Feita pelo jornalista Uirá Machado, da Folha de S. Paulo, esta entrevista teve alguns dos
seus trechos publicados pelo jornal paulista em 24 de maio último. Aqui, em vez disso, estão
perguntas e respostas na íntegra. Jessé Souza é coordenador do Centro de Pesquisa sobre
Desigualdade Social da Universidade Federal de Juiz de Fora e, com André Grillo e
outros, lançou recentemente o livro A ralé brasileira: quem é e como vive (Belo Horizonte:
Ed. UFMG), em que estuda as características dessa “parcela da população que vive como
subgente”.
Em primeiro lugar há que se dizer que esses números são expressivos e refletem tanto o
efeito do recente crescimento da economia brasileira, quanto, também, o sucesso inegável
de diversas políticas sociais do atual governo. Os índices que demonstram recuo na miséria
ou pobreza a partir de um patamar absoluto de renda, dizem, no entanto, apenas que a
pobreza absoluta diminuiu. A desigualdade é um conceito relacional e diz respeito à distância
— no nosso caso o abismo — entre as diversas classes sociais que disputam recursos
escassos em uma sociedade dada. Existe aqui, portanto, o risco de que o “fetiche do
número” encubra o principal.
O principal é que o Brasil é uma das sociedades complexas mais desiguais do planeta,
porque entre 30% a 40% de sua população têm inserção precária tanto no mercado quanto
na esfera pública. Existe toda uma “classe social”, nunca percebida enquanto tal no debate
público — a não ser fragmentariamente enquanto temas soltos e sem relação entre si como
“violência”, “desqualificação da mão de obra”, “insegurança pública”, “repetência escolar”,
“criminalidade”, “transporte público”, “saúde pública”, etc. — que tende a reproduzir sua
precariedade indefinidamente. Imaginam-se 500 problemas para não se ver o único
problema efetivo que é a raiz e o núcleo de todos os outros. Fragmenta-se indevidamente a
realidade e confundem-se as hierarquias das questões para não se ver o óbvio: que somos
uma sociedade altamente conservadora e perversa que aceita conviver com uma porção
significativa da sua população vivendo como “subgente”, com empregos precários e sem
articulação política de seus interesses.
É esse fato, e não nenhum outro, o que verdadeiramente nos separa das sociedades política
e moralmente mais avançadas do chamado “primeiro mundo”. Essa classe social, que
chamamos provocativamente de “ralé”, num pais que eufemiza, nega e jamais discute seus
conflitos de frente, é a mão de obra barata a serviço das classes média e alta que podem —
contando com o exército de empregadas, faxineiras, moto-boys, porteiros, zeladores,
carregadores, babás e prostitutas, para o serviço pesado e desvalorizado — se dedicar às
ocupações rentáveis e com alto retorno em prestígio e reconhecimento. É isso que chamo de
“desigualdade abissal” como nosso problema central. Os outros são “nuvens de fumaça” para
que não se perceba o que é importante e o que hierarquicamente deveria vir primeiro.
O bolsa família tem extraordinário impacto social, econômico e político, com investimento
público relativamente muito baixo. É incrível que não se tenha pensado nisso antes. Mais
incrível ainda que exista gente que é contra. Boa parte da dinamização do mercado interno
brasileiro tem relação direta com o bolsa família, como tivemos ocasião de ver
empiricamente em nossa última pesquisa, já no prelo, acerca da “nova classe média”,
denominação, aliás, muito infeliz e que criticamos na pesquisa.
Por outro lado, o bolsa família não tem condições, sozinho, de reverter o quadro de
desigualdade e “incluir” e “redimir” a “ralé” enquanto classe social precarizada em todas as
dimensões. Esse é um desafio que tem que ser de toda a sociedade brasileira, que envolve
processos de conscientização em todos os níveis. Muda-se uma sociedade quando esta
“aprende coletivamente” e ascende a novos patamares de consciência moral e política, por
exemplo, “se responsabilizando”, sem procurar bodes expiatórios fáceis, pelas mazelas
sociais que produziu historicamente. Botar a culpa no Estado é fácil. Mas não existe ação
estatal realmente efetiva sem conscientização social também efetiva e real.
A resposta acima sobre o bolsa família serve para esta pergunta também.
É precisamente desse modo, que o abandono de uma sociedade perversa, que nunca se
responsabilizou — nem quer se responsabilizar — pela miséria que ajudou a criar e a
reproduzir, se transforma em “culpa individual” da própria vítima do abandono. É o pobre,
que não teve a oportunidade de incorporar os pressupostos emocionais e sociais de qualquer
processo de aprendizado, que se torna o “burro”, o “preguiçoso”, o “tolo”, em suma: o
culpado do próprio destino. Existe melhor legitimação para a reprodução infinita de todos os
privilégios?
A eleição presidencial deste ano está polarizada entre dois candidatos com um
discurso gerencial. Para muitos, isso indica uma certa maturidade do país, que
conseguiu consolidar suas instituições e agora precisa administrar sua economia. O
senhor, contudo, critica duramente o discurso economicista. Por quê?
Minha crítica ao que chamo de “discurso economicista” não é também uma negação da
extraordinária importância da economia, nem muito menos uma crítica pessoal aos
profissionais da economia. Minha crítica é à extraordinária pobreza de um debate público que
reduz, distorce e amesquinha todas as questões e conflitos sociais aos imperativos da
reprodução da economia. A inversão é patológica e reflete uma sociedade doente: ao invés
do mercado ser pensado como servindo à sociedade, é a sociedade que é percebida como
“insumo” do mercado. A penetração desse modo de pensar se dá de maneira, ao mesmo
tempo, imperceptível e virulenta: terminamos por nos avaliar sempre pelo tamanho de nosso
PIB e não pela forma que nos tratamos uns aos outros em sociedade.
Qualquer político tem de conciliar interesses contraditórios. Não existe fórmula prévia que
possa definir de que modo e em que medida deve-se conciliar ou quando se deve partir para
o enfrentamento. Apenas os resultados práticos que se alcançam pode nos dizer se, no caso,
tratou-se de uma “boa conciliação”, que permitiu avanços sociais importantes, por exemplo,
ou uma “má conciliação” que produziu resultados pífios.
Quando falei de “aversão ao conflito e a crítica” sequer pensei também numa crítica a
Gilberto Freyre, que afinal criou um “conto de fadas para adultos” convincente — que é o que
todo mito nacional na realidade é —, além de muito eficiente e com ampla penetração
nacional. Não existe nada de mau nisso. Toda sociedade precisa de mitos que evoquem
sentimentos de solidariedade e pertencimento coletivo.
Problemático é o que a inteligência nacional fez com esse mito. Nossa ciência social
dominante — que influencia todo o debate público, dado que apenas a ciência possui a
legitimidade para falar com autoridade sobre qualquer assunto de interesse público — se
apropriou do mito “positivo” de Freyre e inverteu o sinal. Tudo o que era motivo de elogio
para Freyre passa a ser negativo. Sérgio Buarque é o pioneiro dessa inversão especular de
Freyre e, depois dele, praticamente todos os grandes intérpretes brasileiros desde então.
Uma “cultura” emotiva e sentimental, antes elogiada, passa a ser percebida como índice de
pré-modernidade. Ainda que os “homens cordiais” de Sérgio Buarque, indignos de confiança
e “amigo dos próprios interesses”, sejam todos os brasileiros, pouco a pouco apenas o
Estado será percebido como a “casa da cordialidade” que confunde o público e o privado. Por
algum milagre, que ninguém explica, o mercado fica a salvo da “cordialidade” e de seus
males. A “brasilidade cordial”, definida como emotiva e sentimental por oposição à
racionalidade e ao cálculo, torna-se o problema maior do Brasil e passa a habitar apenas o
Estado ineficiente, politiqueiro e corrupto, definindo o conceito mais importante das ciências
sociais e do debate público brasileiro até hoje: o conceito de “patrimonialismo”.
O senhor tem argumentado que o conceito de classes sociais não pode se limitar à
questão da renda e que apenas uma nova compreensão das classes sociais poderia
levar o país a combater de fato a desigualdade. Como isso se daria?
A redução das classes sociais ao seu substrato apenas econômico, seja à renda ou ao lugar
na produção, erro comum tanto ao liberalismo dominante quanto ao marxismo enrijecido
dominado, implica “falar” de classes sociais sem que nada se compreenda de sua
importância. Percebem-se apenas os aspectos “materiais” como dinheiro ou transmissão de
propriedade, e se “esquece” da transmissão de “valores imateriais”, como as formas
específicas de agir e reagir no mundo, os quais, esses sim, constituem os indivíduos como
indivíduos de classe.
Em todas as dimensões da competição social por recursos escassos de todo tipo, no entanto,
são as virtudes do espírito aquelas que recebem bons salários, prestígio e reconhecimento
social. As classes do “corpo” tendem a ser literalmente “animalizadas”, podendo ser usadas e
instrumentalizadas e até mortas por policiais sem que ninguém se comova com isso. O fato é
que existem sociedades — que aprenderam a enfrentar seus desafios de frente — que
reduziram o percentual de classes excluídas e animalizadas a um mínimo. Penso aqui nas
principais democracias europeias. Nós escolhemos nos indignar moralmente com falsos
conflitos e negar patologicamente qualquer responsabilidade social pela miséria econômica,
existencial e política de parte considerável de nossa população.
Qual a “justiça” que há nisso? Esse argumento atinge o coração da legitimação social de
qualquer sociedade moderna, posto que as sociedades modernas nasceram e se legitimaram,
em oposição a todas as formas pré-modernas de sociabilidade, precisamente pela idéia da
superação de todo “privilégio de sangue”, ou seja, pela pressuposição da superação de todo
privilegio de origem familiar. A reprodução da legitimidade no tempo de toda sociedade
moderna depende também da manutenção dessa ilusão. Transferir a culpa social para o
próprio indivíduo, como acontece com os membros de nossa “ralé”, que se imaginam
efetivamente “burros” e incapazes de aprender, é parte fundamental dessa estratégia de
distorcer a realidade para a manutenção indefinida de privilégios nada meritocráticos.
Existe um aspecto “gerencial” que é perfeitamente legítimo e como tal ele enriquece o
debate político. Há que se usar bem os recursos disponíveis e esse tipo de “racionalidade
técnica” é indispensável. Mas a racionalidade técnica é um “meio” não é um “fim”. A questão
relevante é sempre para que ou para quem serve a racionalidade técnica? Quando se fala da
racionalidade técnica como um fim em si é porque não se pode nomear para quem ou para
que ela serve.
Quando o senhor diz que ainda existem privilégios de sangue, parece que a Queda
da Bastilha não ressoou por aqui. É isso mesmo? Nossa sociedade é medieval desse
ponto de vista?
Mas as sociedades não são iguais. Existem sociedades politicamente e moralmente mais
avançadas do que a nossa porque foram sociedades que aprenderam a conviver e a
institucionalizar o conflito social ao invés de negá-lo patologicamente como fazemos. Nessas
sociedades existem também canais alternativos para idéias e concepções alternativas. Mas
nós também podemos aprender. O que foi feito pelo homem pode ser refeito por ele.
Perceber o mundo como contingente e possível de ser modificado — e não como “natural” e
como o único possível — é sempre o melhor começo.