a vários tipos de perigos:
da sociedade, o desconhecimento sobre pa- perigo de adoecer, ser agredido, fracas-
tologias que acometem o doente e técnicas sar, morrer. Viver humanamente signi-
inerentes ao cuidado, falta de colaboração fica, portanto, viver na vulnerabilidade
do paciente, falta de recursos econômicos, (ROSELLÓ, 2009). Como diria um personagem
dentre outras contrariedades levantadas em de Guimarães Rosa (2001, P. 33), em frase an-
relação ao mundo do cuidar. tológica do livro ‘Grande Sertão Veredas’:
Felgar (2004) revelou que 39,6% dos cuidado- “viver é muito perigoso”.
res questionados em sua pesquisa informaram Para Butler (2006), a vulnerabilidade é con-
sensação de desamparo e relacionaram esse dição própria de nosso estar no mundo, é
sentimento à doença do paciente. uma vulnerabilidade original em relação ao
Em grande parte do mundo, as pessoas outro. Para Roselló (2009), a vulnerabilidade
estão envelhecendo e, mesmo com todo o significa fragilidade, precariedade e a expe-
arcabouço de informações sobre a melhor rimentamos pessoal e coletivamente.
maneira de manter a saúde por mais tempo Uma possibilidade de organização de
ou a qualidade de vida, chega o momento serviço de saúde que colabora para preservar
em que precisamos ser cuidados por outras a autonomia da pessoa dependente de cuidado
pessoas, as quais, em grande parte das cultu- de longo prazo e vivencia de perto a vulnerabi-
ras, são familiares ou amigos. lidade humana é a atenção domiciliar.
O cuidador assume, portanto, responsa- No Brasil, a atenção domiciliar integra,
bilidades de cuidados no domicílio em que desde agosto de 2011, a Rede de Urgência e
seriam realizados pela equipe de saúde se Emergência (RUE) sob o título ‘Programa
a pessoa doente dependente de cuidado de Melhor em Casa’ e, atualmente, é regula-
longo prazo estivesse internada no hospi- mentado pela Portaria GM/MS nº 825 de 25
tal. Dessa forma, a atenção domiciliar como de Abril de 2016. No referido programa, a
modelo assistencial possibilita que o cuidado atenção domiciliar é considerada uma

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modalidade de atenção à saúde integrada às Os profissionais dos serviços de atenção


Redes de Atenção à Saúde (RAS), com ações domiciliar encontram, com certa frequência,
de prevenção, tratamento de doenças, reabi- pessoas em situação de vulnerabilidade, que,
litação, paliação e promoção à saúde, presta- muitas vezes, não têm consciência de que
das em domicílio. (BRASIL, 2016, P. 33). estão sendo negligenciadas ou violentadas
por outros. São pessoas, na maioria idosas,
É desenvolvido por meio do Serviço vivendo realidades que demandam ações de
de Atenção Domiciliar (SAD) e compos- intervenção do serviço social e, por vezes,
to por Equipes Multidisciplinares de ação da justiça para proteger seus direitos
Atenção Domiciliar (Emad) e Equipes humanos fundamentais.
Multidisciplinares de Apoio (Emap). O pro- Para atender às necessidades advindas prin-
grama entende como cipalmente da população idosa, em países de-
senvolvidos, vê-se, além dos serviços de saúde
cuidador pessoa(s), com ou sem vínculo fa- domiciliares (HOME CARE), a existência de serviços
miliar com o usuário, apta(s) para auxiliá-lo de apoio sociais no domicílio, os quais oferecem
em suas necessidades e atividades da vida uma gama de serviços tais como fornecimento
cotidiana e dependendo da condição fun- de refeições, realização de limpeza, serviço de
cional e clínica do usuário, deverá(ão) es- compras delivery, auxílio para banho; respite
tar presente(s) no atendimento domiciliar. care, i.e., cuidador para cobrir o período de
(BRASIL, 2016, P. 33). folga do cuidador principal; serviço de enfer-
magem; monitoramento à distância; dentre
Como critérios de admissão no SAD, a outros (GENET, 2011).
pessoa doente deve estar acamada, neces- Outra inovação em serviços domiciliares e
sitar de assistência, no mínimo, uma vez que envolve a saúde e o serviço social foi feita
por semana e ter um cuidador responsável no Japão e se baseia em um sistema de banco
diuturnamente. de horas no qual pessoas voluntárias ganham
O Programa Melhor em Casa organi- ‘créditos de tempo’ para cuidar de pessoas
za a assistência domiciliar em três níveis: idosas em sua comunidade. Os voluntários
Atenção Domiciliar tipo 1 (AD1) para pa- podem usar os créditos para comprar servi-
cientes crônicos de baixa complexidade, que ços similares para eles mesmos, mais tarde
deveriam ser seguidos uma vez ao mês por na vida ou no presente, para seus parentes
profissionais das unidades básicas da Rede idosos e frágeis que moram em outra cidade
de Atenção Básica (RAB); AD2 para pacien- distante, ou, ainda, para outras pessoas que
tes de média complexidade, necessitando precisam (HAYASHI, 2011).
acompanhamento semanal do SAD; e AD3 Nesta pesquisa, o objetivo foi o de com-
para pacientes com maior complexidade e preender o processo de cuidado desenvolvi-
necessidades, recebendo assistência do SAD do por um SAD de um município de médio
com maior frequência (BRASIL, 2016). porte do estado de São Paulo em que se ve-
As visitas domiciliares realizadas pelo rificaram as relações do SAD com os demais
SAD pretendem avaliar o grau de dependên- serviços da RAS. Mais especificamente, ana-
cia do paciente e a capacidade do cuidador lisaram-se as relações entre os serviços que
para o cuidado necessário, condições preli- compõem a RUE com os hospitais, Unidades
minares para a admissão no programa, bem de Pronto Atendimento (UPA), Pronto
como têm como atribuição acompanhar a Socorros e a RAB.
pessoa dependente de cuidados de longo E, além das questões de organização e
prazo até alcançar a alta do programa por planejamento da assistência domiciliar no
cura, por internação hospitalar ou por morte. âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS),

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ressaltou-se, na pesquisa, o encontro com O trabalho de campo ocorreu no período


os doentes, usuários do SAD, bem como de 15.1.2015 a 6.8.2015, uma vez por semana,
a experiência do cuidar assumido por oito horas por dia, e as cenas vivenciadas
familiares-cuidadores. no campo foram registradas em diários de
Assim, o objetivo deste artigo é eviden- campo em forma de narrativas, resultando
ciar experiências do cuidar e ser cuidado e no material empírico do estudo.
apresentar a visão de cuidadores familiares Para seleção das cuidadoras a serem en-
sobre um SAD. trevistadas, adotaram-se as planilhas que
consolidam as informações de todos os
pacientes atendidos pelo SAD, nas quais
Percurso metodológico constam os nomes dos pacientes e cuida-
dores, endereços e telefones para contato.
Esta pesquisa é um estudo de caso de um SAD Selecionaram-se cuidadores de dez pacien-
de município de médio porte no estado de São tes com diferentes patologias e graus de de-
Paulo, com população estimada para 2015 de pendência e admitidos no SAD por períodos
233.249 habitantes e área territorial de 1.136.907 que variavam entre um mês e cinco anos.
km² (SEADE, 2017). Omitiu-se o nome do mu- Após contato telefônico com os cuidadores
nicípio para preservar a identidade dos profis- desses pacientes, cinco cuidadoras aceita-
sionais envolvidos na pesquisa e adotou-se a ram conceder uma entrevista, as quais foram
letra ‘N’ como referência ao município. agendadas em dias e horários distintos.
O serviço de assistência domiciliar no muni- As entrevistas com as cuidadoras foram
cípio N iniciou suas atividades em 1997 como realizadas com a intenção de conhecer a
Programa de Internação Domiciliar (PID). visão sobre o SAD e suas vivências. Nessas
Em meados de 2002, passou a ser chamado de entrevistas, valorizaram-se as experiências
Programa de Atendimento Domiciliar (PAD) de vida narradas pelas cuidadoras no pro-
sendo, em final de 2012, habilitado como SAD cesso do cuidado, tomando como referência
do ‘Programa Melhor em Casa’, com duas três diretrizes:
Emad e uma Emap habilitadas, que dividem o
território municipal em duas grandes regiões. A entrevista visa não à fala ‘sobre’ a experiên-
Neste estudo qualitativo, adotou-se um cia e sim a experiência ‘na’ fala; a entrevista
‘ethos cartográfico’ em todo o caminho da intervém na abertura à experiência do proces-
pesquisa. Na cartografia, os dados são pro- so do dizer; a entrevista busca a pluralidade
duzidos a partir da observação das ações do de vozes. (TEDESCO; SADE; CALIMAN, 2013, P. 304).
cotidiano, do acompanhamento de processos
de trabalho e das relações interpessoais que Solicitou-se a cada cuidadora que falasse
estão envolvidas na produção do cuidado. sobre como havia conhecido o SAD; o tempo
Esse relacionamento entre o pesquisador ou de espera para receber a primeira visita em
o cartógrafo e os sujeitos do estudo produz, casa; a frequência das visitas; a avaliação
segundo Melucci (2005, P. 329), “modificações sobre o SAD; além de sugestões para melhora
no campo”, que são intervenções que “pro- do atendimento. Também, considerou-se
vocam transformações cognitivas devidas à importante conhecer se as cuidadoras têm
circulação das ideias que ela introduz”. algum tempo livre para descanso e lazer e
Este artigo relata cenas registradas quais os impactos da atividade em suas vidas.
durante visitas domiciliares realizadas pelos Ao final das entrevistas, a experiência
profissionais do SAD e transcrições de gra- de cada cuidadora iluminava aspectos
vações das entrevistas com cinco cuidadoras sobre a atenção domiciliar considerados
de pacientes assistidos pelo serviço. muito importantes para complementar e

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enriquecer as observações no acompanha- autonomia: o acamado’, apresentando o en-


mento das equipes. contro com a vulnerabilidade humana e a re-
Como estratégia de análise dos dados, a pri- alidade da perda da autonomia das pessoas
meira aproximação foi a definição de Planos acamadas; (ii) ‘O universo do cuidador’, no
de Corte, para uma primeira sistematização qual se vê a experiência das pessoas que
do material empírico. Nesse sentido, realizou- cuidam de outras; e (iii) ‘O ponto de vista do
-se leitura extensiva das cenas registradas e das cuidador’, que apresenta a voz dos cuidado-
transcrições das gravações das entrevistas. res dos pacientes usuários do SAD, possibili-
À medida que se efetuava a leitura dos tando conhecer o que pensam desse serviço
diários de campo e da transcrição das entrevis- e da rede de serviços de saúde, bem como o
tas, ia-se definindo certos Planos de Corte, que impacto do ato de cuidar em suas vidas.
correspondiam, em boa medida, aos aspectos Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de
presentes nas recomendações e diretrizes da Ética em Pesquisa da Universidade Federal
Política de Atenção Domiciliar, tendo como ba- de São Paulo (Unifesp), sob número do
lizador os objetivos propostos na pesquisa. CAAE 39179014.0.0000.5505 e parecer nº
Dessas opções, resultaram quatro Planos 907.048 de 16/12/2014, atendendo às exi-
de Corte: (i) A moldura da gestão municipal gências da Resolução nº 466/12 do Conselho
e os limites da gerência; (ii) A produção da Nacional de Saúde. Os participantes da pes-
equipe; (iii) O binômio paciente-cuidador; e quisa, ao serem convidados, receberam uma
(iv) O SAD nas redes de atenção. primeira explicação sobre os procedimentos
Esse movimento de leitura, inúme- da pesquisa e, em seguida, procederam à
ras vezes efetuado, que recortava cenas e leitura do Termo de Consentimento Livre e
falas dos entrevistados e as colocavam em Esclarecido (TCLE). Após a concordância
‘caixas’ do tipo pastas-arquivo, organizadas em participar, assinaram duas vias do Termo,
no processador de texto Word®, correspon- permanecendo a primeira via com a pesqui-
deram aos Planos de Corte, resultando na sadora e a segunda via com o participante.
primeira aproximação analítica do empíri- Ressalta-se que os nomes usados na descri-
co. Dos Planos de Corte apresentados neste ção das cenas para as cuidadoras e pacientes são
artigo, interessa aprofundar o ‘binômio fictícios para que se preserve sua identidade.
paciente-cuidador’.
Na segunda aproximação analítica, evi-
denciaram-se Planos de Visibilidade mais Resultados e discussão
expressivos dentro dos Planos de Corte.
Os Planos de Visibilidade resultam da No Plano de Visibilidade (i) ‘O universo da
análise de cenas registradas que guardam perda de autonomia: o acamado’, diferentes
alguma relação entre si, e que, quando conec- realidades sociais e humanas estão presentes
tadas, vão revelando elementos importantes enfrentando o mesmo problema – a doença,
do cotidiano do trabalho da equipe nem que exige cuidado de longo prazo. As cenas
sempre visíveis quando ‘olhados de fora’. Os registradas revelam o encontro da equipe
‘Planos’ vão adquirindo visibilidade a partir do SAD com a vulnerabilidade humana em
de ‘conexões de cenas’ que mostram as rela- algumas situações-limite vivenciadas por
ções inter-humanas e suas intensidades, que, pessoas, na maioria idosas, dependentes de
ao final, resultam no cuidado em saúde ou cuidados de longo prazo acarretados por
nas relações internas à equipe ou à família. doenças crônicas e degenerativas.
Para o Plano de Corte ‘O binômio pacien- As cenas escolhidas para compor esse
te-cuidador’, identificaram-se os Planos Plano de Visibilidade são exemplos de vários
de Visibilidade: (i) ‘O universo da perda da tipos de vulnerabilidades percebidas nos

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diversos contextos de enfermidade. gência de cuidados, solidão e exploração fi-


No caso relatado a seguir, a paciente tem nanceira, ou seja, vulnerabilidades de ordem
permanecido sozinha em sua casa, mesmo ética, social e cultural.
precisando de ajuda para fazer um curativo, A vulnerabilidade ética, do ponto de vista
dentre outras demandas. O SAD a admitiu filosófico, refere-se ao dever moral de pro-
porque uma sobrinha referiu ser sua cuidado- teger o sujeito mais frágil e depreciável. Na
ra e a intenção era encontrar essa ‘cuidadora’ concepção de Lévinas citado por Roselló
para conscientizá-la de que a paciente não (2009, P. 63), “sofrer por outro é tê-lo ao cuidado,
pode permanecer sozinha, além de levantar apoiá-lo, estar em seu lugar, consumir-se por
possibilidades para resolução dessa situação. ele”. A vulnerabilidade social se apresen-
ta pelo isolamento, desproteção; no caso,
Fomos à casa de D. Rita, 84 anos; mora sozinha a idosa também era explorada economica-
e tem úlcera varicosa no membro inferior direi- mente. A vulnerabilidade cultural refere-se à
to, que limita seus movimentos por permanecer ignorância e ao desconhecimento sobre um
com a perna enfaixada. A ferida é extensa e com determinado saber, no caso, a doença, suas
secreção purulenta. A auxiliar de enfermagem implicações e cuidados.
(D) e a Enfa. (H) fazem o curativo. A senho- Uma possibilidade de resposta para
ra Rita está repetitiva na conversa e esquecida melhor acompanhamento da população vul-
dos momentos atuais. Na casa tem um senhor nerável é o modelo da Estratégia Saúde da
que está cortando o mato no quintal; ele é um Família (ESF), que aumenta a cobertura nos
vizinho. A sobrinha não compareceu ao encontro municípios brasileiros, pois essas unidades
marcado previamente pela assistente social (R). de saúde estão mais próximas da popula-
Surge, passando em frente à casa, uma senhora ção devido ao seu modelo de atenção (BRASIL,
conhecida de D. Rita, que entra na casa e, após 2017). Outra possibilidade que colabora na
entender quem somos, fornece um número de diminuição das vulnerabilidades é a cons-
telefone para (R), que é de uma outra sobrinha cientização social quanto ao Estatuto do
de D. Rita. (R) tentou contato por celular com Idoso, publicado na forma da Lei nº 10.741 de
essa sobrinha, que desligou o telefone no meio 1.10.2003, que regula os direitos das pessoas
do assunto. (R) conversa com D. Rita com calma, com idade a partir de 60 anos (BRASIL, 2003).
tentando explicar que ela não pode ficar sozinha É uma legislação protetora, que avançou
em casa e precisa de alguém para fazer curativo em aplicação desde sua publicação, embora
e cuidar dela. Durante a conversa, fica sabendo ainda esteja longe de ser efetiva, porque
que D. Rita ‘ajuda’ com dinheiro à sobrinha ins- precisa de maior divulgação na sociedade e
crita como cuidadora. A equipe vai conhecer as maior mobilização social para forçar mudan-
condições de vida da paciente e constata que, ças necessárias e investimentos em projetos
na cozinha, só há arroz, feijão e farinha de mi- sociais de transformação.
lho para comer; há muitas batatas podres numa Na próxima cena, presencia-se um ‘grito
fruteira e a geladeira está vazia. No tanque, ha- de socorro’ com um pedido de assistência de
via várias faixas-crepe para lavar e roupas sujas. enfermagem diuturno no domicílio.
Aquela conhecida que havia entrado para falar
conosco se comprometeu a fazer o almoço na- Chegamos à casa de Carlos, portador de Esclero-
quela manhã para D. Rita e ver se, na Pastoral da se Lateral Amiotrófica (ELA), para uma avaliação
Saúde, alguém poderia vir diariamente trocar o socioeconômica. Trata-se de processo que trami-
curativo. Despedimo-nos. [A cena foi registrada tou no Ministério Público e resultou em liminar
em 15.1.2015]. favorável à família, determinando à Secretaria
Municipal de Saúde o fornecimento de assistên-
Na situação vivenciada, há clara negli- cia de enfermagem no domicílio diuturnamente.

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A Assistente Social do SAD foi fazer uma ava- Como em tantos outros casos, a falta de
liação social determinada pela assessoria jurídica apoio do setor saúde sobrecarrega a família
da Secretaria de Saúde. em relação ao cuidado. Muitos processos ju-
diciais ocorrem devido ao desespero familiar
A ação foi solicitada pela esposa e cuidadora que com a falta de efetivo apoio aos cuidadores,
alega não ter mais condições físicas e psicoló- pois não há serviços de apoio social domici-
gicas de cuidar de Carlos, pois são oito anos de liar, como os identificados por Genet (2011).
dedicação. A possibilidade de outras formas de
atenção domiciliar, com cuidadores man-
Carlos é um homem jovem, em torno de 45 anos, tidos por impostos ou com participação
está deitado em uma cama hospitalar em um voluntária, é uma experiência que tem sido
quarto escuro, pois não queria luz. Está emagre- usada em vários países desenvolvidos, como
cido e com sinais de paralização dos membros in- Japão e Inglaterra (HAYASHI, 2011).
feriores. A casa, herança dos pais, é simples e ao Aqui também surge a questão dos arranjos
lado funciona um salão de cabeleireiro, onde sua organizados pela população para conseguir o
irmã trabalha. Até uma semana antes da visita, atendimento às necessidades de saúde, como
o paciente estava morando em seu apartamen- uso do sistema de saúde complementar para
to, mas, devido à dificuldade de transportá-lo ao fisioterapia e médico da Unidade Básica de
banheiro, a família resolveu montar um quarto Saúde (UBS) para outras demandas, confi-
na casa dos pais, por ter mais espaço e a porta gurando os ‘mapas de cuidado’ de Cecílio,
do banheiro ser mais larga, permitindo que uma Carapinheiro e Andreazza (2014).
cadeira de banho passe por ela. Durante aquela visita, a cuidadora descre-
veu o comportamento de irritação e sofri-
Percebe-se muito sofrimento, muitas privações mento do paciente com a situação de doença,
provocadas pela doença do paciente; a esposa provocando uma sensação de impotência.
está visivelmente desgastada e deprimida. À Pergunta-se o que passa na cabeça de uma
medida que respondia ao questionário social, pessoa que há oito anos está enfrentando a
percebíamos que era mesmo a única saída que evolução de uma doença crônica.
essa mulher poderia enxergar, principalmente A tomada de consciência do ‘estar doente’,
por viver sob um rígido controle econômico, con- segundo Caretta e Petrini (1998), vai acon-
tando apenas com uma pensão e a ajuda da filha tecendo de acordo com as limitações que
adolescente, que trabalha de dia e estuda à noite. surgem durante o processo de doença, e essa
Ainda assim, pagam um plano da Unimed para conscientização é dolorosa, não só fisica-
garantir a fisioterapia de Carlos duas vezes por mente, pela perda de capacidades funcionais,
semana. O restante, ela recorre ao SUS na UBS, pois é acompanhada por uma dor complexa
onde pega fraldas e medicamentos. e profunda que surge pela consciência cres-
cente de sua condição, como magistralmente
A assistente social (R), após escutar as deman- descrito por León Tosltói em uma de suas
das e motivos da cuidadora, explicou que a de- novelas mais conhecidas, ‘A morte de Ivan
terminação da liminar talvez demore para ser Ilitch’, escrita em 1886, e que foi analisada
cumprida pela falta de funcionários na prefeitura, por Cecílio (2009).
mas não descartou a possibilidade de o Estado É a dor de uma pessoa que, de certo ponto
enviar algum funcionário para fazer cumprir a da vida, deve suspender suas expectativas no
determinação judicial. Despedimo-nos e ficamos futuro e enfrentar a realidade do sofrimen-
desoladas com a situação. [A cena foi registra- to, que é carregada pelo medo da doença e
da em 15.1.2015]. sua evolução, medo pelo futuro da família,
preocupação com o peso econômico para a

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família, enfim, são muitos sofrimentos que Casa e que está aguardando o agendamento pela
precisam ser trabalhados interiormente pelo equipe. Ele está animado, porque sabe que esse
doente. Cada pessoa, então, dá um significa- recurso pode melhorar a condição de nutrição
do para a sua doença (CARETTA; PETRINI, 1998). de Luíza. Ivo conta que está limpando os olhos
Diante dos significados que a pessoa de Luíza, que agora não enxerga, mas acha que
doente adota para a doença, ela usa determi- ela ainda vê vultos. Conforme ele vai contando
nados comportamentos como mecanismos vai falando com ela também: - Não é Luíza?!
de defesa para enfrentá-la. Segundo Caretta Conta que o refluxo gástrico melhorou com o
e Petrini (1998), podem ser comportamentos uso de Domperidona, que usou aumentando a
de negação da doença; dissimulação; divisão, dose, também, para resolver a distensão abdo-
quando ora concorda com o fato, ora discor- minal e constipação intestinal. Diz: - Ela evacuou
da; projeção, que atribui a doença a outras um monte, que eu até fiquei feliz! [Risos]. [...].
coisas, como remédios etc.; regressão, que Pergunto há quanto tempo Luíza adoeceu e ele
infantiliza; complacência, que faz tornar-se responde: - Faz nove anos que ela começou com
vítima; submissão, que faz tornar-se extre- umas dores no joelho, foi ao ortopedista, fez
mamente obediente às condutas médicas; exames, não deu nada. Depois foi piorando, foi
racionalização, que permite se adaptar à ao neurologista, fez tomografia e daí para frente
realidade; e depressão. Esses comportamen- começou a ter a mobilidade comprometida e há
tos podem se atenuar diante da melhora do três anos está acamada. Conta ainda que a doen-
quadro da doença até desaparecer, quando ça está presente na família dela. [...] Ao sairmos
há a cura. do quarto e descermos a escada, encontramos
Além disso, para as pessoas que estão próxi- uma das filhas, a mais velha; estava na cozinha
mas da morte, o estado emocional pode variar lavando louça. Uma jovem bonita que lembrava
progressivamente, alternando entre o medo e a muito a mãe. Pensei que Luíza deveria ter sido
esperança, estados de negação da doença, raiva, uma jovem muito bela antes de adoecer. [A cena
negociação com os médicos ou familiares, de- foi registrada em 6.4.2015].
pressão e aceitação (CARETTA; PETRINI, 1998).
Na cena seguinte, depara-se com outro Quando se conheceu essa família, impres-
modo de encarar o sofrimento da dependên- sionou a forma como o marido cuidador se
cia total: relacionava com sua esposa. O cuidador se
comunicava todo o tempo com a paciente,
Chegamos noutra casa, um local bem desgasta- afásica, fazendo a ligação com o médico e a
do e sujo. Quem nos atende ao portão é Ivo, que, equipe de enfermagem com uma alegria que
depois, entendi que é o marido e cuidador da pa- era contagiante.
ciente Luíza. Entramos numa casa escura e muito Na situação narrada, o relacionamento
desorganizada. Subimos uma escada estreita e entre o marido cuidador e a esposa doente e
chegamos a um quarto isolado. Lá encontramos completamente dependente, revelava a exis-
Luíza, 42 anos, deitada em uma cama hospita- tência de uma autonomia preservada em sua
lar, muito emagrecida, com sonda nasoenteral dignidade e integridade humana, princípios
para alimentação, com os olhos semiabertos e que fazem parte também da autonomia, con-
dispneica, com um pouco de secreção pulmonar. forme Agich (2008, P. 32, GRIFO NOSSO):
Ivo conta que foi à Santa Casa e o médico disse
que talvez Luíza precise de traqueostomia, mas A autonomia é considerada equivalente à
o cuidador demonstra seu conhecimento sobre a liberdade, seja ela positiva ou negativa, no
técnica e sabe que o caso de Luiza é irreversível sentido de Isaiah Berlin (1969, P. 118-172), ao au-
e ele quer evitar. Também fala para o Dr. (K) so- togoverno, à autodeterminação, à liberdade
bre a gastrostomia que deverá ser feita na Santa da vontade, ‘à dignidade, à integridade’, à

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individualidade, à independência, à responsa- a pessoa precisa conquistar a consciência de


bilidade e ao autoconhecimento [...]. que ela é única e exclusiva em todo o cosmo
dentro deste destino sofrido. Ninguém pode
De fato, a doença, considerando o senso assumir dela o destino e, ninguém pode subs-
comum, retira a liberdade da pessoa, retira tituir a pessoa no sofrimento. Mas na manei-
sua autonomia, limita suas realizações e, ra como ela própria suporta este sofrimento
sobretudo, quando há dor, leva à percepção está também a possibilidade de uma realiza-
da fragilidade implícita no ser humano. Essa ção única e singular.
vivência nos amedronta naturalmente com a
evolução do envelhecimento, mas está pre- Mesmo com essa proposição diante da
sente em todo o curso da vida. vida, é muito importante que haja um apoio
Nesse sentido, vendo a experiência de Ivo social que dê o suporte necessário para o en-
e Luíza, observa-se que o processo da doença frentamento dos momentos mais difíceis.
é enfrentado de forma mais leve quando No Plano de Visibilidade (ii) ‘O universo
a pessoa doente se sente acompanhada e do Cuidador’, viu-se que, na maioria das fa-
considerada por um cuidador que expressa mílias, o cuidado é assumido por uma mulher
carinho, respeito e proximidade, atitudes – filha, esposa, mãe, irmã, sobrinha –, muitas
tanto do cuidador como do doente quando vezes, sozinhas nessa atividade, gerando
aceitam o sofrimento e enfrentam a dor com mudanças em vários aspectos da vida. Nesta
um sentido. E essa postura pode lhes dar pesquisa, 83% dos cuidadores são mulheres.
maior liberdade interior.
Segundo Viktor Frankl (1999, P. 76): Fomos à casa de uma senhora idosa, D. Maria,
80 anos, teve um AVC há oito anos e tem sérias
Em última análise, viver não significa outra sequelas. É cuidada por um de seus nove filhos,
coisa que arcar com a responsabilidade de solteiro, em torno de 45 anos e não trabalha para
responder adequadamente às perguntas da cuidar da mãe. Preocupado com um prurido que
vida, pelo cumprimento das tarefas colocadas surgiu no quadril de sua mãe, pede à Enfa. (H)
pela vida a cada indivíduo, pelo cumprimento que olhe o local, (H) que resolve pedir uma ava-
da exigência do momento. liação do médico da manhã. Pergunto ao cuida-
dor se alguém o ajuda na rotina e ele responde
Compartilha-se a visão de Frankl (1999), conformado que suas irmãs trabalham; por isso,
porque ela é bastante concreta; a exigência não tem ajuda. Após a visita, já no carro, a au-
do momento a que ele se refere vem acom- xiliar (D) comenta: - ‘É! Uma mãe cuida de dez
panhada de um sentido da existência que é filhos, mas dez filhos não cuidam de uma mãe!’
singular para cada pessoa. Assim, nenhum – fala indignada com a situação de o cuidador
destino pode ser comparado com outro, não fazer sozinho o cuidado. [A cena foi registrada
se repete, porque a cada experiência se deve em 15.1.2015].
dar uma resposta.
Continua-se com o pensamento de Frankl [...]
(1999, P. 77) para entrar na dinâmica do sentido
do sofrimento, que, às vezes, não faz sentido No grupo de cuidadores, ao final, aproximei-me
para quem está de fora. de um senhor idoso e iniciei conversa. Era o Sr.
Raul, cerca de 75 anos, cuidador de sua ex espo-
Quando um homem descobre que seu desti- sa. Contou que os filhos não querem cuidar da
no lhe reservou um sofrimento, tem que ver mãe; no máximo levam-na de carro ao médico.
neste sofrimento também uma tarefa sua, Ele acha que os filhos agem assim porque ela
única e original. Mesmo diante do sofrimento, sempre foi muito autoritária. Procurei ouvi-lo.

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Contou sobre sua rotina, que dorme pouco à noi- coisas! Ele não! Está parado, sem se mexer! Esse
te, porque sua ex esposa acorda muitas vezes. Ela é o meu maior sofrimento! [...]. [A cena foi re-
foi fumante a vida toda e agora depende de oxi- gistrada em 2.4.2015].
gênio, dorme sentada e tosse muito. Ele levanta
às 5 horas porque ela fica chamando para ajudá- Na narrativa acima, a cuidadora levanta
-la no banho e depois de dar o café da manhã, dois aspectos. O primeiro é a experiência
ele consegue cochilar um pouco [...]. [A cena foi inexplicável do sofrimento, que alterou o
registrada em 29.1.2015]. itinerário da vida pessoal e familiar, que a
faz reconhecer a vulnerabilidade do marido
Nos dois casos narrados acima, o cuidado doente e dar um sentido metafísico ao sofri-
é realizado por homens, o que não é comum. mento, ou seja, busca na fé em Deus a força
Assim como outros cuidadores, eles enfren- para se sustentar e sustentar o seu doente.
tam certo isolamento ou solidão em relação O segundo aspecto envolve a alteridade, a
às tarefas do cuidado e parecem confor- dimensão interpessoal, que coloca o centro
mados com a situação, como se fosse uma da vida não no Eu, mas no Tu. Assim, as
missão a ser cumprida. ações, os pensamentos estão fora da pessoa,
Outro aspecto identificado em uma das que vive a abertura radical ao outro. Indica
cenas é a realidade que muitas pessoas que “cuidar de alguém é, portanto, não
idosas estão sob o cuidado de outras pessoas somente estar fisicamente com alguém, mas
idosas, como visto em várias outras cenas. ser-com-ele, no sentido mais existencial do
Assim como em vários outros países desen- termo” (ROSELLÓ, 2009, P. 136).
volvidos, nossa população está envelhecen- A vivência da alteridade como ‘ethos’ do
do rapidamente. cuidar faz parte de um cuidado ideal a todo
Nesse sentido, cita-se o exemplo do Japão, ser humano e é a atitude esperada de um cui-
que, por ter uma grande população idosa, de- dador, dos profissionais da saúde e da comu-
parou-se com o problema do cuidado de longo nidade justamente porque está implícito um
prazo. A cobertura dos serviços de saúde era cuidar singular, único.
feita pelo sistema de seguro-saúde, mas não Mas, ao se vivenciar esse encontro com
atendia a todas as demandas das famílias cui- a cuidadora, também se nota em sua fala a
dadoras. Assim, inovaram com um sistema de sua solidão no processo de cuidar, bem como
socialização do cuidado, criando uma rede de nas cenas narradas do encontro com outros
ajuda mútua para suplementar o LTCI (Long cuidadores.
Term Care Insurance) (HAYASHI, 2011). Novamente, aparece esse sentimento de iso-
Entende-se que a realidade exigirá a lamento, sensação de estar só na luta diária e,
tomada de novos caminhos, com a adoção de justamente por isso, a colaboração efetiva e real
modelos de serviços de apoio social inovado- entre as pessoas da comunidade, como voluntá-
res que servirão às diversas concepções de rios, profissionais da saúde, familiares é funda-
atenção domiciliar. mental nesse processo do cuidar.
Segue-se com mais uma experiência: Finaliza-se com o Plano de Visibilidade (iii)
– ‘O ponto de vista do cuidador’, no qual emerge
É! Às vezes, o nosso limite não é tanto físico, mas a voz dos cuidadores dos pacientes usuários do
psicológico, de estar ali e não poder fazer nada. SAD por meio das entrevistas, possibilitando
De ouvir o gemido, o grito e não poder ajudar! Às conhecer o que pensam do serviço e da rede de
vezes, a única coisa que podemos fazer é mandar serviços de saúde, como também do impacto do
uma mensagem lá pra cima, só Deus! [...] ato de cuidar em suas vidas.
Quanto ao tempo de espera para o atendi-
A gente está andando, mexendo, pegando as mento no domicílio, as cuidadoras relataram:

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Não demorou nada, acho que nem uma sema- tivesse ficado esperando, se eu não tivesse a ini-
na! Não demorou nada, nada, eles já foram! Fo- ciativa de pagar [fisioterapeuta], talvez minha
ram uma médica e três enfermeiras! [Transcri- mãe não estivesse andando ainda! Não é? Porque
ção de entrevista com a cuidadora Gina em essa outra que eu paguei, ela vinha com a bola,
23.6.2015]. sabe, e a da Prefeitura não! Era bem assim! Bem
fraquinha! [...] O médico e as enfermeiras uma
[...] graça! Isso foi 10! [...]. [Transcrição de entrevis-
ta com a cuidadora Rosa em 9.10.2015].
Porque ela [a paciente] tem o médico que
atende [particular], mas para chamar em casa Na narrativa, há fortes críticas em relação
é caro! Aí eu fui lá numa quarta, e na sexta fei- ao serviço de fisioterapia e valorização
ra já vieram! [...] eles vieram duas vezes com o da atuação das equipes de enfermagem e
médico e depois de mais de um mês que veio a médica. Parece que a qualidade é avaliada
fisioterapeuta. [Transcrição de entrevista com observando-se o empenho técnico, o rela-
a cuidadora Rosa em 9.10.2015]. cionamento interpessoal, o uso de materiais
apropriados e o fornecimento de materiais
Nos relatos sobre o tempo de espera entre de consumo, pontos que influenciam as con-
a solicitação e a primeira visita do SAD, é dições de cuidado, evolução clínica do pa-
visível que as equipes procuraram viabilizar ciente e estabelecimento de vínculos.
os atendimentos com celeridade. Ressalta-se Os gastos com materiais, dietas e medi-
a divisão das equipes entre os diferentes pro- camentos são altos, um peso no orçamento
fissionais, sendo mais frequente a atuação da familiar, tornando imperativa a procura por
equipe de enfermagem com o médico ou a recursos oferecidos pelo sistema de saúde
atuação isolada da equipe de enfermagem, de forma gratuita, além da necessidade de
assim como as fisioterapeutas, que frequen- criatividade e das informações de vários
temente atuam em uma visita secundária. De profissionais para suprimento das demandas
certa maneira, esse modo de operar indica geradas durante o processo de doença.
não um trabalho em equipe, mas um traba- Sobre a possibilidade de descanso ou de
lho por especialidade, podendo acarretar lazer para promoção da saúde física e mental,
em resposta inadequada às necessidades de as cuidadoras ressaltaram suas dificuldades
saúde da população alvo. para sair de casa e ter um tempo para ‘respirar’.
Outra questão surgida em uma das falas
se relaciona à composição de ‘mapas de
cuidado’, conforme evidenciado por Cecílio, Considerações finais
Carapinheiro e Andreazza (2014), quando há a
constatação que a visita de um médico parti- Na investigação, emergiu com muita força
cular é economicamente inviável e a maneira a vivência da vulnerabilidade humana em
de resolver o problema é acionando o SAD, diferentes perspectivas e o sentido que cada
que é um serviço do SUS. família dá ao sofrimento vivido pelo familiar
Em relação à qualidade da assistência, as dependente de cuidado de longo prazo.
cuidadoras têm opiniões diversas: Tornou-se evidente a solidão do cuidador no
cuidado, ressaltando a necessidade de se pensar
Rosa: Olha! Eu vou te falar da equipe, do médi- em outros serviços de apoio ao cuidador, com
co, das enfermeiras; achei excelente o atendi- diferentes arranjos sociais, bem como o valor
mento. Mas da fisioterapeuta eu não sei. Ah! eu que tem o grupo de cuidadores como espaço de
achei meio fraca, não sei porque demorou muito intervenção e acompanhamento da saúde física
para vir! Ah! Ela estava afastada! [...] mas se eu e mental do cuidador.

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Sobre o cuidar e o ser cuidado na atenção domiciliar 1127

Foi possível ‘ouvir’ o que os cuidadores com os cuidadores, presenciou-se a atuação


pensam do SAD, trazendo seus elogios e críti- dinâmica e atenciosa das equipes do SAD,
cas, ressaltando a necessidade de a equipe mul- permeadas pelo diálogo e orientações aos
tiprofissional realizar maior número de visitas cuidadores e pacientes.
durante o mês ao mesmo paciente; trabalhar de Do encontro com os cuidadores, persisti-
forma integrada, principalmente em visitas de ram as inquietações para diminuir sua carga
avaliação; construir um plano individualizado de trabalho e a solidão no trabalho de cuidar.
de cuidados e melhorar a formação dos profis- É preciso avançar na atenção domiciliar
sionais de saúde que trabalham nesse espaço de por meio da criação de serviços de apoio
cuidado, que é o domicílio. social voltados a atender principalmente a
A percepção que o leigo cuidador tem da população idosa com algum grau de depen-
inabilidade ou insuficiência do profissional dência por doença crônica, de forma a cola-
o impulsiona a procurar outros profissio- borar para manutenção da autonomia dessas
nais que possam resolver as necessidades pessoas portadoras de dependência, bem
de saúde identificadas, o que confirma que como da saúde do cuidador.
as pessoas compõem seus mapas de cuidado
com serviços públicos e privados usando
a criatividade para resolver as falhas do Colaboradores
sistema de saúde.
Encontraram-se pessoas que, ao negli- Os autores contribuíram igualmente para
genciar o cuidado, não poderiam assumir o a concepção, planejamento, análise e inter-
papel de cuidadores, principalmente idosos pretação dos dados, assim como para a ela-
cuidando de idosos, incorrendo em pro- boração e a aprovação da versão final deste
blemas éticos, humanos e sociais a serem manuscrito. s
administrados pelo SAD. Nesses encontros

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Sobre o cuidar e o ser cuidado na atenção domiciliar 1129

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Recebido para publicação em maio de 2017


MUNIZ, E. A. et al. Grau de sobrecarga dos cuidado- Versão final em setembro de 2017
Conflito de interesses: inexistente
res de idosos atendidos em domicílio pela estratégia
Suporte financeiro: pesquisa financiada pela Coordenação de
Saúde da Família. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) – Proap
– DS
v. 40, n. 110, p. 172-182, jul./set. 2016. Disponível em:

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 115, P. 1116-1129, OUT-DEZ 2017

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