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jorge miranda

ciencia politica
formas de governo
lisboa
1996
título: ciência política - formas de governo autor:

jorge miranda

reservados todos os direitos para jorge miranda

composição e impressão: pedro ferreira - artes gráficas rua jorge castilho, 14


telefone 916 17 08

2735 rio de mouro edição:

pedro ferreira - editor


2735 rio de mouro

tiragem: 1000 exemplares depósito legal n.q 104815/96 lisboa - 1996

nota prÉvia

a parte iv do programa da disciplina de ciência política e direito


constitucional, do 1.2 ano (segundo o plano curricular de 1983), na
turma a meu cargo, versa sobre formas e sistemas de governo,
englobando também sistemas eleitorais e sistemas de
partidos.

embora há muito deseje retomar, aprofundar e desenvolver o


estudo destas matérias, tal não tem sido possível por causa de
outros trabalhos acadêmicos, designadamente os derivados das
sucessivas edições dos diversos volumes do manual de direito
constitucional e da presidência do conselho directivo.

em 1992, procedi a uma remodelação relativamente extensa das


lições policopiadas anterionnente. agora nem isso: apenas aqui e ali
algumas actualizações.

tal vem a ser o alcance destes apontamentos.

lisboa, 15 de outubro de 1996


titulo 1

formas de governo

em geral
capitulo 1

conceitos e tipologias

fundamentais
i.preliminares

ao considerar-se a problemática dos sistemas político-constitucionais, é


mister tomar em conta:

a) a relativa confusão de conceitos e a multiplicidade de termos - formas


de estado, tipos de estado, regimes, formas de governo, sistema de
governo, sistemas políticos, estruturas govemamentais, formas políticas,
etc.;

b) a pesada carga doutrinal, derivada de a matéria dos sistemas


políticos (ou, noutra perspectiva, das formas políticas) ser das mais
estudadas e discutidas desde os primórdios da reflexão política;

c) a localização histórica dos sistemas políticos e, portanto, a


localização histórica das suas tipologias - há classificações próprias de
certas épocas e mesmo as classificações aparente-
11
mente mais constantes e universais têm de ser entendidas em função de cada época
e, porventura, de cada continente;

d) 0 carácter eminentemente interdisciplinar (o que não quer dizer de puro


sincretismo) de qualquer investigação ou exposição a empreender.

2. as tipologias de formas políticas

em geral

1 - num relance geral pelas tipologias de formas políticas’ dir-se-á antes de mais:

a) que nelas se encontram (como salienta, por exemplo, bobbio) quase sempre
elementos de duas ordens: não só descritivos mas também prescritivos - donde,
classificações, umas sistemáticas e outras axiológicas;

1. cfr., entre tantos, bluntschli, théorie générale de l’etat, trad., 3.’ ed., paris, 1891,
págs. 294 e segs.; g. jellinek, allgemeine staatslehre, 1900, trad. cast. teoria general
del estado, buenos aires, 1954, págs. 501 e segs.; nlçrnoco e sousa, direito político
-poderes do estado, coimbra, 19 10, págs. 83 e segs.; c. scmitt, verfassungslehre,
1927, trad. cast. teoria de la constitucián, madrid-méxico, 1934-1966, págs. 259 e
segs.; emilio crossa, ”sulla teoria delle forme di stato”, in rivista internazionale di
filosofia del diritto, 193 1, págs. 18 e segs.; h. kelsen, teoria general del estado, trad.
cast., barcelona-madrid, 1934, págs. 408 e segs.; santi romano, principii di diritto
costituzionale generale, 2. ed., milão, 1947,
12

b) que as classificações axiológicas, enquanto exprimem juizos sobre a sociedade


política e contêm indicações de preferências vêm a ser instrumentos de intervenção
com vista a determinados modelos ou soluções - sejam esses modelos pensados a

págs. 142 e segs.; charles eisen1~ cours de droit constitutionnel comparé, policopiado,
paris, 1950-195 1; cabral de moncada, filosofia do direito e do estado, i, 2. ed.,
coimbra, 1955; queiroz lima, teoria do estado, 8.2 ed., rio de janeiro, 1957, págs. 218 e
segs.; k. lowenstein, verfassungslehre, trad. cats. teoria de la constitución, barcelona,
1964, págs.
41 e segs.; george catlin, systematic politics, toronto, 1962, trud. port. tratado de
política, rio de janeiro, 1964, págs. 193 e segs.; robert mac iver, the web of
government, 1965, trad. cast. teoria del gobierno, madrid,
1966, págs. 139 e segs.; g. burdeau, traité de science polítique, v, 2. ed., paris, 1970;
c. mortati, lezione sulle forme de governo, pádua, 1973, maxime págs. 73 e segs.;
manuel ji21enez de parga, los regimenes políticos contemporaneos, 5.2 ed., madrid,
1974, maxime págs. 120 e segs.; reinhold zippelius, allgemeinstaatslehre, trad. port.
teoria geral do estado, lisboa, 1974, págs. 72 e segs.; klaus von bey1vie, ”formas de
dominación”, in marxismo y democracia - enciclopedia de conceptos básicos. política 3,
trad. cast., madrid, 1975, págs. 70 e segs.; norberto bobbio, la teoria delle fórme di
governo, turim, 1976; marcello caetano, direito constitucional, 1, rio de janeiro, 1977,
págs. 409 e segs.; josÉ alfredo oliveira baracho, regimes políticos, são paulo,
1977; adriano moreira, ciência política, lisboa, 1979, págs. 137 e segs.; paulo
bonavides, ciência política, 6.l’ ed., rio de janeiro, 1986, págs. 223 e segs.; jean-louis
quermonne, les régimes politiques occidentaux, paris, 1986; constatin l. georcopoulos,
contribution à la elassification des régimes politiques, paris, 1987; vitalino canas,
preliminares de estudo da ciência política, macau, 1992, págs. 37 e segs.; giuseppe de
vergottini, diritto costituzionale comparato, 4.2 ed., pádua, 1993, págs. 95 e segs.;
gomes canotilho, direito constitucional,
6.-1 ed., coimbra, 1993, págs. 707 e segs.

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partir da idealização de uma forma concreta verificada (como atenas ou
esparta na antiguidade, a inglaterra ou a suíça na idade moderna),
sejam pensados a partir de uma síntese de elementos bons de várias
formas de governo (dando origem aos chamados governos mistos), ou
sejam pensados em termos de pura construção ideal ou utopia’;

c) que as tipologias aparecem em ligação directa ou indirecta com as


situações vividas pelos seus autores - e daí as suas variações e
constantes desactualizações;

d) que, ao mesmo tempo, elas se projectam sobre a própria prática


política, pelo menos, a nível de legitimidade e de apreciação dos actos
dos governantes (o que mostra como os factores culturais e ideológicos
agem sobre a realidade social e política);

1. À letra, utopia significa porém (ou por isso mesmo) não lugar, lugar
inexistente, nenhures.

têm sido muitos os livros com construções de cidades ideais, mais


felizes ou mais justas. entre todos, lembre-se o de tomçs morus (utopia,
1516), sendo ”utopia”, uma república insular descrita por um viajante
português, rafael hifiodeu. para um relance panorâmico sobre o assunto,
v. manuel antunes, ”utopia”, in pólis, v, págs. 1465 e segs.; jean servier,
l’utopie, paris, 1979; paulo ferreira da cunha, constituição, direito e
utopia, coimbra, 1996.

mas igualmente se conhecem anti-utopias ou descrições de


organizações políticas negadoras de liberdade e de felicidade das
pessoas: v., por exemplo, no nosso tempo, 1984, de george orwell.

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e) que, apesar de essencialmente voltadas para o poder, não ignoram,


muitas vezes, os elementos sociais ou os condicionamentos sócio-
económicos do poder’.

11 - importa discernir tipologias clássicas (antigas e modernas) e


tipologias actuais (tipologias surgidas no século xx, frente aos problemas
da nossa época).

as tipologias clássicas possuem de comum:

a) são tipologias simples - cada uma delas, ao procurar a suma divisio,


adopta, de regra, um só critério de base;

b) conferem todo o relevo à titularidade e ao exercício do poder, numa


postura tanto de observação de factos quanto de formulação de juízos
de valor;

c) 0 elemento prescritivo entra, por um lado, através da distinção entre


formas puras e formas degeneradas e, por outro lado, através do
apontar de formas mistas (desde políbio e cícero a harrington, locke e
montesquieu, mas não bodin, hobbes ou rousseau).

por seu turno, as tipologias propostas no século xx ostentam como


características gerais:

1. v. já o cap. iii do livro vi da política de aristóteles.

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a) adoptam critérios extremamente variados e, não raro, critérios
múltiplos;

b) situam-se quase todas no âmbito da democracia (que é a


legitimidade prevalecente hoje);

c) atendem, não raro, a considerações de índole económica e social (ou


implicam-nas).

111 - as tipologias clássicas radicam em platão e aristóteles, e através


de cícero, s. tomás de aquino, maquiavel, bodin e outros, prolongam-se
até ao século xx. e é usual contrapor tipologia tripartida e tipologia
bipartida.

na tipologia tripartida distinguem-se monarquia, aristocracia,


democracia (república, politeia, na expressão de aristóteles). na
tipologia bipartida, ligada a maquiavel, monarquia (principado) e
república.

iv - as tipologias propostas no século xx assentam, em grande parte, nas


tipologias clássicas, revendo-as ou adaptando-as às novas condições.
mas encontram-se, igualmente, tipologias que apelam para outros
critérios classificativos mais ou menos exigentes.

ais coerente e a mais compreensível de entre as primeiras, a m

pelo homem da rua é a dicotomia democracia-ditadura. também


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se fala em regimes de poder civil e regimes de poder militar. e no


âmbito da democracia, em democracia directa, democracia
representativa e democracia semidirecta (a que alguns aditam a
democracia semi-representativa) e em democracia censitária (ou
burguesa) e democracia de massas.

exemplos de tipologias para além da detenção do poder: pluralismo e


monismo político ou, de outra perspectiva, regimes pluripartidários e
regimes monopartidários; regimes liberais, autoritários e
totalitários; e regimes capitalistas e socialistas.

v - ilustração da índole histórica das tipologias e a contraposição entre


monarquia e república:

a) até ao século xviii, a monarquia ou principado como governo de um


só, independentemente do processo da sua designação’, e a república
(praticamente quase sempre aristocrática) como governo de um colégio
ou assembleia.

b) durante a revolução francesa, a monarquia como governo de um só


(ligado às características da monarquia absoluta) e a república como
governo do povo (fundada no princípio democrático, portanto).

1. houve, assim, monarquias hereditárias, por cooptação (de algum


modo, o império romano) e por eleição (monarquia visigótica, império
germânico, polónia, etc.).

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c) ao mesmo tempo, nos estados unidos (madison) e depois, durante a maior
parte do século xix, a república como governo representativo contraposto à
democracia pura ou governo directo’.

d) no século xix conciliação entre monarquia (absoluta) e república


(democrática) através de uma forma mista, a monarquia constitucional (nuns
casos com prevalência do princípio monárquico - monarquia limitada - noutros
com prevalência do princípio democrático - monarquia parlamentar - e noutros
ainda com equilíbrio entre eles, embora com concentração de poderes no rei -
monarquia orleanista).

e) no século xx o desaparecimento do princípio monárquico e redução das


características da monarquia (agora só constitucional) à hereditariedade da
chefia do estado, mas, em contrapartida, podendo entender-se que a república
exprime um princípio democrático qualificado (de onde, desde logo, a ausência
de chefe de estado ou um chefe de estado colegial ou singular electivo)2.

1. the federalist, 1787, n.q 14.

2. cfr., por exemplo, giovanni cassandro, ”monarchia”, in enciclopedia del


diritto, xx-vi, págs. 724 e segs.; antonio papell, la monarquia espaflola y el
derecho constitucional europeo, barcelona, 1980; nicola ~eucci, republica, in
dizionario di politica, 2.l’ ed., turim,
1993, págs. 960 e segs.; nuno rogeiro, república, in polis, v, págs. 414

e segs.

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3. as grandes classificaÇões doutrinais

1 - a primeira grande classificação doutrinária a referir é a de platao (a


república, as leis).

na linha do seu pensamento, para ele todas as formas de governo existentes


são corruptas e estado óptimo há um só.

reduz essas formas a quatro, segundo graus crescentes de imperfeição (ou


decrescentes de perfeição):

1) a timocracia (governo da honra ou de homens honrados ou transição entre


a constituição ideal e a constituição real, como seria o caso de esparta);

2) a oligarquia ou fornia corrupta -de aristocracia;

3) a democracia;

4) a tirania. e indica duas formas ideais, indiferentemente: a monarquia e a


aristocracia (de que é degenerescência a timocracia).
para caracterizar estas formas de governo, platÃo examina as virtudes e os
vícios das respectivas classes dirigentes e a legalidade ou a ilegalidade da
actuação dos governos. a passagem de uma forma a outra dá-se com a
mudança de gerações e com a corrupção dos seus princípios pelo excesso que
conduz à discórdia.

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11 - mas a mais célebre das análises das formas de governo pertence a
aristóteles (política, cap. v do livro 111), se bem que o critério
fundamental em que assente remonte a heródoto.

É um critério quantitativo - quem governa (se é um homem só, se são


poucos ou muitos) a que acresce um critério valorativo
- como governa (qual o interesse ou o bem almejado pelos governantes,
se o bem geral, se o bem apenas deles).

formas puras revelam-se a monarquia, a aristocracia e a ”politeia”.


formas degeneradas a tirania, a oligarquia e a democracia (a
democracia aparece como governo em favor dos pobres, tal como a
oligarquia se define como governo em favor dos ricos). cada uma destas
formas compreende subdistinções (por exemplo quanto à monarquia, a
dos tempos heróicos, a de esparta e a despótica, do oriente).

como hierarquia das formas de governo, propõe aristóteles uma muito


semelhante à de platÃo (sendo a forma pior a degenerescência da
melhor): monarquia - aristocracia ”politeia” - democracia - oligarquia -
tirania. entende, porém, que o melhor governo seria uma conjugaçao de
governos diversos, numa preocupação de mediania ou equilíbrio.

111 - políbio (livro vi da história), escrevendo no século ii antes de cristo


e debruçando-se sobre a constituição romana, procede a um estudo dos
mais completos das formas de governo.

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segundo ele, existem seis fomias fundamentais de governo, três boas e


três más; e há uma sétima forma, síntese das três formas boas (e de que
seria exemplo a constituição romana). É um tratamento
simultaneamente sistemático, histórico e axiológico.

as formas boas de governo fundam-se no consenso e vêm a ser o reino,


a aristocracia e a democracia (esta, no sentido que perduraria). as
formas más repousam na força e vêm a ser a tirania, a oligarquia e a
oclocracia. as formas boas e más sucedem-se em ciclos, deste modo: a
monarquia decai em tirania; daqui passa-se a aristocracia, que depois
degenera em oligarquia; segue-se a democracia, que, por ser branda,
cai em oclocracia (ou governo de multidão); volta-se à monarquia; etc.

a grande contribuição de políbio é a sua formulação da tese do governo


misto, associada à teoria dos ciclos. como os ciclos mostram a breve
duração das formas puras, para haver estabilidade toma-se necessário
recorrer a governos mistos (como em roma, em que os consules
traduziriam o elemento monárquico, o senado o elemento aristocrático e
o povo o elemento democrático. mas os governos mistos também se
modificariam; e haveria ciclos ainda no interior dos próprios governos
mistos.

iv - maquiçvel (0 príncipe e discursos sobre a primeira década de tito


lívio), muitos séculos mais tarde, avança com uma concepção bastante
diversa, no âmbito já do estado moderno.
21
propõe uma bipartição, correspondente à efectiva situação do seu
tempo (ao passo que na grécia havia uma grande variedade de formas
de organização): a contraposição entre república (que se encontrava
em itália, na flandres e em certas cidades alemãs) e o principado (em
rápido florescimento, então).

a república é o governo de vários, sejam alguns (aristocratas) ou muitos


ou todos (democracia). 0 principado ou monarquia o governo de um só.
na república tem de se formar uma vontade colectiva, na monarquia não
há senão uma vontade individual. divide os principados em
hereditários e novos (estes provenientes de uma recente conquista
do poder, num conceito que se aproxima do moderno conceito de
ditadura). para além disso, não deixa de elogiar os governos mistos,
exaltando, a esse propósito, também ele, a república romana.

v - outra tipologia é a de jean bodin, autor da obra celebérrima os seis


livros da república, publicada em 1576. jean bodin ficou conhecido,
sobretudo, como o teórico da monarquia centralizada (e, até certo
ponto, da monarquia absoluta francesa) e por ter definido e lançado
com êxito - propiciado pelas condições históricas - o conceito de
soberania.

contudo, nessa obra, bodin procede a uma classificação formas políticas,


tendo em conta a distinção entre titularidexercício da soberania.

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0 poder político poderia pertencer a um só, a vários ou a todos - de


onde, respectivamente, monarquia

aristocracia e demo-

cracia. entretanto, não bastaria atender à titularidade, era também


necessário atender ao exercício e às pessoas ou instituições às quais era
confiado - o próprio rei, uma assembleia aristocrática ou uma
assembleia popular.

seria, assim, possível combinar as formas de governo em razão da


titularidade com as formas de governo em razão do exercício; poderia
haver uma titularidade monárquica e um exercício aristocrático ou até
democrático do poder, assim como poderia haver uma titularidade
aristocrática e um exercício monárquico ou democrático, e uma
titularidade democrática com um exercício monárquico ou aristocrático.
e daí não há uma divisão tripartida segundo o pensamento de aristóteles
ou de políbio, mas uma divisão em nove grandes formas de governo:
- monarquia monárquica (que só aparentemente seria um pleonasmo);

- monarquia aristocrática;
- monarquia democrática;
- aristocracia aristocrática;
- aristocracia monárquica;
- aristocracia democrática;
- democracia monarquica;

- democracia aristocrática; e

- democracia democrática.

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com isto, chega-se a formas aparentemente mistas. só que o próprio
bodin vem, polemicamente, pÔr em causa a existência de governos
mistos, afirmando que, em qualquer estado, há sempre um princípio que
prevalece.

finalmente, num segundo momento ou de um ângulo prescritivo, bod1n


coloca a problemática do modo como o poder é exercido, dos resultados
e do valor desse exercício, e vem então propor uma tripartição dos
governos em legítimos, despóticos e tirânicos. É outra maneira de
pensar a velha distinção entre governos puros e corruptos. a monarquia
que bodin preconiza é, obviamente, uma monarquia legítima ou régia,
em que os súbditos obedecem às leis do rei e o rei às leis da natureza.

vi - outra formulação com interesse é aquela que no século xviii,


giambattista vico (autor de la scienza nuova) apresenta no âmbito da
sua filosofia da história. não é que introduza novos termos; o que ele faz
é uma correlação entre as formas políticas e as fases da evolução
histórica, tomando roma como referência.

haveria três idades: a dos deuses, a dos heróis e a dos homens. a idade
dos deuses corresponderia à teocracia, a dos heróis à aristocracia e a
dos homens quer à democracia ou república popular quer à monarquia.
a sucessão de formas políticas seria: aristocracia (a primeira forma de
estado), democracia e monarquia.

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vii - muito mais influente viria a ser, contudo, montesquieu. 0 seu


famosíssimo de vesprit des lois compreende toda uma doutrina
do governo, de que não é senão um dos aspectos a separação de
poderes.

montesquieu agrupa as formas políticas também a partir de uma


tripartição. mas esta tripartição não obedece já ao esquema aristotélico,
tende a ser uma combinação da concepção aristotélica com a análise
das formas do governo em boas e más e em perfeitas e imperfeitas.

ao, pois, ess

s- as formas a república, a monarquia e o despotismo. a


república e monarquia vem na linha de maquiavel, e acrescenta-se uma
terceira forma, o despotismo, o qual corresponde ao governo imperfeito.

a república e o governo de todos por um grupo de homens, por um


colégio de homens, sejam alguns, sejam todos. a monarquia e o governo
de todos por um só homem, mas um só homem que exerce o poder com
equilíbrio, na perspectiva do bem comum. 0 despotismo é o governo
imperfeito geralmente exercido por um só homem sem ter em conta o
bem comuin’.

1. para montesquieu que escreve considerando não só a europa mas


também a çsia, a república e a monarquia seriam as formas europeias
de governo e o despotismo seria a forma asiática de governo. É óbvio o
eurocentrismo.

25
daqui passa montesquieu para uma segunda classificação, agora sob
prisma prescritivo e valorativo, declarando a monarquia e a república
governos moderados e contrapondo-lhes o governo despótico. e é nesta
distinção fundamental que vai entroncar a separação dos poderes,
porque os governos moderados se definem não já pela titularidade ou
pelo exercício, mas sim pela limitação de poder.

ou seja, segundo uma classificação descritiva, pode haver república,


monarquia, despotismo. segundo uma classficação prescritiva, poder
moderado e poder despótico.

viii - também kant se ocupa (na paz perpétua) da análise das formas
políticas, observando a diferença das pessoas que possuem o supremo
poder do estado e o modo de governar o povo.

só há três formas possíveis de soberania (forma imperfl): ou a


soberania é possuída por um só, por alguns ou por todos os que formam
a sociedade civil. de onde, autocracia, aristocracia e democracia, ou
poder do príncipe, da nobreza e do povo

quanto à forma de governo (forma regiminis) ou modo como o estado


faz uso da plenitude do seu poder, - ele ou é republicano ou é
despótico. 0 princípio republicano corresponde ao princípio político da
separação do poder executivo do poder leg,slativo; o
26

despotismo é o princípio da execução arbitrária pelo estado das leis que


ele a si mesmo deu (sendo, por conseguinte, a vontade pública
manejada pelos governantes como sua vontade privada).

das três formas de estado, a democracia é, no sentido próprio da


palavra, necessariamente um despotismo, porque funda o poder contra
executivo no que todos decidem sobre um e até, por vezes,

um - se não houve o seu consentimento. para que a forma de governo


seja adequada ao conceito de direito deverá, portanto, basear-se no
sistema representativo, único capaz de tomar possível uma forma
republicana.

ix - no século xx, hegel (na sua filosofia do direito) adoptaria uma


análise algo semelhante à de montesquieu, distinguindo despotismo,
democracia e monarquia (onde montesquieu falava em república, fala
hegel em democracia).

hegel procede à contraposição não apenas tendo em conta a


titularidade e o exercício do poder político mas tendo em conta também
a própria estrutura cultural e social subjacente ao exercício do poder. 0
despotismo corresponderia a uma sociedade não diferenciada, em que a
ideia de direito não estaria ainda assente, a uma sociedade atrasada ou
primitiva; na democracia, já se verificaria uma determinada organizaçã9
política e social, mas

’a que se daríam a unidade da imperfeita; seria apenas na monarqui


1

27
sociedade e a realização plena da ideia de história e da ideia de
sociedade.

a monarquia seria, pois, a forma mais perfeita e a última fase da


organização política que se verificaria ao longo dos tempos. não se
confundiria, contudo, com a monarquia absoluta; seria a monarquia
constitucional - a monarquia constitucional prussiana (bem diferente da
francesa) e em que se disporiam três poderes, o legislativo, o de
governo e o do soberano.

x - tipologia bem característica do século xx é a de carl schmitt (no seu


livro legalidade-legitimidade), assente numa determinante visão política
das funções do estado.

há quatro funções do estado: a legislativa, a administrativa, a


jurisdicional e a política. consoante cada uma destas funções predomine
sobre as demais e consoante, por conseguinte, o órgão correspondente
a essa função prevaleça sobre os demais órgãos, encontra-se uma
forma política específica.

assim, caberia distinguir: o estado legislativo - aquele em que na forma


de governo prevalecem a função legislativa e os respectivos órgãos; o
estado jurisdicional ou judicial - em que são os tribunais os órgãos
centrais da vida pública; o estado administrativo - em que predomina a
função administrativa, há um
28

domínio do estado pelos órgãos administrativos; e o estado


governamental - em que a função de direcção política é a função
essencial e são os órgãos de direcção política que prevalecem.

0 estado legislativo e o estado jurisdicional teriam correspondido a


formas do século xix, sendo o estado legislativo característico da europa
e o estado judicial característico dos estados unidos da américa.

0 estado administrativo corresponderia aos estados da primeira fase do


século xx.

0 estado governamental que se lhe seguiria, seria um estado de decisão


política, com prevalência de poder no órgão ou nos órgãos aos quais
incumbe imprimir sentido, em cada momento, à vontade do estado
(repare-se na conexão com o conceito decisionista de constituiçao e
com a situação vivida entre as duas guerras na europa, particulannente
na alemanha).

x1 - nos antípodas de schmitt, fica a teoria da constituição de karl


loewenstein, toda construída (também não pouco por causa da
experiência histórica e pessoal de autor) como teoria de limitação ou de
controlo do poder, numa renovação do pensamento vindo de locke e de
montesquieu.

29
loewenstein, por isso, apresenta uma bipartição das formas de governo
em razão de um critério da limitação:

- autocracia: se o poder está concentrado em alguém, seja um homem


só, seja um grupo, seja um partido, seja uma assembleia;

- constitucionalismo: se o poder está repartido por vários centros, por


vários órgãos, por várias entidades.

e esta classificação está directamente relacionada com aquela que karl


loewenstein faz das constituições em normativas, nominais e
semânticas. as constituições normativas são cumpridas como
verdadeiros sistemas normativos, representam uma limitação do poder
e, portanto, são as constituições próprias do constitucionalismo; pelo
contrário, as constituições nominais e semânticas estão ligadas à
autocracia (pelo menos, à autocracia moderna).

x11 - no seu tratado de ciência política, georges burdeau estuda as


formas governamentais e os regimes políticos.

dentro das formas governamentais, contrapõe governos monocráticos


e deliberativos (conforme os mecanismos de poder
30

são animados por uma força única ou por uma pluralidade de forças). os
governos monocráticos englobam as monocracias autoritárias e as
monocracias populares. os governos deliberativos são aqueles em que
há discussão e oposição.

nos regimes, contrapõe regimes democráticos e autoritários e na


democracia considera ainda:

a democracia governada (própria do século xix): o povo teria a


titularidade, mas não teria o acesso real ao poder, o povo seria um povo
jurídico e não um povo real;

e a democracia govemante (própria do século xx): o povo real e a sua


vontade real teriam acesso ao poder, seja na democracia do poder
aberto ou democracia pluralista de tipo ocidental; seja na democracia de
poder fechado ou democracia marxista, equivalente a monocracia
popular.

x111 - muito diferente é a análise de gabriel almond

(política comparada), tomando como critério a progressiva diferenciação


de funções de estado.
donde:

1. sistemas primitivos: com indiferenciação de funções e órgãos;

31
2. sistemas tradicionais - correspondentes a não acesso das pessoas,
dos súbditos, ao poder;

3. sistemas modernos - nos quais ocorre a participação crescente no


poder e a diferenciação de funções do estado.

xiv - maneira de ver em estreitos moldes jurídicos e, naturalmente, a de


kelsen (teoria geral do estado). as formas de governo classificam-se
segundo os processos de criação do direito, e daí que:

- a democracia se caracterize pela participação dos destinatários das


normas jurídicas, dos governados, na formação de vontade estadual,
pela autodeterminação dos governados, pela liberdade;

- e a autocracia, pelo contrário, por a vontade estadual se formar sem


participação dos governados, sem autodeterminação, sem liberdade’.

1. muitas outras tipologias poderiam ser resumidas.

por curiosidade, vale ainda a pena citar o quadro das formas de governo
de fernando pessoa (”considerações pós-revolucionárias”, in páginas de
pensamento político - 1, 1910-1919, com organização de antônio
quadros, lisboa, 1986, pag. 58):

32

4. distinÇÃo de conceitos proposta

1 - indicadas as principais tipologias de formas políticas, toma-se ainda


mais evidente que só é possível prosseguir no tratamento do tema,
desde que se proceda a um rigoroso balizar de fronteiras conceituais.

temos, por um lado, conceitos de capital importância na teoria do estado


(tanto de uma perspectiva jurídica como politológica), mas que devem a
priori ser afastados por, embora conexos com a matéria que nos ocupa,
para ele só relevarem por via indirecta. são os de tipo histórico do
estado, de tipo constitucional de estado e de forma de estado.

e temos, por outro lado, aquelas figuras que se prendem com os


problemas a abordar aqui e a respeito das quais há-de ser feita a
necessária destrinça. são as de forma de governo, sistema de governo,
forma institucional, sistema eleitoral, sistema de partidos, regime e
sistema político.

aristocratismo democratismo
monarquismo monarquia absoluta monarquia democrática

individualismo cesarismo (?)

republicanismo república aristocrática república democrática (pura)

individualismo integral

anarquismo oligarquia socialismo

anarquia pura

33
ii - quando pensamos em estado temos de pensar sempre numa certa
concretização do estado, numa certa manifestação histórica de estado;
pois é disso que se cuida quando se fala em tipos de estado’. É
diferente o estado moderno do estado romano, por exemplo; e aqui só
cabe cuidar do estado moderno.

a noção de tipo constitucional de estado tem (ou teve) particular


interesse no século xx, causa do confronto de diferentes formas
organização política, económica e social portanto, também,
constitucional que nele verifica (ou verificou). dentro do mesmo histórico
de estado, o europeu, inserem-se tipos constitucionais tão diversos, e
em luta durante quase todo o século, como o estado de direito (primeiro
liberal, depois social), o estado marxista,3

-lenínista e o estado fascista

uma coisa vem a ser a contraposição entre estado simples ou unitário e


estado composto (designadamente estado federal), outra a distinção
entre monarquia absoluta e governo representativo, ou entre sistema
parlamentar e sistema presidencial, ou entre sistema monista e sistema
pluralista, para só dar dois ou três exemplos. uma coisa é a forma de
estado, outra a forma ou o sistema de governo.

1. v. manual de direito constitucional, i, 5.1 ed.,coimbra. 1996, págs. 49


e segs.

2. v. manual .... págs. 93 e segs.

3. pelo contrário, o estado islâmico fundamentalista (que existe no irão e


procura emergir noutros países) já não pode integrar-se aí. ele é out-,-)
tpo histórico de estado.

34

iii - a forma de governo (tomando governo em sentido lato,


equivalente ao grau mais denso de fenômeno político) tem,
precisamente, que ver com a relação política fundamental - a relação
entre govemantes e governados. É o modo como se
estabelece e estrutura essa relação; e estabelece-se e estrutura-se em
resposta a quatro problemas - os problemas da legitimidade do poder,
da participação, do pluralismo ou da liberdade e da unidade ou divisão
de poder.

além destes problemas (de certa maneira pressupostos por eles e


também, de outra maneira como problemas autónomas), põem-se todos
os problemas concementes às relações entre órgãos de governo (entre
órgãos de função política), ou até à existência ou não de uma
pluralidade de órgãos govemativos. e somente aqui é que, em rigor, se
encontra o conceito de sistema de governo. ao passo que a forma de
governo abrange a totalidade da vida política, a forma de governo
confirma-se à estrutura interna do poder, as instituições e ao estatuto
dos govemantes.

melhor se compreenderá a diferença dos dois conceitos, se se observar


a situação política na europa, na américa e noutras partes do mundo:
hoje prevalece ou tende a prevalecer a mesma forma de governo - a
democracia representativa - sem embargo da grande variedade de
sistemas de governo, sistemas parlamentares, presidenciais, etc1.

1. cfr., embora não coincidente, a distinção entre formas de estado e


formas de governo adoptada por alguma doutrina em portugal e no
estrangeiro: assim, barbosa de melo, democracia e utopia, coimbra,
1980, pág. 40.

35
pelo contrário, pouco conteúdo político tem hoje, corno se notou já, o
contraste entre monarquia (a monarquia constitucional) e república. não
deixa, porém, apesar de tudo, de revestir algum significado a nível
institucional e de cultura cívica, pelo que se justifica propor um conceito
autónomo para o contemplar - o de forma institucional.

a compreensão das formas e dos sistemas de governo dos dois últimos


séculos requer o conhecimento dos sistemas eleitorais e dos sistemas
de partidos. realidades (de direito e de facto) bem caracterizadas,
entrelaçam-se com essas formas e esses sistemas de governo, ora como
seus condicionamentos, ora como suas decorrências, sem com eles se
confundirem.

iv - por último, cabe aludir a conceitos mais amplos, mais complexos, de


síntese; o conceito de regime político e o conceito de sistema
político.

o conceito de regime é, essencialmente, um conceito ligado ao conceito


de constituição: regime político é a expressão política da constituição
material. a cada constituição material corresponde um regime político,
uma concepção dos fins e dos meios do poder e da comunidade.
regime político, aliás, não se esgota na mera organização do poder
político, prende-se também, e muito, com os direitos fundamentais e
com a organização económica e social.

36

por seu turno, o sistema político atende muito mais à efectividade do


que à normatividade; e abarca não só os órgãos e instituições formais
ou constitucionais mas também as demais instituições e corporações
políticas ou sociais politicamente relevantes, as forças políticas
(partidos) e económico-sociais (sindicatos, associações patronais), a
ideologia dominante e o enquadramento exterior do estado’.

v - na constituição portuguesa actual, alguns destes conceitos aparecem


mais ou menos explicitamente.

a forma de estado esta patente no art. 6.2: ”0 estado é unitário ... - os


arquipélagos dos açores e da madeira constituem regiões autónomas
dotadas de estatutos político-administrativos e de órgãos de governo
próprios”.

a forma de governo é definida nos arts. 9.% alínea c), e 10.9, n.9 2 como
democracia política e no art. 112.2 como sistema democrático; e
recortada através de elementos como a soberania popular (arts. 2.2,
3.% ri.!’ 1. e 111.2), o pluralismo (art. 2.2), a representação política
(arts. 10.9, 49.` e 116.l» e a separação e a interdependência de órgãos
de soberania (arts. 113.2 e 114.9).

1. cfr., por todos, david easton, the political system, nova iorque, 1953;
georges burdeau, traité .... vii, págs. 578 e segs.

37
0 sistema de governo decorre dos poderes, das acções recíprocas e dos
estatutos dos vários órgãos políticos - a nível nacional, do presidente da
república, da assembleia da república e do governo (maxime arts. 123.2,
124.9, 136.1’ e segs., l64.2 e segs., 193.l> e segs. e 201.2 e segs.); e a
nível regional, da assembleia legislativa e do governo regional (art.
233.2).

a forma institucional república - ligada à existência de um presidente


da república electivo (mas não só)’ - é apresentada, menos
correctamente, como forma de governo: ”as leis de revisão
constitucional terão de respeitar: - b) a forma republicana de governo”
(art. 288.9, alínea b)”.

os sistemas eleitorais - porque há tantos quantos os órgãos de base


electiva - aparecem em numerosos preceitos (arts. 116.9, n.2
5, 129y, 152.2 e 155.2, 2319, n.2 2, 241.9, n.2 2, 247.2, n.2 2, 252.2 e
260.2). já não, como não poderia deixar de ser, o sistema de partidos.

0 regime político, esse, é assim resumido no art. 2.9: ”a república


portuguesa é um estado de direito democrático, baseado na
soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política
democráticos e no respeito e na garantia da efectivação dos direitos e
liberdades fundamentais que tem por objectivo a realização da
democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da
democracia participativa”.

38

capitulo ii

os problenias cardeais
§ 1.o legitimidade
5. sentido da legitimidade

1 - um princípio de legitimidade’ está presente em qualquer governo e em qualquer


estado.

1. v., entre tantos, max weber, wirtschaft und geselischaft, 1922, trad. cast. economia
y sóciedad, méxico, 1944-1969, 1, págs. 170 e segs.; guguelmo ferrero, pouvoir - les
génies de la cité, nova iorque, 1942; lidêe de légitimité, obra colectiva, paris, 1967;
alessandro passerin uentrÈves, obedienza e resistenza in una società democratica,
milão,
1970; reinhold zippelius, op. cit., págs. 255 e segs.; marcello caetano, op. cit., 1, págs.
293 e segs.; pouvoirs, n.9 5, 1978; afonso queiró, ”tirania”, in verbo, x-vh, págs. 1579 e
segs.; legitimation of regimes, obra colectiva ed. por bogi)an denitch, beverly hilis e
londres,
1979; conflict and control - challenge oflegitimacy ofmodern governments, obra
colectiva ed. por anthon j. vidich e ronald m. glossman, beverly hilis e londres, 1979;
gomes canotilho, constituição dirigente e vinculação do legislador, coimbra, 1982,
págs. 14 e segs.; dictatures et légitimité, ob. col. sob direcção de maurice duverger,
paris, 1982; joÃo baptista
41
todas as formas de governo assentam numa determinada justificação.
pretendem fundamentar-se, legitimar-se em certo princípio (ou ideia de
direito, para usar uma expressão de

rini georges burdeau). para lá da legalidade - ou ’confo dade


com o próprio direito positivo que criam - para se radicarem e durarem,
precisam de legitimidade - ou conformidade com critérios, objectivos,
valores aceites na comunidade’.

as tipologias básicas de formas de governo são (como mostrámos)


tipologias não apenas descritivas mas também preceptivas: não
compreendem só os governos que existem mas também os que devem
existir. ora, isso liga-se directamente com as concepções de legitimidade
- de como deve o estado ser, de como deve ser a

machado, introdução ao direito e ao discurso legitimador, coimbra,


1983, págs. 173 e segs.; oliveira baracho, ”legitimidade do poder”, in
revista da associação dos magistrados mineiros, vol. 11, 1983, págs. 143
e segs.; n.2 de 1984 de sociologia del diritto; martim de albuquerque,
”legitimidade”, in polis, 111, págs. 1017 e segs.; diritto e legittimazione,
obra colectiva dirigida por renato treves, milão, 1985; paulo bonavides,
op.cit., págs. 113 e segs.; joaquim aguiar, ”normas de dominação e
sociedade: o caso do neopatrimonialismo”, in análise social, 1987, 2.q,
págs.
241 e segs.; coniparing pluralist democracies, obra colectiva ed. por
mattei dogan, boulder, westview, 1988; tÉrcio sampaio ferraz, maria
helena diniz e ritinha a. stevenson georgalikas, constituição de 1988 -
legitimidade, vigência e eficácia, supremacia, são paulo, 1989; maria de
assunÇÃo estves, a constitucionalizaçâo da direita de resistência, lisboa,
1989, págs. 19 e segs. e 101 e segs.

1. assim como, em momentos revolucionários ou de ruptura, mesmo não


havendo ainda uma nova legalidade, a legitimidade proclamada serve
de princípio - de direito, e não de facto - por que se vai reger o estado.

42

organização do poder político, de como deve o estado organizar-se e


funcionar para cumprir os seus fins.

mais ainda: conforme escreve jellinek, o poder tem de assentar na


convicção popular sobre aelecomitimaiidsaoduem.esta aprovação,
expressa por diferentes maneiras enos

do estado vigor, é uma condição permanente na forniaação concreta


e constitui uma das funções necessárias

omunidade popular como elemento constitutivo do estado’.

qualquer poder ou qualquer govemante, para ser poder, para governar


ou realizar os seus fins carece sempre de ser reconhecido como tal pela
comunidade. ele, em rigor, só é poder político a partir dessa relação - a
partir da relação bilateral que se estabelece entre quem governa e
quem é governado.

não basta o governante invocar qualquer intenção do seu poder ou ter,


pura e simplesmente, a força material para se fazer obedecer; ou
apresentar-se ao serviço deste ou daquele projecto ou ideologia. tem
ainda de obter o consentimento, pelo menos passivo, dos destinatários
do poder. tem ainda de se configurar como autoridade.

em que consiste ou em que se baseia esse consentimento?


antigamente, dir-se-ia prevalecerem os factores espirituais (as

1 - qp. cit., pág. 318.

43
tradições, as crenças, as doutrinas políticas); mais recentemente,
privilegiam-se os factores económicos, seja o domínio de classe ou a
conjuntura de riqueza ou bem-estar; e também se tem procurado
interpretá-los em meros moldes sociológicosi.

mas afigura-se mais correcto integrar todos os elementos num conjunto


complexo. a questão da legitimidade não releva só da cultura política, ou
só das concepções jurídicas, ou só da situação económico-social, ou só
dos condicionalismos geográficos. releva de todos eles e do modo como
se dispõem em cada país e em cada época.

há uma problemática teórica geral da legitimidade e há tantos


problemas de legitimidade em concreto quanto os estados e as formas
de governo, simultânea ou sucessivamente.

6. a legitimidade na história

1 - a temática da legitimidade está, pois, sempre presente ao longo dos


tempos. revela-se, porém, mais importante ou mais candente em
momentos de crise.

1. cfr., por exemplo, p.11. partridge, consent and consensus, londres,


1971; democracy, consensus, social contract, obra colectiva editada por
pierre birnbaum; andres ollero, ”consenso: racionalidad o legitimación?”,
in anales de ia catedra francisco suarez (universidad de granada), 1983-
1984, págs. 164 e segs.

44

não é por acaso que ocupa um grande lugar na doutrina cristã da idade
média, quando se procura, no meio de enormes convulsões, estabelecer
situações políticas com estabilidade e que, ao mesmo tempo, sejam
situações de limitação de poder (porque legitimar o poder é ao mesmo
tempo limitá-lo de acordo com os fins correspondentes à legitimidade). e
é então que bçrtolo fórmula a contraposição entre legitimidade de
título (ou legitimidade derivada do modo de designação) e
legitimidade de exercicio (ou legitimidade derivada do modo de
exercício das funções ou do poder político).

nem é por acaso que a questão volta a ter uma grande acuidade na
europa nos séculos xviii e xix. se na inglaterra se transita, como se sabe,
com relativa facilidade, para a monarquia parlamentar, já na maior parte
do continente tal não acontece e, em alguns países - entre os quais
portugal - a instauração de formas liberais e democráticos mostra-se
lenta e precária’.
0 século xx, século de revoluções e de transformações radicais por toda
a parte, viria a ser, finalmente, também ele marcado pela legitimidade:
destruição de antigas legitimidades monarquicas ainda subsistentes e-
de legitimidades imperiais, conflitos de legitimidades, assim como, em
alguns casos, consolidação ou sedimentação de princípios de
legitimidade antes apenas afirinados nos textos constitucionais.

1. recorde-se que no século xix, português, espanhol e francês


legitimistas eram aqueles que defendiam a legitimidade monárquica e,
particularmente, a legitimidade monárquica absoluta.

45
11 - a propósito da passagem da legitimidade monárquica absoluta do
século xviii para a legitimidade democrático-liberal ou monárquico-
liberal ou monárquico-constitucional ao longo do século xix, giglielmo
ferrero apontou três formas de governo:

em primeiro lugar, os governos legítimos: aqueles que são aceites


pela colectividade, aqueles em relação aos quais a colectividade
professa a crença na sua razão de ser, na sua qualidade legítima para
exercer o poder.

em segundo lugar, os governos quase/legítimos: aqueles govemos


que invocam um tipo de legitimidade, mas que têm de se defrontar com
outra legitimidade que ainda subsiste na colectividade. e, quando isto
acontece, os governos quaselegítimos têm muitas vezes que se impor
pela força.

- em terceiro lugar, os governos pré-legítimos: aqueles governos que


estão em vias de obterem, mas ainda não obtiveram, o assentimento na
comunidade.

esta análise pode estender-se a muitas situações do século xx.

111 - 0 problema da legitimidade não se suscita apenas no âmbito dos


ordenamentos internos dos estados. suscita-se outrossim a nível de
relações internacionais’.

1. v. jorge miranda, direito internacional público, 1, lisboa, 1995, págs.


256 e segs e autores citados.

46

0 reconhecimento de estado e de outros sujeitos de direito internacional


e o reconhecimento de governo (este, aliás, só ocorrendo quando haja
rupturas constitucionais) implica a observância de certas regras
jurídicas e tem-se chegado a pretender ainda o respeito de certos
padrões de referência, valores ou objectivos assumidos como
dominantes pela comunidade internacional.

pense-se no princípio das nacionalidades no século xix e no da


autodeterminação dos povos do século yx como justificativos ou
legitimadores de movimentos irredentistas, secessionistas ou
anticoloniais ou, ao mesmo tempo, na ilegitimidade da intervenção
estrangeira para provocar o desmembramento de um estado.

pense-se, quanto ao reconhecimento de governo, na doutrina


monárquica da santa aliança até 1848 e nas doutrinas de legitimidade
democrática difundidas na américa latina. ou, na europa após 1945, na
exigência de formas democráticas, com parlamentos resultantes de
eleições livres, para o acesso de qualquer estado a organizações
internacionais (conselho da europa, comunidades europeias).

7. tipos doutrinais de legitimidade

1 - além da já referida visão dicotómica legitimidade de título e


legitimidade de exercício, talvez a mais conhecida classificação de
tipos de legitimidade seja a tripartição proposta por max
47
weber de legitimidade tradicional, legitimidade carismática e
legitimidade legal-racional.

a legitimidade tradicional repousa na tradição, nas práticas costumeiras


e em determinadas crenças morais, culturais, etc. e aqui haveria a
salientar, historicamente, quatro sub-tipos, dois arcaicos ou originários e
dois mais recentes. os primeiros seriam o patriarcalismo antigo e a
gerontocracia; os segundos seriam a organização patrimonial e a
organização estamental.

quanto à legitimidade carismática, corresponde ela ao poder


personalizado e abrange os casos em que o poder é reconhecido a
alguém em virtude de uma qualidade, de um dom específico dessa
pessoa. assim acontece, por exemplo, quando o poder remonta a
determinados factos bélicos, a feitos de heroísmo, a grandes virtudes
pessoais, a decisões políticas marcantes de um povo ou mesmo a laços
de sangue.

a legitimidade legal-racional, essa assenta em normas jurídicas gerais e


abstractas, ditadas pela razão. forma mais avançada assinala aquilo a
que max weber chama estado administrativo-burocrático.

11 - vale a pena aludir a, entre várias outras classificações, à que sergio


cotta sugere, embora num plano não tanto de legitimidade em si mesmo
quanto de ideologia de legitimidade.

48

seriam as seguintes essas concepções, ou ideologias: ideologias de


legitimidade histórica, de legitimidade racional e de legitimidade
existencial. os resultados, se não são opostos, completam os da
observação de max weber.

as ideologias de legitimidade histórica procuram a legitimidade no


sentido da história. e subdistinguem-se em ideologias de legitimidade
histórica retrospectiva e de legitimidade prospectiva. 0 que diferenciaria
estas últimas das primeiras (conservadoras, tradicionalistas) seria o
facto de terem uma perspectiva de futuro, de buscarem na história a
justificação, a legitimação da mudança, maxime da revolução, e não do
status quo (assim, o marxismo).

por seu turno, as ideologias de legitimidade racional baseiamse numa


ideia de eficácia do poder: será legítimo aquele que, em termos de
racionalidade, seja mais eficaz. estas ideologias estão na base quer do
despotismo esclarecido do século xviii, quer das modernas tecnocracias
do século xx. ideia semelhante se pode ver, já na antiguidade, em
platÃo, ao referir-se aos filósofos-reis (que, em certa medida, se podiam,
contrapor aos pretensos reis-filósofos do século xviii).

por último, as ideologias de legitimidade existencial baseiam-se na


capacidade de promover a personalidade humana, a existência do
homem em sociedade. neste grupo se integra, mormente, a concepcão
cristã de legitimidade, que é a adoptada por sergio cotta.

49
111 - importa também aqui fazer referência à mais sugestiva e fecunda
das teses empíricas, de matriz sociológica, sobre legitimidade: a da
legitimação pelo procedimento i. pensada para o sistema jurídico em
geral, aplica-se ainda à legitimidade do poder e dos govemantes.

segundo luhmann, normas jurídicas concebidas como decisões apenas


podem fundar-se noutras decisões, mas a legitimidade não repousa na
decisão última. repousa, sim, no próprio procedimento: é este, e não
cada um dos seus componentes, que a confere.

legitimidade pode então descrever-se como uma disposição


generalizada para aceitar decisões de conteúdo ainda não definido,
dentro de certos limites de tolerância2.

8. tentativa de quadro geral

1 - numa tentativa de enquadramento geral do fenômeno de


legitimidade, podem ser enunciados os seguintes critérios de destrinça:

1. É este, justamente, o título da obra famosa de niklas luhmann


(legitimation durch verfahren, 1969, de que há tradução portuguesa,
legitimação pelo procedimento, brasília, 1980).

2. qp. cit., pag. 30.

50

- objecto da legitimidade;
- fundamento;

- causa;
- função; forma.

11 - os diferentes tipos de legitimidade distinguem-se em razão do


objecto, dando resposta a problemas relativos ao poder político ou ao
estado em si mesmo, a problemas respeitantes à ilegitimidade das
formas de governo e a problemas respeitantes à legitimidade dos
concretos govemantes actuais.

há correntes negativistas que negam a legitimidade de qualquer poder


político: assim, designadamente, o pensamento anarquista. a grande
maioria dos autores, no entanto, toma uma posição positiva ou
afirmativa em relação à legitimidade do poder político.

dentro desta corrente, que toma uma posição positiva em relação à


legitimidade do poder político, duas teses se defrontam quanto ao
fundamento dessa legitimidade. para as teses transcendentalistas, esse
fundamento deve procurar-se fora da sociedade: exemplo claro é o das
teorias cristãs do direito divino, quer sobrenatural, quer providencial -
omnis potestas a deo. para as teses imanentistas, o fundamento da
legitimidade do poder político deve buscar-se na própria sociedade.
exemplo bem demonstrativo é o

das teorias contratualistas.

51
no tocante às formas de governo, cabe considerar quatro princípios: o
da legitimidade teocrática, o da legitimidade monocrática, o da
legitimidade aristocrática e o da legitimidade democrática. a estes
princípios podem corresponder grandes concepções de regime e de
governo.

quanto à problemática da legitimidade dos govemantes em concreto,


ela pode colocar-se em relação ao título ou ao exercício insista-se (esta
última adquire relevância autónoma quando os governantes exercem o
poder em discrepancia com a ordem estabelecida); e assim pode dizer-
se que o título de um govemante é legítimo ou ilegítimo ou que o
exercício que faz do poder é, também, legítimo ou ilegítimo.

a distinção entre legitimidade de título e de exercício reporta-se aos


governantes actuais, mas não deixa de ter implicações na legitimidade
da forma de governo em concreto. no caso de um govemante possuir
título legítimo, é porque se reconhece legitimidade à forma de governo;
se ele apenas possui legitimidade de exercício, está a agir, o mais das
vezes, à margem da forma de governo, por sua vez considerada ou não
legítima.

111 - um segundo critério atenta ao fundamento da legitimidade e,


trabalhando com ele, será possível encontrar três contraposições:

52

a) entre legitimidade de base religiosa e legitimidade de base laica;

b) entre legitimidade de base histórica e legitimidade de base racional;

c) entre legitimidade (do prisma jurídico) de base jusnaturalista e


legitimidade de base positivista.

iv - terceiro critério de classificação é o da causa da legitimidade e


traduz-se, de novo, na referência a legitimidade que vem do título e a
legitimidade que vem do exercício.

a usurpação implica falta de legitimidade de título. a opressão e a


corrupção (económica)t falta de legitimidade de exercíci(e podem
degenerar em tirania ou despotismo.

vi - quinto critério vem a ser o da forma como se manifesta a


legitimidade ou como é reconhecida pelos governados.

haverá então legitimidade activa (através da adesão ou da aclamação)


ou legitimidade passiva (igual a mero consentimento).
53
§ 2.’

participacÃo poutica

9. a participaÇÃo política em geral

i - da atribuição a qualquer pessoa da qualidade de cidadão de um estado não


resulta, obrigatoriamente, o conferimento de uma interferência no exercício do
poder. a soberania da colectividade estadual satisfaz-se com a livre existência
e acção de orgãos próprios ou de govemantes que prossigam o interesse
colectivo; não requer a participação dos membros da colectividade.

pode, por conseguinte, conceber-se a existência de governos que afastem,


radicalmente, os cidadãos - relegados para o estatuto de meros súbditos - de
qualquer intervenção na gestão da coisa pública, que lhes neguem qualquer
influência nas decisões polí--’ ticas a tomar, que, enfim, consagrem a liberdade
dos govemantes
55
em face dos governados’. as monarquias territoriais da antiguidade
oriental, as monarquias absolutas da idade moderna e certas ditaduras
contemporâneas fornecem disso os exemplos mais frisantes.

nos dois últimos séculos, porém, a tendência, primeiro europeia e


americana, depois universal, tem sido outra. tem sido a de converter os
súbditos em cidadãos completos, a de elevar os homens na cidade de
simples sujeitos ao poder a verdadeiros sujeitos do poder. quer dizer: o
sentido generalizado da evolução política, sob formas diversas e não
sem movimentos contraditórios, tem sido o de fazer participar cada vez
mais os governados nas tarefas da vida pública.

não se trata de banir a distinção entre govemantes e governados. mas


trata-se, em oposição ao ancien régime, de estabelecer uma relação
permanente entre uns e outros, de tal sorte que os governantes ajam
como representantes do povo e prestem contas ao povo pelos seus
actos. tal é o princípio representativo moderno, que, por outro lado, se
contrapõe também ao governo directo do povo (democracia directa),
praticado, designadamente, em atenas e em diferentes cidades-estados
e municípios ao longo dos tempos (e ainda hoje em alguns cantões da
suíça).

1. 0 que não significa - porque seria impossível - um total afastamento


entre govemantes e governados. estes, ainda que indirectamente,
conseguem agir ou reagir sobre aqueles não só através da legitimidade
que lhes reconhecem ou não mas também através da aceitação e do
maior ou menor grau de efectividade dos seus actos.

56

por outro lado, sabe-se que a doutrina da origem popular da soberania


(da soberania popular alienável), por exemplo, precedeu na europa de
centenas de anos o triunfo das ideias democráticas. e raros foram ou
tem sido os regimes que, pelo menos, não reconhecem aos cidadãos ou
a grupos de cidadãos o direito de petição ou o de serem ouvidos em
defesa dos seus interesses ou do interesse geral.

de resto, o arredarem-se os indivíduos de qualquer participação política


não implica só por si, teoricamente, que eles não possam obter alguma
ou muita participação no interior das instituições sociais em que vivem.
podem estas estar fechadas para a interferência no poder político e, não
obstante, gozarem de apreciável autonomia na prossecução dos seus
interesses: em certa medida, foi o que sucedeu na idade média.

11 - a participação política não se insere sempre no mesmo contexto.


ela pode ser decorrência natural da organização constitucional do país
ou, ao invés, ter cunho excepcional ou antagónico em face da filosofia
própria da forma do governo; pode constituir uma ideia dominante ou
encontrar-se em concorrência com outras ideias (quer em igualdade,
quer em posição subalterna).

se qualquer participação cívica implica a atribuição de direitos políticos,


não traduz já, necessariamente, um princípio funda-
57
mental de forma do governo ou do regime político, os quais, embora a ela
desfavoráveis, podem ser obrigados a acolhê-la por diversos motivos. muito
menos se poderá dizer que a participação política significa só por si direcção
dos negócios públicos pelos cidadãos com direitos políticos ou acção
determinante deles sobre

o governo.

111 - os modelos ou tipos de colocação da participação política que se


deparam na evolução do estado europeu são principalmente três: a monarquia
limitada pelas ordens, em que a participação se dá numa área circunscrita da
vida política; a monarquia constitucional, em que o princípio democrático se
associa ao princípio monárquico; e o governo representativo, em que o
princípio fundamental da constituição é aquilo que se chama a soberania do
povo.

no primeiro modelo - historicamente correspondente ao estado estamental, ou


seja, a fase de transição da organização política medieval para as formas
modernas do estado soberano - o poder político entende-se que pertence ao
rei, mas este deve exercê-lo com a ajuda e o conselho do ”reino”, organizado
em diferentes instituições, estamentos ou ordens, com vida própria e
larguíssima autonomia. os estamentos participam, pois, no poder central
através de uma assembleia, em parte representativa e em parte não
representativa, e de regra, com meras atribuições consultivas.

58

no segundo modelo - característico do século xix europeu, também ele época


de transição - há dois centros de poder, o rei e o parlamento, com diferentes
fontes de autoridade, a tradição e o direito divino, por um lado, e a eleição por
outro lado. 0 poder do rei não emana do povo, nem o poder do parlamento
emana do rei; e o parlamento, conquanto eleito por sufrágio censitário, vai
arrogar-se a representação de todo o povo para reforçar a sua posição perante
o rei’. consoante os países, ora predomina o princípio monárquico, ora
prevalece o princípio democrático.

por último, no terceiro modelo, fruto das revoluçoes amencana e francesa, o


princípio da organização política vem a ser o consentimento activo e explícito
dos governados, de quem dependem a designação e a conservação dos
govemantes no poder. porque se considera agora que o poder pertence ao
povo, os govemantes, eleitos e responsáveis políticamente perante o povo,
dizem-se representantes do povo. mas há aqui que distinguir ainda, como
se verá, entre governo representativo liberal e democracia representativa.

10. modos de participaÇao

1 - os modos e as manifestações de intervenção do povo no processo político


revelam-se, naturalmente, variáveis com os

1 . e a da burguesia, de que é expressão, perante a velha nobreza.


59
países e as épocas, as formas de governo e os regimes políticos. também o seu
conteúdo pode tomar-se mais ou menos rico e a sua prática mais ou menos
autêntica’.

0 povo pode ser considerado através de cada cidadão a quem é reconhecido


um direito de participação, através de grupos de cidadãos ou de instituições
sociais menores integradas no estado (famílias, municípios, organismos sócio-
profissionais ou corporativos, etc.); finalmente, através da totalidade dos
cidadãos (ou das instituições) com direito de intervenção na vida pública. daí,
modos individuais, institucionais e globais ou colectivos de participação.

como modos individuais e institucionais -porque a sua estrutura é idêntica, só


divergem os seus titulares - indiquem-se, por um lado, o direito de petição ou
representação no interesse geral2 o direito de acção popular e a iniciativa
popular (legislativa ou constituinte)3 sem esquecer as próprias liberdades
públicas.

1. cfr. marnoco e sousa, op. cit., pág. 99, falando (embora incidentalmente) na
importância da participação real dos cidadãos no governo, para determinar a
diversidade e fazer a classificação das suas formas.

2. não o direito de reclamação ou queixa.

3. porventura também o direito de resistência individual no interesse geral


(mas parece que só existe resistência individual no interesse geral, e não mera
autodefesa, aí onde se admite, pelo menos, um princípio de legitimidade
democrática).

60

e, por outro lado (alguns, em zonas mais relevantes no campo administrativo,


embora sempre com significado político),’a intervenção em procedimentos da
administração, a audição, por via de associações representativas de
interesses, antes da tomada de decisão pelos órgãos competentes, a
participação em órgãos consultivos e auxiliares, a formação de associações
públicas, a gestão ou a participação na gestão de serviços públicos.

quanto aos modos globais ou colectivos (globais ou colectivos, ainda que


assentes em actos individuais) são o sufrágio - traduzido ora em eleições, ora
em referendo - e a assembleia popular ou assembleia directa dos cidadãos.

eles podem ser consagrados isoladamente e, assim, acontecer que se admitam


uns e não outros. mas podem também ser consagrados em conjunto,
desempenhando cada qual o seu papel e reflectindo-se uns sobre os outros’.
começaram por aparecer os meios individuais e institucionais de participação
cívica e por se defender o princípio da resistência à opressão; só muito depois
surgiria o sufrágio e, mais recentemente, os institutos ditos de
2

democracia participativa .
i. por exemplo: a petição ou representação dirigida a titulares de órgãos
electivos.

2. cfr. carolle pateman, participation and democratic theory, cambridge, 1970;


samuel huntington e joan m. nelson, no easy choice. polítical participation in
developing countries, harvard university press, 1976; franco levi,
”partecipazione e organizzazione”, in rivista trimestrale di diritto pubblico,
1977, págs. 1625 e segs.; cesar
61
11 - tanto os modos de participação individuais e institucionais como os
modos colectivos têm de comum o reconhecimento aos

indivíduos ou às instituições sociais de uma posição interessada e activa


nos destinos do estado; têm de comum a atribuição aos cidadãos ou a
essas instituições de direitos políticos, ou direitos
1

relativos ao estabelecimento e ao exercício do poder público .

a participação política - o status activae civitatis de jellinek assume um


carácter ambivalente. tem ao mesmo tempo sentido objectivo e
projecção subjectiva. na sua finalidade - a realizaçao do bem comum
ou dos fins do estado - e na sua atribuição a cada indivíduo ou
instituição como parcela do povo adquire um sentido objectivo e
funcional. mas, na sua incidência, é essencialmente sub ectiva: é a
participação feita faculdade jurídica de agir frente j

aos govemantes.

por isso, os direitos políticos em que ela se consubstancia não podem


deixar de revestir ainda uma dupla natureza, oscilando
2

entre poderes funcionais e direitos subjectivos stricto sensu

marcello baquero, ’tarticipação política na américa lati-na problemas de


conceituação-, in revista brasileira de estudos políticos, n.2
53, julho de 1981, págs. 7 e segs.; aristide savignano, ”partecipazione
política”, in enciclopedia del diritto, xxx11, págs. 1 e segs.; ronald
inglehart, ”la nuova partecipazione nelle societá post-industriali”, in
rivista di scienza política, 1988, págs. 403 e segs.

1. cfr. art. 6w` do anterior código penal português.

2. dentro dos conceitos correntes. não serão os únicos poderes jurídicos


de natureza ambígua; veja-se também o poder paternal.

62

parece que são poderes funcionais, porque devem ser exercidos


segundo o interesse colectivo (tal como a competência dos órgãos de
governo). parece que são direitos subjectivos, porque se destinam,
simultaneamente, à prossecução de interesses próprios dos seus
titulares, interesses, por sua vez, a atender na síntese do
interesse colectivo’.
11. a representacÃo poutica: formaÇÃo histórica

1 - no moderno estado europeu2, instituições representativas


encontram-se logo na sua primeira fase, a estamental: são as
assembleias, as cortes, as dietas, os estados gerais, os parlamentos, em
que tomam assento não só membros por direito próprio (do alto clero e
da nobreza) como representantes ou procuradores (por exemplo, em
portugal; procuradores dos concelhos).

1 . compreende-se, sob este foco, por que razão a luta pela conquista de
direitos políticos, nomeadamente, do direito de sufrágio, não se esgota
nunca na simples participação, nem é sequer movida pela ideia de
participação pela participação. essa luta faz-se quase sempre pela
defesa de interesses sectoriais ou por certa maneira de interpretar o
interesse geral, na medida em que os direitos políticos constituem
instrumento primacial de protecção dos interesses dos seus titulares.

2. não curamos aqui de instituições ou fenômenos análogos que houve


ou tenha havido na grécia e em roma. cfr. j.a.0. larsen, representative
government in greek and roman hístory, bekerley e los angeles, 1966;
agerson tabosa, da representação política na antiguidade clássica,
fortaleza, 1981.

63
a representação é aqui, não uma representação da comunidade política como um
todo, mas dos sectores ou ordens provenientes da idade média e que subsistem com
maior ou menor autonomia; e os representantes estão vinculados às instruções que
recebem, num mandato imperativo semelhante ao mandato civil. por isso, e porque ao
rei se reconhece a plenitude do poder, a função da representação exaure-se,
praticamente, na garantia dos interesses e privilégios dos estamentos uns perante os
outros e perante o rei.

0 desenvolvimento do absolutismo monárquico reduz as instituições representativas a


uma pálida recordação nos séculos xvi, xvii e xviii. apenas em inglaterra se descobre
continuidade no parlamento, mas as revoluções do século xvii e as transformações
políticas e sócio -económicas subsequentes vão levar à consideração dos deputados
como representantes de todo o país, de toda a nação, e não já deste ou daquele grupo
corporativo ou desta ou daquela entidade local ou constitucional.

por seu lado, quando no continente, entre os séculos xviii e xix, se tenta a superação
do ancien régime e a construção de uma nova ordem política, assente nos direitos
individuais e na divisão do poder, a ela se liga, necessariamente, a formação de uma
ou mais de uma assembleia representativa de cidadãos enquanto tais. sem
representação de cidadãos não há liberdade e não há constituição, no sentido do art.
16.9 da declaração de 1789.

a representação política na acepção rigorosa do termo, e não meras instituições


representativas sectoriais ou parcelares, radica,
64

portanto, historicamente, na confluência de dois fenômenos: a afirmação da unidade


política correspondente ao estado moderno e a passagem do absolutismo ao
liberalismo. a nova forma de governo
- a representativa - surge conexa com o novo regime, o liberal’.

1 . cfr., entre tantos, montesquieu, de 1 Ésprit des lois, cap. vi do livro xl; rousseau, du
contrat social, cap. xv do livro 11j; sieyÈs, quest-ce que le tiers état, cap. iii, § ii e cap.
iv, s v11; benjamin constant, príncipes de politique, paris, 1815, págs. 23 e 62; de
lolme, constitution de 1 angleterre, paris, 5. ed., 1819, págs. 269 e segs.; custódio
rebelo de carvalho, bases de todo 0 governo representativo ou condições para que a
carta constitucional da monarquia portuguesa seja uma realidade, londres, 1832; stuart
mill, considerations on representative government, londres, 1861; antónio custódio
ribeiro da costa, princípios e questões da filosofia política - i - condições científicas do
direito de sufrágio, coimbra, 1878; a. esmein, ”deux fonnes de gouvernemenf’, in
revue du droitpublic, 1894, 1, págs. 15 e segs.; v. e. orlando, ”du fondementiuridique
de ia réprésentation politique”, ibidem, 1895, págs. 1 e segs,; rocha sar_aiva ”as
teorias sobre a representação política e a nossa constituição-, in revista de justiça, ano
1, 1916, págs. 233 e segs. e 313 e segs.; lenine, as eleições para a assembleia
constituinte e a ditadura do proletariado, trad. port., coimbra, 1975; carl schmitt, qp,
cit., págs. 231 e segs.; carrÉ de malberg, ”considérations théoriques sur ia question de
ia combinaison du reférendum avec le parlementarisme”, in revue du droit public, 193
1, págs. 225 e segs.; luigi rossi, ”la reppresentanza politica”, in scritti vari di diritto
pubblico, v, milão, 1939, págs. 79 e segs.; carlo esposito, ”la rappresentanza
istituzionale”, in séritti in onore di santi romano, 1, pádua, 1940; gerhardt lei13holz,
”déniocratie réprésentative et État de partis moderne”, in revue internationale
dhistoire politique et constitutionnelle, janeiro-março de 1952, págs. 51 e segs., e die
reprãsentation in der demokratie, 1973, tradução italiana la rapprensentazione nella
democrazia, milão, 1989; vincenzo zangara, la rappresentanza istituzionale, pádua, 2.
ed., 1952; maurice duverger, ”esquisse d’une théorie de ia réprésentation politique”, in
65
11 - a doutrina da representação política é elaborada quase ao mesmo tempo pela
doutrina política inglesa (desde locke a burke) e francesa (desde montesquieu a sieyÈs
e a b. constant). no entanto, ainda no século xviii, sofre a sua primeira grande
contestação, a de rousseau. vale a pena recordar os elementos mais significativos do
pensamento destes autores, com os seus matizes específicos.

l’évolution du droit public - Études en l’honneur dachille mestre, paris,


1956, págs. 211 e segs.; ernst frankel, die reprãsentative und die plebiszitãte
komponente im demokratischer verfassungstaat, 1958, trad. it. la componente
representative e plebiscitaria nello stato costituzionale democratico, turim, 1994;
glovann1 sartori, a teoria da representação no estado representativo moderno, trad.,
belo horizonte, 1962 e théorie de ia démocratie, trad., paris, 1973, págs. 383 e segs.;
hans kelsen, teoria pura do direito (2. ed. port.), coimbra, 1962, 11, págs. 197 e segs.;
pier luigi zampetti, dallo stato liberale allo stato dei partiti, milão, 1965; j. roland
panock e john w. chapman, representation, nova lorque,
1968; jean roels, le concept de réprésentation politique au dix-huitième sièclefrançais,
paris, 1969; representation, obra colectiva, nova lorque,
1969; a.h. birch, representation, londres, 1971; achille mestre e philippe gu1tinger,
constitutionnalismejacobin et constitutionnalisme soviétique, paris, 1971, págs. 19 e
segs.; hanna pitkin, the concept of representation, berkeley, 1972; pouvoirs - revue
dÉtudes constitutiormelles et politiques, n.-’ 7, 1978; otto bachof, 0 direito eleitoral e o
direito dos partidos na república federal da alemanha, trad. port., coimbra, 1982;
damiano nocilla e luigi ciaurro, ”rappresentanza política”, in enciclopedia del diritto,
xxx, págs. 543 e segs.; luiz navarro de brito, ”0 mandato imperativo partidário”, in
revista brasileira de estudos políticos, 1983, págs. 147 e segs.; a antologia ed. por
domenico fisichella, la rappresentanza politica, milão, 1983; silvio gambino, ”sovranità
popolare e rappresentanza política”, in política del diritto, 1983, págs. 293 e segs.;
andrea pubusa, ”riflessioni sul rapporti fra il popolo e
66

”0 parlamento - diz burke (discurso aos eleitores de bristol, em 1777) - não é um


congresso de embaixadores de interesses diferentes e hostis, interesses que cada um
tem de sustentar como representante e advogado contra outros representantes e
advogados. 0 parlamento é, sim, uma assembleia deliberativa de uma única nação,
com um só interesse, o do todo, e que deve guiar-se não pelos interesses locais, mas
pelo bem geral, resultado da razão geral do todo”.

montesquieu ocupa-se da representação política no mesmo célebre capítulo de de


lÉsprit des lois (o vi do livro xi), em que formula a separação dos poderes. ”como, num
estado livre, qualquer homem que se repute dotado de uma alma livre, deve ser
governado por si mesmo, o povo deveria ter em si mesmo o poder legislativo. mas,
como isso é impossível nos grandes estados e oferece muitos inconvenientes nos
pequenos, é preciso que o povo faça pelos seus representantes tudo aquilo que não
pode fazer a si próprio”.

alcuni organi dello stato”, in jus, 1985, págs. 88 e segs.; e.w. bõckenfõrde, ”democrazia
e rappresentanza”, in quaderni costituzionali, 1985, págs. 227 e segs.; pedro vega,
”significado constitucional de ia representación política”, in revista de estudios
políticos, março-abril de
1985, págs. 25 e segs.; la réprésentation, obra colectiva sob a direcção de françois
d’arcy, paris, 1985; representatives of the people? - parliamenis and constituents in
western democracies, obra colectiva, cambridge, 1985; paulo bonavides, qp. cit., págs.
235 e segs. e 309 e segs.; angel rodriguez dias, ”un marco para el analisis de ia
representación política en los sistemas dernocraticos11, in revista de estudios politicos,
outubrodezembro de 1987, pags. 137 e segs.
67
montesquieu e, posteriormente, os autores liberais pronunciam-se
contra os sistemas democráticos, por temerem que em sistemas
democráticos se verificasse uma concentração do poder num único
titular, que seria o povo, ou em órgãos, que, baseados no povo, viessem
a pôr em causa as liberdades individuais. só a representação permitiria
a divisão de poder.

na vês pera da revolução francesa, sieyÈs (qu’est-ce que le tiers état?)


apela para a representação política para justificar a transformação dos
estados gerais em assembleia constituinte, defende um governo
exercido por procuradores do povo e distingue entre aquilo a que chama
a ”vontade comum real” e aquilo a que chama a ”vontade comum
representativa”. esta, a vontade comum representativa, não é uma
plena vontade, não é uma vontade ilimitada, é uma porção da grande
vontade comum nacional, em que os delegados agem não por direito
próprio, mas por direito de outrem.

cite-se ainda o que escreve benjamin constant em


1815 (de la liberté des anciens comparée à celle des modernes): ”É
necessário que tenhamos liberdade, e tê-la-emos. mas como a liberdade
de que precisamos é diferente da dos antigos, é preciso, para essa
liberdade, outra forma de organização política, que não seja a mesma
que os antigos adoptaram. na forma antiga, quanto mais o homem
consagrasse o seu tempo ou a sua força ao exercício dos seus direitos
políticos, mais ele se julgava livre. na espécie de liberdade dos
modernos, mais o exercício dos nossos
68

direitos políticos nos deixa tempo para o exercício dos nossos direitos
privados, mais esta liberdade nos é preciosa. e daí, a necessidade do
sistema representativo, que não é outra coisa senão uma organização
com a ajuda da qual uma nação descarrega nalguns indivíduos dela
mesma aquilo que ela não pode fazer por si só.

”os pobres tomam conta dos seus próprios negócios; os ricos tomam
intendentes. É a história das nações modernas. 0 sistema representativo
é uma procuração dada a um certo número de homens pela massa do
povo que quer que os seus interesses sejam por eles defendidos.”

111 - em contrapartida, são bem conhecidas as observações de


rousseau (du contrat social, livro 111, cap. xvi) contra a representação:
”a soberania não pode ser representada pela mesma razão por que ela
não pode ser alienada: ela consiste essencialmente na vontade geral, e
a vontade não se representa; ela é a mesma ou é outra, não há meio
termo. os deputados do povo não são, portanto, e não podem ser seus
representantes; eles apenas são seus comissários, e não podem, por si,
concluir nada definitivamente. toda a lei que o povo em pessoa não
ratifique é nula; não é lei. 0 povo inglês pensa ser livre, mas engana-se;
só é durante a eleição dos membros do parlamento; e logo que estes
são eleitos, fica sendo escravo, não é nada. nos curtos momentos da sua
liberdade, usa-a de tal modo que merece perdê-la.99

69
e mais adiante: ”não sendo a lei senão a declaração da vontade geral, é
claro que no poder legislativo o povo não pode ser representado; mas
pode e deve sê-lo no poder executivo, que é apenas a face aplicada da
lei.”

rousseau liga as ideias de representação ao feudalismo, pois nas antigas


repúblicas ela não existia, e propugna um sistema que possa reunir ”a
autoridade exterior de um grande povo com a polícia adequada e a boa
ordem de um pequeno estado”: tal viria a ser a forma de governo
democrático radical ou comissarial da constituição jacobina francesa de
1793.

12. do governo representativo liberal À democracia liberal

1 - É a tese do governo representativo, e não de governo comissarial,


que vinga com as grandes revoluções do século xviii e xix ou que, sem
revolução, é adoptada em alguns países onde se consegue fazer a
experiência de reforma ou transições pacíficas.

e as componentes principais do governo representativo vêm

a ser:

a) a soberania nacional ou princípio de que o poder reside


essencialmente (isto é, potencialmente) no povo, na nação entendida
como colectividade distinta dos indivíduos que a constituem;

70

b) a incapacidade da nação de exercer o poder e, por conseguinte, a


necessidade de o ”delegar” em representantes por ela periodicamente
eleitos, únicos que o podem assumir (cfr. art. 26.2 da constituição
portuguesa de 1822);

c) 0 sufrágio restrito, só tendo direito de participação política os


proprietários e, em geral, os que tenham responsabilidades sociais;

d) a natureza puramente designativa da eleição, destinada apenas à


selecção dos g ovemantes entre os cidadãos mais aptos;

e) a autonomia dos representantes relativamente aos eleitores, em


virtude da natureza da eleição, do princípio de que representam toda a
nação e não só os círculos por que são eleitos e da proibição do
mandato imperativo;

f) a limitação dos governantes pelas regras da separação dos poderes.


na europa, nesta época, subsistem as monarquias (desde a
constitucional ou representativa, em que prevalece o princípio
monárquico, à parlamentar, em que prevalece o princípio democrático) e
domina a burguesia (de onde o sufrágio censitário). 0 governo
representativo aparece, por um lado, como um verdadeiro governo
misto, próprio de um período de transição e, por outro lado, como uma
oligocracia burguesa ou uma aristocracia electiva.

71
a representação reduz-se à legitimação dos govemantes pelo
consentimento dos governados, e a renovação que naqueles propicia
resulta, sobretudo, da preocupação de impedir os abusos da demasiado
longa ocupação do poder. mais importante do que promover a
participação de todos os cidadãos parece aos teóricos do liberalismo
promover um governo conforme à razão e que salvaguarde as
liberdades e garantias individuais.

11 - apesar de estruturalmente avesso à democracia (confundida, como


já disse, com o governo de massas), o sistema representativo teve de
apelar para o princípio democrático - como seu necessário alicerce e
como instrumento de luta contra os anteriores

detentores do poder.

as constituições (não as cartas constitucionais) proclamam, assim, a


soberania nacional, sem que instituam o sufrágio universal; mas a
patente incoerência tanto iria justificar a contestação do regime quanto
determinar a sua ulterior evolução interna. também a questão social, se
mostra aos operarios a necessidade de estarem presentes nos
parlamentos para defesa das suas reivindicações, igualmente mostra à
burguesia a conveniência de os integrar, em vez de os deixar à margem
do sistema.

0 progresso das ideias democráticas e as convulsões revolucionárias


abertas em 1848 conduzem, pois, ao crescente alargamento do sufrágio
e ao maior relevo dos órgãos electivos no estado - o que, por seu tumo,
toma indispensáveis os partidos
72

políticos. ora, o sufrágio universal envolve a abertura à vida política de


estratos sociais com posições e interesses divergentes e a criação dos
partidos acentua as divisões ideológicas; deste modo, as eleições
passam a ser travadas à volta de grandes correntes de opinião
institucionalizadas nos partidos e o voto dos eleitores passa a traduzir a
adesão aos seus programas e aos seus candidatos.

a seguir à primeira guerra mundial precipitam-se as mudanças sociais e


políticas: queda de muitas monarquias europeias e esvaziamento do
princípio monárquico naquelas que perduram, sufrágio feminino,
representação proporcional e representação de interesses, referendo,
unicameralismo, tentativas de ”racionalização” do parlamentarismo,
etc. 0 governo representativo - evolutiva ou revolucionariamente - cede
o lugar à democracia representativa (também denominada, por vezes,
governo semi-representativo), dele distinta nas ideologias e nas tensões
a que dá vazão, a despeito da continuidade de certos princípios e da
coincidência parcial de institutos e formas constitucionais. e nos países
que a adoptam é a democracia representativa que

no segundo pós-guerra, fornece o quadro em que se vão inserir as


refôrmas do estado social de direito.

111 - as traves mestras da democracia representativa são as seguintes:

a) a possibilidade de ter o povo, sujeito do poder, uma vontade, actual


ou conjectural, jurídica e politicamente eficaz;
73
b) 0 reconhecimento, por motivos técnicos e materiais, da
impossibilidade de o povo governar e, por isso, como sucedâneo, a
necessidade de representação política;

c) a concorrência da vontade do povo, manifestada pelo colégio de todos


os cidadãos com direitos políticos, com a vontade manifestada pelos
órgãos govemativos de carácter representativo;

d) a responsabilidade política dos governantes, titulares desses órgãos,


através do cumprimento dos deveres constitucionais relativos ao
exercício dos seus cargos e do dever de informação do povo e,
especificamente, através da eleição geral do termo do mandato, de
eleições parciais durante este ou de referendo.

iv - os regimes autoritários e totalitários do nosso século, apesar de se


oporem ao estado constitucional do liberalismo político (ou de o
quererem ultrapassar) mantêm, entre outras formas, a eleição e a
representação política. porém, não sem modificações.

nos regimes socialistas de tipo soviético, em certa medida retoma-se ao


modelo jacobino: democracia unânime, unidade do poder, precariedade
do mandato dos membros das assembleias (sem ser rigorosamente
imperativo), sujeição a destituição.

74

nos regimes fascistas e autoritários de direita, se não se chega a


suprimir o sufrágio directo e individual, a doutrina realça o sufrágio
corporativo e a representação institucional como mais conformes aos
seus princípios.

por outra banda, ao passo que nos regimes s

oviéticos é levada às últimas consequências a dependência dos


governantes do partido único, em certos regimes de direita a
preocupação maior consiste em subtrair a política a qualquer influência
dos partidos (foi o caso do regime português de salazar), tudo num
quadro de reduzido pluralismo, pelo que a eleição não pode ser uma
verdadeira escolha em sentido substancial.

13. a representaÇÃo política: anÁlise do fenomeno

1 - não há representação política, quando (para empregar uma


expressão de carl schmitt) se verifica identidade - seja em monarquia
(pura), seja em democracia directa - entre os titulares do poder e os
govemantes, quando os governados tendem a ser, simultaneamente,
govemantes ou quando a divisão entre governantes e governados se
põe ao nível da distinção dos destinatários de normas jurídicas e não ao
nível de uma distinção funcional.

pelo contrário, representação postula inidentidade e, depois, relação.


ela redunda num fenômeno de relação e de comunicação:
75
para que os govemantes apareçam como representantes dos
governados tem de haver essa relação.

para se analisar o seu conceito há que distinguir: entre representação


do estado e representação do povo; entre representação de grupos
existentes por si e representação de toda a colectividade; entre
representação gerada por um acto de vontade e representação
decorrente de um facto jurídico ou ope legis. só é representação política
em sentido restrito e próprio à representação do povo, e do povo todo,
fundada num acto de vontade (a eleição) e destinada a institucionalizar,
com variável amplitude, a sua participação no poder.

11 - em primeiro lugar, na representação política não se cuida da


representação do estado:

a) nem como expressão ou símbolo da unidade do estado


- pois nesse sentido todo o governante representa o estado e haverá
tanto mais representação quanto menor fôr a participação do povo e
maior a concentração de poderes num único govemante (c. schmitt);

b) nem como essência dos seus órgãos - pois o órgão não representa o
estado, é um elemento do estado, e os actos que pratica são-lhe,
directamente, imputados sem distinção de esferas jurídicas; -

76

c) nem como função ou competência cometida pelo direito positivo a


certos órgãos em relações jurídicas em que o estado intervenha (como
ojus representationis omnimodae conferido pelo direito internacional
comum aos chefes de estado e de que é expressão o art. 123.9 da
constituição de 1976).

cuida-se, sim, de representação do povo enquanto modo de tornar o


povo (ou o conjunto dos governados) presente no exercício do poder
através de quem ele escolha ou de quem tenha a sua confiança. a
representação política é o modo de o povo, titular do poder (ou um dos
titulares do poder nas monarquias constitucionais propriamente ditas),
agir ou reagir relativamente aos govemantes.

na época liberal, dir-se-ia traduzir a separação entre estado e sociedade.


pelo contrário, a teoria constitucional actual situa-a ao nível da
organização interna do estado; vê-a como processo de aí estabelecer,
insista-se, uma relação permanente entre govemantes e governados
(relação de natureza jurídica, conquanto não relação entre sujeitos de
direito diferenciados).
111 - em segundo lugar, representação política implica consideração
unitária do povo e realização de fins e interesses públicos (com
relevância ou não de outros interesses que realmente existem na
sociedade, muitas vezes em conflito). as pessoas nela investidas
representam toda a colectividade e não apenas quem as designou (é
77
o princípio explicitado, em portugal, no art. 1.2 do acto adicional à carta de
1885, no art. u, § 1, da constituição de 1911 e no art. 152.!2, n.-’ 3, da
constituição de 1976); se assim não fosse, não poderiam deliberar sobre
assuntos gerais e elevar-se a govemantes.

compreende-se deste jeito que tenha de se excluir do seu âmbito a


representação estamental ou de ”estados”, vestígio da desagregação
medieval da sociedade política; que a doutrina da soberania popular ou
fraccionada de rousseau não se compadeça com o sistema representativo; e
que a mera representação de interesses, à imagem de uma nação orgânica ou
corporativa de povo, só possa aproveitar-se para a constituição de órgãos
consultivos, e não para a de órgãos deliberativos do estado.

que povo, porém, é representado? nos dois últimos séculos, da imediatividade


da posição do cidadão perante o poder político, inerente ao conceito de estado
(ao contrário da estrutura escalonada do feudalismo), extraiu a concepção
dominante, de raiz individualista ou de raiz personalista, a ideia do sufrágio
individual e, em princípio, directo dos cidadãos. a ela contrapôs o
corporativismo político a ideia do sufrágio corporativo ou orgânico, ligado à sua
visão institucionalista da colectividade política, mas sem êxito.

já a distinção entre representação maioritária e proporcional diz respeito tão-


só aos sistemas eleitorais, aos sistemas de tradução da vontade popular
expressa pelo voto em mandatos; não afecta nem a unidade do povo nem a
dos órgãos representativos. 0 que
78

pode é este ou aquele sistema eleitoral, confonne os casos, ser mais ou menos
integrador da unidade política’.

iv - em terceiro lugar, não há representação política sem eleição, acto jurídico


ou feixe de actos jurídicos. mas a inversa não é verdadeira: v. g. as
monarquias, electivas2 ou a eleição de presidentes de órgãos colegiais.

0 sentido da eleição política é que muda do governo constitucional clássico


para o governo democrático. naquele, tem carácter instrumental: em
ambiente social homogéneo, com identificação natural entre a formação e os
interesses de eleitores e elegíveis (o povo burguês), reduz-se a técnica de
designação dos govemantes (à laia do sorteio ou da rotação nas cidades-
estados da antiguidade). com a democracia representativa

a eleição toma-se a peça essencial do sistema, toma-se a via de assegurar a


coincidência da vontade dos govemantes com a vontade do povo e a
prossecução do interesse colectivo de harmonia com o titular deste, o povo. e
ela tanto vai incidir sobre o futuro como sobre o passado, pelo juizo
individualizado ou global de responsabilidade política que exprime sobre a
acção dos govemantes no período ou legislatura anterior.

1 . c fr. infra.
2. ou monarquias não electivas em momentos de vacatura de trono, como
sucedeu em portugal em 1385, com a eleição do mestre de avis, d. joão i.

79
com efeito, ter um poder jurídico significa ter um poder de querer; por
conseguinte, atribuir o poder no estado ao povo significa em democracia
que a vontade do povo se há-de converter em vontade do estado;
configurada, primeiro, fora do aparelho estadual, a eleição (fonte da
índole representativa dos órgãos governativos) é agora um acto do
estado e o colégio eleitoral, porventura, um órgão sui generis.

v - sustenta-se, por vezes, a possibilidade de prescindir da eleição: seria


a representação institucional, em que a investidura nos cargos políticos
se faria por inerência, mediante índices reveladores da capacidade de
captar a vontade e os interesses da colectividade.

mas a representação institucional, se pode ser adequado meio de


expressão de determinadas instituições (v.g., a família, as confissões
religiosas, certos organismos profissionais, certas comunidades locais) e
se pode bem articular-se com a represen~ tação de interesses, nunca
cobre toda a riqueza da vida política, nem sequer a das instituições
sociais, e revela-se completamente inidónea para a formulação de
tendências e aspírações gerais e para a tomada de qualquer decisão
obrigatória para toda a colectividade. só muito limitadanente tem, por
isso, sido aplicada.

14. representaÇÃo e mandato

1 - em que medida se justifica qualificar de mandato a situação jurídica


dos representantes?

80

decerto, não se pode assimilar ao mandato de direito privado. a


representação política é uma espécie de representação necessária
imposta pela lei, ao passo que o mandato representativo civil pressupõe
representação voluntária. e não há transferência de poderes: os
representantes eleitos são simples titulares de órgãos com
competências constitucionalmente prescritas (se bem que uma
constituição democrática seja obra do povo e

assim, os poderes dos representantes mediatamente provenham do


povo).

sem embargo, o elemento volitivo patente na eleição habilita talvez a


falar num mandato de direito público: na medida em que são os
eleitores que, escolhendo este e não aquele candidato, aderindo a este e
não àquele programa, constituindo esta e não aquela maioria de
governo, dinamizam a competência constitucional dos órgãos e dão
sentido à actividade dos seus titulares (apesar de não lhe poderem
definir o objecto).

11 - a representação não degrada a autoridade dos governantes: pelo


contrário, num mundo que só aceita uma legitimidade democrática, ela
reforça-a. É apenas a sua liberdade de acção que fica condicionada pelo
duplo mecanismo ascendente da eleição e descendente da
responsabilidade política e por se entender que os govemantes
governam em vez e em nome do povo.

este mecanismo não acarreta nem sujeição a instruções nem


superintendência dos eleitores sobre os actos de governo em parti-
81
cular; o povo cinge-se aos critérios, às linhas gerais, às grandes opções
da política do país. além disso, como os tempos e as circunstâncias se
modificam, o povo não fica estritamente preso àquilo que antes tenha
fixado e, portanto, os govemantes, com conhecimento de causa e tendo
em vista o interesse colectivo, poderão e deverão adoptar as medidas
oportunas e necessárias, a sancionar pelo povo em futura eleição ou,
eventualmente, referendo. 0 que não seria lícito moral e juridicamente
seria que um governo eleito para fazer certa política viesse, depois de
empossado, a fazer política contrária.

111 - resta o problema mais delicado hoje: o das relações entre os repre
sentantes e os partidos. dele se tratará adiante ao estudar-se o
fenômeno partidário.

82

§ 3.’ pluralismo

15. pluralismo político e pluralismo social

1 - 0 pluralismo de que aqui se trata é o pluralismo político, traduzido na


existência e na livre formação e comunicação de diferentes ideologias e
correntes políticas ou politicamente relevantes, bem como na
possibilidade de organização dos cidadãos para a crítica dos
govemantes e para a sua eventual substituição pacífica.

ele liga-se, pois, à liberdade política ou pública; não já à liberdade civil


ou liberdade das pessoas nas suas relações como privados, mas à
liberdade das pessoas (enquanto cidadãos) perante o poder; não já à
liberdade na vida privada, mas sim na vida pública. 0 pluralismo é,
simultaneamente, resultado da liberdade e garantia da liberdade
política.

83
como qualquer liberdade, a liberdade política (que se decompõe em
liberdade de imprensa, de expressão por quaisquer outros meios, de
associação, de reunião, de manifestação, etc.) destina-se à realização
da pessoa, individual ou institucionalmente considerada. todavia, o ter
por objecto os poderes políticos leva-a, quase de imediato, a
correlacionar-se com a participação política. não há regime político
favorável à liberdade que seja contrário à participação política dos
cidadãos (mesmo se logo daí não tira o corolário do sufrágio universal);
nem pode haver participação sem liberdade política’.

11 - do pluralismo assim entendido deve distinguir-se o pluralismo social


ou configuração da sociedade como um conjunto (ou através de um
conjunto) de grupos, instituições e associações), portadores de
interesses diferenciados (económicos e não económicos) e dotados de
mais ou menos autonomia perante o estado.

não existe uma relação necessária entre os dois princípios ou


realidades. 0 pluralismo social tanto pode ser favorável à liberdade
política como pode mostrar-se ou se lhe tem mostrado, objectiva e
historicamente, desfavorável ou perigoso. não custa exemplificar.

1. em síntese, pode dizer-se que a liberdade política resulta do enlace da


liberdade dos antigos com a liberdade dos modernos (nas lapidares
locuções de benjamin constant), da síntese entre liberdade -
participação e liberdade - autonomia.

cfr. glovanni sartori, théorie .... cit., págs. 222 e segs.


84

a doutrina dos corpos intermediários, sustentada principalmente pela


igreja católica, tem-se voltado mais para a esfera não estritamente
política e procurado, sobretudo, propiciar a criação de anteparas para
que o indivíduo isolado não fique à merce do aparelho estatal ou dos
poderes económicos. alguns regimes políticos (maxime o da itália de
mussolini e o de portugal de salazar) serviram-se. do pluralismo, sob a
veste de corporativismo, para negar qualquer pluralismo político. pelo
contrário, as tendências ditas neocorporativas das últimas décadas têm-
se inserido de pleno (embora não sem suscitarem problemas) no
âmbito de democracias representativas’.

adiante, retomar-se-á o assunto.

16. sistemas pluralistas e monistas

1 - pode falar-se, numa dialéctica histórica, de pluralismo e monismo


político, ou de sistemas políticos pluralistas e monistas. uns
entrecruzam-se com outros ou vêm determinar outros. e, por vezes,
ocorrem ciclos e não evoluções lineares.

de todo o modo, o pluralismo enquanto expressão de liberdade política


apresenta-se como algo de relativamente recente. vem dos séculos
xv11-xviii, nascido em inglaterra, nos estados unidos e em frança, em
revoluções ou transições complexas. as

1. cfr. vieira de andrade, ’tiuralismo11, in polis, iv, págs. 1280 e segs.,


maxime 1286 e 1287.

85
instituições em que se traduz variam bastante (não são as mesmas
nesses países ou em qualquer deles e na suíça ou nos países nórdicos);
mas, no fundo, para lá dos sistemas de governo e das instituições são as
características comuns que prevalecem.

pelo contrário, o monismo político é algo de mais difuso em todas as


épocas, mas, por causa disso, reveste múltiplas formas. das monarquias
orientais às ditaduras modernas, encontra-se o mesmo absolutismo do
poder, sem dúvida; no entanto, quer as instituições quer as ideologias
quer as forças sociais e políticas dominantes são completamente
diferentes.

verifica-se que os sistemas monistas correspondem tanto a regimes


autoritários como a totalitários e que os sistemas pluralistas coincidem
com regimes liberais (politicamente), estes com diversos sistemas de
governo (parlamentares, presidenciais, etc.)’.

ill - nos regimes totalitários, o poder político absorve todos os poderes


sociais; nos regimes autoritários ele impede apenas o exercício da
liberdade política.

1. cfr., por exemplo, a obra colectiva editada por j.l. se=, la démocratie
pluraliste, paris, 1981; ou feliks gross, toleration and pluralism, in il
politico, 1985, págs. 181 e segs. (num relance mais amplo, por abranger
também a religião, este autor distingue quatro modelos de estado:
estado inquisitorial, estado intolerante, estado tolerante e estado
pluralista).

2. para maior desenvolvimento, v. manual de direito constitucional, iv,


2.! ed., coimbra, 1993, págs. 26 e segs.

86

por outro lado, enquanto que as monarquias absolutas eram até ao


século xviii governos legítimos, na acepção de g. fererro (pela
coincidência entre princípio monárquico e o seu reconhecimento), já as
ditaduras contemporâneas, ao apelarem para o princípio democrático da
legitimidade, revestem-se não apenas de uma institucionalização
precária (por causa da personalização do poder ocorrido) como muitas
vezes são mesmo governos ilegitimos (sejam revolucionários ou contra-
revolucionários).

iv - tal como os sistemas políticos pluralistas, também não poucos dos


sistemas monistas contemporâneos têm feito apelo, nas constituições
ou na prática, à eleição. não, p .o.rém, evidentemente com o
mesmo significado que ela possui em sistemas pluralistas.
apesar de factores económicos, sociais e culturais nem sempre
favoráveis e de as organizações partidárias limitarem ou condicionarem,
muitas vezes, os cidadãos eleitores, a eleição em sistemas pluralistas
envolve sempre uma margem útil de escolha, dentro de um ambiente de
segurança frente ao poder e de livre afrontamento de ideias. e, seja
mais ou menos amplo o seu objecto, sempre a eleição e não só acto de
efectivação de responsabilidade política dos governantes mas também
mecanismo de renovação periódica e de formação de altemâncias. por
isso, implica competição.

diverso vem a ser o sentido de eleição em sistemas monistas, porque


com ela nunca se poem. em causa os govemantes, sob pena de então
também se põe em causa o próprio regime. a eleição
87
pode servir para reforçar ou para suscitar uma imagem de legitimidade
dos governantes; pode ser uma aclamação, não um acto de orientação
política; pode conter todos os elementos formais ou procedimentais,
faltam-lhe os elementos substantivos de uma vontade autónoma distinta
do poder estabelecido

17. pluralismo e oposiÇÃo

1 - oposição’ é designação que abrange pessoas, correntes de opinião


pública, grupos ou partidos políticos que em qualquer país

1. cfr., por todos, sobre eleições competitivas, não competitivas e


também semicompetitivas, dieter noi1len, wansystem der welt, 1978,
trad. castelhana sistemas electorales del mundo, madrid, 1981, págs. 22
e segs.

2. cfr. karl loewenstein, ”contrôle législatif de l’extrémisme politique


dans les démocracties curopéennes”, em revue du droit públic, 1938;
georges burdeau, ”l’évolution de ia notion d’oposition’, in revue
internationale d’histoire politique et constitutionnelle, 1954, págs. 119 e
segs.; m. bon valsassina, ”profilo dell’opposizione anti-costituzionale
nello stato contemporanco”, em rivista trimestrale di diritto pubblico,
1957; polítical opposition in western democracies, ed. por robert a. dahi,
yale, 1966; ghita ionescu e isabel de mapariaga, opposition, londres,
1968; klaus von beyme e robert v. daniels, oposición, in marxismo y
democracia - enciclopedia de conceptos basico-políticos 5, trad., madrid,
1975, págs. 109 e segs.; gluseppe de vergottini, ”la forma de gobierno
de oposición garantizada”, in revista de estudios políticos, maio-junho de
1979, págs. 5 e segs.; sylvie glulz, le statut de l’qpposition en europe,
paris, 1980; pietro grilli, ”l’opposizione política nei sistemi non
competitivi: una premessa analítica”, in rivista italiana di scienza
política, 1983, págs. 65 e segs.; silva leitÃo, constituição e direito de
oposição, coimbra, 1987; monica caggiano, oposição na política, são
paulo, 1995.

se manifestam contrários ao governo ou ao regime político vigente. no


primeiro caso (oposição só ao governo) diz-se oposição constitucional;
no segundo (oposição ao regime e, portanto, também ao governo)
oposição anticonstitucional.

até ao século xviii não havia senão a atitude individual dos que,
invocando a sua consciência ética, negavam a legitimidade de certos
governantes ou de alguns dos actos destes; ou a atitude colectiva de
insurreição, muitas vezes conduzindo à guerra civil ou internacional.

É com o acordar da liberdade política e com o constitucionalismo que a


oposição de acto moral passa a fenômeno político, dentro de um
processo de luta pacífica pelo poder. É o primeiro pais em que isto
sucede é naturalmente a inglaterra, após as revoluções anti-absolutistas
e ainda por causa do sistema parlamentar que assenta no debate
contraditório entre gabinete e ”oposição de sua majestade”. este
exemplo vai ser imitado por quase toda a parte: aparecem os partidos
políticos nos estados unidos, na europa dominam as monarquias
constitucionais ou as repúblicas burguesas e, em portugal, o rotativismo
funciona durante meio século. se bem que surjam correntes fora do
sistema (legitimistas ou socialistas e anarquistas), assiste-se ao jogo,
real ou fictício, da altemância de dois partidos no governo.

mas a situação altera-se no século xx: desaparece a homogeneidade de


filosofia e de classe dirigente ou dominante, sucedem-se as crises, o
parlamento deixa muitas vezes de ser o centro da
89
vida política e desenvolvem-se movimentos de direitas e esquerdas,
apostados em destruir a ordem política e social.

na lógica liberal, todos os partidos, mesmo os de contestação


revolucionária, deveriam ser reconhecidos enquanto os seus actos não
ofendessem a lei penal. na prática, porém, o grau da sua admissibilidade
tem dependido da sua prática e dos seus programas, de circunstâncias
de tempo e país, da relação de forças existentes (por exemplo, pequeno
ou grande número de aderentes ou militantes de que dispõem).

providências bastante diversas têm, pois, sido adoptadas perante a


oposição anticonstitucional: desde providências relativas aos
funcionários públicos (indo até à exigência de ”leal colaboração com as
instituições”) a providências que afectam a subsistência dos partidos
(suspensão ou dissolução, por via administrativa ou, sobretudo,
jurisdicional). ao mesmo tempo, e com êxito igualmente variável, o
estado de direito (liberal ou, depois, social) confia em que a participação
eleitoral e parlamentar leve a integração, no sistema, dos próprios
partidos extremistas.

11 - na nossa época, o lugar conferido à oposição torna-se elemento


definidor da forma política.

a livre actividade, pelo menos de uma oposição constitucional, identifica


os sistemas políticos pluralistas; aqui a maioria deve governar e a
minoria deve estar na oposição, entendida como

90

fiscalização pública dos actos do governo ou como poder de resistência


ou de garantia; a representação de minorias e a institucionalização dos
grupos parlamentares e dos partidos políticos são corolários jurídicos
desse princípio.

ao invés, os regimes totalitários recusam à oposição qualquer papel, em


nome da supremacia do estado, da nação, da raça ou do proletariado;
oposição anticonstitucional nos regimes pluralistas ou liberais, os
partidos fascistas e comunistas (e agora, também de fundamentalismo
islâmico), quando chegam ao poder, impedem ou reprimem as
actividades políticas dos seus adversários, relegando-os para a
clandestinidade.

por fim, os regimes autoritários ficam a meio caminho: concedendo


embora aos cidadãos o direito de estar na oposição, o que não
permitem é a organização (ou a organização permanente) de grupos
divergentes da política oficial para a contestar e, muito menos, para a
substituir.

111 - dentro dos sistemas pluralistas, a competitividade da oposição


depende, em larga medida, embora não completamente, do número e
da natureza dos partidos, ou seja, da extensão em que a oposição se
encontra concentrada’.

1. robert a. dahl, ”pattems of oppositiw’, in polítical opposition .... págs.


337 e segs. fala em quatro tipos de sistemas de oposição: 1)
estritamente competitivo; 2) cooperativo-competitivo; 3) coolescente-
competitivo; 4) estritamente coolescente.

91
§ 4.’

divisÃo do poder

18. a divisÃo do poder em geral

1 - ao abordar-se o tema da divisão ou da unidade ou divisão) do poder,


importa tomar nota de duas distinções do maior relevo:

- a distinção entre a análise conceptual do poder político e a afirmação


de um princípio de jure condendo (ou mesmo já dejure condito) de
divisão do poder.

- a distinção entre divisão do poder, susceptível de ser operada de


diversas formas e segundo diferentes critérios, e a divisão específica em
moldes de separação de poderes.

11 - uma coisa, com efeito, é o esforço científico ou paracientífico a que,


desde o início da reflexão sobre o estado, procedem
93
politólogos e juristas de decomposição e estudo das faculdades ou
potencialidades compreendidas no poder político. outra coisa vem a ser
a procura, com base nisso ou com vista a certos objectivos, de sistemas
de divisão do poder.

já aristóteles discernia três potencialidades de soberania: a deliberação,


o comando e a judicatura. assim como, muito mais tarde, hegel haveria
de se referir a um poder legislativo, a um poder de governo e a um
poder do príncipe.

e outras distinções poderiam ser citadas - tal como, mais recentemente,


ninguém contesta a existência de várias funções do estado. mas isso
não implica, necessariamente, que a sua atribuição a vários órgãos ou
instituições seja preconizada.

a divisão de poder afigura-se hoje requisito de limitação de poder. nem


sempre terá sido entendido assim: também noutras épocas se pensou
encontrar resposta para a preocupação com a necessidade de limitar o
poder noutras instâncias, fossem a nível jurídico-político (maxime o
direito de resistência), fossem a nível moral e religioso.

111 - a ideia de separação de poderes vem, desde os séculos xvii e xviii,


em reacção contra o absolutismo monárquico e associada à filosofia
política iluminista e liberal.

94

não é, porém, a primeira realização histórica de divisão do poder; pelo


menos, duas de grande significado tinham existido antes na europa. e
tão pouco, nos moldes em que foi concebida nessa altura, é o único
esquema coadunável com o constitucionalismo moderno: não só é
susceptível de várias interpretações como, para ser aplicável na
situação actual, carece de ser revista e enriquecida (e tem-no sido).

iv - as magistraturas clássicas da grécia e de roma traduziam limitação


do poder, na medida em que o poder, em vez de ser atribuído,
concentrado num homem só ou numa só magistratura era repartido por
diversos órgãos, por diferentes magistraturas, de regra colegiais, e,
assim, se verificava uma recíproca repartição de poderes’.

por seu turno, o estado estamental assentava num dualismo de


princípios: o princípio, de origem medieval, da aceitação do papel
político das corporações, das ordens, das classes, dos senhorios locais; e
o princípio de unidade ou de decisão central através do rei.

nem por isso são menos nítidas as diferenças entre estas duas
manifestações de divisão de poder e a moderna concepção de
separação de poderes:

1. cfr. cícero de legibus, trad. port. das leis, são paulo, 1967, pág. 101:
se um magistrado único tivesse mais autoridade que todos os seus
pares, teríamos apenas trocado a denominação do rei, sem alterar a
essência da realeza.

não se esqueça, no entanto, que roma conhecia, em tempos de crises


(porque saluspopuli suprema lex) a concentração do poder num
dictator.

95
1.2) tanto às magistraturas romanas como à organização estamental falta uma ideia
de especialização orgânico-funcional ou de distribuição de diversas faculdades,
objectivamente consideradas, por mais de um centro subjectivo de poder;

2.2) tanto a uma como a outra falta a conexão com a ideia de direitos fundamentais,
porque os antigos não conheceram a liberdade política e o estado medieval não curou
senão de assegurar diante do rei imunidades, privilégios, prerrogativas em concreto de
estamentos, e não direitos individuais dos homens enquanto tais.

em último termo, a separação de poderes, nas suas múltiplas concretizações,


correcções e adaptações - revelar-se-ia a projecção organizatória do estado de direito;
e este só existiu com o constitucionalismo moderno

1. sobre a separação de poderes, deve, antes de mais, ler-se locke, the second treatise
of governinent (capítulos vii, x11 e xiv); montesquieu, de l’esprit des lois (capítulos iv e
v do livro xi); rousseau, du contrat social (capítulo 1 do livro 111); madison, the
federalist (n.os 47 e 48).

e depois, para aprofundamento da problemática, entre tantos, saint girons, essai sur la
séparation des pouvoirs dans pordre politique, administratif etjudiciaire, paris, 1881; e.
art=, liséparation des pouvoirs, et separation des fonctions”, in revue du droitpublic,
xiii, 1900, págs. 214 e segs. e 470 e segs., xiv, 1900, págs. 34 e segs. e 436 e segs.),
xvii, 1902, págs. 78 e segs., 234 e segs. e 439 e segs.,-xx, 1903, págs. 415 e segs.; j. j.
chevalier, ”de ia distinction établie par montesquieu. entre ia faculté de statuer et ia
faculte d’empêcher”, in mélanges maurice hauriou, 1929, págs. 139 e segs.; charles
eisenmann, ”’l’Ésprit des lois’ et ia separation des pouvoirs”, in mélanges r. carré de
malberg, paris, 1933, págs. 163 e segs.; balladore pallieri, ”appunti sulia divisione dei
poteri nella

96

19. a doutrina da separaÇÃo de poderes

1 - antes de montesquieu, pelo menos, outro grande autor’, locke, já se tinha


debruçado sobre a problemática da

vigente costituzione italiana”, in rivista tilmestrale di diritto pubblico, 1952, págs. 811 e
segs.; louis althusser, montesquieti, la politique.et l’hístoire, paris, 1959; m.c.j. vile,
constitution and the separation of powers, oxónia, 1969; rogÉrio soares, direito público
e sociedade técnica, coimbra, 1969, págs. 145 e segs.; marques guedes, ”separação
de poderes”, in verbo, xv, pág. 353; afonso queiró, ”poderes do estado”, ibidem, págs.
353 e segs.; reinhold zippelius, op.cit., págs.
146 e segs.; georges vlachos, la politique de montesquieu, 1974; arnd merkel e gerd
meyer, ”división de poderes”, in marxismo y democracia - enciclopedia de conceptos
basicos - política, 2, trad., madrid,
1975, págs. 143 e segs.; marcello caetano, op.cit., 1, págs. 232 e segs e 370 e segs.;
pierre lavigne, ”l’unité du pouvoir d’État dans le doctrine constitutionnaliste socialiste
contemporaine”, in mélanges offei-ts à georges burdeau, paris, 1977, págs. 599 e
segs.; agostino carrino, ”uni critica marxista alla ’divisione dei poteri”’, in rivista
internazionale di filosofia del diritto, 1977, págs. 904 e segs.; gaetano silvestri, la
separazione dei poteri, 1, milão, 1979; solozabal echavarria, ”sobre el principio de ia
separación de poderes”, in revista de estudios políticos, novembrodezembro de 1981,
págs. 215 e segs.; paulo bonavides, op. cit., págs.
145 e segs.; sÉrvulo correia, legalidade e autonomia contratual nos contratos
administrativos, lisboa, 1987, págs. 25 e segs.; jorge reis novais, contributo para uma
teoria do estado de direito, coimbra, 1987, págs. 82 e segs.; nuno piÇarra, a separação
de poderes como doutrina e princípio constitucional, coimbra, 1989.

v. ainda os pareceres n.os 16/79 e 1/80 da comissão constitucional, de 21 de janeiro


-de 1979 e 8 de janeiro de 1980, in pareceres, viii, págs. 205 e segs., e m, págs. 23 e
segs., respectivamente.

1 . e tão pouco pode esquecer-se pu17fendorf.


97
separação ou divisão de poderes e tinha proposto (nos capítulos vil, xii e
xiv do seu tratado sobre o governo) uma análise dos poderes do estado.
segundo ele haveria um poder legislativo, um poder executivo, um
poder federativo respeitante às relações internacionais e, na linha do
constitucionalismo inglês, a prerrogativa (que podemos equiparar à
função governamental).

mas o livro de locke não teve o impacto do de 1’esprit des lois não só
por causa de uma menor difusão como por ter sido escrito ainda cedo
(ainda no século xvii) e demasiado voltado para a situação inglesa após
1688. de resto, ele não propugnava uma completa divisão de poder,
visto que entendia que o poder primordial no estado era o poder
legislativo (o qual determinava
4 diferentes formas de governo).

11 - o autor fundamental é, pois, o barão de montesquieu e o seu


pensamento encontra-se exposto principalmente nos capítulos iv e vi do
livro x1 do de 1’esprit des lois, publicado em
1748, traduzido para inglês, divulgado na europa e na américa do norte
e que estaria presente nas revoluções americana e francesa e marcaria
todo o constitucionalismo liberal.

montesquieu começa por dizer no capítulo iv do livro xi aquilo que pode


afirmar-se ser o leit-motiv da doutrina da separação de poderes: a ideia
de que a única maneira de limitar o poder consiste em criar outro
poder que o limite; a única maneira

98 ’

de limitar o poder é dividi-lo em diversos poderes que se condicionem,


que se limitem reciprocamente. ”para que ninguém possa abusar do
poder, é preciso que pela disposição das coisas o poder limite o poder”
(ilfaut que le pouvoir arrête le pouvoir).

isso mesmo vem a ser desenvolvido no capítulo vi (aparentemente


votado à constituição da inglaterra): ”em cada estado, há três espécies
de poderes: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que
dependem do direito das gentes e o poder executivo daqueles que
dependem do direito civil” (poder executivo das coisas que depende do
direito civil e aquilo que ele próprio vai chamar poder judicial). e
continua: ”pela primeira, o príncipe ou magistrado faz leis por
determinado tempo ou para sempre, e corrige ou revoga as que tenha
feito. a segunda faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas,
garante a segurança, previne as invasões. pela terceira, pune os crimes
ou julga os litígios entre os particulares. chamar-se-á a esta última o
poder de julgar e à outra simplesmente o poder executivo do estado.
”a liberdade política num cidadão ou de um cidadão é essa tranquilidade
de espírito que provém da opinião que cada um tem da sua segurança e
para que haja ou para que tenha essa liberdade é preciso que o governo
seja tal que o cidadão não possa temer qualquer coisa de outro
cidadão”. ”quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de
magistrados o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não há
liberdade. para que não se possa temer que o mesmo monarca ou o
mesmo senado façam leis tirânicas que depois vão executar
tiranicamente.”

99
”não há também liberdade se o poder de julgar não está separado do
poder legislativo e do poder executivo. tudo estaria perdido se o mesmo
homem ou o mesmo corpo de magistrados ou do povo exercesse esses
três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de
julgar os crimes ou os diferendos de particulares.”

e montesquieu, que, no fundo, faz uma apologia do govemo misto, em


correspondência com diversas classes sociais, acrescenta: ”na maior
parte dos reinos da europa o governo é moderado porque o príncipe que
tem os dois primeiros poderes, deixa aos outros, aos súbditos, o
exercício do terceiro. nos turcos, em que estes três poderes estão unidos
nas mãos de um sultão, reina um terrível despotismo. nas repúblicas da
itália, em que os três poderes estão reunidos, a liberdade encontra-se
menos estabelecida que nas nossas monarquias.`

111 - montesquieu não se cinge a decompor o poder em


correspondência com três funções, conferindo as faculdades resultantes
a órgãos distintos, sem articulação entre eles. vai mais longe,
discemindo, nesse mesmo capítulo vi, em cada poder uma faculté de
statuer e uma faculté d’empêcher.

1. É na linha destas considerações que montesquieu alude à


representação política que advoga, por temer que um governo directo
do povo conduza à concentração de poderes.

100

”chamo faculté de statuer o direito de ordenar por si mesmo ou de


corrigir aquilo que tenha sido ordenado por outro. chamo faculté
d’empêcher o direito de tomar nula ou anular uma resolução tomada por
quem quer que seja. era nisto que consistia o poder dos tribunos de
roma, embora aquele que tenha a faculdade de impedir possa ter
também o direito de aprovar, e a aprovação pão é outra coisa senão a
declaração de que não faz uso da sua faculdade de impedir e

deriva dessa faculdade.”

0 órgão que tem o poder legislativo deve ter um poder positivo de


estatuir leis, mas deve ter também um poder negativo de impedir que
os outros órgãos façam algo que ponha em causa os interesses gerais.
da mesma maneira, o órgão que tem o poder executivo deve ter não
apenas o poder positivo de estatuir, de fazer a execução das leis, mas
deve ter também um poder negativo, de tal modo que não sejam feitas
leis contrárias aos interesses gerais. somente, a respeito do poder
judicial (que considera um poder sem relevância política) é que
montesquieu não faz a distinção entrefaculté de statuer efaculté
d’empêcher.

nem todos os intérpretes e seguidores de montesquieu terão dado toda


a importância a este ponto.

iv - as grandes divergências políticas modernas radicam todas no


contraste entre montesquieu erousseau. É no fundo o contraste entre os
capítulos iv e vi do livro xi do de
1 esprit des lois e o capítulo 1 do livro iii do contrato social.

101
neste capítulo 1 (sob a epígrafe ”do governo em geral”) do livro 111 do
contrato social, rousseau claramente vem opor-se à separação de
poderes. rousseau admite uma distinção de funções - legislativa e
executiva. mas considera que a função legislativa é a única que é
soberana, ao passo que a função executiva é uma função intermediária,
não soberana, que não tem nenhuma virtualidade de limitar o poder
legislativo.

para montesquieu o poder legislativo deve ser limitado pelo executivo e


vice-versa. para rousseau, pelo contrário, o único poder soberano é o
poder legislativo. 0 poder executivo não é um verdadeiro poder
soberano; não há mesmo em rigor um poder executivo.

há uma diferença essencial entre esses dois corpos - poder legislativo e


executivo. este último não existe senão pelo soberano e para o
soberano. a vontade dominante do príncipe não e e não deve ser senão
a vontade geral ou a lei. a sua força não é senão a força pública
concentrada nele de tal maneira que possa tirar dessa potência
soberana a força, através de qualquer acto absoluto independente.

se acontecesse que o príncipe (governo, órgão executivo) tivesse uma


vontade particular mais activa que a do soberano e que a utilizasse para
se subtrair à vontade deste haveria dois soberanos e não um só. ora,
nesse momento a união social desvanecer-se-ia e o corpo político seria
dissolvido.

102

para rousseau a unidade do corpo social tem que corresponder à


unidade de soberania. e esta tem a sua expressão no órgão do poder
legislativo. qualquer órgão de poder executivo tem de ser sempre um
órgão secundário ou derivado e que não tem a capacidade de formar
uma vontade autónoma em face da vontade do soberano.

a tese de rousseau vai determinar directamente a constituição francesa


do ano 1 e, por vias diversas, não deixa de encontrar parecenças nas
concepções adoptadas no constitucionalismo marxista -leninista.

20. concepÇões doutrinais subsequentes

1 - em plano diverso do de montesquieu acha-se a elaboração de sieyÈs


em qu,es-ce-que le tiers-état? - obra que é, de certa sorte, a síntese
entre o contrato social e o lesprit des lois, a síntese entre a concepção
de soberania popular de rousseau e a concepção de separação de
poderes de montesquieu; e sabe-se como se projectou no movimento da
revolução francesa.
sieyÈs - tal como, quase ao mesmo tempo, hamilton no federalist, nos
estados unidos - aponta a existência de um poder primário e originário
dentro do estado - o poder de que deriva a constituição, aquele que
exprime mais directamente a soberania ou que com ela se identifica, o
poder constituinte; e este poder antecede, por natureza, os demais
poderes do estado, os poderes constituídos.
103
ao poder legislativo, um destes poderes, é vedado praticar actos que
contrariem as normas decretadas pelo poder constituinte.

todavia, enquanto que a distinção proposta por montesquieu é


pressuposto da teoria das formas de governo modernas, a distinção de
sieyÈs e dos ”pais” da constituição americana só por via imediata e
reflexa a ela vem a reconduzir-se; o seu terreno próprio é o da teoria da
constituição.

11 - já no século xix situa-se a doutrina de benjamin

constant, para quem, afora os poderes legislativo, executivo e judicial,


deveria haver um quarto poder a que ele chamou poder neutro (e a que
as constituições brasileira de 1824 e portuguesa de .1926 chamaram
poder moderador).

partindo da ideia de que os três poderes do estado, como foram


consagrados aquando da revolução francesa, poderiam dar lugar a
conflitos e paralisar-se, constant preconiza um quarto poder, dirimidor
de conflitos, um poder de equilíbrio que arbitraria os litígios entre os
outros poderes de estado, que poria em funcionamento a máquina
estadual ou evitaria que ela ficasse paralisada. e ele seria a ”chave de
toda a organização política”, como declarava o art. 71.2 da carta
constitucional.

na realidade, porém, esse poder - neutro, moderador, real (porque


atribuído ao rei também detentor do poder executivo) era um meio de o
monarca recuperar parte do poder que perdera com o
constitucionalismo.

104

iii - outra análise feita na mesma época é a de saint-simon. no seu


ensaio da reorganização da sociedade europeia, publicada logo a seguir
ao congresso de viena, advoga uma monarquia constitucional em que
deveria haver três poderes: um poder de interesse geral, um poder de
interesses particulares e um poder regulador.

0 primeiro seria o poder do rei. 0 poder de interesses particulares seria o


da câmara dos comuns ou equivalente. 0 poder regulador seria o da
câmara dos lordes ou equivalente.

iv - não menos importante e a divisão, agora em cinco poderes, proposta


por silvestre pinheiro-ferreira, talvez o maior juspublicista portugues do
século xix. são eles o poder legislativo, o poder executivo, o poder
judicial, o poder conservador e o poder eleitoral.
0 grande interesse desta visão das coisas encontra-se.no poder eleitoral,
o qual consiste em eleger e em nomear para os empregos tanto civis
como políticos e em designar os cidadãos que pelos seus serviços se
tenham tomado dignos de recompensas nacionais’.

1. principes du droit public, constitutionnel, administratif et des gens ou


manuel du citoyen sous un gouvernenent représentatif, paris, 1834,
págs.
123 e segs. apesar de se tratar de uma concepção de eleição como
designação, de algum modo liga ainda o poder eleitoral à
responsabilidade política perante o ”tribunal da opinião pública” através
das eleições gerais anuais, em que há a possibilidade de revogação do
emprego dos titulares designados.

105
quanto ao poder conservador não é simplesmente paráfrase do poder
moderador de benjamin constant, pois que lhe cabe não apenas manter a
independência e harmonia dos outros quatro poderes mas também fazer
observar os direitos de cada cidadão. os órgãos dos diferentes poderes
exerceriam atribuições de poder conservador e deveria haver ainda uma
autoridade especial: o conselho de inspecção e censura constitucional,
composta por cinco membros escolhidos nas eleições gerais nos graus mais
elevados da hierarquia civil .

v - merecem ainda ser conhecidas as análises de arrens e,

já no século xx, de hauriou e de loewenstein.

ahrens começa por contrapor a ”administração” à ”constituição”, e aí vai


distinguir um poder governamental, um poder legislativo e um poder
executivo.

por seu lado, hauriou considera um poder de sufrágio, um poder deliberante


(que é o das assembleias) e um poder de execução (que é o dos órgãos
executivos).

finalmente, karl loewenstein que entende ultrapassada a doutrina de


montesquieu, acaba por formular uma divisão de funções na base da distinção
entre a decisão política

1. semelhante ao poder eleitoral de silvestre pinheiro-ferreira.

106

fundamental, a sua execução e o seu controlo ou fiscalização. nesta última


função reside o contributo original do autor.

21. a separaÇÃo dos poderes na evoluÇÃo do constitucionalismo

1 - 0 princípio da separação dos poderes foi consagrado em todas as


constituições dos séculos xviii e xix, em obediência ao dogma inscrito no art.
16.9 da declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789. não foi,
contudo, consagrado da mesma maneira ou com a mesma rigidez.

em frança, em especial nas constituições de 1791 e de 1795 (do ano 111)


pareceu prevalecer uma visão mecanicista, de apertada distribuição de
poderes pelos diversos órgãos e, ao longo de todas as constituições até hoje,
sempre, em nome da separação de poderes, se recusou aos tribunais a
fiscalização da constitucionalidade das leis.

diversamente, nos estados unidos prevaleceu um sentido coordenador, com


relacionamento ou cooperação funcional, de checks and balances e, por isso,
se estabeleceram processos complexos de agir e se admitiu, desde o início, a
judicial review. não por acaso tem-se dito que a constituição de 1787 é a que
melhor tem levado à prática a distinção de um pouvoir de statuer e de um
pouvoir dempêcher.

107
em contrapartida, nos estados unidos, o sistema de governo presidencial
tem-se traduzido numa separação orgânica muito mais nítida do que
nos países europeus de governo parlamentar ou aparentado, nos quais
os ministros fazem parte dos parlamentos e estes podem ser dissolvidos
pelo chefe do estado.

entre uma e outra posições extremas, situa-se a maior parte das


concretizações constitucionais da europa oitocentista. e para provar que
não eram demasiado radicais, recordem-se a doutrina da lei formal e da
lei material lançada por laband, a atribuição ao rei de um poder de
sanção das leis (verdadeiro poder positivo, e não meramente negativo
como o poder de veto), ou o exercício da iniciativa legislativa pelos
ministros.

11 - no século xx, as transformações ocorridas nas relações entre


estado e sociedade, o peso da administração pública de prestação, as
crises económicas, os desafios trazidos por novas ideologias, a inaptidão
dos par lamentos para fazerem face a muitos dos problemas colectivos,
as exigências da vida internacional, tudo isso não poderia deixar de
afectar o princípio da separação de poderes.

de vários quadrantes, vai-se preconizar a sua superação.


cientificamente insustentável, ele não seria mais politicamente
adequado.

nos regimes marxistas-leninistas, procurar-se-ia reconstituir a unidade


do poder - do poder agora ao serviço das classes trabalha-

108

doras - e afirma-se que em regime burgues a separação seria ilusória,


porque, por detrás das várias instituições formais de poder, se
encontraria sempre a mesma classe dominante. nos regimes fascistas
ou aparentados prevaleceria o culto da autoridade e da ordem e a ideia
de um poder executivo ”forte”. nos regimes de muitos dos países
asiáticos e africanos saídos da descolonização seriam partidos únicos
que deteriam todo o poder.

e até em regimes pluralistas, se sentiria a necessidade de repensar


todas as questões, muito particularmente por causa das leis-medidas’,
das delegações ou autorizações legislativas, das leis de bases e de
outras figuras, por causa da actividade internacional do estado e por
causa de situações de excepção ou de urgência.

111 - a despeito de tudo, no entanto, a experiência do século x-x mostra


que se a separação de poderes já não pode ser adoptada tal como no
estado liberal, ela continua a ser válida, pelo menos nos seguintes
termos:

1 - que é indispensável, por um imperativo de racionalidade jurídica e


por necessidades de ordem política, que o poder se encontre dividido
por órgãos com competências próprias de modo a os seus detentores se
limitarem reciprocamente;

2 - que nem é isso infirmado por se reconhecer que não existe


coincidência entre os três poderes - legislativo, executivo e

1 . v. funções, órgãos e actos do estado, lisboa, 1990, págs. 167 e segs.


109
judicial - de que ainda cuidam várias constituições e as funções do
estado -política, legislativa, administrativa e judicial’;

3 - que se a atribuição do poder legislativo e do poder executivo (ou das


funções legislativa, governativa e administrativa) a órgãos
absolutamente separados não é possível ou não é conveniente, nem por
isso se justifica menos o primado de competencia legislativa do
parlamento, enquanto assembleia representativa, com composição
pluralista e que reune em condições de publicidade;

4 - que é essencial ao estado de direito, pelo menos, a separação de


poderes no tocante ao poder judicial, ou seja, a reserva de função
jurisdicional aos tribunaÍs2;

5 - que é igualmente essencial ao estado de direito, pelo menos, a


subordinação dos órgãos administrativos à lei;

6 - que, para além da repartição jurídica do poder, a efectividade da


separação de poderes depende da intervenção de diversos partidos e
forças políticas no poder.

1. v. funções, órgãos e actos .... cit., págs. 19 e segs.

2. especialmente sobre a separação entre o poder judicial e o poder


legislativo, v. castanheira neves, questão defacto - questão de direito,
coimbra,
1967, págs. 540 e segs.

110

iv - finalmente, observe-se que as teorias jurídicas e políticas do século


xx têm ainda chamado a atenção para outros aspectos fulcrais de
divisão de poder:

para a divisão territorial de poder, manifestada através do federalismo,


do regionalismo político e até da simples descentralização
administrativa local;

para a divisão funcional do poder, manifestada através da


descentralização administrativa institucional (associações públicas,
empresas públicas, institutos públicos, etc.);

- para a divisão pessoal, manifestada através de incompatibilidades


entre cargos públicos;

- para a divisão temporal, manifestada através da fixação de tempo de


exercício dos cargos e de limitações à renovação de mandatos;

- para a divisão económica, manifestada através da existência de


diversos sectores de propriedade de meios de produção (v.g., público,
privado e cooperativo).

111
capitulo iii,

formas e sistemas

de governo
22. as oito formas de governo modernas

são as seguintes as principais formas de governo modernas:

1) monarquia absoluta, forma de governo dominante até


1789;

2) governo representativo clássico ou liberal, que triunfa com a


revolução francesa e vai manifestar-se sobretudo no século xlx;

3) democracia jacobina (de aplicação efémera, mas doutrinalmente


importante) ou democracia radical com directo assento em rousseau e
expressão mais perfeita na constituição francesa de 1793 ou do ano 1;

4) governo cesarista, identificado com bonaparte e muito próximo (daí


o nome) da prática de júlio césar em roma, depois continuada no
império ou principado com augusto;

115
5) monarquia limitada, que corresponde a uma primeira época da
restauraçao e a monarquia que ira prevalecer na alemanha e na Áustria
no século xix;

6) democracia representativa, que, no fundo, é o desenvolvimento


do governo representativo em sentido democrático, e que, pode dizer-
se, é a forma de governo dominante no ocidente desde a guerra
mundial;

7) governo leninista, implantado na rússia com a revolução de 1917 e


depois difundido noutros países;

8) governo fascista, que, não sendo uma forma tão homogénea como
a do governo leninista, é, mesmo assim, historicamente

bem demarcada.

elas resultam, com mais ou menos nitidez, das diferentes respostas aos
problemas cardeais acabados de expor, da sua consideração como
critérios taxonónicos. mas não pode, simultaneamente, deixar de se
salientar a conexão histórica entre elas, bem como a relatividade de
alguns aspectos de distinção.

23. caracterizaÇÃo sumÁria

1 - a monarquia absoluta, dominante até 1789 e de que os últimos


exemplos europeus foram a rússia e a turquia antes de 1914,

116

é a forma de governo que extrai do princípio 1da legitimidade


monárquica o máximo de concentração do poder (e de exercício do
poder) no rei.

11 - 0 governo representativo clássico ou liberal repousa numa


legitimidade democrática (embora diferida ou remota); aceita a
representação política, mas com sufrágio censitário e com autonomia
dos representantes; aceita ainda a separação de poderes com
tendências mecanicistas, pelo menos na europa.

111 - em contraposição ao governo clássico ou liberal encontra-se a


democracia jacobina ou radical. querendo agora levar às últimas
consequências o princípio democrático, recusa tanto a representação
política como a separaç,5- de poderes.

iv - também o governo cesarista assenta numa legitimidade


democrática; todavia, atenua a representação política através do
recurso ao plebiscito. e, obviamente, concentra o poder no césar, ainda
quando não rejeita formalmente a separação de poderes’.

1. cfr. oliveira martins, histótia da república romana, 1885 (na 7. ed.,


1987, 1 vol., pág. 221): o cesarismo põe os destinos de uma sociedade
nas mãos de um homem a quem uma nação dá procuração ampla e
voto de confiança tácito sob condição de esse homem trazer a
felicidade ao povo.

117
repare-se como duas formas de democracia, duas formas de governo
que tão fortemente invocam a democracia, podem chegar a resultados
aparentemente tão diferentes - a democracia jacobina e o governo
cesarista - ainda que não tão antagónicos em termos de pluralismo
político (pois uma e outro conduzem ao monismo).

v - a quinta forma de governo é a monarquia limitada, ou seja, a


monarquia que se autolimita, nomeadamente, através das cartas
constitucionais.

subsiste nela a legitimidade monárquica, embora já não tão pacífica e


exclusivamente como acontecia na monarquia absoluta.
fundamentalmente, a diferença entre o governo representativo clássico
e a monarquia limitada tem a ver com a legitimidade política e com o
papel do rei dentro do sistema político.

embora a monarquia limitada aceite a separação de poderes, ela só se


verifica no domínio deixado às instituições representativas. em tudo o
mais subsiste uma ideia de unidade política assente no rei. separação
de poderes na medida em que o rei não tem já todo o poder; separação
de poderes, sobretudo, dentro das instituições representativas que são
admitidas. e há tanto mais forte separação de poderes no domínio das
instituições representativas quanto mais, por essa via, se tenta dividi-
ias, fraccioná-las, para não porem em causa o poder do rei.

118

vi - a sexta forma é a democracia representativa, que, no essencial,


resulta da modificação das instituições repres

efitativas pela realização do sufrágio universal, corolário lógico do


princípio da legitimidade democrática. mas o sufrágio universal gera
fenômenos desconhecidos no século xix; em especial, liga-se ao enorme
papel adquirido pelos partidos políticos, a ponto de alguns falarem então
em estado de partidos.

ao mesmo tempo, se a democracia representativa continua a aceitar a


separação de poderes na linha do governo representativo, também a
transforma. transforma-a e complica-a com recurso a outros
instrumentos, conforme se viu.

vii - na forma de governo leninista - correspondente ao regime marxista-


leninista ou de tipo soviético - o povo, que surge como titular do poder,
já não é o mesmo que é titular do poder no governo representativo
clássico ou na democracia representativa. não é a universalidade dos
cidadãos ou o povo identificado com a comunidade política. É o povo
igual a classes trabalhadoras (ou, noutra fase, o povo em que já não há
separação de classes ou de onde desapareceu a burguesia).

esta forma de governo recusa a representação política (por causa, desde


logo, dessa visão classista), se bem que não adopte instituições
puramente comissariais, como as da forma de governo jacobina. e
rejeita também o princípio da separação de poderes, se bem que a
concentração de poderes se venha a dar não tanto a
119
nível do estado quanto a nível do partido. no fundo, o essencial ou específico
da forma de governo 1.eninista é o governo do estado pelo partido comunista,
pelo partido considerado vanguarda da classe operária.

viii - a forma de governo fascista é muito mais difícil de analisar ou


caracterizar, porque emerge de várias matrizes ideológicas e vai ter
concretizações históricas extremamente diversificadas. 0 seu paradigma é o
governo do exactamente chamado partido fascista em itália, de 1922 a 1943; a
sua expressão extrema é o nacional-socialismo alemão; e as suas expressões
mais atenuadas são (se se considerarem em rigor fascismos) o salazarismo
português e o franquismo espanhol.

0 governo fascista não proclama peremptoriamente, nem tão-pouco rejeita, a


legitimidade democrática. 0 que faz é substituir o povo (conjunto de cidadãos
concretos) por um povo algo diferente
- um povo identificado com o estado em itália, com a raça na alemanha, com a
nação (transtemporal), em portugal.

dessas concepções de legitimidade resultam quer o afastamento do pluralismo


quer a negação da separação de poderes fiberal. por outro lado, tal como o
governo leninista, o governo fascista leva ao domínio do poder por um partido
único, um partido ideológico de massas (e é, de resto, por isto não se verificar
no estado novo português que pode contestar-se que seja um verdadeiro
governo fascista).

120

24. grandes contraposiÇões

1 - se quisermos proceder a grandes contraposições, a primeira e aquela que


se dá entre a forma pré-constitucional (a monarquia absoluta) e as formas
constitucionais (as restantes).

formas de governo com legitimidade monárquica são a monarquia absoluta e a


limitada; formas de governo com legitimidade democrática - com várias
concepções de povo e várias expressões - são as demais.

formas de governo com representação política são o governo representativo


clássico ou liberal, a monarquia limitada, a democracia representativa e, de
certa maneira, o governo cesarista. não são formas de governo representativas
as restantes. mas somente na monarquia absoluta e na democracia jacobina é
que não há, em rigor, instituições representativas; instituições representativas
atenuadas, mitigadas, embora sem autenticidade, encontram-se ainda no
governo cesarista, no governo leninista e no governo fascista.

há pluralismo no governo representativo clássico, na monarquia limitada e na


democracia representativa. há, pelo contrário, monismo político, sob várias
formas - com domínio do rei, do césar, do ditador ou do partido (embora
partido que assume feições históricas muito diversas) - na monarquia absoluta,
na democracia jacobina, no governo cesarista, no governo leninista e no
governo fascista.

121
e observe-se que pluralismo não equivale a pluricracia. esta significa
pluralidade de centros de poder, como houve no estado grego, no
romano, na idade média e no estado estamental. mas pluralismo
(político e ideológico) é mais do que isso: é a liberdade assumida como
valor político com todas as suas consequências oá o dissemos).

finalmente, formas de governo com separação de poderes são o


governo representativo clássico, a monarquia limitada e a democracia
representativa; formas de governo sem separação de poderes, a
monarquia absoluta, o governo jacobino, o governo leninista e o governo
fascista; forma de governo com reduzida separação de poderes, o
governo cesarista.

11 - pode ainda tentar-se um quadro susceptível de abranger não só


formas de governo modernas como antigas:

formas de governo

quanto à legitimidade

legitimidade monárquica.

legitimidade democrática: liberal.

marxista-leninista. nacional-socialista. orgânica.

quanto à participação dos cidadãos autocracia:

monarquia.

república aristocrática.

democracia directa.

governo representativo: liberal.

democrático.

122

quanto ao pluralismo

monismo: monarquia:

antiga (oriental). moderna (absoluta). ditadura:


autoritária. totalitária. pluralismo

quanto à decisão de poder

monocracia: monarquia:

oriental absoluta cesarista

república democrática

democracia monocrática: democracia directa antiga. governo jacobino.

governo leninista. governo fascista. pluricracia:

governo representativo clássico.

monarquia limitada. democracia representativa.

25. sistemas de governo em geral

1 - facilmente se vê que sistemas de governo e formas de governo não


têm o mesmo conteúdo. há formas de governo que implicam
determinados sistemas de governo: assim a monarquia absoluta. já no
governo representativo clássico ou liberal vamos encontrar diferentes
sistemas de governo e o mesmo acontece na democracia representativa
e até certo ponto na monarquia limitada

i. cfr., entre tantos, marnoco e sousa, direito político - poderes do


estado, coimbra, 1910, págs. 105 e segs.; queiroz lima, op. cit.,

123
podemos dizer (embora isto carecesse de um mais longo exame) que as formas de
governo pluricráticas, ou mesmo as pluricracias, tendem a uma pluralidade também de
sistemas de governo e que as formas de governo monistas ou monocráticas tendem a
um número reduzido de sistemas de governo. mas não há correlação necessária.

pags. 235 e segs.; k. loewenstein, op- cit., págs- 173 e segs.; manuel jimenez de parga,
op. cit., págs. 128 e segs.; manuel garcia pelayo, derecho constitucional comparado, 8.
ed., madrid, págs. 249 e segs.; comparative government, obra colectiva editada por
jean blondel, londres, 1969; paolo biscaretti di ruffia, introduzione al diritto
costituzionale comparato, milão, 1969, págs. 51 e segs.; maurice duverger, op. cit., 1,
págs. 229 e segs.; costantino mortati, op- cit., págs. 157 e segs.; theo stammen,
sistemas politicos actuales, trad. cast., madrid, 1974; marcello caetano, op. cit., 1,
págs. 416 e segs.; jean-claude colliard, les regimes politiques contemporains, paris,
1978; marcel prÉlot e jean boulois, institutions politiques et droit constitutionnel, 8.4
ed., paris,
1980, págs. 49 e segs.; andrÉ gonÇalves pereira, 0 semipresidencialismo em portugal,
lisboa, 1984; paulo bonavides, qp. cit., págs. 357 e segs; les régimes semi-
presidentiels, obra colectiva editada por maurice duverger, paris, 1986; arend lijphart,
las democracias contemporaneas, trad., barcelona, 1987; bernard chantebout, droit
constitutionnel et science politique, 9.2 ed., paris,
1989, págs. 297 e segs.; armando marques guedes, sistemas políticos, coimbra, 1990;
vitalino canas, op. cit., págs. 129 e segs.; giuseppe, de vergottini, op. cit., págs. 542 e
segs.

124

11 - para compreendennos os sistemas de governo - sistemas de relacionamento dos


órgãos da função política - temos de distinguir entre a visão jurídica e a visão política.

devemos partir da visão jurídica para a política. em primeiro lugar, porque os sistemas
de governo se definem, antes de mais, com base num determinado enquadramento de
órgãos e estes vão ser descritos e depender, antes de mais, das normas
constitucionais. em segundo lugar, mesmo quando os factores de ordem política
prevalecem sobre os jurídicos, mesmo assim estes conseguem resistir com autonomia;
e em momentos de crise ou de ruptura, ainda é o factor jurídico que vai agir e permitir
determinadas formas de transição.

por outras palavras: há um conceito jurídico de sistema de governo em que se atende


às normas constitucionais reguladoras dos órgãos govemativos e das suas posições
recíprocas, e um conceito peculiar de ciência política, em que se atende ao
funcionamento, ao modo como na prática esses órgãos desenvolvem as suas
actividades e se relacionam entre si; e há, naturalmente, uma conexão entre ambos,
como se acaba de dizer.

111 - de seguida, faremos apenas algumas considerações muito gerais, porque a


matéria dos sistemas de governo não pode ser estendida senão a par de uma visão
descritiva e comparativa e dela já cuidamos no volume 1 do nosso manual de direito
constitucional.

125
26. a perspectiva jurídica dos sistemas

de governo

1 - no plano jurídico-constitucional, quando se pensa em sistema de governo


têm-se em mente três grandes conceitos jurídicos (para além de outros menos
relevantes que poderiam ser citados):

a) 0 da separação de poderes, no sentido de especialização orgânico-


funcional, paralelamente à fiscalização ou à colaboração dos vários órgãos
para a prática de actos da mesma função;

b) 0 da dependência, independência ou inter-dependência dos órgãos


quanto às condições de subsistência dos seus titulares ou quanto ao modo
como certo órgão vem a projectar-se na composição concreta de outro órgão
(o modo, por exemplo, como determinado órgão determina ou escolhe os
titulares de outro órgão ou vem a determinar a cessação das suas funções);

c) como conceito aí compreendido, mas que tem adquirido autonomia, o


conceito de responsabilidade política - de responsabilidade política de um
órgão ou dos titulares de um órgão perante outro órgão.

11 - a partir destes três princípios, a grande divisão, no plano jurídico-


constitucional - e também no plano político - é a que se dá entre sistemas de
governo com concentração de poderes e sistemas de governo com
desconcentração de poderes.

126

de um lado encontram-se sistemas de governo, em que não há separação de


poderes, em que, à volta de determinado orgão, se movem os demais órgãos,
em que a responsabilidade política se verifica em relação apenas a um órgão.

de outra banda, acham-se os sistemas de governo em que, pelo contrário, há


divisão ou, mesmo, separação de poderes; em que se verifica
interdependência dos órgãos, ou em que se consegue alcançar uma
independência recíproca na base da pluralidade.

11 - os sistemas de governo posteriores à revolução francesa com


concentração de poderes são fundamentalmente três:

1.’ -a monarquia limitada ou o sistema de concentração de poderes que


corresponde à forma de governo que é a monarquia limitada;

2.’ - 0 sistema de governo representativo simples;

3.’ - 0 sistema convencional.

pode ainda, porventura, autonomizar-se como quarto tipo o sistema de


governo soviético.
a monarquia limitada e o sistema representativo simples são sistemas de
governo com concentração do poder no chefe do estado; o sistema de governo
convencional um sistema de concentração de poderes na assembleia política.
a monarquia limitada repousa, como se disse, na legitimidade monárquica; o
sistema
127
representativo simples e o sistema convencional na legitimidade
democrática, e, de resto o sistema representativo simples tanto pode
dar-se em república como sob forma monárquica (a monarquia
cesarista).

a concentração de poder resulta na monarquia limitada da subsistência


do princípio monárquico, só limitado nos casos previstos na constituição
por um parlamento de competência reduzida; no sistema representativo
simples resulta do primado representativo do chefe do estado; no
governo convencional da tradução da unidade política na unidade de
poder da assembleia.

0 chefe do estado (rei, imperador, presidente da república) pode


governar directamente; ou pode governar com a colaboração de outro
órgão, seja um órgão colegial, o governo, seja um órgão singular que
neste caso se chama chanceler. cabe então contrapor sistema de
governo imediato pelo chefe de estado a sistema de governo -
monarquico ou representativo - de chanceler.

os exemplos mais típicos e importantes de monarquia limitada dão-nos


os estados alemães do século xix; e eram também governos de
chanceler. já com monarquia simplesmente representativa, em regra,
não há chanceler; na frança napoleónica, o imperador era, ao mesmo
tempo, chefe do estado e chefe do governo. com república
simplesmente representativa, pelo contrário, tanto pode haver governo
directo pelo presidente da república como governo mediato, através de
chanceler; e foi este o caso, como se sabe, da constituição portuguesa
de 1933, do regime do ”estado novo”.

128

0 sistema de governo convencional é o sistema de governo com


concentração de poderes numa assembleia; e tira o seu nome da
convenção existente em frança entre 1792 e 1795. É o sistema de
governo correspondente à forma de governo jacobina e, sob certa
perspectiva, é também o sistema em que se traduz a forma de governo
leninista (embora este ponto seja duvidoso).

na frança revolucionária há uma só assembleia de comissários (não de


representantes do povo, em sentido estrito). na rússia revolucionária,
diferentes assembleias - os sovietes de operários, soldados e
camponeses - em moldes de organização vertical de poderes. esta uma
diferença sensível entre o constitucionalismo jacobino e o soviético. mas
parece que bem que mais importante do que ela é a diferença que
decorre do domínio das assembleias por um partido ideológico leninista
(só que esta diferença releva não tanto do sistema de governo quanto,
como vimos, da forma de governo).

111 - quanto aos sistemas de governo com desconcentração de


poderes, aos sistemas de governo baseados num princípio de separação
de poderes, eles são quatro:

1 0 sistema parlamentar;
2.’ - 0 sistema presidencial;
3.’ - 0 sistema directorial;

4.’ - 0 sistema semiparlamentar.


129
no sistema parlamentar, o governo assenta na confiança política do
parlamento, é uma emanação da maioria parlamentar, é responsável
politicamente perante o parlamento, e este pode ser dissolvido pelo
chefe do estado. tal 0 conceito geral; mas a concretização política
assume formas extraordinariamente diferentes; e as próprias formas
jurídicas podem variar extraordinariamente, desde o parlamentarismo
clássico ao chamado parlamentarismo racionalizado.

o sistema de governo presidencial e o sistema de governo directorial


assentam ambos, ao invés, na independência recíproca, quanto à
subsistência dos titulares, do órgão de poder executivo e do órgão de
poder legislativo. nem o primeiro responde politicamente perante o
segundo, nem a assembleia pode ser dissolvida em caso algum. a
diferença jurídica -porque política e historicamente consiste em muito
mais que isso - entre governos presidenciais e directorial está,
essencialmente, em que no governo presidencial o órgão de poder
executivo é singular, um presidente da república, e no governo
directorial é um órgão colegial restrito, um directório ou um conselho.

0 sistema presidencial diz-se, por seu turno, perfeito, quando o único


órgão constitucional do poder executivo e o presidente, apenas
coadjuvado por certos colaboradores; e diz-se imperfeito, quando a
constituição prevê a existência de ministros com poderes próprios, ainda
que totalmente dependentes do presidente. a primeira hipótese é a dos
estados unidos, a segunda de alguns países da américa latina.

130

em sistema parlamentar, há três órgãos políticos - o chefe do estado (rei


ou presidente), o parlamento e o governo - mas o chefe do estado ou é
puramente simbólico ou as suas competências são muito reduzidas ou,
para se exercerem, carecem de referenda ministerial. em sistema
presidencial e em sistema directorial, há dois órgãos, o parlamento e o
presidente ou o colégio directorial. em sistema semiparlamentar, são
três os órgãos políticos activos -não só o parlamento e o governo como o
chefe do estado. nesta existência de um terceiro centro autónomo de
poder está o cerne da categoria do sistema semiparlamentar, ainda que
o conteúdo desse poder varia bastante: pode suceder que o governo
seja tanto responsável politicamente perante o chefe do estado como
perante o parlamento, e pode suceder que a intervenção do chefe do
estado seja mais na linha do ”poder moderador”.

0 sistema juridicamente semiparlamentar tem duas manifestações


históricas. no século xix, é a monarquia orleanista (de luís filipe de
orleães) ou monarquia constitucional de relativo equilíbrio entre o rei e o
parlamento, a meio caminho entre a monarquia limitada e a monarquia
parlamentar. no século xx, em república, e o semipresidencialismo - ou
melhor, os semipresidencialismos (tão variados eles são, em resposta a
problemas políticos bem diversos).

iv - 0 esquema classificatório dos sistemas de governo, do prisma


jurídico, é, por conseguinte, este:

131
sistemas de concentração de poder:

1 - monarquia limitada

2 - sistema representativo simples (monarquia ou república) a - governo


imediato do chefe do estado

b - governo de chanceler

3 - sistema convencional

- sistema convencional jacobino


- sistema soviético.

sistema de desconcentração de poder:

- sistema parlamentar

- sistema presidencial perfeito

imperfeito

- (independência recíproca dos órgãos políticos)

sistema directorial

sistema semiparlamentar orleanista

semipresidencial.

27. a perspectiva política

1 - uma tipologia estritamente política dos sistemas de governo afasta,


primeiro, os critérios jurídico-formais de diferenciação ou de
relacionação e, em segundo lugar, privilegia os factores de formação,
desenvolvimento e prática das instituições.

132

11 - deste prisma, os sistemas de concentração de poder modernos são,


não já de três, mas sim de seis tipos:

1.2 - monarquia limitada, com governo imediato pelo rei;

2.2 - monarquia cesarista;


3.2 - república simplesmente representativa imediata;

4.9 - governo de chanceler;

5.2 - governo jacobino;

6.2 - governo soviético.

e são também seis os sistemas de desconcentração de poder:

1.2 - governo parlamentar de gabinete;

2.9 - governo parlamentar de assembleia;

3.l> - governo presidencial;

4.2 - governo directorial;

5 .`- governo orleanista;

6.9 - governo semipresidencial.

eventualmente (se não couber dentro do sistema parlamentar de


gabinete) poderá acrescentar-se o parlamentarismo racionalizado.

133
111 - a diferença entre sistemas de governo parlamentar de gabinete
e sistema de governo parlamentar de assembleia decorre,
exclusivamente, de condições extrínsecas às normas constitucionais de
repartição de competências. decorre do sistema eleitoral e do sistema
de partidos.

0 sistema parlamentar de gabinete é o de matriz britânica, traduz-se em


governos de legislatura e exige dissolução do parlamento sempre que o
governo é por ele derrubado. 0 sistema parlamentar da assembleia é o
de matriz francesa, traduz-se em maior dependência efectiva do
governo do parlamento e admite sucessão de governos durante a
mesma legislatura.

0 chamado sistema parlamentar racionalizado’ baseia-se na definição


de regras jurídicas capazes de propiciarem estabilidade ministerial,
numa tentativa de adaptação do esquema fundamental de
funcionamento do sistema britânico a outros países (como a alemanha
ou a espanha desde a constituição de 1978). a sua regra mais conhecida
é a da moção de censura construtiva.

28. os tipos de governo com interferÊncia militar

1 - tem ainda interesse - em plano totalmente diverso dos até aqui


adoptados - referir os tipos ou graus de interferência ou parti-

1. adoptando a célebre expressão de mirk1ne-guetzevitch da


”racionalização do poder”.

134

cipação das forças armadas no processo político (porque tal se tem


verificado com grande frequência um pouco por toda a parte, salvo nos
países anglo-saxórticos e na europa setentrional), com a sua
consequente projecção nos regimes políticos mais ou menos
caracterizados a que corresponderal.

olhando para a experiência dos últimos dois séculos, talvez se possa


propor a consideração de quatro grandes tipos: governos puramente
militares, governos militares ideológicos, governos de base militar e
governos de vigilância militar.

11 - assim:

1) governos puramente militares ou ditaduras militares em


sentido restrito, em que as forças armadas conquistam o poder com
certos objectivos - geralmente negativos em relação ao governo
derrubado, sendo o mais frequente a reposição ou ”restabelecimento da
ordem” - e, logo que esgotados estes objectivos, se propõem ou dizem
propor-se voltar à normalidade constitucional (nova ou antiga).

2) governos militares ideológicos ou ditaduras militares


indirectas, em que as forças armadas têm objectivos positivos,

1. cfr., sobre portugal, numa ampla visão cultural, eduardo lourenÇo, os


militares e o poder, lisboa, 1975.

135
projectos políticos próprios, mas realizam-nos através de um governo
misto ou formalmente civil, ainda que presidido, quase sempre, por um
militar.

estes sistemas compreendem uma grande variedade, em função dos


diferentes condicionalismos sócio-económicos, de classe e de ideologia
dominante.

podem apontar-se historicamente quatro grandes subtipos:

a) bonapartismo ou governo cesarista de estabilização


pósrevolucionária;

b) kemalismo (de kemal ataturk) ou governo militar de modernização e


libertação nacional e de que, ao cabo e ao resto, talvez não se afastam
muito o nasserismo, a via argelina de 1976 e a via peruana de 1968;

c) franquismo ou variante militar do fascismo ou de regimes


autoritários de direita;

d) peronismo ou variante militar do populismo de certa época latino-


americana.

3) governos de base militar, em que as forças armadas já não


governam, mas são o sustentáculo indispensável dos regimes e, assim,
estes entram em compromissos com elas para se conservarem no poder.
trata-se de regimes autoritários ou totalitários,
136

nuns casos provenientes, a médio prazo, de revoluções militares (como


sucedeu com o salazarismo), noutros casos ligados a revoluções
políticas e sociais (como foi o regime soviético, apoiado no exército
vermelho), noutros casos, ainda, saídos de guerras de libertação
nacional (como foram alguns dos regimes africanos, com os exércitos de
libertação a ocuparem um importante lugar na vida dos respectivos
países).

4) governos de vigilância militar, em que as instituições políticas


civis, geralmente, ou por definição, democráticas, funcionam por si, mas
em que as forças armadas não estão completamente de fora do
processo político que garantem ou fiscalizam com vista à consecução de
certas finalidades mínimas. foi esta a situação da turquia após a
revolução de 1960 e após 1980, a de portugal entre 1976 e 1982, e
tem-no sido também a de alguns países da américa latina em certas
épocas’.
1 cfr. a tipologia de hermann oelhing, la funcián politica del ejercito,
trad., madrid, 1967, págs. 279 e segs. distingue (pág. 295) sistemas
mistos, militares e de cooperação. nos primeiros, o exército conserva os
instrumentos do poder e a vontade de os utilizar, mas admite a
participação de civis em tarefas do governo; nos segundos, o governo e
a administração são exercidos inteiramente por militares; nos terceiros,
o exército tem uma margem de intervenção real e compartilhada em
face da situação jurídico-política do país.

137
titulo 11

a democracia representativa
capítulo 1

principios e problemas

gerais
29. democracia e soberania do povo

1 - por democracia entende-se a forma política em que o poder é


atribuído ao povo e em que é exercido de harmonia com a vontade
expressa pelo conjunto dos cidadãos titulares de direitos políticos.

não é simplesmente titularidade do poder no povo ou reconhecimento


ao povo da origem da soberania. não basta-declarar que o poder em
abstracto pertence ao povo, ou que já lhe pertenceu num momento
pretérito e que ele o exerceu de uma vez para sempre - de onde uma
legitimidade de tipo democrático. nem que o poder constituinte, a
aprovação da constituição positiva,’ compete ao povo, ficando os
poderes constituídos para os govemantes.

democracia exige exercício do poder pelo povo, pelos cidadãos com


direitos políticos, em conjunto com os govemantes; e esse exercício
deve ser actual, e não potencial, deve traduzir a capacidade dos
cidadãos de formarem uma vontade política
143
autónoma perante os govemantes. democracia significa que a vontade
do povo, quando manifestada nas formas constitucionais, deve ser o
critério de acção dos govemantesl.

na democracia representativa - a democracia própria da época moderna


- o modo por excelência de o povo formar e manifestar a sua vontade (e,
portanto, o modo mais característico de participação política, insistimos)
torna-se a eleição. a sua prática não é aqui algo de secundário, nem fica
(a despeito de o ponto ser controverso) fora do estado; a eleição, e em
geral o sufrágio, é a forma por que os cidadãos exercem o poder político,
a acrescer aquelas por que o exercem os govemantes.

11 - numa análise puramente forinal, sem dúvida o poder, a soberania,


não pode ser senão um poder do estado, tal como (mas por maioria de
razão) o povo e o territorio so são povo e território dentro do estado. 0
poder não será o mesmo que o estado, mas somente o estado tem
poder ou soberania (soberania pessoal e soberania territorial).

1. cf. carlo esposito (ia costituzione italiana, pádua, 1954, pág. 10): o
conteúdo da democracia não é que o povo constitua a fonte histórica ou
ideal do poder, mas que ele tenha o poder; não que ele tenha só o poder
constituinte, mas que lhe pertençam poderes constituídos; não que ele
tenha a soberania nua, mas sim o exercício da soberania.

144

a doutrina clássica alemã da soberania do estado continua válida, desde


que assim entendida: a soberania é do estado como entidade jurídica
global e complexa, e não dos órgãos do estado, nem dos titulares dos
órgãos, nem do povo, porque ligá-la aos órgãos - meros centros
institucionalizados de formação da vontade - ou aos govemantes ou aos
governados - indivíduos atomisticamente considerados - representa
fraccioná-la em visão unilateral’.

se se conceber o estado como su eito de direito, como pessoa i colectiva


de direito interno e de direito internacional, melhor se apreenderá ainda
esta inserção da soberania na sua estrutura.

olhando ao direito interno, a soberania surge como um feixe de


faculdades ou direitos que o estado exerce relativamente a todos os
indivíduos e a todas as pessoas colectivas de direito público e privado
existentes dentro do seu ordenamento jurídico. a regu-,- lam.entação
dessas pessoas, a atribuição da capacidade de direitos, a imposição de
deveres e de sujeições, eis então algumas das manifestações do poder
político.
0 povo não é, porém, objecto da soberania. configurado o estado como
pessoa colectiva, o povo ou colectividade de cidadãos tem de ser, antes,
o substrato de tal pessoa jurídica. apenas cada indivíduo ou cada uma
das instituições em que os indivíduos

1. v. jellinek, op. cit., pags. 327 e segs.

145
se incorporam podem ser objecto de direitos compreendidos na
soberania ou, mais rigorosamente, sujeitos de relações jurídicas com o
estado.

ai o de análogo se passa na ordem externa. soberania aqui


9

equivale ou à própria subjectividade ou personalidade de direito


internacional do estado ou à capacidade plena de gozo e de exercícios
dos direitos con feridas pelas normas internacionais. um estado diz-se
soberano, como se sabe, quando pode manter relações jurídico-
internacionais ou, em sentido mais restrito, quando tem a totalidade
daqueles direitos e, assim, participa em igualdade com os demais
estados na comunidade internacional.

111 - 0 que acaba de ser recordado não esgota o exame do poder no


estado, porquanto logo se vê que é imprescindível definir as posições
relativas dos governantes e do povo perante ele.

0 ponto de clivagem fundamental de todas as formas de governo está


nisto. ou os govemantes (certo ou certos indivíduos) governam em nome
próprio, por virtude de um direito que a cons-
1

tituição lhes reserva , sem nenhuma interferência dos restantes


cidadãos na sua escolha ou nos seus actos de govemantes. ou os
govemantes governam em nome do povo, por virtude de uma

1. o mais das vezes, uma constituição em sentido institucional e não


verdadeira constituição em sentido material.

146

investidura que a constituição estabelece a partir do povo, e o povo tem


a possibilidade de manifestar uma vontade jurídica e politicamente
eficaz sobre eles e sobre a actividade que conduzem.

no primeiro caso, estamos diante de autocracia (em diferentes


concretizações históricas, a que correspondem também diversas formas
de governo). no segundo caso, diante da democracia.

poderá talvez atalhar-se que esta distinção não deixa de ser ainda
excessivamente formal. a objecção, porém, não procede, porque, para
qualificar qualquer sistema político não basta ler as proclamações
constitucionais, importa confrontá-las com as consequencias que o
direito, decretado e vivido, extrai das mesmas; e se se recorrer a uma
investigação interdisciplinar para se procurar o suporte real do poder
(chefe do estado, governo ou parlamento, órgãos formais ou partidos,
govemantes ou classes dominantes, etc.), haverá sempre aí que concluir
pela coincidência ou não coincidência do efectivo exercício do poder
com o título jurídico da sua atribuição ou não ao povo

1. 0 que não impede de reconhecer que sociologicamente o poder se


fixa nos governantes, nos seguintes aspectos: são eles que tomam, de
facto, as decisões ou quase todas as decisões políticas; são eles que,
dando impulso unificado à vida colectiva, marcam cada período
histórico; são eles que directamente beneficiam do seu exercício (seja
qual for o beneficio - honrarias, vantagens económicas, realização
pessoal, influência sobre os outros homens, etc.).

147
iv - para designar o princípio democrático, a revolução francesa lançou as locuções
”soberania do povo” e ”soberania nacional”, as quais persistem ainda em numerosas
constituições, na linguagem doutrinal e na prática política’.

trata-se de uma réplica ou de uma importação do conceito de soberania do príncipe


ostentado pelas monarquias absolutas. À ideia de que os reis eram soberanos nos seus
estados, de que não deviam obediência a ninguém, de que eram até superiores a todas
as leis, substituiu-se a ideia de que o povo era o único soberano, de que toda a
autoridade dele dimanava e que a lei devia ser a expressão da sua vontade. como tem
sido tantas vezes acentuado: ao direito divino dos reis sucedeu o direito divino dos
povos.

1. cfr., entre tantos, edmond velley, ”la souveraineté national&’, in revue de droit
public, 1904, págs. 5 e segs.; Émile boutmy, ”À propos de ia souveraineté du peuple”,
in Études polítiques, paris, 1907, págs. 31 e segs.; maurice hauriou, la souveraineté
nationale, paris, 1912; a. esmein, Éléments de droit constitutionnelfrancais et
comparé, v ed., 1, paris, 1921, págs. 284 e segs.; vezio crisafulli, ”la sovranità popolare
nella costituzione italiana”, in scritti giuridici in memoria di v.e. orlando, obra colectiva,
1, pádua, 1957, págs. 409 e segs.; emilio crosa, ”variazioni su un tema di v.e. orlando”,
ibidem, págs. 479 e segs.; le mong nguy1en, ”contribution à ia théorie de ia
constitution souveraine par le peuple”, in revue du droit public, 197 1, págs. 923 e
segs.; costantino mortati, ”la costituente”, in scritti, 1, milão, 1972, págs. 73 e segs.;
antonio pÉrez luf40, «aproximación analitico-linguistica al términe ”soberania
popular”», in derecho y soberania popular - anales de la catedra francisco suarez
(universidad de granada), n.2 16, 1976, págs. 137 e segs.; martin krielle, introducción
a la teoria del estado, trad., buenos aires, 1980, págs. 315 e segs.; guillaume bacot,
carré de malberg et vorigine de la distinction entre souveraineté du peuple et
souveraineté nationale, paris, 1985.
148

se se analisarem um pouco mais em pormenor essas expressões, ver-se-á quanto elas


tem de incorrecto, de equívoco ou mesmo de perigoso (na lógica da própria concepção
democrática).

com efeito, se a certa altura, no moderno estado europeu, se pôde afirmar que os reis
eram soberanos foi apenas porque eram os orgãos unicos ou supremos de estados que
já não dependiam do papa ou do sacro império, nem se compadeciam com autoridades
feudais. É sabido que, aproveitando a identificação entre poder central e poder real, os
teóricos do absolutismo dos séculos xvi a xv111 quiseram ir mais além e afirmar uma
soberania sem limites jurídicos. mas isso mais não era que um desvio, de que nem
sempre se aperceberam os políticos e juristas quando supuseram transferir a soberania
dos govemantes para o povo.

por isso, não pode entender-se, apesar da apontada transposição, que a soberania do
povo deva ser ilimitada, sob pena de se abrir a porta à democracia absoluta. pois esta,
nas suas principais concretizações conhecidas oacobina, cesarista e soviética),
encontra-se nos antípodas dos princípios enformadores da democracia representativa,
por ser tão negadora como a monarquia absoluta das liberdades individuais e
institucionais e tão contrária como ela aos processos jurídicos de limitação do poder
político que o constitucionalismo se esforçou por instituir.

por outro lado, tomar a soberania do povo no sentido de supremacia do povo no estado
tem de ser entendido em termos hábeis. se tal supremacia significa a necessidade de
os govemantes serem da
149
confiança política do povo que os elege, e se significa mesmo que ao
povo incumbe (ou deve incumbir) o poder de tomar certas decisões mais
transcendentes para a vida colectiva através de ou referendo, nenhuma
ob ecção há a fazer. se soberania ou supremacia do povo j

significa, porém, superintendência sobre os governantes e contínua


subordinação destes às injunções dos eleitores, então ela é desmentida
pelas instituições e pela prática da democracia representativa que,
rejeitando o mandato imperativo e procurando assegurar um mínimo de
estabilidade governativa, impede os cidadãos de determinar (salvo em
caso de referendo) actos em concreto dos governantes.

v - acrescente-se que as expressões soberania do povo ou da nação


podem revelar-se perturbadoras por se prestarem a interpretacões
insustentáveis ou ambíguas.

em primeiro lugar, poderia julgar-se que há uma soberania da nação ou


uma soberania da sociedade a par da soberania do estado. algumas
correntes doutrinais e ideológicas efectivamente chegaram a defendê-lo.
ora, o dualismo entre estado e nação, no plano jurídico-político, tem de
ser rejeitado, por a colectividade humana, seja ela qual for,
correspondente ao estado só - pode ganhar expressão política
através do mesmo estado’.

não resolve a dificuldade acentuar, como faz a ideologia do nacionalismo


político, que a nação é sobretudo uma comunidade

1. cfr. manual de direito constitucional, 111, 3.! ed., coimbra, 1994,


págs. 50

e segs.

150

transtemporal, de cujos fins, valores e interesses não são senhoras as


gerações actuais, pois vêm do passado e estão virados para o futuro.
ainda que assim seja, na verdade, não se descortina como pode essa
comunidade transtemporal ter outra projecção política que não seja no
estado e como pode haver outra vontade juridicamente relevante que
não seja a dos governantes e dos cidadãos, a de um povo de homens
vivos e actuais.

em segundo lugar, no constitucionalismo francês, soberania nacional e


soberania popular possuem significações muito diversas e que não
devem ser arbitrariamente confundidas. soberania nacional é a
soberania do povo (ou nação, no sentido revolucionário de 1789) como
comunidade ou totalidade orgânica, o que implica a atribuição do poder
à colectividade e não a cada um dos seus membros. pelo contrário,
soberania popular significa a atribuição do poder ao povo visto
atomisticamente em cada um dos cidadãos, de tal modo que cada
cidadão tem uma parcela do poder político (defímida pelo conjunto dos
seus direitos políticos).

a doutrina da soberania nacional entronca na tradição que, da idade


média a suarez, se prolonga mais ou menos conscientemente na
filosofia política ocidental. foi ela que prevaleceu nas revoluções
americana e francesa e foi a que teve se traduziu na construção jurídica
e política do estado constitucional. a doutrina de soberania popular
deriva das teses do contrato social de rousseau1 e apenas triunfou em
1793.

1 . v. du contrat social, de novo capítulo i do livro iii.

151
vi - a despeito de todas estas observações e advertências, as
constituições directa ou indirectamente influenciadas pelo
constitucionalismo francês têm falado e continuam a falar em
soberania do povo, soberania da nação, soberania popular,
soberania nacional. mas as expressões não podem deixar de ser
interpretadas nos respectivos contextos sistemáticos (assim, nos arts.
2.2 e
3.9 da actual constituição portuguesa, no contexto do estado de direito
democrático).

30. 0 princípio do sufrÁgio

1 - dos diversos institutos de participação cívica é o sufrágio o único


capaz de proporcionar a formação e a manifestação de uma vontade
unitária e o mais eficaz meio de o povo agir sobre os govemantes.

0 carácter mais específico do sufrágio acha-se na forma por que é


exercido. sempre que há eleição - ou referendo - todos os cidadãos com
esse direito são chamados a usá-lol - assim, a eleição ou o referendo é
forçosamente geral, ainda quando de âmbito local; e são chamados a
intervir simultaneamente num mesmo acto ou pluraiidade de actos
jurídicos. trata-se, portanto, de um direito político que, ao contrário da
petição, da acção popular ou mesmo da iniciativa popular, é de
exercício conjunto por todos os seus titulares.

1. haja ou não o dever jurídico de votar, o que é bem diferente.

152

daí que se exprima sempre por um resultado global, embora possa


analisar-se em resultados parciais. cada cidadão vota por si, segundo a
sua situação e as suas aspirações, mas o seu voto somente tem valor
somado aos dos restantes eleitores’ e enquanto exibe uma posição do
conjunto dos eleitores ou de parte considerável destes.

a eleição democrática distingue-se ainda de quaisquer outros modos de


intervenção dos cidadãos na vida pública por uma nota: a periodicidade.
na monarquia (ou na aristocracia) electiva, a eleição vale, de ordinário,
por toda a vida do eleito. pelo contrário, onde quer que se reflicta o
princípio democrático, a eleição dá-se sempre por períodos mais ou
menos curtos, de maneira a garantir a renovação da escolha popular e a
própria renovação ou rotação dos titulares dos cargos políticos.

11 - os cidadãos que possuem a faculdade de participação política


através do sufrágio como que assumem a plenitude da sua condição de
membros do povo. 0 status activae civitatis é o grau mais elevado de
subjectivação da posição do indivíduo perante o estado.

2. por isso, a validade do acto de sufrágio não depende da validade do


voto de cada eleitor, mas da validade das operações que possam
afectar o resultado fmal.

153
por isso, os cidadãos com direito de voto denominam-se cidadãos
optimojure (na expressão romana) ou cidadãos activos (na expressão
devida, ao que parece, a sieyÈs); e o conjunto dos cidadãos activos
forma o povo activo.

mas diz-se também, numa acepção algo diversa, povo activo o povo em
que, não apenas uma minoria de pessoas, mas sim o maior número de
cidadãos possível tem acesso à vida política com o exercício do direito
de sufrágio’. a quantidade de cidadãos eleitores permite aqui qualificar a
situação da comunidade política’.

0 povo activo no segundo sentido (em que se olha ao complexo de todos


os cidadãos, activos e não activos) é à imagem do povo activo no
primeiro sentido (mera fracção daquele); será o que este for. e isso
porque - desde que o sufrágio funcione - são os titulares do sufrágio que
moldam a sociedade e o estado. 0 conceito burguês de povo conduz ao
sufrágio censitário, o conceito democrático ao sufrágio universal.

1. e haveria ainda que distinguir: cidadãos com direito de sufrágio,


cidadãos com direito de sufrágio inscritos no recenseamento eleitoral e
cidadãos inscritos que efectivamente exercem o suftágio. a
percentagem de qualquer destas categorias em relação ao número total
de cidadãos indica o estádio de participação política atingido no país.

2. num determinado povo pode faltar a atribuição do direito de sufrágio,


mas dar-se a atribuição dos outros direitos políticos (direitos políticos
menores), assim como pode acontecer que uns cidadãos tenham
direito de sufrágio e outros apenas os restantes.

154

de onde, a conhecida relação entre o princípio democrático e a extensão


do direito de sufrágio. declarado esse princípio, tomouse possível
reivindicar, dentro da sua lógica, alargamento a todos os cidadãos’; e
este não só altera a estrutura das instituições electivas como contribui
para o reforço dos seus poderes em face de outros órgãos. com sufrágio
directo e universal, haverá não já uma mera assembleia ou conselho
do governo, mas um verdadeiro parlamento; não j .à um chefe do
estado simbólico, mas um presidente da república com poderes
efectivos; etc.

de onde ainda, o papel do sufrágio nas grandes transformações sociais


ocorridas nos séculos xix e xx. ao passo que a participação política no
estado estamental (do alto e baixo clero, da nobreza, das universidades,
dos mosteiros, do povo dos concelhos ou comunas) se destinava,
essencialmente, a garantia da conservação de direitos e privilégios
adquiridos numa ordem social estática, a participação política realizada
através do sufrágio
- decerto não apenas por causa do sufrágio, também pelas
características dinâmicas dos novos tempos - mexe com todas as
estruturas do poder e da sociedade.

embora o referido alargamento do direito de voto

se tivesse feito não sem lutas e não sem mudanças de concepções


políticas e sociais, ele revelou-se um dos mais influentes meios de
promover reformas económicas e sociais, por terem obtido o sufrágio
aqueles

1. por isso, já alexis de tocqueville (de ia démocratie en amétique, 1,


183 5, na ed. de 195 1, pág. 90) considerava irresistivel a extensão do
sufrágio.
155
que as reclamavam, mas, do mesmo passo, ele mostrou ser
igualmente um veículo de integração desses mesmos homens
(os operários, as mulheres, os jovens e até os cidadãos de
territórios ultramarinos) na ordem política e social

111 - 0 sufrágio traduz-se, nas democracias modernas, na


eleição e no referendo. a eleição é a aplicação essencial, o
processo ordinário do sistema representativo. 0 referendo,
difundido apenas em alguns países e sobretudo no século xx,
não tem passado, mesmo aí, de processo acessório e
extraordinário.

É relativamente habitual pôr em contraste a eleição e o


referendo. todavia, uma análise mais aprofundada parece
aconselhar uma contraposição mais atenuada dos dois
institutos.

para além do diferente objecto imediato de um e outro (a


designação de titulares de órgãos e a deliberação ou a consulta
sobre problemas concretos, respectivamente), não são
despiciendos os elementos que os aproximam. nem a eleição é
apenas designação, nem o referendo decisão popular autónoma e
determinante da vida do estado, em tudo do mesmo gênero das
decisões de qualquer dos órgãos govemativos.

por uma banda, a eleição não se reduz à escolha dos candidatos mais
capazes ou mais aptos. É também a escolha de progra-

1. 0 mesmo tinha sucedido, salvas as devidas proporções, na república


romana.

156

mas e partidos em concorrencia e, por aí, a escolha da política que o


povo pretende que o país siga. não raro, aliás, a eleição geral realizada
em certas circunstâncias (vg., dissolução antecipada do parlamento por
causa de crise política) equipara-se substancialmente a acto de
referendo.

por outra banda, o referendo (em si mesmo, instituto de democracia


semidirecta) enxerta-se no sistema representativo sem lhe modificar a
raiz. apenas se limita, nuns casos, a corrigir o eventual afastamento da
política levada a cabo pelos govemantes relativamente às linhas
programáticas assentes em eleições gerais e, noutros casos, a inflecti-la
no sentido da vontade actual do eleitorado. como se realiza
esporadicamente e sobre problemas determinados, como sofre o
vigoroso influxo dos govemantes e como nele se formara maiorias
fluídas e variáveis, o referendo é mais um contrapeso a acrescer ao
aparelho político do que um mecanismo de direcção permanente da
vida do estado.

3 1. 0 princípio da maioria

1 - se o sufrágio é o modo de participação dos cidadãos, a maioria é o


critério de decisão - de decisão, quer do conjunto dos cidadãos, na
eleição e no referendo, quer dos órgãos do estado’.

1. sobre o princípio da maioria, cfr. kelsen, von wesen und wert der
demokratie, trad. fi-ancesa la démocratie - sa nature, sa valeur, paris,
1932, págs. 5 e segs. e 63 e segs.; henry b. mayo, an introduction to
democratic theory, nova iorque, 1960, págs. 67 e segs. e 166 e segs.;
rogÉrio soares, direito público e sociedade técnica, coimbra, 1969, pág.
72;
157
0 povo vota para eleger os seus representantes e elege-os na base de um princípio de
maioria (o que não inculca, de per si, um único sistema eleitoral stricto sensu), assim
como os eleitos, uma vez convertidos em governantes, decidem à pluralidade de votos,
por maioria.

john ravtls, atheory of justice, trad. uma teoria da justiça, brasília,


1981, págs. 258 e segs.; claude leclercq, le príncipe de la maiorité, paris, 197 1; g.
leibi1olz, 0 pensamento democrático como princípio estruturador na vida dos povos
europeus, trad., lisboa, 1974, pág. 29; carl cohen, democracy, trad. democracia, lisboa,
1975, págs. 89 e segs.; pierre favre, ”unanimité et majorité dans le contrat social de
jeanjacques rousseau”, in revue du droit public, 1976, págs. 111 e segs., e la décision
de majorité, paris, 1976; hans daui)t e douglas w. rae, ”social contract and the limits of
majority rule”, in democracy, consensus and social contract, obra colectiva editada por
pierre bimbaum, jack lively e gerant parry, londres, 1978, págs. 335 e segs.; barbosa
de melo, op. cit., págs. 21 e 23 e segs.; norberto bobbio, claus offe, e siro lombardini,
democrazia, maggioranza e minoranze, bolonha, 1981; joÃo baptista machado,
participação e descentralização, democratização e neutralidade na constituição,
coimbra, 1982, págs. 70 e segs.; giuseppe tripoli, ”osservazioni sul principio
maggioritario e sui iiinit’, in rivista internazionale di filosofia del diritto, 1983, págs. 619
e segs.; elaine spitz, majority rule, nova j6rsia, 1984; francesco galgano, ”principio di
maggioranzá”, in enciclopedia del diritto, xxxv, 1986, págs.
547 e segs.; gomes canotilho, direito constitucional, 6. ed., coimbra,
1993, págs. 456 e segs.; alessandro p2zorusso, minoranze e maggioranze, turim, 1993;
josÉ de sousa e brito, jurisdição constitucional e princípio democrático, in legitimidade
e legitimação da justiça constitucional, obra colectiva, lisboa, 1995, págs. 46-47;
augusto cerri, riflessioni giuridiche sul cosidetto paradosso della ”maggioranze cicliche,
in rivista trimestrale di diritto publico, 1991, págs. 3 e segs.; f. rubio llorente, minorias y
mayorias en el poder constituyente, in anuario de derecho constitucional y
parlamentar, 199 1, n.9 3, págs. 31 e segs.

158

11 - 0 princípio encontra-se consagrado, na constituição portuguesa, por forma


expressa: relativamente à eleição de titulares de órgãos colegiais e singulares (arts.
117.9, n.os 1 e 2, e l29.» e relativamente às deliberações dos órgãos colegiais (art.
119.2, n.2 3).

111 - por que motivo deve ser a maioria o critério da democracia? por que devem
governar os que recebem mais votos? por que deve ser a lei a expressão da
maioria?

não é pacífica a resposta. há quem sustente que se trata de simples ficção ou


convenção jurídica, de mera regra técnica ou instrumental. assim como há quem
afirme que lhe subjaz um princípio substantivo ou axiológico, seja o princípio da
igualdade, seja o princípio da liberdade, seja ainda (porventura) um princípio diverso.

de acordo com a ideia de igualdade (que remonta a rousseau e, de certo modo, a


aristóteles), é porque todos os cidadãos têm os mesmos direitos e o mesmo grau de
participação na vida pública que deve prevalecer a maioria; a vontade política do
maior número entre iguais converte-se em vontade geral; e esta fica sendo
juridicamente imputada ao estado.

de acordo com a ideia de liberdade (sobretudo enfatizada por kelsen), a maioria resulta
da autodeterminação dos membros da comunidade política; qualquer decisão imposta
deve ser reduzida
159
ao mínimo; tendo de haver uma ordem social, esta não pode estar em
contradição senão com a vontade do menor número possível de indivíduos’.

quanto a nós, entendemos que a regra da maioria tem de assentar num


fundamento axiológic02: sem ele não se explicam nem o consentimento, nem
a própria obrigatoriedade da decisão decorrente do voto. e entendemos que
ele se encontra na conjugação da igualdade e da liberdade. não uma
presunção puramente negativa, de que ninguém conta mais do que os outros’,
mas o reconhecimento da dignidade cívica de todos os homens. não uma
liberdade com separação de uns dos outros, mas. uma liberdade com
integração numa sociedade de todos.

em suma, a regra d a maioria é um corolário ou uma exigencia de uma


igualdade livre ou de uma liberdade igual para todos.

iv - a maioria, naturalmente, não é critério de verdade, é apenas critério de


acção. tem por objecto decisões políticas, não decisões de foro não político4.
nem sequer todas as matérias

1. la democratie .... cit., págs. 5 e 8.

2. contra, bobbio, democrazia .... cit., págs. 41 e segs.


3. como diz criticamente kelsen, op.cit., pág. 8.

4. para estudo da problemática dos limites do poder constituinte e do poder de


revisão, v. manual de direito constitucional, 11, 3. ed., coimbra, 1991, págs.
105 e segs. e 175 e segs.

160

políticas a ela estão sujeitas, porque a maioria não pode afectar limites
transcendentes do poder político e, por maioria de razão, limites do poder
político democrático; e, além disso, há casos em que a regra da maioria não se
afigura suficiente, ou suficientemente adequada.

a maioria não é critério de verdade. não há, nem deixa de haver verdade nesta
ou naquela opção política; há só (ou tem de se pressupor que haja) referência
ao’bem comum. pelo contrário, quando se suscitem problemas de verdade,
sejam quais forem
- religiosos, morais, filosóficos, e até científicos ou técnicos - não cabe decisão
por maioria.

a decisão por maioria versa sobre quaisquer questões políticas, inclusive as


que se reportam à estrutura do regime e do estado - abrangendo, portanto, as
que se prendem com limites de revisão constitucional e com alguns dos limites
imanentes do poder constituinte (originário)’.

1. 0 que pode acontecer é, para decisões sobre estas questões e sobre outras
de maior relevância (entre as quais as decisões irreversíveis - v.g. as que
afectam a independência nacional ou o património cultural e natural),
requererem-se maiorias agravadas ou qualificadas. isso depende, porém, de
cada direito constitucional positivo.

algo de semelhante se verifica nas hipóteses em que a maioria cede perante o


exercício de um poder de veto (de um pouvoir dempêcher).

161
de fora têm, contudo, de ficar os limites transcendentes do
poder constituinte, como sejam os respeitantes aos mais
fundamentais dos direitos fundamentais (direito à vida e à
integridade pessoal e outros constantes do art. 19.2, n.2 6, da
constituição); e os limites imanentes traduzidos no pluralismo e
na existência da oposição. para que a democracia subsista a
maioria não pode pôr em causa os direitos das minorias.

por último, na sociedade complexa e plural dos nossos dias, nem


sempre a decisão de maioria tem força suficiente para se impor
ou se mostra idónea para a prossecução dos objectivos
comunitários. designadamente em questões atinentes a
salários, outros rendimentos e preços, a tendência é para a
complementar ou até para a substituir por métodos contratuais:
é a chamada concertação social no domínio das relações colectivas
de trabalho e de outras relações2.

1. por isso, escreve kelsen (op. cit., págs. 65 e segs.): no princípio


maioritário, o fulcro não reside na maiona numenca, mas na força de
integração social; e seria até preferível falar em princípio maioritário-
minoritário, porque a democracia parlamentar, ao organizar os
indivíduos em dois campos (maioria e minoria), toma possível um
compromisso na formação da vontade geral.

e, como nota joÃo baptista i-v1achado (participação .... cit., pág.


73), quando se não limita o âmbito do poder político da maioria (a nível
estatal), limita-se, necessariamente, a liberdade ou o poder de todos os
cidadãos, do povo em geral e, portanto, do titular da soberania.

2. cfr., por todos, bobbio, contratto sociale, oggi, nápoles, 1980; ou


barbosa de nelo, ”introdução às formas de concertação sociar’, in
boletim da faculdade de direito da universidade de coimbra, 1983, págs.
18 e segs.
162

v - a efectivação do princípio da maioria implica a obs,ervância de


regras processuais ou procedimentais.

não vale qualquer vontade maioritária, somente vale a que se forma e


manifesta no respeito das normas - constitucionais, regimentais,
estatutárias, legais - que regulam o processo de tomada de decisão. de
onde, limites formais ou procedimentais a acrescer aos limites materiais.

vi - tudo quanto assim se diz está pensado para a democracia e para a


esfera do político. mas a regra da maioria não se esgota (nem nasceu)
na democracia e na esfera do político.
em qualquer sistema não monárquico - por exemplo, numa república
aristocrática - assim como em qualquer comunidade religiosa e em
qualquer associação privada ou em qualquer sociedade comercial, as
decisões tem de ser tomadas à pluralidade de votos. salvo o consenso
ou, a título excepcional, sorteio, a vontade correspondente a qualquer
colégio ou assembleia é a vontade da maioria que aí se manifesta, de
harmonia com as respectivas normas jurídicas.

a estas situações aplicam-se mutatis mutandis quer a fundamentação,


quer os limites próprios de um processo democrático. a diferença está
em que, em democracia, a liberdade e a igualdade são de todos os
cidadãos, e não uma liberdade e uma igualdade
163
aristocrática, ou entre irmãos da mesma comunidade, ou entre privados. ou
seja: se a democracia envolve princípio da maioria, é muito mais do que
princípio da maioria.

32. democracia e principio republicano

1 - salientou-se atrás que a contraposição entre monarquia e república no


século xx deixou de se situar, na europa e na quase totalidade do resto do
mundo, no campo das formas de governo para, quando muito, se deslocar para
o das formas institucionais. tanto são democracias representativas hoje a
grã-bretanha ou a espanha como a frança ou portugal.

não quer isto dizer que a divergência entre uma ou outra seja de natureza
afectiva ou simbólica, que apenas tenha que ver com tradições de cultura
política ou com efeitos de imagem interna ou externa decorrentes da
instituição de chefia do estado ou de outras conexas. ela também acarreta
consequências importantes a nível de sistema de governo, conforme se
depreende do quadro classificatório exposto no capítulo anterior.

a subsistência da coroa, com efeito, evita o contraditório político à volta do


chefe do estado, dispensando, por definição, a realização de eleições para o
cargo. em contrapartida, reduz o leque possível de sistemas de governo,
porque, obviamente, não sendo admissivel atribuir ao rei em monarquia
constitucional

164

sujeita ao princípio democrático uma função de impulsão política, o único


sistema de governo com ela compatível é o parlamentar: a república pode ser
presidencial, parlamentar, directorial, semipresidencial; a monarquia só pode
ser parlamentar.

e, por aqui também mais uma vez se confirma o interesse das distinções
conceituais enunciadas desde o início.

11 - para além deste aspecto, pode ainda, contudo, encarar-se a república


numa perspectiva algo diversa - na perspectiva de uma democracia mais
exigente e qualificada. sendo nela o poder do povo e constituindo o povo
cidadãos livres e iguais, procura-se levar esta ideia até ao fim, em total
coerência. pois, se a proscrição da hereditariedade se justifica por isso, então
outras consequências poderão e deverão estar-lhe ligadas, em nome do
mesmo princípio
- do princípio repubficano.

não se trata apenas de eleger, e de eleger periodicamente; trata-se de eleger


todos os titulares de todos os órgãos políticos; e trata-se também, desde
logo, de banir quaisquer desigualdades, designadamente quaisquer privilégios
de nascimento. não se trata apenas de eleger, directa ou indirectamente, o
chefe do estado; trata-se ainda de qualquer cidadão activo poder vir a ser
eleito e de poder vir a ascender a qualquer magistratura.
1. neste sentido, marcello caetano, manual de ciência política e direito
constitucional, 6. ed., 11, lisboa, 1972, págs. 535 e 549.

165
111 - mas, mais, o princípio republicano postula:

a) a configuração de todos os cargos do estado, políticos e não políticos,


em termos de um estatuto jurídico, traduzido em situações funcionais, e
não em direitos subjectivos stricto sensu ou, muito menos, em
privilégios;

b) a temporariedade de todos os cargos do estado, políticos e não


políticos, electivos e não electivos;

c) consequentemente, a proibição quer de cargos hereditários, quer de


cargos vitalícios, quer mesmo de cargos de duração indeterminada;

d) a duração curta de cargos políticos;

e) a limitação da designação para novos mandatos (ou do número de


mandatos que a mesma pessoa pode exercer sucessivamente), devendo
entender-se a renovação assim propiciada tanto um meio de prevenir a
personalização e o abuso do poder como uma via para abrir as
respectivas magistraturas ao maior número de cidadãos 1, 2;

1. e ainda uma garantia de independência dos titulares dos órgãos,


porque a necessidade de, ao fim de certo tempo ou de certo
número de mandatos, regressarem à vida privada, impede ou atenua o
carreirismo político a sua dependência dos aparelhos político-
partidários.

2. quando sejam cargos jurisdicionais ou correspondentes a órgãos com


competências de fiscalização, poderá nem sequer permitir-se a
reconduÇão, mas, em contrapartida, a duração dos cargos ser
relativamente longa - uma e outra coisa para assegurar a independência
dos respectivos titulares.

166

f) após o exercício dos cargos, a não conservação ou a não atribuição


aos antigos titulares de direitos não conferidos aos cidadãos em
geral (e que redundariam em privilégios);

g) a não sucessão imediata no mesmo cargo do cônjuge ou de qualquer


parente ou afim mais próximo.

iv - a constituição portuguesa actual, além de vedar quaisquer


privilégios e discriminações em razão de ascendência (art.
13.2, n.9 2), contém o princípio da renovação, declarando que ”ffinguém
pode exercer a título vitalício qualquer cargo político de âmbito nacional,
regional ou local” (art. 121 q) 1, 2, 3.

todavia, o presidente da república é o único órgão em relação a cujos


titulares se estabelece uma cláusula de não reelegibilidade, não se
admitindo a reeleição para um terceiro mandato consecutivo, nem
durante o quinquénio imediatamente subsequente ao termo do segundo
mandato consecutivo (art. 126.2,

1. só há uma excepção, desde 1982: os antigos presidentes da república


eleitos na vigência da constituição e que não hajam renunciado ao cargo
fazem parte por inerência, sem limites, do conselho de estado (art.
145.q, alínea ffi.

2. na assembleia constituinte, tentou-se ir mais longe. 0 texto vindo da


5. comissão (e que retomámos no plenário) dizia: ”ninguém pode
exercer qualquer cargo político a nível nacional ou local por tempo
indeterminado ou por períodos ilimitadamente renováveis”. v. diário, n.2
109, reunião de 5 de fevereiro de 1976, págs. 3535 e segs.

3. cfr., sobre a república na constituição de 1976, gomes canotilho,


direito constitucional, cit., págs. 483 e segs.

167
n.2 l)i. significa isto que regra semelhante se não possa decretar ou
aplicar a titulares de outros órgãos do estado, das regiões autónomas e
do poder local?

0 ponto é algo duvidoso e postura negativa já foi adoptada pelo tribunal


constitucional. para equacionarmos o problema, importa distinguir
consoante o estatuto dos titulares dos órgãos consta ou não da
constituição12.

se se trata de .titulares de órgãos políticos do estado (assembleia da


república, governo, conselho de estado) e do tribunal constitucional, os
quais têm o seu estatuto no essencial definido pela constituição (porque
constituição da república, do estado)3 não parece possível fixar por lei
ordinária qualquer norma limitativa de reeleição ou de renomeação4.
pelo contrário, se se trata de titulares de outros órgãos do estado ou de
órgãos das regiões autónomas e do poder local, cujos estatutos constam
de lei ordinária, já essa solução poderá ser adoptada no âmbito
1da liberdade de conformação do legislador.

1. sobre a formação do art. 126y, v. direito da assembleia constituinte,


n.2 114, reunião de 4 de março de 1976, págs. 3765-3766.

2. acórdão ny 36419 1, de 31 de julho de 199 1, in diário da república, u


série-a, n.9 193, de 23 de agosto de 1991.

3. arts. 156.q a 161% a respeito dos deputados; art. 199.2, quanto aos
membros do governo; art. 146.2, quanto aos conselheiros de estado; art.
224.2, quanto aos juizes do tribunal constitucional.

4. embora de jure condendo tal pudesse ser aconselhável, em nome


ainda do princípio republicano (conforme propusemos no nosso projecto
de constituição, art. 259.2).

168

a constituição não a imporá, mas tão pouco a impedirá: não a impedirá -


desde que observados os critérios gerais de proporcionalidade -
enquanto lugar paralelo da norma sobre reeleição do presidente da
república e enquanto decorrência do princípio constitucional da
renovação.

nem procede contra este entendimento o regime das restrições de


direitos, liberdades e garantias, invocando-se que se estaria a abrir
caminho a restrições ao direito de eleger e ao de ser eleito (arts. 49..’ e
50.9) não previstas na lei fundamental (art. 18.o , n.’ 2). não seria
assim, primo, porque a restrição se fundaria, em última análise, em
norma constitucional - o referido princípio do art.
12 i.l> - e, depois, porque é o próprio art. 5 v, n.2 3, da constituição
(introduzido em 1989) que dispõe ”no acesso a cargos electivos a lei só
pode estabelecer as inelegibilidades necessárias para garantir a
liberdade de escolha dos eleitores e a isenção e independência
do exercício dos respectivos cargos”.

v -as constituições de 1911 e de 1933 tomavam inelegíveis para o cargo


de presidente da república ”as pessoas das famílias que reinaram em
portugal” (art. 40.9, alínea a) da primeira) ou
44 os parentes até ao 6.2 grau dos reis de portugal” (art. 74. da
segunda)’.

i. a constituição de 1911 ainda feria de inelegibilidade ---os parentes


consanguíneos ou afins, em 1.2 ou 2.2 grau, por direito civil, do
presidente que sai do cargo, mas só quanto à primeira eleição p-)sterior
a esta saída (art. 40.9, alínea b».

169
a constituição actual não encerra preceito análogo, por força (mais uma vez) do
princípio republicano - da igualdade. apenas circunstâncias históricas associadas à
recente proclamação da república poderão ter explicado os preceitos de 1911 e de
1933.

33. democracia representativa

e democracia participativa

1 - assim como o referendo não afecta o essencial da democracia representativa, tão


pouco a afecta aquilo a que se vem chamando (por exemplo, no art. 2.2, in fine da
constituição desde
1982) democracia pafflcipativa.

esta destina-se, sim, a complementá-la, a servir de estímulo crítico (contrariando até


certas tendências oligocráticas ou aristocratizantes dos govemantes, mesmo eleitos, e,
em geral, da classe política) ou a limitar o âmbito de decisão dos órgãos
representativos do poder político. só em alguns casos contados vai um pouco mais
além’ .

e no mesmo sentido, alargando a regra a todos os cargos politicos, iarn 0 art. 260.2 do
nosso projecto de constituição de 1975 e proposta que apresentámos (mas foi
rejeitada) na assembleia constituinte (v. diário, cit.).

1. cfr., além da bibliografia já citada sobre participação em geral, por exemplo, pier
luigi zampetti, ”demoerazia rappresentativa e democrazia partecipativa”, in studi in
memoria di carlo esposito, obra colectiva, iii, pádua,
1973, págs. 1473 e segs.; j.r. lucas, democracy and participation,

170

de resto, a democracia participativa encerra uma grande variedade de formas e


mecanismos ,entre os quais também formas e mecanismos próprios de
democracia representativa.

11 -0 nome democracia participativa antolha-se primafacie pleonástico, porquanto,


por definição, democracia implica exercício tanto dos direitos fundamentais de
liberdade quanto de direitos de participação política dos cidadãos (como os enunciados
no capítulo 11 do título 11 da parte 1 da constituição portuguesa)’.

londres, 1976; pietro ciarlo, ”la participazione dei lavoratori alla determinazione
dell’indirizzo político”, in rivista trimestrale di diritto e procedura civile, 1977, págs.
1648 e segs.; mario p. chiti, partecipazione popolare e pubblica amministrazione, pisa,
1977; gomes canotilho e vital moreira, constituição da república portuguesa anotada,
1. ed., coimbra, 1978, págs. 459 e segs.; jorge mi1lknda, a constituição de 1976 -
formação, estrutura, princípiosfundamentais, lisboa, 1978, págs.
459 e segs.; manuel sanchez moran, laparticipación del ciudadano en la administración
publica, madrid, 1980; jeanne lemasurier, ”vers une démocratie administrative: du
refus d’infonner au droit d’être informé”, in revue du droit public, 1980, págs. 1239 e
segs.; joÃo baptista machado, participação .... cit., págs. 69 e segs. e 95 e segs.; aryeh
botwinter e peter bachrach, ”democracy and scarcity - toward a theory of participatory
democracy”, in international political science review, 1983, pags. 361 e segs.; citoyen
et administration, obra colectiva ed. por francis deipérée, lovaina, 1985; gomes
canotilho, direito constitucional, cit., págs. 428-429; freitas do amaral, curso de direito
administrativo, 1, 2.` ed., coimbra, 1994, págs. 726-727.
1 . observe-se como no art. 9.2,alínea c) da constituição, se liga a ”dernocracia
política” à tarefa do estado de ”assegurar e incentivar a participação
171
quando se fala em democracia participativa, pensa-se, porém,
numa participação de grau mais intenso ou mais frequente do
que o voto de tantos em tantos anos, ou mais próximo dos
problemas concretos das pessoas. e isto em três sentidos
distintos ou dimensões:

a) no sentido de um reforço da participação ou animação cívica


em geral, através de um mais atento e empenhado
aproveitamento dos direitos políticos constitucionalmente
garantidos, de uma integração activa em partidos e noutros
grupos de cidadãos eleitores e de uma maior disponibilidade
para o desempenho de cargos públicos;

b) no sentido da atribuição aos cidadãos, enquanto


administrados, de específicos direitos de intervenção no
exercício da função administrativa do estado;

c) no sentido da relevância de grupos de interesses, de


associações e de instituições existentes na sociedade civil e da
sua participação em processos de decisão ou em órgãos a nível
do estado.

democrática dos cidadãos na resolução dos problemas


nacionais”; como no art. 227.q, n.2 2 se diz que a autonomia das
regiões dos açores e da madeira visa ”a participação
democrática dos cidadãos”; e como no art. 237.2, n.2 1 se
estabelece que ”a organização democrática do estado
compreende a existência de autarquias locais”.

172

a primeira dimensão não traz nada de qualitativamente novo ou


diferente no confronto das formas vindas do constitucionalismo liberal;
envolve apenas um espírito de maior exigencia e responsabilidade
democrática, de mais e melhor democracia (o que, evidentemente, não
é para menosprezar)’. já não o segundo e o terceiro sentidos.

de todo o modo, em nenhuma das hipóteses se está diante de


democracia directa, porque em nenhuma delas os cidadãos assumem
directamente o governo do estado ou a condução da sua política e
administração .

iii - com a segunda dimensão, é uma mudança radical das relações


entre administração pública e administrados que se realiza; é uma
passagem da administração tradicional autoritária e burocrática para
uma administração aberta e tendencialmente desencontrada e
descentralizada que se regista; é a democracia administrativa - a
democracia estendida da função legislativa e da govemativa à função
administrativa - que se recorta.

1. cfr. gabriel almond c sidney verba, the civic culture, boston,


1965.

2. e quanto à função jurisdicional? conhecem-se formas de participação


dos cidadãos, como o júri e os juizes sociais (cfr., entre nós, art. 210.2 da
constituição), e, em geral, diz-se que a justiça é administrada em nome
do povo (art. 205.q). contudo, por causa da própria natureza da função
- confinada a estritos critérios jurídicos - não cremos correcto reconduzir
os
173
tal transformação desenvolve-se, por seu turno, em dois
momentos ou situações: nos processos ou procedimentos
administrativos que afectam os direitos e interesses legalmente
protegidos dos cidadãos e na gestão dos serviços ou nas
estruturas organizatórias da administração.

como se lê no art. 267.9, n.9 4, da constituição, o


processamento da actividade administrativa será objecto de lei
especial, que assegurará a racionalização dos meios a utilizar
pelos serviços e a participação dos cidadãos na formação de
decisões que lhes disserem respeito. e, desde logo, se garantem
os direitos de informação dos interessados, de acesso aos
arquivos e registos administrativos, de notificação e de
fundamentação dos actos administrativos (art. 268.2, n.os 1, 2 e
3).

mas a constituição portuguesa dirige-se a mais do que isso:


visa, conforme entretanto prescreve o art. 267.2, n.s’ 1, a
participação dos interessados na gestão efectiva dos serviços
administrativos, a qual se concretiza mediante a participação
em órgãos consultivos ou deliberativos de administração, a nível
central ou local, e mediante a criação de pessoas colectivas
públicas correspondentes a interesses administrativos e sociais
determinados.

fenômenos a democracia participativa. quando muito,


relativamente aos jurados seria mais ajustado subsumi-los ainda
na democracia representativa, sob uma veste sui generis de
representação eleição (porque os jurados, mesmo se nomeados
ou escolhidos por sorteio, representam ainda a comunidade).

174

nesta altura, a participação torna-se factor gerador de


desconcentração e de descentralização - funcional ou
institucional (não territorial)

administração participada e desconcentrada encontra-se, por


exemplo, na segurança social (art. 63.2, n.2 2) e no ensino
público básico e secundário (art. 77.2). administração
participada e descentralizada na saúde (art. 64.2, n.2 4), no
ensino público superior (art. 76.1» e na gestão das profissões
livres (art. 267.% n.2 3); as universidades e algumas, pelo
menos, das associações públicas (arts. 76.2. n.!’ 1, e 267.9, n.9
3) ficam mesmo a pertencer à administração autónoma (art.
202.2, alínea c».
no interior das pessoas colectivas públicas assim estabelecidas
hão-de ocorrer vínculos representativos (como os que se
reportam aos conselhos directivos e aos senados universitários)
e não são de excluir práticas de democracia directa. porém, no
plano global do estado trata-se de democracia participativa.

iv - com o terceiro sentido, é o particular, o sectorial, o grupal


que se manifesta, que obtém acesso e voz junto dos órgãos
políticos e que, por vezes, parece alcançar uma parcela de poder
público. democracia participativa equivale então, mais precisa-

1. cfr. o nosso estudo as associações públicas no direito


português, lisboa,
1985.

175
mente, a democracia pluralista de grupos, a democracia
associativa ou (se se quiser) a democracia neocorporativa.

assente a existência de interesses diferenciados e, não raro,


conflituantes, na vida colectiva e acolhida a sua integração ou
representação em grupos, associações, instituições, procura-se
trazê-los para dentro dos processos políticos, de modo, por um
lado, a tomar mais transparentes as suas posições e, por outro
lado, a inseri-los na ponderação do interesse geral pelos órgãos
de poder. o interesse geral sobrepõe-se, forçosamente, aos
interesses sectoriais, mas pode fazer a sua síntese.

são muito variados os veículos de projecção desses interesses e


grupos de interesses: direito de petição colectiva, qualificada
ou não; audições ou pareceres possíveis ou legal ou
constitucionalmente necessários (chegando, porventura, a ter
carácter vinculativo para certos efeitos); participação em órgãos
consultivos; participação em órgãos de planeamento ou
concertaÇão; participação em acordos ou convenções
obrigatórias para os parceiros sociais’; participação na gestão de
serviços; etc. e conhecem-se tanto formas classistas (vg., só de
trabalhadores ou só de estudantes) como formas interciassistas,
deintervenção.

1. numa transposição para nível global e com interferência do estado,


do princípio da contratação colectiva (art. 56.2, n.os 3 e 4 da
constituição). e algo de semelhante ocorre com a representação
tripartida - de governos, entidades sindicais e entidades patronais - na
conferência internacional do trabalho (da oit).

176

v - por curiosidade histórica, recorde-se o poder popular oposto por


algumas correntes de opinião à democracia representativa, que teve
certa voga em portugal, em 1975, inspirando o documento-guia da
aliança povo-movimento das forças armadas

pretendia-se criar uma pirâmide de assembleias populares, desde as de


moradores e trabalhadores até, por sucessivos escalões (municipais,
distritais e regionais), a uma assembleia popular nacional; e assim se
construiria, senão uma democracia directa, pelo menos uma
democracia de base, a qual seria ainda uma espécie de democracia
participativa. mas ressaltavam, à vista desarmada, a sua
inexequibilid,ade e a sua incapacidade de oferecer um esquema político
altemativ02.
em primeiro lugar, não se descortinava como poderiam formar-se
espontaneamente todos os organismos de base indispensáveis à
realização da ideia. depois, como canalizar da base até ao topo um
impulso político coerente, tendo em conta a miríade de organizações de
base e intermédias. aquilo em que a assembleia popular nacional
pudesse deliberar teria de ser à margem ou acima de manifestações de
vontade - forçosamente

i. v. o texto na nossa colectânea fontes e trabalhos preparatórios da


constituição, ii, lisboa, 1978, págs. 1182 e segs.

2. como demonstrámos em 1975. v. constituição e democracia, lisboa,


1976, págs. 119 e segs.

177
parcelares - vindas dessas organizações; teria de o ser a título de
presunção ou ficção de vontade popular ou mesmo de representação, e
não a título de governo directo pelo povo.

a experiência de países em que se tentou implantar o poder popular


nesses moldes (como de alguns dos países africanos de língua
portuguesa até há pouco tempo) mostra que o sistema não funciona
sem um partido único de vanguarda ou dirigente da sociedade, de tal
sorte que, na realidade, se torna difícil distingui-lo da forma de governo
leninista.

nas sociedades modernas para que haja liberdade política o único poder
popular parece ser o poder democrático de todos os trabalhadores e
moradores do país, por sufrágio universal, directo e secreto.

34. pluralism0 social e democracia representativa

1 - desde o início do século importantes orientações doutri-

nais (não sem antecedentes ilustres como os de madison e alexis de


tocqueville) procuraram reinterpretar a estrutura da sociedade a partir
do pluralismo de grupos nela presente. e, um pouco mais tarde, os
regimes políticos ditos corporativos quiseram, também, em nome de
ideia aproximada, substituir-se aos regimes liberais e democráticos.

178

independentemente do debate que possa travar-se acerca de tais


concepções ou de tais regimes, indiscutível é que, nas últimas décadas
oá depois de derrubados esses regimes) o estado tem sido obrigado a
admitir a sua coexistência com uma sociedade civil heterogénea,
dividida, com forças e interesses diferentes e divergentes; e tem sido
obrigado, como acaba de se ver, a conferir-lhes relevância política.

por causa dos grupos, os elementos estritamente políticos e os


económicos, sociais e culturais interpenetram-se cada vez mais, o
estado socializa-se e a sociedade estadualiza-se e, não raro, dir-se-ia
dificil discernir zonas de fronteira. as decisões políticas não são tão livres
como antes, porque têm de atender às pressões dos grupos ou dos
correspondentes lobbies. e as decisões económicosociais adquirem um
significado político que talvez parecessem, à partida, não possuir’.

1. sobre o assunto, cfr-, entre tantos, harry eckstein, ”group theory and
the comparative study of pressure group”, in comparative politics, obra
colectiva, nova lorque, 1963, págs. 339 e segs.; k. loewenstein, teotia ....
cit., págs. 422 e segs.; jorge estebçn, ”la representación de interesses y
su institucionalización: los diferentes modelos existentes-, in revista de
estudios políticos, set.-out. de 1967, págs. 43 e segs.; rogÉrio soares,
direito público e sociedade técnica, coimbra, 1969, págs. 86 e segs.: g.
leibholz, problemas fundamentales de la democracia moderna, trad.,
madrid, 1971, págs. 97 e segs.; g. burdeau, traité..., cit., 2.! ed., vii,
paris,
1972, págs. 559 e segs.; r. zippelius, op. cit., págs. 111 e segs.; e.
forsthoff, el estado de ia sóciedad industrial, trad., madrid, 1975, págs.
199 e scgs.; klaus von beyme, ”organizaciones sociales. grupos de
interesses. associaciones-, in marxismo y democracia politica, vi, trad.,
madrid,
1975, págs. 1 e segs.; rainer. eisfeld, il pluralismo tra liberalismo e
179
11 - sem embargo de algumas semelhanças entre este pluralismo social
e o corporativismo dos anos 30, 40 e 50 do século xx, não deixam de ser
nítidas as diferenças.

0 estado corporativo definia-se em dois planos, o económico-social e o


mais estritamente político. propunha-se organizar todas as actividades
da nação dentro de organismos representativos de

socialismo, trad., bolonha, 1976; norberto bobbio, ”pluralismo”, in


dizionario di politica (1976), págs. 717 e segs.; vieira de andrade, grupos
de interesse, pluralismo e unidade política, coimbra, 1977; ”parecer n.>
2178 da comissão constitucional”, de 5 de janeiro, in pareceres, iv, págs.
151 e segs.; lorenzo ornaghi, ”interesse” e ”gruppi corporatii”.
introduzione allo studi del fenomeno corporativo, in il político, 1980,
págs. 221 e segs.; philippe schmitter, democratic theory and neo-
corporatiste practice, florença, 1983; gerard lei---imbruch, ”le condizioni
logiche e strutturali del neo-corporativismo”, in quaderni costituzionali,
1983, págs. 475 e segs.; mauro camelli, ”amministrazione e politiche
neo-corporative”, ibidem, págs. 523 e segs.; manuel de lucena,
”neocorporativismo?”, in análise social, 1985, págs. 819 e segs.; lúcia
amaral, ”0 problema da função política dos grupos de interesse”, in 0
direito, 1974-1987, págs. 47 e segs.; joÃo baptista machado, ”a hipótese
neocorporativa”, in revista de direito e estudos sociais, 1987, págs. 3 e
segs.; polítical stability and neocorporativism, obra colectiva editada por
ilda scholter, nova lorque,
1987; marcelo rebelo de sousa, ”la recherche sur les groupes d’intérêt
au portugal”, in a coabitação política em portugal, lisboa, 1987, pdgs. 45
e segs.; victor v. magagna, ”representing efficiency: corporativism and
democratic theory”, in the review ofpolitics, 1988, pdgs.
420 e segs.; cristina queiroz, sobre os conceitos de ’pluralísmo ” e
”neocorporativismo”, in boletim do conselho nacional do plano, n.2 18,
1989, págs. 232 e segs.; pierre j. pararas, le retour du corporativisme en
france - la crise du mandat représentatif, in reme internationale de droit
comparé, 198 1, págs. 427 e segs.; claus off, partidos políticos y nuevos
movimientos sociales, trad. madrid, 1992, págs, 133 e segs.

180

interesses morais, culturais e económicos, organismos esses que


procurava identificar com instituições sociais naturais. a integração
nestas instituições dissolveria os conflitos e os antagonismos,
nomeadamente os conflitos de classes: o corporativismo afirmava a
harmonia necessária de interesses e, por isso, proibia, por exemplo, a
greve. nestas instituições é que o indivíduo realizaria a sua
personalidade e a sua cidadania e através d eles é que deveria
participar na vida política: daí a noção de sufrágio orgânico
que, a despeito de só muito limitadamente ter sido consagrado, se
pretendia contrapor ao sufrágio individual ou ino do
do rganico, vin

constitucionalismo liberal e democrático.

nada disto se depara no estado social de direito posterior a


1945. este parte de uma visão dinâmica do processo social em que se
reconhecem os contrastes, os conflitos e os antagonismos de classes e
de grupos. não é uma harmonia pré-estabelecida (ou estabelecida
administrativamente) que se tenta conservar a todo o custo, mas uma
sociedade imperfeita que se pretende transformar no respeito de certas
regras de processo e de fundo. especialmeirite acentuados são a ideia
da autonomia quer das classes trabalhadoras quer do patro-nato, o
direito à greve, o movimento sindical e a int

erligação com os partidos políticos.

35. democracia política e democracia social

1 - ao longo do século xx multiplicaram-se e vulgarizaram-se, na acção


política, nos textos constitucionais e em estudos
181
teóricos e doutrinais, adjectivações da democracia. de entre todas,
adquiririam maior significado e carga emotiva locuções como
democracia política ou formal e democracia social ou material.

conhecem-se as causas deste fenômeno: a correspondência observada


de regimes democráticos pluralistas e certos estádios de
desenvolvimento económico, social e cultural; a correlação estabelecida,
de vários quadrantes, entre governos e classes dominantes; a influência
das ideologias socialistas e social -democratas; os evidentes efeitos
políticos das crises sociais; o peso das convulsões que ocorreram e
continuam ocorrendo por toda a parte. e sabe-se bem que
historicamente a democracia representativa - democracia de massas,
assente no sufrágio universal - é coeva e está em interacção com o
estado social - estado que assegura não só direitos, liberdades e
garantias mas também direitos económicos, sociais e culturais.

não obstante, raciocinando em estritos termos científicos, não se


.justifica identificar a democracia representativa - em si mesma uma
forma de governo, portanto, relevando apenas do domínio da política -
com qualquer conteúdo económico, social e cultural, nem, muito menos,
afirmar qualquer separação ou contraposição. são instâncias diversas,
ainda que comunicantes, e confundi-ias acaba, muitas vezes, por
obliterar os problemas específicos de cada um’.

1. cfr., sobre o assunto, kelsen, la démocratie ..., cit., págs. 104 e segs.;
georges burdeau, traité .... vii, 2.<1 ed., paris, 1973, págs. 459 e segs.;
carl cohen, op. cit., págs. 79 e segs.; juan ferrando badía,
182

aliás, se a democracia representativa (ou democracia política) se


apresenta relativamente bem caracterizada, já o mesmo não acontece
com a democracia social, susceptível de várias pré-compreensões e
conotações de acordo com as respectivas fontes filosóficas e
ideológicas. todavia, atendendo à acepção mais intensa e habitual no
ocidente - com divisão da riqueza e dos rendimentos, forte intervenção
e regulação económica pelo estado, forte compressão da iniciativa e da
propriedade privada, largo sector público e social de meios de produção,
etc. - não são poucos e pouco importantes os países com democracia
representativa mais ou menos daí afastados (basta pensar nos estados
unidos e no japão após 1946).

uma das i 1deologias que se tem pretendido mais próxima da


aspíração de democracia social tem sido a marxista. e, no entanto,
também seria suficiente considerar os regimes em que se implantou
para - admitindo que se concretizaram os seus objectivos concluir pela
sua não coexistência com democracia representativa (recusada a priori
como forma de governo).

acrescente-se, para além de tudo, que não parece exacto qualificar a


democracia representativa como simplesmente formal, sem conteúdo.
ela tem um conteúdo: precisamente o que é dado

democraciafrente a autocracia, madrid, 1980, págs. 77 e segs.; alf ross,


ny democracy?, trad. cast. por que democracia?, madrid, 1989, págs.
169

e segs.

183
pela legitimidade, pela participação, pelo pluralismo e pela divisão de
poder-

ii - coisas diferentes são as posturas que se adoptem ou que até sejam


consagradas em determinadas constituições acerca da correlação da
democracia representativa com intenções e instituições de democracia
social.

poderá, porventura, sustentar-se que a democracia política não subsiste


sem democracia económica, social e cultural, nem esta sem a
democracia política; que a igualdade tem de se firmar tanto dentro do
estado como dentro da sociedade; que é preciso que essa igualdade,
como condição de liberdade, seja não só igualdade de oportunidades
mas também igualdade efectiva e concreta’. será uma visão prescritiva,
não uma visão teórica das formas de governo.

assim como poderá esta ou aquela constituição ligar a democracia à


democracia económica, social e cultural (expressis verbis referida, como
sucede na constituição portuguesa actual no art. 2.2). será uma decisão
de certo poder constituinte, uma solução bem localizada de direito
público positivo, não uma exigência universal comprovada pelo direito
comparado.

1. como escrevemos em constituição e democracia, cit., págs. 79 e segs.


184

36. estado de direito e princípio democrÁtico

1 - nunca é demais insistir em que estado de direito não

equivale a estado sujeito ao direito, porque não há estado sem sujeição


ao direito no duplo sentido de estado que age segundo processos
jurídicos e que realiza uma ideia de direito, seja ela qual for. estado de
direitosó existe quando esses processos se encontram diferenciados por
diversos órgãos, de harmonia com um princípio de divisão do poder, e
quando o estado aceita a sua

inaçao a crit

subord* - érios materiais que o transcendem; só existe quando se


dá limitação material do poder político; e esta equivale a salvaguarda
dos direitos fundamentais da pessoa humana.

sem entrar na análise quer da formação e evolução das instituições


quer dos problemas actuais que suscitam, devem figurar-se como
postulados ou requisitos do estado de direito (passíveis de graduação e
de conformação específicas consoante os sistemas políticos) os
seguintes:

a) a definição rigorosa e a garantia efectiva, no minimo, dos direitos à


vida e à integridade pessoal, da liberdade fisica e da segurança
individual, da liberdade de consciência e religião, bem como da regra da
igualdade jurídica entre as pessoas;

b) a pluralidade de órgãos govemativos, independentes ou


interdependentes quanto à sua subsistência, e com funções distintas,
competindo, nomeadamente, ao parlamento o primado da função
legislativa;

185
c) a reserva da função jurisdicional aos tribunais, independentes e
dotados de garantias de independência dos juizes;

d) 0 princípio da constitucionalidade, com fiscalização, de preferência


jurisdicional, da conformidade das leis com a constituição;

e) 0 princípio da legalidade da administração, com anulação


contenciosa dos regulamentos e actos administrativos ilegais;

f) a responsabilidade do estado pelos danos causados pelos seus órgãos


e agentes’.

11 - ora, não há coincidência necessária histórica e conceitualmente -


entre estado de direito e democracia entendida como soberania do
povo. 0 estado de direito hoje postula a democracia representativa e
pluralista, e vice-versa; mas é preferível então falar em estado de
direito democrático.

historicamente, a ideia de estado de direito surgiu na alemanha à


margem de qualquer base democrática e até de liberalismo político; tal
como a democracia, enquanto democracia jacobina, ou cesarista ou
soviética, sempre repudiou a limitação de poder àquela inerente. além
disso, não são menos extensas e intensas as decorrências do estado de
direito do que as de demo-

1. v. os autores citados em manual .... iv, cit., págs. 179 e segs.

186

cracia representativa, e, não raro, se encontram ordenamentos jurídicos


com democracia representativa que não têm levado (ou ainda não
levaram) até ao fim todos os princípios acabados de enunciar (vg., os da
fiscalização jurisdicional dos actos do poder).

0 conceito de estado de direito democrático é, pois, o conceito - a nível


de regime político, e não só de forma de governo i destinado a abranger
o máximo possível de estado de direito e de democracia no conjunto das
suas diferentes implicações substantivas e adjectivas.

numa linha extrema de irrestrito domínio da maioria, o princípio


democrático poderia acarretar a violação do conteúdo essencial de
direitos fundamentais; levado aos últimos corolários, o princípio da
liberdade poderia recusar qualquer decisão política sobre a sua
modelação. 0 equilíbrio obtém-se através do esforço de conjugação,
constantemente renovado e actualizado, de princípios, valores e
interesses, bem como através de uma complexa articulação de órgãos
políticos e jurisdicionais.

37. as concepÇões e os valores da democracia

1 - independentemente da análise dos grandes princípios

institucionais, importa ter presentes as diversas visões explicativas

1. como dissemos supra, citando o preâmbulo e e3 arts. 2.2 e 9.`, alínea


b) da constituição.

187
do cerne da democracia moderna à luz das respectivas pré-compreensões filosóficas e
teóricas’.

1. além das grandes obras clássicas, como as de rousseau (du contrat social) ou de
alexis de tocqueville (de ia déniocratie en amerique), v., dentre autores dos últimos
cinquenta anos, cabral de moncada, ”valor e sentido da democracia”, 1930, in estudos
filosóficos e históricos, 1, coirabra, 1958, págs. 1 e segs.; domingos monteiro, bases da
organização política dos regimes democráticos - i - a organização da vontade popular e
a criação da vontade legislativa, lisboa, 193 1; kelsen, la démocratie - sa nature, sa
valeur, cit., e general theory of law and state, 1945, trad. portuguesa teoria geral do
direito e do estado, brasília, 1990, págs. 278 e segs.; rudolph laun, la démocratie -
essai sociologique, juridique et de politique morale, paris, 1933; joseph schumpeter,
capitalisni, sócialisni and democracy, 1942, trad. fi-ancesa capitalisme, socialisme et
déniocratie, paris, 1972, maxime págs. 354 e segs.; alf ross, why democracy?, trad.
castelhana por que democracia?; henry b. mayo, an introduction to democratic theory,
cit.; gustav radbruch, filosofia do direito, 4. ed. portuguesa, 1, coimbra, 1961, págs.
170 e segs.; georges burdeau, la déniocratie - essai synthétique, trad. portuguesa a
democracia, lisboa, 1962; herbert tingsten, the problems of democracy, trad., nova
lorque,
1965; c.j. friedrich, la democracia comoforma politica y comoforma de vida, 2.l’ed.
castelhana, madrid, 1966; jean lacroix, crise da democracia, crise da civilização, trad.
portuguesa, lisboa, 1968; carole pateman, participation and democratic theory, cit.,
págs. 1 e segs.; pontes de miranda, democracia, liberdade, igualdade, 2.9 ed., são
paulo, 1979, págs.
135 e segs.; dorothy pickles, democracy, londres, 1970; glovanni sartori, democrazia e
definizioni, trad. fi-ancesa théorie de la démocratie, paris, 1973 e ”democrazia”, in
elementi di teoria política, bolonha, 1990, págs. 25 e segs.; barry holden, the nature of
democracy, londres,
1974; carl coben, democracy, cit.; c.b. macpilerson, ne life and times of liberal
democracy, 1977, trad. castelhana la democracia liberal y su Época, madrid, 1991;
barbosa de melo, democracia e utopia, cit.; juan ferrando badía, democracia frente a
autocracia, cit.; norberto bobbio, c. off e lombardini, democrazia, maggioranza e
188

vamos resumir algumas (só algumas) das mais paradigmáticas ou significativas que
foram propostas nas últimas décadas: as de kelsen, rudolph laun, schumpeter, alf ross,
renÉ capitant, karl popper e norberto bobbio.

11 - para kelsen, a ideia de liberdade é o núcleo da democracia. a igualdade entra


também, mas de maneira negativa, formal e secundária: cada um deve ser o mais livre
possível, logo todos devem-no ser igualmente; cada um deve participar na formação
da vontade geral, logo todos devem participar de forma igual’. e existe uma relação
entre a posição metafisica-absolutista do mundo e a autocracia e entre a posição
crítico-relativista e a democracia.

minoranze, cit.; rene capitant, Études constitutionnelles, paris, 1982, págs. 19 e segs.;
gomes canotilho, constituição diligente e vinculação do legislador, cit., págs. 462 e
segs.; teorias de ia democracia, obra colectiva editada por m. gonzçlez garcía e
fernando quesada castro, barcelona, 1988; norberto bobbio, liberalismo e democracia,
trad. portuguesa, brasília, 1988, e ”democracia e paz”, in balanço do século, obra
colectiva, lisboa, 1990, págs. 25 e segs,: karl popper, em busca de um mundo melhor,
trad., lisboa, 1989, págs. 141 e segs., e ”alguns problemas práticos da democracia”, in
balanço do século, págs. 75 e segs.; ramón cotarelo, en torno a ia teoria de la
democracia, madrid, 1990; john s. dryzek e jei7frey bererikjan, ---reconstructive
democratic theory”, in american political science review, março 1993, págs. 48 e segs.;
enzo sciaia, interpretacióli de la democracia, trad. madrid, 1994.

1. la démocratie ..., cit., pág. 104. em teoria geral do direito e do estado, kelsen fala,
porém, numa síntese das ideias de liberdade e igualdade (págs.
278 e segs.)

2. la déniocratie .... cit., pág. 111.

189
laun define a democracia como o estado cuja constituição positiva não repousa
sobre direitos suprapositivos que possuam determinadas pessoas ou
determinados grupos de pessoas à competência da soberania ou a uma parte
da competência da soberania. a democracia é um estado livre de direitos
dogmáticos de domínio’ .

segundo schumpeter, o método democrático é 0 sistema institucional


conducente a decisões políticas no qual os indivíduos adquirem o poder de
estatuir sobre essas decisões na sequência de
2

uma luta concorrencial tendo por objecto os votos do povo .

para alf ross, o tipo ideal de democracia corresponde à forma de governo em


que as funções políticas são exercidas pelo povo com um máximo de
intensidade, efectividade e latitude de acordo com os métodos
parlamentares3.

renÉ capitant considera a democracia sob o aspecto jurídico, a partir de quatro


princípios:

a) o princípio da autonomia, segundo o qual qualquer obrigação deve ser


aceite por aquele que lhe está adstrito;

b) 0 princípio da igualdade, segundo o qual ninguém pode obrigar outrem


sem se obrigar também a si mesmo a uma obrigação idêntica ou equivalente;

1. op.cit., pág. 123.

2. op.cit., pág. 355.


3. op.cit., pág. 96-

190

c) 0 princípio da laicidade, segundo o qual a obrigação não vincula a


consciência de quem lhe está adstrito;

d) 0 princípio da autoridade, segundo o qual a obrigação, se é válida, impõe-


se àquele que lhe está submetido e deve ser sancionada pela coerção pública’.

por sua vez, karl popper contrapõe àquilo a que chama a teoria clássica da
democracia uma teoria realista. ela há-de ser o sistema em que os
govemantes podem ser afastados do poder sem violência, pacificamente,
através do voto da maioria2.

e bobbio sustenta que a democracia é a forma de governo em que vigoram


regras gerais (as chamadas regras de jogo) que permitem aos cidadãos (como
jogadores) resolver, sem recorrer à violência, os conflitos que nascem
inevitavelmente numa sociedade em que se formam grupos cujos valores e
interesses são contrastantes3,4.
1. op. cit, págs. 191 e segs.

2. alguns problemas práticos ..., cit, loc.cit., págs. 79-80. v. também h. marcuse
e karl popper, revolução ou reforma? uma confrontação, lisboa, 1974, págs. 33,
34 e 42.

3. democracia e paz, cit, loc. cit, pág. 28.

4. entre outras formulações, poderia ainda mencionar-se a de roert dahl,


considerando a democracia como poliarquia (para a distinguir da democracia
ideal), como um sistema político baseado sobre partidos competitivos em que
a maioria está no poder e respeita os direitos das minorias. mas não pudemos
consultar o seu a preface to democratic theory, chicago, 195 6.

191
111 - seguindo o pensamento de kelsen poderia quicá
depreender-se que a democracia não se carregaria de quaisquer
valores. 0 relativismo dir-se-ia o seu cunho próprio, o que não

seria correcto.

com efeito, o relativismo democrático só pode ser um


relativismo político, não, de jeito algum, um relativismo
filosófico; envolve um pluralismo de ideias, de correntes de
opinião, de forças políticas - acompanhado ou garantido pela
não assunção de nenhuma pelo estado (quer dizer, pela
laicidade ou a não confessionalidade do estado, nessa perspectiva);
não equivale a indiferentismo filosófico, convertido em atitude perante a
vida ou erigido em doutrina oficial.

0 relativismo vale na esfera política, no jogo de ideologias, programas e


partidos em disputa pelo poder para o conformar através do voto da
maioria. não pode impor-se à esfera individual, do pensamento, das
convicções e das crenças das pessoas, sob pena de se negar a si
mesmo, absolutizando-se. bem pelo contrário, como escreve um autor,
afirmar o relativismo na ordem relativa é precisamente permitir ao
absoluto afirmar-se na ordem do absoluto’. 0 sistema democrático é o
único que pressupõe o convívio das diferenças2; logo, por definição, ele
não as nega ou esconde; reconhece-as e salvaguarda-as, sim, na sua
existência e na sua manifestação.

1. jean lacrolx, op. cit., pág. 110.

2. bobbio, democracia e paz, cit., loc. cit., pág. 29.


192

iv - qualquer forma de governo fimda-se em certos valores que,


conferindo-lhe sentido, vêm, por um lado, alicerçar o consentimento dos
governados e o projecto dos govemantes e, por outro lado, construir o
referente de ideal de todos quantos por ela se batem.

assim, por detrás da diversidade de concepções e formulações teóricas,


avultam valores políticos sem os quais a democracia aparece desprovida
de razão de ser. e eles são (importa sublinhar de novo) a liberdade e a
igualdade’, tal como constam2 da declaração de direitos da vírgínia, da
declaração de 1789 e da maior parte das constituições de estado de
direiro democrático.

É porque todos os seres humanos são livres e iguais que devem


ser titulares de direitos políticos e, assim, interferir conjuntamente,
uns com os outros, na definição dos rumos do estado e da sociedade em
que têm de viver. É porque todos são dotados de razã

o e de consciência (como proclama, por seu lado, a declaração


universal) que eles são igualmente chamados à participação cívica,
capazes de resolver os seus problemas não pela força, mas pelo
confronto de ideias e - à falta de critério transcendente - pelo seu
sufrágio pessoal e livre.

1. cfr. já alexis de tocqueville, de la démocratie en amérique, ii, paris,


1840 (na ed. de 195 1, págs. 29 e segs. e 392 e segs.).

2. lidas objectivamente, não de acordo com estas ou aquelas premissas


filosóficas dos seus autores históricos.

193
a liberdade revela-se, portanto, do mesmo passo, fundamento e limite
de democracia. revela-se fundamento, visto que a participação na
condução dos destinos comuns pressupoe a liberdade. e revela-se
limite, visto que a democracia (insistimos ainda) não pode pôr em causa
a liberdade, e a maioria é sempre maioria de conjuntura, não maioria
definitiva, pronta a esmagar os direitos da

minoria’.

1. cfr. joÃo paulo h, evangelium vitae, trad. 0 evangelho da vida, lisboa,


1995,pág.125.

194

capitulo ii

a eleiÇÃo

e 0 referendo
§ 1.2

a eleiÇÃo

38. a eleiÇÃo política em geral

1 - em todas as épocas e mais ou menos por toda a parte se observa a


prática da eleição (e até da eleição política), por diverso que seja o
ambiente em que se insira. não está ausente das repúblicas
aristocráticas e as monarquias começam por ser electivas ou baseadas
na cooptação para somente mais tarde, quando consolidadas, se
tomarem hereditárias.

por certo, quase todos os estados europeus foram erguidos por dinastias
que com eles se identificavam e só no caso de uma dinastia se extinguir
se recorria à eleição (que, de todo o modo, nunca era considerada a
fonte de autoridade do novo rei). em compensação, ainda muito depois
de terminado o período estamental ou da
197
monarquia limitada pelas ordens subsistiram instituições municipais, de
mesteres, de universidades ou de ordens religiosas, em que o modo
normal de selecção dos dirigentes era a eleição.

nada disto resiste, porém, a qualquer cotejo com o papel nuclear da


eleição no constitucionalismo moderno. por outro lado, enquanto que as
práticas e as normas eleitorais antes se ofereciam extremamente
heterogéneas, olhando para os dois últimos séculos não custa divisar
uma larga coincidência de regras e de técnicas
- mesmo se nem sempre (muito longe disso) traduzem opções
pluralistas e um autêntico alcance substantivo’.

11 - 0 sentido da eleição política está em relação estreita com o


número, as qualidades, o estatuto e as ligações institucionais das
pessoas que nela tenham a faculdade de participar; não é apenas o
objecto ou a função a que se dirige que lhe imprime carácter mas
também o conjunto dos eleitores e a posição jurídica subjectiva de cada
um perante o estado; e o seu resultado há-de reflectir a presença ou o
predomínio destes ou daqueles eleitores.

a diferença entre o período anterior e o posterior às constituições


transparece sob este aspecto. no estado estamental e no absoluto, se
havia lugar a eleição, o poder de eleger era apanágio de categorias
muito restritas de pessoas e tomado como privilégio seu ou das ordens a
que pertenciam. no constitucionalismo, o voto

1. v. os nossos estudos de direito eleitoral, lisboa, 1995.

198

é conferido de harmonia com critérios objectivos e pretende-se que seja


expressão da comunidade política como um todo. ainda aqui, no
entanto, cabe recordar a extensão do sufrágio a que aludimos mais de
uma vez.

a extensão do sufrágio adquire um enorme significado político e social


pela correspondência que se verifica entre a composição do colégio
eleitoral e os interesses prosseguidos através dos corpos electivos e,
portanto, através da eleição (e este problema não escapou logo a
escritores como b. constant e j. bentham). na verdade, se um pequeno
número de eleitores realiza os interesses de um pequeno número de
cidadãos, toma-se lícito presumir que um grande número (ou uma
grande proporção) de eleitores virá defender interesses comuns à maior
parte da colectividade.

39. sufrÁgio e colÉgio eleitoral


1 - porque cidadãos activos são os cidadãos eleitores, tratar da
organização do povo activo o mesmo é que tratar da organização do
sufrágio. povo activo equivale então a corpo ou colégio eleitoral. e
porque o sufrágio pode assumir diferente natureza ao povo activo
podem corresponder um ou vários colégios eleitorais e, nestes, pode a
sua vontade fazer-se sentir de diversas maneiras.

as funções pedidas ao sufrágio (para eleição ou para referendo, para


eleição de membros do parlamento ou do executivo,
199
para eleição da u ou 2.i câmara, etc.), a forma de estado (unitário,
centralizado ou descentralizado, ou federal, perfeito ou imperfeito), a
maior ou menor homogeneidade social e política (força relativa das
classes, dos interesses sectoriais e dos partidos), o acordo ou a
divergência a respeito do sistema eleitoral preferível
- tais são os factores que condicionam a unidade ou pluralidade de
colégios eleitorais.

0 princípio do sufrágio não conduz a um só modelo nem a uma só forma


de organização eleitoral. existem sufrágio directo e indirecto, sufrágio
individual e organico ou corporativo, voto único e plural (bem como voto
múltiplo). mas a democratização tem levado ao triunfo, por toda a parte,
do sufrágio directo, universal e único (one man, one vote)’

a outra grande opção a salientar dá-se entre representação


maioritária e representação proporcional. dela vamos cuidar de seguida,
com maior desenvolvimento.

11 - a estrutura de cada colégio eleitoral político espelha, como não


podia deixar de ser, o princípio representativo em que se apoia e
determina, consequentemente, uma regulamentação específica do
processo de eleição (ou, por analogia, de referendo).

1. 0 sufrágio indirecto fora já ultrapassado na segunda metade do século


xix e o sufrágio corporativo ficou associado a regimes autoritários.

200

assim, o sufrágio directo e individual traduz-se num colégio eleitoral


homogéneo que engloba a massa dos eleitores, geograficamente,
porém, repartido em colégíos simples (as assembleias ou secções de
voto) e colégios já complexos (os círculos eleitorais). as operações de
voto desenrolam-se ao mesmo tempo em todo o país, mas é só nas
assembleias eleitorais, correspondentes de regra às menores
circunscrições administrativas, que os eleitores se encontram
fisicamente congregados’.

ao invés, o sufrágio indirecto, orgânico ou inorgânico, envolve


sucessivos colégios eleitorais escalonados no tempo e muitas vezes
formados ad hoc para efeito da eleição. cada um destes colégios é
preparatório em relação ao de grau imediatamente superior, pois a sua
função consiste em designar os eleitores que o vão constituir; distingue-
se bem, portanto, de cada um dos colégios eleitorais do sufrágio
individual directo, elementos do mesmo colégio eleitoral geral em que
se integr am em amplitude crescente.
também em representação proporcional dir-se-ia que a eleição de
deputados em proporção de votos atribuídos às diferentes candidaturas
equivaleria ao fraccionamento do eleitorado em tantos colégios quantas
as correntes políticas que conseguem obter expressão relevante.

1. já em sufrágio corporativo cada instituição ou ramo de interesses


diferenciado formaria aí colégios eleitorais relativamente autónomos uns
em face dos outros, de harmonia com o que fosse mais consentânco
com a sua vida institucional, e unicamente se poderia falar em colégio
eleitoral de cúpula a posteriori, a partir dos eleitos de cada colégio.

201
imediatamente se há-de reconhecer que a estrutura jurídica do acto de
sufrágio fica, por seu turno, afectada pela estrutura do colégio em que
decorre: pois se é fácil reconduzir a eleição praticada no seio de um
colégio eleitoral restrito de tipo orgânico a um acto jurídico unitário
similar ao que praticam os órgãos colegiais, imensas são as dúvidas
acerca da exacta natureza da eleição efectuada por milhões de eleitores
dispersos e acerca até da própria colegialidade técnico-jurídica do corpo
eleitoral que constituem.

111 - a variedade de tipos de colégios eleitorais - teórica ou


historicamente propostos ou presentes em certo momento em qualquer
país - não pode fazer obnubilar que a sua razão de ser é sempre a
comunicaçao aos governantes das aspirações ou da vontade do povo
como unidade.

definir a relação entre colégio eleitoral e povo vem a ser, todavia,


também questão altamente problemática. 0 colégio eleitoral é órgão do
povo? representa o povo? deve considerar-se gestor de negócios do
povo? seja qual for a resposta a esta ou a outras interrogações’, se os
eleitos representam o povo todo - e não apenas os cidadãos que os
elegem ou os cidadãos com direitos políticos - parece indiscutível a
necessidade de explicar o acto de sufrágio como tendo a sua base nesse
mesmo povo.

não significa isto, porém, que a eleição valha como acto do povo, sem
poder ser tomada como acto do estado. há quem o sus-
202

tente, decerto surpreendido pelo contraste entre o colégio eleitoral


inorganico e os órgãos do estado e entre o processo eleitoral e o
processo de agir de qualquer dos órgãos govemativos.

na realidade, a eleição, podendo ser acto do povo, tem de ser


necessariamente - até por isso mesmo - acto do estado. pois o povo,
repita-se o que em diversas ocasiões se disse, só se concebe dentro do
estado e mal se compreenderia que a designação de titulares de órgãos
do estado ficasse estranha ou exterior ao estado (o que se verifica,
muito pelo contrário, é o estado organizar e disciplinar, através das suas
leis e como actividade que assume como sua, toda a actividade dos
colégios eleitorais).

40. os sistemas eleitorais

1 - em sentido amplo, sistema eleitora12 é o conjunto de regras, de


procedimentos e de práticas, com a sua coerência e a sua
1. cfr. a constituição de 1976 -formação, estrutura,
piincípiosfundamentais, cit., pág. 365.

2. v., entre tantos, thomas hare, a treatíse on the election of


representatives, londres, 1859; a.c. ribeiro da costa, princípios e
questões de filosofia política -i - condições científicas de direito de s~,
coimbra,
1878; n. saripolos, la démocratie et véléction proportion-nelle. Étude
juridique, histo),ique etpolitique, paris, 1899; r. saleilles, ”la
représentation proportionnelle”, in revue du droit public, ix, 1899, págs.
215 e segs. e 385 e segs.; siotto pintor, le riforme del regime elettorale
e le dottrine della reppresentanza politica e dell’elettorato nel secolo ff,
roma,
203
lógica intema, a que está sujeita a eleição em qualquer país e que, portanto,
condiciona (juntamente com elementos de ordem cultural, económica e
política) o exercício do direito de sufrágio.

1912; leÃo azedo, a questão eleitoral, lisboa, 1915; f. a. hermes, democracy


or anarchy? a study of the proportional representation, indiana,
1941; m. duverger, linfluence des systèmes électoraux sur ia vie politique,
paris, 1950; carlo lavagna, -ii sistema elettorale nella costituzione italiana”,
in rivista trimestrale di di),itto pubblico, 1952, págs.
849 e segs.; comparative politics, obra colectiva editada por harry eckstein e
david e. apter, nova iorque, 1963, págs. 247 e segs.; douglas w. rae, the
political consequences of electoral laws, new haven, 1967 e 1971; a.j. milnor,
elections and political stability, boston, 1969; enid lakeman, how
democracies vote. a study of maiority and proportional electoral systems,
londres, 1970; j.m. cotteret e claude emeri, les systèmes eléctoraux, paris,
1970; domenico fisichella, sviluppo democratico e sistemi elettorali, florença,
1970; nils diederich, ”elecciones. sistemas electorales”, in marxismo y
democracia, politica 3, madrid, 1975, págs. 1 e segs.; dieter noi1len,
sistemas electorales del mundo, cit.; william riker, ”the two-party system and
duverger law”, in the american political science review, 1982, págs. 753 e
segs.; marcelo rebelo de sousa, os partidos políticos no direito constitucional
português, braga, 1983, págs. 121 e segs. e 516 e segs.; ricardo leite pinto,
”democracia pluralista consensual”, in revista da ordem dos advogados,
1984, págs. 266 e segs.; paulo bonavides, op. cit., págs. 293 e segs.; andrÉ
gonÇalves pereira, sistema eleitoral e sistema de governo, lisboa, 1986;
glovanni sartori, ”sistemi elettoraw, in elementi ..., págs. 237 e segs. e
ingegnaria costituzionale comparata, 2. ed., bolonha, 1995, págs. 17 e segs.;
sistema elettorali e governo locale, obra colectiva editada por silvio gambino,
roma, 1991; andrew reeve e alan ware, electorale systems - a comparative
and theoretical introduction, londres e nova iorque, 1992; luís sÁ, eleições e
igualdade de oportunidades, lisboa, 1992, págs. 85 e segs.

v. também o projecto de código eleitoral publicado no boletim do ministério


da justiça, n.2 364 (de que há separata, lisboa, 1987).

204

em sentido restrito, é a forma de expressão da vontade eleitoral, o modo como a


vontade dos eleitores de escolher este ou aquele candidato, esta ou aquela lista, se
traduz num resultado global final, o modo como a vontade (psicológica) de cada eleitor
ou do conjunto dos eleitores é interpretada ou transformada na vontade eleitoral
(vontade jurídica que se traduz, nomeadamente, na distribuição dos mandatos
ou lugares no parlamento).

11 - no primeiro sentido, o sistema eleitoral depende de múltiplas variáveis: requisitos


de capacidade eleitoral activa e passiva, sufrágio directo e indirecto, recenseamento,
processo de votação, apuramento e contencioso, carácter da eleição dentro do
sistema de governo.

no segundo sentido, abrange, em especial, a estrutura do colégio eleitoral, o regime de


candidatura e o critério da eleição; e, para além do elemento técnico-jurídico ou
organizatório, implica necessariamente uma opção em matéria de repres

entação política.
para qualquer tipo de eleição - geral ou local, política ou não política, do presidente da
república ou do parlamento - tem de ser definido o respectivo sistema eleitoral, mas
esta definição tem-se tomado sobretudo objecto de análise e discussao a respeito da
eleição dos membros das assembleias políticas. pois, embora os deputados
representem todo o povo, pode haver diferentes valorações jurídicas das correntes
políticas que se manifestam através do sufrágio.

205
0 que é a vontade eleitoral? ela identifica-se matematicamente
com a vontade da maioria ou, independentemente da distinção
entre maioria e minoria, o eleitorado pode entender-se cindido
em tantos colégios eleitorais ideais ou abstractos quantos os
partidos ou tendencias que, de harmonia com a lei eleitoral,
conseguem estar presentes no parlamento?

iii - antes de mais, um sistema eleitoral (em sentido restrito)


assente num determinado colégio eleitoral: devem os deputados
ser eleitos por um colégio único nacional ou por uma pluralidade
de colégios, recortados, em regra, numa base territorial
(círculos eleitorais)?

reporta-se, depois, ao objecto da eleição: por cada colégio deve


ser eleito um ou mais deputados?

1 0 eleitor vota em listas propostas por partidos e comissões


eleitorais ou apenas em candidatos? como devem ser
organizadas as listas: devem ser bloqueadas ou admite-se que o
eleitor estabeleça preferências entre os candidatos?

enfim, um sistema eleitoral cura do critério da eleição: a maioria deve


obter a totalidade dos mandatos atribuídos ao colégio eleitoral ou deve
prever-se alguma forma de representação das minorias? ou não deverá,
antes, procurar-se a representação de cada partido em proporção do
número de votos que tiver alcançado?

206

41 -tipos de sistemas eleitorais

1 - se o sufrágio for uninominal (um deputado por colégio) o sistema


será sempre de representação maioritária. e considerar-se-á eleito o
candidato com maior número de votos, quer seja suficiente, desde logo,
a maioria relativa - é o sistema britânico (thefirst-past-the-post system) -
quer se exija a maioria absoluta e, consequentemente, se tenha de
proceder a segunda volta ou segundo turno se ela não se verificar na
primeira volta - é o sistema da 111 e da v repúblicas francesa (ou se não
existir o chamado voto alternativo ou preferencial como sucede na
austrália).

se, porém, o sufrágio for plurinominal (vários deputados por colégio), já


terá de se escolher entre um destes sistemas fundamentais -
representação maioritária, de minorias ou proporcional - ou de se
encontrar um sistema misto.
11 - a representação maioritária em escrutínio plurinominal conduz a
câmaras monocolores ou em que se regista uma enorme desproporção
entre maioria e minoria. são raríssimos os sistemas políticos pluralistas
que a consagram’.

1. nos estados unidos é adoptada para a eleição dos eleitores


presidenciais, mas aí por uma razão: por causa da estrutura federal,
para no colégio eleitoral presidencial se manifestar a representação dos
estados. nem por isso se evitam desequilíbrios.

207
111 - a representação de minorias assume as seguintes modalidades:

a) voto limitado ou sistema de lista incompleta, caracterizado por o


número de candidatos em cada lista ser inferior ao número de
deputados a eleger, de modo que a lista maioritária nunca pode obter
mais do que, por exemplo, 2/3 ou 3/4 dos mandatos e os restantes
cabem à minoria;

b) voto único não transferível, em que cada eleitor vota num único
candidato e são eleitos os candidatos que, no conjunto do colégio,
obtiverem maior número de votos;

c) voto cumulativo, em que cada eleitor tem tantos votos quantos os


mandatos correspondentes ao colégio e em que pode conferi-los a um
mesmo candidato, e, deste modo, a minoria irá concentrar os seus votos
nos candidatos que calcula poder eleger.

como se vê, estes sistemas eleitorais têm de comum a sua natureza


empírica e probabilística. 0 sistema de voto limitado atribui à minoria
certa representação a priori, sem indagar do seu exacto peso e, quando
a maioria for considerável, esta poderá até desdobrar-se para lograr
também a representação concedida à minoria. os outros dois sistemas
eleitorais requerem, para fancionar, a efectiva realização do
comportamento dos eleitores que pressupoem.

208

não admira, pois, que, salvo o sistema de voto único vigente no japão, a
representação das minorias esteja por toda a parte abandonada.

iv - pelo contrário, a representação proporcional possui (ou julga


possuir) uma índole científica e orgânica, com base no princípio, aliás
muito simples, da correspondência entre o número de sufrágios obtido
por cada lista (ou partido) e o número de mandatos no parlamento de
que dispõe.

a noção foi-se precisando a partir de meados do século passado, com os


genebrinos v. considÉrant e e. maville, o dinamarquês androe, os
ingleses t. hare e stuart mill e outros, mas sob explicitações divergentes
em virtude de diversas interpretações e diversas aplicações dos
métodos matemáticos ao apuramento e à repartição dos mandatos.

assim, segundo o critério do quociente eleitoral (corrigido ou não), o


mais vulgarizado, divide-se o número total de votos expressos pelo
número de mandatos; e a cada lista pertencerão tantos candidatos
eleitos quantas as vezes que o quociente apurado couber no número de
votos por ela recebido; se restarem mandatos por atribuir, eles serão,
entre outras soluções, para a lista ou listas com mais fortes restos ou
para a que tiver mais forte média.

no critério do divisor comum (cuja melhor expressão é o sistema da


média mais alta de hondt), as cifras de votos obtidos por
209
cada lista são sucessivamente divididas por 1, 2, 3, ... (ou por 1, 1,5,
2, etc.) e os quocientes apurados dispostos por ordem decrescente; os
mandatos do círculo caberão então às listas a que pertencerem os
quocientes mais elevados das divisões assim efectuadas.

em alguns países, tem-se experimentado também a chamada


representação proporcional integral, quer em círculo único nacional
(israel) quer em círculos plurais com transferência dos restos para listas
nacionais (sistema de baden, usado na alemanha de weimar e na
holanda).

É também uma espécie de sistema proporcional o do voto único


transferível ou de hare (adoptado na tasmânia e na irlanda): cada
eleitor, em colégios plurinominais, vota num só candidato, mas deve
indicar uma ordem de preferência entre todos os candidatos; será eleito
o candidato que alcançar o quociente eleitoral e os votos a mais que
tiver obtido serão repartidos, na proporção das segundas preferências,
pelos restantes candidatos.

finalmente, é ainda um sistema proporcional (embora, à primeira vista,


pareça um sistema misto) o sistema adoptado na república federal da
alemanha’. aqui cada eleitor tem dois votos e metade dos deputados é
eleita por representação maioritária uninominal e outra metade por
representação proporcional. mas o princípio da proporcionalidade
persiste, porque os mandatos obtidos nos círculos uninominais são
imputados ao colégio eleitoral geral (e daí falar-se em representação
proporcional personalizada).

1. e também, recentemente, na nova zelândia.

210

42- representaÇÃo maioritÁria e representaÇÃo proporcional

1 - os debates sobre sistema eleitoral classicamente centram-se no


confronto entre representação maioritária com sufrágio uninominal e
representação proporcional. durante muito tempo, aquela prevaleceu
incontestada, até que, na passagem.do século xix para
0 século xx, o progresso das ideias democráticas fez crer a largos
sectores da doutrina e da opinião (mas não a todos) que a
representação proporcional era uma imposição evidente de justiça.

conhecem-se os argumentos a favor e contra um e outro grande


princípio.

11 - a representação maioritária não apenas legitima a eleição de


candidato no qual não votou a maioria dos eleitores (no caso de
escrutínio a uma volta) como permite que um partido com menos votos
em todo o território eleitoral venha a ter a maioria no parlamento, desde
que tenha vencido em maior número de círculos. e se um partido, por
hipótese, obtiver a maioria em todos os círculos, ele conseguirá a
totalidade dos lugares de deputados.

0 sistema propicia, no entanto, um mais directo contacto entre eleitores


e eleitos, uma maior responsabilização destes e, sobretudo, a
simpificação da vida política do país com a inerente vantagem da
estabilidade governamental.

211
111 - por seu turno, só a representação proporcional leva à constituição de
uma assembleia à imagem do eleitorado, na qual tomem assento todas as
tendências políticas significativas do país.

todavia, é ela própria um factor de multiplicação e fragmentação partidária,


com a consequente dificuldade de formação de governos duradouros ou que
não sejam de coligação.

ao pa .sso que a representação maioritária, diz-se, não confere aos cidadãos


senão o direito de votar, a representação proporcional concede-lhes também o
direito de eleger, o de eleger os candidatos do grupo ou partido da sua
escolha, assegurando uma igualdade de facto entre todos eles. mas foi
sustentado pelos teóricos do governo representativo clássico que assim acaba
por se dar uma representação de cada cidadão (ou partido) contrária ao
princípio da soberania nacional.

além disso, a representação proporcional, acrescenta-se, substitui um sufrágio


de homens por um sufrágio de ideias, o que parece coadunar-se melhor com a
concepção moderna da eleição política, não como acto designativo, mas como
acto de escolha de um programa ou projecto de sociedade. em contrapartida,
nessa escolha dilui-se o elemento de decisão: o eleitor vota no partido que
prefere, e não numa maioria da qual haja de sair o governo (como sucede nas
democracias imediatas à inglesa).

212

iv - em último termo, na representação maioritária a uma só volta, o sentido


político fundamental é a escolha do partido que deve formar governo.

na representação maioritária a duas voltas, a primeira’serve para as diferentes


forças políticas apresentarem os seus programas e os seus candidatos, mas
somente na segunda os eleitores fazem a opção decisiva.

na representação proporcional neutralizam-se os contrastes ou as polarizações


e procura-se a distribuição dos mandatos pelas diversas forças políticas.

É difícil dizer em geral qual destas funções há-de prevalecer. importa situá-las
em cada ordenamento em concreto.

43- sistemas eleitorais e sistemas políticos

1 - É tema importante o das relações entre sistema eleitoral e sistema


político, e a doutrina cura de apurar a medida em que uma lei eleitoral
contribui ou não para o reforço ou para a sobre-representação de uns partidos
em detrimento de outros.

11 - em 1951 maurice duvergeri formulou três ”leis”, que ficariam célebres e


que assim podem ser resumidas: ui) a representação maioritária a uma volta
provoca o dualismo de
1. em les partis politiques. na 6.4 ed., paris, 1967, pág. 237 e segs.
213
partidos rígidos; 2.!) a representação proporcional provoca partidos
múltiplos e independentes; 3.2) a representação maioritária a duas
voltas leva ao multipartidarismo temperado por alianças eleitorais.

outros autores - designadamente, douglas rae e glovann1 sartori - viriam


depois, repensar, aprofundar e pormenorizar estes assertos, atenuando-
os ou complementando-os; donde, proposições e regras
relativamente complexas.

em especial, douglas rae mostraria que a maior parte dos sistemas


eleitorais favorece os grandes partidos e penaliza os menores, embora
sem pôr em causa os diferentes efeitos de representação maioritária e
de representação proporcional. por’outro lado, chamaria a atenção para
a dimensão dos círculos’, para o contraste entre os sistemas com
círculos pequenos (sistemas uninominais ou com número restrito de
eleitos) e os demais sistemas: a proporcionalidade aumenta com a
magnitude dos círculos eleitorais2.

sartori acrescenta duas variáveis importantes: a consideração de


sistemas eleitorais fortes e débeis e a consideração de sistemas
partidários estruturados e não estruturados. sem sistemas
partidários estruturados não se passa de bipartidarismo por círculos
eleitorais a bipartidarismo de âmbito nacional’ 4

1. qp. cit., págs. 114 e segs.


2. qp. cit., pág. 125.

3. sistemi ellettorali, cit., loc.cit., pág. 248-

4. entre nós, andrÉ gonÇalves pereira (op. cit., pág. 11) adianta várias
hipóteses de trabalho, entre as quais as que se prendem com o
funcionamento
214

111 - desde que tomadas em termos não deterministas e não


mecanicistasl, as leis de duverger, com as correcções e os
complementos acabados de indicar (e outros, porventura) oferecem o
maior interesse. mas os sistemas eleitorais influenciam tanto os
sistemas de partidos e os sistemas políticos em geral quanto são por
eles influenciados e, em última análise, têm de ser compreendidos
à luz da cultura cívica dominante em cada país.

a representação maioritária é produto de certa cultura política


(basicamente, a dos países anglo-saxónicos), surge como instrumento
de sistemas bipartidários com institucionalização de partidos de governo
e de oposição e altemância garantida a médio prazo. decerto, pode
adequar-se bem a democracias há muito estabilizadas, sem grandes
fracturas ideológicas ou com despoliticização generalizada.

a representação proporcional, pelo contrário, traduz sociedades


ideologicamente mais fragmentadas, com maior conflitualidade política
e social, a que se procura responder com um

do sistema de governo e com a relação entre deputados e eleitores: a


representação proporcional determina instabilidade governativa; a
representação maioritária a duas voltas conduz a coligações pré-
eleitorais e a representação proporcional a coligações pós-eleitorais; a
representação maioritária acentua a importância individual dos
deputados e a sua responsabilidade perante os eleitores; a
representação proporcional, ao invés, acentua a importância das
máquinas partidárias.

1. basta lembrar países com sistemas maioritários e com mais de dois


partidos significativos (assim, várias vezes, o canadá) e países com
sistemas proporcionais e tendência para o bipartidarismo (assim, a
alemanha federal e, entre 1987 e 1995, portugal).

215
espírito compromissório. não por acaso, ao longo deste século, tem dominado
na maior parte dos países do continente europeu e tem sido sempre adoptada
por novas democracias.

a meio, de certa maneira, fica a representação maioritária a duas voltas ou


dois turnos, à francesa.

44. os sistemas eleitorais em portugal

1 - em portugal, desde a eleição das constituintes, em 182 1, o sistema


eleitoral atravessou diversas fases:

a) até 1859 e de 1895 a 1896 vigorou a 1representação maioritária com


sufrágio plurinominal.

b) de 1859 a 1884 foi adoptado o sufrágio uninominal.

q de 1884 a 1895 e de 1896 a 1901 vigorou um sistema misto de colégios


uninominais e plurinominais, com representação das minorias sob forma de
lista completa, na lei de 1884.

d) de 1901 a 1910 regressou-se simplesmente ao sufrágio plurinominal, mas


com listas incompletas.

e) as constituintes de 1911 foram eleitas com um sistema misto: nos


círculos de lisboa e porto, representação proporcional de harmonia com o
método de hondt; no ultramar, sufrágio uninominal; nos restantes círculos,
sufrágio plurinominal com listas incompletas.

216

f) na 1 república (inclusive no decreto n.2 3997, de 1918) o sistema foi idêntico


ao de 1901.

g) na vigência da constituição de 1933, adoptou-se, primeiro, a representação


maioritária em círculo único (só sendo eleitos os candidatos da lista vencedora
e que tivessem obtido, pelo menos,
1/10 dos votos atribuídos a essa lista); e, depois, desde 1945, a representação
maioritária em círculos distritais com sufrágio plurinominal.

h) na eleição da assembleia constituinte em 1975 seguiu-se a representação


proporcional por círculos de base distrital, com o método de hondt.

i) finalmente, a constituição de 1976 consagrou o princípio da representação


proporcional com carácter geral (art. 196.l’) e como limite material da revisão
constitucional (art. 290.q, hoje
288.2)1 2.

11 - no projecto de código eleitoral3 elaborado em 1986-1987 por uma


comissão de juristas nomeada pelo x governo
1. 0 método de hondt só é constitucionalmente imposto para a eleição dos
deputados à assembleia da república(art. 155.9, n.q 1) e, desde a revisão de
1989, para a eleição das assembleias das regiões administrativas quanto aos
membros eleitos pelas assembleias municipais (art. 260y). mas as demais leis
eleitorais têm-no previsto nas eleições para quaisquer órgãos colegiais.

2. na revisão constitucional de 1989, admitiu-se, para eleição dos deputados à


assembleia da república, a existência de um círculo nacional a par dos círculos
locais (art. 152.91 n.2 2).

3. na separata do boletim do ministério da justiça, págs. 16 e segs.


217
constitucional propuseram-se alguns aperfeiçoamentos aos sistemas
eleitorais para as assembleias políticas, entre os quais:

- a possibilidade de coligações de candidaturas, para efeito de maior


flexibilidade do sistema e de maior clareza das escolhas dos eleitores
(que poderão votar directamente em candidatos da sua preferência, sem
perda da utilidade - pois os seus votos acresceriam aos das demais
candidaturas coligadas).

- a limitação rigorosa da possibilidade de substituição temporária dos


eleitos durante o exercício do mandato - de modo a reforçar a
autenticidade do vínculo entre eles e os eleitores.

ao mesmo tempo, aventaram-se algumas alternativas de sistemas


eleitorais.

”a) na alternativa a - concemente à eleição do parlamento prevê-se a


criação de um círculo eleitoral correspondente a todo o território
nacional e de círculos eleitorais parciais.

”numa primeira sub-hipótese, os círculos eleitorais parciais coincidem


com os actuais círculos eleitorais do território nacional, salvo quanto aos
de lisboa e porto que são divididos, respectivamente, em três e em dois
círculos eleitorais. na segunda sub-hipótese, e para além desta divisão,
agrupam-se alguns círculos eleitorais de dimensões mais reduzidas, para
se alcançar uma maior homogeneidade. em qualquer dos casos, a
comissão assegurou-se que a alternativa não conduzia a qualquer
distorção significativa dos resultados eleitorais.

218

”uma das características essenciais desta alternativa consiste na divisão


dos círculos eleitorais parciais em tantas circunscrições de
candidatura, quantos os mandatos que lhe caibam, as quais
correspondem a áreas de autarquias locais ou seus ajuntamentos, de
modo a abranger um número de eleitores o mais aproximado possível
entre si; o mapa das circunscrições é elaborado pela comissão nacional
de eleições; e os mandatos são conferidos aos candidatos segundo a
ordem decrescente das percentagens sobre o número total de votos
validamente expressos por eles obtidos nas respectivas circunscrições.

”este processo permite um contacto mais estreito entre eleitores e


eleitos e aumenta, de forma significativa, o poder de escolha dos
cidadãos. em compensação, e para permitir que os partidos políticos
mantenham uma certa margem de previsão da composição dos
respectivos grupos parlamentares, no círculo eleitoral nacional os
mandatos (sessenta e seis) continuam a ser atribuídos segundo a ordem
de precedência na lista.

”simultaneamente, prevê-se que exista um só círculo correspondente


aos eleitores recenseados fora do território nacional.

b) na alternativa b prevêem-se igualmente um círculo eleitoral nacional,


um círculo correspondente aos eleitores residentes em macau e no
estrangeiro, e cento e vinte e três círculos eleitorais locais. a
actualização da divisão eleitoral compete à comissão nacional de
eleições.

219
”por cada círculo eleitoral local, é eleito um só deputado mas não se
quebra o princípio da proporcionalidade, visto que:

1 - nenhum partido pode apresentar candidaturas nos círculos eleitorais


locais se não apresentar, simultaneamente, candidaturas no círculo
eleitoral nacional;

2 - os mandatos obtidos pelas diversas candidaturas nos círculos


eleitorais locais não podem exceder o número de mandatos que
caberiam às mesmas candidaturas no conjunto daqueles círculos por
aplicação do método de hondt, sendo-lhes subtraídos, se tal se verificar,
os mandatos correspondentes aos círculos eleitorais locais em que
tenham obtido menor percentagem relativamente ao número total de
votos validamente expressos.

”trata-se de sistema semelhante ao adoptado na república federal da


alemanha, com o qual se procura realizar aquilo a que se tem chamado
uma representação proporcional personalizada. devido, porém, às
apertadas balizas constitucionais do número de deputados (art. 15v’ da
lei fundamental) tem de se estatuir aqui uma regra de subtracção em
caso de não correspondência com os resultados eventualmente
alcançados pelos partidos no conjunto dos círculos eleitorais locais’.

1. a alternativa b já tinha constado do projecto de revisão constitucional


da acção social-democrata independente de 1980 (v. separata n.9 6/11
do diário da assembleia da república, pág. 19).

220

”c) a alternativa c reporta-se às eleições para as assembleias das


regiões autónomas e é, em parte, a aplicação mutatis mutandis da
alternativa a.

”assim, o território de cada uma das regiões autónomas constitui um


único círculo eleitoral, que se divide em circunscrições de candidatura
em número igual ao dos deputados a eleger; este é fixado em
cinquenta.”

estas propostas não tiveram seguimento até agora, se bem que no


contraditório político e em debates acadêmicos a questão da refonna do
sistema eleitoral da assembleia da república apareça frequentemente,
inclusive em projectos de revisão constitucional.

45. 0 regime jurídico da eleiÇÃo política

1 - a matéria das eleições (das eleições das cortes) teve largo


desenvolvimento nas constituições de 1822, 1826 e 1838, em capítulos
próprios (arts. 32.2 a 74.2, 63.2 a 70.l> e 71.2 a 79.2, respectivamente).
já não nas constituições de 1911 e 1933, que, afora certas normas sobre
a eleição do presidente da república (arts. 38.2 e segs. e 72.l’ e segs.),
remeteram para lei especial a organização dos colégios eleitorais e o
processo de eleição dos membros do parlamento (art. 8.2, § único e art.
85.2, § 1.9).

3. v., por exemplo, que reforma eleitoral?, obra colectiva ed. pela
comissão nacional de eleições, lisboa, 1992.

221
a constituição de 1976 não se limita a contemplar de novo aspectos
versados nas constituições do século xix. vai muito além, quer no plano
dos preceitos, quer na tentativa de explicitação de princípios gerais; e
isto quer por considerações de ordem técnico-jurídica, quer por
considerações de ordem política, ligadas a uma mais clara afirmação
das regras de democracia representativa e à defesa contra as
desvalorizações do voto que se deram durante o estado novo e por
parte de certos sectores político-militares, em 1975.

11 - para a constituição, se a soberania reside no povo (art-


3.2, n.2 1), a forma primeira do seu exercício e o sufrágio universal,
igual, directo, secreto e periódico (art. 10.2, n.!’ ’??, aditado na revisão
constitucional de 1982). este princípio, concretizado mais de uma vez
(arts. 116.2, n.2 1, 124.9, n.2 1, 233.2, n.2 1, e 241.2), vem a ser um
limite material da revisão constitucional, juntamente (embora noutro
nível) com o princípio da representação proporcional (art. 288.9, alínea
h».

sufrágio universal e igual significa que o sufrágio é um direito de todos


os cidadãos maiores de 18 anos, ressalvadas as incapacidades previstas
na lei geral (art. 49 .2 , n.9 1), não podendo estas ser senão as
decorrentes do estado de direito democrático. 0 mesmo princípio vale
para a capacidade eleitoral passiva (art. 50.2, n.2 1).

0 exercício do sufrágio é pessoal (art. 49.9, n.9 2) - o que exclui qualquer


tipo de representação ou procuração, conquanto

222

não, dentro de limites razoáveis, o voto por correspondência, salvo na


eleição do presidente da república (art. 124.2, ny 2). e o seu exercício
constitui um dever cívico - o que não implica, nem tão-pouco impede, o
chamado voto obrigatório ou obrigação sancionada de votar; a esse
dever acrescem o de recfeonnsneaamspernetoisetaos nde colaboração
com a administração eleitoral, nas

lei (art. 11 6.q, n.l’s 2 e 4).

por seu turno, a periodicidade liga-se ao princípio da renovação ou da


não vitaliciedade dos cargos políticos (art. 121.p) e determina a
repetibilidade dos actos electivos ao longo dos tempos.

111 - regras gerais sobre as eleições políticas, em termos institucionais,


são as que estipulam:

- 0 carácter oficioso, permanente e único para todas as eleições por


sufrágio directo e universal do recenseamento eleitoral (art. 116.% n.2
2).

- a marcação do dia das eleições do presidente da república, dos


deputados à assembleia da república, dos deputados portugueses ao
parlamento europeu e dos deputados às assembleias legislativas
regionais (mas não dos titulares dos órgãos do poder local) pelo
presidente da república de harmonia com a lei eleitoral (art. l36.`, alínea
b».

- a liberdade de propaganda (art. 116 .2 , n.2 3, alínea a».


223
- a igualdade de oportunidades e de tratamento de diversas
candidaturas (art. 116.2, n.2 3, alínea b», com direito a tempos
de antena regulares e equitativos na rádio e na televisão (art.
40.% n.2 3).

- a imparcialidade das entidades públicas perante as


candidaturas (art. 116.2, n.2 3, alínea c)

-a fiscalização das contas eleitorais (art. 116.2, n.2 3, alínea d».

- a representação proporcional nas eleições para órgãos


colegiais ou, porventura, numa interpretação mais restrita, nas
eleições para assembleias (arts. 116.9, n.2 5, 155.2, 233.2, n.2
2, e
241.9).

- a necessidade de, no acto de dissolução de órgãos colegiais


baseados no sufrágio directo, ser marcada a data das novas
eleições, a realizar nos 90 dias seguintes e pela lei vigente ao
tempo da dissolução, sob pena de inexistência jurídica daquele
acto (art. 116.2, ny 6).

- a competência dos tribunais para o julgamento da validade e


da regularidade dos actos eleitorais (art. 116.2, n.2 7).

iv - formuladas a propósito da eleição dos deputados à


assembleia da república, devem ainda ter-se por extensivas às
eleições das demais assembleias políticas e das câmaras
municipais as seguintes regras:

224

- no caso de a constituição ou a lei prever círculos eleitorais, o número


de titulares a eleger por cada círculo é proporcional ao número de
cidadãos eleitores nele inscritos (art. 152.9, n.’2).

- os titulares dos órgãos colegiais representam toda a colectividade -


todo o país, toda a região autónoma, toda a autarquia - e não os círculos
por que são eleitos, quando por eles sejam eleitos (art. 152.9, n.2 3).

- ninguém pode ser candidato por mais de um círculo eleitoral ou


figurar em mais de uma lista (art. 154.2, ny 2).

- 0 preenchimento das vagas que ocorrerem, bem como a


substituição temporária dos titulares por motivo relevante, são
regulados pela lei eleitoral (art. 156.2).
v - além das eleições do presidente da república, dos deputados à
assembleia da república e às assembleias legislativas regionais e -dos
titulares dos órgãos do poder local - todas elas, excepto as das juntas de
freguesia, das juntas regionais e, parcialmente, das assembleias
municipais e das assembleias regionais (arts. 247.% 260.2, 251.2 e
259.9), eleições por sufrágio directo e universal - a constituição
contempla três outros tipos de eleições:

a) eleições para titulares de certos órgãos de estado a partir de outro


órgão, a assembleia da república - seja por representação proporcional,
seja por maioria de dois terços de deputados
225
presentes, desde que superior à maioria absoluta dos deputados
em efectividade de funções (art. 166.2, alíneas g) e h»;

b) eleições em certos órgãos de titulares de órgãos internos - as


do presidente e dos demais membros da mesa da assembleia da
república (art. 178.2, alínea b» e as dos presidentes do tribunal
constitucional, do supremo tribunal de justiça e do supremo
tribunal administrativo (arts. 224.2, ny 4, 211% n.2 2, e 214.%
n.2 2);

c) eleições das comissões de trabalhadores (art. 54.% n.2 2),


dos dirigentes sindicais (art. 56.9, n.2 3) e das comissões de
moradores (art. 264.% ny 3) e, implicitamente, por força da
adopção do princípio da democraticidade interna, eleições para
os órgãos dos partidos (art. 51.2, n.2 1), das cooperativas (art.
61.2, n.9 2) e das associações públicas (art. 267.2, n? 3).

fácil é de ver que estas eleições possuem natureza diversa das


eleições para os órgãos de soberania, das regiões autónomas e
do poder local. se as eleições mencionadas em a) e b) são
também políticas, enquanto se reportam a interesses gerais,
elas não constituem vínculos de representação política: por
exemplo, os juizes do tribunal constitucional não representam o
parlamento; são, por definição, independentes dele, e o mesmo
se diga dos presidentes eleitos pelos titulares de qualquer
órgão (quer dizer, a eleição esgota-se na mera designação).
quanto às eleições mencionadas em c), elas decorrem em
grupos existentes na sociedade civil, ainda que em contacto
com o estado, e só vêm a ser políticas pelas implicações que
adquirem.

226

vi - 0 processo ou procedimento em qualquer das eleições


políticas portuguesas compreende ainda seis fases (cada uma
com subfases):

1) marcação de eleições;

2) apresentação de candidaturas
3) campanha eleitoral; 5

4) constituição das assembleias de voto;


5) votação;

6) apuramento, parcial e geral.


vii - 0 direito eleitoral adjectivo repousa na intervenção dos
tribunais. ao contrário do que sucede noutros países, o
contencioso respeitante a todos os procedimentos eleitorais
está-lhes confiado - em coerência, aliás, com os princípios do
estado de direito.

trata-se de um contencioso de tipo administrativo, mas


atribuído aos tribunais judiciais e ao tribunal constitucional, e
não aos tribunais administrativos, dada a natureza
especificamente constitucional da administração eleitoral (e daí
a necessidade de uma interpretação adequada do art. 214.2, n.2
3 da constituição). de resto ,’embora o art. 116.% n. 7 não fale
especificamente em tribunais judiciais, a competência destes
aparece consonante com o princípio geral da sua competência
no domínio dos direitos, liberdades e garantias - pois que está
em causa (mesmo nas eleições para os órgãos das autarquias
locais) um direito, liberdade e garantia, o direito de sufrágio.

227
são regras tradicionais do nosso contencioso eleitoral duas: que
as irregularidades ocorridas no decurso da votação e do
apuramento apenas podem ser apreciadas em recurso, desde
que hajam sido objecto de reclamação ou protesto apresentado
no acto em que se tenham verificado (assim, por toda a
legislação actual, o art.
117.9 da lei ri.!’ 14/79, de 16 de maio); e que a votação em
qualquer assembleia de voto (ou em qualquer círculo eleitoral)
só é julgada nula, implicando a sua repetição, quando as
irregularidades possam influir no resultado geral da eleição (art.
119.2 da mesma lei n.2 14/79).

a jurisprudência do tribunal constitucional forimilou também o


princípio da aquisição sucessiva. todos os actos dos
procedimentos eleitorais são impugnáveis e não é possível
passar de uma fase a outra sem que aquela esteja
definitivamente consolidada. porém, não sendo os actos
correspondentes a uma dada fase objecto de reclamação ou
recurso no prazo legal ou, tendo-o sido, não sendo declarada a
invalidade ou a irregularidade, já não mais poderão ser
contestados no futuro.

À face do art. 225.2, n.2 2, alínea c) da constituição, o tribunal


constitucional dir-se-ia funcionar apenas como tribunal eleitoral
de última instância. mas a lei n.9 28/82, de 15 de novembro,
dilatou a sua competência em matérias eleitorais, fazendo-o
intervir também sem ser como tribunal de recurso (dilatou-a
talvez demasiado, com sobrecarga de trabalho em certos
períodos em detrimento, na prática, da sua competência por
natureza que é a de fiscalização da constitucionalidade e da
legalidade de normas jurídicas).

228

viii - a par dos tribunais existe desde 1974 (salvo durante um


pequeno lapso de tempo) a comissão nacional de eleições.

não contemplada na constituição, ela insere-se de pleno no


âmbito da administração eleitoral a que alude o art. 116.2, n.2
4. segundo a lei n.2 71/78, de 27 de dezembro (que continua a
regulá-la), cabe-lhe, essencialmente, assegurar a igualdade de
tratamento tanto das candidaturas como dos cidadãos em todos
os actos de recenseamento e operações eleitorais. e, quer as
sucessivas leis eleitorais, quer as leis sobre referendos locais e
nacional têm-lhe conferido novos poderes, como a distribuição
do número de deputados a eleger por cada círculo eleitoral do
território nacional em razão do número de eleitores por ele
inscritos (art. 13.2 da lei n.2 14/79) ou a verificação das
declarações dos partidos quanto à tomada de posição sobre
questões submetidas ao eleitorado (art. 32.2 da lei n.9 45/91, de
3 de agosto).

nem por isso o nosso sistema se converte num sistema misto.


pode falar-se, sim, num sistema complexo, com um duplo
controlo dos procedimentos eleitorais - jurisdicional e
administrativo. a separação afigura-se clara e, se não é
completa, é apenas porque os tribunais ainda possuem certas
competências materialmente administrativas (as atinentes à
apresentação das candidaturas) - ao passo que a comissão
nacional de eleições deixou de exercer, em 1982, o poder de
suspensão do direito de antena dos partidos, por se reconhecer
que ele era de natureza jurisdicional. aliás, das decisões da
comissão nacional de eleições há recurso - ainda um
contencioso administrativo constitucional - para o tribunal
constitucional [art.
9.!’, alíneaj) da lei ny 28/82, de 15 de novembro].

229
ix - 0 direito eleitoral político constante da constituição e da lei
serve de direito subsidiário da regulamentação de quaisquer
outras eleições, públicas ou privadas, que decorram no âmbito
da ordem jurídica portuguesa. e há alguns princípios
constitucionais tão essenciais que se lhes aplicam directamente.

são tais princípios, pelo menos: o do sufrágio universal e igual


relativamente aos membros da categoria ou comunidade a que
se reporte a eleição; o do sufrágio secreto (como, de resto, a
constituição explícita para as eleições em grupos que regula, as
das comissões de trabalhadores, das associações sindicais e das
comissões de moradores); o princípio de sufrágio periódico; o da
liberdade e da igualdade de propaganda; o da junsdicionalidade
da apreciação (ou da última apreciação) dos recursos eleitorais,
e, talvez, o da representação proporcional para efeito de
eleições de assembleias.

retomaremos esta ideia a propósito dos partidos políticos

230

§ 2.2

0 referendo

46. 0 referendo e os institutos afins

1 - por referendo entende-se (numa acepção genérica, susceptível de


ser modelada à face de vários sistemas jurídico-políticos) a votação
popular, por sufrágio individual e directo dos cidadãos, tendente a uma
deliberação política (ou, mais raramente, administrativa), a uma
indicação, aos órgãos de governo ou de gestão ou, porventura a outros
efeitos constitucional ou legalmente previstol, 2.
1 .trata-se de referendo no âmbito do estado e de comunidades de base

territorial: aqui surgiu o fenômeno e desenvolveu-se a sua problemática.


mas o princípio tem recebido aplicação, com adaptações, noutras áreas,
sejam entidades administrativas não territoriais (v.g., associações
públicas), sejam pessoas colectivas de direito privado não indiferentes
para o direito público associações sindicais e partidos políticos).

2. cfr. sarah wambaugh, ”la pratique des p1ébiscites internationaux’, in


recueil des cours .... 1927, 111, págs. 153 e segs.; mirkine-guetÉvitch,
231
11 - em roma, o plebiscitum era uma das espécies das leges rogatae (leis votadas em
assembleias populares): submetido pelos tribunos da plebe a deliberação dos concilia
plebis, a partir de lex hortensia de plebiscitis (287 a.c.) passou a vincular quer plebeus

”le référendum et de système parlementaire”, in revue politique et parlementaire, 193


1, págs. 304 e segs.; carrÉ de malberg, ”considérations théoriques sur ia question de
ia combinaison du référendwn et du parlementarisme”, in revue du droit publie, 193 1,
págs. 225 e segs.; maurice batelli, les institutions de démocratie directe en droit suisse
et comparé moderne, paris, 1931; afonso costa, filho, parlamentarismo, dissolução,
referendum, lisboa, 1936; georges ferriÈre, ”dissolution et référendum”, in revue du
droit public, 1946, págs. 411 e segs.; temistocle ~tines, il referendum negli
ordinamenti particolari, milão, 1960; jean-marie garrigou-lagrange, ”le dédoublement
constitutionnel - essai de rationalisation de ia pratique référendaire de ia v.è1e
république”, in revue du droitpublic, 1969, págs. 641 e segs.; bervÉ duval, leblanc-
decho1say e patrick minou, référendum et p1ébiscite, paris, 1970; ciro lipartiti,
”plebisciti”, in novissimo digesto italiano, xii1, págs. 133 e segs.; carmelo carbone,
”referendun’, in novissimo digesto italiano, xiv, págs. 106 e segs.; julian santamaría,
”participación politica y democracia directa”, in estudios de ciencia politica y sociologia
- rómenaje al profesor carlos ollero, madrid,
1972, págs. 743 e segs.; eugenio de marco, contributo allo studio del referendum nel
diritto publico italiano, pádua, 1974; jean-marie denquin, référendum et p1ébiscite,
paris, 1976; peter saladin, ”le référendum populaire en suisse”, in revue internationale
de droit comparé,
1976, págs. 331 e segs.; jean-franÇois prÉvost, ”le droit référendaire dans
1’ordonnancement juridique de ia constitution de 1958”, in revue du droit public, 1977,
págs. 5 e segs.; referendums -a comparative study of practice and theory, obra
colectiva editada por davii) butler e austin raunney, washington, 1978; angelo mattioni,
”considerazioni sul referendum nella organizzazione costituzionale”, in il politico, 1979,
págs.
232

quer patrícios. por seu lado, na idade média, os procuradores do povo, quando
chamados a participar em decisões para além dos seus poderes ou instruções, faziam-
no sob reserva de confinnação, ou seja, ad referendum (e esta expressão subsiste na
prática internacional, na conclusão de tratados).

mas as duas instituições têm de comum o chamarem os interessados, os cidadãos ou


os titulares do poder, a pronunciar-se sobre assuntos da política geral ou local. e, na
época contemporânea, elas aparecem a par (ou quase a par) ou identificam-se,
embora razões de ordem jurídica ou utilizações políticas historicamente localizadas
expliquem algumas distinções ou contraposições.

496 e segs.; pedro cruz villalon, ”el referendura consultivo como modelo de
racionalización constitucional”, in revista de estudios politicos, n.9 13, janeiro-fevereiro
de 1980, págs. 145 e segs.; michele guillaume-hofnung, ”l’expérience italienne du
référendum abrogatif’, in revue internationale de droit comparé, 1983, págs. 108 e
segs.; achille chiaptetti, ”plebiscito”, in enciclopedia del diritto, xxxiii, págs. 945 e
segs.; çlvaro marques e thomas b. smith, ”referendums in the third world”, in electoral
studies, 1984, págs. 85 e segs.; référendum, obra colectiva sob a direcção de francis
deipérée, bruxelas, 1985; jean-louis quermone, ”le référendum: essai de typologie
prospective”, in revue du droitpublic, 1985, págs. 577 e segs.; ernst-wolfang
bõckenfõrde, ”democrazia e rappresentanza”, in quaderni costituzionali, 1985, págs.
227 e segs.; ricardo leite pinto, referendo local e descentralizaçâo política, coimbra,
1988; referendum e democrazia e referendum, obras colectivas, roma-bari, 1992 e
1994; luís barbosa rodrigues, 0 referendo português a nível nacional, lisboa, 1993,
págs. 19 e segs.; francis hamon, le référendum - Étude comparative, paris, 1995.

233
111 - entre estas, apontem-se:

a) 0 referendo, processo de governo realmente democrático, e o


plebiscito, processo de governo cesarista (como adiante se verá) ou acto
pelo qual o povo delega o poder num homem (duguit);

b) 0 referendo, deliberação do povo que acresce à deliberação de um


órgão do estado, formando um acto complexo, e o plebiscito,
deliberação do povo só por si, com efeitos imediatos (maurice batelli);

c) 0 referendo, acto norinativo ou tendo por objecto um acto normativo,


e o plebiscito, acto relativo a determinado facto ou evento, como a
anexação de um território ou a escolha de uma forrna de governo (santi
romano, costantino mortati);

d) 0 referendo, processo de governo ou de poder constituído, em


espécial do poder legislativo, e o plebiscito, processo constituinte para
que se apela a fim de se decidir uma modificação da constituição
(marcello caetano, claude emer1);

e) 0 referendo, instituto decorrente de normas constitucionais, e o


plebiscito, instituto não regulamentado previamente por normas sobre a
constituição do ordenamento (achille chiappetti).

satisfatório não julgamos nenhum destes critérios. e como o acto do


povo é, em si, sempre o mesmo, tão-pouco divisamos
234

grande interesse na dicotomia. por isso e porque é este o termo hoje


mais divulgado, preferimos falar aqui apenas em referendo.

iv - em contrapartida, arredamos uma acepção amplíssima de referendo


que abrangesse o chamado referendo orgâníco (pelo qual um órgão
se pronuncia sobre a deliberação de outro órgão da pessoa colectiva,
para efeito de alargamento da sua representatividade ou de
fiscalização). ainda que este possa ser sucedâneo do referendo,
verdadeiro e próprio, dito então inorgânico (como sucedeu em algumas
fases da evolução do direito municipal português, no século xx), a sua
lógica apresenta-se bem diversa: é a lógica da articulação entre órgãos
do poder, e não já a da participação dos cidadãos nas decisões
colectivas.

de igual sorte, também não é de considerar referendo a deliberação ou


qualquer outra votação realizada em assembleia em que os cidadãos se
reúnam (seja como tais, em termos de assembleia ou de assembleia
popular ou landsgemeinde, seja, por exemplo, como moradores).
0 instituto do referendo só existe quando os cidadãos não podem - pelo
seu número, pela extensão do território, pela complexidade dos
problemas ou por outros factores - estar fisicamente todos presentes, ao
mesmo tempo, numa assembleia para deliberar ou emitir um juizo; só
existe quando, não podendo
235
haver assembleias orgânicas de cidadãos, se tem de recorrer ao sufrágio
em múltiplas assembleias de voto simultâneas.

v - 0 referendo não esgota os mecanismos habitualmente designados de


democracia semidirecta inseridos em sistema representativo. cruzando-
se com ele, encontram-se outros institutos como a iniciativa popular, o
veto popular ou a revogação popular de mandato.

0 referendo e uma votação, deliberativa ou consultiva. a iniciativa


popular e a formulação de um projecto (de um projecto de lei, o mais
das vezes) por um conjunto de cidadãos perante a assembleia
representativa (iniciativa indirecta) ou perante o próprio povo
(iniciativa directa) - e neste caso vem a ser por iniciativa popular que
se abre o processo referendário.

no veto popular e na revogação de mandato (recall no direito norte-


americano) manifesta-se outrossim uma iniciativa que desemboca em
referendo, só que iniciativa de sinal negativo ou de controlo: oposição a
certa lei aprovada pelo parlamento que leva determinado número de
cidadãos a requerer uma votação do povo soberano, no veto popular
(contraposto a sanção popular, em que, a partida, o decreto destinado
a converter-se em lei carece de aprovação pelo povo); oposição, na
revogação do mandato, a certo magistrado ou titular de um órgão, a
qual leva, por seu turno, a solicitar um voto sobre a sua subsistência no
cargo.

236

47. modalidades de referendo

É muito largo o elenco das modalidades de referendo. pode propor-se a


seguinte classificação:

a) referendo de direito interno (ou referendo no estrito domínio de


uma ordem jurídica estadual) e referendo de direito internacional ou
com relevância no plano do direito internacional (referendo respeitante a
formação e a outras vicissitudes do estado ou do seu território, bem
como a determinadas comunidades políticas não estaduais);

b) referendo de âmbito nacional, de âmbito regional e de âmbito


local (ou, grosso modo, referendo correspondente a actos jurídico-
públicos do estado, a actos de regiões autónomas ou outras regiões ou
territórios e a actos de autarquias locais);

c) referendo constitucional, legislativo, político e administrativo


(ou referendo relativo a normas constitucionais, a actos legislativos, a
actos políticos ou de governo ou a actos da função administrativa), e
subdividindo-se o primeiro em referendo constituinte (de aprovação
da constituição ou atinente a grandes opções constitucionais) e em
referendo de revisão constitucional’;

d) referendo necessário e referendo facultativo (ou seja: referendo


de realização ope legis, que tem de se efectuar verifi-

1 - sobre referendo constituinte e referendo de revisão constitucional, v.

manual...,
111, 3. ed., coimbra, 1991, págs. 93-94 e 157-158, respectivamente.

237
cados certos pressupostos constitucionais ou legais, e referendo
dependente de uma livre iniciativa de certos órgãos ou sujeitos);

e) referendo de iniciativa popular, de iniciativa parlamentar, de


iniciativa governamental e de iniciativa presidencial ou
monárquica (consoante os casos, referendo que pode ser
desencadeado por iniciativa dos cidadãos em determinado número ou
por
4%

decisão de um órgão govemativo ou homólogo);

f) referendo deliberativo e consultivo (ou seja, referendo que se


traduz numa deliberação e referendo que, juridicamente - politicamente
pode ser diferente - apenas envolve uma indicaçao ou uma
recomendação);

g) referendo positivo e negativo (consoante o desencadear do


processo de referendo se destina a obter a aprovação, a sanção, a
confirmação ou ratificação de um acto do poder público ou, pelo
contrário, a sua revogação ou a cessação dos seus efeitos);

li) referendo suspensivo e resolutivo (ou seja, referendo de cujo


resultado positivo depende a perfeição ou a eficácia de um acto ou de
que depende a cessação dessa eficácia ou da vigencia das normas seu
conteúdo).

48. história e direito comparado

1 - a prática de referendos começou em alguns estados norte-


americanos a seguir a proclamação da independencia (entre 1778
238

e 1780), mas foi em frança um pouco depois que surgiram as suas


primeiras - e contraditórias - elaborações político-constitucionais
específicas.

com efeito, na concepção da forma de governo jacobina, se tem de


haver um órgão electivo, ele encontra-se sempre dependente da decisão
popular. conforme previa a constituição do ano 1 (1793), os projectos
aprovados pelo corpo legislativo seriam submetidos a votação dos
cidadãos se, nos 40 dias subsequentes ao seu envio as comunas, na
maioria dos departamentos um décimo das assembleias primárias tal
reclamasse.

pelo contrário (como igualmente se sabe), na forma de governo


cesarista, a concentração do poder é num órgão singular (o primeiro-
cônsul, o imperador). todavia, o chefe do estado, ainda quando investido
numa dignidade monárquica, vai procurar uma legitimação democrática
e, na ocorrência de crises, um modo de suplantar a oposição de corpos
constituídos: e o apelo directo ao povo por via de plebiscito. a ideologia
e a prática do regime divergem das do governo jacobino, o fundamento
numa democracia absoluta revela-se muito próximo.

só muito mais tarde se lograria desprender a ideia de referendo destas


amarras, autonomizá-lo, objectivá-lo.

11 - as constituições francesas de 1793 e de 1795 (dos anos 1 e 111),


primeiramente, e depois as de 1799, 1802 e 1804, seriam
239
todas aprovadas por referendo ou plebiscito. e isso não pouco conf

riúiria para que, por reacção nos países influenciados pelo


constitucionalismo francês, durante muitas décadas, ele fosse
repudiado. por motivos diferentes (ligados ao bom funcionamento das
suas instituições), algo de semelhante ocorreria nos países pertencentes
às famílias constitucionais britânica e norte-americana.

a excepção significativa vem a ser a suíça, devido às peculiaridades da


sua experiencia democrática em estados (confederados até 1848,
federados a seguir) com carácter municipal. 0 esquema consagrado na
sua primeira constituição federal (exactamente de
1848) - referendo constitucional obrigatório, referendo legislativo
facultativo a nível federal e obrigatório em certos cantoes, conjugação
com iniciativa popular permanece, no essencial, até hoje, com
constantes e quase mensais aplicações.

entretanto, no século xix (tal como já sucedera em finais do século


anterior) recorre-se a votações populares, a plebiscitos, não tanto em
nome do princípio democrático quanto em nome do princípio das
nacionalidades, para a formalização de mutações territoriais: assim a
anexação das ilhas jónicas pela grécia, a do eslésvigo do norte pela
prússia e alguns momentos da unificação italiana.

111 - na passagem do século xix para o século xx, o avanço das ideias
democráticas, a extensão do suftágio e algum desencanto
240

perante o funcionamento das instituições parlamentares criam um


terreno favorável a introdução de elementos inovadores.

0 referendo e a iniciativa popular ganham incremento em muitos dos


estados norte-americanos, na austrália e em alguns países nórdicos (e é
por essa via que a noruega se separa da suécia em 1905).

no primeiro pós-guerra, o. entusiasmo constitucional e a procura de uma


”racionalização do poder” vão no mesmo sentido, na çustria, na
checoslováquia, nos países bálticos, em espanha (constituição de 193 1)
e na irlanda. caso mais paradigmático é o da constituição alemã de
1919 (weimar)i. os resultados não se oferecem, todavia, muito
satisfatórios no contexto da época, e não são poucos os exemplos de
aclamação ou manipulação plebiscitária.

no segundo pós-guerra, o instituto do referendo continua, apesar disso,


a difundir-se. contemplam-no constituições como a italiana de 1947
(referendo legislativo resolutivo ou revogatório, referendo sobre
modificações das regiões e referendo consultivo regional), a alemã
ocidental de 1949 (para modificações das lãnder), a francesa de 19’58
(referendo sobre organização dos

1. prevendo referendo para a resolução de conflitos, no interior do


reichstag, entre ele e o reichstag e entre as câmaras e o presidente do
reich; bem como para efectivação da responsabilidade política deste
perante o povo a pedido do parlamento (e importando a recusa de
mandato a dissolução do reichstag).
241
i poderes’públicos e sobre certos tratados e referendo sobre a eventual
separação de tèrritórios ultramarinos).

mais recentemente, ele consta da constituição sueca de 1974, da espanhola


de 1978 (com referendo consultivo político e referendo obrigatório para revisão
de princípios constitucionaios fundamentais), da equatoriana de 1979, da
brasileira de 1988 (com referendo legislativo e, em 1993, plebiscito para
escolha entre república e monarquia e entre presidencialismo e
parlamentarismo) ou da santomense de 19901.

nuns casos, mostra-se o referendo um instrumento adequado’ ou


simplesmente possível para se ultrapassarem dificeis situações políticas;
noutros, não deixa ele próprio de acarretar problemas jurídico-constitucionais
(como aconteceu em 1975 na grã-bretanha, por *causa da sua conjugação
com o princípio da soberania do parlamento).

1. registem-se ainda os seguintes importantíssimos referendos dos últimos 50


anos: de 1945, em frança, sobre a atribuição de poderes constituintes a
assembleia a eleger; de abril e outubro de 1946, sobre a constituição da iv
república; e de 1958 sobre a constituição da v república e sobre a comunidade
francesa (também realizado nos territórios ultramarinos e donde resultou a
independência da guiné-conacri); de 1946 em itália, e de 1974, na grécia,
sobre a opção entie monarquia e república; de 1950, na bélgica, sobre a crise
dinástica; de 1972, na noruega, e de 1975, na grã-bretanha, sobre a
integração na comunidade económica europeia (ali recusada, aqui aprovada);
de 1976 e de 1978, em espanha, sobre a transição do regime autoritário para
o novo regime constitucional democrático; de 1979, na escócia e em gales,
sobre autonomia regional; de 1983 e de 1995, em quebeque, sobre a evpntual
secessão do canadá; de 1992, na dinamarca, sobre o tratado de maastricht (da
união europeia.).

242

iv - 0 referendo também viria a ser acolhido, no século xx, fora da democracia


representativa: nas leis fundamentais espanholas do general franco (após
1945), na constituição da república democrática alemã de 1974, na
constituição de são toiné e príncipe de 1975, na constituição argelina de 1976,
etc.

assim como algumas constituições marxistas-leninistas consignaram o


princípio da revogabilidade do mandato pelos eleitores.

naturalmente, em qualquer destas situações, as regras constitucionais e as


práticas deveriam ser apreendidas nos respectivos contextos.

tal como a eleição, o referendo, em sistemas não pluralistas, não pode traduzir
uma opção livre e aberta as diversas correntes de opinião - o que não significa
que não possa desempenhar um papel de relevo ao serviço de finalidades
precisas (afirmação da unidade política, legitimação e reforço do poder dos
govemantes, superação de antagonismos culturais, religiosos ou
etnicos, efeitos para o exterior).

v - por último, também no domínio do direito internacional tem prosseguido a


prática do recurso ao plebiscito ou referendo em variadas circunstâncias
(questões de minorias nacionais, anexações ou desanexações territoriais,
estatuto de territórios sob tutela, acesso a independência de comunidades
coloniais).

243
a sua antenticidade tem sido, contudo, bastante variável, em face das
circunstâncias, dos estádios de desenvolvimento sociocultural e dos
sistemas políticos envolventes, mais ou menos pluralistas.

49. 0 referendo em portugal antes de 1974

1 - em portugav, a ideia do referendo de âmbito nacional aparece pela


primeira vez em 1872 na secção v do projecto de lei de reforma da carta
constitucional subscrito por josé luciano de castro, sob a forma de
ratificação popular das alterações constitucionais2.

muito mais tarde, durante a discussão do que viria a ser o art.


63.2 da 1constituição de 1911, o deputado goulart de medeiros propôs
a substituição do preceito vindo da comissão que elaborou

1. cfr. ricardo leite pinto, referendo local e descentralizaÇão política, cit.,


págs. 63 e segs.; luís barbosa rodrigues, op. cit., págs. 119

e segs.

2. esta ideia, segundo o autor, poderia interessar o país na manutenção


das suas instituições políticas e daria a estas a força da opinião e o
prestígio do sufrágio popular. seria de admitir a delegação ordinária dos
interesses comuns, mas para alterar a constituição (em virtude da qual
existem os poderes do estado), pacto fundamental (que estipula os
direitos da nação e as atribuições do poder) só pelo expresso consenso
da nação se deveria julgar perfeita a reforma. ”a soberania popular é
inalienável. deixaria de o ser se por uma delegação especial e sem
ratificação, pudesse ser alterada nestes pontos a sua constituição
política.

244

o projecto da constituição por este: ”0 supremo tribunal de justiça,


como primeira instãncia, julgará qualquer reclamação contra a
promulgação de leis inconstitucionais. deste tribunal há recurso para a
nação, que será consultada directamente.” era uma modalidade algo
singular de referendo sobre inconstitucionalidade.

nenhuma destas sugestões teria seguimento.

11 - seria a nível local que o referendo v

iria a obt .er, nessa altura, consagração no nosso direito. numa


perspectiva descentralizadora e municiplalista, o rta. 66.2, n.2 4. da
constituição de 1911 instituiu-o, embora nos termos que a lei
determinasse.

veu
0 referendo, escre então marnoco e sousa, permitiria ao povo
disciplinar e orientar a administração local. e, assim, a lei ny 88 de 7 de
agosto de 1913 previu a intervenção obrigatória dos eleitores da
paróquia relativamente a certas deliberações das respectivas juntas e a
intervenção facultativa dos eleitores do município a pedido de 1/10
deles para se tomarem executórias certas deliberações das respectivas
câmaras; e a lei n.9 621, de 23 de junho de 1916, estabeleceu o
referendo obrigatório para a criação de novas freguesias ou concelhos.

contudo, essa mesma lei n.2 88 e outras, mais restritivas, admitiram


igualmente a simples intervenção dos corpos administrativos de escalão
inferior para confirmação de actos de outros corpos administrativos.

245
ill - 0 regime sa;do da revolução de 1926 não convocou uma assembleia
constituinte para a feitura da sua constituição. ao invés, foi o govermo
(na realidade, oliveira salazar) que elaborou um projecto e que o
apresentou, primeiro, a discussão pública em
1932 e, depois, a ”plebiscito nacional” em 1933.

como, entretanto, as liberdades públicas estavam suspensas ou


restringidas, essa situação não poderia deixar de afectar negativamente
a democraticidade do processo. não foi em nome do princípio da
soberania popular, mas contra aquilo que seria uma sua consequencia -
a eleição de uma assembleia livre que interviessa na feitura da
constituição - que se preferiu seguir o

caminho do referendo.

de todo o modo, foi o único até agora realizado em portugal.

iv - a constituição de 1933 manteve o referendo local (art.


126.2), conquanto, também, ao fim de muito pouco tempo reduzido a
referendo orgânico. se o código administrativo de 1936 ainda consagrou
o referendo dos chefes de família nas freguesias de 2.! e
3.! ordens, após a sua revisão em 1940 apenas subsistiu o referendo dos
conselhos municipais e provinciais (mais tarde, conselhos de distrito).

em contrapartida, a revisão constitucional operada através da lei n.2


1885, de 23 de março de 1935, editou uma revisão por
246

referendo, ao conferir ao chefe do estado a faculdade de, quando o bem


público imperiosamente o exigisse, ouvido o conselho de estado e em
decreto assinado por todos os ministros, ”submeter a plebiscito nacional
as alterações da constituição que se refiram a função legislativa ou
seus órgãos- (arts. 134.2, n.2 2; 138.2, n.!’ 2, no texto vigente em 1974).

0 instituto introduzido nestes termos era harmónico não apenas com a


origem plebiscitária da constituição (como salientou a câmara
corporativa, em parecer relatado por fezas vital) como, sobretudo, com a
postura antiparlamentarista do regime e com o intuito de concentração
de poderes. compadecia-se ainda com um entendimento latíssimo da
intervenção e da iniciativa presidencial.

por um lado, pretendia-se evitar que a assembleia, órgão da revisão


constitucional, pudesse paralisar todas as tentativas para ser reformada.
não havia motivo para que os restantes órgãos do estado estivessem
sujeitos à assembleia no tocante a conservação ou modificação da sua
estrutura e para que a assembleia não fosse, por seu turno, alterável por
força de uma vontade estranha constituinte. por outro lado, o sistema e
governo representativo simples mal se conciliaria com essa situação e
exigia que ao presidente da república fosse dado um expediente para
superar os obstáculos criados à revisão; o parlamento não devia resistir
ao chefe do estado, neste aspecto como em qualquer outro.

247
0 intuito de não fazer da’assembleua nacional um corpo político de posição
superior a dos outros corpos políticos (porque nenhum outro feria as suas
prerrogativas) ganharia maior força diante de proposta de alteração
constitucional que reduzisse, se rejeitada por ela, ou diante de projecto de
alteração que as aumentasse, aprovado por ela. neste segundo caso, a
oposição chefe do estado, em vez de revestir a forma recusa de promulgação
com o consequente reenvio decreto com as alterações a câmara, viria revestir
a forma de veto translativo, na medida que transferia para o eleitorado a
decisão

este referendo nunca foi regulamentado, nem aplicado. nem houve


necessidade de o pôr em prática.

1. 0 presidente da república gozava, pois, de grande liberdade. desde que


satisfizesse determinados requisitos materiais e formais podia, em qualquer
momento, elaborar uma proposta de revisão e levá-la a referendo, poderia
subtrair ao pa1rlamento uma proposta ou um projecto ainda por discutir ou por
votar; podia abrir um novo processo de revisão, a seguir a uma deliberação
parlamentar que aprovasse ou rejeitasse uma alteração à constituição
(porque, se podia apresentar propostas de revisão da sua lavra, por maioria de
razão podia submeter a referendo projectos ou propostas apresentados por
outros). só havia uma restrição: quanto a alterações da constituição que
tivessem sido votadas pela assembleia nacional, independentemente do
resultado, no uso de poderes de revisão outorgados pelo próprio chefe do
estado (isto para prevenir uma duplicação ou repetição imediata de consultas
populares sobre a mesma matéria, já que o eleitorado, ao eleger os novos
deputados, tivera ensejo de se manifestar acerca dos pontos especiais objecto
desses poderes).

248

50. 0 referendo após 1974

1 - 0 problema do referendo colocar-se-ia logo após 25 de abril de 1974, não só


em relação aos territórios ultramarinos (pois alguns sectores defenderam, sem
êxito, que deveria haver referendo para as populações escolherem entre
a independência e qualquer forma de ligação a portugal) mas também em
relação ao próprio pais.

invocando ”a premência das decisões sobre a economia e os problemas


africanos”, a necessidade de restabelecer a autoridade do estado e os
princípios democráticos, o primeiro-ministro do u’ governo provisório, adelino
da palma carlo junho s, propos, em

de 1974, alterações à lei constitucional provisória (lei n.2 3/74, de


14 de maio) tendentes a rápida eleição do presidente da república e à
aprovação de uma constituição provisória que precederia a entrada em vigor
da constituição a elaborar pela assembleia constituinte prevista no programa
do movimento das forças armadas. 0 projecto da constituição provisória seria
levado pelo governo provisório ao conselho de estado e, depois, se por esta
aprovado, submetido a referendo

11 - a maior parte dos projectos da constituição submetidos a assembleia


constituinte eleita em 1975 admitia referendo e outras fôrmas de participação
popular directa.

i. v. o texto in fontes e trabalhos preparatórios da constituição, lisboa,


1978, 11, págs. 1153 e segs. nenhuma destas propostas pôde prevalecer.

249
eram: o referendo a nível local, de que poderiam ficar dependentes, por força
da lei, as deliberações dos órgãos representativos das autarquias e das regiões
(art. 149.2, n.2 2, do projecto do partido popular democrático); o referendo
sobre leis já aprovadas, excepto em matéria de impostos, por deliberação da
assembleia legislativa por maioria de dois terços (art. 93.2 do projecto do
centro democrático social); o direito de 50.000 eleitores apresentarem um
projecto de lei perante o parlamento (art. 92.2 do projecto do partido
socialista); e a iniciativa legislativa e o parecer das organizações populares
(arts. 103 e 104.£’ do projecto do partido comunista português)’.

meses depois, aquando das negociações com vista a 2y plataforma de acordo


constitucional entre os partidos e o movimento

das forsas armadas, um dos partidos2 chegou ainda a propor que a


constituição fosse submetida a referendo nos 15 dias imediatos ao decreto de
aprovação da assembleia constituinte; em caso de rejeição, continuariam em
vigor as leis constitucionais vigentes, tendo o parlamento a eleger até 25 de
abril de 1976, poderes constituintes 3.

1. quase ao mesmo tempo, dois projectos doutrinários de constituição


publicados em 1975 (o de nossa autoria e o de lucas pires) preconizavam
referendo constitucional, legislativo e político, em certos termos.

2. 0 partido popular democrático.

3. v. o respectivo texto in povo livre, n.l’ 79, de 22 de janeiro de 1976. a


sugestão, se se baseava no princípio democrático (contraposto ao referendo
orgânico, a que, de algum modo, a ui plataforma abria caminho, ao
250

111 - a questão do referendo voltaria a ser discutida - muito mais intensa e


dramaticamente - a propósito das alterações a fazer na constituição de 1976,
sobretudo em 1980, no termo da l! legislatura e do 1.2 mandato presidencial.

a despeito de a constituição se ocupar ex professo da sua revisão, tendo


cometido o poder de a decretar à assembleia da república (arts. 164.2, alínea
a), 169.9, n.2 1, e 286y’ e segs.), houve quem invocasse a possibilidade de
apelar ao povo através do referendo; foram apresentados um projecto de lei e
uma proposta de lei de autorização legislativa tendentes à sua promoção’; e a
campanha eleitoral para a presidência da república daquele ano teve-o como
assunto primacial.

determinar a promulgação pelo presidente da república ”ouvido o conselho da


revolução”), ter-se-á destinado sobretudo a tentar corrigir ou repensar o
sentido de alguns dos preceitos já aprovados (o que, em parte, se terá
conseguido). mas não foi aceite, por se considerar ser tarde de mais para
organizar referendo, por ele poder diminuir a autoridade da assembleia
constituinte e por se temer qualquer dos desenlaces possíveis da sua
realização: uma rejeição da constituição prolongaria, com gravissimos custos,
os inconvenientes do governo provisório; e uma aprovação (bem mais
provável) cristalizaria algumas soluções constitucionais contingentes e tomaria
mais difíceis futuras revisões. isto mesmo se depreende do debate então
travado na assembeia (o único, por sinal, que ela dedicou ao tema do
referendo).

1. projecto de lei n.!’ 501-1, e proposta de lei &’ 365-1, in diário da assembleia
da república, 2. série, u legislatura, 4. sessão legislativa, n.05 69 e 74,
respectivamente.

251
0 referendo serviria para enfrentar a questão dos limites materiais da
revisão constitucional, pois só o povo, titular da soberania, os poderia
ultrapassar; ou para vencer o bloqueamento ideológico que a
constituição traria consigo; ou para eliminar a regra da maioria
qualificada de dois terços para a aprovação de alterações a
constituição; ou, ainda, na hipótese de não se formar na assembleia da
república a maioria qualificada exigida no art. 286.2 para viabilizar a
própria revisão. sendo, embora, diversas as funções esperadas do
referendo, era comum a fundamentação: o princípio democrático - por o
povo, por direito natural (segundo alguns), estar acima da constituição e
esta mesma apelar para a participação directa e activa dos cidadãos na
vida pública (arts. 48.2 e 112.2).

mas a fraqueza jurídica dos argumentos era notória, a face dos cânones
gerais de interpretação e das regras básicas do constitucionalismo
ocidental (em que todo o poder público tem de estar previsto e contido
em regras jurídicas e em que prevalecem os mecanismos
representativos e pluralistas sobre os de democracia directa).

no fundo, o que estava em causa era a oposição a constituição; era, não


já um processo para a modificar - o que pressupunha a aceitação das
suas regras - mas um processo para a substituir; era saber se deveria ou
não dar-se e de que forma, ruptura da ordem constitucional de 1976. os
resultados da eleição presidencial de dezembro de 1980 resolveram
este problema no sentido da inadmissibilidade do referendo e do
respeito das regras constitucionais sobre revisão.

252

iv - aberta, no entanto, na sua sede própria - o parlamento a revisão


constitucional, um dos projectos apresentados, o dos deputados da
aliança democrática’ incluiria duas modalidades de referendo de âmbito
nacional: um referendo sobre matérias constitucionais e outro sobre
”questões de relevante interesse nacional2.

nem uma nem outra das propostas de alteração logrou vencimento.

e percebe-se porque:

por, tendo em conta os antecedentes próximos, se recear ainda a


associação de referendo e ruptura institucional;

1 . na esteira dos projectos doutrinários de francisco sã carneiro e de


barbosa de melo, cardoso da costa e vieira de andrade.

2. estipulava esse projecto no que deveria ser o art. 287.2 da


constituição:

”1. 0 presidente da repúbica, ouvido o conselho de estado, pode


determinar que se realize um referendo sobre as alterações à
constituição que não tenham obtido a maioria prevista no n.2 3 do
artigo anterior (mais de dois terços dos deputados presentes,
desde que superior à maioria absoluta dos deputados em
efectividade de funções), desde que hajam sido aprovadas pela
maioria absoluta dos deputads em efectividade de funções. ”2. 0
referendo previsto no número anterior não pode ter por objecto
alterações à constituição que modifiquem a repartição de atribuições e
competências entre os órgãos de soberania ou as regras relativas ao
estatuto e eleição dos seus titulares.---

previa também o projecto, para o novo art. 142.l, referendo sobre


”questão de relevante interesse nacional-, se e nos termos em que isso
fosse solicitado ao presidente da república pelo governo e pela
assembleia da república com deliberação aprovada por maioria de
deputados em efectividade de funções.

253
2.2 - por se considerar mais prudente começar pelo referendo a nível
local, sobre matérias mais concretas e imediatas, antes de se passar ao
referendo a nível nacional - e, efectivamente, a assembleia consagrou-
o’.

v - diversamente, na segunda revisão constitucional, em quatro dos


projectos2 seria preconizado o referendo vinculativo a nível nacional e
agora, num ambiente político mais estabilizado, ele seria, sem
dificuldade, enxertado na constituição.

ficou, portanto, a haver, em portugal referendo político nacional e


referendo local, ainda que em termos muito restitivos.

vi - por último, na revisão constitucional desencadeada em


1996, o problema do referendo seria retomado sem que se saiba ainda,
neste momento, quais os resultados a que se vai chegar.

2. vindo dos projectos de revisão dos deputados dos partidos da aliança


democrática e da frente republicana e socialista.

2. os do centro democrático social, do partido socialista, do partido


socialdemocrata e do partido renovador democrático. este último
partido, além do referendo político stricto sensu, propunha ainda um
referendo legislativo: o presidente da república poderia, em alternativa
ao veto político e a iniciativa de fiscalização preventiva da
constitucionalidade, submeter a referendo decretos da assembleia da
república destinados a ser promulgados como lei ou decretos do
governo, no caso de autorizações legislativas, destinados a ser
promulgados como decretos-leis.

254

5 1. 0 regime do referendo político nacional

1 - 0 referendo político nacional tem a sua sede constitucional básica no


art. 118.2, que se situa nos princípios gerais da organização do poder
político (título 1 da parte 111 da lei fundamental).
0 novo preceito substitui - o que se entremostra bem significativo do
desenvolvimento constitucional operado desde 1976 - outro, sobre
organizações populares de base territorial (de resto, aí mal colocado,
porquanto essas organizações, doravante chamadas organizações de
moradores, apenas participavam e participam no exercício do poder
local).

não é, contudo, essa a única disposição da constituição concernente ao


instituto. referem-se-lhe também os arts. 122.Ç?, n.2 1, alínea i), 137.2,
alínea c), 164.% alínea 1), e 200.9, alínea e); e, por outro lado, ocupam-
se do seu tratamento legislativo (do
44 regime do referendo”), a fazer por lei orgânica os arts. 139.9, n.2 3,
167.2, alínea b), 169.q, n.2 2, e 171.% n.2s 4 e 5.

todas estas normas têm, naturalmente, de ser interpretadas e


integradas numa perspectiva coerente do sistema jurídico-constitucional
como um todo. 0 referendo não e um a priori relativamente à
constituição; enquadra-se, sim, na constituição, a par de outras formas
e figuras de exercício do poder político; está ao serviço dos fins
democráticos por ela almejados; implica o estado de direito democrático
definido nos arts. 2.2 e 9.9.

a lei n.2 45/91, de 3 de agosto, regulamenta os procedimentos


referendários.

255
11 - a esta luz, são os seguintes os traços essenciais do regime do
referendo político nacional:

a) 0 referendo é de âmbito nacional - nele votam os cidadãos eleitores


recenseados no território nacional (art. 118.9, ny 1) e só pode ter por
objecto questões de relevante interesse nacional (art. 118.2, n.2 2, ia
parte); em caso algum, pode ter ambito regional ou local;

b) 0 referendo tem por objecto questões que devam ser decididas pela
assembleia da república ou pelo governo através da aprovação de
convenção internacional ou de acto legislativo (art. 118.9, n.2 2, 2.
parte); não tem por objecto, directamente, essa aprovação;

c) quer isto dizer que o referendo, embora em si um acto


essencialmente político e, enquanto tal, inserido na função de direcção
suprema do estado ou função política strieto sensu, não tem como
efeito imediato a conclusão de um tratado ou a feitura

de um acto legislativo; o efeito imediato e, tão só, a 1adstrição do


parlamento ou do governo a praticarem (ou a não praticarem) o acto da
sua competência correspondente a questão sobre a qual os eleitores são
chamados a pronunciar-se;

d) 0 referendo é prévio relativamente à aprovação da convenção


internacional ou da lei causa; e a competência para a sua iniciativa
concreto pressupõe a competência para a prática acto subsequente; não
se traduz em sanção ou veto popular;

256

e) 0 referendo não pode incidir sobre certas questões ou matérias


enunciadas na constituição e ainda sobre outras que a lei acrescente
(art. 118.2, n.9 3), se bem que não tantas nem tais que se frustrem o
alcance e a própria razão de existir do instituto;

f) 0 processo assenta num específico relacionamento dos órgãos de


iniciativa - a assembleia da república ou o governo - e de decisão - o
presidente da república - com a interferência ainda de um órgão de
fiscalização jurídica - o tribunal constitucional (art. 118.2, na 1 e 6);
requer a concordância da assembleia, ou do governo, e do presidente da
república, bem como a não oposição do tribunal constitucional, para que
venha a realizar-se; nenhum desses órgãos, de per si, o pode promover;

g) 0 referendo e vinculativo (art. 118.2, n.9 1); a constituição estipula-o


expressamente, ao invés do que ocorte com o referendo local, cuja
eficácia eventualmente vinculativa fica dependente da lei (art. 241.2,
n.’3);

h) nenhuma questão está necessariamente sujeita a referendo; mas, se


o orgão competente para a decidir tomar a iniciativa de propor a
realização do referendo e o presidente da república aceitar a proposta
(não considerada inconstitucional ou ilegal pelo tribunal
constitucional), depois os resultados - sejam positivos ou negativos
- do referendo impor-se-lhe-ão, limitando ou condicionando a sua
liberdade de prática de actos jurídico-constitucionais;

i) 0 carácter vinculativo acarreta (pela natureza das coisas, mesmo se


falta preceito constitucional específico) consequências determinantes
quanto a alguns actos do presidente da república
257
- ratificação de tratados, promulgação e assinatura de decretos,
veto e requerimento de fiscalização preventiva da
constitucionalidade - os quais, em razão daqueles resultados,
terão de ser ou não poderão ser já praticados;

j) a resposta afiruativa ou negativa do eleitorado repercute-se,


outrossim, em efeitos para o futuro; não só não podem ser
renovadas propostas de referendo recusadas na mesma sessão
legislativa, salvo nova eleição da assembleia da república, ou
até a demissão do governo (art. 118.9, ny 8) mas também
(igualmente pela natureza das coisas e por imperativo do
princípio democrático) a convensão ou o acto legislativo
aprovado em consequência do referendo tem de gozar de um
estatuto reforsado perante eventuais alterações;

1) contra o incumprimento da obrigação de não aprovar


convenção internacional ou acto legislativo a reacção há-de
consistir na recusa de ratificação ou de promulgação e
assinatura do presidente da república e, para além disso, nos
remédios jurídicos adequados de fiscalização da
inconstitucionalidade (neste caso, orgânica) dos arts. 207.%
280.2 e 28u’ da constituição;

m) contudo, contra o incumprimento da obrigação de aprovação,


só existem os meios gerais de controlo político e, em última
instancia, a responsabilidade política dos titulares dos órgãos
representativos perante o povo (art. 120.2, n.2 1) a efectivar em
eleisões subsequentes’.

1. para mais desenvolvimento, v. luís barbosa rodrigues, op. cit,


págs.
157 e segs.

258

111 - avultam a complexidade dos problemas jurídico-


constitucionais e a extrema prudência do legislador de revisão,
ditada, por certo, quer pelo cuidado de evitar qualquer
subversão plebiscitãria, quer pela falta de experiência do
instituto em portugal.

0 princípio geral do sistema, a democracia representativa,


permanece intocado. por isso, as questoes políticas mais
importantes ficam subtraídas ao referendo (art. 118.% n. 3) e as
questões de
44relevante interesse nacional” são questoes de segundo grau.
por isso, mantêm-se, sem alteração, as competências em
abstracto dos órgãos de soberania e elas apenas são afectadas
em concreto, no que toca a prática de certos actos. por isso, não
é possível ao eleitorado subrogar-se a estes órgãos, quando eles
não aprovem os actos que, por forsa do resultado positivo do
referendo, devam aprovar. por isso, se evita a coincidência entre
a convocação e a efectivação do referendo e qualquer processo
eleitoral político (art. 11 u, n.2 5).

do mesmo passo, prevalece em cada processo de referendo a


regra da interdependência dos órgãos de soberania (art. 114.9).
se não se pretende fazer do referendo a solução de conflitos
institucionais, também se procura que ele não seja um gerador
de conflitos e, pelo contrário, um instrumento de solidariedade
institucional. com o referendo, o presidente da república não se
sobrepõe ao parlamento nem ao governo: se recusa a proposta
de referendo, nem um, nem outro ficam inibidos de aprovar a
convenção internacional ou o acto legislativo de que, directa ou
indirectamente, se trata (art. my, n.` 8, a contrájlo); se aceita a
proposta, aceita integrar-se no processo, em conjugação com
esses outros órgãos.

259
enfim, por isso mesmo, o referendo encontra-se na dependência
da maioria parlamentar - embora não de modo absoluto, visto
que só pode efectuar-se se o presidente da república concordar.
e, ainda que o presidente políticamente esteja em sintonia com
a maioria parlamentar, e de supor que a sua postura
independente dentro do sistema o leve a impedir que o
referendo se converta em meio de reforço da maioria ou do
governo em detrimento do equilíbrio geral.

0 referendo servirá, provavelmente, para a clarificação de crises


no interior da maioria, mormente quando as divisões
ultrapassam o mero plano ideológico partidário, ou para a
tentativa do seu reencontro com os reais ou actuais sentimentos
da comuni-

dade. para que não parece que possa servir e para arma da
minoria contra a maioria; a minoria, a oposição terá de buscar
noutras instâncias a forma de garantir os seus direitos ou de se
afirmar como alternativa.

52. 0 regime do referendo local

1 - 0 art. 241.9, n.9 3 da constituição e, por seu turno, o preceito


definidor do referendo local, eufemisticamente denominado ”consultas
directas aos cidadãos eleitores”.

a matéria entra, tal como a do referendo nacional, na reserva absoluta


de competência legislativa da assembleia da república (art. 167.2, alínea
b».

260

a regulamentação consta da lei n.2 49/90, de 24 de agosto.

11 - os traços essenciais da figura podem ser assim recortados:

a) a realização de qualquer referendo depende de deliberação de um


órgão da respectiva autarquia local, não pode ser imposta por lei, pelos
órgãos de tutela (governo da república ou governos regionais) ou por
órgãos de autarquias de grau superior;

b) tem de haver uma deliberação, não exite um direito potestativo de


qualquer titular ou grupo de titulares do órgão da autarquia local de
favorecer a realização do referendo;

c) essa deliberação pode resultar tanto de iniciativa interna no seio do


órgão como de iniciativa popular (embora a lei n.9 49/90 não preveja
esta, nada impediria que o fizesse quer pela letra do art. 241 -9, n.q 3,
quer, sobretudo, por força de cláusula aberta de direitos fundamentais
do art. 16.9, n.2 1 da constituição;

d) 0 referendo apenas pode incidir sobre matérias incluídas na


competência exclusiva dos órgãos das autarquias - o que abrange a
pronúncia sobre a criação ou a extinsão de municípios ou a alteração da
respectiva área (art. 249.2) e a pronúncia sobre a formação de regiões
administrativas (art. 256.2);

261
e) um órgão deliberativo não pode promover um referendo sobre
matérias da competência de um órgão executivo, ou vice-versa;

f) a lei pode subtrair certas matérias a votasao popular (vg., as


financeiras);

g) não pode haver a soma ou conjugação de referendos locais para a


obtenção de resultado equivalente a referendo nacional;

h) têm direito de voto todos os cidadãos eleitores recenseados na área


da autarquia, e apenas esses;

i) ao tribunal constitucional compete verificar previamente a


constitucionalidade e a legalidade das consultas (art. 225.2, n.9 2, alínea
j» e aos tribunais, eventualmente com recurso ate ele (se a lei o
admitir), julgar a regularidade e a validade dos actos do processo (art.
116.2, n.`7);

j) apesar do nome, a votação popular tanto pode revestir eficácia


consultiva quanto deliberativa; a lei é que a fixa e pode estabelecê-la
diversamente consoante os casos ou atribuir aos órgãos autárquicos
competentes o poder de a definir no momento da correspondente
deliberação.

0 art. 5.2 da lei n.2 49/90 fixa, porém, eficácia deliberativa sempre.

262

capítulo 111

partidos politicos
53. noÇÃo de partidos pouticos

1 - É possível e necessário distinguir um conceito amplo e um conceito restrito de


partido político, em função de diferentes momentos e sisternas’.

1. sobre os partidos em geral, em perspectiva de ciência política, v., por exemplo,


moisei ostrogorski, la démocratie et les partis politiques,
1902; roberto michels, zur soziologie der parteiwesens in der modernen dernokratie,
1911 (consultámos a edição francesa les partis politiques, paris, 197 1); maurice
duverger, les partis politiques, cit.; ivor jennings, partiy politics, 2 vols., cambridge,
1960 e 1961; guido vestuti, ii partito politico - uma introduzione critica, milão, 1962;
e.e. schattsci1neider, party government, trad. castelhana regimen de partidos, madrid,
1964; modern political parties, obra colectiva ed. por sigmund neumann, trad.
castelhana partidos polhicos modernos, madrid, 1965; pier luigi zampetti, dello stato
liberale allo stato der partiti, milão, 1965; political arties and political development,
obra colectiva editada por jo§eph la palombara e myron we1ner, reimpressão,
princeton, 1972; pablo lucas verdu, principios de ciência politica, 111, 2.` ed., madrid,
1974; glovanni sartori, parties
265
em sentido amplo, o partido vem a ser qualquer agrupamento de
indivíduos destinado a conquistar, exercer ou conservar o poder político.
em sentido restrito pode definir-se (sem excessivo rigor) como a
associação de carácter permanente organizada para a intervenção no
exercício do poder político, procurando, com o apoio popular, a
realização de um programa de fins gerais.

em todas as épocas e em todos os países se encontram partidos


políticos na primeira acepção. a dinâmica política consiste, em larga
medida, numa luta ou competição pelo poder e, nesse processo, os
homens dividem-se, sejam quais forem as motivações (afectivas,
ideológicas, económicas ou outras) em partidos. apenas situações
políticas primitivas ou situações de grande estabilidade (por exemplo,
monarquias legítimas, na acepção de g. ferrero, e com dinastias
legítimas) os desconhecem no entanto, basta surgirem problemas de
sucessão no trono ou quaisquer crises graves na vida interna ou externa
do estado para se constituírem grupos mais ou menos fortes, coesos e
duradouros à volta desta ou daquela pessoa, ideia ou interesse
(conquanto, não raras vezes degenerando em facção).

andparty systems, 1, cambridge, 1976; daniel-louis seilef, partis et


familles politiques, paris, 1980; western european party systems -
continuity and change, obra colectiva ed. por hans daalder e peter mair,
londres, 1983; klaus von beyme, political parties in western
democracies, trad., hampshire, 1985; manuel garcia pelayo, el estado
de partidos, madrid, 1986; jean blondel, toward a sistematic analysis of
goverment - party relationships, in international political seience review,
1995, págs. 127 e segs.

266

a noção restrita corresponde a um espécie deste gênero tão fluído e tão


variável. É a espécie de partidos própria dos séculos xix e xx - com o
progresso da educação e da consciência cívica, por um lado, e maiores
tensões ideológicas e sociais, por outro lado e da democracia liberal e
representativa - em que se institucionaliza a luta pacífica pelo acesso
aos cargos govemativos. mas a fórmula seria igualmente adoptada por
regimes não liberais, com alcance e contexto diversos.

11 - 0 partido em sentido restrito e moderno envolve:

a) uma base de filiados ou militantes, composta directa ou


indirectamente por cidadãos (não é suficiente para haver partido o mero
grupo ou ala parlamentar);

b) autonomia perante os órgãos do estado, ou seja, livre determinação e


gestão e também, em princípio, livre formação e livre inscrição de
filiados (se o partido pode assenhorear-se do estado, como sucede em
regimes totalitários, é dificil considerar o partido o chamado partido
único de não poucos países subdesenvolvidos da çsia e de çfrica
organizado pelo governo para servir

- 1.

de instrumento de animação civica e social);

c) permanência por tempo indefinido, sem se circunscrever a


circunstâncias ou acto determinados (caso das comissões eleitorais ou
de grupos de cidadãos eleitores que só aparecem durante as eleições
para promover candidaturas);

267
d) serviço do interesse geral à luz das concepções perfilhadas pelos
seus membros, ou capacidade de definição de objectivos de política
geral (o partido pode servir interesses sectoriais, profissionais ou
regionais, mas tem sempre de os enquadrar numa visão dos interesses
gerais; não é partido o grupo de pressão);

e) dependência do apoio popular, sobretudo eleitoral, e acção de


doutrinação e propaganda para o obter - de onde uma relação dialéctica
constante (o partido conscientiza e canaliza aspirações, ideias e
sentimentos presentes na colectividade e, ao mesmo tempo, contribui
para a formação ou para a manifestação de aspirações, ideias e
sentimentos coincidentes com a sua mensagem).

54. origem e evoluÇÃo

1 - fenômeno ligado ao estado constitucional contemporâneo, o partido


político em sentido restrito não surgiu logo que ele substituiu o estado
absoluto. só despontou quando as instituições representativas se
consolidaram e como exigência do seu funcionamento’.

no tempo da revolução francesa, por exemplo, não terá havido senão


clubes políticos (girondinos, jacobinos e outros). precursores dos
partidos são, todavia, já os tories e os whigs, na inglaterra, dos séculos
xv11-xviii e os grupos de federalistas e de republicanos surgidos
aquando da formação dos estados unidos.

1. cfr. m.arcelo rebelo de sousa, ospartidos..., cit, págs. 19 e segs.

268

as primeiras estruturas partidárias completas, da base à cúpula,


recortam-se quase na mesma altura em ambos estes países, entre 1825
e 1835. nos estados unidos, além de condições de momento propícias,
elas decorrem naturalmente do primacial papel da eleição na vida
pública do país a todos os níveis. quanto à grã-bretanha, são as reformas
eleitorais (a primeira das quais data de 1832) que levam, sobretudo,
certos sectores whigs a constituir associaçoes para a inscrição nos
cadernos eleitorais dos cidadãos com direito de voto.

de um modo geral, o advento dos partidos europeus vem conexo com a


extensão do direito de sufrágio na segunda metade do século xix. os
partidos tomam-se necessários para enquadrar um número crescente de
eleitores e para estabelecer as relações entre estes e os deputados, e
resultam, o mais das vezes, da integração de comissões eleitorais com
grupos parlamentares (noutros casos têm origem extraparlamentar,
fundados por sindicatos, igrejas, associações secretas, grupos
económicos, etc.).

11 - 0 século xx assiste ao reforço do papel dos partidos e também a


algumas transformações. ao passo que os partidos oitocentistas eram
partidos de quadros ou notáveis, os partidos actuais tendem a ser
partidos de massas (entre outras causas, devido ao sufrágio universal, à
ligação com os sindicatos e à publicização da vida social). ao passo que
os partidos oitocentistas reflectem uma estrutura social aparentemente
homogénea e a adesão a valores comuns,
269
os partidos novecentistas, mesmo se interclassistas, revelam clivagens
sociais e, sobretudo, antagonismos ideológicos.

a ideia de partido dir-se-ia implicar a concorrência na disputa do poder e


a sucessão ou altemância no exercício deste, consoante os resultados
das eleições. os regimes de novo tipo posteriores a
1917 afastam a concepção pluralista: as ditaduras suprimem os
partidos. logicamente, por recusarem a legitimidade eleitoral; e os
partidos de vocação totalitária, quando alcançam o governo, destroem
todos os outros. 0 regime de partido único aparece com o partido
comunista soviético, obra de lenine, e é transplantado para a itália
fascista, para a alemanha nacional-socialista e para muitos outros
países; hoje, porém, depois das vicissitudes dos últimos anos, está
manifestamente em crise tanto na europa como fora da europa.

55. partidos e sistemas políticos

1 - partido e sistema político influem-se reciprocamente.

nas democracias pluralistas, os partidos exprimem, simultaneamente, o


princípio da liberdade política, o reconhecimento da diversidade de
correntes de opinião pública e a solidariedade dos indivíduos ao
exercerem direitos políticos. nos regimes totalitários, as liberdades
públicas e a ordem político -constitucional esgotam-se no partido único;
só se concebe expressão de ideias no
270

interior dele; as decisões fundamentais do estado dimanam do aparelho


do partido, e não do aparelho forinal do estado; a interpretação da
constituição faz-se segundo as suas directrizes. a meio caminho ficam
os regimes autoritários.

correspondem a tipos diferentes o partido do pluralismo, que tem de


concorrer com outros partidos, e o partido único ou hegemónico que se
identifica com o poder. por outro lado, a estrutura e as funções dos
partidos afectam os regimes e as formas de governo directamente: a
democracia representativa possui instituições distintas das da forma de
governo leninista (como se sabe).

0 cerne da democracia pluralista ou liberal consiste no direito de todos


os partidos de acederem ao poder, mediante eleições, e no
reconhecimento da liberdade de acção política da oposição. a maioria
constitui então governo e a minoria fica na oposição para a fiscalizar.
mas a minoria de hoje pode vir a ser a maioria de amanhã, e vice-versa.

11 - não surpreende, por isso, que se diga que é o sistema de partidos -


ou forma e modalidade da existência ou coexistência dos partidos’ - que
melhor ou mais ostensivamente, na nossa época, permite captar o
sistema político de um qualquer país

1. maurice duverger, op. cit, pág. 233.

271
continuam a dominar os esquemas interpretativos a partir do número de partidos:
sistemas monopartidários, bipartidários (perfeitos e imperfeitos) e multipartidários
(atomizados ou não). mas não parece que o critério numérico baste: é necessário
atender ainda à força relativa dos partidos, ao seu grau de aproximação ou
distanciamento e ao papel que efectivamente desempenham’.

1. a mais brilhante análise nesta linha é talvez a de sartori (parties and party systems,
cit., págs. 119 e segs.), para quem o número não é importante só por si (só o é
enquanto afecta a mecânica ou o funcionamento do sistema) e que considera também
os conceitos de pólo, polaridade (estado do sistema) e polarização (processo).

sartori começa por discernir sete sistemas de partidos, segundo um critério numérico:
1.2) de partido único; 2.2) de partido hegemónico; 3.9) de partido predominante; 4.) de
bipartidarismo; 5.l) de pluralismo (multipartidarismo) limitado; 6.9) de pluralismo
(multipartidarismo) extremo; e, 7.2) de atomização.

assim como enuncia diferentes estruturas de poder: 1.2) monopólio;


2.9) hierarquia; 3.2) concentração unimodal; 4.2) pouca fragmentação e(ou)
seginentação despolarizada; 5.l) fragmentação alta com polarização.

contrapõe, de seguida, sistemas competitivos - sistemas pluralistas polarizados e


moderados, sistemas bipartidários e sistemas de partido dominante - a sistemas não
competitivos - de partido único e de partido hegemónico. e chega ao seguinte
esquema:

unipartidarismo/sistemas unipolares/monopartidarismo

partido hegemónico (partido predominante)

bipartidarismo - sistemas -

bipolares

multipartidarismo polipartidarismo moderado

multipartidarismo (sistema atomizado)

sistemas multipolares j
272

a diversidade de sistemas de partidos depende, por seu turno, de múltiplos factores:


das estruturas sociais de cada país, das suas tradições e cultura política, das normas
constitucionais e legais. muito importante é, como vimos, a relação entre sistema
eleitoral e sistema de partidos relação recíproca, e não só num sentido, pois a escolha
deste ou daquele sistema eleitoral faz-se em função do sistema de partidos que
preexiste ou que se pretende constituir’.

56. 0 tratamento constitucional

dos partidos

i - 0 direito público do século xix, naturalmente, ignorava os partidos políticos - quer


por causa do seu menor relevo então, quer por causa de uma postura menos favorável
às associaçoes em geral ou da concepção, dominante no liberalismo, de uma ordem
político-social tanto mais idónea quanto menos sujeita a intervençao ou regulação pelo
estado.

pelo contrário, as leis e, muitas vezes, também as constituições do século xx, cuidam
dos partidos sob múltiplos aspectos, seja no âmbito dos direitos fundamentais, seja no
da organização do poder político ou num e noutro; e conferem-lhe um estatuto

1. cfr., por todos, domenico fisichella, sviluppo democratico e sistemi elettorali, cit.,
págs. 109 e segs.; dieter noblen, sistemas electorales del mundo, cit., págs. 161 e
segs.

273
peculiar, mesmo se não os conformam como pessoas colectivas públicas ou (muito
menos) como órgãos do estado’. constem ou não da constituição forinal, eles
inscrevem-se, necessariamente,

1. sobre o tratamento constitucional dos partidos políticos, cfr., entre tantos, robert
pelloux, ”les partis politiques dans les constitutions d’après-guerre”, in revue du droit
public, 1934, págs. 238 e segs.; segundo linares quintana, los partidos políticos
instrumentos de gobierno, buenos aires, 1945; pietro virga, il partito nelvordinamento
giuridico, milão, 1948; pascal arrighi, le statut des partis politiques, paris,
1948; carlo esposito, ”i partiti nella costituzione italiana”, in la costituzione italiana -
saggi, pádua, 1954, págs. 215 e segs.; c. mortati, ”note introdutive a uno studio sui
partiti politici nell’ordinamento costituzionale italiano”, in studi in memoria di v e.
orlando, ii, pádua,
1957, págs. 111 e segs.; gustave peiser, ”l’institutionnalisation des partis politiques en
république fédérale allemande”, in revue du droit public, 1959, págs. 639 e segs.;
francisco leoni, ”a regulamentação do partido político nos países democráticos do
ocidente”, in revista forense,
1966, págs. 43 e segs.; francisco ruiz massieu, normación constitucional de los
partidos políticos en america latina, méxico, 1984; giuseppe ugo rescigno, ”alcune
considerazioni sul rapporto partito-statocittadino”, in séritti in onore di costantino
mortati, 111, milão, 1977, págs. 957 e segs.; otto bachof, 0 direito eleitoral e o direito
dos partidos políticos na república federal da alemanha, coimbra, 1982; paolo ridola,
”partiti politici”, in enciclopedia del diritto, xxx11,
1982, págs. 66 e segs.; cesare pinelli, discipline e controlli sulla vemocrazia interna”
dei partiti, pádua, 1984; pilar del castillo vera, la financiación de partidos y candidatos
en las democracias occidentales, madrid, 1985; n.2 3 do ano viii, dezembro de 1988,
de quaderni costituzionali; derecho de partidos, obra colectiva coordenada por jost juan
gonzalez encinar, madrid, 1992; alessandro somma, aspetti della disciplina dei partiti
nell’ordinamento tedesco: dal bgb al parteiengesetz, in política del diritto, 1993, págs.
67 e segs.

274

na constituição material: a ideia de direito da democracia representativa é indesligável


daquilo a que se tem chamado um estado de partidos.

11 - não se trata apenas do reconhecimento dos partidos, de uma garantia institucional


da existência dos partidos políticos. trata-se, por imperativos de liberdade, igualdade e
transparência da vida política (ou, se se quiser, do mercado político) ou por
decorrência de determinados princípios constitucionais, de regras mais ou menos
numerosas e minuciosas sobre requisitos de formação e registo, sobre condição dos
membros, sobre relações com outras entidades, sobre financiamento e fiscalização de
receitas e despesas, sobre intervenção nos processos eleitorais (desde o
recenseamento e a apresentação de candidaturas às campanhas eleitorais e às
operações de apuramento), sobre outros direitos de participação política, sobre
inserção nos órgãos constitucionais.

se a regulamentação externa (da actividade dos partidos) não levanta dificuldades de


maior, já a regulamentação interna tem por limite o respeito pela autonomia de cada
partido e, portanto, a própria garantia da liberdade de associação partidária. não se
afigura fácil compatibilizar aí duas exigências: por um lado, a coerência com o princípio
democrático - de onde, a transposição para a estrutura interna de cada partido, para a
formação da sua vontade e para a garantia dos direitos dos militantes, das regras
básicas que pautam a dinâmica da comunidade estatal; por outro lado, a coerência
com o princípio liberal, que tende a deixar a cada partido a livre
275
organização da sua vida interna e a adequação aos fins (desde
que não sejam penalmente ilícitos) que se propõem’.

0 que se afigura in limine de afastar, em regime pluralista, vem


a ser a institucionalização ideológica-programática, a integração
do partido no sistema político da constituição, a não contradição
dos seus fins com os princípios e os fins da constituição.
algumas constituições (vg., a de bona) prevêem-na, sem
grandes resultados práticos, sob pena de se ferir a essência do
regime. pois se a democracia pluralista é, por definição, democracia
aberta a todos os conteúdos e a todas as ideias políticas, não há que
procurar qualquer credencial para qualquer partido na constituição;
cabe somente fazer que os partidos observem as regras constitucionais
de concorrência política, o que dependerá não tanto de meios
preventivos ou repressivos quanto da cultura cívica e da consciência
jurídica colectiva.

111 - discutível é a natureza jurídica dos partidos em face dos


ordenamentos constitucionais que os institucionalizam.

a sua fortíssima relevância não parece justificar, porém, em democracia


representativa, convertê-los nem em pessoas colectivas

1. sobre democracia interna dos partidos, cfr., por todos, g. leibi---1olz, 0


pensamento democrático .... cit., págs. 42 e segs ou g. ridola, le regole
costituzionali del pluralismo político e la prospettive del diritto dei
partiti, in giurisprudenza costituzionale, 1993, n.2 4, págs. 2963 e segs.

2. para maior desenvolvimento, v. jorge miranda, op. cit., iv, págs. 277 e
segs., e autores citados.

276

de direito público, nem, muito menos, em órgãos do estado. serão, sim,


associações de direito constitucional, pessoas colectivas de direito
privado (porque fundadas no princípio da liberdade de associação e
desprovidos de poderes de autoridade) mas com estatuto específico
constante de normas constitucionais’.

57- os partidos em portugal antes de 1974

1 - na monarquia constitucional portuguesa houve organizações


chamadas partidos, mas pouco definidas ideologicamente, com reduzido
número de membros e com deficiente estruturação: eram
essencialmente agrupamentos criados de cima para baixo, dependentes
do exercício e das vantagens do poder e com ramificações identificadas
com os caciques locais.

0 rotativismo subsequente à regeneração, apesar de ter propiciado ao


país um período de estabilidade e de progresso material em liberdade,
não poderia, por isso, assimilar-se ao sistema britânico (até por causa
das intervenções do rei, dotado do poder moderador). mas a
desagregação dos partidos dinásticos arrastaria consigo a própria queda
da instituiçao monarquica.

1. cfr., sobre o assunto, cfr., entre nós, gomes canotilho, ordem


constitucional, direitos fundamentais e partidos políticos, in nação e
defesa, abril-junho de 1979, pág. 98;, marcelo rebelo de sousa,
ospartidos ..., cit., págs. 80 e segs. e 522 e segs.

2. cfr. josÉ tengarpini-ia, ”rotativismo”, in dicionário da história de


portugal, 111, 1968, págs. 694 e segs.; marcello caetano, manual de
ciên-
277
11 - a primeira república foi implantada por obra de um partido, o
partido republicano, de estrutura diferente da dos anteriores partidos e
apoiado, principalmente, na pequena e média burguesia urbana. esse
partido (dito também democrático) seria hegemónico, salvo em
brevíssimos intervalos, sem que isso, porém, impedisse (devido não
tanto a dissidências quanto a lutas de facções e a factores externos) a
sucessão de crises parlamentares e ministeriais’.

111 - a ditadura militar de 1926 surgiu em reacção contra o domínio do


partido republicano ou democrático. depois, com salazar, seriam todos
os partidos que ficariam proscritos.

0 específico da concepção de salazar sobre a organização político-


constitucional seria mesmo a ideia de um estado representativo sem
partidos2 , assente, por um lado, numa postura orgânico-corporativa
sobre a essência da nação3 e sobre o papel do cidadão e, por outro
lado, numa crítica radical aos maleficios do sistema de partidos’. um
estado sem partidos, em contraposição quer ao

cia política e direito constitucional, ii, cit., págs. 443 e segs.; marcelo
rebelo de sousa, os partidos.--- cit., págs. 147 e segs. e 157 e segs.;
jorge miranda, manual.... cit., pág. 278.

1. cfr., por todos, marcelo rebelo de sousa, op. cit., págs. 167 e segs.
(fala em multipartidarismo de partido dominante).

2. afonso queiró, partidos e partido único no pensamento político de


salazar, coimbra, 1970, pág. 12.

3. ibidém, págs. 7-8.

4. cfr., por todos, marcello caetano, direito constitucional, 1, cit., págs.


450 e segs.

278

estado pluripartidário ocidental, quer ao estado de partido único,


soviético ou fascista, eis o que se pretenderia.

a constituição de 1933 parecia pressupor o reconhecimento dos partidos


políticos, quando estipulava que os funcionários públicos estavam ao
serviço da colectividade e não de qualquer partido ou organização de
interesses particulares (art. 22.2)1. todavia, se nenhuma lei os vedaria
expressa e taxativamente, o regime legal da liberdade de associação
conduziria ao mesmo resultado, na medida em que, ao arrepio do art.
8.`, n.!’ 14, da constituição, sujeitava a formação de quaisquer
associações políticas a autorização2 - a autorização administrativa que
nunca seria concedida.

poderia falar-se num verdadeiro costume constitucional contra legem


(ou, pelo menos, praeter legem), estribado na convicção jurídica e
política ligada à ideologia e exibido numa constante prática legal,
jurisprudencial e administrativa3.

0 regime teve, porém, necessidade de criar uma associação cívica de


apoio, cujo papel mais significativo viria a ser o de apresentar ou
patrocinar candidatos às eleições - presidenciais,

1 . cuja fonte terá sido o art. 130.2 da constituição de weimar, de resto


habitualmente considerado (a par do art. 124.1’, 2.a parte) um dos
primeiros preceitos constitucionais que procederam à institucionalização
dos partidos políticos.

2. v., designadamente, o decreto-lei ny 39.660, de 20 de maio de 1954.

3. contra: marcelo rebelo de sousa, op. cit., págs. 223 e segs., maxime
págs. 231-232.

279
parlamentares e locais - que realizou com toda a regularidade (embora
sem valor substantivo): foi a união nacional, depois acção nacional
popular, tendo sempre como presidente de comissão central, salvo
entre 1968 e 1970, o presidente do conselho de ministros (que também
por essa via, como se verificou especialmente em 1958, dominava o
presidente da república). a fraquíssima consistência desta organização,
a sua criação pelo próprio poder político e a sua reduzidíssima
actividade não permitem qualificá-la como partido

58. os partidos após 1974

l - logo após 25 de abril de 1974, os partidos - fossem partidos


clandestinos de antes da revolução ou partidos recém-constituídos -,
emergiram em força, penetraram ou tentaram penetrar em todos os
sectores da vida social e acabaram por alcançar, no termo do período
revolucionário e constituinte, toda a iniciativa política.

1. cfr. marcello caetano, manual .... cit., 1, 1970, págs. 389-390, nota;
marcelo rebelo de sousa, op. cit., págs. 180 e segs.; arlindo m. caldeira,
”a união nacional: antecedentes, organização e funções”, in análise
social, n.2 94, 1986, págs. 343 e segs.; manuel braga da cruz, opartido e
o estado no salazarismo, lisboa, 1988, maxime págs. 127

e segs.

280

anunciados em largo número, viriam a reduzir-se progressivamente,


perante as exigências de institucionalização e de competição (ainda que
alguns outros tenham surgido, de novo, entretanto). e seriam os que,
efectivamente, conseguiram formar-se e implantar-se os que mais se
aproximam do conceito restrito de partido há pouco proposto, quer pelo
alargamento de base de apoio, quer pela complexidade de estrutura,
quer pela latitude de fins que prosseguem. denotam-se, no entanto,
ainda fragilidades, manifestadas na dependência da repartição de
cargos públicos e de financiamentos privados.

11 - 0 sistema até agora tem funcionado a partir de três partidos que


participaram nos governos provisórios - o partido socialista, o partido
popular democrático (hoje social-democrata) e o partido comunista - e
ainda do centro democrático social (hoje partido popular); e tem girado,
desde 1976, sobretudo à volta dos dois primeiros, os partidos centrais e
maiores do espectro político. outros partidos, de muito menos vulto
(excepto o partido renovador democrático entre 1985 e 1987), só
episodicamente têm conseguido representação parlamentar.
houve até hoje treze governos constitucionais, com diversas incidências
partidárias:

1.1’ - governos minoritários do partido socialista (o primeiro d

écimo-terceiro) e do partido social-democrata (o décimo);

281
2.2 - governos maioritários do partido social-democrata (o décimo
primeiro e o décimo segundo);

3.2 - governo de coligação não formal do partido socialista e do centro


democrático social (o segundo);

4.9 - governos de coligação (aliança democrática) do partido social-


democrata, do centro democrático social e do partido popular
monárquico (o sexto, o sétimo e o oitavo);

5.2 - governo de coligação (bloco central) do partido socialista e do


partido social-democrata (o nono);

6.2 - governos sem base partidária, ditos de intervenção presidencial (o


terceiro, o quarto e o quinto).

nas regiões autónomas dos açores e da madeira o partido social-


democrata obteve repetidas maiorias absolutas. nos municípios, as
maiorias (absolutas ou relativas) têm-se distribuído pelos quatro
principais partidos’.

1. sobre o actual sistema partidário, cfr. santana lopes e durÃo barroso,


sistema de governo e sistema partidário, lisboa, 1980; marcelo rebelo de
sousa, op. cit., págs. 233 e segs.; joaquim aguiar, a ilusão do poder -
análise do sistema partidário português,
1976-1982, lisboa, 1983; portugal - 0 sistema político e constitucional -
1974-1987, obra colectiva, lisboa, 1989, págs. 71 e segs.

282

59- a institucionalizaÇÃo dos partidos em portugal

1 - a mais remota forma de institucionalização constitucional dos


partidos no direito português foi a operada pela lei n.2 891, de
22 de setembro de 1919, ao constituir um conselho parlamentar que o
presidente da república devia consultar em caso de disso-

amaras e que

lução das c^ seria eleito pelo congresso de forma a


44nele estarem representadas todas as correntes de opinião”, segundo
certa proporção (art. l2, n.2 10 e § 1.2 a § 4.2).

quase no final da vigência da constituição de 1933, um caminho tímido


de reconhecimento de pluralismo foi a admissibilidade pelo decreto-lei
n.9 49.229, de 10 de setembro de 1969, de comissões eleitorais ou
comissões de apoio as candidaturas a deputados à assembleia nacional
e que deveriam dissolver-se logo que concluído o processo eleitoral.

0 programa do movimento das forças armadas apenas aludia a


associações políticas, 44possíveis embriões de futuros partidos
políticos” [b.5,b)] e a lei n.2 3/74, de 14 de maio, a ”grupos e correntes
políticas” (art. 7.9, n.!’ 3). não tardariam, contudo, a ser objecto de uma
lei específica, o decreto-lei n.2 595/74, de 7 de novembro (ainda hoje no
essencial em vigor, por não contrariar as normas constitucionais), além
de virem a ocupar um papel proeminente na legislação eleitoral para a
assembleia constituinte (decretos-leis n.01 62 1 -a e 62 1 -b/74, de 14
de novembro).

283
as primeiras normas de força constitucional que se lhes reportaram
viriam a ser o art. 1.9 da lei n.2 4/75, de 13 de março, ao prever a
suspensão da actividade de partidos ”cujo programa seja contrário ao
programa do movimento das forças armadas ou cujo comportamento se
caracterize pelo incitamento à violência ou pelo seu uso perturbe a
disciplina das forças armadas”, e o art. 4.2, n.2 2, da lei n.q 6/75, de 26
de março, ao instituir um conselho de ministros restrito de que faziam
parte os ministros sem pasta, ”representativos de cada um dos partidos
da coligação governamental”.

conhecem-se as tentativas de minimização e de redução do leque


ideológico que os partidos sofreram em 1975. se a plataforma de acordo
constitucional os parecia assegurar como interlocutores válidos do mfa,
era ela própria que falava em ”partidos autenticamente democráticos e
empenhados no cumprimento do programa do mfa” (a.3) e as cláusulas
que lhes diziam respeito eram principalmente restritivas (c.2, c.6. d4.1 e
d.4.2). para responder a essas tentativas e como reacção contra as
concepções salazaristas é que o regimento da assembleia constituinte’
e, especialmente, os projectos de constituição do ps, do ppi) e do c13s1,
primeiro, e a constituição de 1976, depois, lhes deram tanto
desenvolvimento.

1. v. arts. 12.q, n.9 1, alínea c), 31.2,32.2 e 68.9.

2. entre os numerosos preceitos atinentes aos partidos salientem-se: no


projecto do ps, os artigos 4.q e 10.2, fontes dos arts. 1% n.2 3, e 47.%
n.2 1 (depois, 10.q, n.2 2, e 51.2, n.2 1, respectivamente) da
constituição; no projecto do ppd, o art. l9, n.2 5, e o art. 30.q, n.q 1,
também fonte do art. 47.2, n.2 1, da constituição; e no projecto do cds,
os arts. 17.2a 25.2, formando um capítulo próprio.

284

11 - assim, o ”pluralismo de expressão e organização política


democráticas” do art. 2.2 da constituição projecta-se, imediatamente,
na contribuição reconhecida pelo art. 10.9, n.2 21, aos
partidos - e não a quaisquer outras formações, organizações ou grupos -
”para a organização e para a expressão da vontade popular”. e este
preceito surge em complemento imediato daquele que estabelece que o
povo exerce o poder através do sufrágio (art.
10.2, n.9 1) - o que sublinha o papel dos partidos na representação
política.

0 tratamento de partidos vai dar-se de seguida, quer em sede de


direitos, liberdades e garantias quer ao nível da organização do estado,
segundo as duas perspectivas reveladas pela comparação. ”a liberdade
de associação compreende o direito de constituir e participar em
associações e partidos políticos e de através deles concorrer,
democraticamente, para a formação da vontade popular e a
organização do poder político” - diz, por um lado, o art. 51.2, n.2 1. ”os
partidos participam nos órgãos baseados no sufrágio universal e directo,
de acordo com a sua representatividade eleitoral” - prescreve, por outro
lado, o art. 117.2, n.2 1.

a matéria de associações e partidos políticos inclui-se na reserva


absoluta de competência legislativa da assembleia da república (art.
167.2, alínea h».

1. reportamo-nos aos preceitos segundo a localização e os termos


subsequentes às revisões constitucionais de 1982 e 1989.

285
60. partidos e direitos, liberdades e garantias na constituiÇÃo actual

1 - do ângulo dos direitos, liberdades e garantias, o regime dos partidos é,


antes de mais, o da liberdade de associação, positiva e negativa (art. 46.2, n.`s
1 e 3), individual e institucional (art. 46.p, n.2s 1 e 2).

enquanto associações (associações especiais de direito constitucional), os


partidos constituem-se livremente e sem dependência de qualquer autorização
(art. 46.9, n.2 1, l. parte), só com o limite derivado da proibição da violência e
de outros fins contrários a lei penal (art. 46.2, n.9 1, 2. parte). não são
consentidos partidos armados, nem de tipo militar, militarizados ou
paramilitares, nem partidos que perfilhem a ideologia fascista (art. 46.2, n.2
4)’.

ninguém pode ser obrigado a fazer parte de um partido nem coagido por
qualquer meio a permanecer nele ( art. 46.2, ri.!’ 3), ou privado do exercício de
um direito por estar ou deixar de estar inscrito em partido legalmente
constituído (arts. 51.2, ri.!’ 2,
2. parte, 59.2, n.l> 1, e 269.2, ri.!> 2).

os partidos prosseguem livremente os seus fins sem interferência das


autoridades públicas e não podem ser dissolvidos ou

1. v. lei ny64/78, de 6 de outubro.

286

ter suspensas as suas actividades senão nos casos previstos na lei e mediante
decisão judicial (art. 46.2, n.2 2).

acrescem certas regras especiais.

não podem constituir-se partidos que, pela sua designação ou pelos seus
objectivos programáticos, tenham índole ou âmbito regional (art. 51.% ri.9 4).
os partidos não podem, sem prejuízo da filosofia ou ideologia inspiradora do
seu programa, usar denominação que contenha expressões directamente
relacionadas com quaisquer religiões ou igrejas, bem como emblemas
confundíveis com símbolos nacionais ou religiosos (arts. 51.2, n.q
3,e295.2).

ninguém pode estar inscrito, simultaneamente, em mais de um partido político


( art. 5 l.1’, n.l’ 2, 1.1 parte).

ao tribunal constitucional compete verificar a legalidade da constituição de


partidos políticos e suas coligações, bem como apreciar a legalidade das suas
denominações, das suas siglas e dos seus símbolos, e ordenar a respectiva
extinção, nos termos da constituição e da lei (art. 225.2, n.9 3, alínea e»’.

1. v. lei n.q 28/82, de 15 de novembro, alterada pelas leis n.9 143/85, de 29 de


novembro, e 85/89, de 7 de setembro.
287
finalmente, a lei impõe um duplo condicionamento: a inscrição de um
partido requer um número mínimo de cinco mil cidadãos eleitores (art.
5.2, n.2 3, do decreto-lei n.-’ 595/74)1 e um partido é extinto quando o
número dos seus filiados se tornar inferior a quatro mil (art. 2 l9, alínea
a»2.

11 - ainda no domínio dos direitos, liberdades e garantias, refiram-se


garantias de liberdade de filiação partidária; em contrapartida, garantias
de isenção perante opções políticas; e ainda direitos institacionais dos
partidos.

garantias de liberdade de filiação partidária são: a informática não pode


ser utilizada para o tratamento de dados referentes a convicções
políticas ou a filiação partidária (art. 35.% n.2 3) e não pode haver
despedimentos por motivos políticos ou ideológicos (art. 51% 2.1
parte).

garantias de isenção e, portanto, limites à intervenção dos partidos são:


o estado não pode atribuir-se o direito de programar a educação e a
cultura segundo quaisquer directrizes políticas e ideológicas (art. 43.2,
ny 2); as forças armadas são rigorosamente

1. já foi posta em causa esta exigência de um número mínimo de cinco


mil cidadãos, mas o tribunal constitucional decidiu pela não
inconstitucionalidade: acórdãos n.os 367/91 e 368/91, de 28 de agosto e
de 18 de setembro de 1991, in diário da república, 2. série, ny 218, de
21 de setembro de
1991, e n.2 230, de 17 de outubro de 1991, respectivamente.

2. esta segunda regra não tem tido até agora aplicação prática, até
porque a lei não prevê nenhuma forma de verificação.

288

apartidárias (art. 275.95 n.2 4); a lei pode estabelecer restrições

ao direito de associação dos militares e agentes militarizados dos


quadros permanentes em serviço efectivo (art. 27w3)’; e o inesmo
princípio vale para os juizes2

para os magistrados do ministério público, para o provedor de justiça,


para os dirigentes da função pública ou para os diplomatas3.

direitos institucionais dos partidos são o direito de antena na rádio e na


televisão e, quanto aos partidos representados na assembleia da
república e que não façam parte do governo, o direito de resposta e de
réplica políticas, de duração e relevo iguais aos das declarações
políticas do governo (art. 40.9)4.

61. partidos e organizaÇao do poder político


1 - do ângulo da organização do poder político, os partidos relevam na
constituição em três sedes - a das eleições, a da acção parlamentar e a
de certos poderes qualificados de intervenção política.

no tocante às eleições, avultani as regras sobre apresentação de


candidaturas e sobre subsistência do mandato. decorre do art. 117.2,

1 . v. art. 31.2 da lei n.q 29/82, de 11 de dezembro.

2. v. art. 28.2 da lei n.2 28/82, de 15 de novembro, e art. 11 .5?, n.9 1,


da lei n.l> 21/85, de 30 de julho.

3. v. a justificação em manual .... ’v, cit-, págs. 305-306.


4. v. a lei n.9 36/86, de 5 de setembro.

289
n.2 1, que os partidos teêm o direito de apresentar candidatos a todas as
eleições por sufrágio directo, salvo quando a constituição disponha o contrário
como sucede com a eleição do presidente da república (art. 127y); esse direito
é-lhes reservado quanto à assembleia da república, o que não impede que as
listas integrem cidadãos não inscritos nos respectivos partidos (art. 154.2, n.2
1); nas eleições das assembleias de freguesia, a constituição garante o direito
de apresentação também a grupos de cidadãos eleitores (art. 246.% n.2 2);
nas demais eleições a lei pode ou não estabelecer o exclusivo dos partidos’, 2.
por seu turno, perde o mandato o deputado que se inscreva em partido diverso
daquele pelo qual foi apresentado a sufrágio (art. 163.2, n.2 1, alínea c)

os deputados à assembleia da república eleitos por cada partido ou coligação


de partidos podem constituir-se em grupo parlamentar (art. 183.2, n.` 1), o que
veda quer o desdobramento de grupos parlamentares do mesmo partido ou
coligação, quer grupos mistos de diversos partidos ou coligações, quer o
agrupamento de

1. não seria legítimo extrair a contrario do art. 246.9, n.> 2, qualquer


conclusão negativa sobre a possibilidade de outro grupo de cidadãos, além dos
partidos, apresentarem candidaturas nas demais eleições. 0 debate travado na
assembleia constituinte sobre os órgãos das autarquias locais em geral apenas
demonstra que o legislador constituinte não quis resolver, ele, nesse sentido o
problema: v. 1)iàrio n.11 104 e 105, de 15 e 16 de janeiro de 1976,
respectivamente, pág- 33-,,,, 3416 e segs. e 3431-3432.

2. na prática, a legislaça,, ,i dinária tem estabelecido esse exclusivo.

3. a lei (mas só a lei) poderia estender esta regra às demais eleições para
assembleias representativas.

290

deputados independentes, quando os haja. duvidoso é saber se o grupo


parlamentar, como expressão de um partido, pode compreender um só
deputado’. nada impede, porém, que em quaisquer outras assembleias
electivas haja organizações análogas, eventualmente com poderes homólogos.

os grupos são, com os deputados, os sujeitos da acção parlamentar 2, e


gozam de variados poderes funcionais ( arts. 183.2,
170.2, 178.2, alínea c), 179.9 e 181.2): participar nas comissões em função do
número dos seus membros, indicando os seus representantes nelas: repartir
entre si as presidências das comissões e, quanto aos quatro maiores grupos, as
vice-presidências da mesa; requerer a constituição de comissões
parlamentares; ser ouvidos na fixação da ordem do dia, interpor recurso para o
plenário da ordem do dia fixada e determinar a ordem do dia de certo número
de reuniões plenárias; solicitar à comissão permanente que promova a
convocação da assembleia; exercer iniciativa legislativa e de proposta de
referendo; provocar, por meio de interpelação ao governo, a abertura de dois
debates em cada sessão legislativa sobre assunto de política geral ou sectorial;
apresentar moções de rejeição do programa do governo, bem como moções
de censura.

1. v. o debate sobre o regimento da assembleia da república, in diário, n.q 7, de


16 de julho de 1978, págs. 120 e segs.

2. sobre grupos parlamentares, v., por todos, jorge miranda, ”grupo


parlamentar”, in polis, iv, págs. 131 e segs., e autores citados.

291
são, todavia, os partidos representados na assembleia, e não
especificamente os grupos parlamentares, que devem ser
ouvidos pelo presidente da república aquando da nomeação do
primeiro-ministro (art. 190.2, n.> 1) ou da dissolução da própria
assembleia da república (art. 136.2, alínea b». e todos os
partidos representados em quaisquer assembleias que não
façam parte dos respectivos executivos têm o direito de ser
informados, regular e directamente, sobre o andamento dos
principais assuntos públicos (art. 117.9, n.9 2).

são também só os partidos parlamentares - esses e não


quaisquer partidos legalmente constituídos (o que levanta
algumas hesitações quanto à constitucionalidade da solução) -
que têm o direito de receber uma subvenção, proporcional ao
número de votos obtido na mais recente eleição de deputados à
assembleia da república’.

11 - por seu turno, a oposição democrática é declarada um


verdadeiro direito das minorias (art. 117.2, w’ 2). e ela
compreende não só os já referidos direitos de resposta e réplica
política e de informação mas também a específica interferência
na fixação da ordem do dia, com vista a ressalvar a posição dos
partidos minoritários ou não representados no governo (art.
179.2, n.2 3, infine)2.

1. hoje, arts. 63.9 e 66.2 da lei n.9 77/88, de 1 de julho.

2. a lei n.q 5/77, de 5 de agosto, sistematizou as principais


regras da oposição parlamentar e aditou dois ou três novos
poderes ou direitos.

292

além disso, são ou podem ser meios de oposição - a empregar,


individual ou colectivamente, pelos deputados - a sujeição a apreciação
de decretos-leis do governo (art. 172.1», o pedido de comissões de
inquérito, as perguntas,as interpelações e os pedidos de apreciação
preventiva da constitucionalidade de leis orgânicas (art. 278.2, n.2 4), e,
naturalmente, só a oposição apresenta moções de rejeição do programa
do governo e moções de censura.

111 - a par da projecção dos partidos na organização do poder político,


é perfeitamente plausível pensar na projecção da organização do poder
político na organização interna dos partidos.

uma forma equilibrada de ultrapassar o problema (há momentos


evocado) da conciliação do postulado da autonomia interna com o da
democraticidade - tendo em conta até a experiência, nem sempre
positiva, de congressos partidários - poderia consistir em submeter os
partidos aos princípios gerais de direito eleitoral prescritos na
constituição. nem se compreenderia que fossem prescritas regras
acerca das eleições das comissões de trabalhadores e dos dirigentes
sindicais (arts. 54.q, &> 2 e 55.2, ri.9 3, atrás citados) e fosse
constitucionalmente irrelevante a eleição de dirigentes dos partidos,
dotados de tão fortes poderes ou direitos de intervenção na vida do
estado.

não se trataria de lhes estender, pura e simplesmente, a legislação


eleitoral. tratar-se-ia, sim, de repercutir na lei dos partidos os princípios
constitucionais (eventualmente, com adaptações), de
293
modo a ultrapassarem-se quaisquer dúvidas sobre a sua
obrigatoriedade e, por conseguinte, sobre a necessidade de os
estatutos os consagrarem e concretizarem’.

62. parlamento, deputados e partidos

1 - adopte-se a representação proporcional ou a maioritária, reserve-se


ou não aos partidos o exclusivo da apresentação de candidaturas, em
todos os países democráticos são os deputados eleitos por partidos que
ocupam a totalidade ou a quase totalidade dos luga-

1. assim, designadamente:

a) prescrição de voto exclusivamente individual, e não mais de voto por


célula, secção ou organização;

b) proporção entre o número de representantes a eleger por cada


estrutura de base e o número de militantes nela inscritos;

c) incapacidades eleitorais activas e passivas somente com


fundamentos de carácter geral expressamente constantes de normas
estatutárias;

d) possibilidade de conhecimento dos cadernos eleitorais, em prazos


razoáveis, por todos os candidatos;

e) garantias de liberdade e igualdade das candidaturas, com


neutralidade e imparcialidade do aparelho partidário;

g) representação proporcional nas assembleias de todos os graus; h)


eleição directa dos dirigentes em todos os graus;

i) após esgotamento de meios internos, garantia do acesso a tribunal


para apreciação da validade dos actos eleitorais.

v. o nosso artigo por um direito eleitoral dos partidos, in público, de 19


de fevereiro de 1995.

294

res dos parlamentos. e, ainda que em círculos uninominais como em


inglaterra o contacto eleitor-deputado seja muito mais forte do que
aquele que pode dar-se em círculos plurinominais com sufrágio por lista
como sucede em portugal (mas também nas demais democracias
europeias, com excepção da frança), mesmo ali os deputados aparecem
enquadrados por organizações partidárias - tal como, em contrapartida,
não deixa nunca de ser relevante o factor pessoal na escolha dos
candidatos e na sua colocação nas listas nos países de representação
proporcional.

que relação deve haver, porém, entre deputados e partidos? qual o grau
de autonomia de cada deputado enquanto membro do parlamento?
como inserir os deputados eleitos pelos diversos partidos uns em face
dos outros, formando todos uma mesma câmara? e como proceder em
caso de conflito’9

il - uma tese radical tenderia a afirmar que a representação política se


converteu em representação partidária, que o mandato
verdadeiramente é conferido aos partidos e não aos deputados e

1. cfr., por exemplo, g, leibholz, démocratie représentative et État de


partie moderne, cit., loc. cit., págs. 54 e 59 e segs., e entrevista a
quaderni costituzionali, 1981, págs. 482 e 483; k.c. ~are, legislatures, 2.
ed., londres, 1968, págs. 43 e segs.; ricardo chueca rodriguez, ”la
representación como posibilidade en el estado de partidos”, in revista de
derecho publico, 1988, págs. 25 e segs.; antónio porras nadales,
representación y democracia avanzada, madrid, 1994.

295
que os sujeitos da acção parlamentar acabam por ser não os deputados,
mas os partidos ou quem aja em nome destes. por conseguinte,
deveriam ser os órgãos dos partidos a decidir, com maior ou menor
democraticidade ou com maior ou menor centralismo democrático,
sobre as orientações de voto dos deputados, sujeitos estes a uma
obrigação de fidelidade a que não poderiam escusar-se senão em casos-
limite de consciência.

esta concepção ignora que, embora propostos pelos partidos, os


deputados são eleitos por todos os cidadãos e não apenas pelos
militantes ou pelas bases activistas dos partidos, que neles avultam uma
dimensão sócio-profissional e uma dimensão regional e que
juridicamente representam todo o povo. levada às últimas
consequências, com as comissões políticas ou os secretariados,
exteriores ao parlamento, a dizer como os deputados haveriam de votar,
essa concepção transformaria a assembleia política em câmara
corporativa de partidos e retirar-lhe-ia a própria qualidade de órgão de
soberania, por afinal deixar de ter capacidade de livre decisão. somente
regimes totalitários ou p .artidos totalitários, e não aqueles que se
reclamam da democracia representativa e pluralista, a poderiam, aliás,
adoptar: porque, se a democracia assenta na liberdade política e na
participação, como admitir que nos órgãos dela mais expressivos, os
parlamentos, os deputados ficassem privados de uma e outra coisa?

0 entendimento mais correcto, dentro do espírito do sistema, parece


dever ser outro. a representação política hoje não pode deixar de estar
ligada aos partidos, mas não converte os deputa-

dos em meros porta-vozes dos seus aparelhos. pode dizer-se que o


mandato parlamentar é (salvo em situações marginais) conferido tanto
aos deputados como aos partidos; não é aceitável substituir a
representação dos eleitores através dos eleitos pela representação
através dos dirigentes partidários, seja qual for o modo por que estes
são escolhidos. e, se em partidos fortemente ideológicos
correspondentes a bem identificadas minorias políticas como os
colocados em extremos do espectro político, não será muito grande
o desfasamento entre eleitores e militantes, já nos restantes partidos ele
será acentuado; e cabe perguntar se os deputados eleitos pelas listas de
um partido estão mais vinculados aos militantes do que aos cidadãos
eleitores, ou se têm mais base de apoio os órgãos representativos de
100.000 ou os deputados votados por 1 milhão.

dando como certo o carácter bivalente da representação política, é


preciso procurar o enlace, o ponto de encontro específico dos deputados
e partidos. ora, esse enlace não pode ser senão o que oferecem os
grupos parlamentares como conjuntos dos deputados eleitos pelos
diversos partidos. são os grupos parlamentares que exercem as
faculdades de que depende a actuação dos partidos nas assembleias
políticas e só eles têm legitimidade democrática para deliberar sobre o
sentido do seu exercício, não quaisquer outras instâncias ou centros de
decisão extraparlamentares. e por aqui se afastam quer uma pura
concepção individualista vendo o deputado isolado ou desinserido de
uma estrutura colectiva quer uma pura concepção partitocrática em que
os homens dos apa-

296

297
relhos ou as bases se sobrepusessem aos deputados e aos seus
eleitores.

nem se excluem, assim, os corolários mais importantes do regime de


eleição mediatizada pelos partidos, designadamente quanto à disciplina
de voto ou à perda de mandato do deputado que mudar de partido. pelo
contrário, coloca-os à sua verdadeira luz que em sistema democrático,
só pode ser a da liberdade e da responsabilidade políticas. pois, se os
grupos parlamentares implicam uma avançada institucionalização dos
partidos, são, ao mesmo tempo um anteparo ou um reduto da
autonomia individual e colectiva dos deputados - dos deputados que,
por serem eles a deliberar, mais obrigados ficam a votar, salvo objecção
de consciência, confonne a maioria se pronunciar.

que, não obstante, possam surgir divergências entre os grupos


parlamentares e outros órgãos dos partidos, não se exclui a priori. mas
serão concretas e pontuais e não degenerarão em conflitos, desde que
se verifiquem autenticidade na vida interna dos partidos e constante
diálogo (eventualmente, por meio de comissões mistas ou de reuniões
alargadas) e desde que os principais dirigentes partidários sejam
também deputados - como deverão ser, se quiserem prestigiar a
instituição parlamentar - e participem nos trabalhos dos grupos
parlamentares (mesmo se não escolhidos directamente pelos deputados
dos respectivos partidos, como sucede em inglaterra). só um partido em
crise conhecerá oposição permanente entre o partido oficial e o partido
parlamentar.

298

111 - É esta maneira de encarar o mandato dos deputados a que talvez


melhor se hannoniza com as regras que sobre o assunto, directa ou
indirectamente, constam da constituição portuguesa’.

a representação de todo o povo conferida aos deputados está patente


na definição da assembleia como assembleia representativa de todos os
cidadãos portugueses (art. 150.2) e no princípio de que os deputados
representam todo o país e não os círculos por que são eleitos (art. 152.9,
n.2 3). daí o seu estatuto como titulares de um órgão de soberania (art.
156.2 e segs.), e não como comissários ou funcionários dos partidos.

por outra banda, sem esquecer a regra da apresentação de candidatos


só pelos partidos (citado art. 154.2, n.9 1), como a constituição autoriza
a existência de deputados não inscritos em nenhum partido - quer
porque desde logo assim tenham sido propostos como candidatos (art.
154.2, n.’ 1), quer porque, tendo saído do partido por que foram eleitos,
não tenham entrado para outro (art. 163.2, n.2 1, alínea c» - ressalta a
distinção entre a função dos partidos e a dos deputados e concede-se
mesmo que, em caso de ruptura, o deputado prevalece sobre o partido
(se bem que outras razões possam impor a renúncia ao mandato). tão
pouco têm os partidos qualquer meio de substituir os deputados durante
a legislatura: tal substituição faz-se nos termos da lei

1. cfr. marcelo rebelo de sousa, os partidos .... cit., págs. 512 e segs.; ou
antónio costa, ”a natureza jurídica do mandato parlamentar”, in revista
jurídica, n.2 5, janeiro-março de 1986, pág. 156.

299
eleitoral e, quando temporária, é um direito dos deputados, e
não dos partidos (art. 156.2, ny 2).

a lei fundamental define os poderes dos partidos, dos deputados


e dos grupos parlamentares; e, ao passo que os poderes
constitucionais dos partidos - há pouco indicados - são
exteriores à assembleia, os poderes da interferência na
actividade desta ou são dos deputados individualmente
considerados (art. 159.1’) ou são dos grupos parlamentares (art.
183.9). sem os deputados e os grupos parlamentares os partidos
não podem agir no parlamento.

a prática (acentuada desde 1979) não tem salvaguardado,


contudo, plenamente a liberdade de acção dos deputados e dos
grupos, num parlamento crescentemente dominado pelos
partidos’.

63. a condiÇÃo dos cidadÃos nÃo inscritos em partidos

1 - ainda que se encontre resolvido ou atenuado no sentido que


preconizamos o problema da relação entre deputados e partidos, resta
outra questão de não menor importância: a dos direitos políticos dos
cidadãos não inscritos em quaisquer partidos.

1. cfr. manuel braga da cruz e miguel lobo antunes, ”parlamento,


partidos e governo - acerca da institucionalização política”, in portugal-
0 sistema..., págs. 351 e segs.

300

evidentemente, quaisquer cidadãos podem constituir partidos, entrar


para partidos já exisfentes ou aceitar candidatar-se (mesmo sem serem
militantes) em listas partidárias, mas a experiência - em portugal, como
na generalidade dos países - mostra que. o número de cidadãos inscritos
em partidos é muito pequeno, não vai além de
5% ou 6% do eleitorado, e são sempre escassas as possibilidades de
independentes conseguirem obter lugares elegíveis nas listas. ora, tendo
em conta a extensão dos direitos e poderes concedidos pela
constituição e pela lei aos partidos, daqui não resultam desigualdades
efectivas? porque só os filiados participam na tomada de decisões dos
partidos - mormente, na designação de candidatos a cargos políticos,
electivos ou não electivos - não vêm a ficar numa condição de
superioridade frente aos demais cidadãos?

formulada a pergunta nestes termos, antolha-se que a resposta não


pode ser senão uma: desigualdades, ou algumas desigualdades, são
inelutáveis, na medida em que não se descortina (e tem-se procurado,
por vezes, em vão) nenhum mecanismo que evite ou que desempenhe
melhor a tarefa cometida aos partidos de formação e expressão de
opções políticas (tanto mais necessariamente simplificadas quanto mais
complexas se tomam as sociedades). assim como é legítimo entender
que, implicando igualdade o tratamento adequado ou proporcional à
diferença de situações, se justifica reconhecer aos militantes de partidos
um grau maior de intervenção constitucional porque eles mostram
também um grau mais elevado de interesse, iniciativa e participação
política.

tudo estará, de harmonia com os princípios, em garantir plenamente os


direitos dos militantes, reagindo às tentativas oligo-
301
cráticas ou até monocráticas presentes ou latentes nos partidos pois não faz
sentido um estado de direito democrático ser tão escru-

puloso com os direitos dos cidadãos em geral e ficar indiferente perante as


violações dos direitos fundamentais de cidadãos dentro dos partidos’ (embora
não possa exceder os limites, atrás aflorados, de não interferência na
autonomia interna dos partidos); e é de supor que quanto maior for tal garantia
maior será a abertura da sociedade aos partidos e maior o número de cidadãos
que neles entrarão ou com eles colaborarão.

tudo estará ainda, como resulta óbvio (mas não é fácil de alcançar), em que os
direitos e as interferências dos partidos não extravasem da esfera político
-constitucional para outras áreas, como a função pública, a da economia ou a
das escolas.

11 - apesar de todo o relevo que confere aos partidos, a constituição


portuguesa deixa abertas formas muito significativas e ricas de arejamento do
sistema político.

mesmo sem considerar a democracia participativa (arts. 2.2,


9.9, alínea c), etc .)2, há mecanismos de participação à margem dos partidos ou
em que estes têm uma influência algo reduzida. são a

1. estamos aqui perante um caso especial, e mais grave, do problema da


vinculação de todas as entidades, inclusive as privadas, ao respeito dos
direitos, liberdades e garantias (art. 18.0. n.q 1, da constituição): efr. jorge
miranda, manual .... iv, págs. 223-224 e 284 e segs.

2. cft. supra.

302

eleição directa do presidente da república, com candidaturas propostas por


grupos de cidadãos (art. 127.2, já citado); a possibilidade de candidaturas por
grupos de cidadãos eleitores para a assembleia de freguesia (art. 246.2, n.2 2,
igualmente já mencionado), a possibilidade de substituição das assembleias
por plenários de cidadãos eleitores nas freguesias de população diminuta (art.
246.2, n.2 3), os re ferendos locais (art. 241.2, n.2 3, após 1982) e o referendo
político vinculativo 1nacional (art. 118.% após 1989).

a experiência das eleições presidenciais desde 1980 corrobora-o perfeitamente


e, por isso, a manutenção do sufrágio directo não se torna apenas
indispensável para a subsistência do sistema de governo semipresidencial; é,
sobretudo, fundamental para a divisão de poder entre os partidos e os
cidadãos; é indispensável para que não se perca uma via, já comprovada, de
comunicação entre o aparelho político e a comunidade.

111 - numa óptica de jure condendo podem ser encaradas algumas reformas
ou melhorias do direito eleitoral, umas mais viáveis, outras menos; assim como
reformas no sentido de democracia semidirecta.
a primeira dessas reformas (à volta de cuja vantagem se vai fazendo um
consenso alargado) consiste na possibilidade de candidaturas independentes
nas eleições para os órgãos dos municípios e das futuras regiões
administrativas. se nas eleições parlamentares - em que prevalecem linhas de
orientação ideoló-
303
gico-programáticas - os partidos são as entidades naturalmente
vocacionadas para a propositura de candidatos’, já nas eleições locais -
nas quais avultam questões concretas - os candidatos independentes
podem desempenhar uma função valiosíssima; podem-na desempenhar
ainda mais na própria lógica do princípio da descentralização2.

a segunda reporta-se ao sistema eleitoral para a eleição do parlamento


(e para as das assembleias legislativas regionais). sem prejuízo do
princípio da representação proporcional, bem poderiam ser admitidas
formas de escolha individual dos deputados entre os candidatos
propostos pelos partidos na linha do projecto de código eleitoral de 1987
3,4.

uma terceira reforma possível consistiria na introdução de iniciativa


popular. a nível nacional não se justificaria, porventura, encará-la antes
de ser feita a experiência das petições colectivas consagradas em 1989
(art. 52.2, n.> 2); já a nível local poderia, desde já, ser instituída, mesmo
sem revisão constitucional.

1. até porque um parlamento, por hipótese, só formado de


independentes seria insusceptível de viabilizar um governo.

2. até por causa da natureza centralizada, ou centralizadora, dos


partidos.
3. cfr. supra.

4. menos facilmente praticáveis seriam a adopção do sistema de voto


único transferível, adoptado na irlanda, ou a possibilidade de os eleitores
fixarem a ordem dos candidatos nas listas de candidatura.

304

também nesta linha de democracia semidirecta, depois de concretizado


na prática o referendo, faltaria saber se não seria adequado alargar o
seu alcance para além do agora estrito quadro do art. 118.2.

por último, seria interessante pensar em sistemas de participação na


escolha dos candidatos partidários não só pelos militantes mas também
pelos simpatizantes e eventuais eleitores dos respectivos partidos.
todavia, o esquema norte-americano das eleições primárias exige
tradições políticas sedimentadas, apagamento de clivagens ideológicas
e completa segurança cívica, o que ainda não se verifica em portugal.

305
indice

nota prévia ........................................ 5

título 1

formas de governo em geral

capitulo 1

conceitos e tipologias fundamentais ..... 9

1. preliminares ..................................... 11
2. as tipologias de formas políticas em geral ............. 12 i

3. as grandes classificações doutrinais .................. 19


4. distinção de conceitos proposta ...................... 33

capítulo 11

os problemas cardeais ...................... 39

§ 1.2 legitimidade .................................. 41

5. sentido da legitimidade ............................ 41


6. a legitimidade na história .......................... 44
307
7. tipos doutrinais de legitimidade
8. tentativa de quadro geral ......

§ 2.2 participação

9. a participação política em geral ...................


10. modos de participação ..........................
11. a representação política: formação histórica ........
12. do governo representativo liberal à democracia liberal
13. a representação política: análise do fenômeno ......
14. representação e mandato .......................

§ 3.9 pluralismo

15. pluralismo político e pluralismo social


16. sistemas pluralistas e monistas ......
17. pluralismo e oposisão .............

§ 4.2 divisão do poder .............

18. a divisão do poder em geral ......


19. a doutrina da separação de poderes .
20. concepções doutrinais subsequentes

47
50
55
55
59
63
70
75
80
83
83
85
88
93
93
97
103

2 1. a separação de poderes na evolusão do constitucionalismo 107

capítulo ill
formas e sistemas de governo

22. as oito formas de governo modernas . .


23. caracterização sumária .............

113
115
116

308

24. grandes contraposições ..................


25. sistemas de governo em geral .............
26. a perspectiva jurídica dos sistemas de governo
27- a perspectiva política ....................
28. os tipos de governos com interferência militar

titulo 11

a democracia representativa

capítulo 1

princípios e problemas gerais ............

29. democracia e princípio da soberania do povo .......


30. 0 principio do sufrágio ........................
3 1. 0 principio da maioria .........................
32. democracia e princípio republicano ..............
33. democracia representativa e democracia participativa
34. pluralismo social e democracia representativa ......
35. democracia política e democracia social ...........
36. estado de direito e principio democrático ..........
37. as concepções e os valores da democracia .........

capítulo ii

a eleiÇÃo e 0 referendo

§ 1.2 a eleição ................

38- a eleição política em geral ....

309
39. sufrágio e colégio eleitoral ........................ 199
40. os sistemas eleitorais ............................. 203
41. tipos de sistemas eleitorais ........................ 207
42. representação majoritária e representação proporcional . . 211
43. sistemas eleitorais e sistemas políticos ............... 213
44. os sistemas eleitorais em portugal ................... 216
45. 0 regime jurídico da eleição política ................. 221

§ 2.2 0 referendo ................................... 231

46. 0 referendo e os institutos afins ..................... 231


47. modalidades de referendo ......................... 237
48. relance histórico-comparativo ..................... 238
49. 0 referendo em portugal antes de 1974 ............... 244
50. 0 referendo após 1974 ............................ 249
5 1. 0 regime do referendo político nacional .............. 255
52. 0 regime do referendo local ........................ 260

capítulo 111

partidos políticos ........................... 263

53. noção de partidos políticos ........................ 265


54. origem e evolução ............................... 268
55. partidos e sistemas políticos ....................... 270
56. 0 tratamento constitucional dos partidos .............. 273
57. os partidos em portugal antes de 1974 ............... 277
58. os partidos após 1974 ............................ 280
59. a institucionalização dos partidos em portugal ......... 283
310

60. partidos e direitos, liberdades e garantias na constituição actual


.........................................

6 1. partidos e organização do poder político ..............


62. parlamento, deputados e partidos ...................
63. a condição dos cidadãos não inscritos em partidos ......

311

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