Lêda Guimarães
Quando Lacan nos diz que um homem pode ser uma devastação para uma
mulher ele nos apresenta não propriamente um detalhe dentre outros acerca
da histeria. A experiência psicanalítica nos demonstra toda a relevância
dessa questão, pois a devastação que uma mulher pode sofrer, numa
relação amorosa com um homem, acaba se constituindo como o ponto
privilegiado para que uma entrada em análise tome como direção o
tratamento do real do gozo. Muitas outras questões poderão ocupar a
subjetividade de uma mulher que procura uma psicanálise, e por essas
outras vias alguns efeitos terapêuticos poderão até advir; mas se a questão
central da experiência clínica não vier a ser definida sobre o eixo da
devastação, os efeitos terapêuticos inclusive poderão não ter muito alcance.
O título deste trabalho, “As mulheres acreditam mais no juiz do que na lei”, é uma
proposição extraída das formulações de Eric Laurent na aula de 18 de dezembro
de 1996, do curso de Miller O Outro que não existe e seus comitês de ética (1).
Durante essa aula Eric Laurent faz uma releitura da Conferência 33 de Freud,
Feminilidade (2), a partir da perspectiva lacaniana do Seminário Mais Ainda (3).
Tomando como referência as elaborações freudianas de que a menina continua no
Édipo durante um tempo indeterminado, só modificando-o mais tarde, mas de
forma imperfeita, de modo que a formação do supereu venha a sofrer dessas
circunstâncias, a partir desse ponto da sua exposição Eric Laurent vem então a
dizer: “a formação do supereu sofre disso, de não chegar nunca a ser
verdadeiramente impessoal, sofre por restar uma ligação. O resto do pai
permanece marcado por uma ligação terna que, seguramente, tem o efeito de
bússola, mas essa ligação terna faz com que, ao fundo, a crença feminina sempre
dirija-se mais ao juiz que à lei.”
Estas formulações de Eric Laurent valem receber todo um destaque para a clínica
da histeria, pois apresentam elementos essenciais que determinam a estrutura do
supereu na histeria. Delas podemos ressaltar suas proposições mais importantes:
1) o supereu nunca chega a ser verdadeiramente impessoal; 2) porque sofre do
resto que sobra do Édipo com o pai; 3) por isso a crença feminina sempre se
dirige mais ao juiz que à lei.
Esses dados clínicos nos demonstram que as características traçadas por Freud
para a primeira fase da instalação do supereu continuam prevalentes na histeria: o
‘medo da perda do amor’ articulado ao ‘medo da autoridade externa’. Mas, isso
significa que não há uma instalação efetiva do supereu na histeria, como Freud
chegou a pensar em alguns momentos? Essa seria uma resposta muito apressada
para a qual poderíamos também ser facilmente tentados, mas os dados clínicos
insistem em demonstrar que não há nenhuma suavidade e leveza do supereu na
histeria. Quando Eric Laurent formula que o supereu nas mulheres nunca se torna
inteiramente impessoal, e que a crença feminina está mais dirigida para o juiz do
que para a lei, isso faz Laurent se aproximar de Freud, pois inspirado nas
formulações de Lacan, Laurent acaba dizendo que as mulheres não fazem tanto
caso das leis já que elas têm uma intimidade com a barradura do Outro. Mas, se
das leis elas podem fugir, o mesmo não podem fazer em relação ao juiz, já que
nele a sua crença está fixada. As mulheres crêem no juiz projetado
imaginariamente no pai, no parceiro, ou em todo um público anônimo diante do
qual a histérica facilmente poderá ser capturada como alvo de devastação.
Portanto é preciso distinguir a diferença entre a ‘autoridade externa’ da qual uma
criança ainda pode tentar fugir, e o ‘juiz’ no qual a histérica acredita, diante do qual
ela não encontra nenhuma saída. A fixação nesta crença denota que, ainda que a
forma da estrutura do supereu na histeria tenha conservado toda uma prevalência
imaginária infantil, é de fundamental importância localizarmos a que amarração de
gozo essa forma está fixada.
Portanto, é o próprio Freud que nos indica claramente que o lastro pulsional do
supereu na histeria está muito bem fixado, inclusive pelo auxílio da operação do
recalque, já que ele aí subsiste sob a forma de sentimento de culpa ‘inconsciente’.
O que denota que na histeria o modo de funcionamento do supereu mantém as
propriedades dos mecanismos inconscientes, assim como também, a satisfação
pulsional nele engendrada encontra as vias mais insuspeitas e silenciosas para
produzir seus estragos na subjetividade de uma histérica.
Retomando a proposição central que orienta este trabalho, podemos formular que
a estrutura do supereu na histeria enoda a prevalência imaginária da crença no
juiz à amarração de gozo do sentimento de culpa inconsciente.
No final do seu ensino, quando a perspectiva para a clínica já havia sido traçada a
partir da topologia dos nós e do sintoma como amarração da estrutura subjetiva,
Lacan nos apresenta uma definição para a histeria que se aproxima das
elaborações freudianas acerca do Édipo nas meninas. Na aula de 14 de dezembro
de 1976, do seu Seminário L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre (10), ele
nos diz que o ‘amor pelo pai’ consiste na armadura que sustenta a histérica, assim
como também será este ‘amor pelo pai’ que ao fornecer a armadura da histeria
fará também com que esta neurose consista no inconsciente.
1 MILLER J.-A., “O Outro que não existe e seus comitês de ética”, seminário inédito.
2 FREUD S., “Novas conferências introdutórias sobre psicanálise”, Obras Completas,
Edição Standard Brasileira, vol. XXII, Rio de Janeiro, Imago, 1966, Conferência 33:
“Feminilidade”.
3 LACAN J., O Seminário, Livro 20, Mais Ainda, Rio de Janeiro, Zahar, 1982.
4 FREUD S., “O Mal-Estar na Civilização”, Obras Completas, Edição Standard Brasileira,
vol. XXI, Rio de Janeiro, Imago, 1966.
5 FREUD S., “O Eu e o Isso”, Obras Completas, Edição Standard Brasileira, vol. XIX, Rio
de Janeiro, Imago, 1966
6 FREUD S., “O Mal-Estar na Civilização”, op.cit.
7 FREUD S., “O Problema Econômico do Masoquismo”, Obras Completas, Edição
Standard Brasileira, vol. XIX, Rio de Janeiro, Imago, 1966.
8 FREUD S., “O Mal-Estar na Civilização”, op.cit.
9 FREUD S., “O Eu e o Isso”, op.cit.
10 LACAN J., “L’insu qui sait de l’une-bévue s’aile à mourre”, seminário, Ornicar?, no.
12-13.