Palavras-chave:Cinema.Cidade.Cotidiano.Territórios Sensíveis.Comunicação.
Introdução
matéria de que são feitos os contatos sociais, ocupa um lugar singular na produção coletiva”.
Corrobora a percepção de Bourriard, a ideia de partilha do sensível, como “a relação entre um
conjunto comum partilhado" (RANCIÈRE, 2005, p.7).
Para efeito do presente artigo, serão utilizados como objeto as vivências no Hospital
Universitário Clementino Fraga Filho (UFRJ) na enfermaria geriátrica e nos coletivos de arte
Projetação e CicloCine. O corpus se constitui em sua diversidade (onde se sugere existir sua
potência investigativa) no percurso que se trilha na presente fase de pesquisa: expandir a ideia de
espaço público para espaço “em comum”, esteja ele internamente localizado, como no caso do
cineclube e sessões de cinema no hospital, ou como imagem que atravessa as ruas e praças da
cidade, caso das experiências dos coletivos de arte.
A questão central é: Como se estabelecem as sociabilidades entre os indivíduos e grupos nos
espaços atravessados pelas linguagens fílmicas? Tal questão nos remete a outra. A saber: quais
experiências e fluxos comunicacionais são produzidos através das linguagens e como tais processos
ocorrem? Seria a linguagem capaz de promover a reflexão e o debate sobre o cotidiano, em medida
de sensibilizar e mobilizar?
Como percurso metodológico optou-se pela trajetória cartográfica corroborada pelos
pressupostos de Martin-Barbero (2004) sobre a cartografia como mapa construído entre o
pesquisador e o pesquisado, onde as "mãos veem ao mesmo tempo em que tocam” (SARAMAGO
apud BARBERO, 2004, p.34) e que, sugere-se, dialogam com a ideia de territórios sensíveis
relacionados ao cinema. Não é por acaso que Andréa França observa ser a territorialidade um
recorte simbólico necessário para "inventar novas terras, novas nações, novas comunidades, onde
elas nem sequer existem. Essas terras não são geográficas, são territórios afetivos, sensíveis, novos
mapas de pertencimento” (MARTINS, 2006, p.399). Assim, mapear a potência de sociabilidade e
vinculações entre espaços e sujeitos é propor a redefinição de fronteiras simbólicas e fluxos
comunicacionais que podem atravessar a cidade, paisagem que se constitui no social.
A hipótese que norteia esta pesquisa é as experiências teriam a potência de engendrar
vinculações entre os sujeitos participantes. A vinculação aqui seria não somente uma relação, mas –
como pensa Muniz Sodré (2010) - uma condição originária do ser, que é na medida em que partilha
um lugar em comum, que não tem a limitação espacial, mas seria construído de afetos. Dessa
maneira, poderiam ser criadas pontes entre os sujeitos e as cidades e produzidas reflexões para além
das instituições sociais?São algumas questões que se busca responder.
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Em sua obra Elogio à razão sensível, Michel Maffesoli (1998) propõe o diálogo entre a
razão instrumental, científica e a razão sensível, considerada pelo autor a experiência que representa
a contemporaneidade. Assim, estabelece a importância dos afetos e das emoções na observação dos
fenômenos sociais, não somente porque que são da ordem do sensível, mas, principalmente, porque
são potencializados no compartilhamento de experiências pelos sujeitos. Em cada esfera do
cotidiano, portanto, seria possível observar o predomínio da estética, em acordo com sua etimologia
de ser a ação ou o sujeito que tem a faculdade de sentir ou de compreender (MAFFESOLI,1998).
Em igual medida, também Bourriard (2009) observara, no cerne da obra de arte, que a
percepção será construída a partir do que o autor denomina estética relacional, pois é sempre no
olhar do outro e em sua vivência que se constitui o domínio do sensível enquanto forma e
experiência. Ora, não seria por acaso que o autor compreendera a cidade como o lócus da
proximidade, constituída menos no que tem de material quanto no que abriga de simbólico e, por
conseguinte, relacional. Logo, se os lugares são da ordem do sensível, nas experiências estéticas por
excelência, caso do cinema, observa-se a concepção de um território em comum, feito de narrativas
e afetos, passíveis de gerar reflexões do sujeito posto em relação consigo mesmo e com o outro,
durante uma experiência em um espaço e tempo compartilhados. Diante de tal pressuposto teórico,
compreende-se, em consonância com Andréa França (2006) que, dentre todas as linguagens, o
cinema, particularmente, pelo fato de convocar corpo e alma à imersão, pressupõe a emergência de
territórios sensíveis, que coube ao presente artigo investigar.
Inicialmente cabe investigar as imbricações resultantes entre espaço x tempo diante do
corpus observado, a saber, espaços de cinema supracitados. Dessa maneira, cada projeto observado
está igualmente atravessado pelo que Sodré (2010) compreendera como bios midiatizado, ou seja,
historicamente, o momento em que as mídias não mediam a realidade. Criam-na, tornando-se uma
ambiência. A tal ponto que se julga que as mídias não podem mais ser consideradas meramente
prescritivas de hábitos sociais, mas propositoras de imaginários e práticas que, a seu modo, também
fomentam o social. Sendo assim, do lugar de mensagens veiculadas com este ou aquele objetivo, as
mídias se transmutam, gerando vinculações do sujeito, que se reconhece nas mensagens
midiatizadas, posto que elas atravessam e configuram seu cotidiano reverberando, quase sempre,
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discursos pautados pela lógica dos mercados(SODRÉ,2010). E se o cenário social está tão
entremeado de imagens e experiências geradas pelas mídias na medida de conformarem um ethos,
como seria possível a ruptura no fluxo de mensagens de modo a constituírem o que Sodré (2010)
identificara como héxis, ou, em outras palavras, a experiência transformadora do ethos? Nossa
aposta recai para a experiência sensibilizadora do sujeito através do cinema, de tão modo intensa
que poderia modificar o olhar em relação ao outro e à cidade. Mas como compreender e identificar
cada uma dessas experiências?
Pela circunstância de serem tão diversos, como encontrar em cada projeto o mecanismo que
os faça assemelharem-se em alguma medida, de modo a organizarem-se como objetos de
observação? Sugere-se que tal elemento em comum estaria, para além da linguagem fílmica ou da
particularidade de cada experiência, na circunstância de cada atividade ocorrer mediante a
ressiginificação do espaço onde se localiza, seja ele interno às paredes de uma construção(caso do
Cinema no Hospital) ou diretamente nas praças de uma cidade( caso do Projetação). Na formação
de lugares de encontro por entre os espaços coletivos cotidianos, tal e qual observara Milton Santos
(2006), pensa-se estar a potência transformadora de cada projeto.
Em verdade, não somente pelo fato de serem cotidianos, posto que se observa um
componente singular na própria constituição do cinema como matriz de fenômenos sociais,
conforme apontara Ismail Xavier (1983). Ao analisar a vivência do sujeito em relação ao filme, o
lugar da câmera será o de cristalizar o olhar e a sensibilidade humana, que é construída
historicamente. Em diálogo com Baudry, pode-se compreender o cinema como “código dominante
da cultura ocidental” (BAUDRY in XAVIER, 1983, p.360). Individualizando o olhar, a experiência
fílmica para Xavier tornar-se-ia então o contrário do que Maffesoli pensa ser a experiência sensível,
isto é, coletiva. Também em diálogo com Xavier, Mauerhofer (XAVIER, 1983) pondera que no
cinema a falta de contato e a escuridão impedem que se formem vínculos. Entretanto, convém
ressaltar a distinção existente entre o ato de ver filmes segundo a lógica de Baudry e a proposta dos
projetos a serem observados, posto que o ato de fazer e fruir o cinema coletivamente potencializa o
participante como sujeito do social, vinculando seu olhar criativo ao exercício de ouvir a opinião do
outro, imprescindível tanto para a produção de filmes quanto para o cotidiano. E se o cinema pode
trazer ao sujeito a ilusão de que seu olhar é representativo de uma realidade, seja na escolha dos
filmes, ou mesmo nas atividades propostas, o olhar é associado diretamente à socialidade e esta é o
componente que poderá ter a potência de suscitar a héxis. Logo, observando a possibilidade de
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Há experiências que determinam caminhos, tão intensamente e de modo tão devastador que
é impossível continuar sendo os mesmos após terem sido vivenciadas. Nesse viés encontram-se
definitivamente as práticas com as emoções e a arte. No percurso metodológico que se escolheu,
recorrendo à cartografia, essa seria exatamente a intenção.
Dessa maneira, logo no início da pesquisa que identificou os projetos a serem observados, a
primeira visita foi ao Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira e ao Hospital
Universitário Clementino Fraga Filho, ambos na UFRJ. Em ambos os projetos 1 há a coordenação
da equipe do Cinema para Aprender e Desaprender, o CINEAD2. Trata-se de uma ação do
Laboratório de Educação, Cinema e Audiovisual da Faculdade de Educação da UFRJ, que promove
iniciativas que tenham como cerne a relação entre educação, saúde e cinema. Nos dois casos a ideia
1
Cinema e Hospital , realizado desde 2011 no Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira - IPPMG e
Cinema e Velhice , realizado desde 2013 nas enfermarias do Hospital Universitário do Rio de Janeiro.
2
www.cinead.org. Acesso em 03/08/2015 às 15h
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prévia, quase toda a linguagem do cinema.Assim, nos fala de dublagens, desenho de som,
montagens, mise-en-scene de atores, etc. E sabe exatamente o que quer:filmes com efeitos visuais.
A cada encontro o menino nos surpreende, nos encanta com desmedida de imaginar histórias, todas
passíveis de se tornarem filmes. Em uma das vezes, por exemplo, ele explicou claramente o que
queria: dois dinossauros, que travaram uma luta de vida e morte. Levaram-no até a câmera.Ele
pediu uma cadeira ,das de diretor, com nome nas costas.Deram-lhe a cadeira. Então ele pediu a
claquete. Espanto geral.Mas como esse menino tão pequeno sabe o que é uma claquete? “- Sei sim,
disse. Serve para cortar os filmes em partes. Os adultos perto dele emudeceram de espanto. Mas
havia um filme a ser feito. O menino sentou-se, pediu que lhe ajustassem o tripé, colocou a câmera
no ângulo que lhe pareceu correto e recomendou ao ator a forma como ele devia entrar. Sim, havia
um elenco no filme, formado de um adulto que seria regiamente remunerado pelo cachê que o
concentrado diretor foi buscar à gaveta mais próxima: uma bala de café.Ajustados os aparelhos,
ensaiado o ator (o diretor deixou claro que não queria usar bonecos como personagens. Queria o uso
de sombras projetadas pela luz em um biombo de tecido). E assim foi. Quando tudo estava pronto
no set ele ergueu as mãos, bateu palmas e disse: ação! Em poucos minutos, fora gravada a primeira
cena. Então o diretor se levantou, postou-se atrás do biombo para representar o segundo
personagem e novamente comandou a claquete:”Ação!”Cena filmada, o diretor quis ver o resultado
e gostou do que viu. Então, categoricamente, perguntou:“ - onde meu filme vai passar?”Quando
disseram que poderia ser enviado para um festival que exibia filmes em praças, ele interrompeu
imediatamente:“ - Não, não quero praças, quero uma sala, de cinema. Grande, escura, cinema
mesmo sabe? ”E assim, coube a nós, sua equipe de “filmagem”, o benefício de sair do hospital,
novamente, muito mais aprendizes do que o próprio menino.
Teresinha( todas com mais de 65 anos). Notou-se, talvez devido à idade, uma grande lacuna nas
narrativas dos idosos, em contrapartida às interações com as crianças. Alguns reclamam de dores,
outros têm o olhar perdido, sem responder às perguntas da equipe do CINEAD. Entre os
profissionais de saúde, contudo, a expectativa é grande e muitas moças se acumulam na parede da
enfermaria, movendo leitos e retirando cadeiras do caminho para que o projetor possa ser montado.
E após uma breve explicação sobre a história do cinema e a exibição dos primeiros filmes dos
irmãos Lumiére, a escolha do dia, feita pela coordenadora do Cinema no IPPMG: A música
segundo Tom Jobim (Nelson Pereira dos Santos, 2012). Foram necessários apenas os primeiros
acordes de bossa nova para que os semblantes como mágica, se suavizassem. E enquanto Severina
acompanhava atenta as músicas que iam se desenrolando na parede, Elair, que dormia quando
chegávamos e chegara a resmungar quando começou-se a falar sobre cinema, abriu levemente os
olhos e se pôs a escutar. As imagens de um Rio de Janeiro mais poético e infinitamente mais belo
dialogavam com os sons de Tom e Vinicius, encantando a todos e era quase como se a música
irrompesse pelos corredores do hospital, sempre tão cheio de dores e espera, convocando os olhares
de todos que passavam por aquela enfermaria. E um silêncio profundo fez-se, quase como se a
música, como linguagem universal, criasse um imaginário de memória coletiva, sensível, tocando-
nos a todos, sem diferença de idade ou estado de saúde, estabelecendo um caminho preciso entre
nós e os pacientes, criando um território de possíveis.
Após meses de acompanhamento dos projetos no hospital, uma série de questões surgiu:
como seria a experiência com o cinema se não estivesse interno ao espaço entre paredes de um
hospital, de uma escola ou de um cineclube? Seria o espaço algo físico, delimitador das práticas ou
seriam os territórios sensíveis algo para além do material, constituído apenas por afetos e emoções?
E foi então que iniciou-se o acompanhamento nos coletivos de arte Projetação3 e CicloCine4.
Ambos os coletivos se originam na ideia da experiência do cinema além do espaço restrito
da sala escura, criando narrativas nos espaços urbanos da cidade. No caso do projetação, as
iniciativas tiveram início quando das manifestações de 2013 e tornaram-se um marco das chamadas
jornadas de junho.Quanto ao Ciclocine, associa a projeção de filmes em praças a encontros de
ciclistas e iniciativas cujo mote seja a mobilidade urbana.Em ambos os casos, a narrativa fílmica é
atravessada pela experiência urbana, reinventando modos de habitar a cidade.
3
http://www.projetacao.org/.Acesso em 14/04/2016
4
https://www.facebook.com/CiclocineRJ/info/?tab=page_info.Acesso em 14/04/2016
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Considerações provisórias
Quando se faz a escolha da pesquisa de campo por meio da cartografia, a cada visita saímos
e entramos de formas diferentes dos lugares pesquisados e há sempre formas distintas de adentrar o
espaço e travar contato com aqueles que ali estão. Há sempre o impulso de não romper o silêncio e
o descanso de quem dorme ou de não interferir na organização já existente, seja nos espaços
públicos da cidade, seja no silêncio de uma enfermaria, mas se assim fosse, como oferecer-lhes a
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experiência do cinema? É necessário então encontrar a forma certa para poder avançar,
conquistando a cada passo mais um pouco de território simbólico.
E deixando de lado qualquer ideia ou formato pré-estabelecido. Por esse motivo, durante o
mapeamento, fase onde se encontra a presente pesquisa, não se pode nem sequer sonhar em ter
considerações definitivas, posto que ambos, campo e pesquisador, se transformam a cada dia e o
próprio corpus ainda encontra-se em construção. E é justamente na transformação e na diversidade
que se supõe estar a potência de investigação. Ao comparar projetos em ambientes tão distintos
como as enfermarias e as praças da cidade, até o momento pode-se perceber duas coisas em
comum: a intensidade da experiência vivenciada pelos participantes e a força da narrativa
cinematográfica como modo de intervenção em um lugar, que será (externo ou interno)
predominantemente simbólico, construído de afetos, cotidiano e disputas, seja de espaço seja de
significado.
No compartilhamento das experiências e na ressiginificação de espaços visualiza-se um
caminho a partir do qual se investiga a possibilidade do cinema constituir-se como espaço "entre",
ponte que se pode criar para a vivência do ser "em comum", vinculado ao outro e à sua realidade,
seja qual for o espaço ou experiência cotidiana onde estiver inserido.
Bibliografia:
BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes,2009
KASTRUP, Virgínia. Pistas do método da cartografia: pesquisa- intervenção e produção de subjetividade.
Porto Alegre: Sulina, 2009. p. 32-51.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Ofício de Cartógrafo – Travessias latino-americanas da comunicação
na cultura. Tradução: Fidelina Gonzáles. Coleção Comunicação contemporânea 3, São Paulo:
Edições Loyola, [2014] 2004.
MARTINS, Andrea F. Cinema de Terras e Fronteiras.In:MASCARELLO, et al.História do Cinema
Mundial. 1. ed. São Paulo: Papirus, 2006
MÚSICA segundo Tom Jobim. Direção: Nelson Pereira dos Santos. Brasil, 2012. 1 DVD (90 min),
son., color.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Tradução: Mônica Costa Netto. São
Paulo: EXO Experimental / Editora 34, 2005.
SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 2006
SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho – uma teoria da comunicação linear e em Rede.
Petrópolis: Vozes, 2010
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XAVIER, Ismail. A Experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilmes, 1983:79-
82
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