e Drama [Napedra]
Apoio
Fapesp, Capes, Departamento de Antropologia da USP, Programa de Pós-graduação em
Antropologia Social, Pró-reitoria de Extensão e Cultura da USP, Pró-reitoria de pós-graduação
da USP, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU/USP), LISA, USP, UNICAMP, UNESP
______________________________________________________________________
Catalogação na Publicação Divisão de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
ISBN 978-85-7506-211-1
CDD 301.2
______________________________________________________________________
Núcleo de Antropologia, Performance e Drama [Napedra]
Coordenação Geral
Prof. Dr. John Cowart Dawsey
Profª Drª Regina Polo Muller
Comissão Organizadora
Ana Cristina Lopes
Ana Goldenstein Carvalhaes
Carolina Abreu
Denise Pimenta
Euler Sandeville
John Cowart Dawsey
Marianna Francisca Martins Monteiro
Regina Pólo Müller
Comissão de seleção
Ana Lúcia Marques Camargo Ferraz
Giovanni Cirino
Romain Jean Marc Pierre Bragard
Comissão de Performances
Ana Goldenstein Carvalhaes
Luciana de Fátima Rocha Pereira de Lyra
Marianna Francisca Martins Monteiro
Comissão Experiência na Cidade de São Paulo
Bianca Caterina Tereza Tomassi
Carolina Abreu
Euler Sandeville
Marianna Francisca Martins Monteiro
Romain Jean Marc Pierre Bragard
Comissão de Produção
Alice Villela
Ana Cristina Lopes
Bianca Caterina Tereza Tomassi
Denise Pimenta
Marcos Vinícius Malheiros Moraes
Tatiana Molero Giordano
Comissão de Tradução
Ana Cristina Lopes
Danilo Paiva Ramos
Denise Pimenta
O Encontro Internacional de Antropologia e Performance (EIAP) aconteceu
entre os dias 25 de setembro e 01 de outubro de 2011, com sede no auditório da FAU
(Faculdade de Arquitetura e Urbanismo) da Universidade de São Paulo, campus Cidade
Universitária. Além do auxílio recebido da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
de São Paulo [FAPESP], o evento recebeu o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior [CAPES], Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária
[PRCEU-USP], Pró-Reitoria de Pós-graduação [PRPG-USP], Pró-Reitoria de Graduação
[PRG-USP], Programa de Pós-graduação em Antropologia Social [PPGAS-USP],
Departamento de Antropologia da USP [DA-USP], Laboratório de Imagem e Som em
Antropologia [LISA-USP], Faculdade de Arquitetura e Urbanismo [FAU-USP],
Universidade de São Paulo [USP], Universidade Estadual de Campinas [UNICAMP], e
Universidade Estadual Paulista [UNESP].
O EIAP contou com a presença de pesquisadores (graduação, pós-graduação e
professores) de diferentes centros de estudos e pesquisa de estudos em performance
do Brasil e do exterior, seja como participantes inscritos – expositores ou ouvintes –
ou convidados – conferencistas, palestrantes e performers. Os participantes eram
oriundos de diferentes instituições, estaduais e federais, localizadas em mais de uma
dezena de estados da federação, de todas as regiões do país; assim como de algumas
das principais instituições da França, do Reino Unido, e dos Estados Unidos da
América.
WORKSHOP
25/09/2011
Guillermo Gómez-Peña e Michele Ceballos (La Pocha Nostra)
“Ritual strategies to decolonize the body: a workshop for performance artists,
radical actors and dancers”
ABERTURA
26/09/2011
Prof. Dr. Marcelo Romero (FAU/USP)
Prof. Dr. John C. Dawsey (DA/ USP, coordenador do Napedra)
Prof. Dr. Rubens Alves da Silva (ECI/FMG)
MESAS
Mesa 1: Corpo, memória e espetáculo
26/09/2011
Diana Taylor (NYU)
Knowledge and transmission the age of digital tecnologies
Círculos de coca e fumaça: mitos, sonhos e benzimentos nas rodas noturnas dos
velhos Hupd’äh
Tatiana Molero (IA/UNICAMP)
Ecos do processo socioeducativo no corpo do ator-performer
A identidade circense, seus símbolos e rituais sob a lona: reflexões sobre o circo
e suas perfomances
GT 3: Narrativa e oralidade
27/09/2011
Coordenadora: Rose Satiko Gitirana Hikiji(NAPEDRA/USP)
GT 4: Teatro e ritual
29/09/2011
Coordenadora: Francirosy Campos Barbosa Ferreira (NAPEDRA/USP)
Leitura e emissão no trabalho do ator: um estudo sobre a Cia. Club Noir a partir
de Paul Zumthor
Credos
26/09, saguão do auditório da FAU/USP
Partindo de experiências performáticas acerca da temática do sagrado pessoal,
performers propõem trajetórias que se entrecruzam, re-ligam-se. Concepção e
Atuação: Carlos Ataíde, Lilih Curi, Luciana Lyra, Simone Evaristo, Vânia Medeiros e
Viviane Madu.
Quad
Supervisão cênica: Marianna Monteiro e Marcus Guimarães Rosa
Com: Ana Goldenstein, Carolina Oliviero, Daniela Aquino e Marianna
Monteiro
27/09, saguão do auditório da FAU/USP
Quad é uma Performance inspirada na obra de mesmo nome, de Samuel
Beckett, escrita para televisão em 1981. Sem os recursos televisivos de imagem e
som, a performance pretende interagir com o espaço arquitetônico da Faculdade de
Urbanismo da USP, de forma a potencializar e transformar a visualidade da proposta
original. A peça para 4 atores, luz e percussão, se transformará em performance com
4 atores, celulares, em vão livre.
Fragmentos homens e caranguejos
Direção: Luciana Lyra (Cia. Duas de Criação)
Com: Beatriz Marsiglia, Camila Andrade, Juliana Mado e Letícia Leonardi
(Coletivo Joanas Incendeiam)
28/09, saguão do auditório da FAU/USP
A partir das experiências artetnográficas nas comunidades da Ilha de Deus, em
Recife e do Boqueirão, em São Paulo, atrizes performam imagens e personas, que
dialogam com o universo do romance ‘Homens e Caranguejos’, do geógrafo
pernambucano Josué de Castro.
CURSO DE ARQUEOLOGIA PESSOAL
29/09 a 01/10/2011
6. Os workshops Pocha não são terapia nem uma forma alternativa de cura.
Embora entendemos que os participantes possuam problemas pessoais fora do espaço
da performance, solicitamos o foco completo nas questões do exercício proposto.
Esses exercícios permitem que as pessoas confrontem controversos pontos artísticos,
culturais, éticos ou políticos. Mas problemas pessoais sensíveis devem ser deixados
fora da sala. Se a pessoa tem um problema pessoal sério, que seja prioritário em
relação ao workshop, seria melhor que a pessoa não participe. Por quê? Pocha está
aqui para ajudar a pessoas atravessarem novas fronteiras e abraçarem completamente
suas práticas, e não para consolar ou mimar. Simplesmente não somos treinados para
isso. Os participantes devem aprender a diferença entre queixas legítimas (“estou
tendo uma crise com a falta do diretor” ou “minha imagem ainda não está clara ou
suficientemente complexa”) e aquelas queixas que pertencem à ordem do privilégio
social (“Não posso trabalhar hoje, pois está muito quente... ou muito frio”), confissões
privadas (“Não posso trabalhar hoje, pois acabei de terminar meu namoro”) ou falta
de experiência (“Vou sair, pois não gosto de meus objetos de cena”).
EXPERIÊNCIA URBANA
01/10/2011
Memórias da cana
25/09
Espaço dos Fofos
Rua Adoniran Barbosa, 151, Bela Vista (Bexiga)
Programa
26/09
Acontecências (23 min., 2009)
De Alice Villela Pinto e Hidalgo Romero
Caminhos da Memória: Miriam Moreira Leite (Série trajetórias) (33 min., 2007)
De Ana Lucia Ferraz, Andrea Barbosa e Francirosy Ferreira
28/09
Cinema de Quebrada (47 min., 2008)
De Rose Satiko Hikiji
29/09
Pelas Marginais (52 min., 2008)
De Paula Morgado e João Claudio de Sena
30/09
Amores de circo (40 min., 2009)
De Ana Lucia Ferraz
Napedra: 10 anos
Rubens Alves da Silva
As lições de communitas nos tempos da performance,Rubens Alves da Silva
(ECI/UFMG)
Dois Mil e Um
Rita. Dezesseis de outubro de dois mil e dois. Discussão sobre teatro moderno,
texto Roubine “ a linguagem da encenação teatral”
Treze de junho de dois mil e três. Seminário ministrado por Tiago O. Pinto,
Tema: “A performance musical como uma forma específica”
Vinte e seis de outubro de dois mil e três. Discussão da performance “Fu ga ku”.
A eficácia da performance
O convite para eu me juntar àquele grupo de leitura que originou o Napedra foi
me feito por Rita. Eu e ela fazíamos parte da turma que cursava a disciplina de
“Seminário de Projetos”, ministrada na ocasião pela professora Lilia Schwarcz. Ela
conversou comigo pelo corredor sobre a ideia do grupo e também comunicou em sala
de aula a novidade. O grupo estava no começo era aberto a qualquer um que tivesse
interessado em fazer leituras coletivas e aprofundar na discussão em torno de um
assunto que tinha a ver com a tessitura do diálogo entre a antropologia e o teatro. Não
foi exatamente nessas palavras que ela anunciou o grupo, mas o conteúdo do convite
era esse.
Assim, me senti convidado duas vezes e decidi participar das reuniões informais
do grupo. O assunto para mim era novo, as leituras estimulantes; o clima das reuniões
era alegre, descontraído e harmônico. As discussões eram animadas, às vezes
polêmicas, mas sempre dosadas pelo diálogo respeitador das criticas, das
discordâncias de pontos de vistas interpretativos referentes a compreensão de um
texto ou ideia de um autor lido.
Com efeito, foi assim, de boca em boca, que o grupo começou a ser divulgado
dentro (pelos corredores da FFLCH, Colmeia, bandejão) e fora da USP. Mais pessoas
começaram a aparecer nas reuniões: algumas só de passagem, aparecendo em uma ou
duas reuniões apenas; outras participando mais, aparecendo esporadicamente nas
reuniões, mas também depois se afastando do grupo por algum motivo particular.
Mesmo assim, o grupo se ampliou e se afirmou com o nome de batismo dado pelo
John: NAPEDRA! – Núcleo de Antropologia da Performance e do Drama.
1
Clay Shirky, “Newspapers and Thinking the Unthinkable.”
http://www.shirky.com/weblog/2009/03/newspapers-and-thinking-the-unthinkable/ accessed July 14,
2009.
2
Ong, Lowe, etc.
The different systems provoke different ways of knowing and being in the
world—the repertoire supports “embodied cognition,”3 collective thinking, and
knowing in place, whereas archival culture favors rational, linear, and so called
objective and universal thought and individualism. The rise of memory and history, as
differentiated categories, seems to stem from the embodied/ documented divide. But
these are not static binaries, or a sequential pre/post, but active processes--two of
several interrelated and coterminous systems that continually participate in the
creation, storage and transmission of knowledge. FIGURE 2
Digital technologies constitute yet another system of transmission that is
rapidly complicating western systems of knowledge, raising new issues around
presence, temporality, space, embodiment, sociability, and memory (usually
associated with the repertoire) and those of copyright, authority, history, and
preservation (linked to the archive). Digital databases seemingly combine the access
to vast reservoirs of materials we normally associate with archives with the
ephemerality of the ‘live.’ A website crash reminds us of the fragility of this
technology. Although the digital will not replace print culture anymore than print
replaced embodied practice, the ways in which it alters, expands, challenges and
otherwise affects our current ways of knowing and being have not completely come
into focus. If the repertoire consists of embodied acts of transfer and the ‘archive’
preserves and safeguards print and material culture—objects—what to make of the
digital that displaces both bodies and objects as it transmits more information far
faster and more broadly than ever before? Here I will argue that the digital that
enables almost limitless access to information yet shifts constantly, ushers in not the
age of the archive, nor simply a new dimension of interaction for the repertoire, but
something quite different that draws on, and simultaneously alters both.
Again, I want to insist that the embodied, the archival, and the digital overlap
and work together and mutually construct each other. We have always lived in a
‘mixed reality.’4 The Aztecs performed elaborate ceremonies in attempts to mirror and
control the powerful cosmic forces that governed their lives. Sue-Ellen Case argues
that the medieval cathedral staged the virtual, while 17 th century theatre patented its
ownership of virtual space.5 Clearly, the technologies of the virtual have changed
more than the concept of living simultaneously in contiguous spaces. Losing oneself in
a literary work of fiction, or getting caught up in the as if-ness of a performance, or
entering a trance state in candomblé, have long preceded the experience of living an
alternate reality provided by the virtual realm online.
But the digital and the virtual are not interchangeable, even though they are
often used as if they were; the change in technologies is profoundly significant. Since
the late 19th century, for example, Kodak has socialized people into living with and
using new technologies—(1913 photo). This camera was light enough for women to
handle as they enjoyed the increased independence, mobility, and leisure time of class
privilege. The affluent could make memories now to use later [figure 3]. In order to
sell ‘memory’ as a commodity, Kodak also actively promoted nostalgia as an epistemic
lens—the urgency of the photo rests on our knowing that the photographed
3
See Frans de Waal [get info]
4
Mark B. N. Hansen, Bodies in Code: Interfaces with Digital Media. New York: Routledge, 2006.
5
Sue-Ellen Case, Performing Science and the Virtual. New York: Routledge, 2007, pg. 9 and 51.
object/subject will be lost, that the present vanishes, and that these happy moments
are bound to end. The nostalgia is built into the technology itself—a memento mori as
were the first miniature paintings of loved ones. These early technologies stage the
vanishing ‘now’ to construct a past that can be owned and accessed at some later
time. The materialization of the past (memory/history) and the pace of the
socialization into the digital has accelerated vertiginously.
As paradigms and practices shift in the storing and transmission of knowledge,
we are getting glimpses into the range of implications—from the most practical (how
and where do we store our materials if we want to preserve them) to the most
existential (does the epistemic change radically alter our subjectivity). Are the changes
qualitative or quantitative? Does the current shift resemble past ones (say the
transition from an oral culture to print) or does the move towards digital technologies
enact its own specific social and ethical presuppositions?
While the digital reconfigures both the ‘live’ and the archival, I will start with
the latter. The new digital era is obsessed with archives—as metaphor, as place, as
system, and as logic of knowledge production, transmission, and preservation. Why?
The term ‘archive’ has become increasingly capacious, interchangeable with
‘save,’ ‘contain,’ ‘record,’ ‘upload,’ ‘preserve’ and ‘share’ and with systems of
organization such as a ‘collection,’ ‘library,’ ‘inventory,’ ‘catalogue,’ and ‘museum.’
‘Archive’ seems to magically transcend the contradictions between ‘open’ and ‘closed,’
democratic and elitist; a fetish, it covers over several contradictory and irreconcilable
mechanisms of power.6 Since the Archon served as the place where official documents
were filed and stored in ancient Greece, the archive has been synonymous with
government and order.7 But without understanding the power and control that
underwrite the archive, it’s difficult to assess the political, economic, and epistemic
implications of what is saved and what is forgotten. Before discussing what I feel is at
stake in these changing definitions and distinctions, I will clarify how I understand
‘archive.’
An archive is simultaneously an authorized place (the physical or digital site
housing collections)8, a thing/object (or collection of things-- the historical records and
unique or representative objects marked for inclusion), and a practice (the logic of
selection, organization, access, and preservation over time that deems certain objects
‘archivable’). Place/object/practice function in a mutually sustaining way. The ‘object’
is nameable, ‘storable,’ and preserve-able, imbued with the power and authority—
perhaps even aura—of both place and of selection. We know the thing is important
because it has been selected to be preserved in the archive. It does not matter
whether the object was made to be saved—carbon copies of letters and even daily
newspapers or handouts at a protest march take on a special status in the archive. In
turn, notions of historical accuracy, of authenticity, authorship, property (including
copyright), specialized knowledge, expertise, cultural relevance, even ‘truth’ are
underwritten by faith in the object found in the archive. This circular legitimating
system again affirms the centrality of the place. The archive comes to function,
6
Anne McClintock referred to the archive as fetish in the Pct 2, 2009 meeting of the Engendering
Archives working group, CDAD. Columbia University.
7
8
The archive means “there, where authority, social order are exercised” as Jacques Derrida puts it, “in
that place.” Archive Fever, 1. (Translated Eric Prenowitz, Chicago: University of Chicago Press, 1995.
Foucault noted, not simply as the space of enunciation, the place from which one
speaks, but also (and primarily) “the law of what can be said.”9 Place/object/practice
exist in a tightly bound connection in which each relies on the other for its authority.
Each has a different logic and politics of making visible.
But why has archive gained such enormous power or, better, become the site
of such contestations of power as we move into the digital age? ‘
On one hand, digital technologies offer the updated Marxist promise for the
st
21 century: that we—individual users—now control the means of production,
distribution, and access to information, communities, and online worlds. While the
capitalist grids and surveillance systems sustaining the digital remain, if anything,
stronger than ever, the egalitarian and even revolutionary promise is compelling. In
2006, Time Magazine declared YOU. Person of the Year because YOU control the
information age. [Figure 4] YouTube invites us to “broadcast” ourselves. Facebook
allows us to share our daily lives with our community of friends. Twitter provides real
time updates on where we are and what we’re doing. Skype allows us to see each
other as we speak almost anywhere in the world, thus bridging separations of time and
space. Second Life offers us a chance to design and inhabit our own avatars and
explore and live online in ways that perhaps can’t happen in ‘first’ life. Philip Rosedale,
its founder, envisions life as a project rather than an existential condition--a “meta-
verse,” as opposed to a universe.10 There is no doubt about the potentially
democratizing power of internet technologies particularly (as opposed to television)
that seem to offer as many points of entry and navigation as there are users. The role
of Facebook in organizing rallies in Turkey, texting by protesters demonstrating against
the G-20, and Twittering in Iran indicate a level of inclusivity and immediacy in the
digital that would be unthinkable in archival practice.11 I take the contradictory,
complicated, multivalent aspects of digital technologies as a given, a necessary starting
point. What I am questioning, however, is whether digital technologies merely extend
what we do in embodied and print/material cultures (the repertoire and the archive)
into cyberspace, or whether they constitute their very own system of transmission that
share some of the features we are used to while moving us into a very different system
of knowledge and subjectivity.
What is at stake in this argument? In A&R, I asked what was gained (or lost) by
extending “archive” to include the ‘live’? Embodied practices—measured by the
knowledge regimes sustained by the archive, I argued—fail to provide hard “evidence”
of the past. Historical documents prove that the land belonged to the settlers, not to
the Native populations, etc. The impossibility of archiving the ‘live’ came to equate
absence and disappearance. The personal and political repercussions have been
devastating. Here, I pose a similar question—what is gained (or lost) by using the word
archive to describe the seemingly democratic, participatory, non-specialized, readily
available uploading, publication, and access of materials in cyberspace?
9
Michel Foucault, The Archaeology of Knowledge & The Discourse on Language. Trans. A. M. Sheridan
Smith. N.Y.: Pantheon Books, 1972, p. 129.
10
YouTube (November 22, 2006). "The Origin of Second Life and its Relation to Real Life". YouTube.
11
In Istanbul, Facebook was used to organize a rally against the building of a nuclear plant:
http://www.facebook.com/event.php?eid=8201902011&ref=nf. See to “Arrest Puts Focus on Protesters’
Texting,” by Colin Moynihan, NYT, Oct 5, 2009, pg A19.
Some digital archives function much in the way brick and mortar archives do--
the Hemispheric Institute’s Digital Video Library—[Figure 5] that Hemi and NYU
Libraries have created—is an online archive, a growing online repository of some 600
hours of non-downloadable streaming videos of performance from throughout the
Americas that is free and accessible for viewing. HIDVL started in the early days of
online video archiving—in 2000—and will be maintained for a very long time-- some
500 years. [Figure 6] Each hour of video costs more than 1000 dollars to process, not
counting the intellectual labor that has gone into curating the materials, developing a
tri-lingual interface, creating artist profiles, indexes, search tools, and so on. [Figure 7].
Different technologies spur different practices (and visa versa) and different
things to collect, study, and theorize. Digital technologies far exceed print in offering
scholars and artists a way to both document and consult ‘live’ practices. Video
captures a sense of the kinetic and aural dimensions of the event/work, the physical
and facial expressions of participants, the choreographies of meaning. At Hemi, we
knew that wonderful performance videos in the Americas were rapidly decomposing in
boxes under artists’ beds and in their closets. Digitizing them would not only preserve
them but also make them widely and easily accessible—a major issue in Latin America
where universities have limited holdings and publications very limited circulation. We
were also eager to explore the theoretical complexities of archiving performance and
the complicated relationships between ‘live’ performance and its mediations.
On one level, then, we were simply transferring video from one digital format
to another. On another, we were commissioning and recording performances that we
then transferred to HIDVL—so while we were adding to the collection we also helped
generate new work. Some performances stage the archive—revivals based in part on
old scripts and videos. Other performances, such as work by Anna Deavere Smith
[Figure 8] are better known as video than as live solo work. Some performances
become themselves only through the process of documentation (say an Ana Mendieta
[Figure 9] piece staged for the camera and known only through photographs or video).
We have born digital materials—that never had an ‘original’ in another medium
[FULANA 10] and hybrid work in which past practices and archived videos of
performances framed “reperformances” (such as Marina Abramovic’s at MoMA),
[Figure 11]. These materials give rise to new scholarly thinking about the many lives of
performance (past and present), allow us access to work and traditions that we cannot
see live, and encourage us to reflect on what happens to ‘live’ events that rely so
heavily on context and audience when shown to people from very different contexts. I
would love to speculate what viewers in 500 years will make of Rev. Billy and the
Church of Stop Shopping, but this is not the time. [12].
The politics of the copy, rather than the ‘original’, helps us imagine HIDVL as a
post-colonial archive. We return the materials and a digital copy to the creators who
maintain the rights. We capture/copy the original signal of the videos and store them
in Iron Mountain (the archive of archives—the new “digital authority”) [FIGURE 13/14]
to be updated and copied into new formats as the technologies change. The objects
in the digital archive require, rather than resist, the ‘change over time’ I associated
with the traditional archive. But ‘copy’ as a form of transmission also differentiates the
archival from the digital—and most profoundly from the repertoire. People may copy
the way that others dance or speak, but we usually call this mimesis or imitation—a
form of learning through doing or parodying another’s actions. Each iteration differs
from the next. Even with strenuous discipline, embodied practices will always show a
slight degree of variation. A printed copy of a book, however, is virtually
indistinguishable from others of the same run. The only differences stem from use—
an underlined word, a torn jacket. Nonetheless, the number of books in a run is finite.
If I give away my last copy, it is gone. The function Control C (Save) allows me to copy
automatically, without a discernable limit. Unlike the archive, based on the logic and
aura of the original or representative item, the digital relies on the logic and
mechanism of the copy. Save. Save as enables the migration from one system or
format to another that secures ‘preservation.’ Interestingly, the aura that comes from
the selection process can accrue to the digital copies archived in collections. 12 ‘Aura’
may have as much to do with the nature of the selection process as with the status of
the thing.
In other ways, however, HIDVL replicates the hierarchies and exclusions
inherent in the archival project itself. The process of selection and valorization by
experts maintains the logic of the archive intact. Dreams of unlimited access seduce
users to participate in the colonialist fantasy that total access is not simply an ideal but
a right. While performance scholarship worries more about context, audience, and
reception than about the ‘original’ or ‘authentic’ (impossible insofar as performance is
never the same way twice), the human effort that goes into this project, the emphasis
on training and expertise, the push towards new knowledge production and
transmission, the institutional auspice provided by the university, and the required
levels of financial support makes us facetiously compare ourselves to medieval monks.
Nonetheless, most of what people call online ‘archives’ are not archives though
they may have some archival features. Skits posted on YouTube or other sites are not
archived even though YouTube has been referred to as a ‘media archive.’ 13 This is
actually not a technological issue, or even a preservation issue—storage is cheap. It’s a
commitment issue—the owners may or may not commit to preserving these materials
long term. Further, there is no selection process for materials uploaded online. No one
vouches as to its sources or veracity. Expertise is irrelevant. The materials seem free
and available to anyone with Internet access—avoiding the rituals of participation
governing traditional archives. Power and politics continue to underwrite access,
though at first it’s not clear how.
These so-called digital archives can be characterized as what N. Katherine
Hayles calls a skeuomorph—“a design function that is no longer functional in itself but
that refers back to a feature that was functional at an earlier time.” 14 The trashcan
icon on our computers that makes a swishing emptying noise is a skeuomorph. So are
digital documents and stickies--all reference past functions to help users adapt to new
ways of organizing information. It’s the familiarity with these past things and practices
that facilitates the leap into a virtual place via technologies most people cannot really
comprehend or control. The objects and practices of course are not the same either.
Online items are composed of bits, not atoms. Digital technology demands that
everything/practice be transformed into an object and tagged. Our relationship with
12
I am indebted to Cristián Gómez Moya for this insight.
13
Jean Burgess and Joshua Green refer to YouTube as “a media archive” among other things in their
book, YouTube: Online Video and Participatory Culture, Cambridge UK: Polity Press, 2009. Pg 5.
14
Hayles, How we became post-human, 17.
the thing also changes—we can link to an image but we cannot hold, touch, taste, or
smell a person or object. Memory of past usage, however, is programmed into the
ways we approach the technologies of the future. But this memory—our individual and
collective memory of embodied behaviors—of course is not be confused with Kodak’s
glossy print memories, or with the memory on my computer or, increasingly, the move
to huge online operating systems such as Web 2.0 with enough memory to support
YouTube or Google.15 Now we are entering Web 3.0 with interactive functions that
move our memories of being able to annotate, chat, and work collaboratively online.
Rather my memory, invoked by my documents assures me I am still part of an
uninterrupted system of knowledge production that has only been shifted to another,
faster, more efficient platform.
This, however, is not the case.
Place/object/practice change online. Again, the three are deeply inter-
connected and altered in and through digital technologies. The spatiality of the archive
as “public building” gives way to the paradoxical ubiquity and seeming no-where-ness
of the digital archive.16 The site-specific character of performance repertoires, that
unfold in the here-and-now also give way to the multi-sitedness of the web. We are all
seemingly ‘here,’ live, now, online—no matter where the ‘here’ might be. The ‘here’
of the repertoire is immediate, the ‘here’ of the archive is distant, but locatable, the
here of the web is immediate and (only apparently) unlocatable.
Some of the new digital variations severely challenge the dominance and logic
of the archive. Many of the very large projects (such as Google Books) are commercial,
though they claim to provide free access of incomplete versions of texts, thus assuring
neither access nor preservation, though the order icon is ready at hand. Google claims
sole ownership of ‘orphan’ books—an end run around laws pertaining to content,
authorship, and copyright. If print culture produced the copyright, it’s not clear yet
what legal and legitimating mechanisms will control issues of access and transmission
online.
As important as the pressure on the ‘thing’ or content, perhaps, is the invisible
politics of place. Where do these collections and archives live? Google et al own the
operating systems and databases that enable access to their massive repositories. This
poses other legal issues not covered in conventional copyright agreements. By owning
the operating system, these commercial giants in fact become the ultimate guarantor
of value and control. They can censor materials, cherry pick titles, and rescind
15
Ron Eglash, in Computing Power, cautions of shift of computer memory to large operating systems:
“In terms of individual use this is a move toward democratization through lay access, but in terms of
business ownership it is a move towards monopolization, as only large scale corporations such as Google
can afford the economy of scale that such memory demands place on hardware” pg. 60. In Software
Studies/a lexicon, ed. Matthew Fuller. Cambridge, Mass: The MIT Press, 2008.
16
Critical Commons For Fair & Critical Participation in Media Culture has a community generated
archive of lectures and media clips. The USC Shoah Foundation Institute for Visual History and
Education at USC has an archive of approximately 52,000 videotaped testimonies from Holocaust
survivors and other witnesses available at their center and online. The online description of the Internet
Archive reads: “The Internet Archive, a 501(c)(3) non-profit, is building a digital library of Internet sites
and other cultural artifacts in digital form. Like a paper library, we provide free access to researchers,
historians, scholars, and the general public.”
licensing privileges for us who now lease rather than own copies of the book. 17 These
digital practices loop back into print culture as well. I will point to only two of the most
obvious repercussions: First: who wants to pay for a book they can access ‘free’
online? I am not against freely sharing materials—Latin American scholars and
students survive on pirated books and articles. Nonetheless, it’s important to note
that what’s online is not free. Second: the ambiguous nature of authorship and
authority online have spread to print culture where journal articles signed by notable
researches are in fact produced by pharmaceutical companies, further eroding
confidence in the validity of sources. The economic models have long-term
repercussions across the range of archival practices having to do with understandings
of content, ownership, peer review, copyright and so on.18
Preservation of digital materials, thus, is not the happy by-product of digitizing
or uploading. While it may be true that “data never die” it is also true that they live as
bits of information that we might not be able to access. Changing technologies and
platforms render our materials obsolete far more often than they archive or preserve
them.19
Finally, I would like to take a quick look at the complicated and changing ways
embodied, print, and digital cultures affect the what we know and how we know it by
going back to TIME Magazine’s 2006 issue of Person of the Year. Here is an image of
my copy. TIME. Person of the Year. 2006. [Figure 15] A computer with a thin red line
reminiscent of YouTube cuts across the monitor running towards 00:00/20:06; its
screen is a reflective silver shiny Mylar mirror. You. on the bottom left-hand side. “Yes,
You. You control the Information Age. Welcome to your world.” Nicely balanced on the
cover, to the right of You is… well, ‘me’ –sort of. The mailing sticker has my name
(misspelled) and address on it. The cover proclaims the imperative to perform. You.
Insert yourself here. Yes You. Your face on the cover! There’s a twist here too. While
17
There is no need to burn books when they can simply disappear. “Takedown notices” often have more
to do with business competition than with copyright infringement.
http://en.wikipedia.org/wiki/Digital_Millennium_Copyright_Act, accessed Sept. 28, 2009.
18
The peer review process, vital in establishing the authority of print journals, is being undercut in print
culture as well as online. In A Second Opinion, Arnold S. Relman, former editor of the New England
Journal of Medicine notes the widespread practice of authors evaluating the effectiveness of drugs that
have economic ties to pharmaceutical companies. Their findings are suspect and the process is
ineffective. An article in the New York Times, “Unmasking the Ghosts: Medical Editors Take on Hidden
Writers” by Natasha Singer and Duff Wilson states: “In medical journal circles, the exorcism of industry
financed editorial assistance even has its own name: ghostbusting” (Sept 18, 2009, B1).
19
Other organizations are currently dealing with similar issues—the financial and copyright implications
of creating collections and even archives of copies. Every digital archive has to face these economic,
technological, and legal challenges. What is the economic model? Many of the very large projects are
commercial, though they claim to provide free access. Google’s Online Books—again, more of a library
than an archive-- offers incomplete versions of texts, thus assuring neither access nor preservation, though
the order icon is ready at hand. Here again, content is secondary to the financial and technological
models being tested, and the repercussions are severely testing the dominance and logic of the archive.
Open access online increasingly devalues content in what Chris Anderson has called the “migration to
Free” (140). He notes “the computer industry wants content to be free. Apple doesn’t make its billions
selling music files, it makes it selling iPods. Free content makes the devices it plays on more valuable”
(142). A related question of ‘free’ content and costly devices is being argued in the courts now with
respect to Amazon’s Kindle. Google, also in court, now claims sole ownership of ‘orphan’ books—
another end run around laws pertaining to content, authorship, and copyright that the archive made
possible. If print culture produced the copyright, it’s not clear yet what legal and legitimating mechanisms
will control issues of access and transmission online.
the magazine requires an embodied response from me--I need to hold it in my hands
and up to my face to see myself --the design conceit of the video monitor with the
timeline transports me to the digital. I try to align the discursive You with the
embodied me. I hold the magazine close. Even so, I hardly recognize myself. This
distorting mirror shows You (me) as not me, only the vaguest image, a concept more
than a person. And who is the invisible ‘I’ that names me You? Is it Uncle Sam’s
pointing finger from the WWII posters? [Figure 16] Adam Smith’s invisible hand of the
market? Althusser’s hailing, “You!” The unseen eye of surveillance that demands “If
You See Something, Say Something?” [Figure 17] Or a combination—a parody of
hailing and recognition, Martin Buber’s I/Thou minus the I…
Inside the cover, an ad for Chevrolet announces “THIS IS OUR PERSON OF THE
YEAR”— [Figure 18] and the TRUCK OF THE YEAR [Figure 19] that dominates the
environment. The contest, and contestation, of who really controls the world and its
resources start before I even get to the Table of Contents.
Here is the issue in Time’s online ‘archive’ [Figure 20]
The bold black You. dominates the screen. The “Yes, You.” is centered under
the screen rather than to the left. Who needs a mailing label online? The delivery
system is quite different. The reflective surface is gone. TIME’s Managing Editor
acknowledges the challenges in reproducing the effect of the mirror “when there’s no
one standing in front of it.” So TIME created an animated online version using photos
apparently submitted by readers that appeared in the print version to keep something
of the interactive quality of the original. [Figure 21, 22] This, clearly, is a different kind
of performance where You/I is positioned as a spectator to other people’s
photographs rather than as the subject/protagonist. The online You becomes the
object of my looking, one more commodity.
It does not take much to see that these photos could not have been generated
by readers—they are all posed in identical, candy colored boxes—again, a photo
simulated to look like YouTube. You also comes in all colors. With one odd exception,
You. is young, beautiful, under thirty, happy, self-satisfied, “cool,” independent, on-
the-go, not doing much of anything except listening to music or performing for the
viewer. Only two of the men seem to have traditional professions—the doctor and the
soldier. The ‘new’ You is a global citizen. Mobile ethnicities transcend geographical
divides. Race and gender are now a ‘style’ or fashion statement. We’re all post-
racism, post-sexism, the images suggest. Space is produced [Figure 23], a studio back
drop. You is unlocatable in other ways as well—there are no hints as to where people
are or where they’ve come from; no other people in the shots, no family photos. Two
woman photograph themselves—very You. The celebratory images affirm
embodiment—the designer body seemingly provides an entry point to the world. But
these are not the bodies of the repertoire. This You actually exists not in relationship
to but as separate from. There is no outside, no exterior with which You might
maintain a relationship—the interpenetration of self/exterior that Merleau-Ponty
wrote of. Inter-subjectivity is possible only through technology.20 You might chat and
20
Cool and color-saturated, posing for a camera, You is something-to-be-looked-at, the object of an
unidentified gaze. You’s body is a project, something it has rather than something it is. The image
performs a possible future. With enough exercise or dieting or make-up, we too could be You. “Your
best body ever! Get it Now! Keep it Forever!” It goes with everything. You represents not
something/someone that is, but something/someone that could be. You invites identification with ideal
text but not talk or read. This You is the product rather than producer of the
Information Age. THEM. [Figure 24]
There is much more to say about this construction of You, both as Person of the
Year and in these images, which cannot be included here, but it is important to note
that the online You is an elusive object--when I tried to access the virtual gallery a year
later, it was gone (links took me to Vladimir Putin). When I looked again after six
months, some of the images from the gallery were online, but as loose images, not as
part of the magazine’s layout or organizing concept. However, other images, not
included in the print publication, had also been added as if they were part of the 2006
run while others had been re-inscribed with logos of other websites. [Figure 25] What
kind of archive is this that erases rather than preserves the traces of its former
incarnation?
The TIME archive, then, does not maintain the objects, or even digital
renditions. [Figures 26] My experience with the issue is different. I cannot hold it. I
can’t flip pages. There are no page numbers online. Reading has morphed into
navigation (or surfing). Instead of linear and sequential, cause and effect, the digital is
about simultaneity, interruption, and multi-taking. Everything written for online media
tends to be short; the digital has its own attention span. I engage in politics online
even as I do something else. The essays, extracted from the issue, are searchable and
clearly attributed to authors and identifiable as urls. But I can’t get a sense of
connections between various social, economic, and political relations by examining the
layouts and the physical placement of essays and ads. Where is the happy cowboy—
the ‘real’ person of the year according to Chevrolet? I cannot go back and examine the
magazine issue as a (flimsily) bounded microcosm of cultural concerns, fears, and
strategies made visible in the competing messages. Instead of an editor in charge of
putting the materials together, the online curatorial process is driven by data-mining
techniques and crawlers to identify patterns of information in a database. I too am
being constantly updated with today’s ads—all programmed to pick up key words and
customize the display to suit ‘my’ tastes. This too is all about me/YOU but in different
a different way. It is my profile, not the editor’s, that arranges the information for me.
The web’s interactivity filters my information and sends it to those who pay for access
to me. As Wendy Chun notes: online, in order to use, one has to agree to be used.21
This digital ‘archival’ practice, I believe, can prove profoundly anti-archival. The
shift from the archive to the digital has moved us away from the institutional, the
confined, the long term of Foucault’s disciplinary society to the ‘control’ society
outlined by Deleuze—free floating, short term, rapidly shifting. We move from the
analog to the digital, from signature to password, from citizen to nomad, from
typographic man to graphic man, as McLuhan put it.22 For better and for worse, the
politics of the archive are not the politics of the digital.
otherness that, marketers try to convince us, is ours for the price of the product. But of course I will never
be You. As eating disorders reach epidemic proportions, the fetishized You-as-product threatens to
disappear the agent of the labor that went into creating it—the women and men who starve and binge
themselves into shape. You exist only as representation.
21
Wendy Hui Kyong Chun. Control and Freedom: Power and Paranoia in the Age of Fiber Optics.
Cambridge: MIT Press, 2006, pg. 130.
22
Giles Deleuze, _Postscript on Control Societies, Marshall McLuhan, Understanding Media: The
Extensions of Man. Ed. Lewis Lapham, MIT, 1994.
What counts as embodied knowledge has also morphed. Cyberspace has
forced us to name and delimit the ‘real’. ‘Real time’ is not the same as the present.
‘Live’ is not the same as alive. An online community is not the same as a group of
people. The ‘flesh’ body is not the same as the very powerful electronic body—the
one whose credit ratings or medical history or suspicious activities can sink an
application or have a person strip searched at the border.23
The digital has also provoked an upset in terms of expertise. Many major
scholars feel totally incompetent with ever changing technologies—the young are the
true masters of this field. But even the young know less than the younger. It’s not just
the ever-accelerating generational shifts that make people feel they are out of the
meaning-making loop. The subject as consumer is tied into the rapid cycle of
obsolescence necessary to sell. “Forgetting,” as Paul Connerton notes, “is an essential
ingredient in the operation of the market.”24 The feeling of not being coterminous
with our time, then, is built into the technologies themselves; the speed of change
makes us feel we need to run faster. The anxiety about loss and forgetting, I believe,
might explain our current obsession with archives and the nostalgia both for
embodiment and for the object. Technologies code the affect in the constant mandate
to save and save as and we experience the symptom-- the need to preserve not just
things (documents, bones, fossils) but ways of thinking and knowing—sociability,
affect, emotions, gestures, memories etc, and processes—i.e., the ways in which we
work, select, transmit, access, and preserve. But the digital, I suggested, will not
replace archives or repertoires. If anything, earlier distinctions between online and
offline have crumbled for the many of us—across the social spectrum—who are now
never offline either because we have cell phones or because our money is kept in a
bank account. The simultaneity of these systems of transmission makes us think about
them in new ways. Archival practice, once a devastating tool of empire, now seems
the guarantor of the “authentic” and enduring. Digital technologies have only
heightened the appreciation of embodiment. Perhaps the current rush to ‘archive’ has
less to do with place/thing/practice and more with trying to save and preserve a sense
of self as we face the uncertain future, emphasizing our agency in the selection and
meaning making process that we fear threatens to outpace us.
23
EDT’s, The Recombinant Theater and the Performative Matrix
24
Paul Connerton, “Seven Types of Forgetting.” In Memory Studies, Vol 1, No. 1, January 2008, pg 67.
Rito de passagem de nossa senhora: Corpo e montagem, John Cowart
Dawsey (PPGAS/USP)
25
Os nomes próprios que constam do texto podem ser considerados como ficções literárias do
pesquisador, geralmente registradas em cadernos de campo à moda do antigo hebraico, sem as vogais.
Essa observação também é válida para o nome “Jardim das Flores”. O termo “buraco dos capetas” não
deixa de ser uma ficção real, nascida da poesia dos moradores.
Aparecida: as basílicas, a sala dos milagres, e o altar onde se localiza a imagem da
santa. Seria preciso, também, ressaltar um duplo deslocamento, às margens das
margens: a experiência no parque de diversões. Ali se encontram as atrações da
mulher gorila, mulher cobra, e mulher lobisomem.
Neste trabalho, porém, altera-se o ponto de partida. Pretende-se focar um
segundo momento. Seria possível se falar de um rito de passagem de Nossa Senhora?
Explorando essa perspectiva procuro acompanhar a santa em um movimento que vai
das basílicas às ruas do comércio e ao parque de diversões. A experiência no límen
surge para a santa não nos domínios da igreja, mas em espaço profano. Em lugar de
uma iluminação religiosa se presencia uma iluminação profana.26 Algo se descobre.
Dos redemoinhos da história originária de Nossa Senhora emerge um corpo fendido.
Uma questão se apresenta: a experiência de montagem como um rito de cura. Às
margens das margens o “buraco dos capetas” se ilumina. Logo então, com as pistas
que Arnold Van Gennep (1978) nos oferece, nos deparamos com a santa em um
momento de reagregação: ela retorna à catedral, e a um cotidiano que se vive, no seu
caso, nos domínios do sagrado.
O texto que vem a seguir surge da surpresa proporcionada por uma experiência
de campo num parque de diversões. Uma imagem de santa se justapõe à de uma
mulher lobisomem. Tal como acontece nas montagens que Sergei Eisenstein (1990)
buscava no cinema, os planos colidem.27 O que dizer dessa colisão? Um rito de
passagem da santa pode iluminar essa montagem?
Passando ao rito, apresento um preâmbulo. Trata-se da exclamação de Dln,
uma mulher viúva que veio do sertão da Bahia, e que acaba de assistir um filme na
televisão. Aqui está:
26
Trata-se, conforme o olhar que Benjamin (1985a: 33) encontrou no surrealismo, de um cotidiano visto
como extraordinário e de um extraordinário vivido de um modo cotidiano.
27
“O que, então, caracteriza a montagem e, conseqüentemente, sua célula – o plano? A colisão. O
conflito de duas peças em oposição entre si. O conflito. A colisão”. Cf. Eisenstein (1990: 41).
28
Nos versos finais da peça didática A Exceção e a Regra (Brecht 1994:160), os atores dirigem-se ao
público:
29
“A fricção entre corpo e máscara pode criar uma imagem carregada de tensões. Fazendo uso de um
chiste, eu diria que nesses momentos se produz um estado de f(r)icção. Em seu sentido original, ficção,
ou fictio, sugere a idéia de ‘algo construído’, ou ‘algo modelado’. Por sua vez, o ato de fricção evoca o
processo dialeticamente inverso do atrito e da desconstrução. A máscara que modela também desconstrói.
Ela produz uma alegre transformação e relatividade das coisas, como diz Bakhtin (1993:35). Isso, porém,
na medida em que o corpo, que por detrás lampeja, impede o esquecimento da impermanência da própria
máscara. Nos estados oscilantes de f(r)icção produzem-se os momentos mais eletrizantes de uma
performance.” (Dawsey 2006: 138).
Quando Dln do sertão da Bahia viu o filme sobre Joana D’Arc, ela também viu
uma imagem de sua própria mãe.
Bibliografia
A Bíblia de Jerusalém. (1995). São Paulo: Paulus, 7ª ed.
BAKHTIN, Mikhail. (1993), A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. São
Paulo e Brasília, EdUnb/Hucitec, 2ª ed.
BARTHES, Roland. (1990), “Diderot, Brecht, Eisenstein”. O Óbvio e o Obtuso: Ensaios
Críticos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
BENJAMIN, Walter. (1993), “Rua de Mão Única”. W. Benjamin. Obras Escolhidas II: Rua
de Mão Única. São Paulo: Brasiliense, 3ª ed., p. 9-69.
Introdução
Em julho deste ano, o XIV Dalai Lama, Tenzin Gyatso, reuniu no Verizon Center
em Washington, cerca de 15.000 pessoas para um rito iniciático relativo a um dos mais
complexos sistemas tântricos do budismo tibetano, o Tantra de Kalachakra [sânsc.:
kālacakra]. Esta era a trigésima primeira vez que líder espiritual tibetano presidia essa
iniciação – vinte e uma vezes em países asiáticos e dez no Ocidente – e, em todas suas
edições, pessoas do mundo inteiro viajaram muitas vezes milhares de quilômetros
para tomar parte no evento. Falamos aqui de um fenômeno sem precedentes.
Certamente, nunca um evento relacionado a uma religião oriental reunira, de maneira
tão consistente ao longo dos anos, um público tão grande e eclético especialmente em
países ocidentais. Público que, diga-se de passagem, se torna ainda mais
impressionante em países asiáticos. Na Índia o Kalachakra chega a reunir 300 mil
pessoas.
A tradição de se conceder o Kalachakra a grandes massas, certamente um dos
traços mais peculiares desse ritual de iniciação, coloca em relevo seu papel
excepcional e, ao mesmo tempo, paradoxal no contexto do budismo tibetano. Com
efeito, apesar de sua associação com as multidões, o tantra de Kalachakra é
considerado um dos mais secretos e complexos sistemas do chamado budismo
vajrayana [sânsc.: vajrayāna] 1 O chamado “veículo vajrayana” de budismo é
considerado, por muitos autores, um veículo em si mesmo, com vários elementos
específicos que o distinguem do veículo mahayana (dos quais são representantes o zen
budismo e o budismo terra pura, por exemplo). De fato, a doutrina baseada nos
tantras e o corpo de práticas do vajrayana são caracterizados por seus traços
peculiares. Não obstante, é importante ter em mente que o veículo vajrayana poderia
ser considerado, em grande parte, uma radicalização de alguns conceitos básicos do
pensamento mahayana. O veículo vajrayana tornou-se uma forma importante de
budismo na Índia após 500 CE e seu ideal era a figura de mahasiddha, um praticante
extremamente completo, que poderia atingir a iluminação no período de uma única
vida. Qual seria então o sentido de fazer da iniciação relativa a um sistema tão
complexo um ritual de massa? Em grande medida, esta é a questão que norteia esta
apresentação. Minha ambição é que, ao responder essa questão, eu consiga também
demonstrar como, através da encenação dessa cerimônia, o Dalai Lama mantém vivo o
poder simbólico do antigo Estado tibetano, utilizando meios semelhantes aos do
passado, como o recurso ao espetáculo. Esta apresentação foi em grande parte
baseada no capítulo 7 de meu livro Ventos da Impermanência: um Estudo sobre
Ressignificação do Budismo Tibetano no Contexto da. São Paulo, Edusp, 2006.
Bibliografia
BERNBAUM, Edwin. The Way to Shambhala. Los Angeles: Jeremy P. Tarcher, 1980, 1a
edição.
BERZIN, Alexander. Taking the Kalachakra Initiation. Ithaca (NY): Snow Lion
Publications, 1997, 1a edição.
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, 1a edição.
DAGYAB RINPOCHE. Buddhist Symbols in Tibetan Culture. Boston: Wisdom
Publications, 1995, 1a edição.
GEERTZ, Clifford. Negara: o Estado Teatro no Século XIX. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1980, 1a edição.
HILL, Jonathan D. (Org.). Rethinking History and Myth: Indigenous South American
Perspectives on the Past. Urbana e Chicago: University of Illinois Press, 1988, 1a
edição.
LOPES [NINA], Ana Cristina. Ventos da Impermanência: um Estudo sobre a
Ressignificação do Budismo Tibetano no Contexto da Diáspora. São Paulo:
Edusp, 2006, 1a edição.
MULLIN, Glenn. Kalachakra. Ithaca (NY): Snow Lion Publications. 1991, 1a edição.
MUS, Paul. “A Thousand-Armed Kannon: A Mystery or a Problem?” Journal of Indian
and Buddhist Studies, vol. 12 (1), 1964, p. 1-33.
RHIE, Marylin; THURMAN, Robert. Wisdom and Compassion: the Sacred Art of Tibet.
Nova York, Harry N. Abrams, Inc., 1991, 1a edição.
SAMUEL, Geoffrey. Civilized Shamans: Buddhism in Tibetan Societies. Washington e
Londres: Smithsonian Institution Press, 1993, 1a edição.
SOPA, Geshe Lhundub, et al. The Wheel of Time: the Kalachakra in Context. Ithaca (NY):
Snow Lion Publications, 1991, 1a edição.
TAMBIAH, Stanley. World Conqueror and World Renouncer. Cambridge
(Massachusetts), Cambridge University Press, 1976, 1a edição.
TENZIN GYATSO, the Fourteenth Dalai Lama; HOPKINS, Jeffrey. Kalachakra Tantra Rite
of Initiation. Boston: Wisdom Publications, 1991, 2a edição revisada.
Website
www.berzinarchives.com
Mesa 2: Antropologia, artes da performance e cidade
Guillemo Gómez Peña (La Pocha Nostra)
Regina Pólo Müller (IA/Unicap, coord. Napedra)
Euler Sandeville (FAU/USP)
Strange Democracy: An Evening with Spoken Word Brujo Guillermo Gómez-
Peña, (La Pocha Nostra)
In his new solo-performance, post-Mexican writer and performance artist
Gómez-Peña deals with the end of the Bush era and articulates the formidable
challenges facing Obama. He also denounces the anti-immigration hysteria and
assaults the demonized construction of the US/Mexican border—a literal and symbolic
zone lined with Minute Men, rising nativism, three-ply fences, globalization, and
transnational identities.
To this effect, the “border artist extraordinaire” uses acid Chicano humor,
hybrid literary genres, multilingualism, and activist theory as subversive strategies.
Shifting between languages, Gómez-Peña morphs into various performance personae
and bombards audiences with his infamous, border savvy techno-ideology, ethno-
poetics and radical aesthetics. In this journey to the geographical and psychological
outposts of Chicanismo, Gómez-Peña also reflects on identity, race, sexuality, pop
culture, politics and the impact of new technologies in the post-911 era.
Gómez-Peña continues “to develop multi-centric narratives from a border
perspective,” creating what critics have termed “Chicano cyber-punk performances”
and “ethno-techno art.” During these performances cultural borders move to the
center while the alleged mainstream is pushed to the margins and treated as exotic
and unfamiliar, placing the audience members in the position of “foreigners” or
“minorities in his performance country.
Gómez-Peña has spent many years developing his unique style, “a combination
of performance-activism and theatricalizations of postcolonial theory.” In his eight
books, as in his live performances, he pushes the boundaries still further, exploring
what’s left for artists to do in a repressive global culture of censorship, paranoid
nationalism and what he terms “the mainstream bizarre.” Gómez-Peña examines
where this leaves the critical practice of artists who aim to make tactical, performative
interventions into our notions of race, culture and sexuality.
Among other recognitions, Gómez-Peña has received the Prix de la Parole at
the International Theatre Festival of the Americas (1989), the New York, Bessie Award
(1989), a MacArthur Fellowship (1991), an American Book Award (1997) and a Lifetime
Achievement Award (Taos Talking Pictures Film Festival, 2000). He has been a regular
commentator for NPR’s All Things Considered and Latino USA, a contributing editor for
The Drama Review (NYU-MIT) and has authored eight books.
Artes da Performance, Regina Polo Müller (IA/UNICAMP)
O ritual nas sociedades indígenas e tradicionais e as artes cênicas na cultura
ocidental podem ser pensados como expressões da experiência vivida, na condição
liminar ou liminóide, respectivamente, como caracterizou Victor Turner para
estabelecer a abordagem conceitual de fenômenos que se constituiriam como objeto
de estudo de uma Antropologia da Performance. Manifestações expressivas que
compreendem um conjunto de linguagens (sonora, plástica, literária, cênica, do
movimento), são processuais e promovem o estado subjuntivo da experiência social
poderiam definir estes fenômenos, abrindo-se, assim, esta abordagem para um campo
interdisciplinar na antropologia contemporânea que vem pautando seu diálogo com as
artes. O tema a ser desenvolvido trata do percurso entre as proposições de Turner às
reflexões atuais sobre esse diálogo.
Visões artísticas da cidade e a gênese da paisagem contemporânea, Euler
Sandeville Jr., FAU/USP
Apresentação
Há várias abordagens para interpretar a cidade. Podemos pensá-la como
morfologia e tipologia (SOLÁ- MORALES I RUBIÓ 1997, PANERAI et al. 1983), como
dinâmicas ambientais (SPIRN 1995, HOUGH 2004), como estruturas urbanas que
suportam as mais diversas práticas para produção, circulação e consumo (VILLAÇA
2001, LEFEBVRE 2001), como espaços da vida, da intersubjetividade e espaços de
poder (CALDEIRA 1984, VOGEL e SANTOS 1985), como normatização e regulamentação
(MEIRELLES 1981), como história (SICA 1981, BENEVOLO 1983), como espaços de
transgressão (DÉBORD 1999) e assim por diante. Esses recortes temáticos revelam
intencionalidades e posicionamentos que são espaciais, sociais, políticos, e se
desdobram na seleção de procedimentos interpretativos e descritivos.
Mas a dimensão sensível da cidade, e da paisagem (CAUQUELIN 2007), aninha-
se existencial em sua arquitetura, nos seus espaços lúdicos, nos espaços de
convivência e trabalho, nas práticas que os geram para neles se abrigarem,
transformando-os. Essa arquitetura da cidade não é apenas visualidade e
funcionalidade, nem é apenas economia e política; é experiência, é significada no
vivido. O sentido da cidade se dá em suas práticas, nas heranças que abrigam, nas
temporalidades em que se constrói a paisagem como lugar, obra histórica e social
coletiva, e como múltiplas formas de estar com outros e consigo mesmo (SANDEVILLE
JR. 2004, 2005, 2010). É sempre uma cidade que poderia ter sido outra, geralmente
melhor em sua qualidade, resultante de nosso trabalho e de nossas decisões. É,
portanto, também uma cidade em gestação, que ainda pode ser outra.
A invenção da paisagem
A esse conjunto de práticas a serviço das elites, que se desenvolve solidário e
não como campo de especializações, de onde lhe advém uma beleza adicional, chamei
em meu doutorado fragmentos paisagísticos da paisagem. É necessário olhar melhor a
paisagem a que se referem, mas, neste artigo, limitar-me-ei a circunscrever a ideia de
paisagem, indicando que a abordagem necessita ser ultrapassada. Um único exemplo
para que se entenda o que estou indicando. Costuma-se dizer que a renascença, a
partir de Jacob Burckhardt (1818-1897), com seu notável e hoje um pouco
subestimado estudo A cultura do Renascimento na Itália (1991), publicado em 1860,
tende a ser pensada como um período civilizatório da história humana. Nesse ponto,
se perde a paisagem, para se ficar apenas com seus fragmentos paisagísticos.
Transformado em civilização, o renascimento não dá conta do que foi o
período, mas apenas de umas poucas experiências, ainda que formadoras de todo um
modo de pensar e sentir que nos alcança. Em alguns momentos chega-se a falar de um
“homem da renascença”. Mas quem era esse homem? Leonardo da Vinci (1452-1519),
que depois de marchar como conselheiro militar no séquito do duque Valentino em
1502-1503 e do terrível César Bórgia (em 1503), filho do Papa Alexandre VI, Bórgia
(1492-1503)? Ou os camponeses franceses e ingleses, que viviam em aldeias tais como
as descritas em Barthélemy, Contamine, Duby e Braunstein (1990), nas quais eram
frequentes as casas de um único cômodo ou poucos, que abrigavam no mesmo espaço
a família e os animais para resistirem ao frio? Qual era a paisagem da renascença? Os
palácios visitados por Leonardo, ou os campos que os unificavam e sustentavam? Ou
ambos? Se for este o caso, temos olhos apenas um pequeno fragmento das paisagens
privilegiado pelas artes.
Mas, nem assim a paisagem resume-se a mera materialidade desses arranjos, é
uma condição espiritual. Para Burckhardt:
Para SERRÃO:
Se uma palavra nova se forma pela necessidade de nomear
uma fracção da realidade até aí coberta por outras
designações, então a Idade Moderna não inventaria apenas a
palavra, mas descreveria através dela uma diferente
imagem do mundo. (2011:14).
e
A paisagem, subjectiva e colectiva, “cobre” o solo, objectivo e
físico, como repositório de sentido. Esfera de significações,
uma paisagem formar-se-ia de sucessivos cruzamentos e
interdependências entre as características concretas dos
espaços físicos e a camada simbólica sobre eles depositada,
o mesmo é dizer, entre os sujeitos (habitantes) e o mundo
envolvente. (...) É por isso que se pode defender que a
paisagem é uma criação cultural. (2011:21).
Em todos esses trabalhos que mencionamos até este ponto neste artigo, a
natureza foi a referência fundante dos saberes e sensibilidades, inicialmente por meio
do neoplatonismo que recolocou em circulação a filosofia clássica. Essa tradição a que
nos referimos até aqui (na arte e nas “disciplinas”) é posta em crise a partir do século
19, embora forneça o repertório inicial para os desenvolvimentos posteriores.
Essa complexidade que vimos apresentando, já não dá mais conta, a partir da
modernidade, embora nos enriqueça imensamente o entendimento da paisagem. Esse
estado de coisas atribuído aos humanistas e artistas italianos e holandeses na Era
Moderna, se desfez, se reconfigurou. E a paisagem não só sobreviveu, como se tornou
uma temática cada vez mais relevante e presente. Não podemos mais dizer que seja a
mesma paisagem, nem que seja ainda a mesma natureza. Ao falar de natureza, penso
sempre em Robert Lenoble (1990), para quem o homem sempre observou a natureza,
só que não era a mesma. O seu sentido, a sensibilidade possível na paisagem (nela, e
não diante dela) não são mais os mesmos, nem a relação entre arte e paisagem ainda
pode ser a mesma. E o que muda, é uma discussão fundamental para nos pensarmos.
Não se trata de uma “crise” das formas, ou dos “arranjos”, mas da linguagem
em seu sentido mais amplo, como construção e representação do mundo. Estamos na
transição de um mundo fundado e referente na natureza, para um mundo governado
pelo artifício e pelo urbano. Modificações profundas, que não são de crises e
continuidades apenas, mas de novas possibilidades. Uma nova forma de ser no mundo
engendra uma nova paisagem enquanto configuração e conformação, desde que
entendendo as paisagens como nossos modos de habitar o mundo (SANDEVILLE JR.
2010). Segundo Geoffrey e Suzan Jellicoe, no século 20 a paisagem emergiu como uma
“necessidade social”:
O artefato a que nos referimos é tido então (na estética) como objeto estético
“par excellence” e como correto foco do estudo, conclui a seguir Hepburn. Não
poderíamos contemplar obras como Impressão. Domingo (1910, de Wassily Kandinsky,
1866-1944) e Impressão 5. Parque (também de Kandinsky, provavelmente do mesmo
ano), sem essa perspectiva de contemplação do objeto pictórico por seu “direito
próprio”. Nem seria possível essas Impressões de Kandinsky sem o lirismo do sol
nascente (Impression, Soleil Levant de 1874) de Claude Monet (1840-1926) , que
exposta com outros artistas na primeira exposição do grupo, lhes valeu a difusão do
nome de impressionistas. Considerada audaciosa e confusa, quando a quase uma
década anunciavam-se essas experimentações (sem considerar o quanto já se
caminhou desde o belíssimo trabalho de Joseph Williams Turner, 1775-1851, Areais de
Calais de 1830), a exposição de 1874 foi a primeira de uma série de exposições que se
seguiram por cerca de uma década, gerando desconfortos na época. Pensada nessa
perspectiva, Impressão de Kandinsky torna-se ainda mais bela e plena de significados,
com suas formas-cores e linhas que levemente sugerem as figuras a que se referem e o
título explicita, na medida em que ao deixar de velar a natureza em objetos como dizia
o artista, captura para dentro da lógica de construção do objeto as qualidades que o
produzem, tal como observamos acima com Hepburn.
A dificuldade está que, no caso da paisagem, a natureza continua sendo um
fator gerador de sua possibilidade estética, mesmo que quando pela negação do
urbano. Ainda que em sua origem a paisagem seja devedora de uma experiência
estética com a natureza, não só este não é o seu único termo, como não se sustenta
apenas nessa condição mais recentemente; embora persista essa condição, não se
esgota nela. Também não se poderia usar o termo de natureza como oposição ao
trabalho, à mediação intelectual, pois esse componente está embrenhado na gênese
da paisagem. A paisagem não é atribuída somente à ideia de natureza nem reduzida à
sua interpretação estética, mas ampliada ao contexto social e, portanto, cultural, que
permite colocar em questão sua produção, valores, estratégias, modos de ação. Desta
forma, nesta perspectiva, o estudo da paisagem ultrapassa os aspectos morfológicos e
perceptíveis, ainda que os considere. Sendo vivenciada em uma partilha contraditória,
é transformada pelas pessoas que as habitam, gerando nesse processo tanto
estratégias quanto representações, estabelecendo um campo complexo de
significados.
Portanto, a paisagem não é apenas algo que se contempla, que se vê (ou se
representa) de longe e de fora, mas algo que se vivencia, e é essa vida que forma e
transforma uma paisagem. A paisagem, ainda sendo território, base biofísica, é
entendida como uma construção social e cultural que é animada pelas interações de
indivíduos entre si e com seus locais, num partilhar de experiências que é tenso e
contraditório.
Essa estética movida por uma nova experiência urbana tem que se situar em
um mundo em desagregação. Desagregação que é produzida pelos aspectos mais
“afirmativos” da especialização, dividindo a compreensão do mundo em certezas
lógicas somente acessíveis pela técnica e pela ciência, e que é produzida por
“negações” como a ausência de Deus, a moral instável e mais denunciada em suas
contradições, um tempo cada vez mais rápido que impede as continuidades,
engendrando uma experiência do isolamento. Trabalhos como Musas Inquietantes
(1916) e Heitor e Andrômaca de Giorgio De Chirico (1888 -1978), povoados de
inquietação e sonho, mas de um esvaziamento gritante da identidade transformando
seres e paisagens em objetos, ou Despertador (1919, ilustração na revista Dada), de
Francis Picabia (1879-1953), vão reduzindo a figura humana e o desejo à máquina. São
expressão de uma agonia, e não de uma esperança, de um esvaziamento e de
inconformismo, e não de progresso, como a máquina em outros contextos é invocada.
Exemplo notável desse desconforto, embora bem mais afirmativo no pacto social que
advoga por meio de suas paisagens sombrias, é o filme Metrópolis (1927), de Fritz Lang
(1890-1976). Uma cidade atormentada e visionária, cenário de um submundo do
trabalho sujeitado pela injustiça e pela indiferença de Moloch, o deus cruel e
impessoal do Capital. Marcado assim o enredo pela oposição capital-trabalho, o
conflito é resolvido por uma série de transgressões - o herói e a heroína, de classes
sociais e mundos distintos, encontram-se no início do filme em um jardim, privilégio
dos que vivem na e da aparência desse mundo da superfície - até que através de
desencontros causados por tensões e ambições diversas, os conflitos se resolvem no
casamento dos jovens apaixonados, ou no enlace conciliatório do capital e do trabalho.
A ruptura do sensível e da ordem do mundo no expressionismo e no dada, por
exemplo, vai além do vocabulário formal e da deformação dos sentidos e da
expressão. Ou, por outro lado, da busca de novas possibilidades construtivas nas
perspectivas abertas pela produção industrial, cujo exemplo mais interessante vai
estar no percurso da Bauhaus em Weimer (1919-1926) e Dessau (1926-1933).
A ruptura atinge o próprio sentido da arte, prenunciado no manifesto Futurista
já citado, e no Nu Descendo a Escada (1912) de Marcel Duchamp (1887-1968). Essa
obra pode ficar fácil para nós, já educados com as inúmeras experimentações agônicas
da arte moderna. No entanto, em 1912, vejo na obra mais do que o problema da
representação do movimento, colocado em questão pela fotografia, pelo cubismo,
pelo futurismo e pelo cinema. O nu de Duchamp, tema clássico da arte europeia, só se
realiza através de seu título. A legenda tem aqui um sentido que entendo integrar a
obra, não como justaposição, mas como sua essência ativa, inserindo um elemento de
ambiguidade, ironia e familiaridade, uma certa irreverência que atinge, por esse
recurso, o sentido mesmo de obra de arte.
A incorporação do objeto e do texto na pintura, característica desde a primeira
década do século 20, vem a passo da incorporação da pintura na construção de
experiências mais amplas, como nos balés e nas performances. Obra e vida do artista
entranham-se cada vez mais. As fronteiras da arte diluem-se, e a própria experiência e
processo criativo tornam-se arte, potencialmente efêmera. A arte propõe então
projetos ambientais, articulando a ação e o sensível na construção crítica de
significados, que ajudam a vivenciar a cidade ampliando a experiência, afirmando
crenças, ou camuflando os limites tênues e os vínculos que elege em seu tempo. É
assim altamente significativa na apreensão e discussão dos projetos de cidade e da
sociabilidade em que é gestada.
Experimentações novas são possíveis. No tensionamento e questionamento
dos limites, a própria experiência é colocada como um jogo aleatório e sem razão, e
convida-se a percursos urbanos como formas de conhecimento e diálogo. Experiência
que já não é com a natureza, como no Caminhando ou Andar a Pé (Walking, de 1862)
de Henry David Thoureau (1817-1862), mas com a cidade, como o fazem os dadaístas,
os surrealistas e depois os situacionistas e beats, que levam então essa experiência a
uma dimensão política no caso dos primeiros, e nos segundos a uma dimensão
existencial que produz a renovação da linguagem pela condição liminar nas fronteiras
da sociedade conservadora estadunidense dos anos 1940 e 1950.
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Mesa 3: Narrativa e oralidade
Richard Bauman (Indiana University)
Esther Jean Langdon (UFSC)
Francirosy Ferreira (FFCLRP/USP)
Country Communicability as Performed on Early Commercial Sound
Recordings, Richard Bauman (Indiana University)
Introduction
The enduring capacity of rural life to serve as a semiotic resource for the
construction, exploration, and ideologization of radical social transformation is well
and abundantly documented. Country people, as represented by philosophers, social
theorists, and artists have long stood as the domestic Other within contemporary
society, providing embodied representations of what modern people are not—or, in
some inflections, are no longer.
Several years ago, in an extended exploration of language ideologies in the
symbolic construction of modernity, Charles Briggs and I devoted considerable
attention to the ways that the discursive forms and practices of country people—what
we might call in terms of our current work “country communicability”—played a
foundational role in the formation of modern ideologies of language and the shaping
of social inequality in modern life. In that work, Voices of Modernity, we concentrated
on the ideas of learned intellectuals—philosophers, philologists, historians,
anthropologists—who had a formative influence on contemporary social, cultural, and
linguistic theory. Missing from that work, however, is the consideration of more
vernacular inflections of the symbolic construction of modernity. How did
representations of country communicability appear in popular culture, vernacular
complements to the elite formulations that we and others have explored? In order to
gain sway in society more generally, complementary articulations of communicative
ideologies must circulate in other sectors of society that reach a broader audience
than elite formulations can achieve. That’s the problem I want to explore in this paper.
More specifically, I propose to explore the vernacular representation of country
communicability not as a general problem—at least not until the concluding section of
the paper—but in terms of a particular historical case study, keyed closely to time and
place, but rich in larger implications—substantive, methodological, and theoretical. I
focus on Charles Ross Taggart, a popular platform performer and media figure of the
early decades of the 20th century. In his public personae of the Man from Vermont and
the Old Country Fiddler, Taggart toured widely and made a series of commercial sound
recordings. He was a popular exemplar of “rube” humor that caricatured country
people in the American popular culture of the period, and his performances afford us
an illuminating glimpse of country communicability as a symbolic and ideological
construction in the 19-teens and ‘twenties, a formative period in the history of
American media and a transformative period in American social, cultural, and
economic history more generally. Taggart’s enactment of the rural New Englander is
multifaceted and complex, as I hope to reveal in a fuller study. Communicability,
however, makes up an important, even central part of the country persona that
Taggart presents and the milieux in which he operates, and elucidation of this
dimension of country life in one of its performed guises provides a productive vantage
point on the larger picture.
Communicability
As proposed by Charles Briggs, “communicability refers to socially situated
constructions of communicative processes—ways in which people imagine the
production, circulation, and reception of discourse.” That is to say, communicability is
first of all a cultural and ideological construction, a way of conceiving, interpreting, and
evaluating how the social world is communicatively organized. Importantly, the notion
of communicability demands attention to the contexts within which systems of
communicability are articulated and the sites and trajectories of discursive production,
reception, and circulation that map how communicative processes are spatially and
temporally distributed and organized, what Briggs calls “communicable cartographies.”
Briggs and I have suggested in a number of works that performance, which
tends to be among the most reflexively heightened, memorable, repeatable,
circulable, and hence shareable sectors of any communicative economy, represents a
highly productive domain for the investigation of communicability. Performance forms
and practices—folksongs, folktales, epics, rituals, calendar customs, festivals—figure
prominently in the learned works that Briggs and I examine in Voices of Modernity:
collected, described, analyzed, located in historical time and socio-geographical space,
linked to social formations and populations. The vernacular constructions of
communicability I will treat in this paper, by contrast, are constituted by performance:
symbolically encoded, enacted, placed on display before an audience. The
performances I will analyze are constructions of communicability in two principal
senses. First, the Old Country Fiddler, as Taggart enacts him, is the embodiment of
country communicability. He is, in Asif Agha’s phrase, a characterological figure, a
stereotypical exemplar of the kind of person linked to particular communicative
registers, that is, repertoires of co-occurrent linguistic and discursive features that are
associated with particular social practices, the persons who engage in those practices,
and the speech events within which they do so.
Second, the characterological figure that Taggart enacts is himself a performer,
a storyteller who creates narrative representations of the social world in which country
communicability has its characteristic place. The dramatis personae, communicative
forms and practices, situational contexts, social roles, structures of participation,
systems of affect, and the like that he portrays in his narrative accounts of life in rural
Vermont and other spaces through which he moves, make up a composite picture of
country communicability as a cultural and ideological system in a vernacular key. In his
performances, the Old Country Fiddler embodies, recounts, and experiences country
communicability, mediated through sound recordings, the first of the acoustic mass
media, which served as important vehicles for the expression and dissemination of
country communicability.
Time will not allow me to offer a fully comprehensive survey of country
communicability in Taggart’s recorded performance. I will concentrate instead on two
related elements that correspond with concerns that Briggs and I discovered in the
works we examined in Voices of Modernity. One has to do with the contextualization
of country communicability in a temporal framework of epochal transition from
tradition to modernity. Country ways are traditionalized, aligned to a vanishing past,
and counterposed to a contrastive communicable formation that is characteristically
modern, pointing toward an emergent future. Second, the advent of new
communicative technologies—in Voices of Modernity it is writing and literacy—assume
a significant role in marking—indeed, effecting—the epochal shift. Taggart’s
performances are surprisingly sophisticated in their representation of these culture-
historical processes.
Charles Ross Taggart
Charles Ross Taggart was born in Washington, DC, in 1871, but grew up on his
grandparents’ farm in Vermont. He made his platform debut at the local town hall in
the Fall of 1895 and went on to sign with a series of regional talent agencies for touring
performers, eventually becoming affiliated for more than 20 years with the largest and
most prominent such bureau in the country. Taggart continued to tour until the effects
of a stroke compelled him to retire from active performance in 1938.
Taggart constructed his platform performances as the Man from Vermont out
of a variety of elements: fiddle tunes, piano pieces, novelty fiddling, ventriloquism,
recitations, the enactment of a variety of rural characters, and humorous narrative
monologues about the people of Pineville, the fictional Vermont community that was
the cartographic anchoring point of his performance personae. It is fair to say, though,
that his storytelling came to the fore in his performances. “He is reported as being
especially clever in his quaint stories of the ‘old town folks’ of New England,” reads one
publicity announcement. A review of one of his performances observes, “Probably
the well-told tales of the old man from Pineville pleased the audience most.” Taggart’s
skill at storytelling was well adapted to the technology of early sound recording, and
from 1914 to 1924, he recorded a number of his Old Country Fiddler routines for major
record companies.
It is difficult to discover how early commercial recordings were received by
members of the consuming audience. There is a suggestive passage in the Victor
promotional copy advertising Taggart’s second recording, issued in June of 1915:
The two Taggart selections issued in March made a real hit with the Victor
public, as many comments show. Says a Vermont customer: “We hope you will decide
to give us some more of those records by Charles Ross Taggart. He knows just how to
picture the old-time Vermont Yankee without overdoing it, and we have greatly
enjoyed his record. I am a Vermont Yankee myself, and as we realize that this old type
is rapidly passing away, it seems to me that the time may come when these records
will have a historic value.”
Whether this is a genuine comment made by a true Victor customer or a
promotional fiction authored by a company publicist, it suggests one possible
interpretive positioning of Taggart’s Man from Vermont. As enacted by Taggart, the
Man from Vermont is an “old-time Vermont Yankee,” an “old type,” representing a
fading past that is “rapidly passing away.” The putative customer explicitly historicizes
and traditionalizes Taggart’s character, but with a touch of nostalgic regret that this
social relic of a bygone era is marked for extinction. This interpretive and ideological
construction is certainly consistent with one widely current public image of Vermont in
the late 19th and early 20th centuries as stuck in time. A 1927 National Geographic
portrait of Vermont casts it as “one of the most truly American of our States. Its people
have hardly changed in their essential elements in a century.”
Dialect
One of the first things that strikes the listener on hearing Taggart’s recordings is
his conspicuous dialect, which marks him unmistakably as a New Englander. In their
promotional materials for Taggart’s recordings, the record companies emphasized the
authenticity of his regional dialect, grounded in his true New England origins. “Mr.
Taggart is a real ‘Yankee,’” a Victor promotional flier proclaims, “and doesn’t have to
‘put on’ any so-called dialects.” I won’t go into detail here about Taggart’s dialect,
except to say that it is indeed consistent with that of the rural area in which he grew
up. It is notable, though, that many of Taggart’s dialect features, especially lexical and
grammatical forms, are described by informants for the Linguistic Atlas of New
England as “older” or “old-fashioned.” The fieldwork for the atlas was carried out
between September, 1931 and October, 1933, only a decade and a half or so after
Taggart’s earliest recordings, which suggests a deliberate effort on his part to select for
dialect forms that mark his speech as old-timey and quaint. The effect is reinforced by
the high degree of contraction and elision that characterizes Taggart’s speech as
casual, vernacular, and non-standard. All in all, Taggart’s speech constitutes a
significant element of his performance personae. It marks him as an old-fashioned,
rural New Englander, his casual, vernacular speech perfectly consistent with the rural
character his represents.
Conclusion
Taking as my point of departure the prominence of performance in
philosophical constructions of country communicability and of country
communicability in turn as a vantage point on the symbolic construction of modernity,
I have attempted in this paper to explore the role of performance in vernacular
representations of country communicability, using Charles Ross Taggart’s early 20 th-
century commercial recordings as a preliminary case study. Taggart’s performances, as
we have seen, revolve around the animation of a characterological figure, the Old
Country Fiddler, a stereotyped representation of the rural New Englander of the day.
The Old Country Fiddler is an old—and old-fashioned—character, a representative of a
fading way of life and a declining region. He is, however, a good resource for
performance, embodying and indexing a part of the national experience that was
easily recognizable by the consumers of early commercial recordings, that is, urban
people and prosperous rural people with enough leisure and disposable income to be
drawn into the new consumer culture of home entertainment. These are the
audiences who could be amused by the anachronistic and naïve ways of the Old
Country Fiddler at the same time that they could enjoy the nostalgic glow of his
performances.
Performance is incorporated as a key component of the figure of the Old
Country Fiddler: he is a fiddler and a storyteller. I have focused here on his storytelling,
recounting stories of life in the rural community of Pineville, Vermont, and of his
experiences in the city, visiting his son who has moved to New York. The country and
the city jointly define the communicable cartography of the Old Country Fiddler’s
experience and the world he narrates, and their contrastive communicative styles
drive the stories he tells about city visitors to the Pineville and his own sojourns in New
York. Country communicability emerges as highly contextualized in terms of personal
identities, relationships, networks, domestic and community spaces, and temporalities
(an individual’s life span, genealogies, the duration and phase structure of interactional
encounters, etc.). Urban communicability is represented as impersonal,
decontextualized, suffused with “promiscuous” information, instrumental, and
impolite. Each has its own proper habitat, however, and visitors from one environment
to the other tend just not to “get it,” leading to disjunction, misunderstanding,
confusion, and speaking at cross purposes.
From the vantage point of Taggart’s performances, the characterological figure
of the Old Country Fiddler presents us with an ostensibly rural perspective on
communicability. But the figure, of course, is the creation of Taggart himself, who,
though raised in rural Vermont, had formal training in music from a teacher in the
state capitol, advanced training at the New England Conservatory of Music and the
Emerson School of Oratory in Boston, and lived in New York much of the time during
his active performance career. Thus, the view from the country is really a view from
the city, refracted through the constructed persona of a country figure. There is, thus,
a perspectival asymmetry built into the performances.
The trope of “not getting it” takes on special salience in the Old Country
Fiddler’s encounters with new communicative technologies. When he attempts to
contact his son by telephone, the ensuing confusion is a further manifestation of the
disjunction between country and city communicability. The Fiddler’s difficulties stem
from trying to connect with his son by means of a mediated technology that strips out
all the indexical richness that he can rely on in Pineville. The son is reduced to a
number, to decontextualized “information.” With the phonograph, part of the problem
is ignorance of the technology, but decontextualization is also deeply at issue here.
The musical tune that the Old Country Fiddler believes he has purchased when he
bought the record should be in his home, where he has left it. Hearing it from the
barber’s chair in another town, stripped of its indexical association with him and his
home, makes him believe that it has been stolen from him. But it is the technology of
mechanical reproduction that makes it possible for him to hear the “same” tune in
different places. In Benjamin’s terms, the tune has been stripped of its aura,
Benjamin’s term for the unique indexical associations that accrue to a work of art as it
moves through its life history of contexts and recontextualizations. The perspectival
asymmetry is also manifest in this performance: the Old Country Fiddler, as
characterological figure, is confused, but Taggart, who is animating him, is a master of
the medium. A significant portion of the dynamics of the performance is knowing that
the animator and figure are separate.
Let me close with a word about the comparative potential of the approach I
have introduced in this paper. The historical conditions that prevailed in the U.S.
during the early decades of the 20th century—the decline of traditional rural
economies, large-scale rural to urban migration, the expansion of the urban
bourgeoisie, the advent of new communicative technologies and media, the
burgeoning of consumer cultures, the rise of new forms of popular entertainment, and
so on—have close analogues in many parts of the world. Indeed, they are widespread
features of what is commonly identified as the advent of modernity. Not surprisingly,
then, performance forms and practices serve widely as reflexive mechanisms for the
symbolic construction, exploration, comprehension, and ideologization—especially
during periods of perceived rapid transformation—of epochal transitions and
concomitant shifts in regimes of communicability. The Old Country Fiddler has cousins
in Brazil, I’m sure, and certainly in many other parts of the world. Performance offers
one of the best vantage points, I think, on how to get to know them.
Excerpt 1
Charles Ross Taggart, “Old Country Fiddler and the Book Agent.” Victor 17931.
Oct. 28, 1915.
One day last Spring, I was a’settin’ on my porch, a’fiddlin away, when I see a
feller that I took to be a book agent comin’ up the path, with a four-pound volume o’
literature under ‘is arm. He was a kind of a spindlin’, sickly lookin’ chap, with a green
hat pulled clear down t’the tops of his ears and a suit of store clothes on. He didn’t look
as if he had gumption enough t’sell peanuts to a boy.
But he stepped up as pert as a rooster, and said, uh, “Good morning, Reuben!
I’ve got a book here on raisin’ calves I thought you’d like to look at.”
“Well,” I says, “if you got a book on raisin’ calves, you better make a present of
it to your parents. I think t’would be prof’table readin’ for ‘em!” Heh heh. But land
sakes, ‘t’warn’t no use. He couldn’t see the point.
Excerpt 2
Charles Ross Taggart, The Old Country Fiddler in New York. Victor 17700a. Dec.
21, 1914.
I went up t’that clerk an’ I asked ‘im if I c’d get a place t’stay overnight.
An’ he says, “European or American?”
Well, I says “that ain’ none o’ your business, mister, whether I do or not. I swan.
I took a bath n’ changed m’clothes just before I left home, but t’warn’t any o’ his
business.”
Well, I says, “Mister, this’s the fust place I ever struck where it’s cheaper t’stay
in th’house than ‘tis outdoors!”
Excerpt 3
Charles Ross Taggart, “Old Country Fiddler at the Telephone,” (June 21, 1916),
Victor 18148-A
30
Ver From Ritual to Theatre (1982: 82-84). Turner cita o Webster's Dictionary: o subjuntivo sempre tem
a ver com 'desejo, possibilidade, ou hipótese'; é o mundo do 'como se', que abrange desde a hipótese
científica à fantasia da festa. É o 'como se fosse', em vez do 'é'. Trata-se de expressar algo possível ou
simplesmente desejado.
que lhe foi proposto por um colega: “Put yourself in that posture; maybe you will learn
more about its meaning” (1995, p. 5), isto não implica em tornar-se ator ou religioso,
mas sim aprender a postura corporal observada em campo (: 20).
Quando optei por uma antropologia da performance islâmica, estava certa de
que a abordagem performática ajudar-me-ia a compreender o ethos islâmico e as
transformações necessárias para essa entrega, pois não daria conta de compreender
esse universo, sem compreender a minha própria performance. O ver e o ser visto
enriquecem qualquer etnografia, pois é preciso assumir o lugar do qual estamos
falando, essa atitude tensa pode nos levar às descrições densas do que pretendemos.
É legítimo e necessário apresentar nossas proposições, dúvidas e por que não dizer
nossos próprios “desvios”.
Tomo a performance da pesquisadora como o primeiro elemento de mudança
sensorial e corporal. Em outro momento afirmei que não saímos iguais da experiência
de campo, somos transformados e transportados, como diria Schechner (1985).
Constatei aquilo que já foi experenciado por Victor Turner (1982), e retomado
por Schechner, quando este afirmou: “fazer os movimentos do Nô, mesmo que por um
breve período, me ensinou mais no meu corpo que páginas de leitura” (1985, p.31). É a
experiência com a “performing ethnography” que também encontrei no acampamento
islâmico do qual participei durante o doutorado, pois me comportava como se fosse
um deles (FERREIRA, 2009ª). Este estado de subjuntividade, com certeza ampliou os
meus sentidos em relação ao grupo que estava pesquisando. A partir dessa
experiência, surgia a pesquisadora performer e os limites e as potencialidades da
performing ethnography. Importante destacar que para participar do acampamento
pediram-me para usar as vestimentas islâmicas, a fim de que eu não me diferenciasse
das mulheres.
As experiências vivenciadas em campo fizeram com que há quase quatro anos
eu passasse a me dedicar às questões metodológicas, inspiradas no modo de
etnografar e nas pesquisas realizadas por mulheres em comunidades muçulmanas.
Constato que a diferença em ser pesquisador e pesquisadora é mais do que olhar para
questões de gênero, é também, olhar para experiências vividas de cada um. São as
experiências vividas pelo sujeito pesquisador (a) que modela o seu modo de ver a ação
do outro. Intrigava-me naquele momento o comentário de um colega que dizia ter
levado a esposa para entrevistar as mulheres muçulmanas e de uma pesquisadora, que
teve que usar uma aliança para se apresentar como comprometida, pois desta forma
não ameaçaria o mercado matrimonial da comunidade. Antropólogos também
constroem personagens? Esta era e é uma das minhas questões de fundo.
Já havia destacado a minha experiência como pesquisadora e como o fazer
etnografia tinha mudado a minha relação com os sujeitos da pesquisa e com a forma
de ver minha experiência familiar (FERREIRA, 2009a). Isto posto, considerei que o fato
de ser mulher, mãe e antropóloga, mudou minha inserção em campo, pois me trouxe
outros modos de ver. E lembro-me da palavra que muitas vezes despertava o interesse
das mulheres. Qual o nome dos seus filhos Franci? Gabriel, Eduardo e João Pedro,
respondia. – Gabriel! Jibril, o anjo que anunciou a mensagem ao profeta Muhammad.
São determinadas sutilezas que nos prendem no campo no meu caso, ter um filho
chamado Gabriel e ter filhos-homens, faziam minhas interlocutoras repetirem:
Alhahdubiallah! E aqui o peso de ser meninos sem dúvida conta muito, embora, não
revelado na primeira conversa. São os meninos que levam o nome da família. Os filhos
pertencem à família do pai. Vários elementos que colocam os meninos em lugar
superior, embora, este discurso tenha mudado, sabemos que muito disso ainda vale
em determinadas comunidades muçulmanas.
Construir a minha meta-antropologia, só possível por meio da leitura do livro o
Antropólogo e sua Magia, do professor Vagner Gonçalves da Silva, a quem dedico este
texto. Silva (2000, p.15) escreve:
Para ser fiel a proposta de Silva (: 30) segui o roteiro proposto por ele: I-
Perspectiva do antropólogo: trajetória pessoal e acadêmica até a escolha do objeto
(subjetividades), etc; A inserção do antropólogo: quais as estratégias usadas para
obtenção de informações etc.; Confecção da etnografia: quais as maiores dificuldades
na construção do texto? ; A avaliação que o grupo faz da pesquisa: se o grupo leu o
texto. II – Perspectiva do Religioso – a aproximação do pesquisador.
Além dos procedimentos propostos por Silva (2000) também considerei que a
antropologia das formas expressivas (imagem e performance) contribuiriam
substancialmente para constituição dessa pesquisa. Nas inserções que fiz em campo
sempre estava com a câmera de vídeo, filmava não só as conversas com as
pesquisadoras, mas também, a cidade na qual elas vivem, a universidade e a
comunidade muçulmana da região, além de conversar com muçulmanos dessas
cidades. Nem sempre as pesquisadoras haviam estudado a comunidade da sua cidade,
mas considerei importante registrar, pois se tratava também de um mapeamento de
comunidades no Brasil. Mas para que o material tivesse um limite suportável para
decupagem e posterior análise determinei o máximo de 5 horas de gravação com cada
pesquisadora. A realização do roteiro de entrevista e a pré-conversa com elas, assim
como o conhecimento do material produzido por cada uma facilitou este limite.
Ainda no doutorado pedi a algumas colegas que me escrevessem um
depoimento sobre os motivos que as levaram a estudar o Islã e que contassem
também um pouco da sua experiência de campo. Esses depoimentos transformaram-
se em parte na pesquisa do temático e em parte na pesquisa que desenvolvi durante o
Prodoc da Unicamp e que hoje continuo numa perspectiva mais internacionalizada.
Algumas das pesquisadoras como Claudia Voigt Espinola, Silvia Montenegro,
Vera Lucia Maia Marques e Giselle Guilhon me enviaram por email um depoimento
narrando suas experiências de campo. Gisele Fonseca Chagas (UFF) me enviou
posteriormente um relato de sua entrada do campo e suas escolhas temáticas. Cabe
dizer, ainda, que a escolha pelas pesquisadoras deve-se ao meu interesse em investir
nas questões de gênero que surgem a partir da realização do trabalho etnográfico
realizados por mulheres31.
O recorte pelo feminino foi estratégico para iniciar uma discussão sobre
metodologia e etnografia, pois se tratava do diálogo entre amigas que compartilhavam
seus campos em congresso já há algum tempo. O interesse que tinha era o que de fato
escapava em notas de rodapé, o que não aparecia no texto propriamente dito, para
isto era preciso manter o diálogo constante com essas pesquisadoras. Conhecer seus
textos e a sua biografia, compartilhar suas escolhas. Como qualquer antropólogo, em
campo, me hospedei em suas casas durantes alguns dias para manter conversas e
estabelecer este contato diário que permite falar da academia, mas também da
família, da vida e do campo.
Em alguns momentos mais escuta, outros mais observação, em outros
movimentos corporais que se revelam com desencadeadores de emoções, sujeitos a
interpretação da antropóloga.
31
Ver por exemplo: GOLDE, Peggy (1986); LANDES, Ruth.(2002); ABU-LUGHOD, Lila (2000);
AHMED, Leila (1992).
32
Mapear as pesquisas produzidas sobre o Islã no Brasil, era um desejo grande, desde o 1º. Encontro
desses pesquisadores na Universidade Metodista em São Paulo, em julho de 2006. Era chegada a hora de
trocar informações, reflexões. Sair do isolamento que essas pesquisas viveram até então.
na decisão do que é e não é significativo, pelos seus
diferentes interesses, que refletem diferenças de
personalidade, de educação, de estatuto social, de opiniões
políticas, de convicções religiosas, e assim por diante (...)
(EVANS-PRITCHARD, 1985, p.84).
35
Ver também FERREIRA, F. org. (2010) Pesquisadoras performers: suas etnografias e
metodologias. IN: Olhares femininos sobre o Islã: etnografias, metodologias e imagens. São Paulo:
Hucitec, 2010, no prelo. Uma discussão aprofundada sobre metodologia e etnografia.
Amazônia), onde estive por cerca de 6 meses e que resultou
na dissertação de mestrado, defendida em 1995. A
preocupação principal girava em torno dos saberes e
representações do grupo sobre saúde e doença, enfocando
todo o universo da medicina nativa.
A escolha de uma pesquisa, em muitos casos, tem relação direta com a nossa
vida privada: filhos, casamento(s). Com Espinola, não foi diferente — mas por que o
Islã? Poderia ter sido qualquer outro tema — qual a especificidade deste tema?
36
Infelizmente, para a fluidez deste artigo, tive que fazer uma edição das dez páginas do depoimento de
Silvia Montenegro, que me foi enviado em 26 de fevereiro de 2007.
Faraón Amosis I", uma organização de caráter sincrético,
que combinava elementos católicos, referências às religiões
do antigo Egito e ao espiritismo Kardecista38. Mais adiante,
na ocasião da elaboração de minha tese de graduação,
abordei o estudo de uma congregação de Testemunhas de
Jeová, também na cidade de Rosario, concentrando-me na
análise dessa religião como sistema conceitual e em suas
práticas tendentes a formar “indivíduos proselitistas”39.
Posteriormente, por ocasião da elaboração de minha
dissertação de mestrado no PPGSA do IFCS/UFRJ, voltei a
trabalhar entre as Testemunhas de Jeová, desta vez numa
congregação do Rio de Janeiro. Nessa oportunidade, analisei
a cosmologia e as técnicas de treinamento para o
proselitismo, do ponto de vista de que estas últimas
constituíam um sistema ritual muito prescrito, que
impulsionava um ethos proselitista por meio de certa
educação do corpo e da fala dos membros. Foi nesse
momento que comecei a me interessar pela problemática
que finalmente me conduziu até o islamismo.
38
Pesquisa publicada como "Cosmología y ritual en un culto religioso urbano: el caso del Templo de
Enseñanza Espiritual Faraón Amosis I en la ciudad de Rosario”. Em: Antropologia de la Religión,
compilação de Juan Mauricio Renold. Editorial del Arca. Rosario, 2000.
39
Pesquisa publicada como "Proselitismo religioso y lenguaje: habla y gestualidad entre los Testigos de
Jehová". Em: Antropologia de la Religión. Editorial Del Arca. Rosario, 2000.
Uma vez iniciada a pesquisa na comunidade muçulmana do
Rio de Janeiro, pude compreender que o problema do
fundamentalismo devia ser tratado no marco mais amplo de
uma construção identitária, onde autoconsiderar-se
fundamentalista parte de uma escolha entre outras
possíveis. Dessa forma, no conjunto de dilemas identitários,
o fundamentalismo era apenas um deles — embora
complexo — e possível de ser entendido no marco dos
outros dilemas.
Aqui quero levantar alguns pontos que considero cruciais, apontados no texto
de Montenegro. O primeiro deles: uma certa permanência do pesquisador no grupo
se converte num dos aspectos mais valorizados (...). Esta ideia pode ser revista no
vídeo Vozes do Islã41. De fato, os muçulmanos valorizam os pesquisadores, muito mais
do que os jornalistas, pois consideram que um pesquisador tem mais tempo para se
dedicar a compreender e conhecer corretamente a religião, escapando dos
estereótipos que comumente surgem em matérias jornalísticas, que têm prazos curtos
para serem finalizadas.
O segundo ponto: os muçulmanos nunca me perguntaram se eu desejava me
converter. Aqui abro um parêntese para evidenciar alguns pontos em relação a minha
própria trajetória. No meu caso sempre fui indagada pelos muçulmanos, quando eu
iria me reverter. Depois de algum tempo, comecei a ouvir isso, quase que
sistematicamente. A última vez foi com Sheik Jihad, quando ele me perguntou em que
momento eu faria a Shahada. Respondi, em tom de brincadeira, que eu poderia fazê-la
naquele momento, e recitei os versos. Ele, então, sorrindo, perguntou-me se era de
coração. Disse que sim. E como me conhecesse o suficiente, soube que não se tratava
de uma reversão, mas de alguém que, caso precisasse, já sabia recitar os versos.
Terceiro ponto: sabiam que os motivos da pesquisa partiam do desejo de
conhecer uma religião sobre a qual muito se fala e pouco se pesquisa. Como este
artigo deixa entrever, as pesquisas sobre o Islã têm crescido na academia, mas este
crescimento ainda não é suficiente para que possamos ter uma real dimensão do
fenômeno religioso islâmico no Brasil. Há muito o que investigar sobre as mulheres,
jovens, revertidos, questões políticas, etc. No entanto, valorizo os trabalhos já
produzidos e os que ainda estão em andamento, pois refletem uma aproximação da
universidade com uma religião que carrega um aspecto étnico importante, e que,
talvez por isso, ainda encontre resistências ou dificuldades de entendimento.
Finalmente, um quarto ponto: a ideia de que pesquisar entre os muçulmanos
pode ser difícil, se a pesquisadora é mulher. Aqui cabe uma outra observação: no
Brasil, há menos pesquisadores do que pesquisadoras, quando o tema é o Islã. Talvez
as dificuldades encontradas por Ramos, em sua pesquisa de mestrado (2003), possam
iluminar um pouco esse terreno. Sua dificuldade centrava-se no difícil acesso às
mulheres muçulmanas, e, por isso, suas entrevistas tiveram que ser mediadas pela sua
esposa, que entrevistava as mulheres, repassando a ele as informações, como já falei
anteriormente.
41
Ver FERREIRA (2007). www.lisa.usp.br
Vera Lucia Maia Marques - Conversão e Identidade
Meu nome é Vera Marques, conclui meu mestrado, em
Antropologia, na PUC-SP em 2000. Desde então venho
tentando retomar as pesquisas mas esbarrei em alguns
problemas. Minha dissertação é sobre a conversão ao Islã.
Meu campo de pesquisa foram as comunidades
islâmicas de SP. Depois que defendi o mestrado, fui para os
Estados Unidos para estudar a comunidade islâmica do
meio-oeste norte americano, estudei 6 meses e aconteceram
os atentados de "11 de Setembro". Achei que o momento
não seria propício para a pesquisa. Seria um estudo
comparativo, entre esta comunidade norte-americana e a
comunidade pesquisada em SP.
Em 2005, voltei para a PUC-SP para começar o doutorado,
no entanto mudei para Belo Horizonte e precisei trancar a
matrícula. Neste meio tempo, fui incentivada a redirecionar
minha pesquisa e fui aceita na Universidade de Lisboa mas,
infelizmente, não consegui a bolsa de estudos que
precisava.. Agora, finalmente, consigo minha transferência
para a UFMG e assim, eu espero, ir adiante com o meu
trabalho sobre conversão. Acho ótimo a ideia de reunir
pesquisadores neste grupo42 para que possamos discutir
assuntos de nossos interesses, afinal, pelo que tenho
conhecimento não somos muitos... Obrigada pelo convite e
participação nas discussões43.
42
Referência ao nosso yahoogroups mundoarabeislamico, formado em 2006.
43
Email enviado por email em 2007. Marques defendeu seu doutorado em 10 de dezembro de 2009,
Marques, Vera Lúcia Maia. Sobre práticas religiosas e culturais islâmicas no Brasil e em Portugal: notas e
observações de viagem. 270 p., Belo Horizonte, tese de doutorado, Sociologia, Universidade Federal de
Minas Gerais – UFMG, 2009.
pode ser distinta, envolvendo alternação e conversão. A
alternação é adotada, porém os padrões anteriores não são
totalmente colocados de lado e nem rompidos. Aspectos da
nova e da antiga religião são combinados de forma a criar
uma terceira situação, resultante dessa combinação. A nova
religião representa “circunstâncias” e não uma reorientação
de vida propriamente dita. Em alguns casos, a alternação
pode vir a se tornar conversão que é a forma mais radical de
mudança de visão de mundo e identidade. Nesse caso o
convertido rompe com o passado e externa publicamente
sua nova religião (MARQUES, 2000, p.103).
46
Dervixe: palavra de origem persa que significa, literalmente, “aquele que espera na porta”, sendo,
também, associada ao estado de pobreza e simplicidade. No contexto sufi, designa o “buscador”. É uma
tradução do árabe sufi, palavra provavelmente mais antiga (cf. Textos sufis. RJ: Edições Dervish, 1990).
“Agrupados em várias ordens, os dervixes (de darwich; literalmente: ‘louco’) são tanto os ‘loucos de
Deus’ errantes (Qalandari) e os pobres (Fukara, plural de fakir, origem da palavra ‘faquir’) [...] quanto os
dervixes residentes tais como os ‘dervixes giradores’. Uns e outros professam uma forma de iniciação
mística (dhikr, [lataif, Sama]) segundo as vias que lhes são próprias [...]” (cf. CHEBEL, Malek.
Dictionnaire des Symboles Musulmans. Rites, mystique et civilisation. Paris: Albin Michel, 1995, p.
133). (Tradução: minha)
47
Sufi: designa o “buscador”, o praticante do Sufismo. A palavra deriva do radical árabe suf, que
significa “lã”. Os sufis vestiam lã a fim de demonstrar sua rejeição à luxúria. (Cf. MATAR, N. I. Islan
for beginners. NEW YORK: Writers and Readers Publishing, 1992, p. 112) Mas alguns Sufis preferem a
tese de que seu nome provém da palavra saff, que quer dizer “fila” ou “posição”. Dizem que atingiram o
primeiro saff entre os fiéis diante do trono de Deus, em virtude da purificação de sua alma (naf) (cf. ALI-
SHAH, Omar. Prefácio. In: SHIRAZ, Saadi de. Gulistan: o jardim das rosas. São Paulo: Attar Editorial,
2000, p. 16).
48
SHAH, Sirdar Ikbal Ali. A travessia dourada. São Paulo: Edições Dervish, 1995.
49
Sayed quer dizer “descendente do Profeta”: “Nossa família descende de Fátima, a filha do Profeta
Maomé. O homem que fundou uma das grandes religiões monoteístas do mundo, uniu as tribos rivais da
Arábia e teve a possibilidade de acumular uma riqueza incomparável, morreu pobre. Em seu leito de
morte ele definiu seu legado: ‘Não tenho nada para vos deixar, a não ser minha família’ Desde então seus
descendentes são reverenciados em todo o mundo muçulmano e têm o direito de usar o título honorífico
de Sayed”. (Extrato do livro autobiográfico da jornalista Saira Shah, filha do escritor Idries Shah,
sobrinha de Omar Ali-Shah e neta de Sirdar Ikbal Ali Shah. (Ver SHAH, Saira. A filha do contador de
histórias: Uma jornada aos confins do Afeganistão. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 18).
a dança girante dos dervixes (e também a música), são, no
Sama, os condutores e/ou indutores de certos estados de
consciência, pretendo abordar a natureza desse processo de
transmutação alquímica (...), capaz de levar os dervixes,
numa primeira instância, ao “transe” (wajd) ou “êxtase
místico” (tadjali) (2006, p.58).
Bibliografia
La scène n’existe qu’en fonction du regard qui s’y porte. Un corps en scène est
un corps regardé. Ce truisme mérite qu’on s’y arrête afin d’examiner ce qu’il implique.
La situation à laquelle il se réfère constitue un système dynamique complexe qui
présuppose la mise en jeu de trois éléments constitutifs à ne pas confondre :
*
**
Les deux cas que je vais présenter brièvement portent sur la mise en scène de
corps féminins à des fins à la fois commerciales et scientifiques. Ces monstrations-
démonstrations ont engendré un effet d’intense curiosité dans la société européenne,
notamment française, des XIXe et XXe siècles. Fort dissemblables en leur apparence et
dans le traitement qui leur a été réservé, ces corps ont en commun d’avoir été
manipulés. L’un d’eux a même subi le regard jusqu’après la mort. Disséqué, organes
mis en bocaux de formol, cadavre moulé en plâtre pour être exposé, il a repris vie dans
nos imaginaires collectifs presque deux-cents après, dans un imbroglio politique,
culturel et intellectuel. Pour les scientifiques, la mise en scène de ces femmes a servi
de faire-valoir à la théorie, de telle sorte que leurs corps ont été pré-jugés plutôt que
perçus, commentés au lieu d’être décrits.
51 Jerzy Grotowski: “De la compagnie théâtrale à l’art comme véhicule”© 1993, in Thomas Richards:
Travailler avec Grotowski sur les actions physiques, préface et essai de Jerzy Grotowski, coll.”Le Temps
du Théâtre”, Actes Sud/Académie Expérimentale des Théâtres, 1995, p. 181
52 James Konow : "Is fairness in the eye of the beholder? An impartial spectator analysis of justice »,
Social Choice and Welfare, 2009, Volume 33, Number 1, Pages 101-127
53 Webster’s New Universal – Unabridged Dictionary, second edition 1979 : “Hottentotism : a
charasteristic of the Hottentots; especially, a kind of stammering.” Page 880
des consonnes « injectives » produites par raréfaction de l’air entre deux points de
fermeture dont l’un est toujours vélaire. Les traits phonologiques ne sont pas seuls à
marquer la singularité des Hotentots, remarque la linguiste Jacqueline Manessy-
Guitton :
Du point de vue physique, en effet, les Hottentots sont très proches des
Bochimans : « peau brun-jaune, yeux écartés, cheveux « en grains de poivre »,
stéatopygie et macronymphie ; ils sont toutefois un peu plus grands » (Jacques
Maquet, 2007). Ces deux mots académiques « stéatopygie » et « macronymphie », ont
été prioritairement retenus dans la construction de la légende hottentote élaborée par
la majorité des voyageurs, véhiculée et enjolivée par leurs récits souvent recomposés
et commentés par des plumitifs sédentaires. La stéatopygie ou lipomatose des régions
fessières n’est pas propre aux communautés dites hottentotes. Elle a été observée en
France.55 Au regard, elle offre une obésité localisée à l’arrière-train, qui n’est pas sans
rappeler la mode des « faux-culs » inaugurée par les courtisanes au temps de Louis
XIV, et prolongée bien après. Cette hyperplasie génétique du tissu adipeux se
rencontre dans certaines populations, dont les Khoisan.
La macronymphie en tant que trait singulier de l’appareil génital externe de la
femme est beaucoup plus intrigante. Comme son nom l’indique, elle correspond à un
développement anormal en longueur et volume des nymphes ou petites lèvres. Très
tôt se répandit la rumeur que les femmes hottentotes présentaient cette
caractéristique physiologique auquel fut donné le nom de « tablier », « tablier
naturel », ou encore « tablier des hottentotes ». À la différence de la statuaire et de la
peinture classique inspirée de l’Antiquité pour laquelle le sexe de la femme figure sans
pilosité ni « porte de jade » évidente qui incite à y pénétrer, la macronymphie est
perçue comme une exaspérante ostension de la sexualité. Au point d’avoir enflammé
l’imagination de physiologistes qui, à l’instar de Gustav Fritsch (1838-1927) y voyaient
la source d’une sensualité primitive et bestiale.
A dire vrai, dans la fantasmagorie délirante inspirée d’une certaine littérature
coloniale, le Hottentot tenait par excellence l’emploi du sauvage aux limites de
l’animalité. Des récits de voyage plus ou moins fiables avaient fait naître des images de
corps aux difformités aussi étranges que l’étaient les mœurs des populations visitées.
En témoigne un ouvrage imprimé à Amsterdam chez Jean Catuffe en 1743, tiré des
mémoires de Peter Kolb, Maître ès Arts allemand, qui avait été envoyé dans la colonie
du Cap de Bonne Espérance pour y faire des Observations Astronomiques & Physiques.
La préface de Jean Bertrand (1708-1777), son traducteur, est éloquente. Après avoir
fait l’éloge de la colonisation hollandaise, il cite le célèbre Mr. La Croze, Bibliothécaire
& Antiquaire du Roi de Prusse :
54 Jacqueline Manessy-Guitton : André Martinet (sous la direction de) « les familles de langue » Le
Langage – Encyclopédie de la Pléiade, Gallimard, 1968, p. 1232
55 voir un spécialiste de la question au début du XXème siècle : Felix regnault : « A propos de la
stéatopygie en France », Bulletins et mémoires de la société d’anthropologie de Paris, volume 3, 3-5-6,
pp. 398-399, 1912
« De tous les Barbares connus, ces Peuples (les Hottentots)
sont les plus hideux & les plus dégoutans par leur saleté &
leur puanteur insupportable. »56
56 Peter Kolb : Description du Cap de Bonne Espérance : où l’on trouve tout ce qui concerne l’histoire
naturelle du pays ; La Religion, les Moers & les Usages Des Hottentots ; Et L’Etablissement des
Hollandais, Volume 1 tirée des mémoires de M. Pierre Kolbe , Maître ès Arts – Dressé pendant un séjour
de dix années dans cette Colonie, où il avait été envoyé pour faire des Observations Astronomiques &
Physiques
A Amsterdam chez Jean Catuffe 1743 traduit de l’allemand par Jean Bertrand, p. xj
57 Peter Kolb : Description du Cap de Bonne Espérance : où l’on trouve tout ce qui concerne l’histoire
naturelle du pays ; La Religion, les Moers & les Usages Des Hottentots ; Et L’Etablissement des
Hollandais, Volume 1 tirée des mémoires de M. Pierre Kolbe , Maître ès Arts – Dressé pendant un séjour
de dix années dans cette Colonie, où il avait été envoyé pour faire des Observations Astronomiques &
Physiques- A Amsterdam chez Jean Catuffe 1743 p. 107
cadavre, détache et récupère le squelette, dépose le cerveau et les nymphes
monumentales dans des bocaux.
La destinée de la petite fille Saartje ne s’est achevée qu’en 2002 après de
longues et difficiles négociations entre l’Afrique du Sud et le gouvernement français. Le
9 août de cette année, les restes de sa dépouille mortelle restitués par la France ont
été inhumés à Hankey au cours d’une cérémonie solennelle de funérailles en présence
du Président Sud Africain Thabo Mbeki. Il avait été nécessaire pour obtenir ce retour
au pays qu’une proposition de loi présentée au Sénat par M. Nicolas About ait été
adoptée par l’Assemblée Nationale. Enfin, Sawtche, alias Saartje Baartman,
christianisée avec le prénom de Sarah, repose selon la coutume, dans une tombe
modeste située sur la colline de Vergaderingskop, près de la rivière Gamtoos.
*
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58 Emile Magnin : L’art et l’hypnose – interprétation plastique d’œuvres littéraires et musicales, préface
de Théodore Flournoy, deuxième édition, Genève ATAR, Paris Felix Alcan, 1905
ethnological show business (1999).59 La restitution de la dépouille de Sarah Baartman à
sa terre d’origine s’est accompagnée d’un élan éditorial significatif, notamment en
langue anglaise.60 L’affaire des « zoos humains » tout aussi scandaleuse n’avait pas eu
pareille attention.61 Dans l’une de ses chroniques de vulgarisation scientifique qu’il
rédigeait avec un humour piquant pour le Natural History Magazine, le célèbre
paléontologue Stephen Jay Gould (1941-2002) s’était interrogé sur les ambiguïtés
scopiques des savants et du public en prenant en exemple le cas de la Venus
Hottentote. L’article a été repris dans le recueil The Flamingo's Smile (1985)62. En
langue française, ce sont des journalistes ou écrivains qui ont produit la majorité des
biographies de la Venus Hottentote.63 Retenons également le succès du roman
historique de l’écrivaine, poètesse et sculptrice américaine Barbara Chase-Riboud
publié en 2004 aux Etats-Unis, et à Paris, dans sa traduction française. J’ajouterais à
ces références un document officiel de l’Etat Français qui mériterait une étude
particulière. Le 4 décembre 2001, au cours d’une séance ordinaire du Sénat, Monsieur
Nicolas About membre de la Haute Assemblée, médecin de formation et président du
Groupe Union Centriste présenta la proposition de loi n° 3561 dont l’article unique
stipulait :
59 Bernth Lindfors (edited by) : Africans on stage – studies in ethnological show business, Indiana
University Press, Bloomington, 1999 - Chapitre 1 : display of the Body Hottentot, par Z.S. Strother, pp.
1et ss.
60 Rachel Holmes : The Hottentot Venus: The Life and Death of Saartjie Baartman: Born 1789 - Buried
2002 , Bloomsbury Publishing PLC , (2005) 2008
Rachel Holmes : African Queen: The Real Life of the Hottentot Venus, Random House, 2007
Deborah Willis (sous la dir. de) : Black Venus 2010: They Called Her "Hottentot", Temple University
Press,U.S. 2010
Clifton Crais & Pamela Scully : Sara Baartman and the Hottentot Venus: A Ghost Story and a Biography,
Princeton University Press; Édition : Reprint 2010
61 Nicolas Bancel, Pascal Blanchard, Gilles Boëtsch et Eric Deroo : Zoos humains : Au temps des
exhibitions humaines , Éditions La Découverte, Paris, 2004
Emmanuel Garrigues : « Les villages noirs en France et en Europe, ou le ‘ zoo humain ‘ »,
L’Ethnographie, nouvelle édition, été 2001, editions de L’Entretemps, pp. 62-93
62 Stephen Jay Gould : The Flamingo's Smile. Norton and Cie. 1985. Le Sourire du flamant rose.
Réflexions sur l'histoire naturelle. (traduit de l' américain par Dominique Teyssié en collaboration avec
Marcel blanc). Paris. Points/Seuil 1988
63 Carole Sandrel : Vénus & Hottentote : Sarah Bartman (préface de Jean-Denis Bredin), Librairie
Académique Perrin (18 mars 2010) journaliste
Gérard Badou : L'Enigme de la Vénus hottentote, Jean-Claude Lattès (8 mars 2000) journaliste et écrivain
par des laboratoires de recherche américains, attendus depuis mai 2010 par les
familles ?
Les motifs exposés en 2001 par le Sénateur pour justifier sa proposition de loi
sont éloquents. Ils méritent d’en citer l’introduction :
Après avoir fait état de l’émotion soulevée en Afrique du Sud par l’histoire de
Saartje Baartman, le sénateur conclut par le « poème pour Saartjie » de Diana Ferrus,
poétesse militante sud-africaine. Conformément au règlement, la proposition de loi fut
renvoyée à la commission des Affaires Culturelles Familiales et Sociales qui constitua
une commission chargée de rédiger un rapport. Ce dernier signé par son président, le
député socialiste Jean Le Garrec, représente un texte d’une vingtaine de pages, denses
et précises. Il a le mérite de faire ressortir la responsabilité des scientifiques du passé
et du présent, parfois leur racisme et mauvaise foi allant jusqu’au mensonge lors de la
dernière enquête destinée à localiser les dépouilles de Saartje Baartman. Le
rapporteur retrace leur malheur post-mortem. Dès la fondation du Musée de l’Homme
en 1937, le moulage du corps et les organes conservés dans les bocaux sont transférés
du Jardin des Plantes au Trocadero. Le squelette et le moulage sont présentés tout
d’abord dans la galerie d’anthropologie physique jusqu’en 1974. Puis le moulage passe
étrangement dans la salle de préhistoire avant d’être stocké dans les réserves. Les
bocaux où baignent dans le formol le cerveau et l’appareil génital ont un sort plus
déconcertant :
« tenus pour disparus des réserves du Musée de l’Homme au
cours des années 1980, ils ont été semble-t-il très
recemment retrouvés puisqu’ils figurent désormais dans
l’inventaire officiel de ce musée, ainsi que l’a confirmé le
ministre de la recherche au cours des débats au Sénat. »64
Ainsi, le 7 mars 2002, le Journal Officiel publia la Loi n°2002-323 du 6 mars 2002
relative à la restitution par la France de la dépouille mortelle de Saartjie Baartman à
l'Afrique du Sud. Elle comportait un seul article :
64 P. 8
65 Assemblée Nationale. N° 3563 – Enregistré à la Présidence de l’Assemblée Nationale le 30 Janvier
2002. Document mis en distribution le 7 février 2002. Rapport fait au nom de la Commission des Affaires
Culturelles, Familiales et sociales sur la proposition de loi, adoptée par le Sénat, relative à la restitution
par la France de la dépouille mortelle de Saartje Baartman à l’Afrique du Sud, par M. Jean Le Garrec,
député. P. 16
66 p. 8. Rappel est fait dans le rapport de l’attitude des différents gouvernements français.
*
La publication des lois et les ouvrages d’histoire des sciences touchent moins le
grand public que ne le font les romans et surtout les images. Le film très remarqué
d’Abdellatif Kechiche « Venus Noire » - Vênus Negra - , apparu sur les écrans en 2009,
a provoqué une secousse capable de bouleverser et de porter à la réflexion. Je pense
que certains d’entre vous l’ont vu puisqu’il a été distribué au Brésil.
Né en Tunisie, cinéaste apprécié, Abdellatif Kechiche vient du théâtre. Venus
Noire est son quatrième film, sans doute celui dont l’impact a été le plus puissant.
Dans un entretien il s’explique sur ses intentions :
67 « Abdellatif Kechiche Le Sphinx », propos recueillis par Auréliano Tonet, in Venus Noire une histoire
de violence, p. 8, livret du film reprenant des extraits du supplément réalisé en octobre 2010 par la
rédaction du mensuel culturel Trois Couleurs, édité par MK2
« j’ai l’honneur de présenter à l’académie les organes
génitaux de cette femme, préparés de manière à ne laisser
aucun doute sur la nature de son tablier »
La conclusion est sans appel, après que comparaison ait été faite avec la tête
d’une momie égyptienne :
Cette première séquence du film d’Abdellatif Kechiche est longue. Pendant six
minutes, des gens policés se livrent à un exercice de racisme scientifique. En toute
subjectivité. Le flash back qui lui fait suite n’en est que plus efficace dans la mesure où
voyeurisme banal et cécité académique avouent leur parenté. Ce je souhaite apporter
aux multiples commentaires et études qui accompagnent la Venus Hottentote,
concerne plus précisément trois questions fondamentales pour la recherche en
ethnoscénologie :
*
**
68
Philippe Taquet : Georges Cuvier : Naissance d'un génie, éditions Odile Jacob, 2006
lire également : Eric Buffetau : Cuvier découvreur de mondes disparus, Belin/Pour la science, Paris, 2002
nombre d’anthropologues - Georges Condominas, Leiris, Balandier … -, critiques au
regard de l’intellectualisme de certaines études. Elle constitue l’une des revendications
majeures de l’anthropologie réflexive. Son bien-fondé m’est apparu royalement au
cours de mes recherches sur la Vénus Hottentote, avec la rencontre d’un ornithologue
français novateur, contemporain de Cuvier, dont l’histoire personnelle, le profil
psychologique, la vie sociale, le rapport au pouvoir, la façon de penser et de pratiquer
la science, d’approcher les Hottentots et les femmes hottentotes en font l’antithèse
radicale du célèbre baron.
En décembre 1789, le journal encyclopédique annonce la sortie prochaine d’un
ouvrage en deux tomes au titre prometteur : Voyage de M. François Le Vaillant dans
l’intérieur de l’Afrique par le Cap de Bonne-Espérance Dans les Années 1780, 81, 82,
83,84 & 85.69 Le journal allèche la curiosité de ses lecteurs par un détail croustillant:
Le livre de François Le Vaillant jouit d’un étonnant succès dès les premiers jours
de sa publication. Il est rapidement traduit en sept langues et réédité jusqu’en 1884
par Garnier Frères, à Paris, avec des illustrations de Defendi Semeghini (1852-18891)
mais amputé de la préface. On y découvre combien était trompeuse l’accroche
publicitaire du Journal Encyclopédique. Bien que le français maladroit de son auteur ait
nécessité l’aide d’auxiliaires plus lettrés que lui, celui-ci n’est pas à confondre avec l’un
des multiples plumitifs globe-trotters à l’image du physicien allemand Kolb, dont j’ai
cité le mépris pour les Hottentots, ou le hollandais Jean Strueys conteur prolixe
d’aventures pimentées d’affabulations. Parfois mal lu car trop rapidement,71 dénigré à
l’occasion, déprécié par certains ornithologues jaloux, Le Vaillant est à présent
redécouvert en Afrique du Sud (Siegfried Huigen, 2009 ; Ian Glenn, 2004 )72 où ses
qualités humaines et scientifiques sont reconnues et appréciées au point que son nom
été attribué à l’École française de Cape Town « en hommage à l’explorateur qui avait
69
Voyage de M. François Le Vaillant dans l’intérieur de l’Afrique par le Cap de Bonne-Espérance Dans
les Années 1780, 81, 82, 83,84 & 85, à Paris, chez Leroy Libraire, 1790 Avec Approbation & Privilége du
Roi.
70
Journal Encyclopédique, Décembre 1789, volume 8, p. 500,
71
Ce que l’on peut reprocher à Zoë Strother dans l’article mentionné plus haut. Le résumé des deux
scènes qu’elle mentionne ne permet pas de saisir l’entièreté de la situation.
72
Voir l’excellent article de Siegfried Huigen (University of Antoine Stellenbosch, Afrique du Sud) :
« Les aventures d’un Créole du Surinam en Afrique: le récit ethnographique de François Le Vaillant », In
L’Afrique du siècle des Lumières: savoirs et représentations, (Sous la direction de Catherine Gallouët,
David Diop, Michèle Bocquillon et Gérard Lahouati), Voltaire Foundation, Oxford, coll. "SVEC",
mai 2009
sur l’apport de François Le Vaillant à l’ornithologie : Rookmaaker, L.C., Mundy, P.J., Glenn, I., Spary,
E.C. : François Levaillant and the Birds of Africa. Houghton, Brenthurst Press, 2004
épousé, avec les thèses du philosophe Jean-Jacques Rousseau, l’idée d’une pédagogie
ouverte et innovante. »73
Le lecteur des voyages ne doit surtout pas plonger d’emblée dans l’ouvrage
sans en avoir attentivement lu les premières pages réparties en une préface, et un
chapitre intitulé « Précis Historique ». A l’instar des bonnes thèses d’ethnoscénologie,
François Le Vaillant commence par se situer par rapport à son champ de recherche. Il
présente sans complaisance son autobiographie à partir de laquelle prend source son
projet de voyage, sa compétence et la méthode de travail qu’il a adoptée
ultérieurement. Il veut se démarquer du savant sédentaire et compilateur qui du fond
de son cabinet « prétend établir des principes et dicter des lois », et propage de vieilles
erreurs en couvrant « de toutes les graces de l’élocution les mensonges avérés de nos
Pères « (Tome I- Préface). Lui-même se déclare « créole du Surinam », à ne pas
confondre avec ces Français de France attachés à leur terre natale, écrit-il, « comme la
moule à son byssus » :
Le père fait des affaires, devient Consul de France et exporte vers l’Europe.
L’exotisme étant à la mode, il parcourt l’intérieur du pays en famille, collecte des
insectes étranges, papillons colorés, animaux, objets. Le fils passe une enfance
heureuse et voyageuse dans une colonie cosmopolite à la nature tropicale humide où
73
manifeste de la direction, 2011
74
préface page viii
vivent amérindiens, esclaves importés d’Afrique et une forte communauté juive venue
de Hollande et d’Italie. On y parle principalement le néerlandais, langue qu’apprend le
jeune François dont l’éducation est loin d’être scolaire :
Ayant continuellement sous les yeux « les objets intéressants & précieux qui
sont répandus dans ce Pays » et que récoltaient ses parents pour en faire commerce,
François devient entomologiste amateur. Il collectionne:
Je ne peux passer sous silence un épisode qui m’a stupéfié, car il préfigure la
découverte majeure faite en 1958 par le primatologue et psychologue américain Harry
F. Harlow (1906-1981), à l’origine de la notion d’attachement75, théorisée par le
pédiatre et psychanalyste Britannique John Bowlby (1907-1990) :
75
Harlow, Harry F. : « The Nature of Love » American
Psychologists, Volume 13 (12) :673-685, 1 décembre 1958
du schématisme. La colonisation est néfaste, estime-t-il ; les femmes hottentotes qui
vivent dans les grandes villes coloniales sont perverties par les colons, les marins, les
aventuriers. Pour connaître le pays il convient de s’enfoncer dans les terres et de vivre
au contact des populations. Il se fait des amis Hottentots. Mieux, il devient amoureux
d’une jeune femme Hottentote, belle séduisante et intelligente. Elle prend plaisir à sa
compagnie, folâtre, mais ne lui cède pas. C’est elle, raconte-t-il fort bien, qui réussit
avec une adresse qui l’étonne à lui faire détourner le regard des autres filles qui se
baignent et jouent nues dans la rivière. L’incident est important. Il s’inscrit dans le
vaste débat sur la sexualité et le regard, la liberté des mœurs et la liberté visuelle du
bon sauvage. Pendant longtemps certains esprits ont estimé que l’état de nature,
correspondant à un primitivisme heureux associait liberté visuelle et liberté sexuelle
note Hans Peter Duerr, la théorie de la civilisation qui domine dans notre culture
depuis le siècle des Lumières, affirme que, comparés à nous Européens d’aujourd’hui,
les membres des sociétés primitives auraient encore peu réprimé ou régulé leurs
pulsions et leurs émotions. Le travail de cet ethnologue spécialiste de l’histoire de la
culture à l’université de Brême s’inscrit en faux contre cette chimère théorique et
dénonce « le mythe du processus de civilisation. »76
Un jour, des éclats de rire bruyants excitent sa curiosité. Le Vaillant entend que
l’un de ses accompagnateurs raconte aux autres qu’il vient de faire une découverte
qui, si elle venait à ses oreilles ne le ferait pas tenir en place jusqu’au moment où il en
serait convaincu par ses propre yeux. Le tohu-bohu est tel qu’il envoie Klaas, son
compagnon Hottentot, d’aller voir ce qui se dit. Eh bien ! lui rapporte Klaas, ils ont vu
une femme qui avait le « tablier naturel », la fameuse macronymphie hottentote.
L’ornithologue consacre quatre pages, six mille caractères, et une illustration à la suite
de l’évènement. Car il veut se rendre compte par lui-même de ce qui court de façon
obsédante dans les ouvrages les plus divers. De nombreuses difficultés l’attendent :
Le copieux commentaire qui suit n’a guère d’intérêt dans la mesure où il reprend
diverses théories explicatives – s’agit-il d’un trait de nature, ou d’une hypertrophie
acquise à des fins esthétiques ? Il a le mérite de banaliser, sinon de dédramatiser ce qui
nous l’avons vu avec la Vénus Hottentote à occupé l’œil et l’esprit de tant de publics.
*
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*
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Nous reconnaissons, nous projetons plus que nous percevons. Les recherches de
psychophysiologie et en psychologie sociale sur la reconnaissance des visages sont à ce
propos particulièrement éloquentes. L’ensemble des études rejoignent le jugement
commun selon lequel « les étrangers se ressemblent tous ».78 La photographe
78
Vicki Bruce et Patrick Green : La perception visuelle – Physiologie, psychologie et écologie, Presses
Universitaires de Grenoble, 1993
américaine Taryn Simon a conçu son projet The Innocents (2003) à partir des erreurs
d’identification de présumés coupables, reconnus par des témoins sur des
photographies. La mémoire visuelle n’est pas fiable. En revanche, elle particulièrement
sensible aux sollicitations des fictèmes visuels. A cette impuissance perceptive se
combine son contraire, c’est-à-dire l’imagination perceptive notamment dans la relation
aux congénères. Les images de l’autre, rassemblées par Katérina Stenou à partir des
récits de voyageurs forment une collection d’êtres étranges, de monstres, de chimères
dont il est malaisé de distinguer le caractère pathologique ou racial, sinon raciste.79
Keith B. Senholzi, Jennifer T. Kubota : « Knowing You Beyond Race : The Importance of Individual
Feature Encoding in the Other-Race Effect », Frontiers in Human Neuroscience, 2011 ; Northwestern
University (2011, July 1) « Learning faces of different races : Clues to why ‘they’ all look alike. Science
Daily, Retrieved August 5
79
Katérina Stenou : Images de l’autre – la différence : du mythe au préjugé, Seuil/Éditions Unesco,
Paris, 1998
80
Jean-Jacques Courtine, Claudine Haroche : Histoire du visage XVIe-début XIXe siècle, coll.
Rivages/Histoire, Paris 1988
81
The study of human abilities: the Jen wu chih of Liu Shao, With an introductory study by John Knight
Shyrock
Volume 11 de American Oriental Series, American Oriental Society, 1937
82
Marc Renneville : Le langage des crânes – Une histoire de la phrénologie, préface de Georges
Lantéri-Laura, Collection Les empêcheurs de penser en rond, Institut d’édition Sanofi-synthelabo, Paris,
2000
83
G. Canguilhem : “ les idéologies scientifiques sont des systèmes explicatifs dont l’objet est
hyperbolique relativement à la norme de scientificité qui leur est appliquée par emprunt ”, Idéologie et
rationalité dans les sciences de la vie, Paris, Vrin, 1977, p. 44.
neurolinguistique, et plus récente, la synergologie84 de Philippe Turchet à prétention
universelle.
C’est sans doute pour échapper aux distorsions du regard des humains que les
Dieux sont invisibles.
84
Pascal Lardellier : Pour en finir avec la « synergologie ». Une analyse critique d’une pseudoscience du
« décodage du non-verbal », Communication, Vol. 26/2 | 2008.
Armindo Bião (UFBA)
Abstract: This paper is about the questions that arises when attending popular
festivals. Specially those festivals that where brought to the big cities by the artists and
educators looking for inspiration in popular culture, usually through theater, music and
dance activities. For instance the "Bumba meu Boi" which occurs for more than 20
years in the district of Butantã, Sao Paulo. Here I am analyzing it using the conceptual
tools of the contemporary art. Working with the hypothesis that the great interest in
the practice of traditional popular culture, from the nineties, is best understood if we
take into account the direction of the contemporary art of the same period. The
conceptual tools that were never used before to think the popular culture are here
mobilized. Among those is the concept of “ relational aesthetics” and “ post
production” created by the french critic Nicolas Bourriaud.
Introdução
85
Marianna F. M. Monteiro é professora do Instituto de Artes da Unesp, autora de Noverre: cartas sobre
a dança (Edusp,1998), Dança Popular: espetáculo e devoção (Terceiro Nome, 2012). Dirigiu os vídeos
Lambe Sujo uma ópera dos quilombos e Balé de pé no chão: a dança afro de Mercedes Baptista. É atriz e
pesquisadora de performance, teatro e cultura popular. Integra os grupos de pesquisa Grupo terreiro de
investigações cênicas: teatro, rituais, brincadeiras e vadiagens e o Núcleo de Antropologia da
Performance – NAPEDRA.
interesse de artistas e educadores que buscam inspiração e referências na cultura
popular para suas atividades de teatro, dança ou música. A proposta tem como
objetivo geral configurar ferramentas conceituais que permitam estabelecer
paralelismos entre as práticas da chamada arte contemporânea e iniciativas bem
sucedidas de transplante de tradições populares festivas para as metrópoles,
agenciadas por uma classe média recém iniciada nessas tradições.
Volto-me, inicialmente, para a análise de um caso concreto: a festa do Boi do
Morro do Querosene, um festejo concebido, nos moldes da tradição festiva do
Maranhão, que se realiza três vezes ao ano numa certa localidade do bairro paulistano
do Butantã e que congrega há mais de vinte anos artistas, estudantes e arte
educadores como seus principais promotores. Em torno do festejo, ao longo desses
anos, formou-se um público cativo, além de um flutuante que participa da festa,
eventualmente em um ano ou em outro.
Nesse artigo pretendo explorar a possibilidade e a fecundidade de se pensar
determinadas práticas festivas tradicionais, que têm lugar no contexto atual dos
grandes centros urbanos, a partir de conceitos gerados no bojo da critica de arte
contemporânea. No que diz respeito as ferramentas conceituais, interessou-me a
discussão levantada por Nicolas Bourriaud, na obra Estética relacional (1998), a
respeito das artes contemporâneas, em especial o conceito de estética relacional,
elaborado para a análise das manifestações artísticas que a partir da década de 90
configuraram, segundo esse autor, um novo sentido para as artes visuais 86. Tentarei
aqui, testar a fecundidade desse conceito e de seus desdobramentos na análise de
uma festa tradicional transplantada para a grande metrópole, na mesma década.
Antigas tradições populares, sempre ligadas às devoções católicas, fenômenos
festivos multifacetados, em geral voltados para o festejo de algum dia santo, alguma
data religiosa, consolidam-se em novos contextos, junto a novos agentes sociais,
estabelecendo novos equilíbrios entre tradição e modernidade. Sem deixar de remeter
aos elementos tradicionais, esses festejos perpetuam-se nas grandes cidades
habitando territórios ideológicos muitos diferentes daqueles onde tais práticas se
desenvolviam até então.
O confronto entre essas manifestações de arte popular com os rumos que
tomaram as artes contemporâneas, na passagem do século XX ao XXI, me pareceu
instigante e intrigante. O que implica em evitar, de saída, pensar tais manifestações de
arte em nichos separados. Acredito que as tensões e intercâmbios entre elas seriam
parte constituinte das próprias dinâmicas intrínsecas a cada uma delas. A própria
distinção entre os dois âmbitos artísticos, o da arte contemporânea e o da arte
popular, fica, nesse caso, relativizada.
Importante ressaltar, do um ponto de vista da contextualização histórica dos
dois fenômenos culturais, que o crescimento vertiginoso do interesse dos jovens de
classe média nos grandes centros urbanos pelas manifestações tradicionais populares,
até então desprezadas enquanto resquícios arcaicos e anacrônicos, cresceu
significativamente a partir da década de noventa e foi concomitante às novas
tendências nas artes visuais, justamente as que o conceito de arte relacional pretende
dar conta. A transposição de tradições populares para o âmbito das sociabilidades
metropolitana é um fenômeno cultural potente que se fez presente nos principais
86
Cf. Nicolas Bourriaud. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes,2009.
centros urbanos brasileiros sobretudo a partir da década de 90, como processo de
recontextualização de antiga tradições e, o que chamou minha atenção, esse processo
se deu paralelamente às transformações ocorridas nas práticas da chamada arte
contemporâneas.
Do ponto de vista dos agentes, tanto os criadores, quanto os fruidores
envolvidos com tais manifestações artísticas, as distinções entre os dois âmbitos
artísticos, da arte contemporânea e da arte popular, deve ser relativizada, tendo em
vista a circulação efetiva de práticas, idéias e discursos, para além de quaisquer
irredutibilidades entre esses dois campos, ainda que o reconhecimento dessas
separações possa muitas vezes informar os discursos e a compreensão que os próprios
agentes têm de suas práticas.
Os participantes dessas festas tradicionais, que têm lugar nos grande centros
urbanos, confundem-se com os agentes envolvidos com a arte contemporânea, seja as
artes visuais, seja a dança ou o teatro contemporâneo, seja a música ou a
performance. Os dois tipos de manifestação artística estão presentes no universo
cultural da classe média instruída, capaz de manejar com destreza códigos que
pareciam até então irredutíveis.
Vejamos, em primeiro lugar, o arcabouço conceitual proposto pela critica de
arte contemporânea por meio do conceito de estética relacional, quais as
características dos fenômenos artísticos aos quais se aplica, quais as leituras propostas
por essa crítica, como os concebe no interior de uma certa visão do desenvolvimento
da arte no século XX. A seguir, uma breve descrição de certos aspectos da Festa do Boi
no Morro do Querosene pretende apontar para confluências interessantes e para a
pertinência da utilização de quadros conceituais comuns à análise de fenômenos
artísticos aparentemente tão distintos. Para finalizar, apresento uma serie de
considerações surgidas da aproximação entre arte contemporânea e novas prática de
cultura popular tradicional, o que aponta para novas formas de analisar e
compreender essas festas populares.
Estética Relacional
O conceito foi criado pelo crítico e curador de arte francês Nicolas Bourriaud,
antigo diretor do Palais de Tokyo, templo da artes visuais contemporâneas em Paris.
Na obra acima citada, esse autor desenvolve o conceito de estética relacional que
havia sido utilizado pela primeira vez no texto do catálogo da exposição “Traffic”da
qual ele próprio era o curador.
A teoria elaborada a partir do conceito de estética relacional pode ser definida
como uma plataforma estética e método crítico com base na detecção de certa
sensibilidade compartilhada por alguns artistas contemporâneos, com os quais o
crítico se identifica. Bourriaud tenta criar ferramentas de análise que permitam dar
conta de uma série de atividades artísticas que marcam as artes visuais
contemporâneas. Trata-se de elaborar um discurso teórico capaz de esclarecer “quais
são os verdadeiros interesses da arte contemporânea, suas relações com a sociedade,
a história e a cultura”. (BOURRIAU, 2009:9).
A primeira questão colocada por Bourriaud diz respeito a forma material dessas
produções artísticas, cujo caráter processual, comportamental parece estilhaçar os
padrões tradicionais da obra de arte. Ele tem em mente iniciativas que marcam uma
certa produção artística da década de 90 que têm como característica embaralhar arte
e vida. É o caso do trabalho do argentino Rirkrit Tiravanija que, em 1992, transformou
a sala de exibição e escritório da Galeria de Arte 303, em Nova York, em um espaço
para encontros sociais. Apresentou na sala vazia da exposição dois potes de curry e um
de arroz para oferecê-los como almoço aos visitantes, armazenando no escritório da
galeria os outros ingredientes para a preparação da refeição, assim como suas sobras,
que mais tarde seriam convertidas em obras, fotos e vídeos para documentar essa
situação.
O mesmo artista, em 1998, no projeto intitulado The Land implementa numa
propriedade na Tailândia um laboratório de teste para novos modos de vida, novos
modos de engajamento social, sob monitoramento de uma universidade local.
Desenvolvendo fontes de energia alternativa, retomando formas tradicionais de
colheita tailandesas, num projeto que, segundo o próprio artista, tem um nítido fim
social, inclusive distribuindo os frutos da colheita a famílias de vítimas da aids. Outro
caso citado por ele é o do artista Philippe Parreno que convida pessoas para praticar
seus hobbies favoritos, no primeiro de Maio, numa linha de montagem industrial.
Segundo Bourriaud, a arte dos anos noventa estaria reagindo à volta às
linguagens da tradição, à volta a pintura, à escultura, característica da década anterior
(tem em mente o novo expressionismo da década de 80), procurando novamente
romper com essas linguagens, retomando a confluência entre arte e vida, proposta
pelas vanguardas históricas do começo do século e pelos happenings e body-art da
década de 60.
Não caberia aqui apresentar a discussão levantada por Bourriaud sobre as
relações entre essa arte de caráter processual e comportamental, com as propostas
modernistas seja as da Bahaus, seja as do Surrealismo ou do Dadaísmo. Fiquemos
apenas com sua hipótese de que esses processos artísticos, de finais do século XX,
correspondem a uma nova modalidade de embaralhamento entre arte e vida, que não
assume as mesma estratégias vanguardistas, principalmente por afastarem-se de
qualquer pretensão à ruptura ou à utopia. Tratar-se-ia de:
87
O termo interstício foi usado por Marx para se referir a comunidades de troca que escapavam do quadro
da economia capitalista, que fugiam a lei do lucro: escambo, venda com prejuízo etc
O interesse em recuperar tradições culturais brasileiras no contexto da cultura
moderna é antigo, permeia a própria constituição da arte moderna brasileira; o que
parece novo agora é a tônica no encontro comunitário, na festa. Ao longo do
desenvolvimento da arte moderna brasileira, traços estilísticos das formas de arte
popular interessaram os artistas cultos, que os deslocaram no sentido de contribuir
para a elaboração formal de produtos artísticos no campo da arte brasileira. O que se
verifica agora é o aproveitamento dessas tradições na construção de espaços de
sociabilidade, de conviabilidade, que visam o estabelecimento de territórios
comunitário engendrados a partir dessas tradições, sem que necessariamente haja um
preocupação em realizar propriamente uma releitura dessas expressões populares
tradicionais.
Em detrimento da preocupação com a elaboração de uma obra artística
original, constituída no interior da separação palco/platéia ou artista/público, o que
atrai nessas festas é a possibilidade de participação coletiva numa experiência que
extrapola os limites das diferentes linguagens artísticas e que se volta para ao
compartilhamento de vivências comunitárias. Configuram-se redes de participação que
contribuem para a realização das diversas instâncias da festa. Os diversos momentos
da festa são alinhavados pela música, pela dança pelo teatro, mas o que está em jogo é
muito mais que a mera produção ou fruição dessas artes.
Numa festa popular, ainda que metropolitana, se come, se reza, assumem-se
papeis rituais que, por sua vez, também se conectam a outras tantas trocas materiais e
simbólicas. A confecção de figurinos, decorações e enfeites, a composição musical, o
aprendizado das danças nascem de um cem número de encontros e vivências que
ocorrem nos interstício dos dias festivos e parecem manter conectada toda uma
comunidade ao longo do ano inteiro. A compra dos ingredientes, o preparo da comida
ritual na véspera da festa interconectam os participantes; papéis são distribuídos e
promovem-se interações que vão na contramão dos vetores de relacionamento social
próprios das relações mercadológicas dominantes nas sociedades pós-industriais.
Do ponto de vista da expressão artística, seja ela musical, teatral, plástica ou
coreográfica, a dimensão autoral apaga-se frente a dominância do aspecto
comunitário e participativo. Seguindo o padrão secular dessas tradições populares, a
questão da originalidade e da inovação artística não tem nenhuma relevância, o novo
surge apenas como decorrência das dinâmicas festivas concretas e de seu contextos,
não se constitui em elemento de valorização artística, ao contrário, muitas vezes o que
se verifica é a busca do tradicional, do supostamente autêntico, no transplante de
tradições de outras regiões e contextos.
Essas manifestações de cultura popular tradicional sempre ocorreram em
contextos festivos e a elaboração de uma “tecnologia” festiva é algo que foi se
constituindo ao longo de décadas e até mesmo de séculos, o que é novo é sua
revalorização e retomada no contexto de uma sociedade dominada pela cultura de
massa, como uma forma de renascimento de sociabilidades comunitárias, num
contexto que até recentemente parecia rejeitá-las. Estas festas populares, agora re-
atualizadas, apropriam-se de saberes e fazeres muito antigos, trazendo-os para o novo
contexto de forma a "inovar" repetindo.
A partir desse pano de fundo inspirado pela noção de estética relacional,
vejamos mais de perto alguns dos elementos que compõem uma dessas celebrações: a
festa do Boi no Morro do Querosene, que se converteu numa verdadeira tradição da
cidade de São Paulo.
Entre os promotores e responsáveis por essa festa sempre houve a intenção de
reproduzir práticas e procedimentos tradicionais das festas maranhenses. Um primeiro
aspecto, a ser destacado nessa repetição, diz respeito a temporalidade da festa.
Repetindo-se ciclicamente, ao longo dos anos, a festa se desdobra em três grandes
encontros anuais: o Nascimento do Boi, o Batizado do Boi e a Morte do Boi88 . Essa
estrutura em três tempos é a reprodução da seqüência tal qual ocorre na tradição
maranhense. Trata-se de apoderar-se de modos pré-existente, repetindo suas
formalizações de forma a fazer funcionar no novo contexto um itinerário cultural pré-
existente.
No caso da temporalidade que é dada pelo recorte anual, a qualidade que
parece mais relevante é a recuperação de um tempo cíclico, em meio a uma sociedade
impregnada pela noção de progresso, portanto por uma temporalidade que se quer
ascendente e linear. O Boi propõe aos paulistanos a relativização dessa dinâmica que
representa antes de tudo o constante sucateamento de experiências que se esvaem,
onde predomina o sentido do sucateamento da vida e das relações interpessoais. A
repetição desse ciclo do boi a cada ano é a garantia da vivência de uma temporalidade
cíclica, em que perspectivas de compartilhamentos e relacionamentos se transformam
radicalmente a partir dela. Há sempre a promessa de reencontros, a possibilidade de
percepção das transformações, crescimentos, transmutações sem necessariamente
esquecimento das fases anteriores.
O nascimento, a vida e a morte do boi, seguida de sua ressurreição propicia a
vivência de uma temporalidade que está nas antípodas daquela vivida nos termos
dominantes de nossa sociedade que se propõe constantemente a instaurar a
novidade, embora o faça por meio da repetição velada.
A retomada ao longo de cada ano desse três momentos de festa,
paradoxalmente, permite perceber o crescimento e as transformações, no contraste
com o pano de fundo dessa circularidade, onde se torna possível assenhorar-se desses
movimentos sem ser ultrapassado e superado alienadamente por ele. Os “boieiros”
tiram férias desse tempo voraz, consumidor e consumista, para gozar da dinâmica da
morte e renascimento dum boi a cada ano. A vontade e a conquista de uma festa que
se repete a cada ano “ igual-diferente”, interrompe o afã da originalidade e do novo.
Quebra-se com o que Otavio Paz chamou a tradição do novo.89
Além das três festas que compõem o ciclo anual, cada uma delas se divide em
um numero preciso de partes que são as mesmas nas três celebrações. Apesar do
sentido diferente de cada uma dessas festas, as três apresentam a mesma seqüência
de “movimentos”, para utilizarmos uma linguagem musical. Numa festa de boi,
segundo a ordem em que aparecem na festa, temos basicamente três momentos : o
“guarnecer”/ o “lá vai”/ o“ dona da casa”. No âmbito desse artigo gostaria de destacar
88
No Morro do Querosene, o Nascimento do Boi quase sempre é festejado no sábado de aleluia, que no
calendário católico é o fim da quaresma. As duas outras festas não têm uma data fixa, embora a festa do
Batizado do Boi deva necessariamente ocorrer durante o ciclo das festas juninas. A Morte do Boi é
festejada mais perto do fim do ano.
89
Cf. Octavio Paz. Os filhos do barro-do romantismo às vanguardas. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984.
a primeira fase da festa: o “guarnecer” que me parece paradigmática de uma arte
relacional.
O Guarnecer
O Guarnecer é o grau zero da brincadeira: o início. A festa inicia-se por ele.
Uma série de intensidades produzem-se a partir dele, trata-se literalmente de
acumular forças. O primeiro momento da festa, no primeiro momento do ciclo anual,
significa um “guarnecer” em toda sua potência: de alguma forma, pode-se dizer que a
festa do Nascimento do Boi, no sábado de aleluia, é um “guarnecer”, se a referência
for o ciclo anual completo das três festas. Depois da interrupção da quaresma o Boi vai
renascer, a festa vai voltar a acontecer. Com o Nascimento do Boi guarnecemos,
acumulamos intensidades, para darmos início a um movimento que durará o ano
inteiro. O guarnecer, num sentido mais próprio e restrito, é o primeiro momento de
qualquer uma das três festas, relaciona-se à fogueira, onde aquecem-se os
instrumentos percussivos: os pandeirões e o tambor onça90, em torno da qual a
multidão vai aos poucos se aglomerando. É o momento inicial da festa: de reunião de
forças, o momento em que a comunidade e os visitantes unem-se e tornam-se co-
responsáveis pela festa: assumem os versos, as canções, os passos de dança etc.
Em torno da fogueira, onde está sendo aquecido o couro dos instrumentos
percussivos para afiná-los, os brincantes se confraternizam. O cantor solista puxa,
inicialmente a capela, as primeiras toadas. O número de brincantes aumenta, pouco a
pouco, misturados à assistência que também rodeia fogueira; a resposta às toadas
ganha corpo com a participação de todos que repetem a chamada do solista. Na
segunda ou terceira repetição desse diálogo entre cantor solista e coro, este composto
tanto por brincantes quanto pela assistência eventual, o solista começa a pulsação de
seu maracá (chocalho com cabo) e é imediatamente acompanhado pela entrada de
toda a percussão, já devidamente aquecida e afinada pelo calor da fogueira.
Durante o “guarnecer” as toadas novas são mostradas, experimentadas em
grupo pela primeira vez. É testada a capacidade de se imporem ao coletivo e o
resultado dessa experimentação define muitas vezes a forma musical. Como nos revela
André Bueno91, toadas muito longas acabam tendo somente o refrão memorizado.
Pode-se, nesse sentido, afirmar que a fixação de uma toada se dá pela mobilização do
coletivo. É no momento do “guarnecer” que se instaura uma negociação entre o coro e
o solista, da qual depende a forma final da expressão musical. O “guarnecer” marca a
presença estruturante do coro já que, no âmbito musical, guarnecer é conseguir as
vozes coletivas em diapasão com a voz solista e delas com a percussão. (BUENO:
2001). Fazer, fazendo: cantando, tocando e , finalmente dançando. Depois de
90
Na tradição maranhense do Bumba-meu-boi são utilizados diferentes instrumentos musicais, de acordo
com os diversos estilos ou “sotaques” existentes nessa tradição. No caso da festa aqui analisada, trata-se
do estilo ou “sotaque” conhecido como sotaque da ilha (Ilha de São Luís). Nessa tradição são utilizados
os chamados pandeirões (pandeiros grandes sem platinela), maracás de metal, as matracas (duas tabuinhas
percutidas uma na outra) e o tambor onça, uma espécie de cuíca rústica, de sonoridade muito grave, feita
de um tronco de árvore escavado. Tanto o pandeirão, quanto o tambor onça são afinados na fogueira, já
que não possuem nenhuma outra forma de controlar o maior ou menor estiramento do couro que não a
dilatação da madeira pelo calor.
91
Cf. André Paula Bueno. O bumba-boi maranhense em São Paulo. São Paulo: Nankim
Editorial, 2001.
“firmado” o canto e integrada a percussão, a última coisa que se agrega é a dança que
vai aos poucos se organizando a partir de uns tanto padrões coreográficos.
É o renascimento do boi confundido com o renascimento da festa. Na prática,
nesse início da festa, trata-se de acumular forças de reunir o grupo de novo, de ajustar
papéis, confrontar toadas, balancear as danças e energias das figuras cômicas e
grotescas. Uma toada bastante significativa vai dizer:
92
Como não pensar em Felix Guattari quando afirma que a singularização corresponde a operações de
corte, distanciamento, dissenso, sempre parciais frente a um sistema hegemônico e global relacional e
informacional . Para Guattari, o capitalismo é o inimigo e como médico psiquiatra, propõem uma cura
parcial, com objetos parciais. (DELEUZE &GUATTARI: 1997)
é descobrir o que se pode fazer com o que já se tem. Trata-se de produzir
singularidade a partir de referenciais tradicionais. A pratica da dança, do canto, da
música já não está preocupada em superar alguma forma antiga, o que se busca não é
mais um produto final original, mas uma nova orientação, novas combinações no
interior de informações pré-existentes.
Bibliografia
Certamente era uma tarefa difícil tentar enquadrar num mesmo arcabouço
conceitual, estético ou mesmo sociológico a diversidade de linguagens e a
extraordinária riqueza da criação de pintores, ceramistas e escultores da madeira de
diferentes partes do Brasil apresentados naquela exposição. Mas partiu-se como
princípio da constatação óbvia de algumas coisas que todos eles têm em comum. Na
maioria das vezes, trata-se da experiência de um passado de trabalho rural antes de se
descobrirem – serem descobertos! – artistas e, mesmo no caso de uma história em
meio urbano, o partilhar, como os demais, de uma condição de vida humilde,
ocupados em trabalhos de natureza manual e mal remunerados. Louceiros, roceiros,
lidadores de gado, pedreiros, carroceiros, vendedores de ferro velho, seguranças – eis
o que encontramos nesse universo. Muitos aprenderam nesses ofícios o domínio de
93
Instituto do Imaginário do Povo Brasileiro (org.) Teimosia da Imaginação – dez artistas brasileiros. Prefácio
Rodrigo Naves. Textos Maria Lucia Montes. Fotos Germana Monte-Mór. São Paulo, Ed. Martins Fontes , 2012.
seu material e dos instrumentos de sua arte, que manejam com admirável maestria. E,
como tradição de família, muitos transmitem generosamente aos filhos, netos e
vizinhos o ensino de sua arte. Mas a criação ela própria é, para eles, quase sempre, um
dom, quando não fruto de uma revelação mística, ao que se acrescenta, depois, uma
vida de dedicação e trabalho árduo a serviço dessa dádiva.
Todavia, é preciso reconhecer, como faz Eduardo Subiratz, que esta arte
“popular” não se pauta por parâmetros estéticos que são os nossos conhecidos. É que,
no centro de sua criação, esses artistas afirmam insistentemente o poder da
imaginação e ela tem por referência uma visão de mundo peculiar. Por certo, ela está
firmemente ancorada na realidade da sociedade contemporânea em que vivem esses
artistas, e cujas desigualdades são perfeitamente claras para eles, sabendo-se parte de
um mundo de exclusão social, do qual a arte com frequência os redime. Mas ela deixa,
no entanto, ver como seus traços distintivos marcas bem precisas de amplos processos
de formação histórica:
A se levar a sério essa arte, é necessário, portanto, aprender o que nos ensinam
os próprios artistas “populares” sobre sua criação, o que nos obriga a nos deslocarmos
para outras paragens do conhecimento se quisermos compreender a poética que se
explicita em suas obras, procedendo a uma “ruptura epistemológica” que, de maneira
paradoxal, só um racionalista como Gaston Bachelard poderia nos fazer empreender,
ou, de uma perspectiva mais ampla, uma antropologia que busca desvendar
antiquíssimas cosmologias africanas ou ameríndias, nos trabalhos de um Pierre Verger
ou de outros, que vão da obra seminal de Castañeda ao perspectivismo de Eduardo
94
Eduardo Subiratz. El último artista. Arte popular y cultura digital. Arquitextos, São Paulo, 05.056,
Vitruvius, jan 2005 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/05.056/508/pt>.
Viveiros de Castro ou a visão holográfica do conhecimento que Roy Wagner vai buscar
no xamanismo, da Nova Guiné à Mesoamérica.
É preciso, portanto, começar por entender em que consiste a imaginação de
que se dizem devedores esses artistas e o que o imaginário em que navegam nos
revela da poética de sua criação. Sabemos que, ao longo da história da cultura
ocidental, a imaginação foi sistematicamente relegada a um segundo plano, mal vista e
mal afamada, de Platão a Descartes, em beneficio da afirmação de um racionalismo
que marca nossa visão do conhecimento, da ciência e da técnica como domínio da
natureza, derivando daí os valores que hoje caracterizam nosso modo de vida. E, antes
de tudo, é preciso afirmar que os artistas populares de que aqui tratamos têm com a
natureza uma relação muito distinta, seja pela proximidade que com ela mantêm em
razão de sua experiência de vida e do material de sua criação, seja em razão de uma
visão particular do sagrado ou até mesmo, no meio urbano, de uma espécie de
consciência ambiental raramente encontrada no segmento social a que pertencem.
Isto é o que desequilibra os termos da relação sujeito/objeto tal como nos
acostumamos a concebê-la para falar do conhecimento do mundo e, ao mesmo
tempo, é o que assinala um lugar diferencial para a imaginação e o imaginário que
sustentam a criação popular. Na verdade, mesmo a tradição do pensamento ocidental
já fora obrigada a por em questão o estatuto da imaginação em relação à razão
quando, no século XIX, a psicologia começa a se desenvolver como ciência autônoma,
levando a tomar as antigas faculdades da alma – sensação, percepção, reflexão,
memória, imaginação, volição, raciocínio, sentimento etc. – como objeto de estudo, ao
que a psicanálise viria a acrescentar depois mais um desafio, ao designar um novo
lugar para o sujeito – o sujeito do inconsciente – na criação da “realidade” de seu
mundo. Instaurava-se assim uma relação complexa entre os termos que a partir de
então deveriam fazer parte do entendimento da imaginação e do imaginário – como
instância de produção e produto do “sujeito” e do “real” no seu entorno – situado
entre o corpo e a mente, o psiquismo individual e a vida social.
É desta reviravolta epistemológica propiciada pelo nascimento da psicanálise,
somada à revolução da Física pela teoria da relatividade de Einstein, que deriva a dupla
tarefa que se impõe Bachelard. De um lado, o mais ferrenho racionalista, a exigir um
absoluto rigor na definição dos processos de descoberta científica, na certeza de que
suas verdades são sempre provisórias e se constroem por sucessivas aproximações, a
partir de questões que representam diferentes pontos de vista, ocasionando assim a
quebra de um paradigma anterior. De outro, o maravilhoso e voraz leitor de poesia
que busca desvendar a magia de sua criação pelos meandros da imaginação, do
devaneio e do sonho. Suas sutis modalidades e variações mal encontram palavras que
as traduzam. A poética do devaneio (rêverie). A psicanálise do fogo. A água e os sonhos
(rêves). O ar e os sonhos (songes). A terra e os devaneios da vontade. A terra e os
devaneios do repouso. A poética do espaço. A dialética da duração. São ensaios sobre
a imaginação da matéria, do movimento, das forças, das imagens da intimidade, além
do espaço e do tempo, que a filosofia kantiana tem como condição determinante de
nossa apreensão do mundo. No cerne da reflexão estão os quatro elementos da
natureza, buscados como princípios de formação e transformação do mundo na mais
longínqua tradição da filosofia pré-socrática, na obra de Empédocles de Agrigento: a
água, a terra, o fogo e o ar. Deles Bachelard extrai não só uma poética, mas uma ética,
uma estética, uma visão de mundo, um temperamento, uma postura diante da vida. E
ainda que fale de poesia, sabe melhor do que ninguém que trabalha em um domínio
que é também o das artes plásticas, ao tratar da imaginação da matéria:
O que são, pois, as artes plásticas em suas expressões mais acabadas senão
alguma forma de manifestação da imaginação da matéria? O que é a pintura senão o
trabalho da cor que se espraia em um meio líquido, óleo ou água, pura ou acrescida de
matéria química, sobre um dado suporte? O que é a escultura, senão o esforço da mão
que entalha a pedra ou a madeira que lhe resistem ou apenas as libera do acréscimo
desnecessário da matéria que esconde a forma nelas já inscrita? A cerâmica, senão o
trabalho conjugado dos quatro elementos, barro, terra e água, ar da secagem, fogo da
queima? A mais profunda poética da criação plástica se nutre de imagens arcaicas, que
são aquelas que, na esteira de Bachelard, Gilbert Durand, ao estudar as estruturas
antropológicas do imaginário, afirma terem sido formadas em primeiro lugar no
espírito do homem quando confusamente ele percebeu o mundo como algo distinto
de si próprio, obrigando-o a tomar consciência de si, ao descobrir a passagem do
tempo e a perspectiva da morte, e forçando-o a buscar, contra a angústia da finitude,
significado para as coisas e as palavras, sentido para sua experiência do mundo e para
sua própria existência.
95
Gaston Bachelard. L´eau et les rêves: Essai sur l´imagination de la matière. Paris, Corti, 1942.
prospectivo que, através de todas as estruturas do trajeto
imaginário, tenta melhorar a situação do homem no mundo.
(...) Todavia, esta eufemização verga-se também ao
antagonismo dos regimes do imaginário, [diversificando-se],
às portas da retórica, em antítese declarada quando
funciona no regime diurno ou, pelo contrário, através da
dupla negação, em antífrase quando depende do regime
noturno da imagem.96
96
Gilbert Durand. As estruturas antropológicas do imaginário. Lisboa, Editorial Presença, 1989.
É nesse registro que podemos tentar esboçar o perfil de um universo comum
aos artistas apresentados na exposição Teimosia da Imaginação. Em termos das
estruturas profundas do imaginário e da imaginação da matéria que comanda sua
criação, independentemente de sua natureza, suporte ou linguagem, talvez seja
permitido falar de um contínuo que parte das formas mais próximas à matéria
originária da invenção do sentido do mundo – a experiência da finitude e da
degradação e a angústia da morte – até as expressões mais articuladas do contexto
social em que se dá a criação artística, e num gradiente que vai da relação mais direta
do contato com a natureza no meio rural até a condição de vida em uma grande
metrópole. É, pois, a experiência desses artistas em seu processo de criação que leva a
pensar em um imaginário próprio à “arte popular”. O que gostaria de argumentar aqui
é que tal experiência se constrói como um drama que se atualiza na tensão entre as
necessidades da sobrevivência, às quais seu trabalho deve prover, e a força do talento
criador que os leva, numa zona de liminaridade, em outra dimensão de espaço e
tempo, a dialogar em níveis profundos com imagens arcaicas que ganham forma como
obras de arte graças à imaginação da matéria, tal como enunciada por Bachelard.
Não há como “explicar” essa experiência a quem, distante desse universo,
levanta questões “estéticas” sobre seu processo de criação ou se eles se veem como
“artesãos” ou “artistas”. Confrontados com essas abstrações, eles nos revelam a lógica
necessária à compreensão da experiência sensorial, emotiva e afetiva que vivenciam
como forma própria de conhecimento sensível do mundo. Assim, eles se limitam a
alinhavar, umas após outras, pequenas histórias de situações concretas que devem,
por alusão, metaforicamente, e de maneira exemplar, mostrar o significado de sua
criação. Isso, quando não tomam de suas rudes ferramentas e se põem a trabalhar
diante dos nossos olhos: “Só mesmo você vendo pra entender”. A performance do ato
criador torna-se, assim, a única forma possível de expressão do drama que está no
cerne de sua experiência de vida. Performance narrativa, primeiro, ao tentarem
exprimir em palavras o sentido dessa experiência. Performance concreta, depois, no
diálogo entre a mão que trabalha e a imaginação da matéria que informa sua criação.
Procurarei aqui evidenciar esse processo a partir do exemplo da arte do
escultor José Bezerra que, em seu trabalho, leva às últimas consequências a lógica da
performance que o sustenta, somando à sua condição de artista plástico também a de
compositor, músico e cantor. Ex-lavrador nascido em Buíque, próximo ao sertão
pernambucano, descendente de índios Fulni-ô de Águas Belas, Zé Bezerra incorpora
antiquíssimas heranças de seus antepassados à criação de sua arte e redescobre a
força de um imaginário primordial que o faz tirar da natureza as suas lições. Seu
trabalho traduz um processo quase literal de fusão cósmica na natureza que o cerca,
da qual emerge a obra por assim dizer já criada e que, como um xamã, ele convoca à
existência apenas revelando na madeira a forma nela inscrita. Não há, pois, naturezas-
mortas nesse universo, que é pura celebração da vida, a ser cantada e dançada por
quem têm olhos para vê-la na matéria aparentemente inerte. Tudo é sonho e devaneio
nesse mundo que acolhe outro tipo de certezas e que, na densidade etérea do ar e na
fluidez do fogo, faz o artista espreitar com o rabo do olho a forma viva de bichos e
antepassados, na imaginação de um movimento que é permanente transformação,
num tempo indiferenciado.
Deixemos, no entanto, falar o próprio artista que nos revela o sentido de sua
criação. O cenário onde vamos encontrá-lo evoca um tempo do começo do mundo.
Formações rochosas de estranhos desenhos, cânions, cavernas, paredões de arenito
multicoloridos escavados pelo vento, vegetação de caatinga, com variadas espécies
animais. Inscrições rupestres registram a ocupação humana pelo menos há dois mil
anos. Vale do Catimbau, entre o agreste e o sertão de Pernambuco. Catimbau quer
dizer “cachimbo velho pequeno”, coisa de feitiçaria em terra de caboclo. Em direção
ao São Francisco, por ali até hoje vivem Kapinawás, Xucurus, Fulniôs, Pancararus. Foi
ali que nasceu José Bezerra, que um dia um sonho – uma visão – revelaria como um
extraordinário artista. Deixemos que ele nos conte sua história.
Desde então, algo mudou em Zé Bezerra. Ele passou de fato a ver a natureza e,
procurando entender seu idioma cifrado, precisou aprender a vivenciar outro tipo de
experiência. A natureza fala e Zé Bezerra vai registrando fragmentos de histórias que
não separam os bichos e os seres humanos, nesse mundo onde tudo está vivo nos
troncos mortos da mata, à espera de um olhar ou de uma escuta, que explodiriam
depois como criação em sua obra.
Eu me entreguei de corpo e alma, e agora eu vejo tudo e lhe
mostro onde ta gambá, cabeça de passarinho, homem com
os braço aberto, onde tem a cobra curva, onde tem o
formato de um peba, tatu, mocó, tudo isso tem em madeira
nos tronco que ta perdido lá no mato, que morreram.
Morreu, mas aquilo ta vivo. É que o povo não entende, só na
minha linguagem, no meu trabalho, eu vou entender. E tem
que explicar o que é, que você não vai saber nunca. A
natureza é viva. Pode o tronco ta morto, mas dentro tem
coisa viva.
Tem que ver dentro da mata, coisas que tem guardada que
ninguém ainda entende, mas eu durmo pouco e vejo mais, e
essas peça são muitas. Não é tão fácil, mas a gente vai se
encontrando. Olhando, vou vendo o que a natureza pode me
mostrar. Esse é um... camaradinha que passou muita fome,
com certeza ta por ali. Esse aqui já tem até... o pintinho... tá
vendo aí? Nem todo mundo pode ver as coisa que esses
meus olhos me mostram. Se for pra juntar todos que têm
formato de tudo quanto é coisa, vai andar muito... Mas tudo
isso aqui – um pássaro, um gavião, um braço aberto, um
aleijado – são as coisa que meus olhos vão vendo. E eu não
ando muito pra encontrar. As coisa ta tudo aqui na mata,
ninguém viu, ninguém sabe, mas o Zé Bezerra vai
devagarzinho trazendo, pra que tenham ainda um canto de
respeito, pra se comunicar a todo mundo.Vamos ver esta
abandonada aqui, ela vai me dizer qualquer coisa.... mas fica
quietinho, né? – Ah, você não ta apoiada, fica aí!E essa :– Tu
ta com essa dor, ô minha bichinha? Fique aí você também,
com esse biquinho muito provocado, depois eu lhe recolho
pra casa! Eu vou entrar aqui pra pegar a cabeça de um bicho
que eu vi. Tinha muitos anos que eu tinha vontade de passar
num lugar que eu via um formato de um bicho, eu não sabia
que fosse aqui...
Por isso não há como adentrar essa outra realidade onde se encontram tais
formas que vivem para além da vida sem os devidos ritos, porque tudo tem dono e é
preciso conhecer os seus modos, seu poder e seus preceitos. Espíritos tutelares velam
pela natureza em toda parte.
Há aqui mais do que o trabalho de um grande artista, que talvez não seja
preciso resgatar ao preconceito contra a chamada “arte popular” por meio de sua
comparação com a arte erudita. Sua obra, tal como a dos demais artistas populares, se
sustenta por si mesma, pela força do imaginário de onde emerge e que não se deixa
facilmente apreender pelas categorias estéticas da chamada “alta cultura”. Não é de
estética apenas que se trata, mas de forma de conhecimento do mundo –
conhecimento da natureza, conhecimento filosófico, metafísico, ético, estético,
religioso e o que mais se quiser acrescentar à lista. Uma forma outra de conhecimento,
que passa por uma experiência sensível de apreensão qualitativa do mundo e que, em
termos antropológicos, nos remete a cosmologias africanas e ameríndias, ao axé que
faz existir todas as coisas, ou às formas de energia da natureza que se
metamorfoseiam nas formas humanas da cultura. A não ser pela mediação de uma
experiência total do corpo e da alma, não há como alcançar esse conhecimento, ao
mesmo tempo “racional”, de tipo “científico”, ou “estético”, como talvez fosse aqui o
caso – que conecta causas e efeitos, necessário à sobrevivência material cotidiana do
homem ou à avaliação crítica das suas obras de arte – e “espiritual”, necessário à
experiência integral do significado da vida humana e da criação das obras de arte.
Como o xamã, o artista vive a assombrosa liberdade do processo de criação,
com suas tensões e alegrias, numa situação de liminaridade em relação ao espaço e ao
tempo em que se encontra, entre dois mundos, talvez quase em um estado alterado
de consciência como aquele que El Mescalito propicia a Castañeda, como condição de
aprender os ensinamentos de Don Juan, que lhe fala do antiquíssimo saber Tolteca das
culturas mesoamericanas. E o extraordinário efeito desse “delírio controlado” é a
descoberta de que os dois mundos, do cotidiano e do imaginário ao qual se entrega,
não são opostos, mas se espelham, ou mutuamente se imbricam, como as figuras de
uma geometria fractal se reproduzem mantendo a mesma relação de proporção, ainda
que em escalas diferenciadas e variações infinitesimais. É preciso, portanto, apenas
“varrer a ilha do tonal”97, nosso conhecimento “racional” e “pragmático” do mundo –
aquele que apreendemos pelo lado direito, já que é com a mão direita que com ele
lidamos, e que nos assegura que a realidade e nós mesmos somos aquilo que nos foi
ensinado pela nossa cultura e nossa civilização – para se ter acesso a essa outra forma
de conhecimento do lado esquerdo, o “nagual”, a “bruxaria” do xamã, que nos mostra
o mundo de outra perspectiva. Ver-se-á então uma “realidade” que pode ser a que
conhecemos e também simultaneamente outra, tal como num mundo perspectivista
das cosmologias ameríndias, povoado de muitas espécies de seres, humanos e não
humanos, todos dotados de subjetividade – “deuses, espíritos, mortos, habitantes de
outros níveis cósmicos, plantas, fenômenos meteorológicos, acidentes geográficos,
objetos e artefatos”98 – que, todos eles, nos compreendem e nos veem de modo
simétrico e inverso àquele pelo qual os vemos, numa reciprocidade de perspectivas:
nesse universo, todos são gente. É desse ponto de vista que se embaralham as
fronteiras epistemológicas estabelecidas pelo nosso saber entre “natureza e cultura,
universal e particular, objetivo e subjetivo, físico e moral, fato e valor, dado e
construído, necessidade e espontaneidade, imanência e transcendência, corpo e
97
Carlos Castañeda. Cf., entre outros escritos do autor sobre o tema, Una realidad aparte (Nuevas conversaciones
con Don Juan). México, Fondo de Cultura Económica, 1974.
98
Eduardo Viveiros de Castro. P
erspectivismo e multiculturalismo na América Indígena (resumo do capítulo 8 de A inconstância da alma
serlvagem.São Paulo, Cosak & Naify, 2002, apresentado em comunicação ao Departamento de Filosofia, PUC-RJ em
agosto de 2004). O que nos faz pensar, no. 18, PUC-RJ, setembro 2004.
espírito, animalidade e humanidade”99. Da perspectiva da experiência, é como se fosse
possível penetrar no interior de uma construção holográfica que é vivenciada pelas
projeções que dela uma imaginação enfim efetivamente perceptiva é capaz de
produzir/apreender em outro modo de conhecimento, como criação e repetição
infinita de si e de nós mesmos de uma forma sempre eternamente renovada, como
bem atestam os mitos ameríndios e a mito-poética da criação de nossos artistas
populares100.
Então, nesse universo indiferenciado, sem dentro ou fora, já nada importa e,
por isso mesmo, tudo e cada detalhe importa, cada instante e sua experiência
intensamente vivida, como o bubuio da folhagem na mata ou os sussurros de Cumade
Fulozinha que José Bezerra escuta e traduz em cantiga e performance, acting out do
drama de sua experiência do mundo como criador e artista. É assim que, para além de
sua condição social, lhe é dado viver a vida como deveria ser vivida, plenamente, de
modo intenso e grave, carregado de responsabilidade por seus atos, impregnado pela
profunda alegria de sua própria liberdade. Tudo é questão da perspectiva de onde se
vê o mundo. E talvez seja esta a grande lição que Zé Bezerra e tantos outros
extraordinários artistas populares tenham a nos oferecer, arrancando-nos das
confortáveis e perigosas certezas de nossas formas de conhecimento e experiência
para que, num espaço e tempo de liminaridade, se possa vislumbrar outra realidade
em que tudo pode ser permanentemente criação – invenção e arte –, plenitude de
vida. Uma vida escandida pela respiração do Grande Animal do Mundo, alma, pneuma,
fôlego do próprio cosmos, que é nada e é tudo, vivendo o milagre de uma amorosa
cumplicidade com a natureza e todos os seus viventes, como sabem o guerreiro de
Castañeda, o monge tibetano ou os xamãs em toda parte. Talvez, mais do que nunca, o
mundo de hoje precise aprender esta lição.
99 .
Idem, ibidem.
100
Lelia Coelho Frota. Mito-poética de 9 artistas brasileiros: vida, verdade e obra. Apresentação Clarival do Prado
Valladares. Rio de Janeiro, Funarte,1978.
A arte e a rua: reflexões a partir da realização de um filme etnográfico com
artistas de Cidade Tiradentes, Rose Satiko Gitirana Hikiji (PPGAS/USP)101
101
Pesquisa realizada com apoio da FAPESP. Os filmes aqui discutidos foram realizados em parceria com
Carolina Caffé, com apoio do Edital Etnodoc. A Movie&Arte produziu Lá do Leste. O Laboratório de
Imagem e Som em Antropologia (LISA-USP), o Instituto Pólis e a WS são co-produtores dos filmes.
102
Carolina Caffé foi a produtora executiva do projeto, eu realizei a consultoria etnográfica.
experimentadas: entrevistas a noite, iluminadas pelo farol de um carro; questões do
roteiro anotadas em papéis eram sorteadas e respondidas pelos entrevistados;
encenações eram criadas para apresentar os “personagens”; conversas mais informais
surgiam em algumas entrevistas, resultando no desenvolvimento de novos temas.
Os produtos das conversas gravadas lembram o que Bill Nichols (2005) chamou
de “documentário performático”, ou documentário “em primeira pessoa”. São filmes
marcados por uma “subjetividade social”, filmes produzidos por aqueles que
tradicionalmente são mal ou sub-representados nos documentários. Segundo Nichols,
o modelo “nós falamos sobre eles para nós” é substituído nas produções performáticas
por “nós falamos sobre nós para nós”. Para o autor, neste estilo de documentário é
adotado um modo de representação distinto, no qual conhecimento e compreensão
exigem uma forma diferente de envolvimento.
Nos filmes do Mapa das Artes da Cidade Tiradentes, as gravações e
questionamentos foram realizados por aqueles que compartilham com os
entrevistados a experiência da vida no bairro, as dificuldades, as lutas, as estratégias
de sobrevivência, as conquistas pela arte.
Foi desta forma, por meio de vídeos trazidos por pesquisadores-moradores, e
da própria experiência destes agentes, que nos aproximamos efetivamente do
universo dos artistas do distrito.
Por um lado, experimentamos nesta fase da pesquisa, as possibilidades de
compartilhar efetivamente a produção de conhecimento com moradores da
localidade, que eram, naquele contexto, mais que objetos da pesquisa, sujeitos
produtores de conhecimento.
Por outro lado, diferentemente da pesquisa de campo mais tradicional, nos
aproximávamos dos sujeitos pesquisados por meio de filmes que eram, por sua vez,
co-produções dos artistas “mapeados” com os artistas-pesquisadores.
Antropóloga-cineasta
Desde esta fase inicial da pesquisa, minha ação como pesquisadora não se
separava da atuação como realizadora de imagens. A produção de imagens colocou-se
como método central no mapeamento e resultado da pesquisa etnográfica na segunda
fase, que resulta na produção dos filmes etnográficos.
Em ambos os momentos, uma inspiração comum: o trabalho de Jean Rouch,
antropólogo-cineasta que desde os anos 1940 até 2004, ano de sua morte, vislumbrou
por meio do cinema, uma antropologia na qual a produção do conhecimento se dá no
diálogo com o sujeito pesquisado, e por meio da qual é possível devolver aos grupos
pesquisados o conhecimento com eles produzido.
Quando proponho uma reflexão sobre a performance do antropólogo como
cineasta, e declaro a inspiração Rouchiana de minhas pesquisas, enfatizo uma intenção
provocativa e reflexiva. Por um lado, reconheço o potencial provocativo da
personagem “cineasta” ou “antropóloga-cineasta” que interpreto. Por outro, percebo
como fundamental uma reflexão sobre possibilidades da escrita etnográfica com
imagens.
103
Discutimos, Carolina e eu, estas formas com mais detalhe em Caffé & Hikiji, 2012b.
estabelecemos com atores específicos, conhecimento compartilhado, como diria
Rouch, resultado de presenças, nas palavras de David MacDougall (1998; 2006).
Arte de rua?
Chegamos enfim à questão que norteia nossa produção audiovisual, questão
surgida no processo de pesquisa para o mapeamento, construída em colaboração com
os pesquisadores-moradores:
Como território e arte se relacionam? Como as transformações espaciais, sócio-
econômicas, culturais afetavam as manifestações artísticas? Como a arte refletia sobre
estas transformações.
Nos pareceu que, dentre os grupos mapeados, aqueles com alguma
proximidade com o universo do Hip Hop seriam bons para pensar a relação com o
território. Arte de rua, afinal, é talvez o termo que melhor descreve o tipo de
manifestação que reúne o rap, o graffiti e o street dance.
Cada um dos quatro grupos selecionados como protagonistas do filme tem suas
especificidades. Não realizam uma leitura única da experiência cotidiana no território,
não possuem visões homogêneas acerca das transformações pelas quais passa o
distrito. Mesmo entre os membros de um único grupo, pudemos encontrar
divergências que enriquecem os processos interpretativos e reflexivos de suas práticas
artísticas.
O primeiro grupo apresentado nos filmes é o coletivo de grafitti 5 Zonas,
formado em 2006 por Anderson Aparecido (Hope), Antônio Duque (Tota), Eder Sandro
(Sow), Eduardo Marinho (Credo) e Everaldo Matias (Eve14). Uma das principais
expressões da arte de rua, o grafitti vem ganhando novos espaços de expressão em
São Paulo, e este é um ponto de conflito entre os membros do grupo.
Por um lado, observamos a ampliação da atuação dos grafiteiros, o que garante
mais visibilidade e faz desta forma artística uma das poucas que gera renda suficiente
para que alguns dos membros do grupo “vivam” de sua arte. Por outro, percebemos
entre os grafiteiros opiniões divergentes acerca do lugar da arte e de sua relação com
o espaço público.
O conceito do all city é uma das bases da arte do grafitti, traço que se espalha
por todo o espaço urbano. Diferente de outras manifestações, que defendem algum
encapsulamento – a ideia da arte do gueto e para o gueto, por exemplo – o grafitti
extrai sua força do potencial de disseminação do traço para além dos muros da própria
comunidade. O conflito aqui surge na própria definição dos limites da arte, quando,
como para Sow, ela se perde ao sair da rua e entrar em espaços privados ou
institucionais.
O street dance de Cidade Tiradentes é o segundo personagem dos filmes, e nos
é apresentado por meio de Ivan Santos, do Tiradentes Street Dancers. Ivan conheceu a
dança de rua na São Bento, berço do movimento hip hop paulista nos anos 1980. Em
nossas conversas, Ivan lembrava-se constantemente da cena do street dance em
Cidade Tiradentes, que, em outros tempos, juntava dezenas de pessoas nas ruas do
distrito, época em que “treinávamos todo final de semana, quando era febre, todo
mundo dançava”.
Hoje, Ivan dá aulas gratuitas (e não remuneradas) no CEU Inácio Monteiro, e
organiza grandes “batalhas”, eventos que reúnem centenas de praticantes das diversas
modalidades da dança, como Locking, Popping, Power Movie e Salto Mortal.
Como o grafitti, a dança de rua apropria-se de novos espaços, não sem algum
conflito:
Daniel Hylario caminha por Cidade Tiradentes. Pensa alto, canta e fala
enquanto percorre o território. No média metragem A arte e a rua, Daniel ocupa o
lugar do narrador. Mas sua narrativa corre paralela às ações e reflexões dos artistas do
filme. Não é um comentário direto, não é um diálogo com seus colegas artistas.
Refletir é sua forma de arte, Daniel é nosso filósofo de Cidade Tiradentes.
Daniel pinta com suas palavras o cenário da construção do distrito, espaço
relativamente novo, com menos de quatro décadas de existência. A experiência de
auto-construção é associada por Daniel a uma forma de sociabilidade mais intensa,
“mais compacta”:
É legal que tenha um hospital, mas isso virou regra: toda vez
que vai construir um aparato público destrói um campo de
futebol, destruiu um campo de futebol, destrói um pouco da
sociabilidade que as pessoas tem no final de semana.
Bibliografia
CAFFÉ, Carolina & HIKIJI, Rose Satiko G. “A Arte e a Rua: uma experiência colaborativa
audiovisual com artistas de cidade tiradentes.” In: Revista Cultura e Extensão
USP, v. 7. São Paulo: PRCEU/USP, 2012a, pp. 41-52.
CAFFÉ, Carolina & HIKIJI, Rose Satiko G. “Filme e antropologia compartilhada em
Cidade Tiradentes”. In: COLE & RIBEIRO (Orgs.). 7o. Seminário Internacional
Imagens da Cultura / Cultura das Imagens, São Paulo, Altamira Editorial, 2012b.
CLIFFORD, James. A Experiência Etnográfica: Antropologia e Literatura no século XX.
Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998.
MACDOUGALL, David. Transcultural Cinema. Princeton, Princeton University Press,
1998.
MACDOUGALL, David. The corporeal Image. Princeton, Princeton University Press,
2006.
NICHOLS, Bill. Introdução ao Documentário. Campinas, Papirus, 2005.
Filmes
A Arte e a Rua 2011. Carolina Caffé and Rose Satiko G. Hikiji. LISA, Instituto Pólis, WS.
Filme na íntegra disponível em: <http://vimeo.com/lisausp/aarteearua>.
Lá do Leste. 2010. Carolina Caffé and Rose Satiko G. Hikiji. Movi&Art, LISA, Instituto
Pólis, WS. Filme na íntegra disponível em
<http://vimeo.com/lisausp/ladoleste>.
Mapa
Mapa das Artes de Cidade Tiradentes: <www.cidadetiradentes.org.br>.
Mesa 6: Teatro e ritual
Beverly Stoeltje (Indiana University)
José Luiz Ligiéro Coelho (UniRio)
Elizabeth Lopes (ECA/USP)
Performing politics with the ritual of curse: crossing a threshold in Ghana,
Beverly J. Stoeltje (Indiana University)
Social life in Ghana is intensely personal and broadly social. Individuals belong
to ethnic groups, clans, large families, home town associations, alumnae clubs, market
sellers groups, professional organizations and others, all of which reflect deeply rooted
shared experience. Many people know - and know about - many other people.
Knowledge of others is highly valued though possession of it often remains hidden
until it becomes useful. As with any secretive process, however, knowledge of others
has the potential for creating a whole range of emotions - jealousy, fear, desire, - that
can lead to misinterpretations, accusations, insults, and curses. Consequently, social
relations are tended with great care and details of one’s personal life are carefully
guarded.
Not surprisingly, Performance forms in Ghana, whether humorous or serious,
often reflect this quality of familiarity with and knowledge of the habits of others, as it
interacts with the equally significant quality of secrecy, the attempts to guard and
protect one’s self, one’s house, one’s spirit, one’s lovers, from becoming valuable
knowledge and, therefore, vulnerable, to others. The social relationships expressed in
numerous performance forms often display this interaction between what is known
and what is secret, or private. Performance can address this interaction through
exposure, which can create humor at times, danger at others, or through indirection, a
strategy that requires interpretation.
The subject of this paper, Curse, often involves an interaction of the kind
described above that has escalated into a performance of imprecation. A short form
expressing conflict, the term in Twi (the language of the Asante people) is Duabo.104
Writing on performance in Africa Margaret Drewal states that “performance is a
primary site for the production of knowledge…a means by which people reflect on
their current conditions, define and/or re-invent themselves and their social world…”
(1991: 2). The power of performance is suggested by Barber and Farias in their essay
on African oral texts when they say that performance has the capacity “to activate
spheres beyond the confines of its own textuality, and be implicated in social and
political action through the use of rhetoric and poetic license” (1989:3). Edward
Schieffelin extends the discussion even further when he observes that performance is
inherently interactive and fundamentally risky, and depends on the relationship
between the central performers and others in the situation (1998:198)105 While these
defining features apply to performance generally and specifically to curse as it is used,
studies show that each culture emphasizes certain genres and endows them with
specific characteristics, expanding or contracting their position in everyday life
consistent with the larger social, political, and religious context as it affects individual
lives. 106
104
Kofi Agyekum has published a study of Duabo focused on the language, identifying it as one of a
number of verbal taboos among the Akan.
105
Scholars which have dealt with the concept of risk in performance include: Webb Keane (1997),
Edward Schieffelin (1996), Kwesi Yankah (1985).
106
For example, see Cory Kratz's comparative analysis of Okiek blessings, curses and oaths. Compare to
Agyekum 1999, Stoeltje 2009, Crawley ,Matisoff 1979, Kitz 2004, Vanci-Osam 1998.
In Ghana curse is a popular genre among certain groups of people and is an
especially good example of an attempt to activate spheres beyond the confines of its
spoken word. Invoked with the intent to cause ill to another person, curse is
performed when social interactions develop into conflict and one person wishes to
exert power over another. Although a brief utterance, a curse constitutes a ritual
because it calls on a deity and makes a request, accompanied by the pouring of
Schnapps or offering of eggs (acts associated with ritual in Asante), and the process
creates a transformation of reality.
In his study of magical language Daniel Lawrence O’Keefe considers curse a
performative sentence, a statement that “by its mere assertion tends to produce the
state of affairs which it asserts. Its social effect is to move the victim’s self, as a
concept, into dangerous regions of “quality space,” as defined by tradition, where it
may wither, thereby causing the biological individual to sicken and perhaps to die.”107
Such sentences are “power prescriptions,” ones that create what is prescribed
because their very utterance changes a social situation (1982: 54). 108 Suzanne Langer
links magic, ritual and religion together and notes that “Magic then, is not a method,
but a language; it is part and parcel of that greater phenomenon , ritual, which is the
language of religion. Ritual is a symbolic transformation of experiences that no other
medium can adequately express” (153) .
The key to the power of ritual to transform the reality of the participants is
performance. According to Roy Rapporport “If there is no performance, there is no
ritual; performance itself is an aspect of that which is performed. The medium is part
of the message; more precisely, it is a metamessage about whatever is encoded in the
ritual.” James Fernandez’s analysis extends ritual as performance to the subject. He
states that ritual creates images or metaphors and puts them in operation through
ceremonial scenes. Through such scenes “men become the metaphor predicated upon
them.” The ritual then achieves the approximation of the subject to the metaphor –
the subject achieves “the movement in quality space implied by that metaphor”
(1986:43).
In ritual performance, however, the metaphors, symbols, images and other
components index a body of knowledge familiar to the participants. Because the ritual
utterance of a curse occurs in social interaction and is a brief form, it does not include
the circumstances that have escalated into the curse, although in Ghana it offers a
conditional sentence that references the conflict and serves as instructions for the
request. Every curse rests on a significant body of knowledge, like the decorative
element often placed at the top of a skyscraper; this knowledge (usually available in
narrative form), contains the source of the conflict that has escalated into the ritual
107
Whether or not a curse actually has its effect physiologically has been a subject of
some study. O’Keefe summarizes physiologist Walter Cannon’s conclusions based on his 1942
survey of materials from every continent going back to 1487: “Belief is so strong that breaking
a taboo or being ensorcelled can cause deadly physiological processes. These are sympathetic-
adrenalin processes: the fight-or-flight reaction which, if prolonged, does damage.”
(1982:297).
108
O’Keefe draws on the work of Anders Jeffner in this discussion.
space of curse. The knowledge at issue may be false or true, the interpretation of
such knowledge can be incorrect, or the assumptions underlying the knowledge might
be distortions, or the conflict may concern secret knowledge and the effort to protect
it. Often an accusation has been issued as the result of jealousy or competition, and a
curse follows the accusation. Also, the utterance of a curse may occur after an insult
(which is also actionable) has been directed at the targeted person who then responds
with a curse.
Although the genre of curse has long been employed by cultures around the
world, and has the potential to bring about physiological processes as described above,
the performance process of this very short form varies from one group of people to
another. If we want to understand the role of curse in the lives of those who engage
with it, then, a study of the full performance process is in order. This paper will focus
briefly on my ethnographic research in the Ashanti region on the performance process
of curse in its usual context of face-to-face interaction involving social relationships
and then in its very unusual context of media performance involving national politics
111
The NDC party is the party of J. J. Rawlings who ruled Ghana for 19 years, first as a military dictator
and then as an elected president. Relations between the Asante and the NDC were very tense throughout
those years. Moreover, that government was involved in the chieftaincy dispute in the town of Juaso
during those years.
power. The river deity, Antoa Nyamaa, is known throughout Ghana as one of the three
most powerful deities in the country, and many people fear it. Consequently, the
Ambassador exploited his familiarity with curse and therefore identified himself with
other residents of the Ashanti region when he invoked the curse. Moreover, the
tensions between the two political parties had reached a peak with the attack on the
NPP members and the report that it was caused by the NDC. Such an act could cause
the NDC to lose the election. This was knowledge that had been widely reported to
the public. Perhaps Ohene Agyekum perceived that it was necessary to take a great
risk in order to refute the report that the NDC has caused the attack. Thus he built on
the knowledge that had been produced and reversed it with the curse. As he did so,
he demonstrated his identity with other Asantes and also made the claim that the
other party was dishonest.
Another factor in Ghanaian cultural discourse is the presence of Evangelical
Christians who are very aggressive in their proselytizing. Their discourse, like that of
the far right everywhere, places blame on others, creating dramatic oppositions of
good and evil. (While I was in Ghana in November of 2010 a pastor and another man
set a woman they did not know on fire, claiming that she was a witch.) As this
discourse is so pervasive, it seems possible that it has created a fertile ground for
others who wish to lay blame, increasing the likelihood that a general audience would
accept the curse and his accusations that the NPP was engaging in lies and
propaganda.
Considering that curse establishes him as an Ashanti and one who has not
forgotten the oral traditions in spite of his sophisticated Western profession, and that
he uses curse to blame the opposing party, claiming that they have lied and produced
propaganda, the strategy of performing a curse seems clearly designed to pull Ashanti
votes to his party. Although performing the curse on television would seem to
increase the risk, in fact it allows him to speak directly to the audience he wants to
persuade, and the boldness of the act seems to defy any fear or doubt that the curse
could cause death to anyone in his own party – and he even said as much.
In this act a modern day politician has performed a curse as a powerful ritual,
intensifying it by performing on television and enacting the pouring of Schnapps and
the presentation of eggs both, all of which are designed to kill members of the
opposing political party, or at least to defeat the opposing party. The election results
declare his party the winner and he thereby acquires an appointment as Ambassador.
In this very bold act fusing modern politics with Asante custom, Ohene Agyekum has
proven Jane Guyer’s and Karen Barber’s argument that it is “in crossing thresholds
between discontinuous scales and in manipulating alternative, multiple modes of
evaluation, that gain lies.” Moreover, as Barber states, “this view puts performance
center stage, for the discontinuous sequences are pegged to each other performatively
as components in a repertoire, rather than cohering as a unified cognitive map.” She
also notes that new things are added onto and run along side older things rather than
displacing them (2007: 112-113). Certainly the risk that Ohene Agyekum took in
crossing these thresholds and manipulating alternative modes of performance
produced gain for him and for his party. The components of his performance were
concentrated, pegged, in the televised performance of the curse.
Since that time, the performance of curse has increased in the Ashanti region
and throughout Ghana. At the Asantehemaa's court, many different kinds of people
are bringing their different kinds of conflicts to be resolved, and the majority of those
cases are concerned with curse. The newspapers are also reporting instances of
individuals engaging in curse who are celebrities. Without question the Ambassador
has revived the old to run alongside the new, providing increased numbers of people
the means to express their conflicts and to place an increased number of individuals in
danger.
O conceito de “motrizes culturais” aplicado às praticas performativas afro-
brasileiras, José Luiz Ligiério Coelho (UniRio)
Assim, o patético pode ser definido como o efeito que nos move a uma outra
condição. Prosseguindo a descrição fílmica e análise de literatura, Eisenstein revela-
nos onde é que encontrou o seu aprendizado da arte do pathos. Foi na observação do
tratamento dado pelo circo à arte da bufonaria, da caricatura e da montagem de
atrações. Tendo dado o salto do teatro para o cinema, funda o seu método: “trabalha
pateticamente a partir das condições de um processo dinâmico”, diz ele (:160).
Mas, retornemos para compreender a raiz pathos na composição da noção de
patológico. Diferente da concepção de uma ciência da ordem, que distingue normal e
patológico, a la Durkheim, conferindo à Razão científica a tarefa de fundar a Norma,
Derrida, em A escritura e a diferença (1971), reflete sobre a obra de Artaud discutindo
o fenômeno da catarse. Em Artaud, “O teatro existe para vazar abcessos, o teatro é a
crise que se resolve pelo mal ou pela cura. O equilíbrio supremo que não se alcança
sem destruição”. Em sua análise, Derrida retoma a concepção da grande saúde em
Nietzsche e afirma a doença como cura, como positividade. Fazer ver as tensões e a
sua necessidade de purgação, segundo o argumento dos autores, é o fenômeno que o
teatro opera. O ator, em seu ofício, atua como pharmacon, veneno-remédio,
realizando o espaço da expiação que é o drama. Um lugar à margem das estruturas
estruturadas, esse espaço de dar a ver que é o teatro, opera a visibilização das tensões
presentes na ordem social, que são experimentadas por indivíduos e grupos.
Se o trabalho da Poética com o pathos, em Aristoteles, era o processo de
conceber sucessivos crescendos de tensão dramática, preparando o clímax da catarse-
purgação, vivida coletivamente como atualização do mito, na antiguidade clássica
(Vernant); a noção de entretenimento só se desenvolve mais tarde com o drama
burguês do século XVIII. Mais tarde ainda, Artaud insurrecto com a morte do teatro,
nos primeiros anos do século XX, tece outros papéis para a purgação que o teatro
opera.
Rouch recebe influências da geração surrealista que, segundo Clifford, habitava
o Museu do Trocadero e frequentava as aulas de Mauss. Leiris é um dos nomes que
permanece exatamente nessa região de fronteira entre surrealismo e antropologia.
Rouch herda algo do espírito dessa geração que o antecede. Além desse traço, na
relação com os debates intelectuais dessa geração, há ainda uma identificação com a
posição de Artaud e seu teatro da crueldade. (Stoller, 1992).
Dois filmes:
Em Pyramide humaine (1961), o autor propõe a interação entre jovens negros e
brancos para discutir relações raciais. Praticando o que ele nomeava como cine-
provocação, soube aproveitar dramaticamente as possibilidades vislumbradas pelo
jogo de representação de papéis. Como no psicodrama, recorremos à atuação
improvisada para projetar aspectos das vidas e emoções dos participantes através da
ficção.
No filme, o que prometia ser a problematização das relações interétnicas,
numa Africa que vive guerras anti-coloniais que se configuram como processos de
independencia nacional, torna-se espaço para a emergência do mais patético dos
temas, as relações amorosas quando se é jovem e apaixonado. O “cinema da
crueldade” de Rouch aproxima-se da concepção de Artaud uma “crueldade que nos
desperte nervos e coração, sensação verdadeira” (:95).
Em Pyramide a empatia entre Nadine e os jovens rapazes e a sua íntima
liberdade de sair a passear, seus encantos seduzem os jovens que se apaixonam e
brigam pela moça. Os outros comentam, avaliam aconselham. Numa tarde, numa festa
num navio encalhado na praia, dois rapazes brigam pela moça. Um deles se joga ao
mar e não volta mais. O desfecho do filme, surpreende. Uma suspensão fica no ar, não
sabemos mais se estamos no registro da ficção ou da realidade.
O psicodrama filmado promove o aparecimento das questões latentes para o
grupo que joga com suas relações possíveis, experimentando a possibilidade na ação
concreta. Construímos identificação e embarcamos no jogo lúdico que o cinema
promove. A experiência do choque é vivida realmente na experiência da recepção.
Nas pesquisas que tenho realizado trabalho sobre tais dimensões patéticas da
vida social. Nas relações que pude estabelecer com alguns grupos, num percurso em
que fui, na prática, formando a pesquisadora em mim, partia de uma provocação.
“Represente seu próprio papel”, era o convite que apresentava aos grupos que estudei
por meio da pesquisa etnográfica, ao longo de vários anos. Vários desdobramentos,
reelaborações para situações particulares, estratégias construídas no diálogo com
sujeitos específicos, concretizavam o trabalho de criar máscaras para poder lidar com
os papéis sociais cristalizados em relações constituintes de sujeitos. Durante duas
décadas de pesquisa etnográfica, noto situações marginais que revelavam espaços de
presentificação de pathos, atualização de memórias, experiências vividas ou
imaginadas, que compõem o imaginário. Um grupo de teatro na igreja e outro no
sindicato experimenta na ficção a solução do impasse vivido de ser trabalhador
desempregado, em São Bernardo do Campo, nos anos 90. Dramatizar imagens da
cidade para a câmera de vídeo, a partir da linguagem de um grupo de jovens
moradores de favelas (uma dessas experiências pude desenvolver com Edgar). Por
outro caminho, no diálogo com grupos de teatro que trabalham com a abordagem do
Teatro do Oprimido de Augusto Boal, encontro situações como esta que narro: A
menina que cresce sob violência doméstica, apanhando de seu pai, revive no jogo
dramático o papel paterno. Na cena, presentifica a violência doméstica e,
experimentando o seu pathos, bate, furiosa, na jovem sua filha. Pela experiência
tornada real no jogo dramático, compreende o pai.
Com grupos de trabalhadores ainda, revimos imagens de tempos outros para
reencontrar na memória a presença da experiência coletiva compartilhada e
posicionar-se num presente de intensa desfiguração das formas sociais. A imagem tem
essa possibilidade de atualizar o passado, presentificando memórias de outros tempos.
Com atores e atrizes que dão vida à tradição do Circo-Teatro, selecionamos os
tipos da comédia de costumes para tematizar o drama vivido nas relações no interior
da família-empresa, que é o circo. Criar personagens para distanciar-se da própria vida
e poder vê-la melhor.
Nesse percurso, uma série de aprendizados foram se consolidando:
O corpo é o espaço a partir do qual o drama é experimentado; imediato meio
de percepção imerso nas redes de relações simbólicas em que estamos inseridos.
O papel, máscara do espírito, possibilita a exteriorização do sujeito em relação
aos todos simbólicos em que estamos inseridos. Como propôs Marcel Mauss, o corpo é
construção social; mas isso não é tudo o que ele é. Mauss aponta como se alcança
estados extáticos pelas técnicas da respiração, na India ou na China, aponta também o
modo como possibilidades fisiológicas são produzidas ou perdidas em dialética com as
mais diferentes formas sociais. Fundando uma Antropologia do simbólico Mauss
focaliza o corpo, a pessoa, e historiciza a formação da idéia de indivíduo.
Mauss, no ensaio sobre a noção de pessoa, refere-se ao teatro, primeiro na
sociedade grega e, depois, na sociedade latina. A máscara, no império romano, já é
uma “imagem superposta” e o indivíduo em sua natureza nua, conserva o sentido de
artifício: o sentido do que é a intimidade dessa pessoa e o sentido do que é
personagem. Aqui, pela primeira vez, configura-se a idéia de ficção como falso. Na
sociedade romana o sentido de “ser consciente, independente, autônomo, livre,
responsável” (Mauss, 2003: 390) vai se consolidando e operando uma transformação.
Só aí pode-se falar em indivíduo, aí é que surge a noção de responsabilidade moral e o
direito.
Na pesquisa etnográfica, lidamos com um imaginário real, que mobiliza desejo
e produz ação social. Com as máscaras que vestimos: o homem bem sucedido, o
vagabundo, a moça bonita, o pai de família, a mulher forte, o conquistador, o
profissional de sucesso, o malandro, o bandido... Com meus papéis de mãe,
professora, filha... reproduzo relações com outros cujos papéis ajudo a constituir.
As cisões com as quais pensamos o mundo - trabalho manual/trabalho
intelectual, teoria/prática, masculino/feminino – distinguem, separam, discriminam e
também são referentes a um contexto datado. O estado atual de nossa compreensão
está referido à ordem das coisas estruturadas nesse instante do agora.
Mas, seria preciso construir aqui um ligeiro panorama do caminho que torna
possível esse deslocamento do olhar que estranha o tempo em que se vive. Ainda nos
anos 70, posições pós-estruturalistas vão se desenvolvendo na filosofia, e se
difundindo pela crítica de arte. No debate sobre as formas estruturadas (se quisermos
dizer representações) no cinema, temos, em Deleuze: “o que Nietszche havia
mostrado, que o ideal da verdade era a ficção mais profunda, no âmago do real”
(:182). As oposições ficção/realidade, verdadeiro/falso são pouco operativas quando
buscamos ver a produção das representações sociais e os seus deslocamentos, algum
movimento.
Um percurso grande, no século XX, foi criando a nossa possibilidade de
estarmos distanciados, na relação com as representações sociais instituídas.
O campo da performance se posiciona em reação à arte tornada
entretenimento, esvaziada de seu sentido de vida, e promove estranhamentos em
relação a um envolvimento automático com a existência (Cassiano Quilici, 2010). “Um
olhar que não quer prender as coisas numa ‘representação’ que as fixa, não evita a
impermanência dos fenômenos e possibilita uma apreensão estética dos fenômenos”.
No campo dos estudos sobre rituais, leituras pragmáticas da vida social vão
pensar o discurso em contexto, a fala como ato (Severi).
Mas, porque são as modalidades do psicodrama e do sociodrama, modalidades
terapêuticas, as que são apropriadas por Rouch na sua prática de trazer para o filme
etnográfico, a verdade do drama vivido pelos sujeitos que tecem fábulas para
narrarem recalques, desejos, possibilidades??
Artaud e seu teatro da carne mostram como é que o corpo dá a ver um certo
mal estar na civilização. O teatro como a peste convoca forças subterrâneas, presenças
mais que representações. Mas, seria preciso que surgissem os movimentos
antimanicomiais, que Artaud levasse eletrochoques, que Nietszche concebesse a
noção de grande saúde, que Deleuze e Guatari habitassem o hospital de La Borde, que
no Brasil, Nise da Silveira criasse o Museu do Imaginário com pinturas, desenhos,
esculturas de internos em hospitais psiquiátricos.
Foi preciso que Victor Turner e Richard Schechner se encontrassem para que
escrevessem entre teatro e antropologia, começando por apontar a experiência como
possibilidade de compreensão. Foi preciso que o teatro europeu encontrasse o Nô e o
Kabuki, que Artaud encontrasse o teatro balinês, para que o teatro redescobrisse o
corpo. Que Derrida nos auxiliasse a compreender a doença como potência do corpo.
Foi preciso que o espaço da catarse – da identificação patética – se afirmasse na
experiência da recepção no cinema e na televisão para que o teatro se redescobrisse
enquanto jogo.
E, se esboçássemos uma antropologia de tais formas dramáticas, e voltássemos
os olhos para algumas experiências que se desenvolveram em meados dos anos 60 em
São Paulo e, depois, no exílio, no Chile, na Africa, na Europa, para reencontrarmos o
teatro como possibilidade de fazer emergir o drama vivido, fazer ver, ensaiar soluções.
Que a noção de identificação fosse colocada ao lado da de distanciamento para que
nos percebêssemos imersos em, processos múltiplos, construtores de identidades
fragmentadas e dispersas. Porque já não temos um processo identificatório único, o
ser não é mais o problema quando temos sujeitos em relações plurais, construtores de
sentidos múltiplos, que se compõem de múltiplas perspectivas.
E, foi necessário que o campo da performance se afirmasse primeiro
questionando o sistema da arte e a instituição do museu, apresentando happenings,
que vestíssemos parangolés e percebêssemos a formação da sensibilidade contextual,
relacional. Com Rancière, que notássemos que na contemporaneidade o espaço da
apreciação da obra de arte, a autonomia da esfera estética, está posta em questão e se
aproxima da vida de todo homem. Com Cixous, nos aproximássemos da lógica da
música e percebêssemos as intensidades experimentadas no contato com a cena; que
devolvêssemos à experiência da recepção o lugar crítico de produção de sentidos.
Na antropologia, tal como a praticamos aqui e agora, foi preciso que Mauss
apontasse intuições tão relevantes quanto suas taxonomias, que Rouch concebesse
uma antropologia compartilhada, que Geertz elaborasse uma virada textual na
disciplina, que os norte americanos lessem Bakhtin, que afirma que o indivíduo só
existe em suas relações de alteridade, e que a relação entre autor do texto e seus
personagens abriga uma dialética entre passividade e atividade, em que o autor cria de
fora, depois de ter contemplado, passivo, a lógica da vida do outro, construindo no
texto um acabamento do mundo do outro.
O personagem é um duplo que constrói uma participação emocional, uma
comunicação entre um eu e a máscara – tipo e papel social. O Drama e o conflito que
lhe é inerente, a serem sondados, contemplados passivamente, no trabalho
prolongado da pesquisa etnográfica, será redesenhado em seu acabamento na ficção,
no sentido de criação, que é a escrita etnográfica. Entre esses dois momentos há o
caminho de um a outro, o método a ser elaborado pelo pesquisador.
Parece haver concepções distintas sobre o modo de produzirmos
conhecimento: “Durante séculos, o saber humano foi entendido como um pathei
mathos, como uma aprendizagem no e pelo padecer, no e por aquilo que nos
acontece. Este é o saber da experiência: o que se adquire no modo como alguém vai
respondendo ao que vai lhe acontecendo ao longo da vida e no modo como vamos
dando sentido ao acontecer do que nos acontece. No saber da experiência não se trata
da verdade do que são as coisas, mas do sentido ou do sem sentido do que nos
acontece”. Este saber da experiência é um saber que não pode separar-se da pessoa
concreta em quem encarna.
Mas, “a ciência moderna converte a experiência em experimento, isto é, em
uma etapa no caminho seguro e previsível da ciência. (...) aí
A experiência já não é o que nos acontece e o modo como lhe atribuímos ou
não um sentido, mas o modo como o mundo nos mostra sua cara legível, a série de
regularidades a partir das quais podemos conhecer a verdade do que são as coisas e
dominá-las. A partir daí o conhecimento já não é um pathei máthos, uma
aprendizagem na prova e pela prova, com toda a incerteza que isso implica, mas um
mathema, uma acumulação progressiva de verdades objetivas que, no entanto,
permanecerão externas ao homem”(Bondía, 2002: 28).
Nesse trabalho, a noção de experiência é fundamental – aquela que faço na
pesquisa de campo, aquela que posso compartilhar com o outro de cuja vida me
aproximo, irrepetível. A vida que vivo com o outro.
Gostaria ainda uma vez de retomar Rouch. No filme Folie ordinaire d’une fille de
Cham (1986), a realização da abordagem psicodramática chega ao seu ápice e se
constitui a partir do jogo de papéis em que reconstrói a história de uma mulher interna
em um manicômio. Tendo perdido o seu marido muito jovem na Martinica, renega o
filho ainda bebê, viaja a Paris e perde a possibilidade de comunicação com o mundo.
Testemunhamos, na ficção, o jogo de papéis entre a personagem interna na instituição
e a enfermeira que se comunica com ela. A jovem negra vive a enfermeira que cuida
da paciente e, quando se despe do uniforme branco, revela-se, perguntando pelo seu
desejo, soterrado pelo cotidiano da vida em Paris, pelos homens brancos, pelo
trabalho e a periferia em que vive. Lúcifer entra pela janela do quarto e aterroriza a
velha. Vemos a alucinação junto com a senhora. No jogo de papéis, enfermeira e
paciente, aconselham-se. Trata-se da possibilidade de, na relação, poder ver-se, ver a
verdade do delírio. No jogo dramático em que o delírio é a cura, a personagem retoma
os três tempos fundamentais que explicam seu lugar de louca: A interna-criança
castigada pela mãe por se deixar acariciar pelo padre branco, o amor pelo homem que
partiu, o bebê que nasce e que ela não reconhece. “Eu quero me ver”, diz a
personagem. O jogo psicodramático apresenta intensamente a razão do delírio, a sua
lógica.
Johannes Sjoberg, com o conceito de improvisação projetiva, destaca as
“possibilidades terapêuticas do gênero”, quando sujeitos projetam suas vidas através
da construção de personagens tornando possível reviver situações, memórias de
abuso. Torna-se possível compreender como suas próprias identidades se relacionam
com os personagens, ver a projeção. O papel é utilizado como referência e fórum de
discussão.
Há, no recurso à etnoficção, para além da dimensão mimética que
simplesmente atualiza o simbólico, reproduzindo o imaginário instituído, um elemento
novo que nasce da possibilidade de criar novas resoluções para dramas vividos e
conflitos já experimentados, surge a possibilidade de ensaiar o futuro, de imaginar
novas possibilidades, com a liberdade do ensaio. Projetar devires, presentificando
desejos ou revivendo a experiência difícil, purgar a produção de recalque, são as
possibilidades do trabalho com a etnoficção.
Na experiência de realização do filme Amores de Circo (que deve ser exibido
hoje a tarde no CINUSP), a dimensão do mimético, a representação de papéis é
praticada a partir do diálogo com a tradição popular do circo-teatro. O primeiro passo
da pesquisa foi localizar as intrigas vividas A experiência realizada em campo, na
produção da ficção, foi a proposição de que os atores da Companhia narrassem suas
histórias e, depois, encenassem personagens para a câmera. Nesse convite à
elaboração da máscara
A proposição do tema amor no circo faz nascer uma série de personagens. Uma
funcionária do circo apresenta a sua situação de transexual como objeto para o filme.
Proponho que ela coloque em cena sua experiência vivida apresentando a situação em
que vai buscar encontros amorosos nas ruas à noite. A produção dessa cena produz
uma mobilização entre mulheres de diferentes gerações membros do grupo. No centro
da pequena cidade, iluminamos a esquina onde o personagem provoca os motoristas
que passeam à noite pela cidade. Ela fala com os homens que param e entra em um
carro. Aqui, ficção e realidade se confundem.
Ao convite à elaboração da máscara a atriz assinala o encontro
ator/personagem como um momento de participação, em que a virtualidade da vida
se realiza. Luciane fala do personagem da peça Chá de panelas, uma noiva que desiste
do casamento após o ritual catártico, tornado real no circo, em sua festa de chá de
panelas. Avaliando o casamento que não teve, a mulher se afirma como atriz que ama
o seu trabalho. As pulsões, o desejo, os sonhos recalcados surgem com força nesses
diálogos densos em que atriz e personagem se confundem. No processo de pesquisa, o
jogo dramático, a elaboração da máscara, e nesse caso, do múltiplo – a personagem
que comenta a personagem que a atriz interpreta-, é condição para chegar à atriz que
comenta a si mesma. Neste momento, ficção e realidade não se distinguem mais,
ambos são experiências do passado em potência de realização na virtualidade da vida.
Retornando com o material gravado em vídeo em revisitas aos grupos
estudados, vemos o tempo atuar – as relações entre matéria e memória, na
constituição da duração dos fenómenos, a dimensão experimentada do tempo, fazem
emergir na pesquisa etnográfica a dimensão patética da vida.
Apreendemos a finitude do que somos ao nos defrontarmos com o drama da
metamorfose das formas sociais (desculpem a redundância). Estudando as relações
entre Imagem e memória notamos como a imagem presentifica outros tempos,
atualiza experiências vividas. Como disse Benjamin nada do que foi está perdido no
tempo, mas se cristaliza no instante em que os olhos do tigre brilham antes do salto.
Com grupos de trabalhadores, pude rever imagens de outros tempos para
reencontrar na memória a presença da experiência coletiva compartilhada e
posicionar-se num presente de intensa transformação.
Nessa experiência, temos uma noção de imagem que é afecção. Mais que
representação a imagem é índice de presença e assim reencontramos o que há de
presença na representação.
Em constituição está uma concepção de reflexividade que possibilite nos
distanciarmos das formas históricas em que estamos enredados e permita ver as
relações constituintes em que estamos todos envolvidos.
Bibliografia
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Benjamin, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Obras Escolhidas. São Brasiliense,
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Janeiro, Jorge Zahar Ed, 2002 :120-162.
Ferraz, Ana Lucia M. C. “O drama de circo e o circo-teatro hoje. Uma experiência de
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Salvador, UFBa, 2010.
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Szondi, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950]. São Paulo, Cosac & Naify, 2001.
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Cadernos de campo nº 13. Universidade de São Paulo, 2005.
______. Dramas, campos e metáforas. Niteroi, EdUFF, 2010.
Ritual, cena e panorama sonoro: experiências de uso de imagens entre os
Bororo do Mato Grosso, Brasil, Edgar Teodoro da Cunha (DA/Unesp)
Tiago também não consegue se adaptar a esses elementos de sua origem, falha
em se tornar o perfeito caçador que queria. Por isso passa dificuldades, e até mesmo é
desprestigiado por não conseguir realizar a contento tarefas que qualquer homem
bororo realizaria sem dificuldades.
E assim Baldus continua descrevendo as desditas e dificuldades de Tiago, seu
movimento pendular entre uma e outra cultura sem, no entanto conseguir adaptar-se
inteiramente a nenhuma delas e ao mesmo tempo tendo a possibilidade de transitar
com relativa desenvoltura em ambas.
Ao fim do artigo Baldus pergunta a Tiago sobre sua opinião a respeito do futuro
dos bororos, ao que ele responde,
Baldus perguntou-lhe ainda se não queria viver entre os bororos que moravam
longe das missões, em aldeias ainda independentes e que teriam conservado mais dos
antigos costumes do que os bororos de Sangradouro e Meruri e ainda se não seria
melhor reconduzir os bororos ao seu estado antigo, ao que respondeu Tiago,
O funeral e o filme
No processo de construção do filme busquei utilizar dispositivos narrativos que
engajassem os potenciais expectadores do filme, não-bororos e bororos, não apenas
racionalmente, mas afetivamente, proporcionando uma experiência filmica da
situação cultural abordada.
A aproximação de um ritual tão complexo passou, portanto por uma
compreensão sensível do funeral. E isso só foi possível expondo o expectador a
imagens, sons e uma experiência construída no filme que mobiliza a audiência em suas
reações mais íntimas. Nesse sentido a idéia de paisagem sonora foi fundamental para
articular o universo sonoro do filme.
A primeira seqüência inicia com imagens da beira de um rio, com a passagem
de sua água transparente evidenciando o fundo lodoso da margem. Essa imagem é
acompanhada de um som que não podemos identificar imediatamente, um som que
causa estranheza a ouvidos não bororo, que ressoa em nosso corpo. Começamos a
ouvir gritos e vozes que antecipam a cena que se segue.
Trata-se de uma situação envolvendo homens adultos e jovens meninos, quase
todos com os corpos cobertos de lama. É um momento de grande tensão e apreensão,
fato expressa nos rostos dos meninos que parecem estar sendo submetidos a algum
tipo de ritual, de iniciação diriam alguns. Os olhos e a expressão desses meninos são de
medo e fascínio pela experiência daquele momento, envolto em poeira e
dramaticidade. Ao final dois deles em conversa expressam a tensão anterior em
palavras.
Ritual da Vida. Dir. Edgar Teodoro da Cunha
Bibliografia
BALDUS, Herbert. Ensaios de etnologia brasileira. São Paulo: Companhia Editora
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BARBOSA, Andréa e CUNHA, Edgar Teodoro da. Antropologia e Imagem. Rio de
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SCHECHNER, Richard. Between theater and anthropology. Philadelphia: University of
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TURNER, Victor. From ritual to theatre: the human seriousness of play. New York: PAJ
Publications, 1982.
1
Após minha participação no Encontro Internacional de Antropologia da Performance, EIAP, apresentei
as reflexões aqui expostas na IV Semana de Estudos Teatrais da UNESP, a forma final desse texto
decorre das discussões e contribuições surgidas na discussão com diferentes pesquisadores por ocasião
dos dois encontros.
Sessões NAPEDRA
Resumo: Esse trabalho propõe lançar luz sobre a experiência das festas raves
focando os planos em conflito, carregados de tensão, operados nas montagens
realizadas por esse modo de festejar. Debruça-se especialmente sobre a performance
das festas de trance enquanto “rituais psicodélicos” e trata da instabilidade entre as
imagens de espetáculo e de ritual que se entrelaçam.
Mais do que caracterizar uma experiência trance da rave, essa pesquisa
investiga a própria procura por experiência pelos ravers. Neste caminho, propõe pôr
em relação os conceitos ravers de Xxxperience e vibe, e as noções benjaminianas de
erfahrung (experiência coletiva) e erlebins (experiência individual ou de um grupo
específico), orientada pelas preocupações do campo da antropologia da experiência.
***
1
No senso comum, ruído significa barulho, som ou poluição não desejada. Na eletrônica o ruído pode ser
associado à percepção acústica, por exemplo, de um “chiado” ou “chuvisco” na recepção fraca de um
sinal. No processamento de sinais o ruído pode ser entendido como um sinal sem sentido, leatório, sendo
importante a relação Sinal e Ruído na comunicação. Já na teoria da informação o ruído é considerado
como portador de informação.
2
Esse é um processo intenso de invenções e classificações musicais que se relaciona com a dinâmica
identitária de agrupamentos urbanos. Sobre essa dinâmica desenvolvi a dissertação de mestrado “Rave:
encontros e disputas” (Abreu, 2005) e o antropólogo Ivan Fontanari (2008), seu doutorado. Ver também
Baldelli e Moutinho (2004).
3
Disponível em (http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%BAsica_eletr%C3%B4nica). Acessado em 25 de
maio de 2009.
tecnológico de equipamentos no decorrer do século XX e também com certo modo de
narrar e compor, intimamente ligado com práticas sociais que se instituíram.
Nem tanto pela popularidade crescente, mas especialmente pela peculiaridade
histórica, torna-se pertinente investigarmos antropologicamente a prática da
produção, da audição e da reprodução da música eletrônica de pista.
***
4
“To Tom and Ed, from the beginning, the point of great dance music was not simply to make you move,
but to truly move you.” (:2)
5
Ver Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia - volume 1 (2005) de DELEUZE, Gilles Deleuze e Félix
Guattari.
meus olhos eu posso ver minha carne derreter e minha alma
ascender entre os espaços do som. (tradução minha)6
***
“Pastilhas de ecstasy pipocavam aqui e ali. Era uma droga até então pouco
conhecida e que até 1995 ainda era legal nos EUA. Seu principal componente era a
metanfetamina MDMA. De uma hora para outra, muitos passaram a tomar. É fácil de
entender por quê. Quem usava ficava sempre sorrindo, abraçando os outros e depois
falava em ‘sentir a música melhor’, ‘desencanar das paranóias’, ‘quebrar as barreiras
entre as pessoas’ e ‘uma vontade de dançar e imergir no som’” (Rocha, 2003, p. 22)
6
“The music thunders through my flesh, the notes swim within my veins. DJs spin their scriptures with
eloquence, zest and assurance. The bass rattles my lungs and beats in unison with my heart. If I close my
eyes I can watch my flesh melt away and my soul rise between the spaces of sound.”
7
Nome fictício.
O próprio emblema da geração clubber dos anos 90, símbolo do acid house, o
smiley, – resgatado da psicodelia dos anos 70 –, faz alusão ao ecstasy. Tal como
caracterizou Rocha: “um comprimido sorridente com olhos arregalados”.
Talvez não seja por acaso que um dos conjuntos mais competentes de
produtores de dance music chame-se Chemical Brothers. A irmandade estabelecida
nas pistas de dance music também tem laços numa consangüinidade química, mesmo
que não sejam os únicos ou os mais importantes.
***
É sobre esse tipo de experiência que Walter Benjamin trata, em A obra de arte
na era de sua reprodutibilidade técnica, quando nota que o cinema, através da visão,
atinge o tátil do espectador.
Quanto à definição de cinestesia com c, o dicionário é pobre: “Cinestesia. 1.
conjunto de percepções pelas quais se percebem os movimentos musculares – 2.
percepção consciente da posição e dos movimentos das diferentes partes do corpo”
(1999, p. 230). Mas a citação de Anne Suquet nos ajuda a compreender melhor o
conceito. Anne Suquet trata toda a experimentação da dança e do corpo poético do
século XX como incitada pela eclosão de um sexto sentido no limiar desse período: a
cinestesia. Experimentações de uma época sobre a natureza da visão e do movimento;
percepção e mobilidade intimamente ligadas.
8
Disponível em (http://www.zuvuya.net/sites/raveon). Acessado em 1 de junho de 2005.
que se abre para as explorações dos bailarinos no limiar do
século XX. O sensível e o imaginário nele dialogam com
infinito refinamento, suscitando interpretações, ficções
perceptivas que dão origem a outros tantos corpos poéticos.
(Suquet, 2008, p. 515-16)
***
9
“Occurring record by record and interaction by interaction, liminality is presented and promoted as a
transformational experience realized through music and dance.”
afetariam o senso de tempo transmitido pela música, criando assim um código, bem
entendido pelos dançantes, no qual o DJ atende ou surpreende a lógica rítmica do
momento.
Interessante é a observação do autor quanto a padrões de resposta dos
dançantes à musicalidade composta pela DJ. Em momentos de suspensão da música
ou da freqüência do grave, Gerard observa que enquanto uma moça deixa de dançar,
fita o DJ, meio sem saber o que fazer, a espera de novas instruções; outra
(provavelmente mais familiarizada com essa linguagem musical) apenas respira e volta
a dançar no momento exato que o DJ reintroduz o grave pela mixagem – os silêncios
também compõem a música de pista e atendem a um tempo previsível pois o ritmo
não é suspenso.
Ferreira (2006) também fez observações quanto a comunicação corpórea da
dança nas pistas de música eletrônica: considerou que o beat da música - sua batida
constante - sugere um movimento rítmico regular do corpo, que se combina com
respostas ao break da música – quebras propiciadas pela diferenciação de elementos
musicais - que motiva movimentos nas articulação corporais. A dança nas pistas de
música eletrônica seria então uma brincadeira com a correspondência corporal entre
esses sinais sonoros, que dependendo da habilidade e conhecimento do dançarino
resultaria em danças mais ou menos elaboradas. Mas essas considerações, ainda que
bastante pertinentes, não explicam ou dão conta da conexão coletiva construída.
A mixagem, para Gerard, caracteriza um momento peculiarmente liminar,
período de ambigüidade tanto para DJ’s como para dançantes. Momento de transição
entre uma faixa e outra de música, quando se corre o risco de interromper o fluxo que
vai se constituindo como um envolvimento numa sintonia sensual coletiva. Há risco do
DJ quebrar a estrutura rítmica e despertar dançante para consciência de si mesmo e da
situação, o que seria considerado uma falta de competência Há várias gírias para tal
mixagem que é considerada mal, uma quebra entre duas gravações separadas, que se
fazer notar pelo descompasso na passagem de uma gravação para outra: “sambar” no
Brasil e “trainwrecking” em inglês (Gerard, 2004, p. 177).
A dance music seria como uma narrativa cíclica de mixagem após mixagem que
levaria dançantes e DJ constituírem estados de imersão coletiva, com alguns picos de
euforia - “peaks” em inglês e “bombação” em português do Brasil são as gírias usadas
para esses picos.
André (31 anos em 2005) comentou que um bom DJ é aquele que consegue
não apenas chamar os participantes da festa para a pista, mas também “manter em
suspensão a euforia sem esgotar os ânimos”. Ora, a festa é longa, e quanto mais longa
maior a possibilidade de ser trilhada coletivamente e ser construído esse espaço de
imersão compartilhado.
***
***
10
O corpo dócil do homem moderno, eficaz, que se move pelo estritamente útil, precisa buscar em suas
profundezas forças contra sua imobilização política.
11
Entre março e junho de 2008, o artista australiano Hans Schabu montou uma instalação exclusivamente
com cadeiras (416 cadeiras) no Barbican Art Gallery, em Londres, a fim de provocar a reflexão sobre o
Talvez a imagem da esteira eletrônica das academias seja emblemática:
movemos nossos corpos no ritmo programado nas máquinas, sem sair do lugar.
Viajamos em alta velocidade para tempos e lugares incríveis sentados nas salas de
cinema ou nas poltronas privadas em frente da televisão, de corpo parado somos
movidos.
Toda essa movimentação não faz barulho? Todas essas máquinas não
produzem nenhum som?
A musicalidade própria do movimento moderno tem muito do barulho das
máquinas. Máquinas de velocidade, máquinas de deslocamentos, máquinas de
reprodução, máquinas de amplificação. Somando elementos continuamente -
automóveis, motores, bombas, amplificadores, eletrodomésticos - nossas metrópoles
atingem altos níveis do que é denominada “poluição sonora”.
A “poluição sonora” de nossas cidades torna-se elemento de intoxicação que
possibilita a transcendência nas raves. Não apenas a música eletrônica é
necessariamente produzida por máquinas12, mas também reproduz e imita o som de
máquinas - o que Ferreira (2006) nomeou como “estética maquínica”. Serras elétricas,
baterias eletrônicas, sirenes, campainhas, ruídos de motores são unidades musicais
que, então rearranjadas (num compasso tão exato que só a máquina pode montar e
reproduzir), deslocam o familiar para a abertura de possibilidades de movimentos
extraordinários. Zen Machine e Wrecked Machine são nomes de DJ’s de raves.
O ruído das máquinas – paisagem sonora das cidades do século XX e pontuação
da velocidade dos movimentos do trabalho urbano – é subvertido para ser dançado,
torna-se música da festa, tempo alegre (e livre) dos finais de semana. Embora
subvertido, o som da máquina ainda é interlocutor privilegiado da movimentação dos
corpos no século XX: tempo do trabalho e tempo de diversão na sociedade
tecnológica. Diálogo entre vibrações de corpos e máquinas.
incorporamento da natureza das diversas atividades de nosso modo de vida urbano e de nosso trânsito
pelo espaço público. A instalação, que dramaticamente arranjava todas as cadeiras a 90º do chão na
parede de um corredor curvo, desfilando conjuntos de fileiras e galerias de cadeiras de formatos
diferentes, foi descrita pelos curadores do centro cultural como uma forma de arqueologia.
12
O caderno especial do Jornal a Folha de São Paulo de 6 de abril de 1997, intitulado “Tecno, o futuro
acelerado” caracteriza a música eletrônica, que então era ouvida em raves, nos seguintes termos: “Música
física como o rock, o tecno se diferencia deste ao dispensar instrumentos tradicionais e utilizar
exclusivamente máquinas digitais para criar ‘soundscapes’ sintéticas. ‘Samplers’, computadores, baterias
eletrônicas e ‘gadgets’ digitais são os instrumentos utilizados por músicas que pretendem estar compondo
a trilha sonora do futuro”.
Instrumentos sonoros e agenciamento maquínico na performance, Eduardo
Nespoli (DAC/UFSCar)
Resumo
Por meio da recombinação experimental de materiais, artistas sonoros criam
instrumentos e manifestam em suas performances sonoridades inusitadas e ruidosas.
Estas experimentações apontam para a exploração e produção de novas relações com
a tecnologia sonora atual, cujos propósitos agenciam percepções acerca de um mundo
que se transforma em alta velocidade. Neste texto proponho uma reflexão sobre a
relação entre tecnologia e o processo experimental de criação de instrumentos
sonoros para a performance.
16
O termo transdução é aplicado aqui no sentido de conversão e passagem entre meios. O termo está
associado na física à transformação de um tipo de energia em outro, ao se utilizar um dispositivo que
possibilita a conversão. A transdução possibilita, deste modo, a passagem de um meio a outro, ao mesmo
tempo que mantém as características ou intenções formais de um sinal ou signo.
Bibliografia
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27-44. In: http://www.eca.usp.br/prof/iazzetta/texto.html.
sentido, a máquina performática possui como característica a capacidade de transduzir
informações sensoriais por diferentes meios, trabalhando como uma agência de
mediação na rede social. Neste sentido, a performance artística se coloca como uma
máquina sensorial e perceptiva, na medida em que faz os signos sociais atravessarem
do espaço imaginário para o espaço coletivo, e vice-versa.
Vejamos isto por meio do instrumento musical mais uma vez. Na ação de
acionamento sonoro, o músico faz o gesto sonoro transpassar do imaginário à escuta
coletiva por meio de uma série de processos de transdução. No instrumento musical
acústico este processo ocorre entre as instâncias psíquicas e motoras do corpo, já que
existe uma correlação direta entre o gesto sonoro e a estrutura do instrumento
(Iazzetta, 1997.b). Neste sentido, a modificação da estrutura do instrumento acústico
acarreta em mudanças na relação do músico com o instrumento, redimensionando os
aspectos gestuais. Entretanto, se pensarmos este processo tomando como exemplo a
ação do músico em um instrumento eletrônico, podemos visualizar uma outra
dimensão desta relação.
Multimídia
ZIEGLER, Thomas ; GROSS, Jason ; CHARNO, Russell – Ohm: The early gurus of
eletronic music (DVD). Ellipsis Arts. 2005.
Vamos tomar como exemplo a performance Music for solo performer,
realizada em 1965 por Alvim Lucier. O trabalho explora a utilização de um amplificador
de ondas cerebrais acoplado a alto-falantes para produzir uma performance musical a
partir da captura de ondas cerebrais por um conjunto de eletrodos. Em sua
performance, Alvim Lucier fixou diversos auto-falantes em instrumentos de percussão,
e a partir das variações das ondas cerebrais capturadas e amplificadas pelos eletrodos
conectados em sua cabeça, e da conversão das mesmas em som pelos alto-falantes, o
performer “percute” os instrumentos musicais acústicos. O sistema amplifica as
variações elétricas, projetando-as nos instrumentos de percussão por meio dos alto-
falantes, que por sua vez convertem os impulsos elétricos em energia mecânica que
produz vibrações nas membranas. Music for solo performer explora o uso de
tecnologia construída para uso médico com uma finalidade artística, ao mesmo tempo
em que revela a sutil relação entre corpo e tecnologia, já que aponta para o processo
de transdução entre níveis energéticos corporais, elétricos e acústicos. A continuidade
entre corpo e meio é apontada neste experimento artístico por meio do processo de
mediação tecnológica em que variações relacionadas à atividade cerebral são
mensuradas eletricamente na superfície da cabeça e convertidas em sons audíveis no
ambiente (Ziegler; Gross; Charno, 2005).
Este tipo de experimentação tecnológica na performance busca produzir novas
compreensões acerca da relação entre corpo e tecnologia eletrônica. Ao utilizar
dispositivos eletrônicos como o citado acima, o performer explora e modifica as
funções possíveis de uma máquina técnica, e demonstra com esta ação os campos
sensíveis que podem se desdobrar de uma nova relação entre o homem e a máquina.
O objeto técnico é posto em nova função, e isto o afasta de sua ligação com o
agenciamento maquínico que o produziu, assim como afirma uma nova possibilidade
de uso e uma nova rede de relações.
APRESENTAÇÃO
O campo
Durante minha pesquisa de mestrado,17 a confissão de um dos foliões diante do
choro convulso dos companheiros de folia ao final da festa do Divino me impulsionou a
seguir com eles em seu giro com a bandeira de casa em casa: “É... só nóis sabe o que é
carregar a bandeira por esse mundão de Deus”.
Contudo, nem todos compreendem muito bem a profundidade dessa
performance devocional e classifica a andança da folia com a bandeira como mero
17
A folia do Divino: experiência e devoção em São Luís do Paraitinga e Lagoinha, dissertação de mestrado, John
Cowart Dawsey (orientador), PPGAS-USP, 2009.
folclore. Num dos dias da novena, acompanhados pelo bispo de Taubaté, os devotos
de São Luís do Paraitinga, em procissão, levavam suas bandeiras do Divino da Igreja
matriz para o Império. E foi ali mesmo, no Império, a morada do Divino fora da Igreja
matriz, que o bispo de Taubaté explicou aos devotos que aquele ritual era apenas uma
finalização, pois o louvor ao Espírito Santo, já sido feito na igreja matriz. Durante a
missa, inclusive, o bispo já havia advertido os fiéis de que: “É fácil levar a bandeira de
lá pra cá; o difícil é ter a verdadeira fé”. Isso me deixou intrigada: o que seria a
verdadeira fé?
Por meio da pesquisa de campo, norteada pelos pressupostos da antropologia
da experiência e da performance, pude apreender que a verdade da experiência de
devoção ao Divino é a sua forma, isto é, seu modo específico de pôr significados em
circulação, sua performance, do qual a andança com a bandeira é parte fundamental,
essencial e não mera finalização ou folclore.
E a andança da bandeira é ainda maior do que o percurso entre a igreja matriz
e o Império nos dias da festa: uma boa festa do Divino, como manda a tradição, deve
ser precedida e preparada pelo giro da folia, que sai esmolando com a bandeira do
Divino de casa em casa. E talvez o bispo tenha razão em menosprezar essa andança
com a bandeira já que, de certo modo, o giro da folia rivaliza com a igreja, pois traz a
bandeira com a pombinha, a quem o povo atribui o poder de distribuir bênçãos. Assim,
nem sempre é preciso ir à igreja para demonstrar fé, pedir e obter uma graça.
Talvez a folia e sua andança com a bandeira sejam exatamente a parte mais
significativa da celebração ao Divino Espírito Santo. A folia é significativa no tempo:
atua antes, depois e durante a festa do Divino, pois transita o ano inteiro e não apenas
nos nove dias de festa; a folia é significativa no espaço: ao percorrer a área urbana e
também a zona rural, seu âmbito de atuação é muito mais inclusivo do que a
celebração da festa no centro da cidade; a folia é significativa em sua natureza:
evidencia a caduquice da oposição entre sagrado e profano, contagiando o cotidiano
dos devotos com a presença da divindade durante o ano inteiro nos animados pousos-
potlatch, especialmente nos bairros rurais e nas periferias urbanas do Vale do Paraíba.
Alferes (porta-bandeira) da Folia do Divino de Lagoinha em giro pela zona rural de São Luís do
Paraitinga. – Tem folia que esmola de carro, mas o certo é a cavalo. Assim, de longe, dá pra ver a
bandeira chegando. O Divino não se intimida com as distâncias, com as dificuldades do caminho. Se tem
que ir até a casa mais distante, no lugar mais pobrezinho, não importa, tem que chegar lá. E, a cavalo,
chega mesmo, diz o mestre da Folia. Foto: Adriana de Oliveira Silva.
Corpo e devoção
Que a devoção ao Divino se dê principalmente ao nível do corpo, dos sentidos
do corpo e não apenas ao nível do espírito, do intelecto, da ideação fica evidente pela
forma como o Santo é celebrado. Nas procissões, nas andanças com a bandeira, nos
pousos do Divino, o corpo emerge como instrumento que deve ser moldado por meio
de uma profusão de estímulos visuais, auditivos, táteis, olfativos e gustativos (talvez
outros) para se entrar em contato direto com o Espírito Santo. Em vez de ser proibido,
tolhido ou vedado, o corpo e seus sentidos são excitados, estimulados. Uma das
particularidades da devoção popular ao Divino é que, para elevar a alma, não é preciso
abater ou derrubar o corpo. Corpo e alma, se que é os devotos do Divino fazem essa
distinção, são solidários.
A bandeira do Divino
Devota recebe a bandeira das mãos do mestre da Folia do Divino e conduz os foliões de chapéu
no peito e instrumentos nas mãos para dentro de sua casa. Ali, junto com a família, ouve a cantoria da
Folia. Depois, a dona da casa passeia com a bandeira por todos os cômodos da casa pedindo bênçãos.
Foto: Adriana de Oliveira Silva.
Chega a folia e o dono da casa se põe a chorar. Agarra a bandeira, reza alto,
atropelando a cantoria. Noutra morada, uma senhora de olhos cobertos por manchas
pretas de tombo e cirurgia espera a morte. Depois da cantoria, diz que agora sabe que
vai se curar. Uns choram quando a bandeira chega e mais ainda quando ela vai
embora. Outros insistem para que os foliões fiquem mais um pouco, mais uma prenda,
mais um dedo de prosa, mais um cafezinho, mais um pedaço de mandioca cozida...
Enquanto a folia canta, o dono da casa segura a bandeira, reza baixinho, olha a
foto da criança no tico-tico, do casal gay, da casa branca de porta e janela azul. Vai
remexendo os fios de fita da cortina de bilhetes com pedidos e agradecimentos bem
dobradinhos para serem lidos só pelo Divino. Foto do marido que parou de beber; da
mulher que espera se curar de uma doença; da criança com pneumonia. Foto do boi
no pasto que não quer engordar; da vaca que não dá leite. Foto do homem
desempregado da lavoura que arrumou um emprego na indústria de celulose. Foto da
família reunida: que o Divino mantenha o emprego e a alegria. O Divino também é um
pouco Santo Antônio: muito devoto pede um noivo ou noiva para se casar. O devoto
também observa as chupetas, os cigarros... os vícios pra se largar. E ali vê também
gente nunca vista antes e fica sabendo um pouco dela. Também vê uma foto ou um
bilhete de alguém conhecido e revê gente que há muito não se via.
Enquanto a folia canta, as pessoas da casa vão se avizinhando da bandeira,
manipulando-a, beijando-a, passando seu tecido pelo corpo. Terminada a cantoria,
chega a hora de dona Marina benzer as pessoas e a casa com a bandeira. Toca a
bandeira com os dedos, agora consagrados, toca-os na testa, em um ombro, no outro,
no peito. Numa mão, apanha um pedaço do tecido vermelho, reza com os lábios, os
olhos e a outra mão voltados pra cima.
– Vem cá menino!
Puxa um pedaço do tecido da bandeira, transforma-o num véu sobre a cabeça
do menino, que se balança pra lá e pra cá, desejoso de voltar ao pega-pega com os
primos e amigos interrompido pela benzeção da avó. Dona Marina reza longo, olho
fechado, sem pressa.
– Vem aqui Zezinho, vem também Juninho!
Devota devolve a bandeira para os foliões. A andança da Folia cria uma rede de comunicação,
ligando lugares, parentes e amigos. Também inclui gente que não pode sair de casa por causa das juntas
doídas, da vista turva, da cabeça pesada, por não enxergar mais, por não aguentar mais, por não ser
mais convidada, por não ter mais ninguém, por não poder deixar o roçado, a criação, a criançada. Foto:
Adriana de Oliveira Silva.
Numa das casas do giro no bairro de dona Marina, a bandeira havia sido
passada com vagar e carinho em cada parte do corpo esquálido de um menino deitado
no sofá e, depois, na cadeira de rodas ao seu lado. A cena é emocionante. A gente fica
torcendo para que o menino se levante e ande. Mas não é disso que se trata. A
bandeira, esse manto que cobre a cabeça e o corpo de bênçãos, protege o corpo das
agruras do mundo, não importa se o corpo do menino permaneça visualmente do
mesmo jeito.
Dona Marina chora principalmente em seu quarto, rezando baixinho, de olhos
fechados, diante da foto do marido finado. Depois, lembra-se de mais um lugar na casa
para visitar com a bandeira, de mais um altar num canto, de mais uma pessoa que
faltou benzer com o tecido da bandeira. Depois da casa e da gentarada abençoada, é
preciso sair ao terreiro, levar a bandeira para benzer a horta, os pés de fruta e os pés
de flor, a galinhada, a porcada, a boiada, a cachorrada e tudo o que houver.
– Eu já estou terminando. Já, já, eu devolvo a bandeira para os senhores folião.
Eu sei que vocês precisam ir embora agora, diz numa voz trêmula.
– As pessoas recebem a gente de coração, diz o folião. Do mesmo jeito que as
pessoas da casa ficam tristes, nóis também fica. Porque quando a gente chega de
tarde, você viu aqui ontem, é uma alegria pra todo mundo: “O Santo chegou, o Santo
chegou!”. Depois chega a hora de ir embora, ficam tudo triste as pessoas da casa. A
gente fica triste porque pega uma amizade tão grande com a família, e depois tem que
ir embora. Mas aí, chega noutra morada e começa tudo de novo.
Por meio desse trecho etnográfico, vemos que a relação do corpo do devoto
com o corpo santo que é a bandeira do Divino é bastante intensa. Principal objeto de
devoção do Divino, a bandeira não é apenas contemplada de longe. Em vez de
protegida por uma moldura envidraçada, é de pronto oferecida ao dono da casa. Nas
mãos deste, a bandeira transita esvoaçando bênçãos pela morada e pelos corpos dos
devotos.
Folia do Divino de Lagoinha cantando em casa do devoto. O Divino desceu do céu /Num raiar de
luz/Vai levar sua promessa/Pra Deus Jesus. Por que não é simples entender o que cantam os foliões do
Divino? – Por que é uma cantoria estilo latim, vem lá do latim, diz o mestre. Quando perguntado por que
sua Folia não canta de um modo mais “declarado” para as pessoas entenderem o que eles cantam, outro
mestre replicou: – Todo mundo sabe o que a Folia canta mesmo que não entenda as palavras. Ouve
desde pequeno, sabe que a Folia está ali para abençoar, pedir prendas e agradecer. Todo mundo sabe!
Foto: Adriana de Oliveira Silva.
Primeiro, trata-se de uma imersão sonora: a folia do Divino faz sua cantoria.
Depois, ou simultaneamente, ocorre a manipulação da bandeira, quando os devotos
tocam seu tecido vermelho, vêem lá a pombinha branca, a própria corporificação do
Espírito Santo. Vêem e lêem as fotos, os bilhetes e outros objetos votivos presos a ela.
Desse contato corporal com a bandeira emerge a experiência de pertencer a um todo
maior, de compartilhar uma experiência de devoção.
No seu guia sobre antropologia dos sentidos, Classen ressalta que antropólogo
deve atentar que as diferentes culturas tendem a reconhecer diferentes ordens
sensoriais. Os javaneses, como nós, também reconhecem cinco sentidos, mas eles não
coincidem exatamente com os nossos. Para os javaneses, os cinco sentidos são: a
visão, a audição, o olfato, o tato e a fala. Quase igual a nós, a diferença é que eles
reconhecem a fala como um dos cinco sentidos em vez do paladar.
Classen também ressalta que os sentidos interagem entre si: muitas vezes, há
entre eles um jogo de ênfase e repressão. Meu campo mostra bem essa interação:
quando a folia faz a cantoria, a audição é o sentido enfatizado. A observação de um
devoto e de outras falas semelhantes, contudo, fizeram-me atentar para o caráter tátil
da cantoria da folia. Um dos devotos me disse: “Aquilo ali (a cantoria da folia) é feito
pra chorar. Não tem outra função. Aquela caixa batendo forte, bate aqui direto na
caixa do pulmão e a gente chora. Aquela música atonal, fanhosa, nasalada, que não se
entende nada, pra que serve? Pra chorar, é evidente”.
Outro exemplo: quando um devoto reza com a bandeira em punho, geralmente
fecha os olhos, ou olha para o “nada”. Neste momento, a visão é o sentido menos
intenso, quase reprimido, embora seja amplamente excitado em quase todos os
outros momentos rituais.
Para ressaltar a caráter marcadamente sensorial dessa experiência devocional,
descrevo agora o principal lugar devoção ao Divino, o Império, onde os devotos rezam
e guardam as suas bandeiras.
O cetim vermelho e o seu duplo, o cetim branco, cobrem a sala com
desperdício. Uma abundância de maciez escorre pelas paredes e pelo teto. Tenda de
sultão? Protuberâncias corporais. Peitos, bundas? O vermelho é o amor de Deus e o
sangue de Cristo. O branco, a paz, a pureza, a pombinha do Divino. A luminosidade
interna, também arredondada e exagerada, inspira o toque. Os lustres, peitos
redondos com bicos salientes, são feitos com fundos de garrafa pet amarrados uns aos
outros e iluminados por dentro com lâmpadas vermelhas. Os antúrios de plástico,
viçosos e pontudos, reluzem vermelhos. Os anjos, cada um segurando um dos sete
dons do Divino: sabedoria, entendimento, ciência, conselho, fortaleza, piedade e
temor de Deus. As bandeiras enfileiradas nos cantos das paredes, carregadas de fotos
e bilhetes para a divindade. Na parte de fora, na fachada, uma placa com um IMPÉRIO
escrito em vermelho e circundado por pequenas lâmpadas coloridas, convida a entrar
naquilo que por instantes parece um indiscreto bordel ao lado da igreja matriz. Faz frio
lá fora, mas o interior do Império é quente. Incita a reza, num torpor místico-carnal
diante da imagem da pombinha, dos cachos de uvas vermelhas, que ali dentro
representam o sangue de Cristo, o amor de Deus, e fora, decoram as barracas de
batida com suas frutas frescas e de plástico, umas e outras carnudas e viçosas,
misturadas entre garrafas de pinga e outros spirits, esperando os devotos para
matarem a sede quando a missa da novena do Divino terminar.
Vimos aí uma profusão de sensações para incitar a devoção. Formas, cores,
texturas. O som é de água corrente da fonte que ilumina o altar do Império, das rezas,
das pequenas conversas sobre a família, dos flashes das câmeras de fotografar. O
cheiro da fumaça das velas queimando.
Em seu texto, Classen também enfatiza que, para perceber a ordem sensorial
de outra cultura, o antropólogo precisa superar a sua própria ordem sensorial. Para
isso, ela diz, são necessários três passos: 1. O primeiro e mais importante é que o
antropólogo descubra e esteja consciente de sua própria ordem sensorial. É preciso
que ele se pergunte, por exemplo, qual(is) sentido(s) eu privilegio? 2. O segundo passo
é desenvolver a capacidade de ser sensível a uma multiplicidade de expressões
sensoriais, ao mesmo tempo. 3. O terceiro passo é desenvolver a capacidade de ser bi-
sensorial, de ser uma espécie de bilíngue na linguagem dos sentidos, isto é, saber
reconhecer e distinguir a sua própria ordem sensorial e a da cultura a qual pesquisa.
Eu, por exemplo, sou um tanto “cega”, por isso, sempre que posso, levo a câmera
fotográfica para campo. Nesta pesquisa sobre a devoção do Divino, a câmera foi
essencial, pois o apelo à visão, entre os devotos, como vocês podem ver, é extremo.
Um exemplo que Classen nos fornece para as diferentes ordens sensoriais é a
percepção do sangue. O sangue tem uma variedade de propriedades sensoriais: ele é
quente (tato), viscoso (tato), vermelho (visão), salgado (paladar) e tem um cheiro
característico (olfato). O que ficou faltando? A audição, mas deve haver alguma cultura
por aí que reconhece o sangue exatamente pelo seu som. Pois a ênfase num ou noutro
aspecto sensorial depende da ordem sensorial da cultura em questão. Um americano,
Classen diz, pensa no sangue em termos de sua aparência visual: o sangue é vermelho.
Já um indiano do Sul, praticante de um determinado ritual de cura, pensa o sangue em
termos táteis: o sangue pulsa dentro do corpo.
18 Turner, 2008, p. 189. A metáfora de “glacê no bolo da devoção” é utilizada por Turner para
argumentar que as peregrinações não têm nada de superficial, ao contrário, são uma forma de reação à
modernização iconoclasta e racionalizante e às tendências despersonalizadas e anômicas da organização
burocrática moderna. Como exemplo de modernização iconoclasta e racionalizante, Turner cita Calvino,
para quem tudo o que é necessário para alcançar a salvação é viver uma vida sóbria, diligente e pura,
sendo as peregrinações um incompreensível desperdício de tempo e de energia. De certo modo, Calvino
tinha razão, a peregrinação é puro desperdício. É puro potlatch. E, no entanto, ou por isso mesmo, de uma
eficácia devocional impressionante.
desconfiança. A aposta no caráter necessário do giro da folia para devoção ao Divino
Espírito Santo é promovida pela leitura de Geertz:19 “A passagem daquilo que é feito
para aquilo que é significado, assim como daquilo que é significado para aquilo que é
feito, envolve, sobretudo, uma capacidade de transcender nossa hipótese
profundamente fragmentada de que os signos são uma coisa e as experiências são
outra”.
Prosseguindo sua argumentação, Geertz20 sublinha que as ideias não são uma
substância mental não-observável. Elas são significados veiculados, sendo os símbolos
seus veículos, sendo um símbolo tudo o que denota, descreve, representa,
exemplifica, rotula, indica, evoca, retrata, exprime, ou seja, tudo o que, de um modo
ou outro, significa.
Com base na experiência dos devotos, torna-se despropositado considerar o
giro da folia como mera andança de lá para cá com bandeira, performatizada por
cristãos supostamente incultos. Ao contrário, o giro da folia – mimético de si mesmo,
da ação dos devotos e da ação do Espírito Santo – é o que existe. Sua forma é a própria
devoção ao Espírito Santo.
Qual seria então o lugar da andança da folia com a bandeira? Polaridades como
erudito e popular, sagrado e profano continuam sendo acionadas para interpretar
manifestações religiosas como a folia do Divino como folclore, algo simpático e
ingênuo, uma relíquia a ser preservada na e da modernidade. De que tipo de relíquia a
folia do Divino pode ser considerada?
De acordo com sua etimologia,21 relíquia [lat. reliquìae] refere-se à migalha, ao
resto que fica entre os dentes depois de comer. Entre suas acepções estão ruínas,
destroços, resíduos e excrementos. E, ainda, o que resta do corpo de um santo, os
restos mortais, as cinzas, e, por derivação, os objetos que a ele pertenceram ou que
tiveram contato com seu corpo.
Uma relíquia é então o índice de uma falta, de uma falha, de algo que já não
está lá em sua inteireza e também o resto mortal que se torna precioso e digno de
adoração. Numa perspectiva barroca, talvez a folia seja um pouco de tudo isso: uma
manifestação folclórica em extinção e, também, a esmola oferecida por cada devoto
que, ao final do giro, é divinamente corporificada no afogado, o banquete em
homenagem ao Divino; o Cristo que, cumprindo o plano do Pai, morre na cruz e depois
envia o Espírito Santo; a bandeira, o corpo santo, que se deixa impregnar pelos
resíduos corporais e pelas fotografias das pessoas queridas, dos animais de estimação,
de criação, do carro, da casa, e pelos bilhetes e nozinhos votivos, encarnando e
fazendo circular tudo o que é mais importante para os devotos. Desse modo,
considerada mero folclore, a folia emerge como o resíduo, a relíquia da tradição que
fecunda e cria o novo. E talvez não pudesse mesmo ser diferente, uma vez que a
experiência do Espírito Santo é a da chegada de um novo tempo.
Conclusão
O giro da folia mimetiza o modelo divino, já que assume a forma de um
momento de reciprocidade entre os homens promovida pela chegada do Espírito
Santo com a folia, que possibilita a comunhão com Deus. Trata-se de uma forma que
não é uma mera ideação e sim uma forma corporal, sensível, que assume um éthos
barroco ao citar, carnavalizar e fazer uma bricolagem com os resíduos, com as relíquias
de cosmologias e teologias disponíveis em estruturas de longa duração do
imaginário.22
Ao promover uma andança devocional praticamente ininterrupta, o giro com a
bandeira parece mimetizar um tempo espiralar em que a vida social é concebida num
contínuo dar, receber e retribuir, que é também o dom do próprio Espírito Santo. E
justamente a bandeira é o objeto central dessa devoção expressiva ao Divino, dessa
teologia vivida constituída por uma experiência performativa do Espírito Santo, uma
performance tanto solene quanto carnavalizante do próprio percurso e discurso Dele,
uma performance em que a abertura aos sentidos do corpo é a condição essencial.
Em vez de privilegiar a análise de uma cosmologia ou de uma teologia
transcendente, portanto, subjacente à devoção ao Divino, esta comunicação procurou
explicitar que é justamente a devoção encarnada e festiva, e, ao mesmo tempo, tão
22 Montes, 1997.
perseguida e deslegitimada, a expressão da própria misericórdia de Deus pelos
homens.
Apesar das previsões pessimistas da ortodoxia católica (que vê na religiosidade
popular mera superstição) e da opinião dos defensores da tradição (que sempre
diagnosticam sua descaracterização), a folia do Divino continua viva e significativa. Sua
linhagem e linguagem corpórea não foram extirpadas: os foliões do Divino ainda estão
cantando, ainda estão sendo recebidos com festa nas moradas, na roça e na cidade,
ainda estão abençoando e sendo abençoados. Estão em risco, evidentemente. No
entanto, correr risco faz parte do giro, da travessia. Do estar vivo. Do constituir-se
como experiência.23
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pós-graduação em antropologia social da USP, São Paulo, n. 13, p. 177-185.
TURNER, Victor. (2008). Peregrinações como processos sociais. Dramas, campos e
metáforas: ação simbólica na sociedade humana. Niteroi: EdUFF, p. 155-214.
23 Para compor uma etimologia para experiência, Turner averigua que per, na base indo-europeia,
relaciona-se à tentativa, aventura, risco e perigo; na base germânica, passagem, medo, transporte; e, em
grego, perao implica passar através e perigo. Cf. Turner, 2005.
Rituais de Devoção: Dádivas e Contradádivas no Messianismo do Contestado,
Celso Vianna Bezerra de Menezes (PPG-SOC/UEL)
24
O ritual é um dos temas mais discutidos na antropologia, no entanto abdicamos de refazer o longo
trajeto que remonta aos trabalhos de E. Durkheim, A. Van Gennep, etc. Do mesmo modo, os estudos
sobre a performance na antropologia, embora de discussões bem mais recente, serão retomados somente
parcialmente durante a exposição deste trabalho. Remeto o leitor, portanto, aos textos que fizeram uma
discussão sobre o tema: LANGDON (1996); PEIRANO (2002, 2003, 2006); DAWSEY (1999, 2005) e
SILVA (2005).
25
Observemos que embora se conheçam inúmeras definições de “ritos”, deveria haver para todas elas um
pressuposto fundamental: a de que os atores participantes destes atos rituais marcariam esses momentos
como distintos dos acontecimentos cotidianos. Do mesmo modo, Mariza Peirano diz que não separa, em
termos absolutos, o que é do que não é ritual. “O motivo é simples: a concepção de que um evento é
“diferente”, “especial”, “peculiar”, tem que ser nativa. Em princípio, passa a ser “ritual” o que nossos
interlocutores em campo definem ou vivem como peculiar, distinto, específico” (PEIRANO, 2006, p. 3).
papéis próprios da vida cotidiana. Nestes momentos excepcionais, os personagens são
figuras liminares26 cujo distanciamento permite pensar a vida social como um meta-
teatro, ou um contra-teatro.
A antropologia da performance estudada por Victor Turner em seus últimos
trabalhos, bem como os estudos de Richard Schechner sobre performance estética,
nos permitem pensar os efeitos de distanciamento: a subjuntividade dos atos, ou o
agir “como se”, ou ainda, a experiência de ser ao mesmo tempo “não-eu” e “não não-
eu”. “Trata-se de um eu vendo-se sendo visto pelo outro, como outro” (idem, p. 21 e
23). Ainda segundo John Dawsey, é este “desvio metodológico” promovido por Turner
que permite um “lugar olhado das coisas” privilegiado: as margens (a anti-estrutura)
onde se capta a intensidade da vida social e a partir da qual se pode compreender uma
estrutura social. Segundo suas palavras, “trata-se de um olhar atento e de uma
abertura calculada, tal como o cálculo de um risco, do antropólogo em relação aos
movimentos surpreendentes das sociedades” [...] “Experiências de liminaridade
podem suscitar efeitos de estranhamento em relação ao cotidiano. Trata-se de mais do
que um simples espelhamento do real. A subjuntividade que caracteriza um estado
performático, liminar, surge como o efeito de um ‘espelho mágico [...] Abrem-se
fendas no real, revelando o seu inacabamento. Tensões suprimidas vêm à luz. Estratos
culturais e sedimentações mais fundas da vida social vêm à superfície. Assim, nos
espaços liminares, se produz uma espécie de conhecimento: um abalo” (idem, p. 24).
O estudo das práticas religiosas que ora propomos remete às noções de magia,
tomadas como crenças, mas sobretudo como práticas, ou seja, buscamos entendê-las
e analisá-las enquanto ritos. Pretendemos nos apoiar nas formulações sobre os rituais
empreendidos por Mariza Peirano, que procura pensar conjuntamente os mitos e os
ritos, o dito e o feito, título, aliás, de uma de suas publicações (PEIRANO, 2002). Esta
autora parte das definições operativas de Stanley Tambiah e acredita que o ritual deve
ser entendido tendo como pressupostos quatro quesitos: 1) ele é um sistema cultural
de comunicação simbólica; 2) é constituído de sequências ordenadas e padronizadas
de palavras e atos; 3) frequentemente expresso por múltiplos meios; 4) é uma ação
ritual performativa (PEIRANO, 2003, p. 40).
Segundo a autora, podemos desta forma esclarecer como se dá a eficácia do
ritual, analisando-a em três sentidos: a) no sentido pelo qual dizer alguma coisa é
também fazê-la; b) no sentido pelo qual os participantes experimentam intensamente
uma performance que utiliza vários meios de comunicação e c) no sentido de valores
que são criados e inferidos pelos atores durante a ação. “Rituais são adequados para
realizar essas funções aparentemente diversas (combinar as dimensões do viver e do
pensar), porque são performativos. Desta forma, a eficácia da ação social, que Marcel
Mauss tanto insistiu em incluir em sua visão da sociedade, recebe uma formulação
renovada...” (idem).
Tomar as ações como performativas nos permitirá, pensamos, superar uma
preocupação que vem de longa data nos estudos sobre as práticas religiosas do
homem rural, e dos movimentos sócio-religiosos, a qual se limita a produzir
reducionismos causais ou estruturais, como as infindáveis discussões das “causas”
26
Conforme Victor Turner, “enquanto a ‘communitas’ é um relacionamento entre seres humanos
plenamente racionais cuja emancipação temporária de normas sócio-estruturais é assunto de escolha
consciente, a liminaridade é muitas vezes, ela própria, um ‘artefato’ (ou ‘mentefato’) de ação cultural”
(TURNER, 1974, p. 6).
desencadeadoras dos movimentos, se endógenas ou exógenas à sociedade
camponesa. Foi Duglas Monteiro quem, há 30 anos, nos alertava:
Deus fez o homem para ser sua imagem, e isto está escrito na tábua de
sua lei. Quando vieres a Tua mesa estendas a tua toalha, ali estará a
minha semelhança. Pelo Amor do Nosso Senhor Jesus Cristo e a proteção
do Profeta João Maria. Que nos livre de nossos inimigos, carnais e
espirituais, das guerras, dos ladrões e assassinos, da fome e de doenças,
dos raios, cheias e secas. Que o Profeta João Maria guie minha vida.
Nossa Senhora do Carmo me cubra com seu manto Sagrado, assim como
estava o menino Jesus aguardando nove meses no ventre da Santíssima
Mãe de Deus e das três pessoas da Santíssima Trindade. Assim Seja.
E outro bilhete:
Bibliografia
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Corpo devotado, corpo aos pedaços: uma antropologia de corpos que crêem,
Denise Pimenta (PPGAS/USP)
De tripas e coração
Na Casa das Velas existe a seguinte explicação: “Os objetos de cera também
são chamados de ex-votos, são oferecidos a Deus ou a Nossa Senhora quando se
reconhece uma graça ou se faz um pedido. No Santuário Nacional, estes objetos são
entregues na Sala das Promessas”: Barriga / coluna / útero / pescoço / ombro / braço
esquerdo / braço direito / perna direita /perna esquerda / chave / carro / casa / seio /
bexiga / joelho / baço / face / fígado / intestino / estômago/ nariz / pulmão / garganta
/cabeça masculina / cabeça feminina (grande e pequena) / pé direito / pé esquerdo /
carteira de trabalho / boneco (corpo inteiro) / olhos / orelha / coração.
I – De tripas e coração
E é este corpo que aos pedaços está exposto na “Sala das Promessas” ou
queima nas piras de velas da “Capela das Velas”, estes últimos pedaços operando com
outra intenção. Tanto as partes corporais em cera encontradas na “Sala das
Promessas” como as que depositadas na “Casa das Velas” possuem o mesmo nome,
são chamados de ex-votos, porém, aqueles que se encontram na primeira são
realmente artefatos ex-votivos, que agradecem à santa Aparecida uma graça recebida.
Já os artefatos que são deixados em meio às velas da “Capela das Velas” aparentam
possuir uma função votiva, ou seja, são artefatos oferecidos à santa na intenção de
que alguma graça seja alcançada. Assim, os orantes conjugam o oferecimento de
artefatos de partes corporais doentes a preces, pedidos, promessas. No mesmo
momento em que pronunciam – ou, em silêncio, pensam – as palavras da prece e da
promessa, queimam as partes corporais na pira de velas. Na verdade não queimam
apenas artefatos de cera da parte corporal doente, queimam seus duplos, queimam o
próprio órgão doente, que causa malefícios ao corpo, que impede que este se
mantenha são. Através da articulação entre o ato de queimar o duplo de cera e o ato
de fala, que roga por cura, o mundo físico pode ser modificado, a intenção pode passar
de virtualidade à realidade. Portanto, a articulação da palavra e da queima do duplo é
eficaz, capaz de promover a cura. O mal do corpo é transferido para o duplo, assim, é
este que queima na intenção de extirpar a doença.
Na “Capela das Velas” podem-se observar milhares de pessoas que, a cada dia,
queimam artefatos de cera como duplos: cabeças, corações, úteros, seios, pés, baços,
rins, pescoços, pulmões, barrigas, faces, narizes, pernas, além de outras inúmeras
partes. Esta é uma das maneiras da realização do voto que articula o pedido verbal aos
aspectos visuais e materiais. A eficácia do evento comunicativo que gera a cura dos
males da saúde física do corpo ou também da saúde mental, depende de uma
competente performance, esta que depende do fino encaixe entre os aspectos verbais,
visuais, gestuais e materiais da comunicação.
Além dos duplos corporais encontrados na “Capela das Velas” e na “Sala das
Promessas”, existem também as extensões do antigo corpo doente, as próteses para
lembrar o teatro de Carmelo Bene, estas que ao invés de se separar do corpo,
acoplam-se à presença de uma ausência, ou seja, por entre as ferragens das próteses é
possível visualizar a forma vazia do corpo doente. Além de serem deixadas longas
mechas de cabelos de crianças, prometidas à santa por motivo de doença ou outro mal
qualquer. Também são deixadas roupas ensangüentadas de acidentes ou material
cirúrgico, extensões doentes de corpos que se curam. Cura esta que nas palavras de
Thomas Csordas (2008) ocorre a partir de uma retórica de transformação, mas
acrescento, uma retórica da transformação que não é apenas de aspectos lingüísticos
e semânticos, mas também uma retórica gestual, corporal. A cura do corpo passa pela
própria retórica do corpo.
Aponta Csordas (2008) que quando se fala em cura a partir de práticas
religiosas o que se problematiza é a eficácia. Ou seja, a eficácia deste tipo de cura é
questionada pelos descrentes. Assim, a cura religiosa muitas das vezes bate de frente
com o discurso médico, porém, mostra o autor que as discussões ficam muito nos
resultados da cura, porém, devem ser olhados os processos na medida em que a cura
ritual envolve uma totalidade, esta que abarca o evento comunicativo que é
performado pelo corpo através de seus gestus e pela palavra, a retórica de cura. Se
atentarmos para a forma, notaremos que também a medicina já esteve em contato
com seus duplos e suas magias simpáticas. Pois, na Antiguidade, após serem curados
de algum mal físico, os gregos levavam ao templo de Asclépio (em latim: Esculápio), o
deus da medicina, partes corporais em pedra como reconhecimento da cura. O deus
era tão popular e querido pelos gregos e latinos que chegou a receber do escritor
Lucius Apuleius (d.C) o título de: Aesculapius ubique. Eu diria sobre Nossa Senhora e
seus ex-votos: Aparecida et ex-votos ubiquitous!
Bibliografia
Considerações finais
A persona pode ser capturada não exatamente pelo que é, mas nas relações
que agencia, como relações de diferenças, entre eu e não eu, eu e o outro, pessoas e
pessoas. A persona surge no próprio ato. Trabalha enquanto anda: no percurso. É o
bricoleur (Lévy-Strauss, 1989) que constrói a partir de pedaços, cujo conjunto deixa
explícito e refere-se às partes do objeto de origem. Serve-se de materiais encontrados
(que viram seus textos) e trabalha com eles de uma forma específica: percorre o atalho
mais comprido, passando pela alteridade.
Ao mesmo tempo em que é polivalente, (como ser várias pessoas ao mesmo
tempo, administrar contradições, viver estados diferenciados e transitórios durante a
performance, etc...) a persona traduz tudo isso em ambigüidade profunda. E pode,
através do processo performático, da travessia artística, construir uma experiência
consistente. Consistente no sentido de ser capaz de mudar as pessoas e transformar a
vida. Ou apenas ser capaz de experimentar consistências de vida, vida carregada nas
suas várias dimensões.
Essa consistência é possível graças à qualidade auto-reflexiva da persona,
metalinguística por excelência, produtora de um estranhamento específico, que afeta
a si mesma e as outras pessoas. Ela produz olhares através de ângulos únicos, é
abridora de janelas diferentes daquelas que conhecemos no espaço do entertainment.
A persona é esse estado do performer na cena criado a partir da idéia de Outros. É a
apresentação intencional de si próprio, em sobreposições. Aponta descontinuidades.
Revela discursos e histórias, aquilo que é dito “normal”, e o próprio sistema de
representação. Essa capacidade singular da persona gera muita instabilidade. Não é
um processo necessariamente elegante; o estranhamento causa no espaço/tempo
uma “turbulência do negativo” (Juliano, 2002). Pode ser um processo angustiante, se
não poético. É, sem dúvida, um trabalho no limite da representação: na borda.
A mesma facilidade que Renato tinha para criar atmosferas, ele tinha para abrir
personas de pessoas, como se abre harmônicos de notas musicais. No mesmo sentido,
uma das formas de entender a persona performática na obra de Cohen é vê-la como se
ela fosse um prisma, que abre um leque de cores. Um prisma de pessoas, não em um
contínuo, claro e definido (entre pessoa e pessoa, figura, personagem) mas todos os
tons da pessoa habitados e vividos em sincronicidade. A persona significa essa
multiplicidade, mas principalmente é aquela que atualiza e reinventa continuamente a
combinação de acordes e escalas de sua policronia e de sua polifonia.
A persona é o estado performático do devir. Da transformação constante, que
leva a construção e a dissolução, ao outro. E também à compreensão da perenidade da
pessoa. Ao fim e ao cabo, a vida, em sua totalidade leva ao devir mais forte, a morte. O
devir morte, travessia final, tem o poder de intensificar e condensar a consistência da
vida, a experiência do vivido.
Em um plano de fundo político-antropológico, a persona é também uma forma
de se relacionar e de se posicionar na vida. Ela responde muito rapidamente às
questões do momento, é uma arte que conecta com a vida de forma muito direta,
muito material. Pode funcionar como um exercício para uma postura, de estar aberto
para o outro, de estranhar suas próprias verdades, como uma atitude diante da
existência. É um poder político: viver uma persona, ou “assistir” a uma persona, talvez
faça as pessoas experimentarem a vida de forma mais verdadeira e direta consigo
mesmas, com a responsabilidade de assumir a si mesmo, a seu corpo. É como se
posicionar estéticamente de forma ideológica e poética. Mesmo que isso seja ridículo
ou catastrófico, porque a persona é arroubo, é vida, é morte, numa dor sem piedade e
sem culpa. Esse entendimento é real para o performer e para seu público, inclusive
porque o espectador é o elemento de referência. A persona cria essa consistência da
autopoiesis, cria constelações de valores, formas, práticas e técnicas (Mauss)
singulares de ser:
Notas
1. Cohen, Renato. Work in Progress na Cena Contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 1998:31.
2. Vide Campos, 2001.
3. O ator do teatro tradicional se esconde através da personagem. Ele se mascara como método para entrar
em um personagem distinto de si, cuja história já está escrita previamente. Ele interpreta. A máscara no
campo da performance funciona em outra chave de entendimento. A persona performática constrói
máscaras de si mesma ao se apresentar, em várias camadas, ou incorpora máscaras para si, se
desdobrando em suas várias possibilidades. Há aí outro significado, que é a impermanência do performer
que recria a sua máscara a cada momento, em contraposição ao ator de uma personagem tradicional, que
se “fixa” numa identidade formalmente estabelecida.
Bibliografia
27
LEWIS, John Lowell. 1992. Ring of Liberation: Deceptive discurse in Brazilian Capoeira. University of
Chicago Press, Chicago. Lewis fez sua etnografia no Brasil como praticante e pesquisador. DOWNEY, Greg.
2005. Learning capoeira: lessons in cunnig from na Afro-Brazilian Art. Oxford University Press, New York.
Downey foi aluno, entre outros, de mestre João Grande, mestre Moraes e contramestre Boca do Rio, nos EUA e
no Brasil. SIMÕES, Rosa Maria Araújo. 2006. Da inversão à Re-inversão do olhar: ritual e perforrmance na
capoeira angola. Tese de doutorado. Ufscar, São Carlos. Rosa Maria é aluna de mestre Pé de Chumbo.
como toda forma de atuação e ação humana, ser, fazer, mostrar-se fazendo ou
explicar ações demonstradas. Performance engloba atuações artísticas, rituais ou
cotidianas através de comportamentos duplamente exercidos, comportamentos
restaurados, ações performadas que as pessoas treinam para desempenhar, que não
são absolutamente novas, que tem que repetir e ensaiar (SHECHNER, 2002).
28
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. 2002. Capoeira Escrava, Campinas: Ed. Unicamp.
29A hipótese do pesquisador Ângelo Decânio (2002) é compatível com as narrativas históricas e documentais
e parece ser a mais verossímil, apesar do discurso de muitos mestres procurar uma associação ancestral entre o
berimbau e a capoeira, provavelmente como estratégia de legitimação social.
e agudo –, dois pandeiros, agogô e reco-reco. O atabaque surge mais tarde na
formação da bateria da capoeira.
No início do século XX a capoeira acompanha os fluxos migratórios para a
capital do Estado da Bahia, Salvador, ocupando inicialmente a zona portuária da
cidade. O primeiro fluxo de expansão nacional do modelo baiano de sistematização da
capoeira acontece através do trânsito portuário para o Rio de Janeiro e em
Pernambuco. Nestas cidades, compostas por grandes populações afro-descendentes,
houve uma rápida permeabilidade ao novo modelo de capoeira baiana30. Somente a
partir da segunda metade do século XX é que ela realmente começa a expansão por
todo território nacional. Em 1966, ela sai pela primeira vez do Brasil com status de
manifestação cultural brasileira para participar do I Festival de Artes Negras em Dakar,
no Senegal. Na década seguinte vai a Europa e Estados Unidos e inicia um processo
sem retorno.
Ainda no final do século XIX, devido à cumplicidade com alguns setores da
monarquia, a capoeira entrou para o código penal e sua prática foi considerada crime
logo no início da república. A proibição de sua prática e sua criminalidade jurídica
durou até o ano de 1941. Nesse momento seu formato contemporâneo já estava
consolidado, próximo a como a conhecemos hoje. Faltava somente combater o
preconceito e a resistência na sociedade brasileira. É o início do período de
sistematização do modelo de ensino com o formato de escolas e academias.
Influenciado pelo padrão militarizado de práticas corporais, pelo crescimento das
práticas esportivas e pela recente chegada das artes marciais orientais como o jiu-jitsu,
dois importantes mestres do período, Bimba e Pastinha, adotaram estratégias como
hierarquia, uniforme, academia em espaço fechado e diálogo com setores da
sociedade civil e Estado31. Este movimento configurará na segunda e mais importante
onda de sistematização da capoeira e no início da divisão de estilos, Angola e Regional.
Portanto, estratégias de adaptabilidade a contextos adversos não são nenhuma
novidade na história da capoeira. Ela é adaptação por excelência. Assim como sai do
Brasil e influencia contextos no exterior, também sofre a influência deste processo
como um contrafluxo. Da mesma maneira como lá fora reproduz os modelos aqui
presentes, este “espelho estrangeiro” distorce algumas imagens e reflete sobre o
contexto nacional. O contrafluxo acontece através de elementos simbólicos e
materiais. A partir do reconhecimento e do incremento da auto-estima através do
retorno financeiro e da profissionalização em uma escala diferente da encontrada no
Brasil, bem como a ampliação de horizontes, perspectivas, estratégias de divulgação,
contatos culturais, entre outros, fatores que irão influenciar determinantemente o
contexto nacional.
30
Outras manifestações culturais como o samba e o candomblé também possuem como provável local
de origem de seus modelos no Recôncavo Baiano. Ver: MOURA, Roberto. 1983. Tia Ciata (e a pequena África
no Rio de Janeiro), Funarte, Rio de Janeiro e PINTO, Tiago de Oliveira. Capoeira, Samba e Candomblé, Afro-
Brasilianische im Recôncavo, Bahia, Staatliche Museen Preusicher Kulturbesitz, Berlim.
31
ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig. 2005. Capoeira, The History of na Afro-Brazilian Martial Art, London, Routledge.
(capítulo 5, Mestre Bimba and the development of ´Regional` style e capítulo 6, Mestre Pastinha and the codification
of Angola style)
Volta ao Mundo da Capoeira
Artur Emídio foi provavelmente o primeiro capoeirista a sair do Brasil para
apresentar sua arte, entre o final da década de 50 e início da década de 60. Ele visitou
a Argentina, México, Estados Unidos e Europa. Também se apresentou para dois
presidentes brasileiros, Getúlio Vargas e Juscelino Kubitchek, e para dois presidentes
americanos, Eisenhower e Kennedy (ASSUNÇÂO, 2005). Na seqüência de seu
pioneirismo, diversas companhias de dança e apresentações folclóricas iniciaram
turnês pela Europa e EUA, os chamados Grupos Folclóricos. Essa importante difusão
ocorreu inicialmente devido ao suporte de estrutura e redes de contato estabelecido
por diretores teatrais, coreógrafos e músicos que estabeleceram uma ponte entre a
linguagem dos espetáculos e as manifestações da cultura popular. Uma importante
contribuição para a difusão da capoeira na Europa durante os anos 70 foi o Grupo
Brasil Tropical, companhia liderada belo bailarino e coreógrafo Domingos Campos e
por mestre Camisa Roxa. Camisa Roxa foi aluno de mestre Bimba e foi considerado um
de seus melhores discípulos. O principal interesse dessas companhias era a
apresentação de seus espetáculos para o maior público possível e não um interesse
deliberado de ensinar capoeira no exterior. A apresentação desses grupos era
composta por um espetáculo de revista passando por várias manifestações como,
samba, dança afro, maculelê, puxada de rede, além de uma linguagem estilizada para
transportá-las para a estrutura de palco. Para o universo da capoeira o pioneirismo dos
Grupos Folclóricos foi fundamental, pois disponibilizaram para vários capoeiristas uma
tríplice oportunidade, profissionalização, atuação internacional e aproximação com o
universo das artes cênicas.
Para jovens capoeiristas a oportunidade de uma atuação internacional abria
inicialmente horizontes de uma nova perspectiva econômica e de experiência de vida.
Conhecer outras culturas dentro de uma estrutura de turnê artística certamente foi
um atrativo e um diferencial na carreira de todos os participantes. Para a capoeira em
particular, podemos considerar como um embrião do processo de alcance global que
surgiria nas décadas seguintes. A oportunidade de viver profissionalmente de capoeira
no Brasil era bastante restrita. Muitos dos capoeiristas presentes nos Grupos
Folclóricos fizeram sua primeira experiência internacional ao participar dessas
companhias, e em certo momento da jornada no exterior, ou logo após, decidiram por
se estabelecer no exterior como professores de capoeira (ASSUNÇÃO, 2005).
Mestre Hugo, ou Gatinho, foi capoeirista e instrumentista do Grupo Folclórico
Brasil Tropical. Sua principal habilidade no enredo do espetáculo estava vinculada aos
toques de berimbau e atabaque. Mestre Hugo é filho de mestre Gato Preto, José
Gabriel Góes, falecido em 2002, e importante representante da Tradição Santo
Amarense de Capoeira Angola. Mestre Gato Preto fez parte da comitiva que participou
do I Festival Internacional de Artes Negras, em Dakar, no Senegal. Essa viagem de 1966
possui uma aura mítica para o universo da capoeira e, apesar do pioneirismo de Artur
Emídio, foi a partir desta data que no imaginário da capoeira iniciou-se sua volta ao
mundo. Entre outros artistas de diversas áreas de atuação estava presente um grupo
de capoeiristas da Bahia, liderados por mestre Pastinha (Vicente Ferreira Pastinha).
Nessa comitiva ainda constavam Roberto Satanás e Camafeu de Oxóssi,
representantes, como mestre Gato, de outras linhagens e tradições. Dos que viajaram
nessa comitiva, talvez, somente mestre Gato manteve um fluxo de atuação
internacional32. Anos mais tarde, participando do grupo Brasil Tropical, seu filho
Gatinho (ou mestre Hugo), resolveu permanecer na Europa, onde atuou como músico
e bailarino e manteve-se por mais de duas décadas.
Nos EUA, a introdução da capoeira é atribuída a Jelon Vieira e Loremil
Machado. Eles apresentaram a capoeira em um número da Broadway sobre índios
brasileiros, chamado The Leaf People, em 1975. Percebemos através do enredo a
miscelânea que esses espetáculos de revista poderiam apresentar em busca de um
retorno imediato de atenção e público, em um tipo de exposição que apostava no
exotismo como grande diferencial. Ambos participaram também do espetáculo The
Capoeiras of Bahia (1979), cujo tema já fazia um recorte específico no foco de atuação
da capoeira. Jelon Vieira também foi membro de outro importante Grupo Folclórico, o
Viva Bahia, organizado e conduzido por Emília Biancardi. O Viva Bahia também
excursionou pelos EUA e foi de importante atuação para a divulgação da capoeira no
exterior. Em depoimento, Biancardi diz que os espetáculos do Viva Bahia sempre
causaram uma boa receptividade da audiência, mas quando surgiam números com
capoeira a platéia entrava em êxtase (FARIA, 2005). Então, Jelon Vieira que era
participante desta companhia, Viva Brasil, resolveu ficar na costa leste dos EUA,
ensinando capoeira em Nova York e oferecendo oficinas em cidades próximas da
mesma região. Seu reconhecimento pela atuação nos EUA e pelo pioneirismo é uma
unanimidade no universo internacional da capoeira. Atualmente muitos mestres
atuam em Nova York, entre eles podemos citar o próprio Jelon Vieira, João Grande,
Edna Lima, Bom Jesus, Lincoln, Pilão, Carvão, Caxias, Doutor, Jô e Macaco. Em 12 de
junho de 1995, o então prefeito de Nova York, Rudolf Giuliani, declarou o “Capoeira
Day”, para comemorar os 20 anos de introdução da arte nos EUA (ASSUNÇÃO, 2005).
Na costa oeste dos EUA, mestre Acordeon (Bira Almeida), outro aluno de
mestre Bimba, iniciou sua atuação de ensino da capoeira entre alunos de classe média
alta, a maior parte, alunos da conceituada Universidade de Stanford, em 1979. Em
seguida aproveitou o suporte inicial da universidade e de seus alunos para ensinar
também nos bairros pobres e na comunidade latina de São Francisco, onde abriu sua
própria academia, a Capoeira-Bahia. Em 1983 ele trouxe 52 alunos de capoeira
americanos para uma viagem de campo e um torneio na Universidade de São Paulo
(USP). Mestre Acordeon também fundou a World Capoeira Association e publicou o
primeiro livro sobre capoeira em língua inglesa (ALMEIDA, 1981 apud ASSUNÇÃO,
2005). Jelon Vieira e Acordeon tiveram papel primordial na formação da primeira
geração de capoeiristas nos EUA.
Verificamos ações de obtenção de recursos financeiros em todas as atuações
mundiais. Não há expansão internacional da capoeira que não vise também o retorno
financeiro. Isso está implícito no primeiro impulso de saída do país. Por outro lado,
seria ingênuo pensar que as dinâmicas se reduzem somente ao capital. Há também a
vontade de trabalhar e ser dignamente remunerado exercendo a atividade escolhida
por aptidão, prazer e vocação. A questão da dificuldade de profissionalização digna do
capoeirista no Brasil é também um forte fator de impulso.
Portanto, à medida que o capoeirista no exterior consegue se estruturar com
dignidade e profissionalismo, ele altera seus padrões de comportamento adaptando-se
ao padrão local. Há também fatores de experiência pessoal, de exploração (no sentido
32 No início dos anos 90, mestre João Grande, que também estava na comitiva, foi morar e atuar em Nova York onde
mora até hoje.
de desbravar) de uma nova região ainda sem o alcance da capoeira. Diversos países
que encontramos em nosso levantamento possuem condições sócio-econômicas iguais
ou piores que o Brasil. Mesmo nesses países é possível encontrar nichos de atuação e
de mercado, além de uma experiência pessoal que recompense o espírito. Sair do
Brasil para algo mais adverso que o quadro local não é interesse nem hipótese
razoável.
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SILVEIRA, Paulo. As existências da narrativa no livro de artista. 2008. Tese
(Doutorado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós
gradução em Artes Visuais, Porto Alegre, 2008.
SOUSA, Márcia Regina Pereira de. O livro de artista como lugar tátil. 2009, Dissertação
(Mestrado). Universidade do Estado de Santa catariana, Centro de Artes,
Mestrado em Artes Visuais, Florianópolis, 2009.
TURNER, Victor. The Antropology of Performance. New York: PAJ, 1988.
Mímesis e infância: Notas sobre a construção de uma infância na escola de
educação infantil, Marcos Vinícius Moraes (PPGAS/USP)
Introdução
O que é infância? Como compreender os diferentes modos de ser criança, que,
como vasta bibliografia atesta, variam, presentemente, entre os diferentes grupos
sociais e variaram bastante ao longo da história? Afinal, tratar-se-ia apenas de
representações sociais, as quais seriam de alguma maneira distantes da vida e da
experiência histórica, ou, de modo diverso, seriam construções sociais que constituem
modos precisos de reger a vida e de relacionar organicamente os diferentes atores
sociais – crianças e adultos – ao mundo histórico-cultural? De fato, trata-se de uma
organização das fases da vida e da classificação das crianças neste sistema.
Quando iniciei minha pesquisa, em uma escola de educação infantil da cidade
de São Paulo, foram indagações desta natureza que animaram meu esforço de
observar atentamente cada fala, cada gesto, cada afeto e cada interação social das
crianças entre si e com os adultos – professores e funcionários da escola, mas também,
raramente, com seus pais e responsáveis. Parecia para mim que algo muito importante
acontecia naquele lugar, algo que desde a minha primeira pesquisa nestas escolas
sempre chamou minha atenção, o contraste, que eu presenciava, entre o meio urbano
– com seus comércios, o andar apressado dos transeuntes, o tráfego intenso e os
ruídos da paisagem sonora mais ou menos comum a qualquer grande cidade – e a
experiência vivenciada pelas crianças, alunos nessas escolas. De imediato, percebemos
a pintura dos muros, dermancando a fronteira entre estes espaços, sendo quase
sempre adornados com temas que prontamente reconheceríamos como infantis:
desenhos animados (no caso da escola pesquisa, personagens do livro de monteiro
lobato), meninos e meninas em idade escolar, tudo colorido em cores intensas. Porém,
tais adornos não diferem fundamentalmente do que observamos em parques de
diversões voltados ao público infantil, em buffets para festas de aniversário de crianças
e mesmo nas lojas de brinquedos. De fato, o que marca a especificidade deste espaço
é algo na paisagem sonora porque chama a atenção daqueles que passam próximos a
estas escolas: a associação entre os risos e barulhos de brinquedos com o tom
imperativo das professoras, por vezes acompanhado de súbito silêncio ou de
murmúrios de crianças envolvidas em seus afazeres escolares. Ouviam-se, portanto,
inúmeros ruídos que remetem à escola, mas apenas a aproximação e um
direcionamento da atenção poderia permitir distinguir e analisar as tensões
constitutivas de um modo de se compreender e vivenciar a infância.
Na escola de educação infantil, percebe-se este processo social pelo qual
crianças tornam-se alunos, os quais, por sua vez, aproximar-se-ão em etapas
sucessivas e progressivas da condição de adulto: cidadão pleno e trabalhador
qualificado, ou seja, de um falar infantil, o qual é considerado ingênuo, desarrazoado,
incompetente – no sentido de inapto para determinadas tarefas – e, geralmente,
inválido e ilegítimo, passa-se, em virtude do amadurecimento cognitivo, afeito e moral
e da instrução escolar, a um falar competente, apto a formular juízos e determinações
do sentido próprio a determinadas ações e procedimentos, e legítimo, enquanto
interlocutor adequado para aquele que pretende discutir e decidir acerca de questões
públicas e privadas. A criança seria dependente material e culturalmente do adulto, a
sua subordinação seria mais ou menos evidente, de modo que a sua participação na
vida social justificar-se-ia sobretudo pelo seu vir-a-ser, as crianças precisam ser
educadas para, no futuro, assumirem o peso das nossas tradições culturais e das
nossas estruturas sociais.
Ora, a evidência deste modo de pensar as relações entre adultos e crianças,
que enfatiza a dependência das crianças, falha ao menos em dois pontos, os quais
gostaria de destacar nesta apresentação: em primeiro lugar, destaca a dependência
das crianças em relação aos adultos sem atentar que, dialeticamente, ou seja, que de
modo intrínseco e contraditório a esta dependência, há a dependência dos adultos em
relação às crianças para que haja a continuidade do mundo histórico-cultural, para que
os elos das tradições culturais e as relações da estrutura social se mantenham e se
reproduzam – trata-se, de fato, de um peso, de uma enorme carga, que
conjuntamente a todos os monumentos da cultura, traz consigo as barbáries de nosso
tempo, pela manutenção de toda sorte de equívocos, preconceitos e iniqüidades33.
Evidentemente, a educação não precisa ser eminentemente conservadora, porém
creio que uma educação progressista não deve ser caracterizada por furtar à criança-
aluno o caráter horrível de nosso mundo, mas, pelo contrário, ela deveria dialogar com
a perspectiva infantil, a partir do próprio assombro que as crianças demonstram diante
deste horror, revelando o caráter profundamente problemático de nosso mundo e,
portanto, permitindo que as crianças exerçam a sua novidade sobre o mundo. Afinal,
como sugere Hannah Arendt, em A Crise da Educação, os fatos de educação articulam-
se estreitamente com o problema da natalidade, com o fato de que – continuamente –
novos atores sociais vêm juntar-se a nós, e que, com eles, com a novidade que eles
representam para o mundo, é possível precisamente este recomeçar. Portanto, a
criança não deve ser considerada, de modo unilateral, como um herdeiro.
Aqui já se torna mais ou menos evidente o segundo ponto de minha crítica: no
modo como geralmente pensamos as crianças, elas surgem como seres passivos, cuja
relação com o mundo não é tão problemática, sendo o desafio da educação vencer a
sua rudez, as cotidianas resistências ao ato educativo, e confirmar a sua disposição
para a educabilidade. É precisamente neste vínculo entre infância e educabilidade que
se institui – se constrói – a forma de infância que pude ver emergir entre os diferentes
discursos e práticas sociais da escola de educação infantil: uma infância escolarizada,
cuja personagem intitulei, em minhas análises, de criança-aluno.
A criança-aluno é um construto social que se caracteriza por um certo jogo
entre atividade e passividade: por um lado, é preciso que ela aja social e
discursivamente, que ela se apresente no encontro pedagógico, que ela instaure uma
fala infantil: esta articulação, presente na etimologia do termo infantil, entre a fala e a
condição de não-falante é interessante, pois, de fato, a criança diz e age na escola, mas
a validade e a pertinência de seus discursos e atos depende da avaliação (e, portanto,
da hierarquização) empreendida pelo adulto-professor.
Infância e mímesis
33
Essas considerações, poderiam ser melhor desenvolvidas pelo recurso à análise da relação entre cultura
e barbárie nas reflexões de Walter Benjamin.
A professora Suzana pergunta: “A comida da escola é feita
com coisas boas ou ruins?”.
O coro das crianças responde: “Boas!”.
A professora diz: “A nutricionista vem para olhar o que está
sendo dado, se é saudável e bom. A alimentação é
importante para ficar forte e inteligente. É preciso comer
frutas, legumes, cereais. Todos os alimentos que o
organismo precisa”.
Segundo a professora, “Fast food não é saudável, nem
refrigerante”, devendo ser consumidos apenas “de vez em
quando”. Por outro lado, “a água é boa para nós, ela limpa,
purifica o nosso organismo”. Ela sairia na urina, que, assim
como o cocô, retira impurezas de nosso organismo.
“E o lanche da escola, é o que?”, a professora pergunta.
O coro das crianças responde: “Saudável!”.
A professora pondera que se a criança comer demais ela
pode vomitar. Por isso, deve-se comer apenas “o que cabe
na barriga”, com moderação. Porém, se alguém não comer
pode ter “dor de barriga de fome” ou anemia.
Em seguida, a professora enumera, conjuntamente a
algumas crianças, as frutas comestíveis, lembrando-as que
“não pode comer apenas lanche” ou “fritura”. Por fim, diz
que “as carnes brancas são melhores que as carnes
vermelhas”.
Ao retornarem do refeitório, a atividade consistirá em
escrever, após o cabeçalho da escola, o título “ALIMENTO
SAUDÁVEL”. Em seguida, devem citar textualmente e
imageticamente cinco alimentos diferentes que fazem bem e
dos quais gostam.
Incitadas pela professora, as crianças enunciam alimentos
saudáveis: pêra, pepino, arroz, lingüiça (a qual a professora
diz ser mais ou menos saudável), macarrão, beterraba,
abobrinha, etc.
***
No refeitório, lêem o cardápio. A professora pergunta o que
a banana é, se é legume? O coro das crianças diz que sim, e a
professora insiste até as crianças afirmarem que se trata de
uma fruta (inserindo este alimento na classificação
adequada).
***
Oito horas e vinte minutos, retornam para a sala de aula. A
professora Suzana explica as atividades de desenhar cinco
alimentos saudáveis, os alunos ainda devem recortar um
alimento saudável, em revistas que a professora distribui, e
colar em um cartaz, feito coletivamente, de alimentos
saudáveis. Depois, eles poderão ir à brinquedoteca.
***
Oito horas e trinta minutos:
Observo a atividade. As crianças copiam em diferentes
ritmos o cabeçalho e o enunciado da atividade, Bruno faz o
desenho de um foguete no espaço, ele não escreve o
cabeçalho.
Oito horas e trinta e cinco minutos:
Laura é a primeira a terminar. A professora avalia seu
trabalho e diz “muito bom”.
Oito horas e trinta e sete minutos:
Laura encontra um salmão na revista e, após mostrá-lo para
a professora, cola-o no cartaz. A professora diz que ela pode
procurar outro.
Oito horas e cinqüenta e cinco minutos:
Cerca de metade dos alunos terminaram a primeira
atividade. Eles passam, então, a recortar imagens de
alimentos em revistas. A professora elogia Kamily, a qual ao
desenhar os alimentos, “lembrou da água”.
Os alunos olham para as revistas, procurando alimentos
saudáveis, com os quais vão, progressivamente,
preenchendo o cartaz. Uma vaca, pois “ninguém come ela
assim”, uma garrafa de vinho e alguns frascos de remédios
são negados pela professora, por não serem alimentos ou
por não serem saudáveis. Da mesma maneira, a água é
negada, quando recortes desse tipo são trazidos em excesso
pelos alunos. (25 de março de 2009, na sala de aula e no
refeitório, entre as sete horas e quarenta minutos e às nove
horas da manhã).
Ora, então é pela organização das falas infantis, empreendida pelo regente, que
se produz discursos e práticas sociais legítimas e competentes. Ou seja, amplia-se o
espaço lógico e discursivo pelo qual se distingue, em nossa sociedade e cultura, a
criança do adulto. Uma comparação com as descobertas da antropologia da criança
em outros contextos socioculturais tornaria ainda mais evidente o modo como
infantilizamos as nossas crianças, afirmamos a sua dependência e incompetência,
ainda que a atenção a alguns fatos, como o de seu domínio das novas tecnologias –
muitas vezes superior ao nosso próprio domínio – e a sua capacidade de impelir os
seus, supostamente, independentes pais e responsáveis legais ao consumo – como
sabe bem todo publicitário que focaliza o mercado infantil -, indiquem a complexidade
das situações sociais em que crianças e adultos se relacionam, mesmo em nossa
sociedade.
Portanto, desde o início de minha atividade de pesquisa na escola, pretendi
estar atento a estas complexidades. De alguma maneira, três conceitos foram
fundamentais ao meu exercício de observação e teorização, a partir da etnografia,
sobre esta infância: mímesis, emergência e proveniência.
Em primeiro lugar, é preciso fazer uma breve acerca da noção de mímesis.
Trata-se, segundo Walter Benjamin, da “faculdade de produzir semelhança”, e,
portanto, de tornar-se um Outro, a qual, estando presente também na natureza
(mimetismo no reino animal), é, aparentemente, a fonte de todas as funções
psicológicas superiores no ser humano, sendo bastante intensos os comportamentos
miméticos nas crianças. Enfim, podemos pensar em todos os processos imitativos
pelos quais nos relacionamos com o mundo natural e histórico-cultural. De acordo com
Taussig (1993), antropólogo que ressaltou a importância de repensar esta noção de
mímesis, trata-se, esta noção: “da natureza que a cultura usa para criar uma segunda
natureza, a faculdade de copiar, imitar, de construir modelos, de explorar diferenças,
de engendrar e tornar-se Outro” (:53). Portanto, poder-se-ia afirmar que é partir dos
jogos de representação das crianças que se constituem nossos hábitos sociais e nossa
compreensão do mundo, tal perspectiva torna-se ainda mais atraente se
considerarmos que é por processos miméticos que tornamos sensíveis as nossas
representações sociais, trazendo “sensibilidade aos sentidos”, basta pensarmos o
quanto de nossa identidade pessoal não se funda apenas em uma idéia que temos de
nós mesmos, mas em uma experiência que temos de sermos nós mesmos e de
atuarmos como nós mesmos, ou seja, ao afirmar-me como aluno ou professor é
relevante para este reconhecimento tanto as representações sociais ou, se preferirem,
os discursos sobre o que seria isto em determinada sociedade e cultura, quanto a
experiência de, situado em determinado contexto sociocultural, ter-me apresentado e
atuado como aluno ou professor.
O problema na escola de educação infantil seria, diante da multiplicidade de
seres que as crianças se tornam por intermédio da faculdade mimética: carros,
princesas, caixas de supermercado, dinossauros, vendedores mudos, cachorros,
espiões, trabalhadores, alunos, etc., determinar alguns modos de ser, sentir e pensar
que seriam mais próprios e verdadeiros, em suma, modos mais reais de estar no
mundo. Em certo sentido, o modo mais real de estar no mundo de uma criança na
escola seria a sua condição de aluno, de modo que a mímesis reiterada desta
personagem torna-se o fundamento de uma compreensão de si como ser
estreitamente vinculado à escola e à relação pedagógica. Para que isso seja possível, é
preciso que ocorra o que denominei em minha dissertação de um controle da mímesis,
distinguindo, por um lado, nos diferentes espaços escolares, usos próprios e
impróprios desta faculdade e, por outro lado, hierarquizando os diferentes
desempenhos e competências.
Combinados do 3º Estágio A.
***
***
***
Abstract: The narratives of Asuriní Xingu shamans (PA) are first hand accounts
of experiences with the spirit world, places known only by them, which enter into
reality when they become visible through the shamans' testimonies. The moment in
which the Asuriní shamans tell the stories of their trips to different cosmic zones is
during the petymojap rite, within the rituals of xamanísticos maraká. Based on Asuriní
suggestion, this article aims to reflect, in the light of the performance approach, the
possible relationships between the audiovisual and the shamans' narratives through
their abilities to make "virtual" universes "exist".
Keywords: narrative; shamanism; audiovisual; performance; Asuriní Xingu.
Notas
34
Grupo Tupi-Guarani que vive em uma única aldeia na margem direita do rio Xingu na Terra Indígena
Koatinemo, município de Altamira (PA). Somam aproximadamente 145 índios e foram contatados na
década de 1970 na ocasião da construção da rodovia Transamazônica.
35
Segundo explicação dada por Müller (2000, p. 12) na ocasião da exibição, os homens-macaco seriam
os “antepassados dos brancos”, ao que os índios concluem que o filme “A guerra do fogo” fazia existir o
passado mítico do homem branco.
36
Como é o caso do extenso acervo audiovisual resultado de trinta anos de pesquisa da antropóloga
Regina Müller entre os Asuriní que serviu como material didático a ser utilizado na Escola Indígena
Kwatinemo, no âmbito do projeto piloto de educação diferenciada implantado pela Secretaria Municipal
xamanístico Apykwara, gravada durante pesquisa de campo para minha dissertação de
mestrado37 e utilizada como matéria-prima para a montagem do filme
Acontecências38, chamou atenção o desinteresse de More’yra, principal xamã Asuriní,
pelas imagens do ritual recém-realizado e seu comentário dizendo querer ver
“jawara”, referindo-se ao filme Morayngava realizado pelas antropólogas Regina
Müller e Virgínia Valadão em 1997. Em Morayngava, as autoras utilizaram recursos de
sobreposição de imagens e efeitos especiais para marcar a passagem de um domínio
do cosmo para outro e assim, acompanhar a produção de imagens dos xamãs nas
narrativas de suas viagens a outros mundos39. O xamã, então, pediu que eu realizasse
uma montagem nos mesmos moldes, tematizando sua viagem ao mundo de um outro
espírito, desta vez, o espírito-animal Tajaho (porco do mato).
O comentário do índio Asuriní durante a exibição do filme “A guerra do fogo”
em 1997, e o pedido do xamã para que eu realizasse a montagem de um filme sobre o
espírito Tajaho dez anos mais tarde, despertaram o desejo de investigar mais
profundamente as relações sugeridas pelos Asuriní entre narrativas míticas de viagem
ao mundo dos espíritos e as potencialidades do meio audiovisual como forma
expressiva, a partir do que formulei algumas questões: Como imagens verbais criadas
com o relato do xamã e imagens audiovisuais “fariam existir” universos virtuais? E
quais as semelhanças e as diferenças da produção imagética no contexto do
xamanismo40 e do audiovisual?
de Educação - SEMEC de Altamira em 2006, e assessorado por equipe de antropólogos entre os quais
me incluo.
37
Intitulada Das Acontecências: experiência e performance no ritual Asuriní. Pesquisa de mestrado
realizada no âmbito do Programa de Pós-graduação em Artes da Unicamp, sob orientação da Profa. Dra.
Regina Polo Müller com financiamento da Fapesp – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo e concluída em fevereiro de 2009.
38
Acontecências. Cor, 23 min. DV, 2009. Direção: Alice Villela e Hidalgo Romero. Realização:
Unicamp e Laboratório Cisco. Apoio: Fapesp- Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo e
Kinostúdio Cinema Digital. Participação no Festival Internacional de Documentários de Amsterdã (2009)
e no Festival É Tudo Verdade (2010).
39
No filme, tratava-se do espírito Tivá, traduzido pelos Asuriní como jawara (onça), espírito xamã
primordial, de acordo com a classificação dos seres de Müller (1993), que, segundo descrições dos
Asuriní, é um misto de onça com pássaro.
40
Segundo Carneiro da Cunha (1998, p. 12), o xamanismo opera no sentido de “interpretar o inusitado,
conferir ao inédito um lugar inteligível, uma inserção na ordem das coisas” e apenas o xamã “[...] por
definição, pode ver de diferentes modos, colocar-se em perspectiva, assumir o olhar de outrem […]. E é
por isso que, por vocação, desses mundos disjuntos e alternativos, incomensuráveis de algum modo, ele é
o geógrafo, o decifrador, o tradutor” (Ibid., p. 17). Destaca-se que a definição apresentada pela autora se
refere à teoria do perspectivismo ameríndio. In: Viveiros de Castro, 2002.
41
Desde o surgimento da antropologia enquanto disciplina, diversos estudiosos de dedicaram ao tema
dos mitos e das narrativas míticas. Dos evolucionistas Tylor e Frazer, passando por Boas e Levi-Strauss, o
tema foi bastante explorado em análises a partir de diferentes abordagens que, por muito tempo, tomaram
os mitos e as narrativas da tradição oral como textos fixos. Langdon (1999) faz um balanço de autores
surgidos nos últimos 30 anos que trabalham com a idéia de que o mito como narrativa pode ser
apreendido em contexto de interação social, com ênfase nas suas qualidades dramáticas e performáticas.
Assim, cita os trabalhos que pensam as narrativas e a tradição oral como dircurso (Basso, 1990; Urban,
1991, Tedlock, 1983) e como performance (Bauman, 1977, Turner, 1987).
performático. Mas antes de entrarmos propriamente na noção de performance que
aqui será operacionalizada é preciso dizer que o mito narrado pelos xamãs nos rituais
Asuriní não é uma narrativa da ordem do passado42, que ele traz para o presente, o
mito Asuriní está acontecendo no momento presente e apenas os xamãs tem acesso a
este universo participando de sua construção através da sua capacidade de se colocar
em perspectiva (Cf. Viveiros de Castro, 2002). Para além do mito vivido no presente
pelos xamãs, o momento da narrativa de suas experiências “faz existir” para a
audiência do ritual algo que havia sido vivido apenas individualmente; é só dessa
maneira, como uma experiência eminentemente pessoal, que o universo extra-
humano se apresenta para os xamãs.
Tomamos algumas referências relacionadas à noção de performance43, a partir
do paradigma proposto por Turner (1982, 1987), que apresenta o enfoque da vida
social através de sua práxis e na interação dos atores sociais. O autor se interessa pela
metáfora do drama para pensar a vida social e, posteriormente – e eis aqui o que nos
interessa –, pelas “performances culturais” a partir dos trabalhos desenvolvidos por
Singer (1972) e Schechner (1985, 1988). Nessa perspectiva, os momentos de
performance aparecem como momentos de reflexividade, que podem levar à
transformação – a narrativa é vista como um evento social, que envolve experiência,
subjetividade e expressões artísticas.
A performance, enquanto manifestação sensível da realidade que pode ser
apreendida por meio de sua elaboração estética, opera com uma linguagem poética da
qual o corpo é o veículo que dá forma ao que se quer comunicar, e que exige a
presença de uma audiência. É neste último ponto que nos detemos para pensar a
perfomance do xamã como capaz de “fazer existir” universos virtuais. Como afirma
Bauman (1977), nas performances narrativas, o tempo e o espaço do contador
encontram-se com o tempo e o espaço da audiência, propiciando uma interação, um
diálogo e uma troca de experiências que estão, neste "aqui e agora" compartilhado,
mostrando a própria cultura em emergência.
Em suas abordagens de eventos performáticos diversos, Schechner (1985)
enfatizou a relação dos performers com o público. Para aprofundar esse aspecto, o
autor analisa as relações entre os significados da produção teatral – gestos, danças,
passos, modos de diálogo, maquiagens, máscaras, dentre outros, e o tipo particular
de “entretenimento” desfrutado pelos espectadores de um evento performático
particular, a performance do drama em sânscrito Natyasastra44. Participar de uma
performance significa deslocar-se para determinado local, estar no ambiente exclusivo
ou, então, penetrar em espaços reservados, físicos e simbólicos, de um “mundo
recriado” momentaneamente; envolver-se na experiência de “ser levado a algum
42
Neste ponto observo algumas semelhanças entre as narrativas dos xamãs Asuriní no maraká e os
cantos xamanísticos marubo analisados por Cesarino (2006) que, segundo autor, descrevem diálogos e
imagens das viagens do xamã e não falam de um passado remoto, rememorado pela narração.
43
Langdon (1999) afirma que o conceito de performance surgiu de dois paradigmas na antropologia
atual: a vida social como drama social, tendo como representantes autores como Victor Turner (1987),
Clifford Geetz (1978) e outros, e a “performance como evento”, que evoluiu dentro do campo da
etnografia da fala, marcado pelo cruzamento de interesses de linguistas, folcloristas, antropólogos e
filósofos e que tem como um dos principais expoentes Richard Bauman (1977).
44
Trata-se de um texto dramatúrgico indiano compilado entre 200 a.C e 200 d.C, e que contém detalhes
da estrutura narrativa mítica de performance teatral fixada e realizada num primeiro momento por deuses
e depois trazida à terra para as pessoas desfrutarem, o clássico drama em sânscrito que deu origem a
outras tradições do teatro-dança (Schechner, 1985, p. 136).
lugar”, quando num estado de “transe”, ou o desafio psicológico de tornar-se “outro”
sem deixar de ser si mesmo, quando da representação cênica de um personagem
qualquer, experiências que dizem respeito ao performer. Schechner também se
interessa pelas mudanças que acontecem com performers e audiência; assim, fala em
‘transportação’ e ‘transformação’ como processos integrantes do movimento continuo
do ritual ao teatro (e vice-versa) que ele define como performance (Schechner, 1985,
p. 126).
O encantamento do xamã Asuriní pelas imagens audiovisuais do mundo dos
espíritos traz à tona a própria natureza do material audiovisual, que se aproxima da
narrativa mítica no rito petymojap. Mac Dougall (1998, p. 81 e 84) afirma que o filme
está para o ritual e para o teatro pois seu significado é proposicional e performativo45.
As abordagens de fenômenos sociais, da perspectiva de sua performatividade ou
performance, nos faz pensar que num ritual, por exemplo, o significado não se
encontra na ação simbólica e social, mas na sua performatividade. No caso do filme, a
performance se completa na relação entre o cinema, o real e o espectador, o que
Menezes (2004, p. 44) chama de representificação: “[...] como algo que não apenas
torna presente, mas que também nos coloca em presença de, relação que busca
recuperar o filme em sua relação com o espectador. O filme, visto aqui como filme em
projeção, é percebido como uma unidade de contrários que permite a construção de
sentidos. Sentidos estes que estão na relação e não no filme em si mesmo” (grifos do
autor).
A abordagem da performance permite pensar a narrativa do xamã e a exibição
do filme em suas capacidades de “tornar presente” e “fazer existir”. Como afirma
Zumthor (2000, p. 37), a performance realiza, concretiza, faz passar algo que eu
reconheço, da virtualidade à atualidade. A partir da performance do xamã Asuriní no
rito petymojap, locais conhecidos apenas por ele passam a existir como realidade ao se
tornarem acessíveis aos demais membros da aldeia: é o xamã contando que faz existir
os universos sobrenaturais. Não apenas o xamã cria imagens verbais ao narrar suas
peripécias como jaguar ou porco do mato, mas, sobretudo, cria imagens performando
com seu corpo que, em outras ocasiões, transforma-se em espírito na terra.
Ver o invisível
Uma outra entrada para pensar as relações entre mito (em ação) e filme (em
exibição), sugeridas pelos Asuriní, pode ser a abordagem de ambos como momentos
de visualização do invisível. Assim, a audiência tanto da performance do xamã como da
performance do filme é convidada a penetrar em um universo de imagens de um
“mundo recriado” momentaneamente.
Há na literatura acerca de sociedades ameríndias, diversos trabalhos
que abordam as experiências de visualização do sobrenatural. Entre os Suya, o sentido
da visão permite explorar a percepção dos ameríndios sobre seus contatos com as
alteridades extra-humanas, muitas delas de existência invisível, e também as redes
sociais, os processos de elaboração das identidades pessoais e étnicas (Seeger, 1987).
Para os Wauja (Barcelos Neto, 2004), a visão manifesta-se na produção simbólica de
um mundo invisível (agentes patogênicos, alteridades extra-humanas) e na produção
45
E diz que o filme pode colaborar para um tipo de ‘antropologia performativa’, que busca um
conhecimento experiencial, que não pode ser separado do domínio da ação. Ver MacDougall (1998, p.
81).
de sua visualidade concreta (desenhos, artefatos, pinturas, adornos corporais,
máscaras, e flautas). Ver o invisível é atividade de alto valor estético acessível àqueles
que detêm habilidades especiais. Assim, entre os Wauja, como entre os Asuriní, o
xamanismo encontra-se no centro da produção artística. Sonhos, transes, morte,
doenças graves são contextos de visualização do “sobrenatural”.
Entre os Ashaninca do Peru, o ayahuasca é visto como uma espécie de televisão
e meio de acesso para a visão do “sobrenatural”. Segundo Narby (1998, p. 109), o
ayahuasca é na verdade a “televisão da floresta”, por intermédio da qual “você pode
ver imagens e aprender coisas”46. Segundo Peter Gow, “[n]a região do Alto Ucayali, no
leste do Peru, as pessoas referem-se jocosamente ao alucinógeno ayahuasca como el
cine del monte, o cinema da floresta”. As relações entre as experiências visuais do
cinema e do ayahuasca são diversas, além de a droga ser tomada no escuro, “[a]s
alucinações hacen ver: tanto as origens da doença, como objetos de feitiçaria
brilhando no corpo de um doente, países distantes, parentes mortos ou distantes
etc.”. “Assim, o ayahuasca é uma planta da floresta que permite o acesso à verdadeira
identidade da floresta, como o cinema, um produto estrangeiro, permite o acesso
visual a países distantes, ao ‘lado de fora’” (Gow, 1995, p. 44).
Barcelos Neto (2004) propõe a criação de desenhos em cor como possibilidade
de recriação das imagens oníricas que existem de modo “bruto” nos sonhos e
descrições verbais dos xamãs. A criação de imagens de seres sobrenaturais é, para os
Wauja, sempre uma descoberta pessoal, ao passo que as experiências com o
sobrenatural são sempre individuais. Entre os Asuriní também a experiência da viagem
ao mundo sobrenatural é uma experiência vivida individualmente e contada em
primeira pessoa durante o rito petymojap (petym = charuto; omojap = acender), no
contexto dos rituais xamanísticos maraká. Müller (1993, p. 185) afirma que nessas
reuniões os xamãs trocam entre si experiências individuais de suas viagens às
diferentes zonas cósmicas, conferindo, reafirmando e recriando formas, processos e
conteúdos da cosmologia.
Entre os Asuriní, os rituais xamanísticos são contextos de visualização do
invisível e do contato com o sobrenatural por meio de uma experiência que vai além
do sentido da visão, na medida em que é vivida no e pelo corpo. O xamã tem a
capacidade de estabelecer contato físico com os espíritos e, através dele, garantir a
vida na aldeia pelo intercâmbio de substâncias (Id., 1996, p. 154). É ele quem regula a
circulação do princípio vital (ynga), tanto pela transubstanciação e consubstanciação
da substância vital (ynga), proveniente dos espíritos, quanto pelo controle dos fluxos
de ynga na captura e produção de imagens (ayngava) dos humanos47. O xamã Asuriní
desloca-se para os mundos habitados pelos espíritos48. Esses mundos são semelhantes
ao dos humanos, contam com suas aldeias e população; “[...] recebendo nomes
46
Para os Kaxinawa, o kene kuin (desenho verdadeiro) é obtido por meio da experiência visionária com
ayahuasca: “[...] o tempo mítico e os mundos dos yuxibu se tornam acessíveis á experiência através de
uma imersão no mundo das imagens, chamadas dami e yuxin” (Lagrou, 1998, p.183).
47
A primeira televisão com antena parabólica que os Asuriní adquiriram – como recompensa à ajuda
oferecida pelos índios a um avião do IBAMA que caiu na Terra Indígena - ficou sob a guarda do xamã
More’yra, que controlava suas exibições e, assim, o fluxo das imagens de ‘fora para dentro’.
48
Segundo visão do cosmos apresentada pelo xamã Juruí, o universo se organiza e é constituído
basicamente por caminhos. Müller sugere uma correspondência entre a topografia aldeia/caminhos na
mata e a topografia mundo dos humanos/mundo dos espíritos. O universo é a extensão do mundo dos
humanos estendido à mata e ao mundo dos espíritos (Müller, 1993, p. 189).
próprios que o identificam com as diferentes espécies desta categoria de seres49, ele
também se casa e tem filhos nestes outros níveis cósmicos assimilando seus hábitos e
integrando-se à ‘vida social’ existente nesses mundos”. O xamã realiza essas viagens
durante o transe nos rituais xamanísticos ou durante o sono. Nos rituais maraká
terapêuticos, o xamã perde os sentidos (omano = morre), vai para o mundo dos
espíritos, onde é um deles, e, nos propiciatórios, o pajé transforma-se em espírito na
Terra (ou seja, o espírito vem para o mundo dos humanos), no estado de semitranse
(desmaia) ou comportando-se como um deles na aldeia (Id., 1993, p. 164 e 184).
Uma etnografia das sessões de petymojap – momentos em que os xamãs
contam suas viagens ao mundo dos espíritos, a partir do instrumental da performance,
deve revelar as elaborações estéticas a partir do corpo do performer – tais como
gestos, tom de voz, entonação, pausas para respiração, apelo ao público,
representação das falas dos personagens, dentre outros, que se articulam para “fazer
existir” a realidade mítica diante da audiência, que é convidada a penetrar nesse
universo de imagens de um “mundo recriado” momentaneamente. Este consiste no
próximo passo desta investigação que tem como objetivo compreender qual
experiência está sendo expressa na performance e quais as relações entre
performance e contexto, o que nos permite formular uma perspectiva da experiência
Asuriní com as imagens a partir de uma forma tradicional (ritual).
As transformações do filme
Mas voltemos ao tema inicial que suscitou toda a reflexão que aqui apresento:
por que os índios, especialmente os xamãs, gostam tanto da experiência do filme que
aborda os seus universos míticos?
Retornemos ao filme Morayngava. Um ritual xamanístico de iniciação é
realizado pelos Asuriní do Xingu para ser gravado em vídeo. O ritual é o maraká arapoá
(veado) e o neófito, o índio Takamuin, que aguarda a experiência de ter introduzido
em seu corpo o ka'á, substância transmitida pelos espíritos aos xamãs em transe, e
destes ao neófito. O iniciante também deve se encontrar em estado de transe,
chamado yngaiva, cuja descrição do estado físico pelos Asuriní, em português, é
"tremor" (Müller, 2000).
Após alguns dias depois de iniciado o ritual, Takamuim deu seu depoimento
sobre a experiência a que se submetera nos seguintes termos:
49
Para uma classificação dos seres do cosmos Asuriní ver “Classificação dos seres”. In: Müller, 1993, p.
189.
O ritual seguiu seu curso e os xamãs desistem por iniciar Takamuin. Anos
depois, quando perguntei para Takamuin por que sua iniciação não fora completada
ele me respondeu que não tinha sonhos com “coisas dos Asuriní”, seus sonhos, eram
como “sonhos de branco” em que apareciam imagens de caminhões, abertura de um
ventre em uma operação cirúrgica e o sobrevôo de um helicóptero.
Outra interpretação para o não sucesso da iniciação de Takamuin aponta para a
própria presença da câmera durante o ritual, ainda que a filmagem tenha sido
proposta pelos próprios índios. Para atingir o objetivo de filmar a iniciação, os Asuriní
tiveram de reelaborar concepções e colocar em risco a própria tentativa de introduzir
o ka'á no corpo de Takamuim ao permitirem que, para filmar o momento em que isto
ocorre, uma iluminação perigosa ameaçasse seu êxito e invertesse drasticamente uma
das condições mais essenciais ao transe dos xamãs, o lusco-fusco do ambiente. A
antropóloga Regina Müller afirma em um artigo publicado pela Revista de
Antropologia em 2000 que nos vinte e um anos em que esteve com os Asuriní em seus
rituais xamanísticos, jamais viveu a situação de ter uma luz razoável ao menos para
obter uma foto sofrível desse momento. Até o gravador de som que usou certa vez
para registrar a iniciação de um xamã foi responsabilizado pelo fracasso de não se
conseguir introduzir o ka'á no corpo do xamã iniciando.
A relação dos Asuriní com imagens produzidas pelos modernos equipamentos
dos brancos, tanto fotográficas quanto do vídeo ou da televisão, sempre foi marcada
como experiências de ambiguidade e perigo. Na década de 1970, por ocasião do
contato oficial com a sociedade envolvente, os Asuriní consideravam a reprodução da
imagem dos seres humanos pela fotografia50, pelo vídeo e pela televisão uma ameaça
à sua vida, e sua manipulação, a causa de muitas doenças. A câmera fotográfica suga o
ynga (princípio vital) da pessoa fotografada ao reproduzir sua imagem, ayngava. A
câmera de vídeo põe a imagem dentro da televisão, oreayngava onhyhyn (nosso
desenho está entrando), e, assim, fazendo “o ynga ficar guardado dentro” (oreynga
pupé). Daí o nome dado à televisão yngirú, o que guarda/contém ynga, traduzido por
“caixa da alma”51.
Uma recente experiência de campo entre os Asuriní, para a continuidade da
pesquisa acerca das relações entre o ritual e o audiovisual para o Projeto Temático
“Antropologia da Performance: Drama, Estética e Ritual” desenvolvido pelo Napedra-
Núcleo de Antropologia, Performance e Drama da USP52 , trouxe outras possíveis
aproximações entre o ritual e o audiovisual. Durante a permanência na aldeia, além de
oficinas de vídeo, exibi diversos filmes entre documentários e ficções incluindo filmes
feitos sobre e por índios, a partir do critério de levar a maior diversidade possível de
amostras. As exibições aconteceram no período da noite em tela grande e com
equipamento de som de qualidade com a idéia de possibilitar a imersão na experiência
do filme.
50
Sílvia Pellegrino (2008) aborda as denúncias e angústias que os Wajãpi manifestam com relação à falta
de controle sobre a veiculação de suas imagens fotográficas em diversas conjunturas e as relações entre
imagem e substância.
51
Depoimento extraído do filme Morayngava, realizado pelas antropólogas Regina Müller e Virgínia
Valadão. Centro de Trabalho Indigenísta, 1997.
52
Com financiamento da FAPESP (Processo 06/53006-2). Vigência entre março de 2008 à março de
2012.
Dentre os filmes mais comentados destacam-se O Urso de Jean-Jacques
Annaud (1988) que conta as peripécias de um urso filhote do ponto de vista do animal,
Oió, a luta dos meninos Xavante (2010), documentário realizado pelos Xavante sobre a
formação do guerreiro na sociedade indígena e Kiriku e a Feiticeira (1998), uma
animação de Michel Ocelot que narra as peripécias de um pequeno herói, Kiriku, que
luta para livrar sua aldeia dos feitiços de Karabá, a feiticeira. Esse conjunto de filmes
possui alguns elementos em comum: abordam o tema da guerra, da luta e das
transformações - de status no ritual xavante, de homens em seres fantásticos em
Kiriku e de perspectiva em O Urso53.
Apenas como uma reflexão preliminar, podemos pensar que o
audiovisual, especialmente a partir da montagem, permite operar essas
transformações tão características da experiência do xamã. A boa recepção do filme
Morayngava entre os xamãs Asuriní e a vontade de ver repetidas vezes a montagem
tematizando seus sonhos nos faz pensar que, de alguma maneira, a montagem
audiovisual “faz existir” os universos só acessíveis aos xamãs por que opera em termos
de imagem as transformações vividas no ritual pelo xamã que se coloca na perspectiva
de um xamã-espírito.
De uma relação difícil com a imagem gravada os índios passam para uma
relação diferente, na qual demandam imagens de seu povo. Não são imagens do
cotidiano da vida na aldeia para serem vistas por eles ou imagens dos Asuriní para
serem veiculadas no contexto político e intercultural, são imagens produzidas como
arte, estamos falando de uma montagem fílmica, a partir da percepção dos xamãs de
que o audiovisual pode operar transformações, capacidades semelhantes às que
possuem os xamãs no ritual.
As narrativas dos xamãs Asuriní do Xingu (PA) são relatos de experiências em
primeira pessoa ao mundo dos espíritos, lugares só conhecidos por eles que passam a
existir como realidade ao se tornarem visíveis a partir de seus depoimentos. O
momento em que os xamãs Asuriní contam suas viagens às diferentes zonas cósmicas
é durante o rito petymojap, dentro dos rituais xamanísticos maraká. A partir de
sugestão dos Asuriní, este paper pretende refletir, à luz da abordagem da
performance, as relações possíveis entre o audiovisual e as narrativas dos xamãs em
suas capacidades de “fazer existir” universos “virtuais”.
Bibliografia
BARCELOS NETO, Aristótelis. Apapaatai: rituais de máscaras no Alto Xingu. São Paulo,
2004. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
53
Outros filmes tiveram uma reação negativa, especialmente por parte dos jovens, dentre eles: Baraka,
documentário experimental dirigido por Ron Fricke (1992) e Nanook do Norte documentário dirigido por
Robert J. Flaherty (1922). Neste caso, os comentários diziam que nestes filmes “nada acontecia” e os
rapazes insistiam na afirmação de que “queriam ver filme de luta”. A Guerra do Fogo de Jean-Jacques
Annaud (1981), filme que suscitou toda a reflexão deste texto, agradou o público indígena.
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54
Diretor: Ciro Guerra. Ano: 2004. Roteiro: Ciro Guerra. Música: Richard Córdoba. Montaje: Ivan Wild,
Ricardo Cortés. Produtor: Jaime Osorio Gómez, Ciudad Lunar Producciones, Tucan Producciones
Cinematográficas Ltda. Elenco: Césart Badillo- Mañe, Ignacio Prieto- Homem da cadeira, Inés Prieto-
Doña Marelvis, Lowin Allende- Sargento Oswaldo Jaimes, Julián Díaz, Andrés Gaitán e Diego Manzano-
jovens. País: Colômbia. Todas as informações sobre os filmes aqui citados, estão no site de
Proimagenes, a entidade do Ministério da Cultura que lida com todos os assuntos referentes à
cinematografia colombiana. Disponível em www.proimagenes.com.co
será entendido o filme de Guerra: A elaboração de um filme exige reduzir a
fragmentos uma realidade para melhor controlá-los e organizá-los em sequências
fílmicas, a imagem que é assim construída não é transparente. É um processo de
elaboração que mistura elementos narrativos (herói, assunto, tema, conflito, etc.) e
não- narrativos (fade, superexposição, sobreposição, close- up, inserts, etc.) (Aumont,
1983). Esta construção de mundo – diegese – não é natural ou real, mas é possível – o
movimento cinematográfico é uma mimesis elaborada de certa forma de movimento.
De modo que um filme, mais do que uma reprodução do mundo real que o mostra
com fidelidade até nos detalhes mais pequenos, é uma forma de dar a ver. Assim,
diante de um filme como este, posso começar a estranhar as ruas de Bogotá, a cidade
onde nasci e cresci, a repensar sua geografia e sua atual população, e sou obrigada,
sobretudo a rever meus conceitos sobre o que tenho como certo a propósito do
deslocamento, das vítimas, do desemprego, das formas de sobreviver, de alucinar, de
rezar e de ter esperança.
Esta forma de dar a ver é o resultado de um trabalho de observação,
roteirização, filmagem, decupagem e montagem que compromete uma grande equipe
de produção. É uma organização do material audiovisual segundo um critério narrativo
e plástico que tem como processo principal a montagem, pois este é o procedimento
que define a forma e o ritmo do filme. É esta seleção de fragmentos da realidade e sua
posterior organização que identifico como a narração da sociedade de si mesma
(Aumont, 1983). O que se pretende discutir é como o cinema mostra aquelas histórias
dramáticas, resultado de violência e violências cujo cenário e personagens são o
próprio país e os conterrâneos55.
As histórias que chamei de dramáticas são as que lidam com o tema do terror.
Taussig (1987) afirma que este é um estado social e psicológico cujas características
lhe permitem servir como mediador entre as diferenças. O terror, cria espaços da
morte onde imperam, a confusão, a ruptura da significação e a desordem epistêmica.
Um conjunto de elementos que se tornam agentes na manutenção da exclusão política
e econômica e que participam na elaboração cultural do medo. Esta elaboração
articula verdade, fantasia e medo e estrutura a realidade. Em outras palavras, o terror
não é um ato em si, mas o estado em que uma sociedade vive, a forma de organização
– de inclusão e de exclusão – das relações entre os membros de tal sociedade e a
estabilização de uma certa ordem. É um estado que se torna fato pela articulação de
verdade e ilusão, a razão e a vontade de explicação não dão conta das dimensões
deste estado, precisamente porque aqui existe um excesso de significado, alguma
coisa de indefinível, inenarrável.
Colômbia é um país que vive um conflito armado interno há mais de 5 décadas,
consequência do choque e da conjunção de diferentes elementos. Ferro (2002)
identificou alguns dos eixos de discussão sobre o conflito, os citarei com o objetivo de
apresentar suas características: Por um lado se nota uma ênfase na relação entre o
Estado e a sociedade e a violência seria o resultado da negação pelo Estado da
diversidade, ou é consequência da ação de uma sociedade que não reconhece o
Estado nem o aceita como um terceiro elemento da solução das suas discórdias e é
incapaz de conviver com a diferença. Por outro lado se nota uma atenção às
55
Claro que o cinema tem uma dimensão global muito importante e a migração das imagens é assunto de
debate hoje em dia, porém o que chama a atenção aqui é a produção audiovisual nacional e a sua
visualização local.
estratégias de insurgência e de contra insurgência, os temas de justiça paraestatal e da
definição dos grupos guerrilheiros como atores coletivos ou como simples
delinquentes, são sob esta perspectiva analisados. Este debate tem tido incidências na
própria maneira de chamar o conflito, sendo principalmente duas, um confronto entre
atores coletivos como se dá em uma guerra civil ou como uma consequência da
rebeldia privada. A questão do para-estado, abre uma terceira linha de discussão que
permite refletir a propósito da questão da coerção e repressão pelo Estado. Por
último, temos o eixo do conflito agrário, o fato de que existe um desenvolvimento
desigual que exclui uma grande parte da população do acesso a bens e a produção faz
com que pessoas façam alianças e entrem no jogo de disputas econômicas, politicas e
sociais como agentes da violência e assumam o papel de insurgentes ou
contrainsurgentes.
Sem presunções explicativas, os eixos de interpretação citados acima são úteis
para conformar um quadro sobre o que chamo de conflito armado interno. Pois a
especificidade colombiana não permite pensar em um confronto entre grupos
distintos e o estado como mediador ou a ação de uns grupos contra o Estado porque é
precisamente a mistura de agentes, motivos, espaços, temporalidades e estratégias
que qualifica o conflito. Aliás, Ferro (2002, p. 49) afirmam que a atividade dos grupos
armados não se desenvolve de maneira isolada e autônoma, mas pelas interações
estratégicas entre uns e outros que revelam uma grande capacidade mimética, um
jogo de espelhos que mostra simetria nos meios ainda que os motivos sejam
divergentes. Isto não só cria uma confusão de identidades mas resulta na serie de
ataques contra a população civil, já que esta é a base social real ou não do outro.
Invasões, massacres, torturas e sequestro instalam novas ordens e obrigam a uma
grande parte da população a se deslocar do campo à cidade, onde não são recebidos
nem pela sociedade nem pelo estado ou algum tipo de órgão que lide com questões
sociais na cidade, os desplazados.
Este é o lugar onde o cinema e a narração do terror se encontram. La sombra
del caminante é um filme que mostra a vida de dois desplazados em Bogotá, suas
dificuldades econômicas, a exclusão, a obrigação de conviver com a memória desse
passado que os levou até essa cidade, a incerteza do passado, sem possibilidade de
falar e sempre sendo levados às margens onde a invisibilidade é definitiva. Um dos
personagens é Mañe, um homem pequeno, deficiente físico, usa óculos redondos e
tem uma grande dívida com o senhorio. Atacado por jovens – imigrantes também –
sem opções de trabalho e constantemente sendo intimidado para ir no refúgio para
pobres, desplazados, deficientes como ele. O outro personagem é o caminante um
homem alto, magro e forte, carrega nas cosas uma cadeira que serve para transportar
pedestres de um lado para outro, utiliza óculos pretos e quando o sol aparece abre um
guarda-chuva igualmente preto para se proteger, é um homem que fala muito pouco,
sem nome, que mora em uma barraca de plástico nas colinas da cidade e bebe um chá
que faz com uma planta que leva para todo lugar. Os dois chegaram em Bogotá depois
do ataque à cidadezinha Puerta Nueva no Caquetá, se encontram por um azar e
terminam por acordar memórias e revelar verdades.
Pela descrição dos personagens, podemos ver que existe uma relação de
complementariedade entre eles, especialmente quando percebemos que Mañe vai ser
ajudado a se deslocar pela cidade pelo homem da cadeira, outro elemento que chama
a atenção é o óculos, Mañe o usa para melhorar a visão entanto que o homem da
cadeira os usa para esconder a visão. Ainda que o encontro deles tenha sido pelo
acaso, a relação justifica tal encontro e estrutura uma narrativa dramática. Neste tipo
de narrativa, dois desconhecidos se encontram criam uma relação solidariedade, mas
existe alguma coisa que atrapalha a plena realização da relação. No final descobrem
que aquilo que impede e se impõe como um silêncio é um segredo cuja revelação é a
solução ao conflito que os dois carregam.
Mañe chegou um Bogotá por causa de um ataque violento à cidadezinha onde
ele morava, um lugar pequeno e tranquilo. Os pais morreram neste trágico evento
junto com a maioria da população e Mañe perde uma perna. O homem da cadeira
chegou na cidade fugindo da justiça “feita pelas próprias mãos”, deve calar a verdade
do fato que o levou a tal situação e leva consigo um projetil que ficou na cabeça “para
não esquecer”, como ele mesmo afirma. Acontece que, o homem é um assassino, o
líder que organizou o ataque à cidade de Mañe, o responsável pela morte dos pais,
pela perda de sua perna. A relação que se desenvolve nas ruas de Bogotá, mostra o
assassino carregando sua vítima, cuidando dela e a vítima pedindo uma demonstração
de amizade.
Este filme que chamo de elaboração da narrativa do terror, cobra uma outra
cor ao colocar estas imagens no contexto de imagens fílmicas e mediáticas do conflito
armado interno que circulam na Colômbia especialmente a partir do ano de 2005
quando começa a vigorar a Ley de Justicia y Paz56 (975 de 2005) que pretende
solucionar o conflito armado interno pela via da negociação com os grupos
paramilitares e reparação às vítimas. Um dos pontos da lei tinha como objetivo
comunicar a população sobre a lei e o andamento da mesma, uma das estrategias de
informação foi a de fazer circular pelos meios massivos de comunicação os
depoimentos das vitimas que estavam participando do processo. As imagens e os
depoimentos que foram conhecidos eram extremadamente vigiados para não
entrarem em contradição com a lei. O filme de Ciro neste contexto adquire o status de
uma obra que mostra o terror de forma a provocar posicionamentos muito diferentes
daqueles que as imagens produzidas em concordância com a lei provocariam.
Na ultima cena do filme a verdade é revelada fora do contexto judicial em
resposta à demanda de amizade. O homem da cadeira conta para Mañe os
assassinatos que ele cometeu e assume a culpa da morte dos pais dele só quando
retira os óculos e revela os olhos. É uma sequencia decisiva no filme e contribui com
esta comunicação no sentido de mostrar o que antes chamei de inenarrável. O homem
conta para sua vítima que ele é o culpado da sua desgraça e isto não é fácil, mas a
única forma de fazê-lo é se descobrindo, expondo a parte do seu corpo que o faz igual
aos outros e mostrando sua fraqueza. Só que este “descobrimento” não é simples, não
se trata só de “olhar para os olhos do outro”, tirar os óculos e falar com um tom de voz
determinado. Este ato é feito como uma deformação do rosto, o gesto horrível é
exposto para dar começo à criação do espaço onde a verdade pode ser dita e escutada
e onde nem verdade nem resposta são nada além de narrações das experiências de
cada um. Isto em grande parte porque na Colômbia histórias de assassinatos, ataques
paramilitares, das guerrilhas, dos militares circulam profusamente em jornais, revistas
e noticiários. De modo que o problema não é contar, não é unicamente dizer “sim, eu
fiz; eu matei sua família”. Depois de tantos anos de conflito armado interno, o
56
No web site www.cnrr.org.co encontram-se textos, análises e demais informações a respeito da citada
lei.
problema é como contar. Como não alimentar a sensação de impossibilidade de
resolução, como não alimentar as redes do jornalismo com estas histórias e sobretudo
como não servir à sedimentação do espaço da morte pela narração destas histórias.
57
A ideia do rosto como “espelho da alma” se relaciona com a arte do retrato. foi pensada a partir da
representação artística de retrato. Um tipo de construção do artista da pessoa que tem diante de si,
normalmente em situação solene e com o objetivo de mostrar as qualidades morais mais elevadas que tal
pessoa tem dentro de si.
efetivamente tal experiência. Sendo que o interesse não é fornecer dados, números e
explicações, mas fazer existir a intimidade do terror na experiência coletiva. O objetivo
seria então construir histórias que surpreendam, que não nos permitam nos
acostumar ao terror, a suas formas e consequências. A questão é a de como escrever
efetivamente contra o terror, comunicar sua dimensão incomunicável, sua parte de
experiência do vivido e elaborado dia a dia, boca a boca, sem portanto expandir suas
vitórias: o silêncio, o medo, a aceitação passiva. Desta forma, a narrativa se pensa no
marco deste trabalho, como a forma que articula o inarticulável, cuja faculdade de
intercambiar experiências, nos leva a pensar nas formas de comunicar o terror.
O cinema como narrador moderno, que subtrai o espectador da cadeira para
pô-lo em contado com o desconhecido, com a morte, com o impossível. Com os
desplazados, os desempregados, os aleijados, os miseráveis que deambulam pelas
ruas. A narrativa fílmica, relacionada com a magia, com a ilusão de Méliès,
desenvolveu uma grande liberdade criativa, formas que não respondem aos cânones
da informação plausível, outras que quebram o ideal do realismo da ficção clássica e
outras que simplesmente logram reunir elementos diversos ou até divergentes. Um
filme, como não está submetido à tarefa de dar conta da realidade em si, do modo
como um noticiário ou um jornal ou até um romance, constrói imagens do sensível, do
inefável.
A imagem cinematográfica copia o original sem se limitar a este. Ou seja, o
poder da imagem não se encontra em sua veracidade (em ser um fato que facilmente
possa ser conferido na realidade ), mas, na sua capacidade de pôr em contato o corpo
de quem percebe com o daquele que é percebido. Uma força mimética se relaciona
com o fisionômico, a força tátil do olhar que leva o espectador à tela e lhe oferece uma
experiência fora de si mesmo. Neste processo, a tela imprime imagens surpreendentes
do outro na sua memória obrigando-o a ver de novo, a refletir e narrar o visto. O
objeto do cinema está em perpétua transformação. A imagem materializa uma
proposição, é um fragmento e é um meio para pensar sobre o mundo do possível.
Mundo, cujo sentido é construído pela montagem. Um duplo processo de isolar, de
des-territorializar situações e de recompor que permite “mergulhar” nelas. Movimento
que revela níveis de experiência, ao mesmo tempo em que é um ato criativo que
desafia o olhar, um redescobrimento, restauração do que é reprimido.. Uma imagem
em construção que, pensando na relação entre os personagens, as ações, e os lugares
que ocupam no filme de Ciro Guerra, cria as condições para narrar o anti- narrativo,
para articular o que não é articulável. O cinema como uma forma específica de se
relacionar com o mundo e de dar a ver, de difundir ideias, de refletir; em resumo, uma
forma específica de apreender o real. Para Juan C. Arias (2010) uma orientação
possível da análise fílmica é a da discussão sobre a dimensão política do cinema
colombiano. Arias compreende o político do cinema não como a representação de
fatos políticos, mas como a capacidade do cinema de configurar novas experiências,
sensibilidades e ritmos. Um cinema que, segundo o autor, tem tido certa
independência e com isso a possibilidade de apresentar um discurso alternativo sobre
o país. Então, o problema do cinema colombiano seria como ele constrói uma
“imagem- nação e não uma imagem da nação através de suas imagens e histórias”.
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BENJAMIN, Walter. “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” (1936)
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MORIN, Edgar. Le cinema ou l'homme imaginaire. Essai d'anthropologie. Paris: Ed. de
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terra, 2005, 5a ed.
A performance da criança no cinema iraniano, Kelen Pessuto (IA/Unicamp)
Os "não" atores
58
A voz over é quando ela não é identificada. Embora eu saiba que ela é de Bahman Ghobadi, na diegese
do filme ela não é esclarecida.
59
Em depoimento nos extras de Offside (2006), lançado em DVD pela Sony Pictures Home
Entertainment.
Às vezes, um ator pode até conhecer algumas falas de seu diálogo, mas nunca
sabe a do outro, para que a reação surja espontaneamente. Para que eles vivenciem a
cena.
Após seu primeiro longa-metragem O viajante (1974), Kiarostami aprendeu que
não deveria dar o roteiro para os “não” atores decorarem:
Quando o diretor transfere a emoção para o ator, ele responde a ela no mesmo
nível. A decepção em relação a um ator vai provocá-lo de tal maneira que ele chega ao
set de filmagem realmente triste e isso irá transparecer na cena.
Como em uma cena de Onde fica a casa do meu amigo?, na qual o menino tem
que pensar no caderno do amigo, que ele levara para casa por engano. Para conseguir
a introspecção necessária nessa hora, Kiarostami deu um problema matemático para o
garoto resolver. No mesmo filme, outro garoto chora porque leva bronca do professor
por não ter feito a lição. Kiarostami não disse para o menino: “Nesta hora você tem
que chorar”. Ele trabalhou de outra forma para conseguir a emoção do garoto, como
narra a seguir:
Bibliografia
BICHARA, Ilka Dias. Brincadeira e cultura: o faz de conta das crianças Xocó e do
Mocambo (Porto da Folha-SE). Temas em Psicologia, Ribeirão Preto, v. 7, 1999,
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Acesso em: 18 jun. 2010.
KIAROSTAMI, Abbas. Duas ou três coisas que sei de mim. In: KIAROSTAMI, Abbas;
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Princeton, NJ: Princeton University Press, 2006, 1ª edição.
OLIVEIRA, Zilma de Moraes. Creches: crianças, faz de conta & cia. Rio de Janeiro:
Vozes, 1992, 1ª edição.
SCHECHNER, Richard. Between theater and anthropology. Philadelphia: University of
Pennsylvania Press, 1985.
______. Performance theory. London & New York: Taylor & Francis e-Library, 2004.
VYGOTSKI, Lev Semenovitch. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes,
1991.
Filmografia
A VACA. Direção: Dariush Mehrjui. Irã: 1969, DVD (105 min).
ENTREVISTA com Jafar Panahi. Extras do DVD de Fora do jogo, lançado pela Sony
Pictures. 2006.
LIFE IN FOG. Direção: Bahman Ghobadi. Irã: 1999, DVD, (27 min).
MAKING OF DE TEMPO DE EMBEBEDAR CAVALOS. Irã: 2000, DVD (20 min).
ONDE FICA A CASA DO MEU AMIGO? Direção: Abbas Kiarostami. Irã: 1987, DVD (83
min).
O PÃO E O BECO. Direção: Abbas Kiarostami. Irã: 1970, DVD, (11 min.).
O SUL DA CIDADE. Direção: Farrokh Ghaffari. Irã: 1958, película (75 min).
O VENTO NOS LEVARÁ. Direção: Abbas Kiarostami. Irã/França: 1999, DVD (118 min).
TARTARUGAS PODEM VOAR. Direção: Bahman Ghobadi. Irã/França/Iraque: 2004, DVD
(95 min).
TEMPO DE EMBEBEDAR CAVALOS. Direção: Bahman Ghobadi. Irã: 2000, DVD (80 min).
Sessão Napedra 5: Experiência e memória
1ª Etapa (concluída)
abril de 2009 a março de 2010
• abril a setembro: superação de vários empecilhos burocráticos para obtenção
da autorização para manusear os prontuários (arquivados sob segredo de justiça).
• outubro a março: • visitas ao Arquivo da Fundação CASA (em média uma por
semana) para ler os documentos.
• Identificação, acesso e análise de 37 prontuários (cada qual com
aproximadamente 40 páginas).
• Transcrição de trechos dos principais documentos: relatórios técnicos, ofícios,
exames médicos e psicológicos etc.
• Seleção de algumas variáveis referentes a dados biográficos e verificação de
tendências procedimentais e cognitivas registradas nos documentos.
• Resta investigar se há mais homens do que mulheres buscando seus
prontuários porque os percentuais apenas refletem o fato de, historicamente, na
população de crianças abrigadas, predominarem meninos, ou se há outras motivações
em jogo.
• Uma possibilidade é que homens, e não tanto mulheres, invistam mais na
busca de registros de seu passado por “motivos trabalhistas” (contagem de tempo
para aposentadoria).
Ambos conhecidos:
56,80%
Um ou os dois deconhecidos:
43,20%
Só mãe desconhecida:
5,40%
Ambos desconhecidos:
5,40%
[1] - Algumas cartas foram escritas à mão, pelo próprio solicitante; outras
parecem ter sido redigidas à mão ou digitalizadas por terceiros. Seus conteúdos variam
muito, indo de pedidos “secos”, sem justificativas de conteúdo, a solicitações
fartamente embasadas em motivações de ordem emocional, moral, familiar etc.
2ª Etapa (concluída)
abril de 2010 a fevereiro de 2012
• enfrentamento de trâmites burocráticos para contatar os 37 adultos que
solicitaram o desarquivamento dos prontuários analisados na primeira fase, para com
eles realizar histórias de vida, de preferência em suas residências.
• primeiros contatos para agendamento de entrevistas. Muitos contatos não
conferiam mais e alguns poucos contatados se negaram a falar sobre o abrigamento.
Uma entrevista-piloto com um ex-abrigado não pertencente à amostra.
• Roteiro básico da entrevista:
• O(a) Sr(a) poderia dizer por que decidiu obter uma cópia de seu prontuário?
Em que momento
tomou essa decisão? Estava acontecendo alguma coisa especial em sua vida?
• O que esperava encontrar no prontuário? O que sentiu ao tomar
conhecimento de seu conteúdo?
• Poderia retomar algum acontecimento de sua infância, registrado no
prontuário, e que especialmente o(a) tocou? (Estímulo a certos temas, com base em
anotações do conteúdo específico do prontuário em questão)
• O(a) Sr(a) lembrava-se de algo que está registrado em seu prontuário? Do
que, por exemplo? E o que o(a) surpreendeu, por estar no prontuário mas não fazer
parte de suas lembranças?
• Se tivesse que contar sua história de vida em um programa de TV ou para que
ficasse registrada em um livro, o que contaria? Começaria por qual acontecimento? E
depois?
• Sente que algo mudou depois de ter tomado conhecimento do conteúdo de
seu prontuário?
Análises preliminares
(a partir dos prontuários, entrevista-piloto e conversas informais com
funcionários da F. CASA)
• Além de interpretando suas próprias vidas e o mundo, ex-abrigados
expressam/ performatizam o desejo de interromper um certo curso de vida e um certo
arranjo de mundo em busca de outros. Estão construindo experiências identitárias,
lidando com fragmentos aos quais querem dar sentido e coerência.
• Todavia, processos de construção identitária, além de percebidos como
incompletos, reiteram-se como fragmentados, não lineares, plenos de ruídos, margens
indefinidas e movimentos inesperados.
• Os conceitos de “sinais” e de “rastros” trabalhados, respectivamente, por
Carlo Ginzburg (1979: 143-179) e Walter Benjamin (Ginzburg, J. [no prelo]) são
potentes para estas análises.
• O conceito de performance se reforça, nesse quadro, como um conjunto de
elementos atuantes na mobilização, nas ações e na construção de significados que
estes adultos expressam ao elaborar a marcante experiência de buscar fios de suas
vidas e de perceberem-na como um tecido não homogêneo, não geométrico,
imprevisível.
Bibliografia
Bichos Escrotos
Saiam dos esgotos
Bichos Escrotos
Venham enfeitar
Meu lar!
Meu jantar!
Meu nobre paladar!...
(Nando Reis)
Introdução
Essa apresentação tem como objetivo apresentar reflexões iniciais sobre as
rodas noturnas dos velhos Hupd’äh, povo Nadahup (Maku) que habita a região do Alto
Rio Negro, AM. A etnografia em curso vem permitindo perceber que as rodas noturnas
constituem-se como um espaço central para os fazeres mítico, onírico e xamânico, a
partir dos quais os velhos estabelecem relações fundamentais com o restante da
sociedade Hup. Apesar disso, percebe-se a pouca ênfase que a literatura etnológica
deu para esses encontros noturnos mencionados em breves notas que enfatizam
sempre dimensões pontuais desses eventos. Como mostra Carlo Severi (2009), o ritual
pode surgir através de grandes formas institucionalizadas ou de eventos que surgem
desapercebidos na vida cotidiana. Partindo da percepção de uma roda de coca que
ocorria em meu próprio pé, procuro ressaltar aspectos rituais dos encontros noturnos
e refletir sobre alguns gestos marcantes como: sentar, cercar e oferecer. Por fim,
proponho uma interpretação inicial sobre os atos de fala que compõem essa
performance.
Os Hupd’äh
Os Hupd’äh habitam a região do Alto Rio Negro (AM) na fronteira entre o Brasil
e a Colômbia. Suas comunidades situam-se às margens de igarapés da área interfluvial
dos rios Tiquié e Papuri, afluentes da margem esquerda do rio Uaupés. Os dados
demográficos mais atuais estimam a população num total de 1.500 indivíduos
distribuídos em aproximadamente 35 aldeias (R. Athias, 2006; P. Epps, 2005). A alta
mobilidade e circulação pelo território são aspectos fundamentais do modo de vida
hup relacionados ao vasto conhecimento que possuem sobre os caminhos, igarapés,
animais e vegetação local. Associada à mobilidade, a caça-coleta constitui-se como a
atividade produtiva mais importante para a diferenciação identitária desse povo em
contraste com as populações ribeirinhas de pescadores-agricultores. Ao mesmo
tempo, a eficácia da caça-coleta vem diminuindo nas últimas décadas e fazendo com
que a pesca em igarapés e as roças de mandioca venham se tornando cada vez mais
fundamentais para a produção alimentar. Isso ocorre principalmente nas comunidades
mais populosas. Atualmente, há algumas aldeias que agregam de 100 a 200 indivíduos,
enquanto outras continuam concentrando de 15 a 50 pessoas (H. Reid, 1979, p. 18).
A estrutura social hup tem nos clãs agnáticos seus segmentos básicos de
constituição e de diferenciação. Criados pelo herói cultural //, os ancestrais
/– filhos da criação – deram origem aos hoje aproximadamente 20
clãs patrilineares, exogâmicos e de descendência unilinear. Cada clã possui um
conjunto específico de nomes, mitos e cantos através dos quais são narrados os
eventos de criação e se constitui um senso de pertencimento e identidade. O
casamento preferencial dá-se entre os primos cruzados bilaterais em uma mesma
geração, procurando respeitar certa hierarquia entre os clãs. Em contraste com outros
povos da região, o sistema de matrimônio dá-se segundo a endogamia lingüística e a
exogamia clânica. O casamento dá origem a grupos de fogo, unidades mínimais de
produção e consumo, que se fixam de modo patrilocal. A coabitação em um mesmo
território ou espaço de grupos de fogo gera os grupos locais que são nomeados e
diferenciados entre si. Os deslocamentos de grupos de fogo ou indivíduos para visitas a
parentes de outros grupos locais ocorrem periodicamente e podem durar meses (H.
Reid, 1979; R. Athias, 1995).
Esses traços aproximam os Hupd’äh de povos como os Yuhupdëh,
Nadëb, Dâw, Kákwa e Nukák, e permitiram a designação dos mesmos pela literatura
etnológica da região como povos Maku. Entendendo haver um sistema relativamente
homogêneo baseado na exogamia lingüística, nas relações hierárquicas rituais e
territoriais entre povos falantes de línguas tukano e arawak, os pesquisadores
descrevem a especificidade da articulação dos povos Maku a esse “sistema
vaupesiano” (S. Hugh-Jones, 1974; C. Hugh-Jones, 1977). O próprio termo Maku,
adotado pela literatura, revela a particularidade dessa interação já que a palavra Maku
origina-se do arawak e significa “aquele que não tem fala” ou “aquele que não tem a
nossa fala” (Ma = prefixo privativo / aku = fala), sendo associado a “selvagem”, a
índios-da-floresta em oposição a índios-do-rio, como os povos tukano e arawak. A
realização de trabalhos nas roças de famílias tukano, que faz com que famílias maku se
mudem para próximo às aldeias tukano em determinados períodos, as trocas de carne
de caça e frutos por mandioca, peixes e mercadorias, e o respeito e silêncio diante dos
tukano são aspectos que fizeram com que os pesquisadores descrevessem as relações
entre esses povos como simbióticas, de patrão/ cliente, hierárquicas e assimétricas (H.
Reid, 1979; R. Athias, 1995; A. Ramos, 1981).
Breves notas
Em 1960, em sua enquete sobre os índios Maku do Caiari Uaupés para a Société
Suisse des Américanistes, os irmãos Mário e Michel Terribilini (1960) descrevem o
modo de preparo da coca. Sua pequena nota atenta para a mastigação realizada
noturnamente e ao redor do fogo. O consumo de coca ocorria também durante longas
caminhadas e acalmava a fome durante períodos de escassez de alimentos. Em suas
palavras,
É interessante notar como seu breve relato feito em meio a uma análise sobre a
integração dos grupos domésticos nos grupos locais apresenta elementos comuns à
descrição atual que venho fazendo dos encontros noturnos. Há um senso de
pertencimento ao grupo local que se reforça através das rodas de conversa. Sua
descrição deixa transparecer certo aspecto de igualitarismo e comunhão, mostrando o
mais velho como alguém importante por seu saber e papel político.
No trabalho de doutorado de D. Buchillet de 1981, as rodas de coca são
mencionadas em meio à descrição do modo como o aprendizado de benzimentos e
mitos se dá entre pai e filho através de diálogos cerimoniais. Ambos os participantes
comem coca e fumam tabaco para reavivar a memória e para não dormir (p.105). C.
Hugh-Jones (1979) detalha o processo de produção e consumo da coca em meio a uma
descrição dos processos de produção dos alimentos. Mostra como a atividade constitui-
se como uma prática exclusivamente masculina, diária e secular e como é centrar para
definir o ciclo diário de produção masculino em oposição ao feminino. Estabelece
relações entre a produção da coca e o mito Barasana de origem da coca e mostra um
pouco a importância da coca para o xamanismo desse povo.
Stephen Hugh-Jones (1995), por sua vez, enfoca o uso ritual e cotidiano da coca
e outras substâncias pelos Barasana, estabelecendo uma minuciosa descrição dos
hábitos de consumo da coca, enquanto alimento masculino. Traçando paralelos entre o
consumo cotidiano da coca, de derivados da mandioca, e o consumo ritual de yagé e
tabaco, o autor mostra como as pessoas relacionam-se, expressam valores sociais, e
diferenciam-se enquanto homens e mulheres, jovens e adultos pela mediação dessas
substâncias. Nas rodas noturnas de conversas, enquanto consomem a coca em pó, os
homens contam histórias, conversam, comentam fatos diários, etc. Alimento consumido
pelos espíritos e pelos ancestrais, a coca estabelece um aspecto temporal diferente,
permite aos homens no presente entrarem em comunhão com os ancestrais no passado
(p.54). O foco dessa reflexão incide mais sobre os hábitos diários de consumo que sobre
o uso das substâncias ritualmente. As práticas que envolvem tais substâncias e
expressam as ordens social e cosmológica revelam tanto a diferenciação de papéis
quanto relações de reciprocidade igualitária. Essas substâncias seriam partes integrais
das identidades dos grupos, perpetuadas através do tempo por meio do consumo, da
transmissão das plantas, de seu cultivo para novas gerações e da diferenciação de gênero
que marca a coca, o tabaco, a mandioca, a pimenta e o yagé como veículos de interação
social.
De forma muito semelhante à análise de S. Hugh-Jones, em seu trabalho
La parole engendrée, Dimitri Karadimas (2000) aborda as concepções Miraña sobre o
consumo cotidiano da coca. Em reuniões noturnas, a coca é mascada enquanto contam-
se mitos, realizam-se as curas xamânicas e conversa-se sobre fatos importantes,
havendo a enunciação e reprodução nos níveis profano e sagrado da língua. A coca e o
tabaco são objetos de trocas constantes entre os homens, e formam um par
indissociável. À coca são vinculados atributos femininos e ao tabaco atributos
masculinos, sendo que o seu consumo caracteriza o homem adulto por excelência. Essas
substâncias compõem uma mesma essência combinada na boca e no estômago
masculinos. Devido às cinzas, o tabaco e a coca possuem princípios fecundantes que
compõem a identidade corporal Miraña. São as palavras engendradas pela coca que são
consumidas nessa relação estabelecida no estômago (2000, p.445- 453).
Comer coca, fumar tabaco e conversar são atos que parecem reunir os homens e
especificamente os velhos desses diversos povos descritos pelos pesquisadores e
delinear os contornos de uma forma específica de interação social e verbal. As
interpretações apontam para certa comunhão e reforço da identidade local, para a
diferenciação de papéis sociais e de gênero, para uma reciprocidade igualitária e para a
mediação em relações assimétricas interetnicas. Ao mesmo tempo, S. Hugh-Jones
(1995) e Dimitri Karadimas (2000) traçam os contornos dessas rodas de conversa e
consumo de coca aproximando-as muito de ações rituais. As curas xamânicas e as falas
em níveis sagrado e profano dos Miraña, e o aspecto temporal que permite a comunhão
com os espíritos e ancestrais nos encontros noturnos Barasana mostram que esses
eventos se realizam através de uma lógica relacional particular.
Bicho do pé
Atormentado pela dor em meu dedo do pé, pedi a Genésio (/kä’/, 25 anos,
/ t noh köd t h/) que visse se eu tinha bicho do pé: - “këy’ëy am ten n’am ãh
nííh?”. Ficamos sentados do lado de fora da casa onde eu estava. Ele tomou uma
agulha e começou a olhar e a espetar meu dedo do pé. Foi então que olhou para mim
surpreso e disse que havia dois bichos do pé em meu dedo e que eles já estavam
sentados comendo coca. Estavam com suas roupas comendo coca. Para mim, “a
roupa” eram os ovos que formam o anel em torno do bicho. Por outro lado, informado
pela teoria perspectivista, esperava ver roupas principalmente em seres como
jaguares, porcos queixada e macacos, e não nesse pequeno inseto que me incomodava
tanto. Não esperava também que eles comessem coca, realizando algo semelhante às
rodas de conversa dos benzedores hup, sobre as quais venho trabalhando. Fui
entendendo que além dos Hupd’äh muitos seres reúnem-se para comer coca, fumar
tabaco e conversar sobre benzimentos e mitos.
No início da noite, nas casas do rio, /dëh moy/, os benzedores e os donos das
muitas gentes peixe estão reunindo-se para comer coca e fumar tabaco. No céu, na
casa do trovão, /p y moy/, quando as gentes onça não se reúnem para comer coca e
fumar com seu dono, o trovão, podemos ouvir sua fúria através dos estrondos dos
raios e trovões no céu. Na mata, os diversos /b’at b’ preparam a coca e o cigarro para
fazer a refeição coletiva, conversar, contar suas /p n ghistórias/mitos e falar sobre
benzimentos. Na casa da cachaça, /sibi moy, os homens do banco, /käd hup he os
homens do benzimento, /bi’id hup hestão preparando a coca e sentando-se em roda
para comer, fumar e conversar entre parentes, ou como me disseram, entre cunhados,
/yoh däh/, e irmãos, /bab’ däh/. Em meu dedo do pé, como no dedo de muitos da
aldeia, os bichos do pé instalavam-se, preparavam sua coca, sentavam-se, comiam e
conversavam entre parentes.
Sentado próximo à casa de Genésio, comi coca e fumei com seu pai, Vicente,
seu sogro, Miguel, seus tios e cunhados (afins) muitas noites. Fui aprendendo que
sentar é a postura corporal, o gestus social, que marca o enquadramento, a
performance frame, para tomar B. Brecht (1964) e R. Bauman (1977), dos encontros
noturnos. Num primeiro momento, todos os benzedores e pajés dividem as tarefas do
preparo da coca. Vão conversando sobre a pesca, a caça, a viagem a São Gabriel, a
chegada de “brancos” e/ou “tukano” à comunidade, etc. Chamam-se por apelidos,
riem, conversam com as mulheres que estão perto tecendo seus cestos de aturá. Aos
poucos a coca começa a ficar pronta, é derramada do pilão à cuia e passada, pelo dono
da coca, /p ’ k yo’om h, /p ’ k töt através do qual será oferecido pelo dono a
todos os presentes, circulando de mão em mão. É apenas quando todos já se
encontram sentados em bancos que os benzedores começam a perguntar e narrar
mitos e benzimentos. Começam assim a relacionar-se com outros tempos e espaços do
cosmos por meio de palavras, gestos e do movimento de seus pensamentos.
Como disseram, nas rodas nunca os benzimentos são contados por completo.
Quando o encontro está prestes a terminar, os velhos enchem suas bocas de coca,
despedem-se e vão para suas casas deitar na rede. Enquanto a coca vai sendo
absorvida, os velhos deslocam seu pensar, /wä’ këy/, e sua “força vital”, /hãwäg/, para
os tempos e espaços mencionados nas conversas da roda. Esse é um momento
perigoso, pois os benzedores e pajés de todas as casas do céu, da terra, do rio, de
debaixo da terra, de outras comunidades hup e de outros clãs estão deslocando-se
para roubar, /sëkëy/, os benzimentos, a força vital, e os conhecimentos de outros
benzedores e pajés. Para estar protegido, é preciso que o benzedor saiba cercar-se
com o benzimento que cerca, o /bi’id ta’/, e que fique acordado. Do contrário terá
sonhos ruins que podem representar perigo a sua família e à aldeia como um todo. Por
volta das duas da madrugada os benzedores dizem dormir e sonhar. Em seus sonhos,
seus pais, avós e ancestrais surgem e contam os benzimentos e mitos sobre os quais
conversavam na roda. Assim, conseguem complementar nas narrativas parcialmente
contadas nos encontros noturnos. Pajés e benzedores contam também de sonhos em
que viajam com seus /hãwäg/ para as diversas casas do cosmos.
Creio que naquele final de tarde, aos olhos de Genésio, filho de Vicente,
benzedor e dono da roda em que vínhamos comendo coca, meu próprio dedo do pé
tenha sido percebido como o local, a morada onde os bichos do pé podiam
tranquilamente sentar-se com suas roupas, comer coca e conversar sobre suas
histórias e benzimentos, como fazem os jaguares, os porcos queixada, os macacos, as
gentes peixe, e os muitos seres que habitam o cosmos. Se as roupas permitem
transformações em termos de perspectivas, creio poder dizer que a postura corporal e
o alimento comum a esses seres apresentam-se também como índices de uma
condição humana universalmente partilhada entre os seres, “a essência antropomorfa
de tipo espiritual, comum aos seres animados” (E.Viveiros de Castro, 2002, p. 351).
Sentar
Cercar
Oferecer
/p ’ k yo’om h/ : /p ’ k h t h
dono da coca : apanhador da coca
Palavras
Notas
Bibliografia
Ecos do processo socioeducativo no corpo do ator-performer, Tatiana Molero
Giordano (IA/UNICAMP)61
O corpo e a CASA
A história das chamadas instituições totais sugere que há uma relação entre a
postura de uma pessoa - do ponto de vista estético - e a fisiologia assumida pelo corpo
quando acometido por alguma doença física ou mental. Em Goffman (2010, p. 7-108) a
descrição sobre as instituições totais é minuciosamente dissecada. O comparativo
entre as instituições para doentes mentais (hospitais, manicômios), prisões e
conventos é abordado sob a perspectiva sociológica. Primeiramente observando-se a
função dessas instituições enquanto aparelhos sociais que separam indivíduos da
sociedade mais ampla por um período de tempo (determinado ou indeterminado) se
encarregam de administrar formalmente suas vidas e de acordo com um sistema de
regras apropriado disciplinam o seu cotidiano.
O tipo de instituição total determina o perfil do público-alvo, possui uma
intenção declarada de realização de trabalho específico e o faz de um modo adequado
para atingir os objetivos esperados pela sociedade.
61
Mestranda em Artes Cênicas pelo Departamento de Artes da Universidade Estadual de Campinas –SP,
membro do Núcleo de Antropologia, Performance e Drama (Napedra) e do Núcleo de Antropologia do
Direito (Nadir) do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP. Agradeço à Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) por apoios recebidos para o desenvolvimento desta pesquisa.
Na interpretação sociológica essas instituições totais criam um sistema
apartado da sociedade que embora possuam aspectos comuns, as diferenças entre si
são relevantes para distinção de suas funções sociais. Os indivíduos pertencentes a
estas instituições por sua vez, têm a sua “noção de pessoa” modificada e adequada ao
novo ambiente social.62
Pelo olhar da Antropologia da Performance, é necessário examinar o campo de
pesquisa e contextualizá-lo. Considerando que a performance seja uma forma de
comunicação que propicie reflexões a partir de si, ao etnógrafo cabe observar sua
inclusão nesse meio e se colocar no estado de “deixar emergir textos e contextos",
buscando a compreensão da narrativa poética. (Hartmann, 2005).
Observo que tanto Goffman (1983) com sua análise sobre o papel das
instituições sociais, quanto Turner (1987) ao criar uma estrutura para análise do drama
social, levam em consideração diretamente a percepção dos fenômenos enquanto
experiência (dos indivíduos ali presentes considerados nativos), expressão (individual e
coletiva), e indiretamente como memória e história, reforçando seu processo cultural.
Mary Douglas reforça este fato ao descrever sobre o processo antropológico de
observação do corpo nos rituais sociais:
62
A Fundação CASA através de sua assessoria de imprensa declara não se enquadrar na definição de
“Instituição Total”, pois de acordo com o SINASE (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo)
faz parte de uma rede de apoio (Sistema de Garantia de Direitos) e tem sua ação caracterizada pela
“incompletude institucional”, já que não possui toda estrutura necessária para atendimento ao adolescente
em um único local físico. Essa normatização proposta pelo Conselho Nacional de Direitos da Criança e
do Adolescente está vigente desde 2006. Ao analisar o ambiente socioeducativo da Fundação CASA
como “instituição total” encontramos em Goffman (1983) duas características que nos fazem
compreender esse cenário social de forma diversa a declarada: 1) Os adolescentes permanecem internados
ou semi-internados conforme a gravidade do ato infracional cometido e 2) A Fundação CASA pode ser
considerada uma instituição para proteção da comunidade contra ameaças intencionais.
Abaixo podemos observar as etapas do MCP Modelo Pedagógico
Contextualizado e sua respectiva duração:
A reflexão sobre o modelo em questão sugere uma ruptura com a sua família,
comunidade e ambiente conhecidos. Esse rompimento do adolescente com o seu
modo de vida habitual gera uma situação de crise e sua gradual intensificação de modo
a sugerir uma “problematização” de forma que o adolescente possa identificar a
situação de “não adaptação a sociedade” e os motivos que o levam ao conflito com as
leis. Após essa intensificação da crise, o adolescente será gradualmente
instrumentalizado (inputs) para lidar com essas dificuldades de adaptação e
estimulado ao diálogo, a prática política e social.
Em seguida ocorre a ação reparadora que caracteriza o processo de
reabilitação. É a fase da “catarse” (outputs) cujo ponto culminante do processo
educativo demonstra a apreensão dos conteúdos trabalhados e estrutura uma nova
forma seu pensamento e comportamento. É oportunidade de construção de um novo
projeto de vida. O desfecho sugere a experiência de vivência em um grupo
(communitas) que trás um caráter harmonizador-integrador e a transformação a que
se pretende chegar após a conclusão do processo de crescimento pessoal.
As palavras-chaves: (a) ruptura, (b) crise e intensificação da criste, (c) ação
reparadora e (d) desfecho, são termos utilizados por Victor Turner (Turner 1974, 1987)
para determinar a estrutura do drama social. Ele interpreta esse ciclo dramático como:
experiência, ritual de passagem, performance.
Sobre esse processo de crescimento pessoal estruturado tanto na forma de
ritual (Mclaren, 1991, 1999) quanto de drama social (Turner, 1974, 1987) acrescento a
contribuição de Richard Schechner (Schechner 1985, 1990,1988, 2003) com sua teoria
da performance e seu conceito de comportamento restaurado:
O diagrama de Schechner pode ser utilizado para “ler” uma performance, seja
ela uma filme, uma música, uma dança, um texto, um drama social. (Pessuto, 2011)
Para exemplificar, utilizarei a entrevista concedida pela adolescente “A”:
Laboratório de Coreodramaturgia
A experimentação das contribuições de Turner e Schechner iniciam na análise
dos conceitos de “estrutura do drama social” e “os seis pontos de contato” propostos
por Schechner, e de sua relação com o modelo M.C.P. que sugeriu uma estrutura
ritualística em que eu pudesse ter contato.
Para colocar em prática essas observações e comparações, primeiramente
busquei elementos de minha história pessoal e identidade. Reuni figurinos, objetos
cênicos, livros, maquiagens e realizei rascunhos a partir de tudo o que me remetia a
temática do “estado de privação da liberdade”.
O movimento da memória ecoou a máxima: “Você se torna eternamente
responsável por aquilo que cativa.” – de Antoine de Saint-Exupéry. A clássica frase me
moveu a separar as peças para composição de uma leitura particular de “Pequeno
Príncipe”, o personagem do livro e do filme de mesmo nome. Esse processo de
construção-desconstrução trouxe á tona conteúdos que eu não poderia imaginar que
pudessem estar entremeados com o significado particular de privação de liberdade
(cativeiro). Dirigi até o local que mais me aproximava do contato com o ambiente
socioeducativo e que seria possível mergulhar nesse processo catártico em busca da
performance. Procurei o espaço ideal (uma estrada próximo as unidades da Fundação
CASA em Guarulhos, local onde trabalhei como professora) e comecei a caminhar
experimentar as emoções e expressões que vinham naturalmente. Enquanto tomava
contato com esse processo, fui documentando de forma audiovisual toda a
transformação.
Pude perceber que o texto não é fundamentalmente necessário nesse
processo, utilizando o que memorizei da história do personagem que me inspirou e as
próprias memórias que recorriam a mente quando olhava para estrada em direção aos
prédios distantes. A dramaturgia, a poética da cena foi se construindo tendo como
suporte essencial o corpo e o seu movimento (interno e externo). Após algumas
experimentações de performance (ensaios/aquecimentos) pude tirar diferentes
impressões e elaborar um segundo personagem. Enquanto na primeira oportunidade,
fui inspirada pela história do Pequeno Príncipe, dei especial atenção a postura em pé,
ao movimento da marcha e expressões que evocaram emoções fortes como: medo,
saudade, raiva, rejeição, tristeza. Enquanto na segunda experiência, inspirada no
personagem da bailarina clássica (O Cisne Branco), procurei a oposição não muito
óbvia elegendo o chão, a mínima movimentação e emoções mais sutis.
Após esse processo ficou claro que eu havia seguido não somente as etapas
propostas por Turner e os seis pontos de contato de Schechner, mas sem me dar conta
havia conseguido vivenciar o “comportamento restaurado” através da construção da
performance. Para exemplificar de forma mais clara, aplicarei o diagrama de
Schechner e sua descrição à performance do Pequeno Príncipe Desconstruído:
O estágio número 1 equivale ao Eu (Tatiana) – a pessoa ensaiando para uma
performance ser (2) outra pessoa (Personagem – Pequeno Princípe Desconstruído),
além de mim (As referências sobre o Pequeno Princípe propostos por Antoine de
Saint-Exupéry), (4) evento restaurado (ensaios), (5b) não evento restaurado
(happenings) ou (5c) não evento restaurado - não público, que são os psicodramas
(performances). O ser humano (1) busca no passado tiras de comportamento, em
eventos reais (local da performance, caminho para fundação CASA Guarulhos I,
lembranças, entrevistas CASA Chiquinha Gonzaga, história pessoal - infância e
adolescência) ou em não eventos (5a - ensaios), que são reorganizadas, ensaiadas,
remontadas até se tornarem performance (SCHECHNER, 1985, p. 38).
O contato acadêmico com o ambiente socioeducativo e com o adolescente
privado de liberdade não faz do ator um “nativo”. Por outro lado, é possível criar um
espaço de expressão e troca de experiências onde ambos, pesquisador e pesquisado
saem de alguma forma transformados.
Bibliografia
Quero apresentar para vocês alguns dados e reflexões sobre o corpo que
encontrei pesquisando sobre caminhadas pedestres em parques ecológicos. Faço
campo em trilhas do Brasil e da França, mas hoje só falarei de uma situação
etnográfica que eu vivi no GR20 (Chemin de Grande Randonnée numéro 20).
Escolhendo um evento que aconteceu com um parisiense, quero ficar mais perto dos
herdeiros da “mudança do estatuto do homem” (Le Breton) que proporcionou
Descartes ao elaborar o cogito. Previamente, parece-me importante destacar dois
aspectos desse corpo – um é histórico e vem do cartesianismo, outro liga
estruturalmente técnica e prazer. Ora, o “corpo máquina” cartesiano, objeto do
pensamento, matéria que pode ser modelada, é, hoje em dia, muitas vezes visto como
diretamente ligado aos maus da sociedade contemporânea. Nesta visão, o
cartesianismo seria responsável por ter desencadeado um movimento histórico que,
ao separar razão e afetos, desvaloriza o corpo, despreza a sensibilidade, potencializa a
discriminação, alimenta um fascismo prestes a acordar. Sem negar que o
cartesianismo fez do corpo um objeto, e que, ao retomar a afirmação que a pessoa
“tem” um corpo, a modernidade potencializou o que acima foi anunciado, quero
também evitar cair numa nostalgia hylozoista onde a matéria é vida e onde o corpo e o
mundo não apresentam disjunção. Pois o corpo moderno, como todo corpo humano, é
um corpo que goza. A descontinuidade entre natureza e cultura se situaria, ao meu
ver, no fato de que a regra, enquanto condição da cultura, possibilita o prazer – que
Lacan chamou de “mais-de-gozo” ou também de “jouis-sens”. O prazer se dá num
duplo movimento de “significantização” e de “corporização” (Miller, 2004). Como
mostrou Freud, o prazer é inseparável da decepção, do mal-estar e do sofrimento.
Neste sentido, as técnicas do corpo (Mauss) são técnicas de prazer.
O corpo herdeiro do cartesianismo que eu vou descrever é um corpo que goza
da “disciplina” (Foucault). Ser equipado de botas “cientificamente concebidas”, vestido
de têxteis high-tech, lambuzado de protetor solar, adornado de relógios, mapas e
mochilas ergonômicas, ter em mente medidas “exatas” de tempo, desnível,
quilometragem, peso e até de calorias na comida, cria um conjunto de significantes
subjetivantes que proporcionam prazer. Na prática, o simbólico dá existência ao corpo.
A disciplina se apresenta como um meio culturalmente situado e historicamente
construído que realiza a humana inervação do corpo. As técnicas do corpo são uma
eficaz “corporização” de valores culturais. Veremos como a decepção induz uma
reflexividade sobre o prazer e proporciona escolhas.
Ciente de que Foucault não era antropólogo, chamarei – com um pouco de
ênfase – este corpo disciplinado de francês. Isso para o diferenciar do corpo que eu
encontro nas trilhas brasileiras, e que, ao meu ver, obtém prazer de técnicas
historicamente diferenciadas. Acho que o corpo brasileiro e o corpo francês
apresentam alteridades nos seus efeitos de “significantização” e de “corporização”
(Miller, 2004). Aqui, só quero descrever a variedade que encontro na França. Essa
ênfase tem por objetivo se contrapor a uma pré-noção que considera que o biopoder
foucaltiano seria antinômico com o prazer. Essa pré-noção encontra-se nos clichês
complementares do corpo europeu travado (disciplinado) e do corpo brasileiro
relaxado (prazeroso), isso é, numa geografização da dialética antropo-lógica do prazer.
Meu objetivo não é, então, voltar a opor razão e emoção, mas mostrar como a razão
cartesiana efetivada na disciplina moderna promove prazer, e, consequentemente,
subjetividade.
Para contar como essa reflexão me ocorreu, relatarei um dia de caminhada na
trilha do GR20, que fica na ilha da Córsega, no sul da França (continuação da cadeia
montanhosa dos Alpes). Esse evento etnográfico pretende demostrar a ligação entre
disciplina e prazer pelo negativo, pela decepção, pelo desprazer e pelo medo de se
machucar. De fato, caminhei com uma pessoa que abandonou o projeto de “fazer” o
GR20 (200km) no final do primeiro dia de trilha. Durante esse dia, um imaginário
urbano levou meu interlocutor a nós perder no mato. Essa etnografia do erro se quer
reflexiva na medida em que, levando em conta minha participação no campo de
observação, ela permite ver uma técnica do corpo e um prazer que, no caso, faltaram.
Portanto, os acontecimentos, ao apontarem um necessário adestramento do corpo
para chegar ao prazer neste contexto cultural, mostram também que a prática está
ligada a um imaginário do corpo.
Eu comecei a trilha do GR20 pelo norte. Como a grande maioria dos
caminhantes, eu estava equipado de um “topo guia”. É um livro que descreve cada
etapa com mapas detalhados (1 cm no mapa = 250 m), informações técnicas sobre os
trechos mais difíceis, dados sobre a fauna a flora e a geologia, descrições paisagísticas,
e dicas para se orientar. Para essa primeira etapa, o guia indicava: “Calenzana (275m) –
refúgio d’Ortu di u piobu (1570m). 10 km. Muito difícil, pouca sombra. Duração: 7
horas. Ponto mais alto: 1570m”. Fiz um cálculo rápido: eu iria subir 1300 metros de
desnível, sem encontrar nenhuma descidinha para relaxar um pouco... Depois de
quinze minutos de trilha, deparei-me com um jovem que estava descendo. Sem fôlego,
ele sussurrou: “difícil demais, desisti”. Depois de duas horas andando debaixo do sol,
encontrei um outro jovem, Victor. Ele estava sentado na beira do caminho, suadíssimo,
vermelhão, sem fôlego, o rosto expressando sofrimento e desespero. Vendo a dupla
oportunidade de iniciar meu trabalho de campo e de curtir uma pausa, iniciei uma
conversa com ele. Me contou que andava com um amigo, mas que este tinha
desistido. Eles queriam “fazer” a trilha inteira em uma semana, uma semana e meia
(quando os guias falam em 15-20 dias), mas que a dificuldade era maior do que
pensavam. O colega tinha desistido rapidamente e ele mesmo não se sentia muito
bem, apesar de querer “pelo menos terminar a primeira etapa”. Aproveitei essa
oportunidade de observação participante e ofereci a minha companhia a ele. Avisei ele
que ia entrar numa pesquisa antropológica sobre o sentimento de natureza no turismo
ecológico no Brasil e na França. Aceitou e retomamos o caminho.
Deixei-o andar na frente. Eu esperava que assim a observação das suas técnicas
do corpo, do uso de material técnico e das suas percepções estéticas, fosse ficar mais
fácil. Mais tarde, saímos da trilha sem perceber. Tínhamos pego uma trilha de burros
que se enfiava numa linda floresta de Pinus Lariccio. É preciso especificar que o GR20 é
balizado. Um traço branco e vermelho foi pintado nas pedras da senda a cada 20
metros, o que ajuda o caminhante quando chove ou baixa uma neblina densa. Depois
de quinze minutos sem ter visto nenhuma dessas balizas, avisei o Victor que
provavelmente tínhamos errado em algum lugar e que agora estávamos longe da
trilha. Ele não compartilhava a minha avaliação, afirmando que tinha visto uma baliza
há pouco tempo. Ele quis continuar neste rumo. Um pouco mais tarde, parei-o de novo
para conversar sobre as nossas avaliações da situação. Ele não tinha mudado de
opinião e queria continuar, enquanto eu achava que estávamos numa trilha
perpendicular ao GR20 e que fazia mais de 20 minutos que a tínhamos perdido. Ele me
perguntou onde eu pensava que se localizava o GR. Fiz um gesto para apontar o outro
lado da linha de crista que nos dominava. A resposta dele me deixou de queixo caído:
“Vamos cortar então!”. Essa resposta era sinal de que ele não tinha conhecimento do
andar na montanha. Pensar que podia voltar no caminho certo improvisando um
atalho me fez pensar em um motorista que, tendo perdido uma entrada, faz a volta do
quarteirão ou pega as quebradas para reencontrar o caminho. Uma lógica urbana
eficaz virou imaginário quando foi deslocada para outro contexto. Quem conhece a
montanha bem sabe que, quando se perde, tem que voltar atrás para achar o lugar do
erro. Muitos novatos consideram ter que acatar esta regra um sinal de fracasso.. Quem
tem incorporada a cultura do andar na montanha também sabe o quanto ela é um
ambiente enganador, e que, no caso, a crista que vimos lá em cima provavelmente não
era o topo. Sabe também que geralmente o topo é um lugar muito difícil de acesso,
sendo cercado de paredões abruptos. Além do mais, a posição do GR20 que eu tinha
apontado era só uma suposição, porque, de fato, tínhamos saído do meu mapa.
Continuando metodologicamente, não discuti a proposta dele, exprimi uma
dúvida que ele descartou assim que se engajou rumo ao cume pedroso. Ele nem
observou o campo e seguiu reto, decidido, confiante, subindo com determinação. O
terreno começava a ficar muito íngreme, tornando necessário o apoio com as mãos,
transformando a caminhada em escalada. Estávamos muito longe do topo, mas a
vegetação começava a ficar mais rasteira, as pedras mais grossas, o chão mais caótico.
Neste cenário pouco acolhedor, comecei a me sentir responsável pelo meu
interlocutor. Afinal, eu tinha um certo conhecimento e sabia que por ali não tinha
saída, que essa quebradinha era fruto do seu imaginário. Ele andava numa montanha
fantasiada com um corpo imaginado. Meu conhecimento, minhas técnicas do corpo,
me permitiam fazer campo nessa região, me permitiam observar os outros sem me
preocupar muito comigo, me davam uma latitude de adaptação ao outro. Ao contrário
de muitas pesquisas de campo, aqui o pesquisador era mais eficaz do que muitos dos
seus informantes. Por ter feito pesquisa de campo com guia de montanha, por ter-me
perdido várias vezes em caminhadas solitárias, por ter passado perto de perigos e por
ter um habitus rural, eu pensei que o momento de trocar a observação participante
pela participação observante tinha chegado. Começávamos a nós colocar em perigo.
Não sei se o meu companheiro teria feito essas escolhas se tivesse sozinho, mas tinha
influenciado ele para não desistir no início da trilha. Agora devia impedir que se
adicionasse aos numerosos casos de acidentes nas trilhas da Córsega (1200 resgates
por helicóptero no ano de 2003). Parei tudo. Afirmei que tinha de dar meia volta.
Expliquei o quanto essa escolha ficava fora das nossas competências. Victor resistiu,
querendo continuar um pouco. Falou: “tô nem aí, vim andar na montanha e pouco
importa o caminho, aqui está lindo!”. Mobilizei o argumento de que essa escolha era
perigosa por um simples fato: nesse terreno, é muito mais fácil subir do que descer,
ainda mais com mochilas pesadas como eram as nossas (15-20kg). Tive que
demonstrar para ele acreditar. Essa dificuldade apareceu logo após ele ter aceito
minha opinião, quando tive que ajudar ele a descer uma parede de pedras que
tínhamos subido num piscar de olhos. Nessa passagem, ele se assustou. Ficou mais
inseguro, e começou a andar mais perto de mim, pisando nos mesmos lugares que eu.
Deixou de alimentar as conversas, ficou mais concentrado, observava meus gestos,
pedia conselhos. Quando voltamos para a trilha de burros, ele não sabia mais de que
lado pegar. Eu também estava cansado, e falei para ele que eu queria fica na frente,
pelo menos até voltar ao GR20. Eu tinha gasto muita energia durante esse evento
etnográfico: prestar atenção no outro errando assumindo uma certa responsabilidade
para não o deixar tomar riscos demasiados foi bastante intenso. Victor aceitou como
quem se rende: “por mim... desde que eu não caia... topo qualquer coisa”.
Dalí em diante, ele não quis mais ficar na frente. Ficou confiante em mim e
mais ainda na lição que tinha recebido do evento: cada vez que as marcas do coletivo,
os traços e balizas deixadas por outros humanos desapareciam, ele concordava em dar
meia volta. Outra vez, perdemos essa prova de domesticação e voltemos a uma
encruzilhada difícil de perceber. Ele lançou: “Vixe! safado!!/ Putain! vicieux!!”.
Interpretei essa interjeição como o reconhecimento de que estávamos em contato
com marcas, e que elas expressavam algo a ser interpretado com atenção e cuidado.
Essa qualidade humana era essencial para curtir o caminho sem afundar numa
natureza desconhecida e mortífera. Um pouco mais tarde, o refúgio apareceu do outro
lado de um precipício. Ele falou: “tomara que eles não nos façam descer até lá em
baixo para subir tudo isso de novo!”. O outro, a cultura, a transmissão eram então
presentes no seu discurso como garantia da aproximação da montanha inóspita.
Chegando no refúgio, ele se sentou na varanda e caiu no sono.
Victor decidiu abandonar a trilha, afirmando que lhe faltava preparo. Afirmou:
“pelo menos vi o que era! Mas estou muito mal equipado, minha mochila é muito
pesada, meus sapatos são ruins, e nem tenho guia ou mapas. Gostei muito, queria
voltar, mas assim não dá”. Ele tinha sonhado um prazer, tinha aderido a um mito de
gozo na natureza, mas não tinha tomado o cuidado de aderir ao rito. Ele estava numa
viagem de juventude, querendo andar pelo mundo, “fazer o que eu quero, quando eu
quero”. Na sua mochila tinha roupas para praia, para balada, mas poucas coisas que
permitisse alcançar a sonhada autonomia no wilderness. A imaginação da montanha
tinha encontrado uma montanha barrada pelos valores de segurança e
autopreservação. Pensava que a selvageria podia ser alcançada por uma
transformação mágica em bicho. Ora, aprendeu que o homem, para “virar bicho”, tem
que passar por um processo ritual de aprendizagem. Pode-se aproximar esse
imaginário de desafogo na natureza com uma figura mítica que a urbanidade produziu:
Rambo.
Na hora que Victor me perguntou onde era o GR20 e que ele decidiu “cortar
pelo mato” (couper à travers bois) ele estava movido por um imaginário do corpo em
movimento. A dificuldade não lhe apareceu como desprazerosa, se sentia poderoso o
suficiente, pensava poder gozar de capacidades que lhe permitissem fazer do
obstáculo um alimento do seu prazer. A aula foi dura porque nesta rêverie, esqueceu
que Rambo é um ser supertreinado. O seu corpo pode ultrapassar os limites do corpo
urbano e virar “selvagem”, justamente porque foi inervado por uma cultura que
tornou a aprendizagem um quase-reflexo. O que parecia ser primário não era primeiro.
Com efeito, o treinamento torna fáceis gestos que para o mortal comum precisam ser
pensados, necessitam concentração e esforço. Acontece o mesmo com o gesto genial
do esportista. A genialidade, o gesto quase divino são um além do treinamento, um
instante fugitivo de criatividade, a cereja no bolo. Mas Victor quis chegar neste prazer
sem passar pela aprendizagem, que, na cultura do caminhante, é tecnicista. O “mito”
urbano de Rambo deixa pensar que a saída do coletivo permite a heroicização. É essa
saída que faz sonhar e que alimenta o imaginário. Mas quando o mito é reavaliado à
luz da experiência, lembra-se que antes de virar herói, Rambo tinha um mestre – o
coronel – e de que sem a transmissão cultural, sem a “corporização” de elementos
significantes, sem técnicas do corpo, o corpo dele não podia gozar de tamanha
capacidade. Ora, se a aprendizagem do prazer passa por um imaginário do corpo ativo,
eficiente, ela também passa pela decepção e o reconhecimento do necessário
assujeitamento ao ato eficaz e às suas significações. O prazer é então tanto ligado ao
imaginário quanto à disciplina. Retomo aqui a ideia lacaniana de que “o imaginário é a
realidade, menos os cinco sentidos” (Miller). Se o imaginário do corpo gozando não
passa pela decepção e pelo adestramento, o sujeito corre o risco de não gozar o que a
cultura tem de eficaz no mundo real. No caso da caminhada pedestre, a cultura é
disciplinar, ela está ligada a mitos técnico-científicos. Mas, como salientou Mauss, por
serem mitos não deixam de alcançar uma eficácia – e isso não impede que tenha
outras soluções eficazes. As técnicas do corpo falam do “homem total” maussiano:
uma articulação bio-psico-sociológica.
Por sua vez, ao se submeter ao teste da realidade, ao se esfregar com a
montanha percebida, o corpo do individuo vira único, ele é “significantizado” de
maneira única. O gozo da pessoa assim inserida na eficácia da cultura é o gozo de ser
único no meio dos seus semelhantes. Único, mas não demais. Diferente mas
reconhecível. O sujeito pode inserir sua singularidade no coletivo, no “tesouro do
significante” (Lacan). Ele pode ek-sisir (sair de si, ser arrancado de si mesmo e jogado
no mundo). Por mais que a modernidade cartesiana precise ser criticada, como o fez
Foucault, há de lembrar que ela não deixa de cumprir esses papeis. A disciplina, além
de alcançar uma eficácia, também apela ao gozo, fala de prazer, faz do assujeitamento
uma subjetivação. Provocando decepção (ou risco) quando falta, ela oferece aos
sonhos possibilidades de realização. Não tendo alcançado o prazer vislumbrado, e
depois de ter passado pelo medo do acidente e de ter vivido a decepção, Victor apelou
por um “mais-de gozo”, resultado de técnicas do corpo mais encarnadas.
Bibliografia
Comunicação Oral
GT 1 – Antropologia e Artes da Performance
A figura do bufão
Na idade média, o Bufão não era exatamente um personagem no sentido que
essa palavra vai assumir a partir do Renascimento e, principalmente, na consolidação da
modernidade teatral do século XVIII em diante. No medievo os bufões eram
verdadeiramente indivíduos que usavam algum tipo de deformidade física ou mental
para performatizar e dar-se a ver em apresentações públicas.
Essa tradição vinha desde a Antiguidade, seja nas cortes, nas quais os bobos
eram autorizados a divertir reis e imperadores, seja nos ambientes populares, nos quais
trupes de párias sociais apresentavam diferentes habilidades dramáticas ou parateatrais
para sobreviver.
Não se tratava, contudo, de espetáculos tais quais nos acostumamos a ver nas
nossas sociedades pós-industriais, mas práticas performativas que envolviam uma
autoridade em falar. Em muitos casos era pela performance do bobo, do bufão que a
palavra interdita era possível. O bobo podia falar do rei ao rei e criticá-lo, ainda que em
alguns casos sofressem as consequências. O bobo é, por assim dizer, o alterego do rei.
Assim, havia no bufão uma atividade de diversão e, ao mesmo tempo, de
transgressão, tratava-se de divertir e divergir, de apresentar e criticar.
Ao contrário de outras atividades performáticas, o bufão fazia isso por
intermédio de uma característica que lhe era particularmente peculiar, o grotesco. Nele,
nas suas deformações, na sua impossibilidade de aceitação plena pela comunidade,
residia a potência de uma intervenção do feio, do deformado, do obscuro, na qual se
fazia sentir laivos de resistência.
Tais transgressões se davam por inúmeras habilidades, mas, principalmente, pela
alegoria da inversão. O bufão no seu jogo cênico e performático podia parodiar, gozar,
imitar qualquer figura importante, qualquer fato histórico, qualquer acontecimento
cotidiano. O caráter grotesco da sua atuação funcionava, com efeito, tanto como
máscara por intermédio da qual ele ficava protegido para falar, quanto efeito segundo o
qual falar tomava um caráter cômico, visto a estranheza que a deformidade comportava.
Mesmo autorizado a falar nesse lócus específico, a cena, o bufão nunca deixou
de ser um excluído, seja pela sua não conformidade física, seja pela sua falta de caráter
civilizatório. Sendo assim, um bufão não pode ser concebido senão em bando, em
grupo, na segurança de uma comunidade de bufões. O grupo é característica do bufão,
portanto, ao invés de falar em bufão como indivíduo, seria melhor lembrar a bufonaria
como conjunto, como ensemble, como coletivo que impede uma singularidade ao bufão,
na medida em que o protege no conforto de um grupo que corresponde tanto à
segurança, quanto ao olhar crítico.
A figura do clown
O clown, ao contrário, se ocupa da dimensão inocente da comicidade. Trata-se
de um misto de inocência e comoção. O clown se aproxima assim de uma crítica mais
humana, de evidenciar uma condição absurda da humanidade: existir. Ele o faz por
intermédio da gag, pequena sequência de ações com laivos obsessivos na qual o clown
procura resolver um problema simples do cotidiano, segundo uma lógica absurda.
Historicamente, o clown tomou existência no circo criado na Europa do século
XVIII. Antes disso, seus ancestrais, bufões, bobos, palhaços, artistas do corpo, da
Antiguidade à Commedia Dell’Arte, experimentavam o nonsense alternado com o
grotesco. Mas a constituição do circo moderno trouxe a possibilidade de uma ribalta
definitiva para essa figura, circunscrevendo o picadeiro como espaço de excelência do
clown. O caráter introvertido, individual e cômico possibilitou, também, uma
aproximação e uma presença forte no cinema nascente da primeira metade do século
XX.
Como figura ambivalente, o clown constitui uma dimensão idiota e idiotizada do
ser humano. Ele evidencia a condição cômica, a inocência e, sobretudo, a inconsciência
da vida vivida no inconsciente do cotidiano repetitivo. Tratar-se-ia de uma inveterada
ação inútil. O clown se ocupa de coisas pequenas, de tarefas ordinárias, de ordens dadas
a ele por uma sociedade baseada na ordem.
O clown, entretanto, é desordem, é inocência infantil de um ser que não pretende
representar nada, que não constitui um personagem – no sentido dado à literatura
dramática ou não -, mas uma condição: todo somos clowns perdidos na nossa existência
sem sentido.
O circo moderno, sobretudo a partir do século XIX, imortalizou dois tipos
clássicos de clowns: o branco e o augusto. O primeiro é o clown seguro, certo de si e
dono de um ar, não raro arrogante, superior. Ele pensa que não é idiota, mas sua ação
mostra sua profunda ignorância e sua limitação ainda mais evidente do que o augusto.
Este último, por sua vez, é o idiota completo que só pode encontrar razão no acaso, na
saída tangencial e inesperada ocasionada pela inocência completa.
No cinema a dupla o Gordo e o Magro são um exemplo dessa tipologia: o Gordo
sendo um clown branco, enquanto o Magro, o augusto.
Nessa relação de par - clown branco clown augusto - circunscreve-se a
existência dessa figura, uma relação de existência dada pela intervenção da tarefa, com
resultado cômico. O clown augusto pode, por ele mesmo, ao enfrentar as situações
brancas, existir sozinho, bastaria lembrar mais uma vez o exemplo do cinema: Carlitos
de Charles Chaplin.
Seja como for, o cômico do clown, é efeito de um sentido constituído na
identificação. Identificamos-nos com as mazelas dessa condição pequena e infantil.
Vemos-nos retratados na nossa pequenez, na nossa insignificância, na nossa estupidez.
O clown é o retrato de um homem perdido, mas que pode se reconhecer na sua
complexa e difícil existência.
A figura do dândi
O dândi é o sujeito que toma a própria vida como uma obra de arte, ou seja, o
seu modo de se dar a ver apresenta uma suposta superioridade cultural expressa em
gestos, vestuário, conversações. Trata-se de uma figura da metrópole, emergente na
Inglaterra na virada do século XIX para o século XX.
Caracteriza-se, principalmente, pela super afetação e pela postura pró-
aristocrática, em detrimento de uma postura burguesa. O seu vestuário marca o espírito
de superioridade, de distância e distinção que são aclamados pelo dândi como um modo
de ser. Fina ironia que expressa um modo de comportamento blasé e que considera
qualquer vulgaridade um crime.
A extrema afetação busca sempre surpreender o olhar alheio, sem, contudo,
jamais mostrar surpresa ele mesmo. Trata-se de um cultivo a bela aparência e um
cultivo a retórica e aos costumes delicados. Retórica para o dândi é, sobretudo, um justo
falar, uma adequação de tempo e espaço em relação ao falar. Evita-se, segundo ele, o
franco falar ou o simples falar; mas valoriza-se a justeza e a adequação num falar que
evita excessos.
O dândi não se ocupa de nada, para ele não há mundo do trabalho, mas na sua
superficialidade aparente faz parecer que faz tudo como todos. Ele não faz nada como
os outros, mas aparenta fazer tudo como os outros (Balzac, 2009, p.32).
O sentimento que move o dândi é o de uma vida elegante, sóbria. Ele imprime o
se tipo de pensamento sobre tudo o que o rodeia e o pertence. E é a partir da influência
desse pensamento que a vida se enobrece, se aperfeiçoa e se engrandece (Baudelaire,
2009, p.45).
Trata-se de pensar uma figura que não vive sob a égide do tempo acelerado. Ele
alarga o tempo, pois a elegância dramatiza a vida [...]” (Balzac, 2009, p.52). Ele atenta a
todas as nuances do tempo, de um tempo estendido, assim, “a vida elegante não exclui
nem o pensamento, nem a ciência: ela os consagra. Ele não deve ensinar apenas a
desfrutar do tempo, mas a utilizá-lo numa ordem extremamente elevada de ideias”
(Balzac, 2009, p.82).
Somente na aparência o dândi é um irresponsável, um descomprometido com a
vida social. De fato, ele faz um elogio da singularidade, ele torna nítido os signos de
uma vida cultivada, de alta cultura. Trata-se, portanto, de um humor alegórico, irônico,
refinado.
O dândi trabalha na dimensão da ironia, ele aduz à comicidade pela palavra
justa, pelo emprego, pelo uso da sofisticação, que não procura causar nenhum
desconforto. Seu objetivo é sempre causar o conforto, pois ele porta uma palavra
convencionada, o dândi, de fato, é o mestre da etiqueta, justamente porque ele sabe
como isso pode funcionar como ação crítica.
Referências
Resumo3
O circo chega ao Brasil, no início do século XIX com famílias circenses que
vêm da Europa e trazem sob a lona números de equilibrismos, malabares,
acrobacias, trucs com animais e se apresentavam de cidade em cidade. A
identidade circense tem em sua tessitura a itinerância, a convivência em
família, o aprendizado/ensino de destrezas artísticas mutuamente à apreensão
dos seus símbolos. Seu ritual inicia-se na escolha do terreno a ser montado até
a instantes antes do início do espetáculo. Seus corpos são a massa modelável
de suas perfomances tanto na vida social como no espetáculo frente à platéia.
Os circenses articulam sua estrutura se atualizando a cada novo invento
tecnológico, reelaborando e ressignificando seus espetáculos, adaptando-os
para cada tipo de público incrementando às suas apresentações elementos de
outras manifestações artísticas e experimentando sempre novas versões
cênicas. E é nesse sentido que esse artigo caminha: para análise e
compreensão das interações sociais que ocorrem no interior da communitas
circense, no reconhecimento para com o outro de sua identidade e a
expressividade singular dos espetáculos que desperta o público à uma catarse
no presente, onde é alcançado um mundo lúdico e transcendente. Essa é uma
contribuição inicial para a maturação das reflexões à respeito da performance
circense na vida social e na constituição de seus espetáculos.
Introdução
Depois de passar por esses atalhos, mais sensibilizado por suas contribuições,
retorno às duas performances que servirão como parâmetros para nossa reflexão-
poetização sobre a caminhada enquanto ação performativa. Antes, porém, devo
compartilhar os motivos pelos quais selecionei as duas obras.
Além de apresentarem a caminhada como elemento constitutivo, elas me
interessam na medida em que foram criadas por artistas de dança que, ou migraram
definitivamente para a área da performance, ou optaram por permanecer transitando
entre as duas linguagens, como é o caso do coreógrafo carioca Gustavo Ciríaco. Além
disso, elas me possibilitam observar o fenômeno da caminhada enquanto ação
performativa sob dois ângulos distintos: o de público-participante em Aqui Enquanto
Caminhamos; e o de colaborador criativo em Walking Poem Rio.
Aqui Enquanto Caminhamos tem início num ponto pré-definido da cidade,
onde artistas e público, de 6 a 20 participantes, se encontram. No caso de minha
experiência com a performance, na cidade de Copenhague em 2009, o encontro
aconteceu num bar. Este se encontrava na antiga área de abatedouros da cidade,
revitalizada e transformada num complexo de estabelecimentos de diversão noturna,
como a Lapa, no Rio de Janeiro. Era por volta das 16h.
Ali, todos deixamos nossas bicicletas, o meio de transporte mais comum da
cidade, e esperamos Gustavo e Andrea. Os dois saem do bar, cumprimentam algumas
pessoas do público – nós usávamos uma pulseira de papel rosa – esticam uma faixa
elástica branca, dentro da qual entram e de lá nos convidam.
Assim começa a performance, com o convite para adentrar a área delimitada.
Pensando melhor, talvez já tivesse começado antes, desde o momento em que os
artistas saíram do bar e cumprimentaram o público.
Dali, seguimos todos, artistas e público, dentro dos limites impostos pela faixa
elástica, caminhando pelas ruas da cidade. Antes da saída, uma regra é estabelecida:
não se pode falar durante toda a duração da jornada. Os artistas sabem a priori o
trajeto que será percorrido, então conduzem o grupo por ruas selecionadas por eles
nos dias anteriores ao acontecimento da performance.
A entrada na área criada pelos artistas obviamente gera uma noção de “dentro”
e “fora”, “centro” e “periferia”. O fator mais curioso que advém dessa entrada é o
senso de comunidade que emerge entre os participantes, quase que instantaneamente.
Lembro de que nos entreolhávamos, encabulados, mas já nos sentíamos parceiros,
próximos de alguma maneira.
Conforme o grupo dentro da faixa elástica segue adiante, as noções de centro e
periferia se alteram e, muitas vezes, se invertem. A faixa elástica permitia que o nosso
espaço, o de “dentro”, fosse regulável, assumisse variadas formas, mais ou menos
amplas. Detalhes da arquitetura saltam aos olhos, tornando-se o “centro” em alguns
momentos, naquela caminhada pouco usual. Os outros transeuntes observam,
interagem. Eles faziam perguntas, mas nós não respondíamos, em respeito ao voto de
silêncio feito no ponto de encontro. No máximo, um dos artistas, sem usar uma
palavra sequer, levantava a faixa, como que estendendo o convite àquele que nos
interpelava.
Havia momentos de pausa em que os artistas interrompiam a caminhada e
observavam o entorno. Nós acatávamos e fazíamos o mesmo. A sensação de estar em
silêncio junto a outras pessoas me remetia a momentos meditativos em igrejas.
Numa dessas pausas, creio que a última antes do desfecho da performance, os
artistas deixaram a área da faixa e seguiram cada qual uma rua diferente. Ficamos
literalmente numa encruzilhada e foi a primeira vez, desde que saímos do ponto de
encontro, que alguém disse alguma coisa. De dentro da faixa, avistávamos os dois
artistas, quase no fim de cada rua, encarando o grupo e esperando uma possível
decisão. “Vamos, gente!”, alguém disse, mas o fato é que ninguém arredou o pé e,
depois de uns cinco ou dez minutos (será que foi só impressão?), os artistas voltaram,
entraram na faixa e nos conduziram por uma das ruas (a título de curiosidade: a que
Andrea tinha escolhido). Foi certamente o momento mais “tenso” da caminhada, e
fico me perguntando até hoje o que teria acontecido se o grupo optasse por seguir um
dos artistas.
A performance se encerraria alguns metros à frente, numa praça enorme, onde
os artistas distribuíram pipas entre os participantes. Brincamos por minutos a fio até
que o grupo naturalmente foi se despedindo, decidindo quem levaria as pipas (eu cedi
a minha), e finalmente, se dissolvendo.
Seguir uma pessoa sem que ela perceba. Decidir até onde/quando seguir.
Em Walking Poem Rio, os artistas criadores da performance se fazem
presentes, acompanhando o público-participante na jornada pelas ruas, em grande
parte, de maneira diversa: via tocadores de mp3. Alguns desses artistas também
aparecem em pontos específicos da caminhada, mas diferentemente de Aqui Enquanto
Caminhamos, não fazem todo o percurso ao lado do público. Walking Poem Rio é
uma jornada solitária, ainda que na companhia (eventual) de performers e (constante)
de transeuntes, feita individualmente por cada participante. Nesta performance, os
participantes não encontram uns aos outros.
A obra integrou a programação do Festival Panorama, um dos maiores
festivais de dança contemporânea do Brasil, em sua edição de 2008. O público era
informado, ao comprar o ingresso, sobre o horário em que deveria estar presente no
ponto de partida da performance. O ponto em questão era um sebo próximo à Praça
Tiradentes, no centro do Rio de Janeiro. Ali, cada pessoa recebia um aparelho tocador
de mp3 e uma pulseira verde, que a identificava (aos performers espalhados pela
cidade, inclusive) como participante da performance. O tocador de mp3 só podia ser
manipulado pelos performers, que selecionavam as faixas a serem reproduzidas ou,
dependendo do ponto do trajeto, retiravam o aparelho dos participantes.
As mensagens em mp3 alternam momentos mais poéticos, que inspiram a
contemplação do entorno sob um novo ângulo, e outros de cunho mais diretivo, sobre
o que fazer a seguir, aonde ir, ou quem encontrar, por exemplo. Há trechos com
gravações musicais, que compõem uma espécie de trilha sonora de alguns momentos
da caminhada, e períodos sem gravação alguma, geralmente quando há interação com
um performer. Muitas vezes, os performers em Walking Poem Rio são invisíveis aos
olhos dos participantes, pois tendem a se misturar entre os transeuntes. Trabalham à
paisana, certificando-se de que os participantes estão seguindo o trajeto previsto. Há
exceções nessa invisibilidade, tais como o performer vestido de coelho, à espera do
público na saída do metrô Glória, ou a bailarina que carrega uma sacola d’água e
sugere que o público a siga, num momento que leva o participante a uma situação de
perseguição, típica de filmes de ação.
As situações provocadas na performance fazem uso de elementos específicos
presentes no trajeto pré-definido pelos criadores. Em dado momento, o participante
recebe uma pedra portuguesa, que mais à frente será usada para preencher uma
calçada esburacada. Revelam-se, dessa forma, questões prementes da cidade, como
neste caso a má-conservação de certas áreas. Seguindo as instruções, os participantes
têm a chance de se surpreender com locais menos conhecidos, detalhes imperceptíveis
no caos da multidão (em especial a do centro da cidade), além de se expor a
experiências sensoriais pouco usuais. Um exemplo disso, é o momento em que ao sair
de uma academia de dança de salão, à qual foi guiado através de fotografias do
caminho, o participante é apresentado a um dos performers (neste caso, eu), que lhe
pede para fechar os olhos. O participante é, então, guiado ao longo de toda a Rua da
Lapa.
O encerramento da performance não é menos sensorial: numa parada de
bonde, o participante recebe uma bala de coco (artesanal, comumente vendida pelos
camelôs da área) de um performer, que lhe diz: “Quando a bala acabar, a sua jornada
terá terminado”. De onde podemos inferir que, aquele é precisamente o fim da
performance enquanto roteiro planejado pelos artistas. Entretanto, o fechamento para
cada participante vai depender do tempo que a bala levar para se dissolver em sua
boca. Ou seja, o participante continuará performando, mantendo-se num estado
sensível de prontidão e conexão com o entorno, ainda que a infra-estrutura para que a
performance aconteça nos parâmetros pré-definidos pelos artistas já não vigore mais.
Lembrar da primeira vez em que esteve num lugar. Contar sobre o lugar, o que fez lá, como
voltou para casa... Não usar palavras.
“Ser espectador não significa uma passividade que deve ser convertida em atividade.
É nossa situação normal. Nós aprendemos e ensinamos, agimos e sabemos, através da posição
de espectadores que conectam o que veem com o que acabaram de ver, ouvir, fazer ou sonhar.
Não há um meio privilegiado, assim como não há um ponto de partida privilegiado. Há pontos
de partida em toda a parte, e divisores de águas a partir dos quais aprendemos coisas novas,
desde que antes nos desfaçamos da pressuposição da distância, da distribuição de papéis e,
finalmente, das fronteiras entre territórios.” (RANCIÈRE, 2007, p.279, tradução minha)
O autor ainda sugere que artistas, assim como pesquisadores, devem promover
através de suas obras um espaço onde “a manifestação e o efeito de suas
competências se tornem dúbios na medida em que eles moldam a história de uma
nova aventura em uma nova expressão idiomática”. Então, naturalmente, atrairão
espectadores que, emancipados, serão capazes de fazer suas próprias traduções e
apropriações.
Esvaziar sua bolsa, contendo coisas de que não precisa mais, numa calçada. Deixá-las e ir
embora.
Penso que Walking Poem Rio e Aqui Enquanto Caminhamos não são obras
que apenas possibilitam ao público “levantar das poltronas” e se engajar em ações
entendidas como mais “ativas”. Nelas, o público é convidado a integrar uma outra
forma de organização coletiva, ou “coletividade temporária”, como propõe mais
especificamente a performance de Ciríaco e Sonnberger. Mesmo a caminhada
solitária de Walking Poem Rio promove um estranho senso de pertencimento: em
relação aos outros transeuntes, que em geral não têm a menor consciência de que a
performance está acontecendo (o que também vale para o caminhante-performer); e,
até mesmo, em relação aos outros caminhantes-performers, que estão fazendo sua
jornada mais à frente ou logo atrás (cada participante sai do ponto de partida da
performance em intervalos de 15 minutos). As performances em questão não são
meros deslocamentos das indicações, sinalizações e guias dos espaços expositivos
e/ou cênicos para as ruas. São obras “penetráveis”, como no universo de Oiticica, cuja
configuração é porosa o suficiente para absorver decisões, improvisações e limites
sugeridos pelos participantes. Fato este que as tornam extremamente complexas e
multifacetadas em seu planejamento e implementação.
Aqui estivemos.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRAFIA
HOLMES, Brian. “The affectivist manifesto: artistic critique for the 21st century”. In:
Escaping the overcode: activist art in the control society. Eindhoven: Van
Abbemuseum, 2009
MELIM, Regina. Performance nas artes visuais. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
10 de abril
Seis mulheres em torno de cadernos, folhas, textos e fotos. Um salão bem
grande. Piso de madeira e nada de sapatos. O salão não tem sequer uma cadeira e o
corpo é chamado a se sustentar por si. O corpo e o chão. Tem início o ensaio e acolho
um sorriso. Para o aquecimento elas utilizam enormes bolas vermelhas e é uma cena
muito engraçada presenciar seis mulheres quicando sobre essas bolas, ao som do jazz.
Três delas já tiraram as meias. Ao passo que a bola faz coisas incríveis, as peças mais
pesadas de roupa vão sendo abandonadas.
Durante o intervalo uma delas me conta que nem tudo nos textos é
verídico. As fotografias são autênticas.
Em Público, cada uma das bailarinas assume uma espécie de persona, cuja
particularidade se torna patente já no processo de predisposição corporal. Ao som de
uma mesma trilha sonora, elas cultivam um universo semântico íntimo, “cada uma na
sua duração, de acordo com o dom que lhe cabe”. A música informa, assim, a unidade
de experiências a princípio desagregadas. É bonita a cena. Há aqui algo de transe. Uma
delas registra uma coerência um tanto espasmódica, embrenhada em si mesma numa
espécie de curto-circuito nervoso. Outra delineia um nexo expansivo cujo aspecto é da
ordem do heavy-metal, deslocamentos freneticamente arredondados que vão da ponta
dos pés à cabeça. Outra se inscreve numa lógica pueril, composta de sorrisos caricatos e
evoluções serelepes.
Aqui, os achados são manifestados em movimento. O desafio é calcular e
coordenar essas expressões íntimas e torná-las públicas, através de uma coreografia de
imagens atemporais e multidimensionais, que acontecem num espaço vazio e, portanto,
original. Ao que parece, o obstáculo a ser superado aqui, num metamodelo dramático do
próprio processo criativo, é a comunhão fecunda entre universos apartados.
18 de abril
Cinco bailarinas e uma diretora decidem explorar criticamente o conceito
de autoficção, recurso este que teria sido abundantemente aproveitado pelas artes nas
últimas três décadas. Público, ainda em pleno processo de criação, é composto, a
princípio, por cinco corpos femininos, uma meia dúzia de cadernos em que residem
alguns textos escritos a mão, fotografias antigas, um projetor, uma câmera, uma diretora
e, desde já, um observador.
Uma das primeiras cenas da peça é a que tento rapidamente descrever
aqui. Uma bailarina está assentada-ajoelhada no chão, praticamente no centro do
tablado, com as pernas dobradas e afastadas uma da outra, de modo que suas mãos
repousam sobre elas. O espectador não pode distinguir os pormenores de tal disposição,
contudo, porque ela está de costas para a platéia. Pouco a pouco, a delicadeza de suas
mãos vai desenhando movimentações graciosas, e o que desvela a sutileza das manobras
é a câmera apontada, que leva à parede o efeito poderoso de um primeiro plano. O
prenúncio de uma peça que parece se ocupar justamente da revelação daquilo que não se
oferece à vista. Em Público, os textos e as fotos se evidenciam por meio da câmera que
os atravessa em proveito de uma reprodução deles na parede branca.
Durante a peça, cada bailarina freqüenta a intimidade de uma diferente
qualidade. A diretora me conta que essas qualidades, esses “estados de sensação”, se
traduzem em “frases de movimentos que podem ser acessados a qualquer momento” e
resultam de uma série de improvisações que elas realizaram nalgum momento anterior
do processo, em que, de olhos fechados, eram instadas a recobrar as reminiscências de
seus percursos individuais pelo universo da dança. Trata-se, digamos, de personas cuja
coerência da constituição estaria ancorada em lembranças individuais, inscritas no
desenrolar de uma vida de práticas e processos corpóreos.
27 de abril
Há uma espécie de história sendo contada aqui. “Quando fecho os olhos
eu tenho resquícios do meu cérebro primitivo, com certeza eu fui uma lula colossal”. O
texto burla, ludibria. E se a palavra escrita responde pela porção ficcional da peça, o
corpo, antagonicamente, é o registro autêntico de uma ocorrência. O mesmo corpo que
antes saltitava infantil torna-se agora uma lula colossal. Nesse instante, ao passo que o
texto resta em meio à falsidade aparente, o corpo se torna a verdade exata de uma
mentira enganosa, pois no corpo, que é construção incessante, a dança é uma fala que
descreve seus objetos através dos seus próprios pertencimentos. Aqui, nada separa a
ocorrência daquilo ao qual ela se refere. Dança é quando e depois [Katz, 1995: 15].
A diretora me conta que os textos a serem projetados geram controvérsia.
Rijas como são, as palavras expõem à insubordinação qualquer arranjo – não verbal –
que se queira instaurar. O que é por demais teso acaba deixando a descoberto a
desordem subjacente.
“O mundo se alargava e eu esticava meus braços e pernas para alcançá-
lo”; “eu queria ser um super-herói”; “quero morrer com vida”; “Eu não quero ser
mais eu”; “Estar em tudo e em lugar nenhum”. Vejamos que este “eu” é justamente o
que permite sustentar, aqui, uma ambigüidade indispensável.
7 de maio
O conceito operatório que me parece mais condizente com este trabalho é
o conceito de drama, proposto por Jean Duvignaud, em seu livro Sociologia da Arte:
O “drama” supõe uma découpage [um recorte] da experiência individual,
enquanto esta última estiver comprometida num conflito, numa ação
deliberada, numa intriga em que participem a maior parte dos “atores”,
que definem o seu lugar na trama coletiva [...] Este conceito autoriza,
enfim, o crítico a falar de uma obra de arte como de um esforço em
procurar vencer um obstáculo, obstáculo da receptividade fraquejante, a
receber uma mensagem inesperada ou mal entendida, obstáculo do
afastamento e da dispersão ou da separação irredutível em castas, classes,
em grupos, obstáculo da transformação do sentido dos sinais. Obstáculo de
tudo o que impede a comunicação total de que o artista, qualquer que seja
a matéria de que se serve, não pode deixar de tentar realizar [: 36,37].
8 de maio
O real andamento da dança é da ordem do mito e o mito que mais se
parece com este trabalho é o mito de Salomé, a púbere princesa que uma vez rejeitada,
dança pela decapitação do homem que preferia o amor de Deus.
13 de maio
Hoje elas me afirmaram que o corpo não ocupa o lugar de outra coisa, ele
opera aqui uma comunicação. Ontem elas disseram que o corpo interessado neste
trabalho é o corpo da experiência. Não há representação.
As partes têm nomes e o nome da terceira parte é “Para Fazer Parte”.
Aqui, elas exploram quedas. “Como principiar uma ruína? Uma época de coisa
alguma? Como tornar-me imprevisível?”. A diretora olha para o que eu estou vendo e
diz, “Incomparável! Vai se desfazendo”. A conversa que conduzem é impensável sem a
freqüência do corpo, dado que é nele que se produz e se motiva ora o ridículo, ora o
zelo, ora o sublime. Para fazer parte é preciso ludibriar os confins da extensão. “Agora
você é uma uva suculenta”. A dança como prática do por vir.
31 de maio
Algo a respeito do uso da apropriação em Público.
Primeiramente, a trilha sonora tem a forma de uma sobreposição de faixas,
a voz delas e as músicas originais. Portanto, em algum momento dessa liturgia, o
público se depara com uma canção de Leonard Cohen, que é um poema de Garcia
Lorca, em que a voz do compositor reparte a cena com a voz de uma bailarina,
estabelecendo-se naquele momento uma posição de equidade. Essa junção de faixas
sonoras, deliberada em estúdio, aponta para uma relação com a música, nesse caso, de
apropriação. Um modo de comunicar, refeito, o objeto fingidamente estagnado pela
“indústria cultural”.
Em Público, a câmera e o projetor interpretam personagens fundamentais, o
que não é escondido, sequer dissimulado. Operar a câmera é parte integrante do
arcabouço disponível de deslocamentos. O aparelho se evidencia – os fios harmonizam
o cenário. São manipulados e mudam de lugar.
No material que se produziu para os potenciais parceiros institucionais,
estatais em sua maioria [públicos], encontra-se a imagem de uma citação redigida a
mão. Análoga ao liame que fixa a voz de uma bailarina à canção originalmente
produzida, há aqui a relação entre a escrita manual e um texto antecedentemente
publicado. Novamente uma apropriação, transitória, que redefine o aspecto do conceito
de público. Eis o texto redigido a mão:
O corpo como representação renuncia à sua soberania, deixando a imagem
do corpo disponível para seu restabelecimento em redes de símbolos
distintas daquelas do mundo real – isso não é necessariamente negativo, já
que sugere a possibilidade de reinventar continuamente a nossa identidade
e o nosso papel.
Certa vez me disse a diretora, “eu gosto dessa inflexão que não justifica
muito; afrouxa-se um absurdo como se fosse a coisa mais funcional do mundo”. É a
folia aprontando caminhos.
11 de junho
É curiosíssimo ser, por um prolongado período de tempo, o expectador
particular de um processo de criação que, não entendo bem porque, não é menos
interessante que o produto final. “Dá uma loucura no olho”. O ensaio é um fazer. E o
que essas pessoas fazem, antes de tudo, é ensaiar modos de experimentar e atuar no
mundo através da própria experiência do inacabado, do todavia por vir. Hoje,
relembrando o primeiro encontro, em que as vi sobre fotos e cadernos, fiquei pensando
no fato de havê-las encontrado num momento em que nem elas tampouco eu sabíamos
exatamente no que aquilo ia dar.
Citando Antônio Teixeira em A Soberania do Inútil e misturando um
pouco as coisas:
O ensaio se vale do prazer estético que sua leitura produz como uma
condição essencial de transmissão. O engajamento expositivo do tema aqui
coincide com o cuidado estético da forma, na medida em que se visa
produzir, da parte do leitor, a adesão que deriva não do pensamento
racional, mas da maneira pela qual sua expressão nos cativa [...] Ao
ensaísta interessa menos conhecer o objeto, tal como ele se encontra
determinado em seu campo conceitual, do que encontrar uma nova maneira
de exibi-lo [...] Por saber que não existe, como quer fazer crer a ideologia,
uma hierarquia de conceitos na qual um elemento à parte poderia
funcionar como garantia de verdade, o ensaísta reconhece tanto a
precariedade quanto o caráter provisório como aspectos essenciais do
sistema que ele submete à experimentação. [:17,18,19].
É a metáfora do bricoleur se atualizando, sem a pretensa naturalidade da
função, realizando composições inéditas a partir de materiais heteróclitos.
13 de junho
Hoje presenciei um aborto criativo. A cena parecia absolutamente correta e
de repente pára de funcionar e passa a ocasionar a dúvida geral. Até que uma delas
aponta, “A gente não precisa se apegar, não é um segredo, estamos apegadas a essa
cena”. Um desânimo toma conta e elas se sentam cada uma num canto, com cara de
tédio. “Assim está ótimo!”, brada a diretora. E aquela se torna então a cena correta. O
acaso produz a solução. Do real para o imaginário. Da natureza para a cultura.
17 de junho
Hoje eu não fui vê-las, não fui observar seus jogos de modos aventureiros,
não fui encontrar sua sorte. Elas aperfeiçoam a estrutura do meu papel. Recobrem
minhas frases com uma trama metálica fina. Eu lhes componho especialmente esta
coreografia. Por meio de uma cerimônia festiva, ritual, particular, eu lhes interpreto a
participação. Minhas palavras conformam um bailarico acadêmico. É absoluto vê-las se
estendendo, espreguiçosas. O corpo, ao passo que se prepara, entorna seu estatuto,
transfigura-se em artigo bom para morfoses metáforas. Trata-se de um aproveitamento,
cujo espetáculo é a intensificação da espessura humana. “Para fazer parte é preciso
compartir essas frivolidades. Desocupando, esvaziando, esvaziando, até perder a
importância. É muito bom quando você não sabe o que fazer – desponta algo incomum.
Quanto mais esquisitice melhor”.
24 de junho
O corpo se estende. Abre delongas na descompostura e comprime as
beiradas. Achega todo o organismo, os tecidos. No preparo dos corpos, o imaginário é
tramado de forma a exaltar suas freqüentações com o chão, que lhe massageia cada
tamanho de intensidade. O olhar, em Público, é total. Entrevê tudo. Os primeiros
momentos do ensaio de hoje constituíram folias, divertimentos e corpos totais. As mãos
sempre à mostra. Os pés e o rosto. É langorosa e demorada a fala que conduz o preparo
desses corpos inominados. Ao passo que escrevo a fala invade o texto. A voz abandona
aqui um rastro. “Beirando cada célula. Reunindo as extremidades”. A dança ordena
coisas inacreditáveis. Corpos palavreando organizações espontâneas. “Animando a
musculosidade da coluna. Despalhando no chão a sola dos pés. Para uma troca
respiratória”. Hoje eu fiquei pensando, para ensaiar é preciso resguardo. Não se ensaia
em qualquer lugar. É necessária alguma segurança para ocasionar uma tal licença.
Alguma longitude suficientemente incontestável para se estabelecer um mundo figurado
por ordens outras. Num sábado pela manhã nem uma mosca interrompe o que ali tem
lugar. Muita concentração para abrir o corpo às intermitências do ser. Hoje a diretora me
disse, “o conceito de espetáculo não faz mais sentido”. Hoje uma bailarina me
escreveu, “tenho receio com o termo ‘dança contemporânea’”. Extensão indefinida de
práticas distintamente complexas. “Comovendo-nos pela difusão das articulações, pela
energia que circula. O espaço está vivo. Está com ela. Ela altera meu corpo. O espaço
tem densidade. Eu enxergo tudo”. Hoje presenciei os hábitos de uma trama que infunde
ao corpo a coerência de uma brincadeira ao longo da qual, afetado pelo próprio afeto, o
belo se torna difuso. Os mesmos movimentos, completos e inacabados.
25 de junho
Um exame de ocorrências fora do traço. Uma escolha. Meio de um
processo – tinta preta sobre papel branco. Um texto púbico é redigido ao ritmo
entrecortado de risos generosamente promovidos por gracejos que ludibriam ilesos o
tempo e o todo. Divertimentos que permitem distinguir através da sua espessura a
seriedade inquietante desses objetos, suas fases e suas transições. A folha de papel e a
tela. Superfícies hospedeiras. Símbolos mágicos. Agora a câmera deflagra seu próprio
registro – um metaregistro. Na parede branca uma sobreposição. A impressão de uma
metáfora enquanto metáfora da impressão. Ao passo que especulam o olhar, elas
exercitam o manejo da câmera filmadora. “Muita concentração no olhar – ele é tudo
aí”. Expansão é o nome mais recorrente dessa “passagem”. Passo a passo o corpo
alcança os aspectos de uma qualidade. “O olhar encolhe lá pra bacia e depois cresce
no espaço”. Ontem alguém disse que na dança a intelectualidade diz respeito ao corpo
na sua totalidade. “Eu percebo, meu corpo é transpassável”. Nietzsche certa vez
escreveu: eu sempre escrevi meus trabalhos com todo meu corpo e minha vida, não sei
o que querem dizer com problemas intelectuais.
Hoje, durante as quedas que desabotoam a terceira parte, eu fiquei
pensando nas figurações míticas da queda. O erro, a falta, a culpa e o pecado. O engano,
a infração perpetrada antes de toda existência. Cinco mulheres explorando caimentos,
digo, quatro, uma delas paira profana em giros incólumes por sobre os
desmoronamentos. Cinco bailarinas atualizando a decadência. As representações
desaparecem e resta, restabelecida, a fina e incontestável imanência do corpo que
coincide consigo mesmo. Ontologia em suspensão. Um trabalho que burla
copiosamente a propriedade ontológica das coisas. A parede é parede. E é também
sujeito de uma imagem. O corpo é uma imagem. E é também mero sujeito de uma
câmera filmadora. Na terceira parte, para fazer parte, o tempo é mero andamento do
presente. Dádiva de uma comunhão que se dá pela mera assiduidade da presença. “É
bom porque a gente não sabe direito o que está acontecendo”. O juízo se converte em
passatempo, renega imperativos e conquista importâncias outras. “Aí baixa nela uma
lula colossal. Sobe”, ela emendou, “sobe uma lula colossal”.
26 de junho
“Que tal uma massagem?” Duas à maneira de uma, elas se embolam umas
sobre as outras. É bonito e dá vontade de fazer o mesmo. Nesse momento eu me sinto
uma espécie de soldado-amante. Elas se sucedem e prosseguem com a massagem. Seus
arranjos são partes suas. Cada uma em seu fazer. O que a Nina põe em movimento é tão
dela que no dia em que a Déia a substituiu, “eu não levantei no dia seguinte, de tanto
que o pescoço sofria”. Preciso pensar num título para o meu projeto: as intermitências
do ser. Eu quase sinto o que elas estão sentindo. Ontem foi muito legal distinguir o
modo como os bailarinos enxergam o futebol pela improbabilidade das articulações.
Eles se impressionam com a flexibilidade. Ontem durante o ensaio elas ficaram
remedando o aquecimento dos jogadores. Muita risada. É medicinal testemunhá-las.
Relaxante ocular-corporal. “Quem for desfechando vai se rarefazendo, sem desperdiçar
esses apoios para espraiar as conexões, o semblante”. Ontem alguém falou em
sentimento oceânico. “A gente vai propagando espaço entre as vértebras. A coluna vai
aonde eu quiser. A coluna pode render hábitos”. Elas são hábeis tradutoras de metáforas
em movimento. “Espôndilos sublimes. Elásticos”. Ontem durante as conversações algo
restou mais ou menos nítido. As livres associações, em sua espontaneidade, tornam-se
uma espécie de método do encadeamento conjunto de tinos e pensamentos, no espaço
dos quais as imaginações propostas por uma pessoa vão afligindo e proporcionando
outras imaginações. Outras interpretações. Outras comunicações. Um entendimento
pactuado no tropo. “Desde o cóccix. Deitando vetores pelo espaço. Pelos pés”. Elas
agora ensaiam o olhar. “Pressinto as cores, adivinho cada detalhe, nunca pára, o olhar
está sempre caminhando”. Um etnógrafo, cinco bailarinas, uma diretora. Conquistas.
“Experimentando um olhar num espaço vivo. Vejo tudo. O olhar sempre em
movimento”. O ensaio é passagem, preparação, expansão. Um jogo, uma aposta.
7 de julho
Ao passo que realizo este trabalho, concluo, com suspeita prontidão, que a
criação funciona como uma disposição para a desordem, como uma competência para o
excesso, como uma harmonização para a irregularidade. Mas me pergunto, com isso, se
a manifestação da criação não teria se tornado, ao invés de uma transgressão efetiva da
nossa distribuição de riquezas, um acontecimento trivial, já plenamente ensaiado pela
estrutura mesma de uma sociedade eternamente por vir. Se a resposta for sim, a arte terá
se tornado, então, um sustentáculo adestrado da contínua e previsível modificação da
estrutura. A mudança, artisticamente estrutural, terá se tornado o nosso drama.
11 de julho
14 de julho
Tudo o que observei até o presente momento me leva a crer que se trata de
um processo criativo em que, assim como nos filmes de Jean Rouch, o imaginário se
manifesta como uma realidade virtual, capaz de suscitar ações, de se converter em
imaginação criativa. Nesse sentido posso pensar o imaginário como prerrogativa da
realidade ou pelo menos uma enunciação sobre a realidade.
Rouch sabia que a etnografia só era possível se houvesse a crença na
palavra daqueles que construíam o mundo narrativo e, nesse sentido,
Rouch passou literalmente a palavra para Robinson, porque Robinson era
uma possibilidade de Oumarou Ganda. Como máscaras, estes personagens
davam conta de sua própria existência, crendo que era possível falar
através de um outro sobre si próprio. Esta forma de ser múltiplo e ser
verdadeiro, de não opor ficção e realidade, parece que Rouch não aprendeu
no cinema mas na Antropologia, mais especificamente com a cosmologia
Dogon, como relata no filme Mosso mosso. [...] “Eles narram um mito que
nunca aconteceu lá, mas foi em outro lugar, mas eles ‘fazem de conta’, e
‘fazendo de conta ficamos mais perto da realidade’. Mas isso pode ir muito
mais longe, e aí chego no que você dizia. Tenho consciência de ter ‘feito de
conta a vida toda. Fiz de conta que era engenheiro de estradas, fiz de conta
que era ex-combatente. Fiz de conta que lutei na guerra. Fiz de conta etc...
E era verdade” [Gonçalves, 2008: 117].
17 de julho
Hoje uma das cinco bailarinas envolvidas em Público, ao passo que meditava a
vinculação com o observador, com o público, com os olhos que concebem acontecimentos
extraordinários, que dispõem criaturas em transe, que entoam fados, se lembrou de um
trecho de Borges:
Ao outro, a Borges, é que acontecem as coisas [...] eu vivo, eu deixo-me viver, para
que Borges possa urdir a sua literatura, e essa literatura justifica-me. Não me
custa confessar que conseguiu certas páginas válidas, mas essas páginas não me
podem salvar, talvez porque o bom já não seja de alguém, nem sequer do outro,
mas da linguagem ou da tradição.
15 de julho
É o máximo vê-las se alongando, se espreguiçando. A preparação do corpo é um
estado de passagem, para um outro estado de passagem. Trata-se de um uso, cuja função é
ativar a corporalidade. O corpo, durante a sua preparação, ganha o estatuto de matéria boa
para transformar.
Agradecimentos:
Adriana Grechi, Andréia Guilhermina,
Valeska Figueiredo, Nina Giovelli,
Karime Nivoloni e Júlia Rocha.
Referências bibliográficas:
Resumo:
Há performatividade cênica na atividade cotidiana da sala de aula? Como ler os sentidos
de uma teatralidade identitária do professor em cena? Estas questões definem os eixos
sob os quais construímos a reflexão sobre as práticas escolares como práticas
performáticas, a sala de aula como espaço cênico. A definição de espaço cênico é uma
noção que se justifica pela materialidade que evoca. A aula não é um artifício subjetivo
da aprendizagem, mas está subordinada a um roteiro prévio em que estão definidas
indicações objetivas de sequências, convenções, conteúdos e atos. Materialidades
expressas em um repertório gestual, corporal e vocal que nos levam a à noção de espaço
performático. A performance implica em um jogo em ato, um jogo cênico em que se
utiliza a máscara. Materialidades no corpo e na voz, a máscara e o jogo cênico: estes
seriam os ingredientes da performance de uma aula. O espaço performático da aula-
conferência é um ato da cultura escolar autoritária em diversas manifestações. Estudar o
corpo como fenômeno cênico, sob o equilíbrio entre o que está dentro e fora de sua
materialidade, torna-se relevante para compreender a ação performativa do professor.
Vista sob esta perspectiva, a aula pode ser lida em suas subjetividades intencionadas e
subjugadas culturalmente. Como performance cênica dialogal e simulativa, a sala de
aula se insere na lógica dos jogos e, os jogos são representações com status de verdade
simbólica, elementos que precisam ser evocados por produzirem, influenciarem e
construírem sentidos e práticas culturais.
1
PAVIS, Patrice. Espaço (No Teatro). In. Dicionário de Teatro. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2008, p.
132-138.
1
A opção pela definição de espaço justifica-se, no nosso caso, pela materialidade
que evoca. A aula não é um artifício subjetivo da aprendizagem, mas está subordinada a
um roteiro prévio em que estão definidas, por diversas questões, um arcabouço de
indicações objetivas de sequências, convenções, conteúdos e atos. Materialidades
expressas em um repertório gestual, corporal e vocal que nos levam a à noção de
performance, ou melhor de espaço performático. Mas, o que definiria a performance
em sua relação com o espaço cênico em sala de aula? A performance implica em um
jogo em ato, um jogo cênico em que se utiliza a máscara. O uso da máscara que
caracteriza o jogo cênico seria o que identifica o espaço performático da sala de aula. A
opção pelo uso da performance está no caráter simbólico e social do ato.
A performance, desenvolvida sob a perspectiva da sociologia do cotidiano,
inspirada nos estudos antropológicos de Victor Turner2, ou mesmo na perspectiva teatral
de Richard Schechner3, tem sido usada, desde a década de 70, como um ato cultural,
algo que precisa ser lido de maneira interdisciplinar, para além de suas exterioridades 4.
Como um conceito aberto, que só se realiza em plena operação sobre o objeto, a
performance5 se configura em um ato cênico, estético-formal, de natureza do drama-
ritual e/ou do espetáculo, que se dá a ler (a um público). Expressa-se, geralmente, por
meio da forma (performance, por meio da forma), em materialidades cênicas, corporais
e gestuais e envolve relações em ato, o que nos remete ao conceito de experiência.
2
TURNER, Victor. Dramas, Campos e Metáforas. Ação Simbólica na Sociedade Humana. Niterói:
Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008.
3
“Em 1965 publiquei Aproaches, ensaio no qual disse que performance era uma categoria inclusiva que
incluía representações, jogos, esportes, performance no quotidiano e ritual”. SCHECHNER, Richard.
What is performance studies anyway? In. PHELAN, Peggy; LANE, Jill (Ed.). The Ends of Performance.
New York: University Press, 1997, p.357.
4
A este respeito, ver TEIXEIRA, João Gabriel L.C. História, Teatro e Performance. Encontro Anual da
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em História na Universidade do Rio dos Sinos, São
Leopoldo, RS, 2007.
5
Como uma palavra inglesa com o sentido geral de ação, ou processo de ação realizado para determinado
fim, o verbo to perform significaria realizar, empreender e agir de modo a levar a uma conclusão.
Entretanto, a origem etimológica do termo está no francês antigo, parfounir, combinando o prefixo latino
per, indicativo de intensidade e completude, e founir, significando prover, fornecer. Nesta definição há
uma idéia de movimento, de ação combinada que só se completa em processo. Em português, a palavra
tem sido usada desde a década de 70 no sentido de atuação e desempenho. Ver histórico da noção em
LOPES, Antônio Herculano. Performance e História. Fundação Casa de Rui Barbosa. Disponível em
www.casaruibarbosa.gov.br
2
Mesmo quando relacionada ao texto escrito, a performance tem natureza simbólica e
experiencial, relação com a teatralidade6.
Por relacionar-se com uma experiência em ato, uma performance também não
escapa da definição de acordo, de jogo entre aquele que cria de um lado e, por outro,
aquele que assiste, consome e interage com a criação. Materialidades no corpo e na voz,
a máscara e o jogo cênico: estes seriam os ingredientes da performance de uma aula.
Interessa-nos, ainda, as ligações entre performance e hermenêutica, para pensá-la como
uma forma de conhecimento, um modo de compreensão.
Para investigar estes princípios, montamos uma aula-oficina, em dupla: uma
professora de história, interessada em estudos culturais e metodologias de ensino e um
pesquisador de artes cênicas, ator e professor de teatro. Denominada Mito e Teatro
como Prática Educativa, a atividade buscava pesquisar os aspectos de performatividade
e teatralidades7 presentes em uma sala de aula, seu significado como jogo cultural. Para
isso, usamos um meio não ortodoxo: a narrativa mítica de Ulisses, em Homero. A opção
pela narrativa mítica estava em sua força pedagógica de expressão oral e cênica. Em
dois dias de trabalho com performances míticas, discutimos a atuação do professor, a
máscara e as sensibilidades em sala de aula, elementos que se configuraram na
identificação de vários tipos de materialidades corporais/vocais e identitárias do
professor em cena na sala de aula: o corpo ausente, o corpo subjugado, o corpo
autoritário.
6
As experiências humanas só se realizam plenamente quando expressas, exprimidas, espremidas (Georg
Simmel). Não há expressão sem experiência, nem experiência sem expressão. Se há experiência sem
expressão, isso não nos interessa, pois não temos como alcançá-la. É aí que reside o fundamento essencial
da teatralidade. Teatralidade entendida como a condição de organização do espaço em função do olhar.
Teatro: espaço organizado em função do olhar. Esse olhar, antes da visão como privilegiado, tem ocupado
outros espaços de sensorialidade. In. BIÃO, Armindo. Estética Performática e Cotidiano. In TEIXEIRA,
João Gabriel. Performances, Performáticos e Sociedade. Brasília, Ed. UNB, 1996.
p.12-19.
7
3
A Máscara. Oficina LEHIS/UFG-2010 Performance Ulisses. Oficina LEHIS/UFG - 2010
8
SOUZA, Antônio Vital Menezes. Corpo em Cena: Educação, Estética e Debates Contemporâneos.
Diponível em: http://www.psicopedagogia.com.br/artigos/artigo.asp?entrID=484
9
CORBAIN, Alain. Prefácio. In. História do Corpo. Da Revolução à Grande Guerra. Tradução de Jean
Batista Kreuch (Partes I e II) e Jaime Clasen (Parte III). Petrópolis, RJ: Vozes, 2008, p.8-9.
10
“Na aula-conferência, o aluno é uma tábua rasa, o professor conferencista e ator”. BARCA, Isabel.
Aula-Oficina: do projeto à avaliação. In. Para uma Educação de Qualidade. Atas da Quarta Jornada de
Educação Histórica. Braga, Centro de Investigação em Educação/ Instituto de Educação e Psicologia,
Universidade do Minho, 2004, p. 131-144.
4
São bastante conhecidas as recomendações para o professor de manter-se sempre
ereto e em pé, de movimentar-se equilibradamente entre um lado e outro da lousa para
não cansar o espectador e de manter comunicação visual com o aluno para não distrair
sua atenção. O corpo autoritário é um corpo tenso, em que não se reconhece a interação
do público sob qualquer reação ao repertório e sequência de conteúdos previamente
preparados. O corpo autoritário é um corpo rítmico, disciplinado e se contrapõe ao
corpo subjugado dos alunos, sentados em fila, e, preferencialmente, silentes.
“Disciplina-se conteúdos”, faz-se “controle de sala”, cria-se a cultura do copiar
conteúdos fragmentados, em uma alternância de recomendações unilaterais. O espaço
performático da aula-conferência é um ato da cultura escolar autoritária e bancária em
suas diversas nuances e manifestações.
Estudar o corpo como objeto cênico, bem como o próprio corpo como um
equilíbrio entre o que está dentro e fora de sua materialidade, parece-nos importante
para compreender a ação performativa do professor em cena. Para alguns autores, a
desvalorização do corpo como elemento educativo, vem da tradição clássica de
separação corpo-alma que remonta Platão, a que concebe o corpo como prisão da alma.
Dessa forma, o corpo, este organismo mutável e efêmero necessitava de regulação e
disciplina. Em Foucault conhecemos os “corpos dóceis” modelados, treinados em
estratégias de poder11. Aula conferência é a que promove o corpo autoritário do
professor e os desejados corpos dóceis dos alunos. Poder disciplinar supremo que regula
os corpos influenciado por coações da performance em aula.
O corpo ausente encontrou-se em práticas de professores e alunos. Indissociado
do ato da aula, o corpo ausente, em gestos, fala e voz é um corpo sem vontade de
potência no sentido nietzcheano, um corpo que dorme para o ato, um corpo mecânico.
Como o próprio nome diz, o corpo subjugado é, também, um corpo distante, não no
sentido da inconsistência, mas no da subserviência. Está nos corpos dóceis daqueles que
dormem, de olhos abertos ou fechados, para a experiência do ensinar e aprender em ato,
está nos conteúdos reprodutivos e roteirizados em que não há jogo, nem diálogo. Falta o
elan vital nos corpos dóceis. O corpo subjugado é um corpo contido e refreado que finge
estar, um corpo que mente. O corpo autoritário, por sua vez, é o corpo armado. Há nele
uma intencionalidade e uma estética que informa sobre o perigo iminente, a necessidade
11
FOUCAULT, M. “Os recursos para o bom adestramento”. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 29ª
ed. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004, p.126.
5
de auto-proteção. O corpo autoritário é o corpo rígido, normativo, repetitivo, previsível.
É um corpo que necessita silêncio para ser focalizado, imitado.
Por meio destes corpos, diversas sensibilidades são evocadas, ritualizadas.
Performances com sensibilidades de raiva e repressão, estímulos à fraude, à subversão
do instituído.
A aula contém um espaço performativo, mas ele só ocorre, por outro lado, pelo
uso da máscara: elemento fundamental para que a teatralidade ocorra, segundo Jacó
Guinzburg. Para ele, independente do que fizer o autor ou o diretor, o ato criativo só se
realizará no momento em que o ator assumir a máscara.12A máscara pode ter funções
antropológicas, ritualísticas, mas seu uso implica em uma certa imobilidade facial, ou
melhor, na manutenção de um certo padrão dramático que potencializa o corpo. A
máscara é, nesta acepção, o elemento que marca o ato performático e, mais que uma
representação exterior e ritualizada, repetida em ato, a máscara envolve o jogo com a
platéia e com a personagem. A capacidade de se tornar um outro cênico, sem perder a
referência do si mesmo, é, portanto, um elemento importante na adoção da máscara e na
tomada de consciência do jogo cultural e simbólico que a máscara realiza.
Assim sendo, para compreender o uso da máscara no espaço performático,
podemos, ainda, recorrer aos aspectos duplos da máscara como persona. Segundo a
psicanálise junguiana, compreender a persona é um passo importante no processo de
12
GUINZBURG, J. A Cena em Aula (org. Rosangela Patriota). São Paulo, Edusp, 2009, p.86.
6
individuação, processo que envolve a integração dos arquétipos, a assimilação das
sensibilidades (sentimentos) e mesmo a integração do corpo 13. Ao assumir a máscara no
espaço performativo, o professor em cena precisa considerar-se como produtor de uma
teatralidade que envolve escolhas criativas e compreender o jogo do conhecimento
como um processo de interpelação consigo mesmo, com a máscara e com o
conhecimento. A máscara recorrente da aula como representação cultural e simbólica,
evoca identidades e o jogo cênico, aspecto sem o qual, o espaço performativo não se
realiza.
O jogo cênico é um elemento intrínseco do ato performático em seus princípios e
regras. Evoquemos dois teóricos para nos ajudar na questão do jogo. Johan Huizinga e
Hans-Georg Gadamer. O primeiro vai nos dizer do aspecto lúdico-simulativo essencial
do jogo e o segundo, do jogo como princípio de diálogo e interpretação. É Huizinga que
trás a definição de jogo que pode se aplicar à ficção e à máscara cênica como elemento
do espaço performativo e suas convenções:
Sob o ângulo da forma pode-se [...] definir jogo como uma ação livre, sentida como
fictícia e situada fora da vida comum, capaz, não obstante, de absorver o totalmente o
jogador; uma ação despida de qualquer interesse material e de qualquer utilidade; que se
realiza num tempo e num espaço expressamente circunscritos, desenrola-se
ordenadamente de acordo com determinadas regras e provoca, na vida, relações de
grupos que se cercam voluntariamente de mistério ou que acentuam pelo disfarce sua
estranheza diante do mundo do habitual.14
7
a familiaridade, entre a objetividade e a distância. E é na própria compreensão que
compreendemos os preconceitos e a tradição. 15
15
O sentido de um texto supera seu autor não ocasionalmente, mas sempre. Por isso, a compreensão
nunca é um comportamento meramente reprodutivo, mas também produtivo. GADAMER, Hans-Georg.
Verdade e Método I. Traços Fundamentais de uma Hemenêutica Filosófica. 7a Ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2005, p. 392.
8
Este trabalho corresponde a uma reflexão sobre o aprendizado de Capoeira Angola - Linha
de Mestre Gato Preto no grupo Guerreiros de Senzala, sob a instrução do contra-mestre Pinguin.
“fazer nas ruas e praças públicas exercícios agillidade e destreza corporal conhecidos pela
denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de
produzir uma lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou
incerta, ou incutindo temor de algum mal”.
A partir dessas considerações, inicio a análise distribuindo alguns conceitos, que considero
fundamentos da capoeira angola, entre os 6 pontos de contato apontados por Schechner. Há perdas e
ganhos nesta forma de classificação, no entanto, creio que esta abordagem se aproxima de
princípios da folksonomia1, situando critérios subjetivos de organização da linguagem popular
como pontos de irradiação da comunicação.
As formas eminentemente narrativas da capoeira nasceram em culturas orais e muitas vezes não
se utilizaram de instrumentos de fixação como a escrita, implicando um discurso caracterizado,
principalmente, por uma comunicação epifânica no momento do ritual. Entretanto, essa
característica que permite ao discurso improvisações e variações e que se realiza no momento em
que é narrado, ao ser expressa numa forma de registo textual, pode ser recomposta a partir
processos que visem conferir às palavras outras camadas de significação:
IÊ...
CONSCIÊNCIA
AGILIDADE
PERCEPÇÃO
ORIGINALIDADE
EXPRESSÃO
INSPIRAÇÃO
RESISTÊNCIA
ARTE
1 Seu ponto forte é sua construção a partir do linguajar natural da comunidade que a utiliza. Enquanto na
taxonomia clássica primeiro são definidas as categorias do índice para depois encaixar as informações em uma delas
(e em apenas uma), a folksonomia permite a cada usuário da informação a classificar com uma ou mais palavras-
chaves.
Intensidade da performance
Além disso, continua, “através dos cantos e das palmas o recém-chegado não só se incorpora
à “corrente de vibrações”já existente, como também se relaxa e descarrega as tensões que trouxe de
seu dia-a-dia” (1986:26).
Waldeloir Rego nos conta que antes, quando “não havia academias turisticamente
organizadas. Os capoeiras, com alguns outros companheiros e discípulos rumavam para o local de
festa, com seus instrumentos musicais, inclusive armas para o momento oportuno e lá, com amigos
outros que encontravam, faziam a roda e brincavam o tempo que queriam” (1968:37).
Quando alguma ameaça se aproximava os berimbaus tocavam o Toque de Cavalaria, que
servia pra avisar a chegada da policia, por exemplo, alertando os camaradas para a fuga ou
enfrentamento com as autoridades. Seria um caso de uma interação com um “anti-público
acidental”? Ou um até mesmo “anti-público integral” uma vez que a sua aparição é previamente
suposta, sendo assim incorporada ao ritual.
De qualquer maneira, o toque de cavalaria é ainda hoje ensinado e em muitas ocasiões
tocado interrompendo a roda diante de algum acontecimento. Não se refere mais à chegada da
polícia, mas a sua intencionalidade é ainda transmitida como recurso de alarme. Aspectos que
fundamentam a sua realização são revividos performaticamente durante o ritual na intenção de
manter elementos pertencentes ao universo da capoeira pela reinterpretação de suas histórias.
Se, como afirma Geertz, uma piscadela pode ter muitos significados, os toques do berimbau
também e este toque pode ser interpretado como um alarme para fuga, (de uma “briga de galos
balinesa”) - a performance de um evento, ou então podemos lê-lo em uma das outras chaves
propostas por Sherchner para a “restauração do comportamento”, correspondendo à performance de
um “não evento” (1985b).
Seqüência total da performance
3 Reis. p.132
4 Em matéria especial da Revista
expostas em outro nível, Zumbi e os escravos que representam a resistência são incorporados à
mitologia da capoeira sem que sua presença entre em conflito com a história” (2009:17)
Os cantos nos revelam caminhos percorridos pela sua difusão: “eu jogo capoeira, da Bahia a
Maceió” ou “Pastinha já foi à África”, eles compõem um cancioneiro tradicional que se relaciona
com a construção de uma identidade nacional para o Brasil e transmitem diversos elementos, nos
quais residem a EXPRESSÃO do capoeirista, “tem dendê, tem dendê”.
Coletei a seguinte informação: “elemento básico da Capoeira Angola, a malícia ou mandinga
a torna ainda mais perigosa. Essa malandragem que faz que vai e não vai, retira-se e volta
rapidamente; essa ginga de corpo que engana o adversário, faz o diferencial da Capoeira em relação
às outras artes marciais. Essa é uma característica que não se aprende apenas treinando5.”
A capoeira permite a liberdade para se criar em cima de um determinado “texto”, “roteiro”
ritual, que corresponde principalmente aos seus golpes e sua música, “vários capoeiras possuem um
ou mais golpes ou toques diferentes, inventados por eles próprios, ou então herdados de seus
mestres ou de outros capoeiras de suas ligações, isso sem falar na interpretação pessoal, embora
sutil, que dão aos golpes e toques, de um modo geral, e o golpe pessoal que todo capoeira guarda
consigo” (REGO.1968:33).
Assim, no início de uma roda, a ladainha, um lamento que conta a história de um tempo, que
traz à memória um evento do passado, revivido através da música, aponta o conceito de
ancestralidade e a importância da RESISTÊNCIA para a capoeira. Mestre Almir, em entrevista ao
jornal Movimento (13/09/76) explica a Capoeira como “uma luta de liberdade na época da
escravidão, uma forma de sobrevivência dos marginalizados após a libertação e agora uma forma de
manifestação popular, uma memória histórica” (Freire.168)
Entender o que acontece na roda de capoeira é um exercício importante. Para isso é preciso
conhecer suas regras tradicionais de modo que a segurança de sua prática seja assegurada e que ela
não se expresse como violência. Quando uma roda é boa, os movimentos dos jogadores estão
ajustados ao ritmo da bateria. Nas palavras de Mestre Pastinha “...é o controle do jogo que protege
aqueles que o praticam”, desta forma alcançamos a “camaradagem”, elo importante entre os
jogadores, indispensável a uma prática de luta.
Mestre Almir relata que quando realizaram o primeiro campeonato de capoeira, em São
Paulo, os capoeiristas em função das regras tinham que aparar os golpes para contagem de pontos. A
CAPOEIRA, Nestor. 1986. “Pequeno Manual do jogador de capoeira”. 2 ed. São Paulo. Editora
Ground Ltda.
DAWSEY, John. 2006. “O teatro em Aparecida: a santa e o lobisomem”. Mana 12(1). 135-149.
DECANIO FILHO, Angelo A. “Fundamentos da capoeira.” acessível em:
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FREIRE, Roberto. 1991. “Soma: uma terapia anarquista – Vol.2.; A arma é o corpo (Prática da
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REIS, Leonardo A. 2009. “Cantos de capoeira: fonogramas e etnografias no diálogo da tradição”.
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REGO, Waldeloir. 1968. “Capoeira Angola: ensaio socio-etnográfico”. Salvador. Editora Itapuã.
RODRIGUES, Graziela. 1997. “Bailarino - pesquisador – intérprete: processo de formação”. Rio de
Janeiro: Funarte.
SCHECHNER, Richard. 1985. “Points of contact between anthropological and theatrical thought”.
In: Between theater and anthropology. Philadelphia: The University of Philadelphia Press. pp. 3-34.
_________ . 1985b. “Restoration of Behavior”. Idem. pp.35-117.
SILVA, Go. 1989. “Clínica de Esportes: Capoeira”. 2.ed. São Paulo: CEPEUSP.
SIMÕES, Gutavo F. 2007. “Guerreiros e capoeiras e anarquistas”
Corpos em performance com a Áfricanamente: notas etnográficas de uma
aprendiz de capoeira Angola em Porto Alegre, Brasil.
Heloisa Gravina
Doutora em Antropologia Social - PPGAS/UFRGS
helogravina@gmail.com
1 Em setembro de 2010, quando eu já finalizara o trabalho de campo e meu engajamento na escola seguia
apenas como capoeirista, Guto foi formado Contramestre por mestre Renê, de Salvador, sua principal
referência na capoeira.
1
braço na frente do rosto, a perna pela frente, a cabeça para trás. Será que a sala começou a
rodar? Mais da cabeça por cima, os pés... O que fazer com as mãos mesmo? Olho para o Guto
e sigo copiando, deduzindo os movimentos a partir de um fragmento de braço, um pedaço de
perna, uma fração de tronco vislumbrados entre uma volta e outra da cabeça por todas as
direções possíveis. Definitivamente: a sala está rodando! Concentrar na música: onda vai,
onda vem... Por quanto tempo ainda?
Legal, gurias. Paramos, enfim! Mal tenho tempo de reconhecer que a sala parou
também: a terrível náusea toma conta de mim. Respiro fundo. Vai tomar uma aguinha, Helô.
Será que dava para ver minha náusea? Quando volto minhas duas companheiras deste treino
de segunda-feira me olham, não sei bem se sorriem solidárias ou se riem de mim, mas não
posso evitar de rir também. Completamente exausta. E ainda faltam dez minutos! Então, só
pra terminar. E Guto finaliza a frase já com as mãos no chão, as pernas subindo. E falando:
Áfricanamente joga com muito equilíbrio! É demais para mim! Quer que atravessemos a sala
caminhando sobre as mãos. Percebendo nossa hesitação: Bora lá, gurias, quem tem medo não
sai de casa! Dez minutos que duram uma eternidade: uma sequência interminável de formas
de atravessar a sala de cabeça para baixo – apoio dos braços, da própria cabeça, giros os mais
diversos e nos mais diversos planos. Não tenho a menor ideia de como passei por isso. Mas
passei.
OK, podemos sentar. Ufa! Finalmente um alongamento, uma coisa tranquila, penso.
Ledo engano: Guto chama a Gil para o centro da minúscula roda que formamos. Eles
começam um jogo muito rápido, onde identifico alguns dos movimentos que acabáramos de
fazer, em meio a um fluxo intenso. Agora não é náusea, mas um certo aperto no estômago. Ele
vai me chamar, tenho certeza de que vai. E dessa vez não me engano: sou a próxima vítima.
No olho do furacão, completamente tonta, de repente me percebo sobre o apoio das mãos, os
pés que sobem. Um segundo de respiro nesta posição e, antes mesmo que tenha consciência
de ter visto a lateral do corpo do Guto exposta, meu pé já está empurrando sua costela. Acertei
o Guto? Não posso acreditar. Enquanto se reequilibra dando um passo atrás, ele ri: Ah... Tu vai
querer jogar duro? E a frase já vem junto com um pé saído não sei de onde. O tempo de eu
tentar me defender e já não vejo mais o Guto. Surge de trás de mim, de cima, de baixo, e é só
uma sucessão de pés, cabeças, braços, rastros de movimento. Eu? A esta altura, absolutamente
paralisada, sem reação. É quando sinto que ele pega minha mão e me puxa para perto de si.
2
Um abraço, afinal. Respiro. É o fim dessa sessão. E só então percebo os sorrisos em torno,
volto a ter alguma consciência do espaço da sala.
Sento na roda. Este momento é apenas um esvaziar, acompanhado de uma alegria
intensa que brota da consciência de ter meu corpo inteiro, intacto. Sobrevivente. A respiração
vai pouco a pouco retomando um fluxo mais tranquilo Os músculos completamente
relaxados. O olhar que divaga em torno, capturando as imagens dos orixás (que logo vou
aprendendo a reconhecer) grafitadas nas paredes. Pousa sobre o símbolo da escola, que por
tantas vezes hoje foi minha referência visual, sob os mais diversos ângulos: “Áfricanamente
Grupo de Capoeira Angola”. Porque na parede é “grupo” e nas nossas camisetas é “escola”? 2
3
Abro os olhos. O corpo ainda vibra, mas agora de outro jeito: o aperto no estômago
desapareceu, e sinto os músculos ao mesmo tempo relaxados e muito vivos, despertos.
Percebo meus olhos também relaxados. A bateria recomeça, somente berimbaus e pandeiros.
Iêêêê... Guto puxa a ladainha. Meus braços pendidos à frente, cotovelos depositados sobre as
coxas, terminam no agogô, parado, esperando o momento das louvações para entrar. É como
se agora eu apenas me permitisse perceber o que entra no meu foco de visão. Ao invés de
buscar algo para olhar, deixar a luz invadir o olho, formando a imagem no fundo da retina.
Atenta ao meu corpo e à sonoridade, não fixo a atenção no conteúdo da ladainha cantada por
Guto, e só torno a compreender o sentido das palavras quando escuto:
Iê, viva meu Deus
É o sinal para respondermos em coro, ao mesmo tempo em que entramos com todos os
instrumentos da bateria:
Iêêê, viva meu Deus, camará
Uma ligeira mudança de tônus, os braços e mãos mais ativos, engajados na percussão
do instrumento. Os olhos instintivamente acompanham essa alteração, tornando-se também
mais ativos. As pessoas sentadas formando a roda voltam a entrar no meu campo de visão.
Mas estão diferentes: algo nos rostos mudou. Uma certa uniformidade nas expressões revela
não mais a excitação anterior, mas o que consigo descrever como uma serenidade alerta.
Dos rostos em torno, meus olhos são atraídos pelo movimento dos dois jogadores que,
de agachados que estavam durante a ladainha (tão integrados à imagem que se formava em
minha visão periférica, não os havia registrado como unidades distintas da bateria), passam a
se mover lenta e circularmente em direção ao centro da roda. Embarco no movimento dos
dois, como quando se acompanha o vai-e-vem das ondas do mar. Mas logo uma suspensão,
uma interrupção brusca no fluxo contínuo do movimento, me faz perder o ritmo no agogô.
Tarefa demasiado complexa olhar o jogo e tocar na bateria. Ainda não sou capaz. O sentido da
visão mobilizado em “olhar para” – captar e compreender uma imagem intencionalmente –
não é da mesma ordem que a visão flutuante, que divaga pelo entorno e simplesmente deixa
as imagens invadirem a mente3. Comprometida que estou com a tarefa de tocar para os outros
jogarem, opto pela segunda forma, deixando meu olhar passear frouxo pelo espaço.
4
Nesse movimento, o olhar percorre as figuras de Zumbi, Bob Marley, Martin Luther
King e Steve Biko, grafitadas contra um fundo de cores fortes na parede em frente. O recorte
de uma janela interior emoldura o tecido pintado com a imagem de duas zebras numa
paisagem de savana, no corredor. A própria janela, assim como os dois vãos de portas desta
sala, é emoldurada por cortinas em padrão zebrado, preto e branco (as cores da escola) 4.
Impossível não lançar um breve olhar aos dois jogadores no centro: andando sobre quatro
apoios, encarando-se por baixo das pernas, fazem uma imagem-duplo das zebras estampadas
na parede.
Nesse mesmo momento, alguém da roda me sinaliza, com o olhar e a mímica do gesto
de tocar, que quer pegar o agogô. Estando na roda de capoeira, na posição em que for, o olhar
precisa captar muitas informações ao mesmo tempo. Levanto, ainda tocando até que a pessoa
chegue para eu então passar o agogô para suas mãos. Saio bem colada à borda da roda,
esquivando-me rapidamente dos pés de um dos jogadores (chego a sentir o ventinho deles
passando rente à minha cabeça).
Desde minha almofada, bem sentada, com a única tarefa de responder o canto no coro,
o olhar está mais livre para deixar-se levar pelo jogo. Mas, talvez efeito do momento anterior,
não consegue desprender-se das paredes. Fica, então, num jogo de figura e fundo, olhando
pernas e pés que passam na frente do olho de Xangô na parede, logo atrás do Guto. Como
uma imagem, configura-se em minha mente o pensamento de que não deve ser à toa que o
orixá do mestre está colocado bem no lugar do Gunga – lugar de onde se comanda a roda. É
um meio rosto de Xangô, negro, enfatizando o olho, sério, cabeça coberta de búzios, com seu
machado de duplo corte empunhado próximo ao rosto. Tem um pouco mais que a altura de
Guto, sentado no banco, empunhando seu berimbau, a postura ereta e móvel, um leve balanço
do corpo que repercute no próprio instrumento. O berimbau é quase o machado desse Guto-
tornado-Xangô numa espécie de fusão imagética. Como se ambos – o mestre da roda e o orixá
– se animassem mutuamente, criando e se alimentando da atmosfera que agora impregna o
espaço.
Acredito que o exercício concentrado nesse procedimento técnico contribuiu para iluminar as sutilezas da
percepção presentes nesta descrição.
4 As cores, segundo Guto, vêm da vontade de preservar uma ligação com a ACANNE (Associação de Capoeira
Angola Navio Negreiro, seu antigo grupo, cuja sede fica em Salvador, e é coordenado por mestre Renê),
através do branco, e ao mesmo tempo marcar uma nova identidade. A escolha final do preto para compor com
o branco faz uma referência ao N'Golo, ou “dança da zebra”, tida como uma dança africana que estaria nas
origens da capoeira (uma das versões da história aceita pela ACANNE e pela Áfricanamente).
5
Meu olhar então pousa sobre o símbolo da escola – círculo preto e branco, o mapa da
África, silhuetas de dois capoeiristas no centro. Não posso deixar de perceber um sorriso no
canto de meus lábios, reflexo do reconhecimento de que afinal posso contemplá-lo parado. Ou
melhor, eu parada, habituada que já estou a este símbolo como referência visual buscada
desde as mais insólitas posições, visto desde os ângulos mais absurdos. Dou-me conta, então,
de que o símbolo é amparado, de um lado, por Xangô; do outro, por uma Iemanjá negra e
gorda, trajes de baiana, espelho em punho, a outra mão em gesto de bênção. Na parede
contígua, uma Iansã negra e jovem, vestida apenas com um tapa-sexo, agita longos cabelos e
empunha uma espada, o corpo todo engajado num movimento de luta, acompanhada por um
Xapanã, o corpo todo coberto de longos fios de palha.
Nessa disposição, em paredes frente a frente, Zumbi, Bob Marley, Martin Luther King,
Steve Biko, fazem uma espécie de correspondência com os orixás: ícones de cunho político,
histórico, mitológico, se espelham e reúnem para constituir a “África-na-mente” no momento
de praticar a capoeira neste espaço. Justamente a parede de ligação entre estas duas é
decorada por um imenso mapa da África, que serve de fundo para as silhuetas de dois
capoeiristas jogando.
Os pares de jogadores no centro da roda se sucedem. A cada vez, entram os que
estavam sentados mais próximos da bateria, um de cada lado, fazem seu jogo e se retiram,
para então sentarem na roda (na parte mais afastada da bateria) ou assumirem o lugar de um
dos tocadores, liberando-o para jogar. Assim, entre um jogo e outro, a roda está sempre em
movimento. Depois de certo tempo que parei de tocar, não fico mais de frente para o símbolo
da escola, mas para a parede onde estão Iansã e Xapanã. Não os vejo mais tão claramente:
deste ângulo, sentada no chão, o atabaque e seu tocador cobrem-nos quase por inteiro.
É nesse momento que escuto um novo Iê! curto do Guto, seguido da pausa imediata da
bateria. E é só nesse momento que me percebo ocupando o lugar mais próximo dos
instrumentos. Ou seja: é minha vez de entrar na roda para jogar. Será que entro? Não tenho
tempo de pensar. Para completar meu pânico, é o próprio Guto que passa o berimbau para
Rogério, instrutor da escola, e me chama para jogar com ele. Não há o que fazer, não tenho
para onde fugir. Ele está ali, me olhando sorridente, amarrando os dreads atrás da cabeça, seu
gesto característico antes de começar um jogo. Movendo-me muito lentamente, passo da
posição sentada para a acocorada ao pé do berimbau. (Quem sabe posso prolongar este
momento ao máximo e nunca passar dele?) Nenhuma consciência dos meus movimentos,
6
nada a não ser um ligeiro nó na garganta. Guto se agacha na minha frente para escutarmos a
ladainha cantada por Rogério. Ele baixa a cabeça e é então que meus olhos pousam sobre os
quadros pendurados logo acima do atabaque: duas linhagens de mestres, começando de um
lado por Aberrê; do outro por mestre Miguel, terminando no Guto5. Surpreendo-me ao
perceber que a imagem me tranquiliza: ele, Guto, está ali para me ensinar, afinal.
No âmbito de uma antropologia de orientação fenomenológica, abri este texto com a
descrição, desde o corpo, do que acontece nos treinos e, agora, do espaço no qual se
desenrolam, na Áfricanamente, rodas de capoeira todas as sextas-feiras. Desse ponto de vista,
na primeira cena nos deparamos com a desorientação provocada pela contínua mudança de
perspectiva: perdendo a referência habitual do mundo visto a partir da posição vertical, o que
sobra? Num primeiro momento, nada sobra, é um esvaziar. É o primeiro passo para se deixar
impregnar por outras imagens, percepções do mundo. O símbolo da escola, os líderes
políticos negros, as entidades mí(s)ticas, as sonoridades, não remetem a uma identidade
negro-africana ou sequer angoleira por si só. Tal construção é resultado de um processo de
objetificação: esse imagético6 é corporificado, por meio de uma impregnação lenta e gradual,
que instaura, no corpo do sujeito, a experiência de ser angoleiro, no momento mesmo em que
constrói o sentido desse “ser angoleiro” enquanto objeto cultural.
O “desconstruir” de um corpo cotidiano é parte fundamental do processo, aliado às
construções de sentido coletivas, promovidas no espaço das histórias contadas nos finais de
treino, cantadas nas ladainhas, dos comentários sobre a movimentação de uns e de outros, no
aprendizado de uma sensibilidade estética específica, onde vão-se estabelecendo os critérios
para que se considere uma atuação exitosa nesse universo, e onde os sentidos de uma
africanidade incorporada vão sendo coletivamente construídos e individualmente agenciados.
Mais do que pensar os aspectos expressivos como meras representações de uma
africanidade reivindicada pela capoeira Angola, trato aqui de compreendê-los como a
materialização instauradora de uma cosmologia. No caso, uma cosmologia que se constrói
5 As duas linhagens de mestres são consideradas referências para o Guto: de um lado, estão os mestres Aberrê,
Canjiquinha, Paulo dos Anjos e Renê (o único ainda vivo); do outro, Miguel e Ratinho.
6 Thomas Csordas pontua que se trata de um “imagético multissensório”: “imagens complexas em mais de uma
modalidade sensorial ao mesmo tempo” (Csordas, 2008:124). Uma vez que utilizo o paradigma da
corporeidade aliado ao da performance, segundo o qual a noção de imagem não está estritamente vinculada à
visão, mas remete ao imaginário, atualizado constantemente por uma multiplicidade de meios que tocam a
sensibilidade, a expressão “imagético multissensório”, aqui, torna-se redundante. No âmbito deste texto,
fique claro, entendo todo imagético como eminentemente multissensório, na medida em que diversos
sentidos estão sendo mobilizados simultaneamente na apreensão e conformação das imagens pelo sujeito.
7
com referência à África. Pouco importa a esta altura pensar o quanto de “África mesmo”
existe nessas reivindicações.
Investindo na proposta de mergulhar na experiência de tornar-me angoleira, interessa
compreender que mundo possível estamos instaurando no exercício dessas práticas, e através
de quais recursos e procedimentos. Interessa, portanto, aprofundar os conceitos constitutivos
dessa cosmologia, que não são dissociados das formas através das quais ela se materializa
(Tambiah, 1985).
Paul Gilroy (2001), ao analisar as manifestações expressivas oriundas da diáspora
negra, debruçando-se mais especificamente sobre as formas literárias e musicais da diáspora
anglofônica, observa que tais manifestações põem em cheque o próprio paradigma da
textualidade através do qual têm sido repetidamente analisadas. Propõe, então, que levemos a
sério a dimensão performática dessas expressões como forma específica de produção e
veiculação de conhecimento sobre o mundo, que exige uma reformulação conceitual para sua
compreensão.
Pensar a capoeira enquanto performance é mergulhar nessa perspectiva, atentando para
as formas que materializam a africanidade nos movimentos e sons que compõem essa prática.
A partir dos extratos de treinos e rodas apresentados até aqui, quero chamar a atenção para
três componentes fundamentais dessa estética: a estrutura de pergunta-e-resposta, a
improvisação e a circularidade.
Em termos de movimento, como vimos, primeiro aprende-se um repertório básico de
ataques e defesas, para então buscar relacionar-se com um parceiro, improvisando a partir
desse repertório. As posições de cima e baixo perdem sua relação de antagonismo para se
situarem como pontos de um espaço circular, onde a fluência entre elas ganha mais
importância que uma ou outra isoladamente. É o que vivi, no início dos treinos, como
experiência de desorientação: primeiro é preciso desconstruir a predominância da vertical,
aprendida ao longo de anos de socialização. Em seguida, abre-se o espaço para habitar outras
possibilidades de organização corporal, adotando outras referências visuais e sensoriais.
É através desse corpo, cujas possibilidades de orientação espacial não estão mais
vinculadas à posição vertical (de cabeça para cima) e à frontalidade, mas opera a partir de
uma experiência da circularidade e da tridimensionalidade, que entramos em relação de
comunicação com um parceiro. Mesmo se partilhamos um repertório comum, a tônica da
comunicação é a improvisação, e o jogo consiste em surpreender o parceiro/adversário tanto
8
com perguntas quanto com respostas inusitadas. Não por acaso, a forma do encontro é
também circular e habita esse espaço tridimensional, como se os dois, ao centro de uma roda,
fossem por vezes uma única bolha em movimento.
7 Um “jogo”, nesse caso, indica o encontro entre dois jogadores, marcado, através dos cumprimentos ao pé do
berimbau, por um início e um final. Quando dois jogadores se retiram do centro, e outros dois o ocupam, diz-
se que é um novo “jogo”, sendo que a sucessão de “jogos” compõe o ritual da roda. Quando dizemos “o jogo
da capoeira”, entretanto, referimo-nos à prática como um todo, no mesmo sentido em que usamos, por vezes,
expressões como “a arte da capoeira”, “a luta da capoeira”, e assim por diante.
9
estrutura. Além disso, estão vinculados a uma cosmologia da qual emergem e a qual
constituem em ato. O autor precisa:
Por “cosmologia” quero dizer o corpo de concepções que enumeram e classificam os
fenômenos que compõem o universo como um todo ordenado e as normas e processos que o
governam. Do meu ponto de vista, as principais noções cosmológicas de uma sociedade são
aquelas que orientam princípios e concepções tidas como sacrossantas, constantemente usadas
como referências e consideradas dignas de perpetuação relativamente imutável. Assim,
dependendo das concepções da sociedade em questão, seus códigos legais, suas convenções
políticas e suas relações sociais de classe podem ser tão fundamentais para sua cosmologia
quanto suas crenças “religiosas” no que se refere aos deuses e ao sobrenatural (Tambiah,
1985:130, aspas no original)8.
Seguindo com Tambiah, é importante precisar que o ritual não apenas se refere a
construtos cosmológicos que dizem respeito a um outro nível, digamos, superior ao da vida
ordinária. Os próprios “construtos cosmológicos estão fundados (claro que não
exclusivamente) nos ritos, e estes ritos, em contrapartida, encenam e encarnam concepções
cosmológicas” (Tambiah, 1985:130). Não há, portanto, um conteúdo completamente existente
a priori, mas uma realidade que é construída através do ritual, “como um meio de transmitir
sentidos, construir a realidade social ou (…) criar e trazer à vida o próprio esquema
cosmológico” (Tambiah, 1985:129). Assim é que encenar essa cosmologia afro-referente na
roda de capoeira é não apenas nos remetermos a ela mas, literalmente, dar-lhe existência.
Considerando as margens de improvisação, é coerente pensar que a cosmologia, mesmo
guardando um caráter de imutabilidade, é constantemente reinventada e atualizada pelos
sujeitos.
Se a cosmologia guarda um caráter de imutabilidade, que forma pode adquirir sua
encenação? A “sensação de repetição” experimentada na participação em rodas de capoeira é
um aspecto central da ritualização do evento. É um recurso formal que constitui na própria
experiência o sentido de imutabilidade dessa cosmologia, criando o que tanto Stanley
Tambiah como Victor Turner reconhecem como tradition-like effect9. Esta sensação de que
“sempre foi assim” se constrói acionando uma múltipla temporalidade: na experiência vivida
8 Todas as citações de referências em inglês foram traduzidas por mim exclusivamente para este texto, a fim de
promover a fluência da leitura.
9 Os dois autores tomam este conceito a partir da formulação de Sally Moore no âmbito de uma antropologia
dos processos judiciais (Moore, 1977). O que muda são os usos que ambos fazem, e que busco mobilizar
como complementares neste trabalho. Turner (1987) parte da observação de que mesmo a aparente fixidez
das leis é fruto de um processo constante envolvendo movimentos de fixação e espaços de indeterminação,
para construir a abordagem dos rituais como enquadres privilegiados para observar esse processo. Já Tambiah
(1985), sem discordar dessa perspectiva, busca investigar os mecanismos através dos quais essa dinâmica
opera, enfocando os aspectos formais – repetição, estilização, ordenamento, estilo de apresentação evocativo
– apontados pela autora como recursos através dos quais o ritual imita os processos e imperativos rítmicos do
cosmos, conferindo um sentimento de permanência e legitimidade ao que, de fato, são construtos sociais.
10
naquele momento, temos a sensação de ações que se repetem continuamente; tais ações
remetem à nossa memória individual da participação em outras rodas, a qual, por sua vez, está
também alicerçada numa memória coletiva. Esta, articula novamente essas diferentes
temporalidades, uma vez que é constituída tanto pelos cantos e comentários feitos naquele
momento, quanto em situações de convivência cotidiana, fora do enquadramento do ritual.
Esse sentido de imutabilidade nos fala do mecanismo de instauração de uma
cosmologia através do ritual. Nesta abordagem, entendemos que forma e conteúdo não têm
existência autônoma, mas constituem-se mútua e continuamente. Assim, na observação das
formas – do movimento corporal, dos cantos, das posições ocupadas, das disposições
espaciais, da ordenação dos acontecimentos – podemos reconhecer alguns elementos dessa
cosmologia afro-brasileira: a circularidade, o trânsito entre posições, a hierarquia, a
ambivalência. Um mundo onde tudo pode ser o seu reverso no momento seguinte e que, num
aparente paradoxo, estrutura-se a partir da noção de uma tradição muito rígida a ser
preservada.
A roda de hoje na Áfricanamente já está adiantada quando Guto chama para jogar:
Ademolu e Helô. Eu? Ele só acena com a cabeça. Absolutamente pega de surpresa, uma vez
que estava sentada ainda bem longe das laterais por onde se entra na roda, não tenho muito
espaço para negociações. Quando estamos no pé do berimbau, Guto diz para ele (que, apesar
de muito mais novo que eu, com uns 14 anos, já tem um tanto a mais de experiência na
capoeira): ajuda ela a jogar. O jogo com Guto fora uma relação quase “de pai pra filha”:
independente de termos quase a mesma idade, ele estava claramente na posição de me acolher
naquele espaço, de ensinar. Hoje tenho a sensação de que é, de fato, meu primeiro jogo numa
roda. Mil sensações e um vazio de pensamento habitam meu corpo, minha mente. Apenas
escuto Rogério puxar o canto:
Moço que coisa mais linda
diga pra mim o que é
moço isso é capoeira Angola
luta de bater com o pé
O coro responde a mesma estrofe. Guto inclina o berimbau entre nós, sinal para
começarmos o jogo. Ademolu sorri, olhando-me nos olhos. Sorrio de volta, apertando a mão
que ele me estende. Ele sai apoiando a cabeça no chão, jogando as pernas por cima num aú.
Tento fazer algo parecido, tateando o chão com os pés até ter coragem de suspendê-los por um
átimo de segundo. Muito menos do que já consegui fazer em treino, diga-se de passagem. A
11
consciência de tantos olhos me observando, de estar no centro, como que congela meus
movimentos e minhas possibilidades de arriscar.
Nascida na necessidade
pro negro se defender
nessa vida passada ô iaiá
era matar ou morrer
Mal consigo perceber sua meia lua – uma perna que passa, estendida e suave, à altura
do meu tronco – para então fazer uma esquiva, e escuto a voz da Olori: isso aí Helô! Ora, uma
meia lua lenta e suave como aquela não era exatamente o que se chama de um movimento
perigoso, e a esquiva não foi uma saída em nada brilhante. Seu comentário não é mais do que
uma forma de me encorajar. E que funciona! Sinto algum lugar em meu corpo – a testa! –
soltar um pouco. Ademolu, ele, sorri tranquilo o tempo inteiro. Mesmo com este primeiro
relaxar, meu coração continua prestes a sair pela boca a qualquer momento, e pensar ainda
não é a coisa mais fácil do mundo.
Moço que coisa mais linda
fale pra mim o que é
moço isso é capoeira de Angola
luta de bater com o pé
12
pé de cada lado de meu tronco. O resultado é exatamente isso que se imagina: fico,
literalmente, de cara para a bunda dele. Nesta situação, no centro de uma roda cheia de gente
que não perde uma boa ocasião de debochar, vá saber para onde olhar, que dirá para onde sair!
Ademolu só me olha por baixo das pernas e ri, divertido. Acabo, nem sei como, girando sobre
mim mesma, de modo a ficar com o rosto para o chão, e saindo, então virada de costas para
ele, pelo meio de suas pernas. Guto comenta, do berimbau: mas ah! Helô, hein?! E entendo
que foi uma saída minimamente digna.
Nascida na necessidade
pro escravo se defender
na escravidão do passado ô meu Deus
era matar ou morrer
Não posso deixar de sorrir ouvindo a voz de Rogério que, no improviso, me lembra de
que era matar ou morrer. Justamente nesse momento, Ademolu marca uma rasteira, sem
efetivamente puxar o pé para me derrubar. Escuto um opa! vindo da roda, uma voz que não
identifico. Ele não me derruba simplesmente porque não quer: está me deixando jogar,
conforme a orientação de Guto (claro que isto é algo que posso dizer hoje, olhando
retrospectivamente o vídeo da cena). Eis que, encorajada por não ter caído ainda, e pelos
comentários em torno, consigo entrar uma perna próxima a seu rosto. Há uma empolgação em
torno: risadas e algumas vozes que soltam ô iaiá! Olha a Helô!
Moço que coisa manhosa
mostre pra mim como é
moço isso é capoeira Angola
luta pra homem e mulher
Ao mesmo tempo feliz e exausta, já não tenho mais muita consciência de meus
movimentos: é apenas a sensação das pernas muito cansadas e de uma certa leveza no tronco
(uma sensação que eu iria experimentar ainda durante muitos jogos). É como se eu mais me
deixasse mover – como sendo levada pela corrente de um rio – do que fosse, eu mesma,
agente do meu movimento. Saindo de um esforço supremo para fazer um aú com cabeça no
chão, percebo Ademolu me esperando, de pé, próximo ao berimbau. É só então, através de
sua mímica de quem já está ali há horas (acompanhada de um sorriso carinhosamente
debochado), que me dou conta de que Guto devia estar nos chamando para terminar o jogo há
algum tempo. Abraço meu companheiro de jogo e saio para me sentar na roda.
A respiração ofegante, o coração continua parecendo que vai sair pela boca, mas agora
de pura aceleração decorrente da movimentação intensa: a ansiedade desapareceu por
13
completo, sendo substituída por uma sensação de alegria intensa, e pela percepção de um
relaxamento quase total dos músculos. Como em meu primeiro treino, este momento é, de
certa forma, “só um esvaziar”. Ao mesmo tempo, é deixar-se impregnar pela música e pela
imagem de Ademolu que agora segue jogando com Edson, um negro alto e magro, mais velho
que ele (uns vinte e poucos anos), com uma experiência equivalente ou superior na capoeira, e
a fama de ser um adversário perigoso. Se o jogo é um desafio especialmente para Ademolu,
para nenhum dos dois há mais o conforto de simplesmente “deixar o outro jogar”. Guto sorri
para meu ex-adversário: agora é que eu quero ver.
Voltando a sentar na roda agora, depois de ter jogado, percebo-me ocupando uma
posição diferente daquela de onde saí, minutos antes. O que mudou? Ou melhor: como
compreender esta mudança?
No plano empírico, é apenas após ter jogado que começo a entender, no meu corpo, o
que Guto e outros mestres e capoeiristas experientes não cansam de afirmar: que capoeira se
aprende mesmo na roda, na hora do vâmo vê. Ora, vimos a diferença na percepção do ritmo
da música e do movimento conforme as posições ocupadas. É só no momento em que se está
no centro da roda que se aprende, literalmente, a pensar rápido. Ou, melhor dizendo, a
“pensar com o corpo” e conseguir expressar-se através do repertório de movimentos
específico da capoeira (entre outras coisas, o não-domínio deste repertório específico pode ter
sido uma das dificuldades por mim enfrentadas, a despeito da experiência em outras situações
de performance).
No plano analítico, alguns pontos-chave de uma abordagem via antropologia da
performance são fundamentais para avançar na reflexão acerca de como se opera a mudança
de posição nesse antes e depois do jogo. Vimos que a dimensão ritualizada da roda é
facilmente reconhecível pela repetição de uma sequência ordenada dos acontecimentos,
referenciada numa cosmologia partilhada (traduzida pela ideia de uma “matriz africana”).
Cria-se assim o que Turner, Tambiah e outros autores chamaram de “tradition-like effect”, a
sensação de que uma coisa sempre aconteceu daquela forma.
Essa ordem se estabelece através da prática das regras aprendidas durante os treinos,
mas cujo domínio só se adquire no momento de participação efetiva na roda, quando somos
chamados a dar respostas adequadas (conforme o código coletivamente partilhado) às
situações mais ou menos imprevisíveis. Filiando-me a tais autores, compreendo esta dimensão
ritualizada a partir do paradigma da performance, segundo o qual as regras existem não só
14
apenas ao serem praticadas mas, principalmente, ao terem esta prática enquadrada pela
situação de encenação. Não adoto aqui uma distinção fundamental entre ritual e performance,
entendendo ambas como dimensões presentes e constituintes da roda de capoeira10. Em última
instância, então, pensá-la como performance é a observação de um fenômeno reconhecível no
plano empírico através de um recorte analítico específico. Desta forma, entrar na roda é um
passo fundamental no processo de tornar-se angoleira na medida em que a roda, ela mesma, é
entendida como instauradora de um espaço de reflexividade.
Para desenvolver este modo de olhar, minha principal referência é a abordagem de
Victor Turner para os estudos de performance no campo antropológico, desenvolvida em
intensa colaboração com as teorias advindas do campo teatral (e especialmente com Richard
Schechner). O ponto que me interessa aqui é a relação construída pelo autor entre a realidade
social e as encenações estéticas. Para analisar esta relação no plano empírico, Turner começa
estabelecendo uma posição metodológica onde o estudo da sociedade é
o estudo dos processos, não como exemplificando comprometimento com ou desvio
de modelos normativos, tanto éticos quanto êmicos, mas como performances. Performances
nunca são amorfas ou abertas, elas têm uma estrutura diacrônica, um começo, uma sequência
de fases sobrepostas mas isoláveis e um fim. Mas sua estrutura não é a de um sistema abstrato;
é gerada fora das oposições dialéticas dos processos e dos níveis do processo (Turner,
1987:80).
A estrutura dos gêneros performáticos, portanto, não vem de um lugar qualquer,
indiferenciado, mas emerge da própria realidade social. De acordo com Turner, ainda
o homem é um animal auto-performatizante [self-performing] – suas performances
são, de certa forma, reflexivas, na performance ele se revela a si mesmo. Isto pode acontecer
em dois sentidos: o ator que pode vir a conhecer-se melhor através da atuação ou encenação;
ou um conjunto de seres humanos pode vir a conhecer-se melhor através da observação e/ou
participação em performances criadas e apresentadas por outro conjunto de seres humanos
(Turner, 1987:81).
Significa dizer que um dos aspectos da ação humana é ser orientada para uma
audiência. A ação do sujeito é então considerada a um só tempo apresentação e constituição
de si. Não existe uma oposição entre esses dois termos: numa medida, a própria constituição
10 A distinção entre ritual e performance já foi objeto de vários debates. Do ponto de vista que adoto aqui,
torna-se uma não-questão. Quer dizer, uma questão que pouco contribui para a perspectiva desde a qual
problematizo o universo da capoeira. Basicamente, a partir de Victor Turner (1987) e Richard Schechner (1985,
2002), compreendo que rituais possuem dimensões performativas, assim como performances estéticas possuem
dimensões ritualizadas, um ou outro aspecto sendo valorado pelos próprios praticantes diferentemente conforme
o contexto de interlocução. A partir de Stanley Tambiah (1985), adoto igualmente a perspectiva de uma
abordagem performativa dos rituais, a qual, a meu ver, propõe uma solução criativa para o aparente dilema,
colapsando falsas dualidades e permitindo uma abordagem mais adequada para responder à fluidez da vida
social.
15
se faz através da apresentação de si. Os enquadramentos performáticos permitem, através de
uma suspensão da relação ordinária tempo-espaço, a consciência da audiência como um olhar
do outro enquanto um 'não-eu' e, através dele, a consciência de si, num constante jogo de
espelhos. É esse mecanismo que permite pensar os gêneros performáticos como emergentes
de uma dada realidade social que os conforma e à qual retornam, numa relação reflexiva.
Como se este contínuo entre performance e vida cotidiana se desse não de forma linear, mas
na forma de um oito deitado (ou de uma banda de Moebius11).
Podemos, então, pensar a roda de capoeira como uma performance na medida em que
instaura um tempo-espaço distinto do cotidiano através da manipulação de uma multiplicidade
de meios expressivos, obedecendo a uma estética específica, como vimos até aqui. Pensar a
instauração da reflexividade como modelo da relação entre evento performático e vida
cotidiana nos permite, então, retornar à questão enunciada de como voltar a sentar na roda
após ter jogado pode ser voltar para uma posição diferente daquela da qual saí minutos antes.
Dessa maneira, podemos identificar alguns mecanismos através dos quais este evento pode
configurar-se como uma arena reflexiva para os sujeitos envolvidos.
Vimos os ganhos e perdas de cada capoeirista serem comentados no momento da roda,
em frases ou outras manifestações de comemoração ou deboche. Às vezes alguns aplaudem,
riem, alguém solta: ô iaiá!!! (que é tanto elogio a quem pegou como alerta a quem foi pego).
Nesses comentários, estão sempre presentes as posições ocupadas por cada jogador no
universo da capoeira. Por isso é que, quando jogo com Ademolu, o grupo em volta vibra mais
na única vez em que consigo pegá-lo, do que nas tantas outras que ele me acerta durante o
jogo. Ao mesmo tempo, o simples fato de cair pra dentro, de entrar na roda para jogar, já me
faz avançar um pouco mais no sentido de me tornar uma angoleira. Mesmo que seja, no
início, entrar para tomar rasteira, ficar ridiculamente de cara para a bunda do outro. Significa
que estou no jogo.
Além de situar minha posição como alguém “de dentro”, os comentários em torno
potencializam minha consciência de ser observada. Vale pontuar que tal consciência está
igualmente enraizada na experiência anterior de ter, eu mesma, ocupado essas outras posições
de onde vêm os comentários, assumindo o papel de observadora (inclusive comentando as
11 A Banda de Moebius é uma figura geométrica “criada a partir da junção de das duas extremidades de uma
banda, cujas faces passam a ser simultaneamente internas e externas” (Fernandes, 2000:34). É uma imagem
utilizada pelo pesquisador do movimento Rudolf Laban para falar da relação do movimento de diferentes
partes do corpo, ou de relações do corpo com o espaço. É apropriada pela bailarina e pesquisadora Ciane
Fernandes para analisar a construção do sentido na obra da coreógrafa Pina Bausch.
16
ações de outros jogadores). Estando no centro da roda, essa consciência é experienciada e
produz efeitos concretos no corpo – tenso, no início, relaxando conforme os comentários do
cantador e da audiência, tornando-se pouco a pouco mais eficaz no jogo. Ao mesmo tempo,
essa reflexividade, produtora de efeitos concretos no corpo, aponta para a própria
performance como uma dimensão central, constitutiva do universo da capoeira. Basicamente,
só existe de fato, nesse universo, o que está performaticamente em jogo, uma vez que tudo
está vinculado ao reconhecimento coletivo para existir. A relação entre as duas dimensões –
do corpo e do coletivo – então, é o que faz com que voltar a sentar na roda seja voltar para
uma outra posição, com outra experiência do corpo no mundo, percebido então como outro
mundo.
Finalmente, a questão que emerge da experiência vivida na Áfricanamente diz respeito
ao potencial político da roda de capoeira Angola enquanto performance. Numa certa medida,
ao experienciar essas mudanças de posições – dentro e fora da roda – num espaço povoado
pela estética da africanidade, o quanto desse mundo afro-referente vai impregnando nossos
corpos e nos constituindo enquanto sujeitos também referenciados numa matriz africana,
independente de nossa cor de pele? E, ao habitarmos temporariamente (e reflexivamente) esse
mundo possível, o quanto somos capazes de nos posicionar de outra forma nos espaços para
além do universo circunscrito da capoeira?
Bibliografia
CSORDAS, Thomas. Embodiment and experience. The existential ground of culture and
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17
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18
Coreógrafos em campo: criadores da dança negra no Brasil e suas mediações com
a cultura.
Comunicação Oral.
Reconhecer como estes artistas formulam um saber fazer cênico a partir de suas
vivencias com o saber fazer das comunidades, ajuda a entender como cada intérprete
vivencia e reconfigura sínteses poéticas sobre os saberes da cultura afro-brasileira e
africana em seu processo criativo, agenciando-os como materiais cênicos de sua criação.
Por estas mediações elaboram-se conhecimentos sobre o corpo, a memória e a cena
desta linguagem da dança brasileira.
Juliana Ferrari
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA
NuMiollo – Núcleo de Investigação da Cena
julianaferrarirosa@gmail.com
A pesquisa para realização de “Zuzu de Seus Anjos” teve início no ano de 2006
quando eu ministrava, como docente substituta da Escola de Teatro da Universidade
Federal da Bahia, dentre outros, o componente curricular Ética e a Organização do
Teatro no Brasil. Para circunscrever o tema fiz uma breve introdução a alguns conceitos
básicos no campo da filosofia, e parti para a definição da vida ética como a da não
violência, de acordo com o pensamento da filósofa Marilena Chauí 1, e de conceitos
desenvolvidos pela filósofa Judith Butler 2. Desejava eu então suscitar discussões sobre
a forma como os laços de afeto que unem as pessoas, quando ameaçados, são a quebra
da segurança básica necessária a um convívio humano não violento. Neste mesmo ano
foi lançado “Zuzu Angel – O filme” 3. Fui assisti-lo por causa da crítica escrita por Emir
Sader, intitulada: “Zuzu incomoda” 4. Trouxe então a discussão para a sala de aula, os
estudantes da graduação em interpretação teatral foram incumbidos da tarefa de também
assistirem ao filme.
O que mais me tocou, na época, foi o fato de ter trazido para a sala de aula o
debate sobre o filme, que eu havia indicado e julgava haver suscitado algum interesse
em meus estudantes, uma crença que se alicerçava também no fato de o filme trazer
atores conhecidos pelo trabalho em televisão e ser contado por meio de uma narrativa
bastante próxima da televisiva, quase novelesca, e que eu sabia exercer um certo
encanto sobre meus estudantes do curso de bacharelado em interpretação teatral,
especialmente a turma com quem eu trabalhava o componente curricular em questão.
Fiquei tocada profundamente por essa citação que passa de raspão no filme, e
passei a pesquisar as condições da morte de Sônia. Percebi então que eu estava diante de
uma estória terrível, dentre as muitas outras que eu já conhecia desde a adolescência
pelos relatos de meus pais e pela leitura de “Brasil, Nunca Mais” 5. Percebi que aquela
história trazia os muitos elementos de uma encenação de Nação – a qual estávamos
começando a compreender, no curso da Pós, em suas condições performativas. O fato
de Sônia haver sido seviciada e morta com o uso de um cassetete me parecia óbvio
demais e não poderia ser ignorado, no que tangia à utilização de um objeto emblemático
de poder e autoridade e ligado inexoravelmente à nossa constituição como Nação.
Utilizamos como palavras equivalentes o cacete, no sentido de pênis, bem como com
sentido de tradicional instrumento colonial de bater, utilizações que incluem ainda o
termo derivado cassetete, como arma dos policias para patrulha das ruas.
O que mais despertou meu interesse no trabalho de Taylor era o pensar a Tortura
como violência inscrita no corpo, pensar nas formas de representação desta violência, na
necessidade de recompor estes corpos, de apresentá-los 7. Meus alunos da graduação em
uma universidade pública, a maioria advindos de bons colégios particulares da capital
soteropolitana, desconheciam completamente esta história, mais uma vez me pareceu
óbvio demais que os corpos tivessem sido torturados e desaparecidos materialmente, e
da história oficial também. Além disto, sua indiferença era um sintoma gritante daquilo
8
que a autora intitulou percepticídio na cultura argentina, derivado de uma
naturalização da violência, especialmente a violência gerada pela tortura. Quem assistiu
ao filme não se chocara com os acontecimentos hediondos ali relatados. Especialmente
no Brasil onde não apenas os crimes promovidos pela ditadura militar permanecem
impunes, mas permanecem em arquivos fechados, a tortura e a violência do
desparecimento continuam a ter um impacto terrível ao longo do tempo, não apenas pela
falta de percepção dos crimes que ocorreram, mas por promover a naturalização dos
mesmos crimes que continuam hoje em dia a acontecer, contra as pessoas que não têm
condições humanas inteligíveis (nos dizeres de Butler) ou que sequer têm vidas viáveis
como seres humanos (vide o caso do menino Juan, para citar o exemplo midiático mais
próximo no tempo e com maior destaque nos meios de comunicação).
Esta cena de morte e tortura inscrita sobre um corpo feminino de uma escrava é
relatada por Almeida Prado no livro De Pernambuco e as capitanias do Norte do Brasil,
citado na obra do historiador Clovis Moura, em seu Rebeliões da Senzala, ao descrever
o que era uma prática comum contra os participantes das revoltas em navios negreiros.
Partindo do ponto de vista de que a vida não ética é a vida violenta, onde
estamos sujeitos à arbitrariedade do outro, onde o outro não nos reconhece como vida e
pode nos matar a qualquer momento, eu precisava levar a discussão sobre as
consequências da tortura para a sala de aula, e sentia necessidade de ultrapassar os
limites da Escola de Teatro da UFBA e também dar forma a esta discussão de maneira
artística.
O Dr. José Luiz Sobral (advogado da família) ao retornar das dependências do DOI-
CODI do I Exército, claudicava um pouco, e insinuava „ter levado umas cassetadas‟,
trazendo-me um presente inusitado: um cassetete da Polícia do Exército, mandado
pessoalmente pelo General Fiúza para a família, com a recomendação que não
falasse mais sobre o assunto, pois „todos estavam falando demais‟. Na ocasião, a
família guardou o cassetete sem lhe dar maior importância e só recentemente, há uns
2 (dois) anos, é que pude fazer a interligação dos acontecimentos, ou seja, conclui
estarrecido que o verdadeiro significado desse presente é que o mesmo General
Fiúza nos enviava, como advertência, o próprio instrumento que provocou a morte
de Sônia Maria. Este cassetete se encontra em meu poder, podendo ser apresentado a
qualquer tempo. 13
Quanto ao cassetete, pensávamos que ele deveria estar em cena, e que deveria
vir, com toda a violência, a sevícia, a público. Nossa preocupação, no entanto, era que
este não fosse um ato que pudesse ser em hipótese alguma sexualizado. Desta maneira
Alda Maria optou por retirar de dentro de sua roupa (utilizando um truque de mágica
que dava a ilusão de estar sendo retirado do meio das pernas) o cassetete, todo sujo de
sangue, em uma ação demorada acompanhada de um grito mudo. A retirada desmontava
a idéia da penetração peniana, tão cara aos militares como instrumento de tortura e
reafirmação de poder e masculinidade.
Por fim a “última” das versões, era a do Sargento Marival Chaves, membro do
DOI-CODI/SP de que o DOI CODI de São Paulo havia montado um "teatrinho" – termo
usado pelo sargento – para justificar a versão oficial de que foram mortos em
consequência de tiroteio, no mesmo dia 30 (teriam metralhado com tiros de festim o
casal e os colocado imediatamente num carro).
Os atores falavam destas várias versões dadas ao caso. Assim “Disseram que
Sônia foi morta com tiros”, “Sônia teve os seios arrancados”, “Meu corpo levou dois
tiros”, “Estou à procura dos meios seios”, são frases que se seguem na primeira e na
terceira pessoa, sendo que o uso dos dois modos era de fundamental importância, pois
sabemos que os sobreviventes da tortura sofrem processos de dissociação, inevitáveis e
necessários, entre o que são e seu corpo, entre o que são e o que foram antes da
violência, e que são uma maneira encontrada para elaborar e lidar com o que lhes
ocorreu, e sobreviver apesar disto. Já a cena do pai de Sônia, dava a versão da morte que
era a que ele conhecia, resultado de mais de vinte anos de buscas pelo corpo da filha e
pela verdade sobre seu desaparecimento, tortura e assassinato. A defunta está ali,
presente sempre ao seu lado, ele sofre com esta presença mas continua procurando por
ela.
A escolha de uma roupa formal para a representação do Pai situava esse sujeito
como mais um dentre os passantes, uma pessoa comum, vestida para trabalhar, mas os
pés descalços procuravam evidenciar o seu caminhar exaustivo para encontrar a
verdade. Ambos os atores se relacionavam com a terra e sua mistura com sangue, de
maneira a reportar visualmente à cova “comum” em que foi enterrado não apenas quem
morreu, mas quem permaneceu vivo, tendo toda a sua vida voltada para a tentativa de se
cumprir com dignidade um enlutamento, sua impossibilidade e a dor. Além da terra suja
de sangue o ator se relacionava com os objetos usualmente utilizados pelas meninas
para brincar, se comunicando assim com a filha morta e buscando reter na memória a
infância desta filha, a fragilidade de um corpo que era possível naquele tempo
proteger...
Dessa maneira termino por reencenar aqui a nossa “obra de arte”, na placa que
deixávamos para que permanecesse exposta em praça pública:
Título
SÔNIA MARIA
Materiais
Autores
Técnicas
Ano
ARNS, Paulo Evaristo, Projeto Brasil Nunca Mais. Brasil – Nunca Mais – Um relato
para a história. 1ª ed. Ed. Vozes, 1996.
BORDIEU, Pierre. Razões Práticas: Sobre a teoria da ação. Campinas; Papirus,
1996. 7ª Ed.
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Sedgwick. In: Performativity and Performance, Edited with an Introduction by
Andrew Parker and Eve Kosofsky Sedgwick, 1995, Routledge, New York & London.
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WAISMAN, Sérgio; Sônia Morta e Viva. Documentário. Brasil., Vídeo, son., color.,
1985. Dist. Inependente. 45 min.
Comunicação Oral
GT 3: Narrativa e oralidade;
Por conta desta realidade obscura, uma carta escrita neste contexto tem muito a dizer
sobre seus protagonistas. A leitura desta situação, o pano de fundo desta escrita, implica
em um complexo ponto de vista. Seu significado, embutido na contradição, revela e
atualiza os contornos desta estrutura social que já foi objeto de inúmeros trabalhos no
âmbito dos estudos sobre o Sistema Penitenciário em geral.
A inquietação que motiva a análise presente neste artigo procura avançar alguns passos
para além da representação já estabelecida sobre a situação do preso na prisão.
O segundo ato acolhe o preso em sua habitação. Algemas nos punhos e nos
tornozelos. O comportamento é robotizado, submisso as ordens dos agentes. Sete presos
um algemado ao punho do outro. Eles adentram obedientemente ao pavimento onde não
há silêncio. Quietos para não dar “vacilo”. Um som de dezenas de vozes falando ao
mesmo tempo produz um zunido constante. Ou seriam os ouvidos que estariam mais
aguçados? O som dos ferros, das chaves e dos cadeados. Os cheiros também ficam mais
acentuados. Cheiro de comida estragada e dejetos humanos . Cheiro de corpos suados sem
lavar. Um cheiro próprio do lugar, um odor que adere a pele. A cela que o espera abriga
mais de 12 pessoas de idades variadas. Ali não há camas, somente colchonetes e papelões
sobre bancadas de cimento. Algumas redes também disputam lugares no alto. Uma latrina
e um cano sem o chuveiro indica ser o banheiro. A pia serve de cozinha onde se vê um
pequeno fogareiro e um “rabo quente”, feito com a resistência do antigo chuveiro, para
esquentar água. Nas paredes, muitas fotos de mulheres nuas, tracinhos que contam dias,
que depois de certo tempo são abandonados e calendários igualmente marcados dia após
dia. Tudo parece ser improvisado. Uma névoa de fumaça de dezenas de cigarros dá um
toque fantasmagórico ao cenário. O preso entra, senta-se no chão e respira
profundamente. Os outros presos, geralmente os mais antigos, o recebem com uma
pergunta que é igual para todos: “ai mano, qual o artigo que tu caiu?”. Pergunta que serve
para avaliar se ele está no “X” certo. A noite chega e com ela a marmita chamada de
“blindada”, a mesma do almoço e contém arroz, feijão, salada, e carne com batata. E
como dormir não é possível, o jeito é ficar “zanzando” com os olhos até o dia amanhecer.
O isolamento começa a produzir seu efeito, uma sensação de compressão, um peso é
sentido no peito e na alma. A cadeia começa a pesar.
Isso mostra dois aspectos, dois pólos da mesma realidade. Como a maioria das
pesquisas neste campo apontam é possível visualizar a apresentação cada vez mais
especializada de uma vida socializada na delinqüência. Nela, diferentes modalidades de
crimes violentos se intercambiam. É também um olhar dirigido a camadas mais pobres da
população onde miséria, juventude perdida e criminalidade se articulam construindo a
representação cada vez mais monstruosa da população encarcerada, que “merece” o
tratamento que lhe é reservado. Por outro lado, a realidade das cadeias brasileiras é de
total abandono, hiperlotaçâo e desrespeito aos direitos mínimos do ser humano.
As cartas da prisão.
O ser humano reage de múltiplas formas à solidão e ao isolamento. Uma delas é
a busca do outro. O meio de comunicação alternativo ao isolamento é a escrita e, por
essa razão, a grande maioria dos presos escreve cartas.
Uma das mediações concretas entre esses dois mundos, o mundo de fora e
mundo de dentro da prisão se dá através da circulação das cartas. Em primeiro plano e
em grande medida, parte desta experiência é expressa pela narrativa em comum. Obtém-
se por meio delas uma versão sobre a experiência da prisão, uma narrativa que não
passa necessariamente, ou diretamente, pela versão institucionalizada, menos silenciosa,
quando consegue burlar a censura. Porém, em um segundo plano maior, seguindo o
caminho percorrido pela carta, desde o momento de sua produção até chegar ao seu
destinatário, uma gigantesca rede de relacionamentos se forma, pondo em movimento a
circulação tanto das cartas bem como de outros objetos.
As cartas dos presos constituem concretamente uma fonte de dados que são
interpretadas como um corpus narrativo que contrasta com a etnografia das experiências e
observações realizadas em campo. Elas têm em comum que seus Remetentes Primários,
ou seja, aqueles que dão o início à comunicação e solicitam que a carta seja aceita pelo
destinatário, estão presos. O campo de pesquisa neste sentido se dá duplamente: pelo
referencial geográfico, ou seja, a prisão como lugar, mas também; por uma situação, qual
seja, que os remetentes são pessoas que compartilham das contingências do banimento
social e do isolamento.
Nesse sentido, as relações estabelecidas para fazer com que a carta chegue a seu
destino, bem como o conteúdo narrado, destacam elementos das configurações das
histórias de vida destes personagens.
No contexto de trocas e favores, existem duas maneiras de enviar uma carta na
prisão. A primeira opção é submeter-se à via oficial e se render à censura do sistema. A
outra é recorrer à via paralela, uma rede de reciprocidade que burla a censura e a
vigilância e integra com mais verdade um circuito gigantesco no qual circulam cartas,
tanto para fora quanto para dentro da prisão.
Por meio desta etnografia foi possível distinguir dois grupos distintos de
remetentes que por sua vez produzem gêneros discursivos com diferentes expectativas:
A) cartas cujo conteúdo biografam suas vidas bem como as cartas familiares
levando em conta a condição humana expressada em solidão, doença, lealdade,
amizade, amor, estratégias de sobrevivência, injustiças, isolamento e a prisão
propriamente dita. Dizem respeito, ou, estão ligadas principalmente ao grupo de
prisioneiros com vínculo social mais comprometido com a família, amigos, vida social
constituída. Para este grupo, as cartas são dirigidas principalmente “de dentro para fora”
especialmente para figuras femininas, como a esposa no caso dos homens, à irmã, à mãe
e depois a filhos, amigos, sobrinhos etc. A carta neste sentido faz parte da circulação de
outros referentes que atualizam a memória e a presença do preso na “vida”. A prisão é
representada como um sofrimento e como uma lacuna temporal, um tempo da vida que
se perde. Semelhante ao paciente doente que tem de vencer a doença, o preso deve
vencer a adversidade da prisão.
Neste sentido, é possível ler as cartas também pelas ilustrações que elas
comportam. Uma mensagem simbólica associada à escrita, em que ambas, procuram
produzir mais força ao discurso, seja amoroso ou religioso. Este simbolismo se estende
aos cheiros, às dobras, ao tipo de material. Todos “falam” em conjunto.
Abordagem Performática
Ao narrar sua experiência, performatizar por meio da escrita uma ação de busca
do outro, se coloca entre a realidade e a ficção, aos quais ele não pertence nem a um
nem a outro, ou seja, encontra-se localizado “entre” eles, uma posição intermediária, ou
seja, o espaço da alteridade. Esse aspecto que ressalta o prisioneiro como o personagem
é construído pelo preso por intermédio de uma performance discursiva que pode ser
capturada em suas cartas.
4
DAMATTA, Roberto. Individualidade e liminaridade: considerações sobre os ritos de passagem e a
modernidade.Mana [online]. 2000, vol.6, n.1, pp. 7‐29. ISSN 0104‐9313.
alteridade nativa, ou seja um “Rosto” que surge “entre nós”5 atuando simultaneamente
no “ator” que o “interpreta” quanto na “platéia” com a qual interage.
5
LEVINAS, 1988.
6
As abordagens de análises culturais e sociais orientadas pela noção de performance
ocuparam um lugar de destaque na antropologia nas últimas décadas (Turner 1982; 1986;
Schechner 1985; Goffman 1974; Tambiah 1985; Grimes 1995). A maior expressão da
antropologia da performance é norte-americana, a qual surge em parte da sociolingüística, dos
trabalhos relativos a etnografia da fala e análises do papel da linguagem na vida social. Os
autores mais expressivos que constituíram este campo desde o final da década de 70 foram
Richard Bauman, Joel Sherzer, Gary Gossen, Dennis Tedlock, Charles Briggs e Dell Hymes.
reconhecidos e realizados nos atos performáticos e como seus significados emergem da
interação7.
7
Sobre uma abordagem mais ampla sobre a evolução do conceito de performance consultar: Performance
e sua Diversidade como Paradigma Analítico: A contribuição da Abordagem de Bauman e Briggs, por
Esther Jean Langdon, professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa
Catarina.
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A dimensão coletiva do relato pessoal em Histórias de Sem Réis
coelhomarciano@uol.com.br
Comunicação oral
GT 3: Narrativa e oralidade
A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as
narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos
inúmeros narradores anônimos.
(Walter Benjamin)
Este trabalho objetiva refletir sobre o depoimento pessoal enquanto matéria para a
elaboração da experiência coletiva. Baseia-se no registro em vídeo de depoimentos
coletados durante a intervenção cênica Histórias de Sem Réis, pelo Coletivo de Teatro
Alfenim, na Paraíba, nos meses de abril e maio de 2011. Para circunstanciar a análise,
julgamos necessário descrever de forma sucinta no que consiste a intervenção cênica,
uma vez que os depoimentos são parte integrante da performance.
*
Uma trupe de artistas de rua instala equipamentos para a apresentação de um espetáculo
a ser realizado em praça pública. O material cênico consiste em um piano eletrônico,
caixas de som, microfones, uma câmera digital e uma placa de duas faces com a
seguinte inscrição: COMPRO SUA HISTÓRIA. PAGO À VISTA. ATÉ CINCO
REAIS. O experimento tem início quando o “Apresentador” e sua “Assistente”
convidam as pessoas que circulam pela praça a contarem suas histórias, deixando claro
que se trata de uma relação de compra e venda.
O experimento cênico é híbrido, realizado por quatro atrizes, três atores e um músico.
Reúne canções acompanhadas ao piano; depoimentos; cenas em que as personagens,
criadas a partir de observações de rua, agem na fronteira entre representação e não
representação; um coro – das “mulheres dos policiais em greve” – e culmina na história
do “soldado Sem Réis, o insubornável”, apresentada segundo os procedimentos da
Lehrstück, a peça didática de Bertolt Brecht.
Depois das narrativas dos espectadores, os artistas de rua executam um número musical,
através do qual informam ao público que são negociantes de “histórias”. Terminada a
música, tem início um jogo cênico que será mantido ao longo de quase a totalidade da
performance: trata-se da promessa da apresentação da história do “soldado Sem Réis, o
incorruptível”. Entretanto, a ação dos artistas será sempre interrompida por incidentes
que impedem a narrativa da história do soldado. Primeiramente, surge “Deusdete”, a
mulher do policial em greve, desaparecido há três dias. Ela faz um apelo ao público para
que a ajude a encontrar seu marido “porque senão vai ter que arranjar outro”. A esse
apelo segue-se um número de participação direta do público: são selecionados três
pretendentes para substituírem o marido desaparecido. Após o jogo de perguntas e
respostas para a seleção do melhor candidato, é anunciado um novo número musical: a
“Canção do Artista Desempregado”. Quem canta é o ator que até então circulava entre o
público como um morador de rua, dependente de crack. A apresentação desorienta o
público por sua ambigüidade, uma vez que não se explica se aquele ator/personagem é
ou não integrante da trupe. Ao final do número, entra em cena “Dona Carola”, que se
apresenta como madrinha/fornecedora de drogas desse artista de rua. Ela surra o rapaz
advertindo-o para que fuja dos artistas por serem estes péssimas companhias, os quais
refutam seus argumentos dizendo que são trabalhadores. “Deusdete” e “D. Carola” se
encontram na praça e saem de cena para procurarem o marido desaparecido.
Em seguida, antes que os artistas de rua possam enfim dar início à história de “Sem
Réis”, entra em cena uma dupla de policiais: “Sargento Machado” e “Cabo Gorete”,
esta visivelmente bêbada. De forma truculenta, o policial exige dos artistas a
documentação que libera a apresentação em praça pública; enquanto “Cabo Gorete”
manifesta solidariedade pelo movimento grevista. Ela é repreendida severamente por
seu superior. Neste momento, surge o coro “das mulheres dos policiais em greve”.
“Cabo Gorete” se divide entre obedecer às ordens para dissolver a manifestação ou
aderir ao movimento. “Sargento Machado” retira-se de cena dando à “Cabo Gorete” a
incumbência de dispersar a multidão.
Depois de calorosa batalha, “Cabo Gorete” rende-se aos argumentos do coro e aos
efeitos da bebida, de modo que desaba no chão. Os artistas de rua anunciam então a
“Canção do Valor da Carne”, que é cantada pela atriz que representa “Gorete”, agora
transformada em artista de rua.
Finalmente, a cena final da intervenção, narra a história do “Soldado João”, apelidado
de “Sem Réis” pelo chefe da corporação, por nunca ter um centavo no bolso. Trata-se
de uma cena que reproduz o procedimento brechtiano das “Lehrstück”. O Chefe de
Polícia oferece a “Sem Réis” uma oportunidade de ganhar um salário extra se for
conivente com as atividades ilícitas do tráfico de drogas. Argumenta que o salário do
policial não é suficiente para suas necessidades. Diante da escolha de “Sem Réis”, se
aceita ou não ser subornado, os aristas de rua dirigem-se ao público com a pergunta: “O
que vocês fariam se estivessem no lugar dele?” O espetáculo termina novo número
musical, o “Rap dos Sem Réis”.
*
O experimento surgiu do processo de observação de rua realizado pelo grupo durante
um período de dois meses no centro da cidade de João Pessoa, mais especificamente na
praça conhecida como “Ponto de Cem Réis”. O objetivo era apreender, através de
depoimentos de habituais freqüentadores, o processo de degradação e descaracterização
do espaço público, conhecido como o centro nevrálgico da capital paraibana.
Ao longo das apresentações realizadas em praças pelo interior da Paraíba, pudemos
observar que as condições criadas pela intervenção cênica propiciam ao eventual
narrador de sua história pessoal uma atitude comprometida e produtiva, no limite entre a
espontaneidade e a espetacularização de si mesmo; no limite entre a legítima
reelaboração de sua memória pessoal e sua objetualização por meio da imagem
capturada pela câmera de vídeo.
Essa atitude é desencadeada por uma série de fatores. Em primeiro lugar, a incitação dos
“artistas de rua” para que alguém dentre as pessoas que se aglomeram em torno da ação
cênica, se encoraje e rompa a fronteira entre o espaço privado e o espaço público da
apresentação.
Além desse estímulo, que tende a se tornar coletivo, o fator preponderante é a relação
comercial que se estabelece. Não se trata de uma solicitação para uma performance
espontânea, mas de uma relação explícita de compra e venda. É importante ressaltar que
a intervenção é dirigida a um público proeminentemente de baixa extração social, para
quem a possibilidade de auferir algum dinheiro não é desprezível.
Entretanto, a nosso ver, o aspecto propiciador fundamental para a realização das
narrativas pessoais é a presença da câmera. Muitas pessoas se aproximam para ouvir as
histórias, menos pelo interesse na pessoa que narra do que pelo aparato que reproduz
sua imagem. Mais do que a experiência em si, chama a atenção o simulacro da
experiência.
Em textos como Experiência e pobreza e o Narrador (BENJAMIN, 1994), Benjamin já
alertava para o fato de vivermos um tempo em que a alienação do trabalho traz uma
profunda separação entre as pessoas e suas próprias obras, entre o sujeito e sua própria
experiência individual e coletiva, notadamente depois da experiência traumática da
guerra.
Atualmente, esse processo chega a extremos, de forma que sofremos a impossibilidade
de compartilhamento da experiência, e o esvaziamento da capacidade imaginativa,
consequência da violência das estratégias da mercantilização e do consumo hedonista.
Neste sentido, é perceptível a redução do espaço para as narrativas orais. A informação,
que é absolutamente efêmera e volátil, impede a construção de uma experiência
coletivizada que de acordo com o pensador alemão decorria de um tempo compartilhado
em grupo através do trabalho material.
A intervenção cênica do Coletivo de Teatro Alfenim se coloca como um ponto de
resistência em favor da narrativa e se contrapõe à quantidade avassaladora de
informação produzida pelos meios de comunicação de massa da sociedade globalizada.
Para tanto, se utiliza dialeticamente de um de seus mecanismos de sedução (no caso a
exposição pública da imagem) para a esta contrapor a experiência mesma que se realiza
como irrupção ficcional no espaço cotidiano: uma vez transformados temporariamente
em “artistas de rua”, na medida em que narram suas “histórias de sem réis”, esses
narradores populares redimensionam a experiência da intervenção cênica, de modo a
proporcionar uma nova forma de compartilhamento coletivo durante o ato da
intervenção.
O ato de narrar atualiza e unifica fragmentos da memória, criando uma história que
passa a existir no presente da cena. Dentre os vários públicos e histórias que pudemos
presenciar, verificamos a dimensão utilitária que cada narrativa carrega em si mesma.
Para que o laço de comunicação se estabeleça entre o narrador e o público há
necessidade de que aquele tenha um propósito a ser atingido com a sua narrativa, para
além dos cinco reais que vão ser adquiridos, e também que tenha domínio do que vai ser
narrado, isto é, um auto-conhecimento que impregne suas palavras de modo a
presentificar a ação evocada no ato de narrar.
No momento da narrativa o espectador/narrador experimenta o papel de ator, ele assume
o protagonismo da cena e exercita a sua performance narrativa que, segundo Richard
Bauman em seu Story, Performance, and Event: contextual studies of oral narrative,
explicita a competência da comunicação do narrador e sua possibilidade de ser sujeito
histórico. O ato de narrar proporciona uma intensificação da experiência vivida porque
associa a ela a experiência da organização do repertório pessoal e a da troca com o
público. Em nossa opinião, alinhada às reflexões de Benjamin, nas boas narrativas
assim como nas personagens dos espetáculos de rua não cabem as explicações
psicológicas, o segredo está na concisão que permite ao espectador a livre interpretação.
A concreção das imagens, bem como um comprometimento pessoal do narrador fazem
com que o público se interesse pelo que está ouvindo.
Essa configuração cênica aponta para um outro papel do ator que nesse momento se
torna um propiciador dessa narrativa. A experiência de atuar como “Assistente do
Apresentador”, portanto diretamente ligada ao processo de compra da história, me
permite afirmar que, neste caso, o ator não pode agir como espectador comum,
tampouco como apresentador de um show de variedades. A ele não cabe expressar seu
desejo de que o narrador se saia bem, ou que haja um desfecho satisfatório da narrativa.
Deve antes assumir a atitude de um comerciante que ouve a história e paga por ela.
Nesse sentido, deve assumir uma objetividade em relação à narrativa, que lhe permita
manter a prontidão e habilidade para cortar ou sugerir saltos para o seu bom andamento.
Em suma, o ator deve ser uma espécie de diretor cênico do narrador, com habilidade
suficiente para ouvir e intervir.
*
Durante o período de apresentações da intervenção, foram realizados em torno de trinta
depoimentos, numa média de três depoimentos por performance. Numa primeira análise
do conteúdo das narrativas, é possível classificá-las em determinadas categorias
dominantes:
Além das categorias mencionadas acima, existem narrativas que por sua natureza não
podem ser facilmente enquadradas. Trata-se de casos insólitos, geralmente associados a
situações de risco ou violência, cuja reelaboração por parte do depoente permite
vislumbrar suas estratégias de defesa e auto-preservação. Apesar de serem muito
pessoais, esses casos assumem na narração uma dimensão pública, na medida em que
revelam involuntariamente as estruturas de poder e os mecanismos de opressão que
regem a sociabilidade das camadas menos favorecidas de nossa sociedade.
*
A descrição e o estudo pormenorizado de cada um dos depoimentos colhidos ultrapassa
a dimensão deste trabalho, uma vez que requerem maior embasamento teórico para o
aprofundamento da análise em seus inúmeros desdobramentos conceituais. Contudo,
como forma de reportar a riqueza dessas narrativas, transcrevemos a seguir três
depoimentos que julgamos ilustrar a dimensão coletiva do relato pessoal.
“Todo dia de manhã eu vou pra escola, quando chego em casa minha mãe dá em
mim”.
(risos do público) “Quando chega em casa meu pai dá em mim também”. (desconforto
geral no público).
“Gente, o que eu tenho pra dizer é isso: eu cheguei na rua eu tinha 14 anos, minha
primeira droga foi a cola. Convivi com eles tudinho, mas graças a deus nunca levei
tapa de polícia sobre roubo. Nunca fui xingada sobre roubo. Vivo no meio deles
tudinho. Conheço eles tudinho, mas nunca levei xingação com o nome de ladrona.
Apenas teve um policial que me apanhou por causa que eu achei uma chave de carro.
O dono do carro pensou que eu que tinha roubado a chave do carro dele. Ele sempre
freqüenta aqui o cafezinho. Eu olhei para a cara dele e disse: Sua chave eu não vou lhe
entregar aqui já que o senhor está me chamando de ladrona. Bora pro posto de polícia
que lá eu entrego. Aí lá eu falei com o tenente, entreguei pro tenente. O tenente disse:
“Mas como foi?”Ai eu fui e contei, e disse: ó , vinha eu mais meus dois filhos, eu vi
dois caras negociando, nem um nem outro pegou essa chave, jogaram. Aí eu fui e
peguei. Quando eu cheguei aqui na praça o dito cara que jogou a chave bateu nas
minhas costas e disse: “Ei, o dono dessa chave é meu pai” Aí e fui e respondi: “Vai
chamar seu pai pra mim entregar pra ele.”. Sabe quando ele foi chamar o dono da
chave? Ele é que era o ladrão. Aí o dono da chave quis segurar ele. Ele foi e correu e
eu fiquei. Eu estava ainda com meus dois filhos. Como eu fiquei, aí fui diretamente pra
guarita. Chegou na guarita, quando eu falei com o tenente, o tenente disse: “Ó, ela
chega aqui às vezes às sete da manhã, sete, oito, dez, onze horas da noite, até agora a
gente ainda não tem queixa dela.” Aí, pra ele tirar os panos a limpo, ele disse: “depois
eu te dou uma recompensação”. Olhei pra ele, eu estava com minha bolsinha cheia de
moeda. Aí eu falei pra ele: Eu digo, “Ó, sua recompensação não interessa não. Que
aqui eu tenho. Mas aqui não foi roubado, aqui foi pedido. E eu estou com os meu dois
filhos aqui. Eu não preciso não. Agora, ninguém é obrigado a dar nada a ninguém, eu
peço, dá se quiser”. (aplausos) Como eu levo muita xingação aqui, às vezes, olha pra
mim e aí... Não, falando sério, igual mesmo um senhor da Federal. Veio aqui pra
guarita. Ali no calçadão eu pedi a ele uma vez e ele me xingou aqui. Aí eu vi ele lá
perto do calçadão. Eu estava com um menino que sempre me ajuda, vendendo anel. Ele
me deu um empurrão. Quando ele me deu um empurrão, eu olhei pra ele e disse: “Ó, se
usa licença”. Ele disse: “Mas porque eu vou pedir licença a você?Você é vivente de
rua”. Mas eu sou gente igualmente a você, igualmente a qualquer um. Ele disse: “Mas
se você falar muita merda, eu dou um tiro na sua cara.” Apois, você não vai não,
porque eu vou agorinha no posto. Aí eu vim pro posto, o tenente falou com ele... até
hoje quando me vê ele não olha pra mim e também não me responde. Porque ele é um
senhor de idade, porque seu tom é de senado federal, porque eu sou de rua, aí ele
queira me botar lá embaixo. Digo “Não, jamais você vai me botar lá embaixo!”.
(aplausos).
“Boa tarde para todos. Quem conhece, quem não me conhece, eu sou Eliane,
conhecida por mis suce (sic). Aqui, da cidade de Areia. (aplausos.). Eu tenho uma
história para contar a vocês. Suje a rua, bote bastante lixo... suje a rua, bote bastante
lixo porque a cidade precisa muito de gari.E eu fui contemplada em ser a gari central
desta cidade. Eu sou a gari central. Agradeço a Deus pelo lixo, porque através do lixo
eu tenho o meu emprego. Numa crise muito braba, pesada, marido alcoólatra, dois
filhos, saindo recentemente do segundo grau... 2003 teve um concurso aqui nesta
cidade para gari, professor e outras funções, e eu optei para (sic) ser gari. E através do
concurso eu fui contemplada, passando em quinto lugar. E sou gari aqui do centro da
cidade. Eu espero que vocês... vai terminar isso aqui... conservem nossa cidade limpa.
(aplausos.) Essa é a minha história.”
*
Os depoimentos selecionados são transcrições literais do que foi registrado em vídeo.
Note-se que os depoentes têm domínio de sua elocução, de forma que não foi necessária
nenhuma intervenção durante suas falas. Entretanto, é preciso ressaltar que houve da
parte dos “artistas de rua” a solicitação para que os narradores tentassem ser o mais
objetivos possível. Essa recomendação acontecia antes do início da intervenção cênica,
durante o momento em que o depoente, interessado na movimentação dos atores e
especialmente na inscrição da placa (“Compro sua história...”) aproximava-se e
externava seu desejo de participar.
A situação performática gerada pela intervenção dos atores (montagem do equipamento
e preparativos como aquecimento e maquiagem) propicia a experiência de interação
entre a subjetividade do indivíduo enquanto narrador e o espaço público, tornado espaço
temporário de expressão individual, sob pretexto de servir às exigências do aparato
espetacular.
Acontece que é justamente a dimensão coletiva da experiência subjetiva dos depoentes
que salta ao primeiro plano, quando o público identifica nas narrativas uma referência
de sua própria relação com a cidade. A potência desse reconhecimento ultrapassa a
identificação subjetiva entre o público e o indivíduo que narra para se instaurar como
matéria da experiência coletiva por meio do pretexto ficcional em que consiste a
intervenção cênica Histórias de Sem Réis.
Essa experiência se intensifica quando, ao final da intervenção, a história do soldado
João ganha a mesma dimensão pública, de modo a angariar as experiências individuais
narradas e/ou vividas durante a performance para o exercício de uma apreciação extra-
cotidiana e crítica da sociabilidade urbana.
Assim, a experiência com a intervenção Histórias de Sem Réis nos encoraja a afirmar
que o depoimento pessoal somente pode se constituir como matéria cênica e ficcional na
medida em que assume sua dimensão histórica, de modo a transformar-se em
testemunho de uma experiência coletiva.
Referências Bibliográficas
BAUMAN, Richard. Story, performance, and event: contextual studies of oral narrative. New York,
Cambridge University Press, 1986.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literature e história da cultura. (Obras
escolhidas v. 1) São Paulo, Brasiliense, 1994.
TRÂNSITO DAS ALMAS: RITUALIZAÇÃO DE LIDERANÇAS SINDICAIS E
PEREGRINAÇÕES COMO FORMA DE RESISTÊNCIA CAMPONESA
Edimilson Rodrigues de Souza1
Celeste Ciccarone2
Resumo: O artigo atenta para uma tradução de símbolos e signos ritualísticos que perpassam
os eventos de sacralização de agentes pastorais (e líderes sindicais) assassinados em regiões
de intensos conflitos agrários no Brasil, voltada para a reflexão sobre o sentido destas mortes
na fundamentação de discursos/narrativas de luta e resistência dos agentes de mediação e dos
coletivos rurais. Nas leituras dos rituais de santificação destas lideranças – os Mártires da
terra –, e das peregrinações decorrentes destes acontecimentos, as Romarias dos mártires da
caminhada, buscam-se aproximações etnográficas dessas figuras emblemáticas,
especialmente nas regiões de fronteira amazônica, para pensar as lutas pelo reconhecimento
de direitos sobre a terra e uso de recursos sócio-naturais, na medida em que atualizam
estratégias (im)pertinentes de mediação em espaços de tensão e enfrentamento. As narrativas
em torno desses agentes tecem novos sentidos para a morte, aliados à projeção dos mortos em
coletivos humanos e não-humanos vivos. Nestes espaços rituais, face à criação e re-
apresentação da figura do líder, uma renovada força vital reunifica os pontos de vista sobre o
direito de permanecer e de reivindicar a posse legítima da terra
Ouvir e contar histórias são práticas cotidianas no itinerário de muitos etnógrafos. Olhares se
cruzam e narrativas se confrontam, palavras são transmitidas (e traduzidas), categorias são
criadas ou acessada para descrever (e compreender) universos simbólicos, estabelecendo-se
um intenso confronto entre palavra, ação e pensamento.
1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo. e-
mail: edimilsonrondon@gmail.com.
2
Professora Adjunta de Antropologia do Departamento de Ciências Sociais e dos Programas de Pós-Graduação
em Ciências Sociais e Geografia na Universidade Federal do Espírito Santo. e-mail:
celeste.ciccarone@gmail.com
2
Neste artigo, discursos e narrativas, transmitidos nos cantos, danças, relatos, com suas
expressões ritualísticas, foram registrados, durante a Romaria dos Mártires da Caminhada,
ocorrida entre os dias 16 e 17 de julho de 2011, em Ribeirão Cascalheiras (MT). Tentamos
articular fontes audiovisuais e textuais para produzir uma leitura dos sentidos estabelecidos e
partilhados pelos grupos nas narrativas e nos rituais encenados e capturados pela câmera na
mão. Este esforço de tradução dos rituais, nas falas e imagens dos agentes mediadores foi
realizado em passos lentos, com cuidado e cautela para não incorrer no risco de produzir
consensos em vez de conceitos. Pois
A boa diferença, ou diferença real, é entre o que pensa (ou faz) o nativo e o que o
antropólogo pensa que (e faz com o que) o nativo pensa, e são esses dois pensamentos
(ou fazeres) que se confrontam. Tal confronto não precisa se resumir a uma mesma
equivocidade de parte a parte – o equívoco nunca é o mesmo, as partes não o sendo; e
de resto, quem definiria a adequada univocidade? –, mas tampouco precisa se
contentar em ser um diálogo edificante. O confronto deve poder produzir a mútua
implicação, a comum alteração dos discursos em jogo, pois não se trata de chegar ao
consenso, mas ao conceito. (Ibid, p. 119)
Uma das questões centrais da analise proposta remete à tentativa de traduzir e descrever o
movimento de “trânsito das almas” dos mártires ao coletivo (LATOUR, 2009), apontando
para uma possível manipulação da imagem do mártir, articulando a alma como agente
mediador da luta. As narrativas sobre estes líderes comunitários e agentes de pastorais,
especialmente os mortos em conflitos de terra e reconhecimento dos direitos de permanência,
indicam a tentativa de inscrição dos corpos nos movimentos de resistência pelo ponto de vista
da alma dos mártires (VIVEIROS DE CASTRO, 1996).
Interessa-nos especialmente, a partir das narrativas sobre estes líderes, compreender de que
forma é elaborado um “mártir da luta”3, no intuito de pensar os efeitos dessa figura
3
Esse termo de cunho religioso assume configuração política no Brasil a partir do agravamento de situações de
conflito no campo, o que culminou com criação em 1975 da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ligada à
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que procura articular e organizar politicamente os
trabalhadores rurais e fazer mediação e intermediação na resolução desses conflitos. Reivindicando as
desapropriações de terras com base no Estatuto da Terra, essa instituição defendia uma concepção sobre a
relação fé e vida, atribuindo aos lideres dos movimentos sociais mortos nesses conflitos, uma caracterização
sagrada de doação da vida pelas causas sociais da humanidade (PEREIRA, 2004; MURPHY, 2008).
3
A Romaria dos Mártires da Caminhada é uma peregrinação que reúne camponeses, índios,
religiosos, lideranças sindicais, agentes pastorais e ativistas políticos de diversas regiões do
Brasil e do mundo, no município de Ribeirão Cascalheira, situado na região Nordeste do Mato
Grosso, na região do Araguaia6. A cidade resulta da junção de dois povoados, Ribeirão Bonito
e Alta Cascalheira, e o nome Ribeirão foi atribuído pelos primeiros colonos que se fixaram à
beira do córrego Suiazinho, sendo que quilômetros adiante o outro povoado foi denominado
Cascalheira pela presença de cascalho, utilizado pelos moradores.
4
Em “A Dominação masculina”, Bourdieu explica a construção do habitus da seguinte forma: “produto de um
trabalho social de nominação e de inculcação ao término do qual uma identidade social instituída por uma dessas
„linhas de demarcação mística‟, conhecidas e reconhecidas por todos, que o mundo social desenha, inscreve-se
em uma natureza biológica e se torna um habitus, lei social incorporada.” (2003, p. 64)”.
5
[...] Os símbolos são os instrumentos por excelência de “integração social”: enquanto instrumentos de
conhecimento e de comunicação [...], eles tornam possível o consensus acerca do sentido do mundo social que
contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a integração “lógica” é a condição da integração
“moral” (BOURDIEU, 2005, p. 10)
6
A região é composta pelos municípios de Ribeirão Cascalheira, Vila Rica, Serra Nova Dourada, São Félix do
Araguaia, Santa Terezinha, Santa Cruz do Xingu, São José do Xingu, Porto Alegre do Norte, Novo Santo
Antônio, Luciara, Confresa, Canabrava do Norte, Bom Jesus do Araguaia e Alto Boa Vista.
4
O município é centro da topografia sagrada, referencia na celebração dos mártires; sendo sede
da “Galeria dos mártires da América Latina”. No local, foi assassinado em 1976 o padre João
Bosco Penido Burnier, mineiro de Juiz de Fora, jesuíta, missionário que atuava entre os índios
Bakairi sendo o evento de sua morte e os acontecimentos que se seguiram assim relatados por
Pedro Casaldáliga7 em ocasião da Romaria
Era tarde do dia 11 de outubro de 1976. Duas mulheres sertanejas, Margarida e
Santana, estavam sendo torturadas na cadeia-delegacia de Ribeirão Bonito, lugar e
hora de latifúndio prepotente, de peonagem semi-escrava e de brutalidade policial. A
comunidade celebrava a novena da padroeira, Nossa Senhora Aparecida. E nesse dia
eu havia chegado ao povoado com o padre João Bosco. Nós dois fomos interceder
pelas mulheres torturadas. Os policiais nos esperavam no terreiro da delegacia e
apenas foi possível um diálogo de minutos. Um soldado desfechou no rosto do padre
João Bosco um soco, uma coronhada e o tiro fatal. Em sua agonia, padre João Bosco
ofereceu a vida pela CIMI e pelo Brasil, invocou ardentemente o nome de Jesus e
recebeu a unção. Foi morrer, gloriosamente mártir, no dia seguinte, festa da Mãe
Aparecida, em Goiânia, coroando assim uma vida santa. (Pedro Casaldáliga,
entrevista concedida em 15/07/11)
Deste evento se originou a Galeria dos mártires, situada na delegacia onde João Bosco foi
assassinado, que foi derrubada por posseiros num ato de protesto contra a violência policial,
no 7º dia de sua morte. O missionário morto tinha sido confundido com o bispo Casaldáliga,
ameaçado por fazendeiros da região por conta do seu envolvimento na defesa das lutas
fundiárias de posseiros e índios locais.
Cada Romaria é preparada ao longo de cinco anos, logo que se encerra a anterior, sendo de
responsabilidade das comunidades da prelazia de São Félix do Araguaia, a preparação e
confecção de painéis, provisão de alimentos, organização da hospedagem dos romeiros,
sempre de forma coletiva.
Nos três dias que antecedem o ritual são realizadas celebrações onde já ocorrem atos de
elaboração dos mártires através da partilha de suas histórias. Numa dessas noites registramos
a acolhida dos romeiros na capela que teria sido o lugar onde o padre João Bosco recebeu os
primeiros socorros antes de ser levado para a cidade de Goiânia (GO), onde faleceu. Os
7
Bispo da Prelazia de São Felix do Araguaia (MT)
5
momentos que precedem o ritual são marcados por narrativas, acompanhadas por cantos,
danças e imagens sobre as histórias dos líderes magnificados.
Na alegria desta noite, marcada pela lua que vem nos beijar neste momento em que
estamos pisando em um chão sagrado, no lugar desta capela, lugar da esperança,
muitas crianças nasceram aqui, muitas vidas foram salvas nesta casa, era onde
morava a equipe pastoral, mas é também a casa do momento martirial do padre João
Bosco. Estamos aqui pisando neste chão, e na beleza de quem veio de tantos lugares,
e aí a gente quer acolher, cada um e cada uma, para essa noite, para esse encontro,
para esse momento de louvor e de ação de graças. E a gente acolhe com muita
alegria os que vieram do Paraná, Minas Gerais, Vitória, São Paulo, Mato Grosso,
Itália, Alemanha, Espanha, Bahia, Santa Catarina, Amazônia, Ribeirão Cascalheira,
Rio de Janeiro, Goiás, Brasília. [...] Estamos em romaria, caminheiros e
caminheiras, e a gente traz o cansaço da viagem, e aqui a gente vem buscar a água
viva, a vida e o testemunho dos mártires. Celebrar nesta noite esse cansaço, mas a
alegria da chegada, a alegria de estarmos aqui, celebrar nossas vidas. (Padre Mirim,
15/07/2011)
Os discursos atualizam a postura política e ideológica desses sujeitos, ao passo que tratam de
questões polêmicas sobre os confrontos evidenciados a partir do apoio dado pelos agentes
mediadores às minorias sociais. A ritualização e sacralização do cotidiano evidenciam os
rompimentos com as estruturas estabelecidas, introduzindo novas formas de participação
política e religiosa.
Referindo-se às Romarias dos mártires do Caaró e da Terra, Carlos Alberto Steil adverte que
há, nestas peregrinações, um esforço de fazer uma “leitura projetiva do passado mítico e
histórico como traduções e transvalorizações possíveis da experiência presente”. Alerta
também para a evocação da figura do herói mítico, construindo “uma continuidade entre
sujeito e signos do passado e atores e agentes sociais marginalizados do presente: índios,
negros, colonos sem-terra”, constituindo-se um lugar privilegiado de elaboração social de uma
narrativa e de um personagem. (2004, p.12). Como dramas sociais, tencionam o deslocamento
da instituição para a sociedade, “um deslocamento da Igreja para o Reino de Deus”, numa
tentativa de articular a busca pela terra prometida, a “terra sem males”. Nesta direção, ocorre
uma relativização da instituição com vistas à “construção de uma sociedade liberta” (op. cit..
p. 21)
[...] O padre João Bosco teve que se converter aos índios. Ele tinha uma formação
tradicional. De uma pastoral e de uma teologia tradicionais. Quando entrou em
contato com o CIMI nos primeiros momentos ele estava em uma pastoral muito
revolucionária, muito diferente de tudo o que se fazia e se conhecia. Ele nos textos
escritos tinha palavras muito comovedoras, falando dessa conversão à causa
indígena, e nisso também é símbolo, quantos índios. Todos e cada um de nós temos
necessidade de uma conversão, nos convertemos a Deus, mas convertendo-nos aos
irmãos e completamente aos marginalizados, aos pobres e aos esquecidos, aos
desesperançosos. Uma conversão pastoral, estrutural, porque não basta
6
Também, fazendo memória do martírio do padre João Bosco, vamos ouvir um pouco
dessa história nesta noite, do martírio do padre João Bosco. 11 de outubro de 1976, e
nós vamos escutar com carinho, porque Pedro vai contar um pouquinho pra nós.
(Mirim, 15/07/2011)
Neste lugar, terra sagrada como disse bem Mirim, aconteceu a agonia do padre João
Bosco. Era a casa da equipe, uma casa de paz, onde se recolheu muito sofrimento,
muitos prantos, muito sangue, muitos sonhos também. E neste dia 11 de outubro de
1976 se recolheu a agonia do padre João Bosco. Ele esteve umas três horas ainda no
sínodo, rezando, rezando pelo sínodo, pelo Brasil. Saímos numa caminhonete
escoltada por outra caminhonete de posseiros, porque a voz era que nos esperariam
na estrada para nos matar. Enterramos por essas estradas do Xingu, e viveu ainda até
cinco da tarde do dia seguinte. Foi uma morte muito simbólica. Eu vou recordar que
o padre João Bosco era um Jesuíta, de uma família distinta e teve cargos na
companhia de Jesus de prestígio, e que ele havia feito a opção pelos pobres, pelas
margens. Ele havia na verdade deixados os colégios de luxo, deixado as
comunidades do Rio, de São Paulo, e vindo para o interior. Símbolo dos santos dos
pobres, ele foi trabalhar, viver e trabalhar no meio dos povos indígenas,
concretamente os Pacaembu, o santo da causa indígena; e no meio dos sertanejos,
posseiros dessa região do norte do Mato Grosso, o santo da reforma agrária, pelo
povo sem terra. E é reconhecido também como o padroeiro das lutas contra da
tortura, porque ele morreu em última instância, porque nós dois fomos tentar
libertar duas mulheres que estavam sendo torturadas. Ele morreu por defender da
tortura essa duas mulheres, martírio simbólico de muito outros mártires. [...] O
padre João Bosco, neste sentido também, foi militante lutou pela causa indígena,
pela defesa dos pobres e foi místico. Juntou o que na maioria das vezes fica
separado das nossas vidas: a militância e a contemplação. Ele morreu porque
fomos defender essas duas mulheres, mas isso acontecia em Ribeirão Cascalheira,
dentro da área da prelazia de São Felix do Araguaia. Tinha toda uma história já de
luta entre a igreja de Jesus, que queria ser pequena e pobre; humilde e acolhedora. E
o poder do latifúndio, do poder do agronegócio, do poder das multinacionais o poder
do consumismo. O contexto é que fez também com que esse martírio fosse o que foi
com esse poder simbólico. (Pedro Casaldáliga, 15/07/2011)
7
Sugerem então algumas questões, que orientam o olhar e a escuta das narrativas sobre esses
mártires. A primeira delas está relacionada à morte que não “cala” a luta, mas anima e
revigora as forças do grupo frente aos opressores, pois a mística do líder morto trazida pelas
perspectivas dos mediadores (Sindicato dos trabalhadores Rurais e Comissão Pastoral da
Terra), o discurso sobre ele e o metadiscurso, funcionam como mecanismos para repensar as
estratégias políticas e reafirmar o “direito à terra, como direito à vida”. Nesses momentos em
que é projetada a figura de um mártir, ela é construída numa relação intersubjetiva de
comoção no envolvimento numa luta por um objetivo comum, entre “iguais”, num
movimento dialógico e convergente de pertencimento, alimentando vínculos religiosos,
políticos e sociais. Num sentido de sofrer “com” e não sofrer “só”.
Quando o extraordinário torna-se cotidiano, o grupo que foi feito homem (o líder) tende a
ritualizar um exercício inverso: o homem (mártir) é feito grupo, até que surja (ou se constitua)
8
um novo líder, que na maioria das vezes se utiliza ainda da “imagem” do líder anteriormente
morto (projeção da alma). Estruturando o discurso na construção de um “real maravilhoso”,
do líder que doou sua vida pelo grupo, num processo de troca (dádiva)8 que envolve o espírito
da pessoa doadora, nos moldes da teoria nativa do hau de Marcel Mauss, de modo que sua
eleição a mártir como símbolo da luta permite, num exercício dialético, a “sacralização da
luta” e a “materialização do sagrado”.
Suas experiências pessoais tornam-se, nesta direção, atos coletivos e possibilitam a produção
de representações do grupo a partir dos episódios vivenciados pelos mártires. Sua morte é
narrada e (re)narrada até que os que contam e os que escutam não só o conheceram
pessoalmente, mas vivenciaram com ele todos os momentos de luta e resistência. Os mártires
são tratados como fundadores da cosmografia do lugar e inscritos nos espaços eleitos a
lugares da memória, a lugares encantados, moradas terrenas dos que nunca morrem,
atualizando as praticas de resistência no percurso de animação do espaço, do sujeito, da
coletividade, do mundo, através destas experiências privilegiadas.
A experiência pessoal é uma forma privilegiada de se ter acesso ao que poderia ser
descrito como representações modelares da sociedade ou do cosmos. A experiência
pessoal descreve o Cosmos, vincula palavras e objetos, observações e sua
explicação, o pensamento e o ato, criando e recriando um mundo que se apresenta
sempre inacabado, em eterno processo de construção. O Cosmos é, assim,
dependente de alguém que o vivencie, que o experimente, para que possa ganhar
estatuto de discurso organizado. (GONÇALVES, 2010, pp. 138-139)
Estes mártires não estariam, assim, presos aos seus corpos, como poderia sugerir uma
antropologia assimétrica, ocorrendo constantes trânsitos entre corpo e coletivos. Não estamos
pensando em possessões, mas em projeções – posições subjetivas que articulam estratégias de
resistência. Pois, a diferença não está inscrita nas almas, mas nos corpos (Viveiros de Castro,
1996), naquilo que M. Sahlins (2008, p. 67) evidenciou através da idéia de mana entendida
pelos havaianos como a essência: passiva de transmissão de um corpo para outro. Neste caso
especificamente de um corpo para um conjunto de corpos. Sendo a alma
8
Sobre a dádiva aponta Marcel Mauss “Compreende-se logicamente, nesse sistema de idéias, que seja preciso
retribuir a outrem o que na realidade é parcela de sua natureza e substância; pois, aceitar alguma coisa de alguém
é aceitar algo de sua essência espiritual, de sua alma; a conservação dessa coisa seria perigosa e mortal, e não
simplesmente porque seria ilícita, mas também porque essa coisa que vem da pessoa, não apenas moralmente,
mas física e espiritualmente [...] têm poder mágico e religioso sobre nós. Enfim, a coisa dada não é uma coisa
inerte. [...] a prestação total não implica somente a obrigação de retribuir os presentes recebidos, mas supõe duas
outras igualmente importantes: obrigação de dar, de um lado, obrigação de receber, de outro.” [...] (2003, pp.
200-201)
9
Uma espécie de imagem (se se poderia dizer assim) dotada da capacidade de assumir
uma multiplicidade de formas corporais, mas cada uma só se atualiza perante um
ponto de vista específico – que sempre há aqui uma espécie de limitação (e aqui faço
uso somente da acepção matemática do termo), que implica tanto na existência do
„um‟ e do „múltiplo‟, quando na existência de um „dois‟. Isso quer dizer,
obviamente, que cada uma dessas „atualizações‟ da alma exige um ponto de vista
que não o dos humanos, mas também significa que uma alma e um corpo não podem
ser tomados como termos substancializados. Dessa forma, uma imagem-alma é,
certamente, uma alma, mas também é, um corpo sob o ponto de vista de outrem.
(GRÜNEWALD, 2011, p. 07)
Sobre esta questão Pierre Bourdieu nos fornece instrumental necessário para entender a
trajetória de atos mágicos, ao elaborar a noção de ruptura, subversão e discurso heréticos:
[...] A subversão política pressupõe uma subversão cognitiva, uma conversão da visão
de mundo. Contudo, a ruptura herética da ordem estabelecida (e também das
disposições e representações por ela engendradas nos agentes moldados conforme
suas estruturas) supõe a conjunção entre o discurso crítico e a crise objetiva, capaz de
romper a concordância imediata entre as estruturas incorporadas e as estruturas
objetivas de que as primeiras constituem o produto, bem como de instituir uma
espécie de épochè prática, vale dizer, de suspensão da adesão originária à ordem
estabelecida. [...] A subversão herética explora a possibilidade de mudar o mundo
social modificando a representação desse mundo que contribuiu para a sua realidade,
ou melhor, opondo uma pré-visão paradoxal (utopia, projeto, programa) à visão
comum que apreende o mundo social como sendo mundo natural. [...]
O discurso herético deve contribuir não somente para romper com a adesão ao mundo
do senso comum, professando publicamente a ruptura com a ordem ordinária, mas
também produzir um novo senso comum e nele introduzir as práticas e as experiências
até então tácitas ou recalcadas de todo um grupo, agora investidas da legitimidade
conferida pela manifestação pública e pelo reconhecimento coletivo. [...] A eficácia do
discurso herético reside na dialética entre a linguagem autorizante e autorizada e as
disposições do grupo capazes de autorizar essa linguagem e de se verem assim
autorizadas. (BOURDIEU, 2008, pp. 118-119)
É possível afirmar que os rituais em torno dos mártires representam em certa medida (e
porque não dizer, na sua totalidade) possibilidades de articular memórias e narrativas, no
intuito de orientar os agentes ao rompimento com a concordância legitimada entre as estrutura
incorporadas e as estrutura objetivas. Intenciona-se nesta investida uma mudança no mundo
social, justificando as posições tomadas frente às disparidades identificadas.
10
Praticas de tradução das diferentes lógicas dos grupos sociais presentes buscam aglutiná-las
em torno de causas comuns, os conflitos pela terra e pelo uso de recursos sócio-naturais
(LITTLE, 2002). Prega-se a igualdade entre clero, leigos, camponeses, índios e afro-
brasileiros, – todos se tornam um em envoltos na luta, no rito.
11
O fogo, símbolo de vida e do calor que a aquece como a luta e a cruz, símbolo do martírio, do
sofrimento de que deu a vida e voltou em vida. No auge do ritual, os romeiros formam um
grande círculo em torno de uma fogueira e vão acompanhando, ao som de músicas e
narrativas. A celebração da “vida que se renova”, na medida em que acusam a
descontinuidade e reforçam a continuidade atualizada pelo mártir. Acessam elementos da
natureza animando-os e atrelando-os à figura do caminhante: terra e água se tornam
protagonistas do ritual, evocadas como motivos de resistência.
Os mártires são reconhecidos como santos populares, que deram a vida pela vida. Re-vivem
na medida em que são rememorados e comemorados nas falas das lideranças e a cada nome
os romeiros respondem “presente na caminhada”. O caminhar define os romeiros, os
significa. A peregrinação, ao mesmo tempo obrigação e ato voluntário, em condições de
liminaridade, envolve um voto, uma promessa (TURNER, 2008, p. 163). Caminhar para
continuar e não parar.
As falas e os cantos reforçam a luta dos companheiros de luta unidos ao mártir antes e depois
da “morte” cujo sentido se inscreve e se fixa, para estes coletivos, como resistência e
continuidade. A celebração do martírio é um motivo para se encontrar e partilhar o
sofrimento, reunir forças para continuar resistindo.
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Em todos nós que cremos na força do ressuscitado começa um dia de luz, longo,
eterno, que não se apaga. Páscoa no coração. Um não sofrer que vem pelo
sofrimento, uma liberdade conquistada pelo martírio, um clarão que surge no meio
da noite. É a páscoa de Deus que vem do céu até a terra, ao povo da terra, da terra
sem males, terra do bem viver. Os primeiros habitantes [referindo-se aos índios]
desse chão sagrado, com os corações esperançosos e sonhadores acendem
esperançosos a fogueira. É o amanhecer de um novo dia. (Mirim, 16/07/2011)
Enquanto a fogueira é acesa por lideranças indígenas, uma mulher canta: “Meus irmão de luz
vem nos socorrer é a sua força que vai nos valer. Força, força, meus irmão de luz. Força,
força, com as ordens de Jesus”, numa oração que mescla elementos indígenas e cristãos num
apelo comum para receber do mártir a força para continuar lutando. A caminhada prossegue
rumo ao “Santuário dos Mártires da América Latina”, topografando um espaço sagrado
material e imaterial. Retirantes/posseiros se encontram e se reconhecem na história do outro,
falam da vida. Os dilemas cotidianos são dramatizados nas falas de diversas lideranças sobre
os recursos sócio-naturais: expulsão de ribeirinhos, construção de hidroelétricas, dos grandes
empreendimentos que nos termos de lideranças sindicais “vieram para a Amazônia para matar
os pobres”
A terra é de Deus, e o profeta Isaías dizia “ai daqueles que juntam casa com casa,
campo com campo, até que não haja lugar para ninguém!” E aqui no nosso país,
desde o começo que os europeus chegaram, essa terra que era o dom de Deus, que
era terra para todos, começou a se tornar propriedade de algumas pessoas. E
acharam que tudo que aqui havia na natureza, era para sua riqueza, para o seu
enriquecimento. E espoliaram, arrancaram da terra, aquilo que era para o bem de
todos, para o seu próprio enriquecimento. E espoliaram os povos daqui. Tiraram a
terra deles. Tiraram a língua deles. Acabaram com tudo que era deles, para que eles
pudessem dominar sobre os povos dessa terra, para que só esses que vieram de fora
fossem os donos de tudo. E isso que aconteceu há quinhentos anos atrás, ainda
acontece hoje na nossa Amazônia, acontece hoje me muitos cantos do nosso Brasil.
Então, tudo tem que se concentrar na mão de poucos. Por isso que é preciso que nós
levantemos um grito muito forte, para que a terra que é de todos, se torne a terra de
todos, porque a terra é de Deus. E essa concentração da terra na mão de poucos tem
causado a morte de milhares e milhares de pessoas. Só de 1985 até hoje foram
assassinados 1.580 pessoas no campo, na luta pela terra, pela água, pelo direito da
13
Eu queria dizer a vocês como mulher indígena, que abracei uma causa, perdi um
marido [o cacique Chicão foi assassinado, em maio de 1998, a tiros por um homem
não identificado, porém provavelmente mandado por fazendeiros descontentes com
a luta para a demarcação de terras para os Xukuru] e tinha um filho preparado e
entreguei a luta. Nós lutamos por um só objetivo: nossos direitos e nossa liberdade,
em união. E quero dizer a vocês que a cada momento desses que eu participo, eu
fortaleço, eu me fortaleço, eu saio daqui fortalecida, com minha fé renovada. Eu
quero dizer a vocês, todos os parentes, índios e não-índios, que a gente nunca
devemo desistir, porque quando Deus bota nós nessa terra temos uma missão e o
dom, então Ele nos capacita. Quero dizer a vocês que não só do povo Xukuru, mas
em todos os parente indígena já teve bastante sangue derramado e não só indígena
como daqueles que apóia nossa causa. Mas queria dizer a todos vocês, que esse
sangue volta pra nossas veias e nos encoraja, porque quem nasceu pra morrer
lutando, não vai morrer de braços cruzados.
E aqui eu vou cantar um cântico dos irmão de luz, dos encantados, porque aqueles
nosso que se vai, pra nós eles não morreram, eles continua vivo no nosso meio:
“valei-me minha virge das candeia, valei-me minha virge das candeia. Os encantos
de luz é quem mais alumea, os encanto de luz é quem mais alumeia”. [...] Salve os
encanto de luz. Queria também dizer a Dom Pedro [referindo-se a Pedro
Casaldáliga] que esses encantos está com nós índios e com todos vocês que lutam
por nós. (Zenilda, acompanhada de seu filho Marcos, cacique Xukuru, 17/07/2011)
Voltávamos do Santuário dos Mártires quando, durante uma conversa com um romeiro que
mora em Santa Rita do Araguaia (nordeste do Mato Grosso), ele nos disse que, o mártir é um
exemplo a ser seguido, “sua vida e sua luta são um sinal de engajamento na luta”. A devoção
não comportava milagres nem visões e profecias atribuídas aos mártires. O mártir é fabricado
num percurso humano para a transformação social. Mais do que uma lógica do sofrimento que
precede a vida eterna, trata-se de uma tentativa de inverter (subverter) a ordem vigente pela
ação e transformação no conflito. Nas margens da celebração, a voz do romeiro reorientava
nossa atenção para as condições materiais da vida social
Uma antropologia feita à moda de Victor Turner observa a sociedade a partir de suas
margens. Nessas margens, a sociedade mostra o seu inacabamento [...] pensado em
14
termos de sua “prática que calcula o lugar olhado das coisas” [...] trata-se de um
olhar que se dirige aos resíduos, rupturas, interrupções e coisas não resolvidas da
vida social. (DAWSEY, 2005, p. 29)
Nestas zonas de conflito, esquecida pelo Estado, a violência encontra espaço na ação de
pistoleiros, grileiros e agropecuaristas locais. Os assassinatos de líderes populares ao invés de
apagar as vozes, alimentam a criação de símbolos de luta e resistência, num ritual de
passagem no qual os mortos doam sua vida pela vida dos seus “iguais”. A partir da morte do
líder (tornando mártir) as pessoas que conviviam com ele assumem uma postura de
enfrentamento frente a seus opressores, num movimento de re-existência – sustentado pela
figura do mártir. E o ritual de rememoração dessas pessoas mitificadas, o ato de recontar a sua
história (e de revivê-la) reforça a re-existência, atualiza a luta e revigora a militância.
Poeticamente, João Cabral de Melo Neto reúne questões pertinentes para se pensar essa
relação entre sobrevivência no campo e conflitos agrários ao apresentar o encontro de seu
personagem Severino com duas vítimas dessas relações conflitivas
- A quem estais carregando,/ irmãos das almas,/ embrulhado nessa rede?/ dizei que
eu saiba./ - A um defunto de nada,/ irmão das almas,/ que há muitas horas viaja/ à
sua morada./ - E sabeis quem era ele,/ irmãos das almas,/ sabeis como ele se chama/
ou se chamava?/- Severino Lavrador,/ irmão das almas,/ Severino Lavrador,/ mas já
não lavra./ [...] - E foi morrida essa morte,/ irmãos das almas,/ essa foi morte
morrida/ ou foi matada?/ - Até que não foi morrida,/ irmão das almas,/ esta foi morte
matada,/ numa emboscada./ - E o que guardava a emboscada,/ irmão das almas/ e
com que foi que o mataram,/ com faca ou bala?/ - Este foi morto de bala,/ irmão das
almas,/ mas garantido é de bala,/ mais longe vara./ - E quem foi que o emboscou,/
irmãos das almas,/ quem contra ele soltou/ essa ave-bala?/ - Ali é difícil dizer,/
irmão das almas,/ sempre há uma bala voando/ desocupada./ - E o que havia ele
feito/ irmãos das almas,/ e o que havia ele feito/ contra a tal pássara?/ - Ter uns
hectares de terra,/ irmão das almas,/ de pedra e areia lavada/ que cultivava./ [...] Mas
então por que o mataram,/ irmãos das almas,/ mas então por que o mataram/ com
espingarda?/ - Queria mais espalhar-se,/ irmão das almas,/ queria voar mais livre/
essa ave-bala./ - E agora o que passará,/ irmãos das almas,/ o que é que acontecerá
contra a espingarda?/ - Mais campo tem para soltar,/ irmão das almas,/ tem mais
onde fazer voar/ as filhas-bala. (MELO NETO, 1974, pp. 75-78)
15
5. Referências bibliográficas
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região Araguaia paraense: O caso da fazenda Bela Vista. Dissertação (Mestrado em
Extensão Rural). Viçosa : UFV, 2004.
SAHLINS, Marshall. Metáforas históricas e realidades míticas: Estrutura nos primórdios
da história do reino das ilhas Sandwich. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
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das ciências sociais. In: Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 11, n. 24, jul./dez.
2005.
STEIL, Carlos Alberto. Catolicismo e Memória no Rio Grande do Sul. Debates do NER.
Porto Alegre, ano 5, n. 5, jul. 2004.
TURNER, Victor. Dramas, campos e metáforas: Ação simbólica na sociedade humana.
Niterói: EdUFF, 2008.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo
ameríndio. In. MANA: Estudos de Antropologia Social. Rio de Janeiro 2(2), 1996.
_______. O nativo relativo. In. MANA: Estudos de Antropologia Social. Rio de Janeiro, V. 8,
n. 1, 2002.
Interculturalidade em VemVai – O Caminho dos Mortos
Comunicação oral
GT 4: Teatro e Ritual
Quero levantar aqui algumas questões relativas ao espetáculo Vem-Vai – A Caminho dos
Mortos, criado pela Cia. Livre, em 2007, dirigido por Cibele Forjaz, buscando destacar o que chamo
aqui de recurso intercultural como procedimento de criação. Para a criação desse espetáculo a Cia.
Livre partiu de estudo do universo indígena amazônico, sobretudo os mitos de morte e
renascimento.
Antes de entrar especificamente no processo criativo do Cia. e no espetáculo, cabe abordar
algumas questões gerais sobre esse recurso intercultural.
Chamo de recurso intercultural uma motivação, digamos, que consiste em lançar mão de
alteridades culturais, principalmente na forma de mitos e ritos. Mas é possível aventar dentro disso,
por exemplo, um recurso à cultura material de um povo também, na forma de artefatos, objetos, ou
mesmo de imagens mediatizadas... Enfim, recurso intercultural como um debruçar-se sobre o Outro,
como busca de algo que deflagre a criação, uma ficção performativa a partir da qual o processo de
criação se instaura.
Importa aqui quem faz o recurso e a cultura a que se recorre. Patrice PAVIS (1992) fala em
termos de “cultura fonte” e “cultura alvo” para se referir a essas relações. Pensando em termos
“antropofágicos” importa quem deglute e quem é deglutido1.
Mas em que medida importa quem fala quando se trata de se debruçar sobre o “outro”? Qual
é a diferença de um grupo brasileiro – a Cia. Livre – recorrer ao universo indígena amazônico – um
nosso desconhecido – de um grupo europeu, por exemplo o Odin Theater, do Eugênio Barba?
Parece necessário reconhecer que o desconhecimento geral das culturas indígenas no Brasil –
inclusive pela maioria dos sujeitos 'bem educados' – aconteça talvez em termos de uma
descontinuidade apenas um pouco menos abissal do que a cultura europeia em relação ao universo
indígena. Aqui não é radical a diferença entre a Cibele Forjaz e o seu grupo e um Eugênio Barba,
1A filiação oswaldiana da Cia. Livre é bem notável, a temática do “comer o outro” é vertical no espetáculo VemVai e de
modo geral é preciso também ter em mente um leitura da antropofagia de Oswald Andrade via Teatro Oficina, grupo ao
qual a origem da Cia. Livre remonta.
por exemplo. Para ambos o universo indígena se mostra como uma alteridade radical2.
Importa quem come, mas “comer” o outro é sempre um exercício de vertigem, de
reconfiguração de si. E esse exercício de vertigem nunca se dá sobre pontes que levam de uma
cultura a outra. Talvez essas pontes não existam. No máximo podemos cavar uma canoa, uma frágil
canoa que pode nos auxiliar no caminho que leva ao “outro”, como quer Eugênio Barba. Esse
encontro com o outro talvez nunca seja senão fantasmagoria. Como diz Roy Wagner “Todo esforço
de compreensão de uma outra cultura deve ao menos começar com um ato de invenção (...), tal
como aquele pintor chinês apócrifo que, perseguido por seus credores, pintou um ganso na parede,
montou nele e saiu voando.” (Apud CESARINO: 2008)
O processo vital de relação entre culturas envolve sempre uma ‘falta de entendimento do
entendimento’ (misunderstanding undertanding), de modo que, no final da contas, essa relação não
é perfeitamente descrita em termos de entendimento ou não-entendimento, visto que não há ponto
de vista objetivo, desinteressado. (MENNEMEIER, in FISCHER-LICHTE, 1990: 23).
A criação artística, dentro desse esforço de compreensão do “outro”, exige um âmbito de
invenção ainda maior do que em outros níveis de compreensão, como no esforço de entendimento
da antropologia especificamente. No entanto, observando uma estratégia de criação ou outra é
possível vislumbrar uma gradação, uma maior ou menor verticalidade nesse esforço de
compreensão. Duas estratégias opostas podem ser delineadas, numa aproximação geral quanto a
esse recurso intercultural.
Algumas estratégias estão orientadas pela preocupação em corresponder a um entendimento
histórico-antropológico nas aproximações, analogias ou citações realizadas em relação à cultura a
que se recorre. Outras estratégias de criação parecem em alguma medida dispensar esse respaldo
histórico-antropológico. Essa estratégia pode ser referida como “iconofilia”, como nomeia Andrzej
WIRTH (2003) que, ao termo interculturalismo adotado aqui, prefere o termo “iconofilia” para
referir o recurso a culturas tradicionais e estrangeiras. E quando ele fala de “iconofilia” ele está
pensando, principalmente, em peças teatrais de Bob Wilson.
Em analogia a esses dois polos opostos, Josette Feral faz uma distinção quanto aos modos de
processar e reagir às interações culturais no teatro das últimas décadas. Feral distingue entre os
eufóricos e os disfóricos. Entre os eufóricos ela enumera: Eugênio Barba e Peter Brook, Robert
Lepage, Peter Sellars, entre outros. Segundo ela, estes sugerem que tais relações interculturais
alargam “nossas atitudes mentais e nos tornam mais conscientes da alteridade dos nossos vizinhos,
portanto mais capazes de ouvi-los” (FERAL, 1996: 3) Já os disfóricos – entre os quais ela enumera
Carl Weber, Una Chauduri, Rustom Bharucha e Richard Schechner – preferem ver “o culturalismo
como representando um perigo de um cultura predominante se apropriar desnecessariamente de
2As questões quanto à recepção e a inserção das peças resultantes dentro da cultura brasileira e estrangeira talvez
possam ser vista com grande distinção, mas não se trata disso aqui.
outras – em geral minoritárias – culturas e tradições sem oferecer nada em troca”. (FERAL, 1996:
4)
É preciso observar que uma criação artística estabelece suas próprias leis no arranjo formal
em que vai consistir a obra e assim, se buscasse corresponder rigidamente a um entendimento
antropológico, estaria se colocando sob o risco grave de fragilizar a potência criativa. Mas quando
se fala de criação artística a partir de recurso a alteridades culturais é necessário lembrar, como
escreve Josette Feral, que “diferentes culturas nunca se estabelecem pacificamente lado a lado, elas
se interpenetram ou lutam entre si.” (FERAL, 1996: 1) 3 Desse modo, parece necessário ter sempre
à vista a posição “disfórica” que acentuam a condição de “guerra” que sempre circunda as relações
interculturais. O que não invalida a possibilidade e o desejo de se estabelecerem comunicações
interculturais que não ocorram sob o claro signo da dominação.
Parece necessário estar atento em que medida o recurso a uma cultura não é solidário à
“curiosidade dispersa”, de que fala Gilles Lipovetsky: “curiosidade dispersa” que tinge as relações
com uma larga tolerância superficial. Parece necessário perguntar se, diferente da antropofagia
oswaldiana, não se trata de um apetite omnívoro e irrestrito ao qual subjaz uma lógica de
indiferença.
Não é só no campo artístico em que se observa uma tendência moderna de 'retorno ao
arcaico', na qual se insere, em alguma medida e com especificidades, toda a discussão entre teatro e
ritual, toda a revalorização de teatralidades não-institucionais e exóticas, pelo menos desde os anos
60 até hoje. Este 'retorno ao arcaico' figura como algo da ordem do que Gilles Lipovetsky nomeia
como “retorno ao sagrado” ou “retorno dos valores”, na medida em que há um reinvestimento no
regional, na ecologia, no passado, no espiritual, nas culturas marginais. O que aparece, num
primeiro momento, como ruptura com os ideais iluministas, como oposição ao culto à razão e ao
progresso muitas vezes se configura, segundo Lipovetsky, dentro de um processo “de
personalização e de liberação do espaço privado que absorve tudo em sua órbita, inclusive os
valores transcendentais.” (LIPOVETSKY, 2005: 23)
Coloca-se, de modo geral, a necessidade de perguntar em que medida uma peça de teatro
criada a partir de um recurso intercultural afirma ou contraria a lógica da indiferença que estaria por
baixo dessa “curiosidade dispersa”, desse apetite omnívoro e indiferente.
Pelo mergulho vertical no estudo do universo amazônico indígena, pode-se entender que a
Cia. Livre, na criação da peça VemVai – O Caminho dos Mortos, busca atrelar a criação cênica à um
entendimento histórico-antropológico da cultura ameríndia e também da cultural brasileira num
sentido genérico. O que não significa não ter havido uma recriação vertical na peça do universo
3 Lehmann também afirma que “subsiste na comunicação intercultural uma ambiguidade latente na medida em que as
formas de expressão cultural ainda sejam formas de uma cultura politicamente dominante ou oprimida, entre as
quais não se dá simplesmente ‘comunicação’.” (LEHMANN, 2007: 411)
estudado.
Ao recorrer a uma alteridade cultural para alimentar o seu processo criativo, o artista em
geral está buscando evidenciar algo sobre a sua própria cultura, talvez ele esteja assinalando as
carências e perversidades da cultura hegemônica, etc. Há sempre um “desentendimento do
entendimento” nas trocas culturais, a criação é sempre uma “invenção”, por isso no recurso
intercultural é preciso observar a dimensão do que se processa no interior da cultura em que se
procede a criação intercultural. Importa entender a motivação daquele que vai ao encontro da
alteridade mais do que busca ali um entendimento da alteridade cultural.
Em relação a isso, podemos traçar analogias com o fato de que, no universo indígena, a
morte do inimigo e a sua assimilação ritual com esmagamento do crânio – acompanhada ou não de
sua devoração estrita – era o que trazia novos nomes para o guerreiro, por exemplo, entre os
Tupinambás seiscentistas. E, sugestivamente, entre os Araweté contemporâneos, um dos epítetos
para referir ao inimigo é justamente “música futura”, na mesma medida em que a morte do inimigo
é referida como “morte ventríloqua”. Isso, segundo Viveiros de Castro, “indica a função principal
dos inimigos: trazer novos cantos. Vistos por seu lado bom – seu lado morto – , os inimigos são
aqueles que trazem novas palavras ao grupo, ou ao menos que vêm dar um sens plus pur aux mots
de la tribu.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002: 275) É na medida em que traz novos nomes e
possibilita a música futura, os futuros cantos desses artistas da Cia. Livre que se pode entender tal
recurso intercultural, que não visa a subsumir a condição de guerra em que inevitavelmente se
insere, mas justamente explicitá-la. Isso fica claro no trecho da peça em que um indígena vem
capturar um outro “boy do planalto”, vingança de um irmão morto em chamas sobre o asfalto, em
referência à morte do índio em Brasília.
É preciso observar que o direcionamento inicial da Cia. Livre para a realização dessa peça
era pesquisar Mitos de Morte e Renascimento na Cultura Brasileira. O princípio da pesquisa se
enveredou para o universo indígena, com estudos orientados pelo antropólogo Pedro Cesarino. Ao
estudar, desde as noções elementares da antropologia, estudar cosmologias, cosmografias
ameríndias, organizações sociais baseadas no xamanismo, a noção de pessoa, o perspectivismo e as
noções de morte de povos ameríndios, dentre outras coisas, o grupo reconheceu a impossibilidade
de agregar num mesmo projeto o estudo das culturas de matriz africana, conforme inicialmente era
almejado no projeto.
Para Cesarino e Forjaz, nesse estudo inicial se tratava justamente de desfazer os
pressupostos e preconceitos acerca da cultura indígena que serviam antes de obstáculo para “um
campo possível de troca criativa.” (FORJAZ, in CESARINO, 2007: 51) “Quais são as nossas
referências concretas para além de 'Peri matou Ceci ao som do Guarani'?”, se pergunta Forjaz.
Refletindo essa “casca” de preconceitos que foi preciso “descolar” nesse processo inicial de
estudo, no prólogo do espetáculo, o elenco invade o espaço e cerca o público “brincando de índio de
penacho”: “sua 'fantasia' é composta por duas fitas crepes na cara e um penacho na cabeça” 4. Sobre
isso o ator do grupo Edgar Castro relata: “O nosso início no Vem Vai se configura com aquela tribo
que aparece com os índios com fita crepe na cara. Foi uma piada que a gente fez, mas na verdade
para mostrar o nosso ponto de partida.”
Ao final desse prólogo, os atores retiram a fita crepe do rosto e um trecho da fala
subsequente do Transeunte Paulista-Ator Edgar é a seguinte: “Venham ver e ouvir estórias de vivos
e mortos dos Povos das Florestas comidas pelo Povo das Paulistas. A Cia. Livre conta VemVai – O
Caminho dos Mortos.”
Essa fala revela claramente o paralelismo em relação ao espetáculo anterior da Cia., Arena
Conta Danton. No entanto, vale notar que se no espetáculo anterior parecia interessante brincar com
a sobreposição do 'lugar da fala': Cia. Livre-Teatro de Arena; aqui a intenção é de evidenciar o
distanciamento e o estatuto de assimilação criativa do que é apresentado no espetáculo.
É o que também enuncia Cibele Forjaz, em entrevista: “Os mitos estão na peça, mas já
'canibalizado' pelo nosso olhar e repletos de elementos contemporâneos.” Portanto, não há intenção
de assumuir um lugar de portavoz de tribos indígenas, embora haja um mergulho, uma busca de
entendimento antropológico do material mítico-ritual dos povos ameríndios, inserido, para dizer de
modo geral, num certo deburçar-se da criação cênica sobre questões da “cultura brasileira”, com
todas as aspas possíveis.
Sobre essa posição assumida, ao fazer tal recurso cultural, a diretora ainda relata:
Porque é muito delicado você falar sobre um tema desses. O que você vai dizer? Você vai falar "por"? Não dá,
não é? Ou eu vou dizer o que eu entendi "de"? Então o máximo, como artistas, que a gente pode dizer é:
comemos esse material. E o que a gente está trazendo aqui é um material nosso, no qual a gente recria o que a
gente entendeu daquilo. A vida que a gente está mudando é a nossa. A gente não pode falar por ninguém. (Id.:
ibd.)
Essa canabalização de que fala a diretora já está presente desde o nome do espetáculo.
VemVai nos é sugestivo da condição do homem na terra e a sua ida para o além-morte, mas,
especificamente, o nome VemVai surge como transfiguração de termo utilizado pelos Marubo, Vëi-
Vai, traduzido por Pedro Cesarino como “Caminho-Morte”. Refere-se ao perigoso trajeto que,
segundo a cosmologia Marubo, os “vakas”, duplos dos mortos, têm que percorrer no seu destino
pós-morte até a chegada ao Céu da Troca de Pele, tarefa que muitos não completam, transformando-
se em cupinzeiros no meio do caminho, como mostrado no final do espetáculo.
Quanto ao processo criativo da Cia, como se apontou, começou com um estudo intenso do
O ator está, em primeiro lugar, acompanhado pelos outros atores, que chegam com ele para o aquecimento,
leem textos de antropologia sobre os Marubo e outras coisas malucas e pulam para dentro da dramaturgia da
cena, traduzindo em ações, movimentos, sons e palavras suas impressões, como se tivesse refletido anos para
abarcar a... a importância do parentesco para os nativos e o sentido do devir para a civilização ocidental e a
falta que me faz meu pai, em seu terceiro aniversário de morte. (ROMANO, in CESARINO, 2007: 22)
Isto que a atriz escreve evidencia o trânsito de tudo que é estudado e trazido para perto dos
criadores e recriado em cena. Há uma autorreferência nesse recurso intercultural, uma referência a
nossa cultura ocidental e também um referência à posição do criador, com implicações existenciais
próprias a cada elemento do grupo que repercutem na cena.
O tema da morte, como fato compartilhado por todos humanos, resulta numa assimilação
peculiar da alteridade nesse caso, não obstante seja completamente distinto o modo indígena de
encarar a morte. Nessa assimilação, precisamente como no canibalismo, os criadores parecem
apontar deslocamentos no modo de cada um enxergar a morte, a vida e a sua relação com o “outro”:
é nessa relação que talvez ainda se possa “ganhar novos nomes”.
Nessa aventura de um processo “terrivelmente colaborativo”, a relação entre os criadores é
crucial. Como aponta Lúcia Romano: “O 'outro' torna-se fundamental, porque acompanha o risco
que o ator corre neste tipo de empreitada: divide com ele o desapego pela assinatura da obra,
consciente de que todos são igualmente culpados e igualmente livres para o erro.” (ROMANO, in
CESARINO, 2007: 23)
Esse tipo de interação entre os criadores surge como um terreno fértil para a criação que
parte do recurso a alteridades radicais em relação a sua própria cultura. O processo colaborativo,
postulo aqui, pode criar um campo de indeterminação no qual o recurso intercultural pode se
estabelecer de forma menos afirmativa da dominação cultural.
Idealmente, no processo colaborativo, as funções não estão cristalizadas, há uma implicação
existencial de cada criador, os padrões mentais estão tentando ser fissurados, expandidos, um estado
de risco é sempre buscado. Essas características talvez possam ser vistas como o campo mais
apropriado para estabelecer uma relação de alteridade cultural como base da criação artística, de
modo a não reafirmar aquela “curiosidade dispersa”, aquela lógica omnívora e indiferente que é
característica do mundo contemporâneo.
Voltando ao processo criativo da Cia., é preciso destacar o que eles chamam de “deglutição
cênica”, a transposição criativa para a cena do que foi deglutido no estudo. Cibele Forjaz relata:
Mitos, textos teóricos e conceitos complexos como polifonia da pessoa humana e multi-perspectivismo eram
relidos do ponto de vista da teatralidade e viravam cenas-estudos. Ainda não era exatamente uma construção
dramatúrgica, mas uma forma de compreensão através do teatro, de forma a criar uma linguagem tradutiva
entre culturas diversas. [...] A teatralidade foi o ponto de vista escolhido, a língua que falamos e para a qual
traduzimos todos os mitos e textos teóricos que lemos durante o estudo e pesquisa. (FORJAZ, in CESARINO,
2007: 55)
O entendimento intelectual das mitologias indígenas e as cosmovisões que encerram foi apenas uma
primeira parcela do que era preciso para a criação do espetáculo. O ponto central era mesmo o
entendimento cênico, a tradução (transcriação) de tudo que era estudado para o corpo, para o jogo
dos atores, para a música e sonoplastia, para o espaço, para a maneira de iluminar esse espaço, etc.
Vale notar, nesse entrecho, que, associando 'tradução' e 'canibalismo' ou 'antropofagia', o
âmbito de reinvenção do universo indígena está em relevo. O entendimento não intelectual, mas
propriamente cênico, teatral é que está em jogo. Digamos que se come “outro” para regurgitar a
presença: presença do artista-devorador já renomeado pela assimilação do “outro”.
Nesse processo de tradução das noções indígenas para a cena, para a linguagem teatral, foi
central para o espetáculo a noção de perspectivismo. Vale apontar aqui questões relativas à tradução
dessa noção no processo de criação do espetáculo.
O pensamento ocidental, de maneira geral, entende a “humanidade como erguida sobre
alicerces animais” – a partir do substrato animal, portanto a partir da natureza, os homens teriam
constituído o que se chama de mundo da cultura, de modo a permanecerem “no fundo” animais. “O
pensamento indígena conclui ao contrário que, tendo outrora sido humanos, os animais e outros
seres constituintes do cosmos continuam a ser humanos, mesmo que de modo não-evidente.”
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002 :356) Em outras palavras, o estágio original do qual o mito é o
relato apresenta a 'humanidade' como condição comum aos seres e não a 'animalidade' como
condição originária.
Mais do que um antropocentrismo trata-se de um antropomorfismo: a 'forma' humana está
subjacente às formas específicas não-humanas5 que são em geral apreendidas pelas outras espécies
de seres que compõem o cosmo: o jaguar vê o homem como não-humano tanto quanto nós vemos o
jaguar como não-humano. Assim, as animais (bem como os outros seres), portanto, tomam-se por
gente, veem-se como pessoas. Viveiros de Castro explica que “tal concepção está quase sempre
associada à ideia de que a forma manifesta de cada espécie é um envoltório (uma 'roupa') a esconder
uma forma interna humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou de certos
seres transespecíficos, como os xamãs” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002: 351)
Como escreve Viveiros de Castro, para nós ocidentais “a forma do outro é a coisa”, no
universo ameríndio , “a forma do outro é a pessoa”. É nisso que se baseia o perspectivismo.
O pensamento perspectivo, ao conceber o mundo como constituído de subjetividades
humanas e extra-humanas, torna possivelmente 6 extensivo o mundo da cultura a todos os fatos e
eventos naturais sob os quais pode se encontrar uma ação intencional gerada a partir de uma
referência da espécie humana. Conforme exemplifica Viveiros de Castro:
O caso mais comum é a transformação de algo que, para os humanos, é um mero fato bruto, em um artefato ou
comportamento altamente civilizado, do ponto de vista de outra espécie: o que chamamos de 'sangue' é a
5 Viveiros de Castro afirma que, devido à enorme importância (mesmo que simbólica) da predação animal para as
sociedades ameríndias, “o animal parece ser o protótipo extra-humano do Outro” (2002: 357). No entanto , os 'seres'
não-humanos em geral ocupam também esse plano de alteridade, figurando como deuses, espíritos, mortos,
habitantes de outros níveis cósmicos, plantas, fenômenos meteorológicos, acidentes geográficos, objetos, etc.
6 Viveiros de Castro observa que a capacidade de assumir um ponto de vista, além de se aplicar a outros seres,
raramente, é extensiva a todas as espécies animais, sendo tal capacidade geralmente relativa aos animais que se
caracterizam como predadores ou presas em relação aos homens. Além disso, tal capacidade não é fixa, mas uma
questão condicionada a diferentes graus e situações. Ele ainda esclarece: “alguns não-humanos atualizam essas
potencialidades de modo mais completo que outros; certos deles, aliás, manifestam-nas com uma intensidade
superior à de nossa própria espécie, e, nesse sentido, são 'mais pessoas' que os humanos. […] A possibilidade de que
um ser até então insignificante revele-se como um agente prosopomórfico capaz de afetar os negócios humanos está
sempre aberta.” (2002: 353)
'cerveja' do jaguar', o que temos por um barreiro lamacento, as antas tem por uma grande casa cerimonial e
assim por diante. […] E assim, o que uns chamam de 'natureza' pode bem ser 'cultura' dos outros. (2002.:361)
A gente ouvia, ouvia. Lia os mitos. O Pedro [Cesarino] explicava. A gente entendia aquilo mentalmente,
intelectualmente. Mas a gente veio entender cenicamente a partir de um 'workshop' que nós fizemos.
Apareciam dois planos, o que era ponto de vista do índio que tinha o seu filho raptado pelo jaguar e o que era
o ponto de vista do jaguar. Ali naquela cena foi que a gente entendeu verdadeiramente esse conceito tão
importante no estudo e contaminou a peça inteira.
“Workshop” é como Edgar chama os exercícios cênicos – a Cia. nomeia tais exercícios também
como 'deglutições cênicas', como foi mencionado – que se baseiam na recriação cênica dos
materiais em estudos. Como ele explica, são tais exercícios que de fato materializam cenicamente o
entendimento das noções do universo indígena e dos mitos estudados, já que o ponto de vista
adotado é o da cena. O exercício cênico referido por ele foi roteirizado da seguinte forma:
Vemos eventos paralelos:
a) Caçador 01
b) Caçador 02 com seu filho
Ambos os caçadores espreitam. O caçador 02 é atacado por uma onça, que foge com seu filho. O caçador
02 resolve ir atrás do felino. Vemos o caçador 01 chegar em sua casa com um filhote de caça e comê-lo
sem demora. Caçador 02 chega em frente à toca da onça e tenta resgatar seu filho. Vemos caçador 01 se
incomodar com o latido de um cachorro do lado de fora de sua casa. Vemos Caçador 02 acender uma
fogueira na toca da onça. Vemos Caçador 01 reclamar do cheiro do mijo do cachorro, e para enxotá-lo,
começa a atirar osso no cão. Vemos o caçador 02 ser atingido por pedaços do corpo de seu filho, caindo em
desespero e resolvendo ir para a aldeia enterrar o que restou do corpo do filho. Vemos caçador 01 comentar
o silêncio, desconfiando que o cão foi embora. Resolve dar uma olhada lá fora. Vemos o focinha da onça
sair da toca.
Tal roteiro nomeado como “roteiro do perspectivismo jaguar e índio” foi retirado do material bruto 7
reunido por Cibele Forjaz e enviado para Newton Moreno, que amarrou a dramaturgia do
espetáculo a partir desse material e da apresentação de todas as cenas – deglutições cênicas –
geradas com base nos estudos. Tal roteiro cênico dá claramente a dimensão da transcriação que se
intentava realizar do perspectivismo para a cena: no ponto de vista do homem caçador, o outro é um
jaguar que lhe toma o filho, enquanto no ponto de vista desse jaguar caçador, o homem é um
cachorro que late e urina diante da sua porta. Embora não tenha especificamente integrado o
espetáculo, a realização desse exercício cênico, conforme observa Edgar, foi um ponto de virada no
entendimento do grupo acerca do perspectivismo e, assim, contaminou toda a peça.
No espetáculo, a principal diferenciação entre as perspectivas é a que diz respeito à
irredutibilidade entre a perspectiva de humanos vivos e humanos mortos: “os grilos dos vivos são os
peixes dos mortos”, exemplifica Viveiros de Castro. O grande fator de diferenciação das
perspectivas é o corpo, já que todos os seres capazes de perspectivar possuem alma. A morte, como
“catástrofe corporal”, distingue vivos e mortos que se mantem comuns, supraespecificamente, pela
comum “animação” dos seres em geral, conforme se entende pela noção de perspectivismo,
tributária de uma visão animista.
7Neste material, há também a “versão narrativa” dessa cena do perspectivismo, em que se lê: “Os dois saíram para
caçar na selva. O pai levou o filho nas costas. O que partiu sozinho tinha fome. Procurando carne, não viu nem o salto,
quando ele pegou a caça jovem e fugiu correndo pra dentro da maloca. Ele, sem seu filho, caiu em prantos e seguiu o
rastro dele até um buraco na árvore. Sorte foi daquele que, presa garantida, preparou seu banquete; cortou pedaços de
carne, até que um cachorro, latindo sem parar, viesse atrapalhar o seu repasto. Ele, na porta do buraco, chorava e gritava
pelo filho; alto, tanto o cachorro, quanto o pai do filho. Ele, que era xamã, jogou água de raiz, cantou pajelança e, com
folhas secas, tocou fogo no vazio do buraco. No banquete, ele ficou furioso porque, além dos latidos, o cachorro agora
mijava na sua porta. A pajelança dava certo, porque do buraco saiu uma espécie de grunhido rouco, enquanto ele jogou
ossos de dentro da maloca, espantando o bicho; e ele, de fora do buraco, recolhia cada arte do menino devorado, até
juntar os poucos e voltar, desolado, pra aldeia. Na maloca, o silêncio deu espaço pro cochilo; bucho cheio; depois de
conferir que, lá fora, nenhum sinal de cachorro; só a fuça dele na porta do buraco.”
Assim, se permanecem humanos, enquanto humanidade de fundo, tal como os animais,
formalmente “os mortos, a rigor, não são humanos, estando definitivamente separados de seus
corpos.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002: 395) Em seguida, Viveiros complementa ainda:
“Espírito definido por sua disjunção com um corpo humano, um morto é então atraído logicamente
pelos corpos animais; por isso morrer é se transformar em animal, como se é transformar em outras
figuras de alteridade corporal, notadamente os afins e os inimigos” (id.: 395).
Vivos e mortos não comungam da mesma referência específica, não estão num mesmo plano
de perspectiva. A transposição para a cena dessa noção de diferentes perspectivas de vivos e mortos
pode ser referida no primeiro movimento da peça, no episódio chamado A mulher que trouxe a festa
dos mortos.
Uma narradora relata que um homem uma vez foi morto enquanto caçava além do seu
território. A sua mulher ficou o esperando e durante essa espera “um pássaro Totó pousou perto
dela”, nos diz a narradora. Nesse momento, outra atriz, na posição de mulher do homem morto,
pronuncia sílabas em um língua desconhecida, em diálogo com o Pássaro Totó, na figura de um ator
que se agacha munido de um apetrecho constituído por regador e espanador, simbolizando o
pássaro. Esse ator também fala numa língua desconhecida. O diálogo entre os dois é traduzido pela
narradora, evidenciado para o espectador o caráter “tradutivo” da peça.
A mulher fala ao pássaro: “Se você fosse humano, me diria onde está meu marido”. “Em
seguida, o Pássaro Totó transformou-se em um homem”, explica a narradora – o ator que, agachado
tinha o apetrecho-pássaro nas mãos, põe-se em pé, o que talvez já evidencie, cenicamente, o caráter
animista presente na noção de perspectivismo ameríndio. A mulher pede para que o pássaro a leve
até o seu marido, com o que o pássaro – depois de avisá-la que seu marido “não é mais como antes”
– concorda e a conduz à “terra dos que morreram violentamente”, funcionando como um tipo de
'animal-xamã'8, já que se mostra capaz de realizar esse trânsito entre o mundo dos vivos e mundo
dos mortos, ou seja, é capaz de transitar entre essas diferentes perspectivas, como um xamã.
Cenicamente, um outra atriz – duplo da mulher – é levada pelo pássaro à terra dos mortos,
que se abre ao fundo do palco com uma iluminação azulada indicando esse outro plano. Enquanto
isso, a outra atriz deita-se sobre uma esteira indicando que dome e está “como morta” no mundo dos
vivos.
Na terra dos mortos, a mulher encontra seu marido que pede que lhe cate os piolhos da
cabeça: “Mas a cabeça dele estava repleta de vermes e não de piolhos”, nos conta a narradora, o que
explicita a disjunção entre a perspectiva de vivos e mortos. Ainda na terra dos que morreram
8 A respeito dessa condição de xamã desse animal, como de outros seres, vale lembra, com Viveiros de Castro, que “de
certa forma, todos os personagens que povoam a mitologia são xamãs, o que, aliás, é afirmado por algumas culturas
amazônicas” (2002: 355). Isso acontece porque os mitos tratam de um tempo de indistinção entre homens e animais,
entre todas as comuns dicotomias.
violentamente, o duplo da mulher tem contato com a festa dos mortos, onde bebiam o fermentado
de sangue, dançavam e tocavam flauta. Depois disso, a mulher é trazida de volta pelo pássaro.
Nesse momento, a ação volta para o primeiro plano do palco onde a mulher está deitada. A
avó chora sobre o corpo e o “Pajé Flor de Tabaco vem de longe e faz pajelança. Toca maracá e vê
pela cortina de fumaça. Ele vai buscar a mulher na terra dos mortos. Sopra tabaco e suga o feitiço”,
assim a mulher volta a viver. E ao voltar, a mulher ensina a todos a festa dos mortos. No entanto,
quando ela vai comer, não consegue: “tudo que o que tenta comer se transforma em sangue”, relata
a narradora. Ela ficou impregnada pela perspectiva do mundo dos mortos, o que evidencia o caráter
liminar desse o trânsito xamanístico. Por fim, como ela não consegue comer, pede ao tio que a mate,
com o que tio por fim concorda.
Além do caráter tradutivo da cena evidenciado pela narradora que nos traduz a língua
estranha em que falam os outros personagens e seus duplos, a diferença de perspectiva entre vivos e
mortos é clara: enquanto uma coisa é piolho para um, para o outro é verme; enquanto para um algo
é fermentado de mandioca, para o outro é fermentado de sangue e assim por diante. Outros
elementos e cenas do espetáculo buscam se apropriar cenicamente da noção de perspectivismo e de
outras noções do universo ameríndio, como a replicação das pessoas em duplos, o que cenicamente
é representado pela duplicação de atores a desempenhar o mesmo personagem em perspectivas
diferentes, como a referida mulher e seu duplo que visita o mundo dos mortos.
Para terminar, cabe referir o espetáculo de modo geral.
VemVai – O Caminho dos Mortos constituiu-se como um espetáculo processual, com
centralidade de recursos ritualísticos. É dividido em cinco portais, passando por cada um dos quais
o público assistia a um dos cinco “movimentos” do espetáculo que incluem narrativas a apresentar
distintas abordagens do tema morte.
Como relata Forjaz, em entrevista à Daniele Ávila: “As três primeiras cenas [movimentos]
têm a mesma estrutura, que é um problema no presente que é resolvido com a narrativa de um mito
e que transforma o fim da história, resolve de alguma forma aquele conflito a partir do mito.” O
primeiro trata da morte simbólica, um executivo procura uma pajelança na Avenida Paulista, com
dúvidas sobre a sua morte e o que há para além dela.
Nessa pajelança, o executivo entra em contato com um hiper-parente na forma de uma velha
que lhe narra a história da Mulher que trouxe a festa dos mortos, conforme descrevemos acima. Por
fim, a hiper-avó diz sobre a mulher: “Ela não conseguia mais vivê aqui, tendo estado lá. Aqui é
aqui, lá é lá, tendeu? A vida é o tempo que a gente tem para aprender a morrer...”, resolvendo pelo
mito encenado o problema inicial do executivo que procura o pajé-charlatão, que lhe pergunta ao
executivo, por fim, se vai pagar com Visa ou Credicard. Assim, o espetáculo traz à tona questões
rituais e míticas para o mundo contemporâneo, ao mesmo tempo em que problematiza a posição
desses elementos no mundo de hoje.
Voltando aos movimentos do espetáculo, o segundo trata da morte no canibalismo guerreiro.
O terceiro, o canibalismo funerário, em que se devora o próprio parente morto. O quarto movimento
trata especificamente do Caminho-Morte, da trajetória dos mortos pelo perigoso Caminho dos
Mortos. Enquanto o quinto movimento tematiza a chegada de um dos duplos ao Céu da Troca de
Pele, onde o duplo é devorado pelos Deuses Canibais para renascer outro.
Quanto à encenação, vale destacar ainda que a ocupação do espaço oferecia, à passagem por
cada portal, a sensação de se estar se aprofundando cada vez mais nesse caminho escatológico que o
título propõe. A cenografia e a iluminação, juntamente com elementos sinestésicos, funcionavam
não apenas como ambientação e cor local, mas também, em diversos momentos, operavam como
elementos centrais para a condução da ação cênica, instaurando uma discursividade própria. Além
de uma sonoplastia com elementos gravados, a música executada ao vivo – inclusive com canções,
algumas das quais cantadas também pelos atores – exercia função central no desenvolvimento da
peça, sobretudo no quarto movimento quase inteiro cantado.
O espetáculo de modo geral é preocupado em proceder a esse recurso cultural evidenciando
as questões de interface e tradução entre os dois universos em jogo, com o destaque de que é o Povo
das Paulistas que conta os mitos dos Povos das Florestas.
Nesse jogo tradutivo, pode ser citado, por exemplo, o uso de rádios, telefones e gravadores
para manifestar os transportes xamanísticos. Na relação da hiper-avó com a Narradora que vai
relatar o episódio da Mulher que Trouxe a Festa dos Mortos, o texto da peça indica: a hiper-avó
“tira o telefone do gancho e disca. Do lado de lá, Narradora atende. As duas se olham e colocam o
fone no chão, conectados.” Em outros trechos do espetáculo, a mesma metáfora entre xamanismo e
tecnologias de mediação são traçadas. E essa associação é feita pelos próprio indígenas hoje: “'O
Pajé é como um rádio', os Araweté costumam explicar para os brancos.” (VIVEIROS DE CASTRO,
1992: 140)
Cenicamente, um outro exemplo nesse jogo tradutivo é quando o pajé, antes de narrar uma
história, acende o seu cigarro de tabaco, em seguida ao que toda a luz da cena se altera, torna-se
mais avermelhada. Esse recurso expressionista revela no fundo a importância do tabaco para a ação
xamânica, como ficou sugerido no exemplo do Pajé Flor de Tabaco que “vê pela cortina de fumaça”
e “sobra tabaco” sobre o doente. Um dos nomes para pajé na língua dos Araweté é justamente
“comedor de tabaco”.
À guisa de conclusão, vale reafirmar a ambivalência de se estabelecer um recurso
intercultural para a criação: por um lado, a busca de reinvenção radical de tudo aquilo que é
assimilado, por outro, a necessidade, pelo menos por parte da Cia. Livre nesse espetáculo, de não
ocultar a condição de embate e dominação que se coloca na relação com as culturas indígenas. E,
por fim, vale reiterar que o processo colaborativo, pela busca de estabelecer novos modos de
interação criativa entre os artistas envolvidos, muito provavelmente é o solo mais propício ao
desenvolvimento de uma criação cênica baseada na interculturalidade.
Bibliografia
A Companhia
Referências bibliográficas
DE MARINIS, Marco. Dramaturgy of the spectator. The Theatre Drama Review, New
York University, USA, Volume 31, Number 2 (T114), Summer, 1987, p. 100-114.
SCHECHNER, Richard. O que é performance. O Percevejo, Rio de Janeiro, UNIRIO,
Ano 11, N° 12, 2003, p. 25-50.
TONEZZI, José. A cena contaminada (no prelo). São Paulo: Perspectiva, 2011.
UBERSFELD, Anne. La escuela del espectador, Série: Teoria y práctica del teatro N°
12, Madri: ADES, 1997.
São Paulo, 15 de agosto de 2011
Programa de pós-graduação em Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo
Autor do trabalho: Livia Piccolo
Leitura e emissão no trabalho do ator: um estudo sobre a Cia. Club Noir a partir
de Paul Zumthor
Introdução
O século XX presenciou a revolução das artes cênicas produzida por diferentes
pensadores e artistas ao redor do globo. Com o advento do cinema o teatro passou por
mudanças estruturais radicais. Se antes a linguagem teatral estava compromissada com
a idéia de representação fiel e naturalista da realidade, após o surgimento do cinema ela
teve que repensar seu alcance e sua capacidade. Bertold Brecht, Constantin Stanislavski,
Meyerhold, Jerzy Grotowski, Peter Brook, Eugênio Barba, Julian Beck, Judith Malina:
esses foram alguns dos artistas, entre muitos outros, que se engajaram em investigar
os novos caminhos do teatro. Dentre as questões relativas à linguagem teatral com as
quais os reformadores se debruçaram, o trabalho do ator muitas vezes ocupou lugar
central. Afinal, como disse o encenador inglês Peter Brook1, basta alguém fazer alguma
coisa e alguém assistir que já se instaura o teatro. Diante da popularização do cinema
e do status que o ator alcançou nessa indústria milionária, tornou-se urgente perguntar
qual o papel desempenhado pelo ator no fenômeno teatral. Qual a potência do ator, qual
a especificidade de seu trabalho e quais são seus mecanismos técnicos? Essas foram
algumas das perguntas que receberam múltiplas respostas ao longo do século XX e que
continuam a existir no teatro contemporâneo.
A questão relativa ao trabalho do ator com o texto teatral continua bastante atual.
Historicamente houve um momento em que o texto dramático ocupava o lugar central
na cena: todos os elementos constituintes da linguagem teatral – cenografia, iluminação,
sonoplastia, figurino – se articulavam para revelar os sentidos latentes do texto. Uma
relação piramidal se estabelecia: o texto no topo e o restante nos demais degraus da
pirâmide. Hoje, após todas as reformas ocorridas, a relação transformou-se. O texto
não está mais centralizado e os componentes da cena estão em uma relação horizontal.
1BROOK, Peter. A porta aberta. Reflexões sobre a interpretação e o teatro. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1994
Todos possuem o mesmo peso na composição dos sentidos da obra. Com essa operação
na linguagem teatral, houve, concomitantemente, a transformação do trabalho do ator.
Na relação piramidal, o ator deveria, em primeira instância, trabalhar sua performance
focando totalmente no texto. Todo seu trabalho técnico, sua atenção e seu compromisso
estavam ligados aos sentidos do texto. Essa perspectiva explodiu e hoje sabemos que
a potência do ator extrapola os limites do texto. E, ao trabalhar o texto, o ator tem em
suas mãos uma infinidade de possibilidades, não mais somente trabalhar para revelar os
sentidos semânticos do texto.
É aqui que trazemos à tona a Cia. Club Noir, companhia teatral sediada na
cidade de São Paulo (SP). No panorama da produção contemporânea, a Cia. Club Noir
ocupa um lugar de investigação radical sobre o papel do ator e o que ele pode realizar
com o texto teatral.
2A passagem escrita pelo diretor, dramaturgo e gestor da companhia, Roberto Alvim, encontra-se no site
oficial do grupo: www.ciaclubnoir.com.br
Algumas das últimas montagens do grupo são as peças Pinókio – inspirado na
fábula Pinóquio, de Carlo Collodi (1826-1890) e a trilogia de peças do dramaturgo
norte-americano Richard Maxwell – Burguer King, Casa e O Fim da Realidade.
Durante os meses de maio, junho e agosto de 2010 participei de uma oficina de
interpretação na sede da companhia, ministrada por Juliana Galdino e por dois outros
jovens atores da companhia. Os encontros aconteciam segundas e quartas feiras, das
10:00 às 13:00 hrs e contavam com vinte participantes. A oficina encerrou-se com um
ciclo de leituras, onde pudemos experimentar junto à platéia o que foi vivenciado ao
longo dos encontros. No decorrer da oficina pude compreender melhor os pilares que
fundamentam a linguagem da companhia. E, ainda, verifiquei como seria fértil analisar
o trabalho da companhia à luz do pensamento de Paul Zumthor – começaremos a falar
de Zumthor nas páginas seguintes.
Todos os dias, sem exceção, começávamos com um exercício de desaceleração3.
A indicação era a seguinte: deveríamos andar pelo espaço no tempo mais lento que
conseguíssemos, em silêncio absoluto. O tempo deveria ser realmente lento e os
ministrantes nos observavam atentamente. Se alguém começasse a acelerar, mesmo que
pouco, deveria imediatamente desacelerar. Durante a caminhada deveríamos perceber
nossas tensões físicas e nossos impulsos. Obviamente nos primeiros dias a atividade
foi bastante desconfortável. Houve vezes que andamos durante mais de uma hora,
ininterruptamente, e sempre em um ritmo muito lento.
Após a caminhada começávamos a experimentar o texto – nos primeiros
encontros cada participante escolheu um trecho de sua predileção, depois trabalhamos
com uma adaptação de Juliana Galdino sobre o mito de Prometeu, depois com
as Elegias de Duíno, de Rainer Maria Rilke e, nos encontros finais, com o texto
dramatúrgico Vai vir alguém do dramaturgo norueguês Jon Fosse. Ao terminar a
caminhada meu corpo sempre estava em outro estado. Minha respiração estava alterada
e eu não sentia meu corpo ‘cotidiano’ – o corpo que acorda todos os dias, que sai para
a rua, que vai até a padaria e que executa as diversas tarefas diárias. Após a experiência
da caminhada em tempo ultra-lento meu corpo não pulsava nem se mexia da mesma
3 A atriz e pedagoga Juliana Jardim analisa algumas práticas de desaceleração em seu doutorado. Nele
podemos entender melhor como os exercícios em ritmo ultra-lento geram um estado de sensibilidade e
escuta no corpo do ator. BARBOZA, Juliana Jardim. Vestígios do dizer de uma escuta (repouso e deriva
na palavra). Tese de doutorado. São Paulo, CAC-ECA-USP, 2009.
maneira. Posso dizer que meu corpo estava em um estado extra-cotidiano. E, ao abrir
a boca para dizer as primeiras palavras do meu texto, absolutamente tudo acontecia de
modo desconhecido.
Juliana nos dizia: “fale palavra por palavra, utilize seu estado desacelerado
para desencobrir a palavra. Construa no momento presente e sem ansiedades”.
Roberto Alvim nos disse que a expressão “desencobrimento” foi cunhada pelo filósofo
Martin Heidegger em seus estudos sobre linguagem e servia de norte para a pesquisa
da Cia. Para eles, a expressão é ideal para que o ator compreenda o que deve fazer
em cena: desenhar o abstrato pelo concreto. Por meio da concretude da palavra –
seu tamanho, sua sonoridade – o ator deve trazer à tona os sentidos do texto. Em
determinados tipos de performances o ator coloca intenções e subtextos nas palavras.
Aqui a perspectiva é claramente outra. O ator não deve acoplar musicalidades formais e
externas. Se fizer isso, ele está deliberadamente transformando o movimento e a energia
inerente a cada palavra. Não interessa aquilo que o ator pode fazer com a palavra, ou
seja, ou desenhos vocais que consegue executar. Cada palavra é uma usina de energia
e de sensações. Todo o trabalho técnico de desaceleração serve como base para que
o performer seja capaz de perceber essas sensações. Cada sensação leva o ator a um
lugar e, neste lugar – muitas vezes desconhecido – o performer está exposto e cheio de
possibilidades. Deste modo, a transmissão do texto deixa de ser uma construção formal
fria e passa a ser o movimento vivo que denota as reais energias contidas no texto.
Assim, o performer não determina tudo antes e não permanece alheio.
Durante todo esse processo o ator deve se observar. Uma das capacidades que
o performer precisa desenvolver é a auto-observação. Ao mesmo tempo que executa,
precisa observar sua ação e seus impulsos. Segundo Roberto Alvim e Juliana, tudo o
que se desenrola no trabalho de apropriação do texto é da ordem do acontecimento. Se
está formalizado e desconectado com o momento presente, está morto. O diálogo com a
obra precisa ser no momento presente, absolutamente.
Durante a oficina realizamos muitos outros exercícios: equilíbrio e desequilíbrio
corporal, fonemol, exercícios técnicos de aquecimento da voz, etc. A despeito das
diferenças entre os exercícios, todos convergiam para o mesmo ponto de vista: o ator
não está a frente da palavra. Isso equivale a dizer: o ator não deve colocar sentidos
prévios na palavra, não deve submeter o texto às suas próprias interpretações. Deve
colocar a palavra em primeiro lugar. Ela, por si só, já é um universo complexo e
pulsante. As interpretações pessoais enclausuram o texto em uma realidade muitas vezes
medíocre.
Segundo Roberto Alvim e Juliana, cada ator deve perceber seu próprio diálogo
com a obra. O que uma palavra gera em um ator não é o mesmo que em outro. Aquilo
que se diz começa naquilo que se lê – e o fenômeno da leitura é indiscutivelmente
pessoal e intransferível. É aqui que Zumthor nos oferece substrato para continuarmos a
reflexão.
4 Sobre a performance como forma artística há um livro excelente, no qual o autor conceitua
detalhadamente o fenômeno artístico: COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo:
Perspectiva: 2004.
Discutindo e ampliando a noção de texto literário, passa por teorias
estéticas contemporâneas, bem como pelas da comunicação e da cultura,
deixando-nos a percepção de que o texto se tece na trama das relações
humanas. (ZUMTHOR, 2004, p. 125)
É ele (o corpo) que eu sinto reagir, ao contato saboroso dos textos que
5 A qualidade do que é poético o autor nos dá nesse trecho: “Se admitimos que há, grosso modo, duas
espécies de práticas discursivas, uma que chamaremos, para simplificar, de “poética”, e uma outra,
a diferença entre elas consiste em que o poético tem de profundo, fundamental necessidade, para ser
percebido em sua qualidade e para gerar seus efeitos, da presença ativa de um corpo: de um sujeito em
sua plenitude psicolfisiológica particular, sua maneira própria de existir no espaço e no tempo e que ouve,
vê, respira, abre-se aos perfumes, ao tato das coisas. Que um texto seja reconhecido por poético (literário)
ou não depende do sentimento quer nosso corpo tem. Necessidade para produzir seus efeitos; isto é, para
nos dar prazer. É este, a meu ver, um critério absoluto. Quando não há prazer – ou ele cessa – o texto
muda de natureza.” (ZUMTHOR, 2004, p. 35)
amo; ele que vibra em mim, uma presença que chega à opressão. O
corpo é o peso sentido na experiência que faço dos textos. Meu corpo
é a materialização daquilo que me é próprio, realidade vivida e que
determina minha relação com o mundo. Dotado de uma significação
incomparável, ele existe à imagem de meu ser: é ele que eu vivo, possuo
e sou, para o melhor e para o pior. (ZUMTHOR, 2007, p.23)
Conclusão/indagação
A Cia. Club Noir está comprometida com a pesquisa de um teatro conectado
ao seu tempo. Roberto Alvim acredita que o teatro é presença humana pura e sem
intermediações, em sua máxima potência, modelando o tempo, o espaço e a própria
condição humana. Sua aspiração é de inaugurar uma nova relação entre espectador
e obra, pressionando a linguagem teatral além de seus limites. A respeito de seu
empreendimento, a jornalista Gabriela Melão escreveu:
6Gabriela Mellão, jornalista, dramaturga e crítica teatral, em colaboração para o jornal Folha de São
Paulo
Não podemos negar a força de redes como o facebook ou o twitter, essas gigantes
comunidades onde todos podem participar e ter voz. Usuários ao redor de todo o globo
internalizaram essas ferramentas virtuais de tal forma que não podemos mais conceber a
internet sem elas. Fazemos uso diário do facebook e do twitter, para diferentes funções.
Uma prática que é bastante comum no facebook, por exemplo, é o compartilhamento de
conteúdo em vídeo - extraídos do Youtube ou do Vimeo. Milhares de vídeos musicais
são postados pelos usuários todos os dias. Alguém posta alguma coisa e outros fazem
comentários sobre a postagem.
Sabemos que dentro da existência de uma sociedade humana, a voz é
verdadeiramente um objeto central, um poder, representa um conjunto de valores que
não são comparáveis verdadeiramente a nenhum outro, valores fundadores de uma
cultura e criadores de inúmeras formas de arte. É claro que, entre os povos cuja cultura
é puramente oral, a voz preenche uma função muito mais eminente que entre nós, onde
ela é muito frequentemente substituída pela escrita ou pelas mídias. A indagação que
lançamos aqui é a seguinte: será que a tendência cada vez maior do compartilhamento
de conteúdo musical nas redes sociais não assinala uma nostalgia da voz viva? Os dois
trechos seguintes de Zumthor nos abrem caminhos possíveis para pensar a questão:
Adriana Fernandes
Departamento de Artes Cênicas - UFPB
pois ao meu ver, estes termos é que vão propiciar a aproximação da questão
sonora e musical com o teatro de Meyerhold.
O estudioso inglês Sir Cecil Maurice Bowra (1898-1971) citado por
Balakian vai incluir na tradição simbolista todos os poetas que
tentaram manifestar uma experiência supernatural na linguagem das coisas
visíveis e assim quase toda palavra é um símbolo e é usada não em seu sentido
comum, mas em associação com aquilo que ela evoca de uma realidade situada
além dos sentidos. (Bowra apud BALAKIAN, 2007, p. 12)
baseada num sistema simbólico convencionado que vai culminar com a escrita
musical ocidental conhecida, utilizando o pentagrama, claves, fórmulas e figuras
musicais.
A questão simbólica dentro da trajetória da música inicia-se com os mitos
que rondam a sua origem ao redor da criação da lira de Apolo e do aulos de
Dionísio, passa por Pitágoras explicando as relações da música com os números e
a harmonia das esferas e chega a seu ápice no século XVIII, ao final do período
barroco, quando estabelece-se a teoria dos afetos e a doutrina das figuras. Ambas
estabelecem relações da palavra com a música e entendem música como a
expressão dos sentimentos. A primeira relaciona diretamente as emoções
características, ou afetos, a determinados procedimentos musicais e a segunda
relaciona música e retórica e cria o “word painting” , ou seja, a transposição por
sugestão ou semelhança de um determinada palavra para um procedimento
musical. Percebe-se nestas duas teorias uma tentativa sinestésica, de diálogo entre
as percepções e uma sutil mudança no entendimento da música que passa a ser
pensada como um recurso para compreensão das emoções e dos sentimentos.
Portanto, ao se estudar o simbolismo e suas relações com a música é
necessário ter em mente que a música em si já é bastante carregada de símbolos
que foram sendo agregados ao longo de sua existência, quer seja em relação a sua
performance ou a sua escrita. Tem como característica intrínseca a convenção
sonora, inclusive a categorização do que é ou não música passa pela organização
destes sons convencionalmente, ou seja, ela é formalizada. Um outro dado
bastante importante desta digressão é a tendência sinestésica que envolve música,
seu trânsito livre entre imagens, associações, movimentos corporais, sentimentos,
que será um dos pontos de contato com as técnicas simbolistas.
Depois desta breve explanação sobre a questão do simbolismo na música,
dirijo-me ao simbolismo do final do século XIX que vai influenciar Meyerhold.
Enquanto movimento literário, o simbolismo tem como principais figuras
Baudelaire, Rimbaud, Verlaine, Mallarmé, Henrich von Schubert, Brentano,
Novalis, Tieck, E. T. A. Hoffmann, Villiers, Hofmannsthal, Rilke e D’Annunzio.
No teatro simbolista temos as figuras de Lugné-Poe, Villiers, Maeterlinck,
Hauptmann, Hoffmannsthal, Paul Claudel (seus dois primeiros diálogos
dramáticos) e Yeats. Segundo Balakian a maior preocupação do simbolismo era
“...o confronto entre a mortalidade humana com o poder de sobrevivência, através
4
excelência pois emprega-se os doze sons possíveis da oitava tonal (todas as teclas
entre duas notas dó consecutivas no piano, por exemplo). Foi bastante
influenciado por Beethoven (1770-1827) cujas sinfonias foram e ainda são de
grande relevância dentro da história da música ocidental. Em vários pontos sobre
a obra de Meyerhold, a sinfonia é mencionada como a forma musical modelo para
compreender suas encenações.
A sinfonia está diretamente relacionada com a sonata, forma musical por
excelência desenvolvida durante o classicismo (segunda metade do século XVIII,
aproximadamente 1750-1825). A forma sonata que será empregada em pelo
menos um dos movimentos da sinfonia (normalmente o primeiro) é caracterizada
pelo contraste e daí ser tão interessante para o compositor o seu uso. Através desta
forma o compositor tem maior liberdade de expressão, porque a forma impõe a
criação de contrastes, quer sejam rítmicos, melódicos, harmônicos, quer sejam
com relação às tonalidades ou ao material temático. Ela apresenta uma primeira
seção denominada de exposição onde um primeiro tema é apresentado na
tonalidade que normalmente dá nome à peça (ex. Sonata em Sib Maior, Mozart, o
primeiro tema está em sib maior), depois vem uma transição (chamada de ponte)
que instaura uma instabilidade tonal e já deve propor uma outra tonalidade que
conformará um segundo material temático. Esta seção normalmente é terminada
com recursos claros, incisivos, repetitivos que podem estar ou não dentro de uma
cadência (fechamento). Toda a exposição normalmente é repetida, para deixar
claro para o ouvinte o material proposto.
A segunda seção é denominada de desenvolvimento e nela se instaura a
instabilidade e é aqui que o compositor pode mostrar a sua inventividade a partir
do material apresentado na primeira seção. É uma seção tensa e excitante, onde os
temas podem ser quebrados, combinados, recombinados, estendidos, encurtados,
re-orquestrados. Além disso o material tonal pode ser tratado livremente, usando
do cromatismo. Sua última parte prepara para um retorno ao tema inicial quando
se dá a recapitulação.
A terceira e última seção da forma sonata é chamada de reexposição ou
recapitulação. Nela é como se ouvíssemos novamente a primeira seção com um
pequeno diferencial: a tonalidade deve ser a mesma em toda a seção afirmando e
reafirmando o tom da peça, no primeiro tema, na ponte, e no segundo tema. Caso
7
haja uma coda (parte final), ela também deve estar na tonalidade principal da
peça.
Como se pode depreender nesta descrição e ao se acompanhar a história da
música e se comparar os estilos de sonata de Haydn, Mozart, Beethoven por
exemplo, é notável o que esta forma pode propiciar de inventividade e criação e
ainda contando com um princípio que ao meu ver é altamente carregado de
dramaticidade: o contraste.
No meu entendimento, é aqui, na questão dramática do contraste onde
convergem a sinfonia – onde a forma sonata é executada na dimensão da
orquestra (portanto agregando mais contraste no que concerne aos timbres),
Wagner e suas ideias de obra de arte total, leitmotiv e cromatismo, e os
experimentos do teatro meyerholdiano. Também é importante notar que desde o
aparecimento da forma sonata no século XVII até Beethoven e depois Wagner,
temos a agregação de outros elementos sonoros que se aproximam da literatura e
da arte dramática nas formas difundidas no período. Teremos, por exemplo, o
aparecimento da música programática, que é essencialmente instrumental e está
associada a um poema, uma estória ou alguma fonte literária e em linhas gerais
pretende, em sons, descrever esta estória. Assim surge a sinfonia programática,
cuja Sinfonia Fantástica, op.14 de Berlioz é o mais conhecido exemplo, as
aberturas programáticas, teatrais e de concerto (p.ex. Mendelssohn – Sonho de
uma noite de Verão), as peças de caráter (ex. Schumann), o poema sinfônico
(Liszt e Strauss) e o próprio drama wagneriano.
Jonathan Pitches em seu livro sobre Meyerhold (2003) descreve um pouco
do processo adotado de preparação do ator tendo em vista as questões musicais.
Meyerhold queria de seus atores um comportamento em cena que se aproximasse
de uma composição musical, para que houvesse fluidez, contraste, forma e cor
(p.56). Para isso treina seus atores ritmicamente – ritmo do movimento e da ação.
Descreve esse treinamento rítmico em 3 fases1: otkaz (recusa), posil (enviar) e
1
Embora Pitches não mencione em seu trabalho, existem 4 fases descritas para o treinamento da
biomecânica. Esta outra fase estaria incluída depois da posil, antes da tochka, é chamada de
tormoz, que significa ruptura ou liberação. Como ela ainda é relativa à ação propriamente,
considero que podemos continuar o estudo pensando apenas nas 3 fases citadas por Pitches.
Encontrei em outros estudos referência a apenas 3 fases também, e ainda uma suposta fonte para
Meyerhold foi um princípio japonês de treinamento dos atores e dançarinos conhecido por Jo-Ha-
Kyu (reter – quebrar – permitir), também dividido em 3 partes. Ver Ritmo em Barba e Savarese,
1991.
8
tochka (final do ciclo de ação). Durante a otkaz o ator prepara a ação em sentido
contrário, é o impulso, é o negativo ou a contra ação. Pode também ser pensada
como um prólogo. Se a ação é pular, durante o otkaz o ator se agacha. A posil é a
ação propriamente, a expressão daquilo que foi sugerido no prólogo. De acordo
com o exemplo é o pulo em si. E finalmente a tochka é a finalização da ação,
como um epílogo, mas deve conter e sugerir um novo começo. Então,
completando o exemplo, o ator termina seu salto na aterrissagem e já prepara ou
dá a dica de sua próxima ação.
Podemos perceber aqui uma certa proximidade com a forma sonata. A
otkaz equivaleria a exposição, uma apresentação daquilo que se pretende fazer; a
posil equivaleria ao desenvolvimento, é quando o ator e o compositor fazem
aquilo que são capazes; e finalmente a tochka equivaleria à reexposição que
também guarda segredos e surpresas para o espectador. Embora na sonata a ênfase
esteja na primeira parte, quando da exposição dos temas, e no teatro, ao meu ver,
a ênfase esteja na segunda parte, no desenvolvimento, na ação propriamente dita,
acho que podemos pensar formalmente nesta aproximação como válida. Na
tentativa de ilustrar mais e entender melhor estes procedimentos, passo a traduzir
uma descrição de uma cena citada por Pitches do ator Igor Ilinsky, sobre a peça A
Proposta, de Chekhov. O texto diz: Ele bebe um copo de água. Segundo Ilinsky
esta única frase se torna uma cena inteira:
Ilinsky quebra sua fala, aperta seu coração com uma mão, a lapela do casaco
com a outra. O pai levanta, dá um passo para traz e levanta ambos os braços,
como se Ilinsky fosse nadar para ele. A empregada no fundo levanta a sua
vassoura e a segura em riste no ar sobre a sua cabeça. Existe uma pausa. A
música de Chopin começa a tocar. Ilinsky, ainda segurando a sua lapela, estica a
outra mão para o copo sobre a mesa. Ele segura o copo a uma distância de um
braço de sua boca. Seus olhos se arregalam. A música toca mais alto. O pai e a
empregada permanecem congelados. Com um rápido e brusco movimento traz o
copo para si e bebe a água. A música pára, a empregada retorna para a sua
varredura. Ilinsky cuidadosamente alisa sua lapela e retorna o copo para a mesa.
O pai continua com a sua próxima fala. (Houghton, 1938, p. 123 apud
PITCHES, 2003, p. 56-57, minha tradução)
Fica claro destes itens que Meyerhold tinha que tirar vícios de oratória e
do estilo declamativo que era corrente no século XIX e começo do século XX no
teatro. Propunha uma fala mais leve, mais transparente, que não era a fala trivial e
nem a fala impostada. Queria uma fala associada à linguagem gestual, que por sua
vez era próxima de uma linguagem pictórica (THAIS, 2009, p.23).
Para isso contou com uma parceria interessante, embora tenha durado
pouco tempo. Teve como músico colaborador Mikhail Fabianovich Gnesin (1883-
1957) que estudou com Rimsky-Korsakov, e seus primeiros trabalhos estavam
ligados ao movimento simbolista. Gnesin propôs aos atores de Meyerhold uma
forma partiturizada de falar, que ele chamou de musical reading (leitura musical).
Ele mesmo explica que seria uma composição musical falada onde “não uma
declamação...mas a leitura com uma precisa observação de ritmo e altura.”
10
Aqui mais uma vez a questão das pausas e da rítmica estão ressaltadas.
Percebe-se também uma marcação cerrada dos gestos e ações dos atores em cena
e embora não muito claro nestas descrições, eu acho que havia uma preocupação
composicional a se estabelecer entre e o gesto e a fala, que fosse em contraponto
ou em harmonia. Mas preciso encontrar mais dados e me aprofundar melhor
nestas questões para chegar a conclusões mais contundentes.
Assim, passo a um desfecho destas ideias lançadas neste breve estudo. O
assunto é extremamente intrincado e algumas informações ainda só estão
acessíveis em idioma russo. No entanto, para os objetivos deste trabalho, penso
que pudemos apontar para as possíveis sonoridades pretendidas pelo diretor russo.
Uma das primeiras premissas é o entendimento da música como capaz de
criar uma realidade outra (devido ao seu forte aspecto temporal), que não é a
realidade cotidiana e que precisa contaminar a cena teatral, que também deve
apresentar uma outra realidade, a realidade da arte. Esse contágio se dá a partir do
uso do símbolo, da convenção, da formalização das ações, dos gestos, da voz, do
cenário, da luz, em partituras. Através da convenção, a forma, o tempo, o ritmo
são pensados e planejados com antecedência e ou em diálogo com a música do
espetáculo. “Os atores e a música ocupam o mesmo espaço em viva e direta
relação,” como afirma Pitches (2003, p.54). Meyerhold vai tratar plasticamente o
corpo do ator, baseado em música, em coreografia, em estímulos pictóricos. Os
sons musicais compõem a cena como mais um personagem e participam dos
ensaios cotidianamente. A voz é tratada enquanto som, e traz mais do que seu
significado semântico. É a sua emissão, seu ritmo, sua entonação e as pausas que
lhe são enfatizadas em diálogo com a ação física e a música de cena. Pretende-se
que o espectador exercite a sua imaginação como quando ouve música, mas sendo
estimulado pela cena teatral que envolve imagens e sonoridades. O espetáculo não
é para mostrar uma possibilidade da vida cotidiana, mas uma possibilidade
onírica. É de sonhos que Meyerhold procura provir o seu teatro, mas o sonho
entendido como experiência liminar (lembrando de Victor Turner), de fronteira,
como queria o movimento simbolista: um confronto entre a mortalidade e a
sobrevivência onde imperam as sensibilidades.
12
Referências:
BALAKIAN, A. O Simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 2007.
BARBA, E; SAVARESE, N. The Secret Art of the Performer (A Dictionary of
Theatre Anthropology). New York: Routledge, 1991.
FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário Aurélio de Lingua Portuguesa. 4a.ed.
Curitiba: Editora Positivo, 2009.
FONTERRADA, M. T. O. De Tramas e Fios - Um ensaio sobre música e
educação. São Paulo: Editora da UNESP, 2005
GUINSBURG, J. Stanislávski, Meierhold & Cia. São Paulo: Perspectiva, 2008.
KERMAN, J. Listen. 3rd.brief ed. New York: Worth Publishers, 1996.
MEYERHOLD. Textos Teóricos. Vol.2. Tradução de Jose Fernandez. Madrid:
Alberto Corazon Editor, 1972.
PITCHES, J. Vsevolod Meyerhold. London: Routledge, 2003
RAYNOR, H. História Social da Música. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
SITSKY, L. Music of the Repressed Russian Avant-Garde, 1900-1929. Westport,
CT: Greenwood Press, 1994.
TAME, D. O Poder Oculto da Música. São Paulo: Cultrix, 1984.
THAIS, M. Na Cena do Dr. Dapertutto. São Paulo: Perspectiva, 2009.
TRADIÇÃO FUTURISTA E REGIONALISMO GLOBAL NA PERFORMANCE DO
TECNOBREGA EM BELÉM DO PARÁ 1
Resumo
1
Sugiro que a leitura do presente artigo seja preferencialmente acompanhada pela mídia audiovisual citada nas
Referências.
2
Guerreiro do Amaral é Professor Adjunto no Departamento Acadêmico de Artes (Dart) da Universidade do
Estado do Pará (Uepa), onde leciona para os cursos de Licenciatura Plena e Bacharelado em Música. Coordena
ainda o GEMAM – Grupo de Estudos Musicais da Amazônica, criado em 2010 e voltado a pesquisas dentro do
campo da Etnomusícologia.
propagandístico status de “metrópole da Amazônia” – culturalmente falando –, expressão
3
estampada na homepage da Prefeitura Municipal e que me parece ter caído na “boca do
povo” há algum tempo. Mas a acepção usual do termo metrópole parece ser outra, todavia. Eu
não sou um caso à parte: nasci em Belém e lá vivi grande parte de minha vida, de tal modo
que, naturalmente, vejo-me por aí falando bem de minha terra-natal, inclusive de que ela é
sim, em termos do não-sei bem como explicar, a “metrópole da Amazônia”. De uns tempos
para cá, porém, tenho pensado bastante a respeito de como eu poderia defender a idéia de uma
Belém metropolitana sem precisar lançar mão da geografia, da economia ou da administração,
isto é, das áreas de conhecimento às quais costumeiramente eu relacionava metrópole.
Quando saí de Belém pela primeira vez para morar em outro lugar, pessoas
costumavam me dizer que eu passaria a residir não mais em uma província, mas em uma
grande metrópole. O detalhe, no entanto, é que em São Paulo eu estabeleceria contato com a
cultura do mundo, percorrendo-a sem precisar arredar os pés de lá. Ou ainda, que São Paulo
significava a reunião de diversas culturas em uma mesma cidade, a exemplo das comunidades
estrangeiras que se concentram em determinados bairros da cidade: os japoneses na
Liberdade, os italianos no Bexiga, os judeus em Higienópolis, os alemães em Santo Amaro,
entre outros.
Enquanto estive em São Paulo, e apesar dos vários problemas de adaptação à nova
vida, eu acreditava que estava no lugar e no tempo certos para tanto encharcar-me desse
4
cosmopolitismo emanado da cidade quanto para exercê-lo da melhor maneira que pudesse,
especialmente por sentir-me assombrado pela possibilidade de não poder novamente
experimentá-lo quando de meu retorno a Belém.
3
Acessar http://www.belem.pa.gov.br/app/paginas/conheca.belem.php
4
Exercer o cosmopolitismo é também lançar mão das experiências acumuladas nas trajetórias de vida de cada
indivíduo.
simultaneamente o identificaria com sua região de “origem” e com certo modelo conceptual
difundido em escala global. Ou ainda, respeitando certa hierarquia, isto equivaleria à
representação de sonoridades locais partindo de uma linguagem universal, assim como o
inverso, isto é, se utilizaria sistemas locais para reinterpretar matrizes sonoras mais
abrangentes. Trata-se do tecnobrega.
Hermano Vianna (2003) diz que o tecnobrega consiste na “nova evolução de um dos
estilos mais populares que a música popular brasileira já produziu”, ou seja, do brega, que na
década de 1960 invadiu diferentes regiões do Brasil, dentre as quais Goiás, Pernambuco e
Pará. Sob influência da Jovem Guarda, o brega brotou de um modo mais “suave” de tocar o
rock básico (guitarra, baixo e bateria) – batizado no Brasil de “iê-iê-iê” – e trilhou um
caminho diferente da secular tradição musical romântica nacional. De um lado, a música pop
internacional disseminava-se em território brasileiro sem parcimônia; de outro, ganhavam
popularidade artistas brasileiros da Jovem Guarda tais como Roberto Carlos, Wanderléia,
Ronnie Von, Erasmo Carlos, Renato e Seus Blue Caps, entre outros que cantavam em
português, mas que se embebiam do espírito cosmopolita gestado no rock and roll e na
“febre” da guitarra elétrica que se espalhava pelo Ocidente.
Acanhado nas altas rodas, a Jovem Guarda migrou para os interiores. Nas cidades, por
sua vez, “manteve público fiel entre as camadas mais pobres da (...) população, passando a ser
chamada pejorativamente de brega” (Vianna, 2003). Em Belém, semelhante público passou a
freqüentar os chamados “bregões”, vocábulo nativo (presente em narrativas de atores da cena
5
musical brega de Belém – produtores, DJs, compositores e cantores) para identificar casas
5
Os produtores (também chamados de DJs) criam o tecnobrega em estúdios, enquanto que os DJs propriamente
ditos comandam festas populares onde estas músicas são tocadas. Os compositores criam músicas fora do
estúdio, geralmente auxiliados por instrumentos como violão ou teclado. Alguns compositores cantam suas
próprias músicas, embora existam cantores que atuam apenas como intérpretes. Adiante eu trago informações
sobre o circuito produção-circulação-recepção do tecnobrega.
de shows especializadas em tocar música brega para um público “brega”. Em seu artigo
Brega, Samba e trabalho acústico: variações em torno de uma contribuição teórica à
Etnomusicologia, Samuel Araújo (1999) traz a discussão em torno da banalização nacional do
termo brega, ou seja, qualquer música que sugira conteúdo “grotesco” poderia ser classificada
como “brega”.
6
Acessar http://www.overmundo.com.br/overblog/dominguinhos
7
Acessar http://www.portalcultura.com.br/terrua
alternativas. O que há de mal nisto? Nada mesmo, especialmente se
começarmos a relativizar este modo de produção e considerarmos as
mudanças estéticas que o tecnobrega vem sofrendo (...).
Mais do que em uma música criativa, para Vianna o tecnobrega consiste em uma
alternativa fascinante de negócio auto-sustentável, em que a atuação de gravadoras é
completamente dispensável. Considera ainda que a interferência dos selos impede que se entre
em contato com certas músicas e gêneros existentes mas que não circulam.
Se, por um lado, o tecnobrega firmou-se no comércio de discos e de shows pela via da
informalidade, não é incorreto dizer que, recentemente, bandas, cantores, e até
“aparelhagens”, vêm buscando conquistar outros públicos, mesmo os que tradicionalmente
8
O surgimento das “aparelhagens” em Belém remonta à década de 1950 (Costa, 2004).
9
Os samplers são aparelhos utilizados no sampling, isto é, em técnicas de construção de ritmos e melodias
provenientes do house e do techno (Contador, 2001:56).
lhes viram as costas. Desse contexto surgem o que vou denominar “performances midiáticas”,
que nada mais são do que performances extraordinárias que estabelecem relações mais
estreitas com atuais mídias exploradas dentro do circuito convencional de produção,
circulação e recepção musicais, a exemplo de espetáculos ao vivo em que são gravados
DVDs.
Gravado em março de 2005, o primeiro DVD da banda Tecnoshow conta com vinte
duas músicas, sendo dezoito delas assinadas por Gabi Amarantos. Escolhi para comentar a
última dessas músicas, intitulada A espaçonave do som, nome inspirado no formato da
“aparelhagem” Rubi, que pertence à família do DJ Gilmar. A música em questão consiste em
uma “versão” de Shut up, canção gravada pela banda americana (de Los Angeles) de hip-hop
Black Eyed Peas. Segue abaixo a adaptação da letra original por Gabi Amarantos.
10
Shut up, shut up, shut up, shut up, shut up, shut up,
shut up, shut up, shut up,
10
Para ouvir a gravação original, acessar o shut up, shut up, shut up,
endereço
http://musica.busca.uol.com.br/radio/índex.php?bus
ca=shut+up¶m1=homebusca&check=musica&
enviar=OK# Afim de que sejam percebidas mais Agora eu vou curtir a espaçonave do som
claramente certas passagens vocais improvisatórias,
sugiro que, além da leitura da legenda que vem na Sentir muita emoção e ouvir Tecnoshow
mídia, o leitor/ouvinte/espectador acompanhe a
transcrição da letra da versão da canção.
DJ Gilmar, o poderoso do Pará
Faz a nave decolar E agora eu vou curtir a espaçonave do
som
Sentir muita emoção, ouvir Tecnoshow
Um dia eu consigo encontrar a saída
DJ Gilmar, o poderoso do Pará
Pra esse sentimento que invade minha vida
Faz a nave decolar
Até me desespero e a solidão domina
Que vontade de gritar
O som que bate forte
Eu quero ouvir você cantar
E me faz delirar
Espaçonave a decolar
Agora eu vou curtir a espaçonave do som
Quero ver você sair do chão
Sentir muita emoção, ouvir Tecnoshow
Sai do chão, sai, sai, sai, uhhh!
DJ Gilmar, o poderoso do Pará
Tecnoshow!!
Faz a nave decolar
O que motiva alguma reflexão pra mim a respeito dessa chamada "música
de periferia" é que você e o Pedro Sanches, por exemplo, mostram a
importância de se perceber que há algo acontecendo por trás dessa
produção, mas não se preocupam em apontar a possível limitação da
sensibilidade que vem a reboque disso tudo (...). Acho que alguém precisa,
com e contra você [referindo-se a Hermano Vianna], tensionar essa visão, a
meu ver, parcimoniosa, de achar que a música da periferia é uma linha de
continuidade de certo padrão do cancioneiro nacional e que isso não
significa um enorme prejuízo para o nosso desenvolvimento como nação. Se
a música popular nos representa, se é nossa mais forte "representação", é
preciso pensar sobre essa "nova identidade", que põe até um Chico Buarque
em dúvida a respeito do fim da canção, por exemplo... se a canção está
acabando como, de fato, parece estar, é porque nós também estamos
definhando como país. (...) Não esqueçamos que a música popular nos
expressa enquanto povo, e se antes nos sentíamos representados por um
Luiz Gonzaga e hoje precisamos nos ver no tecnobrega, estamos descendo
ladeira a baixo, junto com a política, a sociedade... (...) Não posso levar a
sério - de um ponto de vista formal, rigoroso, técnico uma música que nunca
quis ser séria, que sempre foi mestre na auto-ironia (...).
11
Acessar o endereço http://www.overmundo.com.br/overblog/dominguinhos
difícil-criativo é defendê-las ou falar delas sem necessitarmos recorrer aos poderosos clichês
conceituais, especialmente em se tratando de uma música estigmatizada.
Sobre esta questão trago um fragmento de minha autoria em que elucido minha relação
de aproximação/estranhamento com a música brega. 12
Até “ontem” jamais havia pensado em pesquisar sobre uma música tão
distante da minha realidade, seja em função do trajeto que percorri como
músico de formação erudita, seja também por ter crescido em um grupo
sociocultural pequeno-burguês atento a certos padrões de como se vestir, o
que apreciar musicalmente, que lugares freqüentar, com quem relacionar-
se, que profissões valorizar etc. A “moda”, através da qual estes e outros
modelos se revelam, integra um conjunto de fatores que encorpam
distanciamentos entre pessoas com estilos de vida já bastante diferenciados;
implicam também na adoção de categorias como “chique”, “brega”,
“elegante”, “fora de moda”, daí em diante. (…) Impressionado com
notícias sobre a mobilização de público gerada por estas festas [refiro-me às
“festas de aparelhagem”], apesar de serem pouco divulgadas nas mídias
oficiais, fui conferi-las a olhos e ouvidos nus. Ao fim de uma festa, saí dali
completamente ávido por entender que força é essa que consegue
simultaneamente contentar tanta gente e importunar outros tantos. (…)
Certa vez, em Belém, sentado à mesa de um barzinho com amigos e
assistindo a um show de MPB, criei coragem e comentei que estava
estudando o tecnobrega para a minha tese de doutorado. A reação foi
imediata, tanto a deles quanto a minha. Levantei a voz e disse-lhes que
somente compreendia o acontecido porque um dia, infelizmente, já me vi por
aí falando “asneiras” dessa natureza. Sinceramente, a verdade é que pouco
sabia sobre o tecnobrega para dar-lhes uma resposta mais à minha
maneira. Isso requeria mais conhecimento da minha parte; continua
requerendo, aliás. Eu estava sim imbuído de um desconforto semelhante
àquele sentido pelas pessoas que carregam o estigma de ser “brega”, os que
realmente conhecem a música. Retomando um comentário anterior, lá
estava eu deliberadamente falando sobre o que não conhecia. Assim sendo,
numa tentativa de quem sabe abandonar meu discurso vazio em defesa da
música brega – tão vazio quanto o discurso que lhe atribui a marca de “mau
gosto estético” –, resolvi intensificar minhas idas às festas, além de
acompanhar a produção do tecnobrega em estúdio (...).
Dentro dos estudos da performance, entendo que um primeiro passo para se tentar
rediscutir o discurso midiático ligado à música brega e a um estilo de vida “brega” consista
em redimensionar a idéia de gênero musical, que na visão de Bauman (1996: 88) não se limita
a critérios formais fixos – conforme sustenta Burnett em sua citação. Aquele autor considera
que, se por um lado o gênero é definido pela forma, por outro o é pela função ou efeito,
conteúdo, colocação no mundo e no cosmos, valor de verdade, tom (entonação, importância),
12
Acessar texto no endereço www.cafetinaeletroacustica.com e buscar no banco de dados a palavra
“tecnobrega”.
distribuição social, modo e contextos de uso. Quer dizer, além das propriedades estruturantes,
o texto [musical] possui um “espectro flexível e ilimitado de possibilidades e expectativas
concernentes à organização dos meios e estruturas formais dentro da prática discursiva”
[tradução minha do inglês para o português] (p.99).
Com base nesta concepção de gênero, parece-me fácil compreender que, por conta do
estigma, a música brega simplesmente deixa de ser pensada e enquadrada em características
estruturantes e flexíveis. No que tange à performance, Fucks (1995) defende que não apenas
são minuciosamente orquestradas – “well-orchestrated” (p.14) –, como também exercem
poder e domínio (p.15).
No que diz respeito ao tratamento sonoro, porém, entendo que a relação global/local
torna-se menos distinta, a exemplo da participação das tecnologias computacionais na grade
instrumental e vocal, que por um lado projeta o tecnobrega para uma estética globalmente
compartilhada, mas que por outro a recontextualiza (Bauman, 1990) em nível local. Isto me
soa cosmopolita (Hannerz, 1999), agora na Belém-metrópole e não mais na São Paulo-
metrópole.
Mesmo assim, ainda preciso reforçar a idéia de que a música não é ingênua, da forma
que o discurso midiático costuma definir o brega (Araújo, 1999). Retomando Fucks (1995:
14-17), a música é construída, tal como sua narrativa o é, ainda que sugerindo certas
“ambigüidades” que se projetam naquilo que Bhabha (apud Fucks, 1995: 17) denomina
“forms of difference”. Por outro lado, as representações das formas de diferença são
musicalmente articuladas de maneira multíplice e interdependente, como se essas diferenças
não existissem.
Adaptando a letra de um samba-enredo de Joãozinho Trinta que diz que “o povo gosta
de luxo...”, o luxo do tecnobrega pode ser representado pela tecnologia, que transforma a
15
“festa de aparelhagem” em um show de “classe A”. Estaria então o “luxo-brega”
assenhoreando-se de terrenos “tradicionais” pertencentes a uma “miserável” classe intelectual
(parafraseando mais uma vez o carnavalesco) estigmatizadora que defende a dita música de
“raiz”?
Referências
ARAÚJO, Paulo César de. Eu não sou cachorro não: música popular cafona e Ditadura
Militar. 2 ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.
14
A “nave do som” se move em palco (para dar um exemplo).
15
Extraí a expressão “classe A” do depoimento de um DJ de aparelhagem ao programa televisivo Central da
Periferia, apresentado pela atriz Regina Casé na emissora Rede Globo. No caso, trata-se de uma das edições
transmitidas no primeiro semestre de 2006, gravada em Belém do Pará e com tema nas músicas da “periferia” da
cidade. O DJ relacionava “classe A” a todo o aparato tecnológico existente em sua “aparelhagem” para que se
pudesse realizar um espetáculo de “qualidade”.
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del habla: textos fundacionales. Buenos Aires: Eudeba, 2002.
BAUMAN, Richard & BRIGGS, Charles. “Poetics and performance as critical perspectives
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COSTA, Antonio Maurício Dias da. Festa na cidade: o circuito bregueiro de Belém do Pará.
2004. 320 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e
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__________. Diario de Viaje. Revista Número, Bogotá, n. 49, 2005. Disponível em:
<http://www. revistanumero.com/49/sepa1b.html>. Acesso em 24 ago. 2006.
Audiovisual:
TECNOSHOW E PONTO FINAL. Gabi Amarantos; Márcio Pereira. S.l. Zenker, 2005. 1
DVD.
Performance, Ritual e Semiótica: um estudo do breaking
Introdução
A Cultura Hip Hop tem suas origens nas culturas caribenhas e jamaicanas, no
entanto, ela de fato nasceu como um movimento underground em meados dos anos 70
nas comunidades negras e latinas do South Bronx, na cidade de Nova York (E.U.A). No
início dos anos 60 e 70, os guetos e subúrbios norte-americanos estavam passando por
uma crise – havia muita violência e gangues. Foi dentro desse contexto que o
movimento hip hop surgiu – como uma forma de combate ao racismo, à violência e à
opressão. O jamaicano DJ Kool Herc, considerado um dos pioneiros da música e cultura
Hip Hop, organizava festas em sua casa e em prédios abandonados, nas quais ele
utilizava grandes sistemas de som (sound systems) e usava uma forma específica de
recitação jamaicana, o toasting. Essas festas se tonaram tão populares que tiveram que ir
para locais públicos, a fim de acomodar um número maior de pessoas. DJ Kool Herc e
outros DJs usavam as linhas de energia das ruas para conectar seus equipamentos e
assim faziam performances em parques, nas ruas, nas quadras de basquete públicas, etc.
A dança, o grafite e a música eram utilizados pelas gangues como variações das
competições masculinas e como formas de expressão. Nos anos 80, os elementos do hip
hop que vinham crescendo isoladamente (dança, grafite, música), se uniram para criar
um sistema e o hip hop se tornou o movimento cultural dominante das comunidades
negras e latinas. Percebe-se que essa cultura está relacionada com um estilo de vida, ou
modo de viver, quem se diz „da cultura‟, vive, respira, trabalha hip hop – está presente
no linguajar, nas roupas, nas músicas que ouve, nos locais que freqüenta. A Cultura Hip
Hop não tem base em somente quatro elementos, como é comumente divulgado, além
dos quatros mais conhecidos – breaking, MC, DJ, grafite – outros elementos também
pertencem a essa Cultura, como o beatboxing, a moda e a produção cultural.
O breaking é uma das danças características da Cultura Hip Hop, podendo ser
definido como “uma dança norte-americana criada por jovens (em grande parte negros e
latino-americanos) que nasceu nos block parties do DJ Kool Herc nos anos 70 no sul do
Bronx. É caracterizado por movimentos no solo e movimentos de acrobacia, capoeira e
power moves – movimentos que requerem força” (Fabgirl, B-girl de Brasília)1. Os
movimentos do breaking são rápidos, muitas vezes agressivos e fortes. A rivalidade
costuma estar presente nas performances dessas danças, tanto na improvisação, quanto
na coreografia. Nas rodas, é comum „medir‟ o outro através de sua criatividade, técnica
e ritmo. Ganha quem consegue criar em cima das bases de maneira criativa e lúdica,
sem esquecer-se da técnica e principalmente usando diferentes partes e instrumentos da
música. Isso contrasta fortemente com as danças africanas e latino-americanas (como a
salsa), na qual o espaço das rodas é um local de confraternização, diversão, e incentivo à
dança dos outros, nessas danças o dançarino se alimenta da energia positiva dos outros.
No espaço das rodas das danças urbanas norte-americanos fica nítido que o foco está no
indivíduo, o coletivo quase não está presente. Para os movimentos serem bem
executados, requerem conhecimento do próprio corpo, rapidez, leveza, flexibilidade,
força, técnica, energia e ritmo. Os movimentos, como aqueles encontrados em danças
1
Entrevista concedida a autora dia 12 de julho de 2011
africanas, são „para baixo‟ – o chão é a força propulsora, diferentemente no balé, onde
tudo é esticado, alongado, „para cima‟.
O que é performance?
Identificar com exatidão o que pode ser considerado como sendo performance é
tarefa árdua para aqueles que lidam com performance studies, no entanto, como aponta
Richard Schechner (2006), quase tudo pode ser estudado como performance. O que é ou
não considerado sendo performance não depende do evento em si, mas sim da maneira
como esse evento é recebido e colocado. Nas artes, fazer uma performance é fazer um
show, uma peça, uma dança. Ainda, as performances marcam identidades, brincam com
o tempo, adornam o corpo e contam estórias. De acordo com Victor Turner (1982), a
etiologia da palavra performance deriva da palavra francês arfournir, que significa
„completar‟ ou „executar por completo‟ – uma performance então não está relacionado à
forma, mas sim à um fim apropriado de uma experiência.
Ervin Goffman (apud Schechner, 2006) aponta que performance pode ser
definido como toda a atividade de um dado participante em uma dada ocasião que serve
para influenciar, de qualquer maneira, outros participantes. Ou seja, há de ter uma
intenção do participante. Apesar das performances serem feitas de pedaços de
„comportamento restaurado‟ – cada uma é diferente da outra, cada pedaço pode ser
recombinado de diversas maneiras, ressalta Schechner (2006). Ainda, a singularidade de
um evento não só depende de sua materialidade, como também de sua interatividade,
2
Richard Schechner entende twice-restored behavior como “ações físicas, verbais ou virtuais que não
acontecem / são pela primeira vez, que são preparadas ou ensaiadas. Uma pessoa pode não estar
consciente de que ela está fazendo uma performance de uma parte de restored behavior. Também
conhecido por twice-behaved behavior” (Schechner, 2006, p.29)
que está sempre em fluxo, algo bastante presente em performances ao vivo. Uma
performance, aponta Schechner (2006), acontece como uma ação, interação e relação.
Como foi dito anteriormente, tudo pode ser estudado como performance, para, por
exemplo, entender um objeto como performance, torna-se necessário se preocupar em
investigar o que o objeto faz, como interage com outros objetos (ou seres), e como se
relaciona com outros objetos (ou seres). Entre os oitos tipos de situações que geram
performance apontados por Schechner (2006), está a arte (ou seja, a dança). O autor
aponta, no entanto, que definir o que é arte varia histórica e culturalmente e depende de
sua função e de seu uso.
Schecher (2006) aponta que essa esta estrutura pode ser encontrada em todos os
tipos de performance, apesar de não ser uma regra, mas sim um guia para entender os
processos das performances. Sendo assim, farei uma breve análise da performance do
breaking, tendo como foco a batalha da Cidade Hip Hop (que aconteceu em maio de
2011 em Belo Horizonte no Centro Cultural UFMG) e da Batom Battle (que aconteceu
em agosto de 2011 em Brasília no Centro Cultural Renato Russo) a partir da estrutura
proposta pelo autor.
A batalha que ocorreu no Cidade Hip Hop aconteceu dentro de um evento maior
(o Cidade Hip Hop) que contou não só com batalhas de breaking, como também com
duelo de MCs e apresentações, workshops e palestras que envolviam vários elementos
da Cultura Hip Hop. Ainda, o Cidade Hip Hop é fruto de uma série de grandes eventos
que já passaram pela região metropolitana de Belo Horizonte, como o Hip Hop in
Concert, a Bienal de Grafite, o Duelo de MC´s, o Classics, o Hip Hop Aciona, o Hip
Hop na Veia, entre outros. O Cidade Hip Hop tinha como objetivo unir e articular DJs,
MCs, grafiteiros, e b-boys, com o entendimento que a cidade é o lugar do encontro, do
debate, do amadurecimento. A Batom Battle, que contou também com workshops, além
de batalhas e visou reunir e articular as b-girls do Brasil, foi a fase final de um projeto
maior, intitulado de Resiliência Para Mulheres. Esse projeto teve como objetivo
oferecer oficinas em Brasília para promover o bem-estar e o empoderamento de jovens
mulheres ao longo do período de um ano. Todas as atividades do Cidade Hip Hop e da
Batom Battle eram abertas ao público geral e gratuitas. Em alguns casos, dependendo da
atividade, foi necessário fazer uma inscrição prévia, no entanto, para assistir as batalhas
isso não foi necessário. Esse caráter „aberto‟ fez com que muitas pessoas que estavam
apenas passando pelo local, escutassem a música e os gritos da multidão e entrassem
para conferir o que estava acontecendo.
Entendo o Ritual
Para Schechner (2006), um ritual leva uma pessoa à uma segunda realidade que
está separada da vida cotidiana e de certa maneira uma performance pode transformar o
performer e o público. Todos os rituais compartilham certas características: alguns
comportamentos ordinários são libertados de suas funções originais; o comportamento é
exagerado e simplificado (movimentos são congelados, etc); partes do corpo visíveis
para exibição são desenvolvidas (em humanos são providenciados artificialmente); o
comportamento é executado (performed) na hora certa de acordo com mecanismos
libertadores (estímulos libertando respostas condicionadas) (Schechner, 2006).
3
Liminóides são “ações simbólicas ou atividades de laser em sociedades modernas ou pós-modernas que
servem uma função similar aos rituais em sociedades pré-modernas ou tradicionais. De forma geral são
atividades voluntárias. As atividades recreativas e as artes são liminóides” (Turner apud Schechner,
2006).
sem antecipação. Csikszentmihalyi e MacAloon (apud Turner, 1982) o „flow‟ é uma
“sensação holística presente quando atuamos com total envolvimento” (p.55). O „flow‟
se apresenta em indivíduos - é um sentimento de controle das ações, uma corrente em
fluxo que unifica um momento ao outro, o passado, o presente e o futuro (Schechner,
2006; Turner, 1982). É interessante notar que a palavra „flow‟ é muito utilizada no
breaking no sentido de uma fluidez de um movimento para o outro. O dançarino que
tem „flow‟ tem harmonia em sua dança – seus movimentos dialogam, não há ruptura
ente um movimento e outro.
A batalha de breaking do Cidade Hip Hop estava marcada para começar às 22h
no pátio externo do Centro Cultural UFMG. Organizado por pessoas envolvidas com os
elementos da Cultura Hip Hop, como é de costume em eventos da mesma, o Cidade Hip
Hop visava não só a articulação entre as artes urbanas, como também o empoderamento
das mesmas e o uso e apropriação de espaços tradicionais da cidade de Belo Horizonte.
Cheguei por volta de 22.30h, ao entrar no prédio já escuta a voz do rapper, indicador de
que a batalha ainda não havia começado. No pátio externo, me deparei com um palco,
algumas barracas de comida e bebida e homens e mulheres – entre 50 e 60 adultos,
jovens e crianças - que conversavam livremente enquanto „curtiam‟ o som do rapper.
Logo na entrada vi alguns b-boys que conhecia, os outros, facilmente identificado pelas
vestimentas, principalmente aqueles que portavam camisetas ou jaquetas de sua „crew‟,
se alongavam ou dançavam em pequenas rodas.
Eduardo Sô, um dos primeiros b-boys de Belo Horizonte, foi convocado para
selecionar as oito crews (compostas por três dançarinos) que participariam da batalha e
que competiriam para ganhar o prêmio de R$700,00: Laup Crew, Jesus King,
Lokomotion, Hebreus 11, Stance 333, Skeleton, Radical Breakers e Hunter Of Style. As
regras desta batalha são: duas entradas para cada membro de cada crew. Enquanto uma
crew dança, a outra tem de se manter fora do decorflex. É válido executar uma
coreografia, ou „sequência‟, ou improvisar, no entanto, nas batalhas e nas rodas, os
improvisos são fundamentais. Faz parte do ritual sortear os nomes das crews que irão se
enfrentar em frente aos espectadores (alguns deles, inclusive, são chamados para
participar dessa etapa) a fim de atribuir à batalha um sentido de seriedade, transparência
e justiça. O MC então anuncia o nome e a ordem de batalha das oito crews. Os jurados
(os b-boys Eduardo Sô, Fabrício e Arthur) irão avaliar cada crew em quatro quesitos:
fundamentos, ritmo/musicalidade, criatividade e personalidade. Antes de a batalha
começar, é de praxe que os jurados subam ao palco para fazerem uma pequena
apresentação a fim de mostrarem sua habilidade, ato que marca o início da batalha.
A performance do b-boy é movida pela música, pelo vocabulário que tem, por
seus oponentes e pelo público. O dançarino tem como intenção não só ganhar a batalha
e expressar seus sentimentos, como também mostrar suas habilidades para o público,
ganhando assim mais adeptos. O dançarino sabe como agradar o público, alguns jurados
e seus adversários – musicalidade e power moves (movimentos que requerem muita
habilidade e força física). Nesses momentos, o público, e até alguns jurados (que tentam
ao máximo manter a imparcialidade), deliram em êxtase – mãos vão para o alto, gritos e
aplausos são ouvidos. Essa interação e relação, típicos da performance, ocorrem em um
fluxo constante na batalha – criando laços entre todos aqueles envolvidos na
performance – entre o b-boy, o DJ, o jurado, o público, e inclusive, a música. Os
vencedores da noite são Jesus King e Hebreus 11, a final será no dia seguinte no Lapa
Multishow.
O breaking, como apontado por alguns dos entrevistados, tem como principal
característica ser uma dança „gestual‟ – uma dança na qual os gesto são tão importantes
quanto os passos executados. Kelly, b-girl da crew BSBgirls, ressalta que a batalha é
como uma diálogo, ou uma comunicação, na qual há ação e reação, ou seja, na qual
mensagens estão sendo emitidas o tempo todo. Nesse sentido, o breaking, como outras
danças, está repleto de códigos e signos, os quais dependem de interpretantes para
decodificá-los.
Como foi dito anteriormente, o breaking tem passos básicos, como six-step,
freezes, power moves, no entanto, a passagem entre um passo e outro oferece uma
oportunidade aos dançarinos de realmente „conversarem‟ entre si, por meio de „gestos
codificados‟. É possível analisar os gestos e signos do breaking a partir da qualidade
dos movimentos ou de sua existência, no entanto, para o presente trabalho, farei uma
breve apresentação dos signos como símbolos, uma vez que há uma convenção que dita
o significado de certos movimentos – funcionando como uma linguagem universal do
breaking que tem significado apenas para aqueles que a falam, ou seja, para os b-boys e
b-girls. Os símbolos apresentados abaixos são usualmente performados dentro das
rodas, principalmente nas batalhas, entre um passo e outro e tem o intuito de „dialogar‟
com o adversário – ora dizendo o que será dançado, ora menosprezando o adversário
(como pessoa ou como dançarino), ora mostrando respeito ao adversário.
Foto 1: Superman
Foto 4: Biting
Considerações finais
Inúmeros são os estudos que exploram a Cultura Hip Hop a partir de questões
como a identidade, o território e a violência. No entanto, é possível entender essa
Cultura e suas manifestações a partir de outras perspectivas, como foi apresentado nesse
ensaio. O objetivo não é esgotar o trabalho aqui, mas sim continuar explorando (e
mostrar a possibilidade de explorar o breaking a partir de uma perspectiva, entre
inúmeras outras) a beleza ritualística e performática do breaking, bem como seus gestos
e códigos, utilizando os performances studies para analisar a composição de corpos em
tensão, as fortes batidas, os movimentos acrobáticos e as relações e interações que deles
resultam.
Bibliografia
TURNER, Victor. 1982. From Ritual to Theatre: The human seriousness of play. New
York: PAJ Publications.
A letra da música, cujo ritmo se chama eletro (variação do tecnobrega1, só que com uma
batida mais acelerada), foi encomendada por uma equipe de jovens apreciadores das
festas de aparelhagem2 de Belém, oriundos do bairro da Condor, e traz algumas
expressões muito significativas para se entender a dinâmica de suas relações. É
importante, para eles, ter prestígio perante os demais. Isso lhes confere popularidade e
status dentro do espetáculo que é a festa de aparelhagem.
É neste ambiente das festas de aparelhagem e com o olhar voltado para os grupos
juvenis que se formam em torno delas que pretendo, neste trabalho, analisar como as
relações estabelecidas por estes jovens dentro e fora das festas de aparelhagem orientam
seus hábitos de consumo e suas práticas de sociabilidade. Entendo que este jovem
frequentador da festa de aparelhagem vive uma juventude peculiar que merece ser
pensada. Conforme Novaes (2006), “existem grupos e segmentos juvenis organizados
que falam por parcelas da juventude, mas nenhum grupo tem a delegação de falar por
todos aqueles que fazem parte da mesma faixa etária”
1 A batida conhecida como tecnobrega surgiu no início dos anos 2000, concebida por produtores
musicais, DJs e músicos da região. Trata-se de um som dançante, de ritmo acelerado, que mistura
diversas vertentes musicais através de um trabalho em estúdio com a utilização de aparatos
tecnológicos. O ritmo é uma espécie de fusão de sons eletrônicos com ritmos musicais como o funk, o
pagode, o axé o dance, e com o brega tradicional paraense, este que surgiu na década de 60 e se
intensificou na região a partir da década seguinte, quando a música produzida no Pará, resultante da
mistura de gêneros dançantes de origem caribenha como o bolero e o calipso, passou a ser difundida
com o nome de “brega” regional (Guerreiro do Amaral, 2009).
2 A definição do que vem a ser uma ‘festa de aparelhagem’ será bem detalhada no decorrer do trabalho.
Com base no circuito atual de festas de aparelhagem promovidas na cidade de Belém,
defini duas festas para fazer o meu percurso etnográfico: uma festa da aparelhagem
Super POP3 na casa de festa Pompílio, localizada no bairro da Condor, que é
considerado um bairro de periferia; e outra festa da mesma aparelhagem Super POP na
casa de festa African Bar, localizada no bairro do Reduto, considerado um bairro mais
central. A escolha pela aparelhagem Super POP deu-se pelo fato de a maioria dos jovens
com os quais conversei antes de ir às festas terem se referido ao Super POP como a
aparelhagem “do momento”, “da moda”, além de alguns deles também fazerem parte de
equipes de “fãs do POP” 4. As casas de festa escolhidas foram consideradas pelos meus
entrevistados como um lugar de festa mais “classe média” (African Bar) e um lugar
“mais povão” (Pompílio). Esses paralelos entre periferia e centro estão presentes nas
minhas indagações, por isso achei interessante frequentar uma festa dita “de periferia” e
outra festa dita “de classe média”, para que inclusive pudesse avaliar as práticas de
consumo em cada um destes ambientes. A visita a algumas lojas que vendem as marcas
mais citadas e consumidas pelos meus entrevistados completou o meu percurso, onde
pude comprovar muito do que vi nas festas.
Estas festas de aparelhagem de Belém vêm assumindo, desde meados da década de 80,
um caráter performático em função de toda a diferenciação a que se propõem, seja no
ambiente específico da festa, seja nos ecos produzidos na vida de seus frequentadores.
Elas têm esse nome porque seu eixo central são potentes aparelhagens sonoro-
eletrônicas comandadas por DJs.
3 Nome de uma “aparelhagem” muito conhecida na cidade, cujos proprietários, que também são os DJs
que comandam a aparelhagem, são os irmãos Elison e Juninho.
4 Outras aparelhagens foram citadas por meus entrevistados: Mega Príncipe, Rubi Light e Vetron. As
duas primeiras são mais antigas até que o Super POP, sobreviveram ao tempo e continuam
“arrastando” multidões em suas apresentações. A aparelhagem Vetron tem sido considerada uma
“novidade” no circuito e tem se tornado mais conhecida pelas festas realizadas nas cidades do interior.
5 Gíria nativa que designa uma pessoa prestigiada, querida e respeitada pelos outros, o que confere a ela
um status de celebridade.
O ambiente de uma típica festa de aparelhagem é eclético: regionalismo e
cosmopolitismo se misturam (Guerreiro do Amaral, 2009). A aparelhagem, o DJ e os
painéis de LED instalados em torno dos suntuosos equipamentos sonoros, formam uma
tríade futurista que anima o público de uma forma pouco convencional e o convida a
interagir fazendo símbolos e entoando gritos de guerra em homenagem à aparelhagem.
É mesmo como Regina Casé exaltou no início do programa Central da Periferia (2006):
“viva o raio laser, viva o laptop, viva o MP3, viva a periferia tecnológica!”. Trata-se de
uma Belém “híbrida”, cuja palavra busca referência no conceito de hibridação de
Canclini (2006), no qual a interseção de culturas provoca a junção de elementos até
certo ponto antagônicos, resultando em um sincretismo musical e cultural.
O circuito das festas de aparelhagem extrapola o espaço da festa em si. Ele remonta a
uma compreensão maior, de todos os elementos simbólicos que fazem parte da festa:
participar da festa, conhecer as músicas, conhecer os locais onde elas se realizam, saber
os passos de dança, participar dos fãs-clubes, conhecer as bandas e os DJs e, também,
vestir-se conforme as tendências que apreciam no momento. Tais práticas evidenciam
padrões coletivos de comportamento e de pensamento destes jovens, fazendo que as
festas adquiram um significado sociocultural que vai muito além do seu ambiente
específico. Estas performances dão à festa uma dimensão extraordinária; a festa envolve
toda uma questão tátil que se traduz nos gestos, no corpo e no espetáculo. Trata-se de
um “universo de sociabilidade marcado por códigos” (Costa, 2009).
Conforme Almeida (2003), o jovem entende a “night” (termo utilizado pelas autoras)
como se ela, ao todo, fosse um lugar. O jovem não vai apenas para a festa por si só, ele
vai para um acontecimento como um todo, cujo lugar da festa é um dos elementos que
compõem esse momento de diversão.
Para saber qual será o circuito de festas do próximo final de semana e onde as
aparelhagens mais badaladas do momento irão tocar, basta acompanhar os sites das
aparelhagens na internet, ouvir os programas de rádio especializados em músicas de
aparelhagem, ou mesmo visualizar as faixas fixadas nas ruas do entorno das casas de
festa. Foi através de uma faixa de rua que eu tomei conhecimento da festa do Super POP
no African Bar. Já a festa do Pompílio, eu soube através de consulta ao site do Super
POP na internet, cuja programação do mês inteiro estava disponível logo na página
inicial.
A festa do African Bar foi numa sexta-feira. Cheguei cedo para acompanhar a entrada
dos grupos e como se articulavam na porta da festa. Alguns vinham andando da direção
do ponto de ônibus mais próximo, outros chegavam de táxi, e outros vinham de carro.
Sempre em grupos. Quase não vi pessoas desacompanhadas. Alguns já começavam a
comprar cerveja em lata na entrada da festa, para “aquecer”, conforme um dos jovens
que conversei comentou. Nessas formações grupais, percebi traços de afinidade, tanto
no visual e nas roupas, como nos comportamentos. Conversei com um grupo de
rapazes, cujas camisetas pretas traziam o nome de sua equipe: “os K-ras de Pau”, junto
com uma ilustração dos três personagens do desenho animado “Du, Dudu e Edu”.
Perguntei a um dos rapazes que vestia esta camiseta o porquê da alusão ao desenho
animado: “no desenho, os três meninos moram na mesma rua e são muito amigos. Eles
se juntam e fazem de tudo pra conseguir bombons de caramelo”. Daí, compreendi que a
razão da escolha daquele desenho significava que os membros daquele grupo possuíam
alguma coisa em comum: seja o fato de morar no mesmo bairro, seja os gostos afins,
seja o fato de se unirem em torno de um “ideal”. Observar não só este grupo, mas outros
que se aglomeravam na entrada do African Bar, me despertou grande curiosidade em
entender essas formações de galeras, fãs-clubes e equipes de aparelhagens, que são
“composições lúdico-associativas, geralmente juvenis, para os quais a festa parece uma
constante” (Lima, 2008).
Ali, no ambiente da festa e também fora dela, os jovens em questão representam papéis
e podem se convencer de que “a impressão de realidade que encena é a verdadeira
realidade” (Goffman, 1975, p. 25)
Os rapazes que fazem parte da equipe de André, “Os camaradas do POP”, costumam
6 São considerados 'tipos comuns' os sujeitos que apreciam as aparelhagens assim como apreciam
outros tipos de festa (forró, pagode, boate). Podem ser fãs de uma aparelhagem, mas não chegam a
estabelecer com ela uma relação de devoção.
7 Carretas de quatro rodas, pequenas ou médias, acopladas aos carros através de reboques. Às vezes o
equipamento de som é tão grande que já não cabe mais na mala dos carros, por isso é instalado em
carretas.
marcar encontros na rua onde moram. Isso acontece inclusive antes de ir para qualquer
festa, pois eles fazem questão de chegar à festa em grupos. Eles apropriam-se do espaço
urbano reunindo-se nas ruas, ou até mesmo nas esquinas, nas portas das casas, nas
praças. Criam um ponto-de-encontro fixo, um pedaço8 onde as informações circulam,
onde aprendem as letras das músicas, ensaiam passos das coreografias e acertam os
detalhes para a próxima festa.
Os jovens que frequentam o mesmo pedaço “se reconhecem enquanto portadores dos
mesmos símbolos, que remetem a gostos, orientações, valores, hábitos, consumo e
modos de vida semelhantes” (Magnani, 1992). O pedaço é menos dependente de uma
variável territorial pois, se for o caso, o grupo muda de ponto de referência e passa a
adotar outro lugar. Magnani pesquisa toda uma família terminológica que permite
alcançar outras modalidades de experiências urbanas. Dentre elas, está o circuito, a
categoria mais abrangente de todas, um espaço frequentado pelos sujeitos onde, ali, se
conhecem e se reconhecem, um lugar onde se tem a expectativa de encontrar as
mesmas pessoas. No circuito os sujeitos exercitam a sociabilidade por meio do encontro
em estabelecimentos, equipamentos e espaços. No pedaço, as pessoas se conhecem
publicamente, mas nem sempre se reconhecem como afins. O circuito guarda uma
independência diante da contiguidade espacial (Magnani, 2007) e é nele que os jovens
das galeras, equipes e fãs-clubes encontram seus afins. Eles pertencem a determinados
pedaços, mas é nos circuitos que se reconhecem. O African Bar faz parte deste circuito
de festas de aparelhagem que acontecem na cidade de Belém. Embora a casa de festa
esteja localizada num bairro considerado central, o que representa uma novidade neste
circuito até então reconhecido por ser voltado para a periferia, a aparelhagem que se
apresenta no local acaba por redefinir essas fronteiras. “Não importa onde é, se é o POP,
a gente vai onde ele estiver”, comenta uma das garotas na bilheteria do African Bar.
Esta ideia de que o tecnobrega – e, com ele, a festa de aparelhagem – saiu da periferia e
tomou novos rumos é discutida por Lemos (2008, p. 30):
8 A categoria “pedaço” é uma definição de José Guilherme Cantor Magnani que caracteriza um espaço
entre a casa e a rua, onde as pessoas se conhecem e mantêm relações particulares. Para fazer parte do
pedaço não basta conhecer e transitar por este espaço; é preciso estar familiarizado e entrosado numa
rede de sociabilidade.
metropolitana de Belém, da cidade para o estado do Pará, do estado para o
Brasil.
Nas próprias letras das músicas compostas especialmente para suas galeras, a palavra
surge como o lugar onde eles são respeitados e reconhecidos por todos. É no “seu setor”
que se descortinam as suas redes de relações que combinam laços de parentesco e de
vizinhança.
“GDP chegou, arreda, arreda. Sai da frente meu irmão, que a pista é nossa.
Minha equipe, onde chega, ela incomoda. É muita pressão, a minha equipe
manda ver. Galera do POP agitando no setor. É nós, é nós!” (Trecho da
música da Galera do POP – GDP)
Os “setores” ocupados pelas galeras assumem caráter de território com leis próprias e
por onde galeras rivais não podem atravessar. Dentro dos lugares onde as festas se
realizam há uma espécie de pacto de não-violência entre as galeras, pois o ambiente é
considerando um “templo sagrado”. É fora, principalmente no “território demarcado” de
alguma galera, no seu “setor”, que os conflitos acontecem e onde as desavenças são
resolvidas muitas vezes com episódios de violência. A definição de setor é, por assim
dizer, semelhante à definição de pedaço, pois em ambos há uma variável territorial onde
as relações se dão. A diferença é que, enquanto no pedaço o território “físico” é passível
de mudança, no setor, os sujeitos apropriam-se daquele espaço e brigam por ele, se for o
caso.
Na festa do Pompílio, pude perceber a força da categoria setor para os jovens que ali
estavam. No African, os jovens que ali chegavam, embora também pertencessem a
galeras, equipes ou fãs-clubes, não pareciam disputar tanto quanto no ambiente do
Pompílio. Equipes, principalmente de rapazes, chegavam em comboio. Quanto mais
gente melhor, justamente para mostrar que ali era o seu setor. A equipe de André, que é
do bairro do Jurunas, estava presente na festa do Pompílio. Embora não seja o seu setor,
ali não havia “rivais declarados” da equipe:
a gente somos uma união, entra todo mundo junto na festa [...] os caras da
Galera da Laje, eles são nossos rivais, eles ficam tirando barato com nós. Se
nós tiver com menos baldes9 do que eles, eles vão lá com o DJ e detonam a
gente, aí o DJ vai no microfone e fica provocando. Mas se a gente chega na
festa e não mexe com eles, eles também não mexem com a gente.
Tanto na festa do African Bar, como na festa do Pompílio, os DJs do Super POP
mencionavam a presença de tantas equipes e galeras no local, que já não é possível
quantificá-las. Já são tantos os grupos formados por jovens em torno das aparelhagens
que o fenômeno merece especial atenção, não somente pela reunião em torno de um
mesmo gosto musical e frequência nas festas, mas também pela construção de uma
identidade coletiva ao se denominarem “galeras” ou “equipes”. A convivência e a
aceitação pelo grupo estão então intimamente relacionadas a hábitos de consumo
compartilhados. Estes padrões coletivos de comportamento, segundo Benedict (s.d), são
produtos da vida em sociedade, cujos costumes apreendidos desempenham um papel
importante e regulador de suas escolhas.
Além da ostentação de poder presente na aquisição dos baldes de cerveja na festa, estes
jovens procuram demonstrar prestígio, status e diferenciação através do figurino e das
atitudes no ambiente das festas. Nas duas festas, percebi que estes jovens valorizam
muito a marca de roupa que estão usando. Usar roupas de marcas caras e famosas, assim
como possuir moto ou carro equipado com som potente são atitudes que lhes conferem
a sensação de poder e de sucesso. Ao ver que estes rapazes e moças estavam usando, nas
festas, exatamente as mesmas marcas de roupa que vi na vitrine das lojas do comércio
de Belém, lembrei do meu primeiro contato com a Loja Estátuas e com as lojas da
Galeria Portuense, ambas localizadas nas imediações do Shopping Pátio Belém, centro
da cidade, onde o que estava exposto nas vitrines era um espelho do que aqueles jovens
9 Nas festas de aparelhagem, é comum os jovens das equipes comprarem cervejas em baldes de
plástico. O garçom traz os baldes – “arreia os baldes”, como se diz na linguagem dos jovens – e dessa
forma eles demonstram que estão com “grana no bolso”, que “estão podendo”. Quanto mais baldes,
mais prestigiada a galera.
usavam nas festas. Perguntei ao vendedor da Estátuas, que, curiosamente estava na
porta chamando os transeuntes para entrarem na loja, qual era o perfil do cliente da
Estátuas:
o moleque vem com uma camisa da Pena, da Greenish, da Adidas, da Nike.
Ou ele vem de “sport” ou ele vem de “surf”. Tem outros clientes, tem muitos
moleques aí do lado, que eles trabalham com açaí, com peixe, com camarão,
que eles trabalham também só pra se vestir aqui.
Estes jovens querem comprar roupas de marcas famosas, cujos preços nem sempre
condizem com sua situação financeira. O desejo por consumir estas marcas é muito
evidente entre eles. André, por exemplo, sem ter condições financeiras para usar uma
roupa “de marca”, faz diversos tipos de acordo para possuí-las. Vale inclusive apelar
para as imitações vendidas no comércio da cidade. Porém, por achar que é algo
depreciativo, ele não revela esta prática. Através das marcas que vestem, estes jovens
querem expressar uma “atitude”, uma postura diante da vida. Esta moda diz muito sobre
a sociedade local. Falar dela, no contexto das aparelhagens, é falar sobre os indivíduos
que fazem parte deste universo das festas. O que eles pensam, o que pretendem ser, os
modelos com os quais se identificam. As marcas que vestem transmitem um
determinado estilo, um conjunto de atribuições desejadas por estes grupos. A escolha de
uma roupa para vestir pode revelar os desejos que existem por trás dessa opção. Os
jovens com os quais conversei citaram inclusive artistas que admiram e/ou com os quais
desejam se parecer. Marcelo D2, Racionais MC e cantoras internacionais como Beyoncé
e Lady Gaga estão entre as pessoas famosas citadas pelos jovens das galeras. A moda
que vestem é, portanto, um meio de expressão de sua identidade e de vínculos grupais,
um aspecto marcante da cultura das aparelhagens, um universo de socialização que
exprime comportamentos.
Cabelos tingidos com o efeito conhecido como “luzes”, perfume da moda, corrente de
aço no pescoço, relógio e roupa de marca. A ideia é não repetir roupa. Nas duas festas,
André estava com bermuda, calça e tênis diferentes. Conforme citei anteriormente,
percebi que, no African, havia muitos rapazes de calça jeans. Já no Pompílio, a grande
maioria estava usando bermudas. Porém, nos dois casos, tanto as calças compridas
quanto as bermudas eram “de marca”. Justamente as marcas que vi nas vitrines das lojas
a preços bem altos. As marcas mais apreciadas pelos rapazes são Pitbull, Kenner,
Adidas, Nike e Reebok. As garotas que conversei, na maioria, usavam roupas que
evidenciam o corpo, reforçando a forma física e a beleza. A marca que mais percebi foi
a Pitbull e, sem seguida, Hero. As marcas Absoluta e Fun House, outrora preferidas do
público feminino das aparelhagens, estão hoje em segundo plano. Segundo a vendedora
de uma das lojas que visitei, “são marcas de gordinhas”. Há também um desejo de
consumir as marcas consideradas “de meninas ricas”, como Colcci e Planet Girls.
Outra prática comum atualmente entre as galeras, e que também é uma forma de
prestígio, é possuírem uma música composta especialmente para eles. Eles se reúnem
para fazer uma coleta e contratar um compositor que, em questão de horas, crie letra e
melodia que fale da galera ou equipe. Quando eles conseguem que o DJ execute sua
música na festa, experimentam a sensação de fama, ganhando inclusive mais
admiradores e seguidores. Com orgulho, o pessoal da equipe dos Camaradas do POP
cantarolou um trecho de sua música, encomendada dias antes da festa do Pompílio:
“camarada eu sou, eu sou. Esse aqui é o meu setor, e o Super POP é o meu amor”.
Assim, embora ainda haja a nítida separação entre o centro e a periferia, há sinais de
uma mistura espacial quando se fala na circulação de pessoas, notadamente no ambiente
das festas de aparelhagem. Daí a afirmação de que a festa não mais se resume à
periferia. Tanto o lugar como o público da festa se dissolveram. Arrisco dizer que a festa
de aparelhagem hoje ocupa um espaço simbólico na vida da cidade; um espaço entre o
centro e a periferia, entre as camadas médias e as camadas pobres da população. Prova
disso é a própria festa que hoje toma conta do African Bar, lugar que antes só promovia
festas “de elite”. É bem verdade que essa situação ainda é nova neste cenário. O público
cativo10 ainda é, em sua maioria, oriundo da chamada periferia; porém, há um ecletismo
recente, muito provavelmente iniciado pela própria superprodução musical observada
nas festas, que vem transformando a frequência nas festas.
Este percurso triplo que fiz: uma festa na periferia, outra festa no centro, e visitas aos
locais de consumo dos jovens frequentadores das festas de aparelhagem contribuíram
para a minha reflexão sobre até que ponto os hábitos de consumo desenvolvidos pelos
jovens articulam ou orientam elementos de reconhecimento de vínculos de sociabilidade
estabelecidos no ambiente das festas de aparelhagem. As questões que levantei se
entrecruzaram em minha pesquisa, fazendo-me acreditar que, no universo simbólico e
performático da festa de aparelhagem residem significados múltiplos para se entender
os hábitos de consumo e os vínculos de sociabilidade dos jovens que as frequentam.
10 Costa (2009) define três públicos mais comuns das festas de aparelhagem: o público cativo, composto,
na maioria pela população mais pobre que, além de frequentar a festa, compra os Cds do ritmo e ouve
os programas específicos; o público opcional, que aprecia e dança o tipo de música, sem no entanto
consumir os Cds; e o público momentâneo, composto por pessoas de classe média, que frequentam as
festas de aparelhagem mais esporadicamente, mas que também frequenta outros tipos de festa.
REFERÊNCIAS
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nômades. Espaço e subjetividade nas culturas jovens contemporâneas. Rio de
Janeiro: Rocco, 2003.
APPADURAI, Arjun. A vida social das coisas. Tradução: Agatha Bacelar. Rio de
Janeiro: EdUFF, 2008.
BOURDIEU, Pierre, A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Ed. Perspectiva,
1974.
GEERTZ, Clifford. Obras e vidas: o antropólogo como autor. Rio de Janeiro: Editora
UFRJ, 2005. Cap. 1- Estar lá (p. 11-39). Cap. 6 – Estar aqui (p. 169-193).
KUPER, Adam. A visão dos antropólogos. Bauru: Edusc, 2002. Capítulo 4: David
Schneider: biologia como cultura.
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão de trocas nas sociedades
arcaicas. Sociologia e Antropologia. Cosac Naify, 2003.
AUDIOVISUAL
Brega S/A. Direção: Vladimir Cunha e Gustavo Godinho. Belém: Greenvision Filmes,
2008.
Good Copy, Bad Copy Documentary Film. JOHNSEN, Andreas. Denmark, 2007.
PÁGINAS DA INTERNET
Aparelhagem Super POP – (http://www.superpop.som.com.br)
Músicas de Equipes – (http://www.youtube.com/watch?v=b97XFbMmPnK)
O jogo na criação de formas plásticas no espaço.
RESUMO
1
Neste trabalho pretendo refletir sobre a influência de um sistema de
treinamento na criação artística através do estilo teatral da História em Quadrinhos ou
Quadros Mímicos1.
(..) passa a ocupar o ponto central não como portador de sentido, mas em sua substância física
e gesticulação. O signo central do teatro, o corpo do ator, recusa o papel de significante. De
modo geral, o teatro pós dramático se apresenta como o teatro de uma `corporeidade auto
suficiente’ , que é exposta em suas intensidades, em seus potenciais gestuais, em sua `presença’
aurática e em suas tensões internas ou transmitidas para fora.
1
Tradução da expressão Bande dessinée por Marcelo Gomes do livro O corpo Poético (2010) de Jacques
Lecoq
2
Desenvolvo desde 2001 uma pesquisa junto com grupos de alunos do curso de Teatro no departamento de Arte
Dramática /Instituto de Artes da UFRGS, que se intitula As técnicas corporais do gaúcho e a sua relação com a
performance do ator/dançarino.
3
Jacques Lecoq criou a sua escola Internacional de Mime ,Théâtre et Mouvement em Paris, no ano de 1956.
4
“No teatro pós dramático, a respiração,o ritmo e o agora da presença carnal do corpo tomam a frente do
lógos.Chega-se a uma abertura e a uma dispersão do lógos de tal maneira que não mais necessariamente se
comunica um significado de A (palco) para B (espectador),mas dá-se por meio da linguagem uma transmissão e
uma ligação `mágicas`, especificamente teatrais”(Lehmann, 2007,pg 246)
2
Evidentemente que guardadas as diferenças, entre os vários tipos de teatro a
que ele se refere, existe um denominador comum nesses que é o papel do corpo, que
passa a ser preponderante . A partir desse tipo de teatro, torna-se fundamental um
treinamento que possibilite ao ator desenvolver suas potencialidades corpóreas.
não reduz o ator ao estado de máquina e não nega a sua capacidade de improvisação, ela (a
abordagem biomecânica) abre o jogo ao principio de montagem, coloca o ator diante das
tarefas de criação de imagens espacio-rítmicas, sem função ilustrativa redundante em relação
ao texto, ela o obriga a ver e a se ver no espaço.
5
Biomecânica- Estudo da mecânica aplicada ao corpo humano.Meyerhold utiliza esta expressão para descrever
um método de treinamento de ator baseada sobre a execução de tarefas (..) A técnica biomecânica se opõe ao
método introspective,`inspirado’ nas emoções autênticas.O ator aborda seu papel do exterior,antes de pegá-lo
intuitivamente. (PAVIS,1996,pg34)
3
artística. Esta pesquisa se realiza em equipe com grupos de alunos do Curso de
Teatro6 .Inicialmente criou-se o sistema de treinamento para o ator/dançarino a partir
de técnicas corporais da lide do campeiro gaúcho7 constituída por nove partituras de
movimentos estilizadas baseadas nas atividades da sua lide. Essas partituras
possibilitam ao ator desenvolver a consciência de si no espaço, de mover-se com o
máximo de economia e eficácia. Trata-se de uma abordagem formal do movimento
cênico, contendo os princípios da presença física, onde prioriza-se o desenho que o
ator faz no espaço através dos seus movimentos. Assim, com o corpo treinado e
organizado o ator /dançarino torna-se produtor de ficções a partir de seu próprio
trabalho plástico, imagético. Desde o inicio até a atualidade, a pesquisa já passou por
diferentes fases de trabalho e o sistema de treinamento vem sendo utilizado como um
alfabeto de base para a equipe ,servindo tanto como uma técnica pré expressiva para a
construção de espetáculos como material para a construção de dramaturgias.
8
Após a instrumentalização no sistema de treinamento, o grupo de alunos 9
juntamente com os componentes do grupo Cerco 10 ,iniciou o processo de criação
artística, onde a linguagem utilizada seria a do estilo teatral de História em
quadrinhos 11 . Esse , que se utiliza de elementos da Pantomima Branca 12 e da
figuração mímica 13 , caracteriza-se por ser um trabalho físico que exige muita
precisão, clareza e eficácia gestual pois trata-se de (...) uma linguagem muito
próxima do cinema, em sua seqüência, restituem, pelo gesto, a dinâmica contida no
interior das imagens (Lecoq,idem,pg159).
6
Desde 2001 conto com grupos de alunos durante o periodo de sua formação na graduação , que varia de 3 a 4
anos. Estes alunos seguem os cursos de Bacharelado em Interpretação ou Direção Teatral ou Licenciatura em
Teatro,no departamento de Arte Dramática do Instituto de Artes da UFRGS, em Porto Alegre.
7
As razões de buscar nos elementos da cultura do RGS ,mais especificamente nas atividades da lide campeira
para criar um sistema de treinamento se deve ao fato de percebermos que as técnicas corporais do gaúcho
campeiro , contem os principios da presença física do ator detectados por Eugenio Barba (1993,pg.29-48) a saber:
oposições, equilibrio de luxo, equivalência, icoerência coerente e virtude da omissão.
8
O sistema de treinamento é passado de grupo para grupo desde 2001 ,mantendo assim uma tradição e um rede de
transmissão e de conhecimento.
9
Fazem parte do grupo atual,os alunos Anildo Boes Michelotto,Elielto Rocha e Natália Souza.
10
O grupo Cerco, formado por alunos e ex alunos do Curso de Teatro do mesmo departamento de teatro
(DAD/IA/UFRGS) foi criado em 2008,com o espetáculo O Sobrado a partir do texto homônimo que faz parte da
obra O tempo e o Vento de Erico Verissimo.
11
Quando aprendemos esse estilo teatral, Jacques Lecoq o chamava de Bande Dessinée ,a mesma expressão que
consta no livro original, o que na tradução para português equivale a História em quadrinhos. Na tradução do livro
original feita por Marcelo Gomes vemos a expressão Quadros Mímicos. Mas eu manterei a expressão original,
aqui neste texto.
12
“Chamei Pantomima branca-termo emprestado das pantomimas de época ,em que se representava um Pierrô- à
pantomime que se limita a fazer gestos para traduzir palavras (…) Impõe ,inevitavelmente ,uma sintaxe diferente
daquela da linguagem falada” (Lecoq, 2010,pg158).
13
“A figuração mímica (..) consiste em representar pelo corpo, não mais palavras, mas objetos, arquiteturas,
elementos decorativos de cena”(idem)
4
Instrumentalizados nessa nova linguagem ,e após a seleção de alguns dos contos
do autor Sérgio Faraco, iniciamos a transposição deste material literário para a cena
.Depois da leitura e discussão dos aspectos considerados importantes de cada conto,
organizou-se através da técnica da História em Quadrinhos, do jogo e da
improvisação, a transposição para a cena da atmosfera da história . Como conclusão
parcial , percebe-se que existem princípios comuns entre os objetivos do sistema de
treinamento e o estilo teatral de História em Quadrinhos como a prioridade dada ao
teatro de movimento e de imagens físicas. O domínio das partituras de movimentos
do sistema de treinamento e da linguagem de História em Quadrinhos , além de
possibilitar a precisão, clareza e eficácia gestual, ensina a olhar os outros e a si
mesmo no espaço, e a desenvolver a consciência do mecanismo de seus corpos. Este
domínio físico desses dois sistemas libera a imaginação possibilitando uma
disponibilidade maior no espaço de jogo, oportunizando a realização de formas
plásticas na criação dos climas e atmosferas, assim como dos estados e situações em
que se encontram os personagens .
Referências Bibliográficas:
5
1
A INVENÇÃO DE UM OLHAR
“Uma definição do homem, do nosso ponto de
vista específico, poderia ser que o homem é o
animal que vai ao cinema.”
Giorgio Agamben
memória e dos sonhos” dos espectadores, até que dominasse nossa percepção e nossa
forma de ver o mundo, perseguindo-nos “[...] mesmo quando fechamos os olhos”. Ou
seja, desde sua origem, aponta-nos o antropólogo Massimo Canevacci (1990, p.29), o
cinema teve a necessidade de “[...] reflexões globais e radicais para responder às
perguntas sobre sua relação entre máquina-cinema e as modificações das categorias
centrais da humanidade: o tempo, o espaço, a fábula, o riso, o comportamento”.
Fundamentalmente, tomamos o cinema como um domínio capaz de inventar temas,
mundos e espacialidades, como uma “máquina mimética” (TAUSSIG, 1993a), que
produz e suscita esteticamente espaços de alteração.
Assim, ao analisarmos, na Trilogia das Cores, a problematização da perda, da
ausência, da imigração, notamos uma alteridade relacionada a experiências dolorosas
com o Outro, sobretudo tendo em vista o pano de fundo dos longas: a problematização
dos ideais “universais” da Revolução Francesa e a unificação européia. Esse pano de
fundo está subjacentes aos longas de Kieślowski. Destarte, inquirimos em que medida
se faz presente espaços de alteração e como a construção técnica e narrativa dos filmes
problematiza o “viver” num mundo contemporâneo. Em nossa leitura, um
questionamento transparece nos filmes: que espécie de mundo é esse? É possível, num
continente que se orgulhava de ser herdeiro das tradições iluministas e humanistas, e
que então se renovava, ainda viver esses princípios éticos de forma absoluta?
A Trilogia das Cores, certamente, foi a obra de maior sucesso de público e de
crítica de Kieślowski, que estudou cinema na Escola de Teatro e Cinema de Lodz, na
Polônia, por onde também passaram cineastas poloneses de renome, como Andrzej
Wadja e Roman Polanski. O estilo “oriental”, presente em tantos diretores do leste
europeu, marcou as obras de Kieślowski. Todavia, nesse último, essas caracteríscas
aparecem de maneira inconfundível, com o uso subversivo das convenções estéticas
clássicas, a ambigüidade e a vagueza, os movimentos lentos das câmeras e das
personagens, as elipses, o corte seco, a forte presença da música, entre outras. A
filmografia do diretor costuma ser divida em uma fase polonesa e uma fase francesa: a
primeira, contando a partir de seus primeiros estudos, vai de 1966 até 1989, e tem como
obras mais conhecidas O Amador (Amator, 1979) e O Decálogo (Dekalog, 1988); já a
segunda, teve como estréia A dupla vida de Véronique (La double vie de Véronique,
1990), que lançou Kieślowski como cineasta de prestígio internacional, e terminou com
4
a Trilogia das Cores, considerada por muitos críticos como sua magnum opus1.
Os três longas receberam diversas indicações e prêmios em festivais de cinema,
o que demonstra seu reconhecimento por parte dos profissionais do ramo
cinematográfico2. Kieślowski realizou uma trilogia baseada nos ideais da Revolução
Francesa, imbricando nessa construção cores, sons e tormentos; com efeito, ele fabricou
irônicas e misteriosas meditações sobre os três universais que compõem o lema da
Revolução. Ambientados em Paris e Varsóvia, Bleu, Blanc e Rouge são constituídos por
conturbadas relações humanas e frágeis encontros. Os longas são repletos de zonas de
penumbra e indeterminação; as elipses, os cortes secos e descontínuos e as
interferências (visuais e/ou musicais) nas seqüências dão um ritmo próprio a cada obra.
Nessa medida, propomos como hipótese que a Trilogia, ao desconstruir o ideário
tríptico de valores, problematizando, para tanto, a alteridade ao viver essas entidades
absolutas no mundo que se constituía, inventa esse valores a partir de encontros e
contingências, e propõe uma experimentação – do tempo, do espaço, do sujeito. Por
conseguinte, acreditamos que a desconstrução das idéias de liberdade, igualdade e
fraternidade realizada por Kieślowski objetiva reinventá-las e rearranjá-las por meio de
eventualidades e acasos cotidianos (FRANÇA, 1996, p.36). Ao que parece, essa esfera
de invenção e desconstrução aparece nos três filmes em primeiro plano e em detalhes
secundários, na forma da montagem e na história narrada.
Temos em Bleu, a trajetória de Julie, que perde o marido e a filha em um
acidente de carro e isola-se do mundo e das pessoas por conta de seu sofrimento. A
partir desse retraimento, Kieślowski vai acompanhar o processo de reabertura de Julie
ao mundo e ao Outro. Nesse filme, encontramos a problematização da subjetividade da
imagem, tendo em conta que a câmera só nos mostra Julie e seu mundo através de
closes e primeiros planos; as cores e a música estão ligadas, diretamente, à Julie e à sua
vontade de enxergar o Outro.
1
O crítico de cinema Roger Ebert, toma a Trilogia como a obra mais paradigmática e poética de
Kieślowski. Disponível em: rogerebert.suntimes.com/apps/pbcs.dll/article?AID=/20030309/REVIEWS08
/303090308/1023.
2
Bleu ganhou o Leão de Ouro em Veneza, de 1993, como melhor filme, ganhando ainda os prêmios de
melhor fotografia e melhor atriz, para Juliette Binoche. Binoche também ganhou o Cesar, em 1994, como
melhor atriz, que também foi concedido ao filme nas categorias melhor montagem e melhor som. O filme
também recebeu três indicações ao Globo de Ouro: nas categorias de melhor filme estrangeiro, melhor
música e melhor atriz. Blanc deu o Urso de Prata de 1994, em Berlim, para Kieślowski como melhor
diretor. Rouge ganhou o Cannes, em 1994, como melhor filme; no mesmo ano, ganhou o Cesar por
melhor trilha sonora e foi indicado ao Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro e ao Oscar de melhor
direção, melhor roteiro e melhor fotografia.
5
Por sua vez, o segundo filme, Blanc, retrata os (des)caminhos de Karol Karol,
imigrante polonês na França. Este é, certamente, o mais nitidamente político dos filmes,
pois revela como a “igualdade”, mesmo a do novo “cidadão europeu”, não é tão
igualitária assim, como tentam expor as várias cartas de direitos humanos. Karol é
tratado como indesejável pelo tribunal francês e por sua ex-mulher, Dominique. Esse
filme já apresenta uma narrativa mais cadenciada: a câmera não se concentra apenas em
Karol (como se concentrava em Julie, em Bleu), e, além disso, Karol age, ele toma
atitudes frente aos problemas que lhe são colocados. Se Julie se fecha e se recusa a agir
e a tomar decisões depois do acontecimento trágico que marca sua vida, Karol procura
saídas, formas de se fazer ouvir, de se fazer ver por Dominique, ainda que isso implique
ter de matar uma pessoa e simular sua própria morte.
Por fim, Rouge fecha a Trilogia das Cores com a história da modelo Valentine,
que no decorrer da narrativa encontra-se com um juiz aposentado, Joseph. É nesse
encontro que ambos começam a repensar suas vidas e valores, e, como amigos,
desafiam e questionam um ao outro em gestos e atitudes, enxergando, então, que é na
construção da relação entre si que esses valores poderiam ser vividos e concretizados,
mediante o que eles mesmos sentiam. Esse filme, dentre os três da série, é o que faz a
câmera mais se movimentar: os planos são mais abertos, o ritmo é mais rápido, haja
vista que a câmera segue duas tramas paralelas.
Observa-se que Kieślowski faz, por meio dos filmes da Trilogia, uma leitura
crítica do projeto de unificação européia. Sua obra nos coloca diante dessa Europa
fragmentada e incerta sobre a solidificação da união geográfica (Bleu), interrogando a
igualdade sub-reptícia do “europeu”, o problema do imigrante e o posicionamento dos
países marginais nessa nova “constelação” (Blanc), assinalando, por fim, as rachaduras
desse projeto unificador (Rouge). Portanto, é importante ressaltar a conjuntura histórica
em que se inserem tais filmes, para que possamos apreender alguns índices deixados na
imagem que, ainda hoje, podem ser lidos como prenúncios das possibilidades inerentes
ao projeto de uma U.E. que integraria países tão distintos e com realidades tão
discrepantes sob a designação homogeneizante de “cidadão europeu”3. Procuramos
3
Atualmente, a Europa tem aplicado variadas políticas aos imigrantes ilegais, e também “suspeitos” de
terrorismo e minorias étnicas – como os ciganos e gens du voyage – que são depositados em “centros de
permanência temporária” e outros locais “juridicamente vazios” que se constituem como novos espaços
de exceção, nos quais a Declaração dos Direitos Humanos, de fato, perde toda sua aplicabilidade e é
esquecida in toto, já que nesses espaços ocorre a total dominação e desumanização do Outro, submetido à
violência e discriminação. O antropólogo francês Michel Agier (2006, p.199) distingue diversos espaços
6
entender como esses filmes, ao trabalharem o ideário iluminista, operam esses conceitos
em circunstâncias singulares e pequenos encontros; compreendendo que a Trilogia não
invalida esse ideário, questionamos de que maneira eles são desconstruídos e
explorados em cada situação.
Nos três filmes, notamos que o diretor polonês mantém uma narrativa aberta, no
sentido de que existem muitas lacunas e espaços na imagem a serem completados pelo
espectador: a irrupção da música em Bleu, as motivações de Karol em Blanc e os
sentimentos das personagens em Rouge. Os espaços também aparecem no uso não
convencional do fade in/fade out, da câmera subjetiva e dos flashbacks. Tomamos essa
abertura como um elemento fundamental da narrativa de Kieślowski; sua imagem, além
de polissêmica e repleta de detalhes, é ao mesmo tempo lenta, rarefeita.
Destaca-se, na forma e no conteúdo da Trilogia das Cores, um modo próprio de
dar visibilidade a experiência da alteridade. Essa visibilidade se distingue a partir da
heterogeneidade e, ao mesmo tempo, da proximidade na constituição das imagens dos
três longas: todos guardam alguma semelhança formal entre si e, mesmo, entrelaçam-se;
mas também cada um detém sua singularidade, seja na técnica (closes e fades, em Bleu;
flashbacks, em Blanc, e montagem paralela, em Rouge) ou na temática. O uso de
maneira inusual do fade in/fade out4, em Bleu, por exemplo, suscita efeitos de choque
no espectador. As caracteríscas estilísticas de Kieślowski (o uso subversivo das
convenções estéticas clássicas, a ambigüidade e a vagueza, os movimentos lentos das
câmeras e das personagens, as elipses, o corte seco, a forte presença da música, entre
outras), as especificidades de cada obra, tudo isso concorre para caracterizar e dar a ver
de exceção atuais, que ele denomina não-lugares: os centros de trânsito, os campos de detenção dos que
pedem asilo, os campos de agrupamento de deslocados, no Sudão e em Angola, os centros de acolhida de
urgência, na França, certas zonas portuárias e algumas ilhas, como Nauru. Esses não-lugares, por mais
diversos, compõem “um conjunto de espaços, hoje em crescimento, para manter refugiados,
‘clandestinos’ e indesejáveis à espera, em sobrevivência e sem direitos”. Sobre esses novos vazios
jurídicos e o novo racismo no ocidente, cf. Agamben (2004), Butler (2007). Sobre os problemas de
exclusão da integração européia cf. Stolcke (1993).
4
Como exemplo de subversão de técnicas convencionais, Kieślowski faz o uso do de fade in e do fade
out de maneira não usual em Bleu. Fade out é o escurecimento ou clareamento gradual de uma imagem,
até que ela desapareça totalmente. O fade in é o oposto, ou seja, de uma imagem totalmente preta ou
branca voltar gradualmente à outra imagem. Esses efeitos são utilizados para transição, são técnicas
empregadas convencionalmente para ir de uma cena a outra com o sentido de passagem de tempo. Em
Bleu, toda vez que Julie é confrontada com alguma lembrança de seu passado, ocorre um fade out e a
música “Concerto para Inauguração da Europa”, que seu falecido marido estava compondo, arrebata-nos.
Todavia, quando ocorre o fade in voltamos à mesma cena, com Julie em frente a alguém ou alguma coisa
que a fez lembrar e entrar, ontologicamente, para dentro de si mesma. Assim, visto que o recurso técnico
não é utilizado com o sentido que convencionalmente lhe é dado, se produz um efeito impactante no
espectador, que deve buscar compreender e interpretar seu significado na narrativa.
7
Para Benjamin (1994a, p.108), “[...] é o homem que tem a capacidade suprema
de produzir semelhanças”, sendo a faculdade mimética uma de nossas “funções
superiores”. Segundo Gagnebin (1993, p.80), a originalidade da teoria mimética de
Benjamin está em problematizar uma história da capacidade de mimesis, já que o
filósofo alemão nota que na modernidade essa faculdade não se extinguiu, mas se
transformou – e seu principal locus de aplicação, nesses tempos, seria a linguagem. O
filósofo observa, então, que o domínio da existência regido pela mimesis era, outrora,
muito maior, e que “[...] o universo do homem moderno parece conter aquelas
8
5
Para Benjamin, s caráter histórico também é uma premissa fundamental no campo da visibilidade. Ele
afirma: “No interior de grandes períodos históricos, a forma de percepção das coletividades humanas se
transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência. O modo pelo qual se organiza a percepção
humana, o meio que ela se dá, não é apenas condicionado naturalmente, mas também historicamente”
(BENJAMIN, 1994a, p.169)
9
6
Benjamin relaciona o declínio da aura com o impacto crescente das tecnologias do cinema e da
fotografia e a necessidade de aproximar-se dos objetos que essas tecnologias possibilitam: “Fazer as
coisas ‘ficarem mais próximas’ é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua
tendência a superar o caráter único de todos os fatos através da sua reprodutibilidade. Cada dia fica mais
irresistível a necessidade de possuir o objeto, de tão perto quanto possível, na imagem, ou antes, na sua
cópia, na sua reprodução” (BENJAMIN, 1994a, p.170).
10
7
Assim também Canevacci (1990a, p.149-150, grifos do autor) justifica sua escolha por Benjamin como
condutor de seus estudos sobre cultura visual: “[...] ele usou como plano para o seu trabalho não somente
os ‘grandes’ produtos da cultura intelectual – como o nascimento da fotografia, a pintura impressionista, o
programa urbanístico de Haussmann, a arquitetura liberty, a poesia de Baudelaire –, mas também e
principalmente uma série de constelações micrológicas sobre os costumes, o modo de viver e de agir, tais
como o colecionador, as multidões, o flaneur, a rua, a moda”.
12
acreditamos, então, que aquele é o olhar de Karol sobre a cena, que é ele quem
Dominique encara de fato.
Na realidade, não apenas o recurso ao flashback é subvertido com esses cortes
secos entre Dominique e Karol, como a própria câmera subjetiva, afinal, ao se virar para
encarar a câmera, Dominique se aproxima da lente para beijar a câmera/Karol, mas o
aparelho se movimenta para trás, revelando a verdadeira posição do personagem, que é
ao lado da câmera: notamos, então, que a câmera não era Karol, e damo-nos conta de
que aquela era a perspectiva de um aparelho, e não a do personagem.
informação”, de tal modo que a narrativa “[...] conserva suas forças e depois de muito
tempo ainda é capaz de se desenvolver”. Essa assertiva nos leva ao conceito de Umberto
Eco (1971) de “obra aberta”, uma obra baseada, sobretudo, na sugestão de
possibilidades, onde o leitor (ou o espectador) é o centro ativo que relaciona essas
possibilidades de acordo com seu universo pessoal, suas memórias e experiências8.
Taussig (1993a, p.36, tradução minha), ciente da perda do papel do contador de
histórias, do declínio de uma comunicação artesanal ligado à figura do narrador, atenta
que “[...] há, no entanto, este novo, este moderno ‘contador de histórias’, o filme”. O
cinema, nesse ínterim, se coloca como o narrador moderno; e as histórias que ele nos
narra são poderosas. O filme inova sobre a arte narrativa, sobre a relação artesanal entre
“[...] a alma, o olho e a mão [...] inscritos no mesmo campo” (BENJAMIN, 1994a,
p.220), por conta, justamente, da abertura do inconsciente ótico (TAUSSIG, 1993a,
p.36).
O antropólogo australiano, atento ao ressurgimento da mimesis na modernidade
com as “máquinas miméticas”, à onipresença dessas máquinas no cotidiano das pessoas,
observa que o cinema também atualiza a narração. Assim, como um gênero
comunicativo, o cinema inova sobre as narrativas tradicionais9, ele as transforma; as
histórias que o cinema nos narra são poderosas, contam-nos sobre experiências, as mais
distantes e exóticas, sem qualquer preocupação em ser plausível ou verificável. O
cinema é “bom para pensar” (HIKIJI, 1998; CABRERA, 2006), porquanto possibilita
entrever, no caso da Trilogia, todos os detalhes da experiência com o Outro, as
dificuldades e as pontes de comunicação. A Trilogia, adotando como seu mote a
problematização da alteridade num determinado contexto contemporâneo, expande a
percepção dessa experiência em exemplos concretos – ainda que ficcionais.
8
É interessante observar que, como aponta Jeanne Marie Gagnebin (1994, p.12), o texto “O Narrador”, de
1936, de Benjamin, apresenta e antecipa a teoria de “obra aberta” de Eco.
9
As narrativas tradicionais, ligadas à oralidade e às outras formas transmissoras de experiências, de
acordo com Benjamin (1994a), caracterizavam-se por seu “não-acabamento”, por sua abertura a diversas
possibilidades. Assim, como dissemos anteriormente, para o filósofo (1994a, p.203-204), a arte da
narrativa está em evitar explicações, permitindo ao leitor uma liberdade de interpretar a história. Também
no cinema, existe um espaço para a participação e interpretação do espectador, afinal, é o receptor quem
conecta as imagens e cenas, quem dá continuidade e inteligibilidade aos cortes e elipses. Conforme a
equação de Eisenstein (1990, p.28), “[...] todo espectador, de acordo com sua individualidade, a seu
próprio modo, e a partir de sua própria experiência, [...] cria uma imagem de acordo com a orientação
plástica sugerida pelo autor, levando-o a entender e sentir o tema do autor”.
14
narrativa.
Kieślowski explora a estranheza do modelo fílmico, revelando suas
inconsistências (por meio da revelação da câmera, por exemplo), estilhaçando os
sentidos e as técnicas convencionais. Desse modo, o diretor arranca o filme de seu
contexto e propõe novas significações10. Ao procurar “escovar a história [e o modelo
fílmico] a contrapelo” (BENJAMIN, 1994a, p.225), Kieślowski subverte sentidos,
interrompe a leitura e busca liberar a “[...] enorme energia da história que se encontra
confinada no ‘era uma vez’ da narrativa histórica [e cinematográfica] clássica”
(TAUSSIG, 1993b, p.15).
Tomando o cinema como um recorte e uma reelaboração de determinada
realidade, o diretor, autor do filme, opera com uma seleção, de temas e de técnicas,
para, com isso, construir uma leitura própria da realidade, de um problema. O que se
fabrica pela mimesis cinematográfica é uma possibilidade de mundo. A mimesis, como
conhecimento sensível, uma das primeiras faculdades do homem, segundo Taussig
(1993a), ressurge no cinema. E essa faculdade reaparece no cinema, assim como na
fotografia, justamente, porque essas tecnologias de reprodutibilidade permitem ao
homem reencontrar
[...] uma experiência visual em uma imagem, sob forma ao mesmo tempo
repetitiva, condensada e dominável. Desse ponto de vista, o reconhecimento
não é um processo de mão única. A arte representativa imita a natureza, e
essa imitação nos dá prazer: em contrapartida, e quase dialeticamente, ela
influi na “natureza”, ou pelo menos em nossa maneira de vê-la. [...] O
reconhecimento proporcionado pela imagem artística faz parte pois do
conhecimento; mas encontra também as expectativas do espectador, podendo
transformá-las ou suscitar outras: o reconhecimento está ligado à
rememoração (AUMONT, 1995, p.83).
10
Além do recurso ao fade in/fade out, em Bleu, e dos flashbacks, em Blanc, Kieślowski, faz uso da
câmera subjetiva. Em Blanc e em Rouge, o diretor utiliza diversas vezes a câmera subjetiva, só que esta
gira até revelar a verdadeira posição da personagem sobre a cena e a posição da câmera, revelando,
portanto, o próprio processo de filmagem.
16
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FILMOGRAFIA
Joana R. O. Corrêa
Mestranda do Programa de Pós-Graduação
em Sociologia e Antropologia – PPGSA / UFRJ
Agradeço pelos diálogos estabelecidos ao longo dos anos e pelas contribuições dos amigos e
parceiros de trabalho Alexandre Pimentel, Edmundo Pereira, Daniella Gramani, Dauro Marcos do
Prado, Rogério Gulin e Oswaldo Rios; e também aos fandangueiros que nos receberam em suas casas.
1
Inami Custódio Pinto identifica ainda um terceiro grupo mencionado por
fandangueiros de Paranaguá, que, segundo ele, são chamadas de rodas passadas
(Pinto, 2003, p.58). O primeiro grupo representa o conjunto de músicas a serem
dançadas em pares reunidos pelo salão; o segundo envolve coreografias mais
complexas, em que os pares executam rodopios entremeados pelo marcante sapateado
dos tamancos de madeira utilizados pelos homens; e o terceiro se refere a rodas mais
soltas, em que círculos masculino e o feminino formam trançados em sentidos
opostos.
2
couro que recobre os dedos ou por uma tira de borracha. As palmas, marcadas pelos
dançadores durante os batidos, intercaladas ao rufar dos tamancos, também têm
importante efeito visual e percussivo, intensificando o ritmo.
O tamanqueado pede um assoalho de madeira para possa ser produzido um
som forte durante a dança. Este piso é facilmente encontrado já que a madeira é
empregada na construção de casas inteiras nesta região. Para que se obtenha maior
conforto térmico, os assoalhos destas construções são suspensos cerca de um metro do
chão. Esta distância do solo permite também um resultado acústico ainda mais potente
ao rufar do tamanco. Quando o Fandango é apresentado em palcos ou programações
festivas costuma-se montar um tablado de madeira para os dançadores.
Cavalcanti (2001; 2002; 2005) aponta para a heterogeneidade presente dentro
de um mesmo processo cultural tido como popular, ampliando o campo para
apreensão de diferentes experiências e sentidos vividos e elaborados pelos atores
sociais. A antropóloga Luciana Carvalho, ao analisar a complexidade do universo do
bumba-meu-boi maranhense, reconhece que este constitui um “verdadeiro sistema ou
idioma cultural no Maranhão, capaz de organizar falas, ações, pensamentos e relações
não só entre os boieiros, mas também na sociedade mais ampla” (Carvalho, 2011,
p.74). Acreditamos que, com escala, nuances e densidades distintas, podemos pensar
de forma equivalente, não em relação ao Fandango estritamente, mas sim ao conjunto
de expressões culturais no qual se insere e que de certa forma é organizador de um
certo modo de vida de diversas comunidades que chamaremos aqui de caiçaras3.
A categoria caiçara reúne populações de um território mais abrangente do que me refiro ao tratar do
Fandango, englobando boa parte do litoral sul e sudeste do pais. Segundo Diegues e Arruda (2001),
“entende-se por caiçaras aquelas comunidades formadas pela mescla étnico-cultural de indígenas, de
colonizadores portugueses e, em menor grau, de escravos africanos. Os caiçaras têm uma forma de vida
baseada em atividades de agricultura itinerante, de pequena pesca, do extrativismo vegetal e do
artesanato. Essa cultura se desenvolveu principalmente nas áreas costeiras dos atuais estados do Rio de
Janeiro, São Paulo, Paraná e norte de Santa Catarina.”. Podemos perceber que esta categoria carrega
consigo uma série de questões problemáticas que oscilam entre a ideia de uma identidade miscigenada
e uma essencialização exacerbada. Contudo, caiçara, durante muitas décadas, foi palavra empregada
de forma pejorativa, como sinônimo de “gente pobre e preguiçosa, pouco afeita ao trabalho”, definição
que muitos dicionários revalidaram. Por outro lado, mais recentemente, a partir da década de 1980, o
termo vendo sendo reelaborado no bojo dos processos de luta por reconhecimento de direitos sociais,
principalmente territoriais, de muitos núcleos comunitários desta região. Segundo Pimentel (2010,
p.67), “importantes fatores dessa re-significação caiçara – em nosso entendimento como resultado de
um processo de identificação construído nas lutas pelo território e pela afirmação de determinados
modos de viver, pensar e agir – são as lutas pela criação de unidades de uso sustentável (como a
Reserva Extrativista do Mandira, em Cananéia, cujo exemplo positivo, incentiva a criação de outras
áreas semelhantes nos territórios caiçaras), pela reclassificação de unidades de uso restrito como de uso
sustentável (a luta dos moradores da Juréia, por exemplo) e a articulação das populações caiçaras com
outros sujeitos políticos, que entraram em cena nessas regiões (núcleos e institutos de pesquisa
vinculados à universidades, associações culturais e ambientais), representando importantes alianças e
3
Eis então o enfoque deste primeiro exercício de pensar antropológico: iniciar
um caminho de possibilidades de análise dos significados da dança no Fandango.
Articularei reflexões a partir de dois contextos distintos em que o Fandango se
apresenta, em situações mais “tradicionais” como bailes, e nos grupos fixos de
tocadores e dançadores, que pelo menos desde a década de 1960 tem se tornando
comuns na região. Destaco que esta é uma organização analítica proposta no âmbito
deste estudo, pois no contexto etnográfico, emerge mais fortemente apenas a categoria
nativa de Fandango de sítio ou de mutirão como fator de distinção de todas estas
variações do Fandango praticado atualmente. Esta categoria, especialmente dentre os
mais velhos, remete a um tempo em que o Fandango era dotado de qualidades
inalcançáveis nestes novos contextos, em falas sempre recheadas de nostalgia e
saudade daquele tempo.
Nossa perspectiva de análise corrobora com as propostas dialógicas
explicitadas por Blacking (1984) e Cavalcanti (2002), que consideram fundamental
em um trabalho etnográfico, para além da observação, o acesso aos significados
atribuídos à dança por meio da escuta e do entendimento das categorias nativas. É
esperado que um antropólogo se permita um certo grau de autonomia interpretativa
que lhe assegure sua posição analítica, e não meramente descritiva, em um processo
de pesquisa, contudo, uma prática etnográfica dialógica nos parece um componente
essencial à construção teórica. Neste aspecto, concordamos com Blacking (1984) ao
marcar sua posição: os pontos de partida são a observação apurada e o diálogo com
aqueles que dançam. Deve-se indagar os dançarinos sobre o que eles estão fazendo e
refletir sobre estes significados atribuídos.4
Neste percurso de contato inicial com uma bibliografia de Antropologia da
Dança, o antropólogo John Blacking ofereceu um argumento convidativo e
reconfortante: um antropólogo não precisa saber dançar para proceder uma análise
contribuindo para um debate teórico e com ações concretas na luta por direitos.” Em reconhecimento a
este histórico de lutas e, ao mesmo tempo, entendendo que cada vez mais o termo vem encontrando
acolhimento dentre estas comunidades, assumiremos aqui a adoção da categoria caiçara para nos
referirmos ao universo socioeconômico e cultural mais amplo ao qual o Fandango está relacionado.
Como nos ensina Weber, esta categoria pode também ser entendida como um tipo ideal, uma
ferramenta metodológica que nos ajude a organizar a complexidade do fluxo da vida.
Cabe dizer, entretanto, que os dados etnográficos sobre o Fandango que utilizaremos não foram
produzidos até agora a partir desta perspectiva mais aprofundada de compreensão da dança e, portanto,
ainda poderão ser mais bem explorados futuramente em um trabalho de campo a ser desenvolvido
especificamente no percurso de mestrado.
4
antropológica da dança. A Antropologia vem justamente reivindicando e construindo
sua autonomia metodológica e analítica em relação aos significados das formas
expressivas. No artigo Dance as cultural system and human capability: an
anthropological perspective, Blacking (1984) defende que qualquer pessoa está
habilitada a expressar um julgamento sobre arte, uma vez que a capacidade artística é
entendida por ele como inata ao ser humano. Em suas palavras: “assim como a cultura
não nos faz, mas nós fazemos a cultura, a experiência em arte não é uma condição
necessária para ser artista: nós concedemos o sentido artístico do mundo pelo
exercício de nossas capacidades artísticas inatas” (Blacking, 1984). Sob esta ótica, ele
procura desconstruir alguns questionamentos em torno da autoridade ou direito de um
antropólogo tomar a dança como campo de investigação.
O argumento, entretanto, definitivamente instigante e arrebatador do meu
recente interesse por este campo analítico foi apresentado por Lonsdale (1993), que
chama a atenção para a força simbólica da dança, equiparando-a em importância a
outros espaços mais consagrados de articulação social. Em Dance and Ritual Play in
Greek Religion, Lonsdale nos conduz a uma dimensão pouco explorada dentre os
estudos sobre a Grécia Antiga, destacando a participação da dança na conformação da
polis. Fazendo uso de fontes históricas e culturais diversas – e compreendendo os
limites e possibilidades de cada uma – nos apresenta ao universo dos festivais de
dança, que tinham valiosos significados para as clássicas cidades gregas fundadoras
da ideia de democracia. Londsdale ressalta que funcionamento da polis articula
múltiplas dimensões da atividade humana, o que dialoga inclusive com a fértil
categoria de fato total de Mauss (2003). A dimensão cultural tinha ali um caráter tão
crucial no reforço de vínculos e sentimentos comuns de pertencimento entre os
cidadãos, quanto o espaço político como ordenador da vida social grega.
A Antropologia da Dança procura desvelar e categorizar este lugar de
importância da dança como força ativa na sociedade, oferecendo-nos o desafio de
uma análise não reducionista da dimensão expressiva da experiência humana coletiva.
Dançar articula os sentidos sob a forma de uma linguagem da qual a unidade mínima
é o gesto. Por meio da gestualidade é possível figurar sentimentos e, ao mesmo
tempo, enriquecer a experiência sensível e o conhecimento do mundo, expresso sob a
forma não verbal.
O gesto é organizador de nossa presença no mundo. Os sentidos do gesto são
relativamente fixos em um dado contexto social, mas não podem ser universalizados.
5
A unidade do gesto não só fundamenta o movimento, como é o próprio instrumento
mínimo sem o qual não podemos sequer estabelecer um sistema de comunicação.
Segundo Schmitt (2001), se há algo de universal na compreensão do humano, esta
comunhão se encontra na linguagem gestual. A própria ação de pronunciar uma
palavra é um gesto. Gesto que foi ganhando um lugar privilegiado na trajetória de
afirmação da racionalidade ocidental, sendo por vezes confundido a capacidade
humana de se comunicar.
6
Blacking (1984) chama também para atenção para este aspecto, em princípio
paradoxal, da análise antropológica, que prescinde do gesto e se estrutura por meio de
uma linguagem verbal para acessar os sentidos de um processo de simbolização
eminentemente não verbal. Sem dúvida, trata-se de um caminho analítico difícil de ser
percorrido e sempre sujeito a elocubrações equivocadas.
Cabe também destacar que não podemos reduzir a experiência de dançar à
dimensão corporal do movimento. Langer (2003) ressalta que a dança é também uma
experiência que engloba uma dimensão visual, por vezes não tão clara no estudo da
dança fora dos palcos.
(...) a dança é dirigida essencialmente à visão. Não sei de nenhum
culto que pratique a dança na escuridão total. (...) A solução desta
dificuldade em perceber-se que a abstração básica é o gesto virtual, e que
este gesto é tanto um fenômeno visível quanto um fenômeno muscular,
isto é, que pode ser visto ou sentido. (Langer, 2003, p. 205)
7
região pode ser associada às drásticas mudanças sociais e econômicas ocorridas nas
últimas décadas que, seja pela especulação de terras ou por processos de
desapropriação e restrição ao uso de recursos naturais para fins de conservação
ambiental, levaram grande parte dos moradores de áreas rurais, ribeirinhas ou
praianas a migrar para a periferia das áreas urbanas, que pouco a pouco foram sendo
circundadas por bairros caiçaras.
Esta região é ser facilmente reconhecida como a maior área verde nos mapas
ambientais que indicam a Mata Atlântica remanescente do Brasil. As comunidades
que persistem nestas várias unidades de conservação formalizadas a partir da década
de 1980, convivem com a regulação do acesso aos recursos naturais. Frequentemente
são fiscalizadas pelos órgãos de controle ambiental, que impedem os roçados as
colheitas, justamente os principais motivos que articulam a organização de um
mutirão. Contudo, os mutirões têm um lugar de importância assegurado na memória
dos fandangueiros, jovens ou velhos, que viveram o tempo dos sítios. O trabalho
coletivo, seguido de Fandango, era um momento fundamental de encontro na vida
social. Elegemos aqui uma fala do fandangueiro Leonildo Pereira, de Guaraqueçaba,
que traduz um pouco da força emotiva que é acionada nestes relatos:
Sabe qual era o pagamento? Era que você trabalhava o dia inteiro
na cavação, você suava, você quase arrebentava de trabalhar, comia e
bebia bem certo no dia. À noite você tinha que dançar, você tinha que
trabalhar mais porque você tinha que pegar um tamanco de pau e bater até
oito horas do outro dia. Esse era o seu pagamento: o divertimento. O
pagamento era o seu divertimento. Você vai lá dançar, vai dançar com
todo mundo. E anoitecia, e amanhecia, ia para a casa contente descansar.
Esse é o contentamento do povo, uma coisa de origem que eles traziam de
família, a criar amor naquela dança. (Leonildo Pereira, em entrevista
gravada em 2005 pela equipe do Museu Vivo do Fandango. Apud: Corrêa,
Gramani e Pimentel, 2006, p.28)
8
é difícil agregar nestes contextos urbanos um grupo significativo de fandangueiros
que reconheçam o mesmo padrão gestual na execução dos batidos.
Percebemos que há uma grande variabilidade na forma de dançar uma mesma
marca de acordo com a comunidade de origem. Alguns fandangueiros relatam que, ao
participarem na juventude de bailes de comunidades mais distantes, se deparavam
com a impossibilidade de dançar nos momentos em que eram executadas as marcas
batidas. Este ponto é interessante, pois justamente deflagra o quanto estes ambientes
que chamamos de “tradicionais”, quando tratamos do universo da cultura popular, são
justamente os que envolvem maior variabilidade, frutificada em um processo
constante de reelaboração criativa.
Por outro lado, esta variabilidade não inviabiliza que se reconheça um
compartilhamento amplo de padrões de movimento muito similares. Blacking propõe
a categoria de grupos de corpo (body groups) para reunir analiticamente “pessoas que
compartilham uma linguagem comum do corpo, com ideais em comum, posturas,
gestos e padrões de comunicação não verbal” (Blacking, 1984, pg. 10), ou seja, que
pertencem a um mesmo sistema primário de modelação/modelagem. É interessante
perceber, a partir do contexto do Fandango que, na medida em que se amplia a
convivência e a interação entre os núcleos que compõem um grupo de corpo
expandido, as linguagens corporais tendem a se aproximar. Em Paranaguá,
contrariando os relatos registrados em outros municípios, fandangueiros de grupos
distintos e de todas as idades, nascidos nos mais diversos sítios ou mesmo na Ilha de
Valadares (onde quase todos os fandangueiros deste município residem atualmente),
reúnem-se nos bailes promovidos pela Fundação Municipal de Cultura e a Associação
de Cultura Popular Mandicuéra, e formam grandes rodas de batido que impressionam
os sentidos. Acredito que é possível atribuir esta aproximação dos padrões gestuais às
permutas intensificadas pelas iniciativas de fomento e articulação cultural que se
configuraram de forma mais ativa e constante neste município.
O Fandango pode ser aproximado às danças de aspecto mais ordenador. Seu
movimento é contido e regrado, com marcações bem determinadas. Contudo, dança-
se até a exaustão. Um baile de fandango pode varar a noite, sob festivos gritos de
“Amanhece!”5. Durante uma noite, a interação entre os participantes é muito intensa.
Os pares se agregam e desfazem a cada nova marca, sendo possível que todos os
Bordão criado pelo fandangueiro Leonildo Pereira, de Guaraqueçaba, e amplamente difundido.
9
cavaleiros dancem com todas as damas. É raro uma mulher tirar um homem para
dançar, apesar de já ter presenciado e até mesmo protagonizado algumas situações
como esta. Esta permutabilidade tem seu aspecto revigorante no ambiente social. Por
mais formal que seja a aproximação – no Fandango o arrocho do Forró, por exemplo,
é impensável – há sempre uma intimidade que se estabelece no casamento rítmico dos
pares. Como se dançando coletivamente os indivíduos soltassem algumas amarras do
convívio cotidiano para se envolverem em uma trama interativa que reconfigura os
elos sociais.
Schmitt (2001) ao analisar a importância do gesto na sociedade medieval,
aborda a ideia do gesto como elemento dotado de uma permanência histórica, que
insere em sistemas culturais de longa duração e, ao mesmo tempo, é constantemente
ressignificado ao longo destes extensos percursos temporais. Este é um aspecto muito
interessante para pensar a dança do Fandango, longamente discutido especialmente
em trabalhos historiográficos que problematizam sua origem ibérica. É inegável que
em alguns movimentos podemos vislumbrar as valsas dos tempos da Corte. Por outro
lado, há registros históricos do Fandango como dança de caráter pernicioso. Pereira
(1996) e Leandro (2008) registram o Fandango do litoral sulista como baile sensual,
alvo de severas proibições nos séculos XVIII e XIX, que durante longos períodos
obrigaram os organizadores dos bailes a pedirem licença prévia às autoridades locais
para a realização das festas.
O fato é que na Europa a manifestação já carregava um
significado pejorativo. Dizia-se, por exemplo, que a mulher nada recusaria
ao seu parceiro depois de dançar o fandango. O primeiro Dicionário da
Língua Portuguesa, de Moraes e Silva, incorpora em 1813 esta visão
negativa, definindo a prática como “certa dança alegre, e algo tanto
desonesta”. (Leandro, 2008, s/p.)
10
vontade para dançar com qualquer cavalheiro, seguras de que dificilmente passarão
pelo constrangimento de assédios exacerbados comuns a tantos outros ambientes de
dança. A sensualidade do Fandango é algo muito sutil.
Uma dimensão enriquecedora é pensar estes pares, sempre presentes em todas
as marcas, a partir do entendimento da díade como unidade mínima dos processos
associativos, que Simmel (1950) propõe ao formular sobre as conseqüências
sociológicas de certos números específicos. Simmel afirma que a relação entre dois
elementos é a formação sociológica mais simples. Segundo o autor “as relações a dois
se caracterizam por não formar unidades superiores aos próprios indivíduos, ao passo
que quanto mais extensa uma comunidade mais facilmente se formará uma unidade
objetiva acima dos indivíduos.” (Simmel, 1950, p.127). Evidentemente, as díades
como unidades associativas para a formação da dança do Fandango só fazem sentido
se pensadas dentro desta comunidade mais ampla, que depende dos pares para
preencher o salão e formar a roda. Desta forma, podemos avançar com o autor nesta
compreensão da díade em ação dentro contextos sociais mais numerosos: “a tensão
peculiar entre elementos dualísticos em uma grande estrutura garante a função status
quo de uma díade. (...) A fusão em unidade poderia facilmente resultar na
predominância de um indivíduo, e na expansão a uma pluralidade, em um grupo
oligárquico fechado.” (idem, p.140). Vislumbramos desta forma este aspecto
ambíguo dos pares, que apontam simultaneamente para a permutabilidade e para a
estabilidade equalizadora de relações, que no contexto do Fandango contribuem para
a organização dos laços comunitários.
Na execução das marcas batidas é acrescentada à experiência dos participantes
o desafio pessoal da qualidade da performance. Não podemos perder de vista que
dançar é uma técnica do corpo (Mauss, 2003). A boa performance é aquela em que a
técnica já foi tão intensamente corporificada a ponto de simular uma naturalidade aos
olhos de quem assiste. O conhecimento técnico da dança precisa estar acima de tudo
no próprio corpo. O bom fandangueiro executa com segurança cada gesto da marca da
vez para dançar com fluidez.
Nos batidos acentua-se também o caráter agonístico (Mauss, 2003) do
Fandango. A mesma força que mobiliza a autosatisfação de uma performance precisa,
volta-se com olhos atentos ao deslize alheio. Segundo relatos de alguns
fandangueiros, nos bailes de mutirão errar um passo, ou cometer um balaio, era tido
como inaceitável, pois uma vez que todas as crianças se criavam entre fandangueiros
11
para somente se arriscar na dança na juventude mais avançada, o domínio técnico era
sempre esperado. Cometer um balaio poderia ser motivo para a completa
desmoralização do participante, fazendo-o muitas vezes abandonar o baile. O erro,
entretanto, só é problemático durante a execução dos batidos. Em um bailado passará
sempre desapercebido. Isto se deve primeiramente ao fato das marcas batidas serem
executadas em um fluxo mais preciso. Este fluxo da performance é destacado por
Cavalcanti como articulador de uma percepção visual que, “ao implicar uma certa
relação entre tempo e espaço, traz informações cognitivas importantes” (Cavalcanti,
2002, p.52). Durante a execução do batido se estabelece uma divisão momentânea
entre os participantes de um baile de Fandango. Quem não entra na roda para dançar,
torna-se espectador da dança, uma vez que este fluxo tem grande apelo visual. Sua
interrupção por falha de um dos elementos que o compõe, reduz sua força expressiva,
impactando negativamente o sentido visual, e também o auditivo, quando o erro
também promove o descompasso do rufado dos tamancos.
A intensidade e a precisão rítmica de um batido é pautada pela música e pelo
domínio destes padrões de movimento. Nos batidos, entra na roda figura de um
marcador ou mestre, que assume a liderança do tamanqueado para que os outros
homens persigam seus movimentos, criando um resultado sonoro mais preciso. Basta
dominar os movimentos da marca para ser seu puxador, o que permite que muitos
dançadores possam ser momentaneamente líderes durante um mesmo baile. Evans-
Pritchard (1928) ressalta a função da liderança em um artigo sobre a dança da cerveja
dos Azande: “a dança, como quaisquer atividades coletivas, gera necessariamente
liderança, que tem como função organizar a atividade” (p.13) No Fandango, esta
função normalmente é assumida pelos fandangueiros mais velhos.
Alguns estudos etnográficos sobre dança tratam destas diferentes
sociabilidades experimentadas por subgrupos etários que compartilham de um mesmo
ambiente cultural. Ainda em seu artigo sobre a dança entre os Azande, Evans-
Pritchard (1928) distingue níveis de interesse pela dança conforme à idade,
ressaltando que para os jovens “é um meio de flertar”, e segue afirmando: “Para eles,
como na verdade para todos que vão à dança, é a própria dança a principal atração.
Mas os adultos parecem menos inclinados a serem atraídos pelas distrações e dedicam
toda a sua atenção ao ritmo da dança. Os idosos geralmente não tomam parte na
dança.” (Evans-Pritchard, 1928, p.13) É preciso, entretanto, destacar que no Fandango
percebemos atualmente o envolvimento dos idosos equivalente ao dos adultos
12
descritos por Evans-Pritchard, podendo ainda recuperar o interesse pelo flerte, com
acontece no histórico Clube Sandália de Prata, em Iguape, que já reuniu muitos
viúvos e descasados.
Midletton (1985) aprofunda-se sobre estas apreensões distintas de sentido
entre grupos de idade e parentesco, construindo sua análise da dança entre os Lugbara
em diálogo com a percepção de que se trata de um momento de transição para a
reestruturação das categorias sociais. Momento que enfatiza um caráter propositivo de
comportamentos socialmente esperados ou recusados. Para ele, as danças ocupam um
lugar de organização social, que o verbal não daria conta, permitindo níveis de
elaboração distintos sobre as próprias questões conflitantes e paradoxais que são
estruturantes de uma sociedade. Os Fandangos feitos em situações “tradicionais” são
aqueles que englobam de forma mais abrangente esta totalidade social. Crianças,
jovens, adultos e velhos entram coletivamente em cena, ocupando lugares distintos e
compreendendo de maneira diversa os sentidos de sua participação. Pensar sobre estas
diferenças pode ser muito rentável para os passos futuros de complexificação deste
campo, que agora ainda não tenho elementos suficientes para percorrer.
Levando nosso enfoque a estas outras maneiras de fazer o Fandango,
constituindo grupos relativamente fixos, perceberemos que estes agrupamentos etários
também assumirão lugares distintos. A formação de grupos pode ser associada à
aproximação de folcloristas com este campo que, a partir dos anos de 1960, começam
a atuar propositivamente para encontrar alternativas de continuidade que atendessem
aos anseios desta percepção nativa de que Fandango estaria “morrendo”. O primeiro
grupo de que se tem registro é de Manequinho da Viola, no município de Paranaguá,
constituído a partir de uma ativa parceria com Prof. Inami Custódio Pinto,
pesquisador do Fandango paranaense desde a década de 1950. Foi reunido em 1966,
envolvendo adultos e velhos que haviam migrado de núcleos comunitários, os
chamados sítios, para a Ilha de Valadares, um dos principais bairros populares de
Paranaguá. Na década de 1970, em Morretes, foi também organizado um grupo de
fandangueiros tradicionais, por incentivo da Profa. Helmosa Salomão Ritcher. Nos
anos de 1980 estas formações foram desfeitas e só temos informações de um grupo
formado na década de 1990, o Violas de Ouro de São Paulo Bagre, em Cananéia, este
13
estritamente musical, sem participação de dançadores.6 Muitos fandangueiros
apontam as décadas de 1980 e 1990 como períodos de intensas mudanças na região, e
também de redução da vitalidade do Fandango. A formação de grupos foi, entretanto,
intensificada na primeira década do século XX, apresentando diferenças marcantes
entre os municípios do estado do Paraná e de São Paulo.
No Paraná, a dança continuou sendo uma dimensão sempre presente, contudo,
os novos grupos foram organizados em oficinas voltadas essencialmente para jovens,
em sua maioria filhos e netos de fandangueiros. A execução musical e a marcação do
Fandango continuaram como funções dos adultos e velhos, enquanto os jovens
assumiram o lugar de dançadores. Estas oficinas tinham um propósito formador de
uma conduta moral, reaproximando os jovens de uma convivência comunitária
permeada pelo respeito e um espírito solidário.
Neste ponto é interessante aqui dialogar com o argumento que Lonsdale
(1993) recupera do modelo pedagógico de Platão – a paideia –, como uma
antecipação do paradigma antropológico de interpretação da dança. Em Platão dança
aparece como diversão comunal – ao dançar os participantes se reafirmam como
membros de uma mesma comunidade. Por meio de uma aprendizagem prazerosa, as
virtudes se formam na alma humana, que, segundo a concepção platônica, deveria
anteceder o amadurecimento da razão. Para Platão, não seria qualquer dança que
funcionaria como instrumento de socialização. Haveria um conjunto rígido de
formalidades, calcadas na tradição, a serem determinadas e cumpridas. Sua
preocupação central voltava-se para o potencial de agregar e reunir a coletividade em
torno de um comportamento esperado, que concedesse longevidade e estabilidade às
regras sociais.
O processo de formação destes novos grupos introduz muitas novidades na
cena do Fandango, como a adoção de uma indumentária específica, um vestuário
comum a homens e mulheres. As jovens dançadoras do Paraná passam a usar roupas
de tecidos exuberantes que pouco lembram aquela melhor roupa usada para um baile
de Fandango. Os vestidos das meninas assemelham-se aos das prendas gaúchas, com
saias rodadas, cores vibrantes, e estampados com flores. Grandes arranjos florais nos
cabelos e forte maquiagem também aparecem como regra geral. Para os puristas, este
Por influência dos contatos com outros grupos de Fandango, travados durantes o I e o II Encontro de
Fandango e Cultura Caiçara, o grupo Violas de Ouro tem procurado recuperar o batido, a seu modo,
nas festas realizadas nas comunidades de São Paulo Bagre e Agrossolar, em Cananéia.
14
novo visual poderia ser entendido como deflagador de um processo condenável de
espetacularização da cultura popular. Contudo, como já nos alertou Langer (2003), a
dança guarda em si uma dimensão espetacular, pois é sempre uma performance a ser
vista. Nestes espetáculos de Fandango, as figuras femininas exacerbam a dimensão
visual da dança, acentuando o contraste com o masculino, sempre responsável pela
dimensão auditiva na conduta instrumental. Rostos sérios, com olhares sempre
voltados para o chão ou as paredes, predominantes nas figuras femininas do Fandango
“tradicional”, dão lugar a sorrisos vermelhos e olhares que convidam os espectadores
a apreciar a graciosidade de suas condutoras. Esta postura exuberante das jovens
dançadoras tem influenciado, mais recentemente, adultas e velhas dançadoras dos
grupos Família Pereira e Pés de Ouro, formados há poucos anos.
Em São Paulo, a reorganização do Fandango se deu de maneira diversa do
Paraná. A maior parte dos novos grupos, que reúnem indistintamente jovens, adultos e
velhos, é composta apenas por tocadores. Além do Violas de Ouro, o Caiçaras de
Cananéia, o Caiçaras do Acaraú, os Jovens Fandangueiros de Itacuruçá e a Família
Neves, são todos organizados por homens tocadores de instrumentos. A dança
continuou reservada a contextos mais “tradicionais”, presente nas comemorações
comunitárias das comunidades quilombolas rurais do Mandira e do Morro Seco, nas
festas caiçaras organizadas pela Associação Jovens da Juréia e nos bailes urbanos do
Clube Sandália de Prata. Os batidos, contudo, foram deixados de lado, e os tamancos
tornaram-se artigos raros, encontrados apenas no Morro Seco, em Iguape. Este
abandono do batido que acompanha a dissociação do Fandango dos ambientes de
trabalho comunitário, nos faz pensar numa possível relação de sua força sonora e
performática com a força dos mutirões de trabalho.
Este primeiro mergulho na tentativa de organizar, em diálogo com o campo
etnográfico, algumas categorias analíticas que emergem de um contato inicial com a
Antropologia da Dança, permitiu-me pensar em algumas questões de pesquisa que
poderei futuramente perseguir. Como, por exemplo, um possível contraponto entre a
função ordenadora da liderança do marcador e o aspecto equalizador de forças dos
pares como unidade estrutural básica da dança do Fandango.
15
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17
UNIRIO
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (Doutorado)
ARESSA RIOS
Rio de Janeiro
2011
O palhaço de Folia de Reis e o diabo festivo na América Latina
Nas palavras do palhaço Catapora, que foi quem iniciou o mestre Luizinho como
palhaço2, podemos perceber a leitura que é feita desse personagem pelos próprios
foliões, revelando um sincretismo entre o palhaço e elementos presentes em cultos afro-
brasileiros (FRADE, 1997), como Exu, e sua associação simbólica do palhaço com a
figura do diabo:
1
Em Cascudo consta o vocábulo “malungo”, do qual se derivou a palavra “marungo”, que significa
companheiro, camarada e era utilizado pelos negros para chamar “aos companheiros de bordo ou viagem”
(2002:352). Este vocábulo, de origem africana, com a extinção do tráfico, foi perdendo sua função e
deixando de ser utilizado. Mas ainda é possível identificar seu uso no universo da capoeira.
2
Luizinho é mestre da Jornada de Reis Estrela Moderna de Volta Redonda, Folia pesquisada para o
desenvolvimento da dissertação de mestrado. Luizinho, antes de se tornar mestre de Folia, atuou por
muitos anos como palhaço, tento como um de seus mestres o palhaço Catapora.
dele ser rei dele também. Aí então mandou uns soldados dele acompanhar os
Reis e depois voltar pra dizer onde era o lugar. Assim foi: com a desculpa de
que o caminho era perigoso – naquele tempo já tinha ladrão –, mandou os
soldados dele. Mas os soldados quando viram o Menino, foram tocados por
Ele. E eles não voltaram pra contar. Se disfarçaram com outra farda, botaram
máscara e se soltaram no mundo. Herodes foi pro inferno depois que morreu.
Virou diabo. E o diabo não é Exu? Então é isso que nós fazemos, a parte dos
soldados de Exu. (apud FRADE, 1997:119)
Nesse sentido, Ligiéro fornece uma definição para Exu esclarecedora não só da
relação de associação simbólica do palhaço com Exu, mas principalmente, da relação
que é estabelecida entre o palhaço e a figura do diabo:
3
Ver Beyersdorff (1988) e EMUFEC (2008).
4
“...é uma das poucas representações com parlamento e verso cantado em espanhol e quéchua, que
sobrevivem da tradição dramática do Auto Sacramental espanhol no território sul andino do Peru”
(tradução própria).
5
O mesmo que presépio. Acrescento, conforme pude observar, que os presépios no Perú incorporaram
aspectos nitidamente andinos, tanto nos trajes dos personagens e seus adereços, como nos aspectos
fisionômicos. Nele estão presentes, por exemplo, llamas e os Reis Magos na versão peruana carregam
como presentes: batata, milho e animais típicos da região.
6
“comum a participação de grupos de dançantes que representam aos escravos negros da Colônia,
oferecendo seus bailes e cantos e visitando os nascimentos durante as festas de Natal.” (tradução própria).
7
Ver Bigenho (apud ROMERO, 1993).
cien mil soles.”8 (BARRIONUEVO, 1981:40). Pela descrição nota-se uma semelhança
entre a dança dos negritos e dos palhaços, incluindo o gesto do público de jogar moedas
aos mascarados, costume existente entre as Folias de Reis brasileiras. Em Andahuaylas
acontece a Bajada de Negros, que inicia no Ano Novo e vai até o dia 6 de janeiro e
conta com a participação de dançantes mascarados (OLIVARI, 1974).
Registra-se também nas festas do Dia de Reis a presença dos cômicos
mascarados, denominados Weraqos, que subvertem a ordem durante o festejo, como
relata este artigo de jornal:
También están los Weraqos, ellos se ponen espinas, en Navidad y Reyes son
igual; son cômicos vamos a decir, hacen todos esas chistocerías y van a
algunos sítios, donde sea, y traen sea choclo, sea pisco, sea cualquier cosa
que encuentran para el carguyoc; ellos entregan y también llevan mérito;
ellos se ‘roban’, nada les dice nada, así es costumbre. El Weraqo remeda a
todo y a todos incluso al mayordomo que lleva al Niño; tienen máscara, de
yeso o de runa chuco de Lana.9 (NAKAMURA, 1978: IV)
8
“competem inevitavelmente durante o atipanakuy, no átrio da igreja, sapateando, fazendo acrobacias e
criando novas figuras coreográficas. Não há apostas mas os ganhadores são premiados com uma chuva de
moedas que muitas vezes passam de cem mil soles.” (tradução própria). Nesta citação soles é o plural de
sol, que corresponde à moeda peruana.
9
“Também estão os Weraqos, eles se põem espinhos, no Natal e Reis são iguais; são cômicos vamos
dizer, fazem todos esses gracejos e vão a alguns lugares, onde seja, e trazem seja cholo, pisco, seja
qualquer coisa que encontram para o carguyoc; eles entregam e também levam mérito; eles se “roubam”,
nada lhes diz nada, assim é o costume. O Weraqo remeda a tudo e a todos inclusive ao mordomo que leva
o Menino; têm máscara, de gesso ou de runa chuco de lã.” (tradução própria).
10
“agilidade, graça e picardia, colhendo muito boas moedas dos espectadores.” (tradução própria).
A associação à figura do diabo, no caso da Bajada de Reyes, assim como no
palhaço da Folia de Reis, se dá através de elementos presentes em sua indumentária,
incluindo a máscara, ou mesmo através da performance realizada pelos Weraqos e/ou
negritos ao longo do ritual. Conforme as descrições, estes personagens apresentam-se
mascarados e têm caráter cômico, subversivo e transgressor dentro da festa.
Seguindo em pesquisa de campo, no ano de 2009, na Colômbia, dando
prosseguimento a investigação e pesquisa realizada no Peru, como continuidade e
aprofundamento dos estudos sobre Folia de Reis desenvolvidos no Brasil, foi possível
identificar a ocorrência de uma festa, que acontece de dois em dois anos, no dia 6 de
janeiro (Dia de Reis), na cidade de Riosucio – Colômbia. A festa denominada Carnaval
del Diablo (VIGNOLO, 2008), está relacionada à Fiesta de los Reyes Magos, que
acontece no período natalino. Sua origem relaciona-se ao processo de colonização do
país iniciado no século XVI pelos espanhóis, herdando de seus colonizadores, num
processo similar ao ocorrido no Peru e no Brasil, suas heranças culturais, entre elas, os
rituais e festas, incluindo as dedicadas aos Reis Magos. Mesclada à cultura afro-
ameríndia, a Fiesta de los Reyes Magos transformou-se no que hoje conhecemos como
Carnaval del Diablo, que tem como personagem central o Diablo (o diabo). Conforme
Lopez (2006), esta festa surge de uma rivalidade existente entre os povos indígenas da
região aurífera de Quiebralomo e os da região da Montaña. Para firmar um acordo de
paz decidem comemorar juntos a Fiesta de los Reyes Magos e deste fato surge o
Carnaval del Diablo, onde o diabo, personagem principal, aparece na festa para lembrar
a esses povos o acordo de paz.
Ao investigar e analisar, o universo simbólico e representativo que o palhaço de
Folia de Reis assume nas festas de Reis brasileiras e nas realizadas no Peru e na
Colômbia, a partir da pesquisa dessas três festas latino-americanas que têm como mito
fundador a passagem bíblica que narra a viagem dos três Reis Magos para adorar o
Menino Jesus, apresentando cada uma delas aspectos peculiares em sua estrutura ritual,
foi possível perceber nos três festejos (Folia de Reis – Brasil; Bajada de Reyes – Peru; e
Carnaval del Diablo – Colômbia) a associação simbólica do personagem mascarado, o
palhaço e seus equivalentes (negritos/weraqo e diablo) com a figura do diabo.
A questão que se coloca neste breve ensaio é: de que maneira se estabelece esta
relação nos diferentes contextos (Brasil, Peru e Colômbia) entre o palhaço e seus
equivalentes com o diabo, qual a representatividade e significação da figura do diabo
nestes festejos e a inversão simbólica que se opera dentro da própria simbologia
associada à figura do diabo? Dentro da ideologia cristã o diabo é aquele que representa
o anticristo; que na dicotomia bem e mal, é o que ocupa o lugar do baixo, do terreno,
um representante do mal, do profano em oposição ao sagrado, do infernal. Nessas festas
latino-americanas o personagem do diabo está profundamente enraizado na cultura
popular, ele reflete o pensamento da cultura popular e é a sua síntese, assumindo um
caráter festivo, sarcástico, alegre e transgressor e que traz em si a própria síntese do
conflito do bem contra o mal, apresentando sagrado e profano como opostos
complementares. É o diabo que protege, que cura, que traz prosperidade; é um
catalisador, um transformador, representa a voz do povo e o diverte e faz rir. É aquele
que inverte e subverte momentaneamente a ordem social, suas hierarquias e que nos faz
refletir sobre a própria condição humana. É o diabo que subverte a própria simbologia a
ele atribuída pelo cristianismo.
Tal qual o palhaço, esses mascarados, zombam do poder e “simboliza os valores
morais da communitas, contrapondo-se ao poder coercitivo dos dirigentes políticos
supremos” (TURNER, 1974:135). A Folia de Reis, bem como a Bajada de Reyes e o
Carnaval del Diablo, como manifestação da cultura popular que acontece nas ruas,
recupera a idéia presente nos festejos da Idade Média, da criação, durante a sua
apresentação, de um mundo utópico, esse mundo desejado e que só pode ser vivido
através da experiência. Um mundo utópico em que o povo se reveste de uma segunda
vida, penetrando temporariamente no reino da universalidade, da liberdade, igualdade e
abundância. Um mundo em que o indivíduo toma posse dessa outra vida que lhe
permite
ROMERO, Raúl R.. Música, danzas y máscaras em los Andes. Perú: Pontificia
Universidad Católica del Perú / Instituto Riva-Aguero – Proyecto de Preservación de la
Música Tradicional Andina, 1993.
UNA CITA con el diablo. Direção de Paolo Vignolo. Colômbia: Universidad Nacional
de Colômbia, 2008. 1 DVD.
Doutora
Faculdade Angel Vianna
RESUMO
A natureza teatral das ritualizações das sociedades humanas, desenvolvida pelos Estudos
da Performance com Schechner (1988) e Turner (1982), leva-nos a entender o ritual da Folia de
Reis como uma encenação religiosa e dramática, que, regulada no tempo e no espaço, apresenta
eventos e cria rituais festivos em seus percursos.
Neste estudo que propomos destacamos especialmente o palhaço da Folia de Reis como
intérprete deste drama ritual, que estabelece uma relação de atuar com papéis e desempenhos
calcados na re-criação de acontecimentos e de personagens, atualizando-os temporalmente,
usando o próprio corpo enquanto campo de trabalho. Na sua ação, observamos que o palhaço da
Folia de Reis é identificado alternadamente com Herodes, ou um dos seus soldados; com o diabo
propriamente dito; com o Exu, com o espírito que guarda a Folia nas encruzilhadas das estradas;
ou simplesmente com qualquer brincante, que está credenciado a explicitar o lúdico dentro do
cotidiano da sua comunidade.
INTRODUÇÃO
Procuramos neste trabalho investir na maior ligação do estudo da Folia de Reis, brincadeira
popular com raízes nos tempos coloniais, e objeto da nossa pesquisa, com os estudos da
performance, inserido no contexto sócio-político do Brasil Colônia.
Ao relacionarmos neste trabalho o estudo da performance aos aspectos históricos da
cultura brasileira, e sua pluralidade de formação, deparamo-nos com um novo desafio. Que exige
escrever com atenção e cuidado sobre um período da nossa história já tão longe, mas presente,
atuante e atravessando alguns séculos. Pensar sobre definições, categorias e classificações, a partir
de um passado conflitante, apesar de difícil, também é necessário, pois necessitamos disto para
renovarmos os sinais culturais, que fazem parte da nossa linguagem e do processo mesmo de
pensamento.
Estudando aspectos do Brasil Colônia, seus ritos políticos e performáticos, nada melhor
que seguir o mestre Schechner, quando em correspondência com amigos, durante sua viagem pela
Índia, fala sobre a nossa capacidade de concentração, na medida em que deixamos as coisas
passarem por nós. Estamos certos de que esta é uma viagem através dos tempos, e que agora é
deixar escorrer por entre os dedos, mãos, todo o corpo, tantas informações interessantes e
3
referenciais, para que finalmente permaneça o que de mais essencial seja possível filtrar, e de
mansinho possamos escrever e cantar.
Assim, pesquisando as tradições, festas religiosas e formas memoráveis de convivência
destas sociedades, encontramos material para entendermos o quanto a performance, com toda sua
abrangência sobre a história, seus conflitos, são possibilidades de repensarmos a nossa cultura. Daí
será possível articular a análise dos corpos subjugados e festivos da população brasileira nas
manifestações e performances sociais, com o palhaço da Folia de Reis. E apreender, no estudo dos
sinais culturais, um maior entendimento dos conflitos e da constante polaridade entre aceitá-los ou
negá-los.
É indispensável escrever e pensar sobre o passado, para pensarmos o presente, para ir
adiante compreendendo como foi feito antes. E deparar-nos com a possibilidade de cantar, mesmo
que pouco. E refletir que cantaremos na medida em que tivermos trabalhando para abrir e ampliar
a nossa atenção para com todos os nossos traços culturais, formadores disto que chamamos de
cultura brasileira.
II O FOCO NA TRADIÇÃO
“O conceito „performance’ tem sido usado também para compreender o teatro feito
pelo povo iletrado, seguindo a tradição oral, alheia aos modelos greco-romanos que
permearam a construção da estética dominante. Desta forma, performance tornou-
se sinônimo de apresentação e representação, quase sempre tendo caráter festivo
e/ou religioso mas em qualquer destas formas preservando o seu alto grau de
ritualismo.” Zeca Ligièro, “A Performance Afro-Ameríndia”, texto apresentado
no I Encontro de Performance e Política das Américas, 2000.
Em geral herdamos referências que são citações genéricas, garantindo somente que se
tratavam de povos selvagens, sem dados precisos sobre os aspectos sociais, culturais e
populacionais pertinentes. Resta-nos trabalhar com outras fontes, especialmente registros de
caráter etnográfico e folclórico, feitos entre o século XIX e início do século XX. “Estes
documentos buscam recuperar no tempo, através da história oral, a memória mais antiga a respeito
dos vários contatos travados entre as diferentes categorias sociais.” Com base neste pressuposto,
danças que envolvem grupos associados a escravos fugidos e aos indígenas, recriados pelo
folclore brasileiro e executadas em festas religiosas ou profanas na cidade, puderam ser
pesquisadas. São elas: “Dança do Quilombo” (Alagoas); “Lambe-sujo” (Sergipe) ; “Tapuiada”
(Minas Gerais) e “Caiapó” (Minas Gerais e São Paulo). Estas danças dramáticas são
manifestações culturais repletas de elementos históricos e populares típicos destas regiões. Elas
são apresentadas fazendo parte de autos, que incorporam em suas encenações os contatos havidos
entre os índios e quilombolas, com suas disputas territoriais, conflitos étnicos, e percepções do
mundo colonialista em que se produziram. Pontos comuns entre elas são os momentos de coleta
de alimentos, que são consumidos festivamente em grupo, e a circulação do dinheiro entre os
brincantes e assistentes.
Mais que tudo, as danças pesquisadas têm o sentido de recordação de uma experiência
vivida, construída por suas comunidades para relatar a história, incorporada através dos tempos.
Assumem, portanto, o significado de uma memória social, que, através da tradição oral,
performática, transmite aspectos referentes à saga dos negros no Brasil, e principalmente revela
aos mais novos a vivência de seus antepassados, que construíram a história buscando a liberdade e
se rebelando contra a condição de escravo.
José J. de Carvalho (1996), estudando sobre comunidades formadas pelos negros escravos,
que fugiram do trabalho forçado e resistiram à recaptura por parte das forças escravistas, aponta
para vários níveis de isolamento que sofremos da experiência histórica do negro escravo no Brasil.
Internamente “nossa compreensão da influência comunitária negra tradicional - seja quilombola,
escrava ou pós-abolição - é ainda muito dispersa e incompleta.” Além disto, informações sobre a
escravidão negra nos outros países da América são escassas, privando-nos de um sentido
histórico mais amplo.
7
O que será que vigorou nos outros momentos ? É sabido pelos estudos mais recentes que
os escravocratas necessitaram mesclar força e persuasão, e que um tempo de negociação ajudava
todos a se reequilibrarem, na busca de poder e controle da situação. Neste espaço de convivência
e negociação entre senhores, escravos negros, forros e brancos, surgem as instituições religiosas,
às quais os negros se agregaram, as chamadas “confrarias” ou “irmandades”. Estas associações
8
constituíram-se sob a autoridade do governo colonial, como uma das formas de expressão e
organização cultural negra, e espaço de exercício de sua autonomia, apesar do espaço dedicado à
devoção religiosa dos santos católicos.
As irmandades significaram uma conquista de relativa independência, onde seus associados
contribuíam com pagamentos e tinham assegurados assistência, ajuda quando doentes, e
principalmente funerais solenes. Com uma organização hierarquizada e operante, deixaram em
seus estatutos, chamados de “compromissos”, fontes históricas especiais, que permitiram o
registro do interior de uma comunidade de escravos brasileiros.
É possível afirmar que, se por um lado estas irmandades não puderam combater a
escravidão enquanto sistema, em compensação exerceram o papel de abrir espaços dentro dos
seus limites. Uma das principais atividades das irmandades era a promoção da vida lúdica, ou
estabelecer o “estado de folia” de seus membros e da comunidade negra em geral. Nas festas de
santos padroeiros, elegiam reis, rainhas, imperadores e imperatrizes que fundavam simbolicamente
no Novo Mundo reinos africanos, embora nunca esquecessem de anunciar que tudo faziam “para
grandeza e aplauso” dos santos da devoção. Entretanto, muitos dos costumes, como o bater de
atabaques, danças, mascaradas e canções, cantadas em línguas africanas, ao se mesclarem às
cerimônias religiosas, transformavam seus rituais e reviviam tradições ancestrais.
Fora do âmbito das irmandades católicas, há relatos de incidentes, entre escravos da região
açucareira de Santo Amaro, na Bahia, e representantes da Igreja Católica, durante as
comemorações religiosas, do Natal de 1809. Segundo João José Reis (1997), “sabedores de que
a paz nas senzalas não dependia apenas do chicote, os senhores em sua maioria permitiam que
seus escravos celebrassem a seu modo o Natal.” Naquele ano, algumas formas de confraternização
de vários escravos, apresentadas por agrupamentos das nações nagôs, haussás, geges e angolas,
foram consideradas excessivas. Na descrição da correspondência oficial entre as milícias
responsáveis pela região daqueles engenhos de açúcar, os escravos formavam ranchos de
atabaques, com seus costumeiros brinquedos, ou danças, passando a noite festejando, a comer e
beber, perturbando a ordem noturna da vila de Santo Amaro. De acordo com o governador e
capitão-general da Bahia, o Conde da Ponte, as reuniões de escravos deveriam ser evitadas, os
senhores dos engenhos advertidos sobre isso, e finalmente, os negros deveriam ser mantidos
dentro dos limites das propriedades e presos os reincidentes. Este acontecimento nas ruas do
9
Recôncavo baiano, assim como outras situações observadas dentro das irmandades, mostram o
que estava em jogo, através das celebrações: os limites da organização e expressão da cultura
africana no Brasil, que a todo momento se redefiniam. Tais registros apresentam situações
significativas, de quanto os escravos festejavam de acordo com o calendário cristão reelaborando
suas próprias tradições, e de que, ao se organizarem, reafirmavam suas identidades culturais,
conforme suas origens étnicas. Só aparentemente estaria encerrado o episódio do Natal de 1809,
nas regiões açucareiras da Bahia. Se os escravos tinham se reunido para fazer daquela celebração
africana a mais lúdica e estranha festa natalina, também tinham afirmado aquilo que os marris, em
seu Estatuto da Congregação dos Pretos Minas Marri, no Rio de Janeiro em 1786, diziam: “O
estado de folias serve de muita utilidade, assim de exercitar os ânimos dos pretos, como para
acudirem de novo muitos de fora, assentarem-se na Congregação afim de os ir atraindo....”
folias de reis, congadas, permeadas de elementos medievais europeus com estas formas de danças,
teatralizações, de sentido ritualístico, que recordam práticas sócio-culturais originais. Igualmente,
se pensarmos o Brasil a partir da colonização dos portugueses e espanhóis, encontramos diversas
identificações com outras experiências históricas das Américas, marcadas pelas relações entre os
fatos históricos e sociais da época colonial.
Com o corpo, e através do corpo, manifestam-se imagens que expressam as crises e os
ritos de passagem. E se a memória está sedimentada no corpo, conforme Paul Connerton (1993), é
o estudo das imagens manifestas na dança do palhaço da Folia, que nos permite o estudo de seu
gestual enquanto espaço de memória e tradição da cultura afro-brasileira, redimensionando nossas
considerações.
Pensamos principalmente na importância de pesquisar as danças do palhaço da Folia, a
partir do papel que representam neste festejo: o palhaço é o personagem do conflito, que não está
submetido à idéia cristã de venerar e se submeter ao poder do Menino Jesus. Através da sua
dança, dos seus trajes e adereços, como a máscara e o bastão, sinaliza-nos conteúdos e elementos
simbólicos da cultura africana, comumente colocados em segundo plano.
Da história das irmandades negras no Brasil, segundo João José Reis, sabemos que os
africanos cultivavam suas diferenças étnicas, organizavam-se aprofundando laços raciais e
identidades, e tinham orgulho destas diferenças. Este sentimento de pertencimento a uma nação
funcionou no desenvolvimento das suas sociedades e afirmou a prática da solidariedade como
fator de coesão social. Estes espaços, provavelmente, foram conquistados através da organização
e manutenção das festas e solenidades, que se desenvolveram no âmbito deste sistema de crenças e
garantias religiosas. O que nos permite compreender o palhaço da Folia, ou a coroação do Rei e
da Rainha do Congo, junto a embaixada de cristãos contra os mouros, e tantos outros como
registros originais de resistências, memórias, representações.
Sabemos que a escrita, ao se desenvolver, gerou uma perda de elementos como o som, as
entonações, os gestos próprios da cultura oral. Isto acarreta uma desmaterialização do texto,
que sem essas referências sensíveis não se identifica mais com seu suporte. Tais transformações
históricas, relacionadas com o nosso estudo da cultura popular, entendem a Folia de Reis como
uma forma de festejo popular que passa por gerações, com as características da transmissão oral,
11
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“Era un baile muy bonito, divertido. Se tu estavas distraído, paf!!! Te golpeaban y caias en el solo.
Todos se rian. Era una espécie de competición y en certas ocasiones las danzas acontecian com
parejas en el redor de un círculo de gente. E se movian para allá, para acá, tratando de golpear el
opuesto. Bailavamos para el carnaval”
1 O termo “caderazo” deriva de “cadera” que em português significa quadril. O termo é utilizado pelos afro-chilenos
para explicar o movimento do golpe de quadril contra o seu companheiro de dança.
Além do movimento do quadril e o golpe dado contra o companheiro havia outro elemento
importante e fundamental para dançar a antiga tumba: os instrumentos musicais. No tempo do
Senhor Jorge Llerena havia tambores improvisados, construídos artesanalmente pelos próprios
músicos. Chamados até hoje de tumbas esses tambores compunham o ritmo padrão da dança
acompanhados pelos violões e pela quijada. As tumbas afro-chilenas são tocadas por um pequeno
bastão de madeira em alternância com a palma da outra mão. O som produzido é grave, composto, e
é através dele que se produz o ritmo padronizado da dança exigindo dos músicos poucas alterações
ou improvisos. Seu material era composto do barril de azeitona reciclado e adaptado para a
ressonância do som. Além disso, presa à sua extremidade, havia também uma membrana da pele de
algum animal onde o som era produzido com o golpe. As tumbas também eram compostas em
diferentes tamanhos a fim de criar distintas alturas entre graves e agudos.
A quijada, por sua vez, era outro instrumento improvisado que consistia no esqueleto seco e
fervido do maxilar inferior de um burro. Para tocá-lo era necessário segurar com a mão esquerda
pelo espaço livre que ficava entre os caninos e os molares, enquanto a mão direita esfregava com
uma vara sobre os dentes soltos do esqueleto batendo com o punho a parte mais cheia do
instrumento. A quijada era fundamental na tumba porque demarcava na coreografia os golpes de
quadris entre os dançarinos dentro da roda. O conjunto dos instrumentos imprimia na tumba um
padrão rítmico e repetitivo através do qual os dançarinos cantavam estrofes carnavalescas:
Contudo, hoje a tumba passa a ter um novo aspecto morfológico. Os grupos Oro Negro e
Lumbanga, engajados em difundir a tumba, usam a própria dança como instrumento de
representação à tradição e aos antigos costumes afro-chilenos. Se antes o baile era praticado em
roda, atualmente há uma disposição uniforme das dançarinas para que as coreografias ensaiadas
sejam representadas nos desfiles de carnaval da cidade e em diversos eventos celebrativos no Chile.
Por conta desse processo, o tradicional caderazo deu lugar ao movimento coreografado das
dançarinas que representam a colheita da azeitona e do algodão, antigos costumes dos afro-chilenos
de Arica. Por isso, entendemos a partir daqui a nítida preocupação desses dois principais grupos
afro-chilenos por recriar os seus antigos costumes através da tumba. Dessa forma, a dança passou a
ser ferramenta cultural pela re-construção da identidade étnica afro-chilena.
3 TAVARES, Julio Cesar de. Dança de Guerra, Arquivo e Arma. Elementos de uma Teoria da Capoeiragem e da
Comunicação Corporal Afro-brasileira. Universidade de Brasília. Dissertação de Mestrado, 1984.
Existe uma preocupação dos grupos Oro Negro e Lumbanga em manter os instrumentos
tradicionais da tumba sem que haja possibilidade de substituição por outros instrumentos de
percussão, como o pandeiro e outros semelhantes. Dessa maneira, o cuidado pela preservação dos
instrumentos tradicionais ajuda a legitimar a tumba, ainda que tenha sofrido mudanças na sua
morfologia. O afro-chileno Nelson Corvacho lembra que antigamente usava-se um instrumento de
percussão reconhecidamente peruano, mas que hoje foi abandonado propositadamente objetivando
demarcar a fronteira do ritmo e a identidade afro-chilena perante a afro-peruana. De acordo com o
seu comentário, Nelson Corvacho lembra que:
É interessante perceber que atualmente tanto a tumba como o cajón medem bem o nível da
representação da nacionalidade chilena e peruana, respectivamente, bem como as características de
cada afro-localidade. Sabemos que toda a região de Arica já pertenceu ao país peruano e por isso era
comum o uso do cajón nas músicas e danças dos antigos afrodescendentes na cidade. Com o
processo da chilenização, e com o embranquecimento da cultura nacional, não só o cajón caiu em
desuso como também os tambores e todos os instrumentos que poderiam ter associação à cultura
afro-peruana naquela região.
Havendo a necessidade de reproduzir tradicionalmente a tumba, o cajón poderia voltar a ser
usado pelos músicos hoje promovendo maior legitimidade na sua prática. No entanto, esse
instrumento já está naturalmente relacionado à cultura afro-peruana e, para não haver conflitos ou
confusões entre as afro-localidades, os músicos de cada grupo afro-chileno decidiram não usar o
próprio cajón. Por consequência, o instrumento passou a ser um símbolo que demarca fronteiras
regionais da diáspora africana, sobretudo agora, quando o cajón é considerado patrimônio cultural
da nação peruana. Decorre daí o cuidado ou até a repulsa dos músicos em adotar novos ou antigos
instrumentos para complementar o ritmo das tumbas e repiques. Alguns jovens são radicais nesse
sentido procurando preservar a tradição usando somente os instrumentos que remetem à identidade
afro-chilena. Com isso, não há alguma possibilidade dos integrantes, e sobretudo da plateia, em
confundir o ritmo tumba com outros ritmos afros, já que os instrumentos definem as diferenças de
cada localidade e sua identidade étnica.
4 “Cajón” significa caixa grande, em português. Esse instrumento é originalmente afro-peruano e consiste em uma
caixa de madeira retangular onde o músico senta em cima e bate com as duas palmas da mão na sua parte exterior
produzindo um som opaco.
Há também a recusa em usar o pandeiro ou por vezes o agogô mesmo que haja admiração
dos jovens por estes instrumentos e pela cultura musical brasileira. É importante notar também que
o cajón foi sendo abandonado porque o instrumento não oferece a mobilidade que o músico precisa
ter nos desfiles da tumba. Entende-se, com isso, que manipular a tradição é também selecionar os
elementos que dela se originaram para melhor legitimar a afro-chilenidade. É nesse exercício de
selecionar os antigos instrumentos, de agregar novos e de adaptar todos eles para o desfile que a
identidade cultural é moldada. Para Stuart Hall possuir uma identidade cultural nesse sentido “é
estar primordialmente em contato com um núcleo imutável e atemporal, ligando ao passado o
futuro e o presente numa linha ininterrupta. Esse cordão umbilical é o que chamamos de
“tradição”, cujo teste é o de sua fidelidade às origens, sua presença consciente diante de si mesma,
sua 'autenticidade'”(HALL, 2009).
A manipulação do uso e desuso dos instrumentos e das coreografias passa por essa busca de
autenticidade baseada no “cordão umbilical” de Hall. Além disso, a seleção de instrumentos
específicos também é definida pela própria morfologia da dança atualmente, isto é, da estrutura do
desfile composta pelas dançarinas e pelos músicos. Já que os grupos precisam desfilar pelas ruas,
seus músicos precisam de instrumentos que ofereçam certa mobilidade e praticidade para a
reprodução do ritmo. Por isso as tumbas e os repiques são os mais utilizados. Com isso, esses
instrumentos ganham o reconhecimento dado pelos afro-chilenos porque é através deles que a
tradição da tumba se legitima, mesmo que hoje não haja mais a quijada, violões ou o próprio cajón.
É interessante notar ainda que a marcação padronizada que imprimia o ritmo da tumba e
demarcava o momento dos caderazos era realizada pela quijada. E essa marcação padronizada foi
substituída atualmente pelas tumbas. Enquanto as tumbas reproduzem o ritmo mais forte, grave e
padronizado, os repiques acompanham com seu ritmo mais acelerado e improvisado. Porém, para
que o ritmo não tenha sempre o mesmo padrão, os jovens músicos que compõem o grupo Oro
Negro criaram certas variações realizadas pelas tumbas. Essas variações podem ocorrer durante o
ritmo ou podem ser realizadas para anunciar o começo da apresentação. O aprendizado do ritmo
padrão e das suas variações pode parecer um verdadeiro desafio para alguém que nunca realizou
certa experiência.
As tumbas continuam sendo recriadas seguindo a tradição de adaptar o antigo barril de
azeitona em instrumento de percussão. Nesse sentido, o modo de saber é ferramenta para a
reprodução dos antigos costumes e a preocupação do grupo é transmitir para os demais jovens a
tarefa de construir seus próprios instrumentos como antigamente. Para Francisco Piñores, principal
músico do grupo Oro Negro, o resgate da tradição da dança e do artesanato do tambor possibilitam
a melhor divulgação da cultura afro-chilena, permitindo que o país inteiro tome conhecimento da
sua etnicidade viva.
Segundo seu depoimento:
“Hoy en día, existe solo un puñado de personas que saben como fabricar este tipo de tambores, los
que en un principio solo contaban con un cuero de animal clavado al barril por medio de clavos o
tachuelas. Estas personas tienen el interés y la preocupación de enseñar a otras personas de la
comunidad a fabricar este tipo de instrumentos musicales, ya que son una parte característica de
la cultura Afro-chilena”
O desafio é legitimar essas práticas como formas de saber, como um campo cultural ou mais
propriamente o que Foucault alude como uma forma cultural em que “dentro de uma cultura
determinada se organiza um saber, se institucionaliza, libera-se uma linguagem que lhe é próprio e
eventualmente alcança uma forma científica” (FOUCAULT, 1965). Considero o ginásio usado para
os ensaios como lugar estratégico onde se organiza esses saberes resgatando e manipulando a
tradição como um “cordão umbilical” (HALL, 2009) preparando para ser reproduzida nos seus
múltiplos espaços ou arenas.
Esse projeto evidencia a vontade dos que detêm o conhecimento almejando a sua
transmissão e sedimentando não só o costume de fazer os tambores artesanalmente, mas também
valorizando a própria prática, fortalecendo os costumes antigos da população afro-chilena. Dessa
forma, valoriza-se a cultura através da dança e os instrumentos através da sua transmissão às futuras
gerações. Por conta disso, Francisco Piñores criou o curso de fabricação de tambores com a parceria
de Oro Negro e com o investimento da Fondart5. Esse processo de patrimonialização ajuda a
construir a consciência da memória e do passado afro-chileno, já que os tambores, a princípio eram
construídos de barris reciclados.
Antes dos grupos desfilarem suas tumbas pelas ruas de Arica há frequentes ensaios,
sobretudo quando é época de carnaval na cidade. Tanto os músicos como as dançarinas costumam
se reunir no ginásio da Universidade de Tarapacá, a principal da cidade, para aprimorar o ritmo e as
coreografias. As dançarinas costumam compor de quatro a cinco fileiras (depende do número de
jovens), uma atrás da outra, e em cada fileira há geralmente quatro ou cinco dançarinas. Dessa
maneira, o conjunto apresenta uma disposição uniforme para que a dança seja melhor apreciada.
Essa é a morfologia constituída para a apresentação da tumba nos desfiles. As coreografias são
divididas em nove e são alternadas de acordo com o aviso prévio de uma das jovens que se encontra
na primeira fileira.
5 Fondart é sigla de “Fondo Nacional para el Desarrollo de las Artes” e foi criada em 1992 para fomentar projetos
artísticos e culturais de interesse ao país. Administrado pelo Ministério da Educação, a Fondart financia os projetos
previamente aprovados em concurso público convocado anualmente.
Para avisar a mudança de coreografia a jovem primeiro levanta o braço e em seguida assopra
o apito. As principais coreografias se preocupam em representar os antigos costumes dos afro-
chilenos como a produção de azeitonas e a colheita do algodão na zona agrícola da cidade. A
primeira coreografia combinada é a colheita da azeitona. Nela as dançarinas movimentam os braços
para cima e para baixo fingindo colher as azeitonas e colocando em um cesto imaginário preso à
cintura. Os joelhos e o quadril complementam o movimento do corpo que oscila para esquerda e
para a direita. Em seguida as dançarinas iniciam a segunda coreografia que consiste na colheita do
algodão. Nela as dançarinas fingem puxar o algodão com o movimento dos braços para frente e
para trás enquanto se dança para esquerda e para a direita novamente. Já a terceira coreografia
representa o ato de cortar a cana-de-açúcar. Para isso as dançarinas jogam os ombros para frente e
com o braço direito fingem o corte da cana. Ao mesmo tempo o corpo oscila para frente e para trás.
Assim que terminavam de cortar a cana as dançarinas moviam seus ombros e braços para a
esquerda e para a direita e logo em seguida realizavam um giro em torno do próprio eixo.
Nesse processo de produção estética a “interação social” do negro é definida (GILROY,
2000) no ser afrodescendente reproduzida na dança e nos tambores. É necessário lembrar ainda que
essa estética diaspórica nasce na arte do improviso definida por mestre Darcy do Jongo como
“resistência cultural, aquilo que se faz no peito e na raça sem nenhuma tipo de ajuda
governamental”. Com isso, o corpo das dançarinas e o tambor dos rapazes se fundem em um só
criando a “interação social” emancipatória do negro na diáspora.
Enquanto as tumbas e os repiques continuam a ressoar as dançarinas voltam a reproduzir o
passado nas coreografias. Quando o braço e os ombros são movidos para frente como se um grande
peso recaísse nas costas de cada dançarina é realizada a quinta coreografia. Em seguida as
dançarinas se movem para esquerda e para a direita golpeando o ar com seus quadris. E cada golpe
é acompanhado com os calcanhares dos pés levantados. A última coreografia é importante porque
retrata o caderazo, movimento central da antiga tumba. Fica claro que a coreografia idealiza não só
os antigos costumes do dia-a-dia da população afro-chilena, mas também faz menção ao antigo
modo de dançar a tumba. Em seguida é a vez dos ombros serem girados brevemente para frente e
para trás seguidos pelos braços.
A oitava coreografia consiste em um giro do corpo seguido de um movimento de quadril
para esquerda e para a direita. Existe ainda, entre uma coreografia e outra, um movimento básico no
qual as dançarinas balançam os braços com os ombros enquanto os joelhos flexionados dão
sustentação para o movimento do quadril. Esse movimento básico corresponde ao ritmo dos
tambores com sua marcação padronizada, criando assim determinada sincronia entre o corpo e a
ritmo.
Dessa forma, a dança, com o seu conjunto de coreografias, é vista como linguagem corporal,
como discurso a favor de uma afro-chilenidade emergente capaz de promover seu esquema
simbólico e representar os antigos costumes afro-azapenhos. A linguagem corporal é um sistema
representativo cujo processo de transmissão começa na inteligência corpo-cinestésica e termina na
expressão do corpo significando o que dela resulta. Para Tavares a linguagem corporal é “um signo
entendido como momento liminar entre o significante (corpo), o significado (memória corpórea), o
sentido (a resistência/participação) e o referente (a situação específica). E este signo, ou o corpo
como signo, através dos tempos tem-se metamorfoseado em vários sentidos, numa constante”
(TAVARES, 1984). Assim, a coreografia enquanto esquema da linguagem corporal e sistema
representativo estruturada na inteligência cinética-espacial, proporcionará uma carga simbólica
contextualizada na intenção do enunciador. Essa carga simbólica pode ter uma nova interpretação se
ela não for bem enunciada. O gesto de cortar o ar com as mãos possibilita o entendimento do cortar
a cana-de-açúcar se o mesmo gesto for preparado em um contexto e bem representado pelo
enunciador. A coordenação e o senso rítmico, bem como o controle voluntário dos gestos, termina
por produzir o significado desejado.
É nesse sentido que o humano se comporta de modo inato como um ator performático em
sincronia com seu tipo orgânico. Ele é potência animalesca que vai exprimir nos ritos e nas danças
sua violência, criatividade capaz de gerar um esquema representativo da sua identidade, suas
tradições e território. Quando as regras da dança estão dispostas com base na interação e no modo
holárquico dos seus atores a tendência é que a criatividade e, portanto, o improviso estabeleçam o
norte do ritual. Essa interação é capaz de ditar o ritmo da música e a leveza da corporalidade na
roda dos seus atores. O rito em si é sistemático, narrativo, textual, porém, uma vez iniciado, é
sujeito aos imprevistos da pulsão animalesca do ator. É nessa potência psíquica que há a
inexistência de leis e o exercício da criatividade, que criará novos signos, significados enunciados e
traduzidos pelo corpo, criando uma corporeidade simbólica.
Era o ritual da dança em roda que a corporalidade extrapolava as regras impostas no
cotidiano dos antigos afro-chilenos. O biopoder, o controle e a disciplina imposta eram ignoradas
naquele breve momento entre o primeiro pulso da tumba até o último golpe de quadril. Nesse
sentido o corpo era resistência e continua sendo, só que hoje com uma outra lógica e proposição. A
morfologia mudou, mas o fundamento da dança não. A diversão e ao mesmo tempo a indignação
contra o biopoder no passado e presente continuam movendo a corporalidade afro-chilena. A ação
do ritual realizada pelo desfile da tumba alimenta a tradição de um povo, cria novos significados,
media as tensões entre continuidade e mudança, integra os indivíduos no sistema social e não deixa
de ser celebrada com frequência.
Com isso as fricções construídas até o momento na relação inter-étnica são agenciadas pelas
performances dos rituais, ou pelas ações dramáticas (GOFFMAN, 2008), proporcionando arte,
criação, ruptura e reconsideração de uma nova realidade. A incorporação processual dos rituais da
dança no sistema cognitivo permite, portanto, instruir e mobilizar os participantes com seus
interlocutores. Os afro-chilenos com sua performance cultural é capaz de produzir uma uma
narrativa que remete à ancestralidade do seu grupo étnico. As estruturas da dança apesar de não
serem fixas, são construídas pragmaticamente durante a narrativa e os seus significados renovados
através da interação social (SCHIEFFELIN, 1993).
Sheub considera a narrativa como um produto estético, já que seus efeitos sobre a plateia se
traduzem na dança e na música. Quatro elementos parecem determinar a narrativa: as imagens
transmitidas (coreografia), o atores (dançarinas e músicos), a plateia (público), seu contexto
(carnaval), e a tradição (discurso). Entre os atores e a plateia é construída uma rede de cooperação
cuja função é a de colaborar para o desenvolvimento da narrativa e, por conta disso, padrões de
comportamento serão estabelecidos entre os dois. Os músicos e as dançarinas através da sua ação
dramática, corporeidade, constroem as imagens narrativas, o seu repertório que irá culminar na
aceitação e reconhecimento da plateia. Com essa rede cooperativa estabelecida na ação
performática a valorização da identidade é construída processualmente. Uma pedagogia que deve
ser repetida todos os anos, todos os carnavais a fim de que o reconhecimento esteja imbricado às
práticas sociais do dia a dia da população. Para o autor o tempo é uma ferramenta para o
entendimento dos mecanismos de um sistema estético (SHEUB, 1977).
Neste universo estético da narrativa, a performance corporal se manifesta por meio de
mensagens também corporais (coreografia) captadas pela não-verbalidade, pelos gestos emitidos
interagindo e ratificando a linguagem transmitida (GOFFMAN, 2008). Decorre daí a interação com
a plateia que reage prontamente com o ritmo do tambor, batendo palmas e chacoalhando os
calcanhares contra o chão. A coreografia em uma narrativa (desfile) provoca à plateia a noção de
verossimilidade da tradição dos atores. Nessa lógica, há uma interação simbólica entre os atores e a
plateia quando há o reconhecimento das imagens recolhidas pela consciência e transformadas em
reconhecimento. A narrativa, por sua vez, consegue envolver a audiência com seu ritmo, estética e
sensualidade, promovendo no corpo a exteriorização das imagens construídas. O corpo e sua
linguagem gestual evocam as imagens através de um chamamento, uma interpretação convidando a
plateia a participar da narrativa. Os gestos, a sua espacialidade e direção, estabelecem uma conexão
com as imagens verbais, ou com a inexistência das mesmas, ambientadas num contexto rítmico, de
cadência, através da repetição. Sendo assim o corpo é a própria performance, é presença, interação e
cooperação.
O corpo é também poder, ser e estar, intensa construção e transformação, ou seja, é uma
espacialidade de posição, diferentemente de uma espacialidade de situação. É, portanto, na ação que
a espacialidade do corpo se completa. Se não há ação, não há lugar na sociedade, e tampouco o
espaço a ser conquistado pelos afro-chilenos. Nesse sentido Merleau-Ponty explica que o balanço
dos movimentos, os gestos, impressões sinestésicas e articulares produzem linguagem visual para o
momento. E com isso o seu esquema corporal é mais do que resultado das associações estabelecidas
ao longo da experiência, é também uma tomada de consciência dos sujeitos-atores no mundo
(MERLAU-PONTY, 1971).
Em relação a interação entre os participantes é interessante observar que antes a tumba
promovia o contato direto com o outro, no caso o parceiro de dança. Porém aquela improvisação
que havia antes entre os dançarinos na roda perdeu espaço por conta da coreografia. Ainda sim, essa
improvisação foi transferida para os músicos que procuram alterar com o repique algumas variações
o ritmo padrão da tumba. A coreografia deixa de promover o contato com o parceiro para iniciar o
contato com o público no desfile. Tendo isso em vista, é nas ruas que se manifesta com frequência o
baile tumba. A rua é o espaço central da expressão do baile o que facilita naturalmente a sua
aproximação com o público em geral. Nesse sentido, não poderia haver espaço mais público e
democrático que as ruas e avenidas para a conquista de reconhecimento. E por esse intermédio, a
coreografia termina sendo instrumento discursivo para a legitimação da identidade étnica e tradição
afro-chilena.
Como tenho dito, mesmo que a tumba tenha sido modificada em um instrumento político-
cultural cujo local discursivo passou a ser as ruas, algumas de suas características pretéritas ainda
podem prevalecer enquanto outras são deixadas de lado. A tumba antiga de certa forma não deixou
de ser praticada se considerarmos que tal prática nasceu nos quintais e nos núcleos familiares
afrodescendentes. Em época de carnaval, a tumba ainda pode ressoar entre quatro paredes
dependendo da iniciativa e engajamento de cada núcleo familiar. No entanto, esse baile ganhou
novos contornos assumindo uma carga simbólica muito maior quando passou a assumir sua própria
travessia. Significa dizer que a tumba conseguiu transpor as casas e o vale de Azapa para ganhar
ainda mais as ruas, a cidade e o país. Esse movimento do âmbito privado para o público e, por que
não dizer, do local para o global, foi fundamental para o projeto de re-construção da afro-
chilenidade, certa vez ocultada enquanto símbolo tradicional da sua cultura. principal expressão
enquanto performance, estética e qualidade política para mediar a construção e reconhecimento da
etnicidade afro-chilena a nível nacional e local, acabando, por fim, com possíveis fricções étnicas
nesses dois âmbitos.
Assim sendo, os afro-chilenos rompem com as amarras da espoliação cognitiva saindo de
Azapa para ganharem a cidade – não se deve entender este processo apenas de maneira literal. A
partir daí, a cidade Arica recebe a Tumba traduzida no canto, na dança e na corporeidade como
forma política buscando o reconhecimento. Em consequência, nas diferentes arenas da “periferia” a
travessia ganha o asfalto, o reconhecimento local e global. A força narrativa do discurso através da
corporeidade, das performances e do trabalho político dessa etnicidade delineará mais solidamente
o espaço a ser conquistado na sociedade que se diz ser diversa.
Essa emergência de valores para além do seu lugar de origem são reconhecidos e
interpretados pelo outro como novos valores. Valores que terão possibilidades de desenvolver novos
instrumentos de expansão das arenas com o devido trabalho em conjunto com as mediações
institucionais como o Estado e a escola. Assim, cria-se o vínculo institucional fortalecendo a
positividade do viés político-cultural. Portanto, a emancipação está mais do que selada e
encaminhada para novos desenvolvimentos quando as práticas culturais são utilizadas como virtude
ou qualidade estética. Cria-se uma nova estética e comportamento popularizada em todas as classes.
As práticas culturais afro-chilenas, a partir daí, livram-se das amarras cognitivas ou discursivas do
passado, no qual sofreu repressão em prol da cultura majoritária.
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