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O campo da comunicação:
MARIA IMMACOLATA
VASSALO DE LOPES
é professora da Escola
de Comunicações e Artes
da USP.
reflexões sobre
seu estatuto disciplinar
“Inscrever na ordem do dia a multidisciplinaridade. Não aquela das
grandes construções prometéicas de uma nova Enciclopédia, mas
aquela que provoca o encontro ao redor de um mesmo objeto de
estudo de pesquisadores pertencendo a metodologias múltiplas.
Estabelecer com eles alianças, aproveitando o prestígio atual da
comunicação e prevenindo-se contra as tendências à hegemonia
das antigas disciplinas” (Armand Mattelart).
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REVISTA
REVISTAUSP,
USP,São
SãoPaulo,
Paulo,n.48,
n.48,p.
p.46-57,
46-57,dezembro/fevereiro
dezembro/fevereiro2000-2001
2000-2001 47
tante é que, além de serem polêmicas, essas ções institucionais e sociopolíticas dessa
propostas são concretas e factíveis e visam produção. A autonomia relativa do “tempo
uma reestruturação disciplinar das ciênci- lógico” da ciência em relação ao “tempo
as sociais e humanas, com base na abertura histórico” é que faz da sociologia da ciência
e revisão das suas estruturas de conheci- ou do conhecimento um instrumento impres-
mento. É uma “chamada para um debate cindível para “dar força e forma à crítica
sobre o paradigma”, como diz Wallerstein epistemológica ou crítica do conhecimento,
(1991). pois permite revelar os supostos inconsci-
Partimos de uma definição formal e entes e as petições de princípios de uma tra-
abrangente do que seja o campo acadêmico dição teórica” (Bourdieu, 1975, p. 99).
da comunicação: um conjunto de institui- É dentro dos marcos da sociologia da
ções de nível superior destinado ao estudo ciência que Pierre Bourdieu desenvolve sua
e ao ensino da comunicação e onde se pro- noção de campo científico. De antemão,
duz a teoria, a pesquisa e a formação uni- vale-se de sua noção de campo: “Um cam-
versitária das profissões de comunicação. po é um espaço social estruturado, um cam-
Isso implica dizer que nesse campo podem po de forças – há dominantes e dominados,
ser identificados vários subcampos: 1) o há relações constantes, permanentes, de
científico, que implica em práticas de pro- desigualdade, que se exercem no interior
dução de conhecimento: a pesquisa acadê- desse espaço – que é também um campo de
mica tem a finalidade de produzir conheci- lutas para transformar ou conservar este
mento teórico e aplicado (ciência básica e campo de forças. Cada um, no interior des-
aplicada) através da construção de objetos, se universo, empenha em sua concorrência
metodologias e teorias; 2) o educativo, que com os outros a força (relativa) que detém e
se define por práticas de reprodução desse que define sua posição no campo e, em con-
conhecimento, ou seja, através do ensino seqüência, suas estratégias” (Bourdieu,
universitário de matérias ditas de comuni- 1997, p. 57). Fazer sociologia da ciência,
cação; e 3) o profissional, caracterizado por segundo o autor, é analisar as condições
práticas de aplicação do conhecimento e sociais de produção desse discurso e que são
que promove vínculos variados com o mer- a estrutura e o funcionamento do campo ci-
cado de trabalho (1). entífico. O campo científico é análogo ao
Analisando essa definição inicial sobre acadêmico, pois residem aí tanto as condi-
o campo acadêmico da comunicação, é ções de produção (sistema de ciência) como
preciso explicitar os seguintes pontos: 1) o de sua reprodução (sistema de ensino).
sentido da noção de campo e de campo Seguindo Bourdieu (1983, pp. 122-55),
acadêmico; 2) o problema da herança dis- o campo científico, enquanto sistema de
ciplinar dos estudos de comunicação; e 3) relações objetivas entre posições adquiridas,
a questão da institucionalização das ciên- é o lugar, o espaço de jogo de uma luta
cias sociais. concorrencial pelo monopólio da autorida-
de científica definida, de maneira insepará-
vel, como capacidade técnica e poder polí-
tico; ou, se quisermos, o monopólio da com-
O SENTIDO DA NOÇÃO DE CAMPO petência científica, compreendida enquanto
capacidade de falar e de agir legitimamente,
E DE CAMPO ACADÊMICO isto é, de maneira autorizada e com autori-
dade, que é socialmente outorgada a um
A produção da ciência depende intrin- agente determinado. Essa legitimidade é,
1 Sobre as relações entre o ensi-
secamente das suas condições de produ- portanto, reconhecida socialmente pelo con-
no e o mercado de trabalho, ção. Estas são dadas pelo contexto junto dos outros cientistas (que são seus con-
coordenei uma ampla pesqui-
sa sobre os egressos dos cur- discursivo que define as condições correntes), à medida que crescem os recur-
sos de Comunicação Social no epistêmicas de produção do conhecimento sos científicos acumulados e, correlativa-
Brasil. Ver: Maria Immacolata
Vassallo de Lopes, 1999. e pelo contexto social que define as condi- mente, a autonomia do campo.
co m c
ca da história da ciência, isto é, da polêmi-
ca científica. O que leva Bourdieu a afir-
mar que o campo científico “encontra na
ruptura contínua o verdadeiro princípio de
sua continuidade” (p. 143). É que o campo
provê permanentemente as condições táci-
tas da discussão que se desenha entre a or-
i
todoxia e a heterodoxia, entre o controle e
a censura, por um lado, e a invenção e a
ruptura, por outro.
Esta extensa reprodução da análise do
campo científico feita por Bourdieu justifi-
u
ca-se, a nosso ver, pelas seguintes razões:
n
para criticar aqueles que apressadamente
vêem nas mudanças internas de uma “ciên-
cia normal” sempre sinais de “crise de pa-
radigmas”; para impedir que se identifique
automaticamente lutas institucionais com
lutas epistemológicas ou, dito de outro
modo, as conquistas institucionais são con-
dições necessárias, porém não garantem per
se o fortalecimento teórico de um campo;
para evitar que se confunda o subcampo do
ensino (reprodução) com o subcampo da
pesquisa (produção) dentro do campo aca-
dêmico.
Acreditamos que esse delineamento
básico ajudará a esclarecer a questão da
disciplinarização do campo da comuni-
cação.
mi
danças nas formas organizativas do traba- disciplinares de cada especialidade. Estas
lho científico. Detém-se nas mudanças práticas vieram pôr a nu o muito que havia
ocorridas a partir de 1945, no pós-guerra, de artificial nas rígidas divisões institu-
com o desenvolvimento da guerra fria, os cionais do conhecimento associado às ci-
investimentos no desenvolvimento cientí- ências sociais.
fico e a concentração dos pólos científicos Consideramos importante transcrever a
em alguns países, com a hegemonia dos avaliação que o relatório faz desse movi-
Estados Unidos. Entre as conseqüências mento de convergência e de sobreposição
destas mudanças no âmbito mundial sobres- entre as disciplinas.
sai a questão da validade das distinções no
interior das ciências sociais que, baseada “Não só se tornou cada vez mais complica-
em clivagens estabelecidas pelo paradig- do achar linhas de diferenciação nítidas
ma da ciência do século XIX para as então entre elas, quer no respeitante ao seu objeto
nascentes ciências sociais, passa a ser pro- concreto de estudo, quer no que concerne
fundamente contestada. Essas clivagens às modalidades de tratamento dos dados,
eram: a) a demarcação entre o estudo do como também sucedeu que cada uma das
mercado (a economia), do Estado (a ciên- disciplinas se tornou cada vez mais hetero-
cia política) e da sociedade civil (a sociolo- gênea, devido ao alargamento das balizas
gia); b) a divisão entre o estudo do mundo dos tópicos de investigação considerados
moderno/ocidental (a economia, sociolo- aceitáveis. Uma das formas de lidar com
gia e política) e o mundo não-moderno/não- esta situação foi a tentativa de criar novas
ocidental (a antropologia); c) do mundo pre- designações ‘interdisciplinares’, como se-
sente (a economia, sociologia e política) e jam os estudos da comunicação, as ciênci-
o mundo passado (a história). Posterior- as da administração e as ciências do com-
mente a 1945, a inovação acadêmica mais portamento”.
importante foi, segundo o relatório, a cria-
ção de estudos por áreas ou regiões (URSS, Esses campos “interdisciplinares” ma-
China, América Latina, África, Europa nifestaram um “questionamento interno
Central, Sudeste Asiático, etc.), uma nova considerável em torno da coerência das
categoria institucional (a geográfica) que disciplinas e a legitimidade das premissas
levou a um reagrupamento do trabalho in- intelectuais que cada uma delas havia uti-
telectual. Esses novos estudos por área lizado para defender seu direito a uma exis-
eram, por definição, “multidisciplinares” e tência autônoma” (pp. 72-3).
as “motivações políticas subjacentes à sua O segundo ponto polêmico do relatório
origem eram bastante explícitas” (p. 60). é a proposta de reestruturar as ciências so-
Chama-se a atenção para o fato de que os ciais com base no estabelecimento, no in-
estudos por áreas atraíram para o interior terior das estruturas universitárias, de pro-
de uma estrutura única pessoas cuja filiação gramas integrados de investigação trans-
disciplinar atravessava transversalmente as versais às balizas de demarcação tradicio-
três clivagens já referidas. Cientistas soci- nais, os quais seriam “novas vias de diálo-
ais de origens e inclinações diferentes en- go e de troca para além das disciplinas e
contraram-se frente a frente com geógrafos, não apenas entre elas” (p. 124).
historiadores da arte, estudiosos das litera- A crítica à interdisciplinaridade é ex-
turas nacionais, epidemiologistas e até plícita e, não obstante reconhecer-se que se
geólogos. Passaram a produzir currículos constituiu numa forma de abordagem cria-
em conjunto, a participar nas bancas de tiva, ela não teria implicado uma frutuosa
doutoramento dos alunos uns dos outros, a fertilização recíproca entre as disciplinas,
assistir congressos organizados por espe- condição única que faria a interdisci-
cialistas de cada área e, principalmente, pas- plinaridade merecedora de um maior
o
específicas e que o “outro” conhecimento
é pertinente e significante para a resolução
dos problemas intelectuais sobre os quais
está trabalhando, tende a reafirmar e não a
embaralhar os dois conhecimentos. O tra-
balho interdisciplinar não é, per se, uma
crítica da compartimentação existente nas
ciências sociais, além de lhe faltar o toque
REVISTA USP,
REVISTA USP, São
São Paulo,
Paulo, n.48,
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político para afetar as estruturas insti- mulos para a sua criação” (p. 241).
tucionais existentes. Ou, colocado de outro modo, as dife-
Mas, pergunta o autor: as várias disci- renças dentro de uma disciplina tendem a
plinas das ciências sociais são disciplinas? ser maiores do que as diferenças entre elas.
Etimologicamente, a palavra disciplina é Isto quer dizer, na prática, que a
vinculada a discípulo ou estudante e é sobreposição é substancial e nas histórias
antitética à doutrina que é a propriedade do desses campos ela tem crescido todo o tem-
doutor ou professor. Portanto, doutrina po. Isto não quer dizer que todos os cientis-
concerne à teoria abstrata e disciplina é tas sociais devam fazer um trabalho idênti-
relativa à prática e ao exercício. A primeira co. Há sempre necessidade de especializa-
tem a ver com a produção e a segunda com ção em campos de estudo (fields of inquiry).
a reprodução do conhecimento. O autor dá um exemplo esclarecedor de
Na história das ciências sociais, uma que especialização e disciplinarização não
disciplina só aparece depois de um longo são sinônimos, mas que a segunda é uma
trajeto de prática quando se torna doutrina, forma própria do século XIX para contro-
ensinada e justificada pelos doutores e pro- lar a primeira. Entre 1945 e 1955, as disci-
fessores. Mas, com isso, pergunta-se o au- plinas separadas botânica e zoologia fun-
tor, atingiu-se um nível defensável e coe- diram-se em uma única disciplina chama-
rente de análise ou apenas separou-se um da biologia. Desde então a biologia tem sido
assunto? uma disciplina florescente e gerou muitos
Todas as divisões em assuntos deriva- subcampos mas nenhum que tenha os con-
ram intelectualmente da ideologia liberal tornos da botânica ou da zoologia.
dominante no século XIX, que argumenta- Portanto, os campos de estudo apare-
va que o Estado e o mercado, a política e a cem como um novo padrão emergente a
economia eram setores analiticamente se- que se pode chamar transdisciplinarização
parados, cada um com suas regras ou “ló- ou pós-disciplinarização (Fuentes, 1998),
gicas” particulares. Sabemos o que as difi- quer dizer, um movimento para a supera-
culdades de fronteiras causaram nos itine- ção dos limites entre especialidades fecha-
rários intelectuais dos campos (sociologia, das e hierarquizadas, e o estabelecimento
política, economia e antropologia), e que de um campo de discurso e práticas sociais
eles foram complexos e variados. Porém, cuja legitimidade acadêmica e social vai
como o mundo real evoluiu, a linha de con- cada vez mais depender da profundidade,
tato entre “primitivo” e “civilizado”, “po- extensão, pertinência e solidez das expli-
lítico” e “econômico” embaraçou-se. In- cações que produza, do que do prestígio
vasões intelectuais tornaram-se comuns, institucional acumulado.
porém os invasores moveram as estacas mas Em resumo, a crítica à compartimen-
não as quebraram. tação das ciências sociais tem, portanto, a
A questão diante de nós, hoje, é se há ver com clivagens colocadas por paradig-
algum critério intelectual que possa ser mas histórico-intelectuais do século XIX e
usado para assegurar de um modo relativa- que, segundo o Relatório Gulbenkian, são
mente claro e defensável as fronteiras entre mais clivagens ideológicas e organizativas
as quatro presumidas disciplinas de antro- do trabalho intelectual do que propriamen-
pologia, economia, ciência política e socio- te derivadas de exigências internas do co-
logia. A “análise do sistema-mundo” (world nhecimento, isto é, epistemológicas, teóri-
systems analysis), proposta pelo autor, res- cas e metodológicas.
ponde com um inequívoco “não” a essa Há, entretanto, outro aspecto que deve-
questão. “Todos os critérios presumidos – ria ser acrescentado a esse poderoso argu-
nível de análise, objeto, métodos, teorias – mento. Trata-se da relação orgânica entre
ou não são verdadeiros na prática ou, se as ciências sociais e a comunicação na me-
sustentados, são linhas divisórias para um dida em que a sociedade moderna foi sendo
conhecimento adicional mais do que estí- cada vez mais plasmada nas formas da
BIBLIOGRAFIA
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