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Núcleo de Antropologia, Performance

e Drama [Napedra]

Anais do Encontro Internacional


de Antropologia e Performance
[EIAP 2011]
São Paulo

Universidade de São Paulo


Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social

Universidade Estadual de Campinas


Instituto de Artes
Programa de Pós-graduação em Artes

Apoio
Fapesp, Capes, Departamento de Antropologia da USP, Programa de Pós-graduação em
Antropologia Social, Pró-reitoria de Extensão e Cultura da USP, Pró-reitoria de pós-graduação
da USP, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU/USP), LISA, USP, UNICAMP, UNESP

______________________________________________________________________
Catalogação na Publicação Divisão de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

E56 Encontro Internacional de Antropologia e Performance (2011: São Paulo, SP)


Anais do Encontro Internacional de Antropologia e Performance (EIAP)
25 de setembro a 1 de outubro de 2011
Coordenação geral: John Cowart Dawsey, Regina Polo Müller.
São Paulo:Napedra:FFLCH-DA/USP:IA/UNICAMP, 2012.

ISBN 978-85-7506-211-1

1. Antropologia. 2. Artes. 3. Performance.


I. Dawsey, John Cowart, coord. II. Müller, Regina Polo, coord. III. Núcleo de
Antropologia, Performance e Drama – Napedra. IV. EIAP 2011. V. Título.

CDD 301.2
______________________________________________________________________
Núcleo de Antropologia, Performance e Drama [Napedra]

Coordenação Geral
Prof. Dr. John Cowart Dawsey
Profª Drª Regina Polo Muller

Comissão Organizadora
Ana Cristina Lopes
Ana Goldenstein Carvalhaes
Carolina Abreu
Denise Pimenta
Euler Sandeville
John Cowart Dawsey
Marianna Francisca Martins Monteiro
Regina Pólo Müller

Comissão de Financiamento e Prestação de Contas


Adriana de Oliveira Silva
Ana Cristina Lopes
Carolina Abreu
Denise Pimenta

Comissão Executiva e de Divulgação


Adriana de Oliveira Silva
Diana Paola Gómez Mateus
Francirosy Campos Barbosa Ferreira
Kelen Pessuto

Comissão de seleção
Ana Lúcia Marques Camargo Ferraz
Giovanni Cirino
Romain Jean Marc Pierre Bragard

Comissão de Performances
Ana Goldenstein Carvalhaes
Luciana de Fátima Rocha Pereira de Lyra
Marianna Francisca Martins Monteiro
Comissão Experiência na Cidade de São Paulo
Bianca Caterina Tereza Tomassi
Carolina Abreu
Euler Sandeville
Marianna Francisca Martins Monteiro
Romain Jean Marc Pierre Bragard

Comissão de Produção
Alice Villela
Ana Cristina Lopes
Bianca Caterina Tereza Tomassi
Denise Pimenta
Marcos Vinícius Malheiros Moraes
Tatiana Molero Giordano

Comissão de Tradução
Ana Cristina Lopes
Danilo Paiva Ramos
Denise Pimenta
O Encontro Internacional de Antropologia e Performance (EIAP) aconteceu
entre os dias 25 de setembro e 01 de outubro de 2011, com sede no auditório da FAU
(Faculdade de Arquitetura e Urbanismo) da Universidade de São Paulo, campus Cidade
Universitária. Além do auxílio recebido da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
de São Paulo [FAPESP], o evento recebeu o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior [CAPES], Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária
[PRCEU-USP], Pró-Reitoria de Pós-graduação [PRPG-USP], Pró-Reitoria de Graduação
[PRG-USP], Programa de Pós-graduação em Antropologia Social [PPGAS-USP],
Departamento de Antropologia da USP [DA-USP], Laboratório de Imagem e Som em
Antropologia [LISA-USP], Faculdade de Arquitetura e Urbanismo [FAU-USP],
Universidade de São Paulo [USP], Universidade Estadual de Campinas [UNICAMP], e
Universidade Estadual Paulista [UNESP].
O EIAP contou com a presença de pesquisadores (graduação, pós-graduação e
professores) de diferentes centros de estudos e pesquisa de estudos em performance
do Brasil e do exterior, seja como participantes inscritos – expositores ou ouvintes –
ou convidados – conferencistas, palestrantes e performers. Os participantes eram
oriundos de diferentes instituições, estaduais e federais, localizadas em mais de uma
dezena de estados da federação, de todas as regiões do país; assim como de algumas
das principais instituições da França, do Reino Unido, e dos Estados Unidos da
América.

Merece atenção a presença no evento de representantes das principais


linhagens de estudos em antropologia e performance, e pesquisadores membros de
centros de pesquisa no âmbito internacional. Como uma das pesquisadoras
renomadas da vertente dramatúrgica do campo, ressalta-se a presença de Diana
Taylor (Department of Performance Studies, Tisch School of the Arts, NYU),
colaboradora de Richard Schechner e fundadora/coordenadora da Hemispheric
Institute of Performance and Politics. Também merece destaque a presença de
Richard Bauman (Indiana University), uma das principais referências da vertente
linguística do campo, e um dos criadores do campo de estudos associado à etnografia
da fala e às performances narrativas. Como representantes de pesquisas em artes da
performance, chama atenção a presença de Guillermo Gómez-Peña e Michele Ceballos
(La Pocha Nostra, California). Também esteve presente Johannes Sjoberg (Granada
Center of Visual Anthropology, University of Manchester), importante pesquisador em
estudos de performance da universidade onde Victor Turner desenvolveu algumas das
pesquisas pioneiras do campo. Ressalta-se a presença de Jean-Marie Pradier (Société
Française d’Ethnoscénologie, Université de Paris 8), principal referência dos estudos
de etnocenologia. Também merece atenção a presença de Beverly Stoeltje (Indiana
University), pesquisadora reconhecida por suas contribuições ao campo da
antropologia da performance.

Além da presença de pesquisadores renomados de centros de pesquisa do


exterior, vale destacar que estiveram presentes coordenadores de grupos de estudo e
pesquisa que vêm contribuindo de forma marcante para o debate nas interfaces entre
Antropologia e Performance no cenário nacional. São eles: Armindo Bião (Grupo
Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade, Imaginário e
Teatralidade/GIPE-CIT-UFBA), Esther Jean Langdon e Vânia Cardoso (Grupo de Estudos
em Oralidade e Performance,GESTO-UFSC), Marcelo Romero (Núcleo de Pesquisa em
Tecnologia da Arquitectura e Urbanismo, NUTAU-USP), Rita de A Castro (Poéticas do
corpo: do treinamento à cena-UnB), Robson Correa Camargo (Rede Goiana de
Pesquisa em Performances Culturais-UFG), Sérgio Ivan Gil Braga (NURBE-UFAM), e
Zeca Ligiéro (Núcleo de Estudos das Performances Afro-Ameríndias,NEPAA-UNIRIO).

Acreditamos que o objetivo geral de reunir pesquisadores das áreas de


antropologia e artes interessados em questões de performance para se realizar
estudos, discussões e trocas de cunho institucional, acadêmico e artístico foi
plenamente satisfeito. A comissão organizadora avalia o evento de maneira positiva,
acreditando que este contribuiu de modo significativo para o desenvolvimento do
campo da Antropologia da Performance no país, reforçando laços com alguns dos
principais centros internacionais de pesquisa sobre o tema.
PROGRAMAÇÃO

WORKSHOP
25/09/2011
Guillermo Gómez-Peña e Michele Ceballos (La Pocha Nostra)
“Ritual strategies to decolonize the body: a workshop for performance artists,
radical actors and dancers”

ABERTURA
26/09/2011
Prof. Dr. Marcelo Romero (FAU/USP)
Prof. Dr. John C. Dawsey (DA/ USP, coordenador do Napedra)
Prof. Dr. Rubens Alves da Silva (ECI/FMG)

MESAS
Mesa 1: Corpo, memória e espetáculo
26/09/2011
Diana Taylor (NYU)
Knowledge and transmission the age of digital tecnologies

John Cowart Dawsey (PPGAS/USP)


Nossa Senhora e a Mulher Lobisomem: Corpo e Montagem

Ana Cristina Lopes (DA/USP)


O Teatro de Kalachakra: a Política como Espetáculo Sagrado
Mesa 2: Antropologia, artes da performance e cidade
26/09/2011
Guillermo Gómez-Peña e Michele Ceballos (La Pocha Nostra)

Strange Democracy: An Evening with Spoken Word Brujo Guillermo Gómez-


Peña

Regina Müller (IA/UNICAMP)


Artes da performance

Euler Sandeville (FAU/USP)


Visões artísticas da cidade

Mesa 3: Narrativa e oralidade


27/09/2011
Richard Bauman (Indiana University, Bloomington)

“There’s a good deal to everything”: country communicability on early


commercial sound recordings in the U.S.

Esther Jean Langdon (UFSC)


A Viagem a Casa das Onças”: Narrativas sobre experiências extraordinárias

Francirosy Campos Barbosa Ferreira (FFCLRP/USP)


Antropólogas e suas magias
Mesa 4: Corpo em cena
28/09/2011

Jean-Marie Pradier (Professeur Emérite Université Paris 8, Maison des Sciences


de l’Homme Paris Nord)

L’ethnoscénologie: l’incarnation des imaginaires Unité de l’espèce, diversité des


épiphanies

Armindo Bião (UFBA)


Ex-timidade, corpo e cena

Marianna Francisca Martins (IA/UNESP)


Estética Contemporânea e Festa Popular

Mesa 5: Artistas em performance


28/09/2011
Maria Lucia Montes (DA/USP)
A herança do xamã

Rose Satiko Gitirana Hikiji (PPGAS/USP)

A arte e a rua: reflexões a partir da realização de um filme etnográfico com


artistas de Cidade Tiradentes

Mesa 6: Teatro e ritual


29/09/2011
Beverly J. Stoeltje (Indiana University)
Performing politics with the ritual of curse: crossing a threshold in Ghana
José Luiz Ligiério Coelho (UniRio)
O conceito de ‘Motrizes Culturais’ aplicado às práticas performáticas afro-
brasileiras

Elizabeth Lopes (ECA/USP)


Teatro e Ritual: uma performance profanável?

Mesa 7: Imagem e performance


30/09/2011

Johannes Sjorberg (Lecturer in Screen Studies at the University of Manchester,


United Kingdom)

Ethnofiction: creative, collaborative and reflexive performance practices in


ethnographic research and representation

Ana Lúcia Ferraz (DA/UFF)


Etnoficção: Jogo de papéis e reflexividade na pesquisa antropológica

Edgar Teodoro da Cunha (DA/UNESP)

Ritual, cena e panorama sonoro: experiências de uso de imagens entre os


Bororo do Mato Grosso
SESSÕES NAPEDRA

Sessão Napedra 1: Walter Benjamin e antropologia


26/09/2011
Coordenadora: Vânia Zikán Cardoso (UFSC)

Ana Leticia de Fiori (PPGAS/USP)


André-Kees Schouten (PPGAS/USP)
Turner, Benjamin e experiência: exercício de antropologia benjaminiana
Carolina de Camargo Abreu (PPGAS/USP)
Experiência da rave: entre o espetáculo e o ritual
Eduardo Néspoli (DAC/UFSCar)
Instrumentos sonoros e agenciamento maquínico na performance

Sessão Napedra 2: Festa e religiosidade popular


27/09/2011
Coordenador: Sérgio Ivan Gil Braga (UFAM)
Danças e andanças de negros na Amazônia: por onde anda o filho de Catirina?

Adriana de Oliveira Silva (PPGAS/USP)


Celso Menezes (PPG-SOC/UEL)
Denise Pimenta (PPGAS/USP)
Corpo devotado, corpo aos pedaços: uma antropologia de corpos que crêem
Sessão Napedra 3: Corpo e teatro
28/09/2011
Coordenador: Robson Correa de Camargo (UFG)
Ana Goldenstein Carvalhaes (PPGIEHA/USP)
João Luis Passos (IA/UNICAMP)
The globalization of capoeira: performance, identity and contemporary
experience
Luciana Lyra (PPGAS/USP)
Do Registro Artetnográfico: Experiência em Campo no Livro de Artista.
Marcos Vinícius Moraes (PPGAS/USP)

“E brincar não foi à toa, foi um jeito de aprender”: a passagem entre


instituições escolares como estratégia na constituição de um organismo

Sessão Napedra 4: Narrativa e imagem


29/09/2011
Coordenadora: Rita de A Castro (UnB)
Alice Vilella Pinto (PPGAS/USP)
Narrativas que ‘fazem existir’: a performande dos xamãs Asuriní
Diana P. Gómez Mateus (PPGAS/USP)
Sombra do passado, sombra da presença
Kelen Pessuto (IA/UNICAMP)
As crianças no cinema iraniano: o brincar e o faz de conta
Sessão Napedra 5: Experiência e memória
30/09/2011
Coordenadora: Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer (PPGAS/USP)
Bianca Tomassi (IA/UNICAMP)

Assalam Aleikum Favela: Sonoridade e percepções do Islã nas periferias de São


Paulo e do ABCD
Danilo P. Ramos (PPGAS/USP)

Círculos de coca e fumaça: mitos, sonhos e benzimentos nas rodas noturnas dos
velhos Hupd’äh
Tatiana Molero (IA/UNICAMP)
Ecos do processo socioeducativo no corpo do ator-performer

Romain Bragard (PPGAS/USP)


Questões antropológicas sobre “sentimento de natureza”
GRUPOS DE TRABALHO

GT 1: Antropologia e artes da performance


27/09/2011
Coordenadora: Ana Lúcia Ferraz (NAPEDRA/UFF)

Marcelo de Andrade Pereira (UFRGS)


Pedagogia da performance: configurações parateatrais da docência

Taiana Renata Martins da Silva (UFG)

A identidade circense, seus símbolos e rituais sob a lona: reflexões sobre o circo
e suas perfomances

André Luiz Santos da Silva (URJ)


A arte de caminhar pelas ruas ou delirium ambulatorium

Renato Jacques de Brito Veiga (UFMG)

Etnografando processos criativos em dança contemporânea: o ensaio


enquanto prática cultural.

GT 2: Corpo, memória e espetáculo


27/09/2011
Coordenador: Romain Bragard (NAPEDRA/USP).

Heloisa Selma Fernandes Capel (UFG)


Entre Materialidades e Sentidos: a sala de aula como evento performático
Fábio Alex Ferreira da Silva (USP)

Fundamentos da capoeira angola: o aprendizado performático de uma


linguagem corporal

Heloisa Gravina (PPGAS/UFRGS)

Corpos em performance com a Áfricanamente: notas etnográficas de uma


aprendiz de capoeira Angola em Porto Alegre, Brasil

Fernando Marques Camargo Ferraz (UNESP)

Coreógrafos em campo: criadores da dança negra no Brasil e suas mediações


com a cultura

Juliana Ferrari (NuMiollo)


Tortura e construção da nação: a simbologia do silenciamento na performance
“Zuzu de Seus Anjos”

GT 3: Narrativa e oralidade
27/09/2011
Coordenadora: Rose Satiko Gitirana Hikiji(NAPEDRA/USP)

César Augusto de Assis Silva (CEBRAP/USP)

Outra oralidade em questão: a tensão entre português sinalizado e libras em


rituais católicos

Julio Cesar Ponciano (UFP)


Cartas da prisão: linguagem em ação
Paula Alves Barbosa Coelho (UFPB)
A dimensão coletiva do relato pessoal em Histórias de Sem Réis
Edimilson Rodrigues de Souza (PGCS/UFES) e Celeste Ciccarone (UFES)

Trânsito das almas: ritualização de lideranças sindicais e peregrinações como


forma de resistência camponesa

GT 4: Teatro e ritual
29/09/2011
Coordenadora: Francirosy Campos Barbosa Ferreira (NAPEDRA/USP)

Marcus Wesley Guimarães Rosa (IA/UNESP)


Interculturalidade em VemVai: O Caminho dos Mortos.

José Tonezzi (UFPB)


A cena contaminada: o caso da companhia de arte intrusa

Livia Piccolo (ECA/USP)

Leitura e emissão no trabalho do ator: um estudo sobre a Cia. Club Noir a partir
de Paul Zumthor

GT 5: Imagem, som e performance


29/09/2011
Coordenador: Edgar Teodoro da Cunha (NAPEDRA/UNESP)

Adriana Fernandes (UFPB)


Sonoridades em Meierhold
Paulo Murilo Guerreiro do Amaral (UEPA)

Tradição futurista e regionalismo global na performance do tecnobrega em


Belém do Pará

Joana Brauer Gonçalves (UFMG)


Performance, ritual e semiótica: um estudo do breaking

Ana Paula Mendes Pereira de Vilhena (UFP)


A festa de aparelhagem e as galeras que fazem o espetáculo

Inês Alcaraz Marocco (UFRGS)


O jogo na criação de formas plásticas no espaço

Bruna Nunes da Costa Triana (FFLCH/USP)

Sobre as cores e sua magia: imagem, experiência e mimesis na trilogia de


Kieślowski

GT 6: Festa e religiosidade popular


29/09/2011
Coordenadora: Denise Pimenta (NAPEDRA/USP)

Joana Ramalho Ortigão Corrêa (PPGSA/UFRJ)


Entre valsados e batidos: a dança do Fandango Caiçara nos sítios e palcos

Aressa Egly Rios da Silveira (UNIRIO)


Palhaço de folia de reis e o diabo festivo na américa latina: representatividade,
teatralidade e religiosidade

Ausonia Bernardes Monteiro (Faculdade Angel Vianna)


A dança do Palhaço da Folia: cena e apropriação na diversidade cultural

Nestor Gomes Mora Cortés (UFF)

Tumba Carnaval: A corporeidade no discurso de reconstrução à identidade afro-


chilena
AÇÕES PERFORMÁTICAS

Regina Polo Müller (Unicamp/Napedra)


29/09, auditório da FAU-USP
Mira, Chica…
Regina Müller se apresenta em performance onde, num processo
autobiográfico de criação, aborda a relação entre pais e filhos, questões de gênero,
sexualidade e cultura pop. Mais um trabalho inpirado em Carmen Miranda, cantora
performática, ícone “queer” internacional. Coletivo formado por Regina Müller,
Alberto Camarero, João Cláudio de Sena, Ana Goldenstein e Mariana Jorge. A obra é
dedicada aos Dzi Croquettes, grupo teatral do qual Regina Müller participou nos anos
70.

Cesar Huapaya (UFES)


30/09, auditório da FAU-USP
Jazz, camdomblé e teatro
O espetáculo musical aborda a temática da música brasileira através dos
cantos dos orixás do candomblé de Vitória.

Credos
26/09, saguão do auditório da FAU/USP
Partindo de experiências performáticas acerca da temática do sagrado pessoal,
performers propõem trajetórias que se entrecruzam, re-ligam-se. Concepção e
Atuação: Carlos Ataíde, Lilih Curi, Luciana Lyra, Simone Evaristo, Vânia Medeiros e
Viviane Madu.

Quad
Supervisão cênica: Marianna Monteiro e Marcus Guimarães Rosa
Com: Ana Goldenstein, Carolina Oliviero, Daniela Aquino e Marianna
Monteiro
27/09, saguão do auditório da FAU/USP
Quad é uma Performance inspirada na obra de mesmo nome, de Samuel
Beckett, escrita para televisão em 1981. Sem os recursos televisivos de imagem e
som, a performance pretende interagir com o espaço arquitetônico da Faculdade de
Urbanismo da USP, de forma a potencializar e transformar a visualidade da proposta
original. A peça para 4 atores, luz e percussão, se transformará em performance com
4 atores, celulares, em vão livre.
Fragmentos homens e caranguejos
Direção: Luciana Lyra (Cia. Duas de Criação)
Com: Beatriz Marsiglia, Camila Andrade, Juliana Mado e Letícia Leonardi
(Coletivo Joanas Incendeiam)
28/09, saguão do auditório da FAU/USP
A partir das experiências artetnográficas nas comunidades da Ilha de Deus, em
Recife e do Boqueirão, em São Paulo, atrizes performam imagens e personas, que
dialogam com o universo do romance ‘Homens e Caranguejos’, do geógrafo
pernambucano Josué de Castro.
CURSO DE ARQUEOLOGIA PESSOAL
29/09 a 01/10/2011

Coordenação: Guillermo Gómez-Peña e Michele Ceballos (La Pocha Nostra,


California)
NOTAS INICIAIS PARA OS PARTICIPANTES DO WORKSHOP
1. Os worshops do Pocha aproximam pessoas de diferentes nacionalidades e

comunidades. Eventualmente o grupo será extremamente eclético. É importante


enfatizar o desafio do workshop como um grande experimento antropológico. Como
encontrar concordância entre várias pessoas que falam línguas diferentes, de países
distintos, de distintas gerações, preferências de gênero e base artística diferentes?
Como atravessar estas fronteiras com cuidado, sensibilidade e valor?

2. Os workshops do Pocha são como um livro de esboço de arte-viva.


Enfatizamos a importância dos participantes manterem um diário de seus
pensamentos, e principalmente, de imagens e ações rituais que descobrirem durante
o processo. Eles devem encontrar uma forma clara de registrar ou gravar algumas das
imagens surpreendentes que emergem durante as sessões. Essa documentação pode
ser feita na forma de notas ou de desenhos. É bem provável que versões de algumas
destas imagens encontrarão um lugar na performance final (se houver uma), ou em
seus projetos futuros próprios.

3. Os workshops Pocha enfatizam a importância da autonomia como um


objetivo da performance. A divisão do trabalho na performance (em oposição ao
teatro), é feita no primeiro dia. Procuramos modelos de produção igualitário e de
tarefas múltiplas em oposição a processos de produção hierárquicos. O Pocha pode
fornecer parâmetros conceituais aos seus participantes, porém não vamos “dirigi-los”.
Mais propriamente, permitimos que cada um assuma a responsabilidade por si mesmo
e encontre seu lugar próprio no mundo que estamos criamos juntos. A forma como
essa responsabilidade se expressa no domínio do cotidiano é assegurando pelo
envolvimento dos participantes, todos os dias, no ritual de preparação do espaço, na
manutenção dos objetos de cena e figurinos e na limpeza do espaço no fim do dia de
trabalho.

4. Os workshops Pocha combinam humor e comprometimento. Os


participantes precisam entender que embora o workshop é uma experiência divertida
e o humor é um elemento vital em nosso trabalho, é preciso levar seriamente o
trabalho e o processo. Caminhamos em uma fina linha entre irreverência e disciplina.
Os participantes devem se comprometer a chegar com sua consistência e no horário
em todas as sessões. Infelizmente algumas pessoas ainda enxergam a performance-
arte como uma atividade recreacional (como um momento fora do “trabalho real”,
onde se pode pirar), e não veem problema em chegar atrasado ou não aparecer em
um dia inteiro. Somos extremamente educados e acessíveis, mas não podemos tolerar
este tipo de diletantismo durante nosso processo. A promoção da pontualidade e do
comprometimento ajudam a desenvolver um forte senso de responsabilidade de
grupo e confiança. Potencialmente, não há nada mais perigoso do que embarcar em
uma aventura performática com um grupo de pessoas das quais que não confiamos.

5. Os workshops Pocha são maravilhosamente intensos e bizarros. Embora


assumimos que a maioria das pessoas estão familiarizadas com o trabalho, de vez em
quando um participante pode ficar um pouco chocado com a natureza explícita das
imagens geradas durante o workshop. Qualquer desconforto deve ser discutido
imediatamente com algum dos instrutores e, se apropriado, com o grupo como um
todo.

6. Os workshops Pocha não são terapia nem uma forma alternativa de cura.
Embora entendemos que os participantes possuam problemas pessoais fora do espaço
da performance, solicitamos o foco completo nas questões do exercício proposto.
Esses exercícios permitem que as pessoas confrontem controversos pontos artísticos,
culturais, éticos ou políticos. Mas problemas pessoais sensíveis devem ser deixados
fora da sala. Se a pessoa tem um problema pessoal sério, que seja prioritário em
relação ao workshop, seria melhor que a pessoa não participe. Por quê? Pocha está
aqui para ajudar a pessoas atravessarem novas fronteiras e abraçarem completamente
suas práticas, e não para consolar ou mimar. Simplesmente não somos treinados para
isso. Os participantes devem aprender a diferença entre queixas legítimas (“estou
tendo uma crise com a falta do diretor” ou “minha imagem ainda não está clara ou
suficientemente complexa”) e aquelas queixas que pertencem à ordem do privilégio
social (“Não posso trabalhar hoje, pois está muito quente... ou muito frio”), confissões
privadas (“Não posso trabalhar hoje, pois acabei de terminar meu namoro”) ou falta
de experiência (“Vou sair, pois não gosto de meus objetos de cena”).

7. Os workshops Pocha engajam-se ativamente na política da documentação.


A discussão sobre a importância e riscos que acompanham a documentação
fotográfica e em vídeo deve ser introduzida logo de início. Questões cruciais incluem:
Como a documentação deve ser incorporada no processo? O que significa trazer uma
câmera de foto digital ou de vídeo para o processo? Tudo o que fizermos deve ser
documentado, ou só os resultados (autorizados) dos exercícios? O que faremos com a
documentação – revisá-la meramente como um diário visual, ou talvez criar um mini-
documentário de todo o processo (como temos feito algumas vezes)? Essa discussão é
sujeita a reaparecer durante o processo. Uma câmera é introduzida no processo
somente com o consenso do grupo. Além dos assuntos de propriedade e copyright,
que não são muito claros na interface entre performance e vídeo, o risco óbvio é que
um equipamento de documentação pode alterar a qualidade e a intenção de nosso
comportamento performativo. A decisão do grupo de permitir câmeras de foto ou
vídeo para documentar aspectos do processo deve ser feita quando o grupo
desenvolver um forte senso de comunidade. Usualmente isso é possível a partir do
terceiro ou quarto dia.

8. Os workshops do Pocha eventualmente ampliam-se na vida social. Para nós


é importante “conectar” de uma forma mais informal com o grupo. Encorajamos os
participantes a se aproveitarem do previlégio de passar um período com rebeldes afins
uns aos outros. Fazer refeições, caminhar juntos, explorar a cidade que abriga o
workshop, se envolver em discussões vivas sobre arte e política e fazer festas.
Encorajamos grupos a sair conosco para um bar local, já que algumas das ideias e
reflexões mais interessantes emergem nesses encontros informais.

9. Os workshops Pocha envolvem um componente crítico. Ao fim de uma


sessão de trabalho, sem preocupação com o tempo, o grupo para para analisar
teoricamente o processo criativo. Isso acontece alguns dias no espaço próprio do
workshop e em outros em um bar ou café. São nos encontros informais que podemos
discutir abertamente a moeda estética do projeto, o impacto cultural e a pertinência
política. Pontos de tensão e resolução levantados são diferentes de grupo para grupo.
É importante que tanto os participantes como os integrantes do Pocha tenham espaço
para expressar seus pensamentos e preocupações sobre o material. Isso permite que o
grupo desenvolva seu próprio senso de identidade e clareza estética em um período
curto de tempo. Para nós, o objetivo é potencializar os participantes como indivíduos e
artistas com mentalidade cívica. É fazer com que cada um faça parte da total e
multifacetada experiência artística.
Dito isto, podemos começar a trabalhar!

EXPERIÊNCIA URBANA
01/10/2011

Coordenação: Euler Sandeville (FAU/USP) com Marianna Martins Monteiro,


Carolina de Camargo Abreu, Bianca Tomassi e Romain Bragard
Aconteceu durante o evento

ESPETÁCULOS TEATRAIS SUGERIDOS

Memórias da cana
25/09
Espaço dos Fofos
Rua Adoniran Barbosa, 151, Bela Vista (Bexiga)

Leitura da obra Álbum de Família, de Nelson Rodrigues à luz de Gilberto Freyre,


que analisa as origens da família patriarcal nordestina. A trama se passa no ambiente
dos engenhos e canaviais. Premiado com o Shell de 2009 nas categorias direção e
cenografia, o espetáculo também foi considerado o melhor de 2009 pela Associação
Paulista de Críticos de Arte-APCA. Direção: Newton Moreno. Com: Carlos Ataíde, Katia
Daher, Luciana Lyra, Marcelo Andrade e Viviane Madu (Cia. Os Fofos Encenam).

Assombrações do Recife velho


30/09
Espaço dos Fofos

Numa rua, personagens populares narram histórias de fantasmas que


assombravam a região nordestina. Fantasmas e figuras sobre-humanas, como o
Lobisomem, o Papa-figo e o Boca-de-ouro são evocados por contadores que, numa
atmosfera recheada de humor e mistério, oferecem a busca do entendimento da
formação do povo brasileiro e sua relação com entes sobrenaturais. Direção: Newton
Moreno, com a Cia. Os Fofos Encenam.
MOSTRA DE FILMES ANTROPOLÓGICOS
16ª Semana de Arte e Cultura
Antropologia
LOCAL: Anfiteatro do LISA
Rua do Anfiteatro, 181 – Cj. Colméia, 12
A ideia desta mostra é reunir trabalhos recentes em vídeo dirigidos por
pesquisadores do Grupo de Antropologia Visual (GRAVI), criado em 1995 e
coordenado pela Profa. Sylvia Caiuby Novaes. O GRAVI funciona no LISA – Laboratório
de Imagem e Som em Antropologia, um centro de formação e produção em
antropologia visual ligado ao Departamento de Antropologia da USP (www.lisa.usp.br).
Foram selecionados 11 filmes.

INÍCIO: 26/09/2011 – TÉRMINO: 30/09/2011


HORÁRIOS: 18h às 19h30

Programa
26/09
Acontecências (23 min., 2009)
De Alice Villela Pinto e Hidalgo Romero

Mbaraká: a palavra que age (28 min., 2010)


De Edgar T. da Cunha, Gianni Puzzo e Spensy Pimentel

Catarina Alves Costa (Série trajetórias) (29 min., 2007)

De Nadja Marin e Rose Satiko Hikiji


27/09
Em (si) mesma
De Andréa Barbosa (24 min., 2006)

Lá do Leste (28 min., 2010)


De Rose Satiko Hikiji e Carolina Caffé

Caminhos da Memória: Miriam Moreira Leite (Série trajetórias) (33 min., 2007)
De Ana Lucia Ferraz, Andrea Barbosa e Francirosy Ferreira

28/09
Cinema de Quebrada (47 min., 2008)
De Rose Satiko Hikiji

Jean Rouch, subvertendo fronteiras (Série trajetórias) (41 min., 2000)


De Ana Lucia Ferraz, Edgar T. Cunha, Paula Morgado e Renato Sztutman

29/09
Pelas Marginais (52 min., 2008)
De Paula Morgado e João Claudio de Sena

30/09
Amores de circo (40 min., 2009)
De Ana Lucia Ferraz

Conversas com MacDougall (Série trajetórias) (28 min., 2007)


De Lilian Sagio Cezar e Caio Pompéia
Abertura e Mesas
Abertura
Marcelo Roméro (FAU/USP)

John Cowart Dawsey (PPGAS/USP, coord. Napedra)

Napedra: 10 anos
Rubens Alves da Silva
As lições de communitas nos tempos da performance,Rubens Alves da Silva
(ECI/UFMG)

Para início de conversa

Quero em primeiro lugar, ao iniciar a esta conferência, agradecer ao John e em


seguida os demais colegas e amigos componentes da equipe organizadora deste
Encontro, pelo generoso convite e a escolha do meu nome para composição desta
Mesa de Abertura deste Iº Encontro Internacional promovido pelo Napedra. Entendo
que neste lugar onde estou poderiam estar vários outros colegas e, por isso mesmo, a
minha fala aqui não vem a ser mais do que a tentativa de expressar algo que tem haver
com certo sentimento e pensamento coletivos; embora também contenha muito do
meu ponto de vista e opinião pessoal, num esforço reflexivo sobre o começo e a
trajetória do grupo que agora completa 10 anos de duração.
Em certo sentido, portanto, a minha experiência neste momento (aqui no papel
de conferencista) condiz com aquela expressão que Richard Shechner, inspirado nos
estudos de Winnicot sobre a criança, introduziu ao descrever o esforço exigido do ator
teatral em cena, qual seja, “não-eu” e “não-não eu”. Quero com isso dizer, afinal, que
me vejo aqui no papel representativo da (voz) dos colegas e amigos do Napedra ao
expor para todos vocês da plateia a minha própria versão sobre o grupo, evocando a
nossa experiência coletiva de sonhos, riscos, feitos, ditos e esperanças...
Experiência, esse termo que no registro de Victor Turner encontra-se associado
à noção de performance. Por isso é que entendi que seria interessante começar esta
minha breve exposição de abertura, mantendo a fidelidade do título, lendo o
“Histórico das Reuniões do Napedra”. Registro feito por uma das integrantes do grupo,
quando o Napedra estava ainda arriscando os primeiros passos, e que está assentada
aí na plateia: Vanilza Rodrigues (mãe da pequena Juliana, que nasceu depois do
Napedra, mas que também faz parte da história). Depois da leitura desse documento
(admitindo para esse momento as minhas emendas suspeitas e rearranjos) eu
pretendo tecer algumas considerações breves, na tentativa reflexiva de pensar o
núcleo e os seus feitos na aventura pelas trilhas sinuosas e desafiadoras da teoria da
performance e porque não dizer também, das práticas performáticas.

Reflexões teóricas, experiências e performances entre a eficácia e o


entretenimento

Dois Mil e Um

A primeira reunião do Napedra ocorreu no dia treze de agosto do ano de dois


mil e um. Era uma segunda feira e o assunto em pauta era a “discussão sobre temas do
grupo de pesquisa ‘Paradigmas do Teatro’”. A partir da decisão que se chegou nesse
primeiro encontro foi que em uma terça-feira, do dia vinte e oito de agosto de dois mil
e um, Rita nos veio apresentar o texto de Richard Schechner, “Pontos de contato entre
o prensamento antropológico e o teatral”. Primeira parte.
Rita. Foi ela quem deu a ideia de formar um grupo de leitura voltado para a
discussão de textos que tratavam de questões relacionadas com os estudos da
performance. Os primeiros adeptos e apoiadores da ideia foram os colegas de turma
de Rita, juntamente com o professor John (Dawsey), responsável pela disciplina que
despertou o interesse no assunto dos “Paradigmas do Teatro em Antropologia”. O
grupo de leitura era pensado de início como uma alternativa para a continuidade dos
estudos em torno da noção de performance, iniciado no contexto das aulas do John.
Eis aí a origem do Napedra. Mas vamos lá:

Danilo. No onze de setembro de dois mil e um, terça. Apresentação do texto


anterior (de Schechner), segunda parte.

Vanilza. Nove de outubro de dois mil e um, terça-feira. Coordenação da


discussão do texto “Reflexion”, Taussig, Michel.

E para aquecer a discussão, exibição do vídeo de Jean Houche: Mimesis and


Alterity.

Eufrázia. Trinta de outubro de dois mil e um. Coordenação da apresentação do


texto: Pureza e Perigo, de Mary Douglas, capitulos 4,6 e7.

John. Treze de novembro de dois mil e um. Textos: “The antropology of


performance”, Turner; e “Performance e preocupações pós-modernas na
antropologia”, Langdon.

Vinte de novembro de dois mil e um. Um intervalo para o planejamento das


reuniões e agenda de atividades para o próximo ano.

Dois Mil e Dois

Vanilza. Dez de abril de dois mil e dois. Coordenação da discussão do texto de


Schechner, “Restoration of Behavior”.

Danilo. Quinze de Maio de dois mil e dois. Coordenação da discussão do texto


de Schechner. “From ritual to theater and back”

Rubens. Vinte nove de maio de dois mil e dois, apresentação do texto de


Schechner: “Performers and spectators transported and transformed”.

Rubens. Cinco de Junho de dois mil e dois. Continuação da apresentação do


texto anterior.

Carolina. Vinte e seis de Junho de dois mil e dois: apresentação do texto de


Schechner - “Magnitudes of performance”.

Data (um ponto de interrogação): Reunião de planejamento da agenda do


semestre posterior.

Camila. Vinte e um de agosto de dois mil e dois. Apresentação do texto de


Schechner: “Selective inattencion”.
Giovanni e Rubens. Vinte e oito de agosto de dois mil e dois. Apresentação do
texto de Turner “Anthropology of performance”(cap. 4)

Onze de setembro de dois mil e dois. Discussão do projeto de doutorado de


Franci.

Franci. Oito de outubro de dois mil e dois. Apresentação do texto de Walter


Ong “Sobre a psicodinâmica da oralidade”

Rita. Dezesseis de outubro de dois mil e dois. Discussão sobre teatro moderno,
texto Roubine “ a linguagem da encenação teatral”

Rita. Trinta de outubro de dois mil e dois. Continuação da discussão anterior.

Rita. Treze de outubro de dois mil e dois. Apresentação do texto de Schechner


“Toward a poetics of performance”

Dois Mil e Três

Franci. Sexta-feira, vinte e um de março de dois mil e três. Planejamento da


agenda de 2003. Apresentação do texto de Zumthor caps. 1 e 2

Franci. Quatro de abril de dois mil e três. Apresentação do texto de Zumthor


caps 11 e 12.

Danilo. Quatorze de abril de dois mil e três. Apresentação do texto de Peter Mc


Laren “ Rituais na Escola”(pp. 1-80)

Wladimir. Vinte e três de maio de dois mil e três. Apresentação do texto de


Pradier “Etnocenologia”.

Treze de junho de dois mil e três. Seminário ministrado por Tiago O. Pinto,
Tema: “A performance musical como uma forma específica”

Doze de setembro de dois mil e três. Reunião de planejamento da agenda.

André. Dezessete de outubro de dois mil e três. Apresentação do texto


Benjamin “Doutrina das semelhanças”

Trinta e um de outubro de dois mil e três. Reunião extra de avaliação e


planejamento.

André. Sete de novembro de dois mil e três. Apresentação dos textos de


Benjamin: “O Narrador” e “A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica”

Quatorze de novembro de dois mil e três. Exibição do Vídeo Pricila Ermel,


Tema: Bumba-meu-boi.
Vanilza, Camila e Marianna. Vinte e oito de novembro de dois mil e três.
Apresentação do texto de Judith Hanna “Dance and Religion” Tema: Antropologia da
dança.

Entre Performances, Sonhos e Planos

Dois Mil e Hum

Vinte e três de setembro dois mil e um. A aventura em campo: observação do


evento “Revelando São Paulo - 2001”. Atividade sugerida ao grupo por Marcelo
Manzatti.

Dois Mil e Dois.

Vinte e cinco de setembro de dois mil e um “(terça)”. A discussão sobre


Congada a partir da observação do Revelando e Texto de Rubens.

Vinte e seis de fevereiro de dois mil e dois. Reunião de planejamento: proposta


de gt na Anpocs, regras do grupo, etc.

Vinte e quatro de abril de dois mil e dois. Reunião de planejamento da Anpocs

Vinte e um de setembro de dois mil e dois. Participação do grupo no


Whorkshop de Sei tai ho, prof. Toshi. Sug. Sugestão de Rita.

Quatro de Dezembro de dois mil e dois. Reunião de planejamento e avaliação


das atividades. Para relaxar, uma festa de confraternização na casa de Camila.

Dois Mil e Três

De vinte a vinte e um de setembro de dois mil e três. Observação da


performance “Fu ga ku”.

Vinte e seis de outubro de dois mil e três. Discussão da performance “Fu ga ku”.

Quatro de outubro de dois mil e três. Festa na casa de Ana Lúcia

A eficácia da performance

Vinte e três de maio de dois mil e três. Discussão sobre o GT do Napedra e a


participação do grupo na 8ª Reunião da Associação Brasileira de Antropologia do Norte
e Nordeste [ABANNE], em São Luis do Maranhão.

De 01/07 a 04/07 de 2003. Napedrenses na 8ª Reunião da ABANNE.


De volta ao começo: lições de communitas nos tempos da performance

O convite para eu me juntar àquele grupo de leitura que originou o Napedra foi
me feito por Rita. Eu e ela fazíamos parte da turma que cursava a disciplina de
“Seminário de Projetos”, ministrada na ocasião pela professora Lilia Schwarcz. Ela
conversou comigo pelo corredor sobre a ideia do grupo e também comunicou em sala
de aula a novidade. O grupo estava no começo era aberto a qualquer um que tivesse
interessado em fazer leituras coletivas e aprofundar na discussão em torno de um
assunto que tinha a ver com a tessitura do diálogo entre a antropologia e o teatro. Não
foi exatamente nessas palavras que ela anunciou o grupo, mas o conteúdo do convite
era esse.

Assim, me senti convidado duas vezes e decidi participar das reuniões informais
do grupo. O assunto para mim era novo, as leituras estimulantes; o clima das reuniões
era alegre, descontraído e harmônico. As discussões eram animadas, às vezes
polêmicas, mas sempre dosadas pelo diálogo respeitador das criticas, das
discordâncias de pontos de vistas interpretativos referentes a compreensão de um
texto ou ideia de um autor lido.

Sentindo este clima bom de um processo que se insinuava na direção de uma


relação “eu-tu”, de interlocução e diálogo em torno de um tema que me interessou
logo de início, sobretudo porque encontra afinidade com a meu projeto de tese de
doutorado, não resisti ao ímpeto de convidar outras pessoas para virem também
participar das reuniões do grupo. Entre elas a Marianna Monteiro. Conheci Marianna
no espaço do Cachuera, uma ONG que se dedica à pesquisa e promoção da visibilidade
de expressões culturais populares brasileiras, como congos, maracatus, festa do divino
etc, onde eu estava realizando pesquisa nos acervos da mesma. Em meio a nossa
conversa no Cachuera eu soube da dedicação dela desde anos a estudos sobre teatro,
dança e congos. Não tive dúvida que ela era uma pesquisadora que devia fazer
também parte do coletivo em construção.

Com efeito, foi assim, de boca em boca, que o grupo começou a ser divulgado
dentro (pelos corredores da FFLCH, Colmeia, bandejão) e fora da USP. Mais pessoas
começaram a aparecer nas reuniões: algumas só de passagem, aparecendo em uma ou
duas reuniões apenas; outras participando mais, aparecendo esporadicamente nas
reuniões, mas também depois se afastando do grupo por algum motivo particular.
Mesmo assim, o grupo se ampliou e se afirmou com o nome de batismo dado pelo
John: NAPEDRA! – Núcleo de Antropologia da Performance e do Drama.

Os nomes mencionados acima, no registro das atividades desenvolvidas pelo


Napedra durante os seus três primeiros anos de vida, são das pessoas que tiveram um
papel fundamental e decisivo na empreitada coletiva de consolidação deste núcleo.
Mas há outros nomes, como o do Robson e da Fernanda Luchesi, entre outros, que,
embora não apareçam no registro das atividades, estavam presentes e dando a
contribuição deles com sugestões e participação ativa nas reuniões do grupo no seu
começo, e, por isso mesmo, não podem deixar de ser mencionados por mim nesta
conferência.
Indo além do que foi apresentado até aqui da história NAPEDRA, gostaria agora
de tomar como referência este momento agora, deste significativo evento. Na
tentativa, sobretudo, de refletir sobre a articulação entre o presente e o passado do
NAPEDRA e o que este Encontro Internacional pode ter a dizer a respeito desse
movimento temporal. O que me levou a pensar nisso foi uma rápida olhada que dei na
lista de participantes do EIAP. Nessa listagem constavam os nomes de 214 pessoas.
Penso que atentar para estes números é importante porque eles indicam a
credibilidade adquirida pelo NAPEDRA ao longo destes dez anos de trabalho; o
interesse que as discussões propostas por esse grupo despertou em vários
pesquisadores e estudiosos de objetos e temas relacionados com a noção de
performance. Entretanto, o que me parece mais interessante de pensar, com base
nesta quantidade de pessoas que se inscreveram para participar do EIAP, é na validade
do esforço empenhado pelos membros do NAPEDRA, desde os primeiros anos da
formação do grupo, na empreitada de cavar espaço, no contexto de eventos distintos
das Ciências Sociais, nacionais e de alcance internacional – como as Reuniões da
ABANNE, da ABA, Encontros da ANPOCS etc. –, buscando promover a discussão e
suscitar o debate em torno de temas ou pesquisas relacionadas com os estudos da
performance.
A partir dessa reflexão eu gostaria de observar que não pensávamos no
começo das nossas reuniões que o NAPEDRA viria desfrutar de uma posição de
destaque que hoje parece ocupar na reconfiguração do campo da antropologia
brasileira. Mas se isso é verdade creio que é oportuno agora relembrar um pouco do
que fizemos juntos nestes dez anos de história do NAPEDRA para manter acesa a
chama das coisas fundamentais que penso ter sido a base da consolidação do
NAPEDRA. Em suma, o sentimento de communitas que acredito ainda iluminar os
caminhos do grupo e que sem perceber tivemos as vezes da vivenciar nos momentos
mais diversos e encantadores das nossas reuniões na FFLCH, das festas em casas de
napedrenses, das viagens para participar de eventos em lugares especiais. Por isso, na
nossa memória auditiva permanece vibrante o ecoar de um grito de saudável
lembrança: Êh!!!, boi!!!!!

A seguir, páginas do caderno de campo da Juju.


Juju, Juliana da Silva Rodrigues tem 7 anos de idade. Mas quando fez os
desenhos divulgados nas páginas deste livro durante o EIAP, ela estava apenas com 6
anos de idade. Filha do casal napedrense, Vanilza Rodrigues e Rubens da Silva, ela veio
acompanhando os pais para também participar junto desse evento comemorativo dos
10 anos do Núcleo de Antropologia da Performance e do Drama da USP, o Napedra. E
o jeito que ela mesma escolheu para estar participante do evento foi arriscar seus
traços em desenhos livres que representam figura de pessoas, ambiente e atividades
programadas do EIAP, de maneira bem humorada e criativa. Desse modo singular,
através de uma insinuante performance etnográfica, Juliana esboça em registro o seu
"olhar" de criança deste evento de adultos e especial para todos nós, adultos e
crianças, do NAPEDRA.
Mesa 1: Corpo, memória e espetáculo
Diana Taylor (New York University)
John Cowart Dawsey (PPGAS/USP, coord. Napedra)
Ana Cristina Lopes (PPAGS/USP)

Digital Memories: The Archive in the Age of Digital Technologies, Diana


Taylor (NYU)

The digital raises new issues about memory and knowledge


production/transmission in the so-called ‘era the archive.’ Technologies offer new
futures for our pasts; the past and present are increasingly thought through in terms of
future access and preservation. This temporal dislocation perfectly captures the
moment in which we currently find ourselves in relation to digital technologies—the
feeling of not being coterminous with our time—the belatedness and not-there-yet
quality of the now. As our colleague Clay Shirky puts it, it’s as if we once again
inhabited the uncertainty of the early 1500s. Looking back at the Gutenberg era now,
it is easy to describe the world before the invention of the printing press in the early
1400s, or after the spread of print culture in the late 1500s. But what about that long
transition period when people knew where they’d been but had no idea where they
were headed?1 That’s where we all find ourselves now—academics, artists, scientists,
publishers, computer whizzes, designers, and economic forecasters alike.
The anxiety, however, cannot be limited to technology—to whether this or that
system or platform will predominate. Nor is it only that our disciplines are shifting
under our feet. Neither can we attribute it to competing economic models brought
into conflict by shifting consumer habits or to the struggles for control played out in
many arenas from national interest to global markets. Rather we know from that
earlier shift from embodied, oral cultures to print culture that what we know is
radically altered by how we know it.2 While embodied cultures relied on the ‘now’ of
physical presence and relations, ‘being there’ together for transmission, print made it
possible to separate knower from known and transmit knowledge through letters,
books, and other documents over broad stretches of time and space. In an earlier
work I described these epistemic systems as the ‘repertoire’ of embodied knowledge—
the doing, repeating, and mimetic practices that are performances, gestures, orality,
movement, dance, singing (in short, all those acts usually thought of as ephemeral,
non-reproducible knowledge transferred from body to body), and the ‘archive’ of
supposedly lasting, stable objects such as books, documents, bones, photographs and
so on that theoretically resist change over time. While the ‘live’ nature of the
repertoire confined to the ever changing ‘now’ has long lived under the sign of
erasure, the archive constructed and safeguarded a “knowable” past that could be
accessed over time.

1
Clay Shirky, “Newspapers and Thinking the Unthinkable.”
http://www.shirky.com/weblog/2009/03/newspapers-and-thinking-the-unthinkable/ accessed July 14,
2009.
2
Ong, Lowe, etc.
The different systems provoke different ways of knowing and being in the
world—the repertoire supports “embodied cognition,”3 collective thinking, and
knowing in place, whereas archival culture favors rational, linear, and so called
objective and universal thought and individualism. The rise of memory and history, as
differentiated categories, seems to stem from the embodied/ documented divide. But
these are not static binaries, or a sequential pre/post, but active processes--two of
several interrelated and coterminous systems that continually participate in the
creation, storage and transmission of knowledge. FIGURE 2
Digital technologies constitute yet another system of transmission that is
rapidly complicating western systems of knowledge, raising new issues around
presence, temporality, space, embodiment, sociability, and memory (usually
associated with the repertoire) and those of copyright, authority, history, and
preservation (linked to the archive). Digital databases seemingly combine the access
to vast reservoirs of materials we normally associate with archives with the
ephemerality of the ‘live.’ A website crash reminds us of the fragility of this
technology. Although the digital will not replace print culture anymore than print
replaced embodied practice, the ways in which it alters, expands, challenges and
otherwise affects our current ways of knowing and being have not completely come
into focus. If the repertoire consists of embodied acts of transfer and the ‘archive’
preserves and safeguards print and material culture—objects—what to make of the
digital that displaces both bodies and objects as it transmits more information far
faster and more broadly than ever before? Here I will argue that the digital that
enables almost limitless access to information yet shifts constantly, ushers in not the
age of the archive, nor simply a new dimension of interaction for the repertoire, but
something quite different that draws on, and simultaneously alters both.
Again, I want to insist that the embodied, the archival, and the digital overlap
and work together and mutually construct each other. We have always lived in a
‘mixed reality.’4 The Aztecs performed elaborate ceremonies in attempts to mirror and
control the powerful cosmic forces that governed their lives. Sue-Ellen Case argues
that the medieval cathedral staged the virtual, while 17 th century theatre patented its
ownership of virtual space.5 Clearly, the technologies of the virtual have changed
more than the concept of living simultaneously in contiguous spaces. Losing oneself in
a literary work of fiction, or getting caught up in the as if-ness of a performance, or
entering a trance state in candomblé, have long preceded the experience of living an
alternate reality provided by the virtual realm online.
But the digital and the virtual are not interchangeable, even though they are
often used as if they were; the change in technologies is profoundly significant. Since
the late 19th century, for example, Kodak has socialized people into living with and
using new technologies—(1913 photo). This camera was light enough for women to
handle as they enjoyed the increased independence, mobility, and leisure time of class
privilege. The affluent could make memories now to use later [figure 3]. In order to
sell ‘memory’ as a commodity, Kodak also actively promoted nostalgia as an epistemic
lens—the urgency of the photo rests on our knowing that the photographed

3
See Frans de Waal [get info]
4
Mark B. N. Hansen, Bodies in Code: Interfaces with Digital Media. New York: Routledge, 2006.
5
Sue-Ellen Case, Performing Science and the Virtual. New York: Routledge, 2007, pg. 9 and 51.
object/subject will be lost, that the present vanishes, and that these happy moments
are bound to end. The nostalgia is built into the technology itself—a memento mori as
were the first miniature paintings of loved ones. These early technologies stage the
vanishing ‘now’ to construct a past that can be owned and accessed at some later
time. The materialization of the past (memory/history) and the pace of the
socialization into the digital has accelerated vertiginously.
As paradigms and practices shift in the storing and transmission of knowledge,
we are getting glimpses into the range of implications—from the most practical (how
and where do we store our materials if we want to preserve them) to the most
existential (does the epistemic change radically alter our subjectivity). Are the changes
qualitative or quantitative? Does the current shift resemble past ones (say the
transition from an oral culture to print) or does the move towards digital technologies
enact its own specific social and ethical presuppositions?
While the digital reconfigures both the ‘live’ and the archival, I will start with
the latter. The new digital era is obsessed with archives—as metaphor, as place, as
system, and as logic of knowledge production, transmission, and preservation. Why?
The term ‘archive’ has become increasingly capacious, interchangeable with
‘save,’ ‘contain,’ ‘record,’ ‘upload,’ ‘preserve’ and ‘share’ and with systems of
organization such as a ‘collection,’ ‘library,’ ‘inventory,’ ‘catalogue,’ and ‘museum.’
‘Archive’ seems to magically transcend the contradictions between ‘open’ and ‘closed,’
democratic and elitist; a fetish, it covers over several contradictory and irreconcilable
mechanisms of power.6 Since the Archon served as the place where official documents
were filed and stored in ancient Greece, the archive has been synonymous with
government and order.7 But without understanding the power and control that
underwrite the archive, it’s difficult to assess the political, economic, and epistemic
implications of what is saved and what is forgotten. Before discussing what I feel is at
stake in these changing definitions and distinctions, I will clarify how I understand
‘archive.’
An archive is simultaneously an authorized place (the physical or digital site
housing collections)8, a thing/object (or collection of things-- the historical records and
unique or representative objects marked for inclusion), and a practice (the logic of
selection, organization, access, and preservation over time that deems certain objects
‘archivable’). Place/object/practice function in a mutually sustaining way. The ‘object’
is nameable, ‘storable,’ and preserve-able, imbued with the power and authority—
perhaps even aura—of both place and of selection. We know the thing is important
because it has been selected to be preserved in the archive. It does not matter
whether the object was made to be saved—carbon copies of letters and even daily
newspapers or handouts at a protest march take on a special status in the archive. In
turn, notions of historical accuracy, of authenticity, authorship, property (including
copyright), specialized knowledge, expertise, cultural relevance, even ‘truth’ are
underwritten by faith in the object found in the archive. This circular legitimating
system again affirms the centrality of the place. The archive comes to function,
6
Anne McClintock referred to the archive as fetish in the Pct 2, 2009 meeting of the Engendering
Archives working group, CDAD. Columbia University.
7
8
The archive means “there, where authority, social order are exercised” as Jacques Derrida puts it, “in
that place.” Archive Fever, 1. (Translated Eric Prenowitz, Chicago: University of Chicago Press, 1995.
Foucault noted, not simply as the space of enunciation, the place from which one
speaks, but also (and primarily) “the law of what can be said.”9 Place/object/practice
exist in a tightly bound connection in which each relies on the other for its authority.
Each has a different logic and politics of making visible.
But why has archive gained such enormous power or, better, become the site
of such contestations of power as we move into the digital age? ‘
On one hand, digital technologies offer the updated Marxist promise for the
st
21 century: that we—individual users—now control the means of production,
distribution, and access to information, communities, and online worlds. While the
capitalist grids and surveillance systems sustaining the digital remain, if anything,
stronger than ever, the egalitarian and even revolutionary promise is compelling. In
2006, Time Magazine declared YOU. Person of the Year because YOU control the
information age. [Figure 4] YouTube invites us to “broadcast” ourselves. Facebook
allows us to share our daily lives with our community of friends. Twitter provides real
time updates on where we are and what we’re doing. Skype allows us to see each
other as we speak almost anywhere in the world, thus bridging separations of time and
space. Second Life offers us a chance to design and inhabit our own avatars and
explore and live online in ways that perhaps can’t happen in ‘first’ life. Philip Rosedale,
its founder, envisions life as a project rather than an existential condition--a “meta-
verse,” as opposed to a universe.10 There is no doubt about the potentially
democratizing power of internet technologies particularly (as opposed to television)
that seem to offer as many points of entry and navigation as there are users. The role
of Facebook in organizing rallies in Turkey, texting by protesters demonstrating against
the G-20, and Twittering in Iran indicate a level of inclusivity and immediacy in the
digital that would be unthinkable in archival practice.11 I take the contradictory,
complicated, multivalent aspects of digital technologies as a given, a necessary starting
point. What I am questioning, however, is whether digital technologies merely extend
what we do in embodied and print/material cultures (the repertoire and the archive)
into cyberspace, or whether they constitute their very own system of transmission that
share some of the features we are used to while moving us into a very different system
of knowledge and subjectivity.
What is at stake in this argument? In A&R, I asked what was gained (or lost) by
extending “archive” to include the ‘live’? Embodied practices—measured by the
knowledge regimes sustained by the archive, I argued—fail to provide hard “evidence”
of the past. Historical documents prove that the land belonged to the settlers, not to
the Native populations, etc. The impossibility of archiving the ‘live’ came to equate
absence and disappearance. The personal and political repercussions have been
devastating. Here, I pose a similar question—what is gained (or lost) by using the word
archive to describe the seemingly democratic, participatory, non-specialized, readily
available uploading, publication, and access of materials in cyberspace?

9
Michel Foucault, The Archaeology of Knowledge & The Discourse on Language. Trans. A. M. Sheridan
Smith. N.Y.: Pantheon Books, 1972, p. 129.
10
YouTube (November 22, 2006). "The Origin of Second Life and its Relation to Real Life". YouTube.
11
In Istanbul, Facebook was used to organize a rally against the building of a nuclear plant:
http://www.facebook.com/event.php?eid=8201902011&ref=nf. See to “Arrest Puts Focus on Protesters’
Texting,” by Colin Moynihan, NYT, Oct 5, 2009, pg A19.
Some digital archives function much in the way brick and mortar archives do--
the Hemispheric Institute’s Digital Video Library—[Figure 5] that Hemi and NYU
Libraries have created—is an online archive, a growing online repository of some 600
hours of non-downloadable streaming videos of performance from throughout the
Americas that is free and accessible for viewing. HIDVL started in the early days of
online video archiving—in 2000—and will be maintained for a very long time-- some
500 years. [Figure 6] Each hour of video costs more than 1000 dollars to process, not
counting the intellectual labor that has gone into curating the materials, developing a
tri-lingual interface, creating artist profiles, indexes, search tools, and so on. [Figure 7].
Different technologies spur different practices (and visa versa) and different
things to collect, study, and theorize. Digital technologies far exceed print in offering
scholars and artists a way to both document and consult ‘live’ practices. Video
captures a sense of the kinetic and aural dimensions of the event/work, the physical
and facial expressions of participants, the choreographies of meaning. At Hemi, we
knew that wonderful performance videos in the Americas were rapidly decomposing in
boxes under artists’ beds and in their closets. Digitizing them would not only preserve
them but also make them widely and easily accessible—a major issue in Latin America
where universities have limited holdings and publications very limited circulation. We
were also eager to explore the theoretical complexities of archiving performance and
the complicated relationships between ‘live’ performance and its mediations.
On one level, then, we were simply transferring video from one digital format
to another. On another, we were commissioning and recording performances that we
then transferred to HIDVL—so while we were adding to the collection we also helped
generate new work. Some performances stage the archive—revivals based in part on
old scripts and videos. Other performances, such as work by Anna Deavere Smith
[Figure 8] are better known as video than as live solo work. Some performances
become themselves only through the process of documentation (say an Ana Mendieta
[Figure 9] piece staged for the camera and known only through photographs or video).
We have born digital materials—that never had an ‘original’ in another medium
[FULANA 10] and hybrid work in which past practices and archived videos of
performances framed “reperformances” (such as Marina Abramovic’s at MoMA),
[Figure 11]. These materials give rise to new scholarly thinking about the many lives of
performance (past and present), allow us access to work and traditions that we cannot
see live, and encourage us to reflect on what happens to ‘live’ events that rely so
heavily on context and audience when shown to people from very different contexts. I
would love to speculate what viewers in 500 years will make of Rev. Billy and the
Church of Stop Shopping, but this is not the time. [12].
The politics of the copy, rather than the ‘original’, helps us imagine HIDVL as a
post-colonial archive. We return the materials and a digital copy to the creators who
maintain the rights. We capture/copy the original signal of the videos and store them
in Iron Mountain (the archive of archives—the new “digital authority”) [FIGURE 13/14]
to be updated and copied into new formats as the technologies change. The objects
in the digital archive require, rather than resist, the ‘change over time’ I associated
with the traditional archive. But ‘copy’ as a form of transmission also differentiates the
archival from the digital—and most profoundly from the repertoire. People may copy
the way that others dance or speak, but we usually call this mimesis or imitation—a
form of learning through doing or parodying another’s actions. Each iteration differs
from the next. Even with strenuous discipline, embodied practices will always show a
slight degree of variation. A printed copy of a book, however, is virtually
indistinguishable from others of the same run. The only differences stem from use—
an underlined word, a torn jacket. Nonetheless, the number of books in a run is finite.
If I give away my last copy, it is gone. The function Control C (Save) allows me to copy
automatically, without a discernable limit. Unlike the archive, based on the logic and
aura of the original or representative item, the digital relies on the logic and
mechanism of the copy. Save. Save as enables the migration from one system or
format to another that secures ‘preservation.’ Interestingly, the aura that comes from
the selection process can accrue to the digital copies archived in collections. 12 ‘Aura’
may have as much to do with the nature of the selection process as with the status of
the thing.
In other ways, however, HIDVL replicates the hierarchies and exclusions
inherent in the archival project itself. The process of selection and valorization by
experts maintains the logic of the archive intact. Dreams of unlimited access seduce
users to participate in the colonialist fantasy that total access is not simply an ideal but
a right. While performance scholarship worries more about context, audience, and
reception than about the ‘original’ or ‘authentic’ (impossible insofar as performance is
never the same way twice), the human effort that goes into this project, the emphasis
on training and expertise, the push towards new knowledge production and
transmission, the institutional auspice provided by the university, and the required
levels of financial support makes us facetiously compare ourselves to medieval monks.
Nonetheless, most of what people call online ‘archives’ are not archives though
they may have some archival features. Skits posted on YouTube or other sites are not
archived even though YouTube has been referred to as a ‘media archive.’ 13 This is
actually not a technological issue, or even a preservation issue—storage is cheap. It’s a
commitment issue—the owners may or may not commit to preserving these materials
long term. Further, there is no selection process for materials uploaded online. No one
vouches as to its sources or veracity. Expertise is irrelevant. The materials seem free
and available to anyone with Internet access—avoiding the rituals of participation
governing traditional archives. Power and politics continue to underwrite access,
though at first it’s not clear how.
These so-called digital archives can be characterized as what N. Katherine
Hayles calls a skeuomorph—“a design function that is no longer functional in itself but
that refers back to a feature that was functional at an earlier time.” 14 The trashcan
icon on our computers that makes a swishing emptying noise is a skeuomorph. So are
digital documents and stickies--all reference past functions to help users adapt to new
ways of organizing information. It’s the familiarity with these past things and practices
that facilitates the leap into a virtual place via technologies most people cannot really
comprehend or control. The objects and practices of course are not the same either.
Online items are composed of bits, not atoms. Digital technology demands that
everything/practice be transformed into an object and tagged. Our relationship with

12
I am indebted to Cristián Gómez Moya for this insight.
13
Jean Burgess and Joshua Green refer to YouTube as “a media archive” among other things in their
book, YouTube: Online Video and Participatory Culture, Cambridge UK: Polity Press, 2009. Pg 5.
14
Hayles, How we became post-human, 17.
the thing also changes—we can link to an image but we cannot hold, touch, taste, or
smell a person or object. Memory of past usage, however, is programmed into the
ways we approach the technologies of the future. But this memory—our individual and
collective memory of embodied behaviors—of course is not be confused with Kodak’s
glossy print memories, or with the memory on my computer or, increasingly, the move
to huge online operating systems such as Web 2.0 with enough memory to support
YouTube or Google.15 Now we are entering Web 3.0 with interactive functions that
move our memories of being able to annotate, chat, and work collaboratively online.
Rather my memory, invoked by my documents assures me I am still part of an
uninterrupted system of knowledge production that has only been shifted to another,
faster, more efficient platform.
This, however, is not the case.
Place/object/practice change online. Again, the three are deeply inter-
connected and altered in and through digital technologies. The spatiality of the archive
as “public building” gives way to the paradoxical ubiquity and seeming no-where-ness
of the digital archive.16 The site-specific character of performance repertoires, that
unfold in the here-and-now also give way to the multi-sitedness of the web. We are all
seemingly ‘here,’ live, now, online—no matter where the ‘here’ might be. The ‘here’
of the repertoire is immediate, the ‘here’ of the archive is distant, but locatable, the
here of the web is immediate and (only apparently) unlocatable.
Some of the new digital variations severely challenge the dominance and logic
of the archive. Many of the very large projects (such as Google Books) are commercial,
though they claim to provide free access of incomplete versions of texts, thus assuring
neither access nor preservation, though the order icon is ready at hand. Google claims
sole ownership of ‘orphan’ books—an end run around laws pertaining to content,
authorship, and copyright. If print culture produced the copyright, it’s not clear yet
what legal and legitimating mechanisms will control issues of access and transmission
online.
As important as the pressure on the ‘thing’ or content, perhaps, is the invisible
politics of place. Where do these collections and archives live? Google et al own the
operating systems and databases that enable access to their massive repositories. This
poses other legal issues not covered in conventional copyright agreements. By owning
the operating system, these commercial giants in fact become the ultimate guarantor
of value and control. They can censor materials, cherry pick titles, and rescind

15
Ron Eglash, in Computing Power, cautions of shift of computer memory to large operating systems:
“In terms of individual use this is a move toward democratization through lay access, but in terms of
business ownership it is a move towards monopolization, as only large scale corporations such as Google
can afford the economy of scale that such memory demands place on hardware” pg. 60. In Software
Studies/a lexicon, ed. Matthew Fuller. Cambridge, Mass: The MIT Press, 2008.
16
Critical Commons For Fair & Critical Participation in Media Culture has a community generated
archive of lectures and media clips. The USC Shoah Foundation Institute for Visual History and
Education at USC has an archive of approximately 52,000 videotaped testimonies from Holocaust
survivors and other witnesses available at their center and online. The online description of the Internet
Archive reads: “The Internet Archive, a 501(c)(3) non-profit, is building a digital library of Internet sites
and other cultural artifacts in digital form. Like a paper library, we provide free access to researchers,
historians, scholars, and the general public.”
licensing privileges for us who now lease rather than own copies of the book. 17 These
digital practices loop back into print culture as well. I will point to only two of the most
obvious repercussions: First: who wants to pay for a book they can access ‘free’
online? I am not against freely sharing materials—Latin American scholars and
students survive on pirated books and articles. Nonetheless, it’s important to note
that what’s online is not free. Second: the ambiguous nature of authorship and
authority online have spread to print culture where journal articles signed by notable
researches are in fact produced by pharmaceutical companies, further eroding
confidence in the validity of sources. The economic models have long-term
repercussions across the range of archival practices having to do with understandings
of content, ownership, peer review, copyright and so on.18
Preservation of digital materials, thus, is not the happy by-product of digitizing
or uploading. While it may be true that “data never die” it is also true that they live as
bits of information that we might not be able to access. Changing technologies and
platforms render our materials obsolete far more often than they archive or preserve
them.19
Finally, I would like to take a quick look at the complicated and changing ways
embodied, print, and digital cultures affect the what we know and how we know it by
going back to TIME Magazine’s 2006 issue of Person of the Year. Here is an image of
my copy. TIME. Person of the Year. 2006. [Figure 15] A computer with a thin red line
reminiscent of YouTube cuts across the monitor running towards 00:00/20:06; its
screen is a reflective silver shiny Mylar mirror. You. on the bottom left-hand side. “Yes,
You. You control the Information Age. Welcome to your world.” Nicely balanced on the
cover, to the right of You is… well, ‘me’ –sort of. The mailing sticker has my name
(misspelled) and address on it. The cover proclaims the imperative to perform. You.
Insert yourself here. Yes You. Your face on the cover! There’s a twist here too. While

17
There is no need to burn books when they can simply disappear. “Takedown notices” often have more
to do with business competition than with copyright infringement.
http://en.wikipedia.org/wiki/Digital_Millennium_Copyright_Act, accessed Sept. 28, 2009.
18
The peer review process, vital in establishing the authority of print journals, is being undercut in print
culture as well as online. In A Second Opinion, Arnold S. Relman, former editor of the New England
Journal of Medicine notes the widespread practice of authors evaluating the effectiveness of drugs that
have economic ties to pharmaceutical companies. Their findings are suspect and the process is
ineffective. An article in the New York Times, “Unmasking the Ghosts: Medical Editors Take on Hidden
Writers” by Natasha Singer and Duff Wilson states: “In medical journal circles, the exorcism of industry
financed editorial assistance even has its own name: ghostbusting” (Sept 18, 2009, B1).
19
Other organizations are currently dealing with similar issues—the financial and copyright implications
of creating collections and even archives of copies. Every digital archive has to face these economic,
technological, and legal challenges. What is the economic model? Many of the very large projects are
commercial, though they claim to provide free access. Google’s Online Books—again, more of a library
than an archive-- offers incomplete versions of texts, thus assuring neither access nor preservation, though
the order icon is ready at hand. Here again, content is secondary to the financial and technological
models being tested, and the repercussions are severely testing the dominance and logic of the archive.
Open access online increasingly devalues content in what Chris Anderson has called the “migration to
Free” (140). He notes “the computer industry wants content to be free. Apple doesn’t make its billions
selling music files, it makes it selling iPods. Free content makes the devices it plays on more valuable”
(142). A related question of ‘free’ content and costly devices is being argued in the courts now with
respect to Amazon’s Kindle. Google, also in court, now claims sole ownership of ‘orphan’ books—
another end run around laws pertaining to content, authorship, and copyright that the archive made
possible. If print culture produced the copyright, it’s not clear yet what legal and legitimating mechanisms
will control issues of access and transmission online.
the magazine requires an embodied response from me--I need to hold it in my hands
and up to my face to see myself --the design conceit of the video monitor with the
timeline transports me to the digital. I try to align the discursive You with the
embodied me. I hold the magazine close. Even so, I hardly recognize myself. This
distorting mirror shows You (me) as not me, only the vaguest image, a concept more
than a person. And who is the invisible ‘I’ that names me You? Is it Uncle Sam’s
pointing finger from the WWII posters? [Figure 16] Adam Smith’s invisible hand of the
market? Althusser’s hailing, “You!” The unseen eye of surveillance that demands “If
You See Something, Say Something?” [Figure 17] Or a combination—a parody of
hailing and recognition, Martin Buber’s I/Thou minus the I…
Inside the cover, an ad for Chevrolet announces “THIS IS OUR PERSON OF THE
YEAR”— [Figure 18] and the TRUCK OF THE YEAR [Figure 19] that dominates the
environment. The contest, and contestation, of who really controls the world and its
resources start before I even get to the Table of Contents.
Here is the issue in Time’s online ‘archive’ [Figure 20]
The bold black You. dominates the screen. The “Yes, You.” is centered under
the screen rather than to the left. Who needs a mailing label online? The delivery
system is quite different. The reflective surface is gone. TIME’s Managing Editor
acknowledges the challenges in reproducing the effect of the mirror “when there’s no
one standing in front of it.” So TIME created an animated online version using photos
apparently submitted by readers that appeared in the print version to keep something
of the interactive quality of the original. [Figure 21, 22] This, clearly, is a different kind
of performance where You/I is positioned as a spectator to other people’s
photographs rather than as the subject/protagonist. The online You becomes the
object of my looking, one more commodity.
It does not take much to see that these photos could not have been generated
by readers—they are all posed in identical, candy colored boxes—again, a photo
simulated to look like YouTube. You also comes in all colors. With one odd exception,
You. is young, beautiful, under thirty, happy, self-satisfied, “cool,” independent, on-
the-go, not doing much of anything except listening to music or performing for the
viewer. Only two of the men seem to have traditional professions—the doctor and the
soldier. The ‘new’ You is a global citizen. Mobile ethnicities transcend geographical
divides. Race and gender are now a ‘style’ or fashion statement. We’re all post-
racism, post-sexism, the images suggest. Space is produced [Figure 23], a studio back
drop. You is unlocatable in other ways as well—there are no hints as to where people
are or where they’ve come from; no other people in the shots, no family photos. Two
woman photograph themselves—very You. The celebratory images affirm
embodiment—the designer body seemingly provides an entry point to the world. But
these are not the bodies of the repertoire. This You actually exists not in relationship
to but as separate from. There is no outside, no exterior with which You might
maintain a relationship—the interpenetration of self/exterior that Merleau-Ponty
wrote of. Inter-subjectivity is possible only through technology.20 You might chat and
20
Cool and color-saturated, posing for a camera, You is something-to-be-looked-at, the object of an
unidentified gaze. You’s body is a project, something it has rather than something it is. The image
performs a possible future. With enough exercise or dieting or make-up, we too could be You. “Your
best body ever! Get it Now! Keep it Forever!” It goes with everything. You represents not
something/someone that is, but something/someone that could be. You invites identification with ideal
text but not talk or read. This You is the product rather than producer of the
Information Age. THEM. [Figure 24]
There is much more to say about this construction of You, both as Person of the
Year and in these images, which cannot be included here, but it is important to note
that the online You is an elusive object--when I tried to access the virtual gallery a year
later, it was gone (links took me to Vladimir Putin). When I looked again after six
months, some of the images from the gallery were online, but as loose images, not as
part of the magazine’s layout or organizing concept. However, other images, not
included in the print publication, had also been added as if they were part of the 2006
run while others had been re-inscribed with logos of other websites. [Figure 25] What
kind of archive is this that erases rather than preserves the traces of its former
incarnation?
The TIME archive, then, does not maintain the objects, or even digital
renditions. [Figures 26] My experience with the issue is different. I cannot hold it. I
can’t flip pages. There are no page numbers online. Reading has morphed into
navigation (or surfing). Instead of linear and sequential, cause and effect, the digital is
about simultaneity, interruption, and multi-taking. Everything written for online media
tends to be short; the digital has its own attention span. I engage in politics online
even as I do something else. The essays, extracted from the issue, are searchable and
clearly attributed to authors and identifiable as urls. But I can’t get a sense of
connections between various social, economic, and political relations by examining the
layouts and the physical placement of essays and ads. Where is the happy cowboy—
the ‘real’ person of the year according to Chevrolet? I cannot go back and examine the
magazine issue as a (flimsily) bounded microcosm of cultural concerns, fears, and
strategies made visible in the competing messages. Instead of an editor in charge of
putting the materials together, the online curatorial process is driven by data-mining
techniques and crawlers to identify patterns of information in a database. I too am
being constantly updated with today’s ads—all programmed to pick up key words and
customize the display to suit ‘my’ tastes. This too is all about me/YOU but in different
a different way. It is my profile, not the editor’s, that arranges the information for me.
The web’s interactivity filters my information and sends it to those who pay for access
to me. As Wendy Chun notes: online, in order to use, one has to agree to be used.21
This digital ‘archival’ practice, I believe, can prove profoundly anti-archival. The
shift from the archive to the digital has moved us away from the institutional, the
confined, the long term of Foucault’s disciplinary society to the ‘control’ society
outlined by Deleuze—free floating, short term, rapidly shifting. We move from the
analog to the digital, from signature to password, from citizen to nomad, from
typographic man to graphic man, as McLuhan put it.22 For better and for worse, the
politics of the archive are not the politics of the digital.

otherness that, marketers try to convince us, is ours for the price of the product. But of course I will never
be You. As eating disorders reach epidemic proportions, the fetishized You-as-product threatens to
disappear the agent of the labor that went into creating it—the women and men who starve and binge
themselves into shape. You exist only as representation.
21
Wendy Hui Kyong Chun. Control and Freedom: Power and Paranoia in the Age of Fiber Optics.
Cambridge: MIT Press, 2006, pg. 130.
22
Giles Deleuze, _Postscript on Control Societies, Marshall McLuhan, Understanding Media: The
Extensions of Man. Ed. Lewis Lapham, MIT, 1994.
What counts as embodied knowledge has also morphed. Cyberspace has
forced us to name and delimit the ‘real’. ‘Real time’ is not the same as the present.
‘Live’ is not the same as alive. An online community is not the same as a group of
people. The ‘flesh’ body is not the same as the very powerful electronic body—the
one whose credit ratings or medical history or suspicious activities can sink an
application or have a person strip searched at the border.23
The digital has also provoked an upset in terms of expertise. Many major
scholars feel totally incompetent with ever changing technologies—the young are the
true masters of this field. But even the young know less than the younger. It’s not just
the ever-accelerating generational shifts that make people feel they are out of the
meaning-making loop. The subject as consumer is tied into the rapid cycle of
obsolescence necessary to sell. “Forgetting,” as Paul Connerton notes, “is an essential
ingredient in the operation of the market.”24 The feeling of not being coterminous
with our time, then, is built into the technologies themselves; the speed of change
makes us feel we need to run faster. The anxiety about loss and forgetting, I believe,
might explain our current obsession with archives and the nostalgia both for
embodiment and for the object. Technologies code the affect in the constant mandate
to save and save as and we experience the symptom-- the need to preserve not just
things (documents, bones, fossils) but ways of thinking and knowing—sociability,
affect, emotions, gestures, memories etc, and processes—i.e., the ways in which we
work, select, transmit, access, and preserve. But the digital, I suggested, will not
replace archives or repertoires. If anything, earlier distinctions between online and
offline have crumbled for the many of us—across the social spectrum—who are now
never offline either because we have cell phones or because our money is kept in a
bank account. The simultaneity of these systems of transmission makes us think about
them in new ways. Archival practice, once a devastating tool of empire, now seems
the guarantor of the “authentic” and enduring. Digital technologies have only
heightened the appreciation of embodiment. Perhaps the current rush to ‘archive’ has
less to do with place/thing/practice and more with trying to save and preserve a sense
of self as we face the uncertain future, emphasizing our agency in the selection and
meaning making process that we fear threatens to outpace us.

23
EDT’s, The Recombinant Theater and the Performative Matrix
24
Paul Connerton, “Seven Types of Forgetting.” In Memory Studies, Vol 1, No. 1, January 2008, pg 67.
Rito de passagem de nossa senhora: Corpo e montagem, John Cowart
Dawsey (PPGAS/USP)

Resumo: Esse ensaio surge da surpresa proporcionada por uma experiência de


campo em Aparecida, e num parque de diversões. Uma imagem de santa se justapõe à
da mulher lobisomem. Para fins de discutir essa montagem talvez seja preciso
percorrer um rito de passagem de mão dupla, envolvendo deslocamentos
simetricamente inversos da santa e dos devotos. O primeiro, e mais óbvio, envolve o
percurso dos devotos. Nestre trabalho, porém, pretende-se focar o rito de passagem
da santa. Emergem, como do fundo de um rio, questões não resolvidas. E uma história
de Nossa Senhora sob o signo da tragédia. Nas origens, um corpo sem cabeça, uma
cabeça sem corpo.
Palavras-chave: Aparecida, ritual, mulher lobisomem, corpo, parque de
diversões.

A partir de anotações feitas em cadernos de campo em 1983 e 1984, pretendo


nesse ensaio revisitar Aparecida do Norte. O encontro com a santa se deu em
circunstâncias especiais. Conheci a imagem de Nossa Senhora quando uma mulher
lobisomem se revelou.
A visita ocorreu através de uma excursão de ônibus organizada por membros
de um time de futebol do Jardim das Flores. Nesse pequeno abismo situado na
periferia de Piracicaba, no interior paulista, se alojava uma centena de barracos. Em
um deles, num momento em que eu me fazia de aprendiz do ofício de Malinowski, fui
acolhido por um casal de mineiros, Anaoj e Mr Z. E pelo time de futebol. Com uma
ponta (aguda) de humor, Jardim das Flores também era chamado pelas pessoas que ali
moravam de “buraco dos capetas”.25
Em Aparecida me deparei com um processo ritual. E, também, com uma
espécie de teatro. De acordo com Roland Barthes (1990:85), teatro pode ser definido
como uma “atividade que calcula o lugar olhado das coisas”. Creio que essa definição
também seja sugestiva para se pensar um processo ritual. Isso, especialmente, caso
pudermos ampliar a metáfora. Através do ritual, assim como do teatro, se produz um
deslocamento do lugar sentido das coisas. O sentido do mundo, Constance Classen
(1993) nos lembra, se forma através dos sentidos do corpo.
Em outros textos tratei de aspectos teatrais de uma experiência ritual em
Aparecida (Dawsey 2000; Dawsey 2006). Invertendo a abordagem, agora pretendo
explorar as dimensões rituais de uma experiência que não deixa de ser teatral. Creio
que seja preciso percorrer um rito de passagem em dois momentos. O primeiro, e mais
óbvio, envolve o percurso dos devotos. Destaca-se, nessa experiência, não apenas o
deslocamento previsto para as margens, ou seja, para os lugares sagrados de

25
Os nomes próprios que constam do texto podem ser considerados como ficções literárias do
pesquisador, geralmente registradas em cadernos de campo à moda do antigo hebraico, sem as vogais.
Essa observação também é válida para o nome “Jardim das Flores”. O termo “buraco dos capetas” não
deixa de ser uma ficção real, nascida da poesia dos moradores.
Aparecida: as basílicas, a sala dos milagres, e o altar onde se localiza a imagem da
santa. Seria preciso, também, ressaltar um duplo deslocamento, às margens das
margens: a experiência no parque de diversões. Ali se encontram as atrações da
mulher gorila, mulher cobra, e mulher lobisomem.
Neste trabalho, porém, altera-se o ponto de partida. Pretende-se focar um
segundo momento. Seria possível se falar de um rito de passagem de Nossa Senhora?
Explorando essa perspectiva procuro acompanhar a santa em um movimento que vai
das basílicas às ruas do comércio e ao parque de diversões. A experiência no límen
surge para a santa não nos domínios da igreja, mas em espaço profano. Em lugar de
uma iluminação religiosa se presencia uma iluminação profana.26 Algo se descobre.
Dos redemoinhos da história originária de Nossa Senhora emerge um corpo fendido.
Uma questão se apresenta: a experiência de montagem como um rito de cura. Às
margens das margens o “buraco dos capetas” se ilumina. Logo então, com as pistas
que Arnold Van Gennep (1978) nos oferece, nos deparamos com a santa em um
momento de reagregação: ela retorna à catedral, e a um cotidiano que se vive, no seu
caso, nos domínios do sagrado.
O texto que vem a seguir surge da surpresa proporcionada por uma experiência
de campo num parque de diversões. Uma imagem de santa se justapõe à de uma
mulher lobisomem. Tal como acontece nas montagens que Sergei Eisenstein (1990)
buscava no cinema, os planos colidem.27 O que dizer dessa colisão? Um rito de
passagem da santa pode iluminar essa montagem?
Passando ao rito, apresento um preâmbulo. Trata-se da exclamação de Dln,
uma mulher viúva que veio do sertão da Bahia, e que acaba de assistir um filme na
televisão. Aqui está:

Joana D’Arc, mulher guerreira! Aquela era mulher de


verdade, uma santa! Não tinha medo de homem nenhum.
Ela punha aquela armadura e ia para o fogo da batalha
defender o povo dela. Enfrentava flecha, espada, tiro de
canhão! `Não tenham medo! A vitória é nossa!’ ela gritava.
Ela ia na frente, os soldados atrás. Vinha inimigo, vinha
legião, ela enfrentava. Não corria não. Ela lutava, matava. É
uma mulher guerreira! (21.1.84)

Duas imagens se justapõem: a santa e a mulher que mata. Da colisão desses


dois fatores nasce um conceito: Joana D’Arc. A santa irrompe como uma “mulher de
verdade”. A mesma que mata e se veste como homem. Eis um princípio brechtiano: as
pessoas fazem (normalmente) coisas espantosas.28

26
Trata-se, conforme o olhar que Benjamin (1985a: 33) encontrou no surrealismo, de um cotidiano visto
como extraordinário e de um extraordinário vivido de um modo cotidiano.
27
“O que, então, caracteriza a montagem e, conseqüentemente, sua célula – o plano? A colisão. O
conflito de duas peças em oposição entre si. O conflito. A colisão”. Cf. Eisenstein (1990: 41).
28
Nos versos finais da peça didática A Exceção e a Regra (Brecht 1994:160), os atores dirigem-se ao
público:

No familiar, descubram o insólito.


No cotidiano, desvelem o inexplicável.
Que o que é habitual provoque espanto.
Com essa disposição metodológica – com espanto! – convido leitores/as (a
justaposição de gêneros, nesse caso, pode ser reveladora) para o exercício que se
inicia a seguir, revisitando anotações feitas em cadernos de campo, em companhia de
Anaoj, em Aparecida do Norte. Ali também possivelmente uma santa se revela com
efeitos de espanto. Um lembrete: de acordo com o modelo de Van Gennep, um rito de
passagem se constitui de três momentos, sendo eles os ritos de 1) separação, 2)
transição (ou límen), e 3) reagregação. A seguir, como já se disse, sugere-se ainda
outro, envolvendo um duplo deslocamento, às margens das margens (ou no límen do
límen).
Passemos, então, ao rito de passagem de Nossa Senhora Aparecida.

Rito de separação: ruas e vielas. Em relação ao modelo de Van Gennep, nos


deparamos com uma inversão. O momento de separação no rito de passagem de
Nossa Senhora nos sugere uma saída do lugar sagrado, primeiro do altar nos fundos da
nova catedral e, depois, da Basílica Velha, ou Capela do Morro dos Coqueiros.

Dali entra-se francamente em espaço profano, descendo


morro em um movimento volumoso e fluido de gente
percorrendo ruas e vielas, fazendo volteios e abrindo-se em
redemoinhos nas inúmeras lojas e bancas onde imagens da
santa contagiam e se deixam contagiar no contato com uma
infinidade de artigos de consumo popular. A própria santa
parece fazer o percurso, por lojas e bancas, misturando-se a
cinzeiros, cachimbos, cigarros, quadros, bordados, blusas,
calças, camisas, lenços, vestidos, brincos, chapéus, chinelos,
botas, sapatos, gaitas, violões, sanfonas, fitas de música
sertaneja, doces, salgados, garrafas de vinho e cachaça e
uma profusão de outros bens e objetos (Dawsey 2006: 142).

Em lugar de ascensão, uma descida. Imagens da santa se multiplicam. Sua aura


ao menos parcialmente se dissipa. A santa se expõe. Ocupa vitrines, bancas e
prateleiras. Em circuitos de compra e venda ela vira mercadoria. Mas, ainda assim, em
meio aos objetos e bens de consumo a sua imagem se reconhece.

Rito de transição: o parque de diversões. Ao pé do morro, o parque de


diversões. Não se vê mais a imagem da santa. Teria ela desaparecido? Ou voltado à
igreja antes de completar a descida? Uma desconfiança: nas grandes atrações do
parque fulguram figuras poderosas de gênero feminino, ou andrógino. Ali se encontra
a mulher cobra, a mulher gorila e a mulher lobisomem. Teriam as mulheres-monstros
espantado a santa, fazendo-a bater em retirada? Ou teria a própria santa se alterado,
tornando-se (quase) irreconhecível, aparecendo de forma espantosa? Aparecida virou

Na regra, descubram o abuso


E sempre que o abuso for encontrado
Procurem o remédio
(Aqui, preferi usar a tradução de Peixoto 1981:60)
aparição? Talvez essa possibilidade não deva ser descartada. No límen, como vimos, as
coisas se transformam. Desloca-se o lugar olhado (e sentido) das coisas. Assim se
produz conhecimento. Algo se ilumina. Ao cair da noite, o parque se agita. Luzes se
acendem. No rito de passagem de Nossa Senhora um parque possivelmente se
configura como lugar de uma história noturna e iluminação profana.
Como visto anteriormente, as atrações do parque podem evocar imagens de
um acervo de lembranças estranhamente familiar. Alguns dos gestos elementares –
diríamos gestemas? – de mães e mulheres devotas de Nossa Senhora, que
desaparecem em basílicas e salas de milagres, ali lampejam. Trata-se de um habitus
carregado de tensões. A transformação. A erupção. O movimento repentino. O avanço
ameaçador. Cabelos encrespados. Olhos esbugalhados. Dentes e dentaduras. Ou a
boca desdentada. O corpo que avulta. E uma imagem de mulher virando bicho. No
parque de diversões se tem uma experiência evocativa do susto de se viver em lugares
como o “buraco dos capetas”. Também se tem a imagem de uma aparição. Um
lembrete: com espanto Aparecida também faz milagre. Até mesmo a onça ela deixa
pasmada. No parque aprende-se a dizer “nossa!”. Trata-se de um lugar de
aprendizagem. Inclusive, quem sabe, para uma Senhora.
Entre os gestos que se configuram no espetáculo da mulher lobisomem, um
deles merece destaque: o rompimento da jaula. Seria um gesto primordial? Nas
histórias que circulam sobre a santa se encontra uma cena estranhamente familiar:
frente a um escravo aprisionado a imagem lampeja. Arrebentam-se colares e
correntes. Trata-se de um dos primeiros milagres da santa.
Através de uma justaposição da Basílica Nova e parque de diversões se forma,
com efeitos de montagem, um corpo. Na basílica, um altar. E o rosto. Chama atenção o
olhar da santa. O rosto se emoldura em um manto de duas faces, azul por fora. Por
dentro, vermelho. Os cabelos se encobrem. Sobre a cabeça, uma coroa. As mãos
unidas em atitude de oração se dirigem para o alto. Mas, no parque de diversões
fulguram imagens do baixo corporal. No espetáculo da mulher lobisomem, em meio a
curtos-circuitos, se produz um apagão. E, a seguir, um clarão de luz. Uma moça pálida
se transforma em criatura escura. Irrompe um bicho peludo.
Chama atenção a descida. Seria um retorno às origens? Uma reversão, ou, até
mesmo, regressão? A Senhora vem de baixo, do fundo de um rio. No límen também se
rememoram histórias de origem.

Um corpo fendido. Por meio de uma classificação binária operada pelo


processo ritual em Aparecida se institui uma oposição entre sagrado e profano,
catedral e parque de diversões, Aparecida e mulher lobisomem, alto e baixo corporal.
Emergem, como do fundo de um rio, questões não resolvidas. E, quem sabe, a história
trágica de Nossa Senhora. Nas origens, um corpo sem cabeça, uma cabeça sem corpo.
Lançando uma rede de rasto, em 1717, pescadores encontram o corpo da Senhora,
sem cabeça. Rio abaixo, lançando uma outra vez a rede, retiram a cabeça da mesma
Senhora. Com “cera da terra” se juntam as duas partes. Com colares de ouro procura-
se esconder uma fenda. Trata-se de uma imagem partida, na altura do pescoço. Ela já
passou por muitas restaurações. Em 1978, um drama nacional. A imagem da padroeira
do Brasil, ao ser raptada, se espatifa no chão. Ao longo dessa história, o corpo da santa
gera discussões. Em questão: a especificidade de um corpo. Esse corpo tem cor. A sua
cor é de barro escuro. A santa vem do fundo de um rio.
Às margens das margens: o “buraco dos capetas”. Após o retorno de
Aparecida, as pessoas falavam da experiência que lá haviam tido. Com uma ponta de
fascínio, contavam da enormidade da catedral. Descreveram o sofrimento dos
pagadores de promessas carregando cruzes e subindo de joelhos a escadaria.
Lembraram-se das pessoas estiradas no chão da basílica; falaram da gente maltrapilha,
doente, desempregada e sofrida. No fundo da igreja viram as pilhas de muletas,
alegorias do extraordinário poder de cura da santa. Na sala dos milagres, em meio a
uma estonteante coleção de objetos encantados, viram de perto os sinais da graça
maravilhosa da mãe de Deus. Com emoção, nos recônditos sagrados da basílica,
passaram formando multidões pela imagem da santa. Com reverência falaram do seu
olhar. Viam-se sendo vistos por ela.
No entanto, aquilo de que as pessoas mais gostavam de falar nas rodas de
conversa, após a volta de Aparecida, era sobre as mulheres que viravam bichos. Por
que as lembranças do parque de diversões e da mulher lobisomem seriam valiosas?
Folheando anotações de cadernos de campo, alguns registros chamam a
atenção. Há algo estranhamente familiar nesses espetáculos de parques de diversões.
Talvez sejam surpreendentes as semelhanças entre o espetáculo da mulher lobisomem
e as descrições que mulheres do “buraco” do Jardim das Flores fazem de suas próprias
mutações repentinas. Entre amigas, uma mulher, Maria dos Anjos, conta de um
confronto que teve com o fiscal da prefeitura: “Não sei o que acontece. Essas horas eu
fico doida. Fico doida de raiva. Eu sou sã que nem nós conversando aqui. Mas tem
hora que eu fico doida!” Lacônica, a outra diz: “Eu também sou assim”.
Quando uma das mulheres do Jardim das Flores ouviu que o dono de um
boteco havia humilhado o seu marido, cobrando-lhe, na frente dos colegas, no
momento em que descia do caminhão de “bóias-frias”, uma dívida que já havia sido
paga, ela imediatamente foi tirar satisfações. “Aí, ele [o dono do boteco] falou:
`Mulher doida!’ Falei: `Sou doida mesmo! Você está pensando que eu sou gente?! Rá!
Não é com o suor do Zé e de meus filhos que você vai enricar!’” “Você está pensando
que eu sou gente?!” Essa frase também ressoa nas imagens que lampejam em parques
de diversões.
Quando um trator da prefeitura chegou em uma favela vizinha para demolir os
barracos, uma mãe de cinco filhos virou bicho. “Virei onça!”, ela contou. Colocando-se
de pé, de frente para o trator, ali ficou até que vizinhos se juntassem. A vizinhança
também virou bicho e o trator foi embora sem que os barracos fossem derrubados.
Outra mulher enfrentou um grupo de homens que havia rodeado o seu
menino. Vizinhos ameaçavam dar uma surra na criança por causa de uma pedra
“perdida”. Conforme o relato que ouvi de uma cunhada, a mãe “pulou no meio da
aldeia que nem uma doida.” “Pode vir!”, ela esbravejou, “que eu mato o primeiro que
vier!” O seu nome era Aparecida. Com efeitos de pasmo, Aparecida do “buraco dos
capetas” protegera o seu filho da raiva dos homens.
Outros “causos” poderiam ser citados. Certa noite, a filha de uma mulher cujo
nome, aliás, também era Aparecida, soube de um vizinho que investigadores da
polícia, na entrada da favela, haviam parado o seu marido que, de mochila nas costas,
chegava naquela hora do trabalho. A filha de Aparecida saiu correndo até o local.
Nervosa, fora de si, aos gritos e berros, fazendo estrondo, ela enfrentou a polícia. O
causo repercutiu nas conversas dos vizinhos. Orgulhosa, a mãe dizia: “Ela ficou doida
de raiva! Avançou no Luisão [investigador da polícia]!”
Na configuração de um gesto, da mulher “doida de raiva” que “vira bicho” e
“avança” sobre os que ameaçam suas redes de parentesco e vizinhança, evoca-se um
estado de inervação corporal freqüentemente suprimido, embora valorizado pelos
moradores do “buraco dos capetas”. Em Aparecida do Norte, a imagem desse gesto
lampeja no espetáculo da mulher lobisomem.
No artigo anteriormente citado (Dawsey 2000:91-92), escrevi:

Às margens da ‘catedral nova’, no parque de diversões, a


partir de uma espécie de pedagogia do ‘assombro’, aprende-
se a ‘virar bicho’. Talvez, de fato, a mulher-lobisomem esteja
estranhamente próxima à Nossa Senhora Aparecida, não
porém, enquanto contraste dramático, mas como uma figura
que emerge, conforme a expressão de Carlo Ginzburg
(1991), de sua ‘história noturna’. Será que algumas das
esperanças e promessas mais preciosas associadas à figura
de Nossa Senhora Aparecida encontram-se nos efeitos de
interrupção – no pasmo – provocados pela mulher
lobisomem?

No saravá, no Jardim das Flores, onde o Professor Pardal tocava atabaque, a


mãe de santo dizia que os males que afligiam as pessoas que a procuravam se
manifestavam em seu próprio corpo. A cura do seu corpo envolvia a cura de um corpo
social. Haveria nos caminhos da imagem de Aparecida os indícios de procedimentos de
cura semelhantes aos que se manifestam no saravá? Seria o rito de passagem de Nossa
Senhora – envolvendo a saída de um lugar sagrado e separado, e descida ao parque de
diversões – um rito de cura de quem recompõem a integridade do seu corpo? Tal
como os textos sobre quais fala Clifford Geertz (1978: 20) – estranhos, desbotados, e
cheios de elipses, incoerências, e emendas suspeitas – uma imagem se apresenta. Dos
recônditos de uma imagem possivelmente emerge – como poderia sugerir Mikhail
Bakhtin (1993) – o seu baixo corporal fecundante.
Em outro texto (Dawsey 2006: 147) escrevi:

Seria o parque de diversões um dispositivo através do qual,


com efeitos de montagem, a cultura popular propicia um
retorno do suprimido? Estados somáticos e formas de
inervação corporal, associados à experiência do pasmo, e
que fazem parte da história incorporada de mulheres e
homens do “buraco dos capetas”, irrompem no espetáculo
da mulher lobisomem, entre outros do parque de diversões.

No límen de um parque algo se revela. Mas, talvez seja preciso um duplo


deslocamento, às margens das margens, para se encontrar os lugares mais fecundos
de uma senhora do parque de diversões. Acompanhando o movimento de retorno de
devotos às suas moradas e lugares de trabalho, a santa novamente se desloca. Nossa
Senhora também desce ao “buraco dos capetas”.
O que a liturgia e o processo ritual separam em Aparecida, para fins de compor
a imagem impassível da santa no espaço do sagrado, une-se nas imagens carregadas
de tensões no Jardim das Flores. Em Aparecida – ao passarem pela imagem da santa –
mulheres, homens, e crianças se recobrem da aura de persona (ou máscara) sagrada.
Em estado de f(r)icção com a máscara, os seus corpos se transfiguram virando
personagens de um drama extraordinário.29 No “buraco dos capetas” a máscara
(persona) se altera. Ganha vida. Vira corpo. Vira “Nossa!”.
Como visto no preâmbulo desse ensaio, ao assistir um filme na televisão sobre
Joana D’Arc, Dln exclamou: “Aquela era mulher de verdade, uma santa! Não tinha
medo de homem nenhum.” (21.1.84). As oposições se juntam em uma única imagem
carregada de tensões. A “mulher de verdade” que não tem medo dos homens
também, ao mesmo tempo, se veste e mata como tais. Há momentos em que a
reavaliação de categorias causa espanto. Elementos contrários se friccionam. Como o
choque da chama de fósforo no pó de potássio revela-se uma imagem. Em meio à
experiência vivida, quando categorias se realizam (normalmente) com espanto, é
possível às vezes se detectar (com o farejo de detetive) como as energias nelas
contidas, ou, até mesmo, por elas suprimidas, vem à superfície fazendo estremecer a
própria ordem das coisas e palavras. Em instantes como esses, quando até mesmo
categorias dicotomizantes se implodem, algo da natureza do indizível acontece. E nos
vemos diante de eventos da linguagem. No final das contas, ou seja, no seu registro
escatológico, talvez a verdade das coisas (e palavras) tenha menos a ver com o modo
como elas se separam e mais a ver com o jeito como elas se juntam – com espanto!
Assim se vem à luz no “buraco dos capetas”.

Rito de reagregação: retorno à catedral. Numa coreografia simétrica e inversa


à dos devotos Nossa Senhora retorna à catedral. Nas comemorações, excursões,
romarias e visitas dos fiéis ela volta. Algo se transforma. Após uma estadia no límen
um cotidiano vira estranhamente familiar. Com espanto, possivelmente, ela volta ao
cotidiano nas basílicas de Aparecida. Inclusive, ao altar onde, em 1982, ela foi
entronizada – com grades de metal e vidros à prova de balas. Ao invés de uma
iluminação religiosa, uma iluminação profana.
No encontro da santa com devotos talvez se detecte um ar de cumplicidade. De
algum modo nesse momento também se recompõe, com efeitos de montagem, um
corpo fendido. Nossa Senhora também vem de ritos de passagem. Na passagem da
santa o Jardim das Flores se ilumina não como lugar de chegada, ou de saída, mas
como límen, ou, ainda, límen do límen. Anaoj dizia: “nós estamos no cu dos infernos!”.
Era ali, afinal, o “buraco dos capetas”. “A tradição dos oprimidos nos ensina que o
‘estado de exceção’ é a regra.” (Benjamin 1985b: 226).

29
“A fricção entre corpo e máscara pode criar uma imagem carregada de tensões. Fazendo uso de um
chiste, eu diria que nesses momentos se produz um estado de f(r)icção. Em seu sentido original, ficção,
ou fictio, sugere a idéia de ‘algo construído’, ou ‘algo modelado’. Por sua vez, o ato de fricção evoca o
processo dialeticamente inverso do atrito e da desconstrução. A máscara que modela também desconstrói.
Ela produz uma alegre transformação e relatividade das coisas, como diz Bakhtin (1993:35). Isso, porém,
na medida em que o corpo, que por detrás lampeja, impede o esquecimento da impermanência da própria
máscara. Nos estados oscilantes de f(r)icção produzem-se os momentos mais eletrizantes de uma
performance.” (Dawsey 2006: 138).
Quando Dln do sertão da Bahia viu o filme sobre Joana D’Arc, ela também viu
uma imagem de sua própria mãe.

Sou filha de índia que laçaram no mato. Minha mãe era


índia, índia brava que não tinha medo dos homens. (...) Só
canhão pra derrubar aquela índia do mato! E meu pai até
jagunço foi. (...). Já nasci capeta, uma diabinha. Por isso, não
tenho medo dos capetas. Pode vir quantos quiserem que
vamos nós explodir no meio dos infernos. Enfrento os
diabos e expulso tudo de lá. Tenho fé. Deus está comigo!
Solto tudo de lá!” (25.5.83).

Aqui também lampeja a imagem de uma “mulher de verdade”. Ou, na


concepção de Dln, uma santa. Com espanto, em meio à implosão de categorias
dicotomizantes, seria a mulher lobisomem uma Nossa Senhora de verdade? Ou a
Nossa Senhora uma lobisomem?
Na passagem da santa há instantes quando as coisas se juntam. De forma
insólita elas emergem no “buraco dos capetas”, assim como nos sertões da Bahia. Ou,
ainda, nos sertões de Minas Gerais, terra de Anaoj e Mr Z. Nas cenas derradeiras de
Grande Sertão: Veredas (Rosa 1988) Diadorim, cangaceiro valente, revela ter o corpo
de uma linda mulher. Nossa Senhora – que também pode ter o corpo de uma linda
mulher – não deixa de fazer parte de uma história dos sustos provocados pela aparição
de gente dos sertões, arrepiando o imaginário brasileiro. Em cidades paulistas imagens
do sertão afloram. E nos fundos da basílica em Aparecida do Norte, na passagem de
uma gente do “buraco dos capetas”, com assombro talvez também se ilumina o corpo
da Senhora.
Nas origens de uma imagem se capta, quem sabe, os redemoinhos de uma
nação. Ali se encontram até mesmo histórias que submergiram ou que ainda não
vieram a ser. E questões não resolvidas. Como recompor um corpo fendido? Sem
emendas suspeitas?
No final de um rito de passagem às vezes se volta ao começo – com
estranhamento. A seguir, pois, convido leitoras/es (a justaposição dos gêneros pode
ser reveladora) a rememorar o primeiro milagre de Aparecida:

E principiando a lançar suas redes no porto de José Correa


Leite, continuaram até o porto de Itaguaçu, distância
bastante, sem tirar peixe algum. E lançando neste porto João
Alves a sua rede de rasto, tirou o corpo da Senhora, sem
cabeça; lançando mais abaixo outra vez a rede, tirou a
cabeça da mesma Senhora, não se sabendo nunca quem ali a
lançasse. Guardou o inventor esta Imagem em um tal ou
qual pano, e continuando a pescaria, não tendo até então
tomado peixe algum, dali por diante foi tão copiosa a
pescaria em pouco lanços, que receoso, e os seus
companheiros, de naufragarem pelo muito peixe que tinham
nas canoas, se retiraram a suas vivendas, admiradores desse
sucesso. (Citação do Livro do Tombo da Paróquia de Santo
Antônio de Guaratinguetá, agosto de 1757, vigário Dr. João
de Morais e Aguiar.) (Resende s/d: 4-5).
Chama atenção o procedimento de montagem. Do fundo de um rio, tira-se
primeiro um corpo sem cabeça. Depois a cabeça. Juntam-se as peças.

Bibliografia
A Bíblia de Jerusalém. (1995). São Paulo: Paulus, 7ª ed.
BAKHTIN, Mikhail. (1993), A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. São
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BARTHES, Roland. (1990), “Diderot, Brecht, Eisenstein”. O Óbvio e o Obtuso: Ensaios
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de Mão Única. São Paulo: Brasiliense, 3ª ed., p. 9-69.

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Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 4ª ed., p. 21-35.
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Across Cultures. London and New York: Routledge.
DAWSEY, John Cowart. (2000), “Nossa Senhora Aparecida e a mulher-lobisomem:
Benjamin, Brecht e teatro dramático na antropologia”. Ilha: Revista de
Antropologia, 2(1):85-103.
DAWSEY, John Cowart. (2006), “O teatro em Aparecida: a santa e a lobisomem”. Mana
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EISENSTEIN, Sergei. (1990), A forma do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
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Cultura”. In C. Geertz. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, p. 13-41.
GINZBURG, Carlo. (1991), História noturna. São Paulo: Companhia das Letras.
JENNINGS, Michael W. (1987), Dialectical Images: Walter Benjamin’s Theory of Literary
Criticism. Ithaca and London: Cornell University Press.
PEIXOTO, Fernando. (1981), Brecht: Uma Introdução ao Teatro Dialético. Rio de
Janeiro: Paz e Terra.
RESENDE, Vani. (s/d), Nossa Senhora Aparecida: A Saga e a Glória da Padroeira do
Brasil. Série “Histórias Ilustradas”, editada por Artur Rocha e Marcos Antonio
Galante. São Paulo: Reflexus.
Rezemos o Terço. (s/d), Terço-Ladainha-Ofício de N. Senhora. Novena a M. Sra.
Aparecida. Aparecida, São Paulo: Editora Santuário.
ROSA, João Guimarães. (1988), Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
32ª ed.
VAN GENNEP, Arnold. (1978), Os Ritos de Passagem. Petrópolis: Vozes.
O Teatro de Kalachakra: a Política como Espetáculo Sagrado, Ana Cristina O.
Lopes (PPGAS/USP)

Introdução
Em julho deste ano, o XIV Dalai Lama, Tenzin Gyatso, reuniu no Verizon Center
em Washington, cerca de 15.000 pessoas para um rito iniciático relativo a um dos mais
complexos sistemas tântricos do budismo tibetano, o Tantra de Kalachakra [sânsc.:
kālacakra]. Esta era a trigésima primeira vez que líder espiritual tibetano presidia essa
iniciação – vinte e uma vezes em países asiáticos e dez no Ocidente – e, em todas suas
edições, pessoas do mundo inteiro viajaram muitas vezes milhares de quilômetros
para tomar parte no evento. Falamos aqui de um fenômeno sem precedentes.
Certamente, nunca um evento relacionado a uma religião oriental reunira, de maneira
tão consistente ao longo dos anos, um público tão grande e eclético especialmente em
países ocidentais. Público que, diga-se de passagem, se torna ainda mais
impressionante em países asiáticos. Na Índia o Kalachakra chega a reunir 300 mil
pessoas.
A tradição de se conceder o Kalachakra a grandes massas, certamente um dos
traços mais peculiares desse ritual de iniciação, coloca em relevo seu papel
excepcional e, ao mesmo tempo, paradoxal no contexto do budismo tibetano. Com
efeito, apesar de sua associação com as multidões, o tantra de Kalachakra é
considerado um dos mais secretos e complexos sistemas do chamado budismo
vajrayana [sânsc.: vajrayāna] 1 O chamado “veículo vajrayana” de budismo é
considerado, por muitos autores, um veículo em si mesmo, com vários elementos
específicos que o distinguem do veículo mahayana (dos quais são representantes o zen
budismo e o budismo terra pura, por exemplo). De fato, a doutrina baseada nos
tantras e o corpo de práticas do vajrayana são caracterizados por seus traços
peculiares. Não obstante, é importante ter em mente que o veículo vajrayana poderia
ser considerado, em grande parte, uma radicalização de alguns conceitos básicos do
pensamento mahayana. O veículo vajrayana tornou-se uma forma importante de
budismo na Índia após 500 CE e seu ideal era a figura de mahasiddha, um praticante
extremamente completo, que poderia atingir a iluminação no período de uma única
vida. Qual seria então o sentido de fazer da iniciação relativa a um sistema tão
complexo um ritual de massa? Em grande medida, esta é a questão que norteia esta
apresentação. Minha ambição é que, ao responder essa questão, eu consiga também
demonstrar como, através da encenação dessa cerimônia, o Dalai Lama mantém vivo o
poder simbólico do antigo Estado tibetano, utilizando meios semelhantes aos do
passado, como o recurso ao espetáculo. Esta apresentação foi em grande parte
baseada no capítulo 7 de meu livro Ventos da Impermanência: um Estudo sobre
Ressignificação do Budismo Tibetano no Contexto da. São Paulo, Edusp, 2006.

I. O KALACHAKRA E A ESFERA POLÍTICA: A PAZ MUNDIAL


O V Dalai Lama, Ngawang Lobsang Gyatso (1617-1682), chegou ao poder em
1642, dando início a trezentos anos de governo dos Dalai Lamas. O Grande Quinto –
como também seria conhecido o V Dalai Lama – criava assim condições para a
instauração de um governo centralizador no Tibete. Uma das características mais
marcantes deste novo governo foi a preocupação em ritualizar toda a atividade de
Estado. De fato, o espetáculo e o cerimonial de corte desempenharam papéis
essenciais no Estado tibetano. Essa preocupação com o ritual aproximava o Estado
tibetano do Estado balinês descrito por Clifford Geertz em Negara (1980), e da noção
de “Unidade Política Galáctica” desenvolvida por Stanley Tambiah (1976) a respeito do
Estado tailandês. Rituais de massa, como a iniciação de Kalachakra, constituíam, no
passado, palcos privilegiados em que o poder do Estado tibetano era encenado e
reafirmado. Como veremos, esse entrelaçamento entre política e religião é uma
característica da iniciação de Kalachakra que perdura ainda nos dias de hoje.
Nas duas grandes iniciações de Kalachakra que observei, essa dimensão política
foi sempre evidente. Em sua edição austríaca (que aconteceu em 2002), por exemplo,
foi o próprio prefeito da cidade de Graz, Alfred Stingl, que requisitou formalmente os
ensinamentos do Kalachakra. Stingl um reconhecido defensor dos diretos humanos,
declaradamente estava mais interessado na mensagem ética e humanitária que o Dalai
Lama poderia passar no evento do que no aspecto religioso em si. Em parte devido a
esse convite oficial, instâncias públicas – a própria prefeitura, e os governos do Estado
e federal – concederam amplos recursos para a realização do evento – cerca de 3
milhões de euros.
Devido à evidente simbologia política que envolve a capital norte-americana, o
evento realizado em Washington há poucos meses atrás talvez tenha sido ainda mais
significativo em termos do entrelaçamento entre o político o espiritual. O evento foi
organizado pela Capital Area Tibetan Organization, que congrega membros da
comunidade tibetana em Washington e também contou com a participação de
membros da comunidade afro-americana, como por exemplo o presidente do
Conselho do Distrito de Colúmbia, Kwame Brown. Durante o evento, o Dalai Lama foi
ainda recebido pelo presidente Obama na Casa Branca e convidado para um encontro
com líderes congressistas dos partidos Republicano e Democrático.
Também relevante para nossa discussão foi a celebração, no primeiro dia do
evento, do aniversário do Dalai Lama para a qual foram convidadas algumas
personalidades importantes. Entre elas, estavam Anur Gandhi, neto de Mahatma
Gandhi, e Martin Luther King III, filho de Martin Luther King Jr. Além desses
convidados, o Bispo Desmond Tutu fez um pronunciamento transmitido ao vivo da
África do Sul dando os parabéns ao Dalai Lama, seu velho amigo. Tanto a presença
destes dois convidados ilustres quanto a participação virtual do bispo sul-africano
apontam para um importante aspecto da atuação do Dalai Lama: seu envolvimento na
luta pela paz mundial. Entre todos os papéis que assumiu no contexto da diáspora, o
papel de defensor da paz mundial é certamente aquele que mais marcou o Dalai Lama
e que estendeu sua atuação muito além dos círculos relativos ao budismo tibetano.
Graças à defesa da paz mundial, a atuação do Dalai Lama ganhou dimensões
bastante inusitadas no terreno da política internacional nos últimos anos. Se nos
primeiros anos do exílio, o Dalai Lama foi poucas vezes recebido por líderes de Estado.
Essa situação muda completamente, quando Dalai Lama recebe o Prêmio Nobel da Paz
em 1989. Hoje, apesar das constantes ameaças de retaliação feitas pela China, o Dalai
Lama é recebido, com honras de Estado ou não, pelos líderes dos principais países do
mundo.
Através da defesa de princípios que dizem respeito a toda a humanidade, como
a paz, a tolerância, a justiça etc., o Dalai Lama acabou por elevar a causa tibetana a um
patamar universal, transformando a luta pela independência de seu país em uma luta
(generalizada) por uma existência mais justa e pacífica, em uma ode à não violência na
qual ecoa justamente a palavra seminal de Gandhi, que é considerado pelo Dalai Lama
sua grande inspiração.
Ainda sobre a paz mundial, é essencial lembrar que o próprio título do evento
(em suas diversas edições) faz referência à paz mundial: “Kalachakra for the World
Peace”. Assim, outra questão que nós temos que nos colocar aqui é o que está por trás
da associação desse ritual de iniciação com a paz.

II. O RITO E O MITO


Uma primeira forma de responder a essa questão é trazer à tona a conexão
com o reino mítico de Shambhala [sânsc.: śambhala], o que acaba por explicar tanto a
prática de se conceder essa iniciação como um ritual massa, quanto sua relação com a
paz mundial. De acordo com o relatos tradicionais (Tenzin Gyatso & Hopkins, 1991;
Sopa et al., 1991), Buda Shakyamuni, o buda histórico, emanou-se como a deidade
Kalachakra no interior de uma stūpa no sul da Índia, um ano depois de sua iluminação.
Suchandra [sânsc.: sucandra], rei do reino mítico de Shambhala, ofereceu flores feitas
de jóias ao Buda, pedindo a transmissão dos ensinamentos de Kalachakra. Satisfeito
com o pedido de Suchandra, Buda iniciou todos os presentes ao tantra de Kalachakra.
Após receber os ensinamentos, o rei Suchandra retornou a Shambhala, onde
propagou a tradição de Kalachakra entre seus súditos. Os próximos reis mantiveram a
tradição, pouco a pouco transmitindo os ensinamentos de Kalachakra a todo o país.
Acredita-se que o reino de Shambhala seja uma terra pura que existe em nosso
mundo, mas que está escondida atrás de um “anel de montanhas” ou de uma
“barreira de névoa”, sendo, desse modo, invisível àqueles que não têm uma percepção
pura.
Ainda segundo a narrativa mítica, três mil anos após a iluminação de Buda
Shakyamuni, o reino de Shambhala irá emergir por detrás da barreira que o torna
invisível. Depois de um longo período de degeneração, em que os homens perderão de
vista a verdade e a espiritualidade, e o mundo inteiro acabará sendo dominado por
uma única ditadura materialista, o rei de Shambhala Rudra Chakrin conduzirá um
exército de guerreiros iluminados contra os “bárbaros”. Quando a batalha for vencida,
seu reinado de se estenderá sobre o resto do mundo, promovendo uma nova era
perfeita (Bernbaum, 1980, p. 23).
Antes de mais nada, é crucial ressaltar aqui que os comentários sobre o
Kalachakra descrevem a batalha de Shambhala não apenas em termos históricos, mas
também como uma “batalha espiritual”, na qual cada indivíduo deve combater suas
próprias emoções negativas e atitudes bárbaras geradas pela ignorância em relação à
verdadeira natureza da realidade. É possível falar em três Shambhalas
correspondentes a três divisões dos ensinamentos de Kalachakra. O Shambhala
exterior existe como um reino no mundo externo, o interior encontra-se escondido no
corpo e na mente, e o alternativo é a mandala [sânsc.: maṇḍala] de Kalachakra com
todas as suas deidades. Fica claro, a partir dessa descrição do reino de Shambhala em
suas várias camadas de significação, que a narrativa mítica, além de figurar na história
da origem do tantra de Kalachakra, está também diretamente inscrita no ritual.
De fato, literalmente, Kalachakra significa “roda do tempo”. “Kala” ou “tempo”
se refere ao fluxo de todos os eventos do passado, presente e futuro. O sistema de
Kalachakra compreende três ciclos temporais: o externo, que está relacionado à
passagem das horas, dias, meses, anos etc.; o interno, que lida com a seqüência de
respirações diárias de um indivíduo, e finalmente o alternativo, que abarca o conjunto
de práticas espirituais relativa ao tantra em questão. Assim, os ciclos externo e interno
lidam com o tempo como normalmente o concebemos, enquanto o ciclo alternativo se
refere ao método que leva à libertação dos dois primeiros.
Nesse contexto, seria interessante trazer para nossa discussão a interpretação
de Robert Thurman sobre a etimologia da palavra “Kalachakra”. Nela, o autor
evidencia o sentido estendido do termo “chakra”, que também pode significar
“máquina”. De acordo com essa interpretação, “Kalachakra” teria o sentido de
“máquina do tempo”, o caminho espiritual “que transforma o tempo em máquina para
produzir a iluminação de todos os seres sencientes” (Rhie & Thurman, 1991, p. 384). A
idéia de “máquina do tempo” não evoca aqui histórias de ficção científica, e sim um
sentido muito próximo do operado pelo mito e o rito: a suspensão do curso “normal”
do tempo. Trata-se de uma das mais essenciais propriedades da prática tântrica, que
consiste em acelerar o processo de evolução espiritual, tornando possível uma
“inversão” da ordem lógica do caminho religioso. Com efeito, no tantra, o praticante
toma o resultado futuro de sua prática como seu ponto de partida. Isso quer dizer que,
no ritual, ele “age”, “fala”, e “pensa” como se já fosse plenamente iluminado.
Uma vez que a batalha de Shambhala é também uma batalha espiritual na qual
cada indivíduo deve lutar contra suas próprias negatividades, pode-se dizer que a
batalha futura está acontecendo aqui e agora. A partir desta ideia é fácil extrapolar a
noção de que a paz externa começa com a paz interna, o que é uma ideia central em
todas as tradições budistas. No entanto, porque no Kalachakra esta noção está inscrita
no ritual, que por sua vez tem como pano de fundo uma narrativa mítica, a conexão
entre paz interna e paz externa ganha novos contornos e conseqüências diferentes.
Assim, o rito de iniciação de Kalachakra permite ao líder tibetano concretizar na ação
(ainda que seja numa ação “de cunho mágico”) seu discurso teórico sobre a defesa da
paz no mundo.

III. O TEATRO DA ILUMINAÇÃO


No curto espaço de tempo que eu tenho aqui, seria impossível tratar das
complexidades relativas ao ritual de iniciação. Focarei apenas em sua estrutura central,
que é expressa pela “iniciação interna”, o primeiro passo no ritual.
Na iniciação interna, o Dalai Lama convida os presentes a colocar de lado sua
visão habitual da realidade, substituindo uma percepção considerada “impura” por
“uma percepção pura”. O próprio Dalai Lama deve ser visto como a deidade
Kalachakra com um corpo azul, quatro faces e vinte e quatro braços, em união sexual
com sua consorte, Vishvamata [sânsc.: viśvamātā], que é imaginada com um corpo
amarelo, quatro faces e oito braços. (Tenzin Gyatso & Hopkins, 1991). De maneira
semelhante, o local onde ocorre a iniciação deve ser percebido como o palácio divino
da deidade.
Os presentes devem visualizar raios de luz saindo do coração do lama. Cada um
deles é então capturado por um raio de luz e transportado para dentro da boca do
lama, viajando através de seu corpo, para cair no ventre de Vishvamata, aqui
entendida como uma mãe arquetípica. No ventre de Vishvamata, eles se transformam
no vazio. O iniciado renasce então como filho do Dalai Lama, na forma da deidade
Kalachakra, não com todas as faces e braços da deidade principal do mandala, mas
com apenas uma face e dois braços.
Durante o processo de iniciação, esse movimento é repetido várias vezes.
Assim como acontece em grande parte dos ritos iniciáticos de todas as culturas, a
estrutura fundamental do ritual de Kalachakra assenta-se sobre um ciclo de morte (da
antiga personalidade) e renascimento (como um novo indivíduo), constituindo,
portanto, um rito de passagem. Claramente, este tipo de ritual é capaz de engendrar
um laço de natureza social ou mesmo mágica entre o Dalai Lama e seus iniciados. Este
é, acredito, um fator crucial na perpetuação do poder simbólico do Dalai Lama,
especialmente no novo contexto global no qual ele atua.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: O PODER COMO ESPETÁCULO


Como vimos, a conexão entre política e religião está inscrita na própria
estrutura do rito, e no mito que lhe é subjacente. Em um certo sentido, a ambivalência
que envolve o Kalachakra – mais secreto entre os secretos sistemas tântricos e ao
mesmo tempo ritual de massa – tem uma íntima relação com a própria noção de
poder – algo que é restrito a poucos, mas que diz respeito a todos. O alinhamento
entre política e religião também no contexto mítico aponta para a tendência da
iniciação de Kalachakra de se expandir em uma multiplicidade de níveis de significação,
nos quais uma mesma “história” é contada e recontada. No fundo, trata-se de uma
história de poder, do poder dos Dalai Lamas, que se desenrola em cenários que
parecem se estender (quase) infinitamente a partir do núcleo do ritual.
Através da encenação do ritual do Kalachakra o Dalai Lama – mesmo depois de
abdicar formalmente em 2011 de sua posição de líder secular dos tibetanos – mantém
vivo o poder simbólico do antigo Estado tibetano, valendo-se, como no passado, o
recurso ao espetáculo. No entanto, se no passado a ritualização e a encenação do
poder remetiam à dimensão religiosa que sustentava o Estado, agora é o rito religioso
apresentado como “encenação” na iniciação que remete à dimensão política do poder
do Dalai Lama, para reafirmá-la, na ausência de uma estrutura estatal propriamente
dita que lhe dê sustentação. Se o rito encenava o poder centrado no sagrado, agora é
o sagrado que adquire uma dimensão política, ou melhor, o que dá ao poder a única
figuração possível, fora do antigo contexto tibetano, com o desmantelamento das
estruturas sociais e políticas que sustentavam a religião e o Estado.

Bibliografia

BERNBAUM, Edwin. The Way to Shambhala. Los Angeles: Jeremy P. Tarcher, 1980, 1a
edição.
BERZIN, Alexander. Taking the Kalachakra Initiation. Ithaca (NY): Snow Lion
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Perspectives on the Past. Urbana e Chicago: University of Illinois Press, 1988, 1a
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Ressignificação do Budismo Tibetano no Contexto da Diáspora. São Paulo:
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MUS, Paul. “A Thousand-Armed Kannon: A Mystery or a Problem?” Journal of Indian
and Buddhist Studies, vol. 12 (1), 1964, p. 1-33.
RHIE, Marylin; THURMAN, Robert. Wisdom and Compassion: the Sacred Art of Tibet.
Nova York, Harry N. Abrams, Inc., 1991, 1a edição.
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Londres: Smithsonian Institution Press, 1993, 1a edição.
SOPA, Geshe Lhundub, et al. The Wheel of Time: the Kalachakra in Context. Ithaca (NY):
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TAMBIAH, Stanley. World Conqueror and World Renouncer. Cambridge
(Massachusetts), Cambridge University Press, 1976, 1a edição.
TENZIN GYATSO, the Fourteenth Dalai Lama; HOPKINS, Jeffrey. Kalachakra Tantra Rite
of Initiation. Boston: Wisdom Publications, 1991, 2a edição revisada.

Website
www.berzinarchives.com
Mesa 2: Antropologia, artes da performance e cidade
Guillemo Gómez Peña (La Pocha Nostra)
Regina Pólo Müller (IA/Unicap, coord. Napedra)
Euler Sandeville (FAU/USP)
Strange Democracy: An Evening with Spoken Word Brujo Guillermo Gómez-
Peña, (La Pocha Nostra)
In his new solo-performance, post-Mexican writer and performance artist
Gómez-Peña deals with the end of the Bush era and articulates the formidable
challenges facing Obama. He also denounces the anti-immigration hysteria and
assaults the demonized construction of the US/Mexican border—a literal and symbolic
zone lined with Minute Men, rising nativism, three-ply fences, globalization, and
transnational identities.
To this effect, the “border artist extraordinaire” uses acid Chicano humor,
hybrid literary genres, multilingualism, and activist theory as subversive strategies.
Shifting between languages, Gómez-Peña morphs into various performance personae
and bombards audiences with his infamous, border savvy techno-ideology, ethno-
poetics and radical aesthetics. In this journey to the geographical and psychological
outposts of Chicanismo, Gómez-Peña also reflects on identity, race, sexuality, pop
culture, politics and the impact of new technologies in the post-911 era.
Gómez-Peña continues “to develop multi-centric narratives from a border
perspective,” creating what critics have termed “Chicano cyber-punk performances”
and “ethno-techno art.” During these performances cultural borders move to the
center while the alleged mainstream is pushed to the margins and treated as exotic
and unfamiliar, placing the audience members in the position of “foreigners” or
“minorities in his performance country.
Gómez-Peña has spent many years developing his unique style, “a combination
of performance-activism and theatricalizations of postcolonial theory.” In his eight
books, as in his live performances, he pushes the boundaries still further, exploring
what’s left for artists to do in a repressive global culture of censorship, paranoid
nationalism and what he terms “the mainstream bizarre.” Gómez-Peña examines
where this leaves the critical practice of artists who aim to make tactical, performative
interventions into our notions of race, culture and sexuality.
Among other recognitions, Gómez-Peña has received the Prix de la Parole at
the International Theatre Festival of the Americas (1989), the New York, Bessie Award
(1989), a MacArthur Fellowship (1991), an American Book Award (1997) and a Lifetime
Achievement Award (Taos Talking Pictures Film Festival, 2000). He has been a regular
commentator for NPR’s All Things Considered and Latino USA, a contributing editor for
The Drama Review (NYU-MIT) and has authored eight books.
Artes da Performance, Regina Polo Müller (IA/UNICAMP)
O ritual nas sociedades indígenas e tradicionais e as artes cênicas na cultura
ocidental podem ser pensados como expressões da experiência vivida, na condição
liminar ou liminóide, respectivamente, como caracterizou Victor Turner para
estabelecer a abordagem conceitual de fenômenos que se constituiriam como objeto
de estudo de uma Antropologia da Performance. Manifestações expressivas que
compreendem um conjunto de linguagens (sonora, plástica, literária, cênica, do
movimento), são processuais e promovem o estado subjuntivo da experiência social
poderiam definir estes fenômenos, abrindo-se, assim, esta abordagem para um campo
interdisciplinar na antropologia contemporânea que vem pautando seu diálogo com as
artes. O tema a ser desenvolvido trata do percurso entre as proposições de Turner às
reflexões atuais sobre esse diálogo.
Visões artísticas da cidade e a gênese da paisagem contemporânea, Euler
Sandeville Jr., FAU/USP

Apresentação
Há várias abordagens para interpretar a cidade. Podemos pensá-la como
morfologia e tipologia (SOLÁ- MORALES I RUBIÓ 1997, PANERAI et al. 1983), como
dinâmicas ambientais (SPIRN 1995, HOUGH 2004), como estruturas urbanas que
suportam as mais diversas práticas para produção, circulação e consumo (VILLAÇA
2001, LEFEBVRE 2001), como espaços da vida, da intersubjetividade e espaços de
poder (CALDEIRA 1984, VOGEL e SANTOS 1985), como normatização e regulamentação
(MEIRELLES 1981), como história (SICA 1981, BENEVOLO 1983), como espaços de
transgressão (DÉBORD 1999) e assim por diante. Esses recortes temáticos revelam
intencionalidades e posicionamentos que são espaciais, sociais, políticos, e se
desdobram na seleção de procedimentos interpretativos e descritivos.
Mas a dimensão sensível da cidade, e da paisagem (CAUQUELIN 2007), aninha-
se existencial em sua arquitetura, nos seus espaços lúdicos, nos espaços de
convivência e trabalho, nas práticas que os geram para neles se abrigarem,
transformando-os. Essa arquitetura da cidade não é apenas visualidade e
funcionalidade, nem é apenas economia e política; é experiência, é significada no
vivido. O sentido da cidade se dá em suas práticas, nas heranças que abrigam, nas
temporalidades em que se constrói a paisagem como lugar, obra histórica e social
coletiva, e como múltiplas formas de estar com outros e consigo mesmo (SANDEVILLE
JR. 2004, 2005, 2010). É sempre uma cidade que poderia ter sido outra, geralmente
melhor em sua qualidade, resultante de nosso trabalho e de nossas decisões. É,
portanto, também uma cidade em gestação, que ainda pode ser outra.

Alguns aspectos da nossa cidade-arte sensível: fragmentos paisagísticos da


paisagem
A arte tem dado inúmeras contribuições à representação e discussão da cidade
e da paisagem natural, mesmo se pensarmos apenas nas artes plásticas. De certa
forma, a arte inventa cidades desejadas tão reais como as Cidades Invisíveis (1990) de
Ítalo Calvino (1923-1985) ou a cidade moderna e animada de August Macke (1887-
1914), um dos membros do Der Blaue Reiter (fundado em 1911). Mas, muito antes
dessas cidades contemporâneas, as cidades povoam a arte (e vice-versa). Basta pensar
nas cidades de Giotto (1266-1337) ou de Ambrogio Lorenzetti (ativo a partir de 1319),
observadas por anjos e demônios e cenário do drama espiritual e político humano; nas
praças quase reais com os tipos populares de Pieter Bruegel (1525?-1569); nas
Venezas de cores e formas sensuais de Canaletto (1697-1768) e Francesco Guardi
(1712-1793).
Não apenas isso, os campos criativos e intelectivos se reforçam e se
interpenetram, sua especialização e segmentação cognitiva é uma ficção posterior. O
que vemos é um trânsito contínuo e mutuamente enriquecedor na construção dos
diversos campos e saberes. Os exemplos são muitos, seleciono alguns. Nos afrescos da
Sala das Perspectivas (1519) na mundana Villa Farnesina em Roma (1508 e 1511),
construída para o banqueiro Agostino Chigi (1466-1520), Baldassare Peruzzi (1481-
1536) é arquiteto e pintor, realizando o encontro cênico entre pintura e arquitetura,
integrando um sofisticado ambiente para festas e espetáculos. Ou no ilusionismo
levado no limite cênico-arquitetônico do Teatro Olímpico de Vicenza, construído entre
1580 e 1585, por Andrea Palladio (1508-1580) e por Vicenzo Scamozzi (1548-1616).
Mas temos de reconhecer dependências menos óbvias do que estas entre arte,
arquitetura e urbanismo.
O urbanismo italiano no “renascimento” inicia-se com pequenas intervenções
no tecido medieval, possibilitado por uma geometria desenvolvida em grande medida
nas artes plásticas. Mas possibilita também um verdadeiro laboratório espacial para o
desenvolvimento dessa linguagem. Penso na Piazza della Santissima Annunziata
(conjunto aqui referido construído entre 1417 e o início do século 17), com os
trabalhos de Filippo Brunelleschi (1377-1446), Michelozzo di Bartolommeo (1396-
1471), Leon Battista Alberti (1404-1472) e outros. Mais tarde um pouco, escultura,
arquitetura e o domínio teatral do espaço livre dão o desenho de Lorenzo Bernini
(1598-1680) para a Praça de São Pedro (realizada entre 1656 e 1663 para o Papa
Alexandre VII, da família Chigi), fechando em um abraço o povo que contempla a
monumentalidade longamente construída da Basílica. O trabalho não seria possível
sem a cooperação das artes, sob o engenho de Bernini. É arte, é cidade, é arquitetura,
é urbanismo, performance sob muitos pontos de vista.
Um outro exemplo. As experimentações nas artes e as discussões
neoplatônicas, tal como reunidas na Vila de Fiesoli construída por Giovanni de Medici
(1421-1463) a partir de 1451, descortinando o panorama de Florença. Essas
experimentações e interações influenciaram um conceito de jardim que reinterpreta a
tradição romana da “antiguidade clássica”, estabelecendo eixos de perspectiva,
simetrias, cruzamentos elaborados, integrando o plano do jardim e seus volumes com
a estatuária, a hidráulica e tantas outras habilidades. A pequena Vila se define na
relação com o amplo panorama para a paisagem que inclui a cidade, tornando-o parte
integrante de um cenário idealizado para as reuniões dos círculos de humanistas. Essas
vilas já não dependem de uma ordem agrícola ou defensiva, tendo como finalidade
festejos, jantares, e o debate dos clássicos, no encontro privilegiado entre arquitetura,
paisagismo, escultura, pintura, filosofia. Muito do repertório do urbanismo nascente
vem das experimentações nos jardins italianos, e estes no diálogo conceitual e sensível
com a produção na pintura, e a eles retorna. Não se trata apenas de influência entre
esses campos para nós insistentemente apresentados como distintos, mas de trânsito
criativo entre eles, a partir da experimentação.
Caso clássico aquele em que as avenidas que se experimentam nas vilas
florentinas e romanas ganham expressão cênica e dramática nas reformas de Sixto V
(1521-1590) durante seu papado em Roma (de 1585 a 1590), no qual as vias rasgadas
na cidade para interligar em perspectiva as igrejas são mais nítidas no plano
conceitual, já que a ondulação das colinas insere uma outra dimensão perceptiva
nesses eixos. A experiência é ampliada. No reinado de Luis XIV (1643 a 1715) pode-se
falar de um verdadeiro plano de obras em Paris sob a direção de Colbert (entre 1664-
1683) e depois de Louvois, sendo o conjunto de obras supervisionadas por grupo de
funcionários-arquitetos sob supervisão de J. Hardouin Mansart e depois Ange Gabriel.
Nesse contexto, o repertório a que vínhamos referindo, com a expertise de Le Nôtre
(1613-1700) nos jardins de Versalhes (as reformas do antigo pavilhão de caça
começam em 1661), estabelece o vocabulário para o eixo de expansão pensado para
Paris após a demolição das muralhas em 1672 (para a criação do bulevares), a oeste
das Tulherias (Le Nôtre já reformara os jardins das Tulherias entre 1665-1672). O eixo,
até então restrito aos jardins dos palácios, em especial depois da demolição do palácio
das Tulherias, se prolonga do Louvre, pela av. das Tulherias (Champs Elysées, traçada a
partir de 1667), passando Place de la Concorde ainda por ser criada (1755-75),
estendendo-se bem depois até La Defense (centro de negócios que começa a se
organizar na segunda metade do século 20), com inúmeras e significativas
intervenções urbanísticas e arquitetônicas em todo esse conjunto que não cabe agora
relatar. Naquele momento esse é o limite de expansão da cidade, e inúmeras obras
são realizadas nessa região. Pela planta de Delagrive de 1728 nota-se que além dos
bulevares, o que existe de fato são campos e alguns focos de expansão nesse setor,
decorrentes desses investimentos.
Repertórios que, espero ter demonstrado, se desenvolvem e se retroalimentam
na experimentação entre as artes, a arquitetura, as intervenções urbanas, a filosofia, a
jardinagem, concebendo um ambiente integrado para o refinamento e erudição dessas
elites. E para sua exibição. Retornemos novamente aos períodos fundadores dessa
sensibilidade que desdobramos aqui. Todas essas esferas juntas, e não separadas
como aprendemos a pensá-las desde o século passado, formam uma ambiência que
anunciam a erudição e poderio econômico e político de seus possuidores. E não me
refiro apenas às obras resultantes, mas às práticas no espaço construído, seja o recinto
arquitetônico, seja o espaço público. Bem conhecido é o caso da festa de celebração
da Entrada Real de Henrique II em Rouen, em 1550, organizada pelos comerciantes
locais interessados no tráfico (comércio) do pau-brasil da colônia portuguesa. Em uma
ilha, logo na entrada do cortejo, reproduziram um teatro vivo com cenas dos nativos
da terra chamada de Brasil, com índios tupinambás trazidos para a celebração.
Nem escapa aí a curiosidade da ciência ainda nascente diante do mundo
“descoberto com as navegações” e a necessidade de sistematização para a conquista,
a disputa de mercados. Papagaios e índios circulam como curiosidade nos salões;
artefatos ganham os gabinetes de curiosidade, enquanto mapas e desenhos são por
vezes trancafiados como segredos de estado; relatos, como as cartas de Américo
Vespúcio (1454-1512, Carta de Sevilha de 1500, Mundus Novus circulando a partir de
1503, BUENO 2003) que, inventadas ou não, tornam-se folhetins; plantas dos diversos
continentes, como já acontecera no helenismo, ganham agora os jardins italianos
prenunciando as coleções botânicas. O ajardinamento, até então restrito aos recintos
dos palácios e vilas ganharia também o espaço urbano, como bem nos mostrou Hugo
Segawa, ao estudar o surgimento e difusão dos passeios públicos nas cidades desde o
século 16, isso não apenas na Europa, mas também na América espanhola. Recintos do
ver e ser visto (SEGAWA 1986) permaneceriam restritos até o século 19
fundamentalmente à nobreza e alta burguesia, com formas de representação e
circulação nesse espaço elaboradas, como denotam as ilustrações de época. Locais nos
quais o tipo popular, se comparece, é subserviente.
Ou, numa outra direção, carregada de antagonismos simbólicos com esses
modelos precedentes (SANDEVILLE JR. 1996), o desenho que “imita” o natural torna-se
instrumento de invenção da paisagem a ser construída, e também de sua apreensão e
valoração. Esse outro repertório foi bem mais do que um estilo, foi uma nova forma de
olhar e usufruir a paisagem, de transformá-la. O pitoresco é uma verdadeira revolução
estética, tendo como centro irradiador a Inglaterra no século 18. Para se ter uma ideia
da dimensão da pintura nesse novo olhar da paisagem natural, embora não seja sua
única influência, basta comparar Paisagem com Apolo e Mercúrio (1645) e Paisagem
com Eneas e Delos (1672), de Claude Lorrain (1600-1682), com o parque de Stowe
(i.1715), propriedade de Lord Cobham ou com Stourhead (1740-60), propriedade do
banqueiro Henry Hoare. Como processo de projeto, esse percurso é notavelmente
exposto nos desenhos de Humphry Repton (1752-1818) em seus Red Book, nos quais
ensaia para os clientes a situação da paisagem como se apresenta ao olhar, e como
será, uma vez transformada paisagisticamente.
Esse repertório atravessa o Canal ainda mesmo antes da Revolução Francesa,
com a transformação do Petit Trianon em Versalhes, em 1781, em um jardim inglês, no
qual Maria Antonieta gastava longos períodos. É esse repertório plástico que irá,
transformado, fornecer o imaginário dos parques desenhados por Jean-Charles-
Adolphe Alphand (1817-1891) em Paris sob Napoleão III, e que se difundiria pelo
mundo. Sua potência se desdobra inclusive nas experimentações urbanísticas que lhe
devem muito das possibilidades formais (como também o devem aos utopistas), com
as Cidades Jardins idealizadas na Inglaterra por Hebenezer Howard (1996; original de
1898: Tomorrow: a Paceful Path to Real Reform, reeditado em 1902: Garden Cities of
Tomorrow). Implantadas nos primeiros anos do século 20, já em 1903 em Letchworth,
com projeto de Raymond Unwin (1984; Town Planning in Practice, de 1909) e Barry
Parker, sua influência se desdobra entre nós. A City of São Paulo Improvements and
Freehold Land Company Limited, criada em 1911, com consultoria do arquiteto
paisagista francês Joseph Bouvard (do qual tornaremos a falar mais adiante), traz Barry
Parker para implantar os bairros-jardins em São Paulo a partir de meados da segunda
década, ocasião em que, entre os muitos projetos realizados aqui, concebeu a reforma
do Parque da Avenida Paulista (Siqueira Campos) em 1918. Se observamos os
desenhos desses projetos, destacam-se por sua qualidade gráfica, e os espaços
concebidos e construídos, como se pode observar nas fotos de época, revelam uma
inequívoca pretensão de uma arte urbana, no meu entendimento.

A invenção da paisagem
A esse conjunto de práticas a serviço das elites, que se desenvolve solidário e
não como campo de especializações, de onde lhe advém uma beleza adicional, chamei
em meu doutorado fragmentos paisagísticos da paisagem. É necessário olhar melhor a
paisagem a que se referem, mas, neste artigo, limitar-me-ei a circunscrever a ideia de
paisagem, indicando que a abordagem necessita ser ultrapassada. Um único exemplo
para que se entenda o que estou indicando. Costuma-se dizer que a renascença, a
partir de Jacob Burckhardt (1818-1897), com seu notável e hoje um pouco
subestimado estudo A cultura do Renascimento na Itália (1991), publicado em 1860,
tende a ser pensada como um período civilizatório da história humana. Nesse ponto,
se perde a paisagem, para se ficar apenas com seus fragmentos paisagísticos.
Transformado em civilização, o renascimento não dá conta do que foi o
período, mas apenas de umas poucas experiências, ainda que formadoras de todo um
modo de pensar e sentir que nos alcança. Em alguns momentos chega-se a falar de um
“homem da renascença”. Mas quem era esse homem? Leonardo da Vinci (1452-1519),
que depois de marchar como conselheiro militar no séquito do duque Valentino em
1502-1503 e do terrível César Bórgia (em 1503), filho do Papa Alexandre VI, Bórgia
(1492-1503)? Ou os camponeses franceses e ingleses, que viviam em aldeias tais como
as descritas em Barthélemy, Contamine, Duby e Braunstein (1990), nas quais eram
frequentes as casas de um único cômodo ou poucos, que abrigavam no mesmo espaço
a família e os animais para resistirem ao frio? Qual era a paisagem da renascença? Os
palácios visitados por Leonardo, ou os campos que os unificavam e sustentavam? Ou
ambos? Se for este o caso, temos olhos apenas um pequeno fragmento das paisagens
privilegiado pelas artes.
Mas, nem assim a paisagem resume-se a mera materialidade desses arranjos, é
uma condição espiritual. Para Burckhardt:

Para além da pesquisa e do saber, havia ainda um outro


modo de aproximar-se da natureza, aliás num sentido muito
particular. Dentre os povos modernos, os italianos são os
primeiros a perceber e apreciar a paisagem como algo belo,
em maior ou menor grau. (1991:218).

Em busca dos “prazeres” “puramente modernos, nada devendo à Antiguidade”


proporcionados pela paisagem na renascença italiana, como observa na seção
justamente intitulada “A Descoberta da Beleza Paisagística” Burckhardt sente, não
sem razão, que a origem dessa paisagem está no humanismo. Um humanismo muito
discutível, é verdade, mas que pelo menos ele o entende em sua selvageria e barbárie
(ainda que encantando-se com ela), e que depois foi adocicada em valores universais
que nunca corresponderam às suas práticas. Em que lhe pesem as críticas e correções
que só seriam possíveis depois, devemos reconhecer nesse autor, em sua erudição, um
espírito bem mais lúcido do que grande parte dos que escreveram no último século
sobre a renascença, que apontando suas idealizações, não as superam.
Burckhardt retorna então à gênese desse humanismo e pensa em Petrarca, ao
escalar em 1335 o monte Ventoux próximo a Avignon, como “um dos primeiros
homens inteiramente modernos - quem atesta completa e decididamente o significado
da paisagem para a alma sensível” (1991:220). O episódio foi registrado em uma carta
a Dionigi da Borgo Santo Sepolcro. No entanto, em que pese a beleza dos argumentos
que seguem na descrição dos humanistas que lhe sucedem, para o entendimento da
paisagem que é plasmada nessa época, a subida ao Monte Ventoux de Petrarca ainda
não é paisagem. Quanto importa isso, na medida em que esse argumento é seguido de
importantes e complexas reflexões sobre a paisagem, já entendida como uma
categoria, que remontam a esse episódio, verídico ou não, em autores como Joachim
Ritter (escrito em 1963, integra a Antologia organizada por Serrão 2011) e Jean-Marc
Besse (2006,escrito em 2000)?
Parece-nos necessário recusar essa fundação datada de origens, mas mais
importante do que isso, é reconhecer a qual representação essa afirmação visa
construir. Além do mais, trata-se, até onde entendo no atual estado dos estudos, de
um anacronismo, porque a paisagem não é a categoria pela qual Petrarca podia pensar
sua experiência. Essa objeção me parece fundamental, mas não suficiente, na medida
em que o insight de Burckhardt coloca o interessante problema da fundação de uma
cultura paisagística na medida em que é a fundação de uma cultura (logo civilização)
renascentista. E que duas categorias adicionais são mobilizadas para essa fundação,
natureza e beleza, doravante profundamente integradas às noções e conceituações de
paisagem, seja no âmbito de sua experiência, seja no âmbito de seu estudo. Se
pensarmos dessa forma, podemos conceder que o que viria a ser paisagem está
ausente em Petrarca, mas sua possibilidade já se anuncia, encontra-se em tensão aí,
no trânsito (trajetivité é excelente conceito desenvolvido por Augustin Berque, 2000)
entre o material e o imaterial, entre o território e o mundo, entre o sensível e o
cognitivo.
É nesse sentido que é interessante se pensar, nesse conjunto de eventos
relatados, no “nascimento” da paisagem no ocidente, para usar a expressão de um
importante trabalho de Alain Roger (2000), do qual certamente me desvio em algum
ponto. Nascimento, e para mim invenção, porque a palavra paisagem, até onde apurei,
é uma criação moderna. De fato, alguns escritos anteriores ao século 16 que trazem o
termo paisagem parecem ser uma interpretação do tradutor.
A palavra nos veio do francês, paysage (derivando de pays = país, região,
território, pátria etc.), palavra “surgida” (atestada seria melhor) nessa língua, segundo
o dicionário Robert, em 1549 (segundo informa POLETTE, 1999) e no português nos
séculos 16 e 17: paugage (século 16) e paizagem em 1656 (segundo CUNHA 1982).
Neste último autor (1982, p. 572) encontramos o verbete: “país sm. ‘região, território,
nação’ XVII. Do fr. pays deriv. do b. lat. page(n)sis, do lat. pagus (V. PAGO) // paisAGEM
/ XVI, paugagê XVI, paizagem 1656 etc. / Do fr. paysage // paisAG.ISMO XX //
paisAC.ISTA 1844. Do fr. paysagiste // paisANO / paysano XVII / Do fr. paysan //
paisEIRO XX”. Já o sufixo agem teria origens distintas (CUNHA 1982), derivando do
latim ago, aginis “com as noções de estado, situação, ação, ou resultado da ação” ou
do francês age que derivou do latim aticum. (SANDEVILLE JR. 2005).
SERRÃO (2011:13) acrescenta informação adicional a esse levantamento,
embora em sua essência a conclusão ainda seja próxima:

A transformação do francês pays em paysage e do italiano


paese em paesaggio ilustraria o deslocamento das noções
primitivas de “terra” ou “região” para a representação
pictórica de regiões e espaços naturais. Se nas línguas
neolatinas a raiz pays, ou paese, indica a aldeia natal, o lugar
de origem familiar e próximo, os termos germânicos
Landschaft (alemão) e landschap (holandês), e o inglês
landscape reenviam para Land, com o sentido de região,
parcela de terreno ou circunscrição territorial. Em contraste
com a formação recente dos derivados de pays, estes são
termos antigos que coexistem com a raiz Land e significam a
forma de uma região ou a parte do território ocupado e
trabalhado pelas populações. Mas também nestas línguas
viriam a assumir o sentido de uma figuração. O uso do
alemão Landschaft está atestado num contrato de 1484 para
designar o tema específico de um quadro, vindo
progressivamente a abranger todo um gênero artístico
especializado, sendo bem conhecida a referência de
Albrecht Dürer a Joachim Patinier como um “bom pintor de
paisagens” (“ein guter Landschaftsmaler”).

O trecho permite corrigir, ou aprimorar, algumas informações constantes em artigos


anteriores meus:

Tal é a questão se apresenta também para a palavra inglesa


landscape, derivada do holandês landschap. Segundo se lê
na Great Books Online - Encyclopedia (Bartleby.com): “It
would seem that in the word landscape we have an example
of nature imitating art, at least insofar as sense development
is concerned. Landscape, first recorded in 1598, was
borrowed as a painters' term from Dutch during the 16th
century, when Dutch artists were on the verge of becoming
masters of the landscape genre. The Dutch word landschap
had earlier meant simply “region, tract of land” but had
acquired the artistic sense, which it brought over into
English, of “a picture depicting scenery on land.”
Interestingly, 34 years pass after the first recorded use of
landscape in English before the word is used of a view or
vista of natural scenery. This delay suggests that people
were first introduced to landscapes in paintings and then
saw landscapes in real life” (disponível em
http://www.bartleby.com/61/74/L0037400.html).
Pensamos aqui também no termo alemão, landschaft que
“originalmente possuía um significado de constituição
espacial ou ordenamento característico de uma região: a
fração ‘Land” como país, área, região ou território; e a fração
‘Schaft’ como constituição ou estabelecimento de uma
ordem social” (para POLETTE 1999:86). (SANDEVILLE JR.
2005).
Ensaio de como na língua japonesa se formam palavras que poderíamos traduzir por
paisagem indicam também um jogo entre a matéria, o sensório e o sensível (SANDEVILLE JR. e
HIJIOKA 2007). Os meus estudos e os de Adriana Serrão citados neste subtítulo, e de outros
autores, mesmo quando há divergências no peso da pintura, da natureza e da cultura na
constituição da ideia de paisagem, indicam que no ocidente o olhar moderno inaugura um
novo modo de ver e pensar a paisagem, a partir de uma experiência estética (que para mim
não pode ser reduzida ao imediato dos sentidos). O termo estese não comporta a
segmentação artificial entre o sensível e o cognitivo, como se houvesse uma esfera primeira
que pudesse permanecer indissociável e imediata na gênese do mundo. Nem mesmo me
parece aceitável a ideia de que a percepção seja apenas um registro sensório e imediato do
mundo.

O simples recurso à gênese da palavra, se tem sua utilidade,


revela-se insuficiente, sem uma visão histórica de como,
efetivamente, sucedeu sua incorporação na língua. De
qualquer modo, até esse estudo avançar, pensamos não se
tratar apenas de supor uma vinculação com as artes, a qual
desde cedo se estabelece (que parece explícita, sobretudo
na introdução do termo no inglês), mas, ao contrário, de
reconhecer um novo olhar que se forma no contexto de
grandes transformações que incluem a constituição de um
“novo mundo”.
Nesse caso, a palavra poderia ter surgido para designar uma
nova percepção possível, ainda que logo absorvida na
fruição estética que reordenava esse mundo, e a capacidade
de apreciá-lo e controlá-lo. Se esse entendimento vier a
confirmar-se, esse novo “objeto” ou “olhar” precisaria de
uma designação, a qual se deslocaria da questão da
delimitação territorial para a sensibilidade, abrindo espaço
para que a pintura contribuísse para reorientação desse
olhar. Uma questão a verificar, estudar melhor.
O sentido veiculado na argumentação que apresentamos
remete claramente à territorialidade e a dimensão cultural e
sensível implicada. Daí é insuficiente definir o “objeto de
conhecimento” paisagem com base, exclusivamente, em sua
percepção visual (a qual, para nós, ficaria melhor
compreendida como panorama, prospecto). A redução da
paisagem à sua mera visibilidade formal aproxima sua
compreensão da idéia de pitoresco, o "pinturesco": aquilo
próprio para ser pintado, a cena (embora o pitoresco esteja
muito além desse sentido). Reduzida a cenário, facilmente
resvala para o decorativo, o superficial, o acessório,
revelando alguns dos problemas de enfrentamento da
paisagem em nossa sociedade. É necessário distinguir,
definitivamente, paisagem da representação pictórica ou
figurativa da paisagem. Ou seja, aquilo que na pintura
corresponde a uma representação, domínio do imaginário e
uma inequívoca problemática cultural, transposto como
base de entendimento para o espaço a que, simbolicamente,
refere-se, conduziria a uma percepção na maioria das vezes
estática e não-essencial. O problema maior ocorrerá quando
se pretender entender e lidar com a paisagem a partir de
sua estereotipação como uma figura (bidimensionalidade
rapidamente referida a uma forma, como contrapartida de
sua desmaterialização), desvinculado-a de sua natureza
processual complexa, a qual ocorre e se explica a partir de
processos sociais e naturais. (SANDEVILLE JR., 2005).

Para SERRÃO:
Se uma palavra nova se forma pela necessidade de nomear
uma fracção da realidade até aí coberta por outras
designações, então a Idade Moderna não inventaria apenas a
palavra, mas descreveria através dela uma diferente
imagem do mundo. (2011:14).
e
A paisagem, subjectiva e colectiva, “cobre” o solo, objectivo e
físico, como repositório de sentido. Esfera de significações,
uma paisagem formar-se-ia de sucessivos cruzamentos e
interdependências entre as características concretas dos
espaços físicos e a camada simbólica sobre eles depositada,
o mesmo é dizer, entre os sujeitos (habitantes) e o mundo
envolvente. (...) É por isso que se pode defender que a
paisagem é uma criação cultural. (2011:21).

Uma nova tradição: natureza e artifício


Porém, insisto nesse ponto, essa condição perceptiva nova, a paisagem, não
está apenas na pintura. E se lá também está, é porque está numa condição espiritual e
material que em muito a transcende, na experiência de mundo mais ampla em que se
realiza. Na arte, em trânsito com outros saberes, se estabelece um repertório ficcional
e experimental, no qual se desenvolvem formas de olhar que são propositivas, ou
iluminam possibilidades propositivas. Mas se olharmos pela altura da passagem do
século 18 para o 19, cabe bem a ponderação de Leonardo Benévolo:

O refinamento e a elegância dos últimos produtos da


tradição clássica encobrem a separação total relativamente
aos problemas da nova cidade e impedem de fato qualquer
contato entre a tradição e o ambiente que se vai formando
por efeito da revolução industrial (BENEVOLO 1981).

Em todos esses trabalhos que mencionamos até este ponto neste artigo, a
natureza foi a referência fundante dos saberes e sensibilidades, inicialmente por meio
do neoplatonismo que recolocou em circulação a filosofia clássica. Essa tradição a que
nos referimos até aqui (na arte e nas “disciplinas”) é posta em crise a partir do século
19, embora forneça o repertório inicial para os desenvolvimentos posteriores.
Essa complexidade que vimos apresentando, já não dá mais conta, a partir da
modernidade, embora nos enriqueça imensamente o entendimento da paisagem. Esse
estado de coisas atribuído aos humanistas e artistas italianos e holandeses na Era
Moderna, se desfez, se reconfigurou. E a paisagem não só sobreviveu, como se tornou
uma temática cada vez mais relevante e presente. Não podemos mais dizer que seja a
mesma paisagem, nem que seja ainda a mesma natureza. Ao falar de natureza, penso
sempre em Robert Lenoble (1990), para quem o homem sempre observou a natureza,
só que não era a mesma. O seu sentido, a sensibilidade possível na paisagem (nela, e
não diante dela) não são mais os mesmos, nem a relação entre arte e paisagem ainda
pode ser a mesma. E o que muda, é uma discussão fundamental para nos pensarmos.
Não se trata de uma “crise” das formas, ou dos “arranjos”, mas da linguagem
em seu sentido mais amplo, como construção e representação do mundo. Estamos na
transição de um mundo fundado e referente na natureza, para um mundo governado
pelo artifício e pelo urbano. Modificações profundas, que não são de crises e
continuidades apenas, mas de novas possibilidades. Uma nova forma de ser no mundo
engendra uma nova paisagem enquanto configuração e conformação, desde que
entendendo as paisagens como nossos modos de habitar o mundo (SANDEVILLE JR.
2010). Segundo Geoffrey e Suzan Jellicoe, no século 20 a paisagem emergiu como uma
“necessidade social”:

The popular conception of landscape design has been that it


is an art confined to private gardens and parks. This is
understandable, because it is only in the present century
that landscape has emerged as a social necessity JELLICOE
& JELLICOE, 1987.

Entendemos como acerto a afirmação de que nas sociedades da “Era Moderna”


os espaços livres (embora não seja essa a expressão que usaram os Jellicoe) se
associavam a jardins e parques privados e, se espaços públicos, à representação da
nobreza, do Estado e da Igreja Católica (DERNTL 2004). Podemos considerar que a
emergência da paisagem como necessidade social - como tão bem definiram os
autores citados acima - foi de fato um movimento com novas dimensões evidentes já a
partir de meados do século 19 (as reformas de Paris, Barcelona, Viena, o colar de
parques de Boston). Mas nem por isso deixam de estar subordinadas às decisões de
investimento de uma elite restrita.
Com o crescimento das cidades e sua centralidade na produção, circulação,
decisão, por muitas razões a paisagem, e o projeto da paisagem, ultrapassaram o
âmbito dos interesses e espaços fechados da nobreza e da burguesia. Ao lado dos
passeios públicos, e dos jardins privados, surgem agora os parques públicos,
constituídos dentro de um pensamento paisagístico e urbanístico como uma
necessidade da saúde da cidade. Essa ideia chega ao século 20 na criação, por
exemplo, do parque na Várzea do Carmo, atualmente Parque Dom Pedro II em São
Paulo (1914-1922). Sanear a várzea era uma demanda que remontava ao século 19, no
entanto, sua construção vai além desse aspecto. Como tardasse o início das obras
desse parque, pensado em 1911 pelo paisagista francês Joseph-Antoine Bouvard a
convite do prefeito Raimundo Duprat (gestão 1911-1914), o prefeito Washington Luiz
reclama em 1914 seu início à Câmara Municipal:

Não pode ser adiado, porque o que hoje ainda se vê, na


adeantada capital do estado, a separar brutalmente do
centro commercial da cidade os seus populosos bairros
industriaes, é uma vasta superfície chagosa, mal cicatrizada
em alguns pontos, feia e suja, repugnante e perigosa, em
quasi toda a sua extensão. (...) É ahi que se commettem
attentados, que a decencia manda calar; é para ahí que se
attrahem jovens estouvados e velhos concupiscentes para
matar e roubar (...). Tudo isso pode desapparecer, e já, tendo
sido já muito melhorado com a canalização e aterrados
feitos, sendo substituido por um parque seguro, saudavel e
bello, como é o do projecto Cochet. (...) Denunciando o mal e
indicando o remedio, não ha logar para hesitações, porque a
isso se oppõem a belleza, o asseio, a hygiene, a moral, a
segurança, enfim, a civilização e o espirito de iniciativa de
São Paulo. (apud KLIASS 1993:115).

Há no discurso de Washington Luiz, no trecho parcialmente citado acima, um


preconceito de classe e também racial característico da elite da época. Há ainda ecos
que entendem, como o faz Tobias Monteiro (1983:86), que “...se os nossos parques já
não nos interessam, façamos da preferência, se não uma escolha de higiene, ao menos
uma regra de bom-tom”. Ecos que remontam à Paris de Georges-Eugène Haussmann
(1809-1891) e Alphand, com o sistema de parques criados (em particular o Bois de
Boulogne e o Bois de Vincennes), atribuindo-lhes essa função de saneamento, de
saúde física e mental, de lazer.
Os grandes trabalhos de Paris são paradigmáticos para o urbanismo
subsequente. O Barão Hausmann transformou a cidade entre 1853 e 1869, quando
teria mais de um milhão de habitantes, em um grande canteiro de obras. Sua atividade
envolveu uma complexa junção de arquitetura urbana, ampliação cênica e estratégica
do viário, investimentos privados, criação de espaços livres e estratégias de gestão. As
obras de Napoleão III e de Haussmann dependeram da aprovação não apenas de
recursos, mas dos interesses representados em diversas instâncias sociais, e não
apenas isso, de uma nova capacidade de aquisição, distribuição, gerenciamento e
prestação de contas dos recursos envolvidos e de uma nova capacidade técnica na
gestão dessas operações.
Voltemos à Várzea do Carmo, com o Relatório do Anteprojeto do Parque da
Várzea do Carmo, elaborado por E. F. Cochet (que revela também influências do
movimento de parques e do “embelezamento urbano” estadunidense), para aquilatar
melhor esse sentido dessas nossas configurações no urbano:

A experiência nos tem mostrado que os parques públicos


não devem ser somente passeios agradáveis e reservas de ar
puro, mas devem também propiciar educação física às
crianças, repouso aos adultos e o desenvolvimento da raça.
Nós não devemos nos esquecer também que os jogos ao ar
livre são derivativos poderosos para o cabaré e é desejável
que áreas de jogos, pequenas e grandes, sejam distribuídas
em grande número nos diferentes bairros. Em uma outra
ordem de idéias, nos parece igualmente desejável que o
parque público seja a primeira escola da natureza para os
estudantes e para o público. Propomos que se indique
através de etiquetas os nomes e as propriedades mais
características das espécies vegetais que comporão a
vegetação do parque. (apud KLIASS 1993:117).

No século 19, a necessidade de criar novas formas e estratégias de convivência


e representação no urbano, coexistem cada vez mais com uma realidade social brutal,
como podemos ver nas gravuras de Gustave Doré (1832-1883) ou nos estudos de
Engels (1820-1895) sobre a classe trabalhadora. Esse século foi caracterizado pelas
hoje denominadas Revolução Industrial e Burguesa, pela crescente urbanização e por
um sistema de relações regionais e internacionais possibilitado pelos avanços
tecnológicos na produção e na circulação. No entanto, esses termos, Revolução
Industrial e Burguesa, iludem muito da experiência cotidiana em que se dão. Forjam a
ilusão de uma ruptura que não corresponde de fato às práticas sociais, ainda que
abaladas por sucessivas revoluções e contra-revoluções, essenciais à experiência do
urbano, do fortalecimento e surgimento de novas instituições, de reorganizações
radicais e da emergência essencial de Direitos.
Podemos ver melhor - verdadeiro antídoto ao generalismo historicista e
teleológico do domínio das estruturas no entendimento do social - a temperatura do
início do século em Paris no magnífico trabalho ficcional (será?) de Honoré de Balzac
(1799-1850), Ilusões Perdidas (2007; publicado em três partes entre 1836 e 1843).
Ambientado um pouco antes da época em que foi escrito, vem de uma universalidade
e detalhes na descrição ficcional das relações humanas e suas motivações que
assombram por sua atualidade, ainda que alteradas as instituições, cenários, figurinos,
etc. De um modo excepcionalmente nítido, esclarece a experiência dessa lenta
transformação e reapropriação das formas do passado e sua superveniência no
presente, ao lado de uma formulação de uma intencionalidade política nova, como
entre os boêmios de inspiração socialista e anarquista, o papel dos meios de
comunicação na vida social, o difícil trânsito de uma pequena burguesia entre outras
esferas sociais em busca de sua sobrevivência ou de galgar novas posições cada vez
mais possíveis nessa “alta sociedade” após a Revolução Francesa. A apropriação das
formas e lugares simbólicos da nobreza se realiza através de difíceis negociações pela
alta burguesia após as revoluções de final e início de século na França. A mobilidade
das pessoas entre as classes sociais ao longo de suas vidas e suas mediações são
incômodas para quem transita, definindo estratégias nem sempre honrosas, que
assumem múltiplas formas, adaptando-se, e revelando suas conveniências e
negociações (ou seus limites) nas esferas públicas e privadas do social.
As modificações do século 19 podem ainda ser aquilatadas quando se nota que
na Inglaterra em 1800 havia apenas duas cidades com mais de 100.000 habitantes e
que, em 1895, já contava com 30. Londres, em 1801 tinha 864.845 habitantes,
passando a 1.873.676 em 1841, e chegando a 4.232.118 habitantes em 1891! Tamanha
multidão, acrescida tão rapidamente a uma cidade, provocaria uma série de problemas
ampliados ainda mais pelas péssimas condições em que vivia e trabalhava essa
população. Podemos dizer que a quantidade de problemas a se enfrentar cresceu
ainda mais rapidamente do que os avanços tecnológicos que os produziram naquelas
condições sociais. Já não poderíamos mais estar, nesse quadro, falando de arte,
natureza e de cidade como até então se fizera, mesmo que essa transformação seja
gradual e guarde muito de sua intuição anterior.
Obviamente, a percepção e a visão de mundo dos contemporâneos, diante de
um quadro tão inédito, foi profundamente abalada e transformada, para não dizer
transtornada. Nunca antes na história humana as pessoas haviam podido se deslocar
tão rapidamente e em tão grandes quantidades, quanto agora com o navio a vapor e o
transporte ferroviário. A fotografia revelava uma nova dimensão da realidade e seu
registro, bem como das formas possíveis para representá-la. O telégrafo estabeleceu
uma instantaneidade nas comunicações até então impensável. A eletricidade estava
destinada a transformar profundamente o cotidiano do trabalho, do descanso e do
lazer, e portanto a imaginação do “homem moderno”. A necessidade de padrões
universais para a produção trouxe o metro como unidade de medida, baseada não
mais em referências que tinham a ver com o corpo e a escala humana, e portanto
natural, mas em medidas astronômicas da Terra. Igualmente o relógio, ainda que
inventado muito antes, agora significou um controle rígido e detalhado do tempo, a
partir de uma convenção abstrata controlada por uma engrenagem produtiva e não
mais pelos ciclos naturais do nascer e do por-do-sol e das estações.
Enquanto o tempo produtivo do relógio se impõe com rigor às minúcias, a
concepção de mundo que vai sendo montada pela ciência aumenta cada vez mais o
tempo natural, geológico e biológico, remetendo a origem do mundo e da vida a um
processo evolutivo passível de descrição científica e cada vez mais longínquo no
tempo, abalando significativamente seu entendimento enquanto uma verdade
teológica. Em todas essas dimensões penso ao referir-me a artifício mais adiante, pois
embora apropriando-se da natureza, engendram uma representação de si mesmos
como fatura autônoma (e não apenas em oposição) da natureza, governada por seus
próprios ritmos técnicos. Embora essa cisão seja artificial, assumida amplamente como
foi desde então, nos permite aquilatar a natureza das diferenças na forma de pensar o
mundo e a sensibilidade na cultura erudita.
A cidade é colocada em discussão, sua contradição social, agora evidente no
cotidiano, faz aflorar programas idealistas para a sua reorganização no século 19
(redefinem a imagem da cidade moderna). Muitas estratégias para enfrentar os
desafios das disfunções acarretadas na aglomeração em escala de recursos, poder,
pessoas, insumos, tornam-se necessárias. Trata-se de reconhecer uma ambiguidade, e
não apenas uma contradição, entre o natural e o urbano, que possibilite pensar o
estatuto da arte e da paisagem a partir dessa inflexão notável na história que foi a
emergência da sociedade urbana (uso a expressão-conceito de Lefebvre, 2001).
Uma estratégia para enfrentar esse novo ambiente social foi acreditar nas
possibilidades abertas pela nova técnica como capazes de entender e superar os
problemas surgidos. Nesse caso, estabelecendo discursos que se aproximam em parte
do que Choay (1979) chamou de progressista, acreditando construir o mundo de novo
a partir da técnica, da racionalização das funções, da exaltação de uma nova imagem
que se revelasse moderna, cuja expressão veríamos no modernismo, mas já
entendemos presente nas reformas de Paris e Viena. No diâmetro oposto, a negação
dessas possibilidades leva a uma negação radical dos termos do progresso.
São manifestações de caráter nostálgico, que visam recuperar relações e
harmonias perdidas entre o campo e a cidade, nas relações de trabalho e uso do
espaço, na sociabilidade. Mas não são só nostálgicas, são propositivas do futuro. Trata-
se de criar uma nova harmonia entre ordem social e natureza, recusando-se o
ambiente social, como com os Pré-Rafaelitas ingleses. Nessa direção iam também os
socialistas utópicos, que no urbanismo vão gerar as ilhas de utopia do trabalho e das
relações sociais, autoritárias em muitos de seus aspectos ao idealizar essas relações a
partir de uma ordem rigorosa. De um lado, forneceram, como já observou Benévolo
em As Origens da Urbanística Moderna (1981), muitos dos elementos que informariam
as utopias modernistas, de outro, uma ação não apenas de recusa, mas de criação
diante das ambiências adversas na sociedade urbana, recolocando a questão da
natureza na construção de um ambiente contemporâneo.
Nesse zodíaco de possibilidades, uma outra tendência seria a negação dessas
políticas e técnicas como respostas para as contradições da sociedade, entendendo
que essas contradições são a própria resposta que se busca. Essa postura alimenta
opções políticas radicais, por vezes idealistas, ligadas às mais diversas formas de
ativismo que disputam a organização da classe trabalhadora e vão convergindo no
anarquismo em suas muitas modalidades (KROPOTKIN 2006), no comunismo
(MARX e ENGELS 1980), na organização das Internacionais e por aí em diante.
No entanto, novas formas de enfrentar esses problemas também vão se
colocando nesse círculo de contrastes, para além do progresso, da nostalgia, da
recusa, do ativismo. Uma possibilidade, geralmente de tom reformista, passa a ser a
intervenção nas condições dessa ambiência - não em suas causas - procurando
minimizar suas disfunções, como no sanitarismo e no surgimento de uma nova
legislação urbana e dos direitos. De caráter geralmente técnico, autoritário e
normativo, vem a passo com a impossibilidade de se intervir nessas condições sem
novas instâncias de negociação, formais ou não.
No urbanismo nascente, as propostas sobre a cidade visam agora atingir, cada
vez mais, o contínuo urbanizado mesmo quando por intervenções pontuais. No
entanto, essa tendência à sistematização do conjunto urbano já se colocava
crescentemente nos séculos anteriores, como sugere a passagem para uma cartografia
da cidade que abandona as vistas em perspectiva e adota a representação ortogonal
do território (SANDEVILLE JR. e DERNTL 2007). Na sistematização dessas ideias, a
possibilidade de planejamento se coloca, e tanto no urbanismo quanto no
planejamento, surge a necessidade de se intervir radicalmente nesse tecido sócio-
urbano, seja desenhando-o novo (novas cidades, novos bairros, bairros operários), seja
na requalificação desse urbano na perspectiva de ordenamento desse conjunto. Daí, as
teorias passam a buscar uma totalidade funcional e estética (com simplificações e
idealizações das práticas urbanas em que se sobrepõem), com discussão crescente do
interesse privado e público, movidas por vontade de análise e experimentação e com
uma crença na técnica e na possibilidade de uma ação no conjunto a que a própria
problemática urbana convida.
A evolução da cidade industrial no século 19 e 20 coloca assim em pauta, não
apenas na produção da cidade, mas das ideias sobre a cidade, o controle da localização
dos novos meios de produção e de transportes, da mobilidade da multidão, novos
programas arquitetônicos e materiais, os problemas sanitários, sociais e funcionais, a
especulação da terra, expansão sobre os limites do campo, novos paradigmas: formas
de governo e cooperação, gestão urbana, a noção de sistema; utopias: a noção de
unidade ou totalidade (a cidade, o campo) e de conjunto de elementos claramente
delimitáveis (unidades mínimas) como a família, o bairro (ou a “comunidade”), ou
funcionais - o parque, as áreas de especialização da cidade (os monumentos, a
pobreza, os distritos industriais e assim por diante).
Os grandes movimentos ou tendências artísticas do século 19 têm a ver com
essa realidade urbana. Não se trata de uma relação de causa e efeito entre uma coisa e
outra, ou de determinação da estrutura sobre o cotidiano, e sim de uma ambiência na
qual se desenham opções contraditórias. Não devemos nos esquecer que é nessa
cidade que se operam importantes experimentações estéticas, não restritas às artes, e
que este é o ambiente em que exporiam, por exemplo, os impressionistas sua arte de
ruptura, logo incorporada nas academias.
É na cidade de Paris em obras e em intensa transformação (e não esqueçamos
também as revoltas que tomam o urbano ao longo desse século), das novas funções da
cidade burguesa (como Schorske, 1988, estuda em Viena), que um então pequeno
grupo de artistas levaria a termo a tarefa de observação da natureza e da luz iniciada
no século 15, a que já nos referimos. Levaria a termo e ao limite, limiar de uma nova
possibilidade de representação do mundo. O ponto de inflexão, de contato e passagem
(o portal entre as duas possibilidades) bem pode ser representado pelos
impressionistas. Pintando ao ar livre, esgarçam as regras e convenções longamente
elaboradas nas academias, escolas de belas artes, seus salões e residências artísticas.
Uma vez esgarçado esse campo figurativo, atrai os artistas à dimensão experimental
do seu fazer, a originalidade de sua inquietação (romântica ou realista) diante de um
mundo em rápida transformação, onde indagar novas formas expressivas torna-se não
só uma possibilidade, como também uma premente necessidade.
Poderíamos pensar ainda que formas transgressivas que vão se formando nas
artes, mesmo que sem propostas claras quanto ao urbano, representam um forte
contraponto criativo diante da sociedade industrial, como entre os boêmios. Isso está
de fato presente nos impressionistas, mas há formas artísticas que são também
expressões políticas já nesse período. Nesse caso, Gustavo Courbet (1819-1877) é um
interessante exemplo desse momento, amigo de Charles Baudelaire, Proudhon,
Daumier e de ativistas políticos que partilhavam noite adentro longas discussões. Em
Paris desde 1839, apresentou no Salão de Paris de 1853 a tela Les Bigneuses, que
despertou a indignação de Napoleão III e de Delacroix. Outras obras suas já haviam
despertado polêmicas, hoje talvez difíceis de compreender, como Os Cortadores de
Pedras (1849), na qual os trabalhadores, retratados no ofício, não eram então
considerados um tema digno de pintura. Seu quadro A Origem do Mundo, de 1866, é
um magnífico nu feminino, que ao expor de uma maneira direta e sensual a nudez
vaginal de uma bela mulher, até hoje provoca reações, como aconteceu recentemente
em uma palestra em que sua projeção foi interrompida. Em 1855 a obra O Atelier de
Courbet é recusada no Salão. Sua reação é das mais ponderadas: constrói um pavilhão
perto do Salão, onde apresenta quarenta e quatro quadros sob o título Du Réalisme.
Os artistas não são levados a sério, senão quando viram história ou catálogo. E a partir
desse ponto no século 19, o catálogo é valorizado pela vivência do artista, considerada
gênese de sua originalidade. Seu temperamento, uma vez domesticado pelas
instituições ou pela vida após à morte, é transformado em valor, simbólico e
econômico.

Uma nova paisagem


Como observei no subtítulo anterior, tamanha mudança em curso no ambiente
cotidiano e no universo de ideias sobre esse ambiente, e mesmo sobre a atuação social
e a posição do homem no cosmo, teria que vir a passo com (mais do que causar) uma
mudança radical na sensibilidade (SANDEVILLE JR. 1986, 2006). De certa forma, a
cidade foi colocada decididamente como matéria prima da arte, e não mais a natureza;
não que ela não compareça, mas a gênese, as origens da forma na arte para emprestar
uma expressão clássica de Herbert Read (1981; 1893-1968), entendida como esse
ponto de geração íntimo, agora desloca-se.
Não se trata apenas da plástica. Trata-se de uma experiência estética mais
ampla, existencial. A experiência do artista, como já vinha desde o romantismo, na
boemia, no “realismo”, torna-se um elemento constitutivo da arte e da originalidade
que se espera de seus criadores. Sem adentrar na complexa discussão que essa
condição exige e possibilita, basta observar que a obra de arte confunde-se
crescentemente com a experiência artística mais ampla vivida pelo artista. Está aberto
o caminho para que, a partir do século 20, a cidade compareça na arte não apenas
como imagem, mas como experiência e, em alguns casos, como materialidade.
Este é o caminho que seguiremos a partir daqui neste texto, ao olharmos
alguns trabalhos que tomam a cidade (entendendo aqui a sociedade urbana) como sua
matéria para a criação. Era necessário postular a cidade, para nossa leitura do sensível,
em ambiências culturais muito distintas, para se pensar as representações e
significados na sociedade urbana. Até o século 19, as obras ainda dependem de uma
relação genética com a natureza. Corresponde ao “momento” em que temos o
surgimento da paisagem e sua difusão na sociedade ocidental (SANDEVILLE JR. 2005).
Porém, a partir daí a paisagem se enriquece de uma nova possibilidade
genética. Sua gênese desloca-se da natureza para o artifício (usando o termo menos
como dissimulação, embora também isso, e mais como artefato produzido). É preciso
dizer que a paisagem jamais foi natureza, mas surgiu no encontro entre o que
chamamos de natureza e o que chamamos de cultura. Essa condição não desapareceu
em nosso desejo contemporâneo da paisagem, mas o fator gerador não pode mais ser
encontrado apenas na natureza, e sim também no artifício e no artefato. Porque o
campo da cultura deslocou-se nessa direção. Passamos de uma cultura que tinha
como referência a natureza na sua “imitação”, e sua sublimação na ideia, para um
mundo em que a cultura tem sua referência na transformação da natureza, no
artefato: e a imitação do artefato, de suas propriedades intrínsecas, passa a ser
referência. Sua concretização desloca-se da ideia platônica para o imediato, acha-se
no concreto. Essa afirmação é a postulação de um argumento essencial para a
discussão de nossa sensibilidade e cognição contemporânea.

A rápida mudança da face visível da Terra na sequência da


Revolução Industrial pôs em causa as idealizações que
tendiam a associar as paisagens a fragmentos de uma
natureza intocada, a bela natureza cantada por poetas e
artistas. A experiência mostra, pelo contrário, uma natureza
não só humanizada pelo ver ou pelo representar, mas
efetivamente alterada no aspecto visível em resultado de
constantes transformações, pela crescente extensão das
cidades, a invasão do mundo rural por edificações
semelhantes às citadinas, rompida por estradas percorridas
em meios de transporte de alta velocidade: prevalece a
imagem geral de um mundo dominado pela presença
humana, acompanhada, por sua vez, e cada vez mais, pelas
capacidades transformadoras das máquinas, um mundo de
onde o natural se teria definitivamente retirado. SERRÃO
2011:20.

Na dimensão do sensível, recorremos nesse argumento (não necessariamente


ao princípio defendido pelos autores aqui citados) a um texto de Ronald Hepburn
(2011:231), A Estética Contemporânea e o Desprezo pela Beleza Natural, de 1966, que
consta da indispensável coletânea organizada por Adriana Serrão (2011) citada acima,
em Filosofia da Paisagem. Inicia Hepburn observando que “Abra-se uma obra de
estética do século XVIII e será provável que contenha um tratamento substancial do
belo, do sublime e do pitoresco naturais. O tratamento da arte pode ser secundário e
derivado, mas não é seu interesse principal. (...) Nos nossos dias, porém, os textos de
estética atendem quase em exclusivo às artes e só muito raramente, ou então apenas
de uma maneira superficial, à beleza natural”. É tentador ler essa assertiva no
argumento que estamos propondo, de deslocamento da cultura da natureza para o
seu artifício, para o artefato. É como entendo o que esse autor afirma logo a seguir:

O microscópio e o telescópio acrescentaram imenso aos


nossos dados perceptivos; as formas comuns da paisagem,
comumente interpretadas, aparecem apenas como mais
uma seleção de diferentes e incontáveis escalas. Não é
surpreendente que (com algumas exceções) os próprios
artistas se tenham virado da imitação e da representação
para a criação genuína de novos objectos que merecem ser
contemplados por direito próprio. Se são ou não
expressivos de algo mais do que puras relações formais,
esse “algo” tende a ser não a paisagem alheia e exterior, mas
a paisagem interior da psique humana. HEPBURN
(2011:232).

O artefato a que nos referimos é tido então (na estética) como objeto estético
“par excellence” e como correto foco do estudo, conclui a seguir Hepburn. Não
poderíamos contemplar obras como Impressão. Domingo (1910, de Wassily Kandinsky,
1866-1944) e Impressão 5. Parque (também de Kandinsky, provavelmente do mesmo
ano), sem essa perspectiva de contemplação do objeto pictórico por seu “direito
próprio”. Nem seria possível essas Impressões de Kandinsky sem o lirismo do sol
nascente (Impression, Soleil Levant de 1874) de Claude Monet (1840-1926) , que
exposta com outros artistas na primeira exposição do grupo, lhes valeu a difusão do
nome de impressionistas. Considerada audaciosa e confusa, quando a quase uma
década anunciavam-se essas experimentações (sem considerar o quanto já se
caminhou desde o belíssimo trabalho de Joseph Williams Turner, 1775-1851, Areais de
Calais de 1830), a exposição de 1874 foi a primeira de uma série de exposições que se
seguiram por cerca de uma década, gerando desconfortos na época. Pensada nessa
perspectiva, Impressão de Kandinsky torna-se ainda mais bela e plena de significados,
com suas formas-cores e linhas que levemente sugerem as figuras a que se referem e o
título explicita, na medida em que ao deixar de velar a natureza em objetos como dizia
o artista, captura para dentro da lógica de construção do objeto as qualidades que o
produzem, tal como observamos acima com Hepburn.
A dificuldade está que, no caso da paisagem, a natureza continua sendo um
fator gerador de sua possibilidade estética, mesmo que quando pela negação do
urbano. Ainda que em sua origem a paisagem seja devedora de uma experiência
estética com a natureza, não só este não é o seu único termo, como não se sustenta
apenas nessa condição mais recentemente; embora persista essa condição, não se
esgota nela. Também não se poderia usar o termo de natureza como oposição ao
trabalho, à mediação intelectual, pois esse componente está embrenhado na gênese
da paisagem. A paisagem não é atribuída somente à ideia de natureza nem reduzida à
sua interpretação estética, mas ampliada ao contexto social e, portanto, cultural, que
permite colocar em questão sua produção, valores, estratégias, modos de ação. Desta
forma, nesta perspectiva, o estudo da paisagem ultrapassa os aspectos morfológicos e
perceptíveis, ainda que os considere. Sendo vivenciada em uma partilha contraditória,
é transformada pelas pessoas que as habitam, gerando nesse processo tanto
estratégias quanto representações, estabelecendo um campo complexo de
significados.
Portanto, a paisagem não é apenas algo que se contempla, que se vê (ou se
representa) de longe e de fora, mas algo que se vivencia, e é essa vida que forma e
transforma uma paisagem. A paisagem, ainda sendo território, base biofísica, é
entendida como uma construção social e cultural que é animada pelas interações de
indivíduos entre si e com seus locais, num partilhar de experiências que é tenso e
contraditório.

Paisagens são experiências de vida. Experiências


partilhadas. Ignorar a intensidade, a tensão e a riqueza, a
espontaneidade cheia de intencionalidades e contraditória
desse partilhar experiências que constitui uma paisagem, é
caminhar por elas de "olhos bem fechados", é atravessá-las
como um burocrata, que ao focar os olhos nada tem para ver
senão memorandos, hierarquias, ordens e as técnicas para
sua catalogação e arquivo. Estudar paisagens, ao contrário, é
abrir-se para uma dimensão estética (um ampliar da
sensibilidade), uma dimensão poética (um ampliar dos
significados), uma dimensão técnica (no sentido de uma
técnica concebida sob um juízo social coletivo), uma
dimensão crítica que fundamenta a mudança numa
perspectiva humana, no que esta palavra convida a uma
ação ética e solidária. (SANDEVILLE JR., 2004)

O artifício contemporâneo da paisagem


Ora, se a natureza está na gênese da paisagem no ocidente (lembrando
novamente a expressão de Alain Roger), as transformações indicadas não permitem
mais pensar que, após o século 19, a sua gênese possa ainda permanecer a mesma
(gênese não da morfologia geográfica, mas num sentido mais ontológico). Foi a
natureza, não é mais. E a paisagem não nasce na pintura, nem da pintura. Foi a
natureza como condição estética do homem no mundo, este o sentido essencial da
paisagem: condição estética (estese) do homem no mundo. E se a natureza foi um
fator gerador da noção de paisagem (e se esse é seu artifício inicial), e se a natureza
ainda é uma condição poética fundante dessa noção, sua gênese contemporânea não
pode mais residir apenas aí. Não só o mundo mudou, mas a natureza mudou. E isso
porque a cidade (a sociedade urbana) é agora um fator essencial na gênese da
percepção do mundo e da natureza, pelas razões que temos indicado desde o subtítulo
uma nova tradição: natureza e artifício.
A expressão estética dessa nova paisagem é urbana (no sentido da sociedade
urbana). E urbana, também no sentido da experiência da cidade, para a arte, mesmo
se descontarmos o caráter programático e violento das vanguardas. Ainda que já
tenhamos considerado alguns artistas do modernismo, como Macke e Kandisnky, a
paisagem e a arte operam agora um deslocamento adicional, do figurativo para a
experiência. Podemos começar com o Futurismo italiano, ainda que com o dissabor de
ter, na beleza da linguagem e da percepção no trecho reproduzido abaixo, a tristeza
autoritária que já ia embutida aí no caso de Filippo Marinetti (1876-1944):

Havíamos velado a noite inteira -meu amigo e eu- sob


lâmpadas de mesquita com cúpulas de latão perfurado,
estreladas como nossas almas, porque como estas
irradiadas pelo fulgor fechado de um coração elétrico.
Tínhamos conculcado opulentos tapetes orientais nossa
acídia atávica, discutindo diante dos limites extremos da
lógica e enegrecendo muito o papel com escritos frenéticos.
Um orgulho imenso intumescia nossos peitos, pois nós nos
sentíamos os únicos, naquela hora, despertos e eretos, como
faróis soberbos ou como sentinelas avançadas, diante do
exército de estrelas inimigas, que olhavam furtivas de seus
acampamentos celestes. Sós com os foguistas que se agitam
diante dos fornos infernais dos grandes navios, sós com os
negros fantasmas que remexem nas barrigas
incandescentes das locomotivas atiradas a uma louca
corrida, sós com os bêbados gesticulantes, com um certo
bater de asas ao longo dos muros da cidade. Sobressaltamo-
nos, de repente, ao ouvir o rumor formidável dos enormes
bondes de dois andares, que passam chocalhando,
resplandecentes de luzes multicores, como as aldeias em
festa que o Pó, transbordando, abala e arranca
inesperadamente, para arrastá-las até o mar, sobre cascatas
e entre redemoinhos de um dilúvio.
(...)
- Vamos, disse eu; vamos amigos! Partamos! Finalmente a
mitologia e o ideal místico estão superados. Nós estamos
prestes a assistir ao nascimento do Centauro e logo veremos
voar os primeiros Anjos! Será preciso sacudir as portas da
vida para experimentar seus gozos e ferrolhos!... Partamos!
Eis, sobre a terra, a primeiríssima aurora! Não há que iguale
o resplendor da espada vermelha do sol que esgrima pela
primeira vez nas nossas trevas milenares!...
(Filippo Tommaso Marinetti, Fundação e Manifesto
Futurista, publicado em Le Figaro, 20 de fevereiro de 1909).

Essa estética movida por uma nova experiência urbana tem que se situar em
um mundo em desagregação. Desagregação que é produzida pelos aspectos mais
“afirmativos” da especialização, dividindo a compreensão do mundo em certezas
lógicas somente acessíveis pela técnica e pela ciência, e que é produzida por
“negações” como a ausência de Deus, a moral instável e mais denunciada em suas
contradições, um tempo cada vez mais rápido que impede as continuidades,
engendrando uma experiência do isolamento. Trabalhos como Musas Inquietantes
(1916) e Heitor e Andrômaca de Giorgio De Chirico (1888 -1978), povoados de
inquietação e sonho, mas de um esvaziamento gritante da identidade transformando
seres e paisagens em objetos, ou Despertador (1919, ilustração na revista Dada), de
Francis Picabia (1879-1953), vão reduzindo a figura humana e o desejo à máquina. São
expressão de uma agonia, e não de uma esperança, de um esvaziamento e de
inconformismo, e não de progresso, como a máquina em outros contextos é invocada.
Exemplo notável desse desconforto, embora bem mais afirmativo no pacto social que
advoga por meio de suas paisagens sombrias, é o filme Metrópolis (1927), de Fritz Lang
(1890-1976). Uma cidade atormentada e visionária, cenário de um submundo do
trabalho sujeitado pela injustiça e pela indiferença de Moloch, o deus cruel e
impessoal do Capital. Marcado assim o enredo pela oposição capital-trabalho, o
conflito é resolvido por uma série de transgressões - o herói e a heroína, de classes
sociais e mundos distintos, encontram-se no início do filme em um jardim, privilégio
dos que vivem na e da aparência desse mundo da superfície - até que através de
desencontros causados por tensões e ambições diversas, os conflitos se resolvem no
casamento dos jovens apaixonados, ou no enlace conciliatório do capital e do trabalho.
A ruptura do sensível e da ordem do mundo no expressionismo e no dada, por
exemplo, vai além do vocabulário formal e da deformação dos sentidos e da
expressão. Ou, por outro lado, da busca de novas possibilidades construtivas nas
perspectivas abertas pela produção industrial, cujo exemplo mais interessante vai
estar no percurso da Bauhaus em Weimer (1919-1926) e Dessau (1926-1933).
A ruptura atinge o próprio sentido da arte, prenunciado no manifesto Futurista
já citado, e no Nu Descendo a Escada (1912) de Marcel Duchamp (1887-1968). Essa
obra pode ficar fácil para nós, já educados com as inúmeras experimentações agônicas
da arte moderna. No entanto, em 1912, vejo na obra mais do que o problema da
representação do movimento, colocado em questão pela fotografia, pelo cubismo,
pelo futurismo e pelo cinema. O nu de Duchamp, tema clássico da arte europeia, só se
realiza através de seu título. A legenda tem aqui um sentido que entendo integrar a
obra, não como justaposição, mas como sua essência ativa, inserindo um elemento de
ambiguidade, ironia e familiaridade, uma certa irreverência que atinge, por esse
recurso, o sentido mesmo de obra de arte.
A incorporação do objeto e do texto na pintura, característica desde a primeira
década do século 20, vem a passo da incorporação da pintura na construção de
experiências mais amplas, como nos balés e nas performances. Obra e vida do artista
entranham-se cada vez mais. As fronteiras da arte diluem-se, e a própria experiência e
processo criativo tornam-se arte, potencialmente efêmera. A arte propõe então
projetos ambientais, articulando a ação e o sensível na construção crítica de
significados, que ajudam a vivenciar a cidade ampliando a experiência, afirmando
crenças, ou camuflando os limites tênues e os vínculos que elege em seu tempo. É
assim altamente significativa na apreensão e discussão dos projetos de cidade e da
sociabilidade em que é gestada.
Experimentações novas são possíveis. No tensionamento e questionamento
dos limites, a própria experiência é colocada como um jogo aleatório e sem razão, e
convida-se a percursos urbanos como formas de conhecimento e diálogo. Experiência
que já não é com a natureza, como no Caminhando ou Andar a Pé (Walking, de 1862)
de Henry David Thoureau (1817-1862), mas com a cidade, como o fazem os dadaístas,
os surrealistas e depois os situacionistas e beats, que levam então essa experiência a
uma dimensão política no caso dos primeiros, e nos segundos a uma dimensão
existencial que produz a renovação da linguagem pela condição liminar nas fronteiras
da sociedade conservadora estadunidense dos anos 1940 e 1950.

Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela


loucura, morrendo de fome, histéricos, nus,
arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em
busca de uma dose violenta de qualquer coisa,
hipsters com cabeça de anjo ansiando pelo antigo contato
celestial com o dínamo estrelado na maquinaria da noite,
que pobres, esfarrapados e olheiras fundas, viajaram
fumando sentados na sobrenatural escuridão dos
miseráveis apartamentos sem água quente, flutuando sobre
os tetos das cidades contemplando jazz,
que desnudaram seus cérebros ao céu sob o Elevado e viram
anjos maometanos cambaleando iluminados nos telhados
das casas de cômodos,
que passaram por universidades com olhos frios e radiantes
alucinando Arkansas e tragédias à luz de Blake entre os
estudiosos da guerra,
que foram expulsos das universidades por serem loucos &
publicarem odes obscenas nas janelas do crânio,
que se refugiaram em quartos de paredes de pintura
descascada em roupa de baixo queimando seu dinheiro em
cestos de papel, escutando o Terror através da parede,
que foram detidos em suas barbas públicas voltando por
Laredo com um caminhão de marijuana para Nova York,
que comeram fogo em hotéis mal pintados ou beberam
terebentina em Paradise Alley, morreram ou flagelaram
seus torsos noite após noite
com sonhos, com drogas, com pesadelos na vigília, álcool e
caralhos e intermináveis orgias
(...)
Trecho inicial de Uivo para Carl Solomon (1955), de Allen
Guinsberg (1926-1997).

Um trabalho bastante interessante, tanto pela linguagem, quanto pelo modo


de sua produção, quanto também pela justaposição de significados na paisagem e na
experiência, é o filme produzido em 1929 por Man Ray (1890-1976), Les Mystères du
Château de Dé. Dois viajantes vão de Paris à Vila Noailles, em Hyères. De certo modo, o
filme expõe uma cidade sem tempo, nem finalidade, e transita entre as linguagens do
cinema, do surrealismo, da fotografia, da arquitetura e do paisagismo, do esporte,
atravessando a paisagem tradicional.
Realiza também uma ambiguidade, ao eleger como castelo a arquitetura
moderna. Ambiguidade porque se é de ruptura a experiência que um tal ambiente
sugere, se considerado em suas práticas tal como desejavam seus ricos proprietários,
se não escapa dos discursos mais positivistas da velocidade, da máquina e dos esportes
como signo de modernidade. Mas é povoado de fantasmagorias dos objetos, como nas
fotos de Man Ray, e de sombras de uma noite de brincadeiras que desaparece. O filme
realiza um curioso casamento entre a negatividade do sentido expressa no jogo de
dados, que define por uma probabilística, uma possibilidade aleatória, sem razão, e a
positividade do progresso.
A Vila em si é um importante monumento, que ficou subestimado na
historiografia do movimento moderno, por seu arquiteto ficar um pouco à margem da
ortodoxia de Le Corbusier, Gropius, Mies e outros expoentes. Na verdade, o arquiteto,
Robert Mallet-Stevens (1886-1945), tem importantes trabalhos, transitando entre a
criação de cenários de filmes dos anos 1920, a arquitetura e jardins de vanguarda,
como o Jardin de l´Habitation Moderne, definido por geometrias e esculturas que lhe
dão um tom fortemente anti-naturalista, realizado na Exposition Internationale des
Arts Décoratifs em 1925, em Paris.
A Vila forma um impressionante conjunto arquitetônico e paisagístico, que
contou no mobiliário, nos vitrais, esculturas e jardins com uma impressionante lista de
artistas modernistas da época (Picabia, Severini, Brancusi, Lipchitz, van Doesburg, Paul
Véra, Guévrékian, Braque e outros). O filme de Man Ray ajuda em alguma medida para
desvendar não só o conjunto, mas sua inserção que antagoniza com a paisagem
tradicional, ao contrário dos manuais de história da arquitetura que isolam seus
objetos da paisagem em que existem. Aqui já estaria uma primeira contribuição do
filme.
Os jardins triangulares da Vila, de Gabriel Guévrékian, estão entre as
experimentações mais arrojadas nesse campo na Europa, naquele momento. O
paisagismo moderno europeu ressentiu-se das condições econômicas e políticas que
se agravaram ao longo da década de 1920, e foi pouco explorado na historiografia até
muito recentemente, não despertando tanta atenção como as experiências
americanas, em especial a estadunidense e a brasileira (a nossa muito apensa a uma
estética da natureza, que persiste em nosso modernismo, mas que não é possível
discutir neste trabalho). Sua experimentação de linguagem, a partir do cubismo e do
expressionismo, gerou uma forma de trabalhos depois confundidos com a
denominação genérica de art déco, favorecendo sua desvalorização em função dos
rumos tomados nas décadas seguintes pela historiografia da arquitetura e do
paisagismo. O jardim de Guévrékian na Exposition de 1925, Jardin d´Eau et Lumière,
mostra essa linha de experimentação que busca o afastamento, nos trabalhos das
vanguardas é claro, das representações do natural no jardim.
A Vila foi construída para Charles de Noailles e Marie-Laure de Noailles. Era
lugar de festas, celebrações, reuniões. Essa convergência das vanguardas é de fato um
dado muito importante da experiência estética que vão construindo. Participam do
filme, além do próprio Man Ray como um dos viajantes, os proprietários Charles de
Noailles, Marie-Laure de Noailles, Alice de Montgomery, Eveline Orlowska, Bernard
Deshoulières, Marcel Raval, Lily Pastré, Etienne de Beaumont, Henri d'Ursel, Jacques-
André Boiffard. A relevância do campo informal das relações na construção do
processo criativo mostra que ele se estende para muito além do atelier do artista, tal
como Courbet, citado acima, em seus encontros boêmios. Essa condição,
frequentemente marginal, vamos ter também nas primeiras vanguardas do século 20 e
são fundamentais inclusive à formação dos modernistas brasileiros, introduzidos
nesses círculos, como demonstram as cartas de Tarsila do Amaral.
A polarização exercida pelo casal Noailles vai além do mecenato, é parte da
construção dessa experiência coletiva que deslocou das instituições para os cafés,
residências e atelies o processo de formação, sem a qual não haveriam as vanguardas.
Essa condição pode ser percebida na dedicatória do filme:

Para Viscondessa de Noailles.


Eu dedico essas imagens que não podem revelar jamais toda
a sua gentileza e charme.
Man Ray
e continua:
Como dois viajantes chegaram a Saint Bernard, o que eles
viram nas ruínas de um velho castelo, acima do qual se eleva
um castelo de nossa época. Os viajantes: MAN RAY, J.-A.
Boiffard.

Para os objetivos deste artigo, já é suficiente a exposição desse modo de vida


moderno, de novos princípios para valoração e para a sociabilidade, da presença da
técnica e da velocidade na experiência cotidiana, expectativas que transparecem para
além do enredo do filme. Tanto o filme, quanto as práticas dessas vanguardas,
representam cortes que se pretendem com as formas sociais, artísticas e ambientais
tradicionais. Nicolau Sevcenko, em um trabalho magnificamente intitulado Orfeu
Extático na Metrópole (1992, esse jogo entre êxtase e movimento, no contraponto
com o estático, é uma bela apresentação da poética do trabalho) mostra essa condição
na modernidade pulsante de São Paulo nas primeiras décadas do século passado.
Modernidade que está muito além da experiência e dos antagonismos
modernistas, como o demonstra a comparação que poderíamos estabelecer entre
duas arquiteturas representativas da década de 1920 em São Paulo. Uma, a casa-
manifesto da Rua Santa Cruz (1927), construída pelo casal Warchavchik na Vila
Mariana, e que guarda em muitos aspectos ricos paralelismos com a Vila Noailles.
Outro, o edifício Martinelli, construído ao longo de toda essa década, despertando
polêmicas de outro tipo, sobre a capacidade técnica de sua realização, pelo arrojo que
representava naquele momento. O ecletismo não é oposto à modernidade, embora o
seja ao modernismo; é uma manifestação da vida moderna e urbana da segunda
metade do século 19 e início do 20. Embora considerado eclético, o Martinelli é, sob
todos os pontos de vista, um indicativo dessa modernidade paulistana muito mais
forte do que a “vila” da rua Santa Cruz. Inesquecíveis são as imagens do Zepelim
manobrando ao seu redor, e a inauguração de um anúncio luminoso em seu último
andar, acionado da Itália: são indicativos de como esse edifício integra essa
modernidade.
Retornando ao filme Man Ray, vale destacar o início e sua sequência. Um farol
de carro aproxima-se e a mão de dois manequins joga um dado (lembramos aqui De
Chirico?), com a frase, fortíssima: Um jogo de dados jamais abolirá o acaso. Essa cena
de abertura, muito valorizada pela música que depois se agregou ao filme por Jacques
Guillot, é coerente com o trabalho fotográfico de Man Ray, que ilumina de modo
extraordinário belos corpos femininos e objetos arrancados do seu significado. A cena
seguinte mostra o um velho castelo em uma colina, tendo logo abaixo o destino
escolhido. Destino escolhido, essa frase não vem ao acaso aqui. Próxima cena: sob a
legenda “longe dali, em Paris”, dois personagens (um deles Man Ray) sem rosto estão
em um bar, e jogam dados. Os dados devem decidir se irão ou não. Mas onde ir?
O carro em movimento, o desconhecido, o acaso já tem seu destino traçado. A
poética das imagens muda (a música, mais uma vez muito bem colocada, estabelece
esse novo marco, talvez ainda mais do que a imagem silenciosa). A toda velocidade
atravessam vales, montes, vilas, estradas da França. Há uma particular atração por
objetos e vistas da paisagem (campestre ou citadina, também quase artefato natural
marcado pela velocidade), mas não por pessoas. Paisagens e objetos são, como os
manequins e os mascarados, testemunhas do trabalho esvaziadas de pessoalidade.
O caminho os leva, como o destino, a um conjunto novo de objetos, marcados
por sua materialidade e pela imaginação a que convidam em contraste com aquele
tempo da história atravessado em alta velocidade. A Vila de Noailles, vazia, se
apresenta como paisagem; acaso e destino estabelecem o jogo entre tempo e
ausência, entre presente e duração, e as coisas inanimadas tornam-se, no primeiro
momento, personagens, animadas dessa alma ausente. Ninguém, ninguém, embora
todos os indícios da presença ali estejam. Ninguém, NINGUÉM! É então que pela
primeira vez essa questão, essa questão humana, repercute nesses aposentos: onde
estamos nós? Ironia. São espaços e obras habitadas pela consciência e a sensibilidade
humana, pela vaidade, vanidade e força de seu destino transitório. Vamos sair daqui e
sentir a noite.
Segue-se uma tela escura até o amanhecer, quando numa situação insólita, em
um canto esquecido, quatro personagens deitados com rostos indistinguíveis brincam
com grandes dados. Um jogo de dados jamais abolirá o acaso. Largando seus roupões,
com roupas de ginástica, inauguram uma nova dinâmica no filme, onde as pessoas
tornam-se indispensáveis ao argumento visual. Uma alegria pueril muito bem
trabalhada como fotografia por Man Ray traz na ocupação do castelo, e uma finalidade
sem finalidade de certo modo preenche aquele vazio, ampliando-lhe e alterando-lhe
os sentidos, cedendo a uma irreverência do prazer das imagens, luzes, sombras,
objetos, corpos. Os moradores (um casal que chega, talvez os Noilles) após
percorrerem o espaço vazio da Vila tornam-se esculturas de formas clássicas na noite
do jardim. Uma das mais belas cenas do filme desde os momentos iniciais. Os dados
decidem o acaso, a ausência e a presença. São ilusões que o tempo leva.

Existem fantasmas dos atos? Existem fantasmas de nossos


atos passados? Não deixam os minutos vividos traços
tangíveis no ar e na terra? Que sono! Que sol!, minha vida
será submetida às tuas leis. E eu fecharei os olhos quando
você desaparecer. Bela estrela do amor, bela estrela da
intoxicação...

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Mesa 3: Narrativa e oralidade
Richard Bauman (Indiana University)
Esther Jean Langdon (UFSC)
Francirosy Ferreira (FFCLRP/USP)
Country Communicability as Performed on Early Commercial Sound
Recordings, Richard Bauman (Indiana University)

Introduction
The enduring capacity of rural life to serve as a semiotic resource for the
construction, exploration, and ideologization of radical social transformation is well
and abundantly documented. Country people, as represented by philosophers, social
theorists, and artists have long stood as the domestic Other within contemporary
society, providing embodied representations of what modern people are not—or, in
some inflections, are no longer.
Several years ago, in an extended exploration of language ideologies in the
symbolic construction of modernity, Charles Briggs and I devoted considerable
attention to the ways that the discursive forms and practices of country people—what
we might call in terms of our current work “country communicability”—played a
foundational role in the formation of modern ideologies of language and the shaping
of social inequality in modern life. In that work, Voices of Modernity, we concentrated
on the ideas of learned intellectuals—philosophers, philologists, historians,
anthropologists—who had a formative influence on contemporary social, cultural, and
linguistic theory. Missing from that work, however, is the consideration of more
vernacular inflections of the symbolic construction of modernity. How did
representations of country communicability appear in popular culture, vernacular
complements to the elite formulations that we and others have explored? In order to
gain sway in society more generally, complementary articulations of communicative
ideologies must circulate in other sectors of society that reach a broader audience
than elite formulations can achieve. That’s the problem I want to explore in this paper.
More specifically, I propose to explore the vernacular representation of country
communicability not as a general problem—at least not until the concluding section of
the paper—but in terms of a particular historical case study, keyed closely to time and
place, but rich in larger implications—substantive, methodological, and theoretical. I
focus on Charles Ross Taggart, a popular platform performer and media figure of the
early decades of the 20th century. In his public personae of the Man from Vermont and
the Old Country Fiddler, Taggart toured widely and made a series of commercial sound
recordings. He was a popular exemplar of “rube” humor that caricatured country
people in the American popular culture of the period, and his performances afford us
an illuminating glimpse of country communicability as a symbolic and ideological
construction in the 19-teens and ‘twenties, a formative period in the history of
American media and a transformative period in American social, cultural, and
economic history more generally. Taggart’s enactment of the rural New Englander is
multifaceted and complex, as I hope to reveal in a fuller study. Communicability,
however, makes up an important, even central part of the country persona that
Taggart presents and the milieux in which he operates, and elucidation of this
dimension of country life in one of its performed guises provides a productive vantage
point on the larger picture.

Communicability
As proposed by Charles Briggs, “communicability refers to socially situated
constructions of communicative processes—ways in which people imagine the
production, circulation, and reception of discourse.” That is to say, communicability is
first of all a cultural and ideological construction, a way of conceiving, interpreting, and
evaluating how the social world is communicatively organized. Importantly, the notion
of communicability demands attention to the contexts within which systems of
communicability are articulated and the sites and trajectories of discursive production,
reception, and circulation that map how communicative processes are spatially and
temporally distributed and organized, what Briggs calls “communicable cartographies.”
Briggs and I have suggested in a number of works that performance, which
tends to be among the most reflexively heightened, memorable, repeatable,
circulable, and hence shareable sectors of any communicative economy, represents a
highly productive domain for the investigation of communicability. Performance forms
and practices—folksongs, folktales, epics, rituals, calendar customs, festivals—figure
prominently in the learned works that Briggs and I examine in Voices of Modernity:
collected, described, analyzed, located in historical time and socio-geographical space,
linked to social formations and populations. The vernacular constructions of
communicability I will treat in this paper, by contrast, are constituted by performance:
symbolically encoded, enacted, placed on display before an audience. The
performances I will analyze are constructions of communicability in two principal
senses. First, the Old Country Fiddler, as Taggart enacts him, is the embodiment of
country communicability. He is, in Asif Agha’s phrase, a characterological figure, a
stereotypical exemplar of the kind of person linked to particular communicative
registers, that is, repertoires of co-occurrent linguistic and discursive features that are
associated with particular social practices, the persons who engage in those practices,
and the speech events within which they do so.
Second, the characterological figure that Taggart enacts is himself a performer,
a storyteller who creates narrative representations of the social world in which country
communicability has its characteristic place. The dramatis personae, communicative
forms and practices, situational contexts, social roles, structures of participation,
systems of affect, and the like that he portrays in his narrative accounts of life in rural
Vermont and other spaces through which he moves, make up a composite picture of
country communicability as a cultural and ideological system in a vernacular key. In his
performances, the Old Country Fiddler embodies, recounts, and experiences country
communicability, mediated through sound recordings, the first of the acoustic mass
media, which served as important vehicles for the expression and dissemination of
country communicability.
Time will not allow me to offer a fully comprehensive survey of country
communicability in Taggart’s recorded performance. I will concentrate instead on two
related elements that correspond with concerns that Briggs and I discovered in the
works we examined in Voices of Modernity. One has to do with the contextualization
of country communicability in a temporal framework of epochal transition from
tradition to modernity. Country ways are traditionalized, aligned to a vanishing past,
and counterposed to a contrastive communicable formation that is characteristically
modern, pointing toward an emergent future. Second, the advent of new
communicative technologies—in Voices of Modernity it is writing and literacy—assume
a significant role in marking—indeed, effecting—the epochal shift. Taggart’s
performances are surprisingly sophisticated in their representation of these culture-
historical processes.
Charles Ross Taggart
Charles Ross Taggart was born in Washington, DC, in 1871, but grew up on his
grandparents’ farm in Vermont. He made his platform debut at the local town hall in
the Fall of 1895 and went on to sign with a series of regional talent agencies for touring
performers, eventually becoming affiliated for more than 20 years with the largest and
most prominent such bureau in the country. Taggart continued to tour until the effects
of a stroke compelled him to retire from active performance in 1938.
Taggart constructed his platform performances as the Man from Vermont out
of a variety of elements: fiddle tunes, piano pieces, novelty fiddling, ventriloquism,
recitations, the enactment of a variety of rural characters, and humorous narrative
monologues about the people of Pineville, the fictional Vermont community that was
the cartographic anchoring point of his performance personae. It is fair to say, though,
that his storytelling came to the fore in his performances. “He is reported as being
especially clever in his quaint stories of the ‘old town folks’ of New England,” reads one
publicity announcement. A review of one of his performances observes, “Probably
the well-told tales of the old man from Pineville pleased the audience most.” Taggart’s
skill at storytelling was well adapted to the technology of early sound recording, and
from 1914 to 1924, he recorded a number of his Old Country Fiddler routines for major
record companies.
It is difficult to discover how early commercial recordings were received by
members of the consuming audience. There is a suggestive passage in the Victor
promotional copy advertising Taggart’s second recording, issued in June of 1915:
The two Taggart selections issued in March made a real hit with the Victor
public, as many comments show. Says a Vermont customer: “We hope you will decide
to give us some more of those records by Charles Ross Taggart. He knows just how to
picture the old-time Vermont Yankee without overdoing it, and we have greatly
enjoyed his record. I am a Vermont Yankee myself, and as we realize that this old type
is rapidly passing away, it seems to me that the time may come when these records
will have a historic value.”
Whether this is a genuine comment made by a true Victor customer or a
promotional fiction authored by a company publicist, it suggests one possible
interpretive positioning of Taggart’s Man from Vermont. As enacted by Taggart, the
Man from Vermont is an “old-time Vermont Yankee,” an “old type,” representing a
fading past that is “rapidly passing away.” The putative customer explicitly historicizes
and traditionalizes Taggart’s character, but with a touch of nostalgic regret that this
social relic of a bygone era is marked for extinction. This interpretive and ideological
construction is certainly consistent with one widely current public image of Vermont in
the late 19th and early 20th centuries as stuck in time. A 1927 National Geographic
portrait of Vermont casts it as “one of the most truly American of our States. Its people
have hardly changed in their essential elements in a century.”

Dialect
One of the first things that strikes the listener on hearing Taggart’s recordings is
his conspicuous dialect, which marks him unmistakably as a New Englander. In their
promotional materials for Taggart’s recordings, the record companies emphasized the
authenticity of his regional dialect, grounded in his true New England origins. “Mr.
Taggart is a real ‘Yankee,’” a Victor promotional flier proclaims, “and doesn’t have to
‘put on’ any so-called dialects.” I won’t go into detail here about Taggart’s dialect,
except to say that it is indeed consistent with that of the rural area in which he grew
up. It is notable, though, that many of Taggart’s dialect features, especially lexical and
grammatical forms, are described by informants for the Linguistic Atlas of New
England as “older” or “old-fashioned.” The fieldwork for the atlas was carried out
between September, 1931 and October, 1933, only a decade and a half or so after
Taggart’s earliest recordings, which suggests a deliberate effort on his part to select for
dialect forms that mark his speech as old-timey and quaint. The effect is reinforced by
the high degree of contraction and elision that characterizes Taggart’s speech as
casual, vernacular, and non-standard. All in all, Taggart’s speech constitutes a
significant element of his performance personae. It marks him as an old-fashioned,
rural New Englander, his casual, vernacular speech perfectly consistent with the rural
character his represents.

City folks in the country


The image of country communicability that emerges from Taggart’s recorded
performances is not one of an isolated, self-contained rural domain. The rural
community of Pineville and its environs, in which he set his performances, is always
portrayed in dialogue with an outside world, usually an urban center but at times a
more generalized world as represented by books and other media that come into
Pineville from their distant sources of production.
Systems of communicability are always multiple, open to interaction with other
formations in the communicative environment. “The Old Country Fiddler and The Book
Agent,” for example, opens with one of the most widely used and familiar tropes in the
American expressive repertoire, the encounter between the country bumpkin (or so he
appears) fiddling away on his front porch, and the city slicker, out of his element, who
appears at his door. Our particular visitor, in this routine, is a book salesman, “with a
four-pound volume of literature under his arm” and an altogether unprepossessing
appearance, notwithstanding his store-bought urban outfit. Here is the opening
episode of the Old Country Fiddler’s account [excerpt 1].
The book peddler was an important cultural agent in American frontier and
rural life, a stranger, indexing an urban center of book production, who appeared
unpredictably in the community and opened up to relatively isolated rural people a
small window on the outside world. By the middle of the 19 th century, with the
expansion and improvement of distribution networks in the United States, the role and
importance of the traveling bookseller had declined significantly, making our book
agent an index of a largely bygone period, a relic of an earlier time.
But here he is, true to type and full of brash self-assurance, greeting the Old
Country Fiddler as “Ruben,” the quintessential stock appellation (together with its
abbreviated nickname form, “Rube”) for the bumpkin in American popular culture, and
offering him a book on raising calves. The Old Country Fiddler is affronted, whether by
the patronizing term of address or the young city slicker’s presumption in trying to
instruct an older rural man in animal husbandry, or both. His witty rejoinder, “if you
got a book on raising calves, you better make a present of it to your parents. I think it
would be profitable reading for them,” goes right over the bookman’s head: “’it
weren’t no use. He couldn’t see the point.” The bookman comes off second best,
though he doesn’t have the sense to realize it. Rural wit and indirection enounter a
conspicuous lack of uptake on the part of the cocky stranger. Here, then, is a contrast
between urban and rural communicative styles made manifest: urban disrespect and
obtuseness versus country wit and indirection. Moreover, witty rejoinders like the
Fiddler’s response to the book agent, play a further role in the communicative
economy of the community. They are reportable, good resources for recasting as
anecdotes. They make a good story, as witness the very performance before us.
Uninterested in the book, the Fiddler sends the young book agent on his way.
When the bookman calls next on old Widow Southby, he encounters another
characteristic feature of rural communicability: the effort to assimilate one’s
interlocutors to the network of locally known individuals, a work of social
contextualization that is discursively accomplished: “when the Widow found his name
was Bunker, she asked him if he was an relation to old cross-eyed Pete Bunker, used to
live over on Goose Meadow.” The Widow Southby engages here in the quintessentially
rural strategy of linking the stranger at her door to the familiar people and places of
her own community. The book agent’s surname, Bunker, provides a potential link by
kinship to a familiar individual, identifiable not only by name, but also by generation
(old), by residence (Goose Meadow), and by a distinctive feature of personal
appearance (cross-eyed). The Bunker link opens up a broader connection to “the
whole Bunker family” and its history, consisting, presumably, of narratives about
various family members, their genealogies and alliances. The Widow’s talk, then, is
locally contextualizing. It is deeply grounded in the social networks, temporalities, and
cartographies of Pineville and its environs. She is one of those senior women,
recognizable to all rural and small town people, who serve as custodians and
recounters of community traditions.
If the Widow’s communicative efforts are interactional, locally grounded, and
highly contextualized, what the book agent has to offer is decidedly not. While the
book agent first offers his book to the Old Country Fiddler as a treatise on raising
calves, we soon learn that its full title is Carter’s Complete and Comprehensive
Compendium of Indispensable Information. The book is comprehensive indeed.
Besides the treatise on raising calves, it told you what to do when you lose your
jackknife, and how many men, taking hold of hands, it would take to reach around the
Atlantic Ocean, what to do first after you get drowned, and how high all the mountains
in the world would be piled up on top of one another, and, uh, what to do when the
whiffletree breaks, and how to run a sewing machine, how many Democrats there are
in Mississippi, and how many Republicans in Vermont, and almost anything anybody
wanted toknow.
It turns out, though, that the Old Country Fiddler does not in fact want to know
all those things. “Well,” he says, “I didn’t seem to hanker for all that information, just
that minute.” Even his partial catalogue of the book’s contents reveals that it is a mass
of conspicuously decontextualized information, a great hodge-podge of unrelated
stuff, even more so for being contained in the text-object represented by the book,
detached from the kind of unmediated interaction out of which the Widow Southby’s
grounded information emerges.
Ultimately, the book peddler’s sales efforts in Pineville are thwarted at nearly
every turn “So the fellow got mad, and went off.” The Old Country Fiddler, musing on
the problem, sums up the situation in a wonderfully pithy and felicitous observation: “I
reckon the Pineville folks didn’t relish quite so much promiscuous information all in
one dose. Fact is, I didn’t myself.” The promiscuity of the book’s information is
precisely the problem: resistant to attachment, random, indiscriminate, “Consisting of
assorted parts or elements grouped or massed together without order, mixed and
disorderly in composition or character.” One could hardly think of a better term to
capture the contrast between the literate, urban-based, modern communicability
represented by Carter’s Complete and Comprehensive Compendium of Indispensable
Information and the interactional, rural-based country communicability represented by
the Widow Southby’s efforts to capture the book agent in Pineville’s contextual web.

Country folks in the city


Urban strangers, like our hapless book agent, bring city and country into
dialogue by showing up in Pineville and engaging with the local folks. In these
encounters, the people of Pineville are on their own ground while the stranger is out of
his element and just doesn’t get it. But the cartography of country communicability has
a reciprocal pole. What happens when those country folks go to the city? The first
decades of the 20th century, the years of Taggart’s active performance career, marked
a period of burgeoning rural-to-urban migration in the U.S. The impact of this
demographic process was felt especially keenly in rural New England, as growing
numbers of young people left the region’s declining farms for the educational and
economic opportunities of the city. “It seems as though they can’t be contented in the
country any more,” laments the Old Country Fiddler, “but they got to go a’traipsing off
to the city.” One of those to make the transition from Pineville to the city was the
Fiddler’s own son, John, who went to work in New York. His father went down to see
him, and that visit provided the core of several of Taggart’s recorded performances
that represent country communicability in its encounter with city ways of speaking.
One revealing encounter occurs at the hotel where the Old Country Fiddler
seeks lodging on the night of his arrival in the city. Inquiring about accommodation,
the Fiddler finds himself in a series of puzzling exchanges with the desk clerk [excerpt
2]. This time, clearly, it is the country man who just doesn’t get it. The humorous
dynamic of the Fiddler’s encounter with the hotel clerk stems from his unfamiliarity
with the features of modern, urban hotels and the lexico-semantic field that surrounds
them. These matters are so routinized for the clerk that he refers to them in
shorthand. Instead of asking the prospective guest if he want to book a room on the
American plan (with meals) or the European plan (without meals), he simply says
“European or American?” “Do you want a room with a bathroom?” becomes “Do you
want a bath?” Only someone familiar with the ways of urban hotels would understand
the clerk’s abbreviated queries, and the Fiddler does not. He takes the clerk for nosy or
foolish, when it is he who is confused.
This dynamic is part of a general pattern in country communicability when it
comes to the city: the country person’s ignorance of characteristic features of modern,
urban life and their attendant ways of speaking leads to misunderstanding,
misconstrual, talking at cross-purposes, whether it is checking into a hotel, eating at a
restaurant, dealing with a baggage porter, and so on. The morning after his arrival in
New York, for example, as enacted in another recorded routine, the Old Country
Fiddler phones his son from the hotel at which he has spent the night [excerpt 3]. In
the rural and small-town telephone exchanges of the period, the operators knew
everyone on the circuit and their networks of relationships. Such local familiarity
allowed users simply to identify the party to whom they wanted to speak—“I want to
speak to my son”—and the operator could make the connection. In the city, however,
the assumption of familiarity did not hold. Parties are identified by telephone number,
not kinship or given name or any other gemeinschaftliche identity feature. Like the
hotel clerk’s “European or American?” query, the telephone operator’s shorthand
“number?” is twice misconstrued by the Old Country Fiddler: first as a query about the
number of sons he has, then as a number assigned to jail inmates. His lack of
comprehension is summed up economically in his plaintive response to the operator’s
further attempt at clarification: “Information? What information?” Shades of the Old
Country Fiddler’s encounter with the book agent. Once again, it is a matter of orders of
information and the disjunction between country and city epistemologies. The Fiddler
brings to his telephone conversation a personalized, community- and kinship-based
orientation, only to encounter the operator’s insistence on identifying his son John by
a number. This is not necessarily the promiscuous information that the book agent is
peddling, but it is fully as decontextualized, honed down to the fine point of a
telephone connection, with all the indexical resonances of Pineville stripped away.
Of course, the Old Country Fiddler’s engagement with the operator is also an
engagement with the new communicative technology of the telephone. The Old
Country Fiddler’s inability to deal competently with her marks him also as incompetent
in the management of new communicative technologies, at least in their most
modern—which is to say, urban—guise. Nor is the Old Country Fiddler’s problem with
technology limited to the telephone. Interestingly, Taggart’s recorded representations
of the Old Country Fiddler also include struggles with the phonograph, the very
technology on which his performance depends.

New communicative technologies


In “Uncle Zed Buys a Graphophone,” the Old Country Fiddler (here called Uncle
Zed) and his wife first determine to buy a record player in order “to be right in style.”
Even up in Pineville, that is, they have been caught up in the nascent consumer culture
coalescing in the early years of the last century around the phonograph as the first
industrially produced form of home entertainment and as an item of conspicuous
consumption, a commodity of distinction. As Taggart was a Columbia Record Company
performer at the time he made this recording, it is not surprising that Uncle Zed and
his wife determine to buy a graphophone, as Columbia called its record players to
distinguish them from the Edison phonograph, the Victor Victrola, and other players
sold by smaller makers. As if to underscore their location way out on the margins of
modern life, though, they misconstrue the brand. Picking up on the resonance
between the Columbia of the brand name and the opening lyrics of “Hail Columbia,” at
that time the unofficial national anthem (this was well before “The Star-Spangled
Banner” was adopted as the national anthem in 1931), what they want is “one of these
here ‘hail Columbia, happy land’ talking machines.” Moreover, Uncle Zed goes to pick
up his stylish new graphophone in his horse-drawn wagon, about as unstylish and old-
fashioned a conveyance as you can get.
And then when they get their new purchase home, it turns out that they do not
know how to make it play. Indeed, in their ignorance, they undermine an essential part
of Columbia’s strategy, held in common by all the manufacturers of record players, of
getting their playback machines into people’s homes only partially as status-symbols in
their own right, but also, crucially, as a basis for making larger profits on the sale of
records and other accoutrements like needles on a continuous basis. Uncle Zed,
however, does not realize that he needs records to play on his new machine, rejecting
them as “extras,” though they are essential to this medium of home entertainment.
When he tries to get his new graphophone to play, “it didn’t make no sound. Not a
sound!” and this makes him mad. His disgruntled call to the clerk, to complain about
the recalcitrant machine, provokes the clerk to an equally testy response, affronting
Uncle Zed still further. As far as the clerk is concerned, Uncle Zed has brought the
problem on himself, by rushing off with his new graphophone without heeding the
clerk’s insistence that he needed some records to go with it. But now he still wants to
find fault with the clerk, when the latter informs him that he needs needles as well.
“’Needles?’ I says. ‘Young man, you’ve made a little mistake. I bought a singing
machine, and not a sewing machine.” And even after it all gets sorted out and Uncle
Zed gets the machine to play his new record, “Hesitation Waltz,” he doesn’t realize
until a younger and more up-to-date neighbor suggests it, that his record has two sides
and he can play a second tune if “he flopped that over on its back.”
What we see in these exchanges between the Old Country Fiddler and his
younger interlocutors, the neighbor and the sales clerk, are the contours of a very
powerful trope in the construction and rhetoric of consumer culture, especially in
relation to communication technologies and home entertainment: they are oriented
toward youth, while the old folks don’t get it, and just get cranky when they try to get
the damn things to work. Uncle Zed, of course, is doubly handicapped: he’s not only
old, but he’s country to boot. His efforts to be “right in style” are doomed from the
start.
Nor is it only his failure to understand the mechanics of the graphophone, that
is, how to get it to play, that marks the Old Country Fiddler’s ignorance concerning the
new medium. Perhaps more interesting is his struggle to comprehend the capacities of
sound recording as a technology of cultural reproduction. First, in ordering the record
he needs to make his graphophone work as it should, he foregrounds not the material
object but the music it will produce, asking the clerk to send him “a good, lively tune.”
Then, as a musician, he plays the record over and over until he has learned the tune
himself. The recording thus becomes a source of a new piece that he can add to his
own performance repertoire; his ownership of the recording thus amounts to
ownership of the tune and the right to play it himself. Most revealing, however, is his
reaction when, sitting in a barber’s chair in another town, where he has gone to sell
some hogs, he hears the very tune he has purchased coming from somewhere nearby,
presumably being played on someone else’s record player. Or so we assume, knowing
what we know about the medium. The Old Country Fiddler’s reaction is that
“Somebody stole my tune!”
Consider what must underlie such a notion. By his understanding, the Old
Country Fiddler has bought and paid for the tune and thus he owns it. It is not the
record as a material commodity that counts, it is the tune, as a piece of music, that the
recording represents to him as a piece of property and that is uniquely his to activate
on his graphophone and to learn himself. For someone else to play it amounts to an
act of theft. Unable to find the source of the music he has heard in Bradford, he fears it
is lost to him. He is surprised and mystified, then, to find that “when I got home, there
was my tune, right on the machine where I left it. Talk about your mysteries!” The only
explanation he can come up with, falling back on the age-old traditional way of
explaining the otherwise unexplainable, is that hearing the tune in Bradford while it
was still at home in Pineville must have been the work of the spirits.
This is a remarkable representation. What Taggart has seized on in this
depiction of the Old Country Fiddler’s understanding of the medium of phonography
and his way of accounting for the “mystery” of hearing his tune in another town
amounts to a popular representation of what Walter Benjamin termed in a more
esoteric philosophical register “The Work of Art in the Age of Mechanical
Reproduction.” The phonograph is a technology par excellence of mechanical
reproduction, one of the key technologies that Benjamin himself identifies with the
new age, and Taggart’s recordings date from a period just following the moment that
Benjamin defines as a watershed, in which technical reproduction “captured a place of
its own among the artistic processes.” When Uncle Zed hears his tune in an
unexpected place, far from home, he is experiencing precisely the disjunction that
Benjamin sees at the core of the reproduction, its lack of “presence in time and space,
its unique existence at the place where it happens to be.” The reproduction, a
replication detached from the spatio-temporal specificity and indexical resonances
that accrue to the unique work of art in its context, is as promiscuous as the
decontextualized information gathered in the book agent’s volume. Uncle Zed’s
experience thus marks him as representative of an era before the age of mechanical
reproduction, when the piece of music, or any work of art, was anchored in its proper
context, back home where he left it. His wife has at least an inkling that mechanical
reproduction is to blame for the mystery, even though she attributes the replication to
the existence of two needles rather than two records and considers that the making of
“two needles just alike” must have been a mistake. Uncle Zed, though, doesn’t believe
it. He falls back on the uncanny, blaming “the spirits” rather than the technology of
mechanical reproduction.

Conclusion
Taking as my point of departure the prominence of performance in
philosophical constructions of country communicability and of country
communicability in turn as a vantage point on the symbolic construction of modernity,
I have attempted in this paper to explore the role of performance in vernacular
representations of country communicability, using Charles Ross Taggart’s early 20 th-
century commercial recordings as a preliminary case study. Taggart’s performances, as
we have seen, revolve around the animation of a characterological figure, the Old
Country Fiddler, a stereotyped representation of the rural New Englander of the day.
The Old Country Fiddler is an old—and old-fashioned—character, a representative of a
fading way of life and a declining region. He is, however, a good resource for
performance, embodying and indexing a part of the national experience that was
easily recognizable by the consumers of early commercial recordings, that is, urban
people and prosperous rural people with enough leisure and disposable income to be
drawn into the new consumer culture of home entertainment. These are the
audiences who could be amused by the anachronistic and naïve ways of the Old
Country Fiddler at the same time that they could enjoy the nostalgic glow of his
performances.
Performance is incorporated as a key component of the figure of the Old
Country Fiddler: he is a fiddler and a storyteller. I have focused here on his storytelling,
recounting stories of life in the rural community of Pineville, Vermont, and of his
experiences in the city, visiting his son who has moved to New York. The country and
the city jointly define the communicable cartography of the Old Country Fiddler’s
experience and the world he narrates, and their contrastive communicative styles
drive the stories he tells about city visitors to the Pineville and his own sojourns in New
York. Country communicability emerges as highly contextualized in terms of personal
identities, relationships, networks, domestic and community spaces, and temporalities
(an individual’s life span, genealogies, the duration and phase structure of interactional
encounters, etc.). Urban communicability is represented as impersonal,
decontextualized, suffused with “promiscuous” information, instrumental, and
impolite. Each has its own proper habitat, however, and visitors from one environment
to the other tend just not to “get it,” leading to disjunction, misunderstanding,
confusion, and speaking at cross purposes.
From the vantage point of Taggart’s performances, the characterological figure
of the Old Country Fiddler presents us with an ostensibly rural perspective on
communicability. But the figure, of course, is the creation of Taggart himself, who,
though raised in rural Vermont, had formal training in music from a teacher in the
state capitol, advanced training at the New England Conservatory of Music and the
Emerson School of Oratory in Boston, and lived in New York much of the time during
his active performance career. Thus, the view from the country is really a view from
the city, refracted through the constructed persona of a country figure. There is, thus,
a perspectival asymmetry built into the performances.
The trope of “not getting it” takes on special salience in the Old Country
Fiddler’s encounters with new communicative technologies. When he attempts to
contact his son by telephone, the ensuing confusion is a further manifestation of the
disjunction between country and city communicability. The Fiddler’s difficulties stem
from trying to connect with his son by means of a mediated technology that strips out
all the indexical richness that he can rely on in Pineville. The son is reduced to a
number, to decontextualized “information.” With the phonograph, part of the problem
is ignorance of the technology, but decontextualization is also deeply at issue here.
The musical tune that the Old Country Fiddler believes he has purchased when he
bought the record should be in his home, where he has left it. Hearing it from the
barber’s chair in another town, stripped of its indexical association with him and his
home, makes him believe that it has been stolen from him. But it is the technology of
mechanical reproduction that makes it possible for him to hear the “same” tune in
different places. In Benjamin’s terms, the tune has been stripped of its aura,
Benjamin’s term for the unique indexical associations that accrue to a work of art as it
moves through its life history of contexts and recontextualizations. The perspectival
asymmetry is also manifest in this performance: the Old Country Fiddler, as
characterological figure, is confused, but Taggart, who is animating him, is a master of
the medium. A significant portion of the dynamics of the performance is knowing that
the animator and figure are separate.
Let me close with a word about the comparative potential of the approach I
have introduced in this paper. The historical conditions that prevailed in the U.S.
during the early decades of the 20th century—the decline of traditional rural
economies, large-scale rural to urban migration, the expansion of the urban
bourgeoisie, the advent of new communicative technologies and media, the
burgeoning of consumer cultures, the rise of new forms of popular entertainment, and
so on—have close analogues in many parts of the world. Indeed, they are widespread
features of what is commonly identified as the advent of modernity. Not surprisingly,
then, performance forms and practices serve widely as reflexive mechanisms for the
symbolic construction, exploration, comprehension, and ideologization—especially
during periods of perceived rapid transformation—of epochal transitions and
concomitant shifts in regimes of communicability. The Old Country Fiddler has cousins
in Brazil, I’m sure, and certainly in many other parts of the world. Performance offers
one of the best vantage points, I think, on how to get to know them.

Excerpt 1
Charles Ross Taggart, “Old Country Fiddler and the Book Agent.” Victor 17931.
Oct. 28, 1915.

One day last Spring, I was a’settin’ on my porch, a’fiddlin away, when I see a
feller that I took to be a book agent comin’ up the path, with a four-pound volume o’
literature under ‘is arm. He was a kind of a spindlin’, sickly lookin’ chap, with a green
hat pulled clear down t’the tops of his ears and a suit of store clothes on. He didn’t look
as if he had gumption enough t’sell peanuts to a boy.

But he stepped up as pert as a rooster, and said, uh, “Good morning, Reuben!
I’ve got a book here on raisin’ calves I thought you’d like to look at.”

“Well,” I says, “if you got a book on raisin’ calves, you better make a present of
it to your parents. I think t’would be prof’table readin’ for ‘em!” Heh heh. But land
sakes, ‘t’warn’t no use. He couldn’t see the point.

Excerpt 2
Charles Ross Taggart, The Old Country Fiddler in New York. Victor 17700a. Dec.
21, 1914.

I went up t’that clerk an’ I asked ‘im if I c’d get a place t’stay overnight.
An’ he says, “European or American?”

I says, “American. Born ‘n raised here. Never ‘n Europe in m’life.”

Well, he says, “uh, you want a bath?”

Well, I says “that ain’ none o’ your business, mister, whether I do or not. I swan.
I took a bath n’ changed m’clothes just before I left home, but t’warn’t any o’ his
business.”

Well, he says, uh, “Outside ‘r inside?”

Well, I says, “I usually make a practice takin’ a bath on the outside.”

He says, “I mean d’you want an inside or an outside room?”


“Oh,” I says, “well, that’s differnt. I’ll take an inside if it’s all t’same t’you.
Looks a little mite stormy on the outside.”

Well, he says, “Inside’ll cost ya a dollar, ‘n outside a dollar’n a half.”

Well, I says, “Mister, this’s the fust place I ever struck where it’s cheaper t’stay
in th’house than ‘tis outdoors!”

Excerpt 3
Charles Ross Taggart, “Old Country Fiddler at the Telephone,” (June 21, 1916),
Victor 18148-A

Hellooo, Central? Say, I want to talk with my son.


Eh? My son.
Yes, he’s here in New York City, been here a year and a half.
Number? Oh, just one, all the rest are gals.
What? His number? Whose?
My son’s?
Heavens to Betsy, he ain’t in jail, is he?
What’s that?
Information? What about?
Oh, his name is, uh, John Jackson. 1500 West 86th Street.
What’s that? H. O. J. Hollins?
Who’s that? Oh, that’s prob’ly the man he works for.
Hello. Hello! Who’s this?
Oh, Central, got back to you, have we? Well, say, Central, I want to talk with
Mr. H. O. J. Hollins.
Hello, is this Mr. Hollins?
Oh, this is you, is it, John?
Hello, John. Say, this is me, Dad.
“A Viagem a Casa das Onças”: Narrativas sobre experiências extraordinárias,
Esther Jean Langdon (UFSC)

Neste trabalho examino a relação entre as performances xamanísticas e as


narrativas sobre elas. A tradição narrativa dos Siona da selva amazônica colombiana
está repleta de experiências de estados alteradas de consciência, sejam estas
experimentadas sob a influência de yajé (ayahuasca), nos sonhos, ou nos encontros
súbitos e inesperados com os seres no outro lado da realidade. Suas narrativas
xamanísticas tratam da expressão performática e estética de experiências
extraordinárias, principalmente as que são experimentadas durante os rituais. Em
situações de performance, os xamãs acostumam descrever para os outros suas
aventuras nos outros domínios do universo, tais como a visita ás casas do Trovão ou
Sol no céu; á casa dos donos dos animais debaixo da terra; ou á aldeia da anaconda do
lado de rio adentro. Na sua vez, estas narrativas dão pistas para a plateia de como
interpretar a consubstancialidade dos dois lados via elementos icônicos, metonímicos
e metafóricos e, também, estabelecem expectativas para as experiências que eles
terão quando tomam o yajé. Numa tentativa explorar a relação entre a experiência
extraordinária, performance e narrativa, este trabalho apresenta uma experiência
comum relatada por vários xamãs Siona sobre seu tempo de aprendizagem xamânica –
“A viajem a casa das onças”. Nesta, o aprendiz do xamã é convidado pelo mestre-xamã
para visitar a casa das onças. Porém, a experiência não acontece durante o ritual sob a
influência do yajé, mas na manhã seguinte na volta para a aldeia. O trabalho analise
como os mecanismos poéticos e simbólicos se tornam a performance narrativa um
modelo “de” e “para” experiências extraordinárias para os ouvintes.
Pesquisadoras e suas magias – uma meta-antropologia, Francirosy Campos
Barbosa Ferreira (FFCLRP/USP)

Resumo: A proposta desta comunicação é apresentar resultados parciais da


pesquisa que venho realizando sobre performances de pesquisadoras de Islã em
campo. O intuito da pesquisa é verificar os aportes teóricos, metodológicos e pessoais
que são impressos nos trabalhos acadêmicos produzidos por essas. Discorrendo sobre
potencialidades e limites do trabalho de campo em comunidades muçulmanas. Cabe
notar que o recorte estabelecido foi pesquisadoras, pois levei em consideração que a
inserção feminina em contexto islâmico torna-se peculiar, tendo em vista, que o grupo
pesquisado se organiza de modo homossocial. Este texto sintetiza alguns inscritos
produzidos da pesquisa que venho desenvolvendo com pesquisadora de Islã com apoio
da Fapesp. Dedico este texto a Vagner Gonçalves da Silva, antropólogo, amigo que
compartilha saberes e foi inspirador desta pesquisa.
Palavras-chave: pesquisadoras de Islã, metodologia, meta-antropologia.

Nossos “sentidos”, na significação mais corporal da palavra,


a visão, a audição, não são somente as ferramentas de
registro, são órgãos de conhecimento. Ora, todo
conhecimento está a serviço do vivo, a quem ele permite
preservar no seu ser (ZUMTHOR, 2000, p.95).

A pesquisa de campo é, sobretudo, um tema que chama a atenção dos


antropólogos, seja porque Malinowski deu pistas surpreendentes que resultaram em
trabalhos nos quais o campo e a teoria se entrelaçam, seja porque se buscam
estruturas profundas, ou se buscam significados presentes no cotidiano – Claude Lévi-
Strauss e Clifford Geertz transitam muito bem nesses universos – por meio de
estruturas profundas, na constituição de leis, ou por meio de significados em busca de
interpretações, chegamos enfim a uma boa etnografia.
Não importa o caminho a seguir, importa-se: seguir, fazer escolhas para que se
consolide um bom trajeto de pesquisa. A pesquisa de campo requer certas habilidades
adquiridas no próprio fazer etnográfico. É dessas artimanhas, técnicas, modo de fazer
que este texto busca contemplar. Talvez o argumento elucidativo inicial, seja, de que
não basta uma observação participante, como dita a antropologia clássica ou uma
escuta participante, no sentido proposto por Bairrão (2005) em etnopsicologia,
quando se refere que no transe, o pesquisador é interpretado e incluído no lugar de
consulente. O autor afirma:

Neste caso, ou talvez sempre em psicologia, o método de


observação participante manifesta-se como uma
participação observante. No caso, uma escuta participante
(dada à interpelação e estruturação dialógica do fenômeno a
participação se revela um instrumento de refinamento da
audição) (...) Os níveis de elaboração do fenômeno são
proporcionais ao modo de abordá-lo e a escuta participante
é também uma propedêutica ao deciframento das semioses
em jogo (BAIRRÃO, 2005, p. 446).

A premissa da etnografia não é só olhar, escutar e escrever, é também, fazer do


corpo instrumento do exercício etnográfico. Meu argumento é que o corpo deve estar
empenhado em realizar a descoberta de Si e a descoberta do Outro. Ouso propor aqui
algo mais ampliado: é preciso colocar o corpo à prova. O que isto significa? O fazer
etnográfico deve ser acompanhado da experiência deste pesquisador que se deixa
afetar, deixando que os seus sentidos sejam remodelados. Aprender a ser como, o
estado subjuntivo, no qual Turner30 e Winnicott dialogam. O como se, permite ao
pesquisador descobrir-se de forma mais intensa na pesquisa de campo.
Determinados temas como o que fora estudado por Pedro Paulo Pereira, o
cotidiano de portadores de HIV numa Instituição de “acolhimento”, onde o terror se
revela nos corpos e nas ações dos sujeitos. Faz com que o antropólogo se preocupe
com o modo de lidar com questões como saúde, doença, dor e morte, qualquer vacilo
do pesquisador, alerta o antropólogo, pode ser doloroso para quem os vivencia (2004,
p.23). Esta preocupação com o vacilo do pesquisador, também deve estar presente em
outras etnografias. Devemos considerar que elaborar teorias, conceitos sobre o outro,
é necessário, mas não só, é preciso reelabora-se para empreender uma pesquisa, o
fazer etnográfico requer alguns manejos de Si.
É porque o campo me afeta, e me afeta corporalmente, que este texto cria
sentido. Compreender as nuances das comunidades muçulmanas estudadas durante o
mestrado e doutorado em antropologia constituíram em mim marcas
corporais/sensoriais. Corporeidades como nos esclarece Le Breton em Adeus ao corpo.
O ser e não ser muçulmana me colocou em evidencia, trazendo-me para o campo
religioso e impregnando posturas corporais, falas religiosas, mas também o
distanciamento “calculado” de quem pesquisa e é pesquisado. Conforme nos apontou
Goldman:

O cerne da questão é a disposição para viver uma


experiência pessoal junto a um grupo humano com o fim de
transformar dessa experiência pessoal em tema de pesquisa
que assume a forma de um texto etnográfico. Nesse sentido,
a característica fundamental da antropologia seria o estudo
das experiências humanas a partir de uma experiência
pessoal (GOLDMAN 2006, p.167).

No campo verifiquei o meu lugar como estrangeira. Nesses quase 14 anos de


pesquisa de campo em comunidades muçulmanas aprendi a rezar, aprendi alguns
versículos do Alcorão, alguns hadiths, fiz jejum, deixei de comer carne de porco, usei
hijab, enfim pratiquei a religião por cima dos ombros do nativo, deixei-me ficar entre
eles na mesquita, entre as mulheres e crianças, mas também entre os homens. Ronald
Grimes em Beginnings in Ritual Studies ilumina nossa metodologia quando apresenta o

30
Ver From Ritual to Theatre (1982: 82-84). Turner cita o Webster's Dictionary: o subjuntivo sempre tem
a ver com 'desejo, possibilidade, ou hipótese'; é o mundo do 'como se', que abrange desde a hipótese
científica à fantasia da festa. É o 'como se fosse', em vez do 'é'. Trata-se de expressar algo possível ou
simplesmente desejado.
que lhe foi proposto por um colega: “Put yourself in that posture; maybe you will learn
more about its meaning” (1995, p. 5), isto não implica em tornar-se ator ou religioso,
mas sim aprender a postura corporal observada em campo (: 20).
Quando optei por uma antropologia da performance islâmica, estava certa de
que a abordagem performática ajudar-me-ia a compreender o ethos islâmico e as
transformações necessárias para essa entrega, pois não daria conta de compreender
esse universo, sem compreender a minha própria performance. O ver e o ser visto
enriquecem qualquer etnografia, pois é preciso assumir o lugar do qual estamos
falando, essa atitude tensa pode nos levar às descrições densas do que pretendemos.
É legítimo e necessário apresentar nossas proposições, dúvidas e por que não dizer
nossos próprios “desvios”.
Tomo a performance da pesquisadora como o primeiro elemento de mudança
sensorial e corporal. Em outro momento afirmei que não saímos iguais da experiência
de campo, somos transformados e transportados, como diria Schechner (1985).
Constatei aquilo que já foi experenciado por Victor Turner (1982), e retomado
por Schechner, quando este afirmou: “fazer os movimentos do Nô, mesmo que por um
breve período, me ensinou mais no meu corpo que páginas de leitura” (1985, p.31). É a
experiência com a “performing ethnography” que também encontrei no acampamento
islâmico do qual participei durante o doutorado, pois me comportava como se fosse
um deles (FERREIRA, 2009ª). Este estado de subjuntividade, com certeza ampliou os
meus sentidos em relação ao grupo que estava pesquisando. A partir dessa
experiência, surgia a pesquisadora performer e os limites e as potencialidades da
performing ethnography. Importante destacar que para participar do acampamento
pediram-me para usar as vestimentas islâmicas, a fim de que eu não me diferenciasse
das mulheres.
As experiências vivenciadas em campo fizeram com que há quase quatro anos
eu passasse a me dedicar às questões metodológicas, inspiradas no modo de
etnografar e nas pesquisas realizadas por mulheres em comunidades muçulmanas.
Constato que a diferença em ser pesquisador e pesquisadora é mais do que olhar para
questões de gênero, é também, olhar para experiências vividas de cada um. São as
experiências vividas pelo sujeito pesquisador (a) que modela o seu modo de ver a ação
do outro. Intrigava-me naquele momento o comentário de um colega que dizia ter
levado a esposa para entrevistar as mulheres muçulmanas e de uma pesquisadora, que
teve que usar uma aliança para se apresentar como comprometida, pois desta forma
não ameaçaria o mercado matrimonial da comunidade. Antropólogos também
constroem personagens? Esta era e é uma das minhas questões de fundo.
Já havia destacado a minha experiência como pesquisadora e como o fazer
etnografia tinha mudado a minha relação com os sujeitos da pesquisa e com a forma
de ver minha experiência familiar (FERREIRA, 2009a). Isto posto, considerei que o fato
de ser mulher, mãe e antropóloga, mudou minha inserção em campo, pois me trouxe
outros modos de ver. E lembro-me da palavra que muitas vezes despertava o interesse
das mulheres. Qual o nome dos seus filhos Franci? Gabriel, Eduardo e João Pedro,
respondia. – Gabriel! Jibril, o anjo que anunciou a mensagem ao profeta Muhammad.
São determinadas sutilezas que nos prendem no campo no meu caso, ter um filho
chamado Gabriel e ter filhos-homens, faziam minhas interlocutoras repetirem:
Alhahdubiallah! E aqui o peso de ser meninos sem dúvida conta muito, embora, não
revelado na primeira conversa. São os meninos que levam o nome da família. Os filhos
pertencem à família do pai. Vários elementos que colocam os meninos em lugar
superior, embora, este discurso tenha mudado, sabemos que muito disso ainda vale
em determinadas comunidades muçulmanas.
Construir a minha meta-antropologia, só possível por meio da leitura do livro o
Antropólogo e sua Magia, do professor Vagner Gonçalves da Silva, a quem dedico este
texto. Silva (2000, p.15) escreve:

...procurando discutir a presença do antropólogo no campo,


as diferentes dimensões de relacionamentos deles com os
grupos estudados, o modo pelo qual esses relacionamentos
se refletem na pesquisa e como se dá a passagem do campo
ao texto etnográfico. Procurei ainda analisa a forma pela
qual os textos são lidos pelos grupos estudados e sua
influencia no meio religioso e para a própria pesquisa
etnográfica.

Para ser fiel a proposta de Silva (: 30) segui o roteiro proposto por ele: I-
Perspectiva do antropólogo: trajetória pessoal e acadêmica até a escolha do objeto
(subjetividades), etc; A inserção do antropólogo: quais as estratégias usadas para
obtenção de informações etc.; Confecção da etnografia: quais as maiores dificuldades
na construção do texto? ; A avaliação que o grupo faz da pesquisa: se o grupo leu o
texto. II – Perspectiva do Religioso – a aproximação do pesquisador.
Além dos procedimentos propostos por Silva (2000) também considerei que a
antropologia das formas expressivas (imagem e performance) contribuiriam
substancialmente para constituição dessa pesquisa. Nas inserções que fiz em campo
sempre estava com a câmera de vídeo, filmava não só as conversas com as
pesquisadoras, mas também, a cidade na qual elas vivem, a universidade e a
comunidade muçulmana da região, além de conversar com muçulmanos dessas
cidades. Nem sempre as pesquisadoras haviam estudado a comunidade da sua cidade,
mas considerei importante registrar, pois se tratava também de um mapeamento de
comunidades no Brasil. Mas para que o material tivesse um limite suportável para
decupagem e posterior análise determinei o máximo de 5 horas de gravação com cada
pesquisadora. A realização do roteiro de entrevista e a pré-conversa com elas, assim
como o conhecimento do material produzido por cada uma facilitou este limite.
Ainda no doutorado pedi a algumas colegas que me escrevessem um
depoimento sobre os motivos que as levaram a estudar o Islã e que contassem
também um pouco da sua experiência de campo. Esses depoimentos transformaram-
se em parte na pesquisa do temático e em parte na pesquisa que desenvolvi durante o
Prodoc da Unicamp e que hoje continuo numa perspectiva mais internacionalizada.
Algumas das pesquisadoras como Claudia Voigt Espinola, Silvia Montenegro,
Vera Lucia Maia Marques e Giselle Guilhon me enviaram por email um depoimento
narrando suas experiências de campo. Gisele Fonseca Chagas (UFF) me enviou
posteriormente um relato de sua entrada do campo e suas escolhas temáticas. Cabe
dizer, ainda, que a escolha pelas pesquisadoras deve-se ao meu interesse em investir
nas questões de gênero que surgem a partir da realização do trabalho etnográfico
realizados por mulheres31.
O recorte pelo feminino foi estratégico para iniciar uma discussão sobre
metodologia e etnografia, pois se tratava do diálogo entre amigas que compartilhavam
seus campos em congresso já há algum tempo. O interesse que tinha era o que de fato
escapava em notas de rodapé, o que não aparecia no texto propriamente dito, para
isto era preciso manter o diálogo constante com essas pesquisadoras. Conhecer seus
textos e a sua biografia, compartilhar suas escolhas. Como qualquer antropólogo, em
campo, me hospedei em suas casas durantes alguns dias para manter conversas e
estabelecer este contato diário que permite falar da academia, mas também da
família, da vida e do campo.
Em alguns momentos mais escuta, outros mais observação, em outros
movimentos corporais que se revelam com desencadeadores de emoções, sujeitos a
interpretação da antropóloga.

Experiências com o Islã: intelectuais nas mesquitas32

Agora vemos em espelho,


e de maneira confusa,
mas, depois veremos face a face
[Coríntios 13,12].

Inspirada na trajetória de Armstrong (2004), e na forma como ela conduziu sua


pesquisa, baseada na premissa de que “não basta entender intelectualmente as
crenças, os rituais e as práticas éticas dos outros; é preciso senti-los e estabelecer uma
identificação imaginativa, embora disciplinada” (2004, p.329-330), comecei a ler os
trabalhos produzidos sobre o Islã, no Brasil, de modo a tentar compreender o processo
de cada pesquisadora. Percorrendo suas palavras, o modo como apresentavam o
objeto, a metodologia, enfim observando as margens das pesquisas. Pela proximidade
que tenho com alguns delas, solicitei que me escrevessem uma espécie de etnografia
da experiência de suas escolhas, para que talvez agora pudéssemos nos ver face a
face...

Deste modo, embora eu pense que os diferentes


antropólogos que examinam o mesmo povo acabarão por
registrar os mesmos fatos nos seus cadernos de notas, creio
que eles escreveriam diferentes tipos de livros. Dentro dos
limites impostos pela sua disciplina e pela cultura
examinada, os antropólogos são guiados, na escolha dos
temas, na seleção e agrupamento dos fatos para os ilustrar e

31
Ver por exemplo: GOLDE, Peggy (1986); LANDES, Ruth.(2002); ABU-LUGHOD, Lila (2000);
AHMED, Leila (1992).
32
Mapear as pesquisas produzidas sobre o Islã no Brasil, era um desejo grande, desde o 1º. Encontro
desses pesquisadores na Universidade Metodista em São Paulo, em julho de 2006. Era chegada a hora de
trocar informações, reflexões. Sair do isolamento que essas pesquisas viveram até então.
na decisão do que é e não é significativo, pelos seus
diferentes interesses, que refletem diferenças de
personalidade, de educação, de estatuto social, de opiniões
políticas, de convicções religiosas, e assim por diante (...)
(EVANS-PRITCHARD, 1985, p.84).

Se pensarmos em outras religiões, podemos afirmar que as pesquisas


existentes no Brasil sobre o Islã ainda são em pequeno número, mas, em geral, as
temáticas abordadas — questões de identidade, migração, conversão e expressões
sensíveis, como performance, arte e literatura33 —, fornecem uma base para a
compreensão das comunidades islâmicas. Há ainda outros trabalhos, como o de Giselle
Guilhon (2006), que escapam um pouco desse universo, no meu modo de ver, pois
tratam das questões de imagem e performance e, neste conjunto, de um universo
sensível que foi possível analisar.
As pesquisas sobre as comunidades islâmicas concentram-se particularmente
nos estados em que há uma presença significativa de muçulmanos34: São Paulo, Rio de
Janeiro, Florianópolis, Rio Grande do Sul, Brasília e Minas Gerais. Há várias formas de
organizar esse material: por ano de finalização, por região, por temática, por
terminologias do campo. Mas resolvi começar minha abordagem pela experiência de
cada pesquisador, observando seu depoimento, a forma de sua escrita e como ela
pode revelar, não apenas os sentidos inerentes ao estudo da temática, mas também os
caminhos que foram percorridos até então. Esboço aqui alguns desses depoimentos
que me foram enviados e os trechos de alguns trabalhos que utilizei.

Claudia Voigt Espinola - Arabização e Migração35


Minha paixão pela Antropologia vem de muito tempo atrás,
já na graduação em Serviço Social na UFSC, em 1987. Foi
como que um encantamento, ver a possibilidade da
existência de outros modos de viver e de pensar, perceber
outras lógicas e racionalidades. A constatação de que o
Homem é ao mesmo tempo semelhante e diferente, e que
por sua condição de adaptabilidade, pode viver mil vidas,
mas acaba vivendo apenas uma, me pareceu
particularmente fascinante.

Seguindo a busca pelas sutilezas e imponderáveis da vida, a


Antropologia me levou primeiramente a conhecer o
universo das sociedades indígenas. Percorrer o ritual de
passagem, “vivendo entre os índios” foi um sonho realizado
desta neófita em Antropologia. Minha pesquisa aconteceu
entre os Waimiri-Atroari (Grupo Karibe que vive na

35
Ver também FERREIRA, F. org. (2010) Pesquisadoras performers: suas etnografias e
metodologias. IN: Olhares femininos sobre o Islã: etnografias, metodologias e imagens. São Paulo:
Hucitec, 2010, no prelo. Uma discussão aprofundada sobre metodologia e etnografia.
Amazônia), onde estive por cerca de 6 meses e que resultou
na dissertação de mestrado, defendida em 1995. A
preocupação principal girava em torno dos saberes e
representações do grupo sobre saúde e doença, enfocando
todo o universo da medicina nativa.

A continuidade desta temática porém não aconteceu, dentre


outros, por questões particulares, como a vinda dos filhos e
suas rotinas, o que me levou a pensar em novas temáticas de
estudo, desta vez dentro da Antropologia Urbana. E se
Hermano Vianna estiver certo ao dizer que: “o antropólogo
é um viciado nas sutilezas da percepção sobre diferenças
culturais”, procurei descobrir esses “Outros”, um pouco
mais perto de casa.

A escolha de uma pesquisa, em muitos casos, tem relação direta com a nossa
vida privada: filhos, casamento(s). Com Espinola, não foi diferente — mas por que o
Islã? Poderia ter sido qualquer outro tema — qual a especificidade deste tema?

Foi então que em 1999, quando me preparava para entrar


no doutorado, parti para a seguinte tarefa: descobrir a
existência de árabes muçulmanos em Florianópolis. A
cultura árabe, pelo charme e beleza e a religião islâmica,
pela distância e mistério, motivaram em mim indagações
antigas, desde os tempos da adolescência quando procurava
entender, sem sucesso, os conflitos entre árabes e judeus, ou
quando um colega de turma era sempre chamado pelos
demais de “turco”, ao que ele respondia, enchendo-se de
orgulho: “sou sírio-libanês”.
De fato a imigração árabe de origem cristã no Brasil e Santa
Catarina já era amplamente conhecida, mas haveria dentre
eles islâmicos? Pouco conhecidos e visíveis (lembremo-nos
que o evento do “11 de setembro” , a queda das torres
gêmeas nos EUA, aconteceu em 2001), após algumas
incursões ao centro comercial e histórico de Florianópolis,
pude constatar a existência de uma comunidade árabe, aqui
composta de palestinos e libaneses que professavam a
religião islâmica e contavam inclusive, com uma sala de
orações, como de resto, pouco conhecida da população em
geral. Perceber este grupo no estabelecimento de relações
familiares, sociais, culturais e políticas no âmbito público e
privado, enfocando suas trajetórias migratórias, foram meus
enfoques principais. Interessante foi ter tido a oportunidade
de presenciar as mudanças que ocorreram no grupo, pós 11
de setembro, dentre elas, a mais visível, o uso do véu pelas
mulheres. Se antes era raro seu uso, após a queda das torres
gêmeas, usar o véu passou a ser um sinal diacrítico
importante.

E o doutorado que se iniciou em 2000, teve como ponto alto


a viagem para a Espanha, entre 2002 e 2003 e a
possibilidade de conhecer o Marrocos, um país islâmico. A
tese foi defendida em 2005, com o título: “O véu que
(des)cobre: etnografia da comunidade árabe muçulmana
em Florianópolis (Depoimento enviado em 3/2/07).

Em sua tese, Espinola delineia seu interesse pelas migrações internacionais, no


contexto da globalização, focando o caso brasileiro e a imigração árabe em
Florianópolis. Discute o ser árabe, a imigração para o Sul do País, ouvindo os relatos de
imigrantes, que pouco queriam falar desse tempo, mais interessados estavam em falar
dos assuntos do cotidiano, à época o 11 de setembro. Porém, com uma fala daqui,
outra dali, ela foi sistematizando os depoimentos desses imigrantes e sua história; foi
adentrando as casas, as festas, a comunidade, e não deixou de abordar o tema do véu.
Espínola nos apresenta alguns elementos para pensar o ser árabe muçulmano no
Brasil. Em nota de rodapé (número 9), ela escreve:

(...) o fato de que os países árabes são majoritariamente


muçulmanos não significa que o mundo islâmico se reduz a
eles, nem todo árabe é islâmico, como tampouco o padrão
cultural árabe e a língua árabe são comuns a todos os países
islâmicos (...) o árabe esteve vinculado ao Islã por dois
motivos principais: o Islã nasceu na Arábia, e a língua árabe
é a língua da revelação divina (...).

Como vimos, Espinola observou que seus interlocutores não se animavam a


falar sobre o constante ir e vir dos muçulmanos — do Brasil ao Líbano, Jordânia ou
outro país árabe, por onde vivem viajando. Esta prática é corriqueira, há famílias que
passam o verão, no Brasil e no Líbano, aproveitando a alternância dessa estação, pois,
enquanto é verão no Brasil, é inverno no Líbano e vice-versa. Em geral, preferem esta
estação para viajar ou permanecer em nosso país. As justificativas apresentadas para
tanta viagem são uma só: para que os filhos conheçam as suas raízes e assim possam
aprender mais sobre os costumes árabes e a religião. Quando Espinola observou que
gostaria de ir ao Vale do Bekaa, região da qual provém muitos muçulmanos, mas que o
seu desconhecimento da língua árabe dificultaria a comunicação, foi surpreendida com
o seguinte comentário: ela não teria o menor problema em se comunicar, pois em
cada rua há pelo menos um a falar o português.

Silvia Montenegro - A pesquisa de campo entre os muçulmanos 36

Em linhas gerais, desde minha graduação em antropologia


sócio-cultural centrei-me no estudo das religiões,
transitando, desse momento até hoje, por alguns grupos
diversos37. Minha primeira experiência nesse sentido é
emoldurada pela análise das práticas rituais e do contexto
cosmológico de um culto espiritualista na cidade de Rosario,
Argentina. Tratava-se do "Templo de Enseñanza Espiritual

36
Infelizmente, para a fluidez deste artigo, tive que fazer uma edição das dez páginas do depoimento de
Silvia Montenegro, que me foi enviado em 26 de fevereiro de 2007.
Faraón Amosis I", uma organização de caráter sincrético,
que combinava elementos católicos, referências às religiões
do antigo Egito e ao espiritismo Kardecista38. Mais adiante,
na ocasião da elaboração de minha tese de graduação,
abordei o estudo de uma congregação de Testemunhas de
Jeová, também na cidade de Rosario, concentrando-me na
análise dessa religião como sistema conceitual e em suas
práticas tendentes a formar “indivíduos proselitistas”39.
Posteriormente, por ocasião da elaboração de minha
dissertação de mestrado no PPGSA do IFCS/UFRJ, voltei a
trabalhar entre as Testemunhas de Jeová, desta vez numa
congregação do Rio de Janeiro. Nessa oportunidade, analisei
a cosmologia e as técnicas de treinamento para o
proselitismo, do ponto de vista de que estas últimas
constituíam um sistema ritual muito prescrito, que
impulsionava um ethos proselitista por meio de certa
educação do corpo e da fala dos membros. Foi nesse
momento que comecei a me interessar pela problemática
que finalmente me conduziu até o islamismo.

As Testemunhas de Jeová eram consideradas, na maior


parte da literatura internacional, como uma “seita” de
“componentes fundamentalistas”.(...) Outras vezes, o
fundamentalismo aparecia assinalado pela oposição desse
grupo frente à aceitação de certos “deveres cívicos”, como
portar bandeiras nacionais, cantar o hino, repelir o serviço
militar. (...)

A análise desse aspecto — da literalidade e do


fundamentalismo nas Testemunhas de Jeová — me fez
sentir uma certa insatisfação em relação à utilidade do
termo fundamentalismo. Nesse momento, chegamos à
conclusão de que a noção de fundamentalismo, usada para
indicar aspectos tão diversos quanto os enunciados
anteriormente, era pouco explicativa, basicamente porque a
literalidade não parecia existir sem seu contraponto, que
era a interpretação. [...] Partindo dessa insatisfação com a
noção de fundamentalismo, nessas leituras sempre
tropecei com o islamismo, tradição que muitas vezes era
apontada como uma expressão acabada de tendências
“fundamentalistas”. Dessa forma, no início por meio de
leituras fragmentárias, e, em seguida, de forma mais
sistemática, fui me interessando pela tradição islâmica,
tentando compreender, em princípio, como funcionava o
“fundamentalismo” dentro dessa tradição.

38
Pesquisa publicada como "Cosmología y ritual en un culto religioso urbano: el caso del Templo de
Enseñanza Espiritual Faraón Amosis I en la ciudad de Rosario”. Em: Antropologia de la Religión,
compilação de Juan Mauricio Renold. Editorial del Arca. Rosario, 2000.
39
Pesquisa publicada como "Proselitismo religioso y lenguaje: habla y gestualidad entre los Testigos de
Jehová". Em: Antropologia de la Religión. Editorial Del Arca. Rosario, 2000.
Uma vez iniciada a pesquisa na comunidade muçulmana do
Rio de Janeiro, pude compreender que o problema do
fundamentalismo devia ser tratado no marco mais amplo de
uma construção identitária, onde autoconsiderar-se
fundamentalista parte de uma escolha entre outras
possíveis. Dessa forma, no conjunto de dilemas identitários,
o fundamentalismo era apenas um deles — embora
complexo — e possível de ser entendido no marco dos
outros dilemas.

É comum a associação da palavra fundamentalismo com algo ruim, carrega


sempre uma ideia pejorativa. No entanto, cabe frisar que fundamentalista é aquele
que segue os fundamentos da respectiva religião; e, embora o fato de segui-los acabe
por se confundir com fanatismo, nem todo fundamentalista é fanático.

O ingresso do pesquisador no universo a ser investigado


não pode ser compreendido senão como um longo processo
no qual não se podem aplicar receitas nem modelos pré-
estabelecidos. Um pouco porque cada universo irá requerer
um certo tipo de abordagem, e também porque o famoso
fato de “estar ali” sempre envolve a experiência pessoal
de cada um (Geertz: 1989). Mesmo quando falamos da
experiência de campo em grupos religiosos, não podemos,
no meu entender, estabelecer padrões de recepção ou de
auto-apresentação que sejam infalíveis ou determinantes
para o êxito de nossa tarefa. (...)

A inserção da pesquisadora em campo e sua experiência pessoal é o que de


fato me mobilizou naquele momento. Montenegro expõe de forma clara que a
pesquisa de campo pode e deve ser realizada de modo diferente, a depender o objeto,
mas que há uma experiência a ser valorizada: os seus percursos, nos âmbitos do
Espiritismo, das Testemunhas de Jeová e, posteriormente, do Islamismo,
correspondem a uma trajetória no campo religioso que se entrelaça com a sua própria
experiência de vida.

Apesar de ter chegado à mesquita do Rio de Janeiro com


certo conhecimento teórico da religião muçulmana,
supunha, como rezava o senso comum, que os muçulmanos
do Rio seriam descendentes de árabes, e que não seria fácil
entrar nesse mundo tratando-se de uma pesquisadora
mulher. Não é casual que todas essas suposições façam
parte de uma imagem que a comunidade muçulmana do Rio
tenta desmistificar, considerando-as “equívocos freqüentes
sobre os muçulmanos e o Islam”40. (...)

Dirigi-me, então, à SBMRJ, localizada num prédio do centro


da cidade. (...) Na sexta-feira seguinte, 20 de Setembro de
1997, começaria meu trabalho de campo. Quando cheguei à
SBMRJ só encontrei umas 40 pessoas, todas do sexo
40
Mais adiante, ao fazer referência à imagem do Islam nos meios de comunicação locais, faremos
referência ao que são considerados os “equívocos freqüentes”. (MONTENEGRO, 2000).
masculino, sentadas no chão, conversando em pequenos
grupos. Acabava de terminar uma sessão de estudos
corânicos entre aqueles que tinham ficado após a oração
coletiva daquele dia. Um deles me indicou quem era o
presidente. Apresentei-me a ele, explicando meus interesses
de pesquisa. Falamos da universidade, da sociologia e da
antropologia, e, oferecendo-me algumas publicações da
Sociedade Muçulmana, convidou-me para assistir aos cursos
sobre História do Islam, que ele mesmo começaria a dar na
semana seguinte. Deu-me, além disso, seus telefones e
cartões pessoais. (...) É conhecido o fato de que o próprio
Alcorão assinala que “Não há compulsão quanto à religião”,
e que, portanto, o proselitismo público é uma atividade
praticamente proibida entre os muçulmanos. (...)

No entanto, como é de supor, uma certa permanência do


pesquisador no grupo se converte num dos aspectos
mais valorizados, pois os muçulmanos, ao se sentirem
“estigmatizados” pelos meios de comunicação, ou
adjetivados como “fundamentalistas”, muitas vezes podem
manifestar certo receio diante da possibilidade de serem
pesquisados. Uma estratégia de pesquisa, nesse sentido,
foi explicitar diante deles as temáticas que me
interessava tratar, assim como manifestar que estava
disposta a manter reserva sobre certas questões sobre
as quais eles se mostram reticentes, tais como a
vinculação do Islam com violência,etc. (...)

Não sendo conversionistas, durante todo esse processo os


muçulmanos nunca me perguntaram se eu desejava me
converter, apenas manifestavam estar interessados em que
“compreendesse corretamente o ponto de vista islâmico”,
objetivo para o qual se mostraram muito solícitos na hora
de contemplar-me com entrevistas e ao oferecer materiais e
publicações das quais a instituição tem assinatura. (...) Cabe
uma reflexão geral sobre fazer trabalho de campo entre os
muçulmanos. A palavra chave parece ser “confiança”. Em
primeiro lugar considero que a pesquisa entre os
muçulmanos participa dos problemas de toda pesquisa do
campo religioso. Existe sempre a expectativa por parte dos
“nativos” de qual é o verdadeiro interesse que motiva a
presença do pesquisador, se espera que ainda quando, como
dizia Max Weber, não tenha “ouvido religioso” pelo menos
compreenda a aqueles cuja ação está sim motivada por
esses valores. (...) Na minha experiência pessoal, a
recepção entre as pessoas das comunidades foi sempre
aberta, uma vez que os grupos sabiam que os motivos
da pesquisa partiam do desejo de conhecer uma religião
sobre a qual muito se fala e pouco se pesquisa. Existe
também um ponto que agora posso chamar de “mito”, isto é,
a ideia de que pesquisar entre os muçulmanos pode ser
difícil se a pesquisadora é mulher. A suspeita dessa
impossibilidade aparece nas perguntas de colegas, nas
observações das defesas de teses, quer dizer, às vezes, faz
parte do sentido comum acadêmico. Certamente, como no
caso da maioria das organizações religiosas, as lideranças
são aqui principalmente masculinas e a vida institucional
asigna papéis diferenciados aos fiéis, segundo sejam
homens ou mulheres. Não falo aqui do Islam em geral,
apenas de certas comunidades do Brasil, nas quais pode se
dizer que ser mulher não representa uma impossibilidade
de acesso, sempre e quando se respeitem, como em
qualquer religião, as fronteiras construídas em torno desses
universos. (...) (grifos meus).

Aqui quero levantar alguns pontos que considero cruciais, apontados no texto
de Montenegro. O primeiro deles: uma certa permanência do pesquisador no grupo
se converte num dos aspectos mais valorizados (...). Esta ideia pode ser revista no
vídeo Vozes do Islã41. De fato, os muçulmanos valorizam os pesquisadores, muito mais
do que os jornalistas, pois consideram que um pesquisador tem mais tempo para se
dedicar a compreender e conhecer corretamente a religião, escapando dos
estereótipos que comumente surgem em matérias jornalísticas, que têm prazos curtos
para serem finalizadas.
O segundo ponto: os muçulmanos nunca me perguntaram se eu desejava me
converter. Aqui abro um parêntese para evidenciar alguns pontos em relação a minha
própria trajetória. No meu caso sempre fui indagada pelos muçulmanos, quando eu
iria me reverter. Depois de algum tempo, comecei a ouvir isso, quase que
sistematicamente. A última vez foi com Sheik Jihad, quando ele me perguntou em que
momento eu faria a Shahada. Respondi, em tom de brincadeira, que eu poderia fazê-la
naquele momento, e recitei os versos. Ele, então, sorrindo, perguntou-me se era de
coração. Disse que sim. E como me conhecesse o suficiente, soube que não se tratava
de uma reversão, mas de alguém que, caso precisasse, já sabia recitar os versos.
Terceiro ponto: sabiam que os motivos da pesquisa partiam do desejo de
conhecer uma religião sobre a qual muito se fala e pouco se pesquisa. Como este
artigo deixa entrever, as pesquisas sobre o Islã têm crescido na academia, mas este
crescimento ainda não é suficiente para que possamos ter uma real dimensão do
fenômeno religioso islâmico no Brasil. Há muito o que investigar sobre as mulheres,
jovens, revertidos, questões políticas, etc. No entanto, valorizo os trabalhos já
produzidos e os que ainda estão em andamento, pois refletem uma aproximação da
universidade com uma religião que carrega um aspecto étnico importante, e que,
talvez por isso, ainda encontre resistências ou dificuldades de entendimento.
Finalmente, um quarto ponto: a ideia de que pesquisar entre os muçulmanos
pode ser difícil, se a pesquisadora é mulher. Aqui cabe uma outra observação: no
Brasil, há menos pesquisadores do que pesquisadoras, quando o tema é o Islã. Talvez
as dificuldades encontradas por Ramos, em sua pesquisa de mestrado (2003), possam
iluminar um pouco esse terreno. Sua dificuldade centrava-se no difícil acesso às
mulheres muçulmanas, e, por isso, suas entrevistas tiveram que ser mediadas pela sua
esposa, que entrevistava as mulheres, repassando a ele as informações, como já falei
anteriormente.

41
Ver FERREIRA (2007). www.lisa.usp.br
Vera Lucia Maia Marques - Conversão e Identidade
Meu nome é Vera Marques, conclui meu mestrado, em
Antropologia, na PUC-SP em 2000. Desde então venho
tentando retomar as pesquisas mas esbarrei em alguns
problemas. Minha dissertação é sobre a conversão ao Islã.
Meu campo de pesquisa foram as comunidades
islâmicas de SP. Depois que defendi o mestrado, fui para os
Estados Unidos para estudar a comunidade islâmica do
meio-oeste norte americano, estudei 6 meses e aconteceram
os atentados de "11 de Setembro". Achei que o momento
não seria propício para a pesquisa. Seria um estudo
comparativo, entre esta comunidade norte-americana e a
comunidade pesquisada em SP.
Em 2005, voltei para a PUC-SP para começar o doutorado,
no entanto mudei para Belo Horizonte e precisei trancar a
matrícula. Neste meio tempo, fui incentivada a redirecionar
minha pesquisa e fui aceita na Universidade de Lisboa mas,
infelizmente, não consegui a bolsa de estudos que
precisava.. Agora, finalmente, consigo minha transferência
para a UFMG e assim, eu espero, ir adiante com o meu
trabalho sobre conversão. Acho ótimo a ideia de reunir
pesquisadores neste grupo42 para que possamos discutir
assuntos de nossos interesses, afinal, pelo que tenho
conhecimento não somos muitos... Obrigada pelo convite e
participação nas discussões43.

Em sua dissertação de mestrado — Conversão ao Islam: o olhar brasileiro, a


construção de novas identidades e o retorno à tradição (PUC/SP, 2000) —, Vera Lucia
Maia Marques busca entender como, em um país de origem basicamente cristã, a
religião islâmica vem ocupando um espaço cada vez maior. Para a autora, “o
convertido por sua vez sempre será um convertido e será sempre um não-árabe”
(2000, p.67-68). Sobre a biografia dos convertidos, ela destaca: (a) a falta de uma
identidade religiosa; (b) o estímulo ao estudo; (c) experiências dramáticas e/ou
desorganização familiar; e (d) a dúvida sobre a existência de Deus (2000, p.87-88). Para
Marques (2000), a segurança é o que move o convertido a participar de um grupo
religioso e, mesmo com a consciência de que essa relação de confiança envolve riscos,
ele passa a fazer parte, psicológica e espiritualmente, do grupo. Trata-se de uma forma
de construir sua auto-estima, sua identidade e ideologia, mas é uma busca religiosa
que está atrelada à ideologia, uma postura étnico/política (2000, p.95).

(...) muitas são as circunstâncias que levam o convertido a


uma busca religiosa, dentre elas destaca-se a busca de
identificação. Mas a forma como cada um adota a religião

42
Referência ao nosso yahoogroups mundoarabeislamico, formado em 2006.
43
Email enviado por email em 2007. Marques defendeu seu doutorado em 10 de dezembro de 2009,
Marques, Vera Lúcia Maia. Sobre práticas religiosas e culturais islâmicas no Brasil e em Portugal: notas e
observações de viagem. 270 p., Belo Horizonte, tese de doutorado, Sociologia, Universidade Federal de
Minas Gerais – UFMG, 2009.
pode ser distinta, envolvendo alternação e conversão. A
alternação é adotada, porém os padrões anteriores não são
totalmente colocados de lado e nem rompidos. Aspectos da
nova e da antiga religião são combinados de forma a criar
uma terceira situação, resultante dessa combinação. A nova
religião representa “circunstâncias” e não uma reorientação
de vida propriamente dita. Em alguns casos, a alternação
pode vir a se tornar conversão que é a forma mais radical de
mudança de visão de mundo e identidade. Nesse caso o
convertido rompe com o passado e externa publicamente
sua nova religião (MARQUES, 2000, p.103).

Segundo a autora, os negros apresentam a visão de resgate étnico. A busca de


identificação reforça a conversão — uma nova forma de conduta de vida, com mais
disciplina (2000, p.104). Marques classifica as etapas de conversão, da seguinte
maneira: (a) momentos de profunda tensão e insatisfação, (b) disposição espiritual, (c)
busca religiosa, (d) oferta religiosa, e (d) estabelecimento de relações afetivas (2000,
p.106). Trata-se de uma reinterpretação de vida.

Giselle Guilhon - O segredo se protege a si mesmo


(...) fiquei tanto tempo girando que resolvi "voltar pra
casa44".
quando decidi estudar os sufis, em 1993, eu estava morando
em Londres... no ano seguinte, entrei para o mestrado em
Antropologia Social da UFSC. Para minha surpresa,
entretanto, meu orientador (que me orientava desde a
graduação em Ciências Sociais) não aceitou minha mudança
de tema (estudava índios Guarani antes!)
mas a minha mudança não tinha volta (essas viradas que
vêm de dentro são como um chamado...) um outro
orientador da História aceitou me orientar. Pedi
transferência para o mestrado de História e defendi minha
dissertação lá. Turquia em 1996, Turquia em 1998, Londres
novamente, em 1999, e o início de um doutorado em Dance
Studies, o qual acabei interrompendo por falta de bolsa.
Casamento, filho, aulas como substituta na FURB
(Blumenau) e na UFSC (Florianópolis) e a decisão de ir pra
Bahia fazer doutorado. Salvador, Paris, Istambul. Meu filho
tinha pouco mais que um ano quando fomos para a Bahia e
cresceu vendo a mãe escrever a tese. Agora ele está com 6 e
precisa se enraizar.

O texto acima é parte de um e-mail enviado por Giselle Guilhon, em 08/12/06,


contando sua trajetória intelectual e por que não dizer de sua vida. Em A Arte Secreta
dos dervixes giradores - um estudo etnocenológico do Sama Mevlevi, tese de
doutorado, escreve45:
44
Voltar para Florianópolis.
45
Mantive as notas de rodapé do texto original de Guilhon.
Desde que elegera o Sama (literalmente, audição) – a
cerimônia dançante dos dervixes46 ou sufis47 da Ordem
Mevlevi ou Ordem dos Dervixes Giradores – como objeto de
estudo antropológico, etnomusicológico e cenológico,
planejava viajar pelo Oriente Islâmico. Mas foi em 1995, sob
a influência do livro A Travessia Dourada, de Sirdar Ikbal Ali
Shah48, que dei os primeiros passos em direção à
concretização da minha intenção. Estava decidida: faria uma
longa viagem, de no mínimo seis meses, não apenas para a
Turquia, berço dos Mevlevi, como também para outros
países do mundo muçulmano, a fim de encontrar,
pessoalmente, os sufis das mais diversas confrarias
existentes.

Em contato, desde 1990, com a escola (tariqat) Naqshbandi


– sob orientação do mestre sufi contemporâneo Sayed49
Omar Ali Shah (1922-2005), filho de Sirdar Ikbal Ali Shah –
eu passava pela dura e, ao mesmo tempo, fascinante
experiência de receber a transmissão viva e direta desse
conhecimento arcano e fundamental que é o Sufismo
(GUILHON, 2006, p.8-9).

Giselle Guilhon (2006) investiga os processos do corpo (e da alma) que


conduzem os dervixes, numa segunda instância, a percorrer uma jornada mística de
morte e renascimento espiritual, seja em busca do conhecimento objetivo ou da
consciência profunda e permanente (haqiqat). Parte do pressuposto de que:

46
Dervixe: palavra de origem persa que significa, literalmente, “aquele que espera na porta”, sendo,
também, associada ao estado de pobreza e simplicidade. No contexto sufi, designa o “buscador”. É uma
tradução do árabe sufi, palavra provavelmente mais antiga (cf. Textos sufis. RJ: Edições Dervish, 1990).
“Agrupados em várias ordens, os dervixes (de darwich; literalmente: ‘louco’) são tanto os ‘loucos de
Deus’ errantes (Qalandari) e os pobres (Fukara, plural de fakir, origem da palavra ‘faquir’) [...] quanto os
dervixes residentes tais como os ‘dervixes giradores’. Uns e outros professam uma forma de iniciação
mística (dhikr, [lataif, Sama]) segundo as vias que lhes são próprias [...]” (cf. CHEBEL, Malek.
Dictionnaire des Symboles Musulmans. Rites, mystique et civilisation. Paris: Albin Michel, 1995, p.
133). (Tradução: minha)
47
Sufi: designa o “buscador”, o praticante do Sufismo. A palavra deriva do radical árabe suf, que
significa “lã”. Os sufis vestiam lã a fim de demonstrar sua rejeição à luxúria. (Cf. MATAR, N. I. Islan
for beginners. NEW YORK: Writers and Readers Publishing, 1992, p. 112) Mas alguns Sufis preferem a
tese de que seu nome provém da palavra saff, que quer dizer “fila” ou “posição”. Dizem que atingiram o
primeiro saff entre os fiéis diante do trono de Deus, em virtude da purificação de sua alma (naf) (cf. ALI-
SHAH, Omar. Prefácio. In: SHIRAZ, Saadi de. Gulistan: o jardim das rosas. São Paulo: Attar Editorial,
2000, p. 16).
48
SHAH, Sirdar Ikbal Ali. A travessia dourada. São Paulo: Edições Dervish, 1995.
49
Sayed quer dizer “descendente do Profeta”: “Nossa família descende de Fátima, a filha do Profeta
Maomé. O homem que fundou uma das grandes religiões monoteístas do mundo, uniu as tribos rivais da
Arábia e teve a possibilidade de acumular uma riqueza incomparável, morreu pobre. Em seu leito de
morte ele definiu seu legado: ‘Não tenho nada para vos deixar, a não ser minha família’ Desde então seus
descendentes são reverenciados em todo o mundo muçulmano e têm o direito de usar o título honorífico
de Sayed”. (Extrato do livro autobiográfico da jornalista Saira Shah, filha do escritor Idries Shah,
sobrinha de Omar Ali-Shah e neta de Sirdar Ikbal Ali Shah. (Ver SHAH, Saira. A filha do contador de
histórias: Uma jornada aos confins do Afeganistão. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 18).
a dança girante dos dervixes (e também a música), são, no
Sama, os condutores e/ou indutores de certos estados de
consciência, pretendo abordar a natureza desse processo de
transmutação alquímica (...), capaz de levar os dervixes,
numa primeira instância, ao “transe” (wajd) ou “êxtase
místico” (tadjali) (2006, p.58).

O texto é vibrante e demonstra como fazer Antropologia da Experiência, a


experiência aprendida com os “nativos”, mesmo sabendo que “o segredo se protege a
si mesmo”, como diz um ditado sufi. Na explicação da autora, essa é uma questão
esotérica e cultural, pois seria o mesmo que perguntar: com que ousadia os ocidentais
têm esperança de penetrar nos segredos do Sufismo?
O texto de Guilhon nos remete a perspectiva apresentada por Vincent
Crapanzano (1994) a respeito da importância do papel das emoções na reflexão de si
mesmo. Para o autor, a categoria emoção contribui para uma reflexão crítica aos
conceitos antropológicos. A emoção como dimensão reflexiva do self do antropólogo
ao mesmo tempo em que se refere a uma abertura às emoções do Outro. Um dos
exemplos dados pelo autor é a etnografia de Abu-Lughod sobre as mulheres beduínas
do Egito que expressam seus sentimentos de tristeza, isolamento e vulnerabilidade por
meio dos poemas. Elas recitam um pequeno poema que descreve o que muitas vezes
não se pode dizer em suas conversas comum, quando são afetadas por fofocas, trata-
se de um meio de se proteger. Este emocional segundo Crapanzano é regido pelas
convenções discursivas (1994, p. 7).

Sonia Hamid – filha de árabes em campo.

Sonia Hamid (Brasília - UnB), em sua dissertação de mestrado defendida em


2007 “Entre a Guerra e o Gênero: memória e identidade de mulheres palestinas em
Brasília”, Hamid percebe como mulheres palestinas – imigrantes e a primeira geração
de descendentes nascidos no Brasil constroem sua identidade em Brasília. Os
elementos que perpassam essa identidade são os conflitos entre Israel e Palestina,
assim como, as prescrições e proscrições quanto ao gênero e a própria auto-
identificação como palestina, refugiada, árabe ou mesma brasileira. O dado
interessante na etnografia de Hamid é sua apresentação como palestina, filha de
palestinos muçulmanos, não praticantes, isto de certa forma contribuiu para sua
pesquisa, como ela mesma conta a respeito do interesse do Sheik pelo seu trabalho,
uma “pesquisadora que estaria retornando ao Islã”. Ela conta:

Com certeza a escolha do tema também foi motivada por


minha biografia. Meus pais são palestinos muçulmanos. Em
minha infância, eles não me levaram à mesquita e nem
praticavam a religião, contudo eles sempre diziam que
éramos muçulmanos e que por isso nosso comportamento
deveria ser diferente dos brasileiros. Hoje, olhando para
trás, vejo que a religião apenas era acionada para justificar
determinadas regras e proibições...atualmente não me
considero muçulmana, mas isto é ambíguo, no entanto que
penso que o islã é um dos traços que revela parte da minha
origem e história.
Gisele Fonseca Chagas – entre o Rio de Janeiro e a Síria

Meu interesse acadêmico sobre o Islã e muçulmanos surgiu


durante minha graduação em História. Na época, estava
interessada em questões envolvendo o Islã político, tendo
como objeto de análise movimentos islâmicos que tinham
como projeto a conquista do poder político como um
instrumento para a “islamização” da sociedade. Deste modo,
decidi fazer minha monografia de conclusão de curso sobre
a página eletrônica do Hizbollah (Partido de Deus),
partido político libanês pertencente à comunidade sectária
xiita do Islã. Neste processo, pude perceber as diferentes
nuances e dinâmicas históricas, sociais, religiosas e políticas
que envolvem o Hizbollah (e, seguramente, os demais
movimentos que tem o Islã como fonte de mobilização
política) que não permitem o seu enquadramento em
categorias fechadas como “grupo terrorista” ou outras deste
tipo. Ainda a partir deste trabalho, pude estudar o mosaico
religioso que compõe o cenário libanês e, inclusive, as
diferentes comunidades religiosas que compõem o Islã,
indicando que sistemas religiosos são dinâmicos e que
devem ser entendidos a partir das articulações entre as
doutrinas e práticas normativas codificadas nos textos
canônicos e os diferentes contextos locais nos quais estes
são apropriados e transformados em realidades sociais.

(...) Essa experiência me despertou um interesse mais


profundo nas práticas dos muçulmanos sunitas do Rio de
Janeiro para além dos discursos doutrinais que estruturam
o Islã, o que me levou à Antropologia e ao PPGA/UFF. (...)
Então, minha pesquisa de mestrado teve como foco
analisar o papel do conhecimento religioso na
construção das identidades religiosas, assim como nos
processos de constituição e legitimação das relações de
poder na comunidade muçulmana sunita do Rio de Janeiro.

(...) Meu primeiro contato com os muçulmanos do Rio de


Janeiro e com a SBMRJ foi no ano de 2002, quando ainda
estava na graduação. Naquele ano, freqüentei regularmente
o curso sobre Islã oferecido na mesquita. Neste sentido, não
tive problemas para me inserir novamente na SBMRJ no ano
de 2005 e iniciar minha pesquisa. Um dos motivos
favoráveis a isso se refere ao fato que a SBMRJ, por
promover cursos abertos à população em geral,
freqüentemente recebe pesquisadores das mais diversas
áreas interessados em saber sobre o Islã, portanto, é uma
comunidade que se disponibiliza a prestar esclarecimentos
e informações a respeito de sua crença e atividades. Outro
fator importante que me facilitou o contato com os
muçulmanos foi que, de certa forma, eu já estava informada
a respeito dos códigos morais e comportamentais do
cotidiano da mesquita e procurei sempre me apresentar
com roupas adequadas para o local, tirar os sapatos antes de
entrar na mesquita, conversar com meus informantes
homens sem nenhum tipo de contato físico (aperto de mãos,
por exemplo). Em nenhum momento precisei usar véu no
interior da SBMRJ.

Dessa forma, para começar o trabalho de campo, optei por


freqüentar novamente o curso sobre o Islã oferecido nos
finais de semana na mesquita. Nesta atividade, estabeleci os
primeiros contatos com meus informantes, a maioria
composta por muçulmanos brasileiros convertidos. Durante
as apresentações no primeiro “dia de aula”, disse que
procurei a SBMRJ por estar fazendo uma pesquisa sobre o
Islã para o mestrado e nada me foi perguntado além disso,
até porque havia outros pesquisadores participando do
curso (uma doutoranda em História e um estudante de
Jornalismo).

As características apresentadas na comunidade do Rio de Janeiro são diversas


daquelas apresentadas em São Paulo, apresenta a maioria de revertido “convertidos”
nos termos de Chagas, é realmente uma peculariedade desta comunidade, muito
embora saibamos que os líderes da comunidade são de origem árabe. Torna-se
relevante o modo como a pesquisadora faz sua inserção em campo, fazendo uso das
aulas de árabe, de religião...essas são estratégias usadas pelas pesquisadoras que
quase sempre apresentam uma aproximação forte com as mulheres a principio.

(...) No entanto, considerei importante procurar estabelecer


contatos com as pessoas que ocupam posições importantes
na SBMRJ, como o líder religioso local e com aqueles que
possuem funções administrativas para informar os
objetivos de minha pesquisa, na tentativa de evitar possíveis
impedimentos ou constrangimentos, principalmente
naquele espaço; uma vez que “parte importante do trabalho
de campo tem a ver com os problemas de identificar, obter e
sustentar contatos que o pesquisador de campo precisa
fazer” (CICOUREL, 1975, p.112).

(...)A maioria dos meus informantes é composta por


muçulmanos brasileiros convertidos e pelas lideranças
religiosas locais. A predominância de muçulmanos
convertidos reflete a própria composição interna da
comunidade, e, entre os muçulmanos convertidos, tive
mais informantes mulheres, tanto solteiras quanto
casadas, que freqüentavam em maior número as
atividades que aconteciam na SBMRJ.

(...) A produção antropológica contemporânea que focaliza


sua discussão no Islã e no mundo muçulmano mais amplo
tem apontado para os dinâmicos processos nos quais a
religiosidade muçulmana tem sido expressada na esfera
pública. (PINTO 2007, DEEB, 2006, MAHMOOD 2005). Tais
análises indicam uma tendência dos agentes religiosos
em se preocuparem mais com questões morais e éticas
que informam seu ser e estar no mundo a partir de uma
visão islâmica, do que um comprometimento militante
com o “Islã político”. Tal processo me influenciou a
escolher “meu campo” para o Doutorado em uma realidade
social diferente do Brasil, majoritariamente muçulmana.

Na Síria, lugar escolhido para a realização desta


pesquisa, o Islã está inscrito na ordem social de
diferentes maneiras, constituindo-se em uma
importante matriz de significados e de recursos
simbólicos e práticos que são apropriados pelos
agentes religiosos como parte de suas identidades,
mobilizando-nos publicamente em múltiplos aspectos
da vida cotidiana. Neste movimento, as mulheres têm
desempenhado um papel fundamental na propagação
dos valores islâmicos na esfera pública síria, sua
presença em instituições de ensino religioso e em
mesquitas, participando de diferentes atividades nestes
espaços, tanto como alunas ou professoras é um
fenômeno recente que faz parte deste processo mais
amplo de marcar suas identidades religiosas nas arenas
da vida cotidiana. É nesta linha que minha investigação
atual segue.

Diferente da comunidade muçulmana no Brasil em que


minha análise, embora predominantemente marcada por
interlocutoras mulheres, tinha possibilidades de contatos
mais constante com os membros homens da comunidade; o
trabalho atual refere-se sobretudo às mulheres e suas
práticas religiosas, dado o contexto cultural-religioso local e
as possibilidades de minha inserção como pesquisadora
mulher. No entanto, as mulheres não são exclusivas nesta
pesquisa, pois há homens entre meus interlocutores,
principalmente líderes religiosos. Esta pesquisa visa
fornecer ao campo da Antropologia da religião no Brasil
um estudo etnográfico de uma outra realidade
religiosa-cultural, o que permitirá não só um
aprofundamento e enriquecimento das discussões
locais através de uma abordagem comparativa, como
também buscará contribuir para a internacionalização
da Antropologia brasileira.

Este artigo teve por objetivo apontar algumas trajetórias de pesquisadoras de


Islã no Brasil, mas vale ainda fazer algumas considerações “finais” que nos remete ao
objetivo pretendido e possa ser objeto de reflexão e outros futuros trabalhos. Em
primeiro lugar, apresento um quadro no qual estão inseridas as sete pesquisadoras,
aqui apresentadas, e suas respectivas trajetórias, para uma auto-etnografia apresento
a minha própria experiência neste quadro.
Pesquisadoras Graduação Mestrado Doutorado Temas
Claudia Voigt Espinola Serviço Social Antropologia Antropologia Waimiri-Atroari (M)
Social Social ISLÖimigração (D)
Silvia Montenegro Ciências Sociais Antropologia Antropologia T.Jeová (M)
Social Social Islã- Identidade (D)
Vera M. Marques Comunicação Ciências Sociais Sociologia Islã – conversão (M)
Social Islã- conversão (D)
Sonia Hamid Pedagogia Antropologia UnB Antropologia Palestinos de BSB (M)
UnB Palestinos – refugiados –
Mogi (D)

Gisele Guilhon Ciências Sociais História Artes Cênicas Islã – dervixes


Islã – dervixes - Sufi
Gisele Fonseca Chagas História Antropologia Antropologia Islã – conhecimento
Social religioso
Islã – Xiita
Francirosy C.B.Ferreira Ciências Sociais Antropologia Antropologia Islã – imagem fotográfica
Social Islã - performance

O quadro nos revela que das 6 pesquisadoras, 4 fizeram graduação em Ciências


Sociais, totalizando 50% da amostra. A maioria fez mestrado e doutorado em
Antropologia. Quando se trata do tema da pesquisa observa-se que 3 pesquisadoras
mudaram de tema para o doutorado. As demais permaneceram com o mesmo tema,
desde o mestrado, com exceção de Gisele Fonseca Chagas que vem pesquisando o Islã
desde a graduação.
O etnógrafo é um pouco como Hermes: um mensageiro que,
mediante técnicas, metodologias para desvelar a máscara,
mergulha no inconsciente obtendo os dados para a
elaboração de sua mensagem através do que permanece
oculto, em segredo... assim, informa acerca de lugares, de
cultura e de sociedade (CRAPANZANO, 1994 p.91).

Esta frase de Crapanzano nos auxilia no modo como devemos encarar o


trabalho do etnógrafo sempre disposto a tentar encontrar formas de compreender, de
se aproximar do seu “objeto” de pesquisa. Neste artigo o desafio foi apresentar
mesmo que de forma preliminar algumas das pesquisas que foram e vem sendo
produzidas no Brasil, por antropólogas, que apresentam modos diferentes de inserção
em campo.
Como foi possível deixar entrever podemos rascunhar algumas perspectivas
levantadas por esses trabalhos, entender não só o significado da religião islâmica para
os muçulmanos, mas entender a relação da religião atrelado a forma de
conhecimento, seja este político, imagético, etc. Em primeiro lugar quero destacar o
interesse mobilizado por questões indiretas ao Islã – imigração, imagem, política,
fundamentalismo. Esses temas mobilizaram a pesquisadora a chegarem no tema mais
amplo. Essas experiências das pesquisadoras geram pesquisas diversas, pois
apreendem o etos islâmico e árabe, de modo diferente e plural. O Islã, território pouco
explorado no Brasil, mas já bem consolidado em outros países (Turquia, Inglaterra,
França, Portugal, Itália, por exemplo) começa enfim a dar os primeiros passos de uma
representação, ainda em fase de construção pelas pesquisas apresentadas, e por
tantas outras que não foi possível registrar no momento (Cf. Hamid 2007; Castro 2007;
Pereira 2001; e outras).
As experiências contribuem para a elaboração de olhares diferentes e são,
sobretudo, elementos catalisadores delas mesmas, expressando-se no texto, na
oralidade, nas performances. Contudo foi importante destacar a experiência de cada
uma: como adentraram neste campo? Como foram mobilizadas a estudar o Islã?
Talvez o que fica de mais rico ao ler esses trabalhos é a diversidade, não só de olhares,
mas de temas escolhidos: imagem, performance, identidade, conversão, migração, etc.

Bibliografia

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Mesa 4: Corpo em cena
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Marianna Monteiro (IA/Unesp)
Corps en scène : la passion du regard, Jean-Marie Pradier (Maison des
Sciences de l’Homme Paris Nord, Laboratoire d’ethnoscénologie)

La scène n’existe qu’en fonction du regard qui s’y porte. Un corps en scène est
un corps regardé. Ce truisme mérite qu’on s’y arrête afin d’examiner ce qu’il implique.
La situation à laquelle il se réfère constitue un système dynamique complexe qui
présuppose la mise en jeu de trois éléments constitutifs à ne pas confondre :

un corps agissant, celui du performeur ;


un corps percevant, celui du regardant – spectateur, témoin, observateur -, qui
fabrique en lui-même l’image qu’il a du corps agissant, perçu ;
et la relation composite, plus ou moins ténue ou dense, qui s’établit ou non
entre les deux corps.

Ce phénomène primaire est universel. A l’œuvre dans l’ensemble des instances


de la vie personnelle et collective, il trouve une expression paroxystique dans ce que
nous appelons les arts du spectacle vivant, mais également les pratiques spectaculaires
les plus triviales comme les peep shows.
À des degrés divers et selon des modalités particulières, l’anthropologie de la
performance, la théâtrologie, l’ethnographie classique, ont les corps en scène pour
objet d’étude. Toutefois, force est de remarquer dans nombre de travaux le fréquent
amalgame des trois composants que je viens de mentionner.

Mon propos d’aujourd’hui est de vous intéresser au corps percevant, à partir de


deux cas concrets ; c’est-à-dire au corps du regardant, qui fabrique en lui-même
l’image qu’il a du corps agissant perçu. Nous verrons en conclusion les raisons qui me
font insister si lourdement sur le mot « corps », que je devrais préciser en lui
adjoignant l’adjectif « humain ». Car il s’agit bien d’une relation entre congénères,
membres d’une même espèce. Encore que, dans l’un des deux cas évoqués se
manifeste la forme d’aliénation perceptive mise en évidence par le psychiatre et
psychanalyste américain Erik H. Erikson (1902-1994) dans l’analyse du phénomène de
« pseudo-spéciation ». Par cette notion, le fondateur de la « psycho-ethnologie »,
pionnier de l’Ecole culturaliste américaine entendait désigner le sentiment pour une
communauté de se considérer comme seule réellement humaine ou plus humaine que
les autres .50
Priorité a longtemps été donnée à ce que Jerzy Grotowski définit comme
« spectacle » lorsqu’il parle « du théâtre des spectacle», ou de l’« art comme
présentation » par opposition à « l’art comme véhicule ». Je cite :

« Si tous les éléments du spectacle sont élaborés et


parfaitement montés (le montage), dans la perception du
spectateur apparaît un effet, une vision, une histoire ; d’une

50 Erik H. Erikson : « Ontogénie de la ritualisation chez l’homme », in Le Comportement rituel chez


l’homme et l’animal, sous la dir. de Julian Huxley, traduit de l’anglais par Paulette Vielhomme,
Gallimard, NRF, Bibliothèque des Sciences Humaines, Paris, 1971, p. 144. (A Discussion on
Ritualization of Behavior in Animals and Man, Philosophical -Transactions of the Royal Society of
London, Series B, n° 772, vol. 251 :247-526.)
certaine manière, le spectacle apparaît non sur scène mais
dans la perception du spectateur. »51

La réflexion de Grotowski, fondée sur une très longue pratique, et l’expérience


de sa propre vie, est au cœur des recherches sur la psychophysiologie de la perception
visuelle. Elle rejoint également les préoccupations actuelles des disciplines qualifiées
de « sciences humaines » qui, rompant avec l’idée positiviste de l’objectivité, prennent
en considération le regard de celui ou de celle qui regarde. Les recherches sur la
réception, dans le domaine des études théâtrales, proposent de multiples ouvrages
« d’analyse du spectacle ». En dehors d’études de sociologie historique ou statistique
sur les publics, il en est peu, jusqu’à présent qui ont pour titre : « Analyse du
spectateur ». A l’inverse, la psychologie sociale a depuis longtemps mis en évidence les
biais de jugement qui travaillent l’impartialité des témoins, et des jurys au cours des
délibérations.52

*
**

Les deux cas que je vais présenter brièvement portent sur la mise en scène de
corps féminins à des fins à la fois commerciales et scientifiques. Ces monstrations-
démonstrations ont engendré un effet d’intense curiosité dans la société européenne,
notamment française, des XIXe et XXe siècles. Fort dissemblables en leur apparence et
dans le traitement qui leur a été réservé, ces corps ont en commun d’avoir été
manipulés. L’un d’eux a même subi le regard jusqu’après la mort. Disséqué, organes
mis en bocaux de formol, cadavre moulé en plâtre pour être exposé, il a repris vie dans
nos imaginaires collectifs presque deux-cents après, dans un imbroglio politique,
culturel et intellectuel. Pour les scientifiques, la mise en scène de ces femmes a servi
de faire-valoir à la théorie, de telle sorte que leurs corps ont été pré-jugés plutôt que
perçus, commentés au lieu d’être décrits.

Le premier cas s’ébauche dans les colonies hollandaises du Cap de Bonne


Espérance, aux alentours de l’année 1770, date de naissance de Sawtche, une petite
fille Khoisan. Khoisan ne dit rien à l’imaginaire collectif. En revanche le mot Hottentot
est beaucoup plus parlant, alors qu’il n’est qu’une toquade du vocabulaire. Les
spécialistes en discutent l’origine. Venu du hollandais ancien, le mot Hottentot serait
une onomatopée populaire désignant un groupe humain ayant en partage une langue
qui pour une oreille inculte et méprisante pourrait ressembler au caquet de dindons.
Le dictionnaire Webster définit le Hottentotism comme un trouble de l’élocution: « a
kind of stammering »53, une sorte de bégaiement. Les phonéticiens quant à eux
nomment langues à clicks, celles où l’on observe un type d’articulation comprenant

51 Jerzy Grotowski: “De la compagnie théâtrale à l’art comme véhicule”© 1993, in Thomas Richards:
Travailler avec Grotowski sur les actions physiques, préface et essai de Jerzy Grotowski, coll.”Le Temps
du Théâtre”, Actes Sud/Académie Expérimentale des Théâtres, 1995, p. 181
52 James Konow : "Is fairness in the eye of the beholder? An impartial spectator analysis of justice »,
Social Choice and Welfare, 2009, Volume 33, Number 1, Pages 101-127
53 Webster’s New Universal – Unabridged Dictionary, second edition 1979 : “Hottentotism : a
charasteristic of the Hottentots; especially, a kind of stammering.” Page 880
des consonnes « injectives » produites par raréfaction de l’air entre deux points de
fermeture dont l’un est toujours vélaire. Les traits phonologiques ne sont pas seuls à
marquer la singularité des Hotentots, remarque la linguiste Jacqueline Manessy-
Guitton :

« L’homogénéité de la famille khoisan a été fondée autant


sur la forme et l’ampleur des hanches des sujets parlants
que sur le mécanisme articulatoire des clicks. »54

Du point de vue physique, en effet, les Hottentots sont très proches des
Bochimans : « peau brun-jaune, yeux écartés, cheveux « en grains de poivre »,
stéatopygie et macronymphie ; ils sont toutefois un peu plus grands » (Jacques
Maquet, 2007). Ces deux mots académiques « stéatopygie » et « macronymphie », ont
été prioritairement retenus dans la construction de la légende hottentote élaborée par
la majorité des voyageurs, véhiculée et enjolivée par leurs récits souvent recomposés
et commentés par des plumitifs sédentaires. La stéatopygie ou lipomatose des régions
fessières n’est pas propre aux communautés dites hottentotes. Elle a été observée en
France.55 Au regard, elle offre une obésité localisée à l’arrière-train, qui n’est pas sans
rappeler la mode des « faux-culs » inaugurée par les courtisanes au temps de Louis
XIV, et prolongée bien après. Cette hyperplasie génétique du tissu adipeux se
rencontre dans certaines populations, dont les Khoisan.
La macronymphie en tant que trait singulier de l’appareil génital externe de la
femme est beaucoup plus intrigante. Comme son nom l’indique, elle correspond à un
développement anormal en longueur et volume des nymphes ou petites lèvres. Très
tôt se répandit la rumeur que les femmes hottentotes présentaient cette
caractéristique physiologique auquel fut donné le nom de « tablier », « tablier
naturel », ou encore « tablier des hottentotes ». À la différence de la statuaire et de la
peinture classique inspirée de l’Antiquité pour laquelle le sexe de la femme figure sans
pilosité ni « porte de jade » évidente qui incite à y pénétrer, la macronymphie est
perçue comme une exaspérante ostension de la sexualité. Au point d’avoir enflammé
l’imagination de physiologistes qui, à l’instar de Gustav Fritsch (1838-1927) y voyaient
la source d’une sensualité primitive et bestiale.
A dire vrai, dans la fantasmagorie délirante inspirée d’une certaine littérature
coloniale, le Hottentot tenait par excellence l’emploi du sauvage aux limites de
l’animalité. Des récits de voyage plus ou moins fiables avaient fait naître des images de
corps aux difformités aussi étranges que l’étaient les mœurs des populations visitées.
En témoigne un ouvrage imprimé à Amsterdam chez Jean Catuffe en 1743, tiré des
mémoires de Peter Kolb, Maître ès Arts allemand, qui avait été envoyé dans la colonie
du Cap de Bonne Espérance pour y faire des Observations Astronomiques & Physiques.
La préface de Jean Bertrand (1708-1777), son traducteur, est éloquente. Après avoir
fait l’éloge de la colonisation hollandaise, il cite le célèbre Mr. La Croze, Bibliothécaire
& Antiquaire du Roi de Prusse :

54 Jacqueline Manessy-Guitton : André Martinet (sous la direction de) « les familles de langue » Le
Langage – Encyclopédie de la Pléiade, Gallimard, 1968, p. 1232
55 voir un spécialiste de la question au début du XXème siècle : Felix regnault : « A propos de la
stéatopygie en France », Bulletins et mémoires de la société d’anthropologie de Paris, volume 3, 3-5-6,
pp. 398-399, 1912
« De tous les Barbares connus, ces Peuples (les Hottentots)
sont les plus hideux & les plus dégoutans par leur saleté &
leur puanteur insupportable. »56

Quant au corps des femmes :

« Les Hottentotes ont toutes une excrescence remarquable,


dont la description doit trouver place ici. C’est une espèce de
peau dure & large, qui leur croît au-dessus de l’os pubis, &
qui descendant assez bas, semble destinée par la nature à
couvrir leur nudité. Elles portent cependant par-dessus une
pièce de peau de mouton qu’on appelle kut-Krosse. Cette
excrescence est quelque fois si grande, qu’elle ne peut être
entièrement cachée par la peau qui leur sert de couverture.
Quelque difforme que puisse paraître aux Européenes cette
peau naturelle, les Hottentotes ni leurs maris ne la
regardent point comme un défaut. Si la malpropreté & la
graisse ne vous empêche pas d’examiner de près cette
excrescence, vous pouvez satisfaire votre curiosité pour un
peu de tabac, ou quelque bagatelle semblable »57

Devenue pubère, Sawtche, alors servante d’un fermier boer, et compagne


éphémère d’un pauvre blanc, présente ces traits physiologiques spectaculaires qui font
naître une idée à son maître : pourquoi ne pas la produire en spectacle en Europe,
friande de curiosités exotiques et érotiques ? Elle part avec lui en Grande-Bretagne en
1810, puis en France. Exhibée comme sauvage femelle, à la façon des « freaks »,
ironiquement célèbre sous le sobriquet de Vénus Hottentote, elle fascine les publics
les plus divers : le « populo » aussi bien que les aristocrates parisiens libertins qui
l’invitent à des soirées privées. Plus, elle devient objet d’étude et de spéculation pour
l’administrateur du Muséum National d’Histoire Naturelle, le naturaliste Etienne
Geoffroy Saint-Hilaire spécialiste de tératologie, et Georges Cuvier, professeur
d’anatomie comparée. L’ayant fait conduire au muséum, elle subit divers examens
anthropométriques et craniométriques, mais ne cède pas aux instances de Cuvier qui
tente de constater de visu l’existence de ce fameux « tablier naturel ». Elle meurt à
Paris dans la nuit du 29 décembre 1815, alcoolique, prostituée supposée, et malade.
Aubaine pour les savants qui, après avoir acheté son cadavre, obtiennent la permission
de l’autopsier au Muséum comme un vulgaire animal. Cuvier fait un moulage entier du

56 Peter Kolb : Description du Cap de Bonne Espérance : où l’on trouve tout ce qui concerne l’histoire
naturelle du pays ; La Religion, les Moers & les Usages Des Hottentots ; Et L’Etablissement des
Hollandais, Volume 1 tirée des mémoires de M. Pierre Kolbe , Maître ès Arts – Dressé pendant un séjour
de dix années dans cette Colonie, où il avait été envoyé pour faire des Observations Astronomiques &
Physiques
A Amsterdam chez Jean Catuffe 1743 traduit de l’allemand par Jean Bertrand, p. xj
57 Peter Kolb : Description du Cap de Bonne Espérance : où l’on trouve tout ce qui concerne l’histoire
naturelle du pays ; La Religion, les Moers & les Usages Des Hottentots ; Et L’Etablissement des
Hollandais, Volume 1 tirée des mémoires de M. Pierre Kolbe , Maître ès Arts – Dressé pendant un séjour
de dix années dans cette Colonie, où il avait été envoyé pour faire des Observations Astronomiques &
Physiques- A Amsterdam chez Jean Catuffe 1743 p. 107
cadavre, détache et récupère le squelette, dépose le cerveau et les nymphes
monumentales dans des bocaux.
La destinée de la petite fille Saartje ne s’est achevée qu’en 2002 après de
longues et difficiles négociations entre l’Afrique du Sud et le gouvernement français. Le
9 août de cette année, les restes de sa dépouille mortelle restitués par la France ont
été inhumés à Hankey au cours d’une cérémonie solennelle de funérailles en présence
du Président Sud Africain Thabo Mbeki. Il avait été nécessaire pour obtenir ce retour
au pays qu’une proposition de loi présentée au Sénat par M. Nicolas About ait été
adoptée par l’Assemblée Nationale. Enfin, Sawtche, alias Saartje Baartman,
christianisée avec le prénom de Sarah, repose selon la coutume, dans une tombe
modeste située sur la colline de Vergaderingskop, près de la rivière Gamtoos.

*
**

Je n’évoquerai que brièvement le second cas, car infiniment moins tragique,


aux limites de l’illusion collective, il est l’envers du préjugé négatif du regard porté sur
la Venus Hottentote. En effet, on y rencontre les spectateurs invités à percevoir dans
les mouvements expressifs d’un corps féminin que l’on estime libéré des
apprentissages culturels, l’exquise vérité et la beauté originelle de l’art qui vient de la
pure nature. L’histoire s’amorce le 2 avril 1902. Une dame jeune, élégante,
mystérieuse et particulièrement émotive rend visite à Emile Magnin, professeur de
l’école de magnétisme de Paris. Née à Tiflis, caucase, elle a pour père un Genevois,
pour mère une Caucasienne, française de père. Après avoir pratiqué la danse et le
piano à Genève, sans révéler de dons particuliers, mais plutôt une tendance à la
paresse, elle songe à faire du théâtre. Devant l’opposition de sa famille, elle suit des
cours de chant à 17 ans. Pour le Professeur Magnin, la jeune femme est une intuitive,
capable d’apprendre les langues étrangères sans effort. À 27 ans, mère de deux
enfants, installée à Paris, elle consulte pour maux de tête d’origine neurasthénique.
Magnin lui propose une psychothérapie par hypnose. S’ensuivent des
expérimentations multiples. Le Professeur plonge la dame en état de sommeil
hypnotique, puis, alors qu’elle est endormie, il la stimule par des consignes poétiques
et musicales afin de découvrir dans ses réactions dansées ou posturales le secret de
l’expression naturelle des sentiments. C’est un triomphe ! Savants, artistes et
mondains se pressent dans les théâtres pour applaudir la dame qui est entrée dans
l’Histoire sous le nom de Magdeleine G.58

*
**

L’infortune européenne de Saartje Baartman a donné lieu à de nombreuses


publications plus ou moins savantes. Spécialiste de l’histoire de l’art d’Afrique Centrale
et de l’Ouest, Zoë Strother lui consacre un chapitre dans l’ouvrage coordonné par
Bernth Lindfors et qui est proche de nos preoccupations: Africans on stage – studies in

58 Emile Magnin : L’art et l’hypnose – interprétation plastique d’œuvres littéraires et musicales, préface
de Théodore Flournoy, deuxième édition, Genève ATAR, Paris Felix Alcan, 1905
ethnological show business (1999).59 La restitution de la dépouille de Sarah Baartman à
sa terre d’origine s’est accompagnée d’un élan éditorial significatif, notamment en
langue anglaise.60 L’affaire des « zoos humains » tout aussi scandaleuse n’avait pas eu
pareille attention.61 Dans l’une de ses chroniques de vulgarisation scientifique qu’il
rédigeait avec un humour piquant pour le Natural History Magazine, le célèbre
paléontologue Stephen Jay Gould (1941-2002) s’était interrogé sur les ambiguïtés
scopiques des savants et du public en prenant en exemple le cas de la Venus
Hottentote. L’article a été repris dans le recueil The Flamingo's Smile (1985)62. En
langue française, ce sont des journalistes ou écrivains qui ont produit la majorité des
biographies de la Venus Hottentote.63 Retenons également le succès du roman
historique de l’écrivaine, poètesse et sculptrice américaine Barbara Chase-Riboud
publié en 2004 aux Etats-Unis, et à Paris, dans sa traduction française. J’ajouterais à
ces références un document officiel de l’Etat Français qui mériterait une étude
particulière. Le 4 décembre 2001, au cours d’une séance ordinaire du Sénat, Monsieur
Nicolas About membre de la Haute Assemblée, médecin de formation et président du
Groupe Union Centriste présenta la proposition de loi n° 3561 dont l’article unique
stipulait :

« Par dérogation à l'article L.52 du code du domaine de


l'État, il est procédé à la restitution par la France de la
dépouille mortelle de Saartjie Baartman, dite « Vénus
hottentote », à l'Afrique du Sud. »

De fait, devenus objets de musée, en bocal ou sous vitrine, le corps de Saartjie


Baartman était devenu un bien national, propriété de l’Etat Français, comme l’a été le
toi moko, la tête tatouée d’un guerrier maori, détenu depuis 1875 par le Muséum
d’Histoire Naturelle de la ville de Rouen, finalement solennellement rendu à la
Nouvelle Zélande le lundi 9 mai 2011. Qu’en sera-t-il des échantillons de sang prélevés
sur plusieurs milliers de Yanomami dans le nord du Brésil à la fin des années soixante

59 Bernth Lindfors (edited by) : Africans on stage – studies in ethnological show business, Indiana
University Press, Bloomington, 1999 - Chapitre 1 : display of the Body Hottentot, par Z.S. Strother, pp.
1et ss.
60 Rachel Holmes : The Hottentot Venus: The Life and Death of Saartjie Baartman: Born 1789 - Buried
2002 , Bloomsbury Publishing PLC , (2005) 2008
Rachel Holmes : African Queen: The Real Life of the Hottentot Venus, Random House, 2007
Deborah Willis (sous la dir. de) : Black Venus 2010: They Called Her "Hottentot", Temple University
Press,U.S. 2010
Clifton Crais & Pamela Scully : Sara Baartman and the Hottentot Venus: A Ghost Story and a Biography,
Princeton University Press; Édition : Reprint 2010
61 Nicolas Bancel, Pascal Blanchard, Gilles Boëtsch et Eric Deroo : Zoos humains : Au temps des
exhibitions humaines , Éditions La Découverte, Paris, 2004
Emmanuel Garrigues : « Les villages noirs en France et en Europe, ou le ‘ zoo humain ‘ »,
L’Ethnographie, nouvelle édition, été 2001, editions de L’Entretemps, pp. 62-93
62 Stephen Jay Gould : The Flamingo's Smile. Norton and Cie. 1985. Le Sourire du flamant rose.
Réflexions sur l'histoire naturelle. (traduit de l' américain par Dominique Teyssié en collaboration avec
Marcel blanc). Paris. Points/Seuil 1988
63 Carole Sandrel : Vénus & Hottentote : Sarah Bartman (préface de Jean-Denis Bredin), Librairie
Académique Perrin (18 mars 2010) journaliste
Gérard Badou : L'Enigme de la Vénus hottentote, Jean-Claude Lattès (8 mars 2000) journaliste et écrivain
par des laboratoires de recherche américains, attendus depuis mai 2010 par les
familles ?
Les motifs exposés en 2001 par le Sénateur pour justifier sa proposition de loi
sont éloquents. Ils méritent d’en citer l’introduction :

« L'histoire de Saartjie Baartman est pathétique. Originaire


d'une ethnie sud-africaine, elle fut convaincue un jour par
un Hollandais de quitter son pays natal, pour rejoindre
l'Europe. C'était au début du XIXe siècle. A son arrivée à
Londres, le rêve se transforma rapidement en cauchemar :
elle fut exhibée comme une bête de foire, puis servit d'objet
sexuel lors de soirées privées, avant de sombrer finalement
dans la prostitution. Elle termina sa courte existence à Paris,
où elle devint un objet de curiosité scientifique. Son corps
fut disséqué, son cerveau et ses organes conservés dans du
formol, et son squelette exposé au musée de l'Homme, tel un
vulgaire trophée ramené d'Afrique.
Il est stupéfiant de penser que cette sordide exhibition a
duré en France jusqu'en 1974. Aujourd'hui, les restes de
cette femme pourrissent dans une remise du musée de
l'Homme.
Longtemps présentée en Europe comme un exemple de
l'infériorité africaine, Saartjie Baartman est devenue, dans
son pays, le symbole de l'exploitation et de l'humiliation
vécues par les ethnies sud-africaines, pendant la
douloureuse période de la colonisation. Depuis plusieurs
années, le gouvernement sud-africain réclame à la France la
restitution des restes de cette femme, afin qu'elle puisse
recevoir les honneurs de son peuple, et reposer en paix,
dans une sépulture décente. Le retour de la « Vénus
hottentote » en Afrique du Sud serait vécu comme le
symbole de la dignité retrouvée d'un peuple. »

Après avoir fait état de l’émotion soulevée en Afrique du Sud par l’histoire de
Saartje Baartman, le sénateur conclut par le « poème pour Saartjie » de Diana Ferrus,
poétesse militante sud-africaine. Conformément au règlement, la proposition de loi fut
renvoyée à la commission des Affaires Culturelles Familiales et Sociales qui constitua
une commission chargée de rédiger un rapport. Ce dernier signé par son président, le
député socialiste Jean Le Garrec, représente un texte d’une vingtaine de pages, denses
et précises. Il a le mérite de faire ressortir la responsabilité des scientifiques du passé
et du présent, parfois leur racisme et mauvaise foi allant jusqu’au mensonge lors de la
dernière enquête destinée à localiser les dépouilles de Saartje Baartman. Le
rapporteur retrace leur malheur post-mortem. Dès la fondation du Musée de l’Homme
en 1937, le moulage du corps et les organes conservés dans les bocaux sont transférés
du Jardin des Plantes au Trocadero. Le squelette et le moulage sont présentés tout
d’abord dans la galerie d’anthropologie physique jusqu’en 1974. Puis le moulage passe
étrangement dans la salle de préhistoire avant d’être stocké dans les réserves. Les
bocaux où baignent dans le formol le cerveau et l’appareil génital ont un sort plus
déconcertant :
« tenus pour disparus des réserves du Musée de l’Homme au
cours des années 1980, ils ont été semble-t-il très
recemment retrouvés puisqu’ils figurent désormais dans
l’inventaire officiel de ce musée, ainsi que l’a confirmé le
ministre de la recherche au cours des débats au Sénat. »64

Nuancées, les reproches adressées au monde savant font appel au regard


critique porté sur les dérives de l’idéologie scientifique, par les scientifiques eux-
mêmes, dont Darwin et Stephen Jay Gould abondamment cités, non sans mettre en
cause l’opinion publique, et la société des médias :

« En dépit de l’invalidation des théories scientifiques du


XIXème siècle et de l’évolution des mentalités intervenues
depuis la décolonisation, on ne peut que s’interroger sur les
motifs de la persistance de l’exposition du squelette et du
moulage de Saartje Baartman jusqu’en 1976, puis à nouveau
en 1994 par le Musée d’Orsay – certes contre l’avis du
directeur du Muséum -, ainsi que sur ceux, sans doute
différents, des atermoiements du Muséum relatifs à cette
restitution. »65

Atermoiements du monde politique également, sous les présidences de


François Mitterand et Jacques Chirac. En réponse aux demandes expresses de l’Afrique
du Sud, les politiques n’avaient cessé de promettre, sans passer aux actes :

« Depuis 1994, l’accès aux restes de Saartje Baartman, qui


font partie des collections du laboratoire d’anthropologie
biologique du Muséum national d’histoire naturelle, est
limité aux personnes autorisées par le directeur général sur
recommandation de l’ambassade d’Afrique du Sud. »66

Ainsi, le 7 mars 2002, le Journal Officiel publia la Loi n°2002-323 du 6 mars 2002
relative à la restitution par la France de la dépouille mortelle de Saartjie Baartman à
l'Afrique du Sud. Elle comportait un seul article :

« À compter de la date d'entrée en vigueur de la présente loi,


les restes de la dépouille mortelle de la personne connue
sous le nom de Saartjie Baartman cessent de faire partie des
collections de l'établissement public du Muséum national
d'histoire naturelle.

L'autorité administrative dispose, à compter de la même


date, d'un délai de deux mois pour les remettre à la
République d'Afrique du Sud. »

64 P. 8
65 Assemblée Nationale. N° 3563 – Enregistré à la Présidence de l’Assemblée Nationale le 30 Janvier
2002. Document mis en distribution le 7 février 2002. Rapport fait au nom de la Commission des Affaires
Culturelles, Familiales et sociales sur la proposition de loi, adoptée par le Sénat, relative à la restitution
par la France de la dépouille mortelle de Saartje Baartman à l’Afrique du Sud, par M. Jean Le Garrec,
député. P. 16
66 p. 8. Rappel est fait dans le rapport de l’attitude des différents gouvernements français.
*

La publication des lois et les ouvrages d’histoire des sciences touchent moins le
grand public que ne le font les romans et surtout les images. Le film très remarqué
d’Abdellatif Kechiche « Venus Noire » - Vênus Negra - , apparu sur les écrans en 2009,
a provoqué une secousse capable de bouleverser et de porter à la réflexion. Je pense
que certains d’entre vous l’ont vu puisqu’il a été distribué au Brésil.
Né en Tunisie, cinéaste apprécié, Abdellatif Kechiche vient du théâtre. Venus
Noire est son quatrième film, sans doute celui dont l’impact a été le plus puissant.
Dans un entretien il s’explique sur ses intentions :

« Je viens du théâtre. Le regard du spectateur sur celui qui


se donne en représentation me fascine. Le rapport entre le
public et l’artiste également. Tout cela amène à s’interroger
sur la responsabilité de celui qui regarde. Je n’ai pas voulu
accuser de racisme les spectateurs des exhibitions de la
Vénus, ou en faire de simples voyeurs. Simplement les
67
regarder vivre ce spectacle. »

Particulièrement réussi, en grande partie conforme à la réalité des faits, le film


dépeint avec talent la brutalité, la grossièreté, et parfois la cruauté du voyeurisme des
publics, qu’ils soient populaires, aristocratiques ou scientifiques. C’est précisément le
personnage du savant Georges Cuvier qui a provoqué les commentaires les plus vifs de
la part d’internautes choqués par son attitude. Il y a de quoi. Les premières images du
film montrent une assemblée docte et jacassante rassemblée sur les gradins d’un
amphithéâtre de l’Académie Royale de médecine en 1815. Une forme érigée sur un
socle, recouverte d’un tissus blanc a été disposée sur le côté de la scène. On distingue
placés sur des chevalets des croquis anatomiques de l’appareil génital féminin. Un
bocal où semble flotter une forme non identifiable est posé sur une table où se
trouvent un livre et des feuilles de papier. Soudain, un homme aux cheveux blancs
entre d’un pas assuré, digne, distant, tout occupé à ses pensées. Il est suivi par un
jeune assistant qui prend place derrière lui. La salle se tait et applaudit. L’homme est le
baron Georges Cuvier, interprété par François Marthouret, un acteur de talent plus âgé
de 20 ans que son personnage – en 1815, Cuvier n’a que 46 ans. Sans préambule, il
lance:

« Il n’y a rien de plus célèbre en histoire naturelle que le


tablier des hottentotes ; et en même temps il n’est rien qui
n’ait été l’objet de plus nombreuses contestations »

l’assistant fait tomber le tissu ; le moulage réaliste du corps de Sarah apparaît :

67 « Abdellatif Kechiche Le Sphinx », propos recueillis par Auréliano Tonet, in Venus Noire une histoire
de violence, p. 8, livret du film reprenant des extraits du supplément réalisé en octobre 2010 par la
rédaction du mensuel culturel Trois Couleurs, édité par MK2
« j’ai l’honneur de présenter à l’académie les organes
génitaux de cette femme, préparés de manière à ne laisser
aucun doute sur la nature de son tablier »

En gros plan, le bocal occupe l’écran, et dévoile ce qu’il contient. « je vous en


prie faites passer », demande Cuvier qui entame un cours d’anatomie descriptive.
La démonstration se poursuit. La macronymphie à elle seule ne suffit pas à
établir un rapport entre cette femme et les singes. La stéatopygie constitue une
preuve plus évidente. Le moulage est retourné d’un geste vif en direction du public.
Pour le conférencier n’est-ce pas le signe d’un appariement avec le singe, si l’on
considère la similitude d’aspect des callosités fessières de Vénus Hottentote et de la
femelle mandrill. Puis, il y a l’allongement du museau, l’étroitesse du crâne :

« …le nègre comme on le sait a le museau saillant, et la face


et le crâne comprimé par les côtés… »

La conclusion est sans appel, après que comparaison ait été faite avec la tête
d’une momie égyptienne :

« …loi cruelle qui semble avoir condamné à une éternelle


infériorité les races à crâne déprimé et comprimé. »

Cette première séquence du film d’Abdellatif Kechiche est longue. Pendant six
minutes, des gens policés se livrent à un exercice de racisme scientifique. En toute
subjectivité. Le flash back qui lui fait suite n’en est que plus efficace dans la mesure où
voyeurisme banal et cécité académique avouent leur parenté. Ce je souhaite apporter
aux multiples commentaires et études qui accompagnent la Venus Hottentote,
concerne plus précisément trois questions fondamentales pour la recherche en
ethnoscénologie :

les biais introduits par la théorie dans le regard de l’observateur ;


le poids de ses apprentissages ;
la nécessité de partir du concret pour aller à l’abstrait et non l’inverse, selon la
recommandation de Marcel Mauss. Le recours incantatoire à la notion « d’observation
participante » ne suffit plus. Il me paraît indispensable en revanche d’interroger ce que
signifie « observer ».

Tout d’abord, deux mots sur Jean-Léopold-Nicolas-Frédéric (dit Georges)


Cuvier. Contrairement à ce qu’il apparaît dans le film, en 1815 il est un homme jeune.
Né le 23 août 1769 il n’a que 46 ans. Il va brutalement mourir 17 ans plus tard en
pleine gloire à l’âge de soixante-trois ans seulement. Courte existence pour une
scientifique remarquable considéré comme le plus grand de son époque. Originaire de
l’Est de la France alors rattaché au duché germanique de Wurtenberg, il vient d’une
famille protestante qui le destine à devenir pasteur. Ayant échoué au concours
d’entrée au séminaire, il se tourne vers l’histoire naturelle. Kielmeyer, biologiste
allemand de renom lui apprend à disséquer, et lui donne le goût de la théorisation en
anatomie. Après ses études et quelques emplois opportunistes, il part pour Paris, où
sur recommandation il rencontre le fameux naturaliste Etienne Geoffroy Saint-Hilaire,
de 3 ans son cadet et déjà professeur au Muséum. Les deux jeunes gens se lient
d’amitié et publient, entre autres essais, une Histoire Naturelle des Orangs Outans, une
vingtaine d’années avant d’être mis en présence de la Venus Hottentote. Les deux
amis ne partagent pas les mêmes points de vue. Ce qui n’empêche pas Geoffroy Saint-
Hilaire de faire entrer Cuvier au Muséum d’Histoire Naturelle de Paris en 1795, à l’âge
de 26 ans. Treize ans ans plus tard, Cuvier en devient le directeur. Philippe Taquet, lui-
même paléontologue, décrit fort bien la double sinon triple carrière fulgurante,
scientifique, administrative et sociale – il est promu baron par Charles X -, d’un homme
intelligent et ambitieux, pris dans l’effervescence de la révolution, ses bonnes relations
avec les pouvoirs successifs – République, Empire, Restauration-, les controverses qui
l’opposent à ses collègues. Détesté par certains, il est admiré par d’autres dont Honoré
de Balzac qui, dans la peau de chagrin, le considère comme le plus grand poète de
notre temps.68
Dès les premiers moments de son œuvre scientifique, Cuvier apparaît comme
un bâtisseur de théories et de systèmes dont il na de cesse de prouver le bien-fondé
par l’analyse de signes anatomiques. Fixiste, créationniste, il rompt avec la notion
ancienne de continuité du vivant et s’oppose à l’idée d’évolution. L’extinction des
espèces, pense-t-il est dû à de grandes catastrophes survenues au cours du temps.
L’histoire des sciences le retient en qualité de pionnier de l’anatomie comparée, et
fondateur de la paléontologie des vertébrés.
Pour ma part, ce que je retiens est une histoire personnelle, une tournure
d’esprit qui le conduisent à s’appliquer à la théorie plutôt qu’au terrain. Cuvier part
d’une théorie dont il attend confirmation par l’observation sans se douter que
l’observation est susceptible d’être biaisée par la théorie. Ainsi crut-il remarquer que le
cerveau de la Venus Hottentote qu’il avait autopsiée ne présentait pas la totalité des
circonvolutions observables sur un cerveau humain normal. De même, le crâne et le
moulage du corps n’ont rien de commun avec une quelconque oligocrânie associée à
une oligophrénie encore moins avec un museau de singe.
Ce n’est pas sous-estimer son génie, de dire de ce naturaliste qu’il a été un
homme de cabinet et de laboratoire. Il procède avec dextérité à des dissections sur des
animaux mort qu’on lui apporte ; il interprète avec brio des ossements fossiles. Au
temps des classifications, c’est un homme rigoureux, logique. Il lui manque – mais
peut-on le lui reprocher ? -, le sens de l’aventure humaine, les voyages, et les longues
déambulations qui ont préparé et éduqué le jeune Darwin (1809-1882), parti sur le
Beagle pour cinq ans accomplir un tour du monde.
Il est vrai qu’il faudra attendre la génétique du XXème siècle et ses
développements les plus récents, pour passer d’une culture du phénotype perceptible
à l’œil nu – le corps apparent, ses formes, ses couleurs –, à l’analyse infiniment plus
problématique et subtile de la complexité des héritages biologiques.

*
**

Aux origines de toute théorie se trouve un théoricien, c’est-à-dire une


biographie. Cette évidence a été formulée avec force en tant que mise en garde par

68
Philippe Taquet : Georges Cuvier : Naissance d'un génie, éditions Odile Jacob, 2006
lire également : Eric Buffetau : Cuvier découvreur de mondes disparus, Belin/Pour la science, Paris, 2002
nombre d’anthropologues - Georges Condominas, Leiris, Balandier … -, critiques au
regard de l’intellectualisme de certaines études. Elle constitue l’une des revendications
majeures de l’anthropologie réflexive. Son bien-fondé m’est apparu royalement au
cours de mes recherches sur la Vénus Hottentote, avec la rencontre d’un ornithologue
français novateur, contemporain de Cuvier, dont l’histoire personnelle, le profil
psychologique, la vie sociale, le rapport au pouvoir, la façon de penser et de pratiquer
la science, d’approcher les Hottentots et les femmes hottentotes en font l’antithèse
radicale du célèbre baron.
En décembre 1789, le journal encyclopédique annonce la sortie prochaine d’un
ouvrage en deux tomes au titre prometteur : Voyage de M. François Le Vaillant dans
l’intérieur de l’Afrique par le Cap de Bonne-Espérance Dans les Années 1780, 81, 82,
83,84 & 85.69 Le journal allèche la curiosité de ses lecteurs par un détail croustillant:

« Dans un premier voyage, le public jouira, entr’autres


figures exactement dessinées & gravées d’après lui de la
vraie figure de la Hottentote connue sous le nom de la
Hottentote au tablier naturel, & l’on verra tout ce qu’il faut
enlever de merveilleux & d’extravagant à cette fable
“Hottentote à tablier naturel” »70

Le livre de François Le Vaillant jouit d’un étonnant succès dès les premiers jours
de sa publication. Il est rapidement traduit en sept langues et réédité jusqu’en 1884
par Garnier Frères, à Paris, avec des illustrations de Defendi Semeghini (1852-18891)
mais amputé de la préface. On y découvre combien était trompeuse l’accroche
publicitaire du Journal Encyclopédique. Bien que le français maladroit de son auteur ait
nécessité l’aide d’auxiliaires plus lettrés que lui, celui-ci n’est pas à confondre avec l’un
des multiples plumitifs globe-trotters à l’image du physicien allemand Kolb, dont j’ai
cité le mépris pour les Hottentots, ou le hollandais Jean Strueys conteur prolixe
d’aventures pimentées d’affabulations. Parfois mal lu car trop rapidement,71 dénigré à
l’occasion, déprécié par certains ornithologues jaloux, Le Vaillant est à présent
redécouvert en Afrique du Sud (Siegfried Huigen, 2009 ; Ian Glenn, 2004 )72 où ses
qualités humaines et scientifiques sont reconnues et appréciées au point que son nom
été attribué à l’École française de Cape Town « en hommage à l’explorateur qui avait

69
Voyage de M. François Le Vaillant dans l’intérieur de l’Afrique par le Cap de Bonne-Espérance Dans
les Années 1780, 81, 82, 83,84 & 85, à Paris, chez Leroy Libraire, 1790 Avec Approbation & Privilége du
Roi.
70
Journal Encyclopédique, Décembre 1789, volume 8, p. 500,
71
Ce que l’on peut reprocher à Zoë Strother dans l’article mentionné plus haut. Le résumé des deux
scènes qu’elle mentionne ne permet pas de saisir l’entièreté de la situation.
72
Voir l’excellent article de Siegfried Huigen (University of Antoine Stellenbosch, Afrique du Sud) :
« Les aventures d’un Créole du Surinam en Afrique: le récit ethnographique de François Le Vaillant », In
L’Afrique du siècle des Lumières: savoirs et représentations, (Sous la direction de Catherine Gallouët,
David Diop, Michèle Bocquillon et Gérard Lahouati), Voltaire Foundation, Oxford, coll. "SVEC",
mai 2009
sur l’apport de François Le Vaillant à l’ornithologie : Rookmaaker, L.C., Mundy, P.J., Glenn, I., Spary,
E.C. : François Levaillant and the Birds of Africa. Houghton, Brenthurst Press, 2004
épousé, avec les thèses du philosophe Jean-Jacques Rousseau, l’idée d’une pédagogie
ouverte et innovante. »73
Le lecteur des voyages ne doit surtout pas plonger d’emblée dans l’ouvrage
sans en avoir attentivement lu les premières pages réparties en une préface, et un
chapitre intitulé « Précis Historique ». A l’instar des bonnes thèses d’ethnoscénologie,
François Le Vaillant commence par se situer par rapport à son champ de recherche. Il
présente sans complaisance son autobiographie à partir de laquelle prend source son
projet de voyage, sa compétence et la méthode de travail qu’il a adoptée
ultérieurement. Il veut se démarquer du savant sédentaire et compilateur qui du fond
de son cabinet « prétend établir des principes et dicter des lois », et propage de vieilles
erreurs en couvrant « de toutes les graces de l’élocution les mensonges avérés de nos
Pères « (Tome I- Préface). Lui-même se déclare « créole du Surinam », à ne pas
confondre avec ces Français de France attachés à leur terre natale, écrit-il, « comme la
moule à son byssus » :

« On trouvera peut-être étrange que, pour donner la relation


d’un Voyage récemment entrepris en Afrique, j’ai été forcé
de me replier sur mon passé, & de conduire mes Lecteurs
dans l’Amérique méridionale sur les premiers pas de mon
enfance ; j’ai cru qu’il ne serait pas mal de justifier, par les
commencements de ma vie, ma manière de voir, de penser
& d’agir qui conservera toujours le goût du terroir, et qui,
jugée peut-être avec sévérité, ne manquerait pas de choquer
ces esprits intolérans qui ne souffrent jamais sans humeur
qu’on leur enlève leurs préjugés, & qu’on ose heurter de
74
front les principes & les usages jusques là adoptés ; »

Ce passé a de quoi surprendre. De bonne bourgeoisie, son père juriste, après


avoir épousé une jeune fille qu’une légende voudrait qu’il l’ait enlevée d’un couvent,
quitte la France en 1751 pour s’installer avec son épouse à Paramaribo, capitale de la
Guyane néerlandaise. Alors colonie de la Compagnie Hollandaise des Indes
Occidentales, la Guyane néerlandaise est devenue République du Suriname en 1975.
Le couple y conçoit le jeune François qui naît le 6 août 1753, seize ans avant Cuvier :

« …placée sous le climat brûlant de la Zône Torride à 5


degrés nord de la ligne, cette région encore enveloppée de la
croûte des temps, recèle, si je puis m’exprimer ainsi, le foyer
où la Nature travaille ses exceptions aux règles générales
que nous croyons lui connaître (…)c’est ma patrie & le
berceau de mon enfance. » (Précis historique, page ix)

Le père fait des affaires, devient Consul de France et exporte vers l’Europe.
L’exotisme étant à la mode, il parcourt l’intérieur du pays en famille, collecte des
insectes étranges, papillons colorés, animaux, objets. Le fils passe une enfance
heureuse et voyageuse dans une colonie cosmopolite à la nature tropicale humide où

73
manifeste de la direction, 2011
74
préface page viii
vivent amérindiens, esclaves importés d’Afrique et une forte communauté juive venue
de Hollande et d’Italie. On y parle principalement le néerlandais, langue qu’apprend le
jeune François dont l’éducation est loin d’être scolaire :

« Dès mes plus jeunes années, ces tendres parens qui ne


pouvaient un moment se détacher de moi, souvent exposés
par leurs goûts à des Voyages lointains, à de longs séjours
aux extrémités de la Colonie, m’emmenaient avec eux, & me
faisaient partager leurs courses, leurs fatigues & leurs
amusements. Ainsi j’exerçais mes premiers pas dans les
déserts, & je naquis presque Sauvage. Quand la raison, qui
devance toujours l’âge dans les Pays Brûlés, eut commencé à
luire en moi, mes goûts ne tardèrent point à se développer ;
mes parens aidaient, de tout leur pouvoir, aux premiers
élans de ma curiosité. Je goûtais tous les jours, sous d’aussi
bons maîtres, des plaisirs nouveaux ; je les entendais
disserter, d’une façon qui était à ma portée, sur des objets
acquis & sur ceux qu’on espérait se procurer dans la suite :
tant d’idées et de rapports s’amassaient dans ma tête,
confusément à la vérité dans les commencemens, mais peu à
peu avec plus d’ordre & de méthode ; la Nature a donc été
ma première institutrice, parce que c’est sur elle que sont
tombés mes premiers regards. » (Précis historique, p. ix)

Ayant continuellement sous les yeux « les objets intéressants & précieux qui
sont répandus dans ce Pays » et que récoltaient ses parents pour en faire commerce,
François devient entomologiste amateur. Il collectionne:

« Bientôt le désir de la propriété & l’esprit d’imitation,


passions favorites de l’enfance, vinrent donner de
l’impétuosité, je pourrais dire de l’impatience, à mes
amusements. Tout disait à mon amour-propre que je devais
aussi me faire un Cabinet d’Histoire Naturelle ; je me laissai
caresser par cette idée séduisante, & sans perdre de temps,
je déclarai traîtreusement la guerre aux animaux les plus
faibles, & me mis à la poursuite des Chenilles, des Papillons,
des Scarabées, en un mot de toutes les espèces d’insectes. »
(Précis historique, p. x)

Un apprentissage précoce constant dans la durée au sein d’un environnement


d’une telle diversité développa chez l’enfant d’étonnantes qualités d’adresse dans la
traque, l’affût, une virtuosité dans la capture, la préparation des proies, et surtout le
sens de l’observation. François Le Vaillant est un éthologiste avant la lettre. Ce qui
l’intéresse est l’animal en liberté, en mouvement, sa posture et son comportement.
Qualités que nous retrouvons à l’âge adulte dans son rapport aux animaux – les
oiseaux en particulier – et les êtres humains, dont les hottentots.

Je ne peux passer sous silence un épisode qui m’a stupéfié, car il préfigure la
découverte majeure faite en 1958 par le primatologue et psychologue américain Harry
F. Harlow (1906-1981), à l’origine de la notion d’attachement75, théorisée par le
pédiatre et psychanalyste Britannique John Bowlby (1907-1990) :

« Dans une de nos courses, nous avions tué un Singe de


l’espèce que dans le Pays on nomme Baboën ; c’était une
femelle : elle portait sur son dos un petit qui n’avait point
été blessé ; nous les enlevâmes tous les deux ; de retour à la
plantation, mon singe n’avait point encore désemparé les
épaules de sa mère ; il s’y cramponnait si fortement que je
fus obligé de me faire aider par un Nègre pour l’en
détacher ; mais, à peine séparé, il se lança comme un oiseau
sur une tête de bois qui portait une perruque de mon père ;
il l’embrassa de toutes ses pattes, & ne voulut absolument
plus la quitter ; son instinct le servait en le trompant, ; il se
croyait sur le dos & sous la protection de sa mère ; il était
tranquille sur cette perruque ; je pris le parti de l’y laisser &
de le nourrir avec du lait de chèvre ; son erreur dura
environ trois semaines ; après quoi, s’émancipant de sa
propre autorité, il abandonna la perruque nourricière, &
devint par ses gentillesses l’ami & le commensal de la
maison. » (Précis historique, p. xi)

Hélas, le couple décide de regagner l’Europe. La mort dans l’âme, François


repart avec ses parents le 4 avril 1763 sur le navire Catharina. Il a dix ans:

« Je jetais souvent mes regards vers les rives heureuses dont


je m’éloignais de plus en plus. A mesure qu’elles fuyaient &
qu’emporté par les vents, je m’approchais des climats glacés
du Nord, une tritesse profonde flétrissait mon ame & venait
dissiper les prestiges de l’avenir » (Précis historique, xiij).

Arrivé en Hollande, il devient lui-même un objet de curiosité. Puis, il renait au


contact des ornithologues amateurs et académiques dont il découvre les étranges
méthodes. Tout cela lui paraît loin de la vie. Il est ébloui et abasourdi par les cabinets
parisiens, pleins de « divorces » et d’erreurs, beaux mais fort éloignés de la réalité
champêtre. Tout est faux, il faut partir. Il choisit l’Afrique car « c’était la terre encore
vierge. » De plus, les récits de voyage qu’il peut lire lui paraissent romancés, biaisés,
emprunts de la suffisance des Blancs et de leurs préjugés. Il est violent pour Kolbe qu’il
accuse d’avoir payé quelques verres à des ivrognes pour se faire raconter des fables
sur les Africains : « je ne dirai rien que d’après moi-même », affirme-t-il dans sa
préface. Il quitte Paris le 17 juillet 1780, pour le Cap, se proposant au retour
d’apprendre à ses lecteurs : « Ce que je suis, ce que j’ai vu, ce que j’ai fait, ce que j’ai
pensé. »

Le temps me manque pour vous présenter dans le détail nécessaire l’étude


ethnographique de Le Vaillant. Je me bornerai à quelques remarques, avec les risques

75
Harlow, Harry F. : « The Nature of Love » American
Psychologists, Volume 13 (12) :673-685, 1 décembre 1958
du schématisme. La colonisation est néfaste, estime-t-il ; les femmes hottentotes qui
vivent dans les grandes villes coloniales sont perverties par les colons, les marins, les
aventuriers. Pour connaître le pays il convient de s’enfoncer dans les terres et de vivre
au contact des populations. Il se fait des amis Hottentots. Mieux, il devient amoureux
d’une jeune femme Hottentote, belle séduisante et intelligente. Elle prend plaisir à sa
compagnie, folâtre, mais ne lui cède pas. C’est elle, raconte-t-il fort bien, qui réussit
avec une adresse qui l’étonne à lui faire détourner le regard des autres filles qui se
baignent et jouent nues dans la rivière. L’incident est important. Il s’inscrit dans le
vaste débat sur la sexualité et le regard, la liberté des mœurs et la liberté visuelle du
bon sauvage. Pendant longtemps certains esprits ont estimé que l’état de nature,
correspondant à un primitivisme heureux associait liberté visuelle et liberté sexuelle
note Hans Peter Duerr, la théorie de la civilisation qui domine dans notre culture
depuis le siècle des Lumières, affirme que, comparés à nous Européens d’aujourd’hui,
les membres des sociétés primitives auraient encore peu réprimé ou régulé leurs
pulsions et leurs émotions. Le travail de cet ethnologue spécialiste de l’histoire de la
culture à l’université de Brême s’inscrit en faux contre cette chimère théorique et
dénonce « le mythe du processus de civilisation. »76

La brutalité scopique de Cuvier pour qui dénuder la Venus Hottentote ne fait


pas problème, repose sur cette opinion préconçue. La curiosité de Le Vaillant, le
conduit à faire l’expérience de la pudeur:

« Les autres Gonaquoises, que nous avions laissées plus bas


sur les bords de la même rivière, ne tardèrent pas à nous
rejoindre ; un reflet de honte se lisait dans leurs regards &
sur leurs fronts ; j’eus à rougir de m’être fait un jeu cruel de
leur décence ; c’était la pudeur native dans tout son
embarras, bien différente de cette réserve perfide dont on
se pare avec orgueil & qui n’est qu’un manège agaçant plus
dangereux que le scandale. »77

Un jour, des éclats de rire bruyants excitent sa curiosité. Le Vaillant entend que
l’un de ses accompagnateurs raconte aux autres qu’il vient de faire une découverte
qui, si elle venait à ses oreilles ne le ferait pas tenir en place jusqu’au moment où il en
serait convaincu par ses propre yeux. Le tohu-bohu est tel qu’il envoie Klaas, son
compagnon Hottentot, d’aller voir ce qui se dit. Eh bien ! lui rapporte Klaas, ils ont vu
une femme qui avait le « tablier naturel », la fameuse macronymphie hottentote.
L’ornithologue consacre quatre pages, six mille caractères, et une illustration à la suite
de l’évènement. Car il veut se rendre compte par lui-même de ce qui court de façon
obsédante dans les ouvrages les plus divers. De nombreuses difficultés l’attendent :

« je n’avais point affaire ici à ces Hottentotes impudentes &


débordées des Colonies, toujours trop disposées à satisfaire,
76
Hans Peter Duerr : Nudité & pudeur – Le mythe du processus de civilisation, (Nacktheit und Scham.
Der Mythos vom Zivilisationsprozeß, 1988)Préface par André Burguière, traduit de l’allemand par
Véronique Bodin avec la participation de Jacqueline Pincemin, Éditions de la Maison des sciences de
l’homme, Paris, 1998
77
Tome 1, p. 194
à prévenir même les Blancs & leurs honteuses fantaisies ;
(…) je savais que les femmes sauvages refusent presque
toujours à la curiosité ce qu’elle accordent à l’amour,
distinction délicate qu’on ne s’attend pas à trouver dans un
désert lorsqu’on y porte ses préjugés & la prévention de
l’orgueil. »

La narration est entrecoupée de réflexions sur l’hypocrisie et la chasteté de


façade que l’on rencontre dans les sociétés européennes. Soutenu par ses
compagnons Hottentots, il parvient enfin à convaincre la femme, mère de famille de
quatre enfants, à ôter son pagne :

« … confuse, embarassée, tremblante, &, se couvrant le


visage de ses deux mains, elle laissa détacher son petit
tablier, & me permit de contempler tranquillement ce que le
Lecteur verra lui-même dans la Copie fidèle que j’en ai tirée,
& qui forme la Planche VII de ce second volume. »

Le copieux commentaire qui suit n’a guère d’intérêt dans la mesure où il reprend
diverses théories explicatives – s’agit-il d’un trait de nature, ou d’une hypertrophie
acquise à des fins esthétiques ? Il a le mérite de banaliser, sinon de dédramatiser ce qui
nous l’avons vu avec la Vénus Hottentote à occupé l’œil et l’esprit de tant de publics.

*
**

Magdeleine G., n’est pas l’expression antithétique de la pulsion scopique qui


animait les publics pressés autour de la Venus Hottentote. Elle n’en est qu’une variante,
dans la mesure où l’Homme animal visuel, sexué et social a toujours éprouvé une
curiosité fondamentale pour ses congénères. Ce qui est paradoxal est que le regard que
nous portons sur l’autre n’est jamais neutre. Femme émotive, plongée dans le sommeil
hypnotique Magdeleine G. paraissait naturelle, tout simplement parce que sa gestuelle et
son comportement scénique ne faisait que se conformer aux canons esthétiques de son
temps. Elle avait la grâce des mondaines de la Belle Époque qu’elle mimait
inconsciemment telles que les représentaient les peintres. De même, les hystériques de
La Salpêtrière mises en scène pour Charcot mimaient les actrices du mélodrame.
Magdeleine G. était vraie, parce que conforme à l’attente des spectateurs.

*
**

Nous reconnaissons, nous projetons plus que nous percevons. Les recherches de
psychophysiologie et en psychologie sociale sur la reconnaissance des visages sont à ce
propos particulièrement éloquentes. L’ensemble des études rejoignent le jugement
commun selon lequel « les étrangers se ressemblent tous ».78 La photographe

78
Vicki Bruce et Patrick Green : La perception visuelle – Physiologie, psychologie et écologie, Presses
Universitaires de Grenoble, 1993
américaine Taryn Simon a conçu son projet The Innocents (2003) à partir des erreurs
d’identification de présumés coupables, reconnus par des témoins sur des
photographies. La mémoire visuelle n’est pas fiable. En revanche, elle particulièrement
sensible aux sollicitations des fictèmes visuels. A cette impuissance perceptive se
combine son contraire, c’est-à-dire l’imagination perceptive notamment dans la relation
aux congénères. Les images de l’autre, rassemblées par Katérina Stenou à partir des
récits de voyageurs forment une collection d’êtres étranges, de monstres, de chimères
dont il est malaisé de distinguer le caractère pathologique ou racial, sinon raciste.79

En conclusion, j’évoquerai quelques uns des innombrables traités d’examen de


l’autre par le regard, afin de le connaître, de l’évaluer et le différencier. Des premiers
traités de divination mésopotamique à nos jours s’est accumulé un imposant corpus
inachevé de recettes de déchiffrage du corps en scène, à prétention scientifique ou se
réclamant de l’ésotérisme.80 En Chine, deux siècles avant Jésus Christ, le Jen Wu Chih
de Liu Shao énumère les critères de sélection des fonctionnaires à partir de leurs
caractéristiques physiques,81 comme le fera en France le médecin conseiller du Roi
Louis XIX, Marin Cureau de la Chambre (1594-1669) avec son Art de Connaître les
hommes (1660). Pour le monde dit occcidental, je mentionnerai pour mémoire la
physiognomonie, la métoposcopie – divination par l’observation des grains de beauté -,
la pathognomie – qui décèle les maladies, L'Anatomie de la mélancolie, prêté à Robert
Burton (1577-1640) – L’art de connaître les hommes de Johann-Kaspar Lavater (1820),
l’homme criminel (1876, 1887) de Cesare Lombroso (1835-1909), la cranioscopie du
docteur Franz Joseph Gall (1758-1828), la phrénologie de Johann-Caspar Spurzheim
(1776-1832).82 Plus près de nous apparaissent dans le paysage des systèmes explicatifs
généraux, à partir de données scientifiques restreintes. Parmi ce que G. Canguilhem
désigne sous le nom d’idéologies scientifiques83 se rencontrent un pêle-mêle des labels
élaborés à partir des travaux qui relèvent du champ de la nonverbal communication, ou
communication non verbale, parfois de la neurobiologie. Citons la typologie
morphologique du docteur Ernst Kretshmer (1888-1964); la morphopsychologie du
docteur Louis Corman (1901-1995), revue ces dernières années par Christophe Drouet.
Plus totalitaires et simplificatrice, souvent établis à des fins commerciales, figurent des
« similithéorie du décodage du nonverbal »(Pascal Lardellier, 2008): la programmation

Keith B. Senholzi, Jennifer T. Kubota : « Knowing You Beyond Race : The Importance of Individual
Feature Encoding in the Other-Race Effect », Frontiers in Human Neuroscience, 2011 ; Northwestern
University (2011, July 1) « Learning faces of different races : Clues to why ‘they’ all look alike. Science
Daily, Retrieved August 5
79
Katérina Stenou : Images de l’autre – la différence : du mythe au préjugé, Seuil/Éditions Unesco,
Paris, 1998
80
Jean-Jacques Courtine, Claudine Haroche : Histoire du visage XVIe-début XIXe siècle, coll.
Rivages/Histoire, Paris 1988
81
The study of human abilities: the Jen wu chih of Liu Shao, With an introductory study by John Knight
Shyrock
Volume 11 de American Oriental Series, American Oriental Society, 1937
82
Marc Renneville : Le langage des crânes – Une histoire de la phrénologie, préface de Georges
Lantéri-Laura, Collection Les empêcheurs de penser en rond, Institut d’édition Sanofi-synthelabo, Paris,
2000
83
G. Canguilhem : “ les idéologies scientifiques sont des systèmes explicatifs dont l’objet est
hyperbolique relativement à la norme de scientificité qui leur est appliquée par emprunt ”, Idéologie et
rationalité dans les sciences de la vie, Paris, Vrin, 1977, p. 44.
neurolinguistique, et plus récente, la synergologie84 de Philippe Turchet à prétention
universelle.
C’est sans doute pour échapper aux distorsions du regard des humains que les
Dieux sont invisibles.

84
Pascal Lardellier : Pour en finir avec la « synergologie ». Une analyse critique d’une pseudoscience du
« décodage du non-verbal », Communication, Vol. 26/2 | 2008.
Armindo Bião (UFBA)

A tradição lingüística greco-latina difundiu o equívoco de se identificar logos,


palavra, razão, discurso e realidade. Assim, o que se designa em português por corpo e
cena demanda sempre mais palavras para sua plena compreensão. Mas trata-se de
uma operação paradoxal, já que não se traduz a realidade de modo cabal em discurso
e razão, como revela a bela formulação italiana traduttore traditore.
Contemporaneamente, por exemplo, admite-se que a palavra corpo compreende o
conjunto de corpo e espírito. Mas, ao longo da história, esta mesma palavra variou de
sentido, de acordo com a episteme, a Weltanschaung ou o Zeitgeist considerados. Do
mesmo modo, pode-se tratar da palavra cena, que, em etnocenologia, remete à ideia
contemporânea de corpo humano e, também, a espaço para ceias, para a preparação
de artistas e, ainda, para local de apresentações espetaculares. A partir dessas
considerações, pretende-se refletir sobre a tendência espetacular contemporânea do
que se tem chamado de dramaturgia do real, a consciência, desejo e ação do artista da
cena, que se expõe em público, num processo que se poderia denominar ex-timidade.
Esta tendência se identifica com muitas proposições da arte da performance, quando o
artista se experimenta, exprime-se, expressa-se e, de certo modo, espreme-se em
cena, não como um ator que faz um personagem, mas como ele próprio enquanto
pessoa num ato muitas vezes interativo. Por fim, comenta-se a inexistência em língua
portuguesa de étimos de caráter lúdico para as artes profissionais do espetáculo. De
fato, os artistas da cena, que vivem de sua arte, trabalham, interpretam, cantam e
dançam, mas não brincam em serviço. Embora, em francês, eles jouent, em inglês, eles
play e em alemão eles spielen. Em língua portuguesa, quem brinca são os brincantes e
brincadores dos folguedos, brincadeiras e brinquedos de caráter espetacular, que,
coletiva e majoritariamente, têm como seu meio de vida principal outra atividade
diferente desta (ainda que possam receber remuneração por suas brincadeiras e
brinquedos, eles não se constituem em profissionais das artes do espetáculo). Isto se
deve provavelmente ao fato dos primeiros profissionais das artes do espetáculo, com
certeza no Brasil, mas, talvez, também, no restante do mundo lusófono, serem
trabalhadores negros e mulatos, num estatuto então ainda muito marcado pela
escravidão. Conclui-se com breve demonstração de uma brincadeira de pesquisador,
que sobrevive como tal e como professor, mas também se considera artista da cena,
apenas parcialmente profissional.
A estética relacional e a festa do Boi no Morro do Querosene em São Paulo,1
Marianna F. M. Monteiro (IA/UNESP)85

Resumo: O texto expõe algumas indagações surgidas na freqüentação às festas


populares, em especial àquelas transplantadas para a grande metrópole, em função do
interesse de artistas e educadores que buscam inspiração e referências na cultura
popular para suas atividades de teatro, dança e música. Tomo como exemplo a Festa
do Boi do Morro do Querosene, que ocorre a mais de 20 anos no bairro paulistano do
Butantã, e busco analisá-la a partir de ferramentas conceituais concebidas pela critica
de arte contemporânea. Trabalho com a hipótese de que o grande interesse pelas
práticas de cultura popular tradicional, a partir da década de noventa, é melhor
compreendido se levarmos em conta os rumos tomados pela arte contemporânea no
mesmo período. Ferramentas conceituais pouco utilizadas para pensar a cultura
popular são mobilizadas, destacando o sentido relacional dessas práticas, entre ela os
conceito de “estética relacional” e de “pós–produção”, cunhados pelo crítico francês
Nicolas Bourriaud.

Palavras-chave: festa popular, bumba-meu-boi, estética relacional, pós


produção.

Abstract: This paper is about the questions that arises when attending popular
festivals. Specially those festivals that where brought to the big cities by the artists and
educators looking for inspiration in popular culture, usually through theater, music and
dance activities. For instance the "Bumba meu Boi" which occurs for more than 20
years in the district of Butantã, Sao Paulo. Here I am analyzing it using the conceptual
tools of the contemporary art. Working with the hypothesis that the great interest in
the practice of traditional popular culture, from the nineties, is best understood if we
take into account the direction of the contemporary art of the same period. The
conceptual tools that were never used before to think the popular culture are here
mobilized. Among those is the concept of “ relational aesthetics” and “ post
production” created by the french critic Nicolas Bourriaud.

Keywords: popular festival, Bumba-meu-boi, relational aesthetics, post-


production

Introdução

Trata-se de expor aqui algumas indagações surgidas na freqüentação às festas


populares, em especial àquelas transplantadas para a grande metrópole, em função do

85
Marianna F. M. Monteiro é professora do Instituto de Artes da Unesp, autora de Noverre: cartas sobre
a dança (Edusp,1998), Dança Popular: espetáculo e devoção (Terceiro Nome, 2012). Dirigiu os vídeos
Lambe Sujo uma ópera dos quilombos e Balé de pé no chão: a dança afro de Mercedes Baptista. É atriz e
pesquisadora de performance, teatro e cultura popular. Integra os grupos de pesquisa Grupo terreiro de
investigações cênicas: teatro, rituais, brincadeiras e vadiagens e o Núcleo de Antropologia da
Performance – NAPEDRA.
interesse de artistas e educadores que buscam inspiração e referências na cultura
popular para suas atividades de teatro, dança ou música. A proposta tem como
objetivo geral configurar ferramentas conceituais que permitam estabelecer
paralelismos entre as práticas da chamada arte contemporânea e iniciativas bem
sucedidas de transplante de tradições populares festivas para as metrópoles,
agenciadas por uma classe média recém iniciada nessas tradições.
Volto-me, inicialmente, para a análise de um caso concreto: a festa do Boi do
Morro do Querosene, um festejo concebido, nos moldes da tradição festiva do
Maranhão, que se realiza três vezes ao ano numa certa localidade do bairro paulistano
do Butantã e que congrega há mais de vinte anos artistas, estudantes e arte
educadores como seus principais promotores. Em torno do festejo, ao longo desses
anos, formou-se um público cativo, além de um flutuante que participa da festa,
eventualmente em um ano ou em outro.
Nesse artigo pretendo explorar a possibilidade e a fecundidade de se pensar
determinadas práticas festivas tradicionais, que têm lugar no contexto atual dos
grandes centros urbanos, a partir de conceitos gerados no bojo da critica de arte
contemporânea. No que diz respeito as ferramentas conceituais, interessou-me a
discussão levantada por Nicolas Bourriaud, na obra Estética relacional (1998), a
respeito das artes contemporâneas, em especial o conceito de estética relacional,
elaborado para a análise das manifestações artísticas que a partir da década de 90
configuraram, segundo esse autor, um novo sentido para as artes visuais 86. Tentarei
aqui, testar a fecundidade desse conceito e de seus desdobramentos na análise de
uma festa tradicional transplantada para a grande metrópole, na mesma década.
Antigas tradições populares, sempre ligadas às devoções católicas, fenômenos
festivos multifacetados, em geral voltados para o festejo de algum dia santo, alguma
data religiosa, consolidam-se em novos contextos, junto a novos agentes sociais,
estabelecendo novos equilíbrios entre tradição e modernidade. Sem deixar de remeter
aos elementos tradicionais, esses festejos perpetuam-se nas grandes cidades
habitando territórios ideológicos muitos diferentes daqueles onde tais práticas se
desenvolviam até então.
O confronto entre essas manifestações de arte popular com os rumos que
tomaram as artes contemporâneas, na passagem do século XX ao XXI, me pareceu
instigante e intrigante. O que implica em evitar, de saída, pensar tais manifestações de
arte em nichos separados. Acredito que as tensões e intercâmbios entre elas seriam
parte constituinte das próprias dinâmicas intrínsecas a cada uma delas. A própria
distinção entre os dois âmbitos artísticos, o da arte contemporânea e o da arte
popular, fica, nesse caso, relativizada.
Importante ressaltar, do um ponto de vista da contextualização histórica dos
dois fenômenos culturais, que o crescimento vertiginoso do interesse dos jovens de
classe média nos grandes centros urbanos pelas manifestações tradicionais populares,
até então desprezadas enquanto resquícios arcaicos e anacrônicos, cresceu
significativamente a partir da década de noventa e foi concomitante às novas
tendências nas artes visuais, justamente as que o conceito de arte relacional pretende
dar conta. A transposição de tradições populares para o âmbito das sociabilidades
metropolitana é um fenômeno cultural potente que se fez presente nos principais
86
Cf. Nicolas Bourriaud. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes,2009.
centros urbanos brasileiros sobretudo a partir da década de 90, como processo de
recontextualização de antiga tradições e, o que chamou minha atenção, esse processo
se deu paralelamente às transformações ocorridas nas práticas da chamada arte
contemporâneas.
Do ponto de vista dos agentes, tanto os criadores, quanto os fruidores
envolvidos com tais manifestações artísticas, as distinções entre os dois âmbitos
artísticos, da arte contemporânea e da arte popular, deve ser relativizada, tendo em
vista a circulação efetiva de práticas, idéias e discursos, para além de quaisquer
irredutibilidades entre esses dois campos, ainda que o reconhecimento dessas
separações possa muitas vezes informar os discursos e a compreensão que os próprios
agentes têm de suas práticas.
Os participantes dessas festas tradicionais, que têm lugar nos grande centros
urbanos, confundem-se com os agentes envolvidos com a arte contemporânea, seja as
artes visuais, seja a dança ou o teatro contemporâneo, seja a música ou a
performance. Os dois tipos de manifestação artística estão presentes no universo
cultural da classe média instruída, capaz de manejar com destreza códigos que
pareciam até então irredutíveis.
Vejamos, em primeiro lugar, o arcabouço conceitual proposto pela critica de
arte contemporânea por meio do conceito de estética relacional, quais as
características dos fenômenos artísticos aos quais se aplica, quais as leituras propostas
por essa crítica, como os concebe no interior de uma certa visão do desenvolvimento
da arte no século XX. A seguir, uma breve descrição de certos aspectos da Festa do Boi
no Morro do Querosene pretende apontar para confluências interessantes e para a
pertinência da utilização de quadros conceituais comuns à análise de fenômenos
artísticos aparentemente tão distintos. Para finalizar, apresento uma serie de
considerações surgidas da aproximação entre arte contemporânea e novas prática de
cultura popular tradicional, o que aponta para novas formas de analisar e
compreender essas festas populares.

Estética Relacional
O conceito foi criado pelo crítico e curador de arte francês Nicolas Bourriaud,
antigo diretor do Palais de Tokyo, templo da artes visuais contemporâneas em Paris.
Na obra acima citada, esse autor desenvolve o conceito de estética relacional que
havia sido utilizado pela primeira vez no texto do catálogo da exposição “Traffic”da
qual ele próprio era o curador.
A teoria elaborada a partir do conceito de estética relacional pode ser definida
como uma plataforma estética e método crítico com base na detecção de certa
sensibilidade compartilhada por alguns artistas contemporâneos, com os quais o
crítico se identifica. Bourriaud tenta criar ferramentas de análise que permitam dar
conta de uma série de atividades artísticas que marcam as artes visuais
contemporâneas. Trata-se de elaborar um discurso teórico capaz de esclarecer “quais
são os verdadeiros interesses da arte contemporânea, suas relações com a sociedade,
a história e a cultura”. (BOURRIAU, 2009:9).
A primeira questão colocada por Bourriaud diz respeito a forma material dessas
produções artísticas, cujo caráter processual, comportamental parece estilhaçar os
padrões tradicionais da obra de arte. Ele tem em mente iniciativas que marcam uma
certa produção artística da década de 90 que têm como característica embaralhar arte
e vida. É o caso do trabalho do argentino Rirkrit Tiravanija que, em 1992, transformou
a sala de exibição e escritório da Galeria de Arte 303, em Nova York, em um espaço
para encontros sociais. Apresentou na sala vazia da exposição dois potes de curry e um
de arroz para oferecê-los como almoço aos visitantes, armazenando no escritório da
galeria os outros ingredientes para a preparação da refeição, assim como suas sobras,
que mais tarde seriam convertidas em obras, fotos e vídeos para documentar essa
situação.
O mesmo artista, em 1998, no projeto intitulado The Land implementa numa
propriedade na Tailândia um laboratório de teste para novos modos de vida, novos
modos de engajamento social, sob monitoramento de uma universidade local.
Desenvolvendo fontes de energia alternativa, retomando formas tradicionais de
colheita tailandesas, num projeto que, segundo o próprio artista, tem um nítido fim
social, inclusive distribuindo os frutos da colheita a famílias de vítimas da aids. Outro
caso citado por ele é o do artista Philippe Parreno que convida pessoas para praticar
seus hobbies favoritos, no primeiro de Maio, numa linha de montagem industrial.
Segundo Bourriaud, a arte dos anos noventa estaria reagindo à volta às
linguagens da tradição, à volta a pintura, à escultura, característica da década anterior
(tem em mente o novo expressionismo da década de 80), procurando novamente
romper com essas linguagens, retomando a confluência entre arte e vida, proposta
pelas vanguardas históricas do começo do século e pelos happenings e body-art da
década de 60.
Não caberia aqui apresentar a discussão levantada por Bourriaud sobre as
relações entre essa arte de caráter processual e comportamental, com as propostas
modernistas seja as da Bahaus, seja as do Surrealismo ou do Dadaísmo. Fiquemos
apenas com sua hipótese de que esses processos artísticos, de finais do século XX,
correspondem a uma nova modalidade de embaralhamento entre arte e vida, que não
assume as mesma estratégias vanguardistas, principalmente por afastarem-se de
qualquer pretensão à ruptura ou à utopia. Tratar-se-ia de:

apreender a habitar melhor o mundo, em vez de tentar


construí-lo a partir de uma idéia pré concebida da evolução
histórica. Em outros termos, as obras já não perseguem a
meta de formar realidades imaginárias ou utópicas, mas
procuram constituir modos de existência ou modelos de
ação dentro da realidade existente.(BOURRIAUD, 2009: 18).

Essas intervenções artísticas, segundo Bourriaud, visam a re-configuração


material e simbólica de territórios socialmente compartilháveis e acabam funcionando
como corretores das falhas existentes nos plano dos vínculos sociais. São mecanismos
postos em ação para redefinir referências a um mundo comum, para redefinir atitudes
comunitárias. Novos espaços de interação, lugares para descansar e viver bem, pólos
de convivência entre pessoas antes que partam em suas direções próprias. Esses
processos são compreendidos como instauradores de lugares de esperança e
mudança, destituídos, no entanto de qualquer ideal nostálgico ou utópico. Não se
trata de produzir experiências de alteridade radical, ao contrario, procura-se
estabelecer mecanismos de resistência, modos de vida e de discurso na contramão da
sociedade do espetáculo.
Esse autor vê nessas tendências da arte contemporânea o movimento de
questionamento das condições em que se dão os contatos humanos e comunicacionais
nos dias de hoje, sempre restritos a espaços de controle que têm como característica
decompor os vínculos sociais em elementos distintos, definindo trajetos entre
diferentes lugares da vida humana, predeterminados pelo mercado, concebidos em
termos de parques recreativos, áreas de lazer.
No cerne desses processos artísticos de caráter contestador, estão em
funcionamento noções interativas, conviviais e relacionais que se dão fora dos espaços
de controle que caracterizam as formas de comunicação e contato humano
hegemônicos nas sociedade contemporâneas que, nas palavras desse autor,
estabelecem “auto-estradas de comunicação, com seus pedágios e espaços de lazer,
que ameaçam se impor como os únicos trajetos possíveis de um lugar a outro do
mundo humano”. (Bourriaud, 2009: 11). Os artistas crêem conduzir nessas “auto-
pistas” mas de fato são apenas conduzidos, freados por pedágios, acelerado pelos
faróis dos que vêm atrás. As passagens entre esses elementos distintos estão muitas
vezes obstruídas e à arte contemporânea atribui-se a missão de desobstruir essas
passagens, tornadas impossíveis.
Na arte relacional, as experiências e repertórios individuais estão a serviço da
construção de significados coletivos, o que faz com que a participação do público seja
um fator-chave na ativação ou efetivação de tais propostas. Valorizam-se as relações
que os trabalhos estabelecem em seu processo de realização e de exibição com o
envolvimento de artistas e do público. Uma iniciativa emblemática dessa linha de
pensamento, no contexto brasileiro, foi o projeto curatorial de Lisette Lagnado para a
27a. Bienal de São Paulo, Como Viver Junto (2006).
A visão desses processos artísticos como espaços de resistência à condição pré-
formatadas das relações humanas na pós-modernidade, como espaço de
experimentação social, campos de interrupção da vida cotidiana onde a prática
artística aparece como um campo avesso as uniformização do comportamento.
(BOURIAUD, 2009:13), parece-me muito próxima do conceito de situações liminóides
proposto por Vitor Turner, para caracterizar zonas de interação social e
processualidade nas sociedades complexas. Em From ritual to theatre, the human
seriousness of play (1982), Victor Turner refere-se aos “símbolos selvagens” que
aparecem não somente em culturas tribais, mas também nos diferentes gêneros de
entretenimento, como a poesia, o teatro, a pintura, das sociedades pós-industriais.
Voltado inicialmente para o estudo dos rituais em sociedades pré-capitalistas,
Turner propõem uma leitura dinâmica do símbolo, no interior de um cenário de
situações liminares, que se forjam a partir de crises que abalam estruturas sociais
estabelecidas. Os símbolos, assim compreendidos, revelam-se com uma dimensão
emocional, volitiva e eminentemente processual e por isso é preciso captá-los em
movimento, jogando e dialogando com suas diversas possibilidades de sentido e forma
a partir dos campos concretos e históricos em que aparecem, associados a interesses e
propósitos humanos, finalidades, aspirações e ideais tanto individuais quanto
coletivos. Nas obras mais recentes, atento ao desenvolvimento do teatro americano na
década de 60, Turner vai pensar os gêneros do entretenimento, nas sociedades pós-
industriais, por meio do conceito de liminóide que, nesse caso, serve para aproximar
os “símbolos selvagens”surgidos na dimensão liminar dos rituais primitivos, dos
símbolos que são criados nos gêneros artísticos das sociedades pós-industriais, que
instituem um campo independente de atividade criativa para além de uma máscara e
ou espelho distorcido do “ mainstreams” e do “ trabalho social produtivo” (TURNER,
1982: 33).
No caso da reflexão de Bourriaud, um conceito equivalente vai ser mobilizado:
o de interstício. Tomado de empréstimo da teoria marxista, insterstício87 é
compreendido por Bourriaud “como um espaço de relações humanas que, mesmo
inserido de maneira mais ou menos aberta e harmoniosa no sistema global, sugere
outras possibilidades de troca além das vigentes nesse sistema.” (BOURRIAUD,
2009:22-23). Não cabe no âmbito desse artigo desenvolver uma reflexão sobre a
relação entre o conceito de Victor Turner de liminóide e o marxista de interstício,
todavia gostaria de ressaltar a proximidade entre eles que parece explicar a
mobilização desses conceitos quando se trata de pensar as práticas artística que
pretendem ir na contramão das determinações sociais hegemônicas: no caso de Victor
Turner, a contra cultura americana da década de sessenta e, no caso de Bourriaud, a
arte relacional da década de noventa.
Prosseguindo na elaboração dessa noção, Bourriaud afirma que na arte
relacional, os artistas interpretam, hibridizam, reproduzem, re-expõe, misturam ou
utilizam obras já realizadas por outros, produtos culturais disponíveis, que são re-
informados. O conceito que se estabelece, a partir daí, em paralelo ao de arte
relacional, é o de pós-produção, visando dar conta de uma atividade artística cujo
paradigma não é mais a pintura, nem a escultura, nem o cinema ou a dramaturgia . O
modelo se aproxima da atividade do Dj.
Inscrever a obra de arte no interior de uma rede dinâmica de signos e
significações, negar-lhe qualquer dimensão de autonomia ou de originalidade, é o
traço marcante da arte relacional. O artista já não se pergunta o que há de novo a
fazer, busca elaborar o sentido a partir de uma massa caótica de objetos e referências
A obra assume a forma de uma narratividade que se projeta sobre a cultura que por
sua vez, numa progressão infinita, aponta para novos roteiros possíveis. A atividade
artística torna-se um contínuo reintepretar de relatos anteriores.
O novo deixa de ser “o outro” para ser um valor que enaltece o presente na
relação entre o passado e o futuro. É o relevante, a diversidade considerada
interessante. Desorganizações, desestruturas, redes: o sentido é construído
colaborativamente, relacionalmente, pondo em marcha os símbolos selvagens
mencionados por Turner, para criar novas situações que façam frente a alienações
coletivas.

A festa do Boi na Metrópole

Esse conceito de arte relacional e pós-produção suscitou o ensejo de utilizá-lo


como ferramentas na analise da emergência dessas festas ditas “tradicionais “ que,
deslocadas de seus contextos originais, são transplantadas para as metrópoles
brasileiras mobilizando uma multidão de jovens interessados em dançar o Boi, sair em
cortejo de Maracatu, comporem rodas de Jongo, de Tambor de Crioula, rodas de
Samba e Capoeira, em vivências multifacetadas, de caráter comunitário e festivo.

87
O termo interstício foi usado por Marx para se referir a comunidades de troca que escapavam do quadro
da economia capitalista, que fugiam a lei do lucro: escambo, venda com prejuízo etc
O interesse em recuperar tradições culturais brasileiras no contexto da cultura
moderna é antigo, permeia a própria constituição da arte moderna brasileira; o que
parece novo agora é a tônica no encontro comunitário, na festa. Ao longo do
desenvolvimento da arte moderna brasileira, traços estilísticos das formas de arte
popular interessaram os artistas cultos, que os deslocaram no sentido de contribuir
para a elaboração formal de produtos artísticos no campo da arte brasileira. O que se
verifica agora é o aproveitamento dessas tradições na construção de espaços de
sociabilidade, de conviabilidade, que visam o estabelecimento de territórios
comunitário engendrados a partir dessas tradições, sem que necessariamente haja um
preocupação em realizar propriamente uma releitura dessas expressões populares
tradicionais.
Em detrimento da preocupação com a elaboração de uma obra artística
original, constituída no interior da separação palco/platéia ou artista/público, o que
atrai nessas festas é a possibilidade de participação coletiva numa experiência que
extrapola os limites das diferentes linguagens artísticas e que se volta para ao
compartilhamento de vivências comunitárias. Configuram-se redes de participação que
contribuem para a realização das diversas instâncias da festa. Os diversos momentos
da festa são alinhavados pela música, pela dança pelo teatro, mas o que está em jogo é
muito mais que a mera produção ou fruição dessas artes.
Numa festa popular, ainda que metropolitana, se come, se reza, assumem-se
papeis rituais que, por sua vez, também se conectam a outras tantas trocas materiais e
simbólicas. A confecção de figurinos, decorações e enfeites, a composição musical, o
aprendizado das danças nascem de um cem número de encontros e vivências que
ocorrem nos interstício dos dias festivos e parecem manter conectada toda uma
comunidade ao longo do ano inteiro. A compra dos ingredientes, o preparo da comida
ritual na véspera da festa interconectam os participantes; papéis são distribuídos e
promovem-se interações que vão na contramão dos vetores de relacionamento social
próprios das relações mercadológicas dominantes nas sociedades pós-industriais.
Do ponto de vista da expressão artística, seja ela musical, teatral, plástica ou
coreográfica, a dimensão autoral apaga-se frente a dominância do aspecto
comunitário e participativo. Seguindo o padrão secular dessas tradições populares, a
questão da originalidade e da inovação artística não tem nenhuma relevância, o novo
surge apenas como decorrência das dinâmicas festivas concretas e de seu contextos,
não se constitui em elemento de valorização artística, ao contrário, muitas vezes o que
se verifica é a busca do tradicional, do supostamente autêntico, no transplante de
tradições de outras regiões e contextos.
Essas manifestações de cultura popular tradicional sempre ocorreram em
contextos festivos e a elaboração de uma “tecnologia” festiva é algo que foi se
constituindo ao longo de décadas e até mesmo de séculos, o que é novo é sua
revalorização e retomada no contexto de uma sociedade dominada pela cultura de
massa, como uma forma de renascimento de sociabilidades comunitárias, num
contexto que até recentemente parecia rejeitá-las. Estas festas populares, agora re-
atualizadas, apropriam-se de saberes e fazeres muito antigos, trazendo-os para o novo
contexto de forma a "inovar" repetindo.
A partir desse pano de fundo inspirado pela noção de estética relacional,
vejamos mais de perto alguns dos elementos que compõem uma dessas celebrações: a
festa do Boi no Morro do Querosene, que se converteu numa verdadeira tradição da
cidade de São Paulo.
Entre os promotores e responsáveis por essa festa sempre houve a intenção de
reproduzir práticas e procedimentos tradicionais das festas maranhenses. Um primeiro
aspecto, a ser destacado nessa repetição, diz respeito a temporalidade da festa.
Repetindo-se ciclicamente, ao longo dos anos, a festa se desdobra em três grandes
encontros anuais: o Nascimento do Boi, o Batizado do Boi e a Morte do Boi88 . Essa
estrutura em três tempos é a reprodução da seqüência tal qual ocorre na tradição
maranhense. Trata-se de apoderar-se de modos pré-existente, repetindo suas
formalizações de forma a fazer funcionar no novo contexto um itinerário cultural pré-
existente.
No caso da temporalidade que é dada pelo recorte anual, a qualidade que
parece mais relevante é a recuperação de um tempo cíclico, em meio a uma sociedade
impregnada pela noção de progresso, portanto por uma temporalidade que se quer
ascendente e linear. O Boi propõe aos paulistanos a relativização dessa dinâmica que
representa antes de tudo o constante sucateamento de experiências que se esvaem,
onde predomina o sentido do sucateamento da vida e das relações interpessoais. A
repetição desse ciclo do boi a cada ano é a garantia da vivência de uma temporalidade
cíclica, em que perspectivas de compartilhamentos e relacionamentos se transformam
radicalmente a partir dela. Há sempre a promessa de reencontros, a possibilidade de
percepção das transformações, crescimentos, transmutações sem necessariamente
esquecimento das fases anteriores.
O nascimento, a vida e a morte do boi, seguida de sua ressurreição propicia a
vivência de uma temporalidade que está nas antípodas daquela vivida nos termos
dominantes de nossa sociedade que se propõe constantemente a instaurar a
novidade, embora o faça por meio da repetição velada.
A retomada ao longo de cada ano desse três momentos de festa,
paradoxalmente, permite perceber o crescimento e as transformações, no contraste
com o pano de fundo dessa circularidade, onde se torna possível assenhorar-se desses
movimentos sem ser ultrapassado e superado alienadamente por ele. Os “boieiros”
tiram férias desse tempo voraz, consumidor e consumista, para gozar da dinâmica da
morte e renascimento dum boi a cada ano. A vontade e a conquista de uma festa que
se repete a cada ano “ igual-diferente”, interrompe o afã da originalidade e do novo.
Quebra-se com o que Otavio Paz chamou a tradição do novo.89
Além das três festas que compõem o ciclo anual, cada uma delas se divide em
um numero preciso de partes que são as mesmas nas três celebrações. Apesar do
sentido diferente de cada uma dessas festas, as três apresentam a mesma seqüência
de “movimentos”, para utilizarmos uma linguagem musical. Numa festa de boi,
segundo a ordem em que aparecem na festa, temos basicamente três momentos : o
“guarnecer”/ o “lá vai”/ o“ dona da casa”. No âmbito desse artigo gostaria de destacar

88
No Morro do Querosene, o Nascimento do Boi quase sempre é festejado no sábado de aleluia, que no
calendário católico é o fim da quaresma. As duas outras festas não têm uma data fixa, embora a festa do
Batizado do Boi deva necessariamente ocorrer durante o ciclo das festas juninas. A Morte do Boi é
festejada mais perto do fim do ano.
89
Cf. Octavio Paz. Os filhos do barro-do romantismo às vanguardas. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984.
a primeira fase da festa: o “guarnecer” que me parece paradigmática de uma arte
relacional.

O Guarnecer
O Guarnecer é o grau zero da brincadeira: o início. A festa inicia-se por ele.
Uma série de intensidades produzem-se a partir dele, trata-se literalmente de
acumular forças. O primeiro momento da festa, no primeiro momento do ciclo anual,
significa um “guarnecer” em toda sua potência: de alguma forma, pode-se dizer que a
festa do Nascimento do Boi, no sábado de aleluia, é um “guarnecer”, se a referência
for o ciclo anual completo das três festas. Depois da interrupção da quaresma o Boi vai
renascer, a festa vai voltar a acontecer. Com o Nascimento do Boi guarnecemos,
acumulamos intensidades, para darmos início a um movimento que durará o ano
inteiro. O guarnecer, num sentido mais próprio e restrito, é o primeiro momento de
qualquer uma das três festas, relaciona-se à fogueira, onde aquecem-se os
instrumentos percussivos: os pandeirões e o tambor onça90, em torno da qual a
multidão vai aos poucos se aglomerando. É o momento inicial da festa: de reunião de
forças, o momento em que a comunidade e os visitantes unem-se e tornam-se co-
responsáveis pela festa: assumem os versos, as canções, os passos de dança etc.
Em torno da fogueira, onde está sendo aquecido o couro dos instrumentos
percussivos para afiná-los, os brincantes se confraternizam. O cantor solista puxa,
inicialmente a capela, as primeiras toadas. O número de brincantes aumenta, pouco a
pouco, misturados à assistência que também rodeia fogueira; a resposta às toadas
ganha corpo com a participação de todos que repetem a chamada do solista. Na
segunda ou terceira repetição desse diálogo entre cantor solista e coro, este composto
tanto por brincantes quanto pela assistência eventual, o solista começa a pulsação de
seu maracá (chocalho com cabo) e é imediatamente acompanhado pela entrada de
toda a percussão, já devidamente aquecida e afinada pelo calor da fogueira.
Durante o “guarnecer” as toadas novas são mostradas, experimentadas em
grupo pela primeira vez. É testada a capacidade de se imporem ao coletivo e o
resultado dessa experimentação define muitas vezes a forma musical. Como nos revela
André Bueno91, toadas muito longas acabam tendo somente o refrão memorizado.
Pode-se, nesse sentido, afirmar que a fixação de uma toada se dá pela mobilização do
coletivo. É no momento do “guarnecer” que se instaura uma negociação entre o coro e
o solista, da qual depende a forma final da expressão musical. O “guarnecer” marca a
presença estruturante do coro já que, no âmbito musical, guarnecer é conseguir as
vozes coletivas em diapasão com a voz solista e delas com a percussão. (BUENO:
2001). Fazer, fazendo: cantando, tocando e , finalmente dançando. Depois de

90
Na tradição maranhense do Bumba-meu-boi são utilizados diferentes instrumentos musicais, de acordo
com os diversos estilos ou “sotaques” existentes nessa tradição. No caso da festa aqui analisada, trata-se
do estilo ou “sotaque” conhecido como sotaque da ilha (Ilha de São Luís). Nessa tradição são utilizados
os chamados pandeirões (pandeiros grandes sem platinela), maracás de metal, as matracas (duas tabuinhas
percutidas uma na outra) e o tambor onça, uma espécie de cuíca rústica, de sonoridade muito grave, feita
de um tronco de árvore escavado. Tanto o pandeirão, quanto o tambor onça são afinados na fogueira, já
que não possuem nenhuma outra forma de controlar o maior ou menor estiramento do couro que não a
dilatação da madeira pelo calor.
91
Cf. André Paula Bueno. O bumba-boi maranhense em São Paulo. São Paulo: Nankim
Editorial, 2001.
“firmado” o canto e integrada a percussão, a última coisa que se agrega é a dança que
vai aos poucos se organizando a partir de uns tanto padrões coreográficos.
É o renascimento do boi confundido com o renascimento da festa. Na prática,
nesse início da festa, trata-se de acumular forças de reunir o grupo de novo, de ajustar
papéis, confrontar toadas, balancear as danças e energias das figuras cômicas e
grotescas. Uma toada bastante significativa vai dizer:

Cantarei de novo pra meu boi guarnecer


da primeira vez que eu cantei não deu pra convencer
guarnece batalhão, guarnece
a vida cresce e meu povo não quer mais perder

O “guarnecer”, não é um metáfora, não se coloca no lugar de nada, ele é,


sendo: um acumular de força auto-nomeado, na própria letra da toada. Os versos da
toada falam da necessidade de repetir até que a união se faça e a participação de
todos se concretize, ao mesmo tempo que são os meios através dos quais isso vai se
dar. A estrutura do canto responsorial, presente na grande maioria dos folguedos
populares, a meu ver, pode ser compreendida como um recurso formal cuja principal
virtualidade é possibilitar a irrupção de uma prática coletiva. Aberta à participação de
todos, confere ao canto, para além de qualquer função mimética, uma
performatividade que se dá no contexto mesmo da conviabilidade coletiva propiciada
pela festa.
Inúmeros outros dispositivos voltados para o estabelecimento de uma
conviabilidade, estão presentes nessa festa (e na maioria das festas da tradição
popular). Quisemos aqui analisar o “guarnecer” como exemplo da indissociabilidade
entre forma estética e performatividade coletiva. No “guarnecer” assim como em
outros momentos dessa festa, estabelecem-se tecituras relacionais, conviviais,
indissociáveis da expressão artística, caracterizando uma “tecnologia” sofisticadíssima
a serviço de uma arte da inter-relação entre as pessoas.
A forma estética na manifestação do Boi Bumbá do morro do Querosene, como
nos exemplos de arte contemporânea trazidos por Bourriaud, não se confunde com as
diferentes “coisas” que os artistas produzem, não é o resultado de uma composição
material. Ela, ao contrário, opera mais como princípio criador que emana dos signos,
dos objetos, dos gestos e das relações, que extrapola a mera forma material do canto,
da dança ou da música; é algo que surge no campo das inter-relações e dos encontros.
Nasce do estar junto, do encontro, da elaboração coletiva do sentido.
Como na arte contemporânea, teorizada pela estética relacional, os modos de
fazer a festa, a “tecnologia” festiva, destina-se a quebrar barreiras, de forma a
inaugurar modos de convivências diferentes dos hegemônicos, principalmente por não
se pautarem por interessas extrínsecos à festa, podendo assim ficar praticamente
incólume à manipulação do mercado. Na festa do Boi no Morro do Querosene, cuida-
se muitos dos elos comunitários e da solidariedade desinteressada de valores
exteriores à festa. Como evento cultural e festivo na cidade, a festa do Boi do Morro
do Querosene, fortaleceu-se pelo viés comunitário e soube garantir seu caráter não
mercantil. A festa é o ponto de encontro de pessoas que se integram no mercado de
diversas maneiras, mas ela própria não se converte em empreendimento ou negócio,
ao contrário, é uma rica elaboração de geradores de sociabilidades outras, no seio da
própria criação artística, completamente dissociados de interesses mercadológicos92.
Ao analisar a emergência de performances festivas tradicionais nas grandes
metrópoles, numa chave mais próxima à critica de arte contemporânea, evito pensar
essas tradições populares em termos de suas supostas características essenciais.
Acredito que a festa do Boi e muitas outras práticas de cultura popular, ao se
adequarem a novos território e novos tempos são melhor compreendidas, tanto
quanto a arte relacional, como operação na esfera das relações humanas. Bourriaud
afirma a respeito das obras de arte derivadas de uma estética relacional, que elas
lidam com os modos de intercâmbio social, a interação com o espectador dentro de
uma certa experiência estética proposta, com os processos de comunicação enquanto
instrumentos concretos para interligar pessoas e grupos. (Bourriaud, 2009: 60). Essa
visão parece aplicar-se igualmente aos moveis que impulsionam muitos jovens de
classe média a praticarem formas antigas e tradicionais de cultura popular.
A novidade da arte relacional, segundo esse autor, não está na interatividade,
mas no papel que ela desempenha, não mais como recurso coadjuvantes para a
fruição de uma arte tradicional, mas como ponto de partida e de chegada da própria
criação. Nas suas palavras:

o que produzem (as artes relacionais), são espaço-tempos


relacionais, experiências inter-humanas que tentam se
libertar das restrições ideológicas da comunicação de
massa, de certa maneira são lugares onde se elaboram
sociabilidades alternativas, modelos críticos, momentos de
convívio construído. Sabe-se, porém que o tempo do
Homem novo, dos manifestos futurizantes, dos apelos a um
mundo melhor com as chaves na mão, já passou: vive-se
hoje a utopia no cotidiano subjetivo, no tempo real das
experimentações concretas e deliberadamente
fragmentárias. A obra de arte apresenta-se como um
interstício social, no qual são possíveis essas experiências, e
essas novas possibilidades de vida. (BOURRIAUD, 2009: 62).

Um outro aspecto da reflexão de Bourriaud interessante para pensar as


práticas de cultura popular tradicional no contexto da contemporaneidade diz respeito
ao caráter hibrido, já assinalado acima, da arte relacional. Para além da distinção entre
produção e consumo, entre e criação e cópia, a festa do Boi, aproveita-se também de
tradições muito antigas exatamente porque deixou de lado qualquer pretensão à
originalidade. Participa de alguma forma do que Bourriaud chama de pós-produção, ou
seja o trabalho sobre o já criado, a atividade de dar uma nova forma ao já formatado.
Como muitos artistas o fizeram a partir da década de 90, os “boieiro” de São Paulo
reprogramam obras já existentes, habitam estilos e obras já historicizadas,
demonstram assim que deixou de ser importante criar algo novo. O que se busca agora

92
Como não pensar em Felix Guattari quando afirma que a singularização corresponde a operações de
corte, distanciamento, dissenso, sempre parciais frente a um sistema hegemônico e global relacional e
informacional . Para Guattari, o capitalismo é o inimigo e como médico psiquiatra, propõem uma cura
parcial, com objetos parciais. (DELEUZE &GUATTARI: 1997)
é descobrir o que se pode fazer com o que já se tem. Trata-se de produzir
singularidade a partir de referenciais tradicionais. A pratica da dança, do canto, da
música já não está preocupada em superar alguma forma antiga, o que se busca não é
mais um produto final original, mas uma nova orientação, novas combinações no
interior de informações pré-existentes.

Bibliografia

BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.


______. Pós–produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo:
Martins Fontes, 2009.
BUENO, André Paula. O bumba-boi maranhense em São Paulo. São Paulo: Nankim
Editorial, 2001.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs, capitalismo e esquizofrenia. São Paulo:
Editora 34, 1997.
FABBRINI, Ricardo Nascimento. Arte relacional e regime estético: a cultura da atividade
dos anos 1990. Revista Científica/Faculdade de Artes do Paraná, Curitiba, v5. p-
p 11-24, jan/jun. 2010.
PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do romantismo às vanguardas. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984.
TURNER, Victor. From ritual to theatre, the human seriousness of play. New York: PAJ
Publications, 1982.
Mesa 5: Artistas em performance
Maria Lucia Montes (PPGAS/USP)
Rose Satiko (PPGAS/USP)
A herança do xamã, Maria Lucia Montes (FFLCH/USP)

Podem as artes plásticas oferecer um campo de reflexão para uma antropologia


da performance, quando esta tradicionalmente se associa às áreas que mais de perto
dela se aproximam, como o teatro, a dança e a música? O que pretendo argumentar
aqui é que isto é possível, senão para todo o universo das artes plásticas, ao menos
para aquele segmento conhecido – ou, mais propriamente, desqualificado – como
“arte popular”. O adjetivo suspeito, que se julga, porém, necessário acrescentar, serve
para aproximar essa “arte” do “artesanato” e do “folclore”, longe, portanto, da
verdadeira Arte e da Cultura, sempre pensadas, naturalmente, a partir do seu registro
“erudito”. Assim, antes de qualquer julgamento “estético” dessa arte, cabe situá-la em
seu universo social próprio, para entender que sua criação se sustenta em uma visão
de mundo que, sem descolar-se da realidade que faz desses artistas nossos
contemporâneos, tem por base, no entanto, outros valores e princípios, de onde a
imaginação criadora arranca a força de uma poética que lhe é própria.
O material com que trabalho a seguir é resultado da edição de um conjunto de
entrevistas feitas pela equipe da TAL-TV para a Polo Imagens em vista da produção de
uma série de vídeos destinada à exibição em canais de televisão educativa, e que
acabou por se incorporar a um projeto de exposição das obras de dez artistas
populares, Teimosia da Imaginação, realizada sob os auspícios do Instituto do
Imaginário do Povo Brasileiro na galeria Estação São Paulo, em março de 2012. A soma
dessas linguagens nos diferentes enfoques com que se busca abordar a arte popular
não é fortuita. Se a exposição das obras dos artistas permite apresentar o resultado do
seu trabalho criativo, o processo dessa criação exige o testemunho vivo das imagens
que o registram em ato, e que, depois, o texto reelabora em reflexão, buscando,
porém, interferir o mínimo possível no fluxo de um discurso que explicita, nos termos
dos próprios artistas, o sentido de sua criação. Por isso a edição textual do material
videográfico foi incorporada ao catálogo da exposição93, junto com as imagens das
obras dos artistas, tendo o vídeo como complemento indispensável à compreensão do
trabalho que o Instituto do Imaginário do Povo Brasileiro se propõe a realizar nesse
campo complexo e cheio de armadilhas da chamada “arte popular”.

Certamente era uma tarefa difícil tentar enquadrar num mesmo arcabouço
conceitual, estético ou mesmo sociológico a diversidade de linguagens e a
extraordinária riqueza da criação de pintores, ceramistas e escultores da madeira de
diferentes partes do Brasil apresentados naquela exposição. Mas partiu-se como
princípio da constatação óbvia de algumas coisas que todos eles têm em comum. Na
maioria das vezes, trata-se da experiência de um passado de trabalho rural antes de se
descobrirem – serem descobertos! – artistas e, mesmo no caso de uma história em
meio urbano, o partilhar, como os demais, de uma condição de vida humilde,
ocupados em trabalhos de natureza manual e mal remunerados. Louceiros, roceiros,
lidadores de gado, pedreiros, carroceiros, vendedores de ferro velho, seguranças – eis
o que encontramos nesse universo. Muitos aprenderam nesses ofícios o domínio de

93
Instituto do Imaginário do Povo Brasileiro (org.) Teimosia da Imaginação – dez artistas brasileiros. Prefácio
Rodrigo Naves. Textos Maria Lucia Montes. Fotos Germana Monte-Mór. São Paulo, Ed. Martins Fontes , 2012.
seu material e dos instrumentos de sua arte, que manejam com admirável maestria. E,
como tradição de família, muitos transmitem generosamente aos filhos, netos e
vizinhos o ensino de sua arte. Mas a criação ela própria é, para eles, quase sempre, um
dom, quando não fruto de uma revelação mística, ao que se acrescenta, depois, uma
vida de dedicação e trabalho árduo a serviço dessa dádiva.
Todavia, é preciso reconhecer, como faz Eduardo Subiratz, que esta arte
“popular” não se pauta por parâmetros estéticos que são os nossos conhecidos. É que,
no centro de sua criação, esses artistas afirmam insistentemente o poder da
imaginação e ela tem por referência uma visão de mundo peculiar. Por certo, ela está
firmemente ancorada na realidade da sociedade contemporânea em que vivem esses
artistas, e cujas desigualdades são perfeitamente claras para eles, sabendo-se parte de
um mundo de exclusão social, do qual a arte com frequência os redime. Mas ela deixa,
no entanto, ver como seus traços distintivos marcas bem precisas de amplos processos
de formação histórica:

A classificação e desqualificação de um gênero específico de


obras e expressões artísticas como “populares” não se
baseia em categorias estéticas. O que antes de tudo
distingue o popular é seu lugar social de origem. Seus
objetos procedem de um meio social politicamente
colonizado e economicamente depauperado. Não é preciso
recordar, por outro lado, que em nossa galáxia democrática
a extrema pobreza e a marginalidade são categorias
globalmente confinadas sob intransponíveis fronteiras
étnicas. A arte popular não é branca. Tampouco cristã. Ou
não é suficientemente cristã. Sua secreta relação com uma
compreensão mística da natureza, com os cultos de deuses
perseguidos e com comunidades economicamente
espoliadas a associa, desde o começo do colonialismo
ocidental, com a categoria inquisitorial, e mais tarde
epistemológica, de superstição. Seu nulo valor mercantil é
uma conseqüência de sua sub-valorização artística e
intelectual.94

A se levar a sério essa arte, é necessário, portanto, aprender o que nos ensinam
os próprios artistas “populares” sobre sua criação, o que nos obriga a nos deslocarmos
para outras paragens do conhecimento se quisermos compreender a poética que se
explicita em suas obras, procedendo a uma “ruptura epistemológica” que, de maneira
paradoxal, só um racionalista como Gaston Bachelard poderia nos fazer empreender,
ou, de uma perspectiva mais ampla, uma antropologia que busca desvendar
antiquíssimas cosmologias africanas ou ameríndias, nos trabalhos de um Pierre Verger
ou de outros, que vão da obra seminal de Castañeda ao perspectivismo de Eduardo

94
Eduardo Subiratz. El último artista. Arte popular y cultura digital. Arquitextos, São Paulo, 05.056,
Vitruvius, jan 2005 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/05.056/508/pt>.
Viveiros de Castro ou a visão holográfica do conhecimento que Roy Wagner vai buscar
no xamanismo, da Nova Guiné à Mesoamérica.
É preciso, portanto, começar por entender em que consiste a imaginação de
que se dizem devedores esses artistas e o que o imaginário em que navegam nos
revela da poética de sua criação. Sabemos que, ao longo da história da cultura
ocidental, a imaginação foi sistematicamente relegada a um segundo plano, mal vista e
mal afamada, de Platão a Descartes, em beneficio da afirmação de um racionalismo
que marca nossa visão do conhecimento, da ciência e da técnica como domínio da
natureza, derivando daí os valores que hoje caracterizam nosso modo de vida. E, antes
de tudo, é preciso afirmar que os artistas populares de que aqui tratamos têm com a
natureza uma relação muito distinta, seja pela proximidade que com ela mantêm em
razão de sua experiência de vida e do material de sua criação, seja em razão de uma
visão particular do sagrado ou até mesmo, no meio urbano, de uma espécie de
consciência ambiental raramente encontrada no segmento social a que pertencem.
Isto é o que desequilibra os termos da relação sujeito/objeto tal como nos
acostumamos a concebê-la para falar do conhecimento do mundo e, ao mesmo
tempo, é o que assinala um lugar diferencial para a imaginação e o imaginário que
sustentam a criação popular. Na verdade, mesmo a tradição do pensamento ocidental
já fora obrigada a por em questão o estatuto da imaginação em relação à razão
quando, no século XIX, a psicologia começa a se desenvolver como ciência autônoma,
levando a tomar as antigas faculdades da alma – sensação, percepção, reflexão,
memória, imaginação, volição, raciocínio, sentimento etc. – como objeto de estudo, ao
que a psicanálise viria a acrescentar depois mais um desafio, ao designar um novo
lugar para o sujeito – o sujeito do inconsciente – na criação da “realidade” de seu
mundo. Instaurava-se assim uma relação complexa entre os termos que a partir de
então deveriam fazer parte do entendimento da imaginação e do imaginário – como
instância de produção e produto do “sujeito” e do “real” no seu entorno – situado
entre o corpo e a mente, o psiquismo individual e a vida social.
É desta reviravolta epistemológica propiciada pelo nascimento da psicanálise,
somada à revolução da Física pela teoria da relatividade de Einstein, que deriva a dupla
tarefa que se impõe Bachelard. De um lado, o mais ferrenho racionalista, a exigir um
absoluto rigor na definição dos processos de descoberta científica, na certeza de que
suas verdades são sempre provisórias e se constroem por sucessivas aproximações, a
partir de questões que representam diferentes pontos de vista, ocasionando assim a
quebra de um paradigma anterior. De outro, o maravilhoso e voraz leitor de poesia
que busca desvendar a magia de sua criação pelos meandros da imaginação, do
devaneio e do sonho. Suas sutis modalidades e variações mal encontram palavras que
as traduzam. A poética do devaneio (rêverie). A psicanálise do fogo. A água e os sonhos
(rêves). O ar e os sonhos (songes). A terra e os devaneios da vontade. A terra e os
devaneios do repouso. A poética do espaço. A dialética da duração. São ensaios sobre
a imaginação da matéria, do movimento, das forças, das imagens da intimidade, além
do espaço e do tempo, que a filosofia kantiana tem como condição determinante de
nossa apreensão do mundo. No cerne da reflexão estão os quatro elementos da
natureza, buscados como princípios de formação e transformação do mundo na mais
longínqua tradição da filosofia pré-socrática, na obra de Empédocles de Agrigento: a
água, a terra, o fogo e o ar. Deles Bachelard extrai não só uma poética, mas uma ética,
uma estética, uma visão de mundo, um temperamento, uma postura diante da vida. E
ainda que fale de poesia, sabe melhor do que ninguém que trabalha em um domínio
que é também o das artes plásticas, ao tratar da imaginação da matéria:

Além das imagens da forma, tantas vezes lembradas pelos


psicólogos da imaginação, há imagens da matéria, imagens
diretas da matéria. A vista lhes dá nome, mas a mão as
conhece. Uma alegria dinâmica as maneja, as modela, as
torna mais leves. Essas imagens da matéria, nós as
sonhamos substancialmente, intimamente, afastando as
formas, as formas perecíveis, as vãs imagens, o devir das
superfícies. Elas têm um peso, são um coração. (...) Em vista
de [sua] necessidade de seduzir, a imaginação trabalha mais
geralmente onde vai a alegria – ou pelo menos onde vai uma
alegria! -, no sentido das formas e das cores, no sentido das
variedades e das metamorfoses, no sentido de um porvir da
superfície. Ela deserta a profundidade, a intimidade
substancial, o volume. Entretanto, é sobretudo à imaginação
íntima dessas forças vegetantes e materiais que gostaríamos
de dedicar nossa atenção nesta obra [A água e os sonhos]. Só
um filósofo iconoclasta pode empreender esta pesada
tarefa: discernir todos os sufixos da beleza, tentar
encontrar, por trás das imagens que se mostram, as imagens
que se ocultam, ir à própria raiz da força imaginante. No
fundo da matéria cresce uma vegetação obscura; na noite da
matéria florescem flores negras. Elas já têm seu veludo e a
fórmula de seu perfume95 [grifos nossos].

O que são, pois, as artes plásticas em suas expressões mais acabadas senão
alguma forma de manifestação da imaginação da matéria? O que é a pintura senão o
trabalho da cor que se espraia em um meio líquido, óleo ou água, pura ou acrescida de
matéria química, sobre um dado suporte? O que é a escultura, senão o esforço da mão
que entalha a pedra ou a madeira que lhe resistem ou apenas as libera do acréscimo
desnecessário da matéria que esconde a forma nelas já inscrita? A cerâmica, senão o
trabalho conjugado dos quatro elementos, barro, terra e água, ar da secagem, fogo da
queima? A mais profunda poética da criação plástica se nutre de imagens arcaicas, que
são aquelas que, na esteira de Bachelard, Gilbert Durand, ao estudar as estruturas
antropológicas do imaginário, afirma terem sido formadas em primeiro lugar no
espírito do homem quando confusamente ele percebeu o mundo como algo distinto
de si próprio, obrigando-o a tomar consciência de si, ao descobrir a passagem do
tempo e a perspectiva da morte, e forçando-o a buscar, contra a angústia da finitude,
significado para as coisas e as palavras, sentido para sua experiência do mundo e para
sua própria existência.

Baseando-nos (...) no balanço antropológico, conseguimos


estabelecer que a função de imaginação é, acima de tudo,
uma função de ‘eufemização’, não simplesmente ópio
negativo, máscara que a consciência ergue diante da
hedionda figura da morte, mas, pelo contrário, dinamismo

95
Gaston Bachelard. L´eau et les rêves: Essai sur l´imagination de la matière. Paris, Corti, 1942.
prospectivo que, através de todas as estruturas do trajeto
imaginário, tenta melhorar a situação do homem no mundo.
(...) Todavia, esta eufemização verga-se também ao
antagonismo dos regimes do imaginário, [diversificando-se],
às portas da retórica, em antítese declarada quando
funciona no regime diurno ou, pelo contrário, através da
dupla negação, em antífrase quando depende do regime
noturno da imagem.96

A permanência dessas imagens primordiais na história da evolução do Homo


Sapiens se deveria, segundo Durand, ao fato de que se formaram em conexão com
processos ontogenéticos e filogenéticos que são constitutivos do ser humano,
capturando matrizes do movimento ascensional ligado à postura ereta, do movimento
descendente da deglutição e da excreção do alimento que nutre o corpo, do
movimento ritmado da conjunção carnal no sexo que permite a reprodução da
espécie. São estruturas que, a partir do corpo, se inscrevem no inconsciente como
esquemas antecipatórios, cuja operação será determinada pela experiência que o ser
humano virá a ter do mundo, determinando ao mesmo tempo, pela mediação da
cultura, suas formas de percepção e compreensão da realidade desse mundo e de si
mesmo. Portanto, o imaginário não existe nem se mantém fora de um contexto real de
experiência humana, num vazio histórico ou social, mas, ao contrário, dele depende
para a expressão de suas formas. Entretanto, suas imagens não são reprodução dessa
realidade, mas condição de sua criação no plano coletivo, envolvendo as formas de
percepção que elas suscitam, a sensação e a emoção que delas emanam, a maneira
com que a memória as fixa, os sistemas de valores e normas de conduta que daí
derivam. São construções de signos, símbolos, ideias, sentimentos de longa duração
histórica, que a experiência atualiza em contextos específicos, mas que se conhecem
de modo exemplar quando se condensam na experiência singular de um indivíduo. E
artistas criadores são indivíduos privilegiados para nos fazer entender a maneira pela
qual o imaginário se manifesta como linguagem primordial de expressão em sua obra,
traduzindo a poética de sua criação.
Então, mais do que nunca, a imaginação não é reprodução de uma dada
realidade, percebida ou rememorada, mas sua invenção, por assim dizer, em forma
integral. Se a percepção nos dá uma imagem do mundo sempre situada na perspectiva
de um observador real, a imaginação, ao contrário, nos dá de cada objeto uma
apreensão total, pois só ela é capaz de vê-lo simultaneamente de todos os pontos de
vista, para depois produzi-lo materialmente em uma obra criada. No artista, a
imaginação e o imaginário que o sustenta se mostram na sua fala única e singular em
primeira pessoa, no devaneio que o conduz à criação, na forma em que sua mão molda
o barro, distribui as cores das tintas ou entalha a madeira, na atenção do seu olhar, no
esforço de concentração ao aplicar o instrumento de trabalho à matéria de sua
criação, na exuberância ou contenção dos seus gestos, na música com que eles se
fazem acompanhar, traduzindo às vezes numa cantiga a evocação nostálgica de uma
memória ou a alegria de um corpo exultante que dança a invenção de um sentido da
vida e de si mesmo.

96
Gilbert Durand. As estruturas antropológicas do imaginário. Lisboa, Editorial Presença, 1989.
É nesse registro que podemos tentar esboçar o perfil de um universo comum
aos artistas apresentados na exposição Teimosia da Imaginação. Em termos das
estruturas profundas do imaginário e da imaginação da matéria que comanda sua
criação, independentemente de sua natureza, suporte ou linguagem, talvez seja
permitido falar de um contínuo que parte das formas mais próximas à matéria
originária da invenção do sentido do mundo – a experiência da finitude e da
degradação e a angústia da morte – até as expressões mais articuladas do contexto
social em que se dá a criação artística, e num gradiente que vai da relação mais direta
do contato com a natureza no meio rural até a condição de vida em uma grande
metrópole. É, pois, a experiência desses artistas em seu processo de criação que leva a
pensar em um imaginário próprio à “arte popular”. O que gostaria de argumentar aqui
é que tal experiência se constrói como um drama que se atualiza na tensão entre as
necessidades da sobrevivência, às quais seu trabalho deve prover, e a força do talento
criador que os leva, numa zona de liminaridade, em outra dimensão de espaço e
tempo, a dialogar em níveis profundos com imagens arcaicas que ganham forma como
obras de arte graças à imaginação da matéria, tal como enunciada por Bachelard.
Não há como “explicar” essa experiência a quem, distante desse universo,
levanta questões “estéticas” sobre seu processo de criação ou se eles se veem como
“artesãos” ou “artistas”. Confrontados com essas abstrações, eles nos revelam a lógica
necessária à compreensão da experiência sensorial, emotiva e afetiva que vivenciam
como forma própria de conhecimento sensível do mundo. Assim, eles se limitam a
alinhavar, umas após outras, pequenas histórias de situações concretas que devem,
por alusão, metaforicamente, e de maneira exemplar, mostrar o significado de sua
criação. Isso, quando não tomam de suas rudes ferramentas e se põem a trabalhar
diante dos nossos olhos: “Só mesmo você vendo pra entender”. A performance do ato
criador torna-se, assim, a única forma possível de expressão do drama que está no
cerne de sua experiência de vida. Performance narrativa, primeiro, ao tentarem
exprimir em palavras o sentido dessa experiência. Performance concreta, depois, no
diálogo entre a mão que trabalha e a imaginação da matéria que informa sua criação.
Procurarei aqui evidenciar esse processo a partir do exemplo da arte do
escultor José Bezerra que, em seu trabalho, leva às últimas consequências a lógica da
performance que o sustenta, somando à sua condição de artista plástico também a de
compositor, músico e cantor. Ex-lavrador nascido em Buíque, próximo ao sertão
pernambucano, descendente de índios Fulni-ô de Águas Belas, Zé Bezerra incorpora
antiquíssimas heranças de seus antepassados à criação de sua arte e redescobre a
força de um imaginário primordial que o faz tirar da natureza as suas lições. Seu
trabalho traduz um processo quase literal de fusão cósmica na natureza que o cerca,
da qual emerge a obra por assim dizer já criada e que, como um xamã, ele convoca à
existência apenas revelando na madeira a forma nela inscrita. Não há, pois, naturezas-
mortas nesse universo, que é pura celebração da vida, a ser cantada e dançada por
quem têm olhos para vê-la na matéria aparentemente inerte. Tudo é sonho e devaneio
nesse mundo que acolhe outro tipo de certezas e que, na densidade etérea do ar e na
fluidez do fogo, faz o artista espreitar com o rabo do olho a forma viva de bichos e
antepassados, na imaginação de um movimento que é permanente transformação,
num tempo indiferenciado.
Deixemos, no entanto, falar o próprio artista que nos revela o sentido de sua
criação. O cenário onde vamos encontrá-lo evoca um tempo do começo do mundo.
Formações rochosas de estranhos desenhos, cânions, cavernas, paredões de arenito
multicoloridos escavados pelo vento, vegetação de caatinga, com variadas espécies
animais. Inscrições rupestres registram a ocupação humana pelo menos há dois mil
anos. Vale do Catimbau, entre o agreste e o sertão de Pernambuco. Catimbau quer
dizer “cachimbo velho pequeno”, coisa de feitiçaria em terra de caboclo. Em direção
ao São Francisco, por ali até hoje vivem Kapinawás, Xucurus, Fulniôs, Pancararus. Foi
ali que nasceu José Bezerra, que um dia um sonho – uma visão – revelaria como um
extraordinário artista. Deixemos que ele nos conte sua história.

Eu sou Zé Bezerra, nasci em Buíque, a pá da minha família é


de Catimbau, minha avó é de Águas Belas, dos índios de lá,
minha mãe é de Catimbau. Tem 40 ano que moro nessa área,
vim visitar meus avós e fiquei, hoje to com 58 ano, dia 20 de
março completo aniversário. Eu trabalhava de agricultura,
parei um tempo, morei com várias pessoas, mas sempre
gostaria de morar nas matas. No mato, a gente aprende a
colocar comida, tem a fruta do babão, araçá, cambuí, imbu,
sabe como faz um fogo, como passar a noite, sabe rastejar os
animais, onde passa uma cobra, pra onde ela vai. Tem a
batata do imbu, quando ta com sede, cava a panela no chão,
tem aquelas batata, corta, três dias você passa, ta lá aquela
aguinha gostosa. Sabe fazer um café com um prato de barro,
põe uma pedra no fogo, quando ta quente, joga lá com
aquele pó e o açúcar, já freve sem precisar de um bule.
Cozinha a carne de um cabrito, cava um buraco, forra com
madeira, corta aquela carne, coloca sal e fecha aquela pele
do animal, cobre de terra e faz uma coivara de fogo por
cima, vai assando bem devagarzinho, fica gostoso demais.
Tudo isso a gente já fez.

A família toda, os irmão, era de trabalhar na roça. Meu pai


era cortador de cabelo, minha mãe era costureira, quando
morria uma pessoa ela fazia aquele uniforme, era quase
profissão, mas sempre na agricultura. Eu vivia de roça,
brocando o mato, queimando, plantando mandioca, batata,
criava umas cabrinha, galinha, corria muito nos mato. Eu
não comprava carne, vivia só da espingarda, matando o que
era de bicho, veado, peba, mocó, tudo. Eu tinha um faro pra
encontrar os animais. Eu queimava a pele pra tomar um
banho com a fumaça, eu entrasse no mato, eles não sentia o
cheiro do meu corpo a não ser quase imitação das folha, da
pele dos outros animais, encontrava com eles cara a cara, e
aí tome tiro e vamo carregar pra casa.
Eu morei com várias pessoas, mas não em cidade. Fazendas,
sítios, andei pela caatinga, corri gado, fui vaqueiro, fui
apaixonado por música de gado, criei dentro de mim música
também. Mas cidade capital, não. É que meu avô criava
gado, eu achava bonito aquele som de chocalho, lidar com
gado, o cara montar a cavalo, correr, fui muito disso. Eu era
muito bruto, valente demais, era eu e cobra em pé de tronco
de pau. Um cara falava pra mim duas vezes, ia no pé dele:
achou bonito, feio, como é que é? Eu tinha raiva de mim
porque eu tenho um filho que é meio alto, meus irmãos são
bem formado e eu era aquele miudinho. Eu sou de sete
meses, não sei o que foi, diminuí...pra inteligência vim, né?
Morei com os Brito, era os homens mais valente do mundo.
Me botaram em riba de um cavalo, o cara me arrastou mais
de 200 metros nesse braço aqui. Pra mim tudo aquilo era
fantástico, tem que falar a verdade. Eu passei por tudo isso.
Dormi debaixo de ponte, pedi esmola, fui pra cadeia,
apanhei,dei. Eu vivi uma vida sofrida. Só pinga, briga,
valentia e pancadaria.

Então, um grande evento dramático se produziu, obrigando Zé Bezerra a


acrescentar ao seu conhecimento sertanejo um novo repertório de práticas e
significados carregados de magia.

Eu tive um sonho, a visão foi num dia de domingo pra


segunda-feira. Na época, com cinco filho, a roça já não dava
mais, as criação foram acabando, a gente foi matando,
comendo. Então a caça do mato foi diminuindo, ficando mais
difícil, eu tava no mato que já não tava aguentando de tanto
correr, passando fome com um punhado de farinha e cabaça
d’água, saía cinco da manhã, chegava cinco da tarde, com
uma coisa ou com outra, tinha que trazer pra casa. Então,
nervoso, eu peguei uma conversinha mais a mulher, que não
dava mais pra dormir dentro de casa não, peguei uma rede e
armei aqui nesses pau. Três hora da madrugada eu sonhei...
eu me emociono,que é o mesmo que eu esteja vendo a
pessoa conversando comigo... E então, ali, olhando pro
nascente, eu vi um véu muito bonito, formato de um homem
todo de branco, mais alto que um poste desse, com um
manto – eu criei esse chapéu pra ser uma simbolização,
como se fosse uma cachoeira – então ele disse: – Ô, Zé
Bezerra, você é um artista e vai viver das mata... É duro viu?
O que eu vi não é da Terra... E era muito perfeito, e ele
começou. Eu entrei na mata: – Tem ali uma preguiça. – Ô,
meu amigo, eu nunca vi uma preguiça, que aqui não tem.
Mas, dentro de mim, aquilo fala: – Ó, isso aí é uma preguiça,
esse é esse, esse é aquele, aquele outro. Eu tenho assim que,
no mato, aquilo vai me levando, eu vou direto, trago uma
peça. Vou mostrar vários troncos de madeira, você vai pisar
em cima, não vai ver o que é, eu arranco e lhe mostro: – É
isso aqui.

Desde então, algo mudou em Zé Bezerra. Ele passou de fato a ver a natureza e,
procurando entender seu idioma cifrado, precisou aprender a vivenciar outro tipo de
experiência. A natureza fala e Zé Bezerra vai registrando fragmentos de histórias que
não separam os bichos e os seres humanos, nesse mundo onde tudo está vivo nos
troncos mortos da mata, à espera de um olhar ou de uma escuta, que explodiriam
depois como criação em sua obra.
Eu me entreguei de corpo e alma, e agora eu vejo tudo e lhe
mostro onde ta gambá, cabeça de passarinho, homem com
os braço aberto, onde tem a cobra curva, onde tem o
formato de um peba, tatu, mocó, tudo isso tem em madeira
nos tronco que ta perdido lá no mato, que morreram.
Morreu, mas aquilo ta vivo. É que o povo não entende, só na
minha linguagem, no meu trabalho, eu vou entender. E tem
que explicar o que é, que você não vai saber nunca. A
natureza é viva. Pode o tronco ta morto, mas dentro tem
coisa viva.

Tem que ver dentro da mata, coisas que tem guardada que
ninguém ainda entende, mas eu durmo pouco e vejo mais, e
essas peça são muitas. Não é tão fácil, mas a gente vai se
encontrando. Olhando, vou vendo o que a natureza pode me
mostrar. Esse é um... camaradinha que passou muita fome,
com certeza ta por ali. Esse aqui já tem até... o pintinho... tá
vendo aí? Nem todo mundo pode ver as coisa que esses
meus olhos me mostram. Se for pra juntar todos que têm
formato de tudo quanto é coisa, vai andar muito... Mas tudo
isso aqui – um pássaro, um gavião, um braço aberto, um
aleijado – são as coisa que meus olhos vão vendo. E eu não
ando muito pra encontrar. As coisa ta tudo aqui na mata,
ninguém viu, ninguém sabe, mas o Zé Bezerra vai
devagarzinho trazendo, pra que tenham ainda um canto de
respeito, pra se comunicar a todo mundo.Vamos ver esta
abandonada aqui, ela vai me dizer qualquer coisa.... mas fica
quietinho, né? – Ah, você não ta apoiada, fica aí!E essa :– Tu
ta com essa dor, ô minha bichinha? Fique aí você também,
com esse biquinho muito provocado, depois eu lhe recolho
pra casa! Eu vou entrar aqui pra pegar a cabeça de um bicho
que eu vi. Tinha muitos anos que eu tinha vontade de passar
num lugar que eu via um formato de um bicho, eu não sabia
que fosse aqui...

Aqui dentro, a natureza conversa, ela diz por onde vai e a


gente segue. Se tiver com um queixo desse tamanho – acho
que até do meu tataravô, até ta carregando areia – é um véio
de um queixo meio grande... Agora eu vou ver se busco aqui
outro, que são vizinho, esse não ta ainda entregue não. Esse
ta com os braço aberto, significa que é a carcaça de um
tamanduá, mas tem que ficar aqui por um tempo. Aqui eu
acho que deve ter sido um fogão antigo. Algumas nação que
acamparam aqui, aproveitaram bem essa área, e eu vou
passando por aqui... Essa mata tem tudo o quanto é bom, eu
mostrei tanta bizunga, tanto biquinho de passarinho... É
uma história que vou deixando aqui, depois vão ser
recolhido num museu, porque daqui dez, vinte ano, a
criança não vai saber se existe isso aqui... Eu vou dar uma
voltinha aqui nesse trilho, quem sabe pode ter alguma coisa,
que eu to vendo um faro de alguma coisa, uma amostra
lenta, uma aparência, não sei...
Nesse mundo palpitante de vida, o que escapa à morte é a forma das criaturas,
o que não lhes foi sugado mesmo quando transformadas em bagaço, nesse outro
plano onde habitam. Isso é o que permanece, reconhecível, como uma espécie de
alma... Cabe ao artista resgatar essas almas-formas da natureza, recebendo em troca a
força de uma energia cósmica emocionante.

Essa peça, pra todo canto que você pôr, é o cangaço de um


carcará, tem o biquinho, a natureza fez, não eu. Eu vi com os
meus olhos. O carcará tem até aquela coroinha, tem as asas
próprias, ta vendo? Uma carcaça de uma madeira, um bico, e
eu vejo tudo convivendo aqui, contadinho. Eu passo assim: –
Caramba, você ta aqui, vou lhe levar pra casa! O que ta
fazendo aqui? Ta morrendo de fome? Então vá lá pra casa, lá
você vai ter uma sombra boa... Também quando às vez eu
amanheço querendo entrar no mato, eu entro no riacho, aí
eu to rindo sozinho, me emociono... Com o rabo dos olhos: –
Mas que é que ta fazendo aqui? Vamos lá pra casa, rapaz,
não fica aqui não. Você ta no sol... Que às vez ta dentro do
riacho aquela peça tão linda: – Vamo mais eu? Coloco no
ombro e trago praqui. Aí eu vou vendo aquela família
aumentando, e vai passando a energia para mim... Eu digo –
aiii... – e nem penso o que vou ganhar em cima daquilo ali
não.

Da preguiça não se desfaço. A holandesa chegou aqui, queria


levar por qualquer preço do mundo, mas ela é pra terminar
aqui mesmo, já vai pra quatorze ano que eu achei ela no
mato. E ainda vou encontrar uma peça que pelo menos imite
ela, porque eu posso pegar um tronco e talhar, mas não
quero, quero encontrar como eu encontrei, perfeita, só fiz
um cortinho pra fazer o jeito da cabeça, porque já tava tudo
no esquema. Aqui, uma cobra. Eu já vinha trazendo uma
peça, que eu encontro as coisa no mato, carrego: – Cobra, ah,
você ta com bote armado pra morder? Vou botar você nas
costa, não morde não. É uma cobra escrita, né? Cobra linda.
Aqui as raiz a gente já encontrou própria, curva e mais
curva, cobra também, porque se tem cobra, também tem
que ter os formato. Essa outra madeira aqui é o focinho do
guandu, tem até as orelha própria da madeira e ninguém
vem encaixar. Só que ela é uma madeira muito estragada,
né? Ta só com formato, mas esse formato que ta aqui, se eu
achar, já ganhei ele, pra que a visão leve pra colocar noutra
madeira.

Por isso não há como adentrar essa outra realidade onde se encontram tais
formas que vivem para além da vida sem os devidos ritos, porque tudo tem dono e é
preciso conhecer os seus modos, seu poder e seus preceitos. Espíritos tutelares velam
pela natureza em toda parte.

Tem que ter licença na mata... Se não tiver licença, depois


apanha, se corta, machuca, nada dá certo, não vê, não acha
nada. Tem que ter permissão. Eu tenho encontrado formato
lindo de madeira verde e eu olho assim: – Vou cortar. – Não,
não corta, porque ali é vivo. Eu quero conhecer os tronco
morto, porque eu vejo aquela madeira que tombou, só que
dentro dela tem vivo. Às vez você vai cortando ela
direitinho, aí tem a chave: tanta coisa perfeita, cachorro do
mato, gato... Às vez tem uma raiz ali que tem camelo, jacaré,
tudo formado, mas tudo verdinho, ta lavando ali, mais em
riacho, né? A gente encontra mais onde passou água, que
descobre a raiz e o segredo ta lá dentro da terra. O desenho
foi feito lá embaixo na terra. Não é tanto que a gente fica
cortando aqui, o desenho já vem lá da terra. Você tira, ta
tudo perfeito, o lombo do animal, a orelha, o focinho, os pés,
aquela carranca, aquela pele que tem às vez a cobra... Sendo
mais seca, ela caída, de qualquer maneira eu trago, em carro
de boi ou pago pros outros, ajeito tudo, pego a madeira e
trago. Mas verde, várias eu tenho visto, mas não pode cortar,
porque é chicotado. Nem tudo é IBAMA, é porque é
chicotado lá dentro do mato mesmo. Cortando aquela, você
pode ta matando, né? Como o cara que ta matando uma
pessoa pra tomar tudo que ela tem...

E lá no mato você vê muita coisa. Depende dos dias,


segunda, sexta-feira são os perigoso. Lá no mato você vê
cortar madeira, cochicho, assoveio... fiuuuu! Tem as
Cumadre Caboclinha... Mas eu era fumador muito, eu fazia
um cigarro, deixava nos pé dos tronco, quando voltava não
tava mais, não sei quem fumava. Isso aí é um que formula.
Pra ver ela mesmo não, mas meu avô viu, várias vezes. O
nome dela a gente chama aqui de Cumadre Fulozinha, mas o
certo é Caipora. Ela é miudinha, não tem roupa, o cabelo é
que cobre o corpo, não é mais que uns 70 cm, por aí. E ela é
invisível. Ela não gosta que você mata descompassado os
animais que são dela... Meu avô mesmo. Ele fez um fogo e já
tava com o boião completo de vários animal que tinha
matado, aí foi pro chão um pouquinho e cobriu com um
lençol. O lençol tinha um buraquinho assim, aí, de repente,
ela veio e pegou as brasas com as própria mão e jogou,
queimou ele tudinho! Quando ele meteu os pés, não viu mais
ninguém, ela chhhhh. Nem o cachorro não vê. São os
espiritozinho das década dos passado, dos tataravô de vovô
de vô. Isso é muita coisa...

Nesse mundo, o sonho é linguagem premonitória e guia seguro de ação, ainda


que às vezes se tenha de contar com alguma proteção. Então, sem cerimônia, um
santo católico se soma a outras antigas crenças. E, refazendo pelo avesso as
experiências do passado, a arte se torna um poderoso rito de expiação.

Sonhar com a madeira, vai lá, ta perfeito do jeito que eu vi,


rumo direto e encontro. Muita gente pensa que eu escondi
lá, mas não, é porque a inspiração vai levando pra onde ta.
Eu perdi vários objeto, eu dormindo de noite, tenho certeza
que eu acho. Eu tenho uma reza, que eu digo ela, vou direto
lá. É só falar pra São Longuinho, ele vê as coisas. Eu digo: – Ô
São Longuinho, eu quero o que eu perdi, ele vai me mostrar.

O que é São Longuinho? Quem falava era minha avó: – São


Longuinho, eu perdi a chave da casa, dou três gritos de
alegria se você me mostrar. Veja as coisa como era... Eu
perdi a chave da casa: às vez passava pelo passador no meio
da roça, a chavinha da casa num bolsinho do casaco dela –
esse pessoal antigo era tudo as mangas até aqui, a saia era
18 metros de pano, pra andar bem vestidinha... – aí vovó: –
Perdi a chave! A casa trancada, ela morava no mato como a
gente aqui. Aí, São Longuinho, três gritos de alegria. Ia lá,
encontrava a chave, às vez tava lá de um lado ou do outro do
passador, que é uma madeira que nem escadinha para você
passar da roça e voltar pro campo. Dava três gritos de
alegria quando achava. E São Longuinho, ninguém sabe, nem
via ele, era só aquela palavra: São Longuinho, São
Longuinho, me mostre! São Longuinho, eu perdi a chave da
casa! Eu perdi a carteira, perdi o facão, a faca, a vaca perdeu
o chocalho, me mostre onde ela perdeu, viu, São Longuinho?
Eu dou três gritos de alegria na hora que achar. Então vai
por aquele caminho, aquela coisa vai levando você, vai
andando até chegar no final que ta lá o objeto perdido. Aí
você acha, já pegou, tem que dar três pulo de alegria – pode
ser três gritos que três pulos –, mas tem que ter a palavra
São Longuinho. São Longuinho era um “são”, eu não sei o
que significa “são”...

Eu gosto de dar os pulinhos, é um agradecimento. A gente,


quando entra na mata, pede licença e isso tem os detalhes,
né? Não pode mostrar o santo e contar a reza... Pede licença,
entra na mata... A gente fala de São Longuinho e você diz:
quem é São Longuinho? Ah, é o espírito da mata! São
Longuinho, se você for lá e pedir com fé, que dá três gritos
de alegria, então com certeza vai aparecer. Eu dou... e outros
detalhes... Você tem que concentrar pra poder entrar no
mato. Pedir licença, saber como vai, como não vai, por que
deixar o cigarrinho dela... Não posso mais entrar na linha de
caça, a pisa é grande. Não posso voltar e nem quero, porque
hoje eu tenho como viver. Eu acho bonito o bicho vivinho, é
por isso que eu detalho eles, aqui é tudo retratando aquilo
que eu comia a carne. Só ta faltando guará, veado e outros,
porque eu desenhei e já levaram, mas aqui era completo de
tudo quanto é coisa. O que é isso aí? São os animais que eu
comi, eu to deixando aqui. Isso é uma família. De noite eu to
curtindo isso, porque ninguém entende o que é. Só eu
mesmo pra entrar na mata e saber.

Se imaginar é um entregar-se às coisas, como afirma Zé Bezerra, então sua obra


é possibilidade infinita de descoberta, quando as coisas se abrem para revelar uma
desconhecida riqueza. Talvez se devesse até falar não em criação do artista, mas em
visão que atravessa distâncias... daqui a mais de um sertão! Como um xamã, ao
entregar-se à tarefa de ver, ele convoca à existência o que não se vê e é poder e
perigo, à espreita na natureza. Então, um imaginário de heranças ancestrais, que ele
recolhe da paisagem do Catimbau, de suas misteriosas inscrições rupestres, transfigura
em arte uma inspiração comum.

A imaginação é o que você vê e se entrega àquilo. Acho que


to vendo perfeito, fica na visão, não vai sair tão fácil. Aí você
se entrega e aquilo vai se formando, não tem aula pra isso,
não tem escola. Eu to dormindo, mas eu me sinto diferente,
porque eu tenho um domínio. Mas não falo pra ninguém: eu
vejo as coisas, ninguém vai ver, eu explico, mostro, o pessoal
não vê. É porque eu me entreguei à arte, e eu tenho um lado
desses mesmos que passaram aqui. Só não posso ver de
dizer: – Olha ele ali! A gente senta aqui nesse chão, aí sente
como que ta ficando maneiro, como que ta pressentindo
alguma coisa. Não se explica, aí perde a origem. É uma
inteligência que vem pra cabeça do homem, se ele explicar
para outro vai perder e finda sendo chicotado.

O que está desenhado aqui [no sítio arqueológico de


Alcobaça] faz parte do meu trabalho. Quando eu era criança,
a vó desenhou uma cabeça do índio na parede na minha
casa, trouxe inspiração. Todo esse trabalho envolve o jeito
de ser das pintura, esse simbolismo que tem aqui a gente
ganha na madeira, tudo participa desse mesmo trabalho que
ta feito pintura aqui. Isso foi uma família que já tiveram aqui
há muito tempo, então a gente recebe essa inspiração que
foi dos tataravô, de outra família, porque a minha bisavó de
Águas Belas, dos índio lá, é só família que já moraram por
aqui, pode ser tio, parente... Mas em todo aquele trabalho lá
de casa, com xícara de madeira, facão, com vários animais
desenhado, aqui é desenhado de pintura e lá é desenhado de
madeira. Inspiração nasce desses todos que já passaram
aqui, porque a pintura mostra, a gente sonha, vê que aqui
faz parte do meu trabalho hoje.

Esse desenho aqui parece pessoas que têm o cabelo assim


bem penteado, aqui tem a forma de uma mão, aqui o bico de
um pássaro. Essa aqui tem um detalhe como seja uma
flecha... Eu sei fazer a flecha de madeira, só vou levar o
desenho daqui pra fazer lá. Eu já desenhava sem vir aqui.
Então, aqui é completo, porque a escultura tem parte com os
que fizeram isso aqui. É um espírito que ta se envolvendo ao
lado dos que já moraram aqui, e hoje é outro que ta
retratando aquilo que já foi repassado de um lado pra outro.
Porque eu desenho uma carranca que só tem daqui a mais
de um sertão... É um lugar muito, muito longe. A mulher
falou que eu tinha andado lá e tinha visto. Eu não vi, mas eu
desenhei a carranca como se fosse uma pedra que tem ali
pro lado dos estrangeiro, que tem cinco metros de altura
com a carranca de um homem, e eu desenhei do mesmo
jeito. Eu nunca fui lá, mas a visão vai, vem trazendo, vai
explicando e vai interrogando sobre o que a gente vê.
Quando bicho e gente podem se tornar um só, o vôo xamânico da imaginação,
transmutado em arte, cria formas híbridas, tudo é metamorfose, numa inesperada
inversão de sentido, sob o comando da natureza, sendo então melhor dizer do que se
trata: co-criação...

A natureza transforma o homem. O homem não transforma


nada. A natureza, você dobra a ela, ela lhe ensina as posição,
como você pode chegar na peça, descobrir o que ela tem.
Então, a natureza transforma o homem. O homem entra na
mata, vai ter aquele contato com a natureza, que ela informa
muita coisa. Eu fico todo emocionado quando falo nessas
coisa. Então você chega perto de um pé de árvore, fica ali
quietinho, e ali você se sente as coisas balançar, você se
sente cochicho, você se sente muitas vez assim... feliz! Você
sente arrepio, fica quietinho, não pode machucar nada...

E aí as pessoas... eu, se tivesse no mato, não tinha quebrado


nenhuma raiz dessas aí, deixava ela bem estirada, aí ela ia
ficar rodadona, com tudo que a natureza deu. Eles vêm
vender a peça, não entende que acabou meio mundo aqui.
Essa aqui também, madeirinha sequinha, quebrou,
desenfeitou, era tão linda lá na terra! Ela cavou isso aqui no
chão, morreu, mas se vê que daqui pra cá tava enfiada na
terra. Os formato ta na terra, aqui você vai só acabar um
incompleto. Essa aparência aqui foi toda talhada, eu não tive
ferramenta pra fazer isso aí. O tempo que esculpiu e deixou
mostra pra ver. Esse eu gostei, porque tem as coisa que eu
fiz e as que não fiz.Esses foram os animal que muito a gente
matou, cotia, gato. Não parece um gato? Tem um rabinho...
Mas isso aí é coisa que eu to desenhando, eu sou mais aquilo
que eu acho mais perfeito. Você vê as coisas que eu cortei
pra desenhar e as coisa que já têm o seu desenho próprio.

Aqui tem mais de 180 peças, que eu já contei outro dia.


Meus instrumentos de corte ta tudo aqui. Essa é a marreta
pra você bater no lugar que ta duro, esse é pra reabrir, esse
é mais fino pra você fazer um rebaixo. Esse é um formão,
grosso e fino, esse é uma goiva. Machado é pra abrir talha no
pau, afia bem porque é muito pesado. Não pode cortar com
muita força porque às vez bate, tira um pedaço de uma
cabeça, uma perna. Serrote e facão, muitas vez você precisa
de um facão pra ter um rebaixozinho, e nesta peça, serra
aqui e aqui, cria uma cabeça como seja uma cobra espiando
pra cima. O contrário, pode voltar, cria um rosto aqui e pode
criar aqui também, porque tem o jeito da cabeça de um
animal. Enfim, é como eu lhe explico: aqui tem duas perna,
posso tirar esse galho, serrar aqui, deixo o pitoquinho aqui,
e posso criar a cabeça de um ser humano aqui, voltar ao
contrário, aqui eu crio a boca, o olho, puxo aqui e deixo a
venta e o outro olho. Serro aqui, ponho dois pezinhos, vai
ficar em pé, seria um ser humano outra vez. Tá explicado?
Menas vez você corta a peça, mais é legal de ver. Quando a
gente desbasta muito, talhando, ela vai ficando com o corpo
seminu – isso vem dentro de mim, ninguém me explicou
não, eu ganho dentro de mim mesmo – e quando você acha
lá no mato, que a peça já vem com aquele umbiguinho, é só
dar um modelinho, é mais bonito. Pros menino, uma
madeira mais seca é melhor, mas pra mim, mais encharcada
um pouco é melhor, porque não tem polimento. Você vê a
barroca quando a grosa passou, passou o estopo, formão,
porque ele arranca, traz mais uma alegria pra peça, esse
pedacinho que fica, pra mim é um detalhe.

Naturalmente, a descoberta da arte modificou a vida de Zé Bezerra. E logo a


família toda incorporou o ofício, colocando em pauta a eterna questão do original e da
cópia, na figura do artista e do artesão.

Depois da visão, foi chegando gente daqui, foi olhando meu


trabalho e fui fazendo matéria,
fui cantando e fui desenhando. Os meninos pegaram pedaço
de madeira e foram desenhando também, e a mulher
fazendo os copo e xicrinha de madeira. Aí foi evoluindo a
família, foi como uma coisa que foi pegando todo mundo de
repente e cada um mostrando o que podia fazer.

Isso aí é pistola da guerra que aqui houve algum tempo, é do


Leandro. Aqui tem de ter tudo, espingarda, passarinho,
facão, espada, tudo aqui a gente desenha, porque o pessoal
compra, pra botar pendurado em casa, cortina, de tudo
quanto é essas coisa. Peça bem lixada, caprichada é do
Edmilson. Essa boneca é uma família de gêmeas, eu desenho
um lado e outro cara desenha aí. Quem desenhou aqui foi o
Fábio, essa foi o Rato, essa foi Edmilson. Eu disse: – Deixa
meio rústico, meu filho, mais no meu estilo, passa a lixa
nada aí, desenha e põe o seu nome, não põe o meu não. Mas
o problema é que os menino trabalha, e cada um quer fazer
a sua coisa mais perfeita. Eu fico mais com a natureza,
porque essas peça, aquela boneca que ele fez, é outro
criativo mesmo, eu faço de outro jeito. Sobre artesão e
artista,eu vou lhe explicar. O artesão reforma as coisas que
viu lá fora. Eu vi muita coisa bonita em São Paulo, podia
gravar e fazer aqui, mas não entrou na minha cabeça não.
Artesão é o meu filho, o Edmilson, a mulher é, as duas uma
moça são. O Luiz é artesão porque ele cria por revista. Eu
sou artista porque eu vou pro mato, trago um garrancho e
vira uma peça rapidinho, vai ver ela já ta até pronta, só
deixo ela aqui... Eu acho melhor levar o nome de artista do
que vender uma peça. Vende, o dinheiro se vai, então artista
eu prefiro porque, onde eu ando, uns me consideram como
uma pessoa lá em cima e outros não entende: – Ah, deixou
de trabalhar por quê? Porque eu ganho o nome de artista, eu
canto, rebolo, danço, talho madeira, eu imito os animais,
faço um bocado de coisas. Então, melhor dizer: – Você é um
artista, adorei o seu trabalho – e me compra uma peça daqui
um ano, dois, três.

Vende a peça, o lugar fica lá vazio, teve época desse terreiro


ficar só o terreiro. Então me pedem mais peça, eu digo que
vou desenhar, e com oito dias ta completo aqui de outras,
porque eu tenho quem me mostre uma por uma, eu vou
trazer de volta aqui. A peça vai pra onde ela for, quando eu
talhei ela, ela ficou gravada em meu pensamento, aí eu
reponho. Ela vai, fica só a marquinha lá. Eu sinto o vagão no
terreno e sinto dentro de mim, que ali ta faltando, e eu tenho
que pôr lá de novo. E quando coloco tudo lá, volta a encher
aquele vazio, se completa. Então, as peças que eu vendo, eu
sinto o vazio mesmo com grana. Não sou apaixonado por
dinheiro. Eu acho que sou apaixonado pela peça e por aquilo
eu faço, porque gosto e acho bom.

Zé Bezerra é um artista sintonizado com seu tempo e transborda alegria, pelo


que faz hoje e pelo futuro, que encara com entusiasmo. Vivendo entre dois mundos, o
herdeiro do xamã está feliz. No devaneio cósmico que sustenta sua obra, o mundo fala
através dele, na linguagem que os mitos falavam em todas as culturas, antes da ciência
e da cultura. Então ele toca seu berimbau e canta, celebrando a vida.

Essa brabeza toda que eu tinha, eu vou lhe dizer o porquê:


porque eu passava fome, vivia nervoso... Quando eu comecei
a trabalhar, receber presente, ver os amigos, então eu
troquei a maldade por felicidade. Comecei a chorar quando
eu vi o sonho… Depois, foi passando gente aqui, eu fui
criando as coisa, aí já fiz matéria na TV do Recife, fui pra
Piauí, criei o berimbau, me levaram pro Rio de Janeiro, tive
em Bauru, cantei lá 40 minutos. Isso é bom demais! Quando
eu tive o sonho, eu achava que cada correia da madeira
podia me trazer uma inspiração: – Agora eu to talhando
madeira, eu quero cantar, dançar, cantar toada, eu quero
fazer tudo. Aí eu fiz um chapéu, que é um detalhe dos
passado, da minha bisavó, que era índia pega no mato de
cachorro. É o chapéu da minha história, então é uma
inspiração. Aí, quando eu criei o berimbau, fui ganhando
amigo, presente, zabumba, triângulo, pandeiro, enfim, eu fui
fazendo um conjunto, tem até DVD gravado. Esse berimbau,
primeiro botei duas bolha, não deu, arrochei o arame, ele
tem um aço. Minha mãe me deu uma panela, uma vizinha
me deu outra, botei naquela táuba. Eu canto duas, três
horas, fico arrepiado quando pego naquele berimbau, tem
uma energia imensa. Ê meu Deus, é bom demais quando o
homem se entrega àquilo que merece e faz aquilo que acha
bom. É eu...

Há aqui mais do que o trabalho de um grande artista, que talvez não seja
preciso resgatar ao preconceito contra a chamada “arte popular” por meio de sua
comparação com a arte erudita. Sua obra, tal como a dos demais artistas populares, se
sustenta por si mesma, pela força do imaginário de onde emerge e que não se deixa
facilmente apreender pelas categorias estéticas da chamada “alta cultura”. Não é de
estética apenas que se trata, mas de forma de conhecimento do mundo –
conhecimento da natureza, conhecimento filosófico, metafísico, ético, estético,
religioso e o que mais se quiser acrescentar à lista. Uma forma outra de conhecimento,
que passa por uma experiência sensível de apreensão qualitativa do mundo e que, em
termos antropológicos, nos remete a cosmologias africanas e ameríndias, ao axé que
faz existir todas as coisas, ou às formas de energia da natureza que se
metamorfoseiam nas formas humanas da cultura. A não ser pela mediação de uma
experiência total do corpo e da alma, não há como alcançar esse conhecimento, ao
mesmo tempo “racional”, de tipo “científico”, ou “estético”, como talvez fosse aqui o
caso – que conecta causas e efeitos, necessário à sobrevivência material cotidiana do
homem ou à avaliação crítica das suas obras de arte – e “espiritual”, necessário à
experiência integral do significado da vida humana e da criação das obras de arte.
Como o xamã, o artista vive a assombrosa liberdade do processo de criação,
com suas tensões e alegrias, numa situação de liminaridade em relação ao espaço e ao
tempo em que se encontra, entre dois mundos, talvez quase em um estado alterado
de consciência como aquele que El Mescalito propicia a Castañeda, como condição de
aprender os ensinamentos de Don Juan, que lhe fala do antiquíssimo saber Tolteca das
culturas mesoamericanas. E o extraordinário efeito desse “delírio controlado” é a
descoberta de que os dois mundos, do cotidiano e do imaginário ao qual se entrega,
não são opostos, mas se espelham, ou mutuamente se imbricam, como as figuras de
uma geometria fractal se reproduzem mantendo a mesma relação de proporção, ainda
que em escalas diferenciadas e variações infinitesimais. É preciso, portanto, apenas
“varrer a ilha do tonal”97, nosso conhecimento “racional” e “pragmático” do mundo –
aquele que apreendemos pelo lado direito, já que é com a mão direita que com ele
lidamos, e que nos assegura que a realidade e nós mesmos somos aquilo que nos foi
ensinado pela nossa cultura e nossa civilização – para se ter acesso a essa outra forma
de conhecimento do lado esquerdo, o “nagual”, a “bruxaria” do xamã, que nos mostra
o mundo de outra perspectiva. Ver-se-á então uma “realidade” que pode ser a que
conhecemos e também simultaneamente outra, tal como num mundo perspectivista
das cosmologias ameríndias, povoado de muitas espécies de seres, humanos e não
humanos, todos dotados de subjetividade – “deuses, espíritos, mortos, habitantes de
outros níveis cósmicos, plantas, fenômenos meteorológicos, acidentes geográficos,
objetos e artefatos”98 – que, todos eles, nos compreendem e nos veem de modo
simétrico e inverso àquele pelo qual os vemos, numa reciprocidade de perspectivas:
nesse universo, todos são gente. É desse ponto de vista que se embaralham as
fronteiras epistemológicas estabelecidas pelo nosso saber entre “natureza e cultura,
universal e particular, objetivo e subjetivo, físico e moral, fato e valor, dado e
construído, necessidade e espontaneidade, imanência e transcendência, corpo e

97
Carlos Castañeda. Cf., entre outros escritos do autor sobre o tema, Una realidad aparte (Nuevas conversaciones
con Don Juan). México, Fondo de Cultura Económica, 1974.
98
Eduardo Viveiros de Castro. P
erspectivismo e multiculturalismo na América Indígena (resumo do capítulo 8 de A inconstância da alma
serlvagem.São Paulo, Cosak & Naify, 2002, apresentado em comunicação ao Departamento de Filosofia, PUC-RJ em
agosto de 2004). O que nos faz pensar, no. 18, PUC-RJ, setembro 2004.
espírito, animalidade e humanidade”99. Da perspectiva da experiência, é como se fosse
possível penetrar no interior de uma construção holográfica que é vivenciada pelas
projeções que dela uma imaginação enfim efetivamente perceptiva é capaz de
produzir/apreender em outro modo de conhecimento, como criação e repetição
infinita de si e de nós mesmos de uma forma sempre eternamente renovada, como
bem atestam os mitos ameríndios e a mito-poética da criação de nossos artistas
populares100.
Então, nesse universo indiferenciado, sem dentro ou fora, já nada importa e,
por isso mesmo, tudo e cada detalhe importa, cada instante e sua experiência
intensamente vivida, como o bubuio da folhagem na mata ou os sussurros de Cumade
Fulozinha que José Bezerra escuta e traduz em cantiga e performance, acting out do
drama de sua experiência do mundo como criador e artista. É assim que, para além de
sua condição social, lhe é dado viver a vida como deveria ser vivida, plenamente, de
modo intenso e grave, carregado de responsabilidade por seus atos, impregnado pela
profunda alegria de sua própria liberdade. Tudo é questão da perspectiva de onde se
vê o mundo. E talvez seja esta a grande lição que Zé Bezerra e tantos outros
extraordinários artistas populares tenham a nos oferecer, arrancando-nos das
confortáveis e perigosas certezas de nossas formas de conhecimento e experiência
para que, num espaço e tempo de liminaridade, se possa vislumbrar outra realidade
em que tudo pode ser permanentemente criação – invenção e arte –, plenitude de
vida. Uma vida escandida pela respiração do Grande Animal do Mundo, alma, pneuma,
fôlego do próprio cosmos, que é nada e é tudo, vivendo o milagre de uma amorosa
cumplicidade com a natureza e todos os seus viventes, como sabem o guerreiro de
Castañeda, o monge tibetano ou os xamãs em toda parte. Talvez, mais do que nunca, o
mundo de hoje precise aprender esta lição.

99 .
Idem, ibidem.
100
Lelia Coelho Frota. Mito-poética de 9 artistas brasileiros: vida, verdade e obra. Apresentação Clarival do Prado
Valladares. Rio de Janeiro, Funarte,1978.
A arte e a rua: reflexões a partir da realização de um filme etnográfico com
artistas de Cidade Tiradentes, Rose Satiko Gitirana Hikiji (PPGAS/USP)101

Resumo: Este texto aborda a experiência de realização de um filme etnográfico


com rappers, grafiteiros e street dancers de Cidade Tiradentes e apresenta os
processos de transformação pelos quais passam os movimentos artísticos deste
distrito situado no extremo Leste de São Paulo em suas relações com o território.
A etnografia aborda as “velhas” e novas formas performáticas da arte de rua,
quando esta passa a acontecer em espaços como escolas ou igrejas evangélicas.
A reflexão metodológica propõe a análise do fazer audiovisual como
performance: estão em questão tanto as performances dos sujeitos que se recriam
como personagens para o filme, quanto a das antropólogas, que se recriam como
cineastas.

Cidade Tiradentes por seus artistas


Cidade Tiradentes, distrito da Zona Leste de SP, é considerado o maior conjunto
habitacional popular da América Latina. É resultado de um projeto governamental
iniciado na década de 1970 de criação de dormitórios para abrigar a população de
baixa renda. Cidade Tiradentes possui cerca de 50 mil unidades habitacionais, e mais
de 250 mil habitantes.
Em 2010 realizei neste distrito, junto com Carolina Caffé, as filmagens para o
curta-metragem Lá do Leste (2010), projeto selecionado pelo Etnodoc, Edital de Apoio
a Documentários Etnográficos sobre Patrimônio Imaterial, e para o média-metragem A
arte e a rua (2011).
Os filmes surgem a partir de pesquisa anterior. Em 2009, Carolina e eu
participamos da realização de um mapeamento sociocultural intitulado
"Cartovideografia das Dinâmicas Jovens da Cidade Tiradentes" - Mapa das Artes da
Cidade Tiradentes, promovido pelo Instituto Pólis, com apoio do Centro Cultural da
Espanha_SP102.
O produto desta pesquisa foi um mapa interativo virtual
(www.cidadetiradentes.org.br) que apresenta espaços culturais, artistas e suas
produções, a partir de uma produção colaborativa com os moradores da localidade,
que teve como principal instrumento de pesquisa o audiovisual.
Durante quase um ano, trabalhamos com quatro pesquisadores-moradores de
Cidade Tiradentes, que tinham em comum algum envolvimento com práticas artísticas
na localidade: Cláudia Canto, escritora; Cláudio Tio Pac, videasta; Bob Jay, rapper e
Daniel Hylario, ativista cultural. Com eles, construímos questões e problemas, que
foram a base do roteiro das entrevistas que iriam compor o Mapa das Artes de Cidade
Tiradentes.
Com uma câmera de vídeo em mãos e este roteiro, os pesquisadores
registraram mais de 50 entrevistas. O roteiro pré-formulado era apropriado
diferentemente conforme cada situação. Aos poucos, soluções criativas foram sendo

101
Pesquisa realizada com apoio da FAPESP. Os filmes aqui discutidos foram realizados em parceria com
Carolina Caffé, com apoio do Edital Etnodoc. A Movie&Arte produziu Lá do Leste. O Laboratório de
Imagem e Som em Antropologia (LISA-USP), o Instituto Pólis e a WS são co-produtores dos filmes.
102
Carolina Caffé foi a produtora executiva do projeto, eu realizei a consultoria etnográfica.
experimentadas: entrevistas a noite, iluminadas pelo farol de um carro; questões do
roteiro anotadas em papéis eram sorteadas e respondidas pelos entrevistados;
encenações eram criadas para apresentar os “personagens”; conversas mais informais
surgiam em algumas entrevistas, resultando no desenvolvimento de novos temas.
Os produtos das conversas gravadas lembram o que Bill Nichols (2005) chamou
de “documentário performático”, ou documentário “em primeira pessoa”. São filmes
marcados por uma “subjetividade social”, filmes produzidos por aqueles que
tradicionalmente são mal ou sub-representados nos documentários. Segundo Nichols,
o modelo “nós falamos sobre eles para nós” é substituído nas produções performáticas
por “nós falamos sobre nós para nós”. Para o autor, neste estilo de documentário é
adotado um modo de representação distinto, no qual conhecimento e compreensão
exigem uma forma diferente de envolvimento.
Nos filmes do Mapa das Artes da Cidade Tiradentes, as gravações e
questionamentos foram realizados por aqueles que compartilham com os
entrevistados a experiência da vida no bairro, as dificuldades, as lutas, as estratégias
de sobrevivência, as conquistas pela arte.
Foi desta forma, por meio de vídeos trazidos por pesquisadores-moradores, e
da própria experiência destes agentes, que nos aproximamos efetivamente do
universo dos artistas do distrito.
Por um lado, experimentamos nesta fase da pesquisa, as possibilidades de
compartilhar efetivamente a produção de conhecimento com moradores da
localidade, que eram, naquele contexto, mais que objetos da pesquisa, sujeitos
produtores de conhecimento.
Por outro lado, diferentemente da pesquisa de campo mais tradicional, nos
aproximávamos dos sujeitos pesquisados por meio de filmes que eram, por sua vez,
co-produções dos artistas “mapeados” com os artistas-pesquisadores.

Antropóloga-cineasta
Desde esta fase inicial da pesquisa, minha ação como pesquisadora não se
separava da atuação como realizadora de imagens. A produção de imagens colocou-se
como método central no mapeamento e resultado da pesquisa etnográfica na segunda
fase, que resulta na produção dos filmes etnográficos.
Em ambos os momentos, uma inspiração comum: o trabalho de Jean Rouch,
antropólogo-cineasta que desde os anos 1940 até 2004, ano de sua morte, vislumbrou
por meio do cinema, uma antropologia na qual a produção do conhecimento se dá no
diálogo com o sujeito pesquisado, e por meio da qual é possível devolver aos grupos
pesquisados o conhecimento com eles produzido.
Quando proponho uma reflexão sobre a performance do antropólogo como
cineasta, e declaro a inspiração Rouchiana de minhas pesquisas, enfatizo uma intenção
provocativa e reflexiva. Por um lado, reconheço o potencial provocativo da
personagem “cineasta” ou “antropóloga-cineasta” que interpreto. Por outro, percebo
como fundamental uma reflexão sobre possibilidades da escrita etnográfica com
imagens.

O filme como propositor de performances


Não há uma única personagem antropóloga-cineasta, assim como não há uma
única forma de pensar e fazer filmes etnográficos. O cineasta pode se fazer mais ou
menos presente, explicitar mais ou menos seu projeto de conhecimento.
Bill Nichols (2005) criou tipos para pensar estas diferentes presenças no campo
do documentário. Identifica no cinema de observação a postura “mosca na parede”, a
câmera que registra sem, teoricamente, interferir na ação, quase sem ser notada,
estratégia típica do Cinema Direto norte-americano. O cinema de Rouch estaria mais
próximo da “mosca na sopa”, o cinema de provocação. O metacomentário surge no
cinema reflexivo, the fly in the I/eye (a mosca no eu, ou a mosca no olho).
Na confecção dos filmes etnográficos Lá do Leste e A arte e a rua, três formas
narrativas são entrelaçadas. Em cada uma delas, surgem especificidades na construção
de performances para a câmera por parte de nossos “personagens”103.
A primeira é a apresentação do que chamamos de etnografia dos grupos: uma
descrição de seus deslocamentos no território, os equipamentos e espaços que utilizam para
apresentações e ensaios, suas práticas artísticas, sua sociabilidade, e suas reflexões. Para dar
conta desta narrativa, experimentamos técnicas do cinema de observação e do participativo,
em registros das ações cotidianas, das performances e de depoimentos e conversas informais.
A segunda narrativa explora a metodologia da “câmera-bastão”. No filme,
propusemos a alguns dos nossos personagens que levassem a câmera providenciada pela
produção para registrar elementos de seu cotidiano: poderiam gravar seu trabalho, o distrito,
os preparativos para as apresentações, além de filmar livremente o que achassem
interessante. Os resultados trazidos foram tão surpreendentes que formam parte significativa
do corte final dos filmes.
A terceira narrativa do filme é a que chamamos de “experimental”. Foram co-
produções em que equipe e atores sociais produziram produtos audiovisuais que expressam
suas formas artísticas em uma linguagem mais livre.
Cada uma destas linguagens – o cinema observativo, participativo,
performativo (câmera-bastão) e experimental - provoca performances e a construção
de si como personagem. Em todas – ao menos na forma como as propusemos para
nossos interlocutores – há uma consciência dos processos de produção de imagens e
discursos.
Mas é necessário pensar que a narrativa etnográfica implica também a
construção do outro como personagem. Diferentemente da narrativa escrita, que
tende, como notou James Clifford (1998), à despersonalização, o filme etnográfico
tende à personificação. Clifford, em sua crítica à etnografia tradicional, apresenta o
processo de textualização como distanciamento em relação ao contexto de produção
do conhecimento.
Na escrita, os dados reformulados não são entendidos mais como produção de
pessoas específicas. O ritual textualizado não está mais ligado a produção do evento
por atores específicos. Surge o autor generalizado: os trobriandeses, os nuer, o ponto
de vista do nativo. No filme, não é possível “excluir o informante da etnografia”, para
usar os termos de Clifford.
Neste sentido, se é possível realizar uma etnografia sobre o “estado da arte de
rua” em Cidade Tiradentes, esta será sempre uma etnografia a partir da relação que

103
Discutimos, Carolina e eu, estas formas com mais detalhe em Caffé & Hikiji, 2012b.
estabelecemos com atores específicos, conhecimento compartilhado, como diria
Rouch, resultado de presenças, nas palavras de David MacDougall (1998; 2006).

Arte de rua?
Chegamos enfim à questão que norteia nossa produção audiovisual, questão
surgida no processo de pesquisa para o mapeamento, construída em colaboração com
os pesquisadores-moradores:
Como território e arte se relacionam? Como as transformações espaciais, sócio-
econômicas, culturais afetavam as manifestações artísticas? Como a arte refletia sobre
estas transformações.
Nos pareceu que, dentre os grupos mapeados, aqueles com alguma
proximidade com o universo do Hip Hop seriam bons para pensar a relação com o
território. Arte de rua, afinal, é talvez o termo que melhor descreve o tipo de
manifestação que reúne o rap, o graffiti e o street dance.
Cada um dos quatro grupos selecionados como protagonistas do filme tem suas
especificidades. Não realizam uma leitura única da experiência cotidiana no território,
não possuem visões homogêneas acerca das transformações pelas quais passa o
distrito. Mesmo entre os membros de um único grupo, pudemos encontrar
divergências que enriquecem os processos interpretativos e reflexivos de suas práticas
artísticas.
O primeiro grupo apresentado nos filmes é o coletivo de grafitti 5 Zonas,
formado em 2006 por Anderson Aparecido (Hope), Antônio Duque (Tota), Eder Sandro
(Sow), Eduardo Marinho (Credo) e Everaldo Matias (Eve14). Uma das principais
expressões da arte de rua, o grafitti vem ganhando novos espaços de expressão em
São Paulo, e este é um ponto de conflito entre os membros do grupo.
Por um lado, observamos a ampliação da atuação dos grafiteiros, o que garante
mais visibilidade e faz desta forma artística uma das poucas que gera renda suficiente
para que alguns dos membros do grupo “vivam” de sua arte. Por outro, percebemos
entre os grafiteiros opiniões divergentes acerca do lugar da arte e de sua relação com
o espaço público.
O conceito do all city é uma das bases da arte do grafitti, traço que se espalha
por todo o espaço urbano. Diferente de outras manifestações, que defendem algum
encapsulamento – a ideia da arte do gueto e para o gueto, por exemplo – o grafitti
extrai sua força do potencial de disseminação do traço para além dos muros da própria
comunidade. O conflito aqui surge na própria definição dos limites da arte, quando,
como para Sow, ela se perde ao sair da rua e entrar em espaços privados ou
institucionais.
O street dance de Cidade Tiradentes é o segundo personagem dos filmes, e nos
é apresentado por meio de Ivan Santos, do Tiradentes Street Dancers. Ivan conheceu a
dança de rua na São Bento, berço do movimento hip hop paulista nos anos 1980. Em
nossas conversas, Ivan lembrava-se constantemente da cena do street dance em
Cidade Tiradentes, que, em outros tempos, juntava dezenas de pessoas nas ruas do
distrito, época em que “treinávamos todo final de semana, quando era febre, todo
mundo dançava”.
Hoje, Ivan dá aulas gratuitas (e não remuneradas) no CEU Inácio Monteiro, e
organiza grandes “batalhas”, eventos que reúnem centenas de praticantes das diversas
modalidades da dança, como Locking, Popping, Power Movie e Salto Mortal.
Como o grafitti, a dança de rua apropria-se de novos espaços, não sem algum
conflito:

Hoje, [o público da dança de rua] caiu um pouco, perdeu um


pouco, até pelos espaços que você conquista. Você tem
espaço coberto, tem música, tem infraestrutura e você não
quer ficar mais na rua. O pessoal tem esse lance de tudo o
que tá na rua é ruim. Eu não ligo se tá na rua ou num lugar
fechado, num clube, numa quadra, seja o que for, pra mim é
do mesmo jeito, é manifestação popular.

Daniel Hylario caminha por Cidade Tiradentes. Pensa alto, canta e fala
enquanto percorre o território. No média metragem A arte e a rua, Daniel ocupa o
lugar do narrador. Mas sua narrativa corre paralela às ações e reflexões dos artistas do
filme. Não é um comentário direto, não é um diálogo com seus colegas artistas.
Refletir é sua forma de arte, Daniel é nosso filósofo de Cidade Tiradentes.
Daniel pinta com suas palavras o cenário da construção do distrito, espaço
relativamente novo, com menos de quatro décadas de existência. A experiência de
auto-construção é associada por Daniel a uma forma de sociabilidade mais intensa,
“mais compacta”:

Quando o bairro foi construído, onde eu resido, o Barro


Branco, o mutirão foi construído sem muro, e as pessoas
precisavam de moradia, aí ia trabalhar todo mundo
trabalhar no mutirão. E as pessoas eram mais compactas, né
mano? Ou... mais próximas umas das outras.

Ao comentar as transformações que o espaço vem sofrendo, algumas fruto de


ações governamentais de urbanização, outras, do crescimento das atividades
comerciais, Daniel chama atenção para uma relação entre os novos equipamentos
urbanos e alterações nas formas de convivência:

É legal que tenha um hospital, mas isso virou regra: toda vez
que vai construir um aparato público destrói um campo de
futebol, destruiu um campo de futebol, destrói um pouco da
sociabilidade que as pessoas tem no final de semana.

A imagem que surge da fala de Daniel, que sobrepõe hospitais a campos de


futebol, remete, de alguma forma, às transformações vividas pela dança de Ivan: em
vez de hospital, o CEU e sua ampla sala espelhada de dança substituem o cenário da
rua, da garotada da vizinhança dançando sobre pedaços de papelão.
O rap é um dos pilares do Hip Hop e não poderia ficar de fora de nossa
descrição da arte de rua de Cidade Tiradentes. Bob Jay, um de nossos pesquisadores-
moradores no Mapa das Artes, revela-se como um grande personagem no processo de
realização dos filmes. Seu cotidiano, suas canções e suas reflexões evidenciam diversos
conflitos que envolvem as transformações do rap em Cidade Tiradentes.
Em uma das cenas, vemos a família RDM assistindo, de longe, um show de
funk, promovido pela subprefeitura de Cidade Tiradentes. Cai a tarde e há mais de mil
pessoas na rua em frente ao grande palco montado pelo poder público. Os membros
do RDM decidem ir embora, e, revoltados, comentam o fortalecimento desta
linguagem musical e a perda de espaço do rap em Cidade Tiradentes.
O rap, na versão de um dos grupos mais tradicionais de Cidade Tiradentes,
perde espaço para o funk, a nova “febre” entre a juventude do distrito. Para Bob Jay e
os membros da Família RDM, isso se dá por vários fatores: o apoio recebido pelo funk
por parte do “poder paralelo”, o “envelhecimento” da geração de rappers, que hoje
“se acalmou”; a perda da força do discurso anti-sistema do rap (“vamos fala de festa”).
Em uma das cenas do média-metragem, acompanhamos Daniel Hylario em uma
visita ao então Subprefeito de Cidade Tiradentes. Renato Barreiros explicou para
Daniel e para a equipe sua estratégia de valorização do funk como meio de aproximar-
se da juventude do bairro. O diálogo que registramos é significativo, e adensa a
reflexão de Bob Jay acerca do fenômeno musical que faz a cabeça da geração dos
filhos dos rappers.

Subprefeito: A gente priorizou o funk porque é a linguagem


que os jovens mais participam hoje. A questão é a seguinte:
a gente tinha as carretas-palco que eram levadas pros
bairros. Quando a gente fazia uma carreta-palco de rock,
uma carreta-palco de outra linguagem, não tinha quase
nada; a gente faz carreta-palco de funk e você coloca dez mil
pessoas. Então, assim, o Estado, ele sempre tem que
priorizar, quer dizer, o que é... digamos, o que a população
quer. Você sabe por que eu acho que o funk virou na
periferia e meio que engoliu o Hip Hop? Pelo seguinte: o Hip
Hop ficou muito politizado, às vezes o cara que quer ir no
baile, o cara quer ir se divertir, então, o cara não quer ouvir
falar de coisas, digamos, sérias.
Daniel: Ele gosta de se vestir bem, de ter mulheres bonitas,
de ter roupas legais.
Subprefeito: É, exatamente.
Daniel (rindo): É o estilo descolado, eles são bem
descolados, né?
Subprefeito: Eu acho que é por isso que os caras
conseguiram, né?
Daniel (sério): Os caras arrastam multidões...
Subprefeito: Multidões.

Um quarto grupo completa o pequeno mosaico da arte de rua em Cidade


Tiradentes. É outro grupo de rap, que conhecemos no processo do mapeamento e que
desde então nos chamou atenção para um fenômeno recente no distrito, mas muito
significativo numericamente inclusive: a relação das igrejas evangélicas com as formas
tradicionais de arte (musical) no território.
O Relato Final é um grupo de rap gospel. No mapeamento, soubemos que
como este há dezenas (talvez centenas) de grupos musicais que, em diferentes estilos
(do rap ao samba), utilizam-se da música para louvar a Cristo e evangelizar.
***
O projeto do filme chamava-se A arte e a rua – título que atribuímos ao média-
metragem. O processo de produção da pesquisa e do filme nos mostrou diversos
conflitos em torno da relação arte e rua. As performances constroem esta relação, ora
reforçando a rua como espaço privilegiado da arte “de rua”, ora apontando para a
necessidade de ocupação de novos espaços. Na prática artística, os coletivos
manifestam seus projetos, ideias, dúvidas, conflitos.

Bibliografia
CAFFÉ, Carolina & HIKIJI, Rose Satiko G. “A Arte e a Rua: uma experiência colaborativa
audiovisual com artistas de cidade tiradentes.” In: Revista Cultura e Extensão
USP, v. 7. São Paulo: PRCEU/USP, 2012a, pp. 41-52.
CAFFÉ, Carolina & HIKIJI, Rose Satiko G. “Filme e antropologia compartilhada em
Cidade Tiradentes”. In: COLE & RIBEIRO (Orgs.). 7o. Seminário Internacional
Imagens da Cultura / Cultura das Imagens, São Paulo, Altamira Editorial, 2012b.
CLIFFORD, James. A Experiência Etnográfica: Antropologia e Literatura no século XX.
Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998.
MACDOUGALL, David. Transcultural Cinema. Princeton, Princeton University Press,
1998.
MACDOUGALL, David. The corporeal Image. Princeton, Princeton University Press,
2006.
NICHOLS, Bill. Introdução ao Documentário. Campinas, Papirus, 2005.

Filmes
A Arte e a Rua 2011. Carolina Caffé and Rose Satiko G. Hikiji. LISA, Instituto Pólis, WS.
Filme na íntegra disponível em: <http://vimeo.com/lisausp/aarteearua>.
Lá do Leste. 2010. Carolina Caffé and Rose Satiko G. Hikiji. Movi&Art, LISA, Instituto
Pólis, WS. Filme na íntegra disponível em
<http://vimeo.com/lisausp/ladoleste>.

Mapa
Mapa das Artes de Cidade Tiradentes: <www.cidadetiradentes.org.br>.
Mesa 6: Teatro e ritual
Beverly Stoeltje (Indiana University)
José Luiz Ligiéro Coelho (UniRio)
Elizabeth Lopes (ECA/USP)
Performing politics with the ritual of curse: crossing a threshold in Ghana,
Beverly J. Stoeltje (Indiana University)

Social life in Ghana is intensely personal and broadly social. Individuals belong
to ethnic groups, clans, large families, home town associations, alumnae clubs, market
sellers groups, professional organizations and others, all of which reflect deeply rooted
shared experience. Many people know - and know about - many other people.
Knowledge of others is highly valued though possession of it often remains hidden
until it becomes useful. As with any secretive process, however, knowledge of others
has the potential for creating a whole range of emotions - jealousy, fear, desire, - that
can lead to misinterpretations, accusations, insults, and curses. Consequently, social
relations are tended with great care and details of one’s personal life are carefully
guarded.
Not surprisingly, Performance forms in Ghana, whether humorous or serious,
often reflect this quality of familiarity with and knowledge of the habits of others, as it
interacts with the equally significant quality of secrecy, the attempts to guard and
protect one’s self, one’s house, one’s spirit, one’s lovers, from becoming valuable
knowledge and, therefore, vulnerable, to others. The social relationships expressed in
numerous performance forms often display this interaction between what is known
and what is secret, or private. Performance can address this interaction through
exposure, which can create humor at times, danger at others, or through indirection, a
strategy that requires interpretation.
The subject of this paper, Curse, often involves an interaction of the kind
described above that has escalated into a performance of imprecation. A short form
expressing conflict, the term in Twi (the language of the Asante people) is Duabo.104
Writing on performance in Africa Margaret Drewal states that “performance is a
primary site for the production of knowledge…a means by which people reflect on
their current conditions, define and/or re-invent themselves and their social world…”
(1991: 2). The power of performance is suggested by Barber and Farias in their essay
on African oral texts when they say that performance has the capacity “to activate
spheres beyond the confines of its own textuality, and be implicated in social and
political action through the use of rhetoric and poetic license” (1989:3). Edward
Schieffelin extends the discussion even further when he observes that performance is
inherently interactive and fundamentally risky, and depends on the relationship
between the central performers and others in the situation (1998:198)105 While these
defining features apply to performance generally and specifically to curse as it is used,
studies show that each culture emphasizes certain genres and endows them with
specific characteristics, expanding or contracting their position in everyday life
consistent with the larger social, political, and religious context as it affects individual
lives. 106

104
Kofi Agyekum has published a study of Duabo focused on the language, identifying it as one of a
number of verbal taboos among the Akan.
105
Scholars which have dealt with the concept of risk in performance include: Webb Keane (1997),
Edward Schieffelin (1996), Kwesi Yankah (1985).
106
For example, see Cory Kratz's comparative analysis of Okiek blessings, curses and oaths. Compare to
Agyekum 1999, Stoeltje 2009, Crawley ,Matisoff 1979, Kitz 2004, Vanci-Osam 1998.
In Ghana curse is a popular genre among certain groups of people and is an
especially good example of an attempt to activate spheres beyond the confines of its
spoken word. Invoked with the intent to cause ill to another person, curse is
performed when social interactions develop into conflict and one person wishes to
exert power over another. Although a brief utterance, a curse constitutes a ritual
because it calls on a deity and makes a request, accompanied by the pouring of
Schnapps or offering of eggs (acts associated with ritual in Asante), and the process
creates a transformation of reality.
In his study of magical language Daniel Lawrence O’Keefe considers curse a
performative sentence, a statement that “by its mere assertion tends to produce the
state of affairs which it asserts. Its social effect is to move the victim’s self, as a
concept, into dangerous regions of “quality space,” as defined by tradition, where it
may wither, thereby causing the biological individual to sicken and perhaps to die.”107
Such sentences are “power prescriptions,” ones that create what is prescribed
because their very utterance changes a social situation (1982: 54). 108 Suzanne Langer
links magic, ritual and religion together and notes that “Magic then, is not a method,
but a language; it is part and parcel of that greater phenomenon , ritual, which is the
language of religion. Ritual is a symbolic transformation of experiences that no other
medium can adequately express” (153) .
The key to the power of ritual to transform the reality of the participants is
performance. According to Roy Rapporport “If there is no performance, there is no
ritual; performance itself is an aspect of that which is performed. The medium is part
of the message; more precisely, it is a metamessage about whatever is encoded in the
ritual.” James Fernandez’s analysis extends ritual as performance to the subject. He
states that ritual creates images or metaphors and puts them in operation through
ceremonial scenes. Through such scenes “men become the metaphor predicated upon
them.” The ritual then achieves the approximation of the subject to the metaphor –
the subject achieves “the movement in quality space implied by that metaphor”
(1986:43).
In ritual performance, however, the metaphors, symbols, images and other
components index a body of knowledge familiar to the participants. Because the ritual
utterance of a curse occurs in social interaction and is a brief form, it does not include
the circumstances that have escalated into the curse, although in Ghana it offers a
conditional sentence that references the conflict and serves as instructions for the
request. Every curse rests on a significant body of knowledge, like the decorative
element often placed at the top of a skyscraper; this knowledge (usually available in
narrative form), contains the source of the conflict that has escalated into the ritual

107
Whether or not a curse actually has its effect physiologically has been a subject of
some study. O’Keefe summarizes physiologist Walter Cannon’s conclusions based on his 1942
survey of materials from every continent going back to 1487: “Belief is so strong that breaking
a taboo or being ensorcelled can cause deadly physiological processes. These are sympathetic-
adrenalin processes: the fight-or-flight reaction which, if prolonged, does damage.”
(1982:297).

108
O’Keefe draws on the work of Anders Jeffner in this discussion.
space of curse. The knowledge at issue may be false or true, the interpretation of
such knowledge can be incorrect, or the assumptions underlying the knowledge might
be distortions, or the conflict may concern secret knowledge and the effort to protect
it. Often an accusation has been issued as the result of jealousy or competition, and a
curse follows the accusation. Also, the utterance of a curse may occur after an insult
(which is also actionable) has been directed at the targeted person who then responds
with a curse.
Although the genre of curse has long been employed by cultures around the
world, and has the potential to bring about physiological processes as described above,
the performance process of this very short form varies from one group of people to
another. If we want to understand the role of curse in the lives of those who engage
with it, then, a study of the full performance process is in order. This paper will focus
briefly on my ethnographic research in the Ashanti region on the performance process
of curse in its usual context of face-to-face interaction involving social relationships
and then in its very unusual context of media performance involving national politics

The Asante and their courts

Curse is a phenomenon deeply embedded in the everyday lives of the Asante


who are one of the several groups who make up the larger linguistic and cultural
configuration known as the Akan. The Asante people are located in southern Ghana in
the Ashanti region. They speak Twi, one of the Akan languages, classified with the Kwa
languages of West Africa. The Asante developed a powerful precolonial state
centered in their capital city, Kumasi, which functioned until they were conquered in a
closely fought war with the British. The indigenous political system of chieftaincy has
survived although with many changes. Based on a matrilineal kinship system,
chieftaincy is characterized as a dual gender system because the leaders of every
political unit are a male/female pair: a chief and a queenmother (who must be
members of the same royal family; they are not married to each other). Replicated in
each paramountcy, town and village, this system is organized according to a pyramidal
structure with the Asantehene (King of the Asante) and the the Asantehemaa
(Queenmother of the Asante) located at the top of the pyramid. The social
consequences of this system are that the population is divided between “royals”
(elites) and commoners, the ordinary citizens.
Central to Asante culture are the legal procedures, including courts, which are
integrated into a complex set of practices known as Custom. The experiences of
everyday life generate many kinds of conflicts, most of which are brought before chiefs
and queenmothers for resolution. The Asantehene holds a formal court two days a
week, and the Asantehemaa holds a formal court one day a week. My data on the
performance of curse is drawn primarily from the Asantehemaa’s court where certain
cases of curse are brought to begin the process of revocation.
The majority of cases in the Asantehemaa’s court deal with the utterance of
several forms of taboo: curse, insult, and oath. Litigants and their witnesses must each
tell the story of their conflict to the members of the court in a l ritual legal
performance carefully evaluated by the elders and the queen mother. In most cases
these narratives have been polished through multiple performances for others
because narrating one’s experience of conflict constitutes a major dynamic in Asante
social life, linking individuals to each other and to cultural institutions (see Stoeltje
2009).
Individuals considered “royals” in Asante generally do not engage in verbal
taboos. Also, Ghanaians who have received a complete education avoid this kind of
dispute. If members of the professions develop a legal problem or those who have a
general education, in most instances it would be resolved in the state courts, modeled
after the British and the American legal systems although some go to the Asantehene's
court and a few to the Asantehemaa's court.

The performance process of curse


To analyze the knowledge and the rituals in the performance process of curse,
its invocation and revocation, as performed by the Asante, I have employed an
ethnographic approach influenced by but not limited to linguistic models.109 It
recognizes that curses are defined primarily by the deities that are invoked (the source
of power). It is important to know who can utter a curse and who generally does
perform a curse. In such instances we want to consider who is the speaker and what
does he or she intend to accomplish. Also, we want to know who is the target, the
addressee, and the audience and what is the context in which it occurs,. Then we want
to know what can be expected when a curse is uttered, and how one can revoke the
curse.

The Source of Power :the Addressee - the Deity


The Context (the knowledge underlying the curse and the circumstances of its
performance)
Speaker Target Audience
Expected Outcome
Revoking the curse

Using the ethnographic approach to a study of the performance of curse


reveals the knowledge and the conflict that have evolved into a curse, identifying
specific situations and their outcomes
In Ghana when a person pours Schnapps on the ground, or breaks eggs, and
utters a curse on another person, the results can be deadly. If the curse calls on a
powerful deity to kill another person, that person is expected to die unless the curse
can be revoked before death arrives. In addition, once released, a curse cannot be
controlled. It may move randomly to others like a strong wind, killing family members
and other residents of the neighborhood or village.
For these reason, the Asante Queenmother’s Court in Kumasi hears cases
weekly in which one of the litigants has invoked a curse on the other one in the course
of the affairs of everyday life – farms, lovers, work, money and other sources of
conflict. Once the court has established that an individual invoked a curse, he or she is
considered guilty and must pay a fine and then go through the rituals of revocation at
109
See Kofi Agyekum’s paper
the appropriate site where the deity resides. When the litigants have successfully
been through court, the danger is held back while the individual then completes the
rituals of revocation. Though it is commonly women who engage in insults and curses,
some men also utter curses, usually on women. These individuals are generally ones
who have limited education or perhaps none at all. They are often engaged in farming
or trading in the market, and they are frequently one of several wives or lovers of the
same man. Disputes occur most often around sexual relations or the boundaries of
farmland though any situation in everyday life has the potential for dispute.
In one characteristic case a husband brings his wife to court because she has
cursed him. she pleaded guilty to the curse and explained that she had helped her
husband to make a farm at a time when he was unemployed, and she assisted with the
funeral of the husband's mother. (Members of the audience commented that she was
a good woman.) The relationship between the husband and wife became strained,
and he began to follow another woman. the wife overheard him speak unfavorably of
her behind her back. She then said that, "If for all that I have done for you, you don't
have any sense of gratitude but you say wicked things about me, Antoa Nyaman
should kill you if you say bad things about me." (The audience commented that she
did the right thing.) After some further details involving sexual exploits that amused
the court and the audience, the elders (all male) disagreed on the verdict. The
majority, however, returned a verdict ofo guilty for the woman. (The audience refused
to applaud even though instructed to do so.) The wife would then be required to go to
the river where the deity resides and participate in the rituals of revocation under the
direction of the elder of the river.
Throughout Ghana individuals who invoke a curse of a powerful deity (there are
three deities with this kind of power) in their conflicts of everyday life must eventually
go through the rituals of revocation at the site where the deity is located in order to
revoke the curse and prevent death.
Therefore, shock waves ran through Ghana in 2008 when a well-educated
politician invoked a curse on the opposing political party. As background knowledge,
members of the New Patriotic Party (NPP - the ruling political party) had been attacked
during a meeting by thugs wielding machetes, and several were injured. A newspaper
ran an article stating that the thugs were acting on behalf of the National Democratic
Congress (NDC) party, the opposing political party. These two national political parties
were each running candidates for the upcoming presidential election, and tension
between them was very high.
The politician who uttered the curse was the Ashanti Regional Chairman of the
NDC, Mr. Daniel Ohene-Agyekum. In the curse, he invoked the spirit of the powerful
deity of the Antoa River, ‘Antoa Nsuo Nyammaa’ “to strike dead whoever is guilty of
the recent media report of the opposition party’s alleged bloody attack on supporters
of the NPP at Anlo-Sobolo in the Subin Constituency, last Friday night”
(myjoyline10/21/20080.) Consistent with Akan custom, he presented two bottles of
Schnapps and three eggs when he addressed the deity, uttering the curse.
He explained that although he is a devout Christian, he also believes in “our
traditional customs and culture” and therefore seeks “the intervention of the powerful
River Antoa to judge this case between us and the NPP.”(myjoyonine.com)
Describing the report of the attack in the newspaper as unwarranted lies and
falsehoods being peddled by the NPP against the NDC he said that “we can no longer
stomach the dirty propaganda machinery of the NPP ,” and swore to prove the
innocence of his party by invoking the powerful Antoa river (Antoa Nyamaa) to punish
whoever might have orchestrated the dastardly attack. Reports said that he invoked
30 other deities in the Ashanti region as well.
Enacting this performance before the press and TV cameras, he presented the
Schnapps and eggs and made the comments, arguing further that the plan was part of
orchestrated attempts by the “unpopular ruling government.”
Such a bold and unprecedented act - invoking death on political opponents and
performing for the national media - elicited condemnation from most Ghanaians, but
praise from others. The results of the election placed the NDC in the President’s office
by a few percentage points.
Other events point to the results of the curse. According to newspaper reports,
the man who was named interim head of the Defence Ministry (a retired vice-admiral),
Admiral Owusu Ansah, for the new government was struck dead a few days after
being named. Not long after his death, his sister, Ama Akyaa passed away suddenly
and unexpectedly. Headlines then read, “Antoa Nyamaa Strikes,” and articles said that
the river god had begun to fulfill its part of the bargain.110
Accounts of the deaths say that the deceased were natives of the town of
Antoa. The NDC member and his sister had led a group of NDC members to the shrine
to perform certain rituals. Some sources were reported saying that “the river god was
only carrying out the wish of those who consulted it—kill all those who perpetrated
fraud in the December 2008 general elections or falsely accused others of rigging.”
(The Ghanaian Journal Jan. 27, 2009).
As for the NDC politician who invoked the curse, The Ghanaian Journal
discovered that he was offered the position of Chief of State in the President’s new
government but declined the position. The position he accepted, and holds today,
however, is Ambassador to the United States.
Nevertheless, before departing for his diplomatic assignment, Daniel Ohene-
Agyekum failed to attend the one-week celebration of the deceased in his home town,
Antoa, the town which hosts the river deity called upon in the curse Ohene-Akyekum
invoked. Moreover, newspapers reported that the deceased was his best friend.
Rumors circulated saying that he could not enter the town as the gods were angry with
him. His political party explained that Ohene-Akyekum had led a celebration in honor
of his friend in Accra, the capital city. An elder sister of the two deceased family
members claimed that the family did not anticipate the demise of their siblings as they
were “fit as a fiddle” and did not show signs of sickness that would indicate they would
join their ancestors so soon. (Ghana Zone.com. Jan 28, 2009. Daily Guide, Jan 28,
2009).
In another act of avoidance Ohene-Akyekum failed to accompany former
President J. J. Rawlings to pay a courtesy call on the Asantehene. According to
protocol, Ohene-Agyekum, as the Regional Chairman of the Ashanti region, should
have led the former president to the meeting. The news source, Modern Ghana
reported that if he had met the Asantehene he would have slapped him on the wrist
for disregarding his orders that no one in the region should invoke the powers of
deities to curse people. (Modern Ghana Nov. 7, 2008).
110
The deceased man was Vice Admiral Emmanuel Owusu-Ansah .
The Ambassador’s profile on the Enbassy’s web site shows that he was well
educated, including graduate training in Australia. He has had a career in the foreign
service and politics, having served in the Ghana Embassy in Israel, and in Copenhagen,
and as Ghana’s High Commissioner to Canada for six years. He has also served the
Ghanaian government in several domestic capacities , but most importantly, he has
“proven his mettle as a strong political activist and a force to reckon with in the NDC
Party, particularly in the Ashanti Region of Ghana.”
This most unusual performance of curse raises the question of why a person so
fully modern and well positioned would engage in invoking a curse, aligning himself
with a practice associated with uneducated commoners and placing himself and many
others at great risk. For those who believe in the power of the river goddess, Antoa
Nyamaa, the risk of death to someone is very great when that deity is addressed with a
curse. For others, especially Akan, this river goddess is believed to be so powerful that
invoking a curse would be an unwise risk. That this politician had done so was
reported by Akan Ghanaians throughout the diaspora.
In exploring the question of why, we can be certain that he is familiar with
curse. His home town of Juaso, located in the Ashanti Region, has been riddled with
chieftaincy disputes for most of its history. Most recently, a dispute that has
continued about 20 years has reached an official “peace,” but residents report that it
continues to have problems, some of which involve violence. There are individuals
who believe the stool there has been cursed (the stool is the symbol of authority; each
chief and each queen mother has their own stool). As most Ghanaians retain contact
with their home town, it would be surprising if he were not familiar with the politics in
this town and the beliefs surrounding them. More important, however, is the fact that
he is an activist member of the NDC political party while the majority of the population
in the Ashanti region are members of the NPP political party. This places him at odds
with the majority of the citizens, but according to his profile, he contested and won the
position of Regional Chairman of the party in 2001, suggesting that he wanted the
position and had to fight for it. 111
As I considered why this career diplomat and activist would resort to invoking a
curse, intended for the other political party, I asked a Ghanaian intellectual his opinion.
Not a member of any of the Akan groups, he said that Ohene-Agyekum was simply
displaying his Asante roots. I contemplated further, what would he gain from such a
display? His political party, the NDC, was in the minority in the Ashanti region, but he
is an Ashanti himself. His party was not in office as the election approached, but the
sitting president could not run again as he had served two terms already, and that is
the limit. The campaign was very heated with both parties engaging in accusations.
Ohene-Agyekum desperately wanted his party to win the election, and he wanted to
deliver the Ashanti region for his party in spite of the long standing tradition that the
NPP and its predecessor party were dominant in the region.
Returning to the concepts of familiarity and knowledge, curse is very familiar to
Asantes whether they are ones who invoke it on others or they are simply aware of its

111
The NDC party is the party of J. J. Rawlings who ruled Ghana for 19 years, first as a military dictator
and then as an elected president. Relations between the Asante and the NDC were very tense throughout
those years. Moreover, that government was involved in the chieftaincy dispute in the town of Juaso
during those years.
power. The river deity, Antoa Nyamaa, is known throughout Ghana as one of the three
most powerful deities in the country, and many people fear it. Consequently, the
Ambassador exploited his familiarity with curse and therefore identified himself with
other residents of the Ashanti region when he invoked the curse. Moreover, the
tensions between the two political parties had reached a peak with the attack on the
NPP members and the report that it was caused by the NDC. Such an act could cause
the NDC to lose the election. This was knowledge that had been widely reported to
the public. Perhaps Ohene Agyekum perceived that it was necessary to take a great
risk in order to refute the report that the NDC has caused the attack. Thus he built on
the knowledge that had been produced and reversed it with the curse. As he did so,
he demonstrated his identity with other Asantes and also made the claim that the
other party was dishonest.
Another factor in Ghanaian cultural discourse is the presence of Evangelical
Christians who are very aggressive in their proselytizing. Their discourse, like that of
the far right everywhere, places blame on others, creating dramatic oppositions of
good and evil. (While I was in Ghana in November of 2010 a pastor and another man
set a woman they did not know on fire, claiming that she was a witch.) As this
discourse is so pervasive, it seems possible that it has created a fertile ground for
others who wish to lay blame, increasing the likelihood that a general audience would
accept the curse and his accusations that the NPP was engaging in lies and
propaganda.
Considering that curse establishes him as an Ashanti and one who has not
forgotten the oral traditions in spite of his sophisticated Western profession, and that
he uses curse to blame the opposing party, claiming that they have lied and produced
propaganda, the strategy of performing a curse seems clearly designed to pull Ashanti
votes to his party. Although performing the curse on television would seem to
increase the risk, in fact it allows him to speak directly to the audience he wants to
persuade, and the boldness of the act seems to defy any fear or doubt that the curse
could cause death to anyone in his own party – and he even said as much.
In this act a modern day politician has performed a curse as a powerful ritual,
intensifying it by performing on television and enacting the pouring of Schnapps and
the presentation of eggs both, all of which are designed to kill members of the
opposing political party, or at least to defeat the opposing party. The election results
declare his party the winner and he thereby acquires an appointment as Ambassador.
In this very bold act fusing modern politics with Asante custom, Ohene Agyekum has
proven Jane Guyer’s and Karen Barber’s argument that it is “in crossing thresholds
between discontinuous scales and in manipulating alternative, multiple modes of
evaluation, that gain lies.” Moreover, as Barber states, “this view puts performance
center stage, for the discontinuous sequences are pegged to each other performatively
as components in a repertoire, rather than cohering as a unified cognitive map.” She
also notes that new things are added onto and run along side older things rather than
displacing them (2007: 112-113). Certainly the risk that Ohene Agyekum took in
crossing these thresholds and manipulating alternative modes of performance
produced gain for him and for his party. The components of his performance were
concentrated, pegged, in the televised performance of the curse.
Since that time, the performance of curse has increased in the Ashanti region
and throughout Ghana. At the Asantehemaa's court, many different kinds of people
are bringing their different kinds of conflicts to be resolved, and the majority of those
cases are concerned with curse. The newspapers are also reporting instances of
individuals engaging in curse who are celebrities. Without question the Ambassador
has revived the old to run alongside the new, providing increased numbers of people
the means to express their conflicts and to place an increased number of individuals in
danger.
O conceito de “motrizes culturais” aplicado às praticas performativas afro-
brasileiras, José Luiz Ligiério Coelho (UniRio)

Resumo: O presente artigo aplica o conceito de “motrizes culturais” às


dinâmicas próprias das práticas performativas ou performances culturais afro-
brasileiras a partir da análise de três manifestações: o candomblé, a umbanda e a
capoeira. Dentre estas dinâmicas aponta: 1) a presença de um trio poderoso e
inseparável, o cantar-dançar-batucar; 2) a concomitância ou alternância do ritual e do
jogo; 3) o culto a ancestralidade; 4) a importância dos mestres no processo de
transmissão dos saberes e das próprias dinâmicas. e 5) a importância da roda na
relação entre performers e performers e espectadores
Teatro e ritual: uma performance profanável?, Elizabeth Lopes (ECA/USP)

Resumo: O teatro se entrelaça ao ritual desde de sua origem e por força da


contradição, ambos fundem os sentidos opostos da comédia e da tragédia no mito de
Dioniso. Nesta perspectiva a ênfase de elementos rituais no teatro, especificamente no
teatro da performance, acaba revelando a indissociabilidade entre as realidades da
vida e da arte que, pela intensidade de uma ou de outra, pode estabelecer uma
relação sensível e o “potencial profanatório” entre atuantes e espectadores. A
representação quer se aproximar da experiência do real – no tempo, no espaço e no
corpo – constituída pelas substâncias objetivas do presente, do acontecimento, do
espontâneo, mas também e principalmente, pelo jogo de conceitos antitéticos como o
sagrado e o profano, enfatizado por ações vivenciais, estas fundadas na possibilidade
de uma troca perceptiva e cognitiva entre os participantes. As motivações entretanto,
podem variar conforme a esfera artística em que as ações são geradas. A questão é: as
performances são formas de resistências , como se refere Giorgio Agambem? Como e
a que resistem? Nesta fala quero refletir sobre as ações e comportamento de alguns
artistas a partir do texto “ Elogio da profanação” de Agamben. Assim, quero pensar em
que medida o afastamento de Grotowski do teatro, e especificamente a utilização das
canções ancestrais no treinamento dos atores do Workcenter of Jersy Grotovski and
Thomas Richard reflete uma forma de “profanação”. E ainda, as ações de um
performer como Reverend Billy e a sua igreja “Earthalujah’ que colocam em jogo a
espiritualidade e potência podem contribuir contra os impactos da reificação da
cultura capitalista. E, em solo brasileiro, como o Teatro Oficina capitaneado pelo
diretor Zé Celso com as propostas do Teatro Estádio e a Universidade Antropofágica
podem constituir um dispositivo legitimo para a “geração que vem”.
Mesa 7: Imagem e performance
Johannes Sjoberg (University of Manchester)
Ana Lúcia Ferraz (DA/UFF)
Edgar Teodoro da Cunha (DA/Unesp)
‘Ethnofiction: creative, collaborative and reflexive performance practices in
ethnographic research and representation’, Johannes Sjöberg (University of
Manchester)

Resumo: In the 1950s visual anthropologist Jean Rouch started to experiment


with fiction and improvisation in his ethnographic films. French film critics referred to
these films as ‘ethnofictions’. Although Rouch considered it to be futile to theorise
about his films that were inspired by French surrealist art and West African Songhay -
Zerma religion, this presentation will explore ethnofiction as an ethnographic film
method. The research draws on 15 months of ethnographic fieldwork and creative film
practice among transgendered Brazilians living in São Paulo. Fabia Mirassos and
Savana ‘Bibi’ Meirelles acted out their own and other’s transgender life experiences for
the ethnofiction feature film Transfiction (2007, Remix 2010). The research outcome
suggests how projective improvisation could be applied in ethnographic film-making.
Combining Rouch’s methods for Visual Anthropology with Applied Theatre inspired by
Augusto Boal (Forum Theatre) and Jacob Moreno (Psychodrama), the project suggests
how therapeutic performance practices could complement existing ethnographic
methods. Recently, the research on ethnofiction has expanded and led to further
pioneering interdisciplinary research collaboration between the Drama and Social
Anthropology departments at The University of Manchester (UK). The paper will
conclude by reviewing this existing research, and suggesting future work on creative,
collaborative and reflexive performance practices in ethnographic research and
representation.
Etnoficção: jogo de papéis e reflexividade na pesquisa antropológica, Ana
Lúcia Ferraz (DA/UFF)

A partir da reflexão sobre experiências que pude desenvolver na pesquisa


etnográfica entre diferentes grupos e que reencontro em algumas obras que se
posicionam entre antropologia e cinema ou entre antropologia e teatro, pretendo aqui
discutir uma abordagem, configurando uma metodologia, no sentido grande de
aprendizagem que se dá no caminho. Aqui, a concepção de uma metodologia não é,
em hipótese nenhuma, algo secundário, pelo contrário, ela é a elaboração do
pesquisador que torna possível a compreensão e a posterior configuração da vida do
outro no texto etnográfico. Para discutir a concepção de etnoficção, pretendo me
reportar a práticas mobilizadas nas pesquisas de campo que tenho até aqui realizado.
Evoco ainda a obra de Jean Rouch, sobre a qual gostaria de, ainda uma vez, realizar
algumas reflexões.
A opção por permanecer em território de fronteira, entre a antropologia e o
cinema, onde Rouch construiu a sua obra; ou entre teatro e antropologia, espaço onde
se deu o encontro entre Victor Turner e Richard Schechner, parece resultar em obras
profícuas, abertas.
Durante o percurso que realizei como pesquisadora trabalhei com a noção de
“dramaturgia” da vida social em que a pesquisa busca sondar as temporalidades dos
processos que são vividos pelos sujeitos que estudamos. Configuramos no texto,
dinâmicas sociais que são vividas e percebidas pelos sujeitos que vivem a história. Para
lidar com a noção de drama, mobilizamos uma atenção particular ao conflito e à ação,
em suas dimensões subjetivas, tais como são percebidos e concebidos na experiência
dos sujeitos. Discuto aqui uma abordagem capaz de compreender tais dimensões
patéticas da pesquisa etnográfica. A noção de pathos será o conceito fundamental que
tece a lógica de meu argumento.
Meus primeiros comentários recuperam algumas experiências realizadas ainda
nos anos 50, por Jean Rouch. É nesse contexto que o autor inicia seus trabalhos como
etnólogo e cineasta, dialogando com Marcel Griaulle, sobre o estudo da vida ritual na
África. Sua produção dos anos 50 se dá entre os Songhay, sobre os quais Rouch
escreve sua tese, e realiza os filmes Cemitérios na falésia (1951) e Batalha sobre o
grande rio (1952). Rouch se defronta com as migrações para Costa do Marfim. Na
Africa colonial já não é possível fazer o estudo de grupos fechados em si mesmos,
todos estruturados estáveis. Aos poucos, o autor vai configurando uma nova
abordagem que dá origem a Les maîtres fous (de 1954, mas exibido somente em 1957)
e Moi, un noir [Eu, um negro](de 1959). É difícil passar pela experiência de assistir a Os
mestres loucos sem lembrar da noção de “drama social” de Victor Turner. Ambos
estão, neste momento, pensando o lugar do ritual em “situação colonial” (Balandier, ).
Cisma e continuidade em um sociedade africana (1957), Floresta de símbolos: aspectos
do ritual Ndembu (1967), Tambores da aflição: estudo de processos religiosos entre
Ndembu da Zambia (1968), são os primeiros livros de Turner, a etnografia dos
processos rituais na Africa recebe a noção de “drama” como conceito explicativo.
Na narrativa de Os mestres loucos, um prólogo apresenta a situação das
migrações, o processo de destribalização reúne em Accra, pessoas de distintas etnias,
religiões e línguas. A seita dos Hauka reúne trabalhadores que se retiram da cidade
num final de semana para receberem os espíritos Hauka: o chefe da guarda, o
comandante, Mme. Locotorro, a mulher do médico, o cabo da guarda, a locomotiva.
Reunidos, discutem os trabalhos a fazer. Na experiência liminar que o transe propõe,
seria preciso matar um cão, dentre os animais, o mais doméstico, e comê-lo. A
polêmica entre os hauka, em transe, era se deviam comê-lo cru ou cozido. Depois da
tensão dramática se aproximar de um clímax, o ritual vai finalizando e, num corte,
Rouch nos apresenta os mesmos homens perfeitamente integrados às suas vidas
cotidianas em seus trabalhos na cidade. Em frente a um hospital psiquiátrico, aqueles
que na véspera mimetizavam a violência colonial no ritual, cavam as vias do esgoto
público. A voz de Rouch nos faz ver o caráter de restauração do comportamento e
reprodução social que o ritual opera.
Michael Taussig comenta a recepção desse filme, a violência colonial devolvida
no filme para a platéia francesa. Rouch revelava a faculdade mimética presente no
ritual explicitando em toda a densidade dramática a intensidade com a qual os
processos sociais eram ali experimentados.
No campo do cinema buscava-se na ficção construir verossimilhança, para
realizar ilusão de realidade, permitindo operar os fenômenos da identificação e da
catarse no público. O cinema etnográfico, por outro lado, produzia extensos registros
da “vida real”, o que, do ponto de vista epistemológico, caracterizava a antropologia
como ciência realista.
Nesse momento, no campo do cinema, na França, a construção da narrativa
fílmica, deixava clara a elaboração, a concepção de uma narrativa. Na concepção da
geração da nouvelle vague a verdade no cinema se reconfigura como a verdade do
cinema, isto é, destaca-se o trabalho do autor de construção de uma linguagem capaz
de narrar o mundo.
Retornando a Paris e estabelendo relações com essa geração da nouvelle
vague, Rouch produz uma obra que pode ser lida como uma etnografia da vida
parisiense, refiro-me a filmes como Chronique d’un été (1961), A punição (1962),
Viúvas de quinze anos (1964), Gare du nord (1965). Neles, Rouch ensaia o que vai
desenvolver na África: parcerias com pessoas a partir das quais o jogo de
representação de papéis instaura uma pesquisa sobre as dimensões patéticas da vida
social, o drama vivido, percebido e apresentado em sua tensão experimentada.
A “antropologia compartilhada” que Rouch conceptualiza, nasce de tais
experiências com o jogo de papéis. As fábulas tecidas na relação com os seus parceiros
em terras africanas, Damouré Zika, Lam Ibrahim Dia, Talou Mouzourane e Illo Gaoudel,
personagens, protagonistas e co-autores dos filmes Jaguar (1967), Petit a petit (1969),
VW voyou (1973), Cocorico monsieur poullet (1974), caracterizam uma obra madura
nas décadas seguintes de sua produção.
Compartilhando a produção de fábulas, eles nos ofereciam a transformação de
seus sonhos e desejos em imagem fílmica. Apaixonado pelos sonhos do outro, a partir
do impacto da experiência dos rituais de possessão, e conhecendo a potência do
cinema de ficção no processo de constituição de nosso imaginário, o autor fez de sua
antropologia fílmica um laboratório para operar a comunicação entre tempos, naquele
instante em que ao nomear a experiência vivida no passado, o sujeito projeta seu
futuro. Configurando um modo de conhecer que parte daquilo que pulsa em semente,
que ainda não é, mas que pode, o devir que se insinua. Potência virtual do ser que
experimenta a transformação.
Nessa abordagem, parte da linguagem do outro, inspira-se na tradição do griot
(como sublinha Stoller, ), aquele que ao contar histórias, atualiza a tradição, rememora
o passado, projetando o futuro.
As abordagens documentais, o jogo de papéis e a etnoficção são três linhas que
não são sequenciais no tempo, não se superam umas às outras, mas devem ser
entendidas como linhas de força que atravessam a obra do autor.
Gostaria de dedicar-me aqui `a compreensão da segunda forma, o jogo de
papéis, ou, nas palavras de Jean Rouch, o psicodrama. O primeiro filme em que ele
nomeia a sua abordagem desse modo é o La pyramide humaine. Rouch narra, na
abertura do filme, explicitando que reuniu um grupo de jovens negros e brancos para
viverem, para o filme, suas relações, como no jogo de papéis. O Jeu de roles, Role
Playing, ou psicodrama, modos de nomear a elaboração do duplo, na representação
de papéis, para distanciar-se da experiência vivida e assim poder ver-se, instaura um
trabalho lúdico no processo de formação da consciência. Temos aqui o desafio de
nomear uma prática: o jogo lúdico como forma de conhecimento, é forma de
objetivação do mundo, forma de objetivação do sujeito, meio do sujeito objetivar-se a
si próprio e a seu mundo.
Longe de qualquer abordagem terapêutica, uma vez que já não vemos na
oposição normal/patológico algo que seja bom para pensar, o paralelo com a
abordagem psicodramática parte de uma aproximação com as dimensões patéticas da
vida humana.
Seria importante aqui investigar a etimologia de pathos. A palavra, em grego,
será a noção fundamental para a construção dos comentários de Aristóteles em A
Poética. Derivados dessa noção são as noções de paixão, patético, patológico.
Aristóteles vai fundamentar a sua discussão em torno do drama a partir da noção de
pathos, a tensão dramática.
Gostaria de aprofundar uma compreensão da noção de paixão pela reflexão
acerca da noção de patético feita no campo do cinema. Eisenstein, em A forma do
filme, desenvolve a discussão em torno da noção de patético, numa reflexão sobre a
recepção de seu filme O encouraçado Potemkin, especificamente sobre a sequência
das escadarias de Odessa. Diz:

deveríamos dizer que o efeito de uma obra patética consiste


no que quer que seja que leve o espectador ao êxtase. Na
realidade, Não há nada a acrescentar a esta formulação,
porque os sintomas acima significam extamente isso: êx-
tase – literalmente, “ficando fora de si mesmo”, o que quer
dizer saindo de si mesmo ou “saindo de sua condição
ordinária.
Mas isso não é tudo: sair de si mesmo não é sair para nada.
Sair de si mesmo implica inevitavelmente uma transição a
alguma outra coisa, a algo diferente em qualidade, a algo
oposto ao que era (imobilidade para movimento; silêncio
para barulho, etc.).
Por todas as suas indicações tal estrutura deve manter a
condição de ‘sair de si mesmo’ e a incessante transição a
qualidades diferentes.
Deixar a si mesmo, remover de si mesmo um equilíbrio e
condição costumeiros, e passar para uma nova condição –
tudo isto, é claro, penetra as condições efetivas de toda arte
que é capaz de atrair um observador” (Eisenstein, :153).

Assim, o patético pode ser definido como o efeito que nos move a uma outra
condição. Prosseguindo a descrição fílmica e análise de literatura, Eisenstein revela-
nos onde é que encontrou o seu aprendizado da arte do pathos. Foi na observação do
tratamento dado pelo circo à arte da bufonaria, da caricatura e da montagem de
atrações. Tendo dado o salto do teatro para o cinema, funda o seu método: “trabalha
pateticamente a partir das condições de um processo dinâmico”, diz ele (:160).
Mas, retornemos para compreender a raiz pathos na composição da noção de
patológico. Diferente da concepção de uma ciência da ordem, que distingue normal e
patológico, a la Durkheim, conferindo à Razão científica a tarefa de fundar a Norma,
Derrida, em A escritura e a diferença (1971), reflete sobre a obra de Artaud discutindo
o fenômeno da catarse. Em Artaud, “O teatro existe para vazar abcessos, o teatro é a
crise que se resolve pelo mal ou pela cura. O equilíbrio supremo que não se alcança
sem destruição”. Em sua análise, Derrida retoma a concepção da grande saúde em
Nietzsche e afirma a doença como cura, como positividade. Fazer ver as tensões e a
sua necessidade de purgação, segundo o argumento dos autores, é o fenômeno que o
teatro opera. O ator, em seu ofício, atua como pharmacon, veneno-remédio,
realizando o espaço da expiação que é o drama. Um lugar à margem das estruturas
estruturadas, esse espaço de dar a ver que é o teatro, opera a visibilização das tensões
presentes na ordem social, que são experimentadas por indivíduos e grupos.
Se o trabalho da Poética com o pathos, em Aristoteles, era o processo de
conceber sucessivos crescendos de tensão dramática, preparando o clímax da catarse-
purgação, vivida coletivamente como atualização do mito, na antiguidade clássica
(Vernant); a noção de entretenimento só se desenvolve mais tarde com o drama
burguês do século XVIII. Mais tarde ainda, Artaud insurrecto com a morte do teatro,
nos primeiros anos do século XX, tece outros papéis para a purgação que o teatro
opera.
Rouch recebe influências da geração surrealista que, segundo Clifford, habitava
o Museu do Trocadero e frequentava as aulas de Mauss. Leiris é um dos nomes que
permanece exatamente nessa região de fronteira entre surrealismo e antropologia.
Rouch herda algo do espírito dessa geração que o antecede. Além desse traço, na
relação com os debates intelectuais dessa geração, há ainda uma identificação com a
posição de Artaud e seu teatro da crueldade. (Stoller, 1992).
Dois filmes:
Em Pyramide humaine (1961), o autor propõe a interação entre jovens negros e
brancos para discutir relações raciais. Praticando o que ele nomeava como cine-
provocação, soube aproveitar dramaticamente as possibilidades vislumbradas pelo
jogo de representação de papéis. Como no psicodrama, recorremos à atuação
improvisada para projetar aspectos das vidas e emoções dos participantes através da
ficção.
No filme, o que prometia ser a problematização das relações interétnicas,
numa Africa que vive guerras anti-coloniais que se configuram como processos de
independencia nacional, torna-se espaço para a emergência do mais patético dos
temas, as relações amorosas quando se é jovem e apaixonado. O “cinema da
crueldade” de Rouch aproxima-se da concepção de Artaud uma “crueldade que nos
desperte nervos e coração, sensação verdadeira” (:95).
Em Pyramide a empatia entre Nadine e os jovens rapazes e a sua íntima
liberdade de sair a passear, seus encantos seduzem os jovens que se apaixonam e
brigam pela moça. Os outros comentam, avaliam aconselham. Numa tarde, numa festa
num navio encalhado na praia, dois rapazes brigam pela moça. Um deles se joga ao
mar e não volta mais. O desfecho do filme, surpreende. Uma suspensão fica no ar, não
sabemos mais se estamos no registro da ficção ou da realidade.
O psicodrama filmado promove o aparecimento das questões latentes para o
grupo que joga com suas relações possíveis, experimentando a possibilidade na ação
concreta. Construímos identificação e embarcamos no jogo lúdico que o cinema
promove. A experiência do choque é vivida realmente na experiência da recepção.
Nas pesquisas que tenho realizado trabalho sobre tais dimensões patéticas da
vida social. Nas relações que pude estabelecer com alguns grupos, num percurso em
que fui, na prática, formando a pesquisadora em mim, partia de uma provocação.
“Represente seu próprio papel”, era o convite que apresentava aos grupos que estudei
por meio da pesquisa etnográfica, ao longo de vários anos. Vários desdobramentos,
reelaborações para situações particulares, estratégias construídas no diálogo com
sujeitos específicos, concretizavam o trabalho de criar máscaras para poder lidar com
os papéis sociais cristalizados em relações constituintes de sujeitos. Durante duas
décadas de pesquisa etnográfica, noto situações marginais que revelavam espaços de
presentificação de pathos, atualização de memórias, experiências vividas ou
imaginadas, que compõem o imaginário. Um grupo de teatro na igreja e outro no
sindicato experimenta na ficção a solução do impasse vivido de ser trabalhador
desempregado, em São Bernardo do Campo, nos anos 90. Dramatizar imagens da
cidade para a câmera de vídeo, a partir da linguagem de um grupo de jovens
moradores de favelas (uma dessas experiências pude desenvolver com Edgar). Por
outro caminho, no diálogo com grupos de teatro que trabalham com a abordagem do
Teatro do Oprimido de Augusto Boal, encontro situações como esta que narro: A
menina que cresce sob violência doméstica, apanhando de seu pai, revive no jogo
dramático o papel paterno. Na cena, presentifica a violência doméstica e,
experimentando o seu pathos, bate, furiosa, na jovem sua filha. Pela experiência
tornada real no jogo dramático, compreende o pai.
Com grupos de trabalhadores ainda, revimos imagens de tempos outros para
reencontrar na memória a presença da experiência coletiva compartilhada e
posicionar-se num presente de intensa desfiguração das formas sociais. A imagem tem
essa possibilidade de atualizar o passado, presentificando memórias de outros tempos.
Com atores e atrizes que dão vida à tradição do Circo-Teatro, selecionamos os
tipos da comédia de costumes para tematizar o drama vivido nas relações no interior
da família-empresa, que é o circo. Criar personagens para distanciar-se da própria vida
e poder vê-la melhor.
Nesse percurso, uma série de aprendizados foram se consolidando:
O corpo é o espaço a partir do qual o drama é experimentado; imediato meio
de percepção imerso nas redes de relações simbólicas em que estamos inseridos.
O papel, máscara do espírito, possibilita a exteriorização do sujeito em relação
aos todos simbólicos em que estamos inseridos. Como propôs Marcel Mauss, o corpo é
construção social; mas isso não é tudo o que ele é. Mauss aponta como se alcança
estados extáticos pelas técnicas da respiração, na India ou na China, aponta também o
modo como possibilidades fisiológicas são produzidas ou perdidas em dialética com as
mais diferentes formas sociais. Fundando uma Antropologia do simbólico Mauss
focaliza o corpo, a pessoa, e historiciza a formação da idéia de indivíduo.
Mauss, no ensaio sobre a noção de pessoa, refere-se ao teatro, primeiro na
sociedade grega e, depois, na sociedade latina. A máscara, no império romano, já é
uma “imagem superposta” e o indivíduo em sua natureza nua, conserva o sentido de
artifício: o sentido do que é a intimidade dessa pessoa e o sentido do que é
personagem. Aqui, pela primeira vez, configura-se a idéia de ficção como falso. Na
sociedade romana o sentido de “ser consciente, independente, autônomo, livre,
responsável” (Mauss, 2003: 390) vai se consolidando e operando uma transformação.
Só aí pode-se falar em indivíduo, aí é que surge a noção de responsabilidade moral e o
direito.
Na pesquisa etnográfica, lidamos com um imaginário real, que mobiliza desejo
e produz ação social. Com as máscaras que vestimos: o homem bem sucedido, o
vagabundo, a moça bonita, o pai de família, a mulher forte, o conquistador, o
profissional de sucesso, o malandro, o bandido... Com meus papéis de mãe,
professora, filha... reproduzo relações com outros cujos papéis ajudo a constituir.
As cisões com as quais pensamos o mundo - trabalho manual/trabalho
intelectual, teoria/prática, masculino/feminino – distinguem, separam, discriminam e
também são referentes a um contexto datado. O estado atual de nossa compreensão
está referido à ordem das coisas estruturadas nesse instante do agora.
Mas, seria preciso construir aqui um ligeiro panorama do caminho que torna
possível esse deslocamento do olhar que estranha o tempo em que se vive. Ainda nos
anos 70, posições pós-estruturalistas vão se desenvolvendo na filosofia, e se
difundindo pela crítica de arte. No debate sobre as formas estruturadas (se quisermos
dizer representações) no cinema, temos, em Deleuze: “o que Nietszche havia
mostrado, que o ideal da verdade era a ficção mais profunda, no âmago do real”
(:182). As oposições ficção/realidade, verdadeiro/falso são pouco operativas quando
buscamos ver a produção das representações sociais e os seus deslocamentos, algum
movimento.
Um percurso grande, no século XX, foi criando a nossa possibilidade de
estarmos distanciados, na relação com as representações sociais instituídas.
O campo da performance se posiciona em reação à arte tornada
entretenimento, esvaziada de seu sentido de vida, e promove estranhamentos em
relação a um envolvimento automático com a existência (Cassiano Quilici, 2010). “Um
olhar que não quer prender as coisas numa ‘representação’ que as fixa, não evita a
impermanência dos fenômenos e possibilita uma apreensão estética dos fenômenos”.
No campo dos estudos sobre rituais, leituras pragmáticas da vida social vão
pensar o discurso em contexto, a fala como ato (Severi).
Mas, porque são as modalidades do psicodrama e do sociodrama, modalidades
terapêuticas, as que são apropriadas por Rouch na sua prática de trazer para o filme
etnográfico, a verdade do drama vivido pelos sujeitos que tecem fábulas para
narrarem recalques, desejos, possibilidades??
Artaud e seu teatro da carne mostram como é que o corpo dá a ver um certo
mal estar na civilização. O teatro como a peste convoca forças subterrâneas, presenças
mais que representações. Mas, seria preciso que surgissem os movimentos
antimanicomiais, que Artaud levasse eletrochoques, que Nietszche concebesse a
noção de grande saúde, que Deleuze e Guatari habitassem o hospital de La Borde, que
no Brasil, Nise da Silveira criasse o Museu do Imaginário com pinturas, desenhos,
esculturas de internos em hospitais psiquiátricos.
Foi preciso que Victor Turner e Richard Schechner se encontrassem para que
escrevessem entre teatro e antropologia, começando por apontar a experiência como
possibilidade de compreensão. Foi preciso que o teatro europeu encontrasse o Nô e o
Kabuki, que Artaud encontrasse o teatro balinês, para que o teatro redescobrisse o
corpo. Que Derrida nos auxiliasse a compreender a doença como potência do corpo.
Foi preciso que o espaço da catarse – da identificação patética – se afirmasse na
experiência da recepção no cinema e na televisão para que o teatro se redescobrisse
enquanto jogo.
E, se esboçássemos uma antropologia de tais formas dramáticas, e voltássemos
os olhos para algumas experiências que se desenvolveram em meados dos anos 60 em
São Paulo e, depois, no exílio, no Chile, na Africa, na Europa, para reencontrarmos o
teatro como possibilidade de fazer emergir o drama vivido, fazer ver, ensaiar soluções.
Que a noção de identificação fosse colocada ao lado da de distanciamento para que
nos percebêssemos imersos em, processos múltiplos, construtores de identidades
fragmentadas e dispersas. Porque já não temos um processo identificatório único, o
ser não é mais o problema quando temos sujeitos em relações plurais, construtores de
sentidos múltiplos, que se compõem de múltiplas perspectivas.
E, foi necessário que o campo da performance se afirmasse primeiro
questionando o sistema da arte e a instituição do museu, apresentando happenings,
que vestíssemos parangolés e percebêssemos a formação da sensibilidade contextual,
relacional. Com Rancière, que notássemos que na contemporaneidade o espaço da
apreciação da obra de arte, a autonomia da esfera estética, está posta em questão e se
aproxima da vida de todo homem. Com Cixous, nos aproximássemos da lógica da
música e percebêssemos as intensidades experimentadas no contato com a cena; que
devolvêssemos à experiência da recepção o lugar crítico de produção de sentidos.
Na antropologia, tal como a praticamos aqui e agora, foi preciso que Mauss
apontasse intuições tão relevantes quanto suas taxonomias, que Rouch concebesse
uma antropologia compartilhada, que Geertz elaborasse uma virada textual na
disciplina, que os norte americanos lessem Bakhtin, que afirma que o indivíduo só
existe em suas relações de alteridade, e que a relação entre autor do texto e seus
personagens abriga uma dialética entre passividade e atividade, em que o autor cria de
fora, depois de ter contemplado, passivo, a lógica da vida do outro, construindo no
texto um acabamento do mundo do outro.
O personagem é um duplo que constrói uma participação emocional, uma
comunicação entre um eu e a máscara – tipo e papel social. O Drama e o conflito que
lhe é inerente, a serem sondados, contemplados passivamente, no trabalho
prolongado da pesquisa etnográfica, será redesenhado em seu acabamento na ficção,
no sentido de criação, que é a escrita etnográfica. Entre esses dois momentos há o
caminho de um a outro, o método a ser elaborado pelo pesquisador.
Parece haver concepções distintas sobre o modo de produzirmos
conhecimento: “Durante séculos, o saber humano foi entendido como um pathei
mathos, como uma aprendizagem no e pelo padecer, no e por aquilo que nos
acontece. Este é o saber da experiência: o que se adquire no modo como alguém vai
respondendo ao que vai lhe acontecendo ao longo da vida e no modo como vamos
dando sentido ao acontecer do que nos acontece. No saber da experiência não se trata
da verdade do que são as coisas, mas do sentido ou do sem sentido do que nos
acontece”. Este saber da experiência é um saber que não pode separar-se da pessoa
concreta em quem encarna.
Mas, “a ciência moderna converte a experiência em experimento, isto é, em
uma etapa no caminho seguro e previsível da ciência. (...) aí
A experiência já não é o que nos acontece e o modo como lhe atribuímos ou
não um sentido, mas o modo como o mundo nos mostra sua cara legível, a série de
regularidades a partir das quais podemos conhecer a verdade do que são as coisas e
dominá-las. A partir daí o conhecimento já não é um pathei máthos, uma
aprendizagem na prova e pela prova, com toda a incerteza que isso implica, mas um
mathema, uma acumulação progressiva de verdades objetivas que, no entanto,
permanecerão externas ao homem”(Bondía, 2002: 28).
Nesse trabalho, a noção de experiência é fundamental – aquela que faço na
pesquisa de campo, aquela que posso compartilhar com o outro de cuja vida me
aproximo, irrepetível. A vida que vivo com o outro.
Gostaria ainda uma vez de retomar Rouch. No filme Folie ordinaire d’une fille de
Cham (1986), a realização da abordagem psicodramática chega ao seu ápice e se
constitui a partir do jogo de papéis em que reconstrói a história de uma mulher interna
em um manicômio. Tendo perdido o seu marido muito jovem na Martinica, renega o
filho ainda bebê, viaja a Paris e perde a possibilidade de comunicação com o mundo.
Testemunhamos, na ficção, o jogo de papéis entre a personagem interna na instituição
e a enfermeira que se comunica com ela. A jovem negra vive a enfermeira que cuida
da paciente e, quando se despe do uniforme branco, revela-se, perguntando pelo seu
desejo, soterrado pelo cotidiano da vida em Paris, pelos homens brancos, pelo
trabalho e a periferia em que vive. Lúcifer entra pela janela do quarto e aterroriza a
velha. Vemos a alucinação junto com a senhora. No jogo de papéis, enfermeira e
paciente, aconselham-se. Trata-se da possibilidade de, na relação, poder ver-se, ver a
verdade do delírio. No jogo dramático em que o delírio é a cura, a personagem retoma
os três tempos fundamentais que explicam seu lugar de louca: A interna-criança
castigada pela mãe por se deixar acariciar pelo padre branco, o amor pelo homem que
partiu, o bebê que nasce e que ela não reconhece. “Eu quero me ver”, diz a
personagem. O jogo psicodramático apresenta intensamente a razão do delírio, a sua
lógica.
Johannes Sjoberg, com o conceito de improvisação projetiva, destaca as
“possibilidades terapêuticas do gênero”, quando sujeitos projetam suas vidas através
da construção de personagens tornando possível reviver situações, memórias de
abuso. Torna-se possível compreender como suas próprias identidades se relacionam
com os personagens, ver a projeção. O papel é utilizado como referência e fórum de
discussão.
Há, no recurso à etnoficção, para além da dimensão mimética que
simplesmente atualiza o simbólico, reproduzindo o imaginário instituído, um elemento
novo que nasce da possibilidade de criar novas resoluções para dramas vividos e
conflitos já experimentados, surge a possibilidade de ensaiar o futuro, de imaginar
novas possibilidades, com a liberdade do ensaio. Projetar devires, presentificando
desejos ou revivendo a experiência difícil, purgar a produção de recalque, são as
possibilidades do trabalho com a etnoficção.
Na experiência de realização do filme Amores de Circo (que deve ser exibido
hoje a tarde no CINUSP), a dimensão do mimético, a representação de papéis é
praticada a partir do diálogo com a tradição popular do circo-teatro. O primeiro passo
da pesquisa foi localizar as intrigas vividas A experiência realizada em campo, na
produção da ficção, foi a proposição de que os atores da Companhia narrassem suas
histórias e, depois, encenassem personagens para a câmera. Nesse convite à
elaboração da máscara
A proposição do tema amor no circo faz nascer uma série de personagens. Uma
funcionária do circo apresenta a sua situação de transexual como objeto para o filme.
Proponho que ela coloque em cena sua experiência vivida apresentando a situação em
que vai buscar encontros amorosos nas ruas à noite. A produção dessa cena produz
uma mobilização entre mulheres de diferentes gerações membros do grupo. No centro
da pequena cidade, iluminamos a esquina onde o personagem provoca os motoristas
que passeam à noite pela cidade. Ela fala com os homens que param e entra em um
carro. Aqui, ficção e realidade se confundem.
Ao convite à elaboração da máscara a atriz assinala o encontro
ator/personagem como um momento de participação, em que a virtualidade da vida
se realiza. Luciane fala do personagem da peça Chá de panelas, uma noiva que desiste
do casamento após o ritual catártico, tornado real no circo, em sua festa de chá de
panelas. Avaliando o casamento que não teve, a mulher se afirma como atriz que ama
o seu trabalho. As pulsões, o desejo, os sonhos recalcados surgem com força nesses
diálogos densos em que atriz e personagem se confundem. No processo de pesquisa, o
jogo dramático, a elaboração da máscara, e nesse caso, do múltiplo – a personagem
que comenta a personagem que a atriz interpreta-, é condição para chegar à atriz que
comenta a si mesma. Neste momento, ficção e realidade não se distinguem mais,
ambos são experiências do passado em potência de realização na virtualidade da vida.
Retornando com o material gravado em vídeo em revisitas aos grupos
estudados, vemos o tempo atuar – as relações entre matéria e memória, na
constituição da duração dos fenómenos, a dimensão experimentada do tempo, fazem
emergir na pesquisa etnográfica a dimensão patética da vida.
Apreendemos a finitude do que somos ao nos defrontarmos com o drama da
metamorfose das formas sociais (desculpem a redundância). Estudando as relações
entre Imagem e memória notamos como a imagem presentifica outros tempos,
atualiza experiências vividas. Como disse Benjamin nada do que foi está perdido no
tempo, mas se cristaliza no instante em que os olhos do tigre brilham antes do salto.
Com grupos de trabalhadores, pude rever imagens de outros tempos para
reencontrar na memória a presença da experiência coletiva compartilhada e
posicionar-se num presente de intensa transformação.
Nessa experiência, temos uma noção de imagem que é afecção. Mais que
representação a imagem é índice de presença e assim reencontramos o que há de
presença na representação.
Em constituição está uma concepção de reflexividade que possibilite nos
distanciarmos das formas históricas em que estamos enredados e permita ver as
relações constituintes em que estamos todos envolvidos.
Bibliografia

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Ritual, cena e panorama sonoro: experiências de uso de imagens entre os
Bororo do Mato Grosso, Brasil, Edgar Teodoro da Cunha (DA/Unesp)

Existe um conjunto de filmes e vídeos sobre os bororos, dos quais menciono


alguns a seguir, que está distribuído ao longo de um grande intervalo de tempo. Foram
realizados entre 1917 e 2004 e, evidentemente, apresentam uma diversidade de formas,
linguagens e conteúdos.
Uma avaliação de conjunto desses filmes evidencia, inicialmente, a atenção a
aspectos da vida ritual dos bororos, com especial destaque para o ciclo funerário,
elemento que também aparece com grande ênfase na literatura antropológica produzida
sobre eles. Assim, Rituais e Festas Bororo, filmado em 1917 pelo Major Luiz Thomaz
Reis, nos dá as primeiras imagens sobre esse complexo ritual bororo. Imagens sobre o
mesmo tema foram captadas posteriormente por Dina e Claude Lévi-Strauss, em 1935,
quando realizavam suas viagens de pesquisa pelo Brasil Central, nos legando ainda um
importante conjunto fotográfico sobre os bororos do Rio Vermelho. E ainda sobre o
mesmo tema, há as imagens produzidas por Heinz Foerthmann, de 1953, realizadas sob
o patrocínio do SPI, Serviço de Proteção aos Índios.
Gostaria de fazer referência a três outros filmes ainda não mencionados: trata-se
do filme The last of the bororos, de Aloha Baker, de 1930 (32 min, silent), de um
episódio de um cine-jornal produzido na década de 1940 pela Agencia Nacional de
Notícias em parceria com o SPI, Serviço de Proteção aos Índios, e do filme de Lewis
Cotlow, Jungle head hunters, de 1951 (66 min em technicolor). Não vou entrar em
detalhes sobre a biografia desses dois diretores e "exploradores", mas gostaria de
mostrar a seguir três pranchas com sequencias de imagens de cada um desses filmes de
forma a explicitar a questão de fundo que quero destacar aqui.
The last of de Bororos. Dir. Aloha Baker

Jungle head hunters. Dir. Lewis Cotlow


Cinejornal

Os filmes de Aloha Baker e Lewis Cotlow são dois ótimos exemplares de


diferentes épocas de filmes que combinam viagens a lugares distantes com alguma
emoção resultando muitas vezes em filmes absolutamente exotizantes, combinando
traços de diferentes origens e transformando por vezes um grupo como os bororo em
um amálgama de referencias a serviço de uma narrativa que busca entreter platéias
ávidas desse tipo de emoção.
A atuação de missões religiosas foi algo muito comum nas práticas ditas
"civilizatórias" que atuaram por décadas em áreas indígenas em vários lugares do
Brasil. No caso bororo temos uma missão salesiana que atua junto a algumas aldeias
bororo, no mato grosso, desde o final do sec. XIX, e que existe até hoje. Mas a questão
que se coloca em relação ao trecho exibido é ...quem é esse bororo que aparece
mencionado, mas não nomeado, ao fim terceiro filme mencionado, o cinejornal, que foi
educado pelos padres e que tem curso de bacharel?

Tiago Marques Aipobureu, o “homem marginal” na antropologia


Tiago Marques Aipobureu, era originário do Meruri e cresceu e estudou na
Missão Salesiana tendo colaborado ativamente com os padres salesianos,
especialmente na compilação da Enciclopédia Bororo. Teve seu caso estudado
inicialmente por Baldus (1937) num interessante ensaio em cujo título o autor já
apresentava Aipobureu como um indivíduo marcado por dilemas pessoais em razão da
influência de outra cultura, o título do estudo já evidencia essa dupla inserção, no
mundo bororo e no mundo dos brancos, fonte das ambigüidades relatadas por Baldus:
“O professor Tiago Marques e o caçador Aipobureu”.
Segundo Baldus, Tiago passou a freqüentar um colégio na capital, Cuiabá, em
1910 quando tinha cerca de doze anos de idade, sob a orientação dos salesianos. Fora
aluno de destaque e devido a isso foi enviado a Europa em 1913, visitando Roma e
Paris. Temos novas notícias de Tiago em 1915, já tendo retornado ao Brasil e tendo se
estabelecido em Sangradouro, onde casou-se e teve um filho.
Nesse retorno a missão, os salesianos designaram-no professor, mas ainda
segundo Baldus “não gostava da vida de mestre-escola; tinha mais interesse pela caça
e pela sua casa do que pelas aulas” (1937, p. 167). O autor relata ainda um episódio
em que a dificuldade em se adaptar ao contexto oferecido pelos salesianos fica mais
evidente:
O P. Colbacchini era diretor de Meruri e, muitas vezes, nos
dias de festa, convidava Tiago a tomar café no refeitório.
Quando outro padre tomou posse da direção, o índio
entrava também, sem ser convidado, no refeitório dos
missionários, aparecia sempre mais freqüentemente lá e por
fim até nos dias úteis. Isso não convinha ao novo diretor,
que lhe fechou a porta, quando viu que Tiago se aproximava.
Este deu então uma volta ao redor da casa e entrou pela
segunda porta, do outro lado. Mas quando também a
segunda porta passou a fechar-se diante dele, pouco antes
que a tivesse alcançado, compreendeu que não o queriam
mais no refeitório (1937, p.168).

Baldus considera que até aquele momento Tiago se comportara exatamente


como um branco de cultura e boa educação, aderindo aos costumes bororo de forma
não explicita. No entanto com essas dificuldades de convivência e adaptação em
relação aos salesianos, pelo menos nesse momento da vida, ele teria empreendido um
retorno a suas origens bororo, buscando se integrar e retornar a uma condição
anterior.

... renunciou a cultura importada e tornou-se um inteiro


Aipobureu. Ou pelo menos queria tornar-se, isto é, queria
voltar a ser, inteiramente, o verdadeiro bororo que fora
outrora. Não olhou mais para padres nem para brancos.
Deixou crescer o cabelo à moda dos avós. Entregou-se
completamente à religião de sua tribu. E como sabia que na
tribu havia a regra: ser um homem quer dizer ser caçador e
lutar com a onça, - tornou-se inteiramente caçador. Ou pelo
menos quis tornar-se perfeito caçador... (1937, p. 169).

Tiago também não consegue se adaptar a esses elementos de sua origem, falha
em se tornar o perfeito caçador que queria. Por isso passa dificuldades, e até mesmo é
desprestigiado por não conseguir realizar a contento tarefas que qualquer homem
bororo realizaria sem dificuldades.
E assim Baldus continua descrevendo as desditas e dificuldades de Tiago, seu
movimento pendular entre uma e outra cultura sem, no entanto conseguir adaptar-se
inteiramente a nenhuma delas e ao mesmo tempo tendo a possibilidade de transitar
com relativa desenvoltura em ambas.
Ao fim do artigo Baldus pergunta a Tiago sobre sua opinião a respeito do futuro
dos bororos, ao que ele responde,

Antigamente, o homem agarrava com as mãos a onça pela


boca, separando-lhe as queixadas. Hoje não é mais capaz.
Antigamente, homem e mulher jejuavam muito. Depois do
nascimento de um filho jejuavam durante uma semana,
trabalhando, apesar disto... (1937, p.186).

Baldus perguntou-lhe ainda se não queria viver entre os bororos que moravam
longe das missões, em aldeias ainda independentes e que teriam conservado mais dos
antigos costumes do que os bororos de Sangradouro e Meruri e ainda se não seria
melhor reconduzir os bororos ao seu estado antigo, ao que respondeu Tiago,

Não, lá eles tratam uns aos outros como os brancos se


tratam entre si, matando-se reciprocamente. Em geral
matam o outro com veneno. Tais cousas, antigamente, eram
raras. Hoje a gente não pode mais andar como dantes,
enfeitado de penas (1937, p. 186).

As respostas de Tiago demonstram uma aguda percepção de sua condição


enquanto indivíduo, mas também da condição coletiva do “ser bororo”, pertencendo a
uma cultura que se modifica em função do contexto de contato.
Diante da possibilidade de escolha de duas formas de conduta diferentes, a do
"civilizado" ou a dos bororos, a sua reação e atitudes ambivalentes explicitam um
caráter, não somente contraditório, mas a abrangência de um pensamento que pôde
vivenciar e acreditar em ambas.

Porque os bororo ainda cantam e dançam?


Neste ponto introduzo um corte, uma ruptura na narrativa, buscando criar uma
superposição que produza sentido pelo seu encadeamento. Busco responder a essa
questão, ou ao menos dar um sentido contemporâneo para essa pergunta: porque os
bororo ainda cantam e dançam? A despeito dessa trajetória de contato tão dura e
trágica?
Agora retomo um projeto de realização de um filme etnográfico, resultado de
uma pesquisa de 4 anos junto aos bororo e concluído em 2005. Buscava nesse projeto
discutir o uso de recursos sonoros e visuais para a construção de narrativas sobre
alteridades e intertextualidades entre diferentes modos de representação do outro.
Parto da experiência de realizar o filme Ritual da Vida, que buscou uma
aproximação do ciclo funerário dos Bororo do Mato Grosso. Esse ciclo é elemento
articulador desta sociedade, e nos defronta com as concepções bororo sobre a vida e a
morte e ainda com seu contexto atual de contato. O filme, por meio de uma linguagem
que privilegia o sensível, busca criar sentidos para as permanências e transformações
do mundo bororo atual. A associação do sensível com o inteligível permite ao áudio-
visual meios alternativos de construção de sentidos e de experiências que por sua vez
permitem novas formas de aproximação de contextos rituais em situação de diálogo
intercultural.
O filme busca não “falar sobre” o funeral, mas proporcionar ao expectador uma
experiência filmica relacionada ao funeral. Para tanto mobiliza os elementos do mundo
sensível, sinestésico, como caminho possível para essa outra forma de construção de
sentidos.
No entanto, para a realização desse projeto, temos de enfrentar um problema
de base que é o fato de trabalharmos em contextos que são interculturais. Isso
significa que devemos enfrentar a dependência do domínio de repertórios
culturalmente definidos para construir significados e conhecimento. Nesse sentido,
portanto, problemas ligados a questões como a textualização e contextualização e
ainda à tradução e compartilhamento de sentidos e significados são referências
importantes.
Nosso campo disciplinar (a antropologia), ao longo de sua história, criou várias
possibilidades textuais e visuais para lidar com esse problema que vão da absoluta
crença na objetividade do dispositivo, pensando o filme como uma janela para o real, a
práticas apoiadas no imaginário, na interação e na experiência do filme, que por sua
vez apostam nos aspectos como a fabulação, a ficção e a performance.
Creio que um caminho promissor é aquele que leva em conta aspectos da
experiência sensível dos sujeitos colocados em relação pelo filme, mobilizando
imaginários e construindo sentidos a partir dessa experiência compartilhada do
processo, pois isso leva necessariamente a sentidos também compartilhados,
negociados e estabelecidos como um campo semântico comum, substrato de todo
diálogo, principalmente aqueles de base intercultural.
No entanto, esse espaço ampliado, envolvendo sociedades indígenas e
sociedade nacional, pouco a pouco, passa a ser percebido como um sistema de
relações mais amplo que articula, quase sempre de forma assimétrica, minorias
indígenas e sociedade nacional, marcando as formas de comunicação e compreensão
mútuas.

O funeral e seu contexto ampliado


Nesse ponto devemos retomar alguns elementos que constituem o ciclo de
atividades que compõem o funeral e seu contexto ampliado. Seu conjunto de
atividades pode durar até três meses e é composto de uma infinidade de “festas”
realizadas entre o primeiro enterramento, quando o corpo do morto é enterrado no
pátio de suas aldeias circulares, e o enterro definitivo, dos ossos, em uma lagoa ou
cemitério.
Ritos como Tamigi, Mano, Parabara, Tóro, Iwodo, Kaiwo, Marido e outros mais
vão sendo realizados em conjunto com outras atividades ligadas ao funeral como as
pescarias rituais coletivas, as jornadas de caça, os ciclos de cantos e os ritos de
iniciação.
A morte é um elemento desorganizador do mundo bororo, que traz
desequilíbrios de ordem cósmica. Ela é engendrada pelo bope, um ser sobrenatural,
que preside todos os processos de transformação, como nascimento e morte,
movimento e crescimento, envelhecimento e desintegração.
O princípio oposto ao bope, na cosmologia bororo, é o dos aroe, que são seres
que habitam um mundo em que opera o princípio da permanência, da regularidade
dos processos naturais, da permanência das espécies vivas, etc.
A vida dos homens depende do equilíbrio sutil entre esses dois princípios
instáveis, bope/aroe, que por sua vez depende em parte da ação das pessoas em sua
dimensão individual e coletiva.
Rememora-se ritualmente o tempo dos heróis míticos como aqueles que deram
forma ao mundo bororo com é conhecido hoje por meio de suas ações na origem da
sociedade. Com os ritos que realizam no pátio central, no bai mana gejewu, a casa dos
homens e em outros espaços adjacentes, vão refazendo esse percurso de origem por
meio de seus cantos, danças, caçadas e pescarias rituais, colocando em funcionamento
seus complexos sistemas de trocas de cantos, de nomes, de ornamentos e ainda
realizando os ritos de iniciação. Assim, aos poucos, vão organizando novamente esse
mundo em desequilíbrio.
O resultado desse processo é que os funerais acabam por congregar todos os
vivos por meio de diferentes laços sociais e rituais e todos os mortos por meio de laços
simbólicos.
Assim o funeral, além de ser uma maneira de lidar com a morte, é uma forma
fundamental para a organização do mundo dos vivos, na medida em que a morte exige
um esforço coletivo para se restabelecer a ordem cosmológica perdida.
Para voltarmos para as questões ligadas ao filme em questão, temos que
retomar dois pequenos trechos. O filme tem em sua totalidade 30 minutos e farei
referência aos minutos iniciais da abertura e até o momento em que ela é
interrompida dando início a uma grande elipse que se fecha no terço final do filme,
quando começa o segundo trecho comentado.

O funeral e o filme
No processo de construção do filme busquei utilizar dispositivos narrativos que
engajassem os potenciais expectadores do filme, não-bororos e bororos, não apenas
racionalmente, mas afetivamente, proporcionando uma experiência filmica da
situação cultural abordada.
A aproximação de um ritual tão complexo passou, portanto por uma
compreensão sensível do funeral. E isso só foi possível expondo o expectador a
imagens, sons e uma experiência construída no filme que mobiliza a audiência em suas
reações mais íntimas. Nesse sentido a idéia de paisagem sonora foi fundamental para
articular o universo sonoro do filme.
A primeira seqüência inicia com imagens da beira de um rio, com a passagem
de sua água transparente evidenciando o fundo lodoso da margem. Essa imagem é
acompanhada de um som que não podemos identificar imediatamente, um som que
causa estranheza a ouvidos não bororo, que ressoa em nosso corpo. Começamos a
ouvir gritos e vozes que antecipam a cena que se segue.
Trata-se de uma situação envolvendo homens adultos e jovens meninos, quase
todos com os corpos cobertos de lama. É um momento de grande tensão e apreensão,
fato expressa nos rostos dos meninos que parecem estar sendo submetidos a algum
tipo de ritual, de iniciação diriam alguns. Os olhos e a expressão desses meninos são de
medo e fascínio pela experiência daquele momento, envolto em poeira e
dramaticidade. Ao final dois deles em conversa expressam a tensão anterior em
palavras.
Ritual da Vida. Dir. Edgar Teodoro da Cunha

É dessa forma que o expectador é lançado ao contexto do funeral sem sabê-lo


ainda, pois só somos introduzidos a ele no segundo terço do filme.
A passagem da água pode remeter retrospectivamente a uma idéia de
renovação e transformação, em nossa cultura, idéia esta importante para um filme
que tematiza um ciclo funerário buscando pensá-lo em termos da manutenção da vida,
como o título alude. É com imagens do rio que o filme inicia e termina, trazendo a idéia
da passagem, da transformação, da travessia de uma margem a outra do rio que
pressupõe sempre a chegada a um lugar diverso do que se planejou.
Como contraste creio que é interessante cotejarmos esse sentido com uma
possível leitura bororo dessa mesma cena.
As mesmas imagens, para um bororo, podem fazer referência direta a
elementos de sua cosmologia. O som que ouvimos é o som de um zunidor, objeto
ritual que tem o nome bororo de Aije, que também é o nome de um monstro
sobrenatural que preside o momento final do funeral. É também a primeira visão do
Aije que marca a iniciação doa meninos. Na verdade, o som do zunidor é a “voz” do
Aije, que é um ser que habita o lodo da beira dos rios e lagoas, e para um bororo essa
cena inicial pode ser bastante evocativa desses elementos ligados a um sentido interno
do funeral.
Fica evidente que a diferentes audiências correspondem diferentes formas de
interpretação. Cabe ao filme, por meio de suas estratégias narrativas, mobilizar e
potencializar essas possibilidades de interpretação e construção de sentido.
O segundo trecho é o momento em que a elipse iniciada ao fim do primeiro
trecho se fecha. Retornamos à situação da iniciação dos meninos e percebemos agora
que se trata da seqüência final do funeral, seu momento culminante.
Os jovens são levados ao centro do pátio. Estão enfeitados com um capacete de
plumas multicoloridas com os padrões clânicos e com os braços cobertos por uma
delicada plumagem. Nessa seqüência temos uma imagem em detalhe em que
percebemos o braço arrepiado do menino, coberto de uma fina penugem branca, e a
mão de um adulto em atitude de cuidado. Estes jovens estão “nascendo” para uma
nova situação de vida em que terão novas atribuições e responsabilidades.
As plumas têm um significado interno sutil. A palavra aróe tem múltiplas
acepções: pode significar “alma” espírito ou ser sobrenatural, pode referir-se ao
cadáver do morto e ao morto de modo mais geral, pode ainda referir-se ao seres
primaciais ou aos epônimos de cada clã, pode referir-se ainda aos “atores” das
representações já mencionadas realizadas ao longo do funeral. Em sua etimologia a
palavra aróe é composto de áro, que significa pluma, complementado por um sufixo
que marca o plural. A pluma marca visualmente uma série de representações,
ornamentos, de objetos e de pessoas, indicando o domínio claro do plano dos aróe em
todas essas expressões, como no caso citado acima da iniciação dos meninos em que
eles recebem o seu bá, estojo peniano, que indica que eles estão aptos a desempenhar
seus novos papéis sociais e rituais, como casar e participar dos funerais. Mas essa
marca das plumas também são visíveis em outros momentos, como na ornamentação
dos aroe maiwu, as “almas novas”, que substituem o morto ao longo dos funerais.
Desse momento, por meio de uma fusão do rosto de um dos meninos somos
levados para outro espaço onde um desses meninos, agora iniciado, assiste aos cantos
coletivos dentro de uma casa repleta de pessoas. Trata-se do bai mana gejewu, a casa
central que neste momento abriga homens, mulheres e crianças em nova etapa de
cantos e danças do funeral. Os sons dos chocalhos e a dramaticidade das vozes dos
cantores não deixa dúvida de que agora o morto é o foco das atenções das ações.
Em outra imagem de detalhe vemos um menino muito jovem, talvez com
quatro anos de idade, no colo de um adulto acompanhando com os olhos fixos os
cantores dentro da casa. Ele movimenta um chocalho imaginário no ritmo dos
chocalhos que vê e ouve. Por meio de uma imagem tão simples compreendemos o
significado do ritual como agenciador da reprodução social de um conhecimento que
está dado na experiência, na ação dos indivíduos dentro de uma dada cultura.
Os cantos fazem parte de repertórios clânicos, da mesma maneira que os
enfeites plumários, objetos e nomes, e um indivíduo ao longo de sua vida precisa
aprender e dominar um repertório de cantos, essenciais na realização de suas
atividades rituais. O desempenho no canto exige um longo treinamento que se
expressa no corpo. A maneira de empunhar o bapo (chocalhos), o tônus do corpo, de
pé ou sentado, ao executar o canto, a modulação da voz, que exige uma impostação
muito diferente da que os nossos ouvidos estão acostumados. Todos são elementos
aprendidos culturalmente em meio a um longo processo.
A idéia do ritual como uma forma de reconstrução do mundo é especialmente
evidente nos cantos. A enunciação de uma longa lista de nomes de lugares, de espaços
geográficos, em um canto têm o sentido de dar existência a partir da nomeação desses
lugares, entes ou seres. Nesse sentido o canto constrói

(...) uma etnocartografia muito especial pois enuncia não


apenas os acidentes geográficos e o interesse de cada um
deles, em termos dos recursos que oferece, mas também as
unidades sociais que constituem a sociedade Bororo. A
paisagem social Bororo é reconstruída através deste canto,
que deve ser memorizado em seus mínimos detalhes
(CAIUBY NOVAES, 1998).

Se observarmos o repertório de histórias míticas bororo perceberemos um


procedimento similar, que é o fato de que quando um determinado personagem
encontra algo novo e desconhecido, ele de imediato deve dar um nome a ele. Esse
procedimento permite incorporar o novo dentro do sistema de relações bororo.
Enunciar, nomear é que dá a existência a algo ou alguém dentro do mundo bororo.
Assim os cantos, reproduzindo esse procedimento, conseguem re-construir o mundo
nomeando novamente seus componentes, como se a palavra desse a vida e portanto
com um evidente caráter agentivo.
As seqüências rituais bororo contêm muitas repetições de expressões
performáticas como danças, músicas ou seqüências de ação. Dessa maneira a ação
ritual freqüentemente parece consistir em uma forma performática com
características resultantes de um processo de ensaio. A mesma dança ou canto repete-
se, dentro de seu contexto, desde que os participantes os executem na forma correta
restaurando a ação em sua forma compreendida como padrão. Assim a configuração
da ação ritual é resultado de uma forma que se estabilizou pela repetição.
É por meio desse processo de “ensaio” que a sincronicidade e a natureza
coletiva do ritual é colocada em relevo pelos “performers” bororo, pois se busca a
segurança de que o objetivo da performance seja atingido, por meio de uma prática
ritual com formas pré-existentes e não modificáveis, pelo menos no plano ideal do
pensamento bororo. Assim, o processo de repetição, permite reviver “esteticamente”
acontecimentos que fazem parte da história daquela sociedade, de seu universo mítico
e de suas conseqüências no mundo social.
Morphy (1994, p.133), tratando de uma situação similar em outro contexto
cultural, nos diz que o "comportamento é restaurado" por meio de indivíduos que
participam de um evento e o significado de etapas rituais é fixada no tempo de sua
execução, em um particular contexto enriquecido pela bagagem coletiva de
conotações que os indivíduos carregam com eles. O mesmo autor afirma ainda que a
criação de sentido por meio do ritual é parte de um processo de transformação que é
cumulativo e que também envolve a perda de certos sentidos e conotações que são
colocados em movimento pelo ritual.
Memória aqui também pode ser discutida em relação à antropologia da
experiência de Turner (1982, p. 14). A experiência está relacionada às emoções
revividas e imagens do passado que se articulam ao presente, possibilitando a criação
de novos sentidos e nexos. A reprodução dos sentidos e das formas tradicionais
dependem em certa medida da performance ritual, das formas narrativas orais, de
uma estética social, que proporcionam aos indivíduos dessa sociedade os meios
coletivos para lidar com a reprodução social e, portanto, com a permanência, mas
também com as tensões e crises, com os momentos de liminaridade, e por
conseguinte com os fluxos de movimento e de transformação.

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MORPHY, Howard. “The Interpretation of ritual: reflections from film on
anthropological practice. In Man, Vol. 29, nº. 1, 1994, p. 117-146.
SCHECHNER, Richard. Between theater and anthropology. Philadelphia: University of
Pennsylvania Press, 1985.
TURNER, Victor. From ritual to theatre: the human seriousness of play. New York: PAJ
Publications, 1982.

1
Após minha participação no Encontro Internacional de Antropologia da Performance, EIAP, apresentei
as reflexões aqui expostas na IV Semana de Estudos Teatrais da UNESP, a forma final desse texto
decorre das discussões e contribuições surgidas na discussão com diferentes pesquisadores por ocasião
dos dois encontros.
Sessões NAPEDRA

Apresentação das pesquisas desenvolvidas pelos membros do


NAPEDRA, agrupadas em cinco temáticas e comentadas por professores
convidados.
Sessão Napedra 1: Walter Benjamin e antropologia

Coordenação: Vânia Zikán Cardoso (UFSC)

Ana Leticia de Fiori (PPGAS/USP)


André-Kees Schouten (PPGAS/USP)
Carolina Abreu (PPGAS/USP)
Eduardo Néspoli (DAC/UFSCar)
Benjamin e a antropologia, Vânia Zikán Cardoso (UFSC)
Resumo: A influência do pensamento de Walter Benjamin em alguns campos
da antropologia, principalmente nos estudos de narrativa e naqueles onde a
antropologia se volta para a história, já é nossa antiga conhecida. Não menos
importante para o pensamento antropológico têm sido as reflexões de Benjamin sobre
a estética, o teatro, o cotidiano, a história, a tradução, e as transformações das
percepções e experiências na modernidade. A relevância do pensamento
benjaminiano está assim longe de ser restrita a campos temáticos da antropologia, nos
instigando a repensar tanto nossa própria concepção de cultura quanto nosso fazer
etnográfico. Talvez possamos pensar a influência de Benjamin como uma provocação
para deslocarmos a etnografia de um papel de tornar transparente a “cultura” do
“Outro” em direção àquilo que ele chamou de “iluminação profana” – uma iluminação
que não explicita significados numa progressiva domesticação dos sentidos, mas
alumia aquilo que escapa a estas sistematizações ordenadoras.
Drama social e narrativas do assassinato de Aline, Ana Leticia de Fiori
(PPGAS/USP)

Resumo: A partir do assassinato de uma jovem em Ouro Preto em 2001, proliferam-se


narrativas que constituirão o “caso Aline”, combinando e matizando uma variedade de
elementos. Jogos dos quais a ficção corre o risco de transbordar para a realidade; macabros
rituais satânicos aprendidos pelos jovens de modos insidiosos; agendas políticas evangélicas de
combate ao mal cotidiano; drogas e violência; uma vida estudantil e seus excessos; inversões
simbólicas da crucificação e sacrifício redentor dos mártires de Ouro Preto. Estas narrativas,
durante o drama social do “caso Aline”, encontram-se em diferentes arenas, tais como o
processo e o julgamento, a mídia, o campo religioso e o legislativo, germinando nas suas
lacunas e na obscuridade epistemológica do caso. Tais narrativas são apreensíveis em
diferentes cânones narrativos que orientam suas tramas, seus conteúdos, seus horizontes de
verossimilhança e seus desfechos prováveis. A sentença absolutória, porém, produz um
desfecho que problematiza a possibilidade de uma totalização dos sentidos dispersos diante
da ruptura simbólica produzida por uma morte difícil de entender, de narrar e,
consequentemente, de resolver-se em um sentido de justiça.
Turner, Benjamin e experiência: exercício de antropologia benjaminiana,
André-Kees de Moraes Schouten (PPGAS/USP)

Resumo: “Haveria em Turner a nostalgia por uma experiência que se expressa


melhor na noção de Erfahrung do que na de Erlebnis?” Partindo desta questão em
aberto levantada por John Cowart Dawsey alguns anos atrás ao indagar pelas
afinidades entre os pensamentos de Victor Turner e Walter Benjamin, esta
comunicação visa discutir em que medida a concepção de experiência de Turner,
embora fundada na Erlebnis, se aproxima da Erfahrung, como surge nos escritos de
Walter Benjamin, uma vez que tais conceitos, no interior da tradição filosófica alemã,
emergem quase sempre contrapostos.
Experiência da rave: entre o espetáculo e o ritual, Carolina de Camargo
Abreu (PPGAS/USP)

Resumo: Esse trabalho propõe lançar luz sobre a experiência das festas raves
focando os planos em conflito, carregados de tensão, operados nas montagens
realizadas por esse modo de festejar. Debruça-se especialmente sobre a performance
das festas de trance enquanto “rituais psicodélicos” e trata da instabilidade entre as
imagens de espetáculo e de ritual que se entrelaçam.
Mais do que caracterizar uma experiência trance da rave, essa pesquisa
investiga a própria procura por experiência pelos ravers. Neste caminho, propõe pôr
em relação os conceitos ravers de Xxxperience e vibe, e as noções benjaminianas de
erfahrung (experiência coletiva) e erlebins (experiência individual ou de um grupo
específico), orientada pelas preocupações do campo da antropologia da experiência.

A forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao


mesmo tempo que seu modo de existência.

(Walter Benjamin, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica)

O vídeoclip da música Star Guitar do Chemical Brothers é considerado uma


“obra de arte” pela competência no uso de técnicas audiovisuais. Música
computacional precisa e imagética digital perfeita concebem um deslocamento
tântrico. Suas estéticas propositalmente coincidem para atingir o tátil e o emocional
do espectador capturado como passageiro de um trem eletrônico.
O vídeo foi dirigido por Michel Gondry, considerado um mestre da edição
digital contemporânea. Chemical Brothers é nome da dupla inglesa de produtores de
música eletrônica, Tom Rowlands e Ed Simons, reconhecida mundialmente pela
competência na criação de faixas de dance music.
Calculando a perspectiva visual da janela de um trem, o vídeo viaja por cenários
ingleses: descampados, áreas industriais, túneis, estações. Postes, casas, montanhas,
rochas, pessoas, plataformas passam ou mantém-se no quadro no tempo exato de um
respectivo elemento da música. A grande brincadeira é conferir a coincidência dos
elementos visuais e musicais. A poética da arte disso é sua eficácia sensual: seu ritmo
apropriado, sua provocação em deslocar o corpo e conduzir a viagem sensorial.
O vídeo de Star Guitar foi concebido como uma partitura visual da música, que,
por sua vez, valeu-se de técnicas de composição cinematográfica, essencialmente a
montagem. Tecnologias musicais e visuais ganham potência fundindo técnicas.
Tecnologias próprias do século XX, o cinema e a música eletrônica desenvolveram-se
de forma imbricada com alvo preciso sobre a qualidade tátil fundante e desperta desse
século: a cinestesia.
Walter Benjamin sugeriu já na década de 20 do século passado, como a
modernização, marcada por fluxos incontroláveis de movimentos, signos e imagens,
disponibilizando velocidades antes desconhecidas, moldaria um novo modo de
experiência. Experiências perceptivas inéditas suscitadas pelos elevadores, as
montanhas russas ou o cinema provocaram novas concepções dos sentidos. Anotar
como “a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo
tempo que seu modo de existência” (Benjamin, 1994, p. 169) me parece uma tarefa
própria da antropologia.
Assumindo essa tarefa, esse capítulo se debruça sobre a peculiaridade da
tecnologia e da estética da música eletrônica. O exercício antropológico é disparado
pela proposta do etnomusicólogo John Blacking (1995), que nos chama a considerar os
contextos e situações sociais de produção, audição e reprodução pelos quais as
pessoas atribuem sentido musical para sons diversos, ou ainda, transformam ruído1
em música. Na mesma direção, Anthony Seeger (2004) também exige que observemos
como a música engaja e é engajada pelas práticas sociais.

***

A intensidade com qual a música pode mover emocionalmente as pessoas há


tempos é conhecida, porém a direção desse movimento depende das características
sensíveis musicais e dos contextos de significação. No presente estudo estamos nos
debruçando sobre uma musicalidade peculiar, a música eletrônica, e exatamente sobre
uma vertente bastante específica, ainda que muito popular mundialmente: a chamada
dance music, ou seja, música para dançar ou música de pista.
Vale pontuarmos que o universo da dance music abarca diversos gêneros:
break beat, trance, techno, drum’n’bass, house, dub, etc. que se subdividem em outros
tantos estilos específicos (hard techno, hard trance, full on, goa trance, etc.); estilos
incessantemente inventados e nomeados2, mas que conservam e compartilham o
propósito explícito de agitarem as pistas de dança.
A música eletrônica é, na verdade, uma possibilidade tecnológica; refere-se a
qualquer musicalidade criada ou modificada através de equipamento eletrônico, tal
como sintetizador, gravador digital, computador ou software de composição.
A história da música eletrônica encontrada no Wikipédia em maio de 2009 3, por
exemplo, considera a música eletrônica uma vertente da música erudita que ganhou
princípios e tradição após a Segunda Guerra Mundial, especialmente com o trabalho
de franceses da música concreta e de alemães na Elektronische Musik, mas que
atualmente mantém ramificações tanto eruditas como populares. Conforme essa
enciclopédia livre, a música eletrônica haveria se tornado elemento da música popular
através do rock e delimitado um gênero musical próprio, a dance music, a partir do
auge da prática da discoteca no final dos anos 70.
Qualquer que seja a versão sobre a história da música eletrônica é certo que as
musicalidades criadas estão nitidamente correlacionadas com o desenvolvimento

1
No senso comum, ruído significa barulho, som ou poluição não desejada. Na eletrônica o ruído pode ser
associado à percepção acústica, por exemplo, de um “chiado” ou “chuvisco” na recepção fraca de um
sinal. No processamento de sinais o ruído pode ser entendido como um sinal sem sentido, leatório, sendo
importante a relação Sinal e Ruído na comunicação. Já na teoria da informação o ruído é considerado
como portador de informação.
2
Esse é um processo intenso de invenções e classificações musicais que se relaciona com a dinâmica
identitária de agrupamentos urbanos. Sobre essa dinâmica desenvolvi a dissertação de mestrado “Rave:
encontros e disputas” (Abreu, 2005) e o antropólogo Ivan Fontanari (2008), seu doutorado. Ver também
Baldelli e Moutinho (2004).
3
Disponível em (http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%BAsica_eletr%C3%B4nica). Acessado em 25 de
maio de 2009.
tecnológico de equipamentos no decorrer do século XX e também com certo modo de
narrar e compor, intimamente ligado com práticas sociais que se instituíram.
Nem tanto pela popularidade crescente, mas especialmente pela peculiaridade
histórica, torna-se pertinente investigarmos antropologicamente a prática da
produção, da audição e da reprodução da música eletrônica de pista.

***

“Desde o princípio, o principal da boa música de pista não era simplesmente te


fazer mover, mas realmente mover você” (minha tradução) 4 é o comentário elogioso
de David Fricke à dupla Tom e Ed pontuando essa questão no encarte do DVD The
Chemical Brothers Singles 93-03 (Virgin Records Limited, 2003).
Pedro Ferreira (2006) analisou a eficácia de mobilização da música de pista pela
sua capacidade de concretização do que chamou de técnicas de êxtase xamânico. O
autor analisou como os DJ´s trabalham através de 3 parâmetros na geração de um
transe que seria exclusivo à sociedade tecnológica:
(1) efeitos da altíssima intensidade (dB-decibéis) do som eletronicamente
amplificado: caracterizado pela experiência de imersão corporal em um ambiente
vibratório;
(2) efeitos de diferentes faixas de freqüências (Hz- hertz) quando produzidas
em altíssimo volume: caracterizado pela experiência de diferenciação entre sons que
penetram o corpo, colidem com ele ou o dissolvem;
(3) efeitos de velocidades (BPM - batidas por minuto) do tempo musical
metronicamente controlado: caracterizados pela sincronização de ritmos infra e inter-
corporais.
Mesmo focando a música eletrônica de pista, o autor considera que a eficácia
desta se dá pela formação de um sistema de ressonância no qual os corpos dos
dançantes não são passivos, não são apenas vibrados, mas também vibram pela dança
e acabam por concretizar um “corpo coletivo sonoro-motor”. O autor admite que seja
preciso certa “disponibilidade” dos participantes para que a sinergia som-movimento
se alastre para todo o público, mas não considera os efeitos dos psicoativos ingeridos
na ocasião dos eventos. Considera que tal sistema, caracterizado como “máquina” pela
teoria deleziana, seria composta por corpos, mas o autor acabou por esvaziá-los. 5
Nesse trabalho, eu trato de corpos com vísceras, coração e pulmão, eu trato de
corpos compostos por sistemas nervosos.

A música troveja através de minha carne, as notas rodam


com minhas veias. DJ’s rodopiam suas escrituras com
eloqüência, deleite e segurança. O grave chocalha meu
pulmão e bate em uníssono com meu coração. Se eu fecho

4
“To Tom and Ed, from the beginning, the point of great dance music was not simply to make you move,
but to truly move you.” (:2)
5
Ver Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia - volume 1 (2005) de DELEUZE, Gilles Deleuze e Félix
Guattari.
meus olhos eu posso ver minha carne derreter e minha alma
ascender entre os espaços do som. (tradução minha)6

É a declaração de Tara Mc Call (citada em Gerard 2004, p. 168) sobre sua


experimentação da música de pista.
Corpos que não apenas recebem, mas produzem sensações, emoções,
significados; respiram, pulsam. São corpos instrumentos primários de conhecimento,
tal como Marcel Mauss (2003) os concebeu.
Nesse trabalho, eu trato de muitos corpos que aprenderam a se deixar afetar
pela música eletrônica de pista depois que consumiram alguma vez um ecstasy.
Informação pertinente do meu trabalho de campo, a combinação entre música
eletrônica e ecstasy, surge como um silenciamento em muitos dos trabalhos
acadêmicos sobre o assunto.

***

“Aprendi a ouvir e gostar de música eletrônica depois que tomei um ecstasy;


antes a música era como barulho, incomodava.”. Esta é minha história, que freqüentei
e organizei raves na década de 90 no Brasil, e a de muitos outros.
Bia7 (30 anos em 2004, freqüentou raves entre 2002 e 2006), sobre quando
experimentou um ecstasy, conta: “foi a primeira vez que eu senti a música eletrônica
tocar em mim, o som era maravilhoso, era house, (...) a música antes era
insuportável”.
Depois que se vivenciou alguma(s) vez(es) a experiência do ecstasy, muitas
pessoas dizem nem precisar tomá-lo para “entrarem no espírito” da música. Luíza (22
anos em 2005, freqüentadora de raves desde 2000), conta que quando vai a raves pela
manhã (chega na festa por volta das 11 horas da manhã do domingo), diversas vezes
só bebe uma cerveja e vai dançar na pista pois logo ela “surpreendentemente” sente-
se como se tivesse tomado um ecstasy. “É como se o corpo tivesse uma memória que
a música ativa”, diz ainda.
Contando a história do início da prática clubbing no Brasil, o jornalista e DJ
Camilo Rocha, registra:

“Pastilhas de ecstasy pipocavam aqui e ali. Era uma droga até então pouco
conhecida e que até 1995 ainda era legal nos EUA. Seu principal componente era a
metanfetamina MDMA. De uma hora para outra, muitos passaram a tomar. É fácil de
entender por quê. Quem usava ficava sempre sorrindo, abraçando os outros e depois
falava em ‘sentir a música melhor’, ‘desencanar das paranóias’, ‘quebrar as barreiras
entre as pessoas’ e ‘uma vontade de dançar e imergir no som’” (Rocha, 2003, p. 22)

6
“The music thunders through my flesh, the notes swim within my veins. DJs spin their scriptures with
eloquence, zest and assurance. The bass rattles my lungs and beats in unison with my heart. If I close my
eyes I can watch my flesh melt away and my soul rise between the spaces of sound.”
7
Nome fictício.
O próprio emblema da geração clubber dos anos 90, símbolo do acid house, o
smiley, – resgatado da psicodelia dos anos 70 –, faz alusão ao ecstasy. Tal como
caracterizou Rocha: “um comprimido sorridente com olhos arregalados”.
Talvez não seja por acaso que um dos conjuntos mais competentes de
produtores de dance music chame-se Chemical Brothers. A irmandade estabelecida
nas pistas de dance music também tem laços numa consangüinidade química, mesmo
que não sejam os únicos ou os mais importantes.

***

No decorrer de mais de dez anos de prática rave e clubbing no Brasil, a


“pastilha” (gíria para se referir ao ecstasy), festejada descoberta dos anos 90, passa a
ser chamada de “bala” nos anos 2000, e já não é mais o psicoativo preferido de todos
os freqüentadores desses eventos – alguns dizem gostar mais do LSD, o “ácido”, porém
são raros os casos de quem nunca experimentou um ecstasy.
Estamos lidando com dois períodos diferentes no consumo desses elementos:
(1) os anos 90 do século XX, quando aqueles que ouviam e dançavam música
eletrônica no Brasil representavam um restrito agrupamento que se formava
geralmente nas raves, quando o ecstasy foi conhecido como a “droga do amor”; (2) e a
primeira década do século XXI, quando o ecstasy passa a ser chamado de “droga
recreativa” e a grande maioria dos diferentes agrupamentos de jovens urbanos realiza
suas “baladas” noturnas com trilhas de músicas eletrônicas.
Há diferenças fundamentais entre as esporádicas raves ilegais de meados dos
anos 90, consideradas festas underground, e os grandes eventos regulares de final de
semana que chegam a reúnem quinze mil pessoas oferecendo equipamentos de
parques de diversões. Eventos esses que no Brasil já não são nem mais chamados de
raves, mas, trabalhando para sua legalização, preferem a denominação de festas open
air a fim de desligar-se da imagem de território permissivo ao consumo e ao tráfico de
drogas.
Talvez toda a potência da abertura para o outro e para a empatia provocada
pela “droga do amor” tenha ficado em segundo plano nos anos 2000, alguma utopia se
perdeu aí, mas outro dos reconhecidos efeitos do ecstasy é ainda descrito na mesma
direção: a possibilidade ampliada de sentir no corpo a música eletrônica.
Numa rave em meados de 2003, observei um jovem participante vestindo uma
camiseta com a imagem de uma cápsula colorida seguida da legenda “extra flavour”.
Sob efeito do ecstasy é possível sentir a própria respiração e as batidas do
coração. A visão é alterada, mas apenas levemente, as cores se tornam um pouco
mais vivas, os contornos das formas suavizados, mas não há distorções significativas. O
paladar também é aguçado, torna-se gostoso sentir a leve doçura da água ou de frutas,
- ninguém se arrisca a ingerir alimentos de gosto muito forte, pois esses podem ser
agressivos dada a sensibilização do momento. Mais agradável do que o gosto da água,
é sensação da matéria da água na boca ou escorrendo pela garganta, pois o sistema
mais alterado pelo ecstasy parece ser o tátil. As sensações táteis do corpo (internas e
externas) são agradáveis e prazerosas: movimentações, toques, pulsações,
temperaturas. É a dança, então, a atividade que melhor possibilita e ativa essas
experimentações sensoriais.
Mais apropriado do que dizer que se ouve música eletrônica, é dizer que se
sente a música eletrônica.

A cada virada, parecia estar em outra dimensão uma


sensação plena de bem estar misturada com momentos de
ARREPIO e CHORO. Olhava para o céu azul e agradecia à boa
força que me proporcionou esse momento único em minha
vida. Era como se a música ouvida fizesse cócegas em meu
cérebro. Compartilho o momento com outras pessoas ao
meu lado que estavam sentindo a mesma boa e mágica
sensação.8

É depoimento espontâneo sobre a rave do final de semana, assinado por M-


HIPNOTIC, anexado ao sítio Rave On da internet.
Talvez a peculiaridade do ecstasy, ainda valorizada nos anos 2000, esteja na
intensificação tanto da sinestesia – com s -, quanto da cinestesia – com c. O dicionário
de língua portuguesa Larousse Cultural (1999) aponta algumas diferenças:

“Sinestesia (gre. syn, junto + aisthesis, sensação) 1. [psic.]


experiência subjetiva na qual percepções que pertencem a
uma modalidade sensorial são regularmente acompanhadas
de sensações que pertencem a uma outra modalidade, sem
que esta última seja estimulada.” (1999, p. 830)

É sobre esse tipo de experiência que Walter Benjamin trata, em A obra de arte
na era de sua reprodutibilidade técnica, quando nota que o cinema, através da visão,
atinge o tátil do espectador.
Quanto à definição de cinestesia com c, o dicionário é pobre: “Cinestesia. 1.
conjunto de percepções pelas quais se percebem os movimentos musculares – 2.
percepção consciente da posição e dos movimentos das diferentes partes do corpo”
(1999, p. 230). Mas a citação de Anne Suquet nos ajuda a compreender melhor o
conceito. Anne Suquet trata toda a experimentação da dança e do corpo poético do
século XX como incitada pela eclosão de um sexto sentido no limiar desse período: a
cinestesia. Experimentações de uma época sobre a natureza da visão e do movimento;
percepção e mobilidade intimamente ligadas.

Em 1906, o inglês Charles Scott Sherrington, um dos pais


fundadores da neurofisiologia, reúne, sob o termo
‘propriocepção’, o conjunto dos comportamentos
perceptivos que concorrem para este sexto sentido que hoje
recebe o nome de ‘sentido do movimento’ ou ‘cinestesia’.
Muito complexo, ele traça informações de ordem não
apenas articular e muscular, mas também táctil e visual, e
todos esses parâmetros são constantemente modulados por
uma motilidade menos perceptível, a do sistema
neurovegetativo que regula os ritmos fisiológicos
profundos: respiração, fluxo sanguíneo, etc. É este território
da mobilidade, consciente e inconsciente, do corpo humano

8
Disponível em (http://www.zuvuya.net/sites/raveon). Acessado em 1 de junho de 2005.
que se abre para as explorações dos bailarinos no limiar do
século XX. O sensível e o imaginário nele dialogam com
infinito refinamento, suscitando interpretações, ficções
perceptivas que dão origem a outros tantos corpos poéticos.
(Suquet, 2008, p. 515-16)

A diferença e a relação entre cinestesia e sinestesia parecem interessantes para


pensarmos algumas das peculiaridades da experiência das pistas de dance music e
traçar algumas das relações entre os consumos da música eletrônica e do ecstasy, mas
vale ressaltar que é a prática da dança que ativa a conexão e a memória dessa conexão
entre os elementos. Essa é a particularidade de fruição da música de pista: um
conjunto de interações, afetos e prazeres vivenciados pela prática da dança.
A dança expande sua afinidade com a música pela permissão de constituir uma
relação física cada vez mais profunda com ela. Também a dança é coletiva e
compartilhar a música de pista intensifica o modo pelo qual ela afeta você, tal como a
presença da música altera o modo pelo qual as pessoas presentes se relacionam umas
com as outras.
Essa interação musical-sensual entre pessoas no ambiente das pistas é a
“balada” desejada nos clubs e a vibe festejada nas raves.
Vibe é expressão de comunhão, um compartilhar de sensações e emoções.
André (30 anos em 2004) definiu: “A vibe é um momento quando as pessoas
acreditam estar pulsando no mesmo tempo, na mesma sintonia, e... é isso. Ficam
felizes juntos, dançam juntos, tem um sentimento coletivo... de vibe”. Enfatizando o
caráter compartilhado, Marcelo (com 30 anos em 2004) pontua: “A vibe é a comoção
geral, é a loucura em grupo”.

***

Morgan Gerard (2004) considera clubs e raves como espaços de constituição de


eventos liminares, no sentido próprio que Victor Turner atribui ao conceito. A
liminaridade dessas pistas de dança se realiza processualmente pela intensificação de
interações e comunicações.

Construída de gravação a gravação, de interação a interação


a liminaridade é apresentada e promovida como uma
experiência transformacional realizada através da música e
da dança. (Gerard, 2004, p.174, tradução minha)9

Nesse processo, o autor considera a combinação de dois pares de “técnicas de


liminaridade” usadas pelos DJ’s em gravações preliminares e durante evento: filtro e
looping, equalização e mixagem.
O filtro e o looping combinados produziram expectativa e excitação na platéia,
permitindo aos presentes na pista uma reflexão sobre suas posições nesse espaço e
uma chamada dos demais para a participação na dança. Já a equalização, uma
manipulação das freqüências das gravações, e a mixagem, passagem entre faixas,

9
“Occurring record by record and interaction by interaction, liminality is presented and promoted as a
transformational experience realized through music and dance.”
afetariam o senso de tempo transmitido pela música, criando assim um código, bem
entendido pelos dançantes, no qual o DJ atende ou surpreende a lógica rítmica do
momento.
Interessante é a observação do autor quanto a padrões de resposta dos
dançantes à musicalidade composta pela DJ. Em momentos de suspensão da música
ou da freqüência do grave, Gerard observa que enquanto uma moça deixa de dançar,
fita o DJ, meio sem saber o que fazer, a espera de novas instruções; outra
(provavelmente mais familiarizada com essa linguagem musical) apenas respira e volta
a dançar no momento exato que o DJ reintroduz o grave pela mixagem – os silêncios
também compõem a música de pista e atendem a um tempo previsível pois o ritmo
não é suspenso.
Ferreira (2006) também fez observações quanto a comunicação corpórea da
dança nas pistas de música eletrônica: considerou que o beat da música - sua batida
constante - sugere um movimento rítmico regular do corpo, que se combina com
respostas ao break da música – quebras propiciadas pela diferenciação de elementos
musicais - que motiva movimentos nas articulação corporais. A dança nas pistas de
música eletrônica seria então uma brincadeira com a correspondência corporal entre
esses sinais sonoros, que dependendo da habilidade e conhecimento do dançarino
resultaria em danças mais ou menos elaboradas. Mas essas considerações, ainda que
bastante pertinentes, não explicam ou dão conta da conexão coletiva construída.
A mixagem, para Gerard, caracteriza um momento peculiarmente liminar,
período de ambigüidade tanto para DJ’s como para dançantes. Momento de transição
entre uma faixa e outra de música, quando se corre o risco de interromper o fluxo que
vai se constituindo como um envolvimento numa sintonia sensual coletiva. Há risco do
DJ quebrar a estrutura rítmica e despertar dançante para consciência de si mesmo e da
situação, o que seria considerado uma falta de competência Há várias gírias para tal
mixagem que é considerada mal, uma quebra entre duas gravações separadas, que se
fazer notar pelo descompasso na passagem de uma gravação para outra: “sambar” no
Brasil e “trainwrecking” em inglês (Gerard, 2004, p. 177).
A dance music seria como uma narrativa cíclica de mixagem após mixagem que
levaria dançantes e DJ constituírem estados de imersão coletiva, com alguns picos de
euforia - “peaks” em inglês e “bombação” em português do Brasil são as gírias usadas
para esses picos.
André (31 anos em 2005) comentou que um bom DJ é aquele que consegue
não apenas chamar os participantes da festa para a pista, mas também “manter em
suspensão a euforia sem esgotar os ânimos”. Ora, a festa é longa, e quanto mais longa
maior a possibilidade de ser trilhada coletivamente e ser construído esse espaço de
imersão compartilhado.

***

Kai Fikentscher (2000) caracteriza os DJ’s como “arquitetos de paisagens


sonoras”, e Ferreira pontua que as nomeações “pista” e “faixa” fazem alusões a uma
viagem, a um percurso, então acho que podemos definir a execução da música de pista
como uma operação de sucessão de paisagens sonoras num sentido bastante
cinemático, uma viagem, uma história, que se deseja coletiva. A execução da música
de pista segue como a sucessão sinestésica de referências musicais expressas no
corpo. Neste sentido Jackson (2005) considera as músicas de pista nos termos de
“paisagens sensuais”.
A composição da música eletrônica de pista mais se aproxima das técnicas do
cinema do que de um espaço musical, caracterizado por Adorno (1976), que permitiria
a reflexão. Ou pegamos carona, ou somos atropelados pela dance music, dificilmente
nos mantemos à parte já que seu modo de execução nas raves e clubs se faz em
volumes tão altos que a música se torna onipresente em todos os ambientes do
espaço e dificulta qualquer reflexão ou comunicação verbal entre os presentes.
As técnicas e a imaginação cinematográficas alimentam o modo de compor da
música eletrônica. Mixagem é montagem, e quando a mixagem “samba”, deixa os
presentes perceberem a colisão entre faixas, o efeito de despertar incomoda aqueles
que querem adormecer e se deixar levar pelo fluxo de uma viagem fantasticamente
sensorial. O DJ não pode interromper a distração dos dançantes em sua concentração
na audição do corpo. Audição é o termo que se usa na prática da dança
contemporânea para a percepção tátil dos movimentos internos de seu corpo, sua
cinestesia.
Lembro-me, então, dos momentos de suspensão da música ou do grave
durante a execução da música de pista. Momentos de suspensão, quando se afirma, se
pontua, pela troca de olhares e sorrisos, pela resposta corporal exata, a constituição da
conexão dos dançantes que reconhecem compartilhar a mesma brincadeira de
“materialização da música pela dança” (Rouget, 1985) - brincadeira mimética.
Momentos de passagem que engajam os presentes são momentos nos quais eu
observo e reconheço os dançantes se entreolham, fitando rápido, porém de forma
penetrante, expressando toda a movimentação cinestésica que pode ser acessada na
situação. Essa é a cinestesia possível pela ingestão do ecstasy.
Ecstasy, um elo importante na execução da tarefa da música eletrônica em
“fazer do gigantesco aparelho técnico de nosso tempo o objeto das inervações
humanas” (cf. Benjamin).

***

O homem moderno, atingido pelo continuum da fragmentação, da alteração de


velocidades e direções, é historicamente o corpo-campo da aplicação de disciplinas,
conforme analisa Foucault (1994). Corpos dóceis são também corpos imobilizados10.
Homens e mulheres parados em frente das esteiras das linhas de produção,
sentados em frente de seus computadores, nos assentos dos automóveis, nas carteiras
das salas de aulas, nas cadeiras dos cinemas ou nas poltronas em frente da televisão,
experimentam as velocidades de sua época especialmente através da visão do
movimento.
Pouco se caminha em nossos dias, e quando nos movemos, geralmente
fazemos através de nossas máquinas, mais uma vez sentados nelas, nos ônibus, nos
automóveis, nos aviões, e também nos aparelhos das academias. A cadeira poderia ser
eleita parceira indispensável da maioria das atividades da vida urbana do século XX. 11

10
O corpo dócil do homem moderno, eficaz, que se move pelo estritamente útil, precisa buscar em suas
profundezas forças contra sua imobilização política.
11
Entre março e junho de 2008, o artista australiano Hans Schabu montou uma instalação exclusivamente
com cadeiras (416 cadeiras) no Barbican Art Gallery, em Londres, a fim de provocar a reflexão sobre o
Talvez a imagem da esteira eletrônica das academias seja emblemática:
movemos nossos corpos no ritmo programado nas máquinas, sem sair do lugar.
Viajamos em alta velocidade para tempos e lugares incríveis sentados nas salas de
cinema ou nas poltronas privadas em frente da televisão, de corpo parado somos
movidos.
Toda essa movimentação não faz barulho? Todas essas máquinas não
produzem nenhum som?
A musicalidade própria do movimento moderno tem muito do barulho das
máquinas. Máquinas de velocidade, máquinas de deslocamentos, máquinas de
reprodução, máquinas de amplificação. Somando elementos continuamente -
automóveis, motores, bombas, amplificadores, eletrodomésticos - nossas metrópoles
atingem altos níveis do que é denominada “poluição sonora”.
A “poluição sonora” de nossas cidades torna-se elemento de intoxicação que
possibilita a transcendência nas raves. Não apenas a música eletrônica é
necessariamente produzida por máquinas12, mas também reproduz e imita o som de
máquinas - o que Ferreira (2006) nomeou como “estética maquínica”. Serras elétricas,
baterias eletrônicas, sirenes, campainhas, ruídos de motores são unidades musicais
que, então rearranjadas (num compasso tão exato que só a máquina pode montar e
reproduzir), deslocam o familiar para a abertura de possibilidades de movimentos
extraordinários. Zen Machine e Wrecked Machine são nomes de DJ’s de raves.
O ruído das máquinas – paisagem sonora das cidades do século XX e pontuação
da velocidade dos movimentos do trabalho urbano – é subvertido para ser dançado,
torna-se música da festa, tempo alegre (e livre) dos finais de semana. Embora
subvertido, o som da máquina ainda é interlocutor privilegiado da movimentação dos
corpos no século XX: tempo do trabalho e tempo de diversão na sociedade
tecnológica. Diálogo entre vibrações de corpos e máquinas.

incorporamento da natureza das diversas atividades de nosso modo de vida urbano e de nosso trânsito
pelo espaço público. A instalação, que dramaticamente arranjava todas as cadeiras a 90º do chão na
parede de um corredor curvo, desfilando conjuntos de fileiras e galerias de cadeiras de formatos
diferentes, foi descrita pelos curadores do centro cultural como uma forma de arqueologia.
12
O caderno especial do Jornal a Folha de São Paulo de 6 de abril de 1997, intitulado “Tecno, o futuro
acelerado” caracteriza a música eletrônica, que então era ouvida em raves, nos seguintes termos: “Música
física como o rock, o tecno se diferencia deste ao dispensar instrumentos tradicionais e utilizar
exclusivamente máquinas digitais para criar ‘soundscapes’ sintéticas. ‘Samplers’, computadores, baterias
eletrônicas e ‘gadgets’ digitais são os instrumentos utilizados por músicas que pretendem estar compondo
a trilha sonora do futuro”.
Instrumentos sonoros e agenciamento maquínico na performance, Eduardo
Nespoli (DAC/UFSCar)

Resumo
Por meio da recombinação experimental de materiais, artistas sonoros criam
instrumentos e manifestam em suas performances sonoridades inusitadas e ruidosas.
Estas experimentações apontam para a exploração e produção de novas relações com
a tecnologia sonora atual, cujos propósitos agenciam percepções acerca de um mundo
que se transforma em alta velocidade. Neste texto proponho uma reflexão sobre a
relação entre tecnologia e o processo experimental de criação de instrumentos
sonoros para a performance.

Palavras-chave: Performance. Tecnologia. Instrumentos sonoros. Música


experimental. Arte sonora . Performance. Technology. Sound Instruments.
Experimental music. Sound art.

Recombinações sonoras e plásticas


Durante os últimos anos tenho desenvolvidos trabalhos com instrumentos
musicais experimentais criados a partir da recombinação de diversos objetos e
materiais colocados em nova função. A experiência de criação destes instrumentos
passou por diversas fases. Inicialmente, estes instrumentos pertenciam ao mundo
acústico, e eram confeccionados com materiais como latões, barras de aço, cordas,
madeira, dentre outros. Mais recentemente, incorporei ao processo componentes
elétricos e eletrônicos, como captadores piezzo-elétrico e osciladores eletrônicos de
som, assim como softwares específicos que possibilitaram o trabalho de associação
entre sons e imagens de vídeo projetadas.
Em termos composicionais ocorre uma relação entre o processo de criação
plástico e o processo de criação sonoro, na medida em que a manipulação de materiais
e componentes se ajustam para uma mesma finalidade. Por isto, não são quaisquer
materiais, já que é a procura por materiais que produzam sons que conduz o processo.
Há também uma busca contínua em recombinar componentes e objetos em desuso
produzidos industrialmente, na busca de novas possibilidades de geração sonora.
Outro fator relevante na composição destes instrumentos experimentais
compreende a exploração de gestos que sejam significativos, e que, de alguma forma,
componham o processo performativo. Deste modo, proponho a idéia de explorar a
combinação de materiais e a construção de instrumentos musicais e interfaces
eletrônicas que explorem possibilidades gestuais que se relacionam com a poética
desenvolvida.
Incorporei ao processo criativo o uso de recursos eletrônicos, buscando novos
sons e atraído pela possibilidade de criar relações entre um tipo de tecnologia e outro.
Criei osciladores eletrônicos, porém deixando seus componentes à vista e espalhados,
buscando um resultado significativo de sua imagem ao revelar o que a caixa-preta
costuma encobrir neste tipo de instrumento.
A vontade de produzir relações entre o meio sonoro e visual se estendeu ao
uso de computadores e softwares específicos para mediar o processo de associação,
resultando trabalhos em que a projeção de vídeo é transformada a partir da
configuração das informações sonoras obtida dos instrumentos, ou ao contrário,
quando os sons dos instrumentos são transformados a partir da leitura de informações
extraídas dos vídeos.
Em 2008, a instalação Paisagens Sonoras e Visuais13 utilizou instrumentos
musicais de corda construídos em madeira e metal para produzir sons e acionar
combinações nas imagens de vídeo projetadas. As imagens de vídeo foram realizadas
pelas co-autoras do projeto na segunda metade da década de 1990 nas estações e
interiores dos trens que compunham a rede ferroviária do estado de São Paulo. Nesta
instalação, a composição metálica dos instrumentos musicais deu continuidade ao
universo poético das máquinas ferroviárias.
Na instalação Telekaia (2009), resultante da pesquisa de doutorado, cujo tema
foi a performance xamânica no ritual maraká dos Asuriní do Xingu, recombinei objetos
mecânicos para criar interfaces digitais de acionamento de sons e imagens de vídeo,
buscando extrair movimentos interativos sutis dos atuantes. O processo composicional
foi influenciado diretamente pela observação do jogo de tensões produzido pela
presença da televisão na aldeia Asuriní, visto que em alguns momentos este aparato
tecnológico “concorria” com as manifestações rituais. Abordei esta “concorrência”
explorando a idéia da presença destas duas máquinas de subjetivação. De um lado a
máquina ritual, agenciando a dimensão cosmológica tradicional dos Asuriní, e de
outro, a máquina televisiva, atraindo e “propondo” novas relações e sentidos para a
comunidade. A noção de alteridade que emergiu desta observação assumiu o foco
central da pesquisa, e foi expressa na instalação pela relação entre os corpos dos
atuantes, as interfaces e o universo xamânico do maraká, apresentado como uma
recordação onírica da experiência vivida em campo por meio de sons e imagens em
vídeo acionados e modificados pelo atuante.
Os procedimentos de recombinação de materiais e objetos me levaram a
desenvolver uma abordagem contextual do termo tecnologia, principalmente quando
aplicado ao instrumento musical. Busquei, neste sentido, explorar os significados que
emergem deste processo. Por exemplo, no espetáculo multimídia Mnemorfoses14
(2010/2011), a presença de um piano preparado15 é conjugada à de uma máquina de
escrever que é utilizada como instrumento musical. Estes dois instrumentos são
usados de modo a produzirem uma oposição de sentidos. O piano é visto no palco
como um piano mesmo, porém, o seu som encontra-se alterado pela preparação de
suas cordas, assemelhando-se mais a um instrumento percussivo de espectro sonoro
complexo, o que compromete o equilíbrio de sua rede maquínica. O som da máquina
de escrever, por outro lado, trabalhado musicalmente, resguarda a semântica da
linguagem escrita e do escritório, e não permite que o ouvinte se destaque deste
campo de significação. Ambos pertencem ao universo tecnológico das alavancas e
engrenagens. Porém, enquanto a máquina de escrever reafirma este território, o piano
cria um desvio que assinala um afastamento do maquinismo de origem.
Outros instrumentos musicais são construídos com o aproveitamento de
materiais cotidianos, que são postos em nova função. Em continuum (2011), utilizei
13
Trabalho realizado em parceria com Alexandra Pinto, Fabiana Victor e Maria Julia Martins.
14
Trabalho desenvolvido em parceria com outros integrantes do Projeto Aquarpa - Laboratório de
Construção de Instrumentos Musicais, UFSCar.
15
O piano preparado refere-se à técnica de fixação de pequenos objetos nas cordas do piano com o
objetivo de modificar o seu timbre. A técnica foi desenvolvida por John Cage nos anos de 1940.
uma grade de geladeira e após recortar sua estrutura interna (as pequenas barras
paralelas no interior da grade) foi possível extrair diversos tons e texturas deste objeto.
Utilizei um captador piezelétrico para amplificar os sons metálicos inaudíveis ao ouvido
humano, o que possibilitou a escuta de timbres antes “ocultos”. Outros instrumentos
foram construídos com materiais em novas funções, sendo que o aspecto visual destes
instrumentos busca conservar a origem dos materiais utilizados.
A opção de deixar, muitas vezes, os componentes utilizados na construção dos
instrumentos musicais e interfaces em suas formas originais refere-se justamente à
idéia de manter um campo de tensão liminar que se coloca entre a memória do que é
e a possibilidade do vir a ser destes objetos. Este procedimento, além de assinalar uma
relação íntima entre componentes materiais e possibilidades de geração sonora e
visual, possui como força motriz a idéia de recombinação tecnológica, na medida em
que o processo criativo busca produzir tensão nos significados e ações cristalizadas em
torno dos objetos e materiais residuais utilizados.
Os aspectos que descrevi acima surgem da investigação e influência de obras
de artistas contemporâneos, assim como da pesquisa acerca de teorias da arte,
especialmente no que se refere ao que denominei em minha tese de doutorado de
arte híbrida (Nespoli, 2009). O hibridismo de linguagens artísticas e a exploração de
aspectos tecnológicos, presente em muitas vertentes contemporâneas, aponta para
uma estimulação sinestésica dos sentidos. Em especial, a tendência de aproximação
entre o trabalho sonoro e o plástico, característica clara de uma vertente artística do
século XX, lida diretamente com a noção de objetos em nova função aplicada à criação
de recursos sonoro-musicais. Por outro lado, parece que estes trabalhos se desdobram
das problemáticas que emergem de nossa relação com a transformação tecnológica a
qual a sociedade contemporânea atravessa em alta velocidade.
A imensa e veloz transformação tecnológica nos ambientes humanos tem me
levado a refletir acerca de como a arte sonora tem se posicionado em relação ao
advento de novas tecnologias musicais no século XX. Minhas observações me levam a
refletir acerca da relação entre a performance e a experimentação tecnológica que se
desdobra da criação de novos instrumentos musicais acústicos e eletrônicos, tanto em
relação aos modos operacionais, ou seja, às suas inserções em processos de criação,
quanto em relação aos movimentos subjetivos e ideológicos que se desdobram. Meu
objetivo neste texto é melhor compreender tais questões.

Tecnologia e agenciamento maquínico


A reflexão sobre a relação entre performance e tecnologia não se refere
precisamente ao mundo pós-industrial, mas encontra-se no centro focal de questões
que envolvem o fazer artístico e os processos de criação, uma vez que o termo
tecnologia pode ser visto em relação não somente aos aparatos relacionados à
produção material como também em relação aos instrumentos intelectuais e
sensoriais que produzem sentidos e subjetividades. Assim, podemos pensar na
existência de tecnologias sociais que agenciam discursos, ideologias e práticas
coletivas.
Uma interação contínua entre a materialidade dos aparatos e a correlação de
esquemas intelectuais deve ser considerada ao refletirmos sobre o termo tecnologia,
tendo em vista que a materialização de certo tipo de tecnologia encontra-se
completamente imbricada com as formas de pensamento e de ação de um
determinado contexto histórico-social. As tecnologias eletrônicas e digitais atuais
constituem, neste sentido, um campo específico de relações.
A relação entre tecnologia e performance pode ser visualizada claramente na
música. A música propicia uma visualização clara desta relação na medida em que os
instrumentos musicais são aparatos tecnológicos que possuem estreita relação com o
modo de pensamento e conhecimento de uma determinada sociedade. Alfred Gell
(1988), ao descrever o instrumento musical em seu aspecto tecnológico, assinala que
este tipo de dispositivo possui propriedades especificas, já que, diferentemente de um
instrumento relacionado à subsistência material, como o machado, seu propósito é
desencadear reações psicológicas na rede social.
Podemos compreender os instrumentos musicais como máquinas sonoras
determinadas não somente por suas relações estruturais como também pelos sentidos
que projetamos sobre eles. Como toda máquina, o instrumento musical agencia um
modo de relação com o corpo, ativando ações e sentidos. A forma como nos
relacionamos com os instrumentos musicais corresponde não somente à sua dimensão
estrutural, como também à dimensão sensorial e cognitiva que constituímos com eles.
Assim, a idéia de máquina não se encontra aqui focada somente nas
propriedades estruturais do dispositivo técnico, mas na relação entre o dispositivo e os
modos de relação que se desdobram dos esquemas corporais, intelectuais e sensoriais
que efetivam resultados na rede social (Gell, 1988). Neste sentido, as máquinas
sonoras possuem componentes materiais, mas também componentes energéticos,
subjetivos e imaginários.
Esta abordagem acerca da máquina articula-se com o pensamento de Félix
Guattari. Segundo Guattari (1992) há máquinas que atuam como dispositivos
materiais, que interferem e modificam a dinâmica do homem com o meio, que
substituem seus braços e pernas, ou estendem o olhar e a escuta no espaço. Mas
também podemos entender como máquinas os componentes semióticos relacionados
à pesquisa, organização, diagramação e utilização dos componentes materiais.
Podemos falar também de máquinas desejantes que produzem uma subjetividade
nestes componentes, e que delineiam uma possível utilização. E por fim, o autor
assinala a existência de máquinas abstratas que são transversais “aos níveis
maquínicos materiais, cognitivos, afetivos, sociais” (Guattari, 1992, p. 46), e que lhes
oferecem consistência. A máquina abstrata é transversal a todos estes outros níveis
heterogêneos enumerados, extraindo deles relações e potências. Um conjunto como
este é denominado por Guattari de “agenciamento maquínico”:

“Se desconstruirmos um martelo, retirando-lhe seu cabo: é sempre


um martelo, mas em estado ‘mutilado’. A ‘cabeça’ do martelo - outra
metáfora zoomórfica - pode ser reduzida por fusão. Ela transporá
então um limiar de consistência formal onde perderá sua forma; esta
gestalt maquínica opera, aliás, tanto em um plano tecnológico,
quanto em um plano imaginário (quando se evoca, por exemplo, a
lembrança obsoleta da foice e do martelo). Conseqüentemente,
estamos apenas diante de uma massa metálica devolvida ao
alisamento, à desterritorialização, que precede sua entrada numa
forma maquínica. Para ultrapassar esse tipo de experiência, similar à
queda do pedaço de cera cartesiano, tentemos, inversamente,
associar o martelo e o braço, o prego e a bigorna. Eles mantêm entre
si relações de encadeamento sintagmáticas. Sua ‘dança coletiva’
poderá mesmo ressuscitar a defunta corporação dos ferreiros, a
sinistra época das antigas minas de ferro, os usos ancestrais das
rodas de ferro... (...) O objeto técnico não é nada fora do conjunto
técnico a que pertence.” (Guattari, 1992, p. 47-48).

A idéia de tecnologia encontra-se relacionada com o sujeito na medida em que


ele compartilha o agenciamento maquínico. Neste sentido, as máquinas mantêm certo
nível de alteridade com os sujeitos, já que ao mesmo tempo em que se acoplam e
estendem as potências corporais, comportam-se como componentes estranhos aos
corpos.
Por outro lado, as máquinas mantém entre si dinamismos de troca. Estes
dinamismos de intercâmbio apontam para o sentido de que as máquinas necessitam
sempre de elementos exteriores para existirem como tal, o que confere a elas uma
dinâmica sustentada na articulação das diferenças entre as partes de um todo que elas
compõem. Esta idéia de alteridade e conexão pode ser aplicada também na relação
com os humanos, na medida em que os dispositivos técnicos podem ser vistos numa
relação de complementaridade com o homem, que os constroem, os fazem funcionar
e ao mesmo os podem destruir.
Envolvida em todo este dinamismo, por detrás da máquina técnica encontra-se
a questão dos efeitos que elas são capazes de gerar e da perda da funcionalidade. A
possibilidade da máquina alterar o funcionamento ou parar de funcionar está sempre
perseguindo sua capacidade de produzir efeitos, seja em decorrência de uma
decomposição de nível mecânico, estrutural ou informacional; ou por uma falha de
nível operacional na relação entre o indivíduo e a máquina.
Percorrendo esta abordagem, podemos compreender dois aspectos
fundamentais. O primeiro deles refere-se à relação de continuidade entre os coletivos
humanos e as máquinas, o que fundamenta o próprio sentido do termo tecnologia. O
segundo ponto refere-se ao sentido de que ao modificarmos as partes de uma
máquina, ou se alterarmos o seu funcionamento, estamos modificando em maior ou
menor grau, a rede tecnológica que se relaciona com ela.

A máquina performática na arte


Refiro-me aqui ao contexto integral em que uma performance é construída e
operada artisticamente. Os níveis maquínicos de uma performance podem variar, e
dependem das relações entre os diversos recursos utilizados para promoverem os
objetivos de um evento. Por outro lado, vou investir no fato de que uma performance
se liga e se estende por toda a rede social além do evento performático propriamente
dito. Isto quer dizer que ao mesmo tempo em que ela reflete uma dimensão
epistemológica da relação do homem com o meio, se apresenta como um motor que
movimenta esta relação.
Entretanto, diferencio aqui a performance artística de outros tipos de
performances, devido ao tipo de matéria expressiva e técnica que ela utiliza. A
performance artística se diferencia de outros tipos de performances por fazer largo
uso de materiais e suportes como a imagem, o som, as formas plásticas e a
corporeidade para alcançar os efeitos e conexões que ela busca produzir. A
performance artística possui um conjunto de instrumentos técnicos voltados para a
produção de efeitos sensoriais e cognitivos, revelando formas sutis de relacionamento
entre o homem e seu contexto social.
A máquina performática da arte possui uma estreita relação com as
informações sensoriais que trocamos com o meio. Suas formas de ação incluem a
indução da imaginação e o limiar entre as ações de controle e descontrole corporal e
técnico. Ela perpassa o espaço social por meio de vibrações, isto é, oscilações
projetadas pelos movimentos gerados pelos gestos e ações corporais.
Este jogo de relações entre ações e meio é desencadeado pela máquina
performática através da manipulação de componentes sensoriais que criam
movimentos na imaginação e no próprio fluxo de conexões entre os níveis
heterogêneos que compõem os agenciamentos maquínicos. A performance em si,
pode ser vista como um agenciamento maquínico que se estende e se conecta com
outros agenciamentos com os quais ela estabelece contato, permitindo a passagem de
substâncias e informações entre estes contextos.
A performance artística implica em estabelecer a transdução16 entre níveis, ou
seja, a conversão qualitativa entre diferentes suportes e meios de condução. Neste

16
O termo transdução é aplicado aqui no sentido de conversão e passagem entre meios. O termo está
associado na física à transformação de um tipo de energia em outro, ao se utilizar um dispositivo que
possibilita a conversão. A transdução possibilita, deste modo, a passagem de um meio a outro, ao mesmo
tempo que mantém as características ou intenções formais de um sinal ou signo.

Bibliografia

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sentido, a máquina performática possui como característica a capacidade de transduzir
informações sensoriais por diferentes meios, trabalhando como uma agência de
mediação na rede social. Neste sentido, a performance artística se coloca como uma
máquina sensorial e perceptiva, na medida em que faz os signos sociais atravessarem
do espaço imaginário para o espaço coletivo, e vice-versa.
Vejamos isto por meio do instrumento musical mais uma vez. Na ação de
acionamento sonoro, o músico faz o gesto sonoro transpassar do imaginário à escuta
coletiva por meio de uma série de processos de transdução. No instrumento musical
acústico este processo ocorre entre as instâncias psíquicas e motoras do corpo, já que
existe uma correlação direta entre o gesto sonoro e a estrutura do instrumento
(Iazzetta, 1997.b). Neste sentido, a modificação da estrutura do instrumento acústico
acarreta em mudanças na relação do músico com o instrumento, redimensionando os
aspectos gestuais. Entretanto, se pensarmos este processo tomando como exemplo a
ação do músico em um instrumento eletrônico, podemos visualizar uma outra
dimensão desta relação.

IAZZETTA, Fernando. Revendo o Papel do Instrumento na Música Eletroacústica.


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Vamos tomar como exemplo a performance Music for solo performer,
realizada em 1965 por Alvim Lucier. O trabalho explora a utilização de um amplificador
de ondas cerebrais acoplado a alto-falantes para produzir uma performance musical a
partir da captura de ondas cerebrais por um conjunto de eletrodos. Em sua
performance, Alvim Lucier fixou diversos auto-falantes em instrumentos de percussão,
e a partir das variações das ondas cerebrais capturadas e amplificadas pelos eletrodos
conectados em sua cabeça, e da conversão das mesmas em som pelos alto-falantes, o
performer “percute” os instrumentos musicais acústicos. O sistema amplifica as
variações elétricas, projetando-as nos instrumentos de percussão por meio dos alto-
falantes, que por sua vez convertem os impulsos elétricos em energia mecânica que
produz vibrações nas membranas. Music for solo performer explora o uso de
tecnologia construída para uso médico com uma finalidade artística, ao mesmo tempo
em que revela a sutil relação entre corpo e tecnologia, já que aponta para o processo
de transdução entre níveis energéticos corporais, elétricos e acústicos. A continuidade
entre corpo e meio é apontada neste experimento artístico por meio do processo de
mediação tecnológica em que variações relacionadas à atividade cerebral são
mensuradas eletricamente na superfície da cabeça e convertidas em sons audíveis no
ambiente (Ziegler; Gross; Charno, 2005).
Este tipo de experimentação tecnológica na performance busca produzir novas
compreensões acerca da relação entre corpo e tecnologia eletrônica. Ao utilizar
dispositivos eletrônicos como o citado acima, o performer explora e modifica as
funções possíveis de uma máquina técnica, e demonstra com esta ação os campos
sensíveis que podem se desdobrar de uma nova relação entre o homem e a máquina.
O objeto técnico é posto em nova função, e isto o afasta de sua ligação com o
agenciamento maquínico que o produziu, assim como afirma uma nova possibilidade
de uso e uma nova rede de relações.

O anúncio ruidoso da morte tecnológica do objeto


Em sua performance Kleenex, o artista alemão Wolf Vostell despedaça cem
lâmpadas, produzindo um ruído volumoso. Segundo Vostell, quando as lâmpadas são
despedaçadas elas não produzem luz, mas som. Porém, o som do despedaçamento
dura pouco, e já no instante posterior se pode visualizar os fragmentos. Este som
encontra-se, portanto, entre a funcionalidade e a morte funcional da lâmpada, que
perde suas características ao ser despedaçada. Os fragmentos não articulam mais a
idéia de geração de luz associada ao objeto industrial, mas de resíduo. Segundo
Volstell, “this is typical of a de-collage music and a de-collage event. When an object
change its form, becoming something else and doing something during the
transformation” (Vostell, 1981).
Wolf Vostell realizou diversos trabalhos cujas temáticas se relacionam com o
som produzido no instante em que ocorre a ruptura formal do objeto. Estas
experiências performáticas de Wolf Vostell nos levam a perceber que o
despedaçamento do objeto e a manifestação sonoro-ruidosa da ruptura de sua forma
produzem sensações de descontinuidade e interrupção nos esquemas que definem as
relações deste objeto com o agenciamento maquínico que o produziu.
Acredito ocorrer algo semelhante com os processos de recombinação de
materiais para a criação de instrumentos na música eletrônica experimental. Refiro-me
às práticas atuais de intervenção em equipamentos sonoros e visuais realizadas por
tendências artísticas como o circuit bending e o hardware Hacking, assim como a
luteria eletrônica experimental. Estas práticas se embasam na idéia de dissociar os
componentes eletrônicos e os circuitos de suas intenções de origem para gerar ruídos
e formas sonoras bem diferentes daquelas geradas pelo uso convencional de um
circuito eletrônico sonoro.
Por exemplo, o circuito integrado CD40106 possibilita a geração de freqüências
sonoras que podem ser ouvidas num alto-falante. O circuito funciona normalmente
com uma bateria de 9 volts, gerando uma oscilação de freqüência contínua, ou seja,
uma nota. Entretanto, se diminuirmos a voltagem aplicada ao circuito integrado, ele
passa a gerar texturas e ruídos, muitas vezes difíceis de serem controlados. É possível
expor os fios e os terminais elétricos de modo que eles fiquem sensíveis ao toque dos
dedos ou a aproximação do corpo.
Esta intervenção ruidosa e gestual realizada pela experimentação musical nos
sistemas eletrônicos evoca a transformação da estrutura determinística da máquina
industrial e de sua ordenação esquemática. A combinação de componentes eletrônicos
de forma não convencional produz uma desterritorialização maquínica dos diagramas
e técnicas associadas à origem industrial destes componentes. Com esta ação, o
performer sonoro aponta para a noção de máquina enquanto potencialidade
subjetiva, e ao escapar da rigidez dos manuais e instruções técnicas indicados, ele
também intervém nas compreensões puristas que circulam as noções de música, arte
e tecnologia.
O foco deste processo criativo encontra-se na ação de intervenção no
maquinismo projetado pela indústria nos objetos que ela mesma produz. Se
compreendermos esta intervenção como uma interrupção da lógica de funcionamento
do circuito, é possível aproximar este procedimento à idéia de de-collage de Wolf
Vostell, já que o ruído que se desdobra das intervenções e recombinações realizadas
por artistas em circuitos e componentes eletrônicos manifesta uma espécie de
prolongamento temporal do instante de interrupção, que acontece continuamente. Ou
seja, ocorre algo semelhante ao momento de despedaçamento do objeto, porém, a
intervenção em meio eletrônico possibilita uma espécie de “congelamento sonoro” da
morte tecnológica do objeto ou componente industrial, extraindo deste momento uma
micro-percepção de sua metamorfose maquínica.

Sociedade de controle, interrupção e transformação


Deleuze analisa que a pirataria e o vírus são os perigos ativos das máquinas
típicas da sociedade de controle, funcionando de forma semelhante à antiga
sabotagem nas máquinas energéticas das sociedades disciplinares. Enquanto a
sabotagem é um artifício que emperra as engrenagens da máquina mecânica, os vírus
causam interferência na dinâmica dos fluxos energéticos e informacionais de máquinas
eletrônicas e digitais, deformando ou interrompendo a troca de dados ao
comprometer o maquinismo do sistema (Deleuze , 1992). Estas ações, além de
produzirem ruído na informação e interrupção no sistema, assinalam formas de
resistência à sociedade de controle.
Diante das situações de controle e anestesia produzida pelos dispositivos
técnicos atuais, o performer introduz elementos que articulam intervenções
maquínicas num sistema que se mostra cada vez mais fechado e homogêneo. Esta
interrupção performática do sistema desorganiza as forças hegemônicas e
capitalísticas ao introduzirem um foco autopoiético na máquina (Guattari, 1992), uma
decomposição e ampliação de seus usos. No limite, torna-se necessário matar a
máquina para escapar ao controle e efetuar a passagem entre territórios maquínicos.
Tal ação amplia o sentido do termo tecnologia na medida em que problematiza
as noções reducionistas depositadas no uso dos dispositivos técnicos atuais, e é neste
sentido que podemos compreender o experimentalismo baseado na singularização das
máquinas sonoras na performance. Ele introduz uma espécie de vírus no sistema de
controle, desencadeando um processo de ruptura na lógica de funcionamento da rede
social.
Sessão Napedra 2: Festa e religiosidade popular

Coordenação: Sérgio Braga (UFAM)

Adriana de Oliveira Silva (PPGAS/USP)


Celso Menezes (PPG-SOC/UEL)
Denise Pimenta (PPGAS/USP)
Danças e andanças de negros na Amazônia: por onde anda o filho de
Catirina?, Sérgio Ivan Gil Braga (UFAM)

Resumo: A situação histórica e contemporânea do negro na Amazônia e em


especial no Amazonas merece, no mínimo, discussão. Há tempos que se houve falar da
insignificante ou nenhuma importância da escravidão negra no Estado, muito embora
registros históricos provem o contrário. Quando se fala em uma cultura amazonense,
as interpretações tendem mais para a importância de portugueses e indígenas em
detrimento dos negros. Com o propósito de tornar visíveis traços proto-históricos de
uma cultura negra na Amazônia, priorizo para descrição e análise certos eventos
religiosos e populares realizados no Estado do Amazonas, cotejados com literatura
histórica e antropológica. Tomo como premissa para discussão o enredo dos bois-
bumbás da Amazônia, a partir dos personagens negros Catirina e Pai Francisco com a
finalidade de visualizar nesta e em outras manifestações culturais não menos
importantes, estruturas de permanência histórica que no meu entender correspondem
a uma estética negra, sobretudo musical. Os eventos são concebidos na perspectiva de
Marshall Sahlins (1990) enquanto acontecimento ou conjuntos de acontecimentos,
que põem em movimento estruturas históricas de longa duração. Definimos como
hipótese de trabalho o fato de que elementos musicais de matriz africana se
incorporaram a elementos indígenas de língua tupi e de crença do catolicismo ibérico,
constituindo assim estruturas históricas de longa duração encontradas em eventos da
Amazônia. Por outro lado, utilizamos a contribuição do modernista e folclorista Mário
de Andrade, para dissolver as teses raciológicas desses processos sócio-culturais,
visualizando as contradições e por que não dizer virtudes da cultura brasileira. Para
isso, reconhecemos na figura de Macunaíma que se tornou o personagem central de
sua obra, sujeito negro nascido de mãe indígena e pai desconhecido, um herói sem
caráter, não porque o brasileiro deveria ser fadado à falta de caráter, mas sim herói
cultural de muitas caras e não exclusivamente de uma cara apenas. Filho da “boca da
noite” e do “fundo do mato-virgem”, de nascimento virgem fruto da providência
divina, mas também nascimento natural. Neste trabalho, consideramos Macunaíma
como filho da grávida Catirina e Pai Francisco que fazem parte da história dos bois-
bumbás da Amazônia.
Corpo santo: a bandeira do Divino, Adriana de Oliveira Silva (PPGAS/USP)

Devota carrega bandeira na procissão da Festa do Divino


em São Luís do Paraitinga-SP. Foto: Manoel Marques.

Resumo: Nesta comunicação, comento alguns aspectos da bandeira do Divino,


o principal objeto de devoção ao Divino Espírito Santo. Farei isso com base na minha
pesquisa de mestrado em São Luís do Paraitinga e Lagoinha, duas cidades do Vale do
Paraíba, em São Paulo. Meu objetivo é mostrar − especialmente por meio da relação
bastante estreita que o devoto do Divino mantém com a bandeira − que a devoção ao
Divino se dá especialmente ao nível do corpo e não apenas ao nível do espírito, que a
bandeira é justamente este objeto de devoção, ou melhor, este corpo santo que é
posto em contato direto com o corpo dos devotos durante as performances
devocionais ao Divino. Para isso, pretendo ler alguns trechos etnográficos da minha
pesquisa com base num texto de uma antropóloga norte-americana, Constance
Classen, que em seus trabalhos, tem se dedicado a destrinchar a relação entre o corpo
e a cultura. O texto que de vou me servir chama-se “Doing sensory anthropology”, um
resumo de uma espécie de guia, The Varieties of Sensory Experience: A Sourcebook in
the Anthropology of the Senses, bem ao estilo de Marcel Mauss, que diz tudo, ou
quase tudo, a que o antropólogo em campo deve atentar. No caso de Classen, trata-se
especialmente de observar os sentidos corporais (visão, audição, tato, olfato e paladar)
para apreender os sentidos culturais de uma determinada uma cultura.
Palavras-chave: folia do Divino; antropologia da experiência; antropologia
sensorial.

Pequenos diamantes engastados no olhar da devota na procissão do Divino... Que


experiência seu choro expressa? Do que ela se lembrou? Do que ela se esqueceu? O que passou a
compreender mais profundamente? Foto: Manoel Marques.

APRESENTAÇÃO

O campo
Durante minha pesquisa de mestrado,17 a confissão de um dos foliões diante do
choro convulso dos companheiros de folia ao final da festa do Divino me impulsionou a
seguir com eles em seu giro com a bandeira de casa em casa: “É... só nóis sabe o que é
carregar a bandeira por esse mundão de Deus”.
Contudo, nem todos compreendem muito bem a profundidade dessa
performance devocional e classifica a andança da folia com a bandeira como mero
17
A folia do Divino: experiência e devoção em São Luís do Paraitinga e Lagoinha, dissertação de mestrado, John
Cowart Dawsey (orientador), PPGAS-USP, 2009.
folclore. Num dos dias da novena, acompanhados pelo bispo de Taubaté, os devotos
de São Luís do Paraitinga, em procissão, levavam suas bandeiras do Divino da Igreja
matriz para o Império. E foi ali mesmo, no Império, a morada do Divino fora da Igreja
matriz, que o bispo de Taubaté explicou aos devotos que aquele ritual era apenas uma
finalização, pois o louvor ao Espírito Santo, já sido feito na igreja matriz. Durante a
missa, inclusive, o bispo já havia advertido os fiéis de que: “É fácil levar a bandeira de
lá pra cá; o difícil é ter a verdadeira fé”. Isso me deixou intrigada: o que seria a
verdadeira fé?
Por meio da pesquisa de campo, norteada pelos pressupostos da antropologia
da experiência e da performance, pude apreender que a verdade da experiência de
devoção ao Divino é a sua forma, isto é, seu modo específico de pôr significados em
circulação, sua performance, do qual a andança com a bandeira é parte fundamental,
essencial e não mera finalização ou folclore.
E a andança da bandeira é ainda maior do que o percurso entre a igreja matriz
e o Império nos dias da festa: uma boa festa do Divino, como manda a tradição, deve
ser precedida e preparada pelo giro da folia, que sai esmolando com a bandeira do
Divino de casa em casa. E talvez o bispo tenha razão em menosprezar essa andança
com a bandeira já que, de certo modo, o giro da folia rivaliza com a igreja, pois traz a
bandeira com a pombinha, a quem o povo atribui o poder de distribuir bênçãos. Assim,
nem sempre é preciso ir à igreja para demonstrar fé, pedir e obter uma graça.
Talvez a folia e sua andança com a bandeira sejam exatamente a parte mais
significativa da celebração ao Divino Espírito Santo. A folia é significativa no tempo:
atua antes, depois e durante a festa do Divino, pois transita o ano inteiro e não apenas
nos nove dias de festa; a folia é significativa no espaço: ao percorrer a área urbana e
também a zona rural, seu âmbito de atuação é muito mais inclusivo do que a
celebração da festa no centro da cidade; a folia é significativa em sua natureza:
evidencia a caduquice da oposição entre sagrado e profano, contagiando o cotidiano
dos devotos com a presença da divindade durante o ano inteiro nos animados pousos-
potlatch, especialmente nos bairros rurais e nas periferias urbanas do Vale do Paraíba.

Alferes (porta-bandeira) da Folia do Divino de Lagoinha em giro pela zona rural de São Luís do
Paraitinga. – Tem folia que esmola de carro, mas o certo é a cavalo. Assim, de longe, dá pra ver a
bandeira chegando. O Divino não se intimida com as distâncias, com as dificuldades do caminho. Se tem
que ir até a casa mais distante, no lugar mais pobrezinho, não importa, tem que chegar lá. E, a cavalo,
chega mesmo, diz o mestre da Folia. Foto: Adriana de Oliveira Silva.
Corpo e devoção
Que a devoção ao Divino se dê principalmente ao nível do corpo, dos sentidos
do corpo e não apenas ao nível do espírito, do intelecto, da ideação fica evidente pela
forma como o Santo é celebrado. Nas procissões, nas andanças com a bandeira, nos
pousos do Divino, o corpo emerge como instrumento que deve ser moldado por meio
de uma profusão de estímulos visuais, auditivos, táteis, olfativos e gustativos (talvez
outros) para se entrar em contato direto com o Espírito Santo. Em vez de ser proibido,
tolhido ou vedado, o corpo e seus sentidos são excitados, estimulados. Uma das
particularidades da devoção popular ao Divino é que, para elevar a alma, não é preciso
abater ou derrubar o corpo. Corpo e alma, se que é os devotos do Divino fazem essa
distinção, são solidários.

A bandeira do Divino

Devota recebe a bandeira das mãos do mestre da Folia do Divino e conduz os foliões de chapéu
no peito e instrumentos nas mãos para dentro de sua casa. Ali, junto com a família, ouve a cantoria da
Folia. Depois, a dona da casa passeia com a bandeira por todos os cômodos da casa pedindo bênçãos.
Foto: Adriana de Oliveira Silva.

Chega a folia e o dono da casa se põe a chorar. Agarra a bandeira, reza alto,
atropelando a cantoria. Noutra morada, uma senhora de olhos cobertos por manchas
pretas de tombo e cirurgia espera a morte. Depois da cantoria, diz que agora sabe que
vai se curar. Uns choram quando a bandeira chega e mais ainda quando ela vai
embora. Outros insistem para que os foliões fiquem mais um pouco, mais uma prenda,
mais um dedo de prosa, mais um cafezinho, mais um pedaço de mandioca cozida...
Enquanto a folia canta, o dono da casa segura a bandeira, reza baixinho, olha a
foto da criança no tico-tico, do casal gay, da casa branca de porta e janela azul. Vai
remexendo os fios de fita da cortina de bilhetes com pedidos e agradecimentos bem
dobradinhos para serem lidos só pelo Divino. Foto do marido que parou de beber; da
mulher que espera se curar de uma doença; da criança com pneumonia. Foto do boi
no pasto que não quer engordar; da vaca que não dá leite. Foto do homem
desempregado da lavoura que arrumou um emprego na indústria de celulose. Foto da
família reunida: que o Divino mantenha o emprego e a alegria. O Divino também é um
pouco Santo Antônio: muito devoto pede um noivo ou noiva para se casar. O devoto
também observa as chupetas, os cigarros... os vícios pra se largar. E ali vê também
gente nunca vista antes e fica sabendo um pouco dela. Também vê uma foto ou um
bilhete de alguém conhecido e revê gente que há muito não se via.
Enquanto a folia canta, as pessoas da casa vão se avizinhando da bandeira,
manipulando-a, beijando-a, passando seu tecido pelo corpo. Terminada a cantoria,
chega a hora de dona Marina benzer as pessoas e a casa com a bandeira. Toca a
bandeira com os dedos, agora consagrados, toca-os na testa, em um ombro, no outro,
no peito. Numa mão, apanha um pedaço do tecido vermelho, reza com os lábios, os
olhos e a outra mão voltados pra cima.
– Vem cá menino!
Puxa um pedaço do tecido da bandeira, transforma-o num véu sobre a cabeça
do menino, que se balança pra lá e pra cá, desejoso de voltar ao pega-pega com os
primos e amigos interrompido pela benzeção da avó. Dona Marina reza longo, olho
fechado, sem pressa.
– Vem aqui Zezinho, vem também Juninho!

Devota devolve a bandeira para os foliões. A andança da Folia cria uma rede de comunicação,
ligando lugares, parentes e amigos. Também inclui gente que não pode sair de casa por causa das juntas
doídas, da vista turva, da cabeça pesada, por não enxergar mais, por não aguentar mais, por não ser
mais convidada, por não ter mais ninguém, por não poder deixar o roçado, a criação, a criançada. Foto:
Adriana de Oliveira Silva.

Numa das casas do giro no bairro de dona Marina, a bandeira havia sido
passada com vagar e carinho em cada parte do corpo esquálido de um menino deitado
no sofá e, depois, na cadeira de rodas ao seu lado. A cena é emocionante. A gente fica
torcendo para que o menino se levante e ande. Mas não é disso que se trata. A
bandeira, esse manto que cobre a cabeça e o corpo de bênçãos, protege o corpo das
agruras do mundo, não importa se o corpo do menino permaneça visualmente do
mesmo jeito.
Dona Marina chora principalmente em seu quarto, rezando baixinho, de olhos
fechados, diante da foto do marido finado. Depois, lembra-se de mais um lugar na casa
para visitar com a bandeira, de mais um altar num canto, de mais uma pessoa que
faltou benzer com o tecido da bandeira. Depois da casa e da gentarada abençoada, é
preciso sair ao terreiro, levar a bandeira para benzer a horta, os pés de fruta e os pés
de flor, a galinhada, a porcada, a boiada, a cachorrada e tudo o que houver.
– Eu já estou terminando. Já, já, eu devolvo a bandeira para os senhores folião.
Eu sei que vocês precisam ir embora agora, diz numa voz trêmula.
– As pessoas recebem a gente de coração, diz o folião. Do mesmo jeito que as
pessoas da casa ficam tristes, nóis também fica. Porque quando a gente chega de
tarde, você viu aqui ontem, é uma alegria pra todo mundo: “O Santo chegou, o Santo
chegou!”. Depois chega a hora de ir embora, ficam tudo triste as pessoas da casa. A
gente fica triste porque pega uma amizade tão grande com a família, e depois tem que
ir embora. Mas aí, chega noutra morada e começa tudo de novo.
Por meio desse trecho etnográfico, vemos que a relação do corpo do devoto
com o corpo santo que é a bandeira do Divino é bastante intensa. Principal objeto de
devoção do Divino, a bandeira não é apenas contemplada de longe. Em vez de
protegida por uma moldura envidraçada, é de pronto oferecida ao dono da casa. Nas
mãos deste, a bandeira transita esvoaçando bênçãos pela morada e pelos corpos dos
devotos.

Folia do Divino de Lagoinha cantando em casa do devoto. O Divino desceu do céu /Num raiar de
luz/Vai levar sua promessa/Pra Deus Jesus. Por que não é simples entender o que cantam os foliões do
Divino? – Por que é uma cantoria estilo latim, vem lá do latim, diz o mestre. Quando perguntado por que
sua Folia não canta de um modo mais “declarado” para as pessoas entenderem o que eles cantam, outro
mestre replicou: – Todo mundo sabe o que a Folia canta mesmo que não entenda as palavras. Ouve
desde pequeno, sabe que a Folia está ali para abençoar, pedir prendas e agradecer. Todo mundo sabe!
Foto: Adriana de Oliveira Silva.
Primeiro, trata-se de uma imersão sonora: a folia do Divino faz sua cantoria.
Depois, ou simultaneamente, ocorre a manipulação da bandeira, quando os devotos
tocam seu tecido vermelho, vêem lá a pombinha branca, a própria corporificação do
Espírito Santo. Vêem e lêem as fotos, os bilhetes e outros objetos votivos presos a ela.
Desse contato corporal com a bandeira emerge a experiência de pertencer a um todo
maior, de compartilhar uma experiência de devoção.
No seu guia sobre antropologia dos sentidos, Classen ressalta que antropólogo
deve atentar que as diferentes culturas tendem a reconhecer diferentes ordens
sensoriais. Os javaneses, como nós, também reconhecem cinco sentidos, mas eles não
coincidem exatamente com os nossos. Para os javaneses, os cinco sentidos são: a
visão, a audição, o olfato, o tato e a fala. Quase igual a nós, a diferença é que eles
reconhecem a fala como um dos cinco sentidos em vez do paladar.
Classen também ressalta que os sentidos interagem entre si: muitas vezes, há
entre eles um jogo de ênfase e repressão. Meu campo mostra bem essa interação:
quando a folia faz a cantoria, a audição é o sentido enfatizado. A observação de um
devoto e de outras falas semelhantes, contudo, fizeram-me atentar para o caráter tátil
da cantoria da folia. Um dos devotos me disse: “Aquilo ali (a cantoria da folia) é feito
pra chorar. Não tem outra função. Aquela caixa batendo forte, bate aqui direto na
caixa do pulmão e a gente chora. Aquela música atonal, fanhosa, nasalada, que não se
entende nada, pra que serve? Pra chorar, é evidente”.
Outro exemplo: quando um devoto reza com a bandeira em punho, geralmente
fecha os olhos, ou olha para o “nada”. Neste momento, a visão é o sentido menos
intenso, quase reprimido, embora seja amplamente excitado em quase todos os
outros momentos rituais.
Para ressaltar a caráter marcadamente sensorial dessa experiência devocional,
descrevo agora o principal lugar devoção ao Divino, o Império, onde os devotos rezam
e guardam as suas bandeiras.
O cetim vermelho e o seu duplo, o cetim branco, cobrem a sala com
desperdício. Uma abundância de maciez escorre pelas paredes e pelo teto. Tenda de
sultão? Protuberâncias corporais. Peitos, bundas? O vermelho é o amor de Deus e o
sangue de Cristo. O branco, a paz, a pureza, a pombinha do Divino. A luminosidade
interna, também arredondada e exagerada, inspira o toque. Os lustres, peitos
redondos com bicos salientes, são feitos com fundos de garrafa pet amarrados uns aos
outros e iluminados por dentro com lâmpadas vermelhas. Os antúrios de plástico,
viçosos e pontudos, reluzem vermelhos. Os anjos, cada um segurando um dos sete
dons do Divino: sabedoria, entendimento, ciência, conselho, fortaleza, piedade e
temor de Deus. As bandeiras enfileiradas nos cantos das paredes, carregadas de fotos
e bilhetes para a divindade. Na parte de fora, na fachada, uma placa com um IMPÉRIO
escrito em vermelho e circundado por pequenas lâmpadas coloridas, convida a entrar
naquilo que por instantes parece um indiscreto bordel ao lado da igreja matriz. Faz frio
lá fora, mas o interior do Império é quente. Incita a reza, num torpor místico-carnal
diante da imagem da pombinha, dos cachos de uvas vermelhas, que ali dentro
representam o sangue de Cristo, o amor de Deus, e fora, decoram as barracas de
batida com suas frutas frescas e de plástico, umas e outras carnudas e viçosas,
misturadas entre garrafas de pinga e outros spirits, esperando os devotos para
matarem a sede quando a missa da novena do Divino terminar.
Vimos aí uma profusão de sensações para incitar a devoção. Formas, cores,
texturas. O som é de água corrente da fonte que ilumina o altar do Império, das rezas,
das pequenas conversas sobre a família, dos flashes das câmeras de fotografar. O
cheiro da fumaça das velas queimando.

Bandeireira da Companhia de Moçambique de São Benedito deixando o Império, depois de ter


rogado ao Divino por dias melhores. Foto: Manoel Marques.

Em seu texto, Classen também enfatiza que, para perceber a ordem sensorial
de outra cultura, o antropólogo precisa superar a sua própria ordem sensorial. Para
isso, ela diz, são necessários três passos: 1. O primeiro e mais importante é que o
antropólogo descubra e esteja consciente de sua própria ordem sensorial. É preciso
que ele se pergunte, por exemplo, qual(is) sentido(s) eu privilegio? 2. O segundo passo
é desenvolver a capacidade de ser sensível a uma multiplicidade de expressões
sensoriais, ao mesmo tempo. 3. O terceiro passo é desenvolver a capacidade de ser bi-
sensorial, de ser uma espécie de bilíngue na linguagem dos sentidos, isto é, saber
reconhecer e distinguir a sua própria ordem sensorial e a da cultura a qual pesquisa.
Eu, por exemplo, sou um tanto “cega”, por isso, sempre que posso, levo a câmera
fotográfica para campo. Nesta pesquisa sobre a devoção do Divino, a câmera foi
essencial, pois o apelo à visão, entre os devotos, como vocês podem ver, é extremo.
Um exemplo que Classen nos fornece para as diferentes ordens sensoriais é a
percepção do sangue. O sangue tem uma variedade de propriedades sensoriais: ele é
quente (tato), viscoso (tato), vermelho (visão), salgado (paladar) e tem um cheiro
característico (olfato). O que ficou faltando? A audição, mas deve haver alguma cultura
por aí que reconhece o sangue exatamente pelo seu som. Pois a ênfase num ou noutro
aspecto sensorial depende da ordem sensorial da cultura em questão. Um americano,
Classen diz, pensa no sangue em termos de sua aparência visual: o sangue é vermelho.
Já um indiano do Sul, praticante de um determinado ritual de cura, pensa o sangue em
termos táteis: o sangue pulsa dentro do corpo.

Corpos santos: Sudário de Cristo e a bandeira do Divino


O sudário de Cristo é a prova de sua morte e, abandonado no momento de sua
ressurreição, constitui a prova de sua humanidade e de sua divindade. E é justamente
esse resíduo do corpo santo que se torna objeto de devoção para o qual os devotos se
precipitam em peregrinação, num gesto de presentificação da divindade. Talvez a
bandeira do Divino possa ser compreendida como uma espécie de sudário que, no
entanto, é promessa de vida (e vida em abundância e alegria de festejar), que segue
em peregrinação para render homenagem, deixando-se manchar pelas lágrimas e pelo
suor dos corpos dos devotos. Pode-se dizer então que o sudário de Cristo e a bandeira
do Divino exibem uma natureza simétrica e, ao mesmo tempo, inversa.
Mais do que seguir o giro dos devotos em direção à divindade, perfazer o giro
da folia com a bandeira implica seguir a peregrinação do corpo santo, do Espírito
Santo, cuja experiência imanente é andar pelo mundo, rendendo homenagem para
então se fazer homenageado.
A visita da bandeira à casa devota configura um estado de comunhão bem
diferente da comunhão numa igreja, ou mesmo diante do santo sudário, por exemplo.
No caso da folia, é o sagrado que rende homenagem e a uma família de cada vez. Ao
entrar numa casa no caminho, a bandeira, o corpo santo, reconhece a especificidade
de seus moradores. O dono da casa e sua esposa são chamados pelo nome. A família
escolhe o que vai oferecer ao Divino, dando um pouco de si mesma em
agradecimento, e assim tem a oportunidade de inscrever um pouco da sua história
numa história comum.
O giro da bandeira não apenas é o glacê no bolo da devoção.18 O giro é o glacê
e o bolo. A experiência dos devotos mostra que o fato de o significado da devoção ao
Divino estar profundamente imerso no sensível não deveria ser visto com

18 Turner, 2008, p. 189. A metáfora de “glacê no bolo da devoção” é utilizada por Turner para
argumentar que as peregrinações não têm nada de superficial, ao contrário, são uma forma de reação à
modernização iconoclasta e racionalizante e às tendências despersonalizadas e anômicas da organização
burocrática moderna. Como exemplo de modernização iconoclasta e racionalizante, Turner cita Calvino,
para quem tudo o que é necessário para alcançar a salvação é viver uma vida sóbria, diligente e pura,
sendo as peregrinações um incompreensível desperdício de tempo e de energia. De certo modo, Calvino
tinha razão, a peregrinação é puro desperdício. É puro potlatch. E, no entanto, ou por isso mesmo, de uma
eficácia devocional impressionante.
desconfiança. A aposta no caráter necessário do giro da folia para devoção ao Divino
Espírito Santo é promovida pela leitura de Geertz:19 “A passagem daquilo que é feito
para aquilo que é significado, assim como daquilo que é significado para aquilo que é
feito, envolve, sobretudo, uma capacidade de transcender nossa hipótese
profundamente fragmentada de que os signos são uma coisa e as experiências são
outra”.
Prosseguindo sua argumentação, Geertz20 sublinha que as ideias não são uma
substância mental não-observável. Elas são significados veiculados, sendo os símbolos
seus veículos, sendo um símbolo tudo o que denota, descreve, representa,
exemplifica, rotula, indica, evoca, retrata, exprime, ou seja, tudo o que, de um modo
ou outro, significa.
Com base na experiência dos devotos, torna-se despropositado considerar o
giro da folia como mera andança de lá para cá com bandeira, performatizada por
cristãos supostamente incultos. Ao contrário, o giro da folia – mimético de si mesmo,
da ação dos devotos e da ação do Espírito Santo – é o que existe. Sua forma é a própria
devoção ao Espírito Santo.
Qual seria então o lugar da andança da folia com a bandeira? Polaridades como
erudito e popular, sagrado e profano continuam sendo acionadas para interpretar
manifestações religiosas como a folia do Divino como folclore, algo simpático e
ingênuo, uma relíquia a ser preservada na e da modernidade. De que tipo de relíquia a
folia do Divino pode ser considerada?
De acordo com sua etimologia,21 relíquia [lat. reliquìae] refere-se à migalha, ao
resto que fica entre os dentes depois de comer. Entre suas acepções estão ruínas,
destroços, resíduos e excrementos. E, ainda, o que resta do corpo de um santo, os
restos mortais, as cinzas, e, por derivação, os objetos que a ele pertenceram ou que
tiveram contato com seu corpo.
Uma relíquia é então o índice de uma falta, de uma falha, de algo que já não
está lá em sua inteireza e também o resto mortal que se torna precioso e digno de
adoração. Numa perspectiva barroca, talvez a folia seja um pouco de tudo isso: uma
manifestação folclórica em extinção e, também, a esmola oferecida por cada devoto
que, ao final do giro, é divinamente corporificada no afogado, o banquete em
homenagem ao Divino; o Cristo que, cumprindo o plano do Pai, morre na cruz e depois
envia o Espírito Santo; a bandeira, o corpo santo, que se deixa impregnar pelos
resíduos corporais e pelas fotografias das pessoas queridas, dos animais de estimação,
de criação, do carro, da casa, e pelos bilhetes e nozinhos votivos, encarnando e
fazendo circular tudo o que é mais importante para os devotos. Desse modo,
considerada mero folclore, a folia emerge como o resíduo, a relíquia da tradição que
fecunda e cria o novo. E talvez não pudesse mesmo ser diferente, uma vez que a
experiência do Espírito Santo é a da chegada de um novo tempo.

19 Geertz, 1986, p. 380. (Trad. do autor)


20 Geertz, 1991, p. 170.
21 Cf. Houaiss, 2009.
A Folia do Divino cantando no Império. Talvez o giro da Folia do Divino seja a parte mais
significativa da celebração ao Santo. É significativa no tempo: atua antes, depois e durante a Festa do
Divino, pois transita o ano inteiro e não apenas nos nove dias de festa; é significativa no espaço: percorre
a área urbana e a rural, pois sua área de atuação é muito mais inclusiva do que a celebração oficial da
festa no centro da cidade; é significativa em sua natureza: evidencia a caduquice da oposição entre
sagrado e profano, contagiando o cotidiano com a divindade durante o ano inteiro por meio de
animados pousos em bairros rurais e nas periferias urbanas do Vale do Paraíba. Foto: Gianni Puzzo.

Conclusão
O giro da folia mimetiza o modelo divino, já que assume a forma de um
momento de reciprocidade entre os homens promovida pela chegada do Espírito
Santo com a folia, que possibilita a comunhão com Deus. Trata-se de uma forma que
não é uma mera ideação e sim uma forma corporal, sensível, que assume um éthos
barroco ao citar, carnavalizar e fazer uma bricolagem com os resíduos, com as relíquias
de cosmologias e teologias disponíveis em estruturas de longa duração do
imaginário.22
Ao promover uma andança devocional praticamente ininterrupta, o giro com a
bandeira parece mimetizar um tempo espiralar em que a vida social é concebida num
contínuo dar, receber e retribuir, que é também o dom do próprio Espírito Santo. E
justamente a bandeira é o objeto central dessa devoção expressiva ao Divino, dessa
teologia vivida constituída por uma experiência performativa do Espírito Santo, uma
performance tanto solene quanto carnavalizante do próprio percurso e discurso Dele,
uma performance em que a abertura aos sentidos do corpo é a condição essencial.
Em vez de privilegiar a análise de uma cosmologia ou de uma teologia
transcendente, portanto, subjacente à devoção ao Divino, esta comunicação procurou
explicitar que é justamente a devoção encarnada e festiva, e, ao mesmo tempo, tão

22 Montes, 1997.
perseguida e deslegitimada, a expressão da própria misericórdia de Deus pelos
homens.
Apesar das previsões pessimistas da ortodoxia católica (que vê na religiosidade
popular mera superstição) e da opinião dos defensores da tradição (que sempre
diagnosticam sua descaracterização), a folia do Divino continua viva e significativa. Sua
linhagem e linguagem corpórea não foram extirpadas: os foliões do Divino ainda estão
cantando, ainda estão sendo recebidos com festa nas moradas, na roça e na cidade,
ainda estão abençoando e sendo abençoados. Estão em risco, evidentemente. No
entanto, correr risco faz parte do giro, da travessia. Do estar vivo. Do constituir-se
como experiência.23

Bibliografia
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GEERTZ, Clifford. (1986). Making experiences, authoring selves. In: TURNER, Victor;
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pós-graduação em antropologia social da USP, São Paulo, n. 13, p. 177-185.
TURNER, Victor. (2008). Peregrinações como processos sociais. Dramas, campos e
metáforas: ação simbólica na sociedade humana. Niteroi: EdUFF, p. 155-214.

23 Para compor uma etimologia para experiência, Turner averigua que per, na base indo-europeia,
relaciona-se à tentativa, aventura, risco e perigo; na base germânica, passagem, medo, transporte; e, em
grego, perao implica passar através e perigo. Cf. Turner, 2005.
Rituais de Devoção: Dádivas e Contradádivas no Messianismo do Contestado,
Celso Vianna Bezerra de Menezes (PPG-SOC/UEL)

Resumo: Analisaremos os ritos de devoção a São João Maria como


performances rituais, ou mesmo, como performances de oralidade onde o gesto não é
apenas representação mimética de um aparato simbólico, mas aquilo que institui e
instaura a própria performance. “O que no corpo e na voz se repete é uma episteme. O
gesto não é apenas narrativo ou descritivo, mas, fundamentalmente, performativo”.
Análise de um olhar distanciado, do modo subjuntivo próprio do meta-teatro da vida
social.

Pois... e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em


dia-de-semana?
Guimarães Rosa: “Famigerado”. Primeiras Estórias

A Guerra do Contestado foi um movimento de cunho messiânico-milenarista, a


“Guerra Santa”, ocorrido entre 1912-1916, na região central do atual Estado de Santa
Catarina. O nome pelo qual ficou conhecida esta guerra se deve ao fato de que, desde
o século XIX, a região vinha sendo motivo de disputa entre os Estados do Paraná e
Santa Catarina, ou seja, havia uma “contestação” ao traçado das fronteiras entre os
dois Estados. A guerra, no entanto, guardou uma ligação apenas incidental com a
questão das fronteiras.
Seguidores dos monges, pregadores religiosos bastante conhecidos em toda a
região interiorana do sul do país, fundaram várias vilas, os chamados “redutos”, onde
criaram uma comunidade de sertanejos, participantes da “Santa Religião”. Eram a
favor de um reino milenarista, que muitos identificavam com a monarquia, no qual
vigoraria a lei de Deus e onde todos teriam terra, paz, prosperidade e justiça. Motivo
de preocupação dos chefes locais, mandatários dos dois Estados e dos dirigentes da
República brasileira, foram atacados por várias expedições militares; os habitantes dos
redutos passaram então à resistência armada. Nos quatro anos que durou, a guerra
envolveu mais de 20.000 sertanejos e fez mais de 5.000 vítimas.
É fato que toda religião possui um sistema de crenças no sobrenatural,
geralmente envolvendo divindades ou deuses. As religiões costumam também possuir
relatos sobre a origem do Universo, da Terra e do Homem, e o que acontece após a
morte. Independente da origem, o termo religião é adotado para designar qualquer
conjunto de crenças e valores que compõem a fé de determinada pessoa ou conjunto
de pessoas. Cada religião inspira certas normas e motiva certas práticas. Estas
palavras, mesmo procurando dar uma explicação bastante genérica ao fenômeno
religioso e que poderíamos encontrar em qualquer dicionário, mostram-nos,
entretanto, que a religião possui, além de uma dimensão institucionalizada e
hierarquizada, aquilo que chamamos de “liturgia”: um conjunto de elementos e
práticas do culto religioso instituídos por uma igreja ou seita religiosa, ou seja, missas,
orações, cerimônias, sacramentos, objetos de culto, etc. Assim sendo, quando nos
propusemos o estudo das práticas religiosas optamos por privilegiar a dimensão do
ritual, pois, ao contrário da religião, a devoção ao Monge e, no passado, a formação da
irmandade nos redutos do planalto catarinense são destituídos de uma liturgia, bem
como de uma instituição socialmente sancionada. Os adeptos de São João Maria se
apóiam em sua duvidosa e parca biografia; em alguns relatos da origem e da morte do
Monge, além das profecias e dos milagres; e, por fim, nas lapas, águas, árvores e
cruzes que teriam uma ligação com o Monge quando ainda em vida, além de uma
fotografia. Portanto, optamos por privilegiar a dimensão do ritual, do sacrifício.
Algumas distinções se fazem necessárias24. Primeiramente, aquela que
distingue as cerimônias dos rituais. Segundo Victor Turner, as primeiras são
confirmatórias e os rituais, transformadores. Diz ele que considera o “termo ‘ritual’
mais apropriado às formas do comportamento religioso associadas com transições
sociais, enquanto o termo ‘cerimônia’ tem mais a ver com o comportamento religioso
associado aos estados sociais” (TURNER, 2005, p. 139). Esta distinção é importante,
pois mostra como V. Turner procura revelar o caráter dinâmico, vivo e transformador
da vida ritual, ou seja, uma posição contrária àquela que podemos chamar de formas
congeladas ou frias de estudar as sociedades: um foco permanente nos “símbolos em
movimento e nos sistemas de ação, quando toma o ritual como drama, e o drama (as
crises políticas, sociais e de vida) como ritual (DAMATTA, 2005, p. 25).
Outra distinção importante é indicada por Stanley Tambiah. Segundo ele, é
preciso separar os “atos ordinários” que expressam atitudes e sentimentos
diretamente (por exemplo, o choro denota a tristeza nas sociedades ocidentais) e
“comunica” esta informação na interação entre as pessoas (a pessoa que chora deseja
exprimir a uma outra seu sentimento de tristeza) dos comportamentos rituais25
caracterizados não pela intenção, mas pela “simulação” das intenções. Em outras
palavras, afirma S. Tambiah que “rituais como comportamentos convencionais não
designam ou querem expressar intenções, emoções ou estados mentais de indivíduos
de um modo direto, espontâneo ou ‘natural’. Elaborações culturais de códigos
consistem em um distanciamento de expressões espontâneas e intencionais porque
espontaneidade e intencionalidade são, ou podem ser, contingentes, lábeis,
circunstanciais ou mesmo incoerentes e desordenadas. (...) Assim, distanciamento é o
outro lado da moeda das convenções; o distanciamento separa as emoções privadas
dos atores de seus comprometimentos com uma moralidade pública” (TAMBIAH,
1985, p. 132-133).
Do mesmo modo, John Dawsey mostra como, a partir da distinção das noções
de performance e de competência sugeridas por Victor Turner, o enfoque centrado na
“competência tende a privilegiar o estudo das gramáticas que subjazem às
manifestações culturais” (DAWSEY, 2005, p. 16) típico dos estudos que persistem em
equiparar o social com o sócio-estrutural. Nos estudos de performance, ao contrário,
podemos pensar estes momentos extraordinários onde assistimos à suspensão dos

24
O ritual é um dos temas mais discutidos na antropologia, no entanto abdicamos de refazer o longo
trajeto que remonta aos trabalhos de E. Durkheim, A. Van Gennep, etc. Do mesmo modo, os estudos
sobre a performance na antropologia, embora de discussões bem mais recente, serão retomados somente
parcialmente durante a exposição deste trabalho. Remeto o leitor, portanto, aos textos que fizeram uma
discussão sobre o tema: LANGDON (1996); PEIRANO (2002, 2003, 2006); DAWSEY (1999, 2005) e
SILVA (2005).
25
Observemos que embora se conheçam inúmeras definições de “ritos”, deveria haver para todas elas um
pressuposto fundamental: a de que os atores participantes destes atos rituais marcariam esses momentos
como distintos dos acontecimentos cotidianos. Do mesmo modo, Mariza Peirano diz que não separa, em
termos absolutos, o que é do que não é ritual. “O motivo é simples: a concepção de que um evento é
“diferente”, “especial”, “peculiar”, tem que ser nativa. Em princípio, passa a ser “ritual” o que nossos
interlocutores em campo definem ou vivem como peculiar, distinto, específico” (PEIRANO, 2006, p. 3).
papéis próprios da vida cotidiana. Nestes momentos excepcionais, os personagens são
figuras liminares26 cujo distanciamento permite pensar a vida social como um meta-
teatro, ou um contra-teatro.
A antropologia da performance estudada por Victor Turner em seus últimos
trabalhos, bem como os estudos de Richard Schechner sobre performance estética,
nos permitem pensar os efeitos de distanciamento: a subjuntividade dos atos, ou o
agir “como se”, ou ainda, a experiência de ser ao mesmo tempo “não-eu” e “não não-
eu”. “Trata-se de um eu vendo-se sendo visto pelo outro, como outro” (idem, p. 21 e
23). Ainda segundo John Dawsey, é este “desvio metodológico” promovido por Turner
que permite um “lugar olhado das coisas” privilegiado: as margens (a anti-estrutura)
onde se capta a intensidade da vida social e a partir da qual se pode compreender uma
estrutura social. Segundo suas palavras, “trata-se de um olhar atento e de uma
abertura calculada, tal como o cálculo de um risco, do antropólogo em relação aos
movimentos surpreendentes das sociedades” [...] “Experiências de liminaridade
podem suscitar efeitos de estranhamento em relação ao cotidiano. Trata-se de mais do
que um simples espelhamento do real. A subjuntividade que caracteriza um estado
performático, liminar, surge como o efeito de um ‘espelho mágico [...] Abrem-se
fendas no real, revelando o seu inacabamento. Tensões suprimidas vêm à luz. Estratos
culturais e sedimentações mais fundas da vida social vêm à superfície. Assim, nos
espaços liminares, se produz uma espécie de conhecimento: um abalo” (idem, p. 24).
O estudo das práticas religiosas que ora propomos remete às noções de magia,
tomadas como crenças, mas sobretudo como práticas, ou seja, buscamos entendê-las
e analisá-las enquanto ritos. Pretendemos nos apoiar nas formulações sobre os rituais
empreendidos por Mariza Peirano, que procura pensar conjuntamente os mitos e os
ritos, o dito e o feito, título, aliás, de uma de suas publicações (PEIRANO, 2002). Esta
autora parte das definições operativas de Stanley Tambiah e acredita que o ritual deve
ser entendido tendo como pressupostos quatro quesitos: 1) ele é um sistema cultural
de comunicação simbólica; 2) é constituído de sequências ordenadas e padronizadas
de palavras e atos; 3) frequentemente expresso por múltiplos meios; 4) é uma ação
ritual performativa (PEIRANO, 2003, p. 40).
Segundo a autora, podemos desta forma esclarecer como se dá a eficácia do
ritual, analisando-a em três sentidos: a) no sentido pelo qual dizer alguma coisa é
também fazê-la; b) no sentido pelo qual os participantes experimentam intensamente
uma performance que utiliza vários meios de comunicação e c) no sentido de valores
que são criados e inferidos pelos atores durante a ação. “Rituais são adequados para
realizar essas funções aparentemente diversas (combinar as dimensões do viver e do
pensar), porque são performativos. Desta forma, a eficácia da ação social, que Marcel
Mauss tanto insistiu em incluir em sua visão da sociedade, recebe uma formulação
renovada...” (idem).
Tomar as ações como performativas nos permitirá, pensamos, superar uma
preocupação que vem de longa data nos estudos sobre as práticas religiosas do
homem rural, e dos movimentos sócio-religiosos, a qual se limita a produzir
reducionismos causais ou estruturais, como as infindáveis discussões das “causas”

26
Conforme Victor Turner, “enquanto a ‘communitas’ é um relacionamento entre seres humanos
plenamente racionais cuja emancipação temporária de normas sócio-estruturais é assunto de escolha
consciente, a liminaridade é muitas vezes, ela própria, um ‘artefato’ (ou ‘mentefato’) de ação cultural”
(TURNER, 1974, p. 6).
desencadeadoras dos movimentos, se endógenas ou exógenas à sociedade
camponesa. Foi Duglas Monteiro quem, há 30 anos, nos alertava:

Do exposto, fica bem claro que a crise torna-se


compreensível através da resposta que lhe é dada. É através
desta resposta que as contradições da ordem pretérita e o
sentido de suas instituições tornam-se inteligíveis. Por isto,
em casos como estes, um acesso privilegiado para a
interpretação é dado pelo universo de significados
elaborado pelos que a enfrentam. [...] Elas são, porém,
superadas por uma nova realidade criada simultaneamente
com uma nova linguagem. Do mesmo modo, a persistência
eventual de continuidade de teor patrimonialista, restos do
que existia antes, não deve iludir de forma a que se perca de
vista o que há de radicalmente novo. É dentro desse
universo semântico novo, e da realidade muito concreta a
ele associada, que é preciso conduzir a investigação.
Reconhecer que existe um antes e um depois é fundamental
(MONTEIRO, 1974, p. 16).

Respeitar o hiato entre o antes e o depois. A crise provoca o desencantamento.


O movimento é a resposta ao desencantamento, não à crise, por isso ocorre o
“reencantamento”. Daí a idéia de que o depois explica o antes, e não o contrário,
assim elimina-se a noção de causalidade. O movimento, tal como ocorreu, foi uma
resposta dentre muitas possíveis. Deste modo, assim como a noção de discurso,
preconizada por Johannes Fabian (apud DICKIE, 2004, p.18), a noção de performance
permite dar ênfase à abordagem que procura desvelar os sentidos e pôr em relevo a
idéia de interlocução: a resposta possível no contexto histórico determinado, que
inclui a sociedade e o momento histórico brasileiros.
A devoção ao Monge São João Maria nos dias atuais, sobretudo a peregrinação
aos locais santos, pousos, águas santas e cruzeiros, são coletivas, muito embora os
ritos ganhem feições individuais. Os rituais dos devotos unem o sobrenatural com o
mundo terreno, o mundo do cotidiano. O drama pessoal e social, como desemprego,
crise familiares, alcoolismo, problemas financeiros, desigualdades, é exposto de forma
bastante crua nas rezas, nos pedidos, nas oferendas. O batismo é o rito de passagem
que permite a entrada neste outro mundo, sagrado, efêmero e liminar; ele é a
condição sem a qual pessoa alguma pode se considerar devota e, nesta condição,
estabelecer uma relação com a dimensão sagrada do Monge. As rezas individuais são o
meio de estabelecer esta relação. Como nos diz Marcel Mauss, a prece é precisamente
um dos fatos que unem o rito à crença: “Ela é plena de sentido como um mito. [...]
Nelas as necessidades da linguagem fazem com que a própria oração muitas vezes
especifique ela própria as circunstâncias, os motivos de sua enunciação” (MAUSS,
1981, p. 231). Ela é como um fato em que ação e representação se correspondam
intimamente. Além disso, observa-se a separação formulada por Mauss: a ritualização
se opõe à espiritualização, ou individualização. O mesmo pode ser observado nas
Festas do Divino Espírito Santo, onde “as rezas constituem um meio simbólico de
concentração coletiva e individual dos devotos [...] Mas constituem também um meio
para os indivíduos intensificarem sua comunicação com o Divino. Ao longo das rezas
percebem-se tanto a dimensão coletiva e ritualizada das preces quanto sua dimensão
individualizada e espiritualizada. [...] Uma dimensão mais individualizada, interiorizada
e espiritualizada e uma devoção mais coletiva e ritualizada” (GONÇALVES e CONTINS,
2008, p. 81). As preces são parte de um processo que envolve também a troca com os
mortos e com os deuses, as dádivas e as contradádivas. Seja no momento em que se
faz alguma “promessa” ou quando se pretende retribuir alguma “graça” recebida
(idem, p. 79).
Em Ponta Grossa, na bica de água da Dona Antonia há uma oração afixada num
quadro:

Oração do Profeta João Maria

Deus fez o homem para ser sua imagem, e isto está escrito na tábua de
sua lei. Quando vieres a Tua mesa estendas a tua toalha, ali estará a
minha semelhança. Pelo Amor do Nosso Senhor Jesus Cristo e a proteção
do Profeta João Maria. Que nos livre de nossos inimigos, carnais e
espirituais, das guerras, dos ladrões e assassinos, da fome e de doenças,
dos raios, cheias e secas. Que o Profeta João Maria guie minha vida.
Nossa Senhora do Carmo me cubra com seu manto Sagrado, assim como
estava o menino Jesus aguardando nove meses no ventre da Santíssima
Mãe de Deus e das três pessoas da Santíssima Trindade. Assim Seja.

Além das orações, santinhos e fotografias de inúmeros devotos ou fotos de


parentes levados pelos devotos, temos os bilhetes que são deixados na gruta com os
seus pedidos:

Senhor João Maria


Peço a graça da cura da Claudia para fígado e saúde para todos os meus
familiares.
Peço a cura da perna e pé do Gabriel.
Peço para meu pai pare de beber e fumar.
A saúde da Mãe e Juliane restaura do útero da Jú.
Abençoe o Lincon e Aline e saúde para eles.
Peço que tire esse medo meu de dirigir.
Agradeço por tudo.
Obrigada
Kelly

E outro bilhete:

São João Maria e a Santa Cruz e Santa Emídia.


Eu preciso que voceis me fortaleça.
Eu agradeço por tudo o que voceis já fizeram por mim.
E peço me ajuda nas minha venda de semi jóia do Avon e da natura
E me ajuda a receber os meu dinheiro.
E peço pelo Amor de Deus me ajuda a ter muita saúde pra mim poder
cuidar dos meus “filhos” e que eu consiga a sair dessas contas.
Assim que eu receber esta benção eu vou poder ajudar a dona Ana e vou
dar dois pacote de vela para o guias de Luz
Roselene.
Por meio destas orações e destes pedidos, o sistema de troca com o Divino se
faz presente. Assim também a Coroa na Festa do Divino, que não apenas “representa”
o Divino Espírito Santo, não é apenas a substituição de uma entidade ausente
(conforme o sentido moderno da palavra “representação”), encarnação visível de um
domínio invisível; mas, ao contrário, ela é uma entidade, ela é a presença mesma do
Espírito Santo com seus poderes e virtudes (GONÇALVES e CONTINS, 2008, p. 84-85).
O que observamos em todas estas práticas e ritos religiosos é uma concepção
que traduz determinadas percepções devocionais. Como aponta Rubem César
Fernandes em Os cavaleiros do Bom Jesus. Uma introdução às religiões populares,
observa-se a:

... questão mais funda de uma diferença de perspectivas


devocionais. Os padres falam da romaria como uma
metáfora da doutrina da imitação de Cristo; mas os
piracicabanos tomam a metáfora ao pé da letra, ousando
uma interpretação que ofende a ortodoxia. Para os padres
há um problema de ‘excesso’ na devoção dos romeiros:
exagero no sacrifício, que ameaça a transformar a
penitência de um ato de contrição em ato de orgulho;
exagero também na eficácia que se atribui às promessas,
numa banalização do ‘milagre’. ‘Milagre mesmo eu nunca vi,
disse-me um padre que passou a vida adulta em Pirapora.
Eles recebem graças, conforto, apoio, mas milagre é outra
coisa’. Para eles, a fé dos romeiros oscila entre uma
pretensão embrutecida que exagera a penitência dolorosa e
uma crença infantil que mal distingue o natural do
extraordinário. O excesso é um problema de ‘ignorância’, e a
luta do padre é a ‘educação’ da fé popular (1982, p. 57).

Eficácia, exagero, crença infantil e, sobretudo, a “metáfora ao pé da letra” nos


leva a entender tal perspectiva como a explicitação da metonímia tão própria dos ritos
sacrificiais um tanto quanto apartados das metáforas tão próprias dos mitos. A
metonímia se caracterizaria exatamente pela ligação sem mediações entre
representação e coisa representada: nos rituais de devoção ao Monge, nota-se a
presença da couve tão apreciada em vida por ele; os ex-votos na forma de pés, pernas,
miniaturas de casas, muletas, bonecas, fotografias etc.
Não custa lembrar que o clássico texto de Mary Douglas, Pureza e Perigo,
adiantava o que somente alguns anos depois seria sistematizado por Victor Turner.
“Assim, o ritual focaliza a atenção por enquadramento; ele anima a memória e liga o
presente com o passado relevante. Em tudo isto, ajuda a percepção. [...] O ritual pode
vir, primeiro, formulando a experiência. Pode permitir o conhecimento de algo que, de
outra maneira, não seria conhecido. Não exterioriza simplesmente a experiência,
trazendo-a para a luz do dia, mas modifica a experiência, expressando-a. Isto é
verdadeiro para a linguagem. Podem existir pensamentos que nunca foram traduzidos
em palavras. Uma vez que as palavras são formuladas, o pensamento muda e é
limitado pelas próprias palavras selecionadas. Assim, o discurso criou alguma coisa, um
pensamento o qual podia não ser o mesmo” (DOUGLAS, 1976, p. 82).
Victor Turner diz que a performance completa uma experiência (a articulação
do passado com o presente que tornaria possível a construção de significados).
Performance, portanto, diz respeito justamente ao momento da expressão. Conforme
Blacburn: “Performance... é seja lá o que for que aconteça com um texto em contexto”
(LANGDON, 2006, p. 198). Nos rituais sobre os quais nos debruçamos, a imagem do
Monge, os objetos significativamente trazidos à cerimônia e a palavra a ele dirigida
pelas rezas, preces e orações simulam a presença efetiva do ausente. A prece ou os
pedidos escritos para serem lidos em voz alta, contém o nome do devoto e o nome a
quem se endereça a mensagem, o Monge João Maria. Seu nome é pronunciado em
voz alta, em muitas ocasiões, repetidas vezes, para que sua presença ritual se realize e
a comunicação torne-se possível (SEVERI, 2010, p. 491)
A performance já foi descrita como um evento comunicativo no qual a função
poética é dominante. A experiência daí invocada é conseqüência dos mecanismos
poéticos e estéticos produzidos através de vários meios comunicativos simultâneos. A
performance permite uma sensação de estranhamento em relação ao cotidiano,
suscitando um novo olhar, criando momentos nos quais a experiência está em relevo
(LANGDON, 2006, p. 166).
Como afirma J. L. Austin a análise deve centrar-se não nas frases e elementos
isolados, mas no evento de fala total.

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Corpo devotado, corpo aos pedaços: uma antropologia de corpos que crêem,
Denise Pimenta (PPGAS/USP)

O texto abaixo faz parte da minha qualificação de mestrado no Programa de


Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo (PPGAS-USP),
sendo pois uma das idéias que tento tratar em meu trabalho mais abrangente “Corpo
devotado, corpo aos pedaços”. Portanto, esta é apenas uma pequena parte do que
discuto em minha pesquisa, ou seja, um dos sub-capítulos, intitulado: “De tripas e
coração”.

De tripas e coração

Capela das Velas do Santuário Nacional, Aparecida do Norte-SP, 2011

Dia 9 de março de 2011

Na Casa das Velas existe a seguinte explicação: “Os objetos de cera também
são chamados de ex-votos, são oferecidos a Deus ou a Nossa Senhora quando se
reconhece uma graça ou se faz um pedido. No Santuário Nacional, estes objetos são
entregues na Sala das Promessas”: Barriga / coluna / útero / pescoço / ombro / braço
esquerdo / braço direito / perna direita /perna esquerda / chave / carro / casa / seio /
bexiga / joelho / baço / face / fígado / intestino / estômago/ nariz / pulmão / garganta
/cabeça masculina / cabeça feminina (grande e pequena) / pé direito / pé esquerdo /
carteira de trabalho / boneco (corpo inteiro) / olhos / orelha / coração.

I – De tripas e coração

Fazer das tripas, coração.


(Dito popular)

E rasgai o vosso coração, e não as vossas vestes...


(Joel 2:13)

E tirarei da sua carne o coração de pedra,


e lhes darei um coração de carne.
(Ezequiel 11:19)

A relação entre fé e corpo é direta e visível. Os corpos dos fiéis são


transfigurados pela fé, capazes de se arrastarem ajoelhados pela longa passarela que
liga o centro da cidade de Aparecida do Norte, estado de São Paulo, ao Santuário
Nacional de Nossa Senhora Aparecida (Basílica Nova). Corpos de pessoas que crêem,
corpos que crêem. Corpos que se rasgam em pedaços, pedaços corporais de cera que
queimam em busca de cura (eficácia simbólica). Dessa forma, é notória a relação entre
os votos, os ex-votos, as promessas e o corpo do devoto. Corpos que se ajoelham, que
se arrastam, corpos que crêem. Corpos aos pedaços, corpos que queimam, corpos que
curam. Portanto, é sobre esta temática – antropologia, fé/promessas e corpos – que
eu me debruço: o corpo na fé católica, mais especificamente em relação à devoção a
Maria, mais precisamente Nossa Senhora de Aparecida. As pernas e joelhos que se
arrastam, o coração em cera que se rasga e queima: corpo que se sacrifica e crê. Na
medida em que não temos um corpo, mas somos um corpo, é este que através de seus
gestus ora, promete e se devota. Corpo que é transfigurado pela fé, capaz de agüentar
horas em prece, em jejum e em festa de santos. A fé em Aparecida como uma
experiência corporal do orante, que pode inclusive chegar ao limite do próprio corpo
atingindo estados alterados de consciência e estados alterados da própria
sensibilidade tátil, auditiva, visual.
Na “Passarela da Fé”, muitas pessoas seguem de joelhos a travessia da longa
ponte que liga a Basílica Velha à Basílica Nova, ou Santuário Nacional. Indo à cidade de
Aparecida, sempre quando atravesso a ponte, cruzo com muitas mulheres e homens,
jovens e velhos, atravessando a ponte ajoelhados, seja sob o sol do meio dia ou sob a
fina garoa. Em março de 2011, mais precisamente no dia 8, quando estava voltando do
Santuário para o centro da cidade, quase na “Hora de Maria”, naquela hora de um
cinza melancólico que parece parar o tempo e sempre me deixa sem esperanças, logo
a minha frente vejo um homem fazendo o caminho contrário, voltando o percurso da
passarela, de joelhos, pasmei! Já havia me deparado com muita gente fazendo a
travessia, mas apenas vindo, nunca voltando, e sempre acompanhados de familiares.
Este homem, que não segurava no corrimão, usava a mão para dedilhar o terço
enquanto balbuciava alguma coisa, tinha como companheira a passarela vazia a sua
frente e talvez a esperança. Como aquele corpo agüentaria fazer o percurso de ida e
volta da passarela? Como pessoas idosas com debilidade física conseguem atravessar a
ponte? A resposta encontra-se no corpo, foi ele quem se transformou, atravessado
pela fé. Talvez o mestre zen-budista Daisetsu Teitaro Suzuki tenha razão, em seu livro
Introdução ao zen-budismo (2001), prefaciado por Carl Gustav Jung, diz ele,
metaforicamente, que o coração se encontraria no joelho. Nada mais corporal do que
tal afirmação, mostrando que a experiência de religiosidade atravessa o corpo. Dessa
forma, a experiência de fé não é sobre-humana, é antes material, corporal; passa pelas
veias, pelas pulsações. Nesta perspectiva, é pelo corpo que se chegaria a Deus, e nada
existe de sobrenatural nisto, pelo contrário, nada há de mais concreto e palpável na
medida em que são corpos não-abstratos que crêem.

“Passarela da Fé”, 2011


“Passarela da Fé”, 2011

E é este corpo que aos pedaços está exposto na “Sala das Promessas” ou
queima nas piras de velas da “Capela das Velas”, estes últimos pedaços operando com
outra intenção. Tanto as partes corporais em cera encontradas na “Sala das
Promessas” como as que depositadas na “Casa das Velas” possuem o mesmo nome,
são chamados de ex-votos, porém, aqueles que se encontram na primeira são
realmente artefatos ex-votivos, que agradecem à santa Aparecida uma graça recebida.
Já os artefatos que são deixados em meio às velas da “Capela das Velas” aparentam
possuir uma função votiva, ou seja, são artefatos oferecidos à santa na intenção de
que alguma graça seja alcançada. Assim, os orantes conjugam o oferecimento de
artefatos de partes corporais doentes a preces, pedidos, promessas. No mesmo
momento em que pronunciam – ou, em silêncio, pensam – as palavras da prece e da
promessa, queimam as partes corporais na pira de velas. Na verdade não queimam
apenas artefatos de cera da parte corporal doente, queimam seus duplos, queimam o
próprio órgão doente, que causa malefícios ao corpo, que impede que este se
mantenha são. Através da articulação entre o ato de queimar o duplo de cera e o ato
de fala, que roga por cura, o mundo físico pode ser modificado, a intenção pode passar
de virtualidade à realidade. Portanto, a articulação da palavra e da queima do duplo é
eficaz, capaz de promover a cura. O mal do corpo é transferido para o duplo, assim, é
este que queima na intenção de extirpar a doença.

Na “Capela das Velas” podem-se observar milhares de pessoas que, a cada dia,
queimam artefatos de cera como duplos: cabeças, corações, úteros, seios, pés, baços,
rins, pescoços, pulmões, barrigas, faces, narizes, pernas, além de outras inúmeras
partes. Esta é uma das maneiras da realização do voto que articula o pedido verbal aos
aspectos visuais e materiais. A eficácia do evento comunicativo que gera a cura dos
males da saúde física do corpo ou também da saúde mental, depende de uma
competente performance, esta que depende do fino encaixe entre os aspectos verbais,
visuais, gestuais e materiais da comunicação.

Ex-votos: cabeças de cera, “Capela das Velas” (2010)


Ex-votos: pés de cera, “Capela das Velas”, 2011

Além dos duplos corporais encontrados na “Capela das Velas” e na “Sala das
Promessas”, existem também as extensões do antigo corpo doente, as próteses para
lembrar o teatro de Carmelo Bene, estas que ao invés de se separar do corpo,
acoplam-se à presença de uma ausência, ou seja, por entre as ferragens das próteses é
possível visualizar a forma vazia do corpo doente. Além de serem deixadas longas
mechas de cabelos de crianças, prometidas à santa por motivo de doença ou outro mal
qualquer. Também são deixadas roupas ensangüentadas de acidentes ou material
cirúrgico, extensões doentes de corpos que se curam. Cura esta que nas palavras de
Thomas Csordas (2008) ocorre a partir de uma retórica de transformação, mas
acrescento, uma retórica da transformação que não é apenas de aspectos lingüísticos
e semânticos, mas também uma retórica gestual, corporal. A cura do corpo passa pela
própria retórica do corpo.
Aponta Csordas (2008) que quando se fala em cura a partir de práticas
religiosas o que se problematiza é a eficácia. Ou seja, a eficácia deste tipo de cura é
questionada pelos descrentes. Assim, a cura religiosa muitas das vezes bate de frente
com o discurso médico, porém, mostra o autor que as discussões ficam muito nos
resultados da cura, porém, devem ser olhados os processos na medida em que a cura
ritual envolve uma totalidade, esta que abarca o evento comunicativo que é
performado pelo corpo através de seus gestus e pela palavra, a retórica de cura. Se
atentarmos para a forma, notaremos que também a medicina já esteve em contato
com seus duplos e suas magias simpáticas. Pois, na Antiguidade, após serem curados
de algum mal físico, os gregos levavam ao templo de Asclépio (em latim: Esculápio), o
deus da medicina, partes corporais em pedra como reconhecimento da cura. O deus
era tão popular e querido pelos gregos e latinos que chegou a receber do escritor
Lucius Apuleius (d.C) o título de: Aesculapius ubique. Eu diria sobre Nossa Senhora e
seus ex-votos: Aparecida et ex-votos ubiquitous!

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Campanha dos devotos.”
Fotografias: captadas por mim, Denise Moraes Pimenta, no Santuário Nacional de
Aparecida, localizado na cidade de Aparecida – SP, entre os anos de 2010 e
2011.
Sessão Napedra 3: Corpo e teatro

Coordenação: Robson Camargo (UFG)


Ana Goldenstein (PPGIEHA/USP)
João Luís Passos (IA/Unicamp)
Luciana Lyra (IA/Unicamp)
Marcos V. Moraes (PPGAS/USP)
Corpomente: a vivência do ator/performer, Robson Correa de Camargo
(UFG)

Resumo: O objetivo do presente trabalho é a reflexão sobre o estado de


criação artística do ator enquanto processo de conhecimento humano. Através de
reflexões sobre o uso do conceito russo de “perejivanie” (vivência), nas obras do ator e
diretor Konstantin Stanislavski (1863-1938) e do psicólogo Lev Vigotski (1896-1934), e
da praxis marxista, apresenta-se o entendimento da relação corpo/mente de forma
distinta da dualidade estabelecida pela tradição cartesiana.
A Persona Performática na obra de Renato Cohen, Ana Goldenstein
Carvalhaes, (PPGIEHA/USP)

Resumo: Nesta comunicação, pretendo apresentar os resultados de minha


pesquisa de mestrado sobre a obra de Renato Cohen. Por meio do Work in Process, ele
propõe uma qualidade diferente de experiência performática. É a isso que
corresponde a persona, à construção do performer em cena, em suas várias formas.
Foram analisadas duas obras para figurar essa ideia: “Imanência – Caixas do Ser”, e
“Gotham SP”. São obras muito distintas, que ajudam a ampliar os sentidos da pessoa
em cena nas dimensões polifônica e plástica. Foram tematizados alguns dispositivos
fundamentais: a mitologia pessoal, o estranhamento (que cria ambiguidade e
ambivalência), a travessia, entre outros. O campo mítico, por exemplo, é o conjunto
daquilo que trará o “preenchimento de significação” da performance, fundamental
para colocar o work in progress em movimento, aquilo que faz a pesquisa se
movimentar: a “metamorfose sem descanso”. Como ambiente performático, o campo
mítico é a base para a construção prática do environment, que traz corporalidade,
materialidade à cena. Ao mesmo tempo, aciona um trabalho denso com os
participantes, compondo, com eficácia, gestalts envolventes, “fluxos” que produzem
efeitos transformadores e simbólicos no público e nos performers. Sua proposta work
in progress confirma este fazer artístico como espaço de experiências, proporcionando
um lugar autorreflexivo, da meta-arte, e também um lugar para pensar e discutir a
própria sociedade. Suas performances proporcionam uma experiência de
estranhamento, que é a base para a persona performática. E esta, por sua vez, abre
espaços para o estranhamento. A persona performática é uma chave fundamental
para vivenciar a alteridade na cena contemporânea e principalmente para apontar a
poética própria de Renato Cohen.

Apresento aqui minha pesquisa de mestrado, sobre um aspecto da obra de


Renato Cohen. Trata-se de um artista pesquisador que refletiu sobre seu trabalho de
forma sistemática – possuía uma inquietação pessoal que o mantinha sempre em
movimento.
Em 2001, travei contato direto com o trabalho artístico de Cohen, participando
como performer da Cia. Ueinzz que ele coordenava. A partir deste período, também
participei de alguns trabalhos dele com o grupo de performance Mídia kA, como
iluminadora e “técnica de cena”. Além disso, montei como conclusão da graduação,
uma performance coordenada por Cohen, intitulada Ha.
Essa pesquisa em si começou quando percebi que a persona performática era
meu assunto de minhas inquietações, e que com ela posso falar sobre a obra do
Cohen, sobre a arte da performance em geral, e sobre a responsabilidade política do
performer no seu sentido antropológico. Aonde o artista pode responder com rapidez
ao seu contexto.
A necessidade do artista viver experiência e perigo são questões que me
atravessaram ao longo da pesquisa. Tudo isso em função da idéia de que a experiência
articula sentidos. A performance de Renato Cohen liga experiência e modos de vida.
Constrói espaços de alteridade na arte.
Por meio do work in process, ele propõe uma qualidade diferente de
experiência performática. É a isso que corresponde a persona, à construção do
performer em cena, em suas várias formas.
Para poder falar sobre a persona, é preciso primeiro entrar no seu fazer, pelo
work in process. O work in process é a forma deliberada de pensar-agir do Renato
Cohen. Só é possível compreender sua poética se relacionada a esse seu processo
criativo.
É muito difícil falar sobre Cohen e sobre seu trabalho sem sentir que esse texto
é pequeno demais para o tamanho da viagem: tento encontrar uma forma para
aproximar da dimensão poética de um artista que trabalhava com o caos, com a morte
e a profundeza do silêncio. Cohen navegava no caos. Bom, de forma geral, as palavras
nem sempre dão conta da experiência; existem aquelas coisas que não podem ser
ditas, senão vividas.
Sobre as palavras, Renato Cohen, que também foi professor universitário,
desenvolveu uma gramática própria, com conceitos cambiantes e neologismos. Então
vou falar aqui várias palavras que possuem sentidos ambíguos. Esse work in progress
do Renato é a incorporação de trajetória, de percursos, escolhas, abandono de um
objeto de pesquisa para outro. A incorporação do problema da recepção, campos
diversos permeados sem hierarquias; nele, Cohen trabalhou com o risco, o devir, com
encadeamentos, leitmotiv. Tudo isso faz parte do que hoje se entende pela valorização
do processo. O próprio processo se torna a obra de arte, no Work in Progress criativo
de Cohen. A Performance de Cohen não é teleológica – não tem um fim como meta.
Ela é a própria expressão da experiência.
Esse work in progress é um lugar de experimentação. O work in progress dá
corpo ao trabalho e gera enquanto modelo, outros mecanismos de recepção,
estruturação e permeação com o fenômeno"1, ou seja, outro tipo de experiência.
Cohen estudava a experiência concreta, era entusiasta das diversidades
culturais, e vidrado nas questões de Deleuze e Guattari sobre imanência.
Seu work in progress inclui a polifonia cênica (vertentes e recursos diversos). Os
elementos são articulados em leitmotiv – música, linha de força, de fuga. O leitmotiv
ajuda a trabalhar com o caos, com os modelos múltiplos e as narrativas dinâmicas que
Cohen se propõe, guiando propostas eventualmente conflitantes ou paradoxais, e
permitindo assim a construção do “campo mítico”.
O campo mítico é um espaço criado ao longo do processo de suas pesquisas. É
o conjunto daquilo que trará o “preenchimento de significação” da performance,
fundamental para colocar o work in progress em movimento. Identifico como um
mérito artístico de Cohen saber construir espaços de eficácia com alto grau estético,
com qualidades formais (lidando até com a pintura, por exemplo), na composição de
gestalts sedutoras, mas ao mesmo tempo auto-críticas, reflexivas. Como ambiente
performático, o campo mítico é a base para a construção prática do environment, do
ambiente. É trabalhado pela plástica, pelos materiais, tratando o espaço como texto e
como corpo, produzindo no corpo do espaço sua body-art, e toda conjuntura psíquica
do contexto. Aonde acontece a troca de energia entre os performers, seus ritmos, e o
público. O environment dá corporalidade, traz materialidade à cena. Trabalha sua
textura. E. Jean Langdon falou em "experiência relevo" ontem, em sua apresentação
aqui. Há algo semelhante ao environment. É através dele que todos vivenciam a
experiência com seu corpo inteiro, num trabalho denso com os participantes,
compondo com eficácia gestalts envolventes, “fluxos” que produzem efeitos
transformadores e simbólicos no público e nos performers.
Grande parte de sua pesquisa refere-se a como chegar nesse lugar do campo
mítico e à construção do environment, que o work in progress, (como processo
criativo) atravessa. Para cada performance havia uma maneira, atividade, técnica de
respiração, viagem, musica, leitura, dança, etc, enfim, processos diferentes que
levavam a formas e a performances diferentes.
A essa busca mistura-se a procura de referências, de artistas da “via da avant-
garde”, que reiterem questões existenciais, estéticas – da ligação entre arte e vida. É
possível dizer que essa busca, encarada como pesquisa de Cohen, era também política,
no sentido de buscar formas de ruptura, de transformação, formas da libertação
antropológica e estética.
O campo de trabalho de Renato é também lugar aonde o erro é permitido. Não
apenas o lugar aonde os gauches se encontram, mas o lugar do instável à procura de
equilíbrio poético. Há um jogo com o estranhamento; é um jogo arriscado. Arriscado
por que no jogo sempre há perdas. Perda como, por exemplo, da cena se estragar, da
auto-reflexão e crítica corrosiva e destrutiva da própria performance. E muitas vezes
isso acontece: perde-se a cena. Essa flexibilidade no trato com o erro traz ao mesmo
tempo uma vitalidade pulsante. É um dos elementos que mudam a qualidade da
experiência.
Há aí uma relação direta com o que James Clifford (2002) chama de
“surrealismo etnográfico”, referindo-se à certa atividade de um grupo europeu dos
anos 20. Questionando profundamente a realidade, e apontando o outro como objeto
de pesquisa, tanto a própria etnografia quanto o surrealismo entravam no jogo do
estranhamento. É difícil de localizar este “grupo”, ele é apresentado por Clifford mais
como um momento, ou atitude.
Esse grupo, de certa forma assim como Cohen, mantinha ativo justamente
aquilo que podia revelar sua própria existência como construção, e portanto sua
artificialidade. Trabalhava com elementos de desestabilização que indicavam sua
fragilidade, com aquilo que não o deixa firmar-se enquanto disciplina. “O que está em
questão é a perda de um jogo disruptivo e criativo de categorias e diferenças humanas,
uma atividade que não simplesmente exibe e compreende a diversidade de ordens
culturais, mas que espera, abertamente, permite e na verdade deseja sua própria
desorientação” (Clifford, 2002:161).
A inserção do “erro”, do elemento de risco, do fugidio, implica em manutenção
constante da cena. Esse poder antropológico de estranhar a si mesmo pode ser
perigoso, se levado a sério. O outramento pode levar a transformações permanentes.
Talvez fosse essa para-antropologia que Cohen procurava. Trazia, ao mesmo tempo, o
bizarro, a aproximação de opostos, a “cena irracional”, o elemento falho que pela via
transversa, revela um movimento cético e quase anarquista.
Estou falando aqui de uma capacidade de lidar com o contraditório e com as
coisas paradoxas, como por exemplo o ritual e as novas mídias – ele fazia
performances rituais “plugadas”. Há uma coerência coheniana lógica da variedade, na
polifonia.
Peguei duas obras de Renato Cohen para discutir a questão da persona. Elas
são muito diferentes entre si. A primeira, "Imanência – Corpo Instalado", foi realizada
na Casa das Rosas em 1999 (na época dirigido por José Roberto Aguilar). É uma
instalação performática que beira o limite da arte. Trabalha com questões de diversas
dimensões da vida no momento em que foi realizada. Com tecnologia de ponta, a
discussão volta-se para o artista, seus atos, suas “pegadas” recentes.
O segunda obra que trabalhei foi a peça "Gothan SP", terceira montagem da
Cia. Teatral Ueinzz. Na análise dessa peça enfatizo a proposta de uma experiência
limite da Cia. Ueinzz com não-atores. "Gothan SP" foi realizada como grande work in
progress ao longo de cinco anos (de 2001 a 2006) - o grupo já tem mais de 10 anos. É o
trabalho mais longo de Cohen.
A escolha de duas obras tão distintas (quase incomparáveis) é uma forma de
vislumbrar facetas de um conjunto de performances de Renato, que talvez jamais seja
capturado em sua totalidade. Elas abrem ainda um largo espectro do entendimento do
que é a persona na performance, sendo que cada uma ocupa uma ponta extrema
desse espectro. É assim uma estratégia de percurso: a persona se encontra no teatro
("Gothan SP"), mas também em uma espécie de instalação ("Imanência – Corpo
Instalado"). Neste espectro aberto por duas obras tão distintas, procuramos as
especificidades da persona e os desdobramentos desse tratamento do performer em
cena na arte contemporânea. São também duas obras muito colaborativas: a noção de
autoria é borrada nos dois casos.
Identifiquei temas para o processo criativo da persona, que se ligam
diretamente ao work in progress. Irei citar muito rapidamente alguns que considero
fundamentais. São eles: a travessia, a mitologia pessoal, o estranhamento, e a
polifonia.
A travessia é uma metáfora para a construção da persona de Cohen. é um
exercício, uma viagem iniciática, um processo de descobrimento de vivências.
Disposição ao permanente vir a ser.
É feita a construção e levantamento de mitologias pessoais, temas e subtemas,
desenvolvido já em laboratórios práticos (ou para ser simplista, a preparação do
“passado”, de experiências, para que estas possam se articular com o “presente” de
cada laboratório e de cada encontro com o público) que resultarão em textura cênica.
É o cozimento performático da autobiografia: construir um sentido (artístico, poético)
das experiências prévias. Há vários processos e práticas que permitem levantar a
mitologia pessoal do performer, Cohen era especialmente hábil em descobrir qual era
a forma de cada um. Nessa mesma direção, entendia o performer como “ritualizador
do instante presente”.
O estranhamento produz a vivência dessas zonas de indicernibilidade, aonde as
relações entre as coisas são borradas. Pode levar a operações diferentes. Com ele,
abre-se um leque de vivências dentro do performer. Um leque de figuras internas,
figuras coesas ou não. É o caminho para a persona. Esse estranhamento não é
necessariamente visível, pois ele não está na superfície do performer, mas na sua
profundidade. Refere-se aqui a um deslocamento interior, a elementos de
desestabilização. Umheimlich. Refere-se também ao caminho mais complexo da
alteridade.
A polifonia está no processo de linguagem e também na ideologia do processo.
A persona é polifônica na medida em que é constituída durante o processo, através de
um dialogo interior entre sujeito e o outro. Ela carrega vários dentro de si, como o
protagonista HCE (Here Comes Everybody, ou Harold ou Humphrey Chimpden
Earwicker, ou Mr. Makeall Gone, etc, etc) de James Joyce, que formam juntos uma
multidão 2. O corpo, a materialidade é, nesse sentido, o lugar de trabalho dessa
multidão, aonde várias contradições acontecem. É polifônica pois nasce do híbrido
entre várias camadas de máscaras 3, pessoas e performer em cena, em processo, na
travessia.
Essa multidão interna em diálogo, nascida do hibrido numa polifonia, faz com
que essas vozes se tornem a própria voz da persona. A noção de montagem de Taussig
(1993) é interessante: a montagem permite a “capacidade (...) de provocar súbitas e
infinitas conexões entre dessemelhantes, em um processo interminável, ou quase, de
estabelecimento e ruptura de conexões”.
Assim, a persona articula elementos (textos, referências, personagens, cores,
objetos, si mesma, etc) em uma polifonia. Tem a facilidade de tomar algo para si que
lhe interessa, e no instante seguinte abandonar, como se fossem forças que lhe
atravessam. Ela faz essa articulação sem o compromisso de formar um todo unificado,
numa coerência interna que não necessariamente psicológica. Faz por justaposição,
por similaridade. Nessa movimentação, ilumina índices de vida.

Considerações finais
A persona pode ser capturada não exatamente pelo que é, mas nas relações
que agencia, como relações de diferenças, entre eu e não eu, eu e o outro, pessoas e
pessoas. A persona surge no próprio ato. Trabalha enquanto anda: no percurso. É o
bricoleur (Lévy-Strauss, 1989) que constrói a partir de pedaços, cujo conjunto deixa
explícito e refere-se às partes do objeto de origem. Serve-se de materiais encontrados
(que viram seus textos) e trabalha com eles de uma forma específica: percorre o atalho
mais comprido, passando pela alteridade.
Ao mesmo tempo em que é polivalente, (como ser várias pessoas ao mesmo
tempo, administrar contradições, viver estados diferenciados e transitórios durante a
performance, etc...) a persona traduz tudo isso em ambigüidade profunda. E pode,
através do processo performático, da travessia artística, construir uma experiência
consistente. Consistente no sentido de ser capaz de mudar as pessoas e transformar a
vida. Ou apenas ser capaz de experimentar consistências de vida, vida carregada nas
suas várias dimensões.
Essa consistência é possível graças à qualidade auto-reflexiva da persona,
metalinguística por excelência, produtora de um estranhamento específico, que afeta
a si mesma e as outras pessoas. Ela produz olhares através de ângulos únicos, é
abridora de janelas diferentes daquelas que conhecemos no espaço do entertainment.
A persona é esse estado do performer na cena criado a partir da idéia de Outros. É a
apresentação intencional de si próprio, em sobreposições. Aponta descontinuidades.
Revela discursos e histórias, aquilo que é dito “normal”, e o próprio sistema de
representação. Essa capacidade singular da persona gera muita instabilidade. Não é
um processo necessariamente elegante; o estranhamento causa no espaço/tempo
uma “turbulência do negativo” (Juliano, 2002). Pode ser um processo angustiante, se
não poético. É, sem dúvida, um trabalho no limite da representação: na borda.
A mesma facilidade que Renato tinha para criar atmosferas, ele tinha para abrir
personas de pessoas, como se abre harmônicos de notas musicais. No mesmo sentido,
uma das formas de entender a persona performática na obra de Cohen é vê-la como se
ela fosse um prisma, que abre um leque de cores. Um prisma de pessoas, não em um
contínuo, claro e definido (entre pessoa e pessoa, figura, personagem) mas todos os
tons da pessoa habitados e vividos em sincronicidade. A persona significa essa
multiplicidade, mas principalmente é aquela que atualiza e reinventa continuamente a
combinação de acordes e escalas de sua policronia e de sua polifonia.
A persona é o estado performático do devir. Da transformação constante, que
leva a construção e a dissolução, ao outro. E também à compreensão da perenidade da
pessoa. Ao fim e ao cabo, a vida, em sua totalidade leva ao devir mais forte, a morte. O
devir morte, travessia final, tem o poder de intensificar e condensar a consistência da
vida, a experiência do vivido.
Em um plano de fundo político-antropológico, a persona é também uma forma
de se relacionar e de se posicionar na vida. Ela responde muito rapidamente às
questões do momento, é uma arte que conecta com a vida de forma muito direta,
muito material. Pode funcionar como um exercício para uma postura, de estar aberto
para o outro, de estranhar suas próprias verdades, como uma atitude diante da
existência. É um poder político: viver uma persona, ou “assistir” a uma persona, talvez
faça as pessoas experimentarem a vida de forma mais verdadeira e direta consigo
mesmas, com a responsabilidade de assumir a si mesmo, a seu corpo. É como se
posicionar estéticamente de forma ideológica e poética. Mesmo que isso seja ridículo
ou catastrófico, porque a persona é arroubo, é vida, é morte, numa dor sem piedade e
sem culpa. Esse entendimento é real para o performer e para seu público, inclusive
porque o espectador é o elemento de referência. A persona cria essa consistência da
autopoiesis, cria constelações de valores, formas, práticas e técnicas (Mauss)
singulares de ser:

O novo paradigma estético tem implicações ético-políticas porque


quem fala em criação, fala em responsabilidade da instância
criadora em relação à coisa criada (...). Mas essa escolha ética não
mais emana de uma enunciação transcendente, de um código de
lei ou de um deus único e todo-poderoso. A própria gênese da
enunciação encontra-se tomada pelo movimento de criação
processual (Guattari, 1992, p. 137).

O fenômeno da persona performática acontece em sua totalidade, ou seja, na


totalidade da obra performática: no processo, na cena, no environment, na recepção,
na leitura. A persona de Cohen só pode ser entendida através do procedimento work
in process. Ou ainda: a persona é um dos fortes indicadores da forma performática e
da poética de Cohen. A construção deliberada do environment, das cores da
performance, das intensidades, da música, só se dá e faz sentido junto à produção da
persona – é um processo criativo complexo e que se desdobra sobre si mesmo. Nesse
sentido, a construção da persona é uma chave fundamental para compreender a
poética de Renato Cohen, que continua em movimento, reiventando cada leitura.
Renato Cohen era judeu. Hoje é ano novo judaico, e faltando um mês para o 9º
aniversário de sua morte, dedico essa fala a sua memória.

Notas
1. Cohen, Renato. Work in Progress na Cena Contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 1998:31.
2. Vide Campos, 2001.
3. O ator do teatro tradicional se esconde através da personagem. Ele se mascara como método para entrar
em um personagem distinto de si, cuja história já está escrita previamente. Ele interpreta. A máscara no
campo da performance funciona em outra chave de entendimento. A persona performática constrói
máscaras de si mesma ao se apresentar, em várias camadas, ou incorpora máscaras para si, se
desdobrando em suas várias possibilidades. Há aí outro significado, que é a impermanência do performer
que recria a sua máscara a cada momento, em contraposição ao ator de uma personagem tradicional, que
se “fixa” numa identidade formalmente estabelecida.

Bibliografia

COHEN, Renato. Performance como Linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1989


_______. Work in Progress na Cena Contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 1998.
CLIFFORD, James. A Experiência Etnográfica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002
CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1969.
TAUSSIG, M. Mimesis and Alterity: a particular history of the senses. New
York: Routledge, 1993.
PESSANHA, Juliano G. A certeza do Agora. São Paulo: Ateliê, 2002.
MAUSS, Marcel. “As técnicas corporais” In: Sociologia e Antropologia, v. 2. São Paulo:
EPU/EDUSP, 1974.
GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Félix Guattari: Rio de
Janeiro, Ed. 34, 1992.
Capoeira e performance no mundo globalizado: uma abordagem dos estudos
da performance para o jogo da capoeira, João Luis Uchoa de Figueiredo Passos
(IA/UNICAMP)

Nossa pesquisa pretende abordar e interpretar parte dos processos de


expansão global da capoeira. Por um lado, focamos no aspecto artístico das expressões
do corpo e da música. Abordamos formas de treinamento e ensino dos elementos da
capoeira, que envolvem, além da movimentação corporal, também o canto, a prática
de diversos instrumentos musicais e a construção desses instrumentos. Em outra
perspectiva, analisamos também questões sociológicas relacionadas com as
estratégias sócio-econômicas que sustentam essa expansão global. Sair do Brasil pode
ser, para o capoeirista, um grande “negócio”, uma experiência intercultural, ou,
simplesmente, um modo de se manter dessa arte.
Ao abordarmos a capoeira como uma expressão artística, assumimos a difícil
tarefa de uma tradução. Difícil, pois não se trata de uma expressão artística que caiba
em uma única definição, como teatro, dança ou música. Tradução porque se trata de
um universo complexo, com uma linguagem própria, cheia de códigos e signos
próprios. Com cada mestre ou professor que conversamos percebemos suas
dificuldades ao se aproximar do universo das artes. O universo da capoeira parece não
compreender totalmente o universo das artes e vice versa. Busca-se com freqüência
resolver a questão através do enquadramento em uma única área ou um único
domínio. A capoeira torna-se luta ou esporte, aproximando-se das artes marciais, mas
distanciando-se do universo de artes expressivas como a dança, o teatro e a música,
com as quais compartilha diversos elementos, mas que não abrange todas suas
especificidades. Há também a antiga definição como folclore, hoje re-interpretada
como cultura popular, ou como manifestação cultural afro-brasileira.
De qualquer modo, nos deparamos frequentemente com a questão paradoxal
da capoeira estar culturalmente tão próxima e fácil de detectar e, ao mesmo tempo,
tão distante de ser compreendida em sua complexidade. O exercício que propomos é
de uma atuação como etnógrafo e artista da capoeira. Antropólogos e pesquisadores
da performance vêm esboçando este tipo de abordagem em produções recentes 27,
onde praticantes tornam-se pesquisadores do tema e utilizam a especialização do
olhar para propor uma abordagem mais próxima das complexidades constituintes de
nosso objeto de pesquisa. Na prática, a aproximação excessiva em relação ao objeto
de pesquisa tende a desequilibrar a imparcialidade da análise. Em detrimento do
distanciamento crítico da análise a pesquisa corre o risco da tomada de partidos e, em
alguns casos, da defesa aberta e militante de certos pontos de vista. Neste ponto, o
debate com um referencial teórico contribui para o balizamento da análise e para a
calibragem do olhar.
Portanto, a utilização do referencial teórico dos estudos da performance e da
antropologia da performance conduz nossa análise para compreensão dos elementos
da capoeira. Inicialmente, entendemos performance em sua concepção mais ampla,

27
LEWIS, John Lowell. 1992. Ring of Liberation: Deceptive discurse in Brazilian Capoeira. University of
Chicago Press, Chicago. Lewis fez sua etnografia no Brasil como praticante e pesquisador. DOWNEY, Greg.
2005. Learning capoeira: lessons in cunnig from na Afro-Brazilian Art. Oxford University Press, New York.
Downey foi aluno, entre outros, de mestre João Grande, mestre Moraes e contramestre Boca do Rio, nos EUA e
no Brasil. SIMÕES, Rosa Maria Araújo. 2006. Da inversão à Re-inversão do olhar: ritual e perforrmance na
capoeira angola. Tese de doutorado. Ufscar, São Carlos. Rosa Maria é aluna de mestre Pé de Chumbo.
como toda forma de atuação e ação humana, ser, fazer, mostrar-se fazendo ou
explicar ações demonstradas. Performance engloba atuações artísticas, rituais ou
cotidianas através de comportamentos duplamente exercidos, comportamentos
restaurados, ações performadas que as pessoas treinam para desempenhar, que não
são absolutamente novas, que tem que repetir e ensaiar (SHECHNER, 2002).

Performance mark identities, bend time, reshape and adorn


the body, and tell stories. Performances – of art, rituals, or
ordinary life – are made of “twice-behaved behaviors”,
“restored behaviors”, performed actions that people train to
do, that they practice and rehearse (ibdem, p. 22).

Performance, então, pode ser compreendida como toda atividade onde a


própria ação é percebida, em uma relação chave-fechadura com uma audiência. Uma
representação composta por uma atuação (play) e um comportamento previamente
preparado (restored behavior). Nas palavras de Erving Goffman,

A performance may be defined as all the activity of given


participant on a given occasion which serves to influence in
any of other participants. Taking a particular participant
and his performance as a basic point of reference, we may
refer to those who contribute to the other performances as
the audience, observers, or co-participants. (GOFFMAN
apud SCHECHNER, 2002, p.23)

Ainda ao pensarmos a capoeira como uma performance simultaneamente


artística e ritualizada podemos ressaltar alguns pontos de contato entre o teatro, como
performance artística, e a antropologia, pensando na abordagem que esta disciplina
faz dos rituais. Trata-se do caminho percorrido pelo pesquisador e diretor teatral
Richard Schechner em direção aos trabalhos do antropólogo Victor Turner. Em sua
obra Between theater and anthropology (SCHECHNER, 1985), Richard Schechner
enumera seis pontos de contato entre o pensamento teatral e o pensamento
antropológico. Ampliamos a análise para fazer pontos de contato também com a
performance da capoeira:

1) Transformação do “ser” e/ ou da consciência (Transformation of being and/


or consciouness). Ou seja, a capacidade que o xamã, em uma atuação ritual, e o ator
dramático, em uma expressão artística, possuem de alterar estados. É possível
pensarmos no conceito de Transe capoeirano do pesquisador Ângelo Decânio
(DECÂNIO, 2002). Ele aponta para uma super consciência, um estado alterado da
mente, desenvolvida pelo capoeirista sob o estímulo da condução musical e do evento
em si, a roda de capoeira. Esse estado proporciona na ação (play) do capoeirista um
encadeamento natural das ações em jogo, um fluxo (flow) de ações que recupera o
vocabulário corporal e expressivo do jogador ao ponto de ele não mais refletir para
desencadear ações harmoniosas em relação ao outro jogador. Isso acontece em uma
qualidade de jogo onde não há roteiro pré-determinado. Ao contrário, em todo
momento um jogador tenta induzir uma ação e executar outra, princípio chamado de
negaça, algo parecido com o drible do futebol, onde se induz uma trajetória da bola ao
adversário e toma-se outro caminho para surpreendê-lo e superá-lo. Mesmo sem
roteiros para a atuação na roda de capoeira, pequenas seqüências e possibilidades
estratégicas são exaustivamente praticadas em treinos, para que nos momentos de
necessidade surjam com naturalidade, como comportamentos recuperados através do
encadeamento rápido e harmonioso de ações.

2) A intensidade da performance (Intensity of performance). Uma “presença”


manifestada, a sensação de que algo realmente aconteceu. A intensidade da
performance presencial gera energias coletivas, como fluxos. “This intensity of
performance(...) has been called ´flow` by Mihaly Csikszentmihalyi” (1975, 35-36 apud
SCHECHNER, 1985, p.11). Algo que também nos faz refletir sobre a categoria nativa
“clima”, utilizada pelos capoeiristas para definir a intensidade da roda enquanto
evento. O clima está diretamente relacionado a uma gama de fatores. Entre eles o
principal é a maestria da condução musical. Não existe roda boa, ou uma roda com
clima bom, sem uma boa bateria. O berimbau manda na bateria e a bateria manda no
clima da roda. Todos encadeados vão garantir a intensidade da roda. O clima da roda,
como evento total, vai garantir o clima do jogo. Em relação ao clima e intensidade do
jogo dois fatores serão primordiais. Um está relacionado ao grau de diálogo entre os
jogadores, algo próximo à noção de jogo cênico no teatro. Deve-se procurar a maior
sintonia possível entre os jogadores, um diálogo fino, como entre velhos conhecidos,
mesmo que seja a primeira vez que se encontrem, e isso será expresso no
compartilhar do espaço (cinesfera). Quanto mais dentro, quanto menor o espaço entre
os jogadores, maior será o risco físico do jogo. Aí surge uma segunda característica da
intensidade do jogo da capoeira, desta vez diferenciando-se da noção de jogo teatral.
O ato de correr risco físico um em relação ao outro e propositalmente, correr o risco
da violência física, correr o risco de agredir e de ser agredido. A intensidade e o clima
da roda aumentam à medida que esse risco aumenta e torna-se maior à medida que
esse potencial destrutivo mantém-se latente. Ou seja, jogar o mais rápido e próximo
um em relação ao outro, dentro da estrutura musical e rítmica que a bateria estimular,
correndo o risco da violência física destrutiva, mas mantendo-a sob controle, latente,
como uma verdadeira massa crítica em potencial. Toda essa dinâmica sem desferir um
golpe realmente contundente, pois isso interromperia o fluxo, o clima e a intensidade
do jogo; apesar dessa interrupção violenta também não ser rara nem desconhecida do
universo da capoeira.

3) Interação audiência-performer (Audience-performer interactions). A


alteração ou influência exercida pela performance na platéia ou público. O capoeirista
é ao mesmo tempo performer e público co-participante, pois faz parte das habilidades
e funções obrigatórias na roda de capoeira, tocar, cantar e jogar. Ou seja, mesmo
quando o jogador não está no centro da roda ele está tocando e cantando, conduzindo
e estimulando, a atuação dos jogadores em primeiro plano. No decorrer do evento os
papéis serão invertidos e o clima geral da roda depende dessa cumplicidade e
complementaridade. Uma bateria completa pode ter sete ou oito instrumentistas.
Para jogar na presença da bateria o mínimo necessário são dois e o máximo é
ilimitado. Pensemos aleatoriamente em um modelo de bateria composto por sete
instrumentistas tocando para outros sete jogadores. A cada dois jogadores em atuação
haverá cinco jogadores-platéia e sete instrumentistas-jogadores-platéia. Com o tempo
eles alternarão as funções garantindo que todos ocupem todas as posições e evitando
a fadiga em qualquer posto. Então, fica garantida a autonomia performática da roda
de capoeira, pois ela por si mesma fecha a chave audiência-performer, e a audiência
externa, de não-capoeiristas, é um fator a mais, um plus, mas não uma condição sine
qua nom, como é para o teatro ou a dança. Para essas expressões artísticas o exercício
cênico torna-se ensaio ou preparação sem a presença da audiência.

4) A seqüência total da performance (The whole performance sequence). As


sete ações que Shechner aponta como componentes do “todo” da performance.
Treinamento, oficinas, ensaio, aquecimento, performance, “esfriamento”, e momento
pós-evento (No original, training, workshops, rehearsals, warm-ups, performance, cool-
down, and after-math). Novamente o treinamento, evento (roda), e pós-evento da
capoeira passa por todos esses pontos, em particular, podemos dizer que é através
desse cotidiano de atividades que surgem grupos sociais como communitas
espontâneas (TURNER, 1985). Ao assumir a freqüência dessa preparação um grupo de
jogadores assume uma rotina que cria laços de afinidade coletiva e espontânea. Mais
tarde essa ação pode assumir um papel profissional e surgir o caráter de
obrigatoriedade das ações, no entanto, o impulso primeiro dessa rotina é (ou deveria
ser) totalmente espontâneo conduzido por afinidades de conteúdo e também
pessoais.

5) Transmissão de conhecimento da performance (Transmission of performance


knowledge). Schechner vai dizer que o conhecimento performático é integrativo, ou
seja, envolve textos clássicos, textos atuais, eventos e diversos tipos de performance
que devem ser estudados como linguagens de palco (PAVIS, 1982 apud SCHECHNER,
2002). Podemos pensar pontos de contato com a diversidade de linhagens e tradições
de capoeira, que apesar de evitarem contatos e trocas evidentes, também não
abdicam dessas ações. Já entre uma mesma linhagem ou tradição as trocas são
intensas e a criação e fortalecimento de redes de transmissão forma uma das
principais estratégias do crescimento dos núcleos e da própria mundialização.

6) Como as performances são geradas e avaliadas? (How are performances


generated and evaluated?). Schechner finaliza seus pontos de contato entre teatro e
ritual com uma questão. E mais uma vez repassamos com certa facilidade a questão
para a capoeira. Tanto entre defensores puristas da tradição quanto entre os que
assumem mudanças deliberadas no estilo praticado de capoeira é possível argumentar
sobre o embasamento com que as atuações são geradas e avaliadas (penso aqui no
sentido de perpetuadas). Uma das hipóteses que podemos pensar está na construção
de estratégias de profissionalização capazes de projetar o interesse principal do
público alvo. Ou seja, a compreensão dos anseios de um possível público alvo deve ser
estudada com atenção e equilibrada com a manutenção da identidade própria de cada
grupo. Em outras palavras, adaptar-se aos novos contextos mantendo o máximo do
conteúdo original. Nesse ponto, tanto no Brasil quanto no exterior, algumas
tendências optam por inovações em diferentes vertentes, alguns se tornam, da noite
para o dia, super tradicionais, algo que chamei de “puristas” em trabalho anterior
(PASSOS, 2006). Outros assumem o discurso da inovação sem maiores
constrangimentos e são capazes de criar expressões como capo-boxe (capoeira com
Boxe), capo-jitsu (capoeira com jiu-jitsu), capoeira-dança (capoeira dissociada do risco
da luta), capoeira-terapia, entre outras. Há também um amplo setor de grupos que se
mantêm exclusivamente com capoeira, mas incorporam dinâmicas de caráter
mercadológico na estética e na propaganda de suas atuações.
Como estratégia etnográfica da arte em si (capoeira), e não do evento (Roda,
ou treinamento) utilizamos primeiramente o método de reconhecimento dos toques
e dos andamento. Ou seja, as estruturas musicais dos toques de berimbau, que
comandam toda a bateria (como é chamada a orquestra musical da capoeira), e seu
andamento ou velocidade. A expressão corporal tem uma relação direta com a
estrutura musical, assim como na maioria das danças. Esse é um dos principais pontos
de contato da capoeira com a dança, “dançar conforme a música”, na capoeira
significa “jogar conforme o berimbau”. Em seguida, observamos a movimentação
corporal e priorizamos os ambientes onde é possível treinar e/ou jogar também.
Finalmente, participamos do convívio social durante e após os eventos e, por último,
as entrevistas formais e as “entrevistas-bate-papo”, que costumam render
importantes depoimentos.
Toda a captação de dados das estratégias de sobrevivência socioeconômica
costuma surgir após as captações de dados da arte, através de longas convivências,
treinamentos e rodas. Somente a partir desse reconhecimento como participante é
que surgem as “entrelinhas” do processo global.

Breve contexto da trajetória da capoeira


A capoeira tem sua origem no Brasil, ressignificando matrizes corporais,
expressivas e musicais de origem africana, e acrescentando e criando especificidades
locais. Seu surgimento no Brasil foi entre africanos e seus descendentes negros e
mulatos, mestiços em geral e brancos pobres. Ela nasce às margens da sociedade e é
perseguida desde sua origem como sinônimo de arruaça e perigo à ordem pública. Ao
mesmo tempo em que é perseguida pelo Império, também foi cooptada em episódios
como o recrutamento de capoeiras para a guerra do Paraguai e utilizados como
guardas de segurança pessoal ou capangas por alguns membros da corte. Seus
primeiros registros são do final do século XVIII, mas a recorrência de dados históricos é
maior no início do século XIX. Os registros da primeira metade do século XIX no Rio de
Janeiro apontam para algo que podemos considerar como uma pré-capoeira em
relação a como a conhecemos hoje, desprovida do caráter ritual e do comando do
berimbau28.

A primeira sistematização da prática da capoeira ocorre provavelmente na


segunda metade do século XIX29, a partir da formatação do modelo de roda de
capoeira acrescida de bateria, esta conduzida por um trio de berimbaus. O berimbau é
o instrumento símbolo e condutor de todo o ritual da roda. Somente a partir da
segunda metade do século XIX, no Recôncavo Baiano, a capoeira assume o formato
ritualizado que conhecemos atualmente, com três berimbaus em escala - grave, médio

28
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. 2002. Capoeira Escrava, Campinas: Ed. Unicamp.
29A hipótese do pesquisador Ângelo Decânio (2002) é compatível com as narrativas históricas e documentais
e parece ser a mais verossímil, apesar do discurso de muitos mestres procurar uma associação ancestral entre o
berimbau e a capoeira, provavelmente como estratégia de legitimação social.
e agudo –, dois pandeiros, agogô e reco-reco. O atabaque surge mais tarde na
formação da bateria da capoeira.
No início do século XX a capoeira acompanha os fluxos migratórios para a
capital do Estado da Bahia, Salvador, ocupando inicialmente a zona portuária da
cidade. O primeiro fluxo de expansão nacional do modelo baiano de sistematização da
capoeira acontece através do trânsito portuário para o Rio de Janeiro e em
Pernambuco. Nestas cidades, compostas por grandes populações afro-descendentes,
houve uma rápida permeabilidade ao novo modelo de capoeira baiana30. Somente a
partir da segunda metade do século XX é que ela realmente começa a expansão por
todo território nacional. Em 1966, ela sai pela primeira vez do Brasil com status de
manifestação cultural brasileira para participar do I Festival de Artes Negras em Dakar,
no Senegal. Na década seguinte vai a Europa e Estados Unidos e inicia um processo
sem retorno.
Ainda no final do século XIX, devido à cumplicidade com alguns setores da
monarquia, a capoeira entrou para o código penal e sua prática foi considerada crime
logo no início da república. A proibição de sua prática e sua criminalidade jurídica
durou até o ano de 1941. Nesse momento seu formato contemporâneo já estava
consolidado, próximo a como a conhecemos hoje. Faltava somente combater o
preconceito e a resistência na sociedade brasileira. É o início do período de
sistematização do modelo de ensino com o formato de escolas e academias.
Influenciado pelo padrão militarizado de práticas corporais, pelo crescimento das
práticas esportivas e pela recente chegada das artes marciais orientais como o jiu-jitsu,
dois importantes mestres do período, Bimba e Pastinha, adotaram estratégias como
hierarquia, uniforme, academia em espaço fechado e diálogo com setores da
sociedade civil e Estado31. Este movimento configurará na segunda e mais importante
onda de sistematização da capoeira e no início da divisão de estilos, Angola e Regional.
Portanto, estratégias de adaptabilidade a contextos adversos não são nenhuma
novidade na história da capoeira. Ela é adaptação por excelência. Assim como sai do
Brasil e influencia contextos no exterior, também sofre a influência deste processo
como um contrafluxo. Da mesma maneira como lá fora reproduz os modelos aqui
presentes, este “espelho estrangeiro” distorce algumas imagens e reflete sobre o
contexto nacional. O contrafluxo acontece através de elementos simbólicos e
materiais. A partir do reconhecimento e do incremento da auto-estima através do
retorno financeiro e da profissionalização em uma escala diferente da encontrada no
Brasil, bem como a ampliação de horizontes, perspectivas, estratégias de divulgação,
contatos culturais, entre outros, fatores que irão influenciar determinantemente o
contexto nacional.

30
Outras manifestações culturais como o samba e o candomblé também possuem como provável local
de origem de seus modelos no Recôncavo Baiano. Ver: MOURA, Roberto. 1983. Tia Ciata (e a pequena África
no Rio de Janeiro), Funarte, Rio de Janeiro e PINTO, Tiago de Oliveira. Capoeira, Samba e Candomblé, Afro-
Brasilianische im Recôncavo, Bahia, Staatliche Museen Preusicher Kulturbesitz, Berlim.
31
ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig. 2005. Capoeira, The History of na Afro-Brazilian Martial Art, London, Routledge.
(capítulo 5, Mestre Bimba and the development of ´Regional` style e capítulo 6, Mestre Pastinha and the codification
of Angola style)
Volta ao Mundo da Capoeira
Artur Emídio foi provavelmente o primeiro capoeirista a sair do Brasil para
apresentar sua arte, entre o final da década de 50 e início da década de 60. Ele visitou
a Argentina, México, Estados Unidos e Europa. Também se apresentou para dois
presidentes brasileiros, Getúlio Vargas e Juscelino Kubitchek, e para dois presidentes
americanos, Eisenhower e Kennedy (ASSUNÇÂO, 2005). Na seqüência de seu
pioneirismo, diversas companhias de dança e apresentações folclóricas iniciaram
turnês pela Europa e EUA, os chamados Grupos Folclóricos. Essa importante difusão
ocorreu inicialmente devido ao suporte de estrutura e redes de contato estabelecido
por diretores teatrais, coreógrafos e músicos que estabeleceram uma ponte entre a
linguagem dos espetáculos e as manifestações da cultura popular. Uma importante
contribuição para a difusão da capoeira na Europa durante os anos 70 foi o Grupo
Brasil Tropical, companhia liderada belo bailarino e coreógrafo Domingos Campos e
por mestre Camisa Roxa. Camisa Roxa foi aluno de mestre Bimba e foi considerado um
de seus melhores discípulos. O principal interesse dessas companhias era a
apresentação de seus espetáculos para o maior público possível e não um interesse
deliberado de ensinar capoeira no exterior. A apresentação desses grupos era
composta por um espetáculo de revista passando por várias manifestações como,
samba, dança afro, maculelê, puxada de rede, além de uma linguagem estilizada para
transportá-las para a estrutura de palco. Para o universo da capoeira o pioneirismo dos
Grupos Folclóricos foi fundamental, pois disponibilizaram para vários capoeiristas uma
tríplice oportunidade, profissionalização, atuação internacional e aproximação com o
universo das artes cênicas.
Para jovens capoeiristas a oportunidade de uma atuação internacional abria
inicialmente horizontes de uma nova perspectiva econômica e de experiência de vida.
Conhecer outras culturas dentro de uma estrutura de turnê artística certamente foi
um atrativo e um diferencial na carreira de todos os participantes. Para a capoeira em
particular, podemos considerar como um embrião do processo de alcance global que
surgiria nas décadas seguintes. A oportunidade de viver profissionalmente de capoeira
no Brasil era bastante restrita. Muitos dos capoeiristas presentes nos Grupos
Folclóricos fizeram sua primeira experiência internacional ao participar dessas
companhias, e em certo momento da jornada no exterior, ou logo após, decidiram por
se estabelecer no exterior como professores de capoeira (ASSUNÇÃO, 2005).
Mestre Hugo, ou Gatinho, foi capoeirista e instrumentista do Grupo Folclórico
Brasil Tropical. Sua principal habilidade no enredo do espetáculo estava vinculada aos
toques de berimbau e atabaque. Mestre Hugo é filho de mestre Gato Preto, José
Gabriel Góes, falecido em 2002, e importante representante da Tradição Santo
Amarense de Capoeira Angola. Mestre Gato Preto fez parte da comitiva que participou
do I Festival Internacional de Artes Negras, em Dakar, no Senegal. Essa viagem de 1966
possui uma aura mítica para o universo da capoeira e, apesar do pioneirismo de Artur
Emídio, foi a partir desta data que no imaginário da capoeira iniciou-se sua volta ao
mundo. Entre outros artistas de diversas áreas de atuação estava presente um grupo
de capoeiristas da Bahia, liderados por mestre Pastinha (Vicente Ferreira Pastinha).
Nessa comitiva ainda constavam Roberto Satanás e Camafeu de Oxóssi,
representantes, como mestre Gato, de outras linhagens e tradições. Dos que viajaram
nessa comitiva, talvez, somente mestre Gato manteve um fluxo de atuação
internacional32. Anos mais tarde, participando do grupo Brasil Tropical, seu filho
Gatinho (ou mestre Hugo), resolveu permanecer na Europa, onde atuou como músico
e bailarino e manteve-se por mais de duas décadas.
Nos EUA, a introdução da capoeira é atribuída a Jelon Vieira e Loremil
Machado. Eles apresentaram a capoeira em um número da Broadway sobre índios
brasileiros, chamado The Leaf People, em 1975. Percebemos através do enredo a
miscelânea que esses espetáculos de revista poderiam apresentar em busca de um
retorno imediato de atenção e público, em um tipo de exposição que apostava no
exotismo como grande diferencial. Ambos participaram também do espetáculo The
Capoeiras of Bahia (1979), cujo tema já fazia um recorte específico no foco de atuação
da capoeira. Jelon Vieira também foi membro de outro importante Grupo Folclórico, o
Viva Bahia, organizado e conduzido por Emília Biancardi. O Viva Bahia também
excursionou pelos EUA e foi de importante atuação para a divulgação da capoeira no
exterior. Em depoimento, Biancardi diz que os espetáculos do Viva Bahia sempre
causaram uma boa receptividade da audiência, mas quando surgiam números com
capoeira a platéia entrava em êxtase (FARIA, 2005). Então, Jelon Vieira que era
participante desta companhia, Viva Brasil, resolveu ficar na costa leste dos EUA,
ensinando capoeira em Nova York e oferecendo oficinas em cidades próximas da
mesma região. Seu reconhecimento pela atuação nos EUA e pelo pioneirismo é uma
unanimidade no universo internacional da capoeira. Atualmente muitos mestres
atuam em Nova York, entre eles podemos citar o próprio Jelon Vieira, João Grande,
Edna Lima, Bom Jesus, Lincoln, Pilão, Carvão, Caxias, Doutor, Jô e Macaco. Em 12 de
junho de 1995, o então prefeito de Nova York, Rudolf Giuliani, declarou o “Capoeira
Day”, para comemorar os 20 anos de introdução da arte nos EUA (ASSUNÇÃO, 2005).
Na costa oeste dos EUA, mestre Acordeon (Bira Almeida), outro aluno de
mestre Bimba, iniciou sua atuação de ensino da capoeira entre alunos de classe média
alta, a maior parte, alunos da conceituada Universidade de Stanford, em 1979. Em
seguida aproveitou o suporte inicial da universidade e de seus alunos para ensinar
também nos bairros pobres e na comunidade latina de São Francisco, onde abriu sua
própria academia, a Capoeira-Bahia. Em 1983 ele trouxe 52 alunos de capoeira
americanos para uma viagem de campo e um torneio na Universidade de São Paulo
(USP). Mestre Acordeon também fundou a World Capoeira Association e publicou o
primeiro livro sobre capoeira em língua inglesa (ALMEIDA, 1981 apud ASSUNÇÃO,
2005). Jelon Vieira e Acordeon tiveram papel primordial na formação da primeira
geração de capoeiristas nos EUA.
Verificamos ações de obtenção de recursos financeiros em todas as atuações
mundiais. Não há expansão internacional da capoeira que não vise também o retorno
financeiro. Isso está implícito no primeiro impulso de saída do país. Por outro lado,
seria ingênuo pensar que as dinâmicas se reduzem somente ao capital. Há também a
vontade de trabalhar e ser dignamente remunerado exercendo a atividade escolhida
por aptidão, prazer e vocação. A questão da dificuldade de profissionalização digna do
capoeirista no Brasil é também um forte fator de impulso.
Portanto, à medida que o capoeirista no exterior consegue se estruturar com
dignidade e profissionalismo, ele altera seus padrões de comportamento adaptando-se
ao padrão local. Há também fatores de experiência pessoal, de exploração (no sentido

32 No início dos anos 90, mestre João Grande, que também estava na comitiva, foi morar e atuar em Nova York onde
mora até hoje.
de desbravar) de uma nova região ainda sem o alcance da capoeira. Diversos países
que encontramos em nosso levantamento possuem condições sócio-econômicas iguais
ou piores que o Brasil. Mesmo nesses países é possível encontrar nichos de atuação e
de mercado, além de uma experiência pessoal que recompense o espírito. Sair do
Brasil para algo mais adverso que o quadro local não é interesse nem hipótese
razoável.
Do Registro Artetnográfico: Experiência em Campo no Livro de Artista,
Luciana Lyra (PPGAS/USP)

Resumo: Em investigação de doutorado, vinculada ao projeto temático do


Núcleo de Antropologia, Performance e Drama (NAPEDRA/USP), a pesquisadora
elaborou o conceito de ARTETNOGRAFIA, que se associa, intrinsecamente, a
estratégias antropológicas contemporâneas de atuação em campo, configurando-se
como prática realizada por artistas cênicos ao se deslocarem aos locais onde vivem
aqueles que intentam pesquisar, para que nesta interação polifônica e subjetiva possa
fomentar a criação da cena performática. Como registro artetnográfico tem-se
utilizado a ideia de livro de artista, que traz em si, uma potencialidade visual,
transcendendo do registro fático para o registro poético, relacionado Artes Cênicas,
Literatura e Artes Visuais. O presente trabalho visa então abordar a ARTETNOGRAFIA,
pela perspectiva do livro de artista, tendo como exemplos duas experiências
artetnográficas orientadas pela pesquisadora, entre 2007 e 2012.

O escambo com o outro marca os campos do teatro e da antropologia, pois é


na superposição polifônica entre o eu e a alteridade que se desvela o encontro,
condição basilar que rege as ações dos dois agentes da cultura: o ator/artista e o
antropólogo. Esse encontro com o outro, sempre se configura a partir de princípios
subjetivos e objetivos, princípios estes que acabam por capacitar tanto o ator como o
antropólogo a exercerem seus ofícios.
Na sua prática, o ator está em cena, ao mesmo passo que interioriza o papel do
espectador, sob a percepção concomitante, do mundo e de si mesmo, atuando em
constantes desdobramentos, e se colocando na posição de espectador do mundo, do
qual é impossível esquivar-se totalmente. O antropólogo, semelhante ao ator, transita
entre dois mundos: o seu próprio e o dos grupos com os quais trabalha em suas
pesquisas etnográficas, contudo esta constante dialogia gera ambigüidades e
transbordamentos, especialmente no que concerne à transmissão das mensagens
captadas em campo. De acordo com Clifford Geertz, o olhar do antropólogo parece
estar longe da imparcialidade, afirmando que toda etnografia é em parte filosofia e em
parte confissão (2008, p. 19).
Para a Antropologia da Performance, topos que ganha relevância a partir da
década de 60 e 70 deste século, com os estudos de Richard Schechner e Victor Turner,
a perspectiva etnográfica de Geertz vem a ser fundamental, na medida em que é com
sua abordagem que os praticantes da etnografia puderam exercitar a imersão em
campo partindo de uma descrição densa, sem o compromisso do relato fático ou da
reconstituição fiel das comunidades etnografadas, mas com o compromisso de uma
interpretação caleidoscópica, direcionada para a busca de estruturas complexas de
significação, abrindo espaço para uma abordagem pós moderna de atuação
etnográfica em campo.
Foi ao entrar em contato com pesquisas antropológicas, a partir do ano de
2003, com minhas pesquisas de Mestrado e Doutorado em Artes Cênicas (UNICAMP),
e por meio das discussões do Núcleo de Antropologia, Performance e Drama
(NAPEDRA), grupo que realizo o projeto temático Antropologia da Performance:
Drama, Estética e Ritual (FAPESP), que eu, artista de formação, comecei a detectar
estes aspectos comuns entre antropologia e teatro, cunhando o termo Artetnografia
para designar a prática realizada por artistas cênicos ao se deslocarem aos locais onde
vivem aqueles que intentam pesquisar, para que nesta interação polifônica e subjetiva
possa promover a criação da cena performática.
Se, numa abordagem pós moderna, o trabalho do antropólogo está longe da
imparcialidade, o que dizer do trabalho do ator-etnográfo contemporâneo ou
artetnógrafo, como intitulo, lidando com níveis profundos do imaginário cultural,
trazendo-os para a cena performática? Como poderia o ator criar interlocuções com a
antropologia para que possa por meio dela compreender sua ação em campo e os
desdobramentos para a cena? Quais as especificidades do trabalho artístico no diálogo
com o outro por meio da pesquisa etnográfica ou como aqui se intitula, artetnográfica
ou Artenografia?
Em minha experiência com a comunidade de Tejucupapo-PE, entre 2007 e
2010, que veio a resultar em tese de doutorado em Artes Cênicas (UNICAMP) e no
espetáculo Guerreiras e na experiência com a comunidade da Ilha de Deus-PE, entre os
anos de 2011-2012, que desembocou no pós doutoramento em Antropologia (USP) e
no espetáculo Homens e Caranguejos, procurei abordar este artetnógrafo como um
ator de f(r)icção, que coaduna arte e vida em prol da cena vivificada, uma espécie de
cartógrafo que vai traçando paisagens na relação com o outro, longe de seguir uma
reta de fatos, revelando-se em pedaços, em justaposições instáveis, onde a realidade
não é um dado somente, a realidade transcende, atingindo a subjetividade dos
sujeitos, ou seja, esse princípio cartográfico vai além do traçado de paisagens
materiais.
A cartografia delineada pelo artetnógrafo tem como suporte germinal o que
chamo de Livro de Artista, uma espécie de caderno de registros em campo de cada
artista envolvido nos processos, que traz em si, as paisagens traçadas na pesquisa com
a alteridade, expressando afetos e os mundos vivenciados pelos artistas e ‘seus’
outros. Estas cartografias vão servir como base primeira de elaboração da cena
performática, incluindo aí dramaturgia e encenação, como efetivamente sucedeu com
os espetáculos supracitados.
Faz-se necessário afirmar que Livro de Artista é uma apropriação minha de
termo advindo do campo das Artes Visuais, e que se traduz como livro-objeto, numa
proposta de interação entre arte plástica e literatura, um veículo para ideias de arte e
obras de artistas, com forte caráter biográfico. Nas Artes visuais, o significado peculiar
que o Livro de Artista adquire é que não tem como objetivo estabelecer uma relação
mecânica, descritiva, entre texto e imagem, mas expressar afetos dos artistas na
interação com o mundo.
Embora muitos críticos de arte considerem o Livro de Artista como uma
produção típica dos anos 60, a multiplicação de sua prática na nossa década e a
reflexão suscitada por ele parecem constituir claras pistas de que este veículo
alternativo transborda as significações no processo artístico contemporâneo. Antes,
nos anos 50, a ideia de Livro de Artista já se firmara no Brasil, com a precedência pelos
poetas concretos e neoconcretos, os quais, privilegiando a imagem gráfico-espacial
como forma, enfatizam a presença de elementos visuais em seus poemas-objeto, que
desvelam uma estrutura sem começo, nem fim, uma estrutura circular, contínua, cujas
páginas, trabalhadas em vista da totalidade do livro, recebem, geram e transferem o
movimento e o significado que só elas propagam.
Assim como na proposta das Artes Visuais, o Livro de Artista, como registro
artetnográfico na experiência das Artes Cênicas, há uma afinidade entre a vivência do
corpo no campo, em intercâmbio com a expressão gráfica e a plástica da palavra, que
por sua vez, revelam-se performance. O Livro de Artista artetnográfico é concebido
também como estrutura cinética, ou seja, o artista dispõe livremente da experiência
corporal em campo, cartografando-as, desvelando-as em textos e imagens, que podem
ou não relacionar-se entre si, podendo também se opor, gerando um contraponto,
constrativo e integrativo ao mesmo tempo.
Este suporte artetnográfico traz um tipo de estrutura de registro, onde a escrita
e a imagem revelam a experiência corporal em campo de maneira fecunda, ora sem
relações de subordinação, ora gerando contraposições, uma escritura integral capaz de
dar conta das metamorfoses, dos fluxos e refluxos das imagens, caracterizando-se pelo
uso de tipos diversos, por uma disposição autoral de linhas, vazios, ilustrações, poesias
no caderno de registro, numa obra em constante movimento. As páginas do Livro
artetnográfico não seguem uma ordem fixa, permutáveis, poderiam ser deslocadas,
lidas como constelações combinatórias determinadas pelo artetnógrafo, que
constantemente nos revela a pluralidade de afetos amealhados em campo, negando
toda e qualquer tipo de direção unívoca, de sequência obrigatória, sem abrir mão,
entretanto, de um significado subjacente ao jogo móvel da lida em campo com a
alteridade.
É inegável que o exemplo de liberdade sugerido pelo Livro de Artista, como
registro artetnográfico fundamenta-se na práxis artística contemporânea, que se
legitima como unidade expressiva que veicula uma determinada ideia de arte e que
incorpora o processo criativo plural e autoral. O ato de criação do Livro de Artista pelo
artetnográfo já é performático, pressupõe o gesto do autor e a sensual intimidade que
estabelece entre o livro e aquele que manipula, desembocando suas experiências em
campo. Por mais variadas que possam ser as diretrizes estéticas, o livro artetnográfico
sempre explora o desdobramento do afeto do artista em campo e seu registro.
Sendo assim, o Livro de Artista artetnográfico não é cada página e sim a
experiência somática, que integra corpo e manifestação de registro plástico/literário,
que por sua vez, vai se desdobrar em dramaturgia/encenação, desvelando a ideia total
de performance. O Livro de Artista artetnográfico configura-se, portanto, como uma
sequência espaço-temporal, determinada pela relação cinética, aquela concepção
arquitetônica criadora totalizante e, a um só tempo, fragmentar, que é gerada
performática e se traduz performance.
O Livro artetnográfico, é um caderno afetivo de campo, é contínuo-
descontínuo, que propicia uma experiência multisensorial em que tato e olho, corpo e
mente participam de uma operação presencial, memorial e concreta há um só tempo.
Embora o Livro de Artista artetnográfico se refira a experiências afetivas em campo do
ator/artetnógrafo, que tem na dimensão cinético-temporal um elemento fundamental,
requer a colaboração do diretor/dramaturgo também artetnógrafo para o
desdobramento na poética cênica e, em conseqüência, solicita um espectador ativo
num contexto simultâneo. O espectador torna-se, dessa forma, um lócus
transbordante da experiência.
Desta perspectiva, o ator/artetnógrafo gerador do Livro de Artista aproxima-se,
sobremaneira, da ideia de antropólogo investigada por Geertz e mais de antropólogos
pós modernos, que, começaram a olhar o próprio texto etnográfico como objeto de
interpretação e o trabalho de campo como espaço de troca de experiências. Um
antropólogo, que, como o artista, fomenta a construção de pontes entre
humanidades, sendo eles transmissores das mensagens do campo, mas também
portadores de questionamentos idiossincráticos, desvelados na produção da escritura
imagética/performática de seus cadernos de campo.

Bibliografia
CLIFFORD, James. A experiência etnográfica; antropologia e literatura no século XX. Rio
de Janeiro: Editora da UFRJ, 2002.
DAWSEY, John Cowart. Victor Turner e a antropologia da experiência. São Paulo:
Cadernos de Campo, 13:163-176, 2005.
______. Clifford Geertz e o “selvagem cerebral”: da mandala ao círculo hermenêutico.
Cadernos de Campo. São Paulo: USP, v. 12, PP. 113-118, 2004.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC Editora, 2008.
LYRA, Luciana de Fátima Rocha Pereira de. Guerreiras e Heroínas em processo: da
artetnografia à Mitodologia em Artes Cênicas. 2010. Tese (Doutorado em Artes
Cênicas), Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),
Campinas-SP, 2011.
______. Mito Rasgado: Performance e Cavalo Marinho na cena in processo. 2005.
Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas), Instituto de Artes. Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas-SP, 2005.
SILVEIRA, Paulo. As existências da narrativa no livro de artista. 2008. Tese
(Doutorado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós
gradução em Artes Visuais, Porto Alegre, 2008.
SOUSA, Márcia Regina Pereira de. O livro de artista como lugar tátil. 2009, Dissertação
(Mestrado). Universidade do Estado de Santa catariana, Centro de Artes,
Mestrado em Artes Visuais, Florianópolis, 2009.
TURNER, Victor. The Antropology of Performance. New York: PAJ, 1988.
Mímesis e infância: Notas sobre a construção de uma infância na escola de
educação infantil, Marcos Vinícius Moraes (PPGAS/USP)

Introdução
O que é infância? Como compreender os diferentes modos de ser criança, que,
como vasta bibliografia atesta, variam, presentemente, entre os diferentes grupos
sociais e variaram bastante ao longo da história? Afinal, tratar-se-ia apenas de
representações sociais, as quais seriam de alguma maneira distantes da vida e da
experiência histórica, ou, de modo diverso, seriam construções sociais que constituem
modos precisos de reger a vida e de relacionar organicamente os diferentes atores
sociais – crianças e adultos – ao mundo histórico-cultural? De fato, trata-se de uma
organização das fases da vida e da classificação das crianças neste sistema.
Quando iniciei minha pesquisa, em uma escola de educação infantil da cidade
de São Paulo, foram indagações desta natureza que animaram meu esforço de
observar atentamente cada fala, cada gesto, cada afeto e cada interação social das
crianças entre si e com os adultos – professores e funcionários da escola, mas também,
raramente, com seus pais e responsáveis. Parecia para mim que algo muito importante
acontecia naquele lugar, algo que desde a minha primeira pesquisa nestas escolas
sempre chamou minha atenção, o contraste, que eu presenciava, entre o meio urbano
– com seus comércios, o andar apressado dos transeuntes, o tráfego intenso e os
ruídos da paisagem sonora mais ou menos comum a qualquer grande cidade – e a
experiência vivenciada pelas crianças, alunos nessas escolas. De imediato, percebemos
a pintura dos muros, dermancando a fronteira entre estes espaços, sendo quase
sempre adornados com temas que prontamente reconheceríamos como infantis:
desenhos animados (no caso da escola pesquisa, personagens do livro de monteiro
lobato), meninos e meninas em idade escolar, tudo colorido em cores intensas. Porém,
tais adornos não diferem fundamentalmente do que observamos em parques de
diversões voltados ao público infantil, em buffets para festas de aniversário de crianças
e mesmo nas lojas de brinquedos. De fato, o que marca a especificidade deste espaço
é algo na paisagem sonora porque chama a atenção daqueles que passam próximos a
estas escolas: a associação entre os risos e barulhos de brinquedos com o tom
imperativo das professoras, por vezes acompanhado de súbito silêncio ou de
murmúrios de crianças envolvidas em seus afazeres escolares. Ouviam-se, portanto,
inúmeros ruídos que remetem à escola, mas apenas a aproximação e um
direcionamento da atenção poderia permitir distinguir e analisar as tensões
constitutivas de um modo de se compreender e vivenciar a infância.
Na escola de educação infantil, percebe-se este processo social pelo qual
crianças tornam-se alunos, os quais, por sua vez, aproximar-se-ão em etapas
sucessivas e progressivas da condição de adulto: cidadão pleno e trabalhador
qualificado, ou seja, de um falar infantil, o qual é considerado ingênuo, desarrazoado,
incompetente – no sentido de inapto para determinadas tarefas – e, geralmente,
inválido e ilegítimo, passa-se, em virtude do amadurecimento cognitivo, afeito e moral
e da instrução escolar, a um falar competente, apto a formular juízos e determinações
do sentido próprio a determinadas ações e procedimentos, e legítimo, enquanto
interlocutor adequado para aquele que pretende discutir e decidir acerca de questões
públicas e privadas. A criança seria dependente material e culturalmente do adulto, a
sua subordinação seria mais ou menos evidente, de modo que a sua participação na
vida social justificar-se-ia sobretudo pelo seu vir-a-ser, as crianças precisam ser
educadas para, no futuro, assumirem o peso das nossas tradições culturais e das
nossas estruturas sociais.
Ora, a evidência deste modo de pensar as relações entre adultos e crianças,
que enfatiza a dependência das crianças, falha ao menos em dois pontos, os quais
gostaria de destacar nesta apresentação: em primeiro lugar, destaca a dependência
das crianças em relação aos adultos sem atentar que, dialeticamente, ou seja, que de
modo intrínseco e contraditório a esta dependência, há a dependência dos adultos em
relação às crianças para que haja a continuidade do mundo histórico-cultural, para que
os elos das tradições culturais e as relações da estrutura social se mantenham e se
reproduzam – trata-se, de fato, de um peso, de uma enorme carga, que
conjuntamente a todos os monumentos da cultura, traz consigo as barbáries de nosso
tempo, pela manutenção de toda sorte de equívocos, preconceitos e iniqüidades33.
Evidentemente, a educação não precisa ser eminentemente conservadora, porém
creio que uma educação progressista não deve ser caracterizada por furtar à criança-
aluno o caráter horrível de nosso mundo, mas, pelo contrário, ela deveria dialogar com
a perspectiva infantil, a partir do próprio assombro que as crianças demonstram diante
deste horror, revelando o caráter profundamente problemático de nosso mundo e,
portanto, permitindo que as crianças exerçam a sua novidade sobre o mundo. Afinal,
como sugere Hannah Arendt, em A Crise da Educação, os fatos de educação articulam-
se estreitamente com o problema da natalidade, com o fato de que – continuamente –
novos atores sociais vêm juntar-se a nós, e que, com eles, com a novidade que eles
representam para o mundo, é possível precisamente este recomeçar. Portanto, a
criança não deve ser considerada, de modo unilateral, como um herdeiro.
Aqui já se torna mais ou menos evidente o segundo ponto de minha crítica: no
modo como geralmente pensamos as crianças, elas surgem como seres passivos, cuja
relação com o mundo não é tão problemática, sendo o desafio da educação vencer a
sua rudez, as cotidianas resistências ao ato educativo, e confirmar a sua disposição
para a educabilidade. É precisamente neste vínculo entre infância e educabilidade que
se institui – se constrói – a forma de infância que pude ver emergir entre os diferentes
discursos e práticas sociais da escola de educação infantil: uma infância escolarizada,
cuja personagem intitulei, em minhas análises, de criança-aluno.
A criança-aluno é um construto social que se caracteriza por um certo jogo
entre atividade e passividade: por um lado, é preciso que ela aja social e
discursivamente, que ela se apresente no encontro pedagógico, que ela instaure uma
fala infantil: esta articulação, presente na etimologia do termo infantil, entre a fala e a
condição de não-falante é interessante, pois, de fato, a criança diz e age na escola, mas
a validade e a pertinência de seus discursos e atos depende da avaliação (e, portanto,
da hierarquização) empreendida pelo adulto-professor.

Infância e mímesis

Cerca de sete horas e quarenta minutos, com uma ordem da


professora, os alunos guardam as suas coisas e sentam-se
para falar de alimentação.

33
Essas considerações, poderiam ser melhor desenvolvidas pelo recurso à análise da relação entre cultura
e barbárie nas reflexões de Walter Benjamin.
A professora Suzana pergunta: “A comida da escola é feita
com coisas boas ou ruins?”.
O coro das crianças responde: “Boas!”.
A professora diz: “A nutricionista vem para olhar o que está
sendo dado, se é saudável e bom. A alimentação é
importante para ficar forte e inteligente. É preciso comer
frutas, legumes, cereais. Todos os alimentos que o
organismo precisa”.
Segundo a professora, “Fast food não é saudável, nem
refrigerante”, devendo ser consumidos apenas “de vez em
quando”. Por outro lado, “a água é boa para nós, ela limpa,
purifica o nosso organismo”. Ela sairia na urina, que, assim
como o cocô, retira impurezas de nosso organismo.
“E o lanche da escola, é o que?”, a professora pergunta.
O coro das crianças responde: “Saudável!”.
A professora pondera que se a criança comer demais ela
pode vomitar. Por isso, deve-se comer apenas “o que cabe
na barriga”, com moderação. Porém, se alguém não comer
pode ter “dor de barriga de fome” ou anemia.
Em seguida, a professora enumera, conjuntamente a
algumas crianças, as frutas comestíveis, lembrando-as que
“não pode comer apenas lanche” ou “fritura”. Por fim, diz
que “as carnes brancas são melhores que as carnes
vermelhas”.
Ao retornarem do refeitório, a atividade consistirá em
escrever, após o cabeçalho da escola, o título “ALIMENTO
SAUDÁVEL”. Em seguida, devem citar textualmente e
imageticamente cinco alimentos diferentes que fazem bem e
dos quais gostam.
Incitadas pela professora, as crianças enunciam alimentos
saudáveis: pêra, pepino, arroz, lingüiça (a qual a professora
diz ser mais ou menos saudável), macarrão, beterraba,
abobrinha, etc.

***
No refeitório, lêem o cardápio. A professora pergunta o que
a banana é, se é legume? O coro das crianças diz que sim, e a
professora insiste até as crianças afirmarem que se trata de
uma fruta (inserindo este alimento na classificação
adequada).

***
Oito horas e vinte minutos, retornam para a sala de aula. A
professora Suzana explica as atividades de desenhar cinco
alimentos saudáveis, os alunos ainda devem recortar um
alimento saudável, em revistas que a professora distribui, e
colar em um cartaz, feito coletivamente, de alimentos
saudáveis. Depois, eles poderão ir à brinquedoteca.

***
Oito horas e trinta minutos:
Observo a atividade. As crianças copiam em diferentes
ritmos o cabeçalho e o enunciado da atividade, Bruno faz o
desenho de um foguete no espaço, ele não escreve o
cabeçalho.
Oito horas e trinta e cinco minutos:
Laura é a primeira a terminar. A professora avalia seu
trabalho e diz “muito bom”.
Oito horas e trinta e sete minutos:
Laura encontra um salmão na revista e, após mostrá-lo para
a professora, cola-o no cartaz. A professora diz que ela pode
procurar outro.
Oito horas e cinqüenta e cinco minutos:
Cerca de metade dos alunos terminaram a primeira
atividade. Eles passam, então, a recortar imagens de
alimentos em revistas. A professora elogia Kamily, a qual ao
desenhar os alimentos, “lembrou da água”.
Os alunos olham para as revistas, procurando alimentos
saudáveis, com os quais vão, progressivamente,
preenchendo o cartaz. Uma vaca, pois “ninguém come ela
assim”, uma garrafa de vinho e alguns frascos de remédios
são negados pela professora, por não serem alimentos ou
por não serem saudáveis. Da mesma maneira, a água é
negada, quando recortes desse tipo são trazidos em excesso
pelos alunos. (25 de março de 2009, na sala de aula e no
refeitório, entre as sete horas e quarenta minutos e às nove
horas da manhã).

Ora, então é pela organização das falas infantis, empreendida pelo regente, que
se produz discursos e práticas sociais legítimas e competentes. Ou seja, amplia-se o
espaço lógico e discursivo pelo qual se distingue, em nossa sociedade e cultura, a
criança do adulto. Uma comparação com as descobertas da antropologia da criança
em outros contextos socioculturais tornaria ainda mais evidente o modo como
infantilizamos as nossas crianças, afirmamos a sua dependência e incompetência,
ainda que a atenção a alguns fatos, como o de seu domínio das novas tecnologias –
muitas vezes superior ao nosso próprio domínio – e a sua capacidade de impelir os
seus, supostamente, independentes pais e responsáveis legais ao consumo – como
sabe bem todo publicitário que focaliza o mercado infantil -, indiquem a complexidade
das situações sociais em que crianças e adultos se relacionam, mesmo em nossa
sociedade.
Portanto, desde o início de minha atividade de pesquisa na escola, pretendi
estar atento a estas complexidades. De alguma maneira, três conceitos foram
fundamentais ao meu exercício de observação e teorização, a partir da etnografia,
sobre esta infância: mímesis, emergência e proveniência.
Em primeiro lugar, é preciso fazer uma breve acerca da noção de mímesis.
Trata-se, segundo Walter Benjamin, da “faculdade de produzir semelhança”, e,
portanto, de tornar-se um Outro, a qual, estando presente também na natureza
(mimetismo no reino animal), é, aparentemente, a fonte de todas as funções
psicológicas superiores no ser humano, sendo bastante intensos os comportamentos
miméticos nas crianças. Enfim, podemos pensar em todos os processos imitativos
pelos quais nos relacionamos com o mundo natural e histórico-cultural. De acordo com
Taussig (1993), antropólogo que ressaltou a importância de repensar esta noção de
mímesis, trata-se, esta noção: “da natureza que a cultura usa para criar uma segunda
natureza, a faculdade de copiar, imitar, de construir modelos, de explorar diferenças,
de engendrar e tornar-se Outro” (:53). Portanto, poder-se-ia afirmar que é partir dos
jogos de representação das crianças que se constituem nossos hábitos sociais e nossa
compreensão do mundo, tal perspectiva torna-se ainda mais atraente se
considerarmos que é por processos miméticos que tornamos sensíveis as nossas
representações sociais, trazendo “sensibilidade aos sentidos”, basta pensarmos o
quanto de nossa identidade pessoal não se funda apenas em uma idéia que temos de
nós mesmos, mas em uma experiência que temos de sermos nós mesmos e de
atuarmos como nós mesmos, ou seja, ao afirmar-me como aluno ou professor é
relevante para este reconhecimento tanto as representações sociais ou, se preferirem,
os discursos sobre o que seria isto em determinada sociedade e cultura, quanto a
experiência de, situado em determinado contexto sociocultural, ter-me apresentado e
atuado como aluno ou professor.
O problema na escola de educação infantil seria, diante da multiplicidade de
seres que as crianças se tornam por intermédio da faculdade mimética: carros,
princesas, caixas de supermercado, dinossauros, vendedores mudos, cachorros,
espiões, trabalhadores, alunos, etc., determinar alguns modos de ser, sentir e pensar
que seriam mais próprios e verdadeiros, em suma, modos mais reais de estar no
mundo. Em certo sentido, o modo mais real de estar no mundo de uma criança na
escola seria a sua condição de aluno, de modo que a mímesis reiterada desta
personagem torna-se o fundamento de uma compreensão de si como ser
estreitamente vinculado à escola e à relação pedagógica. Para que isso seja possível, é
preciso que ocorra o que denominei em minha dissertação de um controle da mímesis,
distinguindo, por um lado, nos diferentes espaços escolares, usos próprios e
impróprios desta faculdade e, por outro lado, hierarquizando os diferentes
desempenhos e competências.

Na sala de aula, a professora Sakura fala sobre a


importância das filas e do comportamento adequado em
diferentes instituições como os bancos, onde não importa o
primeiro, mas que seja respeitada a ordem da fila e que
todos sejam atendidos. Ela também fala do comportamento
adequado no refeitório, o qual deve ser como em um
restaurante, de modo a se evitar gritos e “bagunça”,
respeitando a fila. Ela indaga, de modo retórico, se é para
chutar a porta do refeitório e comportar-se mal lá dentro,
como tem ocorrido com alguns alunos. Felipe comenta: “No
GTA (Grand Theft Auto, um polêmico jogo eletrônico que
foca, em sua narrativa, a vida e carreira – Bildung – de um
criminoso), eu chuto a porta”.

Haveria, portanto, usos prestigiosos da mímesis como o da criança considerada,


pelos adultos, bem educada e, conforme avaliação da professora, um bom aluno.
Porém, por outro lado, haveria usos perigosos da mímesis, que não se restringem às
brincadeiras perigosas, que ameaçam a integridade física das crianças, mas se referem
também a inadequação das ações a determinados contextos sociais, como no caso da
bagunça – geralmente considerada como uma brincadeira que acontece fora de lugar -
, e também é considerada perigosa a resistência ao controle da faculdade mimética
presente na criança mal educada e no mau aluno, que não agem como se propõe.

Na sala de aula, após uma atividade de pintura, as crianças


brincam com blocos de montar. Dois meninos fazem armas
de fogo e a professora diz que são coisas feias de se fazer e
que eles deveriam fazer coisas bonitas. Em determinado
momento, todas as crianças já estão brincando com as peças
de montar e armas continuam emergindo. (11 de Março de
2009, cerca de meio dia).

Emergência e proveniência: infância, regência das relações de sentido e


constituição de um organismo

As complexas relações de poder que definem o sentido próprio de


determinadas interações sociais foram consideradas a partir da noção de emergência,
pois os sentidos emergem nestas relações entre os diferentes atores sociais em uma
determinada experiência significativa, que constitui uma cena. Ou seja, as diferentes
perspectivas e ações sociais convergem em determinada interpretação e definição da
situação social a partir de um determinado estado das forças dos diferentes atores
sociais. Em certo sentido, isto implica em uma relação estreita entre relações de
sentido e de poder no drama escolar analisado, pois, a partir das experiências
significativas vivenciadas na escola, alguns significados serão destacados enquanto
outros afastados, sendo que a atuação sobre estes sentidos emergentes nas
experiências significativas na escola foi denominada regência. No geral, eram as
professoras as regentes em sala de aula, sendo que, a partir da noção de experiência
em Turner é possível identificar os modos de atuação dos regentes na produção de
sentidos: em primeiro lugar, o regente pode provocar uma ruptura no fluxo da
experiência cotidiana, destacando um elemento deste cotidiano ou deslocando-o, o
cotidiano, para um momento extraordinário.
Em um dos trechos etnográficos anteriores, acerca da alimentação, é possível
observar este deslocamento do cotidiano ou, talvez de modo mais preciso, um
deslocamento da atenção das crianças para um elemento do cotidiano que se torna
extraordinário: a alimentação. Em um processo de regências das relações de sentido,
as crianças-alunos precisam sentir de modo diferente algo que, por haver se tornado
habitual, não implicava em maiores reflexões, problemas ou experiências significativas,
as quais, segundo Turner, possuem caráter formativo e transformativo.
Além disso, uma vez estabelecido este deslocamento, o regente pode atuar
sobre os processos rememorativos que se relacionariam a este momento presente,
pois, na perspectiva de Turner de uma experiência significativa, o significado surgiria
de uma “relação musical” entre o momento presente e o passado rememorado.

A professora pergunta para os alunos quais deles vivem em


casa e quais vivem em apartamento, ao que a maior parte
levanta as mãos para responder que vivia em casas. Então, a
professora explica o que seria apartamento: um prédio com
várias casas umas acima das outras.
Em seguida, ela afirma que a escola é um outro lugar,
perguntando aos seus alunos quais seriam os seus espaços:
sala de aula, refeitório, parque, quadra, brinquedoteca,
banheiro, informática (um menino lembra). Além disso,
informa que na escola haveria regras, as quais regeriam
estes diferentes espaços, lembrando às crianças do
combinado que estabeleceram no início do ano.
Por fim, pede para que durante o lanche os alunos pensem
na escola e nos seus espaços.
Quando retornam do refeitório, a professora retoma o
combinado, explicando-o como regras que regulam a
convivência na escola. Mostra, então, um cartaz com estes
acordos assinados pelos alunos em letra de forma.

Combinados do 3º Estágio A.

1 – Tratar todos com educação


2 – Cuidar do material escolar
3 – Só pegar o alimento que vai comer
4 – Ter hábitos de higiene
5 – Cuidar do ambiente escolar

Continuando a discussão sobre a escola, ela mostra aos


alunos um quadro com uma foto, em preto e branco, do
patrono da escola, Igor Macedo das Laranjeiras, cuja família
teria vindo na comemoração de 50 anos da escola, ocorrida
alguns anos atrás.
A professora Suzana pergunta: quem gosta da escola?
Joana diz não gostar por “ter de ir cedo”. Outros alunos
afirmam gostar da escola.
Os alunos recebem um desenho da escola, segundo
orientação da professora, devem observá-lo, em seus
detalhes, e colori-lo, sem “rabiscos”. (11 de Março de 2009,
na sala de aula das sete horas e quarenta minutos às oito
horas e vinte minutos).

Por fim, os diferentes significados seriam comunicados em performances


elaboradas pelos atores sociais envolvidos pela experiência, sendo que o regente
pode, então, destacar determinados significados e atenuar outros.
Neste sentido, seja no caso da alimentação, seja no caso da brincadeira com
peças de montar, há sentidos considerados adequados e outros inadequados para as
experiências significativas desenvolvidas no âmbito da relação pedagógica.
Certamente, há limites a capacidade do professor regente de elaborar determinados
sentidos por meio de experiências significativas, de modo que seria importante
examinar esses limites: experiências que não se tornam significativas, a emergência de
memórias e, portanto, significações involuntárias, o modo como as próprias crianças
exercitam outras regências em sala de aula, excluído a pretensão do professor de um
monopólio dos usos legítimos das falas e dos gestos na relação pedagógica.
O controle da mímesis é exercido, principalmente, por este processo de
regência das relações de sentido na escola, sendo o resultado deste processo social a
afirmação da condição de aluno, bem como a sua hierarquização a partir dos
diferentes desempenhos. Portanto, a formulação da noção de regência atende a
necessidade de elaborar um modo singular pelo qual processos de significação,
relações de poder e a construção social da realidade articulam-se na escola de
educação infantil.
No entanto, há ainda o problema de compreender a relação entre estes modos
de elaborar a construção da realidade nos tempos e espaços pedagógicos da escola – a
sala de aula, de informática e, por vezes, a sala de leitura e vídeo – e as experiências
significativas elaboradas nos tempos e espaços pediárquicos – a brinquedoteca, o
parque de brincadeiras, a quadra de futebol e a pracinha – em que as crianças podem
desenvolver, no interior de suas brincadeiras e jogos, o seu próprio sentido para o
drama vivenciado por elas. Apesar do caráter “irrelevante” em termos estritamente
pedagógicos desse brincar, ainda que se reconheça que ele é importante para as
crianças, é precisamente nestes tempos e espaços que se percebe surgirem
indagações sobre o caráter problemático da realidade do mundo histórico-cultural, ao
menos se interpretarmos do ponto de vista de uma maior reflexividade, e não como
reprodutibilidade social, as performances das crianças nestes tempos e espaços.

Katia e Brisa locomovem-se pela sala com os triciclos e


carregam embalagens vazias de alimentos industrializados,
as quais vi, certo dia, a coordenadora levar à escola, para
dispô-los na brinquedoteca. Elas estão montando um
Mercado.
Kamily coloca os produtos em exposição na janela, e ‘tira
fotos’ deles. Uma outra menina também brinca com uma
máquina fotográfica.
Letícia fantasia-se com um vestido. Brisa diz para Kamily:
‘Filha, eu trouxe mais uma coisa’. Em seguida, Brisa passa a
brincar de caixa de supermercado com um teclado e um
telefone. Ela diz para uma outra criança que tenta ligar:
‘Aqui não é para ligar, aqui é o caixa’. Kamily diz: ‘O próximo
horário é meu’.
Letícia é uma cliente do supermercado. Brisa diz: ‘É trinta
mil e mil!’. Letícia responde: ‘Nossa!’. E Brisa completa: ‘É
tudo caro, moça’.
Após alguns minutos, Brisa diz: ‘Eu já vou embora’ e, para
Kamily, ‘fica no caixa’.
Ela completa dizendo: ‘Eu vou buscar meu bebê!’. Letícia
acompanha-a: ‘Eu também!’.
As meninas vão buscar outros brinquedos, seus “bebês””,
para quem Brisa pega um livro para ler. Brisa também pega
um celular, imita seu toque (um tarãrãrã grave) e conversa.
Ao atender ao telefone, ela conversa com Jéssica, dizendo
que não poderá ir, declinando um convite para sair, pois
terá que cuidar da sua filha, a qual teria nascido há pouco
tempo.” (13 de Março de 2009, na sala de aula e na
brinquedoteca entre as nove horas e quarenta minutos e as
dez horas).

***

Na sala de leitura, David afirma: “Queria tocar piano”, ele


escorrega a mão pelo teclado do instrumento, o qual
permanece fechado.
Próximo dali, ele brinca de escola com Joana e Beatriz. Joana
seria a professora e David um aluno que não quer obedecer
e que teria agredido a sua colega, Beatriz. (06 de Novembro
de 2009).

De fato, há relações tensas entre a construção da realidade do ser aluno na sala


de aula e as atividades do brincante no parque, pois é possível que os usos da mímesis
nos espaços de brincadeira desestabilizem os significados construídos nos espaços de
trabalho escolar, uma vez que seria possível reconhecer – pela brincadeira – o caráter
fictício, no sentido de construído, de ambas as performances as da sala de aula e as do
parque. Por que isto não ocorre? Em primeiro lugar, é importante compreender, na
análise da escola de educação infantil, a relação funcional que se estabelece entre a
sala de aula e o parque de brincadeiras, em que atuar de modo adequado na sala de
aula – ser um bom aluno – condiciona a freqüência no parque de brincadeiras. Neste
sentido, é comum que a bagunça em sala de aula seja interpretada pelas professoras
como a emergência da brincadeira em local e tempo inadequado, ou seja, se institui
uma distinção entre um tempo de estudo e um tempo de brincar. Em segundo lugar,
esta relação funcional, como já deve ter ficado evidente pelo dito anteriormente, é de
caráter hierárquico, ou seja, em termos valorativos, na escola de educação infantil, o
brincar encontra-se subordinado ao estudar e, conseqüentemente, a realidade do
parque de brincadeiras encontra-se subordinada a realidade da sala de aula, de modo
que enquanto na sala de aula, pela reiteração da imitação do aluno, produz-se uma
realidade social, no parque de brincadeiras produz-se fantasias e seres de
“mentirinha”, sendo vedada a compreensão do próprio aluno como um outro ser de
“mentirinha”. Dessa maneira, o efeito disruptivo das experiências vivenciadas no
parque de brincadeiras é atenuado: o Corpo-sem-Órgãos, a infância enquanto estado
de contínua experimentação, é separado do organismo do ser aluno. E isto nos conduz
ao último conceito anunciado anteriormente, a proveniência.
A proveniência refere-se ao corpo em sua articulação com a história, sendo que
este conceito permite analisar como a construção social de realidade ocorre em
estreita conexão com processos que atuam sobre o corpo, que o manipulam e deixam
suas marcas sobre ele, sendo que a análise da proveniência desta realidade permite
“mostrar a heterogeneidade do que se imagina em conformidade consigo mesmo”
(Foucault, 1979 [1971]: 21), ou seja, mostrar, por exemplo, que sob o nome de aluno
encontra-se uma multiplicidade de experiências sociais diversas, bem como modos
distintos de associar-se corporalmente ao processo histórico, sendo, por isso, que se
torna instigante a análise do tornar-se aluno na escola como um processo pelo qual se
constitui um organismo do ser aluno, o qual implica modos próprios de ser, sentir e
pensar que se apresentam enquanto disposições corporais próprias. Tornar-se aluno
envolve uma ordenação do corpo: das percepções (atenção ao escrito na lousa e ao
dito pela professora), dos gestos (como sentar-se, como manipular os instrumentos de
trabalho, como adequar-se aos ritmos e intensidades do trabalho escolar), dos afetos
(como se envolver nas atividades escolares, como participar e controlar os desejos
contrários ao encontro pedagógico, etc.), dos pensamentos (adequação aos modos
discursivos da sala de aula e aqueles propostos pela professora), etc. De modo geral,
este conjunto é estruturado, pacientemente, ao longo dos dias letivos por processos
freqüentemente mínimos que terminam por constituir este organismo do aluno,
distinto de qualquer outra possibilidade de ser, ainda que nas fissuras dessa
construção, marcadas pelo estudo da proveniência, apresentem-se ameaças a este
ordenamento: na bagunça e nos ruídos sempre presentes na relação pedagógica.
Porém, uma mímesis dissolvente deste organismo encontra-se precisamente no
parque de brincadeiras, em que diferentes brincadeiras evocam um questionamento
radical do humano e do modo de ajuizarmos, por exemplo, os fenômenos naturais.

No parque de brincadeiras, alguns meninos, da sala da


professora Giovana, gritam seu grito de guerra mostrando
suas garras e mandíbulas. Eles se mordem e se arranham e,
gritando, correm pelo parque. Eles brincam de uma
modalidade de “pega-pega”. Bruno diz que: “quando
dinossauros existiam, não existiam homens”.

***

Os meninos que brincam de dinossauros sentam-se para


decidir qual dinossauro cada um deles será. Um deles diz
que escolherá pelos demais. Escolhem: Velociraptor,
Dinossauro Rex (sic), Pterodactilo, e “aquele que tem
espinhos nas costas”. Voltam a correr pelo parque, urrando
como dinossauros (18 de Março de 2009, no parque, entre
as dez horas e vinte minutos e as dez horas e cinqüenta
minutos).

***

Greta e Thamires brincam de derrotar uma bruxa. Greta


pergunta para mim: “Como fazemos para vencer a bruxa?”
Eu respondo: “Não sei”.
Greta: “Ela (Thamires) disse que você sabe”.
Respondo: “Então, digam a palavra mágica”.
Greta: “Qual? Você sabe?”
Respondo: “Abracadabra!”
As meninas saem animadas para derrotar a bruxa, dizendo:
“Vamos lá! Contra a bruxa, somos as fadas do bem!” (Uma
delas seria a rosa e a outra a colorida). Elas vão ao
“varinhista” para conseguir uma varinha contra a bruxa.
Elas retornam dizendo que derrotaram a bruxa. Então,
subitamente, elas me transformam em mal e saem correndo
assustadas.
Greta dança a “dança do piuí” (Piuí abacaxi! Piuí Abacaxi!,
repetidas vezes.) e afirma não conseguir parar, sem saber o
porquê de estar fazendo aquilo (ela age como se estivesse
enfeitiçada). Por fim, elas conseguem retirar a minha
maldade com a sua mágica (29 de Abril de 2009. No parque
de brincadeiras).

A referência para pensar estas relações entre o parque de brincadeiras e a sala


de aula é o teatro de Antonin Artaud, para quem, em um trecho do Primeiro Manifesto
do Teatro da Crueldade:
Nem o Humor, nem a Poesia, nem a Imaginação significam
qualquer coisa se, por uma destruição anárquica, produtora
de uma prodigiosa profusão formas que serão todo o
espetáculo, não conseguem questionar organicamente o
homem, suas idéias sobre a realidade e seu lugar poético na
realidade.

Considerações finais: a passagem para o ensino fundamental e o


desaparecimento do parque de brincadeiras

Contudo, no ensino fundamental o parque de brincadeira não se encontra


presente cotidianamente, mas apenas de modo esporádico, assim, em certo sentido,
esta experiência do Corpo-sem-órgãos é afastada pela compreensão da infância, com
todas as suas potencialidades de experimentação como modos de ser, sentir e pensar,
como uma recordação: as crianças lembram-se do parquinho e sentem uma certa
nostalgia daqueles momentos, os quais estariam irremediavelmente perdidos para um
adulto bem educado.
Todavia, é possível destacar um outro plano em que o Corpo-sem-Órgãos
emerge cotidianamente na escola de ensino fundamental (e também na educação
infantil), trata-se da bagunça, em que se experimentam transformações nos espaços e
tempos escolares, bem como nas interações sociais que os estruturam, o que,
freqüentemente, envolve um certo risco de ruptura com a realidade produzida entre
os muros da escola e, também, um risco de tornar-se um “prisioneiro da passagem” de
aproximar-se excessivamente da loucura.

No horário em que os alunos começam a ir para o pátio,


cerca de dez minutos para as dezesseis horas, eles são
impedidos pela inspetora de fazê-lo, pois estava chovendo.
Muitos alunos acumulam-se na porta fechada e a inspetora
os dispersa, pedindo para que saiam da frente da porta. Uma
outra inspetora censura um grupo de meninos, entre os
quais Breno, que chutavam um pote de iogurte como bola
em um jogo de futebol improvisado.
Começa a ouvirem-se gritos pelo refeitório e alguns alunos,
como Paulo, Iara, Maria, Tatiana e Laura K. entre eles, levam
as suas mãos aos ouvidos. Os gritos aumentam de potência
até que muitos dos cerca de 180 alunos (duas turmas dos
primeiros anos e quatro turmas dos segundos anos)
estarem gritando, em um espaço de, aproximadamente, 80
metros quadrados.
Pouco depois, as professoras chegam ao refeitório, pedem
para que suas turmas formem filas e levam os seus alunos
para as salas de aula.
Então, uma inspetora reclama: “Isto aqui é um hospício!”, e
uma professora completa: “Dia de chuva é complicado!”. (03
de Março de 2010, no refeitório).
Indico, assim, o modo como Foucault, em História da Loucura, compreendeu o
papel da loucura como um modo de contestação dos construtos e valores da cultura
ocidental:

Essa loucura que liga e separa o tempo, que curva o mundo


no fecho de uma noite, esta loucura tão estranha a
experiência que lhe é contemporânea não transmite, para os
que são capazes de acolhê-la – Nietzsche e Artaud – essas
palavras apenas audíveis, do desatino clássico, onde o que
estava em jogo era o nada e a noite, mas ampliando-as até o
grito e o furor? Mas dando-lhes pela primeira vez, uma
expressão, um direito de cidadania na cultura ocidental, a
partir da qual se tornam possíveis todas as contestações e a
contestação total? Devolvendo-lhe sua primitiva selvageria?
(:424-5).

Trata-se, de fato, de um jogo arriscado da emergência de outros sentidos para


as experiências sociais vivenciadas na escola.
Sessão Napedra 4: Narrativa e imagem

Coordenação: Rita de A. Castro (UnB)

Alice Vilella Pinto (PPGAS/USP)


Diana Paola Gómez Mateus (PPGAS/USP)
Kelen Pessuto (IA/Unicamp)
Performance e Experiência Estética, Rita de A Castro (UnB)

Resumo: Neste artigo reflito sobre o processo de criação e experimentação


com performances mediado com recursos da arte computacional e que resultaram na
produção de uma série de vídeos documentais realizados, ao longo dos últimos quatro
anos. Farei um breve relato sobre as performances criadas neste período e as
inquietações e questionamentos suscitados por essas experiências.
Tanto em rituais ancestrais como nos contemporâneos há uma tendência a que
todos sejam partícipes da mesma celebração; em manifestações estéticas ocorre,
muitas vezes, um deslocamento entre quem faz e quem vê. Na contemporaneidade
convivemos com uma explosão de possibilidades, pode-se ter uma forma cênica com
espectadores, ou prescindirmos do espectador e todos serem atuantes na cena. Se
ampliarmos o diálogo para a performance, temos uma multiplicidade de abordagens
possíveis: com espectadores, sem espectadores, para espectadores. Na reflexão que
proponho, situo o atuante em cena, o interator, aquele que desempenha um papel
ativo e interage com o sistema, como performer.
Narrativas que “fazem existir”: aproximações entre a produção de imagens
no contexto do xamanismo e no audiovisual, Alice Villela (PPGAS/ USP)

Resumo: As narrativas dos xamãs Asuriní do Xingu (PA) são relatos de


experiências em primeira pessoa ao mundo dos espíritos, lugares só conhecidos por
eles que passam a existir como realidade ao se tornarem visíveis a partir de seus
depoimentos. O momento em que os xamãs Asuriní contam suas viagens às diferentes
zonas cósmicas é durante o rito petymojap, dentro dos rituais xamanísticos maraká. A
partir de sugestão dos Asuriní, este paper pretende refletir, à luz da abordagem da
performance, as relações possíveis entre o audiovisual e as narrativas dos xamãs em
suas capacidades de “fazer existir” universos “virtuais”.
Palavras-chave: narrativa; xamanismo; audiovisual; performance; Asuriní do
Xingu.

Abstract: The narratives of Asuriní Xingu shamans (PA) are first hand accounts
of experiences with the spirit world, places known only by them, which enter into
reality when they become visible through the shamans' testimonies. The moment in
which the Asuriní shamans tell the stories of their trips to different cosmic zones is
during the petymojap rite, within the rituals of xamanísticos maraká. Based on Asuriní
suggestion, this article aims to reflect, in the light of the performance approach, the
possible relationships between the audiovisual and the shamans' narratives through
their abilities to make "virtual" universes "exist".
Keywords: narrative; shamanism; audiovisual; performance; Asuriní Xingu.

A aproximação entre o audiovisual e as narrativas dos xamãs Asuriní do Xingu 34


sobre suas viagens ao mundo dos espíritos surgiu a partir de sugestão feita pelos
índios durante a exibição na aldeia, em 1997, do filme “A guerra do fogo”, que trata do
embate de duas tribos de homens primitivos, uma delas de homens-macaco. Durante
a sessão, um dos índios comentou que o filme faz o mesmo que o xamã quando conta
suas viagens cósmicas: faz existir como realidade acontecimentos e lugares só
conhecidos por eles. Assim, os relatos do xamã e a imagem em movimento seriam
narrativas que fariam existir realidades virtuais, que se encontram no espaço e no
tempo mítico35.
Os Asuriní do Xingu convivem há muitos anos com sua imagem gravada.
Diversas esferas da vida social indígena foram documentadas para estudos
etnográficos, produções audiovisuais, exposições e para o registro destinado aos
índios36. Quando levei para a aldeia a extensa documentação em vídeo do ritual

Notas
34
Grupo Tupi-Guarani que vive em uma única aldeia na margem direita do rio Xingu na Terra Indígena
Koatinemo, município de Altamira (PA). Somam aproximadamente 145 índios e foram contatados na
década de 1970 na ocasião da construção da rodovia Transamazônica.
35
Segundo explicação dada por Müller (2000, p. 12) na ocasião da exibição, os homens-macaco seriam
os “antepassados dos brancos”, ao que os índios concluem que o filme “A guerra do fogo” fazia existir o
passado mítico do homem branco.
36
Como é o caso do extenso acervo audiovisual resultado de trinta anos de pesquisa da antropóloga
Regina Müller entre os Asuriní que serviu como material didático a ser utilizado na Escola Indígena
Kwatinemo, no âmbito do projeto piloto de educação diferenciada implantado pela Secretaria Municipal
xamanístico Apykwara, gravada durante pesquisa de campo para minha dissertação de
mestrado37 e utilizada como matéria-prima para a montagem do filme
Acontecências38, chamou atenção o desinteresse de More’yra, principal xamã Asuriní,
pelas imagens do ritual recém-realizado e seu comentário dizendo querer ver
“jawara”, referindo-se ao filme Morayngava realizado pelas antropólogas Regina
Müller e Virgínia Valadão em 1997. Em Morayngava, as autoras utilizaram recursos de
sobreposição de imagens e efeitos especiais para marcar a passagem de um domínio
do cosmo para outro e assim, acompanhar a produção de imagens dos xamãs nas
narrativas de suas viagens a outros mundos39. O xamã, então, pediu que eu realizasse
uma montagem nos mesmos moldes, tematizando sua viagem ao mundo de um outro
espírito, desta vez, o espírito-animal Tajaho (porco do mato).
O comentário do índio Asuriní durante a exibição do filme “A guerra do fogo”
em 1997, e o pedido do xamã para que eu realizasse a montagem de um filme sobre o
espírito Tajaho dez anos mais tarde, despertaram o desejo de investigar mais
profundamente as relações sugeridas pelos Asuriní entre narrativas míticas de viagem
ao mundo dos espíritos e as potencialidades do meio audiovisual como forma
expressiva, a partir do que formulei algumas questões: Como imagens verbais criadas
com o relato do xamã e imagens audiovisuais “fariam existir” universos virtuais? E
quais as semelhanças e as diferenças da produção imagética no contexto do
xamanismo40 e do audiovisual?

A performance do mito41 e do filme


As questões apresentadas acima me levaram a pensar tanto as narrativas dos
xamãs ao mundo dos espíritos, quanto o filme em exibição em seu caráter

de Educação - SEMEC de Altamira em 2006, e assessorado por equipe de antropólogos entre os quais
me incluo.
37
Intitulada Das Acontecências: experiência e performance no ritual Asuriní. Pesquisa de mestrado
realizada no âmbito do Programa de Pós-graduação em Artes da Unicamp, sob orientação da Profa. Dra.
Regina Polo Müller com financiamento da Fapesp – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo e concluída em fevereiro de 2009.
38
Acontecências. Cor, 23 min. DV, 2009. Direção: Alice Villela e Hidalgo Romero. Realização:
Unicamp e Laboratório Cisco. Apoio: Fapesp- Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo e
Kinostúdio Cinema Digital. Participação no Festival Internacional de Documentários de Amsterdã (2009)
e no Festival É Tudo Verdade (2010).
39
No filme, tratava-se do espírito Tivá, traduzido pelos Asuriní como jawara (onça), espírito xamã
primordial, de acordo com a classificação dos seres de Müller (1993), que, segundo descrições dos
Asuriní, é um misto de onça com pássaro.
40
Segundo Carneiro da Cunha (1998, p. 12), o xamanismo opera no sentido de “interpretar o inusitado,
conferir ao inédito um lugar inteligível, uma inserção na ordem das coisas” e apenas o xamã “[...] por
definição, pode ver de diferentes modos, colocar-se em perspectiva, assumir o olhar de outrem […]. E é
por isso que, por vocação, desses mundos disjuntos e alternativos, incomensuráveis de algum modo, ele é
o geógrafo, o decifrador, o tradutor” (Ibid., p. 17). Destaca-se que a definição apresentada pela autora se
refere à teoria do perspectivismo ameríndio. In: Viveiros de Castro, 2002.
41
Desde o surgimento da antropologia enquanto disciplina, diversos estudiosos de dedicaram ao tema
dos mitos e das narrativas míticas. Dos evolucionistas Tylor e Frazer, passando por Boas e Levi-Strauss, o
tema foi bastante explorado em análises a partir de diferentes abordagens que, por muito tempo, tomaram
os mitos e as narrativas da tradição oral como textos fixos. Langdon (1999) faz um balanço de autores
surgidos nos últimos 30 anos que trabalham com a idéia de que o mito como narrativa pode ser
apreendido em contexto de interação social, com ênfase nas suas qualidades dramáticas e performáticas.
Assim, cita os trabalhos que pensam as narrativas e a tradição oral como dircurso (Basso, 1990; Urban,
1991, Tedlock, 1983) e como performance (Bauman, 1977, Turner, 1987).
performático. Mas antes de entrarmos propriamente na noção de performance que
aqui será operacionalizada é preciso dizer que o mito narrado pelos xamãs nos rituais
Asuriní não é uma narrativa da ordem do passado42, que ele traz para o presente, o
mito Asuriní está acontecendo no momento presente e apenas os xamãs tem acesso a
este universo participando de sua construção através da sua capacidade de se colocar
em perspectiva (Cf. Viveiros de Castro, 2002). Para além do mito vivido no presente
pelos xamãs, o momento da narrativa de suas experiências “faz existir” para a
audiência do ritual algo que havia sido vivido apenas individualmente; é só dessa
maneira, como uma experiência eminentemente pessoal, que o universo extra-
humano se apresenta para os xamãs.
Tomamos algumas referências relacionadas à noção de performance43, a partir
do paradigma proposto por Turner (1982, 1987), que apresenta o enfoque da vida
social através de sua práxis e na interação dos atores sociais. O autor se interessa pela
metáfora do drama para pensar a vida social e, posteriormente – e eis aqui o que nos
interessa –, pelas “performances culturais” a partir dos trabalhos desenvolvidos por
Singer (1972) e Schechner (1985, 1988). Nessa perspectiva, os momentos de
performance aparecem como momentos de reflexividade, que podem levar à
transformação – a narrativa é vista como um evento social, que envolve experiência,
subjetividade e expressões artísticas.
A performance, enquanto manifestação sensível da realidade que pode ser
apreendida por meio de sua elaboração estética, opera com uma linguagem poética da
qual o corpo é o veículo que dá forma ao que se quer comunicar, e que exige a
presença de uma audiência. É neste último ponto que nos detemos para pensar a
perfomance do xamã como capaz de “fazer existir” universos virtuais. Como afirma
Bauman (1977), nas performances narrativas, o tempo e o espaço do contador
encontram-se com o tempo e o espaço da audiência, propiciando uma interação, um
diálogo e uma troca de experiências que estão, neste "aqui e agora" compartilhado,
mostrando a própria cultura em emergência.
Em suas abordagens de eventos performáticos diversos, Schechner (1985)
enfatizou a relação dos performers com o público. Para aprofundar esse aspecto, o
autor analisa as relações entre os significados da produção teatral – gestos, danças,
passos, modos de diálogo, maquiagens, máscaras, dentre outros, e o tipo particular
de “entretenimento” desfrutado pelos espectadores de um evento performático
particular, a performance do drama em sânscrito Natyasastra44. Participar de uma
performance significa deslocar-se para determinado local, estar no ambiente exclusivo
ou, então, penetrar em espaços reservados, físicos e simbólicos, de um “mundo
recriado” momentaneamente; envolver-se na experiência de “ser levado a algum

42
Neste ponto observo algumas semelhanças entre as narrativas dos xamãs Asuriní no maraká e os
cantos xamanísticos marubo analisados por Cesarino (2006) que, segundo autor, descrevem diálogos e
imagens das viagens do xamã e não falam de um passado remoto, rememorado pela narração.
43
Langdon (1999) afirma que o conceito de performance surgiu de dois paradigmas na antropologia
atual: a vida social como drama social, tendo como representantes autores como Victor Turner (1987),
Clifford Geetz (1978) e outros, e a “performance como evento”, que evoluiu dentro do campo da
etnografia da fala, marcado pelo cruzamento de interesses de linguistas, folcloristas, antropólogos e
filósofos e que tem como um dos principais expoentes Richard Bauman (1977).
44
Trata-se de um texto dramatúrgico indiano compilado entre 200 a.C e 200 d.C, e que contém detalhes
da estrutura narrativa mítica de performance teatral fixada e realizada num primeiro momento por deuses
e depois trazida à terra para as pessoas desfrutarem, o clássico drama em sânscrito que deu origem a
outras tradições do teatro-dança (Schechner, 1985, p. 136).
lugar”, quando num estado de “transe”, ou o desafio psicológico de tornar-se “outro”
sem deixar de ser si mesmo, quando da representação cênica de um personagem
qualquer, experiências que dizem respeito ao performer. Schechner também se
interessa pelas mudanças que acontecem com performers e audiência; assim, fala em
‘transportação’ e ‘transformação’ como processos integrantes do movimento continuo
do ritual ao teatro (e vice-versa) que ele define como performance (Schechner, 1985,
p. 126).
O encantamento do xamã Asuriní pelas imagens audiovisuais do mundo dos
espíritos traz à tona a própria natureza do material audiovisual, que se aproxima da
narrativa mítica no rito petymojap. Mac Dougall (1998, p. 81 e 84) afirma que o filme
está para o ritual e para o teatro pois seu significado é proposicional e performativo45.
As abordagens de fenômenos sociais, da perspectiva de sua performatividade ou
performance, nos faz pensar que num ritual, por exemplo, o significado não se
encontra na ação simbólica e social, mas na sua performatividade. No caso do filme, a
performance se completa na relação entre o cinema, o real e o espectador, o que
Menezes (2004, p. 44) chama de representificação: “[...] como algo que não apenas
torna presente, mas que também nos coloca em presença de, relação que busca
recuperar o filme em sua relação com o espectador. O filme, visto aqui como filme em
projeção, é percebido como uma unidade de contrários que permite a construção de
sentidos. Sentidos estes que estão na relação e não no filme em si mesmo” (grifos do
autor).
A abordagem da performance permite pensar a narrativa do xamã e a exibição
do filme em suas capacidades de “tornar presente” e “fazer existir”. Como afirma
Zumthor (2000, p. 37), a performance realiza, concretiza, faz passar algo que eu
reconheço, da virtualidade à atualidade. A partir da performance do xamã Asuriní no
rito petymojap, locais conhecidos apenas por ele passam a existir como realidade ao se
tornarem acessíveis aos demais membros da aldeia: é o xamã contando que faz existir
os universos sobrenaturais. Não apenas o xamã cria imagens verbais ao narrar suas
peripécias como jaguar ou porco do mato, mas, sobretudo, cria imagens performando
com seu corpo que, em outras ocasiões, transforma-se em espírito na terra.

Ver o invisível
Uma outra entrada para pensar as relações entre mito (em ação) e filme (em
exibição), sugeridas pelos Asuriní, pode ser a abordagem de ambos como momentos
de visualização do invisível. Assim, a audiência tanto da performance do xamã como da
performance do filme é convidada a penetrar em um universo de imagens de um
“mundo recriado” momentaneamente.
Há na literatura acerca de sociedades ameríndias, diversos trabalhos
que abordam as experiências de visualização do sobrenatural. Entre os Suya, o sentido
da visão permite explorar a percepção dos ameríndios sobre seus contatos com as
alteridades extra-humanas, muitas delas de existência invisível, e também as redes
sociais, os processos de elaboração das identidades pessoais e étnicas (Seeger, 1987).
Para os Wauja (Barcelos Neto, 2004), a visão manifesta-se na produção simbólica de
um mundo invisível (agentes patogênicos, alteridades extra-humanas) e na produção

45
E diz que o filme pode colaborar para um tipo de ‘antropologia performativa’, que busca um
conhecimento experiencial, que não pode ser separado do domínio da ação. Ver MacDougall (1998, p.
81).
de sua visualidade concreta (desenhos, artefatos, pinturas, adornos corporais,
máscaras, e flautas). Ver o invisível é atividade de alto valor estético acessível àqueles
que detêm habilidades especiais. Assim, entre os Wauja, como entre os Asuriní, o
xamanismo encontra-se no centro da produção artística. Sonhos, transes, morte,
doenças graves são contextos de visualização do “sobrenatural”.
Entre os Ashaninca do Peru, o ayahuasca é visto como uma espécie de televisão
e meio de acesso para a visão do “sobrenatural”. Segundo Narby (1998, p. 109), o
ayahuasca é na verdade a “televisão da floresta”, por intermédio da qual “você pode
ver imagens e aprender coisas”46. Segundo Peter Gow, “[n]a região do Alto Ucayali, no
leste do Peru, as pessoas referem-se jocosamente ao alucinógeno ayahuasca como el
cine del monte, o cinema da floresta”. As relações entre as experiências visuais do
cinema e do ayahuasca são diversas, além de a droga ser tomada no escuro, “[a]s
alucinações hacen ver: tanto as origens da doença, como objetos de feitiçaria
brilhando no corpo de um doente, países distantes, parentes mortos ou distantes
etc.”. “Assim, o ayahuasca é uma planta da floresta que permite o acesso à verdadeira
identidade da floresta, como o cinema, um produto estrangeiro, permite o acesso
visual a países distantes, ao ‘lado de fora’” (Gow, 1995, p. 44).
Barcelos Neto (2004) propõe a criação de desenhos em cor como possibilidade
de recriação das imagens oníricas que existem de modo “bruto” nos sonhos e
descrições verbais dos xamãs. A criação de imagens de seres sobrenaturais é, para os
Wauja, sempre uma descoberta pessoal, ao passo que as experiências com o
sobrenatural são sempre individuais. Entre os Asuriní também a experiência da viagem
ao mundo sobrenatural é uma experiência vivida individualmente e contada em
primeira pessoa durante o rito petymojap (petym = charuto; omojap = acender), no
contexto dos rituais xamanísticos maraká. Müller (1993, p. 185) afirma que nessas
reuniões os xamãs trocam entre si experiências individuais de suas viagens às
diferentes zonas cósmicas, conferindo, reafirmando e recriando formas, processos e
conteúdos da cosmologia.
Entre os Asuriní, os rituais xamanísticos são contextos de visualização do
invisível e do contato com o sobrenatural por meio de uma experiência que vai além
do sentido da visão, na medida em que é vivida no e pelo corpo. O xamã tem a
capacidade de estabelecer contato físico com os espíritos e, através dele, garantir a
vida na aldeia pelo intercâmbio de substâncias (Id., 1996, p. 154). É ele quem regula a
circulação do princípio vital (ynga), tanto pela transubstanciação e consubstanciação
da substância vital (ynga), proveniente dos espíritos, quanto pelo controle dos fluxos
de ynga na captura e produção de imagens (ayngava) dos humanos47. O xamã Asuriní
desloca-se para os mundos habitados pelos espíritos48. Esses mundos são semelhantes
ao dos humanos, contam com suas aldeias e população; “[...] recebendo nomes

46
Para os Kaxinawa, o kene kuin (desenho verdadeiro) é obtido por meio da experiência visionária com
ayahuasca: “[...] o tempo mítico e os mundos dos yuxibu se tornam acessíveis á experiência através de
uma imersão no mundo das imagens, chamadas dami e yuxin” (Lagrou, 1998, p.183).
47
A primeira televisão com antena parabólica que os Asuriní adquiriram – como recompensa à ajuda
oferecida pelos índios a um avião do IBAMA que caiu na Terra Indígena - ficou sob a guarda do xamã
More’yra, que controlava suas exibições e, assim, o fluxo das imagens de ‘fora para dentro’.
48
Segundo visão do cosmos apresentada pelo xamã Juruí, o universo se organiza e é constituído
basicamente por caminhos. Müller sugere uma correspondência entre a topografia aldeia/caminhos na
mata e a topografia mundo dos humanos/mundo dos espíritos. O universo é a extensão do mundo dos
humanos estendido à mata e ao mundo dos espíritos (Müller, 1993, p. 189).
próprios que o identificam com as diferentes espécies desta categoria de seres49, ele
também se casa e tem filhos nestes outros níveis cósmicos assimilando seus hábitos e
integrando-se à ‘vida social’ existente nesses mundos”. O xamã realiza essas viagens
durante o transe nos rituais xamanísticos ou durante o sono. Nos rituais maraká
terapêuticos, o xamã perde os sentidos (omano = morre), vai para o mundo dos
espíritos, onde é um deles, e, nos propiciatórios, o pajé transforma-se em espírito na
Terra (ou seja, o espírito vem para o mundo dos humanos), no estado de semitranse
(desmaia) ou comportando-se como um deles na aldeia (Id., 1993, p. 164 e 184).
Uma etnografia das sessões de petymojap – momentos em que os xamãs
contam suas viagens ao mundo dos espíritos, a partir do instrumental da performance,
deve revelar as elaborações estéticas a partir do corpo do performer – tais como
gestos, tom de voz, entonação, pausas para respiração, apelo ao público,
representação das falas dos personagens, dentre outros, que se articulam para “fazer
existir” a realidade mítica diante da audiência, que é convidada a penetrar nesse
universo de imagens de um “mundo recriado” momentaneamente. Este consiste no
próximo passo desta investigação que tem como objetivo compreender qual
experiência está sendo expressa na performance e quais as relações entre
performance e contexto, o que nos permite formular uma perspectiva da experiência
Asuriní com as imagens a partir de uma forma tradicional (ritual).

As transformações do filme
Mas voltemos ao tema inicial que suscitou toda a reflexão que aqui apresento:
por que os índios, especialmente os xamãs, gostam tanto da experiência do filme que
aborda os seus universos míticos?
Retornemos ao filme Morayngava. Um ritual xamanístico de iniciação é
realizado pelos Asuriní do Xingu para ser gravado em vídeo. O ritual é o maraká arapoá
(veado) e o neófito, o índio Takamuin, que aguarda a experiência de ter introduzido
em seu corpo o ka'á, substância transmitida pelos espíritos aos xamãs em transe, e
destes ao neófito. O iniciante também deve se encontrar em estado de transe,
chamado yngaiva, cuja descrição do estado físico pelos Asuriní, em português, é
"tremor" (Müller, 2000).
Após alguns dias depois de iniciado o ritual, Takamuim deu seu depoimento
sobre a experiência a que se submetera nos seguintes termos:

Se continuar tremendo, caindo, levantando, hoje à noite


quem sabe eu posso pegar. Eu ainda não estou muito tonto,
mole, ninguém ajuda, só o Murey'ra. Sonhei que cheguei
num lugar onde se põe ka'á no cigarro. Na boca da noite
outro pajé vai fazer festa. Quando tremer demais, aí vem o
ka'á que entra no corpo. Quando está doente é mais fácil de
pegar, quando não está, sem doença, é mais difícil virar pajé.
O pajé tem de continuar, tremer, tremer, tremer até cair,
pegar, morrer. Vamos ver se hoje à noite eu pego, estou
tremendo, mas ainda é pouco. Antigamente tinha muito pajé
para ajudar virar pajé. Morreram quase todos os pajés ”
(Müller, 2000, p. 188).

49
Para uma classificação dos seres do cosmos Asuriní ver “Classificação dos seres”. In: Müller, 1993, p.
189.
O ritual seguiu seu curso e os xamãs desistem por iniciar Takamuin. Anos
depois, quando perguntei para Takamuin por que sua iniciação não fora completada
ele me respondeu que não tinha sonhos com “coisas dos Asuriní”, seus sonhos, eram
como “sonhos de branco” em que apareciam imagens de caminhões, abertura de um
ventre em uma operação cirúrgica e o sobrevôo de um helicóptero.
Outra interpretação para o não sucesso da iniciação de Takamuin aponta para a
própria presença da câmera durante o ritual, ainda que a filmagem tenha sido
proposta pelos próprios índios. Para atingir o objetivo de filmar a iniciação, os Asuriní
tiveram de reelaborar concepções e colocar em risco a própria tentativa de introduzir
o ka'á no corpo de Takamuim ao permitirem que, para filmar o momento em que isto
ocorre, uma iluminação perigosa ameaçasse seu êxito e invertesse drasticamente uma
das condições mais essenciais ao transe dos xamãs, o lusco-fusco do ambiente. A
antropóloga Regina Müller afirma em um artigo publicado pela Revista de
Antropologia em 2000 que nos vinte e um anos em que esteve com os Asuriní em seus
rituais xamanísticos, jamais viveu a situação de ter uma luz razoável ao menos para
obter uma foto sofrível desse momento. Até o gravador de som que usou certa vez
para registrar a iniciação de um xamã foi responsabilizado pelo fracasso de não se
conseguir introduzir o ka'á no corpo do xamã iniciando.
A relação dos Asuriní com imagens produzidas pelos modernos equipamentos
dos brancos, tanto fotográficas quanto do vídeo ou da televisão, sempre foi marcada
como experiências de ambiguidade e perigo. Na década de 1970, por ocasião do
contato oficial com a sociedade envolvente, os Asuriní consideravam a reprodução da
imagem dos seres humanos pela fotografia50, pelo vídeo e pela televisão uma ameaça
à sua vida, e sua manipulação, a causa de muitas doenças. A câmera fotográfica suga o
ynga (princípio vital) da pessoa fotografada ao reproduzir sua imagem, ayngava. A
câmera de vídeo põe a imagem dentro da televisão, oreayngava onhyhyn (nosso
desenho está entrando), e, assim, fazendo “o ynga ficar guardado dentro” (oreynga
pupé). Daí o nome dado à televisão yngirú, o que guarda/contém ynga, traduzido por
“caixa da alma”51.
Uma recente experiência de campo entre os Asuriní, para a continuidade da
pesquisa acerca das relações entre o ritual e o audiovisual para o Projeto Temático
“Antropologia da Performance: Drama, Estética e Ritual” desenvolvido pelo Napedra-
Núcleo de Antropologia, Performance e Drama da USP52 , trouxe outras possíveis
aproximações entre o ritual e o audiovisual. Durante a permanência na aldeia, além de
oficinas de vídeo, exibi diversos filmes entre documentários e ficções incluindo filmes
feitos sobre e por índios, a partir do critério de levar a maior diversidade possível de
amostras. As exibições aconteceram no período da noite em tela grande e com
equipamento de som de qualidade com a idéia de possibilitar a imersão na experiência
do filme.

50
Sílvia Pellegrino (2008) aborda as denúncias e angústias que os Wajãpi manifestam com relação à falta
de controle sobre a veiculação de suas imagens fotográficas em diversas conjunturas e as relações entre
imagem e substância.
51
Depoimento extraído do filme Morayngava, realizado pelas antropólogas Regina Müller e Virgínia
Valadão. Centro de Trabalho Indigenísta, 1997.
52
Com financiamento da FAPESP (Processo 06/53006-2). Vigência entre março de 2008 à março de
2012.
Dentre os filmes mais comentados destacam-se O Urso de Jean-Jacques
Annaud (1988) que conta as peripécias de um urso filhote do ponto de vista do animal,
Oió, a luta dos meninos Xavante (2010), documentário realizado pelos Xavante sobre a
formação do guerreiro na sociedade indígena e Kiriku e a Feiticeira (1998), uma
animação de Michel Ocelot que narra as peripécias de um pequeno herói, Kiriku, que
luta para livrar sua aldeia dos feitiços de Karabá, a feiticeira. Esse conjunto de filmes
possui alguns elementos em comum: abordam o tema da guerra, da luta e das
transformações - de status no ritual xavante, de homens em seres fantásticos em
Kiriku e de perspectiva em O Urso53.
Apenas como uma reflexão preliminar, podemos pensar que o
audiovisual, especialmente a partir da montagem, permite operar essas
transformações tão características da experiência do xamã. A boa recepção do filme
Morayngava entre os xamãs Asuriní e a vontade de ver repetidas vezes a montagem
tematizando seus sonhos nos faz pensar que, de alguma maneira, a montagem
audiovisual “faz existir” os universos só acessíveis aos xamãs por que opera em termos
de imagem as transformações vividas no ritual pelo xamã que se coloca na perspectiva
de um xamã-espírito.
De uma relação difícil com a imagem gravada os índios passam para uma
relação diferente, na qual demandam imagens de seu povo. Não são imagens do
cotidiano da vida na aldeia para serem vistas por eles ou imagens dos Asuriní para
serem veiculadas no contexto político e intercultural, são imagens produzidas como
arte, estamos falando de uma montagem fílmica, a partir da percepção dos xamãs de
que o audiovisual pode operar transformações, capacidades semelhantes às que
possuem os xamãs no ritual.
As narrativas dos xamãs Asuriní do Xingu (PA) são relatos de experiências em
primeira pessoa ao mundo dos espíritos, lugares só conhecidos por eles que passam a
existir como realidade ao se tornarem visíveis a partir de seus depoimentos. O
momento em que os xamãs Asuriní contam suas viagens às diferentes zonas cósmicas
é durante o rito petymojap, dentro dos rituais xamanísticos maraká. A partir de
sugestão dos Asuriní, este paper pretende refletir, à luz da abordagem da
performance, as relações possíveis entre o audiovisual e as narrativas dos xamãs em
suas capacidades de “fazer existir” universos “virtuais”.

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e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.

53
Outros filmes tiveram uma reação negativa, especialmente por parte dos jovens, dentre eles: Baraka,
documentário experimental dirigido por Ron Fricke (1992) e Nanook do Norte documentário dirigido por
Robert J. Flaherty (1922). Neste caso, os comentários diziam que nestes filmes “nada acontecia” e os
rapazes insistiam na afirmação de que “queriam ver filme de luta”. A Guerra do Fogo de Jean-Jacques
Annaud (1981), filme que suscitou toda a reflexão deste texto, agradou o público indígena.
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(PPGAS/USP)

Resumo: O assunto central desta comunicação é a mediação do cinema na


comunicação da experiência do terror. Tema que será abordado a partir de uma breve
análise de algumas cenas do filme La sombra del caminante54 (Ciro Guerra, 2004) um
procedimento que permite, entre outras coisas, entender a relação criativa entre o
narrativo e o cinematográfico (recursos fílmicos), a articulação de fragmentos na
produção de um filme e as estratégias para localizar o espectador no filme. A análise
fílmica fornece os elementos necessários para discutir a narração do terror: a
experiência da violência, da perda (de parentes, de um lugar de origem, de um
passado), do deslocamento forçado, da tortura. Este trabalho de análise fílmica de
uma narrativa do terror, parte da ideia de que o cinema articula materiais de origens
diversas para mostrar um tipo de experiência que se localiza nas margens do
dizível/mostrável.

O filme La sombra del caminante, mostra a história do encontro entre dois


personagens na cidade. Mañe (César Badillo) é um deficiente físico que mora em um
quarto de aluguel na casa de Doña Marelvis (Inés Prieto Saravia) e do irmão dela, o
Sargento Osvaldo Jaimes (Lowin Allende), e enfrenta sérios problemas de dinheiro.
Este homem desiludido é todo dia atacado por alguns jovens (Julián Díaz, Andrés
Gaitán e Diego Manzano), cruel evento, que leva um homem (Ignacio Prieto) a ajudá-
lo. Este homem (Ignacio Prieto) carrega pessoas em uma cadeira que leva nas costas
para ganhar algum dinheiro, um “silletero”. Ele mora em uma barraca construída com
plástico nas colinas da cidade de Bogotá; cobre seus olhos com uns óculos de aviador,
protege-se do sol com uma sombrinha preta e bebe um chá que prepara com as folhas
de uma planta que leva para todo lugar. Mañe e o homem são os personagens
principais de uma história de ajuda e silêncio, um encontro que acordará um passado
violento do qual ambos fogem. O centro de Bogotá recebe estas pessoas e as reúne
com tantas outras que chegam lá procurando um presente, começando uma nova
vida. Dívidas, desemprego, trabalho informal, controle policial e solidão, são assuntos
que atravessam esta relação e constroem a história do filme, La sombra del caminante.
Entre as conceituações sobre cinema, existe uma que me interessa
particularmente: o cinema é uma forma da sociedade se narrar a si mesma. Trata-se da
colheita de imagens da realidade (eventos, situações, pessoas) que depois, pela
montagem será organizada de uma forma determinada para contar algo. Este processo
de realização tem sido pensado principalmente de duas formas, uma é que o filme é
uma janela aberta à realidade, o filme é transparente; a outra que a realidade não é
dada a ver diretamente no filme, pois ele é feito segundo um principio de opacidade
(Xavier, 2005). Sem me aprofundar no debate, exponho a perspectiva a partir da qual

54
Diretor: Ciro Guerra. Ano: 2004. Roteiro: Ciro Guerra. Música: Richard Córdoba. Montaje: Ivan Wild,
Ricardo Cortés. Produtor: Jaime Osorio Gómez, Ciudad Lunar Producciones, Tucan Producciones
Cinematográficas Ltda. Elenco: Césart Badillo- Mañe, Ignacio Prieto- Homem da cadeira, Inés Prieto-
Doña Marelvis, Lowin Allende- Sargento Oswaldo Jaimes, Julián Díaz, Andrés Gaitán e Diego Manzano-
jovens. País: Colômbia. Todas as informações sobre os filmes aqui citados, estão no site de
Proimagenes, a entidade do Ministério da Cultura que lida com todos os assuntos referentes à
cinematografia colombiana. Disponível em www.proimagenes.com.co
será entendido o filme de Guerra: A elaboração de um filme exige reduzir a
fragmentos uma realidade para melhor controlá-los e organizá-los em sequências
fílmicas, a imagem que é assim construída não é transparente. É um processo de
elaboração que mistura elementos narrativos (herói, assunto, tema, conflito, etc.) e
não- narrativos (fade, superexposição, sobreposição, close- up, inserts, etc.) (Aumont,
1983). Esta construção de mundo – diegese – não é natural ou real, mas é possível – o
movimento cinematográfico é uma mimesis elaborada de certa forma de movimento.
De modo que um filme, mais do que uma reprodução do mundo real que o mostra
com fidelidade até nos detalhes mais pequenos, é uma forma de dar a ver. Assim,
diante de um filme como este, posso começar a estranhar as ruas de Bogotá, a cidade
onde nasci e cresci, a repensar sua geografia e sua atual população, e sou obrigada,
sobretudo a rever meus conceitos sobre o que tenho como certo a propósito do
deslocamento, das vítimas, do desemprego, das formas de sobreviver, de alucinar, de
rezar e de ter esperança.
Esta forma de dar a ver é o resultado de um trabalho de observação,
roteirização, filmagem, decupagem e montagem que compromete uma grande equipe
de produção. É uma organização do material audiovisual segundo um critério narrativo
e plástico que tem como processo principal a montagem, pois este é o procedimento
que define a forma e o ritmo do filme. É esta seleção de fragmentos da realidade e sua
posterior organização que identifico como a narração da sociedade de si mesma
(Aumont, 1983). O que se pretende discutir é como o cinema mostra aquelas histórias
dramáticas, resultado de violência e violências cujo cenário e personagens são o
próprio país e os conterrâneos55.
As histórias que chamei de dramáticas são as que lidam com o tema do terror.
Taussig (1987) afirma que este é um estado social e psicológico cujas características
lhe permitem servir como mediador entre as diferenças. O terror, cria espaços da
morte onde imperam, a confusão, a ruptura da significação e a desordem epistêmica.
Um conjunto de elementos que se tornam agentes na manutenção da exclusão política
e econômica e que participam na elaboração cultural do medo. Esta elaboração
articula verdade, fantasia e medo e estrutura a realidade. Em outras palavras, o terror
não é um ato em si, mas o estado em que uma sociedade vive, a forma de organização
– de inclusão e de exclusão – das relações entre os membros de tal sociedade e a
estabilização de uma certa ordem. É um estado que se torna fato pela articulação de
verdade e ilusão, a razão e a vontade de explicação não dão conta das dimensões
deste estado, precisamente porque aqui existe um excesso de significado, alguma
coisa de indefinível, inenarrável.
Colômbia é um país que vive um conflito armado interno há mais de 5 décadas,
consequência do choque e da conjunção de diferentes elementos. Ferro (2002)
identificou alguns dos eixos de discussão sobre o conflito, os citarei com o objetivo de
apresentar suas características: Por um lado se nota uma ênfase na relação entre o
Estado e a sociedade e a violência seria o resultado da negação pelo Estado da
diversidade, ou é consequência da ação de uma sociedade que não reconhece o
Estado nem o aceita como um terceiro elemento da solução das suas discórdias e é
incapaz de conviver com a diferença. Por outro lado se nota uma atenção às

55
Claro que o cinema tem uma dimensão global muito importante e a migração das imagens é assunto de
debate hoje em dia, porém o que chama a atenção aqui é a produção audiovisual nacional e a sua
visualização local.
estratégias de insurgência e de contra insurgência, os temas de justiça paraestatal e da
definição dos grupos guerrilheiros como atores coletivos ou como simples
delinquentes, são sob esta perspectiva analisados. Este debate tem tido incidências na
própria maneira de chamar o conflito, sendo principalmente duas, um confronto entre
atores coletivos como se dá em uma guerra civil ou como uma consequência da
rebeldia privada. A questão do para-estado, abre uma terceira linha de discussão que
permite refletir a propósito da questão da coerção e repressão pelo Estado. Por
último, temos o eixo do conflito agrário, o fato de que existe um desenvolvimento
desigual que exclui uma grande parte da população do acesso a bens e a produção faz
com que pessoas façam alianças e entrem no jogo de disputas econômicas, politicas e
sociais como agentes da violência e assumam o papel de insurgentes ou
contrainsurgentes.
Sem presunções explicativas, os eixos de interpretação citados acima são úteis
para conformar um quadro sobre o que chamo de conflito armado interno. Pois a
especificidade colombiana não permite pensar em um confronto entre grupos
distintos e o estado como mediador ou a ação de uns grupos contra o Estado porque é
precisamente a mistura de agentes, motivos, espaços, temporalidades e estratégias
que qualifica o conflito. Aliás, Ferro (2002, p. 49) afirmam que a atividade dos grupos
armados não se desenvolve de maneira isolada e autônoma, mas pelas interações
estratégicas entre uns e outros que revelam uma grande capacidade mimética, um
jogo de espelhos que mostra simetria nos meios ainda que os motivos sejam
divergentes. Isto não só cria uma confusão de identidades mas resulta na serie de
ataques contra a população civil, já que esta é a base social real ou não do outro.
Invasões, massacres, torturas e sequestro instalam novas ordens e obrigam a uma
grande parte da população a se deslocar do campo à cidade, onde não são recebidos
nem pela sociedade nem pelo estado ou algum tipo de órgão que lide com questões
sociais na cidade, os desplazados.
Este é o lugar onde o cinema e a narração do terror se encontram. La sombra
del caminante é um filme que mostra a vida de dois desplazados em Bogotá, suas
dificuldades econômicas, a exclusão, a obrigação de conviver com a memória desse
passado que os levou até essa cidade, a incerteza do passado, sem possibilidade de
falar e sempre sendo levados às margens onde a invisibilidade é definitiva. Um dos
personagens é Mañe, um homem pequeno, deficiente físico, usa óculos redondos e
tem uma grande dívida com o senhorio. Atacado por jovens – imigrantes também –
sem opções de trabalho e constantemente sendo intimidado para ir no refúgio para
pobres, desplazados, deficientes como ele. O outro personagem é o caminante um
homem alto, magro e forte, carrega nas cosas uma cadeira que serve para transportar
pedestres de um lado para outro, utiliza óculos pretos e quando o sol aparece abre um
guarda-chuva igualmente preto para se proteger, é um homem que fala muito pouco,
sem nome, que mora em uma barraca de plástico nas colinas da cidade e bebe um chá
que faz com uma planta que leva para todo lugar. Os dois chegaram em Bogotá depois
do ataque à cidadezinha Puerta Nueva no Caquetá, se encontram por um azar e
terminam por acordar memórias e revelar verdades.
Pela descrição dos personagens, podemos ver que existe uma relação de
complementariedade entre eles, especialmente quando percebemos que Mañe vai ser
ajudado a se deslocar pela cidade pelo homem da cadeira, outro elemento que chama
a atenção é o óculos, Mañe o usa para melhorar a visão entanto que o homem da
cadeira os usa para esconder a visão. Ainda que o encontro deles tenha sido pelo
acaso, a relação justifica tal encontro e estrutura uma narrativa dramática. Neste tipo
de narrativa, dois desconhecidos se encontram criam uma relação solidariedade, mas
existe alguma coisa que atrapalha a plena realização da relação. No final descobrem
que aquilo que impede e se impõe como um silêncio é um segredo cuja revelação é a
solução ao conflito que os dois carregam.
Mañe chegou um Bogotá por causa de um ataque violento à cidadezinha onde
ele morava, um lugar pequeno e tranquilo. Os pais morreram neste trágico evento
junto com a maioria da população e Mañe perde uma perna. O homem da cadeira
chegou na cidade fugindo da justiça “feita pelas próprias mãos”, deve calar a verdade
do fato que o levou a tal situação e leva consigo um projetil que ficou na cabeça “para
não esquecer”, como ele mesmo afirma. Acontece que, o homem é um assassino, o
líder que organizou o ataque à cidade de Mañe, o responsável pela morte dos pais,
pela perda de sua perna. A relação que se desenvolve nas ruas de Bogotá, mostra o
assassino carregando sua vítima, cuidando dela e a vítima pedindo uma demonstração
de amizade.
Este filme que chamo de elaboração da narrativa do terror, cobra uma outra
cor ao colocar estas imagens no contexto de imagens fílmicas e mediáticas do conflito
armado interno que circulam na Colômbia especialmente a partir do ano de 2005
quando começa a vigorar a Ley de Justicia y Paz56 (975 de 2005) que pretende
solucionar o conflito armado interno pela via da negociação com os grupos
paramilitares e reparação às vítimas. Um dos pontos da lei tinha como objetivo
comunicar a população sobre a lei e o andamento da mesma, uma das estrategias de
informação foi a de fazer circular pelos meios massivos de comunicação os
depoimentos das vitimas que estavam participando do processo. As imagens e os
depoimentos que foram conhecidos eram extremadamente vigiados para não
entrarem em contradição com a lei. O filme de Ciro neste contexto adquire o status de
uma obra que mostra o terror de forma a provocar posicionamentos muito diferentes
daqueles que as imagens produzidas em concordância com a lei provocariam.
Na ultima cena do filme a verdade é revelada fora do contexto judicial em
resposta à demanda de amizade. O homem da cadeira conta para Mañe os
assassinatos que ele cometeu e assume a culpa da morte dos pais dele só quando
retira os óculos e revela os olhos. É uma sequencia decisiva no filme e contribui com
esta comunicação no sentido de mostrar o que antes chamei de inenarrável. O homem
conta para sua vítima que ele é o culpado da sua desgraça e isto não é fácil, mas a
única forma de fazê-lo é se descobrindo, expondo a parte do seu corpo que o faz igual
aos outros e mostrando sua fraqueza. Só que este “descobrimento” não é simples, não
se trata só de “olhar para os olhos do outro”, tirar os óculos e falar com um tom de voz
determinado. Este ato é feito como uma deformação do rosto, o gesto horrível é
exposto para dar começo à criação do espaço onde a verdade pode ser dita e escutada
e onde nem verdade nem resposta são nada além de narrações das experiências de
cada um. Isto em grande parte porque na Colômbia histórias de assassinatos, ataques
paramilitares, das guerrilhas, dos militares circulam profusamente em jornais, revistas
e noticiários. De modo que o problema não é contar, não é unicamente dizer “sim, eu
fiz; eu matei sua família”. Depois de tantos anos de conflito armado interno, o

56
No web site www.cnrr.org.co encontram-se textos, análises e demais informações a respeito da citada
lei.
problema é como contar. Como não alimentar a sensação de impossibilidade de
resolução, como não alimentar as redes do jornalismo com estas histórias e sobretudo
como não servir à sedimentação do espaço da morte pela narração destas histórias.

O enquadramento do rosto humano, tido como “espelho da alma57”, somado a


certo uso da música e da luz, propicia a identificação do espectador com a imagem da
tela, e dão início ao processo de participação no filme descrito por Morin (1956) como
o processo que completa e “dá vida” às imagens da tela. Béla Balázs crítico húngaro de
cinema, afirmou em 1923 que a transmissão de significado feita pela expressão facial é
central no cinema porque assim consegue comunicar sem palavras. O homem interior
é agora visível e as coisas tornam-se expressivas pelo enquadramento da face do
homem (apud. Xavier, 2003). Jacques Aumont (1998), assevera que as imagens do
rosto manifestam o mundo íntimo ou a afirmação da pertença a um grupo, por
conseguinte são utilizadas no cinema com grande eficácia como signo que articula o
individual com o coletivo, o personagem com o espectador. O rosto no cinema impede
a percepção do personagem como uma figura fragmentada, a despeito do trabalho de
enquadramento da câmera, e serve para produzir sentido e coerência por meio do
olhar, empregado como vetor.
O cinema como uma forma elaborada da realidade, que seleciona elementos,
eventos, personagens, problemas, enfim, materiais com os quais configura uma certa
situação (cinema como arte do avatar). E, cabe dizer, uma possibilidade de realidade.
Uma lente para observar o mundo (cinema como arte da visão), uma vez que, oferece
uma imagem inocente, renovada e, crítica – porque desloca, e reestrutura em termos
e com materiais distintos dos originais aquilo que é observado. Enfim, uma iluminação
profana. Ou seja, o cinema pode oferecer imagens que exibem, perturbam e
revolucionam os significados estabelecidos, mostra o lado extraordinário do cotidiano
e o cotidiano do extraordinário (Benjamin, [1941] 2010). É neste sentido que a
pergunta pela mediação do cinema na comunicação das narrativas do terror é
entendido.
Diante de uma realidade que se mostrava perigosa, cruel e desmoralizante,
Benjamin ([1936] 2010) encontra na narrativa oral a forma ideal para comunicar
experiências de extrema violência, em oposição ao romance e à informação, formas de
comunicar que careciam da capacidade de criar uma experiência coletiva, porque
fundavam-se no indivíduo isolado, a primeira, e na novidade, a segunda. A narrativa se
mantém vigente graças a sua forma oral e à ausência de explicações, e assim tem a
faculdade de fazer o ouvinte se esquecer de si mesmo e de espantá-lo, levá-lo à
reflexão. O esquecimento assegura a rememoração e a surpresa, grava as histórias na
memória para que sejam apreendidas e contadas uma e outras vezes. Em resumo, a
narrativa tem a faculdade de intercambiar experiências. Nesse sentido, a narrativa
teria a possibilidade de estabelecer um espaço comum onde as definições do comum
seriam constantemente discutidas, reformuladas, recriadas.
A afirmação de Taussig (1987) de que a maioria de nós conhece o terror pela
narração coloca o problema da mediação e da escritura empregadas para comunicar

57
A ideia do rosto como “espelho da alma” se relaciona com a arte do retrato. foi pensada a partir da
representação artística de retrato. Um tipo de construção do artista da pessoa que tem diante de si,
normalmente em situação solene e com o objetivo de mostrar as qualidades morais mais elevadas que tal
pessoa tem dentro de si.
efetivamente tal experiência. Sendo que o interesse não é fornecer dados, números e
explicações, mas fazer existir a intimidade do terror na experiência coletiva. O objetivo
seria então construir histórias que surpreendam, que não nos permitam nos
acostumar ao terror, a suas formas e consequências. A questão é a de como escrever
efetivamente contra o terror, comunicar sua dimensão incomunicável, sua parte de
experiência do vivido e elaborado dia a dia, boca a boca, sem portanto expandir suas
vitórias: o silêncio, o medo, a aceitação passiva. Desta forma, a narrativa se pensa no
marco deste trabalho, como a forma que articula o inarticulável, cuja faculdade de
intercambiar experiências, nos leva a pensar nas formas de comunicar o terror.
O cinema como narrador moderno, que subtrai o espectador da cadeira para
pô-lo em contado com o desconhecido, com a morte, com o impossível. Com os
desplazados, os desempregados, os aleijados, os miseráveis que deambulam pelas
ruas. A narrativa fílmica, relacionada com a magia, com a ilusão de Méliès,
desenvolveu uma grande liberdade criativa, formas que não respondem aos cânones
da informação plausível, outras que quebram o ideal do realismo da ficção clássica e
outras que simplesmente logram reunir elementos diversos ou até divergentes. Um
filme, como não está submetido à tarefa de dar conta da realidade em si, do modo
como um noticiário ou um jornal ou até um romance, constrói imagens do sensível, do
inefável.
A imagem cinematográfica copia o original sem se limitar a este. Ou seja, o
poder da imagem não se encontra em sua veracidade (em ser um fato que facilmente
possa ser conferido na realidade ), mas, na sua capacidade de pôr em contato o corpo
de quem percebe com o daquele que é percebido. Uma força mimética se relaciona
com o fisionômico, a força tátil do olhar que leva o espectador à tela e lhe oferece uma
experiência fora de si mesmo. Neste processo, a tela imprime imagens surpreendentes
do outro na sua memória obrigando-o a ver de novo, a refletir e narrar o visto. O
objeto do cinema está em perpétua transformação. A imagem materializa uma
proposição, é um fragmento e é um meio para pensar sobre o mundo do possível.
Mundo, cujo sentido é construído pela montagem. Um duplo processo de isolar, de
des-territorializar situações e de recompor que permite “mergulhar” nelas. Movimento
que revela níveis de experiência, ao mesmo tempo em que é um ato criativo que
desafia o olhar, um redescobrimento, restauração do que é reprimido.. Uma imagem
em construção que, pensando na relação entre os personagens, as ações, e os lugares
que ocupam no filme de Ciro Guerra, cria as condições para narrar o anti- narrativo,
para articular o que não é articulável. O cinema como uma forma específica de se
relacionar com o mundo e de dar a ver, de difundir ideias, de refletir; em resumo, uma
forma específica de apreender o real. Para Juan C. Arias (2010) uma orientação
possível da análise fílmica é a da discussão sobre a dimensão política do cinema
colombiano. Arias compreende o político do cinema não como a representação de
fatos políticos, mas como a capacidade do cinema de configurar novas experiências,
sensibilidades e ritmos. Um cinema que, segundo o autor, tem tido certa
independência e com isso a possibilidade de apresentar um discurso alternativo sobre
o país. Então, o problema do cinema colombiano seria como ele constrói uma
“imagem- nação e não uma imagem da nação através de suas imagens e histórias”.
Bibliografia

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terra, 2005, 5a ed.
A performance da criança no cinema iraniano, Kelen Pessuto (IA/Unicamp)

Resumo: Proponho discutir a performance das crianças nos filmes de arte


iranianos, através da análise de importantes obras cinematográficas dos diretores
Abbas Kiarostami e Bahman Ghobadi. Em filmes como Onde fica a casa do meu amigo
(Abbas Kiarostami, 1987) e Tempo de embebedar cavalos (Bahman Ghobadi, 2000), as
crianças interpretam papéis muito próximos de sua realidade. Procuro entender a
construção das personagens que essas crianças representam, que está
intrinsecamente relacionada com a maneira pela qual foram dirigidas. Para tanto,
parto de uma contextualização desses filmes na história do cinema iraniano e a
importância que os “não” atores têm na cinematografia do país, para então analisá-los
a partir do que Richard Schechner (1985) propõe quando se refere à transformação do
ser e/ou da consciência do ator em cena. Esta comunicação faz parte da minha
dissertação O ‘espelho mágico’ do cinema iraniano: uma análise das performances dos
"não" atores nos filmes de arte, realizada no Instituto de Artes da Unicamp, sob
orientação de Francirosy C. B. Ferreira e com apoio da FAPESP.
Palavras-chave: Antropologia da performance, Cinema iraniano, Direção de
atores.

As crianças no cinema iraniano


A importância que a criança assumiu no cinema iraniano é recente. No período
anterior à revolução o cinema era regulamentado pelo Estado, que via o cinema como
meio de socialização, pelo qual impunha um novo modo de vida à população, com o
objetivo de “modernização”.
O cinema produzido durante a dinastia Pahlavi tinha um claro propósito de
infundir o modo ocidental de se vestir, se comportar e falar, disseminando, sobretudo,
o American Way of Life. A maioria dos filmes realizados nesse período se encaixam no
que os críticos chamam de film farsi: “O termo foi inventado pelo crítico de cinema
Houchang Kavossi para se referir
aos filmes comerciais com qualidade medíocre” (Dönmez-Colin, 2006, p. 49).
Tais películas apresentam temas banais e mostram mulheres nuas e seminuas, vícios,
boates, danças, stripteases, triângulos amorosos.
Nesse período a pobreza e as pessoas comuns eram proibidas de serem
representadas e alguns filmes foram abolidos das telas, como O sul da cidade (Farrokh
Ghaffari, 1958) e A vaca (Dariush Mehrjui, 1969), por exemplo, por apresentarem as
questões sociais do país.
O Kanun (Center for the Intellectual Development of Children and Adolescents),
instituto criado pela esposa do xá Mohammad Reza Pahlavi, foi o grande responsável
pelo papel da criança no cinema do país. Dentro do instituto foi criado um
departamento de cinema que tinha como objetivo produzir filmes sobre e para
crianças. Em 1969, Abbas Kiarostami tornou-se o codiretor desse departamento e
criou diversos filmes de curta e longa-metragens voltados à infância. Dentro do Kanun,
Kiarostami pôde inovar a linguagem cinematográfica e fazer experimentos que
marcariam toda a história do cinema iraniano.
O que os diretores não conseguiam fazer fora do instituto, Kiarostami
conseguia lá dentro.
As principais inovações desse seu cinema foram: o uso de “não” atores,
crianças como protagonistas, movimentos de câmera longos, a supressão do roteiro,
mínimos diálogos, linguagem realista e temas simples, cotidianos.
No cinema iraniano pós-revolucionário, a sociedade passou a ser vista,
principalmente, através do olhar dessas crianças. Diante de muitas normas que
surgiram para enquadrar o cinema aos preceitos islâmicos, havia se tornado difícil a
representação de personagens, então a criança se tornou um dos maiores símbolos do
estilo de vida almejado pelos muçulmanos. As crianças incorporam muitos dos valores
tradicionais que são apreciados em uma sociedade islâmica, como o amor à família, a
pureza e a inocência.
Os enredos dos filmes iranianos passaram a focar-se nos dramas da infância,
como na epopéia de um garoto que percorre por diversos vilarejos para entregar o
caderno de seu amigo em Onde fica a casa do meu amigo? (1987).
O cineasta e etnógrafo David MacDougall, estudou como diversos filmes
(documentários e ficção) representam a criança na cinematografia mundial. Ele
percebeu que essas películas, em sua maioria, são focadas na escola (principalmente
abordando os conflitos entre alunos e professores), algumas baseadas na infância do
próprio cineasta, outras sobre a infância como um momento idílico da vida enquanto
muitas outras focam no desenvolvimento emocional e na descoberta da maioridade
(MacDougall, 2006), “[...] quando adultos fazem filmes sobre crianças, os filmes são
mais sobre a fronteira entre adultos e crianças do que sobre as crianças mesmo”
(Ibidem, p. 73). Já o cinema iraniano se destaca por retratar a criança através de outra
perspectiva, onde ela não aparece incidentalmente, mas sim como personagens
principais e enfrentando situações cotidianas através das quais podemos perceber
alguns de seus dilemas interiores, que se tornam universais, “[...] o cinema iraniano
talvez seja a única cinematografia nacional que oferece às crianças um papel central na
sociedade” (Ibidem, 2006, p. 75).
O diretor Bahman Ghobadi consegue ir além quando além de representá-las
em papéis principais, as aborda como agentes ativos da sociedade e não como
testemunhas.

Muitas experiências pertencem apenas às crianças e muito


do conhecimento que elas têm são passados de criança para
criança, muitas vezes, sem o intermédio de um adulto.
Antropólogos progressivamente têm reconhecido que
crianças não são simplesmente socializadas passivamente
pelos adultos para tornarem-se membros de uma sociedade
dos adultos, mas são socializadas por outras crianças
(MacDougall, 2006, p. 78, tradução minha).

A representação de crianças como agentes de uma sociedade através do


cinema iraniano foi um dos motivos que fez essa cinematografia ser tão reconhecida
internacionalmente.

As crianças de Abbas Kiarostami

No Kanun, Kiarostami produziu seu primeiro filme O pão e o beco (1970), um


curta-metragem que retrata um garoto que volta para casa com o pão debaixo do
braço, mas no meio do caminho encontra um cachorro e fica com medo de prosseguir,
até que cria coragem e segue, só que o cãozinho que ele tanto temia aproxima-se do
menino com o rabo abanando e caminha ao lado dele até a porta de casa. O garoto
entra e o cão continua deitado na soleira da porta. O filme termina com a aproximação
de outro menino que se assusta ao ver o cão. Um filme singelo, que marcaria o estilo
que o diretor adotou.
Dentro do instituto, Kiarostami dirigiu mais de vinte filmes (curtas e longa-
metragens), todos com crianças, antes de Onde fica a casa do meu amigo? (1987).
Neste filme o garoto Ahmed ao fazer o dever de casa descobre que pegara o caderno
do amigo por engano. Como o professor castiga quem não faz a lição de casa e seu
amigo deixara de fazer duas vezes, Ahmed sai em busca dele para evitar que ele seja
castigado. O problema é que Ahmed não sabe onde esse amigo mora, ele percorre
então outros vilarejos em busca de seu companheiro. Em sua jornada depara-se com
muitas pessoas, as quais tentam ajudá-lo a encontrar o amigo.
A ideia para este filme surgiu depois que uma amiga do diretor percorreu mais
de seis quilômetros para encontrar cigarros que uma outra amiga havia lhe pedido (Cf.
Kiarostami, 2004). A persistência da amiga, a experiência que seus filhos lhe
transmitiam por causa da vida escolar e os depoimentos do amigo professor o
inspiraram a criar este filme, que fala, sobretudo, sobre a amizade.

As crianças curdas de Bahman Ghobadi

O cineasta Bahman Ghobadi nasceu na parte iraniana do Curdistão, na cidade


de Baneh. Mesmo após mudar-se para Teerã na vida adulta, Ghobadi sempre se
importou com seu povo sofrido. Ele foi considerado o primeiro diretor a realizar um
filme em língua curda.
Ghobadi começou a carreira realizando documentários para a televisão local,
seu primeiro longa-metragem foi Tempo de embebedar cavalos (2000), inspirado em
seu documentário Life in fog (1999).
Para realizar Life in fog, Ghobadi seguiu quatro irmãos órfãos. O adolescente
Nejad Ekhtiar-Dini (15 anos de idade), sua irmã Ameneh (de aproximadamente 7 anos
de idade), a criancinha Kolsum (1 a 2 anos) e seu irmão Madi (13 anos), que por causa
de um problema congênito tem o tamanho de um bebê.
Nejad começa o documentário contando sobre seus irmãos e que sua mãe
morreu ao dar a luz a Kolsum, enquanto seu pai teve um fim trágico ao pisar em uma
mina terrestre com sua mula, usada no contrabando de mercadorias entre as cidades.
O garoto conta que abriu mão dos estudos para poder provir sustento para a família e
sua irmã Ameneh, embora tenha prosseguido com os estudos, é a responsável pelos
deveres domésticos.
Ghobadi acompanha o dia a dia dessas crianças, a escola, o trabalho, a vida em
casa, a doença de Madi e as adversidades cotidianas. É um estilo de documentário
próximo ao de Robert Flaherty, com encenação, recriação.
A experiência adquirida com esse documentário o inspirou a realizar Tempo de
Embebedar cavalos, logo em seguida, utilizando algumas das crianças de Life in fog e a
mesma história. Neste filme o irmão mais velho passou a ser representado por Ayoub
Ahmadi e foi acrescentada mais uma irmã, Rojin, um pouco mais velha que eles.
Em Tempo de embebedar cavalos é Ameneh quem narra a história e não mais
Nejad. Indagada pelo próprio Ghobadi, em voz over58, a menina conta sobre a morte
de sua mãe e a respeito de sua família. Eles trabalham no bazar embalando
mercadorias, até que o pai dos garotos morre, por causa da explosão de uma mina
terrestre. A partir daí, Ayoub assume o papel de patriarca da família para poder pagar
a operação de Madi, que só tem alguns dias de vida. Para isso, o garoto passa a
trabalhar no contrabando de mercadorias para o Iraque, que é feito usando mulas
carregadas, que sobem as montanhas curdas, cheias de minas e neve. As mulas e os
cavalos precisam beber álcool para suportarem o frio, por isso o título do filme.
As cenas que vemos, dos garotos na neve, de Madi engolindo o remédio a seco,
Ayoub carregando mercadorias pesadas nas costas, como se fosse um cavalo, foram
todas realizadas pelas próprias crianças, ao contrário de Hollywood que usa dublês e
efeitos especiais. “Nós sofremos horas no tempo frio, as filmagens na lama e nas
montanhas. E, acreditem, o que essas crianças fizeram e suportaram em meus filmes,
as crianças Hollywood nunca poderiam fazer. As crianças representam suas vidas. É
por isso que elas parecem tão reais” (Ghobadi, 2005, tradução minha).

Os "não" atores

Abbas Kiarostami e Bahman Ghobadi priorizam o trabalho com atores


amadores, os quais chamo de "não" atores, pois por mais que eles não possuam uma
técnica e não tenham a atuação como profissão, eles atuam nos filmes.
O uso de "não" atores é importante porque confere ao filme uma maior ilusão
de realismo. Ao olharmos o personagem no filme, nos confundimos a ponto de não
sabermos se são as próprias pessoas na situação ou um ator vivendo determinada
condição. Há uma frase de Jafar Panahi, outro cineasta que usa esse tipo de ator, que
esclarece esta posição: “Talvez os atores profissionais poderiam ser usados, mas acho
que se eu usar atores profissionais a plateia pode pensar: ‘Ah, eu vi esse ator em outro
filme interpretando uma personagem diferente’ e isso poderia afetar sua
credibilidade”59. Quando assistimos a estes filmes vemos o personagem e não um ator
representando-o.
Outro ponto fundamental em relação ao uso de "não" atores, é que esse tipo
de ator não possui nenhuma técnica de direção, permitindo assim que o diretor
disponibilize de seu próprio método que é bem peculiar.
As técnicas usadas por Abbas Kiarostami e Bahman Ghobadi são parecidas.
Ghobadi foi assistente de direção de Kiarostami em O vento nos levará (1999) onde
pôde aprender sua maneira de dirigir os atores.
Uma característica importante desta direção é o que eu chamo de “ocultação
do roteiro” ou um “não” roteiro. Nenhum ator tem contato com o roteiro. Não sabem
nem a história e nem suas falas. Muitas vezes esse roteiro é construído a partir da
convivência entre o diretor e o elenco (o que pode ocorrer até mesmo durante as
filmagens) e o enredo é construído em cima da história de vida dessas pessoas.

58
A voz over é quando ela não é identificada. Embora eu saiba que ela é de Bahman Ghobadi, na diegese
do filme ela não é esclarecida.
59
Em depoimento nos extras de Offside (2006), lançado em DVD pela Sony Pictures Home
Entertainment.
Às vezes, um ator pode até conhecer algumas falas de seu diálogo, mas nunca
sabe a do outro, para que a reação surja espontaneamente. Para que eles vivenciem a
cena.
Após seu primeiro longa-metragem O viajante (1974), Kiarostami aprendeu que
não deveria dar o roteiro para os “não” atores decorarem:

O viajante me ensinou muito sobre a atitude que deveria ter


com os atores. Para o papel da avó, consegui uma velha
senhora e entreguei-lhe o roteiro com os diálogos. Uma vez
que era analfabeta, seu neto prometeu ajudá-la. Quando
chegamos às locações percebemos que ela havia decorado o
texto. Além de suas deixas, havia aprendido também as dos
outros e assim, antes de começar a recitar de cor, enunciava
os nomes de várias personagens. [...] tirei uma lição desse
episódio: os atores devem permanecer eles mesmos ainda
que em frente de uma câmera e, assim, é preciso comunicar-
se com eles apenas em linhas gerais, sem lhes dizer o que
esperamos deles. É suficiente olhá-los e levá-los a fazer o
que queremos que façam (Kiarostami, 2004, p. 206-207).

Como não há leitura de roteiro, os atores não decoram diálogos e não há


construção de personagem, o método praticado por esses diretores segue uma linha
própria, como defendi em minha dissertação. Aqui farei um apanhado geral desse
processo.
Há três maneiras principais de se dirigir o “não” ator no cinema iraniano e esses
diretores as exercem, são elas: a) explicação, o diretor explica o que o ator deve fazer
ou falar e ele improvisa; b) imitação, o diretor realiza a cena e o ator a repete, como no
jogo do espelho, que fazemos no teatro, aqui, o diretor se torna espelho do ator; e c)
estimular a emoção, os diretores usam métodos indiretos para provocar a emoção no
ator. Em um mesmo filme ele pode utilizar todas elas, dependendo da cena, do ator e
do resultado que quer alcançar.
A base do método da explicação é a improvisação. O diretor dá linhas gerais
para o ator improvisar. Ou então, pede para essa pessoa agir como age no dia a dia. Na
improvisação os "não" atores vivenciam a cena, o encontro com o outro.
Na imitação, o diretor realiza uma ação e o ator a recria. Isso pode acontecer
também com os diálogos, quando o diretor diz as falas do ator em seu ouvido, por
exemplo, e esse ator a repete. Isto é frequente quando este ator não está em quadro.
Já o método indireto é o grande diferencial dessa direção. Como tais atores não
possuem esse preparo, para os diretores conseguirem um desempenho que não seja
visto como representação e que seja verossímil, eles usam de técnicas específicas para
estimular a emoção do “não” ator. Kiarostami chama esse método de indireto e é
compartilhado por alguns diretores como Bahman Ghobadi, Jafar Panahi e Mohsen
Makhmalbaf.
Em um workshop ministrado por Kiarostami em 2004, ele fala de sua técnica
com os atores:

Quando se trabalha com os atores, você não tem que falar


para eles ficarem tristes. Isso é indireto. Você tem que estar
triste. O diretor, quando quer que os atores fiquem tristes,
tem que chegar no trabalho triste, para o ator ficar triste.
Porque ele olha para você. Se ele vê que você não está muito
bem, ele também fica ruim. Você não precisa falar para ele,
agora vamos fazer um trabalho teatral, vamos interpretar,
ele interpretará muito melhor se você transferir essa
emoção para ele. Por isso vocês não podem ter nenhum tipo
de trabalho direto com os atores, tem sempre que ser
indireto. Se amanhã você vai fazer uma tomada de alguém
triste, você tem que deixá-lo triste desde hoje à noite. Eu
faço isso. De um jeito que ele não percebe. Eu olho para a
câmera e falo: não presta, está muito ruim, acho que vou
cortá-lo. No dia seguinte, ele faz a melhor interpretação. [...]
Eu acho que todo mundo tem isso. Eu acho que o que faz um
filme é a sensibilidade e emoção entre o diretor e o ator.
Senão ele vira uma indústria, aonde as pessoas vão à frente
da câmera e interpretam e não falam o que deveriam falar.

Quando o diretor transfere a emoção para o ator, ele responde a ela no mesmo
nível. A decepção em relação a um ator vai provocá-lo de tal maneira que ele chega ao
set de filmagem realmente triste e isso irá transparecer na cena.

Se pretendemos de uma criança um sentimento de


felicidade, para que o público possa captá-lo precisamos
tornar essa criança feliz com uma motivação diferente da
prevista no roteiro. É preciso descobrir, delicadamente, o
que leva um ator a realizar determinada ação ou a
experimentar determinado sentimento, e aproveitar isso
nas filmagens (Kiarostami, 2004, p. 223).

Como em uma cena de Onde fica a casa do meu amigo?, na qual o menino tem
que pensar no caderno do amigo, que ele levara para casa por engano. Para conseguir
a introspecção necessária nessa hora, Kiarostami deu um problema matemático para o
garoto resolver. No mesmo filme, outro garoto chora porque leva bronca do professor
por não ter feito a lição. Kiarostami não disse para o menino: “Nesta hora você tem
que chorar”. Ele trabalhou de outra forma para conseguir a emoção do garoto, como
narra a seguir:

No roteiro estava previsto que o garoto chorasse e recitasse


uma deixa. Era difícil conseguir uma cena verossímil. Pedi a
um assistente para tirar uma fotografia e oferecê-la à
criança. O garoto gostava muito da fotografia e eu lhe disse
para guardá-la e que fizesse com que ninguém mais lhe
tirasse outra. [...] Depois pedi ao fotógrafo que lhe tirasse
uma segunda foto [...]. Dois ou três dias depois fui encontrar
o garoto e lhe disse: “soube que você deixou que tirassem
outra fotografia. Deixa-me ver nos seus bolsos se existe
outro retrato”. [...] Repeti a brincadeira uma terceira vez,
mas então o garoto, por precaução, havia escondido a
fotografia entre as páginas do seu livro. Quando a encontrei,
rasguei-a diante dele e, com a câmera ligada, perguntei-lhe:
“Quantas vezes eu disse que você não poderia deixar
ninguém lhe fotografar?”. Ele respondeu, chorando: “Três
vezes”. Eliminei minha voz da banda sonora e inseri a voz do
professor, que lhe perguntava: “quantas vezes eu disse para
escrever os deveres no caderno?”. E ele respondia: “Três
vezes”. De vez em quando é necessário praticar pequenas
patifarias (Kiarostami, 2004, p. 223-224).

Esse método é possível por causa da montagem cinematográfica, a qual


permite o extradiegético torna-se diegético. O ator não precisa reagir exatamente ao
que a cena propõe. Ele pode reagir a um estímulo que não faça parte da diegese
fílmica e isso é montado de maneira que tenha sentido dentro da cena. O importante é
suscitar a emoção do ator e o menos importante (para o espectador, neste caso) é
saber como.
Ghobadi realiza o mesmo método em Tempo de embebedar cavalos e seus
demais filmes. Em uma cena de Tartarugas podem voar (2004) ele queria que o garoto
chorasse, então pediu para ele olhar seu carro e que não deixasse ninguém mexer,
assim ele lhe daria o carro de presente. Um dia Ghobadi quebrou um dos vidros do
carro, quando o garoto viu o vidro quebrado e soube que não ganharia mais o
automóvel chorou sem parar. Ghobadi filmou e intercalou com outras cenas.
Esse método não é usado somente com crianças, mas para dirigir os "não"
atores em geral.

A performance das crianças


O antropólogo Richard Schechner, em seus estudos sobre teatro e
antropologia, preocupa-se sobretudo com a relação que se estabelece entre o ator e o
personagem. Ele baseia-se na noção do ‘mágico se’ de Stanislavski para estabelecer o
que ele chama de ‘transformação do ser e/ou da consciência do ator em cena’ (1985).
Para Schechner esse é um dos pontos de contato entre o teatro e a antropologia, que
discute da construção de identidade durante a performance.
A transformação da consciência que há no ator, Schechner chama de
“transportation” ou “transformation”. “Transportation” é quando os atores são
transportados para os papéis que desempenham, e no final voltam à sua vida
cotidiana, como no caso dos filmes analisados. Já “transformation” é quando o
performer sofre uma transformação na consciência ou status na sociedade, assim
como acontece nos rituais, por exemplo (Schechner, 1985).
Para Schechner (1985), a noção de “transportation” pode ser voluntária,
quando os atores que desempenham uma personagem têm controle total sobre si
mesmo ou involuntária, quando a pessoa precisa de técnicas para voltar a si, como nos
transes.
“Transformation” está presente principalmente nos ritos de iniciação “onde o
verdadeiro propósito é transformar as pessoas de um status ou identidade social a
outro” (Schechner, 1985, p. 127, tradução minha). Nos rituais de iniciação, há uma
transformação da consciência, pois os rituais são eficazes.
Uma performance é eficaz quando promove mudanças permanentes na vida do
participante. Nos ritos de iniciação, no casamento, na posse de um presidente ou em
outra cerimônia política, por exemplo, há uma mudança de status do indivíduo que só
pode ser desfeita através de outro ritual (Schechner, 2004).
Na experiência do ator em cena o que prevalece é a noção de “transportation”,
onde ele é transportado para aquela personagem (age como se fosse) e não se
transforma nela. Há também transformação nesses seres, tanto pela experiência de
ser outro, quanto pelo crescimento intelectual que cada trabalho proporciona ao ator,
mas esses atores não são transformados nas personagens que desempenham e
mantêm durante toda a performance o controle total do que estão fazendo. O “mágico
se” stanislavskiano atua como fator determinante para esta consideração. É uma
relação de ser e estar que se estabelece: “Eu sou fulano, mas estou agindo como se
fosse outra pessoa, ou eu mesmo em tal situação”. O ator não se transforma na
personagem.
Stanislavski propõe que o ator aja como se fosse a personagem, como se
estivesse em uma situação idêntica a dela. “[...] no palco devemos agir em nome do
personagem; que devemos aceitar, como se fossem nossos, tanto a situação em que o
personagem se encontra, como também os objetivos de sua ação” (Kusnet, 1975, p.
35). Pois não existe a dualidade entre ator e personagem. Não é o personagem
agindo, e sim o ator, em nome dele.
Há um desdobramento ator/personagem, pois não é o personagem que se
comunica com a plateia e sim o ator. Se essa consciência não existisse, poder-se-ia
dizer que esse ator estaria em um transe, sem controle nenhum de seus atos, mas no
sistema de Stanislavski, o ator age no modo subjuntivo.

Stanislavski foi frequentemente acusado de procurar impor


ao ator a aceitação total da realidade da vida do
personagem, aquela mística metamorfose do ator em
personagem. [...] Mas se isso fosse verdade, Stanislavski
usaria no seu método o termo “EU SOU” e não “SE EU
FOSSE”. Esse condicional é muito significativo. Ele presume
a aceitação simultânea da realidade – eu, o ator que sou, e do
imaginário – o personagem que eu, o ator, poderia ser
(Kusnet, 1975, p. 38, grifos do autor).

Em Tempo de embebedar cavalos, Ameneh representa ela mesmo, assim como


seu irmão Madi. As crianças realizam as ações cotidianas que desempenham no dia a
dia, assim como o médico. De acordo com Ghobadi: “Para o personagem do médico eu
trouxe o próprio médico do Madi. Pedi-lhe para vir e fazer o que ele faz normalmente,
com os mesmo diálogos” (Making of de Tempo de embebedar cavalos, 2000, tradução
minha).
Mesmo assim eles agem no modo subjuntivo como se e não no indicativo é,
pois por mais que sejam ações cotidianas e eles representem a si próprios, eles atuam
no filme, que é uma recriação da realidade.
Já Ayoub representa o irmão dos garotos, sendo que eles não têm nenhum
parentesco na vida real. Mas ele está inserido em circunstancias que fazem parte de
sua própria realidade.
Em Onde fica a casa do meu amigo? todos os personagens são criações do
diretor, que também realizam ações cotidianas, como frequentar a escola.
Esses “não” atores brincam de ser outras pessoas e de ser eles mesmos:
“brincar é característica de uma espécie cuja vida social envolve a construção e
interpretação compartilhada da realidade” (Bichara, 1999, p. 57). A partir da
brincadeira, o ser humano constrói e interpreta a realidade.
“Ao fazer de conta a criança ao mesmo tempo vive e constrói uma realidade e a
compartilha com seus companheiros” (Bichara, 1999, p. 57). Então o brincante cria
uma realidade própria, baseada na realidade empírica (vista através dos olhos dessa
criança ou adulto). Aspectos sociais e culturais influenciam as brincadeiras e é por
meio desses jogos que as crianças ou os adultos mimetizam as relações vivenciadas no
seu universo social.
A pedagoga Zilma de Moraes Oliveira (1992, p. 58), via pesquisa em creche,
observou que a criança, através da brincadeira lúdica do faz de conta, pode reviver
situações que lhe causam excitação, alegria, medo, tristeza, raiva e ansiedade. Assim,
ela pode expressar e trabalhar as emoções difíceis de suportar (como um quadro
operatório ou uma injeção) e o distanciamento, que a brincadeira propõe, permite que
ela trabalhe as emoções que sentiu.
As crianças de Ghobadi, através da atuação (brincadeira) têm a possibilidade de
reviver essas situações traumáticas, como a guerra, a deficiência física e a luta
cotidiana.
Toda brincadeira tem regras, “não existe brinquedo sem regras” (VYGOTSKY,
1991, p. 108). Mesmo que as essas regras sejam um padrão de comportamento que se
estabelece diante de um brinquedo. Por exemplo, se a criança se imagina como mãe,
ela segue as regras comportamentais que esse papel requer, cuidar da boneca, trocar
etc. Assim podemos intuir que esses “não” atores, também seguem regras, tanto
aquelas estabelecidas pelo diretor, quanto as regras que regem determinado
comportamento.
O que esses “não” atores fazem é brincar, brincar de ser eu mesmo, brincar de
ser outro, é fazendo de conta que sua performance se realiza.

Bibliografia
BICHARA, Ilka Dias. Brincadeira e cultura: o faz de conta das crianças Xocó e do
Mocambo (Porto da Folha-SE). Temas em Psicologia, Ribeirão Preto, v. 7, 1999,
p. 57-64.
DÖNMEZ-COLIN, Gönül. Cinemas of the other: a personal journey with film-makers
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GHOBADI, Bahman. These are the people we never see on TV. The Guardian, 6 jan.
2005d. Disponível em: <http://mijfilms.com/presse/reviews/the-songs-of-my-
mothers-land-marooned-in-iraq/these-are-the-people-we-never-see-on-tv>.
Acesso em: 18 jun. 2010.
KIAROSTAMI, Abbas. Duas ou três coisas que sei de mim. In: KIAROSTAMI, Abbas;
ISHAGHPOUR, Youssef. (Org.). Abbas Kiarostami. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
p. 175-289, 1ª edição.
KUSNET, Eugenio. Ator e método. Rio de Janeiro: Serviço Nacional do Teatro, 1975.
MACDOUGALL, David. The corporeal image: film, ethnography and the senses.
Princeton, NJ: Princeton University Press, 2006, 1ª edição.
OLIVEIRA, Zilma de Moraes. Creches: crianças, faz de conta & cia. Rio de Janeiro:
Vozes, 1992, 1ª edição.
SCHECHNER, Richard. Between theater and anthropology. Philadelphia: University of
Pennsylvania Press, 1985.
______. Performance theory. London & New York: Taylor & Francis e-Library, 2004.
VYGOTSKI, Lev Semenovitch. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes,
1991.

Filmografia
A VACA. Direção: Dariush Mehrjui. Irã: 1969, DVD (105 min).
ENTREVISTA com Jafar Panahi. Extras do DVD de Fora do jogo, lançado pela Sony
Pictures. 2006.
LIFE IN FOG. Direção: Bahman Ghobadi. Irã: 1999, DVD, (27 min).
MAKING OF DE TEMPO DE EMBEBEDAR CAVALOS. Irã: 2000, DVD (20 min).
ONDE FICA A CASA DO MEU AMIGO? Direção: Abbas Kiarostami. Irã: 1987, DVD (83
min).
O PÃO E O BECO. Direção: Abbas Kiarostami. Irã: 1970, DVD, (11 min.).
O SUL DA CIDADE. Direção: Farrokh Ghaffari. Irã: 1958, película (75 min).
O VENTO NOS LEVARÁ. Direção: Abbas Kiarostami. Irã/França: 1999, DVD (118 min).
TARTARUGAS PODEM VOAR. Direção: Bahman Ghobadi. Irã/França/Iraque: 2004, DVD
(95 min).
TEMPO DE EMBEBEDAR CAVALOS. Direção: Bahman Ghobadi. Irã: 2000, DVD (80 min).
Sessão Napedra 5: Experiência e memória

Coordenação: Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer (PPGAS/USP)

Bianca Tomassi (IA/Unicamp)


Danilo P. Ramos (PPGAS/USP)
Tatiana Molero (IA/Unicamp)
Romain Bragard (PPGAS/USP)
Fios da vida: identidade, memória e ritual. Crianças abrigadas, hoje adultas,
diante de seus prontuários, Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer (PPGAS/USP)

Duas pesquisas paralelas


• 1) Pesquisa coletiva: de setembro de 2008 a setembro de 2010
Adolescentes em conflito com a lei: pastas e prontuários do “Complexo do
Tatuapé” (São Paulo/ SP, 1990 – 2006), Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP),
Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (CASA), Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

• 2) Pesquisa individual: de abril de 2009 a março de 2013


Fios da vida: identidade, memória e ritual, Crianças abrigadas, hoje adultas,
diante de seus prontuários
Projeto Temático Antropologia da Performance: Drama, Estética e Ritual (USP),
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)

• Objetivo: analisar o caráter experencial e processual de um ritual


institucional-identitário centrado no movimento de busca de prontuários por adultos
que, quando crianças, passaram por abrigos públicos do estado de São Paulo.
• Tal ritual é tomado como “unidade de observação” e “experiência concreta”.
A partir dele se quer analisar a percepção da vida como drama social.
• Metodologia: leitura e análise de documentos que constituem os prontuários
(dramas institucionalmente elaborados e narrados) e histórias de vida construídas por
adultos em função da decisão de empreenderem a busca desses documentos (dramas
pessoalmente re-significados).

Eixo teórico central


• Conceitos-chave: identidade, memória e ritual. A proposta é articulá-los a
partir da premissa de Victor Turner de que uma antropologia da performance compõe
uma antropologia da experiência.
• Turner e Dilthey delineiam momentos a partir dos quais é possível analisar
uma experiência marcante. A busca de prontuários, por adultos abrigados quando
crianças, é tomada como momento em que imagens do passado articulam-se ao
presente em “uma relação musical”, possibilitando a (re)criação de significados para a
experiência identitária.
• Esses adultos, segundo o ex-diretor do arquivo da Fundação CASA, buscam
fios de suas vidas. Querem saber quem foram seus pais, seus irmãos; onde nasceram;
o que aconteceu para que fossem recolhidos como crianças “abandonadas” e/ou “em
situação de risco”; o que se passou durante o abrigamento e o que resta registrado de
suas infâncias e adolescências.

1ª Etapa (concluída)
abril de 2009 a março de 2010
• abril a setembro: superação de vários empecilhos burocráticos para obtenção
da autorização para manusear os prontuários (arquivados sob segredo de justiça).
• outubro a março: • visitas ao Arquivo da Fundação CASA (em média uma por
semana) para ler os documentos.
• Identificação, acesso e análise de 37 prontuários (cada qual com
aproximadamente 40 páginas).
• Transcrição de trechos dos principais documentos: relatórios técnicos, ofícios,
exames médicos e psicológicos etc.
• Seleção de algumas variáveis referentes a dados biográficos e verificação de
tendências procedimentais e cognitivas registradas nos documentos.
• Resta investigar se há mais homens do que mulheres buscando seus
prontuários porque os percentuais apenas refletem o fato de, historicamente, na
população de crianças abrigadas, predominarem meninos, ou se há outras motivações
em jogo.
• Uma possibilidade é que homens, e não tanto mulheres, invistam mais na
busca de registros de seu passado por “motivos trabalhistas” (contagem de tempo
para aposentadoria).

Sexo dos solicitantes de prontuários (07/2006 - 07/2009)


Masculino: 70,30%
Feminino: 29,70%
• A maioria absoluta dos solicitantes (56,8%) tinha pai e mãe conhecidos à
época do abrigamento. Cabe averiguar se, de fato, as crianças conviviam com eles,
caso em que podemos ter um quadro mais de famílias abandonadas pelo poder
público (Venâncio, 1999) do que de crianças abandonadas por pais irresponsáveis
(discurso recorrente em vários prontuários).
• Quando analisados casos em que um dos genitores era desconhecido à época
do abrigamento, destaca-se a ausência do pai (32,4%) frente à da mãe (5,4%), dado
que, além de confirmar uma situação historicamente recorrente, especialmente em
camadas populares brasileiras, pode permitir, futuramente, investigar re-significações
atribuídas pelos ex-abrigados a composições familiares e questões de gênero.

Pais à época do abrigamento dos filhos


Só pai desconhecido:
32,40%

Ambos conhecidos:
56,80%

Um ou os dois deconhecidos:
43,20%
Só mãe desconhecida:
5,40%

Ambos desconhecidos:
5,40%

• Destacam-se os solicitantes de prontuários com mais de 40 anos (64,9%),


predominando os que, à época do pedido de desarquivamento, tinham entre 40 e 50
anos (45,9%).
• Uma motivação registrada por alguns, em cartas de solicitação de
desarquivamento[1], são questões de ordem trabalhista, como a averiguação de
realização de atividades laborais no abrigo que possam ser consideradas na contagem
de tempo para aposentadoria. Tal motivação, aparentemente baseada em fatores de
ordem econômica, todavia, não descarta uma questão de ordem simbólica mais
abrangente, relativa a uma revisão identitária que pode estar relacionada justamente
ao período em que se aposentar implica fazer um balanço da trajetória de vida
percorrida até então, bem como de expectativas futuras. Este momento de vida pode
significar uma mudança de status relevante enquanto ritual identitário de passagem,
de modo que, “questões trabalhistas” provavelmente não sejam “apenas” trabalhistas.

[1] - Algumas cartas foram escritas à mão, pelo próprio solicitante; outras
parecem ter sido redigidas à mão ou digitalizadas por terceiros. Seus conteúdos variam
muito, indo de pedidos “secos”, sem justificativas de conteúdo, a solicitações
fartamente embasadas em motivações de ordem emocional, moral, familiar etc.

Idade à época da solicitação dos prontuários


(07/2006 - 07/2009)
+ de 40 a 50
anos: 45,90%
+de 50 anos:
19%
até 40 anos:
35,10%

2ª Etapa (concluída)
abril de 2010 a fevereiro de 2012
• enfrentamento de trâmites burocráticos para contatar os 37 adultos que
solicitaram o desarquivamento dos prontuários analisados na primeira fase, para com
eles realizar histórias de vida, de preferência em suas residências.
• primeiros contatos para agendamento de entrevistas. Muitos contatos não
conferiam mais e alguns poucos contatados se negaram a falar sobre o abrigamento.
Uma entrevista-piloto com um ex-abrigado não pertencente à amostra.
• Roteiro básico da entrevista:
• O(a) Sr(a) poderia dizer por que decidiu obter uma cópia de seu prontuário?
Em que momento
tomou essa decisão? Estava acontecendo alguma coisa especial em sua vida?
• O que esperava encontrar no prontuário? O que sentiu ao tomar
conhecimento de seu conteúdo?
• Poderia retomar algum acontecimento de sua infância, registrado no
prontuário, e que especialmente o(a) tocou? (Estímulo a certos temas, com base em
anotações do conteúdo específico do prontuário em questão)
• O(a) Sr(a) lembrava-se de algo que está registrado em seu prontuário? Do
que, por exemplo? E o que o(a) surpreendeu, por estar no prontuário mas não fazer
parte de suas lembranças?
• Se tivesse que contar sua história de vida em um programa de TV ou para que
ficasse registrada em um livro, o que contaria? Começaria por qual acontecimento? E
depois?
• Sente que algo mudou depois de ter tomado conhecimento do conteúdo de
seu prontuário?

Análises preliminares
(a partir dos prontuários, entrevista-piloto e conversas informais com
funcionários da F. CASA)
• Além de interpretando suas próprias vidas e o mundo, ex-abrigados
expressam/ performatizam o desejo de interromper um certo curso de vida e um certo
arranjo de mundo em busca de outros. Estão construindo experiências identitárias,
lidando com fragmentos aos quais querem dar sentido e coerência.
• Todavia, processos de construção identitária, além de percebidos como
incompletos, reiteram-se como fragmentados, não lineares, plenos de ruídos, margens
indefinidas e movimentos inesperados.
• Os conceitos de “sinais” e de “rastros” trabalhados, respectivamente, por
Carlo Ginzburg (1979: 143-179) e Walter Benjamin (Ginzburg, J. [no prelo]) são
potentes para estas análises.
• O conceito de performance se reforça, nesse quadro, como um conjunto de
elementos atuantes na mobilização, nas ações e na construção de significados que
estes adultos expressam ao elaborar a marcante experiência de buscar fios de suas
vidas e de perceberem-na como um tecido não homogêneo, não geométrico,
imprevisível.

3ª e última etapa (em andamento)


março de 2012 a março de 2013
• Retomada de prontuários já lidos e levantamento de novos prontuários
desarquivados entre 2010 e 2012 para alargar a amostra de possíveis entrevistados
(novas visitas ao arquivo).
• Tentativas de localização, contato e realização de entrevistas videografadas
com ex-abrigados para, ao final da pesquisa, produzir um curta ou média metragem.
• Com base no material coletado e analisado nas duas etapas anteriores,
pretendo explorar a hipótese de que a busca dos prontuários é deflagrada por um
conjunto de significados envolvidos em “períodos rituais” – Páscoa, Natal, Dia dos Pais,
Dia das Mães, aniversários, casamentos, nascimentos de filhos. Esta hipótese foi
aventada pelo ex-diretor do arquivo da Fundação CASA (falecido este ano). Trata-se de
verificar se, em ocasiões de suspensão de atividades e temporalidades cotidianas,
identidades são, de algum modo, revisitadas, questionadas e redimensionadas.
Notas antropológico-metodológicas sobre histórias de vida, memória,
identidade e ritual
• pessoas, identidades, percepções e memórias se constroem em processos
relacionais. Os próprios procedimentos de coleta de dados se dão através de relações
interpessoais simétricas e/ou assimétricas que, por sua vez, se encontram situadas em
redes de relações simétricas e/ou assimétricas.
• o distanciamento afetivo ou estranhamento (uma relação assimétrica entre
sujeito e objeto), é tão pleno de conseqüências metodológicas quanto a proximidade
ou envolvimento afetivo (relação mais simétrica entre sujeito e objeto). (Dwyer, 1982).
• Tomando afetos em outra dimensão, afirma a antropóloga Jeanne Favret-
Saada (2005: 160):
“(...) quando um etnógrafo aceita ser afetado, isso não implica identificar-se
com o ponto de vista nativo, nem aproveitar-se da experiência de campo para
exercitar seu narcisismo, Aceitar ser afetado pressupõe, (...) que ele tolere viver um
tipo de schize. (...). As operações de conhecimento acham-se estendidas no tempo e
separadas umas das outras: no momento em que somos mais afetados, não podemos
narrar a experiência; no momento em que a narramos não podemos compreendê-la. O
tempo da análise virá mais tarde.”
• A proposta de, primeiramente, ler prontuários e, depois, realizar histórias de
vida videoetnografadas com aqueles que “me escolherem” como interlocutora é, de
algum modo, afetar-me com suas narrativas. Videoetnógrafá-las talvez signifique,
através de um processo de interação presente, estabelecer com essas pessoas relações
que lhes permitam (e me permitam) reelaborar uma construção de suas experiências
passadas e mesmo de novas significações para o que está por vir.

Bibliografia

BERNAL, E. M. B. (2004). Arquivos do abandono. Experiências de crianças e


adolescentes internados em institutos do Serviço Social de Menores de São
Paulo (1938-1960). São Paulo: Cortez.
DILTHEY, Wilhelm (1976). Selected Writings. In Rickman, H. P. London: Cambridge
University Press.
DWYER, K (1982). Morocan dialogues. Baltimore: Johns Hopkins University Press.
BOSI, E. (2003). O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo:
Ateliê Editorial.
BOURDIEU, Pierre (1986). L'Illusion biographique. In: Actes de La Recherche en Sciences
Sociales, (54): 69-72.
CARVALHO, I. M. M. (1995). Direitos legais e direitos efetivos: crianças, adolescentes e
cidadania no Brasil. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, ano 10, nº 29,
outubro, pp.127-142.
FONSECA, C (1987). O internato do pobre: Febem e a organização doméstica em um
grupo porto-alegrense de baixa-renda. In: Temas IMESC. São Paulo, vol.1, nº 4,
pp.21-39.
GINSZBURG, C. (1989). “Sinais”. In: Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história.
São Paulo: Companhia das Letras, pp. 143-179.
GINSZBURG, J. (no prelo) “A interpretação do rastro em Walter Benjamin.
MARICONDI, M. A. (coord.) (1997) Falando de abrigo: cinco anos de experiência do
Projeto Casas de Convivência. São Paulo: FEBEM.
MINTZ, S. W. (1984) Encontrando Taso, me descobrindo. In: Revista de Ciências Sociais.
Rio de Janeiro, vol. 27, nº 1, pp. 45-58
PEIRANO, M (2006). Temas ou Teorias? O estatuto das noções de ritual e de
performance. In: Revista Campos 7(2): 9-16.
SANTOS, M. S. (2003). História e Memória: o caso do Ferrugem. In: Revista Brasileira
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SCHECHNER, Richard. (2003) O que é performance? In: O Percevejo – Revista de teatro,
crítica e estética. Rio de Janeiro: UNIRIO, Ano 11, n.12.
TURNER, Victor (1998) The Anthropology of Performance. New York: PAJ Publications
(A Division of Perfoming Arts Journal, Inc.).
VALLADARES, L. P.; ALVIM, M. R. B. (1988) Infância e sociedade no Brasil: uma análise
da literatura. In: Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais. Rio de
Janeiro, n.26, p.3-37, 2º Sem.
VENÂNCIO, R. P. (1999). Famílias abandonadas – Assistência à criança de camadas
populares no Rio de Janeiro e em Salvador – Séculos XVIII e XIX. Campinas,
Papirus.
Bianca Tomassi (IA/UNICAMP)

Tratando-se esta de uma pesquisa em torno da comunidade muçulmana que se


foca nos papéis representados pelos jovens muçulmanos que interagem com o
movimento Hip Hop, é possível observar que os dramas sociais caracterizam está
singular configuração religiosa. Partindo do modelo instituído por V. Turner, podemos
observar as 4 fases que caracterizam os dramas sociais. A ruptura/separação pode ser
observada claramente pelas críticas que esses jovens muçulmanos recebem de outros
membros da comunidade islâmica por pertencerem ao grupo/movimento
social/cultural Hip Hop. Fazendo-os com que se afastem e/ou se desvinculem da
religião ou do movimento Hip Hop. Esta tensão entre religião/Islã e movimento Hip
Hop provoca uma nova configuração religiosa, cultural e social. Portanto moldando
também, uma nova configuração do campo. Por este motivo poderemos igualmente
observar novas expressões estéticas que estão se re-configurando em busca de uma
reintegração entre religião/tradição e Hip Hop/ atualidade. Os dramas estéticos e os
dramas rituais que poderemos observar com esta pesquisa espelham o drama social
deste grupo finalizando a trança de interligações entre drama, ritual e estética cujo
resultado só poderá ser observado no decorrer da pesquisa.
A imanência do bicho-do- pé: notas sobre um estranho ritual, Danilo Paiva
Ramos (PPGAS/USP)

Bichos Escrotos
Saiam dos esgotos
Bichos Escrotos
Venham enfeitar
Meu lar!
Meu jantar!
Meu nobre paladar!...
(Nando Reis)

Introdução
Essa apresentação tem como objetivo apresentar reflexões iniciais sobre as
rodas noturnas dos velhos Hupd’äh, povo Nadahup (Maku) que habita a região do Alto
Rio Negro, AM. A etnografia em curso vem permitindo perceber que as rodas noturnas
constituem-se como um espaço central para os fazeres mítico, onírico e xamânico, a
partir dos quais os velhos estabelecem relações fundamentais com o restante da
sociedade Hup. Apesar disso, percebe-se a pouca ênfase que a literatura etnológica
deu para esses encontros noturnos mencionados em breves notas que enfatizam
sempre dimensões pontuais desses eventos. Como mostra Carlo Severi (2009), o ritual
pode surgir através de grandes formas institucionalizadas ou de eventos que surgem
desapercebidos na vida cotidiana. Partindo da percepção de uma roda de coca que
ocorria em meu próprio pé, procuro ressaltar aspectos rituais dos encontros noturnos
e refletir sobre alguns gestos marcantes como: sentar, cercar e oferecer. Por fim,
proponho uma interpretação inicial sobre os atos de fala que compõem essa
performance.

Os Hupd’äh
Os Hupd’äh habitam a região do Alto Rio Negro (AM) na fronteira entre o Brasil
e a Colômbia. Suas comunidades situam-se às margens de igarapés da área interfluvial
dos rios Tiquié e Papuri, afluentes da margem esquerda do rio Uaupés. Os dados
demográficos mais atuais estimam a população num total de 1.500 indivíduos
distribuídos em aproximadamente 35 aldeias (R. Athias, 2006; P. Epps, 2005). A alta
mobilidade e circulação pelo território são aspectos fundamentais do modo de vida
hup relacionados ao vasto conhecimento que possuem sobre os caminhos, igarapés,
animais e vegetação local. Associada à mobilidade, a caça-coleta constitui-se como a
atividade produtiva mais importante para a diferenciação identitária desse povo em
contraste com as populações ribeirinhas de pescadores-agricultores. Ao mesmo
tempo, a eficácia da caça-coleta vem diminuindo nas últimas décadas e fazendo com
que a pesca em igarapés e as roças de mandioca venham se tornando cada vez mais
fundamentais para a produção alimentar. Isso ocorre principalmente nas comunidades
mais populosas. Atualmente, há algumas aldeias que agregam de 100 a 200 indivíduos,
enquanto outras continuam concentrando de 15 a 50 pessoas (H. Reid, 1979, p. 18).
A estrutura social hup tem nos clãs agnáticos seus segmentos básicos de
constituição e de diferenciação. Criados pelo herói cultural //, os ancestrais
/– filhos da criação – deram origem aos hoje aproximadamente 20
clãs patrilineares, exogâmicos e de descendência unilinear. Cada clã possui um
conjunto específico de nomes, mitos e cantos através dos quais são narrados os
eventos de criação e se constitui um senso de pertencimento e identidade. O
casamento preferencial dá-se entre os primos cruzados bilaterais em uma mesma
geração, procurando respeitar certa hierarquia entre os clãs. Em contraste com outros
povos da região, o sistema de matrimônio dá-se segundo a endogamia lingüística e a
exogamia clânica. O casamento dá origem a grupos de fogo, unidades mínimais de
produção e consumo, que se fixam de modo patrilocal. A coabitação em um mesmo
território ou espaço de grupos de fogo gera os grupos locais que são nomeados e
diferenciados entre si. Os deslocamentos de grupos de fogo ou indivíduos para visitas a
parentes de outros grupos locais ocorrem periodicamente e podem durar meses (H.
Reid, 1979; R. Athias, 1995).
Esses traços aproximam os Hupd’äh de povos como os Yuhupdëh,
Nadëb, Dâw, Kákwa e Nukák, e permitiram a designação dos mesmos pela literatura
etnológica da região como povos Maku. Entendendo haver um sistema relativamente
homogêneo baseado na exogamia lingüística, nas relações hierárquicas rituais e
territoriais entre povos falantes de línguas tukano e arawak, os pesquisadores
descrevem a especificidade da articulação dos povos Maku a esse “sistema
vaupesiano” (S. Hugh-Jones, 1974; C. Hugh-Jones, 1977). O próprio termo Maku,
adotado pela literatura, revela a particularidade dessa interação já que a palavra Maku
origina-se do arawak e significa “aquele que não tem fala” ou “aquele que não tem a
nossa fala” (Ma = prefixo privativo / aku = fala), sendo associado a “selvagem”, a
índios-da-floresta em oposição a índios-do-rio, como os povos tukano e arawak. A
realização de trabalhos nas roças de famílias tukano, que faz com que famílias maku se
mudem para próximo às aldeias tukano em determinados períodos, as trocas de carne
de caça e frutos por mandioca, peixes e mercadorias, e o respeito e silêncio diante dos
tukano são aspectos que fizeram com que os pesquisadores descrevessem as relações
entre esses povos como simbióticas, de patrão/ cliente, hierárquicas e assimétricas (H.
Reid, 1979; R. Athias, 1995; A. Ramos, 1981).

Breves notas
Em 1960, em sua enquete sobre os índios Maku do Caiari Uaupés para a Société
Suisse des Américanistes, os irmãos Mário e Michel Terribilini (1960) descrevem o
modo de preparo da coca. Sua pequena nota atenta para a mastigação realizada
noturnamente e ao redor do fogo. O consumo de coca ocorria também durante longas
caminhadas e acalmava a fome durante períodos de escassez de alimentos. Em suas
palavras,

La feuille de coca, additionée d’une petite quantité d’une


autre plante, est séchée et pilée, puis mélangée avec de la
cendre végetale (de grandes feuilles sèches) pour former
une poudre gris-clair. (p. 5).

O consumo noturno de coca é descrito por H. Reid (1979) em meio a um relato


de como se dá o trabalho dos Hupd’äh junto aos Tukano. No final do dia de trabalho,
os Hupd’äh tentam convencer o Tukano para o qual trabalham a deixá-los preparar a
coca para eles. Com a permissão, eles buscam folhas de coca e começam a processá-
las de forma semelhante à atual. Misturam os pós, envolvem-nos num saco na ponta
de uma vara e socam-nos no interior de um tronco oco. Parte da coca, processada com
as cinzas, é dada aos Tukano e parte é consumida pelos Hupd’äh enquanto conversam
durante a noite (p.80). A descrição do autor ajuda a perceber como essas rodas se
realizavam na década de 70 e como estabeleciam mediações na relação entre os dois
povos, marcadas pela assimetria, pelas trocas e pela prestação de serviços (R. Athias,
1995).
Já Peter Silverwood-Cope (1990) refere-se às rodas da seguinte forma:

À noite, homens de diferentes grupos domésticos sentam-se


juntos, algumas vezes fora e, outras vezes, na casa do
homem mais velho, para discutir a caça e a floresta, para
contar estórias e para conversar e discutir os problemas da
comunidade, dos seus vizinhos e dos Índios do Rio. (p.86).

É interessante notar como seu breve relato feito em meio a uma análise sobre a
integração dos grupos domésticos nos grupos locais apresenta elementos comuns à
descrição atual que venho fazendo dos encontros noturnos. Há um senso de
pertencimento ao grupo local que se reforça através das rodas de conversa. Sua
descrição deixa transparecer certo aspecto de igualitarismo e comunhão, mostrando o
mais velho como alguém importante por seu saber e papel político.
No trabalho de doutorado de D. Buchillet de 1981, as rodas de coca são
mencionadas em meio à descrição do modo como o aprendizado de benzimentos e
mitos se dá entre pai e filho através de diálogos cerimoniais. Ambos os participantes
comem coca e fumam tabaco para reavivar a memória e para não dormir (p.105). C.
Hugh-Jones (1979) detalha o processo de produção e consumo da coca em meio a uma
descrição dos processos de produção dos alimentos. Mostra como a atividade constitui-
se como uma prática exclusivamente masculina, diária e secular e como é centrar para
definir o ciclo diário de produção masculino em oposição ao feminino. Estabelece
relações entre a produção da coca e o mito Barasana de origem da coca e mostra um
pouco a importância da coca para o xamanismo desse povo.
Stephen Hugh-Jones (1995), por sua vez, enfoca o uso ritual e cotidiano da coca
e outras substâncias pelos Barasana, estabelecendo uma minuciosa descrição dos
hábitos de consumo da coca, enquanto alimento masculino. Traçando paralelos entre o
consumo cotidiano da coca, de derivados da mandioca, e o consumo ritual de yagé e
tabaco, o autor mostra como as pessoas relacionam-se, expressam valores sociais, e
diferenciam-se enquanto homens e mulheres, jovens e adultos pela mediação dessas
substâncias. Nas rodas noturnas de conversas, enquanto consomem a coca em pó, os
homens contam histórias, conversam, comentam fatos diários, etc. Alimento consumido
pelos espíritos e pelos ancestrais, a coca estabelece um aspecto temporal diferente,
permite aos homens no presente entrarem em comunhão com os ancestrais no passado
(p.54). O foco dessa reflexão incide mais sobre os hábitos diários de consumo que sobre
o uso das substâncias ritualmente. As práticas que envolvem tais substâncias e
expressam as ordens social e cosmológica revelam tanto a diferenciação de papéis
quanto relações de reciprocidade igualitária. Essas substâncias seriam partes integrais
das identidades dos grupos, perpetuadas através do tempo por meio do consumo, da
transmissão das plantas, de seu cultivo para novas gerações e da diferenciação de gênero
que marca a coca, o tabaco, a mandioca, a pimenta e o yagé como veículos de interação
social.
De forma muito semelhante à análise de S. Hugh-Jones, em seu trabalho
La parole engendrée, Dimitri Karadimas (2000) aborda as concepções Miraña sobre o
consumo cotidiano da coca. Em reuniões noturnas, a coca é mascada enquanto contam-
se mitos, realizam-se as curas xamânicas e conversa-se sobre fatos importantes,
havendo a enunciação e reprodução nos níveis profano e sagrado da língua. A coca e o
tabaco são objetos de trocas constantes entre os homens, e formam um par
indissociável. À coca são vinculados atributos femininos e ao tabaco atributos
masculinos, sendo que o seu consumo caracteriza o homem adulto por excelência. Essas
substâncias compõem uma mesma essência combinada na boca e no estômago
masculinos. Devido às cinzas, o tabaco e a coca possuem princípios fecundantes que
compõem a identidade corporal Miraña. São as palavras engendradas pela coca que são
consumidas nessa relação estabelecida no estômago (2000, p.445- 453).
Comer coca, fumar tabaco e conversar são atos que parecem reunir os homens e
especificamente os velhos desses diversos povos descritos pelos pesquisadores e
delinear os contornos de uma forma específica de interação social e verbal. As
interpretações apontam para certa comunhão e reforço da identidade local, para a
diferenciação de papéis sociais e de gênero, para uma reciprocidade igualitária e para a
mediação em relações assimétricas interetnicas. Ao mesmo tempo, S. Hugh-Jones
(1995) e Dimitri Karadimas (2000) traçam os contornos dessas rodas de conversa e
consumo de coca aproximando-as muito de ações rituais. As curas xamânicas e as falas
em níveis sagrado e profano dos Miraña, e o aspecto temporal que permite a comunhão
com os espíritos e ancestrais nos encontros noturnos Barasana mostram que esses
eventos se realizam através de uma lógica relacional particular.

Bicho do pé

“Amɨh sob hɨd pũ’uk wëdëy, hɨd


niih hɨdɨh yud, këy”.
“Eles estão comendo coca no seu
dedo, e estão com suas roupas, olha”.

Atormentado pela dor em meu dedo do pé, pedi a Genésio (/kä’/, 25 anos,
/ t noh köd t h/) que visse se eu tinha bicho do pé: - “këy’ëy am ten n’am ãh
nííh?”. Ficamos sentados do lado de fora da casa onde eu estava. Ele tomou uma
agulha e começou a olhar e a espetar meu dedo do pé. Foi então que olhou para mim
surpreso e disse que havia dois bichos do pé em meu dedo e que eles já estavam
sentados comendo coca. Estavam com suas roupas comendo coca. Para mim, “a
roupa” eram os ovos que formam o anel em torno do bicho. Por outro lado, informado
pela teoria perspectivista, esperava ver roupas principalmente em seres como
jaguares, porcos queixada e macacos, e não nesse pequeno inseto que me incomodava
tanto. Não esperava também que eles comessem coca, realizando algo semelhante às
rodas de conversa dos benzedores hup, sobre as quais venho trabalhando. Fui
entendendo que além dos Hupd’äh muitos seres reúnem-se para comer coca, fumar
tabaco e conversar sobre benzimentos e mitos.
No início da noite, nas casas do rio, /dëh moy/, os benzedores e os donos das
muitas gentes peixe estão reunindo-se para comer coca e fumar tabaco. No céu, na
casa do trovão, /p y moy/, quando as gentes onça não se reúnem para comer coca e
fumar com seu dono, o trovão, podemos ouvir sua fúria através dos estrondos dos
raios e trovões no céu. Na mata, os diversos /b’at b’ preparam a coca e o cigarro para
fazer a refeição coletiva, conversar, contar suas /p n ghistórias/mitos e falar sobre
benzimentos. Na casa da cachaça, /sibi moy, os homens do banco, /käd hup he os
homens do benzimento, /bi’id hup hestão preparando a coca e sentando-se em roda
para comer, fumar e conversar entre parentes, ou como me disseram, entre cunhados,
/yoh däh/, e irmãos, /bab’ däh/. Em meu dedo do pé, como no dedo de muitos da
aldeia, os bichos do pé instalavam-se, preparavam sua coca, sentavam-se, comiam e
conversavam entre parentes.
Sentado próximo à casa de Genésio, comi coca e fumei com seu pai, Vicente,
seu sogro, Miguel, seus tios e cunhados (afins) muitas noites. Fui aprendendo que
sentar é a postura corporal, o gestus social, que marca o enquadramento, a
performance frame, para tomar B. Brecht (1964) e R. Bauman (1977), dos encontros
noturnos. Num primeiro momento, todos os benzedores e pajés dividem as tarefas do
preparo da coca. Vão conversando sobre a pesca, a caça, a viagem a São Gabriel, a
chegada de “brancos” e/ou “tukano” à comunidade, etc. Chamam-se por apelidos,
riem, conversam com as mulheres que estão perto tecendo seus cestos de aturá. Aos
poucos a coca começa a ficar pronta, é derramada do pilão à cuia e passada, pelo dono
da coca, /p ’ k yo’om h, /p ’ k töt através do qual será oferecido pelo dono a
todos os presentes, circulando de mão em mão. É apenas quando todos já se
encontram sentados em bancos que os benzedores começam a perguntar e narrar
mitos e benzimentos. Começam assim a relacionar-se com outros tempos e espaços do
cosmos por meio de palavras, gestos e do movimento de seus pensamentos.
Como disseram, nas rodas nunca os benzimentos são contados por completo.
Quando o encontro está prestes a terminar, os velhos enchem suas bocas de coca,
despedem-se e vão para suas casas deitar na rede. Enquanto a coca vai sendo
absorvida, os velhos deslocam seu pensar, /wä’ këy/, e sua “força vital”, /hãwäg/, para
os tempos e espaços mencionados nas conversas da roda. Esse é um momento
perigoso, pois os benzedores e pajés de todas as casas do céu, da terra, do rio, de
debaixo da terra, de outras comunidades hup e de outros clãs estão deslocando-se
para roubar, /sëkëy/, os benzimentos, a força vital, e os conhecimentos de outros
benzedores e pajés. Para estar protegido, é preciso que o benzedor saiba cercar-se
com o benzimento que cerca, o /bi’id ta’/, e que fique acordado. Do contrário terá
sonhos ruins que podem representar perigo a sua família e à aldeia como um todo. Por
volta das duas da madrugada os benzedores dizem dormir e sonhar. Em seus sonhos,
seus pais, avós e ancestrais surgem e contam os benzimentos e mitos sobre os quais
conversavam na roda. Assim, conseguem complementar nas narrativas parcialmente
contadas nos encontros noturnos. Pajés e benzedores contam também de sonhos em
que viajam com seus /hãwäg/ para as diversas casas do cosmos.
Creio que naquele final de tarde, aos olhos de Genésio, filho de Vicente,
benzedor e dono da roda em que vínhamos comendo coca, meu próprio dedo do pé
tenha sido percebido como o local, a morada onde os bichos do pé podiam
tranquilamente sentar-se com suas roupas, comer coca e conversar sobre suas
histórias e benzimentos, como fazem os jaguares, os porcos queixada, os macacos, as
gentes peixe, e os muitos seres que habitam o cosmos. Se as roupas permitem
transformações em termos de perspectivas, creio poder dizer que a postura corporal e
o alimento comum a esses seres apresentam-se também como índices de uma
condição humana universalmente partilhada entre os seres, “a essência antropomorfa
de tipo espiritual, comum aos seres animados” (E.Viveiros de Castro, 2002, p. 351).

Sentar

“Peut-on pour autant, parler d’un voyage du kubu? Et


puisque l’efficacité thérapeutique repose sur l’incantation,
les mots de celle-ci reflètent-ils l’idée d’un déplacement
dans l’espace, d’une progression du kubu d’un lieu à un
autre pour identifier les agents responsables de la maladie?”
(1983, p.198).

Essas são as palavras finais da antropóloga Dominique Buchillet em sua tese


Maladie et memoire des origines chez les Desana du Uaupes de 1983. As questões
colocadas pela autora com relação ao deslocamento do Kubu durante a realização de
benzimentos partem de sua minuciosa descrição das práticas xamânicas dos Desana. A
partir de sua etnografia, D. Buchillet contrapõe-se às descrições generalizantes de C.
Lévi-Strauss (2003) e M. Eliade (1968) por perceber que as práticas de cura desana,
realizadas muitas vezes sem a presença do doente, em silêncio, por meio de palavras
murmuradas e sopradas em objetos intermediários, sem ornamentos rituais e sem a
“viagem da alma”. Sua crítica etnográfica vai no sentido de complexificar os
entendimentos de sua época sobre a “eficácia simbólica” e sobre o xamanismo.
Em Hupd’äh, a palavra /wä’këy/ que vem sendo traduzida por pensar, aglutina
duas outras: /wä’/ - ouvir- e /këy/ - ver. Tomando como referência a reflexão de Tim
Ingold (2000), venho procurando descrever e entender o pensar, o ver e o ouvir como
atos de percepção. Conversando muitas noites com o Jovino e seu pai, Ponciano,
coloquei a eles questões semelhantes a essas que fecham a tese de D. Buchillet com
relação à realização dos benzimentos. Disseram-me que o benzedor /bi’id h/,
enquanto profere o benzimento, murmurando-o em direção a um objeto
intermediário, /t h hãwäg ham, t h wä’këy ham/, “vai com o pensamento e com a força
vital”, desloca-se até a pessoa a ser benzida e depois vai para as diversas casas do céu,
da terra, do rio, do interior da terra, dependendo do benzimento. O deslocamento se
daria não “em pensamento”, mas “com o pensamento”, estando o pensamento
sempre acompanhado da força vital. O verbo /ham/, ir, é usado para descrever o
movimento em sua ação. Toda essa movimentação que o leva às diversas casas do
universo e/ ou ao lago de leite surge nas “exegeses de benzimentos”, através da
narrativa das ações do benzedor quando interage com os diversos planos-casa e com
as diversas perspectivas dos seres que habitam esses locais (P. Lolli, 2010). Talvez a
mobilidade e o deslocamento da força vital e do pensamento do benzedor quando
está sentado, murmurando e soprando palavras a objetos intemediários seja um
aspecto específico das práticas de benzimento hup, ou talvez seja interessante
conversar mais com os Desana e com outros povos tukano para explorar melhor a
questão fundamental aberta por D. Buchillet.
Os benzedores hup, como os desana, não usam maracás ou cocares quando
praticam um benzimento, mas procuram geralmente sentar-se em bancos. No caso
dos Hupd’äh, os bancos são feitos com madeira de sorva, entalhados a terçado em
aproximadamente 4 horas de trabalho. A árvore é encontrada na mata próxima à
comunidade e resulta em um tipo de banco leve, pequeno e de fabricação rápida, se
comparado aos bancos dos povos tukano, mais pesados, que demoram em média 72
horas para ser fabricados segundo a Tok Stok60. Os bancos hup também não são
polidos nem lixados e nem recebem grafismos de trançado. Feitos a partir da mesma
madeira, creio que seja a técnica e o design o que diferencia os bancos e que faz com
que os bancos hup sejam carregados facilmente de um lugar ao outro e fabricados
com 5,5% do tempo que leva um Tukano para preparar seu banco. Há também bancos
pequenos feitos para as crianças e que variam seus tamanhos de acordo com o
tamanho da mesma. Mas se não há grafismos de trançado nos bancos hup, tal como os
encontramos nas aldeias, os bancos das casas de transformação visitados pelo
benzedor hup e pela força vital da criança durante o /t h bi`id/, benzimento do
nascimento da criança, possuem grafismos assim como as malocas dos diversos seres.
Em hup há duas formas de referir-se aos benzedores no que diz respeito a suas
praticas xamânicas. Há os /käd hup h/, os homens do banco, e os /bi’id hup h/,
homens do benzimento. Os “homens do banco” têm como objeto de poder
fundamental seus bancos, mas para a prática xamânica utilizam também a cuia de
coca, o cigarro, a cuia de água remédio, os potes de coca e de água remédio. Já os
/bi’id hup h/ têm a cuia de coca, o pote de água remédio, a cuia de água remédio, o
cigarro, e realizam o benzimento sentados em bancos, folhas, chinelos ou pedaços de
madeira caídos. A diferença entre ambos se expressa, por um lado, nessa relação
metonímica que aproxima um tipo de benzedor do objeto e à postura que permite a
ele realizar o gestus social fundamental a sua performance, ao pensamento e ao ato
de benzimento, e o outro ao benzimento enquanto palavra e ação. Ambos
diferenciam-se também com relação aos tipos de benzimento que conhecem e
executam, e pelo uso do kapi, mais recorrente no caso dos “homens do banco”, /käd
hup h/.
Há ainda uma terceira categoria de praticante do xamanismo denominada
/säw/, traduzida pelos Hupd’äh como pajé. Pelo que venho entendendo de minhas
conversas nas rodas de coca, todos os pajés são capazes de realizar benzimentos, mas
diferenciam-se dos “homens do banco” ou dos “homens que benzem” por, através dos
sonhos, do jogar água e do chupar conseguirem entender a causa do mal/doença que
está atingido a pessoa e extraí-lo do corpo da mesma. De uma forma interessante, os
Hupd’äh com quem venho trabalhando contam que no tempo de seus avós não havia
pajés hup, apenas benzedores. Dizem que os pajés hup que atuam hoje em dia
aprenderam com um velho hup que fora trabalhar na Colômbia e aprendeu as práticas
xamânicas com os Tukano de lá, participando de cerimônias de karpi. O pajé
Guilherme, que morreu faz alguns anos, realizou cerimônias de karpi das quais
participaram o atual pajé Armando e o pajé Firmino, moradores da comunidade de
Taracuá Igarapé. Nos últimos anos, Marino vem sentando-se com Firmino para tomar
caarpi e aprender essas práticas xamânicas. Talvez esse processo possa ser pensado
como um movimento distinto do que vem sendo descrito para os povos da região.
Monografias, discursos de lideranças indígenas e ONGs apontam para a diminuição dos
pajés ou para a diminuição do poder dos mesmos.
De todo modo, no que diz respeito à performance do benzedor, muitas vezes
sentado nas rodas de ipadu enquanto benze, é marcante o contraste entre seu corpo
silencioso, quase imóvel, concentrado com movimentações rápidas e contínuas dos
lábios próximos ao objeto intermediário, soprando-o para fazer as palavras
60
http://www.tokstok.com.br/app?page=MostraJeito&service=page&ps=4,41,51574,51579
penetrarem o objeto, movimentando precisamente as mãos em alguns momentos
para reforçar ações mencionadas nos benzimentos e, por outro lado, seu pensamento
e sua força vital em constante movimento pelo cosmos, entrando em relação com
seres e com outras dimensões do espaço-tempo.
Num dos movimentos do /bi’id ta’/, o benzimento que cerca , mencionando
diversos tipos de timbó, o benzedor vai entrando em relação com o modo como as
gentes peixe e, especificamente, com /Ed hup h/ que percebe olfativamente a
menstruação da mulher como um cheiro que o desagrada e faz com que fique furioso.
Para ele, a menstruação da mulher hup cheira a timbó, raiz utilizada para tinguejar. A
presença da mulher na água do rio ou próximo, ou mesmo o cheiro de um homem que
tenha tido relações sexuais com uma mulher menstruada são sinais de desrespeito a
regras sociais dos hup e também a esse ser que, nesse caso, levanta-se de seu banco,
toma suas armas ou veste suas roupas e vem à Terra para fazer mal à pessoa que
provocou a sua irá ou à família. Para “acalmá-lo” o benzedor menciona as canoas de
diversas aves como o pato d’água, o inambu, da lontra, e com isso vai fazendo o cheiro
da menstruação passar a ser percebido pelas gentes peixe como as canoas desses
animais, o que revela ações e efeitos de linguagem metafóricos e metonímicos para
um determinado tipo de eficácia.
É por meio dessa mobilidade e fluidez, para tomar conceitos chave através dos
quais P. Silverwood-Cope, H. Reid e J. Pozzobon refletiram sobre a organização social e
circulação de Hupd’äh, Yuhupdëh e Kákwa pelo teritório, que o benzedor interage com
as múltiplas perspectivas e busca intervir no campo de percepção dos seres, agindo
para alterar suas percepções sensoriais e acalmar sua fúria. Para isso, muitas vezes, o
benzedor diz dar banco, coca e tabaco para seres como as gentes peixe, os /batɨb/, as
gentes árvore, etc.

Cercar

/Bi’id ta’/: Benzimento de cercar


Para (proteger dos) seres da cuia chao de argila, nos temos
esse benzimento, Danilo, o bi’id ta’ , o benzimento para
cercar as muitas gentes peixe. Quando vamos fazer algo com
as mulheres no igarapé ou no rio grande, nos temos medo,
pois elas podem ter menstruaçao. Entao, naquele lugar, o
benzimento de cercar eu digo. Primeiro eu tenho que ler
contar a doença das muitas gentes peixe: o esp rito Ed, o
espírito Sãy, eu conto. Eles têm as facas pequenas deles,
/dabuy tëg/. Vou falando e fazendo com que eles entrem e
fiquem em pé. A faca pequena, a vara, o pinu-pinu, todas as
coisas que eles têm eu vou fazendo juntarem dentro da casa
deles, faço-os entrar e ficar em pé. Eu continuo para os
peixes-gente machos, para o esp rito Ed, para os botos, para
as cobras, para todos mesmo. Eu mando areia para dentro
da casa deles, para a casa de piso branco, para os homens,
para a casa de piso amarelo, para os homens. A faca
pequena deles, o pote de beber (caarpi?). O rosto deles fica
virado para outro lado, e faço com que fiquem dentro da
casa deles, sentados (...).
Esse é um trecho do primeiro benzimento que Ponciano (/Hud/, 63 anos, clã:
/sokw’ät noh köd t h/) me contou. No silêncio da tarde, na casa em que eu estava
dormindo, ele contou esse benzimento para ser gravado. Não direcionava sua voz para
o gravador, mas sim para mim, que surgia em sua narrativa como um interlocutor, um
aprendiz. Em muitos momentos os velhos dizem que os benzimentos que venho
ouvindo e gravando irão me ajudar a benzer minha família e pessoas em São Paulo. E
foi grande minha surpresa quando, conversando sobre os benzimentos dos hup com
minha avó, ela me contou que meu bisavó realizava benzimentos para mordidas de
insetos e cobras, e que ela havia aprendido um trecho.
Ponciano contou que o /bi’id ta’/, o benzimento para cercar, é o primeiro
benzimento a ser aprendido por um benzedor. Realizando-o com breu para fumaçar, o
benzedor protege sua família e sua comunidade. Cria uma fumaça que envolve a
todos, fazendo com que os outros seres não consigam vê-los, passem direto e não
causem doenças nem roubem o /hãwäg/, força vital, das pessoas. É esse também o
benzimento para que o próprio benzedor cerque a si mesmo e consiga proteger seus
saberes: seu pensamento e sua força vital. E forma semelhante, D. Buchillet descreve
que alguns benzimentos desana, executados com breu e/ou tabaco, têm a função de
proteger a pessoa ou família de feitiços e doenças causadas por animais e espíritos. A
fumaça descreve um círculo em torno da casa ou da pessoa que protegerá (1981, p.
136).
No benzimento, narrado como uma seqüência de procedimentos que
descrevem movimentos do pensamento e da força vital do benzedor, ele busca
influenciar as gentes peixe, /hop hup däh/. Viaja para cada uma de suas casas. Faz com
que entrem, reúnam suas armas (faca, vara, cuia de caarpi?, etc.), sentem-se em seus
bancos e virem suas cabeças para outro lado. Manda também areia para as casas
desses seres. Faz com que não voltem seus olhares para os Hupd’äh, com que fiquem
desarmados e com que queiram permanecer sentados em seus bancos. O contato com
mulheres menstruadas gera medo, pois o cheiro da menstruação faz com que as
gentes peixe fiquem bravas, levantem-se, tomem suas armas, vistam suas roupas de
jararaca, onça, etc. e venham fazer mal para os Hupd’äh. Para que isso não aconteça é
preciso acalmá-los, fazer com que sentem, larguem suas armas, comam sua coca,
fumem seu tabaco e não vejam os Hupd’äh. As palavras do benzimento encadeiam-se
numa série de ações que devem ser realizadas para “fazer sentar” e para “fazer
ocultar”, ao mesmo tempo em que o benzedor vai produzindo um envoltório de
fumaça em torno da pessoa ou do grupo de pessoas que pretende proteger. É esse
envoltório que irá cercar, proteger seu pensamento e sua força vital, e assim os
saberes de seu clã.
Pierre Déléage (2007) afirma que provavelmente a visão, em sonho ou
alucinação, seja um traço fundamental de todas as iniciações xamânicas, sendo que a
interação com entidades sobrenaturais estabelece relações dinâmicas que duplicam as
relações de agressão e transmissão presentes na aprendizagem. Cercar, /ta’/, vem a
ser a ação eficaz buscada por esse benzimento. Para realizá-lo o benzedor deve
conhecer as casas de cada um desses seres, deslocar-se até elas, transformar os gestos
e posturas corporais das gentes peixe para impedir que realizem agressões ao
benzedor e aos hupd’äh. Cercando a si mesmo, o benzedor assegura a posse e
transmissão de seu conhecimento, impedindo que seja roubado. Fazer com que as
gentes peixe se sentem revela também um paralelo com o sentar dos velhos hup, já
que ao mesmo tempo em que protegem e curam, também podem praticar o /döh/,
estrago/sopro, e causar doenças, sofrimento e morte. Assim, também os benzedores
sentados em roda, atentos às palavras e aprendizados “voltam seus rostos para outro
lado” e “deixam suas armas”.

Oferecer

Oferecer, /köpoy/, vem a ser um gesto fundamental que marca as ações do


benzedor quanto dos participantes da roda. No benzimento do nascimento da criança,
por exemplo, o benzedor busca cercar a criança com pari para que ela não aceite
beber da cuia de beber caarpi oferecida pelos bichos do pé, pelas pulgas, pelas abelhas
mamangaba e pelos diversos tipos de minhocas. Caso a criança aceite beber dessas
cuias poderá sofrer de /ót m g /, e chorar até enlouquecer. O benzimento da pimenta,
do beiju e da coca o benzedor realiza ações que cercam o caarpi de lagartos e larvas
que ficam nas folhas das plantas para que não ofereçam caarpi às pessoas. De modo
semelhante ao que mostra D. Buchillet para os Desana, também para os Hupd’äh
muitas doenças relacionadas aos animais vêem através do oferecimento de alimentos,
bebidas e demais substâncias. A recusa a um oferecimento e a glutonaria são gestos
mau vistos e, por isso, o oferecimento de substâncias realizado por outros seres
representa um perigo em potencial.
Nas rodas de coca, o ato de oferecer, / öp y/, marca toda uma organização
social da roda que leva a uma divisão dos papéis e à diferenciação do status dos
participantes. Ponciano é chamado de /yo’om h, o dono da comunidade de /Tat
dëh/, o capitão velho. É ele também o principal /p ’ k yo’om h/, dono da coca e
responsável por oferecê-la. Herdou de seu pai o pilão, /p ’ k tök/, e dele também o
hábito de comer coca. É em torno desse pilão que se realizam os principais encontros
noturnos. Ponciano começou a sentar-se com os benzedores e comer coca quando
tinha por volta de 30 anos e por volta dos 40 anos começou a benzer. Seu cunhado,
Firmiano, é seu /p ’ k h t hseu apanhador de coca. Sempre que Ponciano pede,
Firmiano colhe coca para preparar para ele. A comunidade de /Tat dëh/ é vista como
uma comunidade do clã de Ponciano os /sok’wät noh köd t h/, hierarquicamente
superior e afim ao clã de Firmiano (/Pij 55 anos, /Pij Nowa t h, o / Pij Nowa t h /.
Como Ponciano, seus irmãos José (/köd/, /sok’wät noh köd t h/) e Vicente têm seus
apanhadores de coca que são cunhados e de clãs hierarquicamente inferiores. Essa
relação pode ser vista como uma relação estrutural, uma amizade formal, que cria um
laço específico em função da coca, para além da relação de parentesco, e se
estabelece através do binômio:

/p ’ k yo’om h/ : /p ’ k h t h
dono da coca : apanhador da coca

A preparação da coca é dividida também de acordo com critérios de status. São


os “apanhadores” que cuidam de socar o pilão e de realizar a mistura. Os donos
seguem uma ordem de irmandade, já que quando o irmão maior, /sät/, está presente
seus irmãos menores integram-se ao processo de produção, mas ele não. Todo o
processo de preparação transforma a coca em alimento para que ela seja derramada
no pote pequeno dos donos, únicos possuidores desses potes. Eles é que se levantam
para oferecer a coca ou colocam os potes em circulação. Decidem também o sentido
da circulação e o momento de término da refeição dizendo /wed töhoy ay/, a /comida
terminou/, o que faz com que todos se levantem, despeçam-se e dirijam-se para suas
casas. Nesse sentido, realiza-se um circuito de dádiva já que a maioria dos
participantes colhe e prepara a coca para dá-la ao dono, este a recebe concentrada em
seu pote que concentra também o resultado dos trabalhos de todos. A partir de seu
pote pequeno é que ele retribui a todos, oferecendo a coca que circula na roda.
Essa relação entre cunhados, /yoh/, realiza-se também entre as gentes peixe,
como é o caso dos /Ed hup h/ e dos /Sãy hup h/, cunhados que realizam rodas de
coca para conversar, contar histórias de antigamente e aprender benzimentos em suas
casas no fundo do rio. De forma semelhante, os /Tëg duh hup h/, a gente árvore,
sentam-se com seus cunhados os /Yãh tëg hup h/ para comer coca. Se como S. Hugh-
Jones (1995) e D. Buchillet (1983) mostram em suas descrições das rodas de coca que
elas são fundamentais para a transmissão de conhecimentos entre agnatos, creio que
a as rodas realizadas pelos Hupd’äh ou das diversas gentes e planos-casa descritos por
eles apontem para uma diferença quanto a esses eventos e à circulação de saberes.
Agnatos e afins participam das rodas já que cohabitam um mesmo grupo local. Essa
participação estabelece laços mediados pela coca, que diferenciam os presentes
quanto a seus papéis e status, ao mesmo tempo em que possibilita tanto a
transmissão agnatica de saberes, quanto o aprendizado entre pessoas de um mesmo
grupo etário de diferentes clãs. Os diálogos entre cunhados, dono e apanhador, por
exemplo, vão constituindo a narração de um mito ou de ações que devem ser
realizadas durante o benzimento. Ao mesmo tempo, filhos pedem que seus pais ou
tios contem histórias ou ensinem benzimentos.

Palavras

A hierarquia da roda é também uma hierarquia da palavra. Apenas Ponciano,


Paulino e o pajé Armando podem contar para mim, branco pesquisador, ou para um
Tukano ou Desano, índios de outras etnias, histórias e benzimentos. A posição
estrutural hierárquica que ocupam, a idade, seus saberes e a eficácia de suas
performances de cura e proteção fazem com que sejam tidos como os maiores
conhecedores das /histórias, e dos benzimentos. Apesar disso, enquanto
contam os narradores perguntam a seus cunhados e apanhadores que participam e
complementam suas narrativas. Isso torna as versões de narrativas contadas pontos de
convergência de conhecimentos de diferentes clãs.
Em muitas noites pessoas aproximam-se da roda e pedem que um dos
participantes realize um benzimento para a cura ou proteção de alguém. Sentado, o
benzedor aproxima o cigarro, a cuia, o copo, o pinu-pinu de sua boca e começa a
recitar de modo murmurado e rápido as palavras do benzimento, intercaladas com
sopros que fazem com que as palavras penetrem a substância/ objeto. O
procedimento pode repetir-se por muito tempo e quando termina o benzedor entrega
o objeto com a substância benzida para quem solicitou o benzimento. A fumaça do
cigarro deve ser soprada no peito, no /hãwäg/ da pessoa para que seja protegida ou
curada. As palavras penetram o corpo e agem sobre a força vital da pessoa,
renovando-a ou protegendo-a. É primeiro a seus pais e sogros que uma pessoa pede
um benzimento. Caso esse não tenha eficácia, o pedido será feito a um benzedor de
status superior ou a um dos pajés. Assim, como no caso da refeição coletiva, há
também uma hierarquia no que diz respeito à solicitação e execução de benzimentos.
Se por um lado, oferecer a coca materializa a reciprocidade do dono com
relação a todos os participantes do encontro que possuem diferentes posições
estruturais e papéis, creio poder dizer que há também uma reciprocidade em termos
das palavras de benzimentos e mitos que são trocadas durante as rodas e vão
concentrando-se mais e tornando mais eficazes os benzimentos daqueles que
conseguem ampliar ao máximo suas relações com outros seres, tempos e espaços. São
esses também aqueles que conseguem proteger melhor seus conhecimentos, pois, ao
realizarem o /bi’id ta’/ visitarão um maior número de casas e farão sentar um maior
número de seres que representam ameaças. Os primeiros pedidos de benzimentos
feitos a membros da família extensa, /kaká/, e depois ampliados para outros
benzedores, por ora mais eficazes aponta para a assimetria dos saberes que segue
paralela àquela da coca e das relações de parentesco.
Pensando com D. Buchillet (1981) creio ser possível dizer que a palavra
presente nos atos de fala que marcam a narração, o diálogo e a execução de
benzimentos dos encontros noturnos se estabeleça através de uma linguagem
pragmática e figurativa que através de metáforas, metonímias, antifrases e inversões
de sentido. Tomando a reflexão de C. Severi (2010), suponho que o soprar palavras nos
cigarros, breu, beijus, etc. atribua a palavra e a ação do benzedor ao objeto, que irá
agir e restituir a presença do ser representado (p.461).

Notas

Sentando-se todas as noites em roda, os velhos estão assumindo suas


perspectivas e identidades clânicas e relacionando-se como “irmão maior” e “irmão
menor”, como ágnatos e afins, e como donos e apanhadores, de acordo com situações
diádicas de interação que fazem circular as palavras, a coca e as imagens. Seus
diálogos murmurados vão descrevendo linhas e tecendo as vidas presentes e passadas
numa trama expressa por mitos, sonhos e benzimentos (T. Ingold, 2007). A partilha da
coca e do tabaco entre irmãos e cunhados é também a partilha de diferentes tipos de
coca e tabaco, dados pelo deus a cada grupo, cultivados e transmitidos por cada clã e
que podem ser consumidos pelos que falam a mesma língua. Os saberes, benzimentos
e mitos, patrimônios de cada grupo clânico, circulam nesses encontros e protegem os
grupos de fogo e locais da aproximação da “outra gente”, outros. Esses outros,
humanos, são tanto os jaguares, porcos, macacos, peixes quanto os bichos do pé,
larvas, lagartos, e o benzimento terá maior eficácia de acordo com a capacidade do
benzedor de viajar com seu pensamento e força vital às casas de todos esses seres,
fazendo-os entrar, sentar e largar suas armas.
Nos movimentos da coca, dos corpos, das narrativas e das pessoas (espíritos) os
fazeres ritual e mítico dos benzedores descrevem os contornos de uma mitopoeisis
hup (P. Gow, 2001) que vai reestabelecendo a cada encontro, a cada cuia e a cada
cigarro um equilíbrio tenso no mundo vivido dos Hupd’äh. Estar atento, como nos
sugere A. Shouten (2010), a um só tempo às qualidades sensíveis da lógica (V. Turner,
1982) e à lógica das qualidades sensíveis (C. Lévi-Strauss, 1997) faz-se fundamental
para que possamos ver tanto em magníficos jaguares quanto em insignificantes bichos
do pé, como fazem os benzedores hup, seus perigos e potencialidades enquanto
humanos vestidos.

Bibliografia

BAUMAN, Richard. Verbal Art as Performance. Illinois, Waveland press, 1977.


BRECHT, Bertold. 1949. "A Short Organum for the Theatre." In: Brecht on Theatre: The
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sharanahua. Cahiers d’anthropologie sociale. EHESS. Paris: L’Herne, v. 5, p. 63-
85, 2009.
GOW, Peter. An Amazonian Myth and Its History. Oxford: Oxford University Press,
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INGOLD, Tim. Lines: A brief history. London, Routledge, 2007.
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vencedores nas terras baixas sul americanas. 2010. [no prelo]
LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus, 1997.
SEVERI, Carlo. A palavra emprestada ou como falam as imagens. Revista de
Antropologia, São Paulo, USP, 2009, v.52 No 2.
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PAJ Publications, 1982.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. Rio de Janeiro:
Cosac & Naify, 2002.


Ecos do processo socioeducativo no corpo do ator-performer, Tatiana Molero
Giordano (IA/UNICAMP)61

A proposta deste artigo é apresentar as primeiras incursões da pesquisa de


campo em Unidades de Internação da Fundação CASA em São Paulo e discutir as
contribuições teóricas e metodológicas da Antropologia da Performance. Ao traçar
relações entre o processo de institucionalização e reabilitação de jovens infratores e a
contribuição das oficinas de artes, mais precisamente as dedicadas ao ensino da dança
e do teatro, me baseio na “estrutura do drama social” proposta por Victor Turner
(1987) e no conceito de performance elaborado por Richard Schechner (1985).
No contexto socioeducativo, reconheço essas oficinas como um espaço de
expressão, dedicado ao desenvolvimento do potencial artístico e até mesmo político
dos jovens. No contato com o projeto denominado “Teatro do Oprimido”, reconheço
os primeiros resultados de um processo lento, porém efetivo de criação de
protagonismo e autonomia, como nos sugere Paulo Freire: “O respeito à autonomia e
à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não
conceder uns aos outros.”
Nessas oficinas, as alterações posturais e gestuais (antes, durante e após as
aulas) delineiam um percurso ímpar para a construção do corpo e expressão cênica
dos jovens performers.
Ao analisar o eco profundo do processo de institucionalização desses jovens,
em especial o modo como lidam com o cerceamento da liberdade, questiono meu
processo criativo e experimento transportar esses elementos posturais e gestuais para
meu corpo. Considero como roteiro de experimentação, “os seis pontos de contato”
propostos por Richard Schechner (1985). E na forma de laboratórios de criação utilizo a
experiência como observadora-participante para desenvolver um repertório de
movimentos como atriz-performer.

O corpo e a CASA
A história das chamadas instituições totais sugere que há uma relação entre a
postura de uma pessoa - do ponto de vista estético - e a fisiologia assumida pelo corpo
quando acometido por alguma doença física ou mental. Em Goffman (2010, p. 7-108) a
descrição sobre as instituições totais é minuciosamente dissecada. O comparativo
entre as instituições para doentes mentais (hospitais, manicômios), prisões e
conventos é abordado sob a perspectiva sociológica. Primeiramente observando-se a
função dessas instituições enquanto aparelhos sociais que separam indivíduos da
sociedade mais ampla por um período de tempo (determinado ou indeterminado) se
encarregam de administrar formalmente suas vidas e de acordo com um sistema de
regras apropriado disciplinam o seu cotidiano.
O tipo de instituição total determina o perfil do público-alvo, possui uma
intenção declarada de realização de trabalho específico e o faz de um modo adequado
para atingir os objetivos esperados pela sociedade.

61
Mestranda em Artes Cênicas pelo Departamento de Artes da Universidade Estadual de Campinas –SP,
membro do Núcleo de Antropologia, Performance e Drama (Napedra) e do Núcleo de Antropologia do
Direito (Nadir) do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP. Agradeço à Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) por apoios recebidos para o desenvolvimento desta pesquisa.
Na interpretação sociológica essas instituições totais criam um sistema
apartado da sociedade que embora possuam aspectos comuns, as diferenças entre si
são relevantes para distinção de suas funções sociais. Os indivíduos pertencentes a
estas instituições por sua vez, têm a sua “noção de pessoa” modificada e adequada ao
novo ambiente social.62
Pelo olhar da Antropologia da Performance, é necessário examinar o campo de
pesquisa e contextualizá-lo. Considerando que a performance seja uma forma de
comunicação que propicie reflexões a partir de si, ao etnógrafo cabe observar sua
inclusão nesse meio e se colocar no estado de “deixar emergir textos e contextos",
buscando a compreensão da narrativa poética. (Hartmann, 2005).
Observo que tanto Goffman (1983) com sua análise sobre o papel das
instituições sociais, quanto Turner (1987) ao criar uma estrutura para análise do drama
social, levam em consideração diretamente a percepção dos fenômenos enquanto
experiência (dos indivíduos ali presentes considerados nativos), expressão (individual e
coletiva), e indiretamente como memória e história, reforçando seu processo cultural.
Mary Douglas reforça este fato ao descrever sobre o processo antropológico de
observação do corpo nos rituais sociais:

(...) o que na ocasião se esculpe na carne humana é uma


imagem da sociedade. (p.139) Qualquer cultura é constituída
por uma série de estruturas ligadas entre si, entre as quais
estão as formas sociais, os valores, a cosmogonia, o conjunto
dos conhecimentos. Estas estruturas medem toda a
experiência. (...) Os rituais incorporam a forma das relações
sociais e, dando uma expressão visível a estas relações,
permitem aos homens conhecer a sua própria sociedade. Os
rituais agem sobre o corpo político pelo meio termo
simbólico do corpo físico. (Douglas, 1976 p. 152)

Na Fundação CASA o processo socioeducativo criado pelo colombiano, ex-padre


e há 12 anos radicado no Brasil, criador do MCP (Modelo Pedagógico Contextualizado),
Gerardo Bohórquez Mondragón, cumpre etapas de um ritual social de passagem a
medida que executa cinco programas denominados “etapas de crescimento”. Cada
programa tem três projetos em que o adolescente tem que trabalhar. O primeiro
programa é a Motivação. Ele é aplicado durante o período de 45 dias, necessário para
o adolescente compreender um pouco de sua situação diante desse novo contexto,
uma vez que, quando este adolescente entra na unidade, cria um trauma emocional
muito forte, porque ele não aceita a medida socioeducativa. Então a motivação
trabalha essa parte de estimular esse adolescente para que ele possa se enxergar
dentro da medida socioeducativa.(publicação institucional Casa em Revista, 2009)

62
A Fundação CASA através de sua assessoria de imprensa declara não se enquadrar na definição de
“Instituição Total”, pois de acordo com o SINASE (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo)
faz parte de uma rede de apoio (Sistema de Garantia de Direitos) e tem sua ação caracterizada pela
“incompletude institucional”, já que não possui toda estrutura necessária para atendimento ao adolescente
em um único local físico. Essa normatização proposta pelo Conselho Nacional de Direitos da Criança e
do Adolescente está vigente desde 2006. Ao analisar o ambiente socioeducativo da Fundação CASA
como “instituição total” encontramos em Goffman (1983) duas características que nos fazem
compreender esse cenário social de forma diversa a declarada: 1) Os adolescentes permanecem internados
ou semi-internados conforme a gravidade do ato infracional cometido e 2) A Fundação CASA pode ser
considerada uma instituição para proteção da comunidade contra ameaças intencionais.
Abaixo podemos observar as etapas do MCP Modelo Pedagógico
Contextualizado e sua respectiva duração:

Pré-acolhida: Motivação: Processo de Acoplamento, Ajuste e Segurança à


instituição. Estimular o adolescente a se enxergar dentro da medida socioeducativa.
DURAÇÃO: 45 dias.
Acolhida: Reconhecimento: Permite ao adolescente a Aproximação,
Identificação e Aceitação do problema e da realidade, para que ele consiga reconhecer
sua situação pessoal, possibilidades de mudanças e estabeleça um compromisso para
construção de seu projeto de vida. DURAÇÃO: 3 meses.
Confrontação: Aprofundamento: Intensificação das estratégias e técnicas da
psicoterapia breve com a finalidade que o adolescente consiga a Compreensão,
Elaboração e Resolução dos elementos que configuram seu projeto de vida, sua
situação e possa encontrar alternativas de melhoramento. DURAÇÃO: 3 meses.
Projeto de Vida: Projeção: Preparar o adolescente nos processos de
autogestão, consecução de objetivos no mercado de trabalho, formação em liderança
positiva e preparação como agente social, para que desta forma possua ferramentas
que contribuam para si mesmo e para o seu entorno social e familiar. DURAÇÃO: 3
meses.
Projeção – República: Integração. Sistema de microcomunidade onde o
adolescente pode estudar fora, trabalhar, fazer cursos profissionalizantes. Há um
trabalho de assistência social dentro dos programsa de políticas públicas. Neste
sistema são trabalhadas as questões de autonomia, autogestão, protagonismo juvenil.
O objetivo é que o adolescente seja um gerente de sua própria vida. DURAÇÃO: Tempo
Indefinido.

A reflexão sobre o modelo em questão sugere uma ruptura com a sua família,
comunidade e ambiente conhecidos. Esse rompimento do adolescente com o seu
modo de vida habitual gera uma situação de crise e sua gradual intensificação de modo
a sugerir uma “problematização” de forma que o adolescente possa identificar a
situação de “não adaptação a sociedade” e os motivos que o levam ao conflito com as
leis. Após essa intensificação da crise, o adolescente será gradualmente
instrumentalizado (inputs) para lidar com essas dificuldades de adaptação e
estimulado ao diálogo, a prática política e social.
Em seguida ocorre a ação reparadora que caracteriza o processo de
reabilitação. É a fase da “catarse” (outputs) cujo ponto culminante do processo
educativo demonstra a apreensão dos conteúdos trabalhados e estrutura uma nova
forma seu pensamento e comportamento. É oportunidade de construção de um novo
projeto de vida. O desfecho sugere a experiência de vivência em um grupo
(communitas) que trás um caráter harmonizador-integrador e a transformação a que
se pretende chegar após a conclusão do processo de crescimento pessoal.
As palavras-chaves: (a) ruptura, (b) crise e intensificação da criste, (c) ação
reparadora e (d) desfecho, são termos utilizados por Victor Turner (Turner 1974, 1987)
para determinar a estrutura do drama social. Ele interpreta esse ciclo dramático como:
experiência, ritual de passagem, performance.
Sobre esse processo de crescimento pessoal estruturado tanto na forma de
ritual (Mclaren, 1991, 1999) quanto de drama social (Turner, 1974, 1987) acrescento a
contribuição de Richard Schechner (Schechner 1985, 1990,1988, 2003) com sua teoria
da performance e seu conceito de comportamento restaurado:

Comportamento restaurado é o comportamento vivo


tratado como se fosse a tira de um filme pelo diretor. Essas
tiras de comportamento podem ser reorganizadas ou
reconstruídas: elas são independentes do sistema que as
criou (social, psicológico, tecnológico). Elas tem vida
própria. A ‘verdade’ original, ou ‘fonte’ do comportamento,
pode ser perdida, ignorada ou contradita – mesmo quando
essa verdade ou fonte está sendo coberta de honras (...)
Dando origem a um novo processo, usadas no processo de
ensaio para criar uma performance, as tiras de
comportamento não são um processo em si, e sim coisas,
itens, ‘matéria’. O comportamento restaurado pode ter longa
duração. (Schechner, 1985, p.35)

De acordo com Schechner (1985, 2003), performances artísticas ou cotidianas –


são feitas de comportamento duplamente exercido, comportamentos restaurados,
ações performadas que as pessoas treinam para desempenhar. E é através da
repetição, do ensaio e de uma nova performance que essa experiência de aprendizado
de si se consolida.
E mesmo no contexto artístico, ou seja, no processo de criação e construção de
uma personagem seja na aula de teatro seja na aula de dança os performers podem ou
não “representar eles mesmos”. Essa atitude “entre” quem eu sou e o personagem é o
comportamento restaurado em ação. É como se o ator se deixasse levar para uma
condição entre duas dimensões, como nos rituais de possessão ou incorporação.
O elemento principal de uma performance segundo ele é a noção de
comportamento restaurado. E para analisar esse aspecto proponho a observar a
descrição dos “seis pontos de contato” de Schechner:

1. Training (treino): o foco é a movimentação enquanto performer, suscitando


considerações a respeito do papel representado, inclusão de elementos de minha
história pessoal e identidade (o não, não-eu) na performance;
2. Workshop (ensaios): será possível observar as repetições e as intensidades
da performance através da documentação desses ensaios;
3. Warm-ups or preparations (aquecimentos e preparações): a observação é
bifurcada e é necessário levar em consideração tanto o ponto de vista da performer
quanto dos espectadores levando em consideração quem são estes espectadores e o
que representam no contexto da apresentação.
4. Performance (apresentação pública): é possível verificar a seqüência total da
performance e suas repercussões para a performer e para os espectadores;
5. Cool-down (resfriar-se): quando a performer se despe do figurino e do papel
representado, é possível observar como o corpo dialoga com o ambiente.
6. Aftermath (resultado): ocorre a avaliação da performance por parte da
performer e dos espectadores. Quais eram as expectativas? Quais são os resultados
observados e relatados?
As etapas propostas por Vitor Turner (1987) sobre a estrutura do drama social
dialogam com os pontos de contatos (sequências) de Richard Schechner (1985)
permitindo associar a “estrutura do drama social” com as etapas de reabilitação do
adolescente. Não somente na experiência, na vivência do “ciclo dramático” a que se
propõe o M.C.P. mas também quando o adolescente reincide no ato infracional e
retorna para este processo novamente.

O Teatro do Oprimido e a Experiência Etnográfica

Na Unidade Feminina de Internação chamada Casa Chiquinha Gonzaga, foi


implantado através da ONG Ação Educativa o projeto de oficinas do Teatro do
Oprimido ministrado pela professora Ana Maria da Silva (Ana Borboleta), alcançando
resultados significativos que serão abordados em outra oportunidade por não serem o
foco deste artigo.
As observações realizadas em campo permitiram entender as nativas
(adolescentes internas) como atrizes e espectadoras participantes de um ritual de
passagem e capazes de realizar através das oficinas de arte um tipo de elaboração
particular desse processo denominado “catarse”.
No “Teatro do Oprimido” de Augusto Boal (1996) considerado o teatro no
sentido mais arcaico do termo, todos os seres humanos são atores – porque atuam – e
espectadores – porque observam.
Para Boal (1996), no teatro do oprimido, o evento social (ritual) é uma
oportunidade de intervenção, onde a "ação dramática" é uma ação "fictícia", que
substitui a ação "real". Por outro lado, essa intervenção é capaz de "ecoar" de forma
pontual que ao mesmo tempo propõe a interação do espectador transformando-o em
convidado e também ator-interventor (p.83-91).
Essa dinâmica particular pretende propor o desequilíbrio, mover o espectador
de sua “zona de conforto”, de sua passividade, o que dá início a ação. Portanto, é uma
proposta que atua de forma provocativa desafiando bloqueios do espectador e
propondo uma oportunidade de elaboração de conteúdos e consequente
transformação.
Essa dinâmica proposta por Boal é consonante ao conceito de “não, não eu” de
Schechner e na análise dos depoimentos de adolescentes participantes da oficina de
teatro fica claro que essa dinâmica torna-se parte da história pessoal e marca
profundamente o processo socioeducativo. Nesse sentido fica clara a visão de
Schechner de que todos os nossos comportamentos são restaurados e a performance
é twice-behaved-behavior (duas vezes comportamento restaurado).
Por outro lado, ensaios executados por atores/bailarinos considerados como
performance estética e mesmo os não-atores (atores amadores, ou pessoas que nunca
atuaram), realizam esse processo de uma mesma forma:

O ator é ao mesmo tempo “não-ele” e “não um personagem”


é “não-não-ele”. Está entre o personagem e ele mesmo. É um
processo consciente no qual tanto o público quanto o ator
têm consciência deste papel que ele desempenha.
(PESSUTO, 2011, p.108)
Kelen Pessuto (2010, 2011) traduz e explora o diagrama proposto por
Schechner afim de, didaticamente esboçar o percurso do comportamento até se
tornar uma performance:

O estágio número 1 equivale ao Eu – a pessoa ensaiando para uma


performance ser (2) outra pessoa, além de mim, (4) evento restaurado, (5b) não
evento restaurado ou (5c) não evento restaurado - não público, que são os
psicodramas. O ser humano (1) busca no passado tiras de comportamento, em eventos
reais (3) ou em não eventos (5a), que são reorganizadas, ensaiadas, remontadas até se
tornarem performance (SCHECHNER, 1985, p. 38).

O diagrama de Schechner pode ser utilizado para “ler” uma performance, seja
ela uma filme, uma música, uma dança, um texto, um drama social. (Pessuto, 2011)
Para exemplificar, utilizarei a entrevista concedida pela adolescente “A”:

Pergunta: - Você participa do Teatro, como é tua


experiência com o teatro? Resposta de “A”: - Eu acho que
foi mais por causa do teatro que eu to bem hoje. Porque
quando eu entrei eu falava: “Acha?”... vou saé... Profe! ...que
minha profe chama Ana Borboleta, né? Eu falava assim pra
ela: “Profe eu vou sair daqui pior do que eu entrei!”...Mas aí
ela foi... começou a fazer umas dinâmica... que a gente
consegue ser uma pessoa melhor eu acho que assim... pelo
teatro... eu estou mais...refletindo mais e sou uma pessoa
melhor hoje pelo teatro. Quero participar lá fora... quero
fazer um futuro melhor. Pergunta: - Como você sente seu
corpo antes de entrar na aula? Ou Quando você não tem aula
de teatro como fica seu corpo? Resposta de “A”:- Eu já me
irrito eu sou muito irritada, tem hora... aí né? Eu...acho que o
corpo fica pesado... a gente só fica pensando na nossa
família... e quando a gente tá no teatro não... a gente tenta
passar o melhor de nós para o grupo... isso que é leveza (...)
[Na aula]- Sinto meu corpo leve... flutuando... Logo que eu
entro a profe já dá... ela já pergunta pra nóis o dar e o
receber que é tipo assim, o que é que nóis qué dá pra aquele
grupo e o que que a gente quer receber desse grupo e são as
coisas melhores que tem – aqui no páteo a gente num tem
muita convivência uma com a outra mas dentro do grupo do
teatro é o grupo... é um grupo ...aquilo a gente pode falar que
é um grupo... um companheirismo... se uma tá precisando de
força nóis tenta manter ela com muita força, muita energia
positiva... Pergunta: Você acredita que quando você entra
na sala de aula, muda seu relacionamento com suas colegas?
Resposta de “A”:- Muda, muda. (Transcrição parcial da
entrevista com a Adolescente chamada de “A.” pertencente a
UI - Caderno de Campo – 28/11/2011)

O estágio número 1 equivale ao Eu (Adolescente “A”) – a pessoa ensaiando


para uma performance ser (2) outra pessoa (Personagem - Adolescente Atriz “A”),
além de mim (A professora de teatro que dirige a peça e propõe o personagem), (4)
evento restaurado (performance pública), (5b) não evento restaurado (aulas de
teatro) ou (5c) não evento restaurado - não público, que são os psicodramas
(performances). O ser humano (1) busca no passado tiras de comportamento, em
eventos reais (3 – interdição, fatos da vida, apresentações públicas das performances
ensaiadas) ou em não eventos (5a - aulas de teatro), que são reorganizadas,
ensaiadas, remontadas até se tornarem performance (SCHECHNER, 1985, p. 38).
No Laboratório de Coredramaturgia é possível exercitar as possibilidades do
não-não eu e dos eventos (reais) e não eventos para realização de performances e
experimentações da dinâmica do comportamento restaurado.

Laboratório de Coreodramaturgia
A experimentação das contribuições de Turner e Schechner iniciam na análise
dos conceitos de “estrutura do drama social” e “os seis pontos de contato” propostos
por Schechner, e de sua relação com o modelo M.C.P. que sugeriu uma estrutura
ritualística em que eu pudesse ter contato.
Para colocar em prática essas observações e comparações, primeiramente
busquei elementos de minha história pessoal e identidade. Reuni figurinos, objetos
cênicos, livros, maquiagens e realizei rascunhos a partir de tudo o que me remetia a
temática do “estado de privação da liberdade”.
O movimento da memória ecoou a máxima: “Você se torna eternamente
responsável por aquilo que cativa.” – de Antoine de Saint-Exupéry. A clássica frase me
moveu a separar as peças para composição de uma leitura particular de “Pequeno
Príncipe”, o personagem do livro e do filme de mesmo nome. Esse processo de
construção-desconstrução trouxe á tona conteúdos que eu não poderia imaginar que
pudessem estar entremeados com o significado particular de privação de liberdade
(cativeiro). Dirigi até o local que mais me aproximava do contato com o ambiente
socioeducativo e que seria possível mergulhar nesse processo catártico em busca da
performance. Procurei o espaço ideal (uma estrada próximo as unidades da Fundação
CASA em Guarulhos, local onde trabalhei como professora) e comecei a caminhar
experimentar as emoções e expressões que vinham naturalmente. Enquanto tomava
contato com esse processo, fui documentando de forma audiovisual toda a
transformação.
Pude perceber que o texto não é fundamentalmente necessário nesse
processo, utilizando o que memorizei da história do personagem que me inspirou e as
próprias memórias que recorriam a mente quando olhava para estrada em direção aos
prédios distantes. A dramaturgia, a poética da cena foi se construindo tendo como
suporte essencial o corpo e o seu movimento (interno e externo). Após algumas
experimentações de performance (ensaios/aquecimentos) pude tirar diferentes
impressões e elaborar um segundo personagem. Enquanto na primeira oportunidade,
fui inspirada pela história do Pequeno Príncipe, dei especial atenção a postura em pé,
ao movimento da marcha e expressões que evocaram emoções fortes como: medo,
saudade, raiva, rejeição, tristeza. Enquanto na segunda experiência, inspirada no
personagem da bailarina clássica (O Cisne Branco), procurei a oposição não muito
óbvia elegendo o chão, a mínima movimentação e emoções mais sutis.
Após esse processo ficou claro que eu havia seguido não somente as etapas
propostas por Turner e os seis pontos de contato de Schechner, mas sem me dar conta
havia conseguido vivenciar o “comportamento restaurado” através da construção da
performance. Para exemplificar de forma mais clara, aplicarei o diagrama de
Schechner e sua descrição à performance do Pequeno Príncipe Desconstruído:
O estágio número 1 equivale ao Eu (Tatiana) – a pessoa ensaiando para uma
performance ser (2) outra pessoa (Personagem – Pequeno Princípe Desconstruído),
além de mim (As referências sobre o Pequeno Princípe propostos por Antoine de
Saint-Exupéry), (4) evento restaurado (ensaios), (5b) não evento restaurado
(happenings) ou (5c) não evento restaurado - não público, que são os psicodramas
(performances). O ser humano (1) busca no passado tiras de comportamento, em
eventos reais (local da performance, caminho para fundação CASA Guarulhos I,
lembranças, entrevistas CASA Chiquinha Gonzaga, história pessoal - infância e
adolescência) ou em não eventos (5a - ensaios), que são reorganizadas, ensaiadas,
remontadas até se tornarem performance (SCHECHNER, 1985, p. 38).
O contato acadêmico com o ambiente socioeducativo e com o adolescente
privado de liberdade não faz do ator um “nativo”. Por outro lado, é possível criar um
espaço de expressão e troca de experiências onde ambos, pesquisador e pesquisado
saem de alguma forma transformados.

Bibliografia

BARRIGA, Tatiana Molero. O Arquétipo da Liberdade: um caminho de integração,


criatividade e libertação essencial através da dança – São Paulo, 2003, v 1, 116
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SCHECHNER, Richard. Between Theather and Anthopology, Philadelphia, University of
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TURNER, Victor. O Processo Ritual: Estrutura e Anti-Estrutura. Petrópolis,Vozes -1974.
Sobre turismo ecológico: prazer e disciplina, Romain Bragard (PPGAS/USP)

Quero apresentar para vocês alguns dados e reflexões sobre o corpo que
encontrei pesquisando sobre caminhadas pedestres em parques ecológicos. Faço
campo em trilhas do Brasil e da França, mas hoje só falarei de uma situação
etnográfica que eu vivi no GR20 (Chemin de Grande Randonnée numéro 20).
Escolhendo um evento que aconteceu com um parisiense, quero ficar mais perto dos
herdeiros da “mudança do estatuto do homem” (Le Breton) que proporcionou
Descartes ao elaborar o cogito. Previamente, parece-me importante destacar dois
aspectos desse corpo – um é histórico e vem do cartesianismo, outro liga
estruturalmente técnica e prazer. Ora, o “corpo máquina” cartesiano, objeto do
pensamento, matéria que pode ser modelada, é, hoje em dia, muitas vezes visto como
diretamente ligado aos maus da sociedade contemporânea. Nesta visão, o
cartesianismo seria responsável por ter desencadeado um movimento histórico que,
ao separar razão e afetos, desvaloriza o corpo, despreza a sensibilidade, potencializa a
discriminação, alimenta um fascismo prestes a acordar. Sem negar que o
cartesianismo fez do corpo um objeto, e que, ao retomar a afirmação que a pessoa
“tem” um corpo, a modernidade potencializou o que acima foi anunciado, quero
também evitar cair numa nostalgia hylozoista onde a matéria é vida e onde o corpo e o
mundo não apresentam disjunção. Pois o corpo moderno, como todo corpo humano, é
um corpo que goza. A descontinuidade entre natureza e cultura se situaria, ao meu
ver, no fato de que a regra, enquanto condição da cultura, possibilita o prazer – que
Lacan chamou de “mais-de-gozo” ou também de “jouis-sens”. O prazer se dá num
duplo movimento de “significantização” e de “corporização” (Miller, 2004). Como
mostrou Freud, o prazer é inseparável da decepção, do mal-estar e do sofrimento.
Neste sentido, as técnicas do corpo (Mauss) são técnicas de prazer.
O corpo herdeiro do cartesianismo que eu vou descrever é um corpo que goza
da “disciplina” (Foucault). Ser equipado de botas “cientificamente concebidas”, vestido
de têxteis high-tech, lambuzado de protetor solar, adornado de relógios, mapas e
mochilas ergonômicas, ter em mente medidas “exatas” de tempo, desnível,
quilometragem, peso e até de calorias na comida, cria um conjunto de significantes
subjetivantes que proporcionam prazer. Na prática, o simbólico dá existência ao corpo.
A disciplina se apresenta como um meio culturalmente situado e historicamente
construído que realiza a humana inervação do corpo. As técnicas do corpo são uma
eficaz “corporização” de valores culturais. Veremos como a decepção induz uma
reflexividade sobre o prazer e proporciona escolhas.
Ciente de que Foucault não era antropólogo, chamarei – com um pouco de
ênfase – este corpo disciplinado de francês. Isso para o diferenciar do corpo que eu
encontro nas trilhas brasileiras, e que, ao meu ver, obtém prazer de técnicas
historicamente diferenciadas. Acho que o corpo brasileiro e o corpo francês
apresentam alteridades nos seus efeitos de “significantização” e de “corporização”
(Miller, 2004). Aqui, só quero descrever a variedade que encontro na França. Essa
ênfase tem por objetivo se contrapor a uma pré-noção que considera que o biopoder
foucaltiano seria antinômico com o prazer. Essa pré-noção encontra-se nos clichês
complementares do corpo europeu travado (disciplinado) e do corpo brasileiro
relaxado (prazeroso), isso é, numa geografização da dialética antropo-lógica do prazer.
Meu objetivo não é, então, voltar a opor razão e emoção, mas mostrar como a razão
cartesiana efetivada na disciplina moderna promove prazer, e, consequentemente,
subjetividade.
Para contar como essa reflexão me ocorreu, relatarei um dia de caminhada na
trilha do GR20, que fica na ilha da Córsega, no sul da França (continuação da cadeia
montanhosa dos Alpes). Esse evento etnográfico pretende demostrar a ligação entre
disciplina e prazer pelo negativo, pela decepção, pelo desprazer e pelo medo de se
machucar. De fato, caminhei com uma pessoa que abandonou o projeto de “fazer” o
GR20 (200km) no final do primeiro dia de trilha. Durante esse dia, um imaginário
urbano levou meu interlocutor a nós perder no mato. Essa etnografia do erro se quer
reflexiva na medida em que, levando em conta minha participação no campo de
observação, ela permite ver uma técnica do corpo e um prazer que, no caso, faltaram.
Portanto, os acontecimentos, ao apontarem um necessário adestramento do corpo
para chegar ao prazer neste contexto cultural, mostram também que a prática está
ligada a um imaginário do corpo.
Eu comecei a trilha do GR20 pelo norte. Como a grande maioria dos
caminhantes, eu estava equipado de um “topo guia”. É um livro que descreve cada
etapa com mapas detalhados (1 cm no mapa = 250 m), informações técnicas sobre os
trechos mais difíceis, dados sobre a fauna a flora e a geologia, descrições paisagísticas,
e dicas para se orientar. Para essa primeira etapa, o guia indicava: “Calenzana (275m) –
refúgio d’Ortu di u piobu (1570m). 10 km. Muito difícil, pouca sombra. Duração: 7
horas. Ponto mais alto: 1570m”. Fiz um cálculo rápido: eu iria subir 1300 metros de
desnível, sem encontrar nenhuma descidinha para relaxar um pouco... Depois de
quinze minutos de trilha, deparei-me com um jovem que estava descendo. Sem fôlego,
ele sussurrou: “difícil demais, desisti”. Depois de duas horas andando debaixo do sol,
encontrei um outro jovem, Victor. Ele estava sentado na beira do caminho, suadíssimo,
vermelhão, sem fôlego, o rosto expressando sofrimento e desespero. Vendo a dupla
oportunidade de iniciar meu trabalho de campo e de curtir uma pausa, iniciei uma
conversa com ele. Me contou que andava com um amigo, mas que este tinha
desistido. Eles queriam “fazer” a trilha inteira em uma semana, uma semana e meia
(quando os guias falam em 15-20 dias), mas que a dificuldade era maior do que
pensavam. O colega tinha desistido rapidamente e ele mesmo não se sentia muito
bem, apesar de querer “pelo menos terminar a primeira etapa”. Aproveitei essa
oportunidade de observação participante e ofereci a minha companhia a ele. Avisei ele
que ia entrar numa pesquisa antropológica sobre o sentimento de natureza no turismo
ecológico no Brasil e na França. Aceitou e retomamos o caminho.
Deixei-o andar na frente. Eu esperava que assim a observação das suas técnicas
do corpo, do uso de material técnico e das suas percepções estéticas, fosse ficar mais
fácil. Mais tarde, saímos da trilha sem perceber. Tínhamos pego uma trilha de burros
que se enfiava numa linda floresta de Pinus Lariccio. É preciso especificar que o GR20 é
balizado. Um traço branco e vermelho foi pintado nas pedras da senda a cada 20
metros, o que ajuda o caminhante quando chove ou baixa uma neblina densa. Depois
de quinze minutos sem ter visto nenhuma dessas balizas, avisei o Victor que
provavelmente tínhamos errado em algum lugar e que agora estávamos longe da
trilha. Ele não compartilhava a minha avaliação, afirmando que tinha visto uma baliza
há pouco tempo. Ele quis continuar neste rumo. Um pouco mais tarde, parei-o de novo
para conversar sobre as nossas avaliações da situação. Ele não tinha mudado de
opinião e queria continuar, enquanto eu achava que estávamos numa trilha
perpendicular ao GR20 e que fazia mais de 20 minutos que a tínhamos perdido. Ele me
perguntou onde eu pensava que se localizava o GR. Fiz um gesto para apontar o outro
lado da linha de crista que nos dominava. A resposta dele me deixou de queixo caído:
“Vamos cortar então!”. Essa resposta era sinal de que ele não tinha conhecimento do
andar na montanha. Pensar que podia voltar no caminho certo improvisando um
atalho me fez pensar em um motorista que, tendo perdido uma entrada, faz a volta do
quarteirão ou pega as quebradas para reencontrar o caminho. Uma lógica urbana
eficaz virou imaginário quando foi deslocada para outro contexto. Quem conhece a
montanha bem sabe que, quando se perde, tem que voltar atrás para achar o lugar do
erro. Muitos novatos consideram ter que acatar esta regra um sinal de fracasso.. Quem
tem incorporada a cultura do andar na montanha também sabe o quanto ela é um
ambiente enganador, e que, no caso, a crista que vimos lá em cima provavelmente não
era o topo. Sabe também que geralmente o topo é um lugar muito difícil de acesso,
sendo cercado de paredões abruptos. Além do mais, a posição do GR20 que eu tinha
apontado era só uma suposição, porque, de fato, tínhamos saído do meu mapa.
Continuando metodologicamente, não discuti a proposta dele, exprimi uma
dúvida que ele descartou assim que se engajou rumo ao cume pedroso. Ele nem
observou o campo e seguiu reto, decidido, confiante, subindo com determinação. O
terreno começava a ficar muito íngreme, tornando necessário o apoio com as mãos,
transformando a caminhada em escalada. Estávamos muito longe do topo, mas a
vegetação começava a ficar mais rasteira, as pedras mais grossas, o chão mais caótico.
Neste cenário pouco acolhedor, comecei a me sentir responsável pelo meu
interlocutor. Afinal, eu tinha um certo conhecimento e sabia que por ali não tinha
saída, que essa quebradinha era fruto do seu imaginário. Ele andava numa montanha
fantasiada com um corpo imaginado. Meu conhecimento, minhas técnicas do corpo,
me permitiam fazer campo nessa região, me permitiam observar os outros sem me
preocupar muito comigo, me davam uma latitude de adaptação ao outro. Ao contrário
de muitas pesquisas de campo, aqui o pesquisador era mais eficaz do que muitos dos
seus informantes. Por ter feito pesquisa de campo com guia de montanha, por ter-me
perdido várias vezes em caminhadas solitárias, por ter passado perto de perigos e por
ter um habitus rural, eu pensei que o momento de trocar a observação participante
pela participação observante tinha chegado. Começávamos a nós colocar em perigo.
Não sei se o meu companheiro teria feito essas escolhas se tivesse sozinho, mas tinha
influenciado ele para não desistir no início da trilha. Agora devia impedir que se
adicionasse aos numerosos casos de acidentes nas trilhas da Córsega (1200 resgates
por helicóptero no ano de 2003). Parei tudo. Afirmei que tinha de dar meia volta.
Expliquei o quanto essa escolha ficava fora das nossas competências. Victor resistiu,
querendo continuar um pouco. Falou: “tô nem aí, vim andar na montanha e pouco
importa o caminho, aqui está lindo!”. Mobilizei o argumento de que essa escolha era
perigosa por um simples fato: nesse terreno, é muito mais fácil subir do que descer,
ainda mais com mochilas pesadas como eram as nossas (15-20kg). Tive que
demonstrar para ele acreditar. Essa dificuldade apareceu logo após ele ter aceito
minha opinião, quando tive que ajudar ele a descer uma parede de pedras que
tínhamos subido num piscar de olhos. Nessa passagem, ele se assustou. Ficou mais
inseguro, e começou a andar mais perto de mim, pisando nos mesmos lugares que eu.
Deixou de alimentar as conversas, ficou mais concentrado, observava meus gestos,
pedia conselhos. Quando voltamos para a trilha de burros, ele não sabia mais de que
lado pegar. Eu também estava cansado, e falei para ele que eu queria fica na frente,
pelo menos até voltar ao GR20. Eu tinha gasto muita energia durante esse evento
etnográfico: prestar atenção no outro errando assumindo uma certa responsabilidade
para não o deixar tomar riscos demasiados foi bastante intenso. Victor aceitou como
quem se rende: “por mim... desde que eu não caia... topo qualquer coisa”.
Dalí em diante, ele não quis mais ficar na frente. Ficou confiante em mim e
mais ainda na lição que tinha recebido do evento: cada vez que as marcas do coletivo,
os traços e balizas deixadas por outros humanos desapareciam, ele concordava em dar
meia volta. Outra vez, perdemos essa prova de domesticação e voltemos a uma
encruzilhada difícil de perceber. Ele lançou: “Vixe! safado!!/ Putain! vicieux!!”.
Interpretei essa interjeição como o reconhecimento de que estávamos em contato
com marcas, e que elas expressavam algo a ser interpretado com atenção e cuidado.
Essa qualidade humana era essencial para curtir o caminho sem afundar numa
natureza desconhecida e mortífera. Um pouco mais tarde, o refúgio apareceu do outro
lado de um precipício. Ele falou: “tomara que eles não nos façam descer até lá em
baixo para subir tudo isso de novo!”. O outro, a cultura, a transmissão eram então
presentes no seu discurso como garantia da aproximação da montanha inóspita.
Chegando no refúgio, ele se sentou na varanda e caiu no sono.
Victor decidiu abandonar a trilha, afirmando que lhe faltava preparo. Afirmou:
“pelo menos vi o que era! Mas estou muito mal equipado, minha mochila é muito
pesada, meus sapatos são ruins, e nem tenho guia ou mapas. Gostei muito, queria
voltar, mas assim não dá”. Ele tinha sonhado um prazer, tinha aderido a um mito de
gozo na natureza, mas não tinha tomado o cuidado de aderir ao rito. Ele estava numa
viagem de juventude, querendo andar pelo mundo, “fazer o que eu quero, quando eu
quero”. Na sua mochila tinha roupas para praia, para balada, mas poucas coisas que
permitisse alcançar a sonhada autonomia no wilderness. A imaginação da montanha
tinha encontrado uma montanha barrada pelos valores de segurança e
autopreservação. Pensava que a selvageria podia ser alcançada por uma
transformação mágica em bicho. Ora, aprendeu que o homem, para “virar bicho”, tem
que passar por um processo ritual de aprendizagem. Pode-se aproximar esse
imaginário de desafogo na natureza com uma figura mítica que a urbanidade produziu:
Rambo.
Na hora que Victor me perguntou onde era o GR20 e que ele decidiu “cortar
pelo mato” (couper à travers bois) ele estava movido por um imaginário do corpo em
movimento. A dificuldade não lhe apareceu como desprazerosa, se sentia poderoso o
suficiente, pensava poder gozar de capacidades que lhe permitissem fazer do
obstáculo um alimento do seu prazer. A aula foi dura porque nesta rêverie, esqueceu
que Rambo é um ser supertreinado. O seu corpo pode ultrapassar os limites do corpo
urbano e virar “selvagem”, justamente porque foi inervado por uma cultura que
tornou a aprendizagem um quase-reflexo. O que parecia ser primário não era primeiro.
Com efeito, o treinamento torna fáceis gestos que para o mortal comum precisam ser
pensados, necessitam concentração e esforço. Acontece o mesmo com o gesto genial
do esportista. A genialidade, o gesto quase divino são um além do treinamento, um
instante fugitivo de criatividade, a cereja no bolo. Mas Victor quis chegar neste prazer
sem passar pela aprendizagem, que, na cultura do caminhante, é tecnicista. O “mito”
urbano de Rambo deixa pensar que a saída do coletivo permite a heroicização. É essa
saída que faz sonhar e que alimenta o imaginário. Mas quando o mito é reavaliado à
luz da experiência, lembra-se que antes de virar herói, Rambo tinha um mestre – o
coronel – e de que sem a transmissão cultural, sem a “corporização” de elementos
significantes, sem técnicas do corpo, o corpo dele não podia gozar de tamanha
capacidade. Ora, se a aprendizagem do prazer passa por um imaginário do corpo ativo,
eficiente, ela também passa pela decepção e o reconhecimento do necessário
assujeitamento ao ato eficaz e às suas significações. O prazer é então tanto ligado ao
imaginário quanto à disciplina. Retomo aqui a ideia lacaniana de que “o imaginário é a
realidade, menos os cinco sentidos” (Miller). Se o imaginário do corpo gozando não
passa pela decepção e pelo adestramento, o sujeito corre o risco de não gozar o que a
cultura tem de eficaz no mundo real. No caso da caminhada pedestre, a cultura é
disciplinar, ela está ligada a mitos técnico-científicos. Mas, como salientou Mauss, por
serem mitos não deixam de alcançar uma eficácia – e isso não impede que tenha
outras soluções eficazes. As técnicas do corpo falam do “homem total” maussiano:
uma articulação bio-psico-sociológica.
Por sua vez, ao se submeter ao teste da realidade, ao se esfregar com a
montanha percebida, o corpo do individuo vira único, ele é “significantizado” de
maneira única. O gozo da pessoa assim inserida na eficácia da cultura é o gozo de ser
único no meio dos seus semelhantes. Único, mas não demais. Diferente mas
reconhecível. O sujeito pode inserir sua singularidade no coletivo, no “tesouro do
significante” (Lacan). Ele pode ek-sisir (sair de si, ser arrancado de si mesmo e jogado
no mundo). Por mais que a modernidade cartesiana precise ser criticada, como o fez
Foucault, há de lembrar que ela não deixa de cumprir esses papeis. A disciplina, além
de alcançar uma eficácia, também apela ao gozo, fala de prazer, faz do assujeitamento
uma subjetivação. Provocando decepção (ou risco) quando falta, ela oferece aos
sonhos possibilidades de realização. Não tendo alcançado o prazer vislumbrado, e
depois de ter passado pelo medo do acidente e de ter vivido a decepção, Victor apelou
por um “mais-de gozo”, resultado de técnicas do corpo mais encarnadas.

Bibliografia

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FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes,
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Lacaniana n° 41. São Paulo: Eolia, 2004, p.7-67.
Pedagogia da Performance: configurações parateatrais da docência

Marcelo de Andrade Pereira


Doutor em Educação, UFRGS
Programa de Pós-Graduação em Educação, UFSM
doutorfungo@gmail.com

Comunicação Oral
GT 1 – Antropologia e Artes da Performance

Esta comunicação procura discutir a docência como performance parateatral.


Para tanto, parte-se da contribuição dos Estudos da Performance e das discussões
contemporâneas da Educação, introduzindo conceitos como cotidiano,
performatividade, prática docente. Problematiza-se, nesse âmbito, a natureza e a função
do ato docente em sua teatralidade. As figuras do clown, do bufão e do dândi são
convocadas para servirem de apoio por intermédio do qual a performance e a
teatralidade do ato docente encontram termo. Toma-se, assim, a ingenuidade e o
ridículo, característicos do clown, como elemento para pensar a performance docente.
Da mesma forma, toma-se a crítica, o riso, a paródia e o grotesco a partir da figura do
bufão. O Dândi, por sua vez, oferece a possibilidade de uma postura metodológica que
prescinde de intencionalidade, que propicia um espaço de alargamento do tempo e, por
conseguinte, de experiência.

Este trabalho enfatiza a liminaridade entre o teatro, a vida cotidiana e a ação


educativa, colocando em evidência formas de visibilidade em nossa sociedade que
possuem distintas facetas. O objetivo deste trabalho é circunscrever a performance do
professor como espaço de crítica e como metáfora para a reflexão; depreender da
performance do professor seu caráter artístico e ritual; busca, ainda, evidenciar o caráter
parateatral da prática docente, a partir de diferentes configurações de professor que
estabelecem atmosferas distintas e diferentes relações de ensino aprendizagem, seja
favorecendo, seja comprometendo tais relações.

A docência como performance


Desde que Nicolas Evreinoff teorizou sobre a mise en scéne da vida cotidiana,
um amplo espectro de possibilidades se abriu para pensar se os comportamentos
humanos como dotados de características teatrais. Para evitar o etnocentrismo que o
termo “teatral” implica e para ampliar as possibilidades de pesquisa nessa área,
paulatinamente, o termo performance foi tomando lugar para dar visibilidade ao
comportamento cotidiano como performance, diria Schechner.
É nesse caminho que este texto propõe pensar a docência como performance,
como um modo específico de desempenhar um papel social que supõe determinadas
regras e discursos, pois “ensinar não constitui uma performance artística, mas
certamente é uma performance. No ensinar, o professor precisa definir certas relações
com os estudantes. O professor precisa desempenhar o papel do professor, que pode
variar de circunstância a circunstância” (Schechner, 2010, p.30)
Num primeiro momento o professor não desempenha uma ação de todo
autoconsciente, o que conformaria a arte da performance, tal como no teatro, na dança,
nos espetáculos em geral; mas há, provavelmente, um tipo de atuação que parece
provocar os efeitos próprios de uma performance. Tais efeitos permitem vislumbrar
configurações parateatrais na ação docente, pois o caráter teatral dessa atuação confere a
ela uma lente de aumento ficcional para questões do cotidiano, da realidade da sala de
aula.
A esse respeito, vale recobrar as contribuições de Aristóteles para quem a
representação teatral coopera para uma melhor apreensão dos problemas que afligem ou
que atravessam uma determinada sociedade. Tratar-se-ia, com efeito, de tornar ou
evidenciar os problemas sob diferentes pontos de vista, poderíamos chamar isso de uma
tomada de consciência das habilidades e dos fazeres cotidianos, não como uma simples
luz sobre algo já dado, mas como um processo de criação de novidades por intermédio
do jogo ficcional que a teatralidade propõe.
Charles Garoian extrairá da arte da performance as qualidades dessa forma de
expressão que julga adequada para sua proposta pedagógica, quais sejam: multicêntrica,
paradoxal, participativa, indeterminada, interdisciplinar, reflexiva, intercultural, lúdica,
estética, processual (Garoian, 1999, p.47-48). A associação da pedagogia com a
performance é, nesse sentido, auto-evidente. Isso porque, como sendo prática de crítica
cultural, a performance interroga, resiste e intervém; designa uma forma liberadora de
ação; dissolve as fronteiras entre a arte e a vida; rememora e reflete o vivido;
relacionando-se, portanto, com o múltiplo, com o diverso e com o diferente.
Ao reconhecer a performance como expressão incorporada da cultura, Charles
Garoian – nitidamente apoiado pelos postulados de Richard Schechner, em especial, no
que concerne às qualidades da performance – antevê uma pedagogia radical, de inter-
venção, orientada por um discurso educacional que busca reposicionar as identidades
culturais (condensadas no corpo) de professores e estudantes (Garoian, 1999, p.37).
Essa concepção pedagógica de performance não se distancia muito da concepção
anteriormente descrita de Peter McLaren (1993), para quem a performance constitui
uma “arena de ativismo cultural”, a qual envolve “novos modos de representação”.
Como em qualquer modo de representação social, existe já uma expectativa em
relação ao que podemos esperar da performance do professor, dentro, evidentemente, de
determinadas margens com as quais aceitamos ou não o que é e o que não é atuar como
professor e como aluno. Não há entre nós, contudo, nenhum estudo que se ocupe de
formas de agir docente que se aproximam do agir teatral.
Este texto propõe, assim, segundo essa perspectiva, apresentar algumas figuras
por intermédio das quais podemos pensar a tarefa de ensinar como performances
atravessadas pelas características de tais figuras/personagens. Trata-se de discutir a
pertinência de três figuras potentes para a docência: o bufão, o clown e o dândi.
Não se trata, entretanto, de colar tais figuras ao comportamento do professor,
tampouco de uma espécie de tipologia da prática docente. Ao contrário, tais figuras
funcionariam como um mote para pensar a teatralidade da ação docente a partir de uma
concepção de teatro muito mais aproximada das artes performativas, portanto, mais
afastada da ideia clássica de personagem, segundo a qual se trataria de uma ficção
literária a ser interpretada por um ator. Tal qual as artes de performance, essas figuras
constituem motes de ação e circunscrevem espaços de atuação nos quais o próprio
performer é o centro da atuação. Isso não implica, portanto, a interpretação de um
personagem, mas, fazendo o caminho contrário, reconhecer em si características que se
aproximam dessas figuras na potencialidade de sua reflexão.

A figura do bufão
Na idade média, o Bufão não era exatamente um personagem no sentido que
essa palavra vai assumir a partir do Renascimento e, principalmente, na consolidação da
modernidade teatral do século XVIII em diante. No medievo os bufões eram
verdadeiramente indivíduos que usavam algum tipo de deformidade física ou mental
para performatizar e dar-se a ver em apresentações públicas.
Essa tradição vinha desde a Antiguidade, seja nas cortes, nas quais os bobos
eram autorizados a divertir reis e imperadores, seja nos ambientes populares, nos quais
trupes de párias sociais apresentavam diferentes habilidades dramáticas ou parateatrais
para sobreviver.
Não se tratava, contudo, de espetáculos tais quais nos acostumamos a ver nas
nossas sociedades pós-industriais, mas práticas performativas que envolviam uma
autoridade em falar. Em muitos casos era pela performance do bobo, do bufão que a
palavra interdita era possível. O bobo podia falar do rei ao rei e criticá-lo, ainda que em
alguns casos sofressem as consequências. O bobo é, por assim dizer, o alterego do rei.
Assim, havia no bufão uma atividade de diversão e, ao mesmo tempo, de
transgressão, tratava-se de divertir e divergir, de apresentar e criticar.
Ao contrário de outras atividades performáticas, o bufão fazia isso por
intermédio de uma característica que lhe era particularmente peculiar, o grotesco. Nele,
nas suas deformações, na sua impossibilidade de aceitação plena pela comunidade,
residia a potência de uma intervenção do feio, do deformado, do obscuro, na qual se
fazia sentir laivos de resistência.
Tais transgressões se davam por inúmeras habilidades, mas, principalmente, pela
alegoria da inversão. O bufão no seu jogo cênico e performático podia parodiar, gozar,
imitar qualquer figura importante, qualquer fato histórico, qualquer acontecimento
cotidiano. O caráter grotesco da sua atuação funcionava, com efeito, tanto como
máscara por intermédio da qual ele ficava protegido para falar, quanto efeito segundo o
qual falar tomava um caráter cômico, visto a estranheza que a deformidade comportava.
Mesmo autorizado a falar nesse lócus específico, a cena, o bufão nunca deixou
de ser um excluído, seja pela sua não conformidade física, seja pela sua falta de caráter
civilizatório. Sendo assim, um bufão não pode ser concebido senão em bando, em
grupo, na segurança de uma comunidade de bufões. O grupo é característica do bufão,
portanto, ao invés de falar em bufão como indivíduo, seria melhor lembrar a bufonaria
como conjunto, como ensemble, como coletivo que impede uma singularidade ao bufão,
na medida em que o protege no conforto de um grupo que corresponde tanto à
segurança, quanto ao olhar crítico.

A figura do clown
O clown, ao contrário, se ocupa da dimensão inocente da comicidade. Trata-se
de um misto de inocência e comoção. O clown se aproxima assim de uma crítica mais
humana, de evidenciar uma condição absurda da humanidade: existir. Ele o faz por
intermédio da gag, pequena sequência de ações com laivos obsessivos na qual o clown
procura resolver um problema simples do cotidiano, segundo uma lógica absurda.
Historicamente, o clown tomou existência no circo criado na Europa do século
XVIII. Antes disso, seus ancestrais, bufões, bobos, palhaços, artistas do corpo, da
Antiguidade à Commedia Dell’Arte, experimentavam o nonsense alternado com o
grotesco. Mas a constituição do circo moderno trouxe a possibilidade de uma ribalta
definitiva para essa figura, circunscrevendo o picadeiro como espaço de excelência do
clown. O caráter introvertido, individual e cômico possibilitou, também, uma
aproximação e uma presença forte no cinema nascente da primeira metade do século
XX.
Como figura ambivalente, o clown constitui uma dimensão idiota e idiotizada do
ser humano. Ele evidencia a condição cômica, a inocência e, sobretudo, a inconsciência
da vida vivida no inconsciente do cotidiano repetitivo. Tratar-se-ia de uma inveterada
ação inútil. O clown se ocupa de coisas pequenas, de tarefas ordinárias, de ordens dadas
a ele por uma sociedade baseada na ordem.
O clown, entretanto, é desordem, é inocência infantil de um ser que não pretende
representar nada, que não constitui um personagem – no sentido dado à literatura
dramática ou não -, mas uma condição: todo somos clowns perdidos na nossa existência
sem sentido.
O circo moderno, sobretudo a partir do século XIX, imortalizou dois tipos
clássicos de clowns: o branco e o augusto. O primeiro é o clown seguro, certo de si e
dono de um ar, não raro arrogante, superior. Ele pensa que não é idiota, mas sua ação
mostra sua profunda ignorância e sua limitação ainda mais evidente do que o augusto.
Este último, por sua vez, é o idiota completo que só pode encontrar razão no acaso, na
saída tangencial e inesperada ocasionada pela inocência completa.
No cinema a dupla o Gordo e o Magro são um exemplo dessa tipologia: o Gordo
sendo um clown branco, enquanto o Magro, o augusto.
Nessa relação de par - clown branco clown augusto - circunscreve-se a
existência dessa figura, uma relação de existência dada pela intervenção da tarefa, com
resultado cômico. O clown augusto pode, por ele mesmo, ao enfrentar as situações
brancas, existir sozinho, bastaria lembrar mais uma vez o exemplo do cinema: Carlitos
de Charles Chaplin.
Seja como for, o cômico do clown, é efeito de um sentido constituído na
identificação. Identificamos-nos com as mazelas dessa condição pequena e infantil.
Vemos-nos retratados na nossa pequenez, na nossa insignificância, na nossa estupidez.
O clown é o retrato de um homem perdido, mas que pode se reconhecer na sua
complexa e difícil existência.

A figura do dândi
O dândi é o sujeito que toma a própria vida como uma obra de arte, ou seja, o
seu modo de se dar a ver apresenta uma suposta superioridade cultural expressa em
gestos, vestuário, conversações. Trata-se de uma figura da metrópole, emergente na
Inglaterra na virada do século XIX para o século XX.
Caracteriza-se, principalmente, pela super afetação e pela postura pró-
aristocrática, em detrimento de uma postura burguesa. O seu vestuário marca o espírito
de superioridade, de distância e distinção que são aclamados pelo dândi como um modo
de ser. Fina ironia que expressa um modo de comportamento blasé e que considera
qualquer vulgaridade um crime.
A extrema afetação busca sempre surpreender o olhar alheio, sem, contudo,
jamais mostrar surpresa ele mesmo. Trata-se de um cultivo a bela aparência e um
cultivo a retórica e aos costumes delicados. Retórica para o dândi é, sobretudo, um justo
falar, uma adequação de tempo e espaço em relação ao falar. Evita-se, segundo ele, o
franco falar ou o simples falar; mas valoriza-se a justeza e a adequação num falar que
evita excessos.
O dândi não se ocupa de nada, para ele não há mundo do trabalho, mas na sua
superficialidade aparente faz parecer que faz tudo como todos. Ele não faz nada como
os outros, mas aparenta fazer tudo como os outros (Balzac, 2009, p.32).
O sentimento que move o dândi é o de uma vida elegante, sóbria. Ele imprime o
se tipo de pensamento sobre tudo o que o rodeia e o pertence. E é a partir da influência
desse pensamento que a vida se enobrece, se aperfeiçoa e se engrandece (Baudelaire,
2009, p.45).
Trata-se de pensar uma figura que não vive sob a égide do tempo acelerado. Ele
alarga o tempo, pois a elegância dramatiza a vida [...]” (Balzac, 2009, p.52). Ele atenta a
todas as nuances do tempo, de um tempo estendido, assim, “a vida elegante não exclui
nem o pensamento, nem a ciência: ela os consagra. Ele não deve ensinar apenas a
desfrutar do tempo, mas a utilizá-lo numa ordem extremamente elevada de ideias”
(Balzac, 2009, p.82).
Somente na aparência o dândi é um irresponsável, um descomprometido com a
vida social. De fato, ele faz um elogio da singularidade, ele torna nítido os signos de
uma vida cultivada, de alta cultura. Trata-se, portanto, de um humor alegórico, irônico,
refinado.
O dândi trabalha na dimensão da ironia, ele aduz à comicidade pela palavra
justa, pelo emprego, pelo uso da sofisticação, que não procura causar nenhum
desconforto. Seu objetivo é sempre causar o conforto, pois ele porta uma palavra
convencionada, o dândi, de fato, é o mestre da etiqueta, justamente porque ele sabe
como isso pode funcionar como ação crítica.

Reverberações na prática docente


Eventualmente, como professores, personificamos bufões, clowns, dândis?
Sabemos que o fazemos? Somos atravessados por tais alegorias? Antes de saber dizer
com qual deles nos identificamos, seria mais produtivo perceber a potência dessa
relação: performances docentes analisadas a partir de tais figuras.
É provável que o componente crítico que o bufão, o clown e o dândi comportam
constitui o elemento inevitável de ligação entre eles e a prática docente compreendida
como performance.
Portanto, não se trata de fornecer instrumentos, mas um caminho compreendido
como forma de entendimento de si e do mundo. Caminhos que poderiam afasta o
indivíduos de paradigmas históricos e epistemológicos reprodutivos. A ideia de uma
pedagogia performativa constitui a ideia de resistência. Portanto, analisar essas três
figuras mostra a importante de sabermos como performamos nosso papel de professor e
como a Escola performa os sujeitos, ritualizando algumas relações entre papéis
performatizados.
Assim, tomas ciência da potência das configurações, a prática pedagógica tem a
possibilidade de deixar de ser reprodutiva para ser produtiva, poética. Quando se fala,
aqui, em poética, apresenta-se uma variável de ordem estética, a qual nos lança um
espaço-tempo de presença e passível de experimentação.
Essas diferentes figurações da prática docente – o bufão, o clown, o dândi –
aduzem a modos de olhar, de se comportar, de criticar, de dizer, e constituem
possibilidades de escolha para o professor. Nisso, reside uma potencialidade, seja na
acidez crítica do bufão, na ingenuidade infantil do clown, na impenetrabilidade elegante
do dândi, seja na sua performatividade consciente.
Nessa arte da performance pedagógica, a consideração da dimensão estética
constitui um imperativo educacional, visto que alude tanto às condições materiais de
representação de uma dada subjetividade, quanto ao microcosmo de sentidos (dados e
produzidos) instalado por meio do elemento estético. Essa afirmação encontra-se, como
já se observou, no cerne da significação cultural da performance – tomada desde o
ponto de vista das identificações e agenciamentos e dos respectivos modos de dar-se a
ver (ou representar) no tecido social. Encontra-se, também, em relação à significação da
performance como campo de trabalho artístico e cultural, heterogêneo, por intermédio
do qual podem-se analisar os vários aspectos de produção dos comportamentos sociais
(papéis e formas específicas de atuação), os quais são historicamente aprendidos e
reproduzidos (Garoian, 1999, p.08).
Assim, a performance do professor constitui uma forma de auto-consciência, não
absoluta (Garoian, 1999, p.10). Como tomada de consciência, a performance refere,
também, um modo de posicionamento do indivíduo em meio à profusão de discursos
que supostamente o sobredeterminariam. Parece, pois, evidente, que exista de maneira
necessária, uma conexão entre a prática pedagógica e a produção artística. Para Garoian
(1999, p.03), o ensino pode conformar uma arte, assim como a arte pode, também,
ensinar. Sob a forma de uma pedagogia artístico performativa, Garoian intui a exposição
e a transformação de discursos culturais os mais diversos, não raro, conflituosos, dentro
uma práxis social, o que permite, segundo ele, “criar novas idéias, imagens e ações
baseadas na própria perspectiva cultural” (Garoian, 1999, p.03).
É isso que as figurações deste texto pretendem: mostrar o intrincado espaço de
criação que figuras tão distintas como o bufão, o clown, o dândi, podem aportar para a
performance da prática docente.

Referências

ARISTOTE. Poétique. Paris: Les Belles Lettres, 1969.


BALZAC, Honoré de. Tratado da vida elegante. In: BAUDELAIRE, Charles; BALZAC,
Honoré de; D’AUREVILLY, Barbey. Manual do dândi – a vida como estilo. Organização,
tradução e notas Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
BAUDELAIRE, Charles; BALZAC, Honoré de; D’AUREVILLY, Barbey. Manual do dândi – a
vida como estilo. Organização, tradução e notas Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2009.
EVREINOFF, Nicolas. Le théâtre dans la vie. Paris: Librarie Stock, 1930.
GAROIAN, Charles R. Performing pedagogy: toward an art of politics. New York: state
University of New York Press, 1999.
JANIK, Vicki K. (Ed.). Fools and jesters in literature, art and history: a bio-bibliographical
sourcebook. Westport: Greenwood Press, 1998.
OTTO, Beatrice K. Fools are everywhere: the court jester around the world. Chicago: The
University of Chicago Press, 2007.
SCHECHNER, Richard; ICLE, Gilberto; PEREIRA, Marcelo de Andrade. O que pode a
performance na educação? Uma entrevista com Richard Schechner. Educação & Realidade, n.
35, v. 2, pp.23-35, maio-ago, 2010.
WILES, David. Shakespeare’s Clown: actor and text in the elizabethan playhouse. Cambridge:
Cambridge University Press, 2005.
A IDENTIDADE CIRCENSE, SEUS SÍMBOLOS E RITUAIS SOB A LONA.
REFLEXÕES SOBRE O CIRCO E SUAS PERFOMANCES

Taiana Renata Martins1


Co-autor: Gabriel Alvarez2

Resumo3
O circo chega ao Brasil, no início do século XIX com famílias circenses que
vêm da Europa e trazem sob a lona números de equilibrismos, malabares,
acrobacias, trucs com animais e se apresentavam de cidade em cidade. A
identidade circense tem em sua tessitura a itinerância, a convivência em
família, o aprendizado/ensino de destrezas artísticas mutuamente à apreensão
dos seus símbolos. Seu ritual inicia-se na escolha do terreno a ser montado até
a instantes antes do início do espetáculo. Seus corpos são a massa modelável
de suas perfomances tanto na vida social como no espetáculo frente à platéia.
Os circenses articulam sua estrutura se atualizando a cada novo invento
tecnológico, reelaborando e ressignificando seus espetáculos, adaptando-os
para cada tipo de público incrementando às suas apresentações elementos de
outras manifestações artísticas e experimentando sempre novas versões
cênicas. E é nesse sentido que esse artigo caminha: para análise e
compreensão das interações sociais que ocorrem no interior da communitas
circense, no reconhecimento para com o outro de sua identidade e a
expressividade singular dos espetáculos que desperta o público à uma catarse
no presente, onde é alcançado um mundo lúdico e transcendente. Essa é uma
contribuição inicial para a maturação das reflexões à respeito da performance
circense na vida social e na constituição de seus espetáculos.

Um mastro, um pano de roda...Circenses do mundo: re-vira-volta tracejada.

Este texto apresenta os resultados preliminares de uma pesquisa antropológica mais


ampla, que discute o Circo sob diversos aspectos: identidade, símbolos, rituais e
performances, a partir do trabalho de campo e da teoria da performance e símbolos
rituais. A hipótese subjacente a este momento da pesquisa proposta levanta a questão da
performance no cotidiano dos circenses e seus espetáculos como performances/rituais
sob a lona.
Existem várias manifestações do Circo: circo-teatro, circo contemporâneo, circo-social,
escola de circo e circo itinerante. Em todos pode haver circenses tradicionais

1 Taiana Martins é graduanda em Ciências Sociais e artista da Escola


de Circo Loninha em Goiânia-GO.

2 Gabriel O. Alvarez é Doutor em Antropologia pela UNB e Professor


da Universidade Federal de Goiás.
3
Trabalho desenvolvido sob orientação do Profº Gabriel O.Alvarez.
envolvidos, mas principalmente neste último é que encontramos uma maior
representatividade dos “de circo”. Ou seja, quando falamos em Circo no Brasil não
estamos falando apenas dos empreendimentos familiares que (quase) subexistem nesse
país, mas de toda uma categoria de profissionais, amantes e acompanhantes de Circo
que ‘tocam’ suas atividades movidos principalmente por paixão, pelo sentimento
despertado por participar desta tradição. Os circenses ou nasceram no Circo, ou se
encantaram de tal forma que fugiram de suas atividades cotidianas para se entregarem à
vida itinerante, ou até mesmo encontraram nesta arte forças para superar limitações
físicas, sociais e econômicas.
Este trabalho discorrerá especificamente sobre o Circo Itinerante para análise e
compreensão das interações sociais que ocorrem no interior da communitas circense, no
reconhecimento para com o outro de sua identidade. Um ponto importante a ser
abordado é a expressividade singular dos espetáculos, que desperta no público uma
catarse, cria uma experiência liminoide que transporta o público para um mundo lúdico
fora do tempo cotidiano da estrutura social.
O circo chega ao Brasil, no início do século XIX com famílias circenses que vêm da
Europa. Existem poucos relatos e documentos, mas ao que tudo indica os primeiros
grupos de artistas a atracarem aqui no Brasil foram de saltimbancos e ciganos que
formaram e integraram muitos circos brasileiros. Os ciganos sempre foram excluídos
socialmente, o que os levou a procurarem o Novo Mundo, onde poderiam manter sua
integridade étnica. Traziam consigo apresentações de música, dança, destrezas,
ilusionismos e outras habilidades em praças, becos atraindo a atenção do público. Pouco
a pouco suas apresentações foram ganhando espaço sob a lona.
Como disse o palhaço Picoly em entrevista: “O cigano e o circo, a vida é a mesma, não
tem parada.” Ambos têm a itinerância como pressuposto fundamental para sua
existência, assim como a oralidade e a performance, aspecto fundamental para a
manutenção da memória e dos ensinamentos/aprendizados.
Escolhe-se o terreno, arma-se a lona, organizam suas vidas em seus trailers, montados
com seus figurinos desfilam pela cidade para divulgar a chegada do circo, preparam o
figurino e maquiagem a ser usada logo mais, fazem o ensaio geral para ver se está tudo
no lugar, os objetos de cenas, os aparelhos, as marcações para então dar-se a
apresentação do espetáculo. Durante o tempo de estadia, conhecem pessoas, criam
vínculos de amizade às vezes forte, mas na maioria brando, pois falta tempo para
aprofundar as relações, e no mesmo espaço em que acontecem suas apresentações
também acontecem os almoços e jantares, os amores e os conflitos. Entre uma atividade
e outra, conversas, olhares, gestos vão sendo apreendidos pelas crianças.
As crianças ao observarem, com olhos curiosos, alguém criando um número, tentam
insistentemente repetir os movimentos assistidos que logo, logo serão executados com a
mesma destreza. Joga-se com a possibilidade de ser agora (na preparação) o que não se
é AINDA (no espetáculo). Inventa-se o novo, joga-se com o inusitado e cria-se o risco.
E o risco não é brincadeira. Roberto Moreira em sua resenha sobre a obra de Luis
Guilherme Veiga (2008):
Assim, surge a noção de risco que pode ser afastado iniciando-se o
treinamento pelas atividades mais simples até chegar às mais
complexas. É nesse processo de absorção de atividades extraordinárias
e arriscadas que, diante de um público, por exemplo, o que para ele
não passa de uma segunda natureza é visto como performance pelo
observador externo. O mesmo se poderia dizer de um virtuose que, ao
executar seu instrumento, "esconde" do público o imenso esforço feito
durante anos para chegar àquela qualidade de execução.
As histórias contadas pelos adultos tanto de fatos acontecidos naquele momento, quanto
sobre grandes feitos de parentes para a realização de um número surpreendente povoam
a imaginação dos pequenos e dá prosseguimento a uma transmissão de saberes pela
oralidade construída com uma rotina de performances.
As crianças sempre às vistas de todos, são educadas para saberem desde cedo todas as
técnicas para a armação da lona. Desde a escolha do terreno até a segurança dos
aparelhos. Passam também por um processo de educação corporal de observação e
repetição influenciado pelos pais, tios, irmãs, irmãos, cunhados artistas. Com o tempo
cada um descobre sua habilidade. Uma vez descoberta inicia-se o trabalho de criação de
número para integrar o espetáculo. Mas mesmo antes de integrarem uma cena com seus
números, as crianças são envolvidas em alguma parte da produção do espetáculo para
que desde cedo interajam com esse ambiente de criação artística com o objetivo de
preparar-se para a chegada do momento de subir ao palco para fazer a própria
apresentação. Eis uma mudança de status, um deslocamento de função na estrutura
social que o circense vive.
A identidade circense como qualquer outra identidade social, é imbuída da negação do
não- circense. O conceito de Barth (2000) de “identidades contrastivas” diz que quando
uma pessoa ou grupo se afirmam como tais, o fazem como meio de diferenciação em
relação a alguma outra pessoa ou grupo com que se defrontam; é uma identidade que
surge por oposição, implicando a afirmação de nós diante do outros, jamais se
afirmando isoladamente. O circo é aqui entendido como diferença e nos permitirá captar
a articulação entre o espaço e o tempo fronteiriço e doméstico da cultura (Babha, 2003),
pois situa-se num lugar demasiado visível e ao mesmo tempo não suficientemente claro.
As identidades tem que ser entendidas como uma construção ideológica e como posição
na estrutura social. As identidades se articulam em sistemas contrastivos. No caso do
circo, é a sua itinerância, a oposição entre o circo e o não circo que se vê reforçado pela
itinerância e como a mesma condiciona a inserção na estrutura social.
A identidade circense, como forma de organização social, está condicionada pela
itinerância, como um valor, que estrutura a convivência em família, o
aprendizado/ensino de destrezas artísticas mutuamente à apreensão dos seus símbolos.
Seu ritual inicia-se na escolha do terreno a ser montado até a instantes antes do início do
espetáculo. Pois a cada nova cidade em que a lona é armada tudo começa do novo.
Têm-se aqui uma situação distinta da cotidiana que já conta com a vida nos trailers. O
processo para erguer o mastro está apoiado em várias crenças que acompanham os
circenses e que muitas vezes incluem em suas rotas cidade de mortos parentes ou
queridos. Os circenses dividem seu tempo entre os afazeres domésticos, relacionado aos
seus trailers, os afazeres na lona, como cuidar do seu aparelho, da limpeza do picadeiro,
da arquibancada e os treinos necessários para a perfeita execução de seus movimentos
na apresentação do espetáculo. Depois de várias sessões que podem acontecer ao longo
de uma semana ou semanas, meses e até anos no mesmo lugar, desarma-se a lona,
empacotam seus pertences e novamente vagam pela imensidão deste país apresentando-
se nas mais variadas cidades para todos os públicos do interior à capital, tendo como
sensor de permanência em cada lugar: o público. A maioria dos circos vive quase que
exclusivamente de bilheteria e venda de comidas como pipoca, algodão- doce, churros
etc.
O circo, como linguagem se articula a partir da emoção, enquanto a razão é colocada de
lado. A razão, quando é invocada no espetáculo é para ser ludibriada. Quanto tem de
racional tirar um coelho de uma cartola, entrar numa gaiola com leões, andar numa
corda bamba a metros do chão? O riso, o assombro, o inesperado, se articulam no
vínculo criado entre os circenses e seu público. No espetáculo “O circo” apresentado
pela extinta Escola Circo Martim Cererê, em Goiânia, em uma das cenas, através de um
jogo, o palhaço Kadú e o palhaço Mocotó ressignificam um aparelho de parada de mão.
Feito de ferro, com formato em U achatado, os dois se enroscavam nesse objeto
desencadeando várias palhaçadas. Move para um lado, move para o outro. Se o público
reagisse com pura racionalidade ficaria se indagando sobre o que era aquele ferro, e por
que os palhaços os disputavam com tanta veemência. Mas o circo não é o espaço para a
excelência da racionalidade. A platéia se encanta com aquela confusão armada pelos
palhaços e se entregam ao riso. Nítido é, neste momento, a ação ritual desencadeada
pelo espetáculo. Onde um objeto de parada de mão torna-se símbolo da destreza daquele
personagem. De acordo com Peirano (2000) a ação ritual consiste em uma operação
feita em um objeto-símbolo com o propósito de uma transferência imperativa de suas
propriedades para o recipiente. Ao final da cena, o palhaço Kadú executa a parada sobre
o aparelho e o público explode em admiração e aplausos.
Os grandes impulsos motivadores que faz com que o público vá ao Circo é o riso, o belo
e o escárnio despertado no espetáculo. Ao se dispor ir ao Circo, o espectador espera
encontrar um repertório que inclua malabaristas, mágicos, contorcionistas, globistas
pois o espectador deixa para trás sua vida cotidiana e se entrega à momentos de riscos,
tensões e zombarias. È o momento em que ele pode transferir para si habilidades
presentes nos artistas que ele assiste e admira. Prende o fôlego, fica tenso, alivia-se
num movimento de alternação entre o real/racional e o lúdico/emocional. É a magia do
Circo que lustra a presença dos espectadores frente ao picadeiro.
A constituição da tradição circense se deu de forma fluida, embutida em um movimento
de renovação constante no seu modo de ver, viver e trabalhar.
Os circenses sabem que se não treinarem à exaustão nunca executarão o número e ainda
correrão um grande risco de machucarem-se gravemente. No Circo, SEGURANÇA é
palavra de ordem. Principalmente a segurança psicológica do artista que tem que ter em
mente a clareza do quanto se preparou para executar aquele número, com anos de treino
e várias marcas no corpo que cada aparelho pede. Para ser acróbata, por exemplo, é
necessário muito preparo físico, alongamento, abertura, força e, com o impacto dos
saltos sobre os joelhos e pulsos estes ficam para sempre marcados (lesões). O
malabarista em seu processo de aprendizagem de manipulação dos objetos tem que ficar
se abaixando para pegar os objetos que caem, pois é preciso prática para conseguir
mantê-los no ar. Muitas vezes os malabares batem nos dedos, pulsos, testa. As grandes
destrezas comuns aos malabaristas são a habilidade de equilibrismo de objetos com as
mãos, o reflexo e uma visão periférica muito avançada pois é com esta que localizam no
ar os objetos manipulados. Os acrobatas aéreos que realizam movimentos no trapézio,
no tecido e na lira tais quais os acrobatas de solo tem que ter um preparo físico
excepcional, alongamento, abertura, força e tem que proteger as articulações do seu
corpo para as queimaduras que acontecem ao executarem as quedas (que são quedas
livres amparadas pelo aparelho), descem metros com o aparelho roçando em seu corpo.
O esfrega-esfrega com o tecido (as cordas do trapézio normalmente são revestidas de
tecido e a lira também é toda revestida de um pano adesivo parecido com esparadrapo)
causa queimaduras variadas de 1º a 3º grau. O globista (globo da morte) faz seu número
sobre uma moto e se vale da força centrífuga para mantê-la no globo. Qualquer erro, o
globista cai e rala como qualquer queda de moto. Apesar da roupa de proteção os
ralados são inevitáveis. O artista tem que saber que ninguém a não ser ele mesmo é o
melhor naquela modalidade para executar aquele número criado por ele mesmo naquele
Circo. Então ele trabalha duro para apresentá-lo sempre com maestria. A árdua prática
cotidiana do treino para a execução dos números faz com que seja necessário aliar a
preocupação de excelência do movimento que o artista se propõe a fazer e o quão boa
ficará esteticamente a fotografia do número. O circense não representa. Ele se apresenta.
Cada espetáculo é uma apresentação única já que é impossível repetir de forma idêntica
as destrezas executadas ao vivo, in loco.
A performance do circense está nessa preparação essencial à sua vida. Todas as suas
ações são movidas para compor o que será apresentado no picadeiro quando for a hora
de ocupá-lo. Roberto Moreira (2008) complementa dizendo que quando uma forma de
expressão visa ser apreciada por um público daí temos um espetáculo. Mas quando essa
habilidade não depende de um público e é especial pra o próprio artista, então essa
atividade é um ritual.
Ritual é uma comunicação multimídia que envolve toques, cheiros e sensações.
Maquiar-se é um ritual, pois a partir da máscara branca (pancake), a escolha das cores e
dos traços é que faz com que o artista dê a “cara” ao personagem traduzindo-lhe uma
aura fantástica; mágica mesmo. De acordo com Tambiah (1985) os rituais compartilham
alguns traços como uma ordenação que os estrutura, um sentido de realização coletiva
com propósito definido e uma percepção de que são diferentes do cotidiano.
Peirano(2000) ainda nos lembra que o ritual esclarece mecanismos fundamentais do
repertório social. Essas inquietações faz com que o circense torne-se performático
mesmo que seu número não seja incluso no espetáculo. ROCHA (2009) diz que a noção
de tradição e/ou tradicional aparece como um elemento de classificação social e não
necessariamente como uma herança genética. Ser tradicional, nesse contexto, significa
antes ser portador de certas qualidades que podem ser observadas nas performances
corporais dos artistas circenses. Responsabilidade, fazer bem, dedicação, respeito à
“grande família circo” constituem alguns dos principais atributos da identidade
circense. O autor ainda completa: “Compromisso que exige do artista, no extremo, ter
de trabalhar no picadeiro mesmo quando acaba de receber a notícia da morte da mãe, é
o que conta o palhaço Arrelia (1997) em sua autobiografia (ROCHA, 2009)”.
O espetáculo é o ponto chave para compreendermos o poder comunicacional dos
símbolos circenses no imaginário do público e como se constrói essa relação de
cumplicidade lúdica, de jocosidade permeada de cores, sustos e risos. A partir de uma
concepção simbólica do Circo, ao adentrar sob a lona, o espectador já ativa e materializa
em seu (in) consciente as cores, as músicas, as luzes, as apresentações tudo sempre
recheado de sentidos cativos da significação imaginária; um sentido figurado que
desperta o espectador para uma catarse. Como Mauss nos lembra a magia é uma forma
individual privilegiada de um fenômeno coletivo. Levi Strauss muito vem a contribuir
com sua teoria da eficácia simbólica onde o espectador se entrega e acredita na magia
que acontece sob a lona em que é possível presenciar essas forças sobre-humanas,
movimentos completamente contrários aos executados no dia-a dia das cidades. A noção
de tempo e espaço no espetáculo é alterada. Quando as luzes se apagam e o preto
assume é como se de um buraco negro surgissem várias coisas de outro mundo:
malabaristas, pirofagistas, contorcionistas, acróbatas sempre tudo muito enriquecido
com cores vibrantes e brilhos. Do gelo seco sai a fumaça que vai revolver a memória do
público, suspiros lhe são retirados de tensão e de alívio. Ao longo do espetáculo
equilibram-se na crença da magia que o Circo proporciona. Quando as luzes se acendem
o público sai do buraco negro mágico e se depara com o a arquibancada em que está
sentado, a sujeira das guloseimas no chão, as pessoas se levantando para irem embora. E
como uma fumaça rumo à luz a magia se defaz.

PEGA- PRA- CAPAR


Ao voltar a Turner (2008), o conflito parece fazer com que os aspectos fundamentais da
sociedade, normalmente encobertos pelos costumes e hábitos do trato diário, ganhem
uma assustadora proeminência: iniciam-se os dramas sociais. Os circense vivem sujeitos
à todas as dificuldades para dar seqüência às suas atividades como a falta de terrenos
próprios para a montagem da lona (com banheiro, fiação para puxar energia e água),
além do alto custo do aluguel; difícil também é a obtenção de alvará de funcionamento
do circo; a proibição dos animais e a ausência de fiscalização e regulamentação destes;
inexistência de legislação comum entre as gestões municipais que orientem os
procedimentos e exigências para a montagem do circo em praças públicas; altos
impostos trabalhistas; dificuldade de obtenção de vaga para as crianças em escolas
públicas, mesmo com o artigo 29 da Lei Federal 6.533/78 que assegura que filhos de
profissionais itinerantes têm direito à transferência de matrícula e conseqüente vaga nas
escolas públicas; ausência de programas que contemplem as necessidades de rápido
agendamento de consultas médicas, déficit de políticas públicas culturais voltadas para
o estímulo e manutenção dos circos brasileiros.
A partir de um trabalho de campo que pouco a pouco começa a desdobrar-se, esse paper
muito vem a contribuir para minhas reflexões iniciais sobre identidade, símbolos,
rituais, dramas e perfomances circenses.
BIBLIOGRAFIA

BARTH, Fredrik. O guru, o Iniciador e outras variações antrpológicas. Tradução Jonh


Cunha Comerford. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000.
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Editora Família Bastos, 2005
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humana. Tradução: Fabiano de Morais. Niterói: editora da UFF, 2008.
A arte de caminhar pelas ruas ou delirium ambulatorium
André Luiz Santos da Silva
Mestrando em Artes – UERJ

Introdução

Este trabalho é fruto de uma primeira tentativa de aproximação mais efetiva de


meu projeto de dissertação no programa de pós-graduação em Artes da UERJ
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Chamo de “primeira tentativa mais
efetiva” porque é verdadeiramente o momento de reencontro com o meu pré-projeto.
Penso no quão gigantesca me parece agora a proposta de pesquisa que tinha feito
então, no segundo semestre de 2010, durante o processo seletivo. Nesse sentido, esta
primeira tentativa também é um exercício de recorte de interesses e possibilidades
dentro do campo ao qual minhas atenções estão voltadas: a arte de performance.
Desde 2008, após um período de quatro anos durante o qual me afastei
voluntariamente da prática artística, venho aproximando a minha criação em dança
contemporânea às artes visuais através da performance. Tal direcionamento, ainda
que muito intuitivo no início, me reconduziu à universidade em busca de
interlocuções mais potentes.
Aqui neste trabalho, o recorte dentro do amplo e instigante universo da
performance se efetua na medida em que faço referência a duas obras que têm a
caminhada como elemento constitutivo. São elas: Aqui Enquanto Caminhamos (Here
Whilst We Walk), de Gustavo Ciríaco (Brasil) e Andrea Sonnberger
(Alemanha/Áustria); e Walking Poem Rio, da plataforma hello!earth (Dinamarca). O
desenrolar de ambas se dá com a participação do público ao longo de jornadas a pé na
cidade.
Já que trato essencialmente de deslocamentos, proponho que este texto
também seja lido enquanto caminhada, cruzando as avenidas de pensamentos e
práticas de outros autores e artistas, alguns mais conhecidos nossos, outros nem tanto.
E com isso, quem sabe, respiremos ares mais ou menos rarefeitos, perfumes diversos,
e avistemos detalhes singulares em paisagens rotineiras. Entretanto, importa mais, e
antes de qualquer coisa: flanar, caminhar, permitir-se afetar e ser afetado. Vamos?
Atalhos na direção do recorte: Oiticica, Guz e João do Rio

Esvaziar a bolsa. Revelar os pertences.

Para este texto-caminhada, poema andante (ou bate-papo, se você assim


preferir), inicialmente sugiro três trechos, que podem funcionar como vielas, atalhos
na direção desse recorte. O primeiro deles é de Hélio Oiticica, um registro de sua
performance Mitos Vadios, de 1978, ano em que comecei minha própria caminhada
nesse mundo:
(...) espécie de poetizar do urbano → as ruas e as bobagens do nosso
daydream diário se enriquecem → vê-se que elas não são bobagens → nem
trouvailles sem consequência → são o pé calçado pronto para o delirium
ambulatorium renovado a cada dia.

A noção de “delirium ambulatorium” proposta por Oiticica aparece no título


deste texto como indicação de um olhar poetizador que proponho lançar sobre a
caminhada, presente nas performances mencionadas. Conecto essa mesma noção a
uma outra, a de flâneur: aquele que flana, vagueia pelas ruas da cidade, sem destino
pré-definido, em andanças de vadiagem, na posição de um observador atento a tudo o
que acontece no entorno, o espaço urbano.
“É como virar turista na própria cidade”, diz Stela Guz, artista colaboradora de
Walking Poem Rio. Este é o segundo dos três trechos de que lanço mão aqui no início
do percurso de nosso texto-caminhada. O depoimento de Guz se comunica com o
registro de Oiticica, pois poetiza o estar/viver na cidade e ressignifica/renova a
experiência urbana através da ação performativa. Ser turista na própria cidade é como
ganhar um novo corpo e, desta forma, poder vivenciar os mesmos caminhos e trajetos
costumeiros com novos olhos, nova pele, sentidos menos viciados.
O terceiro trecho é de João do Rio e data do início do século XX: “Flanar é ser
vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao
da vadiagem”. Eis uma frase que complementa as anteriores e que não deixa dúvidas:
ser vagabundo, ou seja, permitir-se o tempo necessário para uma observação
cuidadosa e sensível é condição sine qua non quando se deseja redescobrir o urbano.
A caminhada enquanto ação performativa: duas obras

Olá! Nesse momento, há estrelas explodindo, brilhando, colidindo no universo.

Depois de passar por esses atalhos, mais sensibilizado por suas contribuições,
retorno às duas performances que servirão como parâmetros para nossa reflexão-
poetização sobre a caminhada enquanto ação performativa. Antes, porém, devo
compartilhar os motivos pelos quais selecionei as duas obras.
Além de apresentarem a caminhada como elemento constitutivo, elas me
interessam na medida em que foram criadas por artistas de dança que, ou migraram
definitivamente para a área da performance, ou optaram por permanecer transitando
entre as duas linguagens, como é o caso do coreógrafo carioca Gustavo Ciríaco. Além
disso, elas me possibilitam observar o fenômeno da caminhada enquanto ação
performativa sob dois ângulos distintos: o de público-participante em Aqui Enquanto
Caminhamos; e o de colaborador criativo em Walking Poem Rio.
Aqui Enquanto Caminhamos tem início num ponto pré-definido da cidade,
onde artistas e público, de 6 a 20 participantes, se encontram. No caso de minha
experiência com a performance, na cidade de Copenhague em 2009, o encontro
aconteceu num bar. Este se encontrava na antiga área de abatedouros da cidade,
revitalizada e transformada num complexo de estabelecimentos de diversão noturna,
como a Lapa, no Rio de Janeiro. Era por volta das 16h.
Ali, todos deixamos nossas bicicletas, o meio de transporte mais comum da
cidade, e esperamos Gustavo e Andrea. Os dois saem do bar, cumprimentam algumas
pessoas do público – nós usávamos uma pulseira de papel rosa – esticam uma faixa
elástica branca, dentro da qual entram e de lá nos convidam.
Assim começa a performance, com o convite para adentrar a área delimitada.
Pensando melhor, talvez já tivesse começado antes, desde o momento em que os
artistas saíram do bar e cumprimentaram o público.
Dali, seguimos todos, artistas e público, dentro dos limites impostos pela faixa
elástica, caminhando pelas ruas da cidade. Antes da saída, uma regra é estabelecida:
não se pode falar durante toda a duração da jornada. Os artistas sabem a priori o
trajeto que será percorrido, então conduzem o grupo por ruas selecionadas por eles
nos dias anteriores ao acontecimento da performance.
A entrada na área criada pelos artistas obviamente gera uma noção de “dentro”
e “fora”, “centro” e “periferia”. O fator mais curioso que advém dessa entrada é o
senso de comunidade que emerge entre os participantes, quase que instantaneamente.
Lembro de que nos entreolhávamos, encabulados, mas já nos sentíamos parceiros,
próximos de alguma maneira.
Conforme o grupo dentro da faixa elástica segue adiante, as noções de centro e
periferia se alteram e, muitas vezes, se invertem. A faixa elástica permitia que o nosso
espaço, o de “dentro”, fosse regulável, assumisse variadas formas, mais ou menos
amplas. Detalhes da arquitetura saltam aos olhos, tornando-se o “centro” em alguns
momentos, naquela caminhada pouco usual. Os outros transeuntes observam,
interagem. Eles faziam perguntas, mas nós não respondíamos, em respeito ao voto de
silêncio feito no ponto de encontro. No máximo, um dos artistas, sem usar uma
palavra sequer, levantava a faixa, como que estendendo o convite àquele que nos
interpelava.
Havia momentos de pausa em que os artistas interrompiam a caminhada e
observavam o entorno. Nós acatávamos e fazíamos o mesmo. A sensação de estar em
silêncio junto a outras pessoas me remetia a momentos meditativos em igrejas.
Numa dessas pausas, creio que a última antes do desfecho da performance, os
artistas deixaram a área da faixa e seguiram cada qual uma rua diferente. Ficamos
literalmente numa encruzilhada e foi a primeira vez, desde que saímos do ponto de
encontro, que alguém disse alguma coisa. De dentro da faixa, avistávamos os dois
artistas, quase no fim de cada rua, encarando o grupo e esperando uma possível
decisão. “Vamos, gente!”, alguém disse, mas o fato é que ninguém arredou o pé e,
depois de uns cinco ou dez minutos (será que foi só impressão?), os artistas voltaram,
entraram na faixa e nos conduziram por uma das ruas (a título de curiosidade: a que
Andrea tinha escolhido). Foi certamente o momento mais “tenso” da caminhada, e
fico me perguntando até hoje o que teria acontecido se o grupo optasse por seguir um
dos artistas.
A performance se encerraria alguns metros à frente, numa praça enorme, onde
os artistas distribuíram pipas entre os participantes. Brincamos por minutos a fio até
que o grupo naturalmente foi se despedindo, decidindo quem levaria as pipas (eu cedi
a minha), e finalmente, se dissolvendo.

Seguir uma pessoa sem que ela perceba. Decidir até onde/quando seguir.
Em Walking Poem Rio, os artistas criadores da performance se fazem
presentes, acompanhando o público-participante na jornada pelas ruas, em grande
parte, de maneira diversa: via tocadores de mp3. Alguns desses artistas também
aparecem em pontos específicos da caminhada, mas diferentemente de Aqui Enquanto
Caminhamos, não fazem todo o percurso ao lado do público. Walking Poem Rio é
uma jornada solitária, ainda que na companhia (eventual) de performers e (constante)
de transeuntes, feita individualmente por cada participante. Nesta performance, os
participantes não encontram uns aos outros.
A obra integrou a programação do Festival Panorama, um dos maiores
festivais de dança contemporânea do Brasil, em sua edição de 2008. O público era
informado, ao comprar o ingresso, sobre o horário em que deveria estar presente no
ponto de partida da performance. O ponto em questão era um sebo próximo à Praça
Tiradentes, no centro do Rio de Janeiro. Ali, cada pessoa recebia um aparelho tocador
de mp3 e uma pulseira verde, que a identificava (aos performers espalhados pela
cidade, inclusive) como participante da performance. O tocador de mp3 só podia ser
manipulado pelos performers, que selecionavam as faixas a serem reproduzidas ou,
dependendo do ponto do trajeto, retiravam o aparelho dos participantes.
As mensagens em mp3 alternam momentos mais poéticos, que inspiram a
contemplação do entorno sob um novo ângulo, e outros de cunho mais diretivo, sobre
o que fazer a seguir, aonde ir, ou quem encontrar, por exemplo. Há trechos com
gravações musicais, que compõem uma espécie de trilha sonora de alguns momentos
da caminhada, e períodos sem gravação alguma, geralmente quando há interação com
um performer. Muitas vezes, os performers em Walking Poem Rio são invisíveis aos
olhos dos participantes, pois tendem a se misturar entre os transeuntes. Trabalham à
paisana, certificando-se de que os participantes estão seguindo o trajeto previsto. Há
exceções nessa invisibilidade, tais como o performer vestido de coelho, à espera do
público na saída do metrô Glória, ou a bailarina que carrega uma sacola d’água e
sugere que o público a siga, num momento que leva o participante a uma situação de
perseguição, típica de filmes de ação.
As situações provocadas na performance fazem uso de elementos específicos
presentes no trajeto pré-definido pelos criadores. Em dado momento, o participante
recebe uma pedra portuguesa, que mais à frente será usada para preencher uma
calçada esburacada. Revelam-se, dessa forma, questões prementes da cidade, como
neste caso a má-conservação de certas áreas. Seguindo as instruções, os participantes
têm a chance de se surpreender com locais menos conhecidos, detalhes imperceptíveis
no caos da multidão (em especial a do centro da cidade), além de se expor a
experiências sensoriais pouco usuais. Um exemplo disso, é o momento em que ao sair
de uma academia de dança de salão, à qual foi guiado através de fotografias do
caminho, o participante é apresentado a um dos performers (neste caso, eu), que lhe
pede para fechar os olhos. O participante é, então, guiado ao longo de toda a Rua da
Lapa.
O encerramento da performance não é menos sensorial: numa parada de
bonde, o participante recebe uma bala de coco (artesanal, comumente vendida pelos
camelôs da área) de um performer, que lhe diz: “Quando a bala acabar, a sua jornada
terá terminado”. De onde podemos inferir que, aquele é precisamente o fim da
performance enquanto roteiro planejado pelos artistas. Entretanto, o fechamento para
cada participante vai depender do tempo que a bala levar para se dissolver em sua
boca. Ou seja, o participante continuará performando, mantendo-se num estado
sensível de prontidão e conexão com o entorno, ainda que a infra-estrutura para que a
performance aconteça nos parâmetros pré-definidos pelos artistas já não vigore mais.

A poetização do espaço urbano: o flâneur no reality show invisível

Lembrar da primeira vez em que esteve num lugar. Contar sobre o lugar, o que fez lá, como
voltou para casa... Não usar palavras.

Tanto Aqui Enquanto Caminhamos como Walking Poem Rio me possibilitam


conexões com o “delírio ambulatório” proposto por Oiticica na medida em que ambas
as obras consistem, numa leitura mais genérica, de uma caminhada cujo principal
direcionamento é a poetização do espaço urbano. Por outro lado, este flanar pela
cidade não tem mais o tom romântico do flâneur a que o texto de João do Rio
naturalmente se reporta. Trata-se, sem dúvida, de andanças de vadiagem; no entanto,
como nas palavras de André Lepecki, “eis que o passeio pela cidade metropolitana,
até então liso, passa a revelar insuspeitadas fissuras.”
Em outras palavras, ainda que sejam jornadas exploratórias pela cidade, em
que o público-participante se entrega ao roteiro prescrito pelos artistas-performers, as
performances citadas opõem-se à noção original de flâneur quando abdicam de certa
ingenuidade e descompromisso com o trajeto para intencionalmente suscitar
estranhamentos, visualidades carregadas de discursos alternativos.

Até onde o seu céu alcança?

“The invisible reality show” (O reality show invisível), conceito desenvolvido


pelo diretor de teatro dinamarquês Eero Tapio Vuori e utilizado pela plataforma
hello!earth na construção de suas obras, “faz a performance emergir na mente do
espectador, deixando-o aberto para experiências múltiplas, pessoais e exclusivas”
(GOMES, 2007). Conjuga princípios interativos, experiências sensoriais e
sinestésicas, em propostas onde a realidade cotidiana do local funciona como cenário
performático ou “espaço de performação” (MELIM, 2008, p.9), e permite que acasos
e dinâmicas próprias dos movimentos do espaço urbano interajam com atos
intencionais, fabricados pelos artistas-criadores. Assim sendo, não se trata apenas de
criar ficções teatrais a serem vividas pelo público-participante fora do espaço cênico
convencional, mas sim promover uma reconstrução afetiva do lugar a partir do
despertar subjetivo de sensações. Vera Maeder, performer e diretora da plataforma
hello!earth, resume da seguinte maneira: “A presença do público é a dança desta
performance”.
O crítico cultural Brian Holmes, em seu “Manifesto Afetivista” (tradução
minha), propõe um entendimento de existência no mundo, pró-afeto e pró-intimidade,
enquanto intercâmbio de escalas. Escalas estas que vão desde o espaço mais íntimo
até o global. Segundo ele, “para estabelecer uma conexão com a arte afetivista,
criticá-la e recriá-la, é preciso saber não apenas onde novos territórios sensíveis
emergem (...), mas também em que escala (HOLMES, 2009)”. A escala das
mobilidades diárias, residência da expressão popular, das artes visuais tradicionais, do
espaço público e da natureza em coexistência com a presença humana, está a um nível
da escala mais íntima. É interessante perceber que ambas as performances citadas
neste trabalho atuam exatamente nesta mesma escala. “A intimidade e suas
expressões artísticas talvez sejam o que vai surpreender o século XXI”, afirma
Holmes, em tom profético.
Nesse sentido, aproximo a noção de escala das mobilidades diárias de Holmes
daquela em que, segundo Michel de Certeau, vivemos enquanto “praticantes
ordinários da cidade”. Eis um espaço cujos caminhos se respondem entrelaçados,
onde convivem “poesias ignoradas de que cada corpo é um elemento assinado por
muitos outros” (CERTEAU, 1998, p.171). Um espaço ou escala propenso ao
turvamento da percepção desses cruzamentos de caminhantes “cujo corpo obedece
aos cheios e vazios de um “texto” urbano que escrevem sem poder lê-lo”. Ou seja, a
proximidade das trajetórias individuais cega, torna insensíveis às mesmas aqueles que
caminham; impede que uma certa estranheza do cotidiano venha à tona.
Assim, Aqui Enquanto Caminhamos e Walking Poem Rio funcionam como
“práticas estranhas ao espaço “geométrico” ou “geográfico” das construções visuais”
(CERTEAU, 1998, p.172), que remetem tanto a uma nova operação no entorno, assim
como a uma espacialidade renovada do mesmo. O caminhante atualiza o conjunto de
possibilidades e proibições organizados pela ordem espacial vigente no momento em
que se desloca pela cidade, uma vez que em suas idas e vindas, nas improvisações
inerentes às andanças, mudam ou deixam de lado elementos locais.

Quão presentes podemos verdadeiramente estar?

A operação diferenciada do público nessas caminhadas performativas também


me oferece a oportunidade de endereçar uma questão pulsante quando se trata de
trânsitos entre dança e performance: o papel do espectador.
Jacques Rancière nos adverte para a armadilha de transformar espectadores
em atores, na tentativa de supostamente tornar o público mais “ativo” no desenrolar
de um acontecimento cênico ou performático. Cita como características da arte
contemporânea o cruzamento de fronteiras e a nebulosidade da distribuição de papéis,
quando “todas as competências artísticas desviam-se de seu próprio campo de atuação
e trocam papéis e poderes umas com as outras” (RANCIÈRE, 2007, p.280, tradução
minha). Dessa maneira, há espaço para peças teatrais sem palavras e espetáculos de
dança com palavras, instalações e performances ao invés de obras ditas plásticas, por
exemplo.
Segundo o filósofo, há três maneiras de lidar com o que ele chama de
“confusão de gêneros” na arte contemporânea: 1) através do revival da noção de “obra
de arte total” (Gesamtkunstwerk), que pode representar uma combinação da apoteose
de fortes egos artísticos com um tipo de consumismo hiperativo; 2) através da ideia de
hibridização dos meios artísticos, que complementa a visão de que estes são tempos
de individualismo em massa, expressado pela incansável troca de papéis e
identidades, realidade e virtualidade, vida e próteses mecânicas (e eventualmente
levariam às mesmas consequências trazidas pelo item anterior); ou 3) através da
transformação do esquema causa/efeito.
Rancière defende esta última na medida em que ela invalida a oposição entre
atividade e passividade baseadas num critério de desigualdade. Em outras palavras,
anula o pressuposto de que um espectador “passivo” é algo menor, e por essa razão,
deve-se alçá-lo à categoria de “ativo”. Não por acaso há tantos espetáculos de teatro e
dança em que o público é praticamente arrastado à cena. Nesse entendimento de
atividade do espectador não se cogita a possibilidade de ser ativo e estar sentado na
plateia.

“Ser espectador não significa uma passividade que deve ser convertida em atividade.
É nossa situação normal. Nós aprendemos e ensinamos, agimos e sabemos, através da posição
de espectadores que conectam o que veem com o que acabaram de ver, ouvir, fazer ou sonhar.
Não há um meio privilegiado, assim como não há um ponto de partida privilegiado. Há pontos
de partida em toda a parte, e divisores de águas a partir dos quais aprendemos coisas novas,
desde que antes nos desfaçamos da pressuposição da distância, da distribuição de papéis e,
finalmente, das fronteiras entre territórios.” (RANCIÈRE, 2007, p.279, tradução minha)

O autor ainda sugere que artistas, assim como pesquisadores, devem promover
através de suas obras um espaço onde “a manifestação e o efeito de suas
competências se tornem dúbios na medida em que eles moldam a história de uma
nova aventura em uma nova expressão idiomática”. Então, naturalmente, atrairão
espectadores que, emancipados, serão capazes de fazer suas próprias traduções e
apropriações.

Coletividade temporária: considerações finais

Esvaziar sua bolsa, contendo coisas de que não precisa mais, numa calçada. Deixá-las e ir
embora.

Penso que Walking Poem Rio e Aqui Enquanto Caminhamos não são obras
que apenas possibilitam ao público “levantar das poltronas” e se engajar em ações
entendidas como mais “ativas”. Nelas, o público é convidado a integrar uma outra
forma de organização coletiva, ou “coletividade temporária”, como propõe mais
especificamente a performance de Ciríaco e Sonnberger. Mesmo a caminhada
solitária de Walking Poem Rio promove um estranho senso de pertencimento: em
relação aos outros transeuntes, que em geral não têm a menor consciência de que a
performance está acontecendo (o que também vale para o caminhante-performer); e,
até mesmo, em relação aos outros caminhantes-performers, que estão fazendo sua
jornada mais à frente ou logo atrás (cada participante sai do ponto de partida da
performance em intervalos de 15 minutos). As performances em questão não são
meros deslocamentos das indicações, sinalizações e guias dos espaços expositivos
e/ou cênicos para as ruas. São obras “penetráveis”, como no universo de Oiticica, cuja
configuração é porosa o suficiente para absorver decisões, improvisações e limites
sugeridos pelos participantes. Fato este que as tornam extremamente complexas e
multifacetadas em seu planejamento e implementação.

Aqui estivemos.

REFERÊNCIAS

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http://www.youtube.com/watch?v=taKhAdBvTUc. Último acesso: 17/08/2011.

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http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia/ho/index.cfm?fuseaction=d
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hello!earth, Walking Poem Rio (2008). Disponível em:


http://www.youtube.com/watch?v=Wg-yR4RGkIU&feature=related. Último acesso:
17/08/2011.

Here Whilst We Walk (Aqui Enquanto Caminhamos). Disponível em:


http://www.youtube.com/watch?v=1n4nOksqGMA. Último acesso: 17/08/2011.
RIO, João do. A alma encantadora das ruas. Obra de domínio público disponível em:
http://www.biblio.com.br/defaultz.asp?link=http://www.biblio.com.br/conteudo/Paulo
Barreto/almaencantadoradasruas.htm. Último acesso: 17/08/2011.

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Rio de Janeiro, vol. 2, 2003, p.7-11.

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RANCIÈRE, Jacques. “The emancipated spectator”. ArtForum. New York, March


2007, p.271-80.
ETNOGRAFANDO PROCESSOS CRIATIVOS EM DANÇA CONTEMPORÂNEA: O ENSAIO ENQUANTO
PRÁTICA CULTURAL

RENATO JACQUES DE BRITO VEIGA [UFMG]

É forçosamente mais confuso


continuar sendo claro
quando se quer misturar tudo.
[Jean-Luc Godard]

O conhecimento não descobre segredos,


E sim dialoga com mistérios
[Helena Katz]

Esta noite eu vou a campo procurar o que está fora dele.


[Blenor Ragie]
Este trabalho contém uma história, que começa com a minha própria, mas,
espero, não termina com a mesma. A maneira como experimento isso de que falo está
repleta de estranhamento. E é como se o meu próprio texto já não me dissesse respeito,
ou seja, é como se ele já não me respeitasse. A meu ver isso é bom. Porque segue o
pressentimento que carrego desde o início, de que para falar de alguma coisa, para
escrever sobre ela, porções dessa mesma coisa precisam se alastrar pelo texto, apoderar-
se dele ou, pelo menos, conceder a ele algo da sua estrutura. Em outras palavras, é como
se para descrever flores fosse necessário tornar-me uma, estranha e provisoriamente.
Em março de 2010, eu cheguei a uma mulher, uma profissional da dança
contemporânea de São Paulo que, naquele momento dava início a um processo criativo
que resultaria numa peça, num trabalho denominado Público – 3 atos e um livreto. Ela
dirigia cinco bailarinas e, como ela própria me disse na época, o motor desse trabalho
residia no conceito da autoficção, cuja consistência eu não busquei identificar de
imediato, apesar de ter suspeitado imediatamente dele, pois, o que não seria autoficção?
Em seguida, suspeitei da minha ingenuidade.
O trabalho de campo que ali principiava se desenrolou da seguinte
maneira: eu passei a freqüentar os ensaios do grupo. Eu chegava com elas e ia embora
com elas, e ao longo de cinco meses perdi dois ou três encontros. Certo dia, após o
término do ensaio, enquanto se discutia o andamento do processo, elas me pediram uma
impressão geral e foi assim que um comentário mais ou menos efetivo, gerado por uma
brecha, se fez com o tempo, uma colaboração. Eu conquistei a confiança delas e o meu
próprio trabalho, ou seja, a minha produção textual diária, passou a repercutir no
desenvolvimento geral de Público. Ao fim e ao cabo, eu havia me tornado, como assim
consta nos créditos do trabalho, um colaborador. O programa continha textos meus e
com isso, eu fui incorporado. Meu objeto de pesquisa se tornara sujeito, eu objeto. E
isso é lindo.
O caminho percorrido na elaboração desta etnografia se traduz da seguinte
forma: de duas a três vezes por semana eu ia a campo, registrava minhas impressões e,
ao fim de praticamente todos esses dias, já em casa, à maneira de um sampleador, eu
lavrava o material bruto, seguindo a intuição de que era necessária uma mixagem para
tornar patente a existência de uma mistura.
No meio do caminho eu me dei conta de algo: o trabalho daquelas pessoas,
daquelas seis bailarinas, não era, como eu pensava no início, se apresentar, no palco,
para uma platéia. O palco não era mais que um recorte, uma espécie de interrupção do
processo cuja função seria interrompê-lo para que o olhar do público pudesse então se
manifestar. O que o público encontraria ao “fim” do processo, era, então, o seu “meio”,
apreciado através de um ritual peculiar de ação recíproca entre o palco e a platéia.
Portanto, é a prática diária do ensaio o que contém o ofício daquelas pessoas. É para lá
que elas vão, todos os dias, situar seu corpo num jogo freqüente com o inacabado, para
que, no final das contas, um paradoxo patente se apodere da resultante daqueles ensaios
e os torne um pretenso produto acabado. A indústria cultural, termo que me desagrada
por completo, visto que a meu ver qualquer indústria é de saída cultural, a indústria
cultural opera aqui uma perversidade, ou, no mínimo, um disparate. Estamos
consumindo percursos como se fossem pontos finais, processos enquanto identidades
estanques.

10 de abril
Seis mulheres em torno de cadernos, folhas, textos e fotos. Um salão bem
grande. Piso de madeira e nada de sapatos. O salão não tem sequer uma cadeira e o
corpo é chamado a se sustentar por si. O corpo e o chão. Tem início o ensaio e acolho
um sorriso. Para o aquecimento elas utilizam enormes bolas vermelhas e é uma cena
muito engraçada presenciar seis mulheres quicando sobre essas bolas, ao som do jazz.
Três delas já tiraram as meias. Ao passo que a bola faz coisas incríveis, as peças mais
pesadas de roupa vão sendo abandonadas.
Durante o intervalo uma delas me conta que nem tudo nos textos é
verídico. As fotografias são autênticas.
Em Público, cada uma das bailarinas assume uma espécie de persona, cuja
particularidade se torna patente já no processo de predisposição corporal. Ao som de
uma mesma trilha sonora, elas cultivam um universo semântico íntimo, “cada uma na
sua duração, de acordo com o dom que lhe cabe”. A música informa, assim, a unidade
de experiências a princípio desagregadas. É bonita a cena. Há aqui algo de transe. Uma
delas registra uma coerência um tanto espasmódica, embrenhada em si mesma numa
espécie de curto-circuito nervoso. Outra delineia um nexo expansivo cujo aspecto é da
ordem do heavy-metal, deslocamentos freneticamente arredondados que vão da ponta
dos pés à cabeça. Outra se inscreve numa lógica pueril, composta de sorrisos caricatos e
evoluções serelepes.
Aqui, os achados são manifestados em movimento. O desafio é calcular e
coordenar essas expressões íntimas e torná-las públicas, através de uma coreografia de
imagens atemporais e multidimensionais, que acontecem num espaço vazio e, portanto,
original. Ao que parece, o obstáculo a ser superado aqui, num metamodelo dramático do
próprio processo criativo, é a comunhão fecunda entre universos apartados.

18 de abril
Cinco bailarinas e uma diretora decidem explorar criticamente o conceito
de autoficção, recurso este que teria sido abundantemente aproveitado pelas artes nas
últimas três décadas. Público, ainda em pleno processo de criação, é composto, a
princípio, por cinco corpos femininos, uma meia dúzia de cadernos em que residem
alguns textos escritos a mão, fotografias antigas, um projetor, uma câmera, uma diretora
e, desde já, um observador.
Uma das primeiras cenas da peça é a que tento rapidamente descrever
aqui. Uma bailarina está assentada-ajoelhada no chão, praticamente no centro do
tablado, com as pernas dobradas e afastadas uma da outra, de modo que suas mãos
repousam sobre elas. O espectador não pode distinguir os pormenores de tal disposição,
contudo, porque ela está de costas para a platéia. Pouco a pouco, a delicadeza de suas
mãos vai desenhando movimentações graciosas, e o que desvela a sutileza das manobras
é a câmera apontada, que leva à parede o efeito poderoso de um primeiro plano. O
prenúncio de uma peça que parece se ocupar justamente da revelação daquilo que não se
oferece à vista. Em Público, os textos e as fotos se evidenciam por meio da câmera que
os atravessa em proveito de uma reprodução deles na parede branca.
Durante a peça, cada bailarina freqüenta a intimidade de uma diferente
qualidade. A diretora me conta que essas qualidades, esses “estados de sensação”, se
traduzem em “frases de movimentos que podem ser acessados a qualquer momento” e
resultam de uma série de improvisações que elas realizaram nalgum momento anterior
do processo, em que, de olhos fechados, eram instadas a recobrar as reminiscências de
seus percursos individuais pelo universo da dança. Trata-se, digamos, de personas cuja
coerência da constituição estaria ancorada em lembranças individuais, inscritas no
desenrolar de uma vida de práticas e processos corpóreos.

27 de abril
Há uma espécie de história sendo contada aqui. “Quando fecho os olhos
eu tenho resquícios do meu cérebro primitivo, com certeza eu fui uma lula colossal”. O
texto burla, ludibria. E se a palavra escrita responde pela porção ficcional da peça, o
corpo, antagonicamente, é o registro autêntico de uma ocorrência. O mesmo corpo que
antes saltitava infantil torna-se agora uma lula colossal. Nesse instante, ao passo que o
texto resta em meio à falsidade aparente, o corpo se torna a verdade exata de uma
mentira enganosa, pois no corpo, que é construção incessante, a dança é uma fala que
descreve seus objetos através dos seus próprios pertencimentos. Aqui, nada separa a
ocorrência daquilo ao qual ela se refere. Dança é quando e depois [Katz, 1995: 15].
A diretora me conta que os textos a serem projetados geram controvérsia.
Rijas como são, as palavras expõem à insubordinação qualquer arranjo – não verbal –
que se queira instaurar. O que é por demais teso acaba deixando a descoberto a
desordem subjacente.
“O mundo se alargava e eu esticava meus braços e pernas para alcançá-
lo”; “eu queria ser um super-herói”; “quero morrer com vida”; “Eu não quero ser
mais eu”; “Estar em tudo e em lugar nenhum”. Vejamos que este “eu” é justamente o
que permite sustentar, aqui, uma ambigüidade indispensável.

7 de maio
O conceito operatório que me parece mais condizente com este trabalho é
o conceito de drama, proposto por Jean Duvignaud, em seu livro Sociologia da Arte:
O “drama” supõe uma découpage [um recorte] da experiência individual,
enquanto esta última estiver comprometida num conflito, numa ação
deliberada, numa intriga em que participem a maior parte dos “atores”,
que definem o seu lugar na trama coletiva [...] Este conceito autoriza,
enfim, o crítico a falar de uma obra de arte como de um esforço em
procurar vencer um obstáculo, obstáculo da receptividade fraquejante, a
receber uma mensagem inesperada ou mal entendida, obstáculo do
afastamento e da dispersão ou da separação irredutível em castas, classes,
em grupos, obstáculo da transformação do sentido dos sinais. Obstáculo de
tudo o que impede a comunicação total de que o artista, qualquer que seja
a matéria de que se serve, não pode deixar de tentar realizar [: 36,37].

8 de maio
O real andamento da dança é da ordem do mito e o mito que mais se
parece com este trabalho é o mito de Salomé, a púbere princesa que uma vez rejeitada,
dança pela decapitação do homem que preferia o amor de Deus.
13 de maio
Hoje elas me afirmaram que o corpo não ocupa o lugar de outra coisa, ele
opera aqui uma comunicação. Ontem elas disseram que o corpo interessado neste
trabalho é o corpo da experiência. Não há representação.
As partes têm nomes e o nome da terceira parte é “Para Fazer Parte”.
Aqui, elas exploram quedas. “Como principiar uma ruína? Uma época de coisa
alguma? Como tornar-me imprevisível?”. A diretora olha para o que eu estou vendo e
diz, “Incomparável! Vai se desfazendo”. A conversa que conduzem é impensável sem a
freqüência do corpo, dado que é nele que se produz e se motiva ora o ridículo, ora o
zelo, ora o sublime. Para fazer parte é preciso ludibriar os confins da extensão. “Agora
você é uma uva suculenta”. A dança como prática do por vir.

31 de maio
Algo a respeito do uso da apropriação em Público.
Primeiramente, a trilha sonora tem a forma de uma sobreposição de faixas,
a voz delas e as músicas originais. Portanto, em algum momento dessa liturgia, o
público se depara com uma canção de Leonard Cohen, que é um poema de Garcia
Lorca, em que a voz do compositor reparte a cena com a voz de uma bailarina,
estabelecendo-se naquele momento uma posição de equidade. Essa junção de faixas
sonoras, deliberada em estúdio, aponta para uma relação com a música, nesse caso, de
apropriação. Um modo de comunicar, refeito, o objeto fingidamente estagnado pela
“indústria cultural”.
Em Público, a câmera e o projetor interpretam personagens fundamentais, o
que não é escondido, sequer dissimulado. Operar a câmera é parte integrante do
arcabouço disponível de deslocamentos. O aparelho se evidencia – os fios harmonizam
o cenário. São manipulados e mudam de lugar.
No material que se produziu para os potenciais parceiros institucionais,
estatais em sua maioria [públicos], encontra-se a imagem de uma citação redigida a
mão. Análoga ao liame que fixa a voz de uma bailarina à canção originalmente
produzida, há aqui a relação entre a escrita manual e um texto antecedentemente
publicado. Novamente uma apropriação, transitória, que redefine o aspecto do conceito
de público. Eis o texto redigido a mão:
O corpo como representação renuncia à sua soberania, deixando a imagem
do corpo disponível para seu restabelecimento em redes de símbolos
distintas daquelas do mundo real – isso não é necessariamente negativo, já
que sugere a possibilidade de reinventar continuamente a nossa identidade
e o nosso papel.
Certa vez me disse a diretora, “eu gosto dessa inflexão que não justifica
muito; afrouxa-se um absurdo como se fosse a coisa mais funcional do mundo”. É a
folia aprontando caminhos.

11 de junho
É curiosíssimo ser, por um prolongado período de tempo, o expectador
particular de um processo de criação que, não entendo bem porque, não é menos
interessante que o produto final. “Dá uma loucura no olho”. O ensaio é um fazer. E o
que essas pessoas fazem, antes de tudo, é ensaiar modos de experimentar e atuar no
mundo através da própria experiência do inacabado, do todavia por vir. Hoje,
relembrando o primeiro encontro, em que as vi sobre fotos e cadernos, fiquei pensando
no fato de havê-las encontrado num momento em que nem elas tampouco eu sabíamos
exatamente no que aquilo ia dar.
Citando Antônio Teixeira em A Soberania do Inútil e misturando um
pouco as coisas:
O ensaio se vale do prazer estético que sua leitura produz como uma
condição essencial de transmissão. O engajamento expositivo do tema aqui
coincide com o cuidado estético da forma, na medida em que se visa
produzir, da parte do leitor, a adesão que deriva não do pensamento
racional, mas da maneira pela qual sua expressão nos cativa [...] Ao
ensaísta interessa menos conhecer o objeto, tal como ele se encontra
determinado em seu campo conceitual, do que encontrar uma nova maneira
de exibi-lo [...] Por saber que não existe, como quer fazer crer a ideologia,
uma hierarquia de conceitos na qual um elemento à parte poderia
funcionar como garantia de verdade, o ensaísta reconhece tanto a
precariedade quanto o caráter provisório como aspectos essenciais do
sistema que ele submete à experimentação. [:17,18,19].
É a metáfora do bricoleur se atualizando, sem a pretensa naturalidade da
função, realizando composições inéditas a partir de materiais heteróclitos.

13 de junho
Hoje presenciei um aborto criativo. A cena parecia absolutamente correta e
de repente pára de funcionar e passa a ocasionar a dúvida geral. Até que uma delas
aponta, “A gente não precisa se apegar, não é um segredo, estamos apegadas a essa
cena”. Um desânimo toma conta e elas se sentam cada uma num canto, com cara de
tédio. “Assim está ótimo!”, brada a diretora. E aquela se torna então a cena correta. O
acaso produz a solução. Do real para o imaginário. Da natureza para a cultura.

17 de junho
Hoje eu não fui vê-las, não fui observar seus jogos de modos aventureiros,
não fui encontrar sua sorte. Elas aperfeiçoam a estrutura do meu papel. Recobrem
minhas frases com uma trama metálica fina. Eu lhes componho especialmente esta
coreografia. Por meio de uma cerimônia festiva, ritual, particular, eu lhes interpreto a
participação. Minhas palavras conformam um bailarico acadêmico. É absoluto vê-las se
estendendo, espreguiçosas. O corpo, ao passo que se prepara, entorna seu estatuto,
transfigura-se em artigo bom para morfoses metáforas. Trata-se de um aproveitamento,
cujo espetáculo é a intensificação da espessura humana. “Para fazer parte é preciso
compartir essas frivolidades. Desocupando, esvaziando, esvaziando, até perder a
importância. É muito bom quando você não sabe o que fazer – desponta algo incomum.
Quanto mais esquisitice melhor”.

24 de junho
O corpo se estende. Abre delongas na descompostura e comprime as
beiradas. Achega todo o organismo, os tecidos. No preparo dos corpos, o imaginário é
tramado de forma a exaltar suas freqüentações com o chão, que lhe massageia cada
tamanho de intensidade. O olhar, em Público, é total. Entrevê tudo. Os primeiros
momentos do ensaio de hoje constituíram folias, divertimentos e corpos totais. As mãos
sempre à mostra. Os pés e o rosto. É langorosa e demorada a fala que conduz o preparo
desses corpos inominados. Ao passo que escrevo a fala invade o texto. A voz abandona
aqui um rastro. “Beirando cada célula. Reunindo as extremidades”. A dança ordena
coisas inacreditáveis. Corpos palavreando organizações espontâneas. “Animando a
musculosidade da coluna. Despalhando no chão a sola dos pés. Para uma troca
respiratória”. Hoje eu fiquei pensando, para ensaiar é preciso resguardo. Não se ensaia
em qualquer lugar. É necessária alguma segurança para ocasionar uma tal licença.
Alguma longitude suficientemente incontestável para se estabelecer um mundo figurado
por ordens outras. Num sábado pela manhã nem uma mosca interrompe o que ali tem
lugar. Muita concentração para abrir o corpo às intermitências do ser. Hoje a diretora me
disse, “o conceito de espetáculo não faz mais sentido”. Hoje uma bailarina me
escreveu, “tenho receio com o termo ‘dança contemporânea’”. Extensão indefinida de
práticas distintamente complexas. “Comovendo-nos pela difusão das articulações, pela
energia que circula. O espaço está vivo. Está com ela. Ela altera meu corpo. O espaço
tem densidade. Eu enxergo tudo”. Hoje presenciei os hábitos de uma trama que infunde
ao corpo a coerência de uma brincadeira ao longo da qual, afetado pelo próprio afeto, o
belo se torna difuso. Os mesmos movimentos, completos e inacabados.

25 de junho
Um exame de ocorrências fora do traço. Uma escolha. Meio de um
processo – tinta preta sobre papel branco. Um texto púbico é redigido ao ritmo
entrecortado de risos generosamente promovidos por gracejos que ludibriam ilesos o
tempo e o todo. Divertimentos que permitem distinguir através da sua espessura a
seriedade inquietante desses objetos, suas fases e suas transições. A folha de papel e a
tela. Superfícies hospedeiras. Símbolos mágicos. Agora a câmera deflagra seu próprio
registro – um metaregistro. Na parede branca uma sobreposição. A impressão de uma
metáfora enquanto metáfora da impressão. Ao passo que especulam o olhar, elas
exercitam o manejo da câmera filmadora. “Muita concentração no olhar – ele é tudo
aí”. Expansão é o nome mais recorrente dessa “passagem”. Passo a passo o corpo
alcança os aspectos de uma qualidade. “O olhar encolhe lá pra bacia e depois cresce
no espaço”. Ontem alguém disse que na dança a intelectualidade diz respeito ao corpo
na sua totalidade. “Eu percebo, meu corpo é transpassável”. Nietzsche certa vez
escreveu: eu sempre escrevi meus trabalhos com todo meu corpo e minha vida, não sei
o que querem dizer com problemas intelectuais.
Hoje, durante as quedas que desabotoam a terceira parte, eu fiquei
pensando nas figurações míticas da queda. O erro, a falta, a culpa e o pecado. O engano,
a infração perpetrada antes de toda existência. Cinco mulheres explorando caimentos,
digo, quatro, uma delas paira profana em giros incólumes por sobre os
desmoronamentos. Cinco bailarinas atualizando a decadência. As representações
desaparecem e resta, restabelecida, a fina e incontestável imanência do corpo que
coincide consigo mesmo. Ontologia em suspensão. Um trabalho que burla
copiosamente a propriedade ontológica das coisas. A parede é parede. E é também
sujeito de uma imagem. O corpo é uma imagem. E é também mero sujeito de uma
câmera filmadora. Na terceira parte, para fazer parte, o tempo é mero andamento do
presente. Dádiva de uma comunhão que se dá pela mera assiduidade da presença. “É
bom porque a gente não sabe direito o que está acontecendo”. O juízo se converte em
passatempo, renega imperativos e conquista importâncias outras. “Aí baixa nela uma
lula colossal. Sobe”, ela emendou, “sobe uma lula colossal”.

26 de junho
“Que tal uma massagem?” Duas à maneira de uma, elas se embolam umas
sobre as outras. É bonito e dá vontade de fazer o mesmo. Nesse momento eu me sinto
uma espécie de soldado-amante. Elas se sucedem e prosseguem com a massagem. Seus
arranjos são partes suas. Cada uma em seu fazer. O que a Nina põe em movimento é tão
dela que no dia em que a Déia a substituiu, “eu não levantei no dia seguinte, de tanto
que o pescoço sofria”. Preciso pensar num título para o meu projeto: as intermitências
do ser. Eu quase sinto o que elas estão sentindo. Ontem foi muito legal distinguir o
modo como os bailarinos enxergam o futebol pela improbabilidade das articulações.
Eles se impressionam com a flexibilidade. Ontem durante o ensaio elas ficaram
remedando o aquecimento dos jogadores. Muita risada. É medicinal testemunhá-las.
Relaxante ocular-corporal. “Quem for desfechando vai se rarefazendo, sem desperdiçar
esses apoios para espraiar as conexões, o semblante”. Ontem alguém falou em
sentimento oceânico. “A gente vai propagando espaço entre as vértebras. A coluna vai
aonde eu quiser. A coluna pode render hábitos”. Elas são hábeis tradutoras de metáforas
em movimento. “Espôndilos sublimes. Elásticos”. Ontem durante as conversações algo
restou mais ou menos nítido. As livres associações, em sua espontaneidade, tornam-se
uma espécie de método do encadeamento conjunto de tinos e pensamentos, no espaço
dos quais as imaginações propostas por uma pessoa vão afligindo e proporcionando
outras imaginações. Outras interpretações. Outras comunicações. Um entendimento
pactuado no tropo. “Desde o cóccix. Deitando vetores pelo espaço. Pelos pés”. Elas
agora ensaiam o olhar. “Pressinto as cores, adivinho cada detalhe, nunca pára, o olhar
está sempre caminhando”. Um etnógrafo, cinco bailarinas, uma diretora. Conquistas.
“Experimentando um olhar num espaço vivo. Vejo tudo. O olhar sempre em
movimento”. O ensaio é passagem, preparação, expansão. Um jogo, uma aposta.

7 de julho
Ao passo que realizo este trabalho, concluo, com suspeita prontidão, que a
criação funciona como uma disposição para a desordem, como uma competência para o
excesso, como uma harmonização para a irregularidade. Mas me pergunto, com isso, se
a manifestação da criação não teria se tornado, ao invés de uma transgressão efetiva da
nossa distribuição de riquezas, um acontecimento trivial, já plenamente ensaiado pela
estrutura mesma de uma sociedade eternamente por vir. Se a resposta for sim, a arte terá
se tornado, então, um sustentáculo adestrado da contínua e previsível modificação da
estrutura. A mudança, artisticamente estrutural, terá se tornado o nosso drama.

11 de julho

Na introdução de A Realidade Figurativa, de Pierre Francastel, me deparei


com especulações instigantes que se aplicam ao trabalho de investigação perante a arte.
Francastel se atém ao ponto em que o escrito vai de encontro ao plástico.
Existe um pensamento plástico como existe um pensamento matemático ou
um pensamento político [...] O pensamento plástico não se limita a
reutilizar materiais elaborados. Ele é um dos modos pelos quais o homem
informa o universo [...] O pensamento estético é, sem sombra de dúvida, um
desses grandes complexos de reflexão e de ação em que se manifesta uma
conduta que permite observar e exprimir o universo em atos ou linguagens
particularizadas [...] O artista cria e criando ele pensa tanto quanto o
matemático ou o filósofo, mas utiliza, para manifestar em condutas o
produto de suas intuições, um outro instrumento. Quer se trate de música
ou de arte figurativa, deve-se levar em conta que a obra constitui por si
mesma o meio que torna a comunicação possível. Parafrasear uma sinfonia
de Beethoven é tão inútil quanto descrever um Cézanne. Por um expediente
dessa natureza torna-se manifesto apenas aquilo que é comum à arte e às
outras formas contemporâneas do conhecimento: reconhecem-se valores,
mas sem atingir novos e, é evidente, que depois temos base para concluir
que a arte nada mais faz que ilustrar outras formas da ação [...] Uma obra
de arte não é jamais o substituto de outra coisa; ela é em si a coisa
simultaneamente significante e significada. [: 3,4,5]

14 de julho
Tudo o que observei até o presente momento me leva a crer que se trata de
um processo criativo em que, assim como nos filmes de Jean Rouch, o imaginário se
manifesta como uma realidade virtual, capaz de suscitar ações, de se converter em
imaginação criativa. Nesse sentido posso pensar o imaginário como prerrogativa da
realidade ou pelo menos uma enunciação sobre a realidade.
Rouch sabia que a etnografia só era possível se houvesse a crença na
palavra daqueles que construíam o mundo narrativo e, nesse sentido,
Rouch passou literalmente a palavra para Robinson, porque Robinson era
uma possibilidade de Oumarou Ganda. Como máscaras, estes personagens
davam conta de sua própria existência, crendo que era possível falar
através de um outro sobre si próprio. Esta forma de ser múltiplo e ser
verdadeiro, de não opor ficção e realidade, parece que Rouch não aprendeu
no cinema mas na Antropologia, mais especificamente com a cosmologia
Dogon, como relata no filme Mosso mosso. [...] “Eles narram um mito que
nunca aconteceu lá, mas foi em outro lugar, mas eles ‘fazem de conta’, e
‘fazendo de conta ficamos mais perto da realidade’. Mas isso pode ir muito
mais longe, e aí chego no que você dizia. Tenho consciência de ter ‘feito de
conta a vida toda. Fiz de conta que era engenheiro de estradas, fiz de conta
que era ex-combatente. Fiz de conta que lutei na guerra. Fiz de conta etc...
E era verdade” [Gonçalves, 2008: 117].

17 de julho
Hoje uma das cinco bailarinas envolvidas em Público, ao passo que meditava a
vinculação com o observador, com o público, com os olhos que concebem acontecimentos
extraordinários, que dispõem criaturas em transe, que entoam fados, se lembrou de um
trecho de Borges:
Ao outro, a Borges, é que acontecem as coisas [...] eu vivo, eu deixo-me viver, para
que Borges possa urdir a sua literatura, e essa literatura justifica-me. Não me
custa confessar que conseguiu certas páginas válidas, mas essas páginas não me
podem salvar, talvez porque o bom já não seja de alguém, nem sequer do outro,
mas da linguagem ou da tradição.

15 de julho
É o máximo vê-las se alongando, se espreguiçando. A preparação do corpo é um
estado de passagem, para um outro estado de passagem. Trata-se de um uso, cuja função é
ativar a corporalidade. O corpo, durante a sua preparação, ganha o estatuto de matéria boa
para transformar.
Agradecimentos:
Adriana Grechi, Andréia Guilhermina,
Valeska Figueiredo, Nina Giovelli,
Karime Nivoloni e Júlia Rocha.
Referências bibliográficas:

Dawsey, John C. “Victor Turner e a antropologia da experiência”. In:


Cadernos de Campo, n. 13, 2005.
Dawsey, J. C. “O teatro dos ‘bóias-frias’: repensando a antropologia
da performance”. In: Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 11, n.
24, 2005.
Duvignaud, Jean. “Sociologia da Arte”. Rio de Janeiro, Forense,
1970.
Duvignaud, Jean. “El Sacrificio Inutil”. México, Fondo de Cutura
Económica, 1997.
Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. “Dicionário Aurélio
eletrônico, século XXI”. Rio de janeiro, Nova Fronteira/Positivo
Informática, 2009.
Francastel, Pierre. “A Realidade Figurativa”. São Paulo, Perspectiva,
1982.
Gonçalves, Marco Antônio. “Ficção, imaginação e etnografia: a
propósito de Eu, um negro”. O real imaginado – Etnografia, cinema e
surrealismo em Jean Rouch. Rio de Janeiro, Topbooks, 2008.
Katz, Helena. “Um, Dois, Três. A Dança é o Pensamento do Corpo”.
Belo Horizonte, Fid Editorial, 2005.
Müller, Regina Pólo. “Ritual, Schechner e Performance”. In:
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 11, n. 24. [consultado: 23 de
junho de 2010]
Schechner, Richard. “The Future of Ritual”. New York, Routledge,
1993.
Teixeira, Antônio M. R. “A soberania do inútil e outros ensaios de
psicanálise e cultura”. São Paulo, Annablume, 2007.
Turner, Victor W. “Dramas, Fields and Metaphors: Symbolic Action
in Human Society”. Ithaca and London, Cornell University Press, 1974.
Turner, Victor W. “From Ritual to Theatre: The Human Seriousness
of Play”. New York City, PAJ Publications, 1982.
Turner, Victor W. “O Processo Ritual, estrutura e antiestrutura”.
Pestrópolis, Vozes, 1974.
Entre Materialidades e Sentidos: a sala de aula como evento performático

Heloisa Selma Fernandes Capel


Doutora
UFG
hcapel@gmail.com
GT 2: Corpo, memória e espetáculo

Resumo:
Há performatividade cênica na atividade cotidiana da sala de aula? Como ler os sentidos
de uma teatralidade identitária do professor em cena? Estas questões definem os eixos
sob os quais construímos a reflexão sobre as práticas escolares como práticas
performáticas, a sala de aula como espaço cênico. A definição de espaço cênico é uma
noção que se justifica pela materialidade que evoca. A aula não é um artifício subjetivo
da aprendizagem, mas está subordinada a um roteiro prévio em que estão definidas
indicações objetivas de sequências, convenções, conteúdos e atos. Materialidades
expressas em um repertório gestual, corporal e vocal que nos levam a à noção de espaço
performático. A performance implica em um jogo em ato, um jogo cênico em que se
utiliza a máscara. Materialidades no corpo e na voz, a máscara e o jogo cênico: estes
seriam os ingredientes da performance de uma aula. O espaço performático da aula-
conferência é um ato da cultura escolar autoritária em diversas manifestações. Estudar o
corpo como fenômeno cênico, sob o equilíbrio entre o que está dentro e fora de sua
materialidade, torna-se relevante para compreender a ação performativa do professor.
Vista sob esta perspectiva, a aula pode ser lida em suas subjetividades intencionadas e
subjugadas culturalmente. Como performance cênica dialogal e simulativa, a sala de
aula se insere na lógica dos jogos e, os jogos são representações com status de verdade
simbólica, elementos que precisam ser evocados por produzirem, influenciarem e
construírem sentidos e práticas culturais.

Palavras-chave: corpo, performance, sala de aula.

Há performatividade cênica na atividade cotidiana da sala de aula? Como ler os


sentidos de uma teatralidade identitária do professor em cena? Estas questões definem
os eixos sob os quais construímos a reflexão sobre as práticas escolares como práticas
performáticas, a sala de aula como espaço cênico. A definição de espaço cênico é uma
noção complexa e, segundo os manuais de teatro, envolve o espaço dramático, o espaço
real do palco no qual evoluem atores, o espaço cenográfico na medida em que realiza a
relação teatral público-atores, o espaço gestual e textual, além do espaço interior,
enquanto representação ficcional. Assim, constata-se, a definição de espaço cênico tem
sido usada para aspectos muito diversos do texto e da representação1.

1
PAVIS, Patrice. Espaço (No Teatro). In. Dicionário de Teatro. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2008, p.
132-138.

1
A opção pela definição de espaço justifica-se, no nosso caso, pela materialidade
que evoca. A aula não é um artifício subjetivo da aprendizagem, mas está subordinada a
um roteiro prévio em que estão definidas, por diversas questões, um arcabouço de
indicações objetivas de sequências, convenções, conteúdos e atos. Materialidades
expressas em um repertório gestual, corporal e vocal que nos levam a à noção de
performance, ou melhor de espaço performático. Mas, o que definiria a performance
em sua relação com o espaço cênico em sala de aula? A performance implica em um
jogo em ato, um jogo cênico em que se utiliza a máscara. O uso da máscara que
caracteriza o jogo cênico seria o que identifica o espaço performático da sala de aula. A
opção pelo uso da performance está no caráter simbólico e social do ato.
A performance, desenvolvida sob a perspectiva da sociologia do cotidiano,
inspirada nos estudos antropológicos de Victor Turner2, ou mesmo na perspectiva teatral
de Richard Schechner3, tem sido usada, desde a década de 70, como um ato cultural,
algo que precisa ser lido de maneira interdisciplinar, para além de suas exterioridades 4.
Como um conceito aberto, que só se realiza em plena operação sobre o objeto, a
performance5 se configura em um ato cênico, estético-formal, de natureza do drama-
ritual e/ou do espetáculo, que se dá a ler (a um público). Expressa-se, geralmente, por
meio da forma (performance, por meio da forma), em materialidades cênicas, corporais
e gestuais e envolve relações em ato, o que nos remete ao conceito de experiência.

2
TURNER, Victor. Dramas, Campos e Metáforas. Ação Simbólica na Sociedade Humana. Niterói:
Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008.
3
“Em 1965 publiquei Aproaches, ensaio no qual disse que performance era uma categoria inclusiva que
incluía representações, jogos, esportes, performance no quotidiano e ritual”. SCHECHNER, Richard.
What is performance studies anyway? In. PHELAN, Peggy; LANE, Jill (Ed.). The Ends of Performance.
New York: University Press, 1997, p.357.
4
A este respeito, ver TEIXEIRA, João Gabriel L.C. História, Teatro e Performance. Encontro Anual da
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em História na Universidade do Rio dos Sinos, São
Leopoldo, RS, 2007.
5
Como uma palavra inglesa com o sentido geral de ação, ou processo de ação realizado para determinado
fim, o verbo to perform significaria realizar, empreender e agir de modo a levar a uma conclusão.
Entretanto, a origem etimológica do termo está no francês antigo, parfounir, combinando o prefixo latino
per, indicativo de intensidade e completude, e founir, significando prover, fornecer. Nesta definição há
uma idéia de movimento, de ação combinada que só se completa em processo. Em português, a palavra
tem sido usada desde a década de 70 no sentido de atuação e desempenho. Ver histórico da noção em
LOPES, Antônio Herculano. Performance e História. Fundação Casa de Rui Barbosa. Disponível em
www.casaruibarbosa.gov.br

2
Mesmo quando relacionada ao texto escrito, a performance tem natureza simbólica e
experiencial, relação com a teatralidade6.
Por relacionar-se com uma experiência em ato, uma performance também não
escapa da definição de acordo, de jogo entre aquele que cria de um lado e, por outro,
aquele que assiste, consome e interage com a criação. Materialidades no corpo e na voz,
a máscara e o jogo cênico: estes seriam os ingredientes da performance de uma aula.
Interessa-nos, ainda, as ligações entre performance e hermenêutica, para pensá-la como
uma forma de conhecimento, um modo de compreensão.
Para investigar estes princípios, montamos uma aula-oficina, em dupla: uma
professora de história, interessada em estudos culturais e metodologias de ensino e um
pesquisador de artes cênicas, ator e professor de teatro. Denominada Mito e Teatro
como Prática Educativa, a atividade buscava pesquisar os aspectos de performatividade
e teatralidades7 presentes em uma sala de aula, seu significado como jogo cultural. Para
isso, usamos um meio não ortodoxo: a narrativa mítica de Ulisses, em Homero. A opção
pela narrativa mítica estava em sua força pedagógica de expressão oral e cênica. Em
dois dias de trabalho com performances míticas, discutimos a atuação do professor, a
máscara e as sensibilidades em sala de aula, elementos que se configuraram na
identificação de vários tipos de materialidades corporais/vocais e identitárias do
professor em cena na sala de aula: o corpo ausente, o corpo subjugado, o corpo
autoritário.

6
As experiências humanas só se realizam plenamente quando expressas, exprimidas, espremidas (Georg
Simmel). Não há expressão sem experiência, nem experiência sem expressão. Se há experiência sem
expressão, isso não nos interessa, pois não temos como alcançá-la. É aí que reside o fundamento essencial
da teatralidade. Teatralidade entendida como a condição de organização do espaço em função do olhar.
Teatro: espaço organizado em função do olhar. Esse olhar, antes da visão como privilegiado, tem ocupado
outros espaços de sensorialidade. In. BIÃO, Armindo. Estética Performática e Cotidiano. In TEIXEIRA,
João Gabriel. Performances, Performáticos e Sociedade. Brasília, Ed. UNB, 1996.
p.12-19.
7

“Teatralizar um acontecimento ou um texto é interpretar cenicamente usando cenas e atores para


construir a situação. O elemento visual da cena e a colocação em situação dos discursos são as marcas da
teatralização”. In: PAVIS, Patrice. Op.cit, p.374.

3
A Máscara. Oficina LEHIS/UFG-2010 Performance Ulisses. Oficina LEHIS/UFG - 2010

A título de elaboração, exploremos um pouco melhor, os ingredientes


performáticos da sala de aula: suas materialidades, o uso da máscara e o jogo cênico.
Sabe-se que o corpo e a voz são mais do que recursos técnicos da teatralidade.
Carregam em si, significados que os vinculam a determinadas tradições e visões de
mundo e de representação. Como nos explica Menezes de Souza:
O professor tem se esquecido de que sua principal fonte de trabalho é o corpo. Sem ele
as idéias, as emoções, os vínculos, dificilmente se estabeleceriam. O corpo se insere na
sala de aula como elemento estético e cultural. 8

O corpo, segundo Alain Corbain, é uma ficção, um jogo de representações


mentais, uma imagem inconsciente que se elabora, se dissolve, se reconstrói através da
história do sujeito, com a mediação dos discursos sociais e dos sistemas simbólicos. 9
Assim, para as aulas-conferência10, as conhecidas aulas expositivas em que se pressupõe
que o aluno é um mero receptáculo do conhecimento, é comum encontrar um corpo
alerta, rígido, um corpo autoritário e peripatético. As aulas-conferência se opõem às
aulas-colóquio e às aulas-oficina, experiências de conhecimento partilhado mais
dinâmico entre professor e aluno.

Aula – oficina / LEHIS/2010 – exercícios Aula-oficina/LEHIS/2010 - improvisação

8
SOUZA, Antônio Vital Menezes. Corpo em Cena: Educação, Estética e Debates Contemporâneos.
Diponível em: http://www.psicopedagogia.com.br/artigos/artigo.asp?entrID=484
9
CORBAIN, Alain. Prefácio. In. História do Corpo. Da Revolução à Grande Guerra. Tradução de Jean
Batista Kreuch (Partes I e II) e Jaime Clasen (Parte III). Petrópolis, RJ: Vozes, 2008, p.8-9.
10
“Na aula-conferência, o aluno é uma tábua rasa, o professor conferencista e ator”. BARCA, Isabel.
Aula-Oficina: do projeto à avaliação. In. Para uma Educação de Qualidade. Atas da Quarta Jornada de
Educação Histórica. Braga, Centro de Investigação em Educação/ Instituto de Educação e Psicologia,
Universidade do Minho, 2004, p. 131-144.

4
São bastante conhecidas as recomendações para o professor de manter-se sempre
ereto e em pé, de movimentar-se equilibradamente entre um lado e outro da lousa para
não cansar o espectador e de manter comunicação visual com o aluno para não distrair
sua atenção. O corpo autoritário é um corpo tenso, em que não se reconhece a interação
do público sob qualquer reação ao repertório e sequência de conteúdos previamente
preparados. O corpo autoritário é um corpo rítmico, disciplinado e se contrapõe ao
corpo subjugado dos alunos, sentados em fila, e, preferencialmente, silentes.
“Disciplina-se conteúdos”, faz-se “controle de sala”, cria-se a cultura do copiar
conteúdos fragmentados, em uma alternância de recomendações unilaterais. O espaço
performático da aula-conferência é um ato da cultura escolar autoritária e bancária em
suas diversas nuances e manifestações.
Estudar o corpo como objeto cênico, bem como o próprio corpo como um
equilíbrio entre o que está dentro e fora de sua materialidade, parece-nos importante
para compreender a ação performativa do professor em cena. Para alguns autores, a
desvalorização do corpo como elemento educativo, vem da tradição clássica de
separação corpo-alma que remonta Platão, a que concebe o corpo como prisão da alma.
Dessa forma, o corpo, este organismo mutável e efêmero necessitava de regulação e
disciplina. Em Foucault conhecemos os “corpos dóceis” modelados, treinados em
estratégias de poder11. Aula conferência é a que promove o corpo autoritário do
professor e os desejados corpos dóceis dos alunos. Poder disciplinar supremo que regula
os corpos influenciado por coações da performance em aula.
O corpo ausente encontrou-se em práticas de professores e alunos. Indissociado
do ato da aula, o corpo ausente, em gestos, fala e voz é um corpo sem vontade de
potência no sentido nietzcheano, um corpo que dorme para o ato, um corpo mecânico.
Como o próprio nome diz, o corpo subjugado é, também, um corpo distante, não no
sentido da inconsistência, mas no da subserviência. Está nos corpos dóceis daqueles que
dormem, de olhos abertos ou fechados, para a experiência do ensinar e aprender em ato,
está nos conteúdos reprodutivos e roteirizados em que não há jogo, nem diálogo. Falta o
elan vital nos corpos dóceis. O corpo subjugado é um corpo contido e refreado que finge
estar, um corpo que mente. O corpo autoritário, por sua vez, é o corpo armado. Há nele
uma intencionalidade e uma estética que informa sobre o perigo iminente, a necessidade

11
FOUCAULT, M. “Os recursos para o bom adestramento”. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 29ª
ed. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004, p.126.

5
de auto-proteção. O corpo autoritário é o corpo rígido, normativo, repetitivo, previsível.
É um corpo que necessita silêncio para ser focalizado, imitado.
Por meio destes corpos, diversas sensibilidades são evocadas, ritualizadas.
Performances com sensibilidades de raiva e repressão, estímulos à fraude, à subversão
do instituído.

Oficina – O corpo subjugado Oficina – O corpo autoritário

A aula contém um espaço performativo, mas ele só ocorre, por outro lado, pelo
uso da máscara: elemento fundamental para que a teatralidade ocorra, segundo Jacó
Guinzburg. Para ele, independente do que fizer o autor ou o diretor, o ato criativo só se
realizará no momento em que o ator assumir a máscara.12A máscara pode ter funções
antropológicas, ritualísticas, mas seu uso implica em uma certa imobilidade facial, ou
melhor, na manutenção de um certo padrão dramático que potencializa o corpo. A
máscara é, nesta acepção, o elemento que marca o ato performático e, mais que uma
representação exterior e ritualizada, repetida em ato, a máscara envolve o jogo com a
platéia e com a personagem. A capacidade de se tornar um outro cênico, sem perder a
referência do si mesmo, é, portanto, um elemento importante na adoção da máscara e na
tomada de consciência do jogo cultural e simbólico que a máscara realiza.
Assim sendo, para compreender o uso da máscara no espaço performático,
podemos, ainda, recorrer aos aspectos duplos da máscara como persona. Segundo a
psicanálise junguiana, compreender a persona é um passo importante no processo de
12

GUINZBURG, J. A Cena em Aula (org. Rosangela Patriota). São Paulo, Edusp, 2009, p.86.

6
individuação, processo que envolve a integração dos arquétipos, a assimilação das
sensibilidades (sentimentos) e mesmo a integração do corpo 13. Ao assumir a máscara no
espaço performativo, o professor em cena precisa considerar-se como produtor de uma
teatralidade que envolve escolhas criativas e compreender o jogo do conhecimento
como um processo de interpelação consigo mesmo, com a máscara e com o
conhecimento. A máscara recorrente da aula como representação cultural e simbólica,
evoca identidades e o jogo cênico, aspecto sem o qual, o espaço performativo não se
realiza.
O jogo cênico é um elemento intrínseco do ato performático em seus princípios e
regras. Evoquemos dois teóricos para nos ajudar na questão do jogo. Johan Huizinga e
Hans-Georg Gadamer. O primeiro vai nos dizer do aspecto lúdico-simulativo essencial
do jogo e o segundo, do jogo como princípio de diálogo e interpretação. É Huizinga que
trás a definição de jogo que pode se aplicar à ficção e à máscara cênica como elemento
do espaço performativo e suas convenções:
Sob o ângulo da forma pode-se [...] definir jogo como uma ação livre, sentida como
fictícia e situada fora da vida comum, capaz, não obstante, de absorver o totalmente o
jogador; uma ação despida de qualquer interesse material e de qualquer utilidade; que se
realiza num tempo e num espaço expressamente circunscritos, desenrola-se
ordenadamente de acordo com determinadas regras e provoca, na vida, relações de
grupos que se cercam voluntariamente de mistério ou que acentuam pelo disfarce sua
estranheza diante do mundo do habitual.14

Na atividade cênica, o professor joga com lúdico como abstração simulada


quando lida com os autores, interlocutores de conteúdos, com o espectador, com os
conteúdos e consigo mesmo. Isso não se faz sem as regras e convenções próprias da
profissão, ou mesmo da cultura escolar em que o professor-ator está inserido. O jogo do
espaço performático realiza-se no diálogo do jogo e esse diálogo, concretizado sob
múltiplas formas, é fundamental no processo de interpretação e aprendizagem. É
Gadamer que nos auxilia nos aspectos dinâmicos do jogo que implicarão no diálogo:
No jogo da tradição e do intérprete, a comunhão é um processo de contínua formação.
[...] A compreensão implica sempre acordo. O verdadeiro lugar da hermenêutica está
nesse entremeio, na tensão que se dá entre o intérprete e a tradição, entre a estranheza e
13
A persona aqui é compreendida como máscara da psique coletiva, uma máscara individual, mas ao
mesmo tempo cultural. Para JUNG, a persona é o sistema de adaptação ou estilo de nossa relação com o
mundo. Assim sendo, quase todas as profissões tem sua persona característica. [...] O mundo exige um
certo tipo de comportamento e os profissionais se esforçam por corresponder a tal expectativa. In.
JUNG, C.G. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Trad. Maria Luiza Appy, Dora Mariana.
Petrópolis: Vozes, 2008, p.128.
14
HUIZINGA, Johann. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. Tradução de João Paulo
Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 2005.

7
a familiaridade, entre a objetividade e a distância. E é na própria compreensão que
compreendemos os preconceitos e a tradição. 15

A compreensão começa, segundo Gadamer quando algo nos interpela. Esta é a


condição hermenêutica suprema. Compreender significa suspender os próprios pré-
conceitos, perguntar. E a essência da pergunta é manter abertas possibilidades,
considerar os pré-conceitos, como em um jogo. O diálogo se constitui na possibilidade
de experimentar nossa singularidade e experiência do outro com suas objeções ou sua
aprovação. E só acontece quando deixa algo em nós. Nesta acepção, só podemos
aprender pelo diálogo, pois nesse processo é o próprio sujeito quem se educa com o
outro, seja este outro um outro cultural ou um outro de si. O espaço performativo tem,
natureza artística e o jogo é um aspecto essencial da arte que, para Gadamer, é uma
forma de conhecimento contínuo, pois como movimento de-e-para, é incompleta. Em
seu funcionamento encontram-se a dinâmica dos jogadores com o jogo, bem como o
relacionamento entre jogadores e espectadores em fluxo contínuo de produção de
significados.
Portanto, na perspectiva de compreensão da aula como performance cênica, é
importante considerá-la como espaço material de natureza simbólica. Por meio dela,
pode-se interpretar significados expressos em suas materialidades, e nos diálogos
empreendidos pelo jogo cênico da máscara. Vista sob esta perspectiva, a aula pode ser
mais do que meio técnico para repasse de conteúdos, mas pode ser lida em suas
subjetividades intencionadas e subjugadas culturalmente. Como performance cênica
dialogal e simulativa, a aula se insere na lógica dos jogos e, os jogos são representações
com status de verdade simbólica, elementos que precisam ser evocados por produzirem,
influenciarem e construírem sentidos e práticas culturais.

15
O sentido de um texto supera seu autor não ocasionalmente, mas sempre. Por isso, a compreensão
nunca é um comportamento meramente reprodutivo, mas também produtivo. GADAMER, Hans-Georg.
Verdade e Método I. Traços Fundamentais de uma Hemenêutica Filosófica. 7a Ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2005, p. 392.

8
Este trabalho corresponde a uma reflexão sobre o aprendizado de Capoeira Angola - Linha
de Mestre Gato Preto no grupo Guerreiros de Senzala, sob a instrução do contra-mestre Pinguin.

Fundamentos da Capoeira Angola


o aprendizado performático de uma linguagem corporal.

Fábio Alex Ferreira da Silva


USP

Desde que Mestre Pastinha “assumiu a voz da capoeira”, tornando em letras os


conhecimentos e sentimentos desta prática, inaugurou-se um novo percurso na trajetória dos estudos
sobre a capoeira. Se por um lado houve a tentativa de alguns intelectuais de capturar elementos
dessa manifestação em registros de letras das músicas, elaboração de partituras, descrições de seus
rituais, fotografias, etc; a apreensão de aspectos imateriais relativos ao aprendizado da prática da
capoeira ainda era pouca.
A partir desta contribuição do Mestre Pastinha, entre tantas, outros capoeiristas passaram a
produzir essa modalidade de conhecimento; não eram mais informantes de um pesquisador de fora,
ou até mesmo relativamente pertencente ao universo da capoeira, mas sem que esta se constituísse
como sua prática regular; passaram a ser autores, voz e corpo de um discurso, expressando pela
escrita seus conhecimentos sobre capoeira.
Esta dinâmica marca a relação da capoeira com as universidades. Antigos mestres hoje
recebem títulos de doutores honoris causa; praticantes de capoeira encontram aberturas para
pesquisas em áreas de antropologia, dança, educação, esportes, etc; e não praticantes se interessam
pelo tema e se aproximam da capoeira com a intenção de estudá-la e tornam-se capoeiristas.
São muitas as formas de aproximação entre as duas, mesmo porque elas variam de acordo
com a experiência pessoal de cada um, no entanto, que o seu estudo teórico passa
imprescindivelmente pela sua prática, o que para o antropólogo torna a pesquisa de campo peculiar,
de modo que não há isenção do pesquisador na elaboração do texto, mas sim envolvimento, isto já
se estabelece.
Como praticante de capoeira, busco em elementos da “mediação em arte” provocar a
percepção de uma experiência estética, recompondo processos de aprendizagem dessa manifestação
cultural em um procedimento do fazer artístico. A elaboração de um acróstico que interprete alguns
fundamentos da capoeira angola, busca na associação forma/conteúdo uma expressão na escrita
análoga à prática da capoeira, pensando a dimensão do próprio corpo no espaço e assimilando pelo
discurso a noção de deslocamento espacial do corpóreo.
Nesta composição “verbo-voco-visual” o aprendizado de fundamentos da capoeira angola
são investigados na chave arte/ritual, baseando-me nos estudos de Schechner, que analisa se “existe
alguma diferença real de significado entre os termos que as diferentes culturas tem criado para
descrever o que os performers fazem?”
Assim, a própria escrita é pensada dentro desta relação, como performance e como ritual. As
formas textuais possuem força expressiva e grande possibilidade de repercussão social, surgindo,
então, como referência em sua dimensão no espaço dinâmico (verbal e visual) gerando
transformações na escrita.
Explorando conceitos da poesia contemporânea e as suas transformações no ato de leitura,
busco experimentações de uma nova (des)ordem a partir do estímulo á criação de um discurso
antropoético no qual os recursos expressivos encontram-se no limite da escrita com as artes
performáticas.
Schechner (1985) ao estabelecer pontos de contato entre o pensamento antropológico e
outras práticas performáticas questiona até que ponto os “performers” de rituais estão cientes de
aspectos artísticos do seu trabalho sagrado e também analisa casos em que os eventos performativos
não podem ser classificados facilmente como ritual, arte ou política.
Quando olhamos para a capoeira, os contatos entre o pensamento antropológico e a
peformance se estabelecem em direções muito específicas, mas que se encaixam nessa perspectiva.
Embora profana, a capoeira se desenvolve como um ritual, com seus “preceitos” e performances;
ela é também arte, “dança maliciosa”, que explora as habilidades do corpo em demonstrar
determinados conteúdos e política, no sentido em que surgiu como prática de resistência ao sistema
escravocrata e que por muitos anos se realizou sob a forma de enfrentamento com a lei, pois
conforme o capítulo 402 , intitulado “Dos Vadios e capoeiras” no Código Penal de 1890 constituía
crime:

“fazer nas ruas e praças públicas exercícios agillidade e destreza corporal conhecidos pela
denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de
produzir uma lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou
incerta, ou incutindo temor de algum mal”.

A partir dessas considerações, inicio a análise distribuindo alguns conceitos, que considero
fundamentos da capoeira angola, entre os 6 pontos de contato apontados por Schechner. Há perdas e
ganhos nesta forma de classificação, no entanto, creio que esta abordagem se aproxima de
princípios da folksonomia1, situando critérios subjetivos de organização da linguagem popular
como pontos de irradiação da comunicação.
As formas eminentemente narrativas da capoeira nasceram em culturas orais e muitas vezes não
se utilizaram de instrumentos de fixação como a escrita, implicando um discurso caracterizado,
principalmente, por uma comunicação epifânica no momento do ritual. Entretanto, essa
característica que permite ao discurso improvisações e variações e que se realiza no momento em
que é narrado, ao ser expressa numa forma de registo textual, pode ser recomposta a partir
processos que visem conferir às palavras outras camadas de significação:

IÊ...
CONSCIÊNCIA
AGILIDADE
PERCEPÇÃO
ORIGINALIDADE
EXPRESSÃO
INSPIRAÇÃO
RESISTÊNCIA
ARTE

Transformação do ser e/ou da consciência

“Na capoeira de angola há um ritual que precede o jogo: dispostos em semicírculo, os


“camarados” iniciam o canto, ao som dos berimbaus, pandeiros e chocalhos, Agachados diante dos
músicos, os dois jogadores, imóveis, em respeitoso silêncio. É o preceito!” 2 Nesse momento o
espírito da capoeira incorpora, os dois jogadores rolam para o centro da roda e o corpo preparado
pelo treinamento conversa, transmite uma informação sob a forma de golpes que são respondidos
pelo outro jogador, com outra pergunta, sequências que caracterizam o jogo.
Falar da CONSCIÊNCIA na capoeira é relacioná-la ao conhecimento dos movimentos,
adquirido através dos treinamentos; é falar das técnicas para se “chegar lá”, a preparação o corpo
para o ritual através da observação, a prática, a imitação, a correção e a repetição.

1 Seu ponto forte é sua construção a partir do linguajar natural da comunidade que a utiliza. Enquanto na
taxonomia clássica primeiro são definidas as categorias do índice para depois encaixar as informações em uma delas
(e em apenas uma), a folksonomia permite a cada usuário da informação a classificar com uma ou mais palavras-
chaves.

2 Édison Carneiro. cf. Reis


Dessa forma são organizadas as atividades de aprendizado dos movimentos e de seus nomes,
por exemplo, a ginga, a negativa, o aú, que expressam conteúdos através do corpo. Segundo
Rodrigues, “a ginga imprime no corpo uma capacidade plástica peculiar, característica de uma
linguagem” (1997:78). Ela tem um conteúdo implícito, busca dissimular, enganar o adversário
através da mandinga, impedindo que ele perceba o golpe que irá surgir, assim, a intenção que já está
no corpo do capoeirista não transparece.
Eugênio Barba, utilizou o termo “Sats” para designar a qualidade corporal do momento no
qual se está aponto de agir, o instante que precede a ação no espaço, quando a energia está suspensa
e compromete o corpo do ator. Durante a ginga, o capoeirista antecipa o movimento em sua
consciência e disfarça-o através de floreios, esperando um buraco para entrar no adversário.
Esse modo de agir, movimentar-se, reflete um modo de pensar e ser, um fundamento da
capoeira. A consciência dos movimentos. O corpo deve se comunicar através de uma linguagem,
pois, o capoeirista que durante os treinos executar o movimentos sem consciência poderá ferir-se e
aquele que na roda executá-los de forma despropositada, sem consciência, provavelmente também,
pois “a capoeira é uma luta, ensinada e praticada como dança” – como disse mestre Pastinha, seus
golpes podem ser desequilibrantes e traumatizantes.
A linha de Mestre Gato Preto vê no movimento dos animais a natureza da resistência da luta,
observar esse movimentos requer atenção; aprender o deslocamento de outros seres e incorporá-los,
movimentar-se como um macaco, um gato, uma cobra, animais tótens, sem sê-los.
Decânio Filho descreve o transe capoeirano como um fundamento da capoeira: “Sob a
influência do campo energético desenvolvido pelo ritmo e pelo ritual da capoeira, seu praticante
alcança um estado modificado de consciência em que o SER se comporta como parte integrante do
conjunto harmonioso em que se encontra inserido naquele momento.”
A realização dos movimentos deve ser harmoniosa, mas é preciso manter sua intenção. A
observação dos instrumentos de trabalho, cuja ação ao ser imitada usando o corpo transforma-se em
um golpe - o martelo batendo, a foice no corta capim. O capoeirista age como uma cobra que dá o
bote, ataca como um rabo de arraia ou dá um coice como um cavalo. Há uma relação de
liminaridade que percorre a identidade do capoeirista e a potência de seus golpes que se situam
entre um “não eu” e um “não não eu” do movimento.

Intensidade da performance

O jogo da capoeira se constitui em um diálogo de movimentos, ataque e defesa, movimentos


maliciosos, em que os berimbaus determinam o ritmo do jogo. São três: o gunga, o médio e a
violinha, alternando-se em compasso binário e andamentos – lento, médio e rápido.
À primeira vista, podemos estabelecer nesta divisão uma analogia com a técnica japonesa
“jo (lento) - ha (médio) – kyu (rápido)”, no entanto, na capoeira angola essa divisão se complexifica
em função da capacidade de improvisação, da relação toque/canto e jogo e pelas tessituras dos
jogos, também distribuídos em 3 níveis: baixo, médio e alto, e desenvolvidos seguindo os toque dos
berimbaus.
Entre os toques mais conhecidos estão o Angola, São Bento Grande, o São Bento Pequeno,
Santa Maria, Iúna e Toque de Cavalaria. Embora o número de toques pareça pouco, a capacidade
de improvisação em cima deles é supreendente.
Mestre Gato Preto sabia 16 toques tradicionais (Angola, Angolinha, São Bento Grande, Jogo
de Dentro, São Bento Pequeno, São Bento Grande de compasso, São Bento de Dentro, Iuna,
Cavalaria, Benguela, Benguela Sutenida, Santa Maria, Samba de Angola, Ijexá, Panhe a laranja no
chão tico-tico e Samongo) e quando tocava, segundo palavras do contra-mestre Pinguin, “dobrava”
em cima de cada toque, chegando assim a 32 toques tradicionais, que alternados em 3 berimbaus
geram a cada vez distintas composições.
O tempo da música e a velocidade do jogo, então, se relacionam à PERCEPÇÃO e à
AGILIDADE, a capacidade do capoeirista em responder mais rapidamente aos golpes, de esquivar-
se dando continuidade ao jogo. Decânio Filho, aponta “alerta, calma, relaxamento e autoconfiança”
como um dos fundamentos da capoeira:
“o capoeirista necessita manter contínua sintonia com a mente do parceiro para detectar
suas reais intenções e assim poder antecipar-se aos seus gestos e movimentos, seja de floreio, seja
de ataque ou de esquiva...uma eterna vigilância!”
Cabe ao capoeirista ter ouvido para interpretar os toques e jogar no tempo do berimbau,
principalmente porque, como explica Nestor Capoeira, há uma sutileza nesse aspecto referente à
oxigenação, “qual o nadador que mergulha e traz à tona a cabeça, obrigando-se a um ritmo
respiratório, assim também os participantes da roda são obrigados a um ritmo de respiração tal qu
epermita responder, em coro, aos cantos “puxados”. Ao terminar de jogar, muitas vezes cansado e
ofegante, é nesse ritmo respiratório que o jogador vai rapidamente se recuperar” (1986:26)

Interação com o público

Em uma apresentação de capoeira, uma roda no Mercado Modelo de Salvador ou na Praça


da República em São Paulo, por exemplo, o público participa batendo palmas ou mesmo
respondendo ao côro em cantos já consagrados como: - “paranaê, paranaê paraná” , sua presença no
entanto não responde a obrigações rituais, o que Schechner chama de “público acidental”.
Quando observamos uma roda no interior de uma academia, encerrando um dia de treino,
por exemplo, ou realizada em algum dia específico para isso, outras relações se estabelecem;
geralmente, capoeiristas mais antigos abrem a roda e os mais novos observam, cantando e batendo
palmas, o que é importante, pois a observação é base do aprendizado da capoeira, mas não é apenas
isso, todas as pessoas que compõem a roda são responsáveis pela energia que circula nela, devem
estar atentos ao que acontece, aos versos cantados, à malícia dos jogadores.
Se o papel deste “público integral” em cada jogo é importante, os cantos então redobram a
sua importância na roda de capoeira. Nestor Capoeira aponta que muitas vezes os cantos servem
“para explicitar de modo bastante cru algum acontecimento que talvez não tenha ficado
inteiramente claro para aqueles que observam a roda:”

“Cabra correu com medo de apanhar ...


Correu, correu com medo de apanhar.”

Além disso, continua, “através dos cantos e das palmas o recém-chegado não só se incorpora
à “corrente de vibrações”já existente, como também se relaxa e descarrega as tensões que trouxe de
seu dia-a-dia” (1986:26).
Waldeloir Rego nos conta que antes, quando “não havia academias turisticamente
organizadas. Os capoeiras, com alguns outros companheiros e discípulos rumavam para o local de
festa, com seus instrumentos musicais, inclusive armas para o momento oportuno e lá, com amigos
outros que encontravam, faziam a roda e brincavam o tempo que queriam” (1968:37).
Quando alguma ameaça se aproximava os berimbaus tocavam o Toque de Cavalaria, que
servia pra avisar a chegada da policia, por exemplo, alertando os camaradas para a fuga ou
enfrentamento com as autoridades. Seria um caso de uma interação com um “anti-público
acidental”? Ou um até mesmo “anti-público integral” uma vez que a sua aparição é previamente
suposta, sendo assim incorporada ao ritual.
De qualquer maneira, o toque de cavalaria é ainda hoje ensinado e em muitas ocasiões
tocado interrompendo a roda diante de algum acontecimento. Não se refere mais à chegada da
polícia, mas a sua intencionalidade é ainda transmitida como recurso de alarme. Aspectos que
fundamentam a sua realização são revividos performaticamente durante o ritual na intenção de
manter elementos pertencentes ao universo da capoeira pela reinterpretação de suas histórias.
Se, como afirma Geertz, uma piscadela pode ter muitos significados, os toques do berimbau
também e este toque pode ser interpretado como um alarme para fuga, (de uma “briga de galos
balinesa”) - a performance de um evento, ou então podemos lê-lo em uma das outras chaves
propostas por Sherchner para a “restauração do comportamento”, correspondendo à performance de
um “não evento” (1985b).
Seqüência total da performance

Schechner esclarece a importância de se analisar a sequência total de uma performance. No


entanto, “em alguns gêneros e culturas, uma ou outra parte da sequência é enfatizada”, este é
absolutamente o caso da capoeira; entre os 7 momentos apresentados (treinamento/ oficinas e/ou
outros aprendizados/ ensaios/ aquecimento/ performance/ esfriamento/ desdobramentos) o
aprendizado da capoeira se concentra em treinamentos, aquecimento e performance.
É preciso então reinterpretar esse aprendizado considerando principalmente as diversas
mudanças ocorridas na capoeira, como a sua esportização, com a finalidade de articular os demais
momentos da “sequencia total” ao entendimento da realização da performance.
Os treinamentos da Capoeira concentram a ênfase do aprendizado. Assim, há neles uma
lógica interna própria que organiza diversos métodos. Os treinamentos de movimentos primitivos,
exercícios pedagógicos, movimentos individuais, em espelho, o alfabeto da capoeira, golpes de
capoeira angola, etc. Que desenvolvem a AGILIDADE do praticante.
Com a difusão da capoeira, muitos mestres antigos passaram a ser convidados para ministrar
oficinas, um momento distinto da aprendizagem. Capoeiristas se reúnem para ouvir ensinamentos,
histórias e para uma vadiagem com o mestre, um conhecimento a mais sobre a capoeira, que auxilia
o entendimento de seus fundamentos.
Isso é o que faz da capoeira um viver, uma ARTE. Ela se relaciona a diversos saberes, assim,
praticar dança afro ou percussão também auxiliam a compreensão da capoeira, possuem elementos
confluentes, por exemplo, o ritmo Ijexá. Sua prática através da dança, percussão esclarece a
cadência, a dinâmica dos movimentos e o estado mental necessários à capoeira.
Essas formas de arte se originam de matrizes negras, o que é bem diferente de uma outra
técnica corporal, que embora possa desenvolver habilidades do corpo que sirvam como recursos na
capoeira, por exemplo o caso de práticas circenses que aumentam o equilíbrio, trabalham a posição
da “bananeira” e outras demonstrações acrobáticas etc, possuem outras significações culturais. O
corpo trabalha em um alinhamento proposto semelhante, mas as categorias de movimentos realizam
significados diferentes, o aú não é uma “estrela”, sua forma é provida de outros conteúdos.
Não existem ensaios para a peformance na capoeira, mas o conhecimento de sequencias de
movimentos característicos, diálogos simulados, podem ser lidos desta forma. É notada a presença
de treinamentos sequenciais em diversas artes marciais. Na capoeira esses treinamentos buscam
desenvolver uma criatividade em responder perguntas, e dão indicações de caminhos pelos os quais
os diálogos podem se iniciar.
Mas então, qual o tipo de aquecimento é necessário imediatamente antes da performance da
capoeira? Os treinamentos já incluem em si diversos exercícios de alongamento e aquecimento
muscular, envolvendo torções, alongamentos, flexões, pontuações e tensionamentos dinâmicos. Se
pensamos o tipo de aquecimento realizado exatamente antes da performance, que anuncia que ela
vai começar, então o som dos berimbaus pode ser entendido como aquecimento.
O IÊ, “uma interjeição fundamental na capoeira, determina inícios e finais. Tem a força dos
griôs de terras africanas que com um grito convocavam toda a comunidade para ouvir sua própria
história.”3 Canta-se a ladainha, toque de angola para ladainha, o capoeirista redobra a atenção, faz
se o silêncio, neste momento não se conversa, ainda mais sobre o que não diz respeito à capoeira. O
espaço está aberto para a INSPIRAÇÃO.
Chega o momento, na roda de capoeira é que se mostra o que aprendeu, é a performance
ritual propriamente dita. Ela acontece sob a observação e controle de um mestre de capoeira que
com seus conhecimentos regula os conflitos, mantém a técnica do jogo e o nível de tudo o que
acontece, a partir e auxiliado principalmente pelos instrumentos musicais.
Aproximando-se o término da roda, puxa-se o canto que tradicionalmente encerra as rodas, o
“Adeus, adeus”, o jogo nesse momento é mais curto e rápido, dois jogadores desenvolvem o seu
diálogo por menos tempo e com mais intensidade até que um terceiro compra o jogo e entra na
roda, assim vão revezando-se até que quase todos tenham jogado. Esta é a forma de
confraternização da capoeira – jogando.
Como disse Mestre Gato, “o capoeira que levava uma rasteira levantava pra dar a mão ao
outro jogador”4. Assim a capoeira se constituía em um mundo a parte. Seu desdobramento vincula-
se ao aprendizado, lição que não se esquece. Dos acontecimentos durante a roda não se vinculam
atos de violência. O mestre geralmente esclarece alguma questão observada durante os jogos, alerta
aos movimentos defeituosos, pois assim os aprendizes podem evoluir.
Compreender as diversidades de aprendizado envolvidas e cada um desses momentos ajuda
a florescer a ORIGINALIDADE do capoeirista, a sua capacidade de dialogar com a tradição sem
descaracterizar os movimentos.

Transmissão do conhecimento performático

Pensar os cantos de capoeira revela pontos muito significativos em relação ao processo de


transmissão do conhecimento performático. Reis aponta que “as cantigas de capoeira são elementos
de um discurso da capoeira para si, para a comunidade onde ela floresce e para a sociedade em
geral, diante de processos históricos, globais e específicos.” A capoeira articula mitologia e história
nas entrelinhas de seu discurso, assumindo múltiplas personalidades. As relações históricas são

3 Reis. p.132
4 Em matéria especial da Revista
expostas em outro nível, Zumbi e os escravos que representam a resistência são incorporados à
mitologia da capoeira sem que sua presença entre em conflito com a história” (2009:17)
Os cantos nos revelam caminhos percorridos pela sua difusão: “eu jogo capoeira, da Bahia a
Maceió” ou “Pastinha já foi à África”, eles compõem um cancioneiro tradicional que se relaciona
com a construção de uma identidade nacional para o Brasil e transmitem diversos elementos, nos
quais residem a EXPRESSÃO do capoeirista, “tem dendê, tem dendê”.
Coletei a seguinte informação: “elemento básico da Capoeira Angola, a malícia ou mandinga
a torna ainda mais perigosa. Essa malandragem que faz que vai e não vai, retira-se e volta
rapidamente; essa ginga de corpo que engana o adversário, faz o diferencial da Capoeira em relação
às outras artes marciais. Essa é uma característica que não se aprende apenas treinando5.”
A capoeira permite a liberdade para se criar em cima de um determinado “texto”, “roteiro”
ritual, que corresponde principalmente aos seus golpes e sua música, “vários capoeiras possuem um
ou mais golpes ou toques diferentes, inventados por eles próprios, ou então herdados de seus
mestres ou de outros capoeiras de suas ligações, isso sem falar na interpretação pessoal, embora
sutil, que dão aos golpes e toques, de um modo geral, e o golpe pessoal que todo capoeira guarda
consigo” (REGO.1968:33).
Assim, no início de uma roda, a ladainha, um lamento que conta a história de um tempo, que
traz à memória um evento do passado, revivido através da música, aponta o conceito de
ancestralidade e a importância da RESISTÊNCIA para a capoeira. Mestre Almir, em entrevista ao
jornal Movimento (13/09/76) explica a Capoeira como “uma luta de liberdade na época da
escravidão, uma forma de sobrevivência dos marginalizados após a libertação e agora uma forma de
manifestação popular, uma memória histórica” (Freire.168)

Como a performance é avaliada?

Entender o que acontece na roda de capoeira é um exercício importante. Para isso é preciso
conhecer suas regras tradicionais de modo que a segurança de sua prática seja assegurada e que ela
não se expresse como violência. Quando uma roda é boa, os movimentos dos jogadores estão
ajustados ao ritmo da bateria. Nas palavras de Mestre Pastinha “...é o controle do jogo que protege
aqueles que o praticam”, desta forma alcançamos a “camaradagem”, elo importante entre os
jogadores, indispensável a uma prática de luta.
Mestre Almir relata que quando realizaram o primeiro campeonato de capoeira, em São
Paulo, os capoeiristas em função das regras tinham que aparar os golpes para contagem de pontos. A

5 texto impresso encontrado no Núcleo de Artes Afro-brasileiras, sem referência autoral.


malícia, espírito da luta, que deveria ser utilizada no julgamento foi esquecida e os capoeiristas que
entraram para o jogo mostraram um negócio seco. A capoeira não se define apenas como uma
prática esportiva cujos movimentos podem ser avaliados e pontuados; “Sua organização como
esporte exigia competição, mas capoeira é “o jeito da gente chegar e sentar … segue a lei do
movimento … tem que ser como água, cai e escorrega, desliza” por isso foi difícil estabelecer uma
pontuação para o jogo6.”
O capoeirista deve procurar se safar e se safando atingir o adversário, desta maneira as rodas
são comentadas nos versos. Delas se fazem cantos, nelas se criam movimentos que enriquecem o
ritual sob influência da tradição. A avaliação do desempenho do ritual é o sentimento gerado e o
aprendizado daquele momento. O ritual é um modo de inscrever-se na história. Mas o tema da
memória e da fixação dos conteúdos vai além das considerações feitas aqui. Cada ritual comporta
em si a transmissão de uma lição, uma reflexão para daqueles que o executaram.
Realizo estas aproximações ao entendimento da capoeira com o objetivo de ajudar a
compreensão e realização de sua atividade prática. Esta interpretação dos fundamentos pretende
auxiliar os praticantes mais do que afirmar questões como “a capoeira se constitui disso ou
assim...”. São caminhos que seguem na sua manifestação. Os elementos do ritual devem ser
incorporados para que se possa fluir. Sua ARTE de jogar com os significados está aberta ao gingado
do seu entendimento. Interessa-me que um ponto de partida performático propicia o estudo de um
ritual articulando uma bibliografia diversa entre áreas do saber.
Manifestas preocupações conceituais são expressões da proposta de uma pluralidade de
investimentos intelectuais em um segmento etno-gráfico-experimental, onde a regra que organiza a
distribuição dos conceitos é a do entendimento da diversidade de alternativas possíveis na
composição do conhecimento antropológico. Uma hipótese de trabalho calcada em um caráter mais
prático de recepção e interpretação do estímulo à reflexão, que se apóie em tônicas que permitam
uma profunda abertura ao envolvimento.

6 (Mestre Almir cf: Freire)


Bibliografia

CAPOEIRA, Nestor. 1986. “Pequeno Manual do jogador de capoeira”. 2 ed. São Paulo. Editora
Ground Ltda.
DAWSEY, John. 2006. “O teatro em Aparecida: a santa e o lobisomem”. Mana 12(1). 135-149.
DECANIO FILHO, Angelo A. “Fundamentos da capoeira.” acessível em:
http://portalcapoeira.com/Semana-Decanio/fundamentos-da-capoeira.
FREIRE, Roberto. 1991. “Soma: uma terapia anarquista – Vol.2.; A arma é o corpo (Prática da
Soma e Capoeira)”. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.
REIS, Leonardo A. 2009. “Cantos de capoeira: fonogramas e etnografias no diálogo da tradição”.
Tese (Doutorado em Letras). Rio de Janeiro: PUC-Rio.
REGO, Waldeloir. 1968. “Capoeira Angola: ensaio socio-etnográfico”. Salvador. Editora Itapuã.
RODRIGUES, Graziela. 1997. “Bailarino - pesquisador – intérprete: processo de formação”. Rio de
Janeiro: Funarte.
SCHECHNER, Richard. 1985. “Points of contact between anthropological and theatrical thought”.
In: Between theater and anthropology. Philadelphia: The University of Philadelphia Press. pp. 3-34.
_________ . 1985b. “Restoration of Behavior”. Idem. pp.35-117.
SILVA, Go. 1989. “Clínica de Esportes: Capoeira”. 2.ed. São Paulo: CEPEUSP.
SIMÕES, Gutavo F. 2007. “Guerreiros e capoeiras e anarquistas”
Corpos em performance com a Áfricanamente: notas etnográficas de uma
aprendiz de capoeira Angola em Porto Alegre, Brasil.

Heloisa Gravina
Doutora em Antropologia Social - PPGAS/UFRGS
helogravina@gmail.com

Este texto é um recorte de minha pesquisa de doutorado em antropologia social, a qual


chamei de uma experimentação etnográfica do mundo transnacional da capoeira Angola, a
partir da escolha metodológica de seguir os fluxos dessa prática na circulação Brasil-França.
Para esta comunicação, trago parte da experiência vivida com a Áfricanamente Escola de
Capoeira Angola, coordenada pelo então professor Guto1 em Porto Alegre, e politicamente
comprometida com a luta anti-racista, através da valorização de uma identidade negra.
Privilegiando o cotidiano dos treinos e roda, meu foco central é a construção política realizada
através da própria prática da capoeira Angola. Observo que o comprometimento com a
questão da negritude se constrói num processo de imersão, mais do que de uma
conscientização pautada por uma retórica argumentativa. Nesse processo, um sentimento de
africanidade é incorporado através da experiência diária dos sujeitos no grupo.
Trago aqui extratos desse cotidiano como espaços privilegiados para a reflexão. De
acordo com minha proposta etnográfica, de uma antropologia que seja também escrita (e lida)
desde o corpo, o texto em si é estruturado a partir do plano da experiência. Melhor dizendo,
da encenação narrativa dessa experiência, restaurada a fim de propiciar o acesso a uma
reflexão que se constrói na imbricação entre as dimensões do sensorial e do racional.

Treino: o corpo em movimento


Baixar mais a cabeça. Subir o pé. Agora, rápido, a cabeça pelo outro lado. A voz do
Guto: Não deixa de olhar a parede em frente! Já ir dobrando o joelho e passar o tronco por
cima da perna que está esticada. O olhar! O olhar! Não deixar de olhar, OK. E não esquece o
braço na frente do rosto! A cabeça passa novamente por cima e logo está embaixo de novo.
Olho no símbolo da escola, não perde de vista. Agora são os pés que passam por cima. Onde
está o quadril a essa altura? Novamente a cabeça por cima, os pés por cima, mãos no chão,

1 Em setembro de 2010, quando eu já finalizara o trabalho de campo e meu engajamento na escola seguia
apenas como capoeirista, Guto foi formado Contramestre por mestre Renê, de Salvador, sua principal
referência na capoeira.

1
braço na frente do rosto, a perna pela frente, a cabeça para trás. Será que a sala começou a
rodar? Mais da cabeça por cima, os pés... O que fazer com as mãos mesmo? Olho para o Guto
e sigo copiando, deduzindo os movimentos a partir de um fragmento de braço, um pedaço de
perna, uma fração de tronco vislumbrados entre uma volta e outra da cabeça por todas as
direções possíveis. Definitivamente: a sala está rodando! Concentrar na música: onda vai,
onda vem... Por quanto tempo ainda?
Legal, gurias. Paramos, enfim! Mal tenho tempo de reconhecer que a sala parou
também: a terrível náusea toma conta de mim. Respiro fundo. Vai tomar uma aguinha, Helô.
Será que dava para ver minha náusea? Quando volto minhas duas companheiras deste treino
de segunda-feira me olham, não sei bem se sorriem solidárias ou se riem de mim, mas não
posso evitar de rir também. Completamente exausta. E ainda faltam dez minutos! Então, só
pra terminar. E Guto finaliza a frase já com as mãos no chão, as pernas subindo. E falando:
Áfricanamente joga com muito equilíbrio! É demais para mim! Quer que atravessemos a sala
caminhando sobre as mãos. Percebendo nossa hesitação: Bora lá, gurias, quem tem medo não
sai de casa! Dez minutos que duram uma eternidade: uma sequência interminável de formas
de atravessar a sala de cabeça para baixo – apoio dos braços, da própria cabeça, giros os mais
diversos e nos mais diversos planos. Não tenho a menor ideia de como passei por isso. Mas
passei.
OK, podemos sentar. Ufa! Finalmente um alongamento, uma coisa tranquila, penso.
Ledo engano: Guto chama a Gil para o centro da minúscula roda que formamos. Eles
começam um jogo muito rápido, onde identifico alguns dos movimentos que acabáramos de
fazer, em meio a um fluxo intenso. Agora não é náusea, mas um certo aperto no estômago. Ele
vai me chamar, tenho certeza de que vai. E dessa vez não me engano: sou a próxima vítima.
No olho do furacão, completamente tonta, de repente me percebo sobre o apoio das mãos, os
pés que sobem. Um segundo de respiro nesta posição e, antes mesmo que tenha consciência
de ter visto a lateral do corpo do Guto exposta, meu pé já está empurrando sua costela. Acertei
o Guto? Não posso acreditar. Enquanto se reequilibra dando um passo atrás, ele ri: Ah... Tu vai
querer jogar duro? E a frase já vem junto com um pé saído não sei de onde. O tempo de eu
tentar me defender e já não vejo mais o Guto. Surge de trás de mim, de cima, de baixo, e é só
uma sucessão de pés, cabeças, braços, rastros de movimento. Eu? A esta altura, absolutamente
paralisada, sem reação. É quando sinto que ele pega minha mão e me puxa para perto de si.

2
Um abraço, afinal. Respiro. É o fim dessa sessão. E só então percebo os sorrisos em torno,
volto a ter alguma consciência do espaço da sala.
Sento na roda. Este momento é apenas um esvaziar, acompanhado de uma alegria
intensa que brota da consciência de ter meu corpo inteiro, intacto. Sobrevivente. A respiração
vai pouco a pouco retomando um fluxo mais tranquilo Os músculos completamente
relaxados. O olhar que divaga em torno, capturando as imagens dos orixás (que logo vou
aprendendo a reconhecer) grafitadas nas paredes. Pousa sobre o símbolo da escola, que por
tantas vezes hoje foi minha referência visual, sob os mais diversos ângulos: “Áfricanamente
Grupo de Capoeira Angola”. Porque na parede é “grupo” e nas nossas camisetas é “escola”? 2

Roda de sexta-feira: o corpo no espaço


Estou sentada no banco longo, coberto por um pano em estampa de zebra, encostado
na parede. Um agogô na mão e um aperto no estômago, acompanhado de uma vibração sutil
ao longo de todo corpo. Traduzo o conjunto de sensações como excitação por estar tocando na
roda pela primeira vez. O reconhecimento da sensação produz um movimento no meu olhar
que, animado por esta mesma vibração sutil que percorre o corpo, começa a divagar pelo
espaço. Contemplo os rostos – alguns já vistos nos treinos, outros desconhecidos – das
pessoas sentadas no chão, sobre as almofadas, em semi-círculo. O “círculo” é fechado pelos
dois bancos alinhados ao longo da parede, onde estamos nós, da bateria.
Guto, na outra extremidade do banco, toca o gunga, berimbau de toque mais grave e
que coordena a roda. Ele percute os primeiros acordes. Em seguida entram o Rogério no
médio, berimbau de toque intermediário e responsável pela manutenção do ritmo, e a Gil, no
viola, berimbau mais agudo e que deve redobrar, ou seja, fazer os floreios mais ousados. Os
demais instrumentos entram na sequência de sua distribuição no banco da bateria: pandeiros,
agogô, reco-reco e atabaque. A sala é tomada pelo som. Fecho os olhos, e a subtração
momentânea da visão me faz perceber mais nitidamente a vibração do ritmo. É como se
pudesse efetivamente sentir a música penetrando os poros. A apreensão que sentia no início se
dissipa, não preciso pensar para tocar no ritmo, é só seguir essa vibração. Guto dá o Iê! curto e
preciso que silencia a bateria.

2 Os integrantes do grupo utilizam tanto “a Áfricanamente”, referindo-se à Escola, quanto “o Áfricanamente”,


trazendo a ideia de grupo ou mesmo do “espaço Áfricanamente”. Ao longo do texto, adotei a forma “a
Áfricanamente”, concordando com o nome completo “Áfricanamente Escola de Capoeira Angola”.

3
Abro os olhos. O corpo ainda vibra, mas agora de outro jeito: o aperto no estômago
desapareceu, e sinto os músculos ao mesmo tempo relaxados e muito vivos, despertos.
Percebo meus olhos também relaxados. A bateria recomeça, somente berimbaus e pandeiros.
Iêêêê... Guto puxa a ladainha. Meus braços pendidos à frente, cotovelos depositados sobre as
coxas, terminam no agogô, parado, esperando o momento das louvações para entrar. É como
se agora eu apenas me permitisse perceber o que entra no meu foco de visão. Ao invés de
buscar algo para olhar, deixar a luz invadir o olho, formando a imagem no fundo da retina.
Atenta ao meu corpo e à sonoridade, não fixo a atenção no conteúdo da ladainha cantada por
Guto, e só torno a compreender o sentido das palavras quando escuto:
Iê, viva meu Deus
É o sinal para respondermos em coro, ao mesmo tempo em que entramos com todos os
instrumentos da bateria:
Iêêê, viva meu Deus, camará
Uma ligeira mudança de tônus, os braços e mãos mais ativos, engajados na percussão
do instrumento. Os olhos instintivamente acompanham essa alteração, tornando-se também
mais ativos. As pessoas sentadas formando a roda voltam a entrar no meu campo de visão.
Mas estão diferentes: algo nos rostos mudou. Uma certa uniformidade nas expressões revela
não mais a excitação anterior, mas o que consigo descrever como uma serenidade alerta.
Dos rostos em torno, meus olhos são atraídos pelo movimento dos dois jogadores que,
de agachados que estavam durante a ladainha (tão integrados à imagem que se formava em
minha visão periférica, não os havia registrado como unidades distintas da bateria), passam a
se mover lenta e circularmente em direção ao centro da roda. Embarco no movimento dos
dois, como quando se acompanha o vai-e-vem das ondas do mar. Mas logo uma suspensão,
uma interrupção brusca no fluxo contínuo do movimento, me faz perder o ritmo no agogô.
Tarefa demasiado complexa olhar o jogo e tocar na bateria. Ainda não sou capaz. O sentido da
visão mobilizado em “olhar para” – captar e compreender uma imagem intencionalmente –
não é da mesma ordem que a visão flutuante, que divaga pelo entorno e simplesmente deixa
as imagens invadirem a mente3. Comprometida que estou com a tarefa de tocar para os outros
jogarem, opto pela segunda forma, deixando meu olhar passear frouxo pelo espaço.

3 Em janeiro de 2010, participei de um wokshop de dança ministrado pelos bailarinos e pesquisadores em


dança Daniel Lepkoff e Lisa Nelson, referências fundadoras da dança pós-moderna norte-americana, desde os
anos 60. Lisa desenvolve uma pesquisa centrada nas variações dos modos de olhar – look for, look around,
look at, a diferença entre looking e seeing (deixo em inglês para não perder a sutileza dessas diferenças).
Acionando diferentes modos de olhar, consegue-se alterar o movimento, a percepção do corpo e do mundo.

4
Nesse movimento, o olhar percorre as figuras de Zumbi, Bob Marley, Martin Luther
King e Steve Biko, grafitadas contra um fundo de cores fortes na parede em frente. O recorte
de uma janela interior emoldura o tecido pintado com a imagem de duas zebras numa
paisagem de savana, no corredor. A própria janela, assim como os dois vãos de portas desta
sala, é emoldurada por cortinas em padrão zebrado, preto e branco (as cores da escola) 4.
Impossível não lançar um breve olhar aos dois jogadores no centro: andando sobre quatro
apoios, encarando-se por baixo das pernas, fazem uma imagem-duplo das zebras estampadas
na parede.
Nesse mesmo momento, alguém da roda me sinaliza, com o olhar e a mímica do gesto
de tocar, que quer pegar o agogô. Estando na roda de capoeira, na posição em que for, o olhar
precisa captar muitas informações ao mesmo tempo. Levanto, ainda tocando até que a pessoa
chegue para eu então passar o agogô para suas mãos. Saio bem colada à borda da roda,
esquivando-me rapidamente dos pés de um dos jogadores (chego a sentir o ventinho deles
passando rente à minha cabeça).
Desde minha almofada, bem sentada, com a única tarefa de responder o canto no coro,
o olhar está mais livre para deixar-se levar pelo jogo. Mas, talvez efeito do momento anterior,
não consegue desprender-se das paredes. Fica, então, num jogo de figura e fundo, olhando
pernas e pés que passam na frente do olho de Xangô na parede, logo atrás do Guto. Como
uma imagem, configura-se em minha mente o pensamento de que não deve ser à toa que o
orixá do mestre está colocado bem no lugar do Gunga – lugar de onde se comanda a roda. É
um meio rosto de Xangô, negro, enfatizando o olho, sério, cabeça coberta de búzios, com seu
machado de duplo corte empunhado próximo ao rosto. Tem um pouco mais que a altura de
Guto, sentado no banco, empunhando seu berimbau, a postura ereta e móvel, um leve balanço
do corpo que repercute no próprio instrumento. O berimbau é quase o machado desse Guto-
tornado-Xangô numa espécie de fusão imagética. Como se ambos – o mestre da roda e o orixá
– se animassem mutuamente, criando e se alimentando da atmosfera que agora impregna o
espaço.

Acredito que o exercício concentrado nesse procedimento técnico contribuiu para iluminar as sutilezas da
percepção presentes nesta descrição.
4 As cores, segundo Guto, vêm da vontade de preservar uma ligação com a ACANNE (Associação de Capoeira
Angola Navio Negreiro, seu antigo grupo, cuja sede fica em Salvador, e é coordenado por mestre Renê),
através do branco, e ao mesmo tempo marcar uma nova identidade. A escolha final do preto para compor com
o branco faz uma referência ao N'Golo, ou “dança da zebra”, tida como uma dança africana que estaria nas
origens da capoeira (uma das versões da história aceita pela ACANNE e pela Áfricanamente).

5
Meu olhar então pousa sobre o símbolo da escola – círculo preto e branco, o mapa da
África, silhuetas de dois capoeiristas no centro. Não posso deixar de perceber um sorriso no
canto de meus lábios, reflexo do reconhecimento de que afinal posso contemplá-lo parado. Ou
melhor, eu parada, habituada que já estou a este símbolo como referência visual buscada
desde as mais insólitas posições, visto desde os ângulos mais absurdos. Dou-me conta, então,
de que o símbolo é amparado, de um lado, por Xangô; do outro, por uma Iemanjá negra e
gorda, trajes de baiana, espelho em punho, a outra mão em gesto de bênção. Na parede
contígua, uma Iansã negra e jovem, vestida apenas com um tapa-sexo, agita longos cabelos e
empunha uma espada, o corpo todo engajado num movimento de luta, acompanhada por um
Xapanã, o corpo todo coberto de longos fios de palha.
Nessa disposição, em paredes frente a frente, Zumbi, Bob Marley, Martin Luther King,
Steve Biko, fazem uma espécie de correspondência com os orixás: ícones de cunho político,
histórico, mitológico, se espelham e reúnem para constituir a “África-na-mente” no momento
de praticar a capoeira neste espaço. Justamente a parede de ligação entre estas duas é
decorada por um imenso mapa da África, que serve de fundo para as silhuetas de dois
capoeiristas jogando.
Os pares de jogadores no centro da roda se sucedem. A cada vez, entram os que
estavam sentados mais próximos da bateria, um de cada lado, fazem seu jogo e se retiram,
para então sentarem na roda (na parte mais afastada da bateria) ou assumirem o lugar de um
dos tocadores, liberando-o para jogar. Assim, entre um jogo e outro, a roda está sempre em
movimento. Depois de certo tempo que parei de tocar, não fico mais de frente para o símbolo
da escola, mas para a parede onde estão Iansã e Xapanã. Não os vejo mais tão claramente:
deste ângulo, sentada no chão, o atabaque e seu tocador cobrem-nos quase por inteiro.
É nesse momento que escuto um novo Iê! curto do Guto, seguido da pausa imediata da
bateria. E é só nesse momento que me percebo ocupando o lugar mais próximo dos
instrumentos. Ou seja: é minha vez de entrar na roda para jogar. Será que entro? Não tenho
tempo de pensar. Para completar meu pânico, é o próprio Guto que passa o berimbau para
Rogério, instrutor da escola, e me chama para jogar com ele. Não há o que fazer, não tenho
para onde fugir. Ele está ali, me olhando sorridente, amarrando os dreads atrás da cabeça, seu
gesto característico antes de começar um jogo. Movendo-me muito lentamente, passo da
posição sentada para a acocorada ao pé do berimbau. (Quem sabe posso prolongar este
momento ao máximo e nunca passar dele?) Nenhuma consciência dos meus movimentos,

6
nada a não ser um ligeiro nó na garganta. Guto se agacha na minha frente para escutarmos a
ladainha cantada por Rogério. Ele baixa a cabeça e é então que meus olhos pousam sobre os
quadros pendurados logo acima do atabaque: duas linhagens de mestres, começando de um
lado por Aberrê; do outro por mestre Miguel, terminando no Guto5. Surpreendo-me ao
perceber que a imagem me tranquiliza: ele, Guto, está ali para me ensinar, afinal.
No âmbito de uma antropologia de orientação fenomenológica, abri este texto com a
descrição, desde o corpo, do que acontece nos treinos e, agora, do espaço no qual se
desenrolam, na Áfricanamente, rodas de capoeira todas as sextas-feiras. Desse ponto de vista,
na primeira cena nos deparamos com a desorientação provocada pela contínua mudança de
perspectiva: perdendo a referência habitual do mundo visto a partir da posição vertical, o que
sobra? Num primeiro momento, nada sobra, é um esvaziar. É o primeiro passo para se deixar
impregnar por outras imagens, percepções do mundo. O símbolo da escola, os líderes
políticos negros, as entidades mí(s)ticas, as sonoridades, não remetem a uma identidade
negro-africana ou sequer angoleira por si só. Tal construção é resultado de um processo de
objetificação: esse imagético6 é corporificado, por meio de uma impregnação lenta e gradual,
que instaura, no corpo do sujeito, a experiência de ser angoleiro, no momento mesmo em que
constrói o sentido desse “ser angoleiro” enquanto objeto cultural.
O “desconstruir” de um corpo cotidiano é parte fundamental do processo, aliado às
construções de sentido coletivas, promovidas no espaço das histórias contadas nos finais de
treino, cantadas nas ladainhas, dos comentários sobre a movimentação de uns e de outros, no
aprendizado de uma sensibilidade estética específica, onde vão-se estabelecendo os critérios
para que se considere uma atuação exitosa nesse universo, e onde os sentidos de uma
africanidade incorporada vão sendo coletivamente construídos e individualmente agenciados.
Mais do que pensar os aspectos expressivos como meras representações de uma
africanidade reivindicada pela capoeira Angola, trato aqui de compreendê-los como a
materialização instauradora de uma cosmologia. No caso, uma cosmologia que se constrói

5 As duas linhagens de mestres são consideradas referências para o Guto: de um lado, estão os mestres Aberrê,
Canjiquinha, Paulo dos Anjos e Renê (o único ainda vivo); do outro, Miguel e Ratinho.
6 Thomas Csordas pontua que se trata de um “imagético multissensório”: “imagens complexas em mais de uma
modalidade sensorial ao mesmo tempo” (Csordas, 2008:124). Uma vez que utilizo o paradigma da
corporeidade aliado ao da performance, segundo o qual a noção de imagem não está estritamente vinculada à
visão, mas remete ao imaginário, atualizado constantemente por uma multiplicidade de meios que tocam a
sensibilidade, a expressão “imagético multissensório”, aqui, torna-se redundante. No âmbito deste texto,
fique claro, entendo todo imagético como eminentemente multissensório, na medida em que diversos
sentidos estão sendo mobilizados simultaneamente na apreensão e conformação das imagens pelo sujeito.

7
com referência à África. Pouco importa a esta altura pensar o quanto de “África mesmo”
existe nessas reivindicações.
Investindo na proposta de mergulhar na experiência de tornar-me angoleira, interessa
compreender que mundo possível estamos instaurando no exercício dessas práticas, e através
de quais recursos e procedimentos. Interessa, portanto, aprofundar os conceitos constitutivos
dessa cosmologia, que não são dissociados das formas através das quais ela se materializa
(Tambiah, 1985).
Paul Gilroy (2001), ao analisar as manifestações expressivas oriundas da diáspora
negra, debruçando-se mais especificamente sobre as formas literárias e musicais da diáspora
anglofônica, observa que tais manifestações põem em cheque o próprio paradigma da
textualidade através do qual têm sido repetidamente analisadas. Propõe, então, que levemos a
sério a dimensão performática dessas expressões como forma específica de produção e
veiculação de conhecimento sobre o mundo, que exige uma reformulação conceitual para sua
compreensão.
Pensar a capoeira enquanto performance é mergulhar nessa perspectiva, atentando para
as formas que materializam a africanidade nos movimentos e sons que compõem essa prática.
A partir dos extratos de treinos e rodas apresentados até aqui, quero chamar a atenção para
três componentes fundamentais dessa estética: a estrutura de pergunta-e-resposta, a
improvisação e a circularidade.
Em termos de movimento, como vimos, primeiro aprende-se um repertório básico de
ataques e defesas, para então buscar relacionar-se com um parceiro, improvisando a partir
desse repertório. As posições de cima e baixo perdem sua relação de antagonismo para se
situarem como pontos de um espaço circular, onde a fluência entre elas ganha mais
importância que uma ou outra isoladamente. É o que vivi, no início dos treinos, como
experiência de desorientação: primeiro é preciso desconstruir a predominância da vertical,
aprendida ao longo de anos de socialização. Em seguida, abre-se o espaço para habitar outras
possibilidades de organização corporal, adotando outras referências visuais e sensoriais.
É através desse corpo, cujas possibilidades de orientação espacial não estão mais
vinculadas à posição vertical (de cabeça para cima) e à frontalidade, mas opera a partir de
uma experiência da circularidade e da tridimensionalidade, que entramos em relação de
comunicação com um parceiro. Mesmo se partilhamos um repertório comum, a tônica da
comunicação é a improvisação, e o jogo consiste em surpreender o parceiro/adversário tanto

8
com perguntas quanto com respostas inusitadas. Não por acaso, a forma do encontro é
também circular e habita esse espaço tridimensional, como se os dois, ao centro de uma roda,
fossem por vezes uma única bolha em movimento.

Roda de sexta-feira: corpos em performance


Novamente estamos na sala decorada com os ícones políticos negros lado a lado com
os orixás, animados pelo som dos berimbaus e pelo movimento dos jogadores no centro da
roda. Todas as rodas de capoeira Angola que pude presenciar ou ter notícia, hoje, obedecem a
uma mesma sequência inicial: ladainha, louvações e corridos (sendo que os jogadores só
iniciam sua movimentação quando são cantados estes últimos). Esta constância faz parte do
ordenamento instaurador do ritual. Ao mesmo tempo, cada jogo7 ao centro obedece a uma
mesma estrutura onde o início e o final são marcados ao pé do berimbau. Durante cada
encontro entre dois jogadores, elementos específicos de um código compartilhado são
utilizados, com maior ou menor propriedade conforme o nível de iniciação na prática. Esta
roda na Áfricanamente não foge à regra, de modo que qualquer angoleiro que aqui chegasse
imediatamente vincularia este grupo de pessoas a uma tradição da capoeira Angola, e saberia
minimamente como agir.
Os elementos formais que concorrem na instauração da roda como ritual, bem como os
detalhes e variações dessas formas, fazem com que cada roda seja, ao mesmo tempo, a
reiteração de uma mesma ordem e a possibilidade de emergência do novo. Falo, aqui, dos
mecanismos de repetição e improvisação que promovem a performatividade do ritual
(Tambiah, 1985).
Importante pontuar que não entendo o ritual como necessariamente vinculado ao
religioso. Stanley Tambiah, ao desenvolver uma abordagem performativa dos rituais (1985),
considera que podemos identificar alguns eventos como rituais na medida em que: são
reconhecidos como extraordinários pelos participantes, numa distinção que não é absoluta
mas relativa aos eventos que conformam o contínuo da vida ordinária; possuem, para os
sujeitos, um sentido de atuação coletiva e propositiva, e obedecem a um ordenamento que os

7 Um “jogo”, nesse caso, indica o encontro entre dois jogadores, marcado, através dos cumprimentos ao pé do
berimbau, por um início e um final. Quando dois jogadores se retiram do centro, e outros dois o ocupam, diz-
se que é um novo “jogo”, sendo que a sucessão de “jogos” compõe o ritual da roda. Quando dizemos “o jogo
da capoeira”, entretanto, referimo-nos à prática como um todo, no mesmo sentido em que usamos, por vezes,
expressões como “a arte da capoeira”, “a luta da capoeira”, e assim por diante.

9
estrutura. Além disso, estão vinculados a uma cosmologia da qual emergem e a qual
constituem em ato. O autor precisa:
Por “cosmologia” quero dizer o corpo de concepções que enumeram e classificam os
fenômenos que compõem o universo como um todo ordenado e as normas e processos que o
governam. Do meu ponto de vista, as principais noções cosmológicas de uma sociedade são
aquelas que orientam princípios e concepções tidas como sacrossantas, constantemente usadas
como referências e consideradas dignas de perpetuação relativamente imutável. Assim,
dependendo das concepções da sociedade em questão, seus códigos legais, suas convenções
políticas e suas relações sociais de classe podem ser tão fundamentais para sua cosmologia
quanto suas crenças “religiosas” no que se refere aos deuses e ao sobrenatural (Tambiah,
1985:130, aspas no original)8.
Seguindo com Tambiah, é importante precisar que o ritual não apenas se refere a
construtos cosmológicos que dizem respeito a um outro nível, digamos, superior ao da vida
ordinária. Os próprios “construtos cosmológicos estão fundados (claro que não
exclusivamente) nos ritos, e estes ritos, em contrapartida, encenam e encarnam concepções
cosmológicas” (Tambiah, 1985:130). Não há, portanto, um conteúdo completamente existente
a priori, mas uma realidade que é construída através do ritual, “como um meio de transmitir
sentidos, construir a realidade social ou (…) criar e trazer à vida o próprio esquema
cosmológico” (Tambiah, 1985:129). Assim é que encenar essa cosmologia afro-referente na
roda de capoeira é não apenas nos remetermos a ela mas, literalmente, dar-lhe existência.
Considerando as margens de improvisação, é coerente pensar que a cosmologia, mesmo
guardando um caráter de imutabilidade, é constantemente reinventada e atualizada pelos
sujeitos.
Se a cosmologia guarda um caráter de imutabilidade, que forma pode adquirir sua
encenação? A “sensação de repetição” experimentada na participação em rodas de capoeira é
um aspecto central da ritualização do evento. É um recurso formal que constitui na própria
experiência o sentido de imutabilidade dessa cosmologia, criando o que tanto Stanley
Tambiah como Victor Turner reconhecem como tradition-like effect9. Esta sensação de que
“sempre foi assim” se constrói acionando uma múltipla temporalidade: na experiência vivida

8 Todas as citações de referências em inglês foram traduzidas por mim exclusivamente para este texto, a fim de
promover a fluência da leitura.
9 Os dois autores tomam este conceito a partir da formulação de Sally Moore no âmbito de uma antropologia
dos processos judiciais (Moore, 1977). O que muda são os usos que ambos fazem, e que busco mobilizar
como complementares neste trabalho. Turner (1987) parte da observação de que mesmo a aparente fixidez
das leis é fruto de um processo constante envolvendo movimentos de fixação e espaços de indeterminação,
para construir a abordagem dos rituais como enquadres privilegiados para observar esse processo. Já Tambiah
(1985), sem discordar dessa perspectiva, busca investigar os mecanismos através dos quais essa dinâmica
opera, enfocando os aspectos formais – repetição, estilização, ordenamento, estilo de apresentação evocativo
– apontados pela autora como recursos através dos quais o ritual imita os processos e imperativos rítmicos do
cosmos, conferindo um sentimento de permanência e legitimidade ao que, de fato, são construtos sociais.

10
naquele momento, temos a sensação de ações que se repetem continuamente; tais ações
remetem à nossa memória individual da participação em outras rodas, a qual, por sua vez, está
também alicerçada numa memória coletiva. Esta, articula novamente essas diferentes
temporalidades, uma vez que é constituída tanto pelos cantos e comentários feitos naquele
momento, quanto em situações de convivência cotidiana, fora do enquadramento do ritual.
Esse sentido de imutabilidade nos fala do mecanismo de instauração de uma
cosmologia através do ritual. Nesta abordagem, entendemos que forma e conteúdo não têm
existência autônoma, mas constituem-se mútua e continuamente. Assim, na observação das
formas – do movimento corporal, dos cantos, das posições ocupadas, das disposições
espaciais, da ordenação dos acontecimentos – podemos reconhecer alguns elementos dessa
cosmologia afro-brasileira: a circularidade, o trânsito entre posições, a hierarquia, a
ambivalência. Um mundo onde tudo pode ser o seu reverso no momento seguinte e que, num
aparente paradoxo, estrutura-se a partir da noção de uma tradição muito rígida a ser
preservada.
A roda de hoje na Áfricanamente já está adiantada quando Guto chama para jogar:
Ademolu e Helô. Eu? Ele só acena com a cabeça. Absolutamente pega de surpresa, uma vez
que estava sentada ainda bem longe das laterais por onde se entra na roda, não tenho muito
espaço para negociações. Quando estamos no pé do berimbau, Guto diz para ele (que, apesar
de muito mais novo que eu, com uns 14 anos, já tem um tanto a mais de experiência na
capoeira): ajuda ela a jogar. O jogo com Guto fora uma relação quase “de pai pra filha”:
independente de termos quase a mesma idade, ele estava claramente na posição de me acolher
naquele espaço, de ensinar. Hoje tenho a sensação de que é, de fato, meu primeiro jogo numa
roda. Mil sensações e um vazio de pensamento habitam meu corpo, minha mente. Apenas
escuto Rogério puxar o canto:
Moço que coisa mais linda
diga pra mim o que é
moço isso é capoeira Angola
luta de bater com o pé

O coro responde a mesma estrofe. Guto inclina o berimbau entre nós, sinal para
começarmos o jogo. Ademolu sorri, olhando-me nos olhos. Sorrio de volta, apertando a mão
que ele me estende. Ele sai apoiando a cabeça no chão, jogando as pernas por cima num aú.
Tento fazer algo parecido, tateando o chão com os pés até ter coragem de suspendê-los por um
átimo de segundo. Muito menos do que já consegui fazer em treino, diga-se de passagem. A

11
consciência de tantos olhos me observando, de estar no centro, como que congela meus
movimentos e minhas possibilidades de arriscar.
Nascida na necessidade
pro negro se defender
nessa vida passada ô iaiá
era matar ou morrer

Esse nervoso me pega de surpresa: acostumada a estar em cena (mesmo em


improvisações de dança, onde não há nem um personagem nem uma coreografia previamente
ensaiada), imaginava que, na roda de capoeira, estaria completamente à vontade. Ledo
engano. Sinto-me a mais novata das novatas, absolutamente constrangida e envergonhada pela
consciência dos olhares em torno. Mas não há tempo para divagações. Mesmo que o jogo,
visto de fora (como eu via no momento imediatamente anterior) seja lento, desta posição onde
me encontro agora tudo parece acontecer muito rápido. Mas, prestando bem atenção, o ritmo
da bateria é rigorosamente o mesmo. O que mudou, então? O que mudou foi a posição de
onde percebo este ritmo, de onde vejo este menino a mover-se ininterruptamente, suas ações
exigindo de mim respostas mais rápidas do que consigo articular.
Moço que coisa manhosa
mostre pra mim como é
moço isso é o tal do jogo de Angola
luta pra homem e mulher

Mal consigo perceber sua meia lua – uma perna que passa, estendida e suave, à altura
do meu tronco – para então fazer uma esquiva, e escuto a voz da Olori: isso aí Helô! Ora, uma
meia lua lenta e suave como aquela não era exatamente o que se chama de um movimento
perigoso, e a esquiva não foi uma saída em nada brilhante. Seu comentário não é mais do que
uma forma de me encorajar. E que funciona! Sinto algum lugar em meu corpo – a testa! –
soltar um pouco. Ademolu, ele, sorri tranquilo o tempo inteiro. Mesmo com este primeiro
relaxar, meu coração continua prestes a sair pela boca a qualquer momento, e pensar ainda
não é a coisa mais fácil do mundo.
Moço que coisa mais linda
fale pra mim o que é
moço isso é capoeira de Angola
luta de bater com o pé

De repente me vejo presa numa tesoura: estou na posição do caranguejo, o quadril


próximo ao chão, sustentado pelo apoio das mãos e pés; ele está de costas para mim, com um

12
pé de cada lado de meu tronco. O resultado é exatamente isso que se imagina: fico,
literalmente, de cara para a bunda dele. Nesta situação, no centro de uma roda cheia de gente
que não perde uma boa ocasião de debochar, vá saber para onde olhar, que dirá para onde sair!
Ademolu só me olha por baixo das pernas e ri, divertido. Acabo, nem sei como, girando sobre
mim mesma, de modo a ficar com o rosto para o chão, e saindo, então virada de costas para
ele, pelo meio de suas pernas. Guto comenta, do berimbau: mas ah! Helô, hein?! E entendo
que foi uma saída minimamente digna.
Nascida na necessidade
pro escravo se defender
na escravidão do passado ô meu Deus
era matar ou morrer

Não posso deixar de sorrir ouvindo a voz de Rogério que, no improviso, me lembra de
que era matar ou morrer. Justamente nesse momento, Ademolu marca uma rasteira, sem
efetivamente puxar o pé para me derrubar. Escuto um opa! vindo da roda, uma voz que não
identifico. Ele não me derruba simplesmente porque não quer: está me deixando jogar,
conforme a orientação de Guto (claro que isto é algo que posso dizer hoje, olhando
retrospectivamente o vídeo da cena). Eis que, encorajada por não ter caído ainda, e pelos
comentários em torno, consigo entrar uma perna próxima a seu rosto. Há uma empolgação em
torno: risadas e algumas vozes que soltam ô iaiá! Olha a Helô!
Moço que coisa manhosa
mostre pra mim como é
moço isso é capoeira Angola
luta pra homem e mulher

Ao mesmo tempo feliz e exausta, já não tenho mais muita consciência de meus
movimentos: é apenas a sensação das pernas muito cansadas e de uma certa leveza no tronco
(uma sensação que eu iria experimentar ainda durante muitos jogos). É como se eu mais me
deixasse mover – como sendo levada pela corrente de um rio – do que fosse, eu mesma,
agente do meu movimento. Saindo de um esforço supremo para fazer um aú com cabeça no
chão, percebo Ademolu me esperando, de pé, próximo ao berimbau. É só então, através de
sua mímica de quem já está ali há horas (acompanhada de um sorriso carinhosamente
debochado), que me dou conta de que Guto devia estar nos chamando para terminar o jogo há
algum tempo. Abraço meu companheiro de jogo e saio para me sentar na roda.
A respiração ofegante, o coração continua parecendo que vai sair pela boca, mas agora
de pura aceleração decorrente da movimentação intensa: a ansiedade desapareceu por

13
completo, sendo substituída por uma sensação de alegria intensa, e pela percepção de um
relaxamento quase total dos músculos. Como em meu primeiro treino, este momento é, de
certa forma, “só um esvaziar”. Ao mesmo tempo, é deixar-se impregnar pela música e pela
imagem de Ademolu que agora segue jogando com Edson, um negro alto e magro, mais velho
que ele (uns vinte e poucos anos), com uma experiência equivalente ou superior na capoeira, e
a fama de ser um adversário perigoso. Se o jogo é um desafio especialmente para Ademolu,
para nenhum dos dois há mais o conforto de simplesmente “deixar o outro jogar”. Guto sorri
para meu ex-adversário: agora é que eu quero ver.
Voltando a sentar na roda agora, depois de ter jogado, percebo-me ocupando uma
posição diferente daquela de onde saí, minutos antes. O que mudou? Ou melhor: como
compreender esta mudança?
No plano empírico, é apenas após ter jogado que começo a entender, no meu corpo, o
que Guto e outros mestres e capoeiristas experientes não cansam de afirmar: que capoeira se
aprende mesmo na roda, na hora do vâmo vê. Ora, vimos a diferença na percepção do ritmo
da música e do movimento conforme as posições ocupadas. É só no momento em que se está
no centro da roda que se aprende, literalmente, a pensar rápido. Ou, melhor dizendo, a
“pensar com o corpo” e conseguir expressar-se através do repertório de movimentos
específico da capoeira (entre outras coisas, o não-domínio deste repertório específico pode ter
sido uma das dificuldades por mim enfrentadas, a despeito da experiência em outras situações
de performance).
No plano analítico, alguns pontos-chave de uma abordagem via antropologia da
performance são fundamentais para avançar na reflexão acerca de como se opera a mudança
de posição nesse antes e depois do jogo. Vimos que a dimensão ritualizada da roda é
facilmente reconhecível pela repetição de uma sequência ordenada dos acontecimentos,
referenciada numa cosmologia partilhada (traduzida pela ideia de uma “matriz africana”).
Cria-se assim o que Turner, Tambiah e outros autores chamaram de “tradition-like effect”, a
sensação de que uma coisa sempre aconteceu daquela forma.
Essa ordem se estabelece através da prática das regras aprendidas durante os treinos,
mas cujo domínio só se adquire no momento de participação efetiva na roda, quando somos
chamados a dar respostas adequadas (conforme o código coletivamente partilhado) às
situações mais ou menos imprevisíveis. Filiando-me a tais autores, compreendo esta dimensão
ritualizada a partir do paradigma da performance, segundo o qual as regras existem não só

14
apenas ao serem praticadas mas, principalmente, ao terem esta prática enquadrada pela
situação de encenação. Não adoto aqui uma distinção fundamental entre ritual e performance,
entendendo ambas como dimensões presentes e constituintes da roda de capoeira10. Em última
instância, então, pensá-la como performance é a observação de um fenômeno reconhecível no
plano empírico através de um recorte analítico específico. Desta forma, entrar na roda é um
passo fundamental no processo de tornar-se angoleira na medida em que a roda, ela mesma, é
entendida como instauradora de um espaço de reflexividade.
Para desenvolver este modo de olhar, minha principal referência é a abordagem de
Victor Turner para os estudos de performance no campo antropológico, desenvolvida em
intensa colaboração com as teorias advindas do campo teatral (e especialmente com Richard
Schechner). O ponto que me interessa aqui é a relação construída pelo autor entre a realidade
social e as encenações estéticas. Para analisar esta relação no plano empírico, Turner começa
estabelecendo uma posição metodológica onde o estudo da sociedade é
o estudo dos processos, não como exemplificando comprometimento com ou desvio
de modelos normativos, tanto éticos quanto êmicos, mas como performances. Performances
nunca são amorfas ou abertas, elas têm uma estrutura diacrônica, um começo, uma sequência
de fases sobrepostas mas isoláveis e um fim. Mas sua estrutura não é a de um sistema abstrato;
é gerada fora das oposições dialéticas dos processos e dos níveis do processo (Turner,
1987:80).
A estrutura dos gêneros performáticos, portanto, não vem de um lugar qualquer,
indiferenciado, mas emerge da própria realidade social. De acordo com Turner, ainda
o homem é um animal auto-performatizante [self-performing] – suas performances
são, de certa forma, reflexivas, na performance ele se revela a si mesmo. Isto pode acontecer
em dois sentidos: o ator que pode vir a conhecer-se melhor através da atuação ou encenação;
ou um conjunto de seres humanos pode vir a conhecer-se melhor através da observação e/ou
participação em performances criadas e apresentadas por outro conjunto de seres humanos
(Turner, 1987:81).
Significa dizer que um dos aspectos da ação humana é ser orientada para uma
audiência. A ação do sujeito é então considerada a um só tempo apresentação e constituição
de si. Não existe uma oposição entre esses dois termos: numa medida, a própria constituição

10 A distinção entre ritual e performance já foi objeto de vários debates. Do ponto de vista que adoto aqui,
torna-se uma não-questão. Quer dizer, uma questão que pouco contribui para a perspectiva desde a qual
problematizo o universo da capoeira. Basicamente, a partir de Victor Turner (1987) e Richard Schechner (1985,
2002), compreendo que rituais possuem dimensões performativas, assim como performances estéticas possuem
dimensões ritualizadas, um ou outro aspecto sendo valorado pelos próprios praticantes diferentemente conforme
o contexto de interlocução. A partir de Stanley Tambiah (1985), adoto igualmente a perspectiva de uma
abordagem performativa dos rituais, a qual, a meu ver, propõe uma solução criativa para o aparente dilema,
colapsando falsas dualidades e permitindo uma abordagem mais adequada para responder à fluidez da vida
social.

15
se faz através da apresentação de si. Os enquadramentos performáticos permitem, através de
uma suspensão da relação ordinária tempo-espaço, a consciência da audiência como um olhar
do outro enquanto um 'não-eu' e, através dele, a consciência de si, num constante jogo de
espelhos. É esse mecanismo que permite pensar os gêneros performáticos como emergentes
de uma dada realidade social que os conforma e à qual retornam, numa relação reflexiva.
Como se este contínuo entre performance e vida cotidiana se desse não de forma linear, mas
na forma de um oito deitado (ou de uma banda de Moebius11).
Podemos, então, pensar a roda de capoeira como uma performance na medida em que
instaura um tempo-espaço distinto do cotidiano através da manipulação de uma multiplicidade
de meios expressivos, obedecendo a uma estética específica, como vimos até aqui. Pensar a
instauração da reflexividade como modelo da relação entre evento performático e vida
cotidiana nos permite, então, retornar à questão enunciada de como voltar a sentar na roda
após ter jogado pode ser voltar para uma posição diferente daquela da qual saí minutos antes.
Dessa maneira, podemos identificar alguns mecanismos através dos quais este evento pode
configurar-se como uma arena reflexiva para os sujeitos envolvidos.
Vimos os ganhos e perdas de cada capoeirista serem comentados no momento da roda,
em frases ou outras manifestações de comemoração ou deboche. Às vezes alguns aplaudem,
riem, alguém solta: ô iaiá!!! (que é tanto elogio a quem pegou como alerta a quem foi pego).
Nesses comentários, estão sempre presentes as posições ocupadas por cada jogador no
universo da capoeira. Por isso é que, quando jogo com Ademolu, o grupo em volta vibra mais
na única vez em que consigo pegá-lo, do que nas tantas outras que ele me acerta durante o
jogo. Ao mesmo tempo, o simples fato de cair pra dentro, de entrar na roda para jogar, já me
faz avançar um pouco mais no sentido de me tornar uma angoleira. Mesmo que seja, no
início, entrar para tomar rasteira, ficar ridiculamente de cara para a bunda do outro. Significa
que estou no jogo.
Além de situar minha posição como alguém “de dentro”, os comentários em torno
potencializam minha consciência de ser observada. Vale pontuar que tal consciência está
igualmente enraizada na experiência anterior de ter, eu mesma, ocupado essas outras posições
de onde vêm os comentários, assumindo o papel de observadora (inclusive comentando as

11 A Banda de Moebius é uma figura geométrica “criada a partir da junção de das duas extremidades de uma
banda, cujas faces passam a ser simultaneamente internas e externas” (Fernandes, 2000:34). É uma imagem
utilizada pelo pesquisador do movimento Rudolf Laban para falar da relação do movimento de diferentes
partes do corpo, ou de relações do corpo com o espaço. É apropriada pela bailarina e pesquisadora Ciane
Fernandes para analisar a construção do sentido na obra da coreógrafa Pina Bausch.

16
ações de outros jogadores). Estando no centro da roda, essa consciência é experienciada e
produz efeitos concretos no corpo – tenso, no início, relaxando conforme os comentários do
cantador e da audiência, tornando-se pouco a pouco mais eficaz no jogo. Ao mesmo tempo,
essa reflexividade, produtora de efeitos concretos no corpo, aponta para a própria
performance como uma dimensão central, constitutiva do universo da capoeira. Basicamente,
só existe de fato, nesse universo, o que está performaticamente em jogo, uma vez que tudo
está vinculado ao reconhecimento coletivo para existir. A relação entre as duas dimensões –
do corpo e do coletivo – então, é o que faz com que voltar a sentar na roda seja voltar para
uma outra posição, com outra experiência do corpo no mundo, percebido então como outro
mundo.
Finalmente, a questão que emerge da experiência vivida na Áfricanamente diz respeito
ao potencial político da roda de capoeira Angola enquanto performance. Numa certa medida,
ao experienciar essas mudanças de posições – dentro e fora da roda – num espaço povoado
pela estética da africanidade, o quanto desse mundo afro-referente vai impregnando nossos
corpos e nos constituindo enquanto sujeitos também referenciados numa matriz africana,
independente de nossa cor de pele? E, ao habitarmos temporariamente (e reflexivamente) esse
mundo possível, o quanto somos capazes de nos posicionar de outra forma nos espaços para
além do universo circunscrito da capoeira?

Bibliografia

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17
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TURNER, Victor. “The anthropology of performance”. In: _____. The anthropology of


performance. London: PAJ Publications, 1987:72-98.

18
Coreógrafos em campo: criadores da dança negra no Brasil e suas mediações com
a cultura.

Fernando Marques Camargo Ferraz

Mestrando em Artes Cênicas pelo Instituto de Artes da Unesp, Bacharel Licenciado em


História pela FFLCH e artista da dança. (email:fernandoferraz@hotmail.com)

Comunicação Oral.

GT 2: Corpo, Memória e Espetáculo.

O seguinte trabalho pretende analisar como coreógrafos inseridos na História da


dança afro-brasileira, estabelecem relações com suas fontes cênicas durante os
processos de criação. Identificar como se dá a interação destes artistas com os conteúdos
simbólicos da cultura negra e como esta relação afeta seus procedimentos de criação
coreográfica, interfere na construção das identidades artísticas e políticas destes
criadores. A inserção dos coreógrafos nas comunidades de culto, seus elos de
pertencimento e a forma com que mediam estes saberes com os espaços de criação
cênica, ajudam a compreender a construção de um pensamento social sobre a dança.

Reconhecer como estes artistas formulam um saber fazer cênico a partir de suas
vivencias com o saber fazer das comunidades, ajuda a entender como cada intérprete
vivencia e reconfigura sínteses poéticas sobre os saberes da cultura afro-brasileira e
africana em seu processo criativo, agenciando-os como materiais cênicos de sua criação.
Por estas mediações elaboram-se conhecimentos sobre o corpo, a memória e a cena
desta linguagem da dança brasileira.

Palavras Chave: Dança Afro-Brasileira, processos de criação e identidades.

O campo dos coreógrafos, refere-se à lógica específica das suas práticas de


trabalho. Nelas se imbricam suas formações artísticas, as relações com seus pares, seus
reconhecimentos e prestígios como intérprete, criador e ou diretor, suas relações com
críticos, curadores, produtores culturais e em especial, os seus desempenhos nas salas de
aula e ensaio, onde a criação dos seus trabalhos coreográficos acontece.

Utilizarei aqui o termo campo de uma forma específica, na medida em que


pretendo não analisar um espaço de atuação delimitado, mas sim, narrar as formas pelas
quais se constroem encontros entre dois âmbitos: o artístico e o religioso. Deslocando
um campo de atuação determinado, relacionado aos meios de criação coreográfica, para
a apreciação de um espaço de contato entre lógicas que se diferenciam e se aproximam,
conforme a inserção particular de cada artista na religião. O objetivo aqui é o de
entender as mediações entre o profissional de dança e os membros das comunidades de
culto das liturgias afro-brasileiras, ou seja, entre os coreógrafos de um lado e os
sacerdotes e povo de santo de outro, e a partir daí traçar considerações sobre como este
encontro é determinante na produção artística dos criadores.

Néstor Garcia Canclini (2009), analisando a obra de Bourdieu, indica como a


construção da noção de campo permitiu às ciências humanas contextualizar as
especificidades inerentes aos seus objetos de pesquisa e inserir os atores sociais num
sistema complexo de relações onde negociam o poder sobre a produção e circulação de
capitais (de habilidades, conhecimentos, crenças), criando distinções e demandas,
compartilhado interesses e negociando saberes. É por meio desta mediação construída e
vivenciada de modo singular por cada coreógrafo, que os procedimentos de criação
acessam os materiais provenientes do espaço litúrgico, reconfigurando-os cenicamente.
Desta forma as entidades, os gestos, as cores, os sons, os mitos e toda uma variedade de
simbologias das religiões afro-brasileiras transformam-se em fontes para a atuação,
gerando conexões, ativando procedimentos de criação coreográfica e orientando
poéticas a serem exploradas.

Obviamente as formas de dança vinculadas à cultura da diáspora africana no


Brasil são incalculáveis, assim como são múltiplas as apropriações e interlocuções desta
cultura negra com as práticas acachapantes do colonizador europeu durante nossa
história. Inúmeras, também, foram as eventuais acomodações sofridas pela influência
dos projetos nacionalistas do Estado brasileiro e por que não, da cultura de massa
imposta pelo mercado. Devo salientar, entretanto, que estou falando de uma dança
específica, que já possui uma trajetória na história da dança cênica no Brasil. Dança
cujos primeiros intérpretes e coreógrafos foram também fundadores de uma
determinada dança moderna brasileira, que se inicia quando artistas empenhados em
desenvolver uma linguagem de dança profissional, de palco, recriaram para este espaço
as danças rituais baseadas nas religiões tradicionais afro-brasileiras, formalizando uma
técnica corporal e um estilo coreográfico hoje denominado genericamente como “dança
afro”.

A dança cerimonial, ao inserir-se num contexto coletivo de manutenção das


identidades religiosas, possui evidentemente funções sociais diferenciadas da linguagem
e elaboração estética da dança cênica, entregue às suas necessidades de busca de
linguagem coreográfica e treinamento corporal próprio para a cena. Assim este contato
possibilitou um outro modo de saber sobre o vocabulário corporal e as dinâmicas de
movimento dos rituais. O aprendizado das danças realizadas pelos neófitos e suas
entidades incorporadas, os orixás, além das outras energias ancestrais consubstanciadas
nos corpos devotos e seus comportamentos presentes, passaria por outras mediações,
outros atores. Das camarinhas, terreiros e barracões para as salas de ensaio; dos
ensinamentos de iniciação religiosa, seu tempo de observação, vivência e aprendizado
para o tempo coreografado e as livres recriações do artista. Por esta história ocorreram,
no entanto, uma promiscuidade entre estes espaços e papéis. Artistas se converteram e
“fizeram a cabeça”, gente que nasceu no santo se tornou intérprete, trânsitos artísticos
contemporâneos ritualizaram a cena, mães de santo passaram ensinamentos aos
dançarinos escolhidos, bailarinos vivenciaram o transe, segredos foram contados,
apropriações foram questionadas, recriações apontaram infindáveis possibilidades.
Por estas relações podemos inferir como se deu o contato com o universo
religioso por cada artista e de que forma os elos de pertencimento e identidade religiosa
interferem e afetam a produção coreográfica. Este viés permite verificar como se
constrói, durante a aproximação com a comunidade litúrgica, o processo de
aprendizagem do universo simbólico religioso pelos artistas, assim como, analisar como
eles elaboram a transposição da dança ritual apreendida para o espaço cênico; a
elaboração subjetiva destes saberes transformados em matrizes artísticas geradoras.
Cada coreógrafo, partindo dos gestuais, das passagens míticas ou dos diversos
procedimentos rituais, pode desenvolver um particular instrumental técnico de
treinamento em dança, assim como, escolher elementos de preenchimento e justificação
seja dos seus temas coreográficos, seja das suas técnicas de movimentação e
representação.
Ao analisar estes procedimentos é possível identificar a multiplicidade de vozes
e posicionamentos existentes nos relatos destes artistas. Em sua atuação incorporam
personas sociais múltiplas, por onde transitam o intérprete, o pesquisador, o coreógrafo,
o estrangeiro, o religioso, o militante, o professor e uma série de posições sociais
assumidas, pelas quais se regula a forma de contato entre os campos. Desta forma,
conseguimos visualizar a construção de relações que tentam legitimar o conhecimento
apreendido pelo artista, conferindo notoriedade ao saber adquirido e, até mesmo,
prestígio a sua experiência de criação. A reconstrução destas trajetórias permite verificar
as interações possíveis entre estes campos, assim como a multiplicidade de identidades
assumidas por cada sujeito interlocutor, seu espaço de poder, seu caráter dialógico e
polifônico.

Lisa Earl Castillo (2010) analisa como se opera a transmissão e circulação do


saber religioso e simbólico dentro das comunidades de culto, assim como estes saberes
transitam entre os que são “de dentro” e os “de fora” destes grupos, ou nas estratégias
de obtenção deste saber, estritamente ligado aos procedimentos de iniciação religiosa,
onde saber e poder se relacionam hierarquicamente. Seguindo o exercício de reflexão
proposto pelo Encontro, creio que a percepção dos não-saberes existentes dentro desta
relação entre os campos artístico e religioso, que compõe o objeto deste texto, se
configura menos nas histórias de vida destes criadores, no que tange às suas relações
com a liturgia e mais nas suas percepções dos silêncios e dos segredos da religião.
Como os artistas se relacionam, assim como suas obras, com aquilo que não é dado,
com o incompreensível, com a aprendizagem que lhes foi negada, com os mistérios que
os afetam e como estas dúvidas são refletidas em suas danças. Para além das estratégias
de filiação e ressignificação dos símbolos apreendidos e compartilhados, como as suas
subjetividades criadoras respondem aos limites que o conhecimento iniciático lhes
impõe. O que intentam os coreógrafos que não são, a priori, membros das comunidades
terreiro, ao se aproximarem da religião? Quais as suas buscas e indagações? Quais as
ignições e estímulos provocados neste contato? Como as recusas, os medos, as
restrições e aceitações são vivenciadas e de que forma afetam sua arte?
Tortura e Construção da Nação:
A simbologia do silenciamento na performance “Zuzu de Seus Anjos”.

Juliana Ferrari
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA
NuMiollo – Núcleo de Investigação da Cena

julianaferrarirosa@gmail.com

GT 2: Corpo, memória e espetáculo.

Discuto no presente texto as condições de representabilidade dos corpos de


pessoas que sofreram situações de violência e desapareceram sob o regime de exceção
brasileiro. Exponho para isso os meios utilizados na performance “Zuzu de Seus Anjos”
para trazer a questão à cena, e também para performatizar a perpetuação da tortura
sofrida pelos familiares das vítimas desaparecidas, e o medo e silenciamento imposto a
toda a sociedade pela eficácia da narrativa naqueles corpos inscrita. Para tanto refaço o
percurso de criação da performance “Zuzu de Seus Anjos”, abrindo os pressupostos de
sua construção e as reflexões que se seguiram à sua realização.

Como chegar aonde toca?

A pesquisa para realização de “Zuzu de Seus Anjos” teve início no ano de 2006
quando eu ministrava, como docente substituta da Escola de Teatro da Universidade
Federal da Bahia, dentre outros, o componente curricular Ética e a Organização do
Teatro no Brasil. Para circunscrever o tema fiz uma breve introdução a alguns conceitos
básicos no campo da filosofia, e parti para a definição da vida ética como a da não
violência, de acordo com o pensamento da filósofa Marilena Chauí 1, e de conceitos
desenvolvidos pela filósofa Judith Butler 2. Desejava eu então suscitar discussões sobre
a forma como os laços de afeto que unem as pessoas, quando ameaçados, são a quebra
da segurança básica necessária a um convívio humano não violento. Neste mesmo ano
foi lançado “Zuzu Angel – O filme” 3. Fui assisti-lo por causa da crítica escrita por Emir
Sader, intitulada: “Zuzu incomoda” 4. Trouxe então a discussão para a sala de aula, os
estudantes da graduação em interpretação teatral foram incumbidos da tarefa de também
assistirem ao filme.
O que mais me tocou, na época, foi o fato de ter trazido para a sala de aula o
debate sobre o filme, que eu havia indicado e julgava haver suscitado algum interesse
em meus estudantes, uma crença que se alicerçava também no fato de o filme trazer
atores conhecidos pelo trabalho em televisão e ser contado por meio de uma narrativa
bastante próxima da televisiva, quase novelesca, e que eu sabia exercer um certo
encanto sobre meus estudantes do curso de bacharelado em interpretação teatral,
especialmente a turma com quem eu trabalhava o componente curricular em questão.

Ao contrário do que eu poderia esperar, poucos deles fizeram a “tarefa” de


assistir ao filme, e nenhum deles, entre os que viram e que não, tinha conhecimento
sobre os terríveis acontecimentos da história recente de nosso país, tratando-se neste
caso do regime militar brasileiro, e dos fatos de violência nela envolvidos,
especialmente os casos de tortura e desaparecimento. Além e mais do que isso, eles
também não ficavam perplexos ou tocados pelo seu conhecimento, presente na narrativa
de “Zuzu Angel – o filme”.

Pareceu-me então urgente esta discussão. No que dizia respeito ao filme me


interessou especialmente o caso, citado apenas, de Sônia Maria de Moraes, uma jovem
que havia sido companheira do filho desaparecido procurado por Zuzu Angel (Stuart
Angel), e que havia estado exilada na França após o sumiço de Stuart, mas que ao voltar
ao Brasil fora presa pelos aparelhos de repressão em São Vicente, no Estado de São
Paulo. No filme, em um dado momento do roteiro no qual Zuzu Angel está à procura do
corpo do filho desparecido, é citado, por uma voz que narra os acontecimentos que, no
ano de 1973, Zuzu sofre um novo golpe, pois a ex-nora é presa, seviciada e morta pelos
aparelhos de repressão.

Fiquei tocada profundamente por essa citação que passa de raspão no filme, e
passei a pesquisar as condições da morte de Sônia. Percebi então que eu estava diante de
uma estória terrível, dentre as muitas outras que eu já conhecia desde a adolescência
pelos relatos de meus pais e pela leitura de “Brasil, Nunca Mais” 5. Percebi que aquela
história trazia os muitos elementos de uma encenação de Nação – a qual estávamos
começando a compreender, no curso da Pós, em suas condições performativas. O fato
de Sônia haver sido seviciada e morta com o uso de um cassetete me parecia óbvio
demais e não poderia ser ignorado, no que tangia à utilização de um objeto emblemático
de poder e autoridade e ligado inexoravelmente à nossa constituição como Nação.
Utilizamos como palavras equivalentes o cacete, no sentido de pênis, bem como com
sentido de tradicional instrumento colonial de bater, utilizações que incluem ainda o
termo derivado cassetete, como arma dos policias para patrulha das ruas.

Elaborei então na época um projeto de pesquisa que acabou guardado, e que


procurava encontrar momentos emblemáticos onde era encenada uma Nação Brasil a
partir da violência e do uso do poder e da força contra o corpo feminino. Infelizmente
são sempre muitos e por demais abundantes os exemplos. A partir da manifestação
deste desejo meu orientador no mestrado, o Prof. Dr. Fernando Antônio de Paula
Passos, orientou-me a ler o estudo feito por Diana Taylor, Disappearing Acts.
Spectacles of gender and nationalism in Argentina’s “Dirty War” 6, sobre os anos da
ditadura militar argentina e suas implicações nas questões performativas e teatrais. Ali
eu encontrava a fonte para um universo inesgotável de pesquisas e a teorização
consistente do que então eu apenas intuía intelectualmente. Deveria, no entanto, apesar
da riqueza da fonte teórica, fazer as devidas ressalvas e repensares em função de ser, a
constituição da Nação Brasil, bastante diversa (apesar da proximidade e da violência em
comum) da Nação Argentina.

O que mais despertou meu interesse no trabalho de Taylor era o pensar a Tortura
como violência inscrita no corpo, pensar nas formas de representação desta violência, na
necessidade de recompor estes corpos, de apresentá-los 7. Meus alunos da graduação em
uma universidade pública, a maioria advindos de bons colégios particulares da capital
soteropolitana, desconheciam completamente esta história, mais uma vez me pareceu
óbvio demais que os corpos tivessem sido torturados e desaparecidos materialmente, e
da história oficial também. Além disto, sua indiferença era um sintoma gritante daquilo
8
que a autora intitulou percepticídio na cultura argentina, derivado de uma
naturalização da violência, especialmente a violência gerada pela tortura. Quem assistiu
ao filme não se chocara com os acontecimentos hediondos ali relatados. Especialmente
no Brasil onde não apenas os crimes promovidos pela ditadura militar permanecem
impunes, mas permanecem em arquivos fechados, a tortura e a violência do
desparecimento continuam a ter um impacto terrível ao longo do tempo, não apenas pela
falta de percepção dos crimes que ocorreram, mas por promover a naturalização dos
mesmos crimes que continuam hoje em dia a acontecer, contra as pessoas que não têm
condições humanas inteligíveis (nos dizeres de Butler) ou que sequer têm vidas viáveis
como seres humanos (vide o caso do menino Juan, para citar o exemplo midiático mais
próximo no tempo e com maior destaque nos meios de comunicação).

Taylor fala na forma como a tortura atinge a sociedade em nível horizontal e


vertical, no qual agride a três gerações simultaneamente, a dos desaparecidos e
torturados, e seus laços de afeto, a de seus pais, e a de seus filhos, muitos também
desaparecidos, mortos, sequestrados, ou criados pelas avós. Ainda neste âmbito
podemos dizer que nossas práticas reiteradas de violência foram naturalizadas e morta
foi nossa percepção a seu respeito 9. Nossa Nação se constitui sobre a encenação
cuidadosa destas práticas, e em uma busca eficiente dos meios para transformá-las em
claras e definitivas advertências àqueles que não pretendem concordar com o “projeto
comum” de Nação, ou até mais simples do que isto, que não pretendem serem utilizadas
para a consecução deste projeto, ou, ainda mais, pretendem apenas preservar sua vida
(para não falar em preservar suas condições de humanidade). Volto ao ano de 1734:
Os escravos, ao serem transportados para o Brasil, algumas vezes se revoltavam
durante a viagem, amotinando-se nos navios que os conduziam. Não era fácil tal tipo
de revolta (...) “Por uma simples suspeita de rebeliões em um outro navio negreiro,
um capitão condenou dois negros à morte, em 1734. Uma negra escrava foi
suspensa a um mastro e flagelada. Depois, com tesouras, arrancaram-lhe cem
filetes de carne até que os ossos aparecessem; o outro condenado foi estrangulado
e arrancaram-lhe o fígado, o coração e os intestinos. Seu corpo foi cortado em
pedaços que os outros escravos foram obrigados a provar”. 10

Esta cena de morte e tortura inscrita sobre um corpo feminino de uma escrava é
relatada por Almeida Prado no livro De Pernambuco e as capitanias do Norte do Brasil,
citado na obra do historiador Clovis Moura, em seu Rebeliões da Senzala, ao descrever
o que era uma prática comum contra os participantes das revoltas em navios negreiros.

Um estado que se pré-constituiu na condição de colônia utilizando da tortura e


da decomposição da carne, e de toda uma imensa gama de meios violentos para
controlar ideologicamente os cidadãos, mas, para dizer e escrever nos corpos quem faz
parte de seu projeto e em que posição. Uma sociedade nascida da violência, em que a
ameaça contra fragilidade do corpo e da alma das pessoas é o meio mais utilizado de
“organização” (?) política. Somos vulneráveis e o Estado coercitivo ataca, para a
manutenção de seu poder, a fragilidade e vulnerabilidade corpóreas das pessoas que sob
sua égide se situam.

De acordo com Butler, somos frágeis, especialmente enquanto corporalidade, e é


ela que é ameaçada por atos de violência, os quais atingem os laços que nos unem, tanto
às pessoas mais próximas, como, em última instância, a todos os outros seres com quem
convivemos. Não queremos sofrer com a dor, nossa carne não pode padecer, nossos
sentimentos não podem ser feridos, não queremos que estas coisas nos aconteçam.
Temos vínculos, vínculos de afeto, que envolvem nossa sexualidade, nossos desejos de
bem estar. Numa sociedade violenta, além da carne, esses vínculos são ameaçados. A
tortura, nos estados totalitários funciona não apenas como uma forma de obter
informações das pessoas, obrigando-as falar. Nestes regimes ela é utilizada como uma
advertência inscrita nos corpos das pessoas: Veja o que pode acontecer com você se
você agir assim, como fulano de tal, se você não concordar com a ordem compactuada,
obrigatória, com esse ou aquele tipo de pensamento e comportamento, com um
determinado tipo de conduta sexual, de desejo. Sua carne sofrerá. Você será retirado da
presença dos seus familiares. Uma forma extremamente eficaz de tortura é ameaçar a
vida e a integridade física dos familiares do preso ou torturado. Não possibilitar o
enlutamento negando, por exemplo, à família de uma pessoa desaparecida o direito de
sepultamento, é uma forma eficientíssima de tortura. Como componente repressivo ela
atua por gerações e gerações de familiares.

Partindo do ponto de vista de que a vida não ética é a vida violenta, onde
estamos sujeitos à arbitrariedade do outro, onde o outro não nos reconhece como vida e
pode nos matar a qualquer momento, eu precisava levar a discussão sobre as
consequências da tortura para a sala de aula, e sentia necessidade de ultrapassar os
limites da Escola de Teatro da UFBA e também dar forma a esta discussão de maneira
artística.

Como encenar o corpo desaparecido?


Antes de qualquer coisa consideramos, para a construção da performance, que
era indispensável não fazer uso de uma estética do belo ou do bem acabado. Era
fundamental que pudéssemos contar a história de Sônia e dos episódios envolvidos em
sua morte e desaparecimento sem torná-los uma narrativa linear palatável. Entendíamos
que um enredo não fragmentado acabaria por transformar a história daquela mulher em
mais uma história, que se referia a um contexto histórico passado – o que, no
entendimento comum, “não nos diz respeito” – e que, portanto, poderia, em qualquer
nível, restar justificada em função daquele contexto. Era urgente assim, mostrar suas
relações com o nosso presente. Nas discussões entre mim e os outros dois artistas
envolvidos, Alda Maria e André Rosa, do NuMiollo – Núcleo de Investigação da Cena,
muitas vezes apareceu a preocupação de não deixar com que o trabalho se parecesse
com uma denúncia histórica datada. Interessava-nos, sobretudo, que fosse deixado em
relevância justamente o fato de que aqueles acontecimentos não eram passados, mas
presentes. Inspirados nas fotografias e relatos dos trabalhos de performance política do
11
grupo peruano Yuyachkani: “Adiós Ayacucho” e “Sin Título, Técnica Mixta”
(apresentados a nós por fotos e dos relatos dos artistas Miguel Rúbio e Tereza Rale,
durante os trabalhos do Núcleo de Teatros Laboratórios do Nordeste (NORTEA) no ano
de 2008, no contexto do I Festival Latino-Americano de Teatro da Bahia) decidíramos
que Sônia viria materializada no corpo da atriz, não como a jovem morta em 1973, mas
como a defunta insepulta cujo pai procurara o corpo por mais de vinte anos. Na
realidade trabalhávamos não apenas com um passado situado em 1973 e um presente,
mas com um passado situado em 1973 e os acontecimentos que ocorreram nos quase
quarenta anos que se seguiram à sua morte e tortura. Isso incluía, sobretudo, a situação
de vida de seu pai, João Luiz de Moraes 12, que passou todo o restante da vida (até sua
morte em 1995), primeiro à procura da filha, depois lutando pela verdade de outras
histórias de outros desparecidos políticos. Pensávamos nas condições de sobrevida desta
família, especialmente João e a esposa, Cléa Lopes de Moraes, família que foi obrigada,
entre outras coisas, a exumar quatro cadáveres antes de achar o cadáver “certo” no
cemitério clandestino de Perus, em São Paulo.
Para isso decidíramos que os atores se refeririam a seus personagens no passado
e na terceira pessoa e no presente e na primeira pessoa, em condições simultâneas de
narrativa. As apresentações nas ruas de Salvador deveriam ser feitas com a utilização de
microfones, não apenas para chamar a atenção do público, e suplantar a dificuldade
técnica dos atores - não habituados ao ambiente de rua - mas também para reportar a
uma prática de um dos canais locais de televisão que, uma vez, por semana, no horário
do noticiário do almoço, abria o microfone para que pessoas da rua pudessem vir pedir
notícias sobre o paradeiro de pessoas desaparecidas. Esta condição é bastante comum na
vida das metrópoles brasileiras, e sabemos que muitos dos casos são suscitados,
inclusive, pela morte e desaparecimento de corpos de pessoas ocorridos em situações de
confronto com a polícia, além de sequestros, ou da fuga de uma vida que não faz mais
sentido ou, ainda, do simples esquecimento de quem são – não podendo assim voltar
para casa. O mais importante era causar o estranhamento, e este efeito conseguíamos ao
mostrar um pai que procurava pela filha, mas esta filha não havia desparecido
recentemente, ou nos últimos dez anos, mas há quase quarenta... Por outro lado
precisávamos evidenciar a situação de Sônia como uma pessoa também à procura.
O caso de Sônia era mais delicado, e pensávamos nas maneiras de não
transformá-la em apenas um corpo reificado, um corpo significante que suplantasse o
seu significado de violência. Para isso, em seu discurso, utilizamos uma via de mão
dupla, por um lado evidenciando as condições extremamente pessoais e dolorosas de
ver aquele pai à procura de uma filha, ela mesma, que já se sabia morta, e, ao mesmo
tempo, colocando-a radicalmente como um corpo, na medida em que dizia estar
procurando por seus seios. Lembro aqui que uma das condições da tortura sofrida por
Sônia foi o arrancamento dos seus seios com um alicate, e que a situação de seu corpo
era tão degradante que foi relatado, por oficiais do exército que presenciaram a forma
como ele foi deixado, que um general chegou a arrancar suas insígnias e atirá-las na
mesa em sinal de repúdio àquela situação (fato pelo qual foi punido).
A precariedade da instalação na rua era também de fundamental importância,
além da feiura composta no corpo da atriz, o horror da materialização desta morte
naquele corpo errante. Pensávamos na performance como recomposição de um corpo
decomposto, recomposto por meio da materialização que exalaria sua decomposição. O
tom não poderia ser o de um evento teatral de rua, sob o risco de se transformar em
apenas uma aparição teatralizada. Por outro lado, fazíamos questão da presença das
câmeras, na medida em que queríamos mostrar que se tratava, sim, de uma encenação,
mas que lembrava também que a mídia assistia a essa situação, tornava-a um
espetáculo, por mais feio que fosse, e era testemunha dele.

No caso da morte de Sônia muitas foram as versões da história, a versão do


exército, que dizia que ela havia sido morta em combate, a versão da mídia (em especial
do Jornal O Globo e do Estado de São Paulo, que falavam da prisão e da morte a
caminho do hospital (depois de um “confronto” com o exército), a versão do primo do
pai de Sônia, coronel Canrobert Lopes da Costa, ex-comandante do DOI-CODI de
Brasília, amigo pessoal do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-
CODI/SP, que relatava que ela havia sofrido torturas nas dependências do DOI-CODI e
que fora morta em decorrência delas, para depois ter sua morte forjada como se fora
havida em combate (o corpo recebeu dois tiros, depois de já morto, e jogado na porta
das dependências do exército). Havia, além destas, a versão de seu pai, sem dúvida a
mais cruel, já que João foi preso por procurar a filha e perseguido durante as 48 horas
em que ela foi incessantemente torturada, e, segundo seu depoimento, disponível no
website do Movimento Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro:

O Dr. José Luiz Sobral (advogado da família) ao retornar das dependências do DOI-
CODI do I Exército, claudicava um pouco, e insinuava „ter levado umas cassetadas‟,
trazendo-me um presente inusitado: um cassetete da Polícia do Exército, mandado
pessoalmente pelo General Fiúza para a família, com a recomendação que não
falasse mais sobre o assunto, pois „todos estavam falando demais‟. Na ocasião, a
família guardou o cassetete sem lhe dar maior importância e só recentemente, há uns
2 (dois) anos, é que pude fazer a interligação dos acontecimentos, ou seja, conclui
estarrecido que o verdadeiro significado desse presente é que o mesmo General
Fiúza nos enviava, como advertência, o próprio instrumento que provocou a morte
de Sônia Maria. Este cassetete se encontra em meu poder, podendo ser apresentado a
qualquer tempo. 13

Quanto ao cassetete, pensávamos que ele deveria estar em cena, e que deveria
vir, com toda a violência, a sevícia, a público. Nossa preocupação, no entanto, era que
este não fosse um ato que pudesse ser em hipótese alguma sexualizado. Desta maneira
Alda Maria optou por retirar de dentro de sua roupa (utilizando um truque de mágica
que dava a ilusão de estar sendo retirado do meio das pernas) o cassetete, todo sujo de
sangue, em uma ação demorada acompanhada de um grito mudo. A retirada desmontava
a idéia da penetração peniana, tão cara aos militares como instrumento de tortura e
reafirmação de poder e masculinidade.

Por fim a “última” das versões, era a do Sargento Marival Chaves, membro do
DOI-CODI/SP de que o DOI CODI de São Paulo havia montado um "teatrinho" – termo
usado pelo sargento – para justificar a versão oficial de que foram mortos em
consequência de tiroteio, no mesmo dia 30 (teriam metralhado com tiros de festim o
casal e os colocado imediatamente num carro).

Os atores falavam destas várias versões dadas ao caso. Assim “Disseram que
Sônia foi morta com tiros”, “Sônia teve os seios arrancados”, “Meu corpo levou dois
tiros”, “Estou à procura dos meios seios”, são frases que se seguem na primeira e na
terceira pessoa, sendo que o uso dos dois modos era de fundamental importância, pois
sabemos que os sobreviventes da tortura sofrem processos de dissociação, inevitáveis e
necessários, entre o que são e seu corpo, entre o que são e o que foram antes da
violência, e que são uma maneira encontrada para elaborar e lidar com o que lhes
ocorreu, e sobreviver apesar disto. Já a cena do pai de Sônia, dava a versão da morte que
era a que ele conhecia, resultado de mais de vinte anos de buscas pelo corpo da filha e
pela verdade sobre seu desaparecimento, tortura e assassinato. A defunta está ali,
presente sempre ao seu lado, ele sofre com esta presença mas continua procurando por
ela.

A escolha de uma roupa formal para a representação do Pai situava esse sujeito
como mais um dentre os passantes, uma pessoa comum, vestida para trabalhar, mas os
pés descalços procuravam evidenciar o seu caminhar exaustivo para encontrar a
verdade. Ambos os atores se relacionavam com a terra e sua mistura com sangue, de
maneira a reportar visualmente à cova “comum” em que foi enterrado não apenas quem
morreu, mas quem permaneceu vivo, tendo toda a sua vida voltada para a tentativa de se
cumprir com dignidade um enlutamento, sua impossibilidade e a dor. Além da terra suja
de sangue o ator se relacionava com os objetos usualmente utilizados pelas meninas
para brincar, se comunicando assim com a filha morta e buscando reter na memória a
infância desta filha, a fragilidade de um corpo que era possível naquele tempo
proteger...

Pudemos perceber que a advertência continua pairando no ar. Muitas pessoas


nas ruas paravam para nos dar atenção, mas, ao contrário do que se vê usualmente em
apresentações cênicas de rua, poucos comentavam a intervenção. Dentre os poucos
comentários pudemos ouvir “O Ministério Público está ciente disto?” (referindo-se à
apresentação) ou “Vocês não têm medo?”. Além disto, só o silêncio e o gesto que
assente com a cabeça e demonstra conhecimento sobre os fatos, mas absoluta ausência
de mobilização, mesmo que seja apenas para esboçar qualquer fala. Por outro lado, e
pensando sobre esta mesma advertência, nos questionamos muito se não deveríamos
trabalhar com situações de tortura, morte e desaparecimento que ocorrem hoje, aos
montes. Deveríamos criar mais estratégias para performatizar estas denúncias. Sinto, no
entanto, que temos uma enorme covardia, (ou medo autêntico?) de mexer com todas
estas situações. Enquanto reviso esta comunicação lembro que há dez dias o corpo de
um menino de 11 anos da periferia do Rio de Janeiro foi encontrado, depois de
dezesseis dias desaparecido, e que a mãe, Rosinéia Maria de Moraes, resignada, dizia
diante das câmeras de televisão que sabia que o filho não estava mais vivo... Os
envolvidos na morte do garoto Juan (de Moraes, mais uma triste coincidência): Policiais
Militares, os que os acobertaram: médicos legistas emitindo laudos técnicos
“equivocados”, corregedores esperando provocação do Ministério Público... No mais, o
14
habitus , lei social incorporada pelo militares, de dar sumiço ao corpo que
comprovaria sua ação violenta, e sempre que violenta absurda, contra todos aqueles que
se constituem como vidas não viáveis, ou vidas que não merecem ser vistas. De onde eu
poderia desenterrar a coragem de Sônia e sua geração para tratar da história de Juan nas
ruas do Rio de Janeiro, eu também moradora do Rio, eu, que tenho um filho negro,
como Juan, e de apenas um ano e meio de idade? Penso com tristeza que a censura se
tornou a mais eficaz autocensura, e me pergunto quantas gerações ainda serão atingidas
pelo texto escrito no corpo de Sônia, no corpo de Juan...

Dessa maneira termino por reencenar aqui a nossa “obra de arte”, na placa que
deixávamos para que permanecesse exposta em praça pública:

Título

SÔNIA MARIA

Materiais

CARNE HUMANA, SANGUE, OSSOS, ATRIZ, ATOR, CASSETETE, ALICATE, MAQUIAGEM,


TERRA, BONECAS PLÁSTICAS, PAI, MÃE, ROUPA FORMAL DE PAI, BACIA DE DAR
BANHO EM MENINA.

Autores

NÃO SE SABE EXATAMENTE OS NOMES DOS MILITARES QUE TORTURARAM SÔNIA


NOS DOI/CODIS DE SP E RJ. O NOME DO GENERAL QUE ENTREGOU O CASSETETE AO
PAI DE SÔNIA É ADIR FIÚZA DE CASTRO, O NOME DO CORONEL QUE PRENDEU JOÃO
LUIZ DE MORAIS É HUGO FLÁVIO LIMA DA ROCHA, O NOME DO GENERAL QUE
NEGOU O FORNECIMENTO DA CERTIDÃO DE ÓBITO É DILERMANDO GOMES
MONTEIRO, O NOME DO GENERAL QUE SE NEGOU A CUMPRIR DETERMINAÇÃO DO
JUIZ PARA A ABERTURA DE PROCESSO DE INVESTIGAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS DA
MORTE DE SÔNIA É ALVIR SOUTO, OS MÉDICOS DO EXÉRCITO QUE ASSINARAM O
FALSO ATESTADO DE ÓBITO FORAM HENRRY SHIBATA E ANTONIO VALENTIN.

Técnicas

TORTURA SEGUIDA DE SEVÍCIA E ARRANCAMENTO DOS SEIOS. TORTURA


PISCOLÓGICA E PRISÃO DE FAMILIARES, DETURPAÇÃO DA HISTÓRIA,
CENSURA.

Ano

INICIADA EM 1973, SEGUE EM CONSTRUÇÃO.


1
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 12a edição, 2001, p. 356.
2
BUTLER, Judith. Burning Acts, Injurious Speech. In: Parker, Andrew & Kosofsky,
Sedgwick. In: Performativity and Performance, Edited with an Introduction by
Andrew Parker and Eve Kosofsky Sedgwick, 1995, Routledge, New York & London.
p. 197 - 227. E Undoing Gender. New York and London: Routledge, 2004
3
REZENDE. Sérgio; Zuzu Angel – o filme. Drama Biográfico. Brasil. Filmado em
película, son. ,color., Dist. Warner Bros. 2006. 103 min.
4
SADER, Emir. Zuzu Incomoda. Disponível em:
http://www.cartamaior.com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=1&post_id=34.
Acessado em 21 jul. 2011.
5
ARNS, Paulo Evaristo, Projeto Brasil Nunca Mais. Brasil – Nunca Mais – Um relato
para a história. 1ª ed. Ed. Vozes, 1996.
6
TAYLOR, Diana. Disappearing Acts. Spectacles of gender and nationalism
insArgentina’s “Dirty War”. Duke University Press: Durham, 1997.
7
Idem. In: Disappearing Bodies: Writing Torture and Torture as Writing. p. 139 – 182.
8
Idem. In: Percepticide. p. 119 – 138.
9
Idem. In: Disappearing Bodies: Writing Torture and Torture as Writing. p. 164.
10
Almeida Prado, J. F. De Pernambuco e as capitanias do Norte do Brasil, p. 295 - 6.
Apud por Clóvis Moura, Rebeliões da Senzala (Série Novas Perspectivas, 23). Ed.
Mercado Aberto: Porto Alegre, São Paulo, 1998. p. 163 – 164.
11
Fotos e demais informações sobre estes e demais espetáculos do grupo In ZAPATA,
Miguel Rubio. Cuerpos ausentes (Performance Política). Peru: Yuyachkani, 2008.
12
Informações contidas na documentação pertencente ao Dossiê dos Mortos e
Desaparecidos Políticos no Brasil, produzido pelo Centro de Documentação Eremias
Delizoicov e a Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos.
Disponível em http://www.desaparecidospoliticos.org.br/pessoa.php?id=210&m=3.
Acessado em 14 de julho de 2011, às 19:09.
13
Idem.
14
Desenvolvimento do conceito de habitus: BORDIEU, Pierre. A Dominação
Masculina. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 2003, p 64.
REFERÊNCIAS:

ARNS, Paulo Evaristo, Projeto Brasil Nunca Mais. Brasil – Nunca Mais – Um relato
para a história. 1ª ed. Ed. Vozes, 1996.
BORDIEU, Pierre. Razões Práticas: Sobre a teoria da ação. Campinas; Papirus,
1996. 7ª Ed.

_______________. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil,


2003.

BUTLER, Judith. Burning Acts, Injurious Speech. In: Parker, Andrew & Kosofsky,
Sedgwick. In: Performativity and Performance, Edited with an Introduction by
Andrew Parker and Eve Kosofsky Sedgwick, 1995, Routledge, New York & London.
p. 197 - 227.

_______________. Undoing Gender. New York and London: Routledge, 2004.

CABALLERO, Ileana Diéguez. Escenarios liminales. Teatralidades, performances y


política. Buenos Aires: ATUEL, 2007.

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 12a edição, 2001.

FERRARI, Juliana. Estudos da Performance, Ética e Pedagogia: Desconstruindo a


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MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala - quilombos, insurreições, guerrilhas. Porto


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Julho/Agosto/Setembro de 2009. Dossier: Teatro Fuera Del Teatro. Editora: Letícia
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REZENDE. Sérgio; Zuzu Angel – o filme. Drama Biográfico. Brasil. Filmado em


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http://www.cartamaior.com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=1&post_id=34.
Acessado em 21 jul. 2011.
Cartas da Prisão – Um estudo sobre a performance da linguagem em ação.

Julio Cesar Ponciano - Mestrado

Universidade Federal do Paraná

Pós Graduação – Antropologia Social

NUARP – Núcleo de Estudos de Arte, Ritual e Performance

Comunicação Oral

GT 3: Narrativa e oralidade;

Resumo: O palco desta etnografia acontece na prisão e busca compreender as


contingências da experiência vivida neste contexto pelos seus indícios registrados em
cartas escritas por presos e seus familiares e amigos. Etnografar esta realidade significa
“textualizá-lo” a partir da complexidade múltiplos olhares. Resultado é o prisioneiro
como personagem: figura liminar. Analisar uma série de cartas escritas neste contexto,
possibilita a vislumbrar, dois momentos. 1) “background”, um personagem que emerge
da narrativa de sua experiência vivida e revela as contradições do humano. Isolamento e
solidão articulam a matéria deste pano de fundo e seu conteúdo revela que o remetente
se encontra numa situação de limite: a realidade da prisão “pesa” demais. 2)
“foreground”, um modo de escrita que expressa formas de ação simbólica as quais tem
origem em fontes da experiência liminar. Ao narrar sua experiência, performatiza por
meio da narração e da escrita uma ação de busca do outro. É no “peso” de “tirar cadeia”
que se incide toda a função poética do discurso desse personagem. Em essência,
performativa. Richard Bauman (2008) põe em destaque a função poética dos eventos
performativos, conseqüência dos mecanismos poéticos e estéticos de todas as formas na
linguagem em ação pelo modo de como a mensagem é expressada. As cartas escritas
pelos presos produzem uma teoria nativa da alteridade pela integração da escrita num
sistema de reciprocidades.

Palavras-chave: cartas – prisão – narrativa – escrita - alteridade


“... Mostrar-se fazendo é performar: apontar,
sublinhar e demonstrar a ação. Explicar ações demonstrada é
o trabalho dos Estudos da Performance.” (Schchner, 2003,
26)

Este artigo representa um esforço para compreender o significado da atividade de


escrever cartas durante a experiência da prisão. A linguagem silenciosa da prisão se
assenta sob a lei do silêncio muito difícil de ser captada. No contexto penitenciário a
violência se torna uma forma de estabelecer relações sociais, uma forma de linguagem.
Não é tão somente a violência na sua forma física, pois nem é preciso muito esforço
para evidenciá-la. Mas também há outros tipos de forças, violências secretas e
simbólicas que exercem “peso” sobre o preso e a experiência da prisão. Esta é a
apresentação do cenário onde acontecem os atos desta etnografia.

Por conta desta realidade obscura, uma carta escrita neste contexto tem muito a dizer
sobre seus protagonistas. A leitura desta situação, o pano de fundo desta escrita, implica
em um complexo ponto de vista. Seu significado, embutido na contradição, revela e
atualiza os contornos desta estrutura social que já foi objeto de inúmeros trabalhos no
âmbito dos estudos sobre o Sistema Penitenciário em geral.

A inquietação que motiva a análise presente neste artigo procura avançar alguns passos
para além da representação já estabelecida sobre a situação do preso na prisão.

A prisão em três atos.

As contingências da experiência da prisão variam muito. Isso quer dizer que a


prisão é experimentada de diversos e distintos modos. No entanto, é possível concordar
que todas as referências, sejam teóricas, literárias ou ficcionais, que possuímos sobre a
prisão partem inicialmente de um aspecto comum: a imagem do prisioneiro como ser
humano sendo decomposto em partículas ínfimas, sub-humanidades, resultantes da
violência mencionada. Representam vários atos de um drama, até que o último elo
social seja rompido e se consolide o isolamento.
No primeiro ato deste drama, nos posicionamos diante de um cenário onde o
preso aguarda sua admissão. Visão que nos causa um misto de perplexidade e aquela
sensação “eu já ouvi isso antes, em algum lugar...”. Como descrever ou redescrever o
que já foi dito de diversas formas. Bastaria afirmar que se trata de um ritual de coerção
disciplinar que é elaborado e executado em minúcias por todos os seus agentes. Mas vai
além disso, e sem exagero, não pára até que a alma do prisioneiro esteja dominada e
possuída. Tem seu início com a exposição explícita do corpo nu. A exposição da nudez
para todos atesta a total sujeição. Depois, mãos postas na nuca e tem inicio a revista de
todos os orifícios seguida de mutilações aceitáveis como o cabelo e a barba, que é
raspada ou cortada, às vezes, por outro prisioneiro munido de uma imunda “cortadeira”.
Simultaneamente, o despojar-se de todos os objetos pessoais: o relógio, o óculos, a
aliança de casamento jogados em uma caixa de papelão ao chão. Um banho frio acentua
a pele arrepiada que não tem onde se secar. Algemas no punho e uma longa espera.
Uma foto polaróide complementa a identificação no extenso prontuário, ao lado das
digitais, 12 no total, incluindo a palma da mão. Por fim, uma camiseta na cor
fosforescente arremata o primeiro ato do “ritual de iniciação”, e o prisioneiro
uniformizado pode ser agora trancado em sua cela superlotada sem ter dito uma só
palavra. Com o mínimo de materiais de uso pessoal ele agora é um objeto semi-humano
reduzido ao seu corpo. Se tiver sorte ou influência receberá uma cama, mas a maioria
tem de se contentar com o chão de cimento em meio a sujeira e ratos. Com seu numero
de prontuário é agora mais um habitante no “purgatório” da civilização reservado aos
banidos do convívio social.

O segundo ato acolhe o preso em sua habitação. Algemas nos punhos e nos
tornozelos. O comportamento é robotizado, submisso as ordens dos agentes. Sete presos
um algemado ao punho do outro. Eles adentram obedientemente ao pavimento onde não
há silêncio. Quietos para não dar “vacilo”. Um som de dezenas de vozes falando ao
mesmo tempo produz um zunido constante. Ou seriam os ouvidos que estariam mais
aguçados? O som dos ferros, das chaves e dos cadeados. Os cheiros também ficam mais
acentuados. Cheiro de comida estragada e dejetos humanos . Cheiro de corpos suados sem
lavar. Um cheiro próprio do lugar, um odor que adere a pele. A cela que o espera abriga
mais de 12 pessoas de idades variadas. Ali não há camas, somente colchonetes e papelões
sobre bancadas de cimento. Algumas redes também disputam lugares no alto. Uma latrina
e um cano sem o chuveiro indica ser o banheiro. A pia serve de cozinha onde se vê um
pequeno fogareiro e um “rabo quente”, feito com a resistência do antigo chuveiro, para
esquentar água. Nas paredes, muitas fotos de mulheres nuas, tracinhos que contam dias,
que depois de certo tempo são abandonados e calendários igualmente marcados dia após
dia. Tudo parece ser improvisado. Uma névoa de fumaça de dezenas de cigarros dá um
toque fantasmagórico ao cenário. O preso entra, senta-se no chão e respira
profundamente. Os outros presos, geralmente os mais antigos, o recebem com uma
pergunta que é igual para todos: “ai mano, qual o artigo que tu caiu?”. Pergunta que serve
para avaliar se ele está no “X” certo. A noite chega e com ela a marmita chamada de
“blindada”, a mesma do almoço e contém arroz, feijão, salada, e carne com batata. E
como dormir não é possível, o jeito é ficar “zanzando” com os olhos até o dia amanhecer.
O isolamento começa a produzir seu efeito, uma sensação de compressão, um peso é
sentido no peito e na alma. A cadeia começa a pesar.

O terceiro ato encerra o circuito. O preso, destituído de sua qualificação como


pessoa, fato que é concretizado pela prisão, perde sua autonomia e é excluído de qualquer
relação de reciprocidade com o mundo livre, prerrogativa que deverá conquistar ao longo
do cumprimento de sua pena. Sua condição de preso é atualizada por todos os agentes
segregacionistas – outros presos, agentes penitenciários, policiais, psicólogos, assistentes
sociais, médicos, promotores, juízes e as mídias em geral. Todos agindo em função de um
ritual de degeneração humana, agentes de um poder simbólico que atua sobre o preso
generalizado, reduzindo-o ao estado de animalidade produtor de estigma. Monstrualizado,
destituído de valor humanitário, o preso é reduzido agora a manutenção de suas funções
fisiológicas. Apenas o monstro e sua jaula.

Pode-se afirmar que os atributos da monstruosidade, independentes de quão


bizarros (ou não) sejam os crimes por eles praticados, são construídos discursivamente. A
caracterização da representação sobre o preso e a sua associação com a monstruosidade e
a animalidade só é configurada desta forma, porque, de todos os lados está impregnada de
significações compostas de signos do imaginário histórico e cotidiano, construído por um
processo de interação social na forma de discurso ideológico. Atuam, deste modo, como
formas de comunicação, categorias valorativas de um discurso cotidiano estereotipado.
Este outro temido por todos está identificado com aquele que rompe com a normalidade,
uma ameaça a vida e portanto, incapaz de produzir sentido, tem de ser colocado em uma
categoria que o neutralize. Todos os agentes implicados, consciente ou
inconscientemente, ao utilizarem uma categoria discursiva naturalizada pejorativamente,
atuam como produtores de marginalização e criminalização. Estereótipos que comunicam
e determinam a fronteira entre o campo da ordem e da desordem. Portanto, esta relação é
marcada, tanto pelos sujeitos que falam, ou seja, os agentes de um discurso de
criminalização, quanto um sujeito que cala, discursos que são silenciados pela hegemonia
do sistema. Por isso é importante empreender um esforço para desconstruir essas sínteses
discursivas que são assimiladas, via de regra, sem nenhum questionamento.

Isso mostra dois aspectos, dois pólos da mesma realidade. Como a maioria das
pesquisas neste campo apontam é possível visualizar a apresentação cada vez mais
especializada de uma vida socializada na delinqüência. Nela, diferentes modalidades de
crimes violentos se intercambiam. É também um olhar dirigido a camadas mais pobres da
população onde miséria, juventude perdida e criminalidade se articulam construindo a
representação cada vez mais monstruosa da população encarcerada, que “merece” o
tratamento que lhe é reservado. Por outro lado, a realidade das cadeias brasileiras é de
total abandono, hiperlotaçâo e desrespeito aos direitos mínimos do ser humano.

Estes três atos, sujeição, isolamento e monstrualização, tipologicamente


representam três realidades de um ritual cotidiano sobre o sistema penitenciário. Uma
coreografia claramente performatizada.

Olhares sobre a prisão.

As contingências sobre o preso, embora verdadeiras não podem ser planas e


passivas, sustentadas pela aparência, o que leva a questionar se seria possível construir
com a mesma verdade, uma versão dinâmica e relacional sobre o preso e a experiência da
prisão. Relacional no sentido de que existem inúmeras agências e agentes sociais com os
quais o universo do sistema carcerário se relaciona. Não se trata de uma comunidade
constituída unicamente de presos. As relações se estabelecem e se estendem para além
dos muros da prisão. Se estendem aos familiares, agentes penitenciários, advogados,
agentes de saúde, voluntários, religiosos, estudantes, pesquisadores, trabalhadores e a lista
segue aumentando produzindo inúmeras impressões.

Os vários olhares sobre a prisão e o preso articulam diferentes nexos: O olhar


jurídico, o olhar teórico, o olhar literário, o olhar arquitetônico, o olhar da sociedade, o
olhar do preso. Esses olhares ora se especializam, ora se mesclam. Olhar o preso como
personagem de um “drama” significa “textualizá-lo” a partir desta complexidade de
olhares.

O preso, sujeito concreto, por meio do discurso se torna “o prisioneiro” a síntese, a


metáfora: figura liminar. Nexos também construídos pelo preso que simultaneamente olha
para a figura do prisioneiro, e acaba também se vendo refletido neste espelho construído
por meio destes múltiplos olhares.

Desta perspectiva, prisioneiro é a imagem do preso refletida em um “espelho


mágico”, resultado da subjuntividade que caracteriza um estado performático, liminar.
Mas é também um espelho mágico estilhaçado, produzindo múltiplas imagens e reflexos,
refletindo inclusive, a imagem de quem olha para ele.

É o olhar que se dirige a ruptura social, à interrupção com o tempo da vida.


Isolamento e solidão articulam a matéria deste pano de fundo. O prisioneiro como
personagem expressa formas de ação simbólica as quais tem origem em fontes da
experiência liminar. Um personagem ruidoso que emerge da contradição do humano,
produto da brutalidade e da misericórdia, da violência e da ternura, do medo e da
segurança, da clausura e da liberdade, da angustia e da paz. Personagem, intermediário,
“entre” pares de significado.

Os processos de estigmatização, ou da produção da identidade institucional pela


coersão, força e violência, de um modo ou outro, acabam se cristalizando em algum
aspecto desta rede de relacionamentos. Esta realidade pode ser investigada e analisada
no interior de um universo simbólico específico, também como um sistema de
comunicação. Deste modo, é coerente afirmar que existe uma relação dialética, entre
ruptura, de um lado, e agregação, de outro no sentido de que, integrado ao processo de
sujeição da pessoa ao sistema coexistem estratégias de integração e (sobre/com)vivência
no grupo. Isso porque, durante a internação se vivencia uma ruptura e simultaneamente
um aprendizado que envolve trocas de valores e novos rituais para aprender a manipular
referidos nas relações interiores à cadeia, qual seja, o aprendizado de uma identidade em
trânsito, freqüentemente negociada, que jamais se consolida, apenas se conforma,
permanecendo sempre em crise.

As cartas da prisão.
O ser humano reage de múltiplas formas à solidão e ao isolamento. Uma delas é
a busca do outro. O meio de comunicação alternativo ao isolamento é a escrita e, por
essa razão, a grande maioria dos presos escreve cartas.

Uma das mediações concretas entre esses dois mundos, o mundo de fora e
mundo de dentro da prisão se dá através da circulação das cartas. Em primeiro plano e
em grande medida, parte desta experiência é expressa pela narrativa em comum. Obtém-
se por meio delas uma versão sobre a experiência da prisão, uma narrativa que não
passa necessariamente, ou diretamente, pela versão institucionalizada, menos silenciosa,
quando consegue burlar a censura. Porém, em um segundo plano maior, seguindo o
caminho percorrido pela carta, desde o momento de sua produção até chegar ao seu
destinatário, uma gigantesca rede de relacionamentos se forma, pondo em movimento a
circulação tanto das cartas bem como de outros objetos.

Neste contexto, as cartas são tomadas como objetos que circulam, e ao


circularem entre inúmeros atores, constroem uma rede de relacionamentos. As cartas,
deste modo, significam, por uma via dupla, ou seja, pela narrativa de seus conteúdos, e
pelo fato de circularem.

As cartas dos presos constituem concretamente uma fonte de dados que são
interpretadas como um corpus narrativo que contrasta com a etnografia das experiências e
observações realizadas em campo. Elas têm em comum que seus Remetentes Primários,
ou seja, aqueles que dão o início à comunicação e solicitam que a carta seja aceita pelo
destinatário, estão presos. O campo de pesquisa neste sentido se dá duplamente: pelo
referencial geográfico, ou seja, a prisão como lugar, mas também; por uma situação, qual
seja, que os remetentes são pessoas que compartilham das contingências do banimento
social e do isolamento.

Evidentemente, compartilham, inclusive o fato de terem cometido crimes ou estão


sendo acusados de um lapso moral, para generalizar todas as espécies de crimes
circunstanciais movidos pela forte emoção, pelo momento. Por conta dessa condição, os
remetentes primários estão presos cumprindo penas temporalmente estabelecidas segundo
o crime que cometeram.

Nesse sentido, as relações estabelecidas para fazer com que a carta chegue a seu
destino, bem como o conteúdo narrado, destacam elementos das configurações das
histórias de vida destes personagens.
No contexto de trocas e favores, existem duas maneiras de enviar uma carta na
prisão. A primeira opção é submeter-se à via oficial e se render à censura do sistema. A
outra é recorrer à via paralela, uma rede de reciprocidade que burla a censura e a
vigilância e integra com mais verdade um circuito gigantesco no qual circulam cartas,
tanto para fora quanto para dentro da prisão.

Evidentemente que a experiência da prisão varia não podendo ser generalizada.


Para alguns, o “peso” da cadeia, em múltiplos sentidos, inspira, por assim dizer, a busca
do “outro” por meio de cartas. A cadeia “pesa”, principalmente para aqueles que
deixaram alguém do lado de fora. Entretanto, este “outro” do “lado de fora” nem sempre
é encontrado. Muitos dos presos jamais recebem visitas. Por isso, entre outras coisas, o
dia da visita é um dos dias mais “pesados” na cadeia, “um dia que não passa”, que atesta
a solidão dos encarcerados. Mas também é um dia para ver e ser visto. Um evento que
muda toda a rotina. Dia de fazer a barba, vestir uma roupa limpa, de lavar o chão e tapar
os ralos para impedir os ratos saírem. Dia de trocar cartas também. Toda uma
mobilização com o intuito de passar a imagem para os parentes de que “tudo esta bem”,
e não ampliar a tensão da preocupação. Ou seja, um esforço para tornar o mundo
tenebroso da prisão menos agressivo aos de fora.

Desse modo, é possível perceber na dinâmica da circulação clandestina das


cartas o espelhamento de uma organização social bastante peculiar, e na narrativa de um
discurso comum os aspetos da experiência da prisão. Ao acessar esse universo
simbólico tratando-o como um sistema de comunicação torna possível analisar um
conjunto de cartas, aparentemente dispersas, e reconstituir o seu caminho.

Por meio desta etnografia foi possível distinguir dois grupos distintos de
remetentes que por sua vez produzem gêneros discursivos com diferentes expectativas:

A) cartas cujo conteúdo biografam suas vidas bem como as cartas familiares
levando em conta a condição humana expressada em solidão, doença, lealdade,
amizade, amor, estratégias de sobrevivência, injustiças, isolamento e a prisão
propriamente dita. Dizem respeito, ou, estão ligadas principalmente ao grupo de
prisioneiros com vínculo social mais comprometido com a família, amigos, vida social
constituída. Para este grupo, as cartas são dirigidas principalmente “de dentro para fora”
especialmente para figuras femininas, como a esposa no caso dos homens, à irmã, à mãe
e depois a filhos, amigos, sobrinhos etc. A carta neste sentido faz parte da circulação de
outros referentes que atualizam a memória e a presença do preso na “vida”. A prisão é
representada como um sofrimento e como uma lacuna temporal, um tempo da vida que
se perde. Semelhante ao paciente doente que tem de vencer a doença, o preso deve
vencer a adversidade da prisão.

B) cartas que tematizam a busca da companhia do outro, o convite ao


relacionamento, as cartas de amor, são redigidas principalmente por aqueles prisioneiros
cujos vínculos sociais externos são precários ou não existem. Ao que tudo indica, são
indivíduos cujos vínculos sociais externos, que, de um extremo são solitários e de outro
extremo levam em conta a socialização na carreira criminosa. Nelas o artigo pelo qual o
preso ou a presa “caiu” é, via de regra evocado, um valor que produz identidade. Para
este grupo, as cartas são dirigidas principalmente “de dentro para dentro”, e buscam
companheiros(as) na mesma condição de prisioneiros. Por outro lado, as cartas deste
grupo quando destinadas “de dentro para fora” tematizam logicamente as contingências
da experiência da prisão, porém, em relação ao “adianto” de cigarros, alimentos, roupas
etc, podendo inclusive solicitar drogas, bebidas, celulares e outros contrabandos.

Através destes dois pontos de vista, o grupo A, que geralmente escreve no


circuito das cartas “de dentro para fora” e vice-versa, via de regra, procura manter vivos
os vínculos sociais, atualizando reciprocamente os sentimentos que nutrem esses laços.

O conjunto de cartas trocadas entre outros personagens que representam o grupo


B e ilustram em grande medida o segundo grupo “de dentro para dentro”, cujo conteúdo
se caracteriza pela “busca do outro”, ou seja, uma busca pelo complemento que está
ausente, um companheiro ou companheira para dividir a solidão. Este tipo de carta
representa a grande maioria, visto que, a realidade das cadeias brasileiras está repleta de
pessoas que perderam seus vínculos sociais externos e ficam a mercê do acaso e do
destino, dependendo de advogados, defensores públicos e das benesses de religiosos.
Evidentemente que a maioria das cartas deste gênero circula pela via clandestina.

Estes gêneros discursivos, quando submetidos à análise no interior do paradigma


analítico da performance revelam padrões, marcas performáticas, tanto no conteúdo
quanto na forma evidenciando que a carta, enquanto objeto relacional estabelece
conexões com o mundo social que ultrapassam a função lingüística. Como objeto
relacional, a carta concebe uma função poética que a caracteriza como expressão
performativa, visto que, concentra em si, camadas paralelas, representadas pelos
argumentos do personagem, pela caligrafia, desenhos decorativos, dobras, cheiros.
Camadas produtoras de significados que chamam, ou seduzem o destinatário por meio
de uma eficácia retórica a uma relação mútua de trocas no interior de um circuito de
ausências.

As cartas “de dentro para dentro” seguem um elaborado ritual de mútuo


conhecimento. Nelas, dois argumentos batem e rebatem: primeiro, a situação de
prisioneiro é atualizada, reforçando o “peso” de cada dia, e segundo, o compromisso é
reafirmado, no qual, apesar de tudo “estamos juntos” hoje e também estaremos amanhã,
na “liberdade”.

Desta forma, se por um lado, a dinâmica da circulação das cartas remete ao


contexto das representações sociais sobre a cadeia e exercem sobre o prisioneiro a
formulação de estratégias de convívio, por outro lado, o conteúdo escrito expressa em
grande medida, aquilo que preenche ou esvazia a alma do preso. Melhor dizendo, do
conjunto se extrai a representação das formas pela qual o indivíduo preso se relaciona
com valores culturais da sociedade e de como a experiência da prisão espelha a
dimensão vivida da cultura, em particular, a cultura da prisão.

Além da elaboração do texto, as cartas também comportam grafites, desenhos a


mão que ilustram sentimentos como amor, paixão, saudades, traição. São desenhos de
corações, flores, pergaminhos, pessoas, faixas, composições com flechas, facas e
corações partidos.

Estes desenhos complementam a mensagem. Informam ao remetente a síntese


de um sentimento. Alguns desenhos são encomendados e papéis decorados podem ser
comprados ou trocados por contrabando. Às vezes aparecem no centro da mensagem, e
em outras, se tornam a sua moldura. O vermelho é a cor predominante, indispensável
para representar o sentimento de amor. Os motivos religiosos também aparecem,
comportando versículos bíblicos e hinos religiosos. Comportam símbolos que reforçam
os dois tipos de discurso mais recorrente nas cartas: o discurso amoroso e o discurso
religioso, que englobam a maior parte do conteúdo sobre o sofrimento e a esperança de
libertação. Geralmente, as flores são utilizadas para representar as pessoas de estima.
Uma rosa vermelha, por exemplo, enfatiza que a pessoas é amada, e é oferecia às
namoradas e esposas. Um coração representa o sentimento de amor e a flor açucena
representa a saudade. Estes elementos aparecem em grande parte das cartas que versam
sobre paixão, casamento mensagens de compromisso e mútua fidelidade.

Em algumas cartas esses elementos aparecem combinados formando mensagens


simbólicas mais complexas. Por exemplo, uma rosa, um coração e uma Bíblia aberta diz
respeito a uma pessoa que ama e esse relacionamento é transpassado pela mensagem
religiosa de apoio e fortalecimento mútuo.

Entretanto, em outro exemplo, duas flores representam duas pessoas, se são


rosas é por que existe um compromisso de amor entre elas. Porém o coração, símbolo
deste amor está partido por uma faca, geralmente utilizada para representar a traição. A
flecha e os caules das flores dizem respeito ao sentimento que de amor se tornou
incompatível e é inevitável a separação.

Neste sentido, é possível ler as cartas também pelas ilustrações que elas
comportam. Uma mensagem simbólica associada à escrita, em que ambas, procuram
produzir mais força ao discurso, seja amoroso ou religioso. Este simbolismo se estende
aos cheiros, às dobras, ao tipo de material. Todos “falam” em conjunto.

Abordagem Performática

O preso, que é um sujeito concreto, banido do convívio social, gradativamente


vai sendo decomposto, pelo aparato institucional de disciplinamento, em sub-
humanidades até que o todos os elos sociais sejam rompidos. O indivíduo,
aparentemente passivo, aparenta encarnar uma nova identidade institucional imposta e
simultaneamente negociada. Por sua vez, há de mobilizar estratégias, atualizando-se,
por meio de mediações, construindo para si, uma nova identidade, “em função” da nova
realidade, ou seja, uma identidade funcional1, ficcional no sentido narrativo, que lhe
permita assumir novos papéis e compreender novos códigos de conduta. E desse
movimento de fragmentação e estratégias de reconfiguração é que surge a representação
do prisioneiro como liminaridade de seu personagem.

Evocar o termo liminaridade significa trazer para a discutição a análise


antropológica dos rituais, especialmente e tradicionalmente os ritos de passagem onde
os indivíduos são convocados a mudar de posição dentro de um sistema social em
particular. Os ritos de passagem se prestam a função de aparar os conflitos que
                                                            
1
Inserir uma nota
implicam, por exemplo a passagem da infância para o mundo adulto. Portanto, um
indivíduo que estava “fora” e passa por uma transição para “dentro” da sociedade em
comum2. Um dos aspectos que envolve o comportamento ritual, a liminaridade, (onde
os iniciandos são seres que estão “betwixt and between”3) ou, estados liminares, é
experimentada culturalmente de forma diversa e distinta, como esclarece Roberto
Damatta, quando analisa o Carnaval brasileiro para ali descobrir o lado positivo da
liminaridade no livro, Universo do Carnaval: Imagens e Reflexões (1981). Durante o
Carnaval brasileiro o folião experimenta a suspensão temporária da sensura social
burguesa e se entrega a loucura, ao descontrole, ao exagero, a caricatura, ao grotesco,
entre outras para vivenciar novas identidades pelas quais encontra possibilidades de
leituras inovadoras sobre o mundo, tal qual acontece com os sábios, os xamãs e
feiticeiros, ou seja, adquirem um conhecimento novo e diferenciado da sociedade e de si
próprio.

“Meu argumento central é o seguinte: o que caracteriza a fase liminar dos


ritos de passagem é a experiência da individualidade vivida não como
privacidade ou relaxamento de certas regras (pois o neófito está sempre
sujeito a inúmeras regras), mas como um período intenso de isolamento e de
autonomia do grupo. Mas, o que temos aqui é a experiência com a
individualização como um estado, não como uma condição central da
condição humana. Ou seja, a individualização dos noviços nos ritos de
passagem não envereda pelo estabelecimento de uma ruptura, por meio da
ênfase extremada e radical em um espaço interno ou em uma subjetividade
paralela ou independente da coletividade; antes, pelo contrário, essa
individualização é inteiramente complementar ao grupo. Trata-se de uma
autonomia que não é definida como separação radical, mas como solidão,
ausência, sofrimento e isolamento que, por isso mesmo, acaba promovendo
um renovado encontro com a sociedade na forma de uma triunfante
interdependência quando, na fase final e mais básica do processo ritual, os
noviços retornam à aldeia para assumir novos papéis e responsabilidades
sociais. Tudo se passa como se nos ritos de passagem, a reclusão, a
individualização e a invisibilidade dos noviços fossem classificadas como
                                                            
2
3
 Turner (1964) ‐ betwixt and between in an intermediate, indecisive, or middle position.
estados negativos, como situações perigosas e anti-sociais que o estar fora-
do-mundo (com sua pletora de mortificações) caracteriza, e que aproxima os
neófitos dos feiticeiros, dos xamãs, dos heróis civilizadores, dos profetas e
de outras figuras associadas a esse estado de distanciamento da
sociedade4.”(DAMATTA, 2000).

Seja em rituais ou festas, é pontual na ênfase performática, de que, em


determinadas condições, especialmente aquelas que envolvem um separação radical
como o banimento e o isolamento social, repercute em um estado de intensa
individualização, que paradoxalmente se apresenta anexada ao coletivo (transformação
dos indivíduos). Este aspecto, fundamental neste conjunto de referencias teóricas,
evocadas para fundamentar o significado da liminaridade na experiência da prisão,
demonstra que este estado liminar suspende o indivíduo (como em um balcão) entre
dois mundos, fora e dentro.

Ao narrar sua experiência, performatizar por meio da escrita uma ação de busca
do outro, se coloca entre a realidade e a ficção, aos quais ele não pertence nem a um
nem a outro, ou seja, encontra-se localizado “entre” eles, uma posição intermediária, ou
seja, o espaço da alteridade. Esse aspecto que ressalta o prisioneiro como o personagem
é construído pelo preso por intermédio de uma performance discursiva que pode ser
capturada em suas cartas.

Portanto, o personagem que é o foco da atenção na análise que vimos


construindo não é tão somente a ficção do preso ou a de outros agentes sobre a sua
realidade, muito menos a representação tipificada do pesquisador imposta sobre seu
“objeto de pesquisa” e sim, é a manifestação de um fenômeno discursivo, dotado de
uma função poética, ou seja, o prisioneiro neste sentido é um ente relacional, que
emana das relações configuradas socialmente em situações limites e nisto reside um
aspecto universal, guardadas as devidas proporções. Este fenômeno não é uma
exclusividade do “eu” ou do “outro”, mas se manifesta como produto desta teoria da

                                                            
4
  DAMATTA,  Roberto. Individualidade  e  liminaridade: considerações  sobre  os  ritos  de  passagem  e  a 
modernidade.Mana [online]. 2000, vol.6, n.1, pp. 7‐29. ISSN 0104‐9313.
alteridade nativa, ou seja um “Rosto” que surge “entre nós”5 atuando simultaneamente
no “ator” que o “interpreta” quanto na “platéia” com a qual interage.

Este prisioneiro, ao escrever e compartilhar suas angústias, seus medos, sua


sexualidade, bem como toda espécie de ausências, lembranças e saudades, congrega
experiências de vida num texto comum, um enredo que o constitui em personagem. Pelo
ato de narrar cria uma identidade constituída na narrativa em função da experiência
vivida, qual seja, a vivência de enfrentar uma situações traumatizantes, as quais incidem
no personagem a partir da realidade externa. Pelo ato de narrar-se, de autobiografar, de
romancear o sentido de sua vida e a dos outros, seu discurso muitas vezes revela que o
remetente se encontra numa situação de limite: a realidade da prisão “pesa” demais.

É no “peso” de “tirar cadeia” que se incide toda a função poética do discurso


desse personagem. Toda poética é, em essência, performativa6.

O conceito de performance condensado por Richard Bauman (2008) põe em


destaque a função poética dos eventos performativos. Para o autor, a experiência
invocada pela performance é conseqüência dos mecanismos poéticos e estéticos de
todas as formas na linguagem em ação. Esses eventos performativos vividos produzem
no espectador um efeito de estranhamento em relação ao cotidiano, criando assim um
olhar não cotidiano, visto que a experiência está em relevo (. Assim, a performance se
constitui de um evento em um contexto particular em conjunto com os participantes.
Deste ponto de vista, a função poética ressalta essencialmente o modo de como a
mensagem é expressada. Neste aspecto também se situa a principal diferenciação das
abordagens no campo da lingüística a qual dirige seu olhar para o conteúdo da
mensagem no interior de um ato de comunicação. Desse ponto de vista, a análise
performática realizada pela antropologia procura identificar quais os gêneros podem ser
reconhecidos e são realizados pelos membros de um grupo, como esses gêneros são

                                                            
5
LEVINAS, 1988.
6
As abordagens de análises culturais e sociais orientadas pela noção de performance
ocuparam um lugar de destaque na antropologia nas últimas décadas (Turner 1982; 1986;
Schechner 1985; Goffman 1974; Tambiah 1985; Grimes 1995). A maior expressão da
antropologia da performance é norte-americana, a qual surge em parte da sociolingüística, dos
trabalhos relativos a etnografia da fala e análises do papel da linguagem na vida social. Os
autores mais expressivos que constituíram este campo desde o final da década de 70 foram
Richard Bauman, Joel Sherzer, Gary Gossen, Dennis Tedlock, Charles Briggs e Dell Hymes.
reconhecidos e realizados nos atos performáticos e como seus significados emergem da
interação7.

“ Na linhagem intelectual à qual me filiei, toda poética é


poética em ação, na medida em que toda expressão
lingüística é situada, socialmente constitutiva e
polifuncional. Ou seja, toda poética é performativa.
Somando ao trabalho de referência e predicação, ainda
comumente considerado como a função primária da
linguagem, qualquer ato de expressão serve ao mesmo
tempo para dar voz ao falante que o produz, estabelecer
contato com seus destinatários e outros receptores, trazer à
tona efeitos no mundo, instanciar a linguagem na qual está
codificado, olhar para os discursos anteriores, antecipar
discursos futuros, e chamar atenção para as propriedades do
próprio ato de expressão”. (Bauman, 2008).

Aplicando tal referencial teórico ao desenvolvimento rumo a compreensão dos


processos de construção de identidade funcional do preso, é possível fundamentar a
hipótese de que as cartas escritas por eles produzem uma teoria nativa da alteridade,
uma subjetividade liminar na qual o prisioneiro produz, pela integração da escrita num
sistema de reciprocidades, um “outro” que não é exatamente o seu reflexo, mas uma
imagem holografada, uma biografia de múltiplas faces, derivada igualmente de olhares
e expectativas diversas, como já foi demonstrado.

                                                            
7
Sobre uma abordagem mais ampla sobre a evolução do conceito de performance consultar: Performance
e sua Diversidade como Paradigma Analítico: A contribuição da Abordagem de Bauman e Briggs, por
Esther Jean Langdon, professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa
Catarina.
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A dimensão coletiva do relato pessoal em Histórias de Sem Réis

Paula Alves Barbosa Coelho


Doutora em Artes Cênicas
Professora Adjunta UFPB

coelhomarciano@uol.com.br

Comunicação oral

GT 3: Narrativa e oralidade

Resumo: Em “Histórias de Sem Réis”, experimento de rua do Coletivo de Teatro


Alfenim, os atores têm a tarefa de “comprar” histórias de espectadores por um valor que
não ultrapasse R$ 5,00. Em que pese a ironia da situação, muitos se sentem estimulados
a narrar episódios de suas vidas. A pesquisa se concentra no intercâmbio entre atores e
público com a perspectiva de registrar em vídeo as histórias narradas, e partir daí
realizar um filme ficcional a ser apresentado ao final da performance. Interessa ao grupo
investigar a dimensão social do depoimento de pessoas que, a partir do jogo da
encenação transformam relatos da memória individual em “cena” a ser compartilhada
pela audiência. O experimento conjuga a forma imprevisível de diálogo direto com o
público a procedimentos da Lehrstück brechtiana. A fábula apresenta o impasse moral
de Sem Réis, um policial instado a decidir entre o suborno e o cumprimento do dever.
Sob pretexto de narrar a história do soldado, o grupo promove uma experiência de
compartilhamento coletivo de narrativas individuais capturadas no processo mesmo de
seu redimensionamento enquanto memória coletiva. É possível observar a potência
social da narrativa e seu poder de reativação dos laços simbólicos e culturais de uma
comunidade, ainda quando esta se encontra dispersa nas encruzilhadas dos grandes
ajuntamentos urbanos. O trabalho seleciona e organiza tematicamente esses
depoimentos para refletir sobre o papel das narrativas orais na contemporaneidade.

Palavras-chave: narrativa, teatro de rua, memória coletiva.

A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as
narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos
inúmeros narradores anônimos.

(Walter Benjamin)

Este trabalho objetiva refletir sobre o depoimento pessoal enquanto matéria para a
elaboração da experiência coletiva. Baseia-se no registro em vídeo de depoimentos
coletados durante a intervenção cênica Histórias de Sem Réis, pelo Coletivo de Teatro
Alfenim, na Paraíba, nos meses de abril e maio de 2011. Para circunstanciar a análise,
julgamos necessário descrever de forma sucinta no que consiste a intervenção cênica,
uma vez que os depoimentos são parte integrante da performance.

*
Uma trupe de artistas de rua instala equipamentos para a apresentação de um espetáculo
a ser realizado em praça pública. O material cênico consiste em um piano eletrônico,
caixas de som, microfones, uma câmera digital e uma placa de duas faces com a
seguinte inscrição: COMPRO SUA HISTÓRIA. PAGO À VISTA. ATÉ CINCO
REAIS. O experimento tem início quando o “Apresentador” e sua “Assistente”
convidam as pessoas que circulam pela praça a contarem suas histórias, deixando claro
que se trata de uma relação de compra e venda.
O experimento cênico é híbrido, realizado por quatro atrizes, três atores e um músico.
Reúne canções acompanhadas ao piano; depoimentos; cenas em que as personagens,
criadas a partir de observações de rua, agem na fronteira entre representação e não
representação; um coro – das “mulheres dos policiais em greve” – e culmina na história
do “soldado Sem Réis, o insubornável”, apresentada segundo os procedimentos da
Lehrstück, a peça didática de Bertolt Brecht.
Depois das narrativas dos espectadores, os artistas de rua executam um número musical,
através do qual informam ao público que são negociantes de “histórias”. Terminada a
música, tem início um jogo cênico que será mantido ao longo de quase a totalidade da
performance: trata-se da promessa da apresentação da história do “soldado Sem Réis, o
incorruptível”. Entretanto, a ação dos artistas será sempre interrompida por incidentes
que impedem a narrativa da história do soldado. Primeiramente, surge “Deusdete”, a
mulher do policial em greve, desaparecido há três dias. Ela faz um apelo ao público para
que a ajude a encontrar seu marido “porque senão vai ter que arranjar outro”. A esse
apelo segue-se um número de participação direta do público: são selecionados três
pretendentes para substituírem o marido desaparecido. Após o jogo de perguntas e
respostas para a seleção do melhor candidato, é anunciado um novo número musical: a
“Canção do Artista Desempregado”. Quem canta é o ator que até então circulava entre o
público como um morador de rua, dependente de crack. A apresentação desorienta o
público por sua ambigüidade, uma vez que não se explica se aquele ator/personagem é
ou não integrante da trupe. Ao final do número, entra em cena “Dona Carola”, que se
apresenta como madrinha/fornecedora de drogas desse artista de rua. Ela surra o rapaz
advertindo-o para que fuja dos artistas por serem estes péssimas companhias, os quais
refutam seus argumentos dizendo que são trabalhadores. “Deusdete” e “D. Carola” se
encontram na praça e saem de cena para procurarem o marido desaparecido.
Em seguida, antes que os artistas de rua possam enfim dar início à história de “Sem
Réis”, entra em cena uma dupla de policiais: “Sargento Machado” e “Cabo Gorete”,
esta visivelmente bêbada. De forma truculenta, o policial exige dos artistas a
documentação que libera a apresentação em praça pública; enquanto “Cabo Gorete”
manifesta solidariedade pelo movimento grevista. Ela é repreendida severamente por
seu superior. Neste momento, surge o coro “das mulheres dos policiais em greve”.
“Cabo Gorete” se divide entre obedecer às ordens para dissolver a manifestação ou
aderir ao movimento. “Sargento Machado” retira-se de cena dando à “Cabo Gorete” a
incumbência de dispersar a multidão.
Depois de calorosa batalha, “Cabo Gorete” rende-se aos argumentos do coro e aos
efeitos da bebida, de modo que desaba no chão. Os artistas de rua anunciam então a
“Canção do Valor da Carne”, que é cantada pela atriz que representa “Gorete”, agora
transformada em artista de rua.
Finalmente, a cena final da intervenção, narra a história do “Soldado João”, apelidado
de “Sem Réis” pelo chefe da corporação, por nunca ter um centavo no bolso. Trata-se
de uma cena que reproduz o procedimento brechtiano das “Lehrstück”. O Chefe de
Polícia oferece a “Sem Réis” uma oportunidade de ganhar um salário extra se for
conivente com as atividades ilícitas do tráfico de drogas. Argumenta que o salário do
policial não é suficiente para suas necessidades. Diante da escolha de “Sem Réis”, se
aceita ou não ser subornado, os aristas de rua dirigem-se ao público com a pergunta: “O
que vocês fariam se estivessem no lugar dele?” O espetáculo termina novo número
musical, o “Rap dos Sem Réis”.
*
O experimento surgiu do processo de observação de rua realizado pelo grupo durante
um período de dois meses no centro da cidade de João Pessoa, mais especificamente na
praça conhecida como “Ponto de Cem Réis”. O objetivo era apreender, através de
depoimentos de habituais freqüentadores, o processo de degradação e descaracterização
do espaço público, conhecido como o centro nevrálgico da capital paraibana.
Ao longo das apresentações realizadas em praças pelo interior da Paraíba, pudemos
observar que as condições criadas pela intervenção cênica propiciam ao eventual
narrador de sua história pessoal uma atitude comprometida e produtiva, no limite entre a
espontaneidade e a espetacularização de si mesmo; no limite entre a legítima
reelaboração de sua memória pessoal e sua objetualização por meio da imagem
capturada pela câmera de vídeo.
Essa atitude é desencadeada por uma série de fatores. Em primeiro lugar, a incitação dos
“artistas de rua” para que alguém dentre as pessoas que se aglomeram em torno da ação
cênica, se encoraje e rompa a fronteira entre o espaço privado e o espaço público da
apresentação.
Além desse estímulo, que tende a se tornar coletivo, o fator preponderante é a relação
comercial que se estabelece. Não se trata de uma solicitação para uma performance
espontânea, mas de uma relação explícita de compra e venda. É importante ressaltar que
a intervenção é dirigida a um público proeminentemente de baixa extração social, para
quem a possibilidade de auferir algum dinheiro não é desprezível.
Entretanto, a nosso ver, o aspecto propiciador fundamental para a realização das
narrativas pessoais é a presença da câmera. Muitas pessoas se aproximam para ouvir as
histórias, menos pelo interesse na pessoa que narra do que pelo aparato que reproduz
sua imagem. Mais do que a experiência em si, chama a atenção o simulacro da
experiência.
Em textos como Experiência e pobreza e o Narrador (BENJAMIN, 1994), Benjamin já
alertava para o fato de vivermos um tempo em que a alienação do trabalho traz uma
profunda separação entre as pessoas e suas próprias obras, entre o sujeito e sua própria
experiência individual e coletiva, notadamente depois da experiência traumática da
guerra.
Atualmente, esse processo chega a extremos, de forma que sofremos a impossibilidade
de compartilhamento da experiência, e o esvaziamento da capacidade imaginativa,
consequência da violência das estratégias da mercantilização e do consumo hedonista.
Neste sentido, é perceptível a redução do espaço para as narrativas orais. A informação,
que é absolutamente efêmera e volátil, impede a construção de uma experiência
coletivizada que de acordo com o pensador alemão decorria de um tempo compartilhado
em grupo através do trabalho material.
A intervenção cênica do Coletivo de Teatro Alfenim se coloca como um ponto de
resistência em favor da narrativa e se contrapõe à quantidade avassaladora de
informação produzida pelos meios de comunicação de massa da sociedade globalizada.
Para tanto, se utiliza dialeticamente de um de seus mecanismos de sedução (no caso a
exposição pública da imagem) para a esta contrapor a experiência mesma que se realiza
como irrupção ficcional no espaço cotidiano: uma vez transformados temporariamente
em “artistas de rua”, na medida em que narram suas “histórias de sem réis”, esses
narradores populares redimensionam a experiência da intervenção cênica, de modo a
proporcionar uma nova forma de compartilhamento coletivo durante o ato da
intervenção.
O ato de narrar atualiza e unifica fragmentos da memória, criando uma história que
passa a existir no presente da cena. Dentre os vários públicos e histórias que pudemos
presenciar, verificamos a dimensão utilitária que cada narrativa carrega em si mesma.
Para que o laço de comunicação se estabeleça entre o narrador e o público há
necessidade de que aquele tenha um propósito a ser atingido com a sua narrativa, para
além dos cinco reais que vão ser adquiridos, e também que tenha domínio do que vai ser
narrado, isto é, um auto-conhecimento que impregne suas palavras de modo a
presentificar a ação evocada no ato de narrar.
No momento da narrativa o espectador/narrador experimenta o papel de ator, ele assume
o protagonismo da cena e exercita a sua performance narrativa que, segundo Richard
Bauman em seu Story, Performance, and Event: contextual studies of oral narrative,
explicita a competência da comunicação do narrador e sua possibilidade de ser sujeito
histórico. O ato de narrar proporciona uma intensificação da experiência vivida porque
associa a ela a experiência da organização do repertório pessoal e a da troca com o
público. Em nossa opinião, alinhada às reflexões de Benjamin, nas boas narrativas
assim como nas personagens dos espetáculos de rua não cabem as explicações
psicológicas, o segredo está na concisão que permite ao espectador a livre interpretação.
A concreção das imagens, bem como um comprometimento pessoal do narrador fazem
com que o público se interesse pelo que está ouvindo.
Essa configuração cênica aponta para um outro papel do ator que nesse momento se
torna um propiciador dessa narrativa. A experiência de atuar como “Assistente do
Apresentador”, portanto diretamente ligada ao processo de compra da história, me
permite afirmar que, neste caso, o ator não pode agir como espectador comum,
tampouco como apresentador de um show de variedades. A ele não cabe expressar seu
desejo de que o narrador se saia bem, ou que haja um desfecho satisfatório da narrativa.
Deve antes assumir a atitude de um comerciante que ouve a história e paga por ela.
Nesse sentido, deve assumir uma objetividade em relação à narrativa, que lhe permita
manter a prontidão e habilidade para cortar ou sugerir saltos para o seu bom andamento.
Em suma, o ator deve ser uma espécie de diretor cênico do narrador, com habilidade
suficiente para ouvir e intervir.

*
Durante o período de apresentações da intervenção, foram realizados em torno de trinta
depoimentos, numa média de três depoimentos por performance. Numa primeira análise
do conteúdo das narrativas, é possível classificá-las em determinadas categorias
dominantes:

1 – Narrativas de superação: o depoente narra como enfrentou e venceu certa


dificuldade em sua vida, com o intuito de enaltecer sua opção religiosa, a amizade de
companheiros, ou a necessidade de estudar para adquirir uma capacitação profissional.
2 – Narrativas de humor: o depoente narra como foi envolvido em uma situação
embaraçosa, geralmente ligada à performance amorosa ou sexual e o que fez para
escapar do constrangimento.
3 – Narrativas de trabalho: o depoente narra um acontecimento ocorrido durante o
desempenho de seu ofício ou trabalho, relacionado, geralmente à injustiça sofrida. Nota-
se que nestes casos há um nítido confronto entre o depoente e algum representante do
poder estabelecido.
4 – Anedotas de tradição popular: o depoente narra uma anedota de tradição popular
apresentando-se francamente como personagem real da história.
5 – Narrativas sobrenaturais: o depoente narra casos conhecidos como “Histórias de
Troncoso” ou “Histórias de comadre Florzinha”. Como no caso anterior, assume um dos
papéis centrais da narrativa.
6 – Narrativas de Pertencimento: o depoente faz a apologia da torcida de algum time de
futebol ou de algum grupo ou tribo urbana com o qual se identifica. É comum nestes
casos narrar-se a trajetória até o acolhimento na comunidade.
7 – Narrativas de migração: o depoente narra as circunstâncias que o obrigaram a
abandonar sua cidade de origem e a saudade de estar longe de sua terra. Entretanto,
enaltece o acolhimento recebido na cidade onde se encontra.

Além das categorias mencionadas acima, existem narrativas que por sua natureza não
podem ser facilmente enquadradas. Trata-se de casos insólitos, geralmente associados a
situações de risco ou violência, cuja reelaboração por parte do depoente permite
vislumbrar suas estratégias de defesa e auto-preservação. Apesar de serem muito
pessoais, esses casos assumem na narração uma dimensão pública, na medida em que
revelam involuntariamente as estruturas de poder e os mecanismos de opressão que
regem a sociabilidade das camadas menos favorecidas de nossa sociedade.
*
A descrição e o estudo pormenorizado de cada um dos depoimentos colhidos ultrapassa
a dimensão deste trabalho, uma vez que requerem maior embasamento teórico para o
aprofundamento da análise em seus inúmeros desdobramentos conceituais. Contudo,
como forma de reportar a riqueza dessas narrativas, transcrevemos a seguir três
depoimentos que julgamos ilustrar a dimensão coletiva do relato pessoal.

A História de Jonas (7 anos de idade).


(Depoimento colhido no Bairro Valentina Figueiredo, periferia da cidade de João
Pessoa, PB, em abril de 2011).

“Todo dia de manhã eu vou pra escola, quando chego em casa minha mãe dá em
mim”.
(risos do público) “Quando chega em casa meu pai dá em mim também”. (desconforto
geral no público).

A História de Adriana (moradora de rua).


(Depoimento colhido na cidade de Campina Grande, PB, em maio de 2011.)

“Gente, o que eu tenho pra dizer é isso: eu cheguei na rua eu tinha 14 anos, minha
primeira droga foi a cola. Convivi com eles tudinho, mas graças a deus nunca levei
tapa de polícia sobre roubo. Nunca fui xingada sobre roubo. Vivo no meio deles
tudinho. Conheço eles tudinho, mas nunca levei xingação com o nome de ladrona.
Apenas teve um policial que me apanhou por causa que eu achei uma chave de carro.
O dono do carro pensou que eu que tinha roubado a chave do carro dele. Ele sempre
freqüenta aqui o cafezinho. Eu olhei para a cara dele e disse: Sua chave eu não vou lhe
entregar aqui já que o senhor está me chamando de ladrona. Bora pro posto de polícia
que lá eu entrego. Aí lá eu falei com o tenente, entreguei pro tenente. O tenente disse:
“Mas como foi?”Ai eu fui e contei, e disse: ó , vinha eu mais meus dois filhos, eu vi
dois caras negociando, nem um nem outro pegou essa chave, jogaram. Aí eu fui e
peguei. Quando eu cheguei aqui na praça o dito cara que jogou a chave bateu nas
minhas costas e disse: “Ei, o dono dessa chave é meu pai” Aí e fui e respondi: “Vai
chamar seu pai pra mim entregar pra ele.”. Sabe quando ele foi chamar o dono da
chave? Ele é que era o ladrão. Aí o dono da chave quis segurar ele. Ele foi e correu e
eu fiquei. Eu estava ainda com meus dois filhos. Como eu fiquei, aí fui diretamente pra
guarita. Chegou na guarita, quando eu falei com o tenente, o tenente disse: “Ó, ela
chega aqui às vezes às sete da manhã, sete, oito, dez, onze horas da noite, até agora a
gente ainda não tem queixa dela.” Aí, pra ele tirar os panos a limpo, ele disse: “depois
eu te dou uma recompensação”. Olhei pra ele, eu estava com minha bolsinha cheia de
moeda. Aí eu falei pra ele: Eu digo, “Ó, sua recompensação não interessa não. Que
aqui eu tenho. Mas aqui não foi roubado, aqui foi pedido. E eu estou com os meu dois
filhos aqui. Eu não preciso não. Agora, ninguém é obrigado a dar nada a ninguém, eu
peço, dá se quiser”. (aplausos) Como eu levo muita xingação aqui, às vezes, olha pra
mim e aí... Não, falando sério, igual mesmo um senhor da Federal. Veio aqui pra
guarita. Ali no calçadão eu pedi a ele uma vez e ele me xingou aqui. Aí eu vi ele lá
perto do calçadão. Eu estava com um menino que sempre me ajuda, vendendo anel. Ele
me deu um empurrão. Quando ele me deu um empurrão, eu olhei pra ele e disse: “Ó, se
usa licença”. Ele disse: “Mas porque eu vou pedir licença a você?Você é vivente de
rua”. Mas eu sou gente igualmente a você, igualmente a qualquer um. Ele disse: “Mas
se você falar muita merda, eu dou um tiro na sua cara.” Apois, você não vai não,
porque eu vou agorinha no posto. Aí eu vim pro posto, o tenente falou com ele... até
hoje quando me vê ele não olha pra mim e também não me responde. Porque ele é um
senhor de idade, porque seu tom é de senado federal, porque eu sou de rua, aí ele
queira me botar lá embaixo. Digo “Não, jamais você vai me botar lá embaixo!”.
(aplausos).

A História de Eliane (profissão gari).


(depoimento colhido na cidade de Areia, PB, maio de 2011).

“Boa tarde para todos. Quem conhece, quem não me conhece, eu sou Eliane,
conhecida por mis suce (sic). Aqui, da cidade de Areia. (aplausos.). Eu tenho uma
história para contar a vocês. Suje a rua, bote bastante lixo... suje a rua, bote bastante
lixo porque a cidade precisa muito de gari.E eu fui contemplada em ser a gari central
desta cidade. Eu sou a gari central. Agradeço a Deus pelo lixo, porque através do lixo
eu tenho o meu emprego. Numa crise muito braba, pesada, marido alcoólatra, dois
filhos, saindo recentemente do segundo grau... 2003 teve um concurso aqui nesta
cidade para gari, professor e outras funções, e eu optei para (sic) ser gari. E através do
concurso eu fui contemplada, passando em quinto lugar. E sou gari aqui do centro da
cidade. Eu espero que vocês... vai terminar isso aqui... conservem nossa cidade limpa.
(aplausos.) Essa é a minha história.”

*
Os depoimentos selecionados são transcrições literais do que foi registrado em vídeo.
Note-se que os depoentes têm domínio de sua elocução, de forma que não foi necessária
nenhuma intervenção durante suas falas. Entretanto, é preciso ressaltar que houve da
parte dos “artistas de rua” a solicitação para que os narradores tentassem ser o mais
objetivos possível. Essa recomendação acontecia antes do início da intervenção cênica,
durante o momento em que o depoente, interessado na movimentação dos atores e
especialmente na inscrição da placa (“Compro sua história...”) aproximava-se e
externava seu desejo de participar.
A situação performática gerada pela intervenção dos atores (montagem do equipamento
e preparativos como aquecimento e maquiagem) propicia a experiência de interação
entre a subjetividade do indivíduo enquanto narrador e o espaço público, tornado espaço
temporário de expressão individual, sob pretexto de servir às exigências do aparato
espetacular.
Acontece que é justamente a dimensão coletiva da experiência subjetiva dos depoentes
que salta ao primeiro plano, quando o público identifica nas narrativas uma referência
de sua própria relação com a cidade. A potência desse reconhecimento ultrapassa a
identificação subjetiva entre o público e o indivíduo que narra para se instaurar como
matéria da experiência coletiva por meio do pretexto ficcional em que consiste a
intervenção cênica Histórias de Sem Réis.
Essa experiência se intensifica quando, ao final da intervenção, a história do soldado
João ganha a mesma dimensão pública, de modo a angariar as experiências individuais
narradas e/ou vividas durante a performance para o exercício de uma apreciação extra-
cotidiana e crítica da sociabilidade urbana.
Assim, a experiência com a intervenção Histórias de Sem Réis nos encoraja a afirmar
que o depoimento pessoal somente pode se constituir como matéria cênica e ficcional na
medida em que assume sua dimensão histórica, de modo a transformar-se em
testemunho de uma experiência coletiva.
Referências Bibliográficas
BAUMAN, Richard. Story, performance, and event: contextual studies of oral narrative. New York,
Cambridge University Press, 1986.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literature e história da cultura. (Obras
escolhidas v. 1) São Paulo, Brasiliense, 1994.
TRÂNSITO DAS ALMAS: RITUALIZAÇÃO DE LIDERANÇAS SINDICAIS E
PEREGRINAÇÕES COMO FORMA DE RESISTÊNCIA CAMPONESA
Edimilson Rodrigues de Souza1
Celeste Ciccarone2

Resumo: O artigo atenta para uma tradução de símbolos e signos ritualísticos que perpassam
os eventos de sacralização de agentes pastorais (e líderes sindicais) assassinados em regiões
de intensos conflitos agrários no Brasil, voltada para a reflexão sobre o sentido destas mortes
na fundamentação de discursos/narrativas de luta e resistência dos agentes de mediação e dos
coletivos rurais. Nas leituras dos rituais de santificação destas lideranças – os Mártires da
terra –, e das peregrinações decorrentes destes acontecimentos, as Romarias dos mártires da
caminhada, buscam-se aproximações etnográficas dessas figuras emblemáticas,
especialmente nas regiões de fronteira amazônica, para pensar as lutas pelo reconhecimento
de direitos sobre a terra e uso de recursos sócio-naturais, na medida em que atualizam
estratégias (im)pertinentes de mediação em espaços de tensão e enfrentamento. As narrativas
em torno desses agentes tecem novos sentidos para a morte, aliados à projeção dos mortos em
coletivos humanos e não-humanos vivos. Nestes espaços rituais, face à criação e re-
apresentação da figura do líder, uma renovada força vital reunifica os pontos de vista sobre o
direito de permanecer e de reivindicar a posse legítima da terra

Palavras-chave: Rituais camponeses – Sacralização do conflito – Mártir da terra

Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta que não


há ninguém que explique e ninguém que não entenda.
Cecília Meireles
Introdução

Ouvir e contar histórias são práticas cotidianas no itinerário de muitos etnógrafos. Olhares se
cruzam e narrativas se confrontam, palavras são transmitidas (e traduzidas), categorias são
criadas ou acessada para descrever (e compreender) universos simbólicos, estabelecendo-se
um intenso confronto entre palavra, ação e pensamento.

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo. e-
mail: edimilsonrondon@gmail.com.
2
Professora Adjunta de Antropologia do Departamento de Ciências Sociais e dos Programas de Pós-Graduação
em Ciências Sociais e Geografia na Universidade Federal do Espírito Santo. e-mail:
celeste.ciccarone@gmail.com
2

O discurso do primeiro [antropólogo] não se acha situado no mesmo plano que o


discurso do segundo [nativo]: o sentido que o antropólogo estabelece depende do
sentido nativo, mas é ele quem detém o sentido desse sentido – ele quem explica e
interpreta, traduz e introduz, textualiza e contextualiza, justifica e significa esse
sentido. (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 115)

Neste artigo, discursos e narrativas, transmitidos nos cantos, danças, relatos, com suas
expressões ritualísticas, foram registrados, durante a Romaria dos Mártires da Caminhada,
ocorrida entre os dias 16 e 17 de julho de 2011, em Ribeirão Cascalheiras (MT). Tentamos
articular fontes audiovisuais e textuais para produzir uma leitura dos sentidos estabelecidos e
partilhados pelos grupos nas narrativas e nos rituais encenados e capturados pela câmera na
mão. Este esforço de tradução dos rituais, nas falas e imagens dos agentes mediadores foi
realizado em passos lentos, com cuidado e cautela para não incorrer no risco de produzir
consensos em vez de conceitos. Pois
A boa diferença, ou diferença real, é entre o que pensa (ou faz) o nativo e o que o
antropólogo pensa que (e faz com o que) o nativo pensa, e são esses dois pensamentos
(ou fazeres) que se confrontam. Tal confronto não precisa se resumir a uma mesma
equivocidade de parte a parte – o equívoco nunca é o mesmo, as partes não o sendo; e
de resto, quem definiria a adequada univocidade? –, mas tampouco precisa se
contentar em ser um diálogo edificante. O confronto deve poder produzir a mútua
implicação, a comum alteração dos discursos em jogo, pois não se trata de chegar ao
consenso, mas ao conceito. (Ibid, p. 119)

Uma das questões centrais da analise proposta remete à tentativa de traduzir e descrever o
movimento de “trânsito das almas” dos mártires ao coletivo (LATOUR, 2009), apontando
para uma possível manipulação da imagem do mártir, articulando a alma como agente
mediador da luta. As narrativas sobre estes líderes comunitários e agentes de pastorais,
especialmente os mortos em conflitos de terra e reconhecimento dos direitos de permanência,
indicam a tentativa de inscrição dos corpos nos movimentos de resistência pelo ponto de vista
da alma dos mártires (VIVEIROS DE CASTRO, 1996).

Interessa-nos especialmente, a partir das narrativas sobre estes líderes, compreender de que
forma é elaborado um “mártir da luta”3, no intuito de pensar os efeitos dessa figura

3
Esse termo de cunho religioso assume configuração política no Brasil a partir do agravamento de situações de
conflito no campo, o que culminou com criação em 1975 da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ligada à
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que procura articular e organizar politicamente os
trabalhadores rurais e fazer mediação e intermediação na resolução desses conflitos. Reivindicando as
desapropriações de terras com base no Estatuto da Terra, essa instituição defendia uma concepção sobre a
relação fé e vida, atribuindo aos lideres dos movimentos sociais mortos nesses conflitos, uma caracterização
sagrada de doação da vida pelas causas sociais da humanidade (PEREIRA, 2004; MURPHY, 2008).
3

emblemática na produção de um discurso que articula as práticas, estruturando habitus4


através de símbolos e signos de luta e de resistência5.

Ao construir os relatos das experiências de violência que originaram a condição de martírio,


nos moldes de uma descrição etnográfica, são criadas as possibilidades de entendimento
acerca da constituição desses atores e dos desdobramentos ainda em construção que emergem
na região de fronteira que é, acima de tudo, humana, na medida em que é nessas zonas de
intensos conflitos que se potencializam enfrentamentos no plano das racionalidades, interesses
e identidades. Nesta direção, reforçamos a percepção de José de Souza Martins, que apresenta
a fronteira como o limite da alteridade
É isso que faz dela uma realidade singular. À primeira vista é o lugar do encontro dos
que por diferentes razões são diferentes entre si, como os índios de um lado e os
civilizados de outro; como os grandes proprietários de terra de um lado, e os
camponeses pobres, de outro. Mas o conflito faz com que a fronteira seja
essencialmente, a um só tempo, um lugar de descoberta do outro e de desencontro.
Não só o desencontro e o conflito decorrentes das diferentes concepções de vida e
visões de mundo de cada um desses grupos humanos. O desencontro na fronteira é o
desencontro de temporalidades históricas, pois cada um desses grupos está situado
diversamente no tempo da História. (MARTINS, 1997, pp. 150-151)

1. A Romaria, os romeiros e suas histórias

A Romaria dos Mártires da Caminhada é uma peregrinação que reúne camponeses, índios,
religiosos, lideranças sindicais, agentes pastorais e ativistas políticos de diversas regiões do
Brasil e do mundo, no município de Ribeirão Cascalheira, situado na região Nordeste do Mato
Grosso, na região do Araguaia6. A cidade resulta da junção de dois povoados, Ribeirão Bonito
e Alta Cascalheira, e o nome Ribeirão foi atribuído pelos primeiros colonos que se fixaram à
beira do córrego Suiazinho, sendo que quilômetros adiante o outro povoado foi denominado
Cascalheira pela presença de cascalho, utilizado pelos moradores.

4
Em “A Dominação masculina”, Bourdieu explica a construção do habitus da seguinte forma: “produto de um
trabalho social de nominação e de inculcação ao término do qual uma identidade social instituída por uma dessas
„linhas de demarcação mística‟, conhecidas e reconhecidas por todos, que o mundo social desenha, inscreve-se
em uma natureza biológica e se torna um habitus, lei social incorporada.” (2003, p. 64)”.
5
[...] Os símbolos são os instrumentos por excelência de “integração social”: enquanto instrumentos de
conhecimento e de comunicação [...], eles tornam possível o consensus acerca do sentido do mundo social que
contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a integração “lógica” é a condição da integração
“moral” (BOURDIEU, 2005, p. 10)
6
A região é composta pelos municípios de Ribeirão Cascalheira, Vila Rica, Serra Nova Dourada, São Félix do
Araguaia, Santa Terezinha, Santa Cruz do Xingu, São José do Xingu, Porto Alegre do Norte, Novo Santo
Antônio, Luciara, Confresa, Canabrava do Norte, Bom Jesus do Araguaia e Alto Boa Vista.
4

O município é centro da topografia sagrada, referencia na celebração dos mártires; sendo sede
da “Galeria dos mártires da América Latina”. No local, foi assassinado em 1976 o padre João
Bosco Penido Burnier, mineiro de Juiz de Fora, jesuíta, missionário que atuava entre os índios
Bakairi sendo o evento de sua morte e os acontecimentos que se seguiram assim relatados por
Pedro Casaldáliga7 em ocasião da Romaria
Era tarde do dia 11 de outubro de 1976. Duas mulheres sertanejas, Margarida e
Santana, estavam sendo torturadas na cadeia-delegacia de Ribeirão Bonito, lugar e
hora de latifúndio prepotente, de peonagem semi-escrava e de brutalidade policial. A
comunidade celebrava a novena da padroeira, Nossa Senhora Aparecida. E nesse dia
eu havia chegado ao povoado com o padre João Bosco. Nós dois fomos interceder
pelas mulheres torturadas. Os policiais nos esperavam no terreiro da delegacia e
apenas foi possível um diálogo de minutos. Um soldado desfechou no rosto do padre
João Bosco um soco, uma coronhada e o tiro fatal. Em sua agonia, padre João Bosco
ofereceu a vida pela CIMI e pelo Brasil, invocou ardentemente o nome de Jesus e
recebeu a unção. Foi morrer, gloriosamente mártir, no dia seguinte, festa da Mãe
Aparecida, em Goiânia, coroando assim uma vida santa. (Pedro Casaldáliga,
entrevista concedida em 15/07/11)

Deste evento se originou a Galeria dos mártires, situada na delegacia onde João Bosco foi
assassinado, que foi derrubada por posseiros num ato de protesto contra a violência policial,
no 7º dia de sua morte. O missionário morto tinha sido confundido com o bispo Casaldáliga,
ameaçado por fazendeiros da região por conta do seu envolvimento na defesa das lutas
fundiárias de posseiros e índios locais.

Nesta área de fronteira, reuniram-se, em julho de 2011, aproximadamente 1595 romeiros,


vindos de todas as regiões do país, e de outros países, como Alemanha, Espanha e Itália.
Estavam também presentes representantes do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), da
Comissão Pastoral da Terra (CPT) e dos povos indígenas Kaiowá Guarani, Xukuru e Xavante.

Cada Romaria é preparada ao longo de cinco anos, logo que se encerra a anterior, sendo de
responsabilidade das comunidades da prelazia de São Félix do Araguaia, a preparação e
confecção de painéis, provisão de alimentos, organização da hospedagem dos romeiros,
sempre de forma coletiva.

Nos três dias que antecedem o ritual são realizadas celebrações onde já ocorrem atos de
elaboração dos mártires através da partilha de suas histórias. Numa dessas noites registramos
a acolhida dos romeiros na capela que teria sido o lugar onde o padre João Bosco recebeu os
primeiros socorros antes de ser levado para a cidade de Goiânia (GO), onde faleceu. Os

7
Bispo da Prelazia de São Felix do Araguaia (MT)
5

momentos que precedem o ritual são marcados por narrativas, acompanhadas por cantos,
danças e imagens sobre as histórias dos líderes magnificados.
Na alegria desta noite, marcada pela lua que vem nos beijar neste momento em que
estamos pisando em um chão sagrado, no lugar desta capela, lugar da esperança,
muitas crianças nasceram aqui, muitas vidas foram salvas nesta casa, era onde
morava a equipe pastoral, mas é também a casa do momento martirial do padre João
Bosco. Estamos aqui pisando neste chão, e na beleza de quem veio de tantos lugares,
e aí a gente quer acolher, cada um e cada uma, para essa noite, para esse encontro,
para esse momento de louvor e de ação de graças. E a gente acolhe com muita
alegria os que vieram do Paraná, Minas Gerais, Vitória, São Paulo, Mato Grosso,
Itália, Alemanha, Espanha, Bahia, Santa Catarina, Amazônia, Ribeirão Cascalheira,
Rio de Janeiro, Goiás, Brasília. [...] Estamos em romaria, caminheiros e
caminheiras, e a gente traz o cansaço da viagem, e aqui a gente vem buscar a água
viva, a vida e o testemunho dos mártires. Celebrar nesta noite esse cansaço, mas a
alegria da chegada, a alegria de estarmos aqui, celebrar nossas vidas. (Padre Mirim,
15/07/2011)

Os discursos atualizam a postura política e ideológica desses sujeitos, ao passo que tratam de
questões polêmicas sobre os confrontos evidenciados a partir do apoio dado pelos agentes
mediadores às minorias sociais. A ritualização e sacralização do cotidiano evidenciam os
rompimentos com as estruturas estabelecidas, introduzindo novas formas de participação
política e religiosa.

Referindo-se às Romarias dos mártires do Caaró e da Terra, Carlos Alberto Steil adverte que
há, nestas peregrinações, um esforço de fazer uma “leitura projetiva do passado mítico e
histórico como traduções e transvalorizações possíveis da experiência presente”. Alerta
também para a evocação da figura do herói mítico, construindo “uma continuidade entre
sujeito e signos do passado e atores e agentes sociais marginalizados do presente: índios,
negros, colonos sem-terra”, constituindo-se um lugar privilegiado de elaboração social de uma
narrativa e de um personagem. (2004, p.12). Como dramas sociais, tencionam o deslocamento
da instituição para a sociedade, “um deslocamento da Igreja para o Reino de Deus”, numa
tentativa de articular a busca pela terra prometida, a “terra sem males”. Nesta direção, ocorre
uma relativização da instituição com vistas à “construção de uma sociedade liberta” (op. cit..
p. 21)
[...] O padre João Bosco teve que se converter aos índios. Ele tinha uma formação
tradicional. De uma pastoral e de uma teologia tradicionais. Quando entrou em
contato com o CIMI nos primeiros momentos ele estava em uma pastoral muito
revolucionária, muito diferente de tudo o que se fazia e se conhecia. Ele nos textos
escritos tinha palavras muito comovedoras, falando dessa conversão à causa
indígena, e nisso também é símbolo, quantos índios. Todos e cada um de nós temos
necessidade de uma conversão, nos convertemos a Deus, mas convertendo-nos aos
irmãos e completamente aos marginalizados, aos pobres e aos esquecidos, aos
desesperançosos. Uma conversão pastoral, estrutural, porque não basta
6

individualmente nos convertemos tem que se converter à estrutura da igreja e à


estrutura da sociedade [...] (Pedro Casaldáliga, 15/07/2011)

Através da eficácia simbólica das práticas ritualísticas, se estabelecem analogias e


aproximações, traduções e transposições de atos e palavras no trabalho de produção da crença
do receptor no ato mágico elaborado pelo porta-voz.
O processo de construção da narrativa é um trabalho permanente de tessitura, existe
para transformar-se, pois, como mimese da palavra-ação que a sustenta, ela existe
enquanto movimento no seu fazer-se. A narração é imitação da ação. Narrar é ser-
estar no caminho da palavra e re-narrar é recriar o caminho, refazendo-o como
memória, criando a si mesmos e recriando o mundo.
[...] A palavra é única como a identidade que fornece ao sujeito e, como expressão de
uma cultura marcada pelo dinamismo, remete a um processo permanente de produção
e incorporação de conteúdos e formas exteriores, ou seja, como conjunto de
estruturações potenciais da experiência, capaz de suportar conteúdos tradicionais
variados e absorver os novos. É na comparação entre as diferentes versões que as
narrativas podem ser analisadas como representações e não como verdades.
(CICCARONE, 2003, pp.190-191)

2. A elaboração dos mártires: vidas pela vida

Também, fazendo memória do martírio do padre João Bosco, vamos ouvir um pouco
dessa história nesta noite, do martírio do padre João Bosco. 11 de outubro de 1976, e
nós vamos escutar com carinho, porque Pedro vai contar um pouquinho pra nós.
(Mirim, 15/07/2011)
Neste lugar, terra sagrada como disse bem Mirim, aconteceu a agonia do padre João
Bosco. Era a casa da equipe, uma casa de paz, onde se recolheu muito sofrimento,
muitos prantos, muito sangue, muitos sonhos também. E neste dia 11 de outubro de
1976 se recolheu a agonia do padre João Bosco. Ele esteve umas três horas ainda no
sínodo, rezando, rezando pelo sínodo, pelo Brasil. Saímos numa caminhonete
escoltada por outra caminhonete de posseiros, porque a voz era que nos esperariam
na estrada para nos matar. Enterramos por essas estradas do Xingu, e viveu ainda até
cinco da tarde do dia seguinte. Foi uma morte muito simbólica. Eu vou recordar que
o padre João Bosco era um Jesuíta, de uma família distinta e teve cargos na
companhia de Jesus de prestígio, e que ele havia feito a opção pelos pobres, pelas
margens. Ele havia na verdade deixados os colégios de luxo, deixado as
comunidades do Rio, de São Paulo, e vindo para o interior. Símbolo dos santos dos
pobres, ele foi trabalhar, viver e trabalhar no meio dos povos indígenas,
concretamente os Pacaembu, o santo da causa indígena; e no meio dos sertanejos,
posseiros dessa região do norte do Mato Grosso, o santo da reforma agrária, pelo
povo sem terra. E é reconhecido também como o padroeiro das lutas contra da
tortura, porque ele morreu em última instância, porque nós dois fomos tentar
libertar duas mulheres que estavam sendo torturadas. Ele morreu por defender da
tortura essa duas mulheres, martírio simbólico de muito outros mártires. [...] O
padre João Bosco, neste sentido também, foi militante lutou pela causa indígena,
pela defesa dos pobres e foi místico. Juntou o que na maioria das vezes fica
separado das nossas vidas: a militância e a contemplação. Ele morreu porque
fomos defender essas duas mulheres, mas isso acontecia em Ribeirão Cascalheira,
dentro da área da prelazia de São Felix do Araguaia. Tinha toda uma história já de
luta entre a igreja de Jesus, que queria ser pequena e pobre; humilde e acolhedora. E
o poder do latifúndio, do poder do agronegócio, do poder das multinacionais o poder
do consumismo. O contexto é que fez também com que esse martírio fosse o que foi
com esse poder simbólico. (Pedro Casaldáliga, 15/07/2011)
7

À evocação do tempo/espaço do confronto, da luta e dos antagonismos se contrapõe o anseio


para a anulação das oposições, num plano de equivalências e analogias, produzidas com a
presentificação do mártir, como herói mítico, num trabalho onde símbolos e metáforas
articulam sacralização e ritualização e permitem aos sujeitos vivenciar-se em experiências
ecumênicas e de comunidade. Isso ocorre no ato de rememorar a morte de João Bosco, através
do relato de sua história; e nela, a história de outros mártires parece estabelecer relações
simétricas (Latour, 2009, passim) entre corpo (líder) – alma (mártir) – coletivos rurais. Desta
forma se potencializa a possibilidade de um universalismo como ruptura do dualismo entre
humanos e não-humanos, natureza e cultura, material e imaterial.

Sugerem então algumas questões, que orientam o olhar e a escuta das narrativas sobre esses
mártires. A primeira delas está relacionada à morte que não “cala” a luta, mas anima e
revigora as forças do grupo frente aos opressores, pois a mística do líder morto trazida pelas
perspectivas dos mediadores (Sindicato dos trabalhadores Rurais e Comissão Pastoral da
Terra), o discurso sobre ele e o metadiscurso, funcionam como mecanismos para repensar as
estratégias políticas e reafirmar o “direito à terra, como direito à vida”. Nesses momentos em
que é projetada a figura de um mártir, ela é construída numa relação intersubjetiva de
comoção no envolvimento numa luta por um objetivo comum, entre “iguais”, num
movimento dialógico e convergente de pertencimento, alimentando vínculos religiosos,
políticos e sociais. Num sentido de sofrer “com” e não sofrer “só”.

PAINEL DO CRISTO LIBERTADOR


Igreja Matriz de São Geraldo do Araguaia (PA)

Quando o extraordinário torna-se cotidiano, o grupo que foi feito homem (o líder) tende a
ritualizar um exercício inverso: o homem (mártir) é feito grupo, até que surja (ou se constitua)
8

um novo líder, que na maioria das vezes se utiliza ainda da “imagem” do líder anteriormente
morto (projeção da alma). Estruturando o discurso na construção de um “real maravilhoso”,
do líder que doou sua vida pelo grupo, num processo de troca (dádiva)8 que envolve o espírito
da pessoa doadora, nos moldes da teoria nativa do hau de Marcel Mauss, de modo que sua
eleição a mártir como símbolo da luta permite, num exercício dialético, a “sacralização da
luta” e a “materialização do sagrado”.

Suas experiências pessoais tornam-se, nesta direção, atos coletivos e possibilitam a produção
de representações do grupo a partir dos episódios vivenciados pelos mártires. Sua morte é
narrada e (re)narrada até que os que contam e os que escutam não só o conheceram
pessoalmente, mas vivenciaram com ele todos os momentos de luta e resistência. Os mártires
são tratados como fundadores da cosmografia do lugar e inscritos nos espaços eleitos a
lugares da memória, a lugares encantados, moradas terrenas dos que nunca morrem,
atualizando as praticas de resistência no percurso de animação do espaço, do sujeito, da
coletividade, do mundo, através destas experiências privilegiadas.

A experiência pessoal é uma forma privilegiada de se ter acesso ao que poderia ser
descrito como representações modelares da sociedade ou do cosmos. A experiência
pessoal descreve o Cosmos, vincula palavras e objetos, observações e sua
explicação, o pensamento e o ato, criando e recriando um mundo que se apresenta
sempre inacabado, em eterno processo de construção. O Cosmos é, assim,
dependente de alguém que o vivencie, que o experimente, para que possa ganhar
estatuto de discurso organizado. (GONÇALVES, 2010, pp. 138-139)

Estes mártires não estariam, assim, presos aos seus corpos, como poderia sugerir uma
antropologia assimétrica, ocorrendo constantes trânsitos entre corpo e coletivos. Não estamos
pensando em possessões, mas em projeções – posições subjetivas que articulam estratégias de
resistência. Pois, a diferença não está inscrita nas almas, mas nos corpos (Viveiros de Castro,
1996), naquilo que M. Sahlins (2008, p. 67) evidenciou através da idéia de mana entendida
pelos havaianos como a essência: passiva de transmissão de um corpo para outro. Neste caso
especificamente de um corpo para um conjunto de corpos. Sendo a alma

8
Sobre a dádiva aponta Marcel Mauss “Compreende-se logicamente, nesse sistema de idéias, que seja preciso
retribuir a outrem o que na realidade é parcela de sua natureza e substância; pois, aceitar alguma coisa de alguém
é aceitar algo de sua essência espiritual, de sua alma; a conservação dessa coisa seria perigosa e mortal, e não
simplesmente porque seria ilícita, mas também porque essa coisa que vem da pessoa, não apenas moralmente,
mas física e espiritualmente [...] têm poder mágico e religioso sobre nós. Enfim, a coisa dada não é uma coisa
inerte. [...] a prestação total não implica somente a obrigação de retribuir os presentes recebidos, mas supõe duas
outras igualmente importantes: obrigação de dar, de um lado, obrigação de receber, de outro.” [...] (2003, pp.
200-201)
9

Uma espécie de imagem (se se poderia dizer assim) dotada da capacidade de assumir
uma multiplicidade de formas corporais, mas cada uma só se atualiza perante um
ponto de vista específico – que sempre há aqui uma espécie de limitação (e aqui faço
uso somente da acepção matemática do termo), que implica tanto na existência do
„um‟ e do „múltiplo‟, quando na existência de um „dois‟. Isso quer dizer,
obviamente, que cada uma dessas „atualizações‟ da alma exige um ponto de vista
que não o dos humanos, mas também significa que uma alma e um corpo não podem
ser tomados como termos substancializados. Dessa forma, uma imagem-alma é,
certamente, uma alma, mas também é, um corpo sob o ponto de vista de outrem.
(GRÜNEWALD, 2011, p. 07)

Desse percurso ritualístico é possível visualizar alguns rompimentos com as estruturas de


poder na relação desses sujeitos, que possibilitam não apenas o questionamento das práticas
oficializadas, mas a reelaboração de novas práticas, que intencionam a substituição do poder
instituído por um poder subversivo, sem esquecer, todavia que seus atos estão pautados no
reconhecimento do grupo pelos seus lideres populares, pois só assim se completa a produção
da crença no porta-voz.

Sobre esta questão Pierre Bourdieu nos fornece instrumental necessário para entender a
trajetória de atos mágicos, ao elaborar a noção de ruptura, subversão e discurso heréticos:

[...] A subversão política pressupõe uma subversão cognitiva, uma conversão da visão
de mundo. Contudo, a ruptura herética da ordem estabelecida (e também das
disposições e representações por ela engendradas nos agentes moldados conforme
suas estruturas) supõe a conjunção entre o discurso crítico e a crise objetiva, capaz de
romper a concordância imediata entre as estruturas incorporadas e as estruturas
objetivas de que as primeiras constituem o produto, bem como de instituir uma
espécie de épochè prática, vale dizer, de suspensão da adesão originária à ordem
estabelecida. [...] A subversão herética explora a possibilidade de mudar o mundo
social modificando a representação desse mundo que contribuiu para a sua realidade,
ou melhor, opondo uma pré-visão paradoxal (utopia, projeto, programa) à visão
comum que apreende o mundo social como sendo mundo natural. [...]
O discurso herético deve contribuir não somente para romper com a adesão ao mundo
do senso comum, professando publicamente a ruptura com a ordem ordinária, mas
também produzir um novo senso comum e nele introduzir as práticas e as experiências
até então tácitas ou recalcadas de todo um grupo, agora investidas da legitimidade
conferida pela manifestação pública e pelo reconhecimento coletivo. [...] A eficácia do
discurso herético reside na dialética entre a linguagem autorizante e autorizada e as
disposições do grupo capazes de autorizar essa linguagem e de se verem assim
autorizadas. (BOURDIEU, 2008, pp. 118-119)

É possível afirmar que os rituais em torno dos mártires representam em certa medida (e
porque não dizer, na sua totalidade) possibilidades de articular memórias e narrativas, no
intuito de orientar os agentes ao rompimento com a concordância legitimada entre as estrutura
incorporadas e as estrutura objetivas. Intenciona-se nesta investida uma mudança no mundo
social, justificando as posições tomadas frente às disparidades identificadas.
10

3. A peregrinação e sua simbologia: Caminhar para rememorar e (aprender a) resistir

No trabalho de campo, pudemos identificar algumas intenções da Romaria, como:


- Reunião de pessoas que acreditam na opção da igreja pelos pobres e marginalizados;
- Reavivar (revigorar) as forças na luta;
- Rememorar os irmãos que “morreram na caminhada” e anunciar sua presença na luta,
através das histórias de sua vida, seu engajamento político e sua “morte”.
- A comunidade é constituída e atualizada a partir da memória do mártir. Pois nos termos de
Casaldáliga “uma igreja que não se lembra de seus mártires não deve continuar”.

Nesta cerimônia/ritual é reforçada a continuidade da luta entre os agentes mediadores e


expressa uma modalidade de santificar e sacralizar na qual as pessoas não fazem referencia à
igreja enquanto instituição, e falam de luta, engajamento, dificuldades enfrentadas com outros
setores da própria igreja. O que se observa é produção de uma antiestrutura social, que une as
pessoas em torno de um elemento comum, mesmo não havendo qualquer vínculo social
formal, conforme o que Victor Turner (2008) chamou de communitas. Evidenciando nos
termos deste mesmo autor, através das narrativas do martírio, a encenação de um drama social
que cria a possibilidade de refletir e repensar a igreja enquanto instituição, numa perspectiva
mais engajada alinhada com as propostas da Teologia da Libertação. Por meio das narrativas
os mártires são acionados e convidados para caminhar com o povo, no espaço social liminar
do rito onde as músicas ritmam os hinos da luta da “vida pela vida”.

Praticas de tradução das diferentes lógicas dos grupos sociais presentes buscam aglutiná-las
em torno de causas comuns, os conflitos pela terra e pelo uso de recursos sócio-naturais
(LITTLE, 2002). Prega-se a igualdade entre clero, leigos, camponeses, índios e afro-
brasileiros, – todos se tornam um em envoltos na luta, no rito.
11

O fogo, símbolo de vida e do calor que a aquece como a luta e a cruz, símbolo do martírio, do
sofrimento de que deu a vida e voltou em vida. No auge do ritual, os romeiros formam um
grande círculo em torno de uma fogueira e vão acompanhando, ao som de músicas e
narrativas. A celebração da “vida que se renova”, na medida em que acusam a
descontinuidade e reforçam a continuidade atualizada pelo mártir. Acessam elementos da
natureza animando-os e atrelando-os à figura do caminhante: terra e água se tornam
protagonistas do ritual, evocadas como motivos de resistência.

Os mártires são reconhecidos como santos populares, que deram a vida pela vida. Re-vivem
na medida em que são rememorados e comemorados nas falas das lideranças e a cada nome
os romeiros respondem “presente na caminhada”. O caminhar define os romeiros, os
significa. A peregrinação, ao mesmo tempo obrigação e ato voluntário, em condições de
liminaridade, envolve um voto, uma promessa (TURNER, 2008, p. 163). Caminhar para
continuar e não parar.

No culto ao mártir, a caminhada representa a ocasião na qual, “minorias”: negros, índios e


posseiros refletem sobre si mesmas, em tempos/ espaços liminares, encenando dramas sociais
na representação do conflito, que permite evocar e reconhecer os aspectos fundamentais da
vida social, “normalmente encobertos pelos costumes e hábitos do trato diário” (op. cit., pp.
30-37).

As falas e os cantos reforçam a luta dos companheiros de luta unidos ao mártir antes e depois
da “morte” cujo sentido se inscreve e se fixa, para estes coletivos, como resistência e
continuidade. A celebração do martírio é um motivo para se encontrar e partilhar o
sofrimento, reunir forças para continuar resistindo.
12

Imagens de vários mártires confeccionadas artesanalmente são carregadas pelos romeiros,


sempre ao som de música que reforça a teatralidade do ato. As imagens apresentam o
trabalho realizado pelo mártir, momentos de sua vida doada pelas vidas, afirmando que o
“suor e sangue do mártir fecundam o chão”. A caminhada carregando as imagens totêmicas
dos líderes mortos reitera a celebração da memória e dos motivos da luta para ela continuar
enquanto houver sofrimento, desigualdade, marginalidade.
Nós estamos celebrando a romaria dos mártires da caminhada, estamos fazendo
memória, celebramos particularmente a memória do padre João Bosco, porque deu a
sua vida, celebramos a memória de todos e todas, mártires da caminhada. E
assumimos as causas pelas quais eles e elas deram a vida [...]. (Casaldáliga,
16/07/2011)

Em todos nós que cremos na força do ressuscitado começa um dia de luz, longo,
eterno, que não se apaga. Páscoa no coração. Um não sofrer que vem pelo
sofrimento, uma liberdade conquistada pelo martírio, um clarão que surge no meio
da noite. É a páscoa de Deus que vem do céu até a terra, ao povo da terra, da terra
sem males, terra do bem viver. Os primeiros habitantes [referindo-se aos índios]
desse chão sagrado, com os corações esperançosos e sonhadores acendem
esperançosos a fogueira. É o amanhecer de um novo dia. (Mirim, 16/07/2011)

Enquanto a fogueira é acesa por lideranças indígenas, uma mulher canta: “Meus irmão de luz
vem nos socorrer é a sua força que vai nos valer. Força, força, meus irmão de luz. Força,
força, com as ordens de Jesus”, numa oração que mescla elementos indígenas e cristãos num
apelo comum para receber do mártir a força para continuar lutando. A caminhada prossegue
rumo ao “Santuário dos Mártires da América Latina”, topografando um espaço sagrado
material e imaterial. Retirantes/posseiros se encontram e se reconhecem na história do outro,
falam da vida. Os dilemas cotidianos são dramatizados nas falas de diversas lideranças sobre
os recursos sócio-naturais: expulsão de ribeirinhos, construção de hidroelétricas, dos grandes
empreendimentos que nos termos de lideranças sindicais “vieram para a Amazônia para matar
os pobres”
A terra é de Deus, e o profeta Isaías dizia “ai daqueles que juntam casa com casa,
campo com campo, até que não haja lugar para ninguém!” E aqui no nosso país,
desde o começo que os europeus chegaram, essa terra que era o dom de Deus, que
era terra para todos, começou a se tornar propriedade de algumas pessoas. E
acharam que tudo que aqui havia na natureza, era para sua riqueza, para o seu
enriquecimento. E espoliaram, arrancaram da terra, aquilo que era para o bem de
todos, para o seu próprio enriquecimento. E espoliaram os povos daqui. Tiraram a
terra deles. Tiraram a língua deles. Acabaram com tudo que era deles, para que eles
pudessem dominar sobre os povos dessa terra, para que só esses que vieram de fora
fossem os donos de tudo. E isso que aconteceu há quinhentos anos atrás, ainda
acontece hoje na nossa Amazônia, acontece hoje me muitos cantos do nosso Brasil.
Então, tudo tem que se concentrar na mão de poucos. Por isso que é preciso que nós
levantemos um grito muito forte, para que a terra que é de todos, se torne a terra de
todos, porque a terra é de Deus. E essa concentração da terra na mão de poucos tem
causado a morte de milhares e milhares de pessoas. Só de 1985 até hoje foram
assassinados 1.580 pessoas no campo, na luta pela terra, pela água, pelo direito da
13

sobrevivência. E quem assassina o trabalhador fica impune, não é condenado.


Porque aqueles que defendem a terra, os índios que defendem as matas em
harmonia, eles tem que ser eliminados, porque são empecilhos para o progresso. E
nós, em nome do evangelho, em nome de Deus, temos que gritar que essa terra é de
Deus, e porque a terra é de Deus é terra de todos (Agente pastoral, 16/07/2011)

Eu queria dizer a vocês como mulher indígena, que abracei uma causa, perdi um
marido [o cacique Chicão foi assassinado, em maio de 1998, a tiros por um homem
não identificado, porém provavelmente mandado por fazendeiros descontentes com
a luta para a demarcação de terras para os Xukuru] e tinha um filho preparado e
entreguei a luta. Nós lutamos por um só objetivo: nossos direitos e nossa liberdade,
em união. E quero dizer a vocês que a cada momento desses que eu participo, eu
fortaleço, eu me fortaleço, eu saio daqui fortalecida, com minha fé renovada. Eu
quero dizer a vocês, todos os parentes, índios e não-índios, que a gente nunca
devemo desistir, porque quando Deus bota nós nessa terra temos uma missão e o
dom, então Ele nos capacita. Quero dizer a vocês que não só do povo Xukuru, mas
em todos os parente indígena já teve bastante sangue derramado e não só indígena
como daqueles que apóia nossa causa. Mas queria dizer a todos vocês, que esse
sangue volta pra nossas veias e nos encoraja, porque quem nasceu pra morrer
lutando, não vai morrer de braços cruzados.
E aqui eu vou cantar um cântico dos irmão de luz, dos encantados, porque aqueles
nosso que se vai, pra nós eles não morreram, eles continua vivo no nosso meio:
“valei-me minha virge das candeia, valei-me minha virge das candeia. Os encantos
de luz é quem mais alumea, os encanto de luz é quem mais alumeia”. [...] Salve os
encanto de luz. Queria também dizer a Dom Pedro [referindo-se a Pedro
Casaldáliga] que esses encantos está com nós índios e com todos vocês que lutam
por nós. (Zenilda, acompanhada de seu filho Marcos, cacique Xukuru, 17/07/2011)

Na celebração religiosa que é ao mesmo tempo um ato político de resistência à opressão do


latifúndio e do capitalismo, discurso e prática articulam-se numa relação quase dialógica entre
falar e fazer, sobretudo na produção de signos e símbolos de luta e resistência construídos
num esforço de sacralização da luta pela terra que se justifica pela redemocratização do
espaço agrário. E estes rituais reformulam esta dimensão na medida em que
Constituem um espaço simbólico e de representação metafórica da realidade social,
através do jogo de inversão e desempenho de papéis figurativos que sugerem
criatividade e propiciam uma experiência singular, que é, ao mesmo tempo,
“reflexiva” e da “reflexividade”. (SILVA, 2005, p. 43)

Voltávamos do Santuário dos Mártires quando, durante uma conversa com um romeiro que
mora em Santa Rita do Araguaia (nordeste do Mato Grosso), ele nos disse que, o mártir é um
exemplo a ser seguido, “sua vida e sua luta são um sinal de engajamento na luta”. A devoção
não comportava milagres nem visões e profecias atribuídas aos mártires. O mártir é fabricado
num percurso humano para a transformação social. Mais do que uma lógica do sofrimento que
precede a vida eterna, trata-se de uma tentativa de inverter (subverter) a ordem vigente pela
ação e transformação no conflito. Nas margens da celebração, a voz do romeiro reorientava
nossa atenção para as condições materiais da vida social
Uma antropologia feita à moda de Victor Turner observa a sociedade a partir de suas
margens. Nessas margens, a sociedade mostra o seu inacabamento [...] pensado em
14

termos de sua “prática que calcula o lugar olhado das coisas” [...] trata-se de um
olhar que se dirige aos resíduos, rupturas, interrupções e coisas não resolvidas da
vida social. (DAWSEY, 2005, p. 29)

4. O mito e o rito: Algumas considerações sobre o martírio

Desta investida etnográfica pelas narrativas do martírio de lideranças sindicais e agentes


pastorais nas regiões de intensos conflitos pela terra, seja ela ocupada tradicionalmente ou
através de grandes fluxos migratórios de camponeses em busca de trabalho. Estes processos
itinerantes geraram refluxos sociais e culturais, questionados tanto pelos atores envolvidos
nos dilemas – enfrentamentos e disputas pelo direito de permanecer –, quanto na figura de
seus mediadores: agentes pastorais e líderes sindicais.

Nestas zonas de conflito, esquecida pelo Estado, a violência encontra espaço na ação de
pistoleiros, grileiros e agropecuaristas locais. Os assassinatos de líderes populares ao invés de
apagar as vozes, alimentam a criação de símbolos de luta e resistência, num ritual de
passagem no qual os mortos doam sua vida pela vida dos seus “iguais”. A partir da morte do
líder (tornando mártir) as pessoas que conviviam com ele assumem uma postura de
enfrentamento frente a seus opressores, num movimento de re-existência – sustentado pela
figura do mártir. E o ritual de rememoração dessas pessoas mitificadas, o ato de recontar a sua
história (e de revivê-la) reforça a re-existência, atualiza a luta e revigora a militância.

Poeticamente, João Cabral de Melo Neto reúne questões pertinentes para se pensar essa
relação entre sobrevivência no campo e conflitos agrários ao apresentar o encontro de seu
personagem Severino com duas vítimas dessas relações conflitivas
- A quem estais carregando,/ irmãos das almas,/ embrulhado nessa rede?/ dizei que
eu saiba./ - A um defunto de nada,/ irmão das almas,/ que há muitas horas viaja/ à
sua morada./ - E sabeis quem era ele,/ irmãos das almas,/ sabeis como ele se chama/
ou se chamava?/- Severino Lavrador,/ irmão das almas,/ Severino Lavrador,/ mas já
não lavra./ [...] - E foi morrida essa morte,/ irmãos das almas,/ essa foi morte
morrida/ ou foi matada?/ - Até que não foi morrida,/ irmão das almas,/ esta foi morte
matada,/ numa emboscada./ - E o que guardava a emboscada,/ irmão das almas/ e
com que foi que o mataram,/ com faca ou bala?/ - Este foi morto de bala,/ irmão das
almas,/ mas garantido é de bala,/ mais longe vara./ - E quem foi que o emboscou,/
irmãos das almas,/ quem contra ele soltou/ essa ave-bala?/ - Ali é difícil dizer,/
irmão das almas,/ sempre há uma bala voando/ desocupada./ - E o que havia ele
feito/ irmãos das almas,/ e o que havia ele feito/ contra a tal pássara?/ - Ter uns
hectares de terra,/ irmão das almas,/ de pedra e areia lavada/ que cultivava./ [...] Mas
então por que o mataram,/ irmãos das almas,/ mas então por que o mataram/ com
espingarda?/ - Queria mais espalhar-se,/ irmão das almas,/ queria voar mais livre/
essa ave-bala./ - E agora o que passará,/ irmãos das almas,/ o que é que acontecerá
contra a espingarda?/ - Mais campo tem para soltar,/ irmão das almas,/ tem mais
onde fazer voar/ as filhas-bala. (MELO NETO, 1974, pp. 75-78)
15

- Essa cova em que estás,/ com palmos medida,/ é a cota menor


que tiraste em vida./ - é de bom tamanho,/ nem largo nem fundo,/ é a parte que te
cabe/ neste latifúndio./ - Não é cova grande./ é cova medida,/ é a terra que
querias /ver dividida. / - é uma cova grande/ para teu pouco defunto,/ mas estarás
mais ancho/ que estavas no mundo./ - é uma cova grande/ para teu defunto parco,/
porém mais que no mundo/ te sentirás largo./ - é uma cova grande/ para tua carne
pouca,/ mas a terra dada/ não se abre a boca. (MELO NETO, 1974, pp. 90-91)

5. Referências bibliográficas

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16

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Interculturalidade em VemVai – O Caminho dos Mortos

Marcus Wesley Guimarães Rosa


Mestrando, IA/UNESP

Comunicação oral
GT 4: Teatro e Ritual

Quero levantar aqui algumas questões relativas ao espetáculo Vem-Vai – A Caminho dos
Mortos, criado pela Cia. Livre, em 2007, dirigido por Cibele Forjaz, buscando destacar o que chamo
aqui de recurso intercultural como procedimento de criação. Para a criação desse espetáculo a Cia.
Livre partiu de estudo do universo indígena amazônico, sobretudo os mitos de morte e
renascimento.
Antes de entrar especificamente no processo criativo do Cia. e no espetáculo, cabe abordar
algumas questões gerais sobre esse recurso intercultural.
Chamo de recurso intercultural uma motivação, digamos, que consiste em lançar mão de
alteridades culturais, principalmente na forma de mitos e ritos. Mas é possível aventar dentro disso,
por exemplo, um recurso à cultura material de um povo também, na forma de artefatos, objetos, ou
mesmo de imagens mediatizadas... Enfim, recurso intercultural como um debruçar-se sobre o Outro,
como busca de algo que deflagre a criação, uma ficção performativa a partir da qual o processo de
criação se instaura.
Importa aqui quem faz o recurso e a cultura a que se recorre. Patrice PAVIS (1992) fala em
termos de “cultura fonte” e “cultura alvo” para se referir a essas relações. Pensando em termos
“antropofágicos” importa quem deglute e quem é deglutido1.
Mas em que medida importa quem fala quando se trata de se debruçar sobre o “outro”? Qual
é a diferença de um grupo brasileiro – a Cia. Livre – recorrer ao universo indígena amazônico – um
nosso desconhecido – de um grupo europeu, por exemplo o Odin Theater, do Eugênio Barba?
Parece necessário reconhecer que o desconhecimento geral das culturas indígenas no Brasil –
inclusive pela maioria dos sujeitos 'bem educados' – aconteça talvez em termos de uma
descontinuidade apenas um pouco menos abissal do que a cultura europeia em relação ao universo
indígena. Aqui não é radical a diferença entre a Cibele Forjaz e o seu grupo e um Eugênio Barba,

1A filiação oswaldiana da Cia. Livre é bem notável, a temática do “comer o outro” é vertical no espetáculo VemVai e de
modo geral é preciso também ter em mente um leitura da antropofagia de Oswald Andrade via Teatro Oficina, grupo ao
qual a origem da Cia. Livre remonta.
por exemplo. Para ambos o universo indígena se mostra como uma alteridade radical2.
Importa quem come, mas “comer” o outro é sempre um exercício de vertigem, de
reconfiguração de si. E esse exercício de vertigem nunca se dá sobre pontes que levam de uma
cultura a outra. Talvez essas pontes não existam. No máximo podemos cavar uma canoa, uma frágil
canoa que pode nos auxiliar no caminho que leva ao “outro”, como quer Eugênio Barba. Esse
encontro com o outro talvez nunca seja senão fantasmagoria. Como diz Roy Wagner “Todo esforço
de compreensão de uma outra cultura deve ao menos começar com um ato de invenção (...), tal
como aquele pintor chinês apócrifo que, perseguido por seus credores, pintou um ganso na parede,
montou nele e saiu voando.” (Apud CESARINO: 2008)
O processo vital de relação entre culturas envolve sempre uma ‘falta de entendimento do
entendimento’ (misunderstanding undertanding), de modo que, no final da contas, essa relação não
é perfeitamente descrita em termos de entendimento ou não-entendimento, visto que não há ponto
de vista objetivo, desinteressado. (MENNEMEIER, in FISCHER-LICHTE, 1990: 23).
A criação artística, dentro desse esforço de compreensão do “outro”, exige um âmbito de
invenção ainda maior do que em outros níveis de compreensão, como no esforço de entendimento
da antropologia especificamente. No entanto, observando uma estratégia de criação ou outra é
possível vislumbrar uma gradação, uma maior ou menor verticalidade nesse esforço de
compreensão. Duas estratégias opostas podem ser delineadas, numa aproximação geral quanto a
esse recurso intercultural.
Algumas estratégias estão orientadas pela preocupação em corresponder a um entendimento
histórico-antropológico nas aproximações, analogias ou citações realizadas em relação à cultura a
que se recorre. Outras estratégias de criação parecem em alguma medida dispensar esse respaldo
histórico-antropológico. Essa estratégia pode ser referida como “iconofilia”, como nomeia Andrzej
WIRTH (2003) que, ao termo interculturalismo adotado aqui, prefere o termo “iconofilia” para
referir o recurso a culturas tradicionais e estrangeiras. E quando ele fala de “iconofilia” ele está
pensando, principalmente, em peças teatrais de Bob Wilson.
Em analogia a esses dois polos opostos, Josette Feral faz uma distinção quanto aos modos de
processar e reagir às interações culturais no teatro das últimas décadas. Feral distingue entre os
eufóricos e os disfóricos. Entre os eufóricos ela enumera: Eugênio Barba e Peter Brook, Robert
Lepage, Peter Sellars, entre outros. Segundo ela, estes sugerem que tais relações interculturais
alargam “nossas atitudes mentais e nos tornam mais conscientes da alteridade dos nossos vizinhos,
portanto mais capazes de ouvi-los” (FERAL, 1996: 3) Já os disfóricos – entre os quais ela enumera
Carl Weber, Una Chauduri, Rustom Bharucha e Richard Schechner – preferem ver “o culturalismo
como representando um perigo de um cultura predominante se apropriar desnecessariamente de
2As questões quanto à recepção e a inserção das peças resultantes dentro da cultura brasileira e estrangeira talvez
possam ser vista com grande distinção, mas não se trata disso aqui.
outras – em geral minoritárias – culturas e tradições sem oferecer nada em troca”. (FERAL, 1996:
4)
É preciso observar que uma criação artística estabelece suas próprias leis no arranjo formal
em que vai consistir a obra e assim, se buscasse corresponder rigidamente a um entendimento
antropológico, estaria se colocando sob o risco grave de fragilizar a potência criativa. Mas quando
se fala de criação artística a partir de recurso a alteridades culturais é necessário lembrar, como
escreve Josette Feral, que “diferentes culturas nunca se estabelecem pacificamente lado a lado, elas
se interpenetram ou lutam entre si.” (FERAL, 1996: 1) 3 Desse modo, parece necessário ter sempre
à vista a posição “disfórica” que acentuam a condição de “guerra” que sempre circunda as relações
interculturais. O que não invalida a possibilidade e o desejo de se estabelecerem comunicações
interculturais que não ocorram sob o claro signo da dominação.
Parece necessário estar atento em que medida o recurso a uma cultura não é solidário à
“curiosidade dispersa”, de que fala Gilles Lipovetsky: “curiosidade dispersa” que tinge as relações
com uma larga tolerância superficial. Parece necessário perguntar se, diferente da antropofagia
oswaldiana, não se trata de um apetite omnívoro e irrestrito ao qual subjaz uma lógica de
indiferença.
Não é só no campo artístico em que se observa uma tendência moderna de 'retorno ao
arcaico', na qual se insere, em alguma medida e com especificidades, toda a discussão entre teatro e
ritual, toda a revalorização de teatralidades não-institucionais e exóticas, pelo menos desde os anos
60 até hoje. Este 'retorno ao arcaico' figura como algo da ordem do que Gilles Lipovetsky nomeia
como “retorno ao sagrado” ou “retorno dos valores”, na medida em que há um reinvestimento no
regional, na ecologia, no passado, no espiritual, nas culturas marginais. O que aparece, num
primeiro momento, como ruptura com os ideais iluministas, como oposição ao culto à razão e ao
progresso muitas vezes se configura, segundo Lipovetsky, dentro de um processo “de
personalização e de liberação do espaço privado que absorve tudo em sua órbita, inclusive os
valores transcendentais.” (LIPOVETSKY, 2005: 23)
Coloca-se, de modo geral, a necessidade de perguntar em que medida uma peça de teatro
criada a partir de um recurso intercultural afirma ou contraria a lógica da indiferença que estaria por
baixo dessa “curiosidade dispersa”, desse apetite omnívoro e indiferente.
Pelo mergulho vertical no estudo do universo amazônico indígena, pode-se entender que a
Cia. Livre, na criação da peça VemVai – O Caminho dos Mortos, busca atrelar a criação cênica à um
entendimento histórico-antropológico da cultura ameríndia e também da cultural brasileira num
sentido genérico. O que não significa não ter havido uma recriação vertical na peça do universo

3 Lehmann também afirma que “subsiste na comunicação intercultural uma ambiguidade latente na medida em que as
formas de expressão cultural ainda sejam formas de uma cultura politicamente dominante ou oprimida, entre as
quais não se dá simplesmente ‘comunicação’.” (LEHMANN, 2007: 411)
estudado.
Ao recorrer a uma alteridade cultural para alimentar o seu processo criativo, o artista em
geral está buscando evidenciar algo sobre a sua própria cultura, talvez ele esteja assinalando as
carências e perversidades da cultura hegemônica, etc. Há sempre um “desentendimento do
entendimento” nas trocas culturais, a criação é sempre uma “invenção”, por isso no recurso
intercultural é preciso observar a dimensão do que se processa no interior da cultura em que se
procede a criação intercultural. Importa entender a motivação daquele que vai ao encontro da
alteridade mais do que busca ali um entendimento da alteridade cultural.
Em relação a isso, podemos traçar analogias com o fato de que, no universo indígena, a
morte do inimigo e a sua assimilação ritual com esmagamento do crânio – acompanhada ou não de
sua devoração estrita – era o que trazia novos nomes para o guerreiro, por exemplo, entre os
Tupinambás seiscentistas. E, sugestivamente, entre os Araweté contemporâneos, um dos epítetos
para referir ao inimigo é justamente “música futura”, na mesma medida em que a morte do inimigo
é referida como “morte ventríloqua”. Isso, segundo Viveiros de Castro, “indica a função principal
dos inimigos: trazer novos cantos. Vistos por seu lado bom – seu lado morto – , os inimigos são
aqueles que trazem novas palavras ao grupo, ou ao menos que vêm dar um sens plus pur aux mots
de la tribu.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002: 275) É na medida em que traz novos nomes e
possibilita a música futura, os futuros cantos desses artistas da Cia. Livre que se pode entender tal
recurso intercultural, que não visa a subsumir a condição de guerra em que inevitavelmente se
insere, mas justamente explicitá-la. Isso fica claro no trecho da peça em que um indígena vem
capturar um outro “boy do planalto”, vingança de um irmão morto em chamas sobre o asfalto, em
referência à morte do índio em Brasília.
É preciso observar que o direcionamento inicial da Cia. Livre para a realização dessa peça
era pesquisar Mitos de Morte e Renascimento na Cultura Brasileira. O princípio da pesquisa se
enveredou para o universo indígena, com estudos orientados pelo antropólogo Pedro Cesarino. Ao
estudar, desde as noções elementares da antropologia, estudar cosmologias, cosmografias
ameríndias, organizações sociais baseadas no xamanismo, a noção de pessoa, o perspectivismo e as
noções de morte de povos ameríndios, dentre outras coisas, o grupo reconheceu a impossibilidade
de agregar num mesmo projeto o estudo das culturas de matriz africana, conforme inicialmente era
almejado no projeto.
Para Cesarino e Forjaz, nesse estudo inicial se tratava justamente de desfazer os
pressupostos e preconceitos acerca da cultura indígena que serviam antes de obstáculo para “um
campo possível de troca criativa.” (FORJAZ, in CESARINO, 2007: 51) “Quais são as nossas
referências concretas para além de 'Peri matou Ceci ao som do Guarani'?”, se pergunta Forjaz.
Refletindo essa “casca” de preconceitos que foi preciso “descolar” nesse processo inicial de
estudo, no prólogo do espetáculo, o elenco invade o espaço e cerca o público “brincando de índio de
penacho”: “sua 'fantasia' é composta por duas fitas crepes na cara e um penacho na cabeça” 4. Sobre
isso o ator do grupo Edgar Castro relata: “O nosso início no Vem Vai se configura com aquela tribo
que aparece com os índios com fita crepe na cara. Foi uma piada que a gente fez, mas na verdade
para mostrar o nosso ponto de partida.”
Ao final desse prólogo, os atores retiram a fita crepe do rosto e um trecho da fala
subsequente do Transeunte Paulista-Ator Edgar é a seguinte: “Venham ver e ouvir estórias de vivos
e mortos dos Povos das Florestas comidas pelo Povo das Paulistas. A Cia. Livre conta VemVai – O
Caminho dos Mortos.”
Essa fala revela claramente o paralelismo em relação ao espetáculo anterior da Cia., Arena
Conta Danton. No entanto, vale notar que se no espetáculo anterior parecia interessante brincar com
a sobreposição do 'lugar da fala': Cia. Livre-Teatro de Arena; aqui a intenção é de evidenciar o
distanciamento e o estatuto de assimilação criativa do que é apresentado no espetáculo.
É o que também enuncia Cibele Forjaz, em entrevista: “Os mitos estão na peça, mas já
'canibalizado' pelo nosso olhar e repletos de elementos contemporâneos.” Portanto, não há intenção
de assumuir um lugar de portavoz de tribos indígenas, embora haja um mergulho, uma busca de
entendimento antropológico do material mítico-ritual dos povos ameríndios, inserido, para dizer de
modo geral, num certo deburçar-se da criação cênica sobre questões da “cultura brasileira”, com
todas as aspas possíveis.
Sobre essa posição assumida, ao fazer tal recurso cultural, a diretora ainda relata:

Porque é muito delicado você falar sobre um tema desses. O que você vai dizer? Você vai falar "por"? Não dá,
não é? Ou eu vou dizer o que eu entendi "de"? Então o máximo, como artistas, que a gente pode dizer é:
comemos esse material. E o que a gente está trazendo aqui é um material nosso, no qual a gente recria o que a
gente entendeu daquilo. A vida que a gente está mudando é a nossa. A gente não pode falar por ninguém. (Id.:
ibd.)

Essa canabalização de que fala a diretora já está presente desde o nome do espetáculo.
VemVai nos é sugestivo da condição do homem na terra e a sua ida para o além-morte, mas,
especificamente, o nome VemVai surge como transfiguração de termo utilizado pelos Marubo, Vëi-
Vai, traduzido por Pedro Cesarino como “Caminho-Morte”. Refere-se ao perigoso trajeto que,
segundo a cosmologia Marubo, os “vakas”, duplos dos mortos, têm que percorrer no seu destino
pós-morte até a chegada ao Céu da Troca de Pele, tarefa que muitos não completam, transformando-
se em cupinzeiros no meio do caminho, como mostrado no final do espetáculo.
Quanto ao processo criativo da Cia, como se apontou, começou com um estudo intenso do

4 Todas as citações do texto do espetáculo foram retiradas de Cesarino: 2007.


universo amazônico indígena. Não se restringiu a uma tribo, etnia ou tronco linguísticos. Várias
etnias foram estudadas. O grupo foi visitar também aldeamentos indígenas do litoral paulista. A
principal fonte foi, no entanto, o material mitológico, mas, conforme relatou Cesarino em entrevista,
a pesquisa contou também com vasto material audiovisual com relatos orais e gravações de rituais,
entre outras coisas.
Esse processo de criação do grupo é levado a cabo dentro do que no movimento de teatro de
grupo de São Paulo se chama “processo colaborativo”. O processo colaborativo é uma modalidade
de construção cênica baseada numa certa equiparação das responsabilidades criativas. Os processos
colaborativos, melhor falar no plural, pois cada grupo instaura ao seu modo, com especificidades
muito próprias, eles se estabelecem pela negação do agenciamento hierárquico da criação cênica,
sem desfazer a existência de funções dentro da sala de ensaio. Não é o diretor que conduz a criação,
mas ao final é ele quem, digamos, “fecha” a encenação, da mesma forma se fala que o dramaturgo
“fecha” ou “amarra” a dramaturgia do espetáculo, a partir do que foi construído e reconstruído na
sala de ensaio.
A atriz do grupo Lúcia Romano nomeia o processo de criação da Cia. como “terrivelmente
colaborativo”. Em um ano de processo de criação – de abril de 2006 até 31 de março de 2007,
quando o espetáculo estreou no SESC Avenida Paulista –, a atriz relata que os atores precisaram
conviver com a “sensação de incompletude” gerada pelo transcorrer de meses sem obter uma noção
do todo e, ao mesmo tempo, com uma acentuada responsabilidade em relação a tudo que precisava
ser cotidianamente criado a partir dos estudos.
Nessa opção de criação, o ator não permanece ligado “às questões do personagem”, como
lembra Edgar Castro. O ator se torna figurinista, dramaturgo, como escreve Lúcia Romano. Esta
atriz traz um relato que é elucidativo da posição do ator nesse processo da Cia:

O ator está, em primeiro lugar, acompanhado pelos outros atores, que chegam com ele para o aquecimento,
leem textos de antropologia sobre os Marubo e outras coisas malucas e pulam para dentro da dramaturgia da
cena, traduzindo em ações, movimentos, sons e palavras suas impressões, como se tivesse refletido anos para
abarcar a... a importância do parentesco para os nativos e o sentido do devir para a civilização ocidental e a
falta que me faz meu pai, em seu terceiro aniversário de morte. (ROMANO, in CESARINO, 2007: 22)

Isto que a atriz escreve evidencia o trânsito de tudo que é estudado e trazido para perto dos
criadores e recriado em cena. Há uma autorreferência nesse recurso intercultural, uma referência a
nossa cultura ocidental e também um referência à posição do criador, com implicações existenciais
próprias a cada elemento do grupo que repercutem na cena.
O tema da morte, como fato compartilhado por todos humanos, resulta numa assimilação
peculiar da alteridade nesse caso, não obstante seja completamente distinto o modo indígena de
encarar a morte. Nessa assimilação, precisamente como no canibalismo, os criadores parecem
apontar deslocamentos no modo de cada um enxergar a morte, a vida e a sua relação com o “outro”:
é nessa relação que talvez ainda se possa “ganhar novos nomes”.
Nessa aventura de um processo “terrivelmente colaborativo”, a relação entre os criadores é
crucial. Como aponta Lúcia Romano: “O 'outro' torna-se fundamental, porque acompanha o risco
que o ator corre neste tipo de empreitada: divide com ele o desapego pela assinatura da obra,
consciente de que todos são igualmente culpados e igualmente livres para o erro.” (ROMANO, in
CESARINO, 2007: 23)
Esse tipo de interação entre os criadores surge como um terreno fértil para a criação que
parte do recurso a alteridades radicais em relação a sua própria cultura. O processo colaborativo,
postulo aqui, pode criar um campo de indeterminação no qual o recurso intercultural pode se
estabelecer de forma menos afirmativa da dominação cultural.
Idealmente, no processo colaborativo, as funções não estão cristalizadas, há uma implicação
existencial de cada criador, os padrões mentais estão tentando ser fissurados, expandidos, um estado
de risco é sempre buscado. Essas características talvez possam ser vistas como o campo mais
apropriado para estabelecer uma relação de alteridade cultural como base da criação artística, de
modo a não reafirmar aquela “curiosidade dispersa”, aquela lógica omnívora e indiferente que é
característica do mundo contemporâneo.
Voltando ao processo criativo da Cia., é preciso destacar o que eles chamam de “deglutição
cênica”, a transposição criativa para a cena do que foi deglutido no estudo. Cibele Forjaz relata:

Mitos, textos teóricos e conceitos complexos como polifonia da pessoa humana e multi-perspectivismo eram
relidos do ponto de vista da teatralidade e viravam cenas-estudos. Ainda não era exatamente uma construção
dramatúrgica, mas uma forma de compreensão através do teatro, de forma a criar uma linguagem tradutiva
entre culturas diversas. [...] A teatralidade foi o ponto de vista escolhido, a língua que falamos e para a qual
traduzimos todos os mitos e textos teóricos que lemos durante o estudo e pesquisa. (FORJAZ, in CESARINO,
2007: 55)

O entendimento intelectual das mitologias indígenas e as cosmovisões que encerram foi apenas uma
primeira parcela do que era preciso para a criação do espetáculo. O ponto central era mesmo o
entendimento cênico, a tradução (transcriação) de tudo que era estudado para o corpo, para o jogo
dos atores, para a música e sonoplastia, para o espaço, para a maneira de iluminar esse espaço, etc.
Vale notar, nesse entrecho, que, associando 'tradução' e 'canibalismo' ou 'antropofagia', o
âmbito de reinvenção do universo indígena está em relevo. O entendimento não intelectual, mas
propriamente cênico, teatral é que está em jogo. Digamos que se come “outro” para regurgitar a
presença: presença do artista-devorador já renomeado pela assimilação do “outro”.
Nesse processo de tradução das noções indígenas para a cena, para a linguagem teatral, foi
central para o espetáculo a noção de perspectivismo. Vale apontar aqui questões relativas à tradução
dessa noção no processo de criação do espetáculo.
O pensamento ocidental, de maneira geral, entende a “humanidade como erguida sobre
alicerces animais” – a partir do substrato animal, portanto a partir da natureza, os homens teriam
constituído o que se chama de mundo da cultura, de modo a permanecerem “no fundo” animais. “O
pensamento indígena conclui ao contrário que, tendo outrora sido humanos, os animais e outros
seres constituintes do cosmos continuam a ser humanos, mesmo que de modo não-evidente.”
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002 :356) Em outras palavras, o estágio original do qual o mito é o
relato apresenta a 'humanidade' como condição comum aos seres e não a 'animalidade' como
condição originária.
Mais do que um antropocentrismo trata-se de um antropomorfismo: a 'forma' humana está
subjacente às formas específicas não-humanas5 que são em geral apreendidas pelas outras espécies
de seres que compõem o cosmo: o jaguar vê o homem como não-humano tanto quanto nós vemos o
jaguar como não-humano. Assim, as animais (bem como os outros seres), portanto, tomam-se por
gente, veem-se como pessoas. Viveiros de Castro explica que “tal concepção está quase sempre
associada à ideia de que a forma manifesta de cada espécie é um envoltório (uma 'roupa') a esconder
uma forma interna humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou de certos
seres transespecíficos, como os xamãs” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002: 351)
Como escreve Viveiros de Castro, para nós ocidentais “a forma do outro é a coisa”, no
universo ameríndio , “a forma do outro é a pessoa”. É nisso que se baseia o perspectivismo.
O pensamento perspectivo, ao conceber o mundo como constituído de subjetividades
humanas e extra-humanas, torna possivelmente 6 extensivo o mundo da cultura a todos os fatos e
eventos naturais sob os quais pode se encontrar uma ação intencional gerada a partir de uma
referência da espécie humana. Conforme exemplifica Viveiros de Castro:

O caso mais comum é a transformação de algo que, para os humanos, é um mero fato bruto, em um artefato ou
comportamento altamente civilizado, do ponto de vista de outra espécie: o que chamamos de 'sangue' é a

5 Viveiros de Castro afirma que, devido à enorme importância (mesmo que simbólica) da predação animal para as
sociedades ameríndias, “o animal parece ser o protótipo extra-humano do Outro” (2002: 357). No entanto , os 'seres'
não-humanos em geral ocupam também esse plano de alteridade, figurando como deuses, espíritos, mortos,
habitantes de outros níveis cósmicos, plantas, fenômenos meteorológicos, acidentes geográficos, objetos, etc.
6 Viveiros de Castro observa que a capacidade de assumir um ponto de vista, além de se aplicar a outros seres,
raramente, é extensiva a todas as espécies animais, sendo tal capacidade geralmente relativa aos animais que se
caracterizam como predadores ou presas em relação aos homens. Além disso, tal capacidade não é fixa, mas uma
questão condicionada a diferentes graus e situações. Ele ainda esclarece: “alguns não-humanos atualizam essas
potencialidades de modo mais completo que outros; certos deles, aliás, manifestam-nas com uma intensidade
superior à de nossa própria espécie, e, nesse sentido, são 'mais pessoas' que os humanos. […] A possibilidade de que
um ser até então insignificante revele-se como um agente prosopomórfico capaz de afetar os negócios humanos está
sempre aberta.” (2002: 353)
'cerveja' do jaguar', o que temos por um barreiro lamacento, as antas tem por uma grande casa cerimonial e
assim por diante. […] E assim, o que uns chamam de 'natureza' pode bem ser 'cultura' dos outros. (2002.:361)

Assim, o perspectivismo atribui aos não-humanos a capacidade de intenção consciente, dentro de


uma configuração subjetiva. “É sujeito quem tem alma e tem alma quem é capaz de um ponto de
vista.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002.: 372) Portanto, os entes capazes de perspectivar são
humanos porque são potencialmente sujeitos e não porque seriam humanos disfarçados. Assim,
sendo formalmente humanos ou não, subjetividades ou almas, no pensamento ameríndio, são
categorias relacionais, segundo a perspectiva de cada espécie. “Cultura é a natureza do sujeito”
(idem: 374), na medida em que cultura é o modo segundo o qual cada espécie de ser está inserida
num ponto de vista em relação à natureza e a si próprio.
O transporte e tradução transespecíficos entre diferentes pontos de vista, impossível em
estados normais, é no que consiste o evento xamanístico. O xamã no seu ritual consegue transitar
entre as diferentes perspectivas, ele vai além do ponto de vista especificamente humano, travando
um plano de negociação entre diferentes perspectivas entre o mundo subaquático e o humano, por
exemplo.
O entendimento desse trânsito e dessa tradução de que é capaz o xamanismo é crucial para o
espetáculo. Se, por um lado, como se apontou acima, a “perspectiva” do espetáculo é sempre a do
“Povo das Paulistas” a canibalizar os mitos dos “Povos das Florestas”, por outro, esse “Povo das
Paulistas” assume, em alguma medida, uma capacidade, similar à xamânica, de realizar o transporte
intercultural, no caso. Parece ser essa questão ambígua que se debate no espetáculo, já que é
propriamente numa tradução desse perspectivismo, desses múltiplos pontos de vista presentes na
cosmovisão ameríndia que o espetáculo se engaja.
Quanto ao entendimento e transcriação cênica dessa noção de perspectivismo, o ator Edgar
Castro em entrevista relata:

A gente ouvia, ouvia. Lia os mitos. O Pedro [Cesarino] explicava. A gente entendia aquilo mentalmente,
intelectualmente. Mas a gente veio entender cenicamente a partir de um 'workshop' que nós fizemos.
Apareciam dois planos, o que era ponto de vista do índio que tinha o seu filho raptado pelo jaguar e o que era
o ponto de vista do jaguar. Ali naquela cena foi que a gente entendeu verdadeiramente esse conceito tão
importante no estudo e contaminou a peça inteira.

“Workshop” é como Edgar chama os exercícios cênicos – a Cia. nomeia tais exercícios também
como 'deglutições cênicas', como foi mencionado – que se baseiam na recriação cênica dos
materiais em estudos. Como ele explica, são tais exercícios que de fato materializam cenicamente o
entendimento das noções do universo indígena e dos mitos estudados, já que o ponto de vista
adotado é o da cena. O exercício cênico referido por ele foi roteirizado da seguinte forma:
Vemos eventos paralelos:
a) Caçador 01
b) Caçador 02 com seu filho
Ambos os caçadores espreitam. O caçador 02 é atacado por uma onça, que foge com seu filho. O caçador
02 resolve ir atrás do felino. Vemos o caçador 01 chegar em sua casa com um filhote de caça e comê-lo
sem demora. Caçador 02 chega em frente à toca da onça e tenta resgatar seu filho. Vemos caçador 01 se
incomodar com o latido de um cachorro do lado de fora de sua casa. Vemos Caçador 02 acender uma
fogueira na toca da onça. Vemos Caçador 01 reclamar do cheiro do mijo do cachorro, e para enxotá-lo,
começa a atirar osso no cão. Vemos o caçador 02 ser atingido por pedaços do corpo de seu filho, caindo em
desespero e resolvendo ir para a aldeia enterrar o que restou do corpo do filho. Vemos caçador 01 comentar
o silêncio, desconfiando que o cão foi embora. Resolve dar uma olhada lá fora. Vemos o focinha da onça
sair da toca.

Tal roteiro nomeado como “roteiro do perspectivismo jaguar e índio” foi retirado do material bruto 7
reunido por Cibele Forjaz e enviado para Newton Moreno, que amarrou a dramaturgia do
espetáculo a partir desse material e da apresentação de todas as cenas – deglutições cênicas –
geradas com base nos estudos. Tal roteiro cênico dá claramente a dimensão da transcriação que se
intentava realizar do perspectivismo para a cena: no ponto de vista do homem caçador, o outro é um
jaguar que lhe toma o filho, enquanto no ponto de vista desse jaguar caçador, o homem é um
cachorro que late e urina diante da sua porta. Embora não tenha especificamente integrado o
espetáculo, a realização desse exercício cênico, conforme observa Edgar, foi um ponto de virada no
entendimento do grupo acerca do perspectivismo e, assim, contaminou toda a peça.
No espetáculo, a principal diferenciação entre as perspectivas é a que diz respeito à
irredutibilidade entre a perspectiva de humanos vivos e humanos mortos: “os grilos dos vivos são os
peixes dos mortos”, exemplifica Viveiros de Castro. O grande fator de diferenciação das
perspectivas é o corpo, já que todos os seres capazes de perspectivar possuem alma. A morte, como
“catástrofe corporal”, distingue vivos e mortos que se mantem comuns, supraespecificamente, pela
comum “animação” dos seres em geral, conforme se entende pela noção de perspectivismo,
tributária de uma visão animista.

7Neste material, há também a “versão narrativa” dessa cena do perspectivismo, em que se lê: “Os dois saíram para
caçar na selva. O pai levou o filho nas costas. O que partiu sozinho tinha fome. Procurando carne, não viu nem o salto,
quando ele pegou a caça jovem e fugiu correndo pra dentro da maloca. Ele, sem seu filho, caiu em prantos e seguiu o
rastro dele até um buraco na árvore. Sorte foi daquele que, presa garantida, preparou seu banquete; cortou pedaços de
carne, até que um cachorro, latindo sem parar, viesse atrapalhar o seu repasto. Ele, na porta do buraco, chorava e gritava
pelo filho; alto, tanto o cachorro, quanto o pai do filho. Ele, que era xamã, jogou água de raiz, cantou pajelança e, com
folhas secas, tocou fogo no vazio do buraco. No banquete, ele ficou furioso porque, além dos latidos, o cachorro agora
mijava na sua porta. A pajelança dava certo, porque do buraco saiu uma espécie de grunhido rouco, enquanto ele jogou
ossos de dentro da maloca, espantando o bicho; e ele, de fora do buraco, recolhia cada arte do menino devorado, até
juntar os poucos e voltar, desolado, pra aldeia. Na maloca, o silêncio deu espaço pro cochilo; bucho cheio; depois de
conferir que, lá fora, nenhum sinal de cachorro; só a fuça dele na porta do buraco.”
Assim, se permanecem humanos, enquanto humanidade de fundo, tal como os animais,
formalmente “os mortos, a rigor, não são humanos, estando definitivamente separados de seus
corpos.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002: 395) Em seguida, Viveiros complementa ainda:
“Espírito definido por sua disjunção com um corpo humano, um morto é então atraído logicamente
pelos corpos animais; por isso morrer é se transformar em animal, como se é transformar em outras
figuras de alteridade corporal, notadamente os afins e os inimigos” (id.: 395).
Vivos e mortos não comungam da mesma referência específica, não estão num mesmo plano
de perspectiva. A transposição para a cena dessa noção de diferentes perspectivas de vivos e mortos
pode ser referida no primeiro movimento da peça, no episódio chamado A mulher que trouxe a festa
dos mortos.
Uma narradora relata que um homem uma vez foi morto enquanto caçava além do seu
território. A sua mulher ficou o esperando e durante essa espera “um pássaro Totó pousou perto
dela”, nos diz a narradora. Nesse momento, outra atriz, na posição de mulher do homem morto,
pronuncia sílabas em um língua desconhecida, em diálogo com o Pássaro Totó, na figura de um ator
que se agacha munido de um apetrecho constituído por regador e espanador, simbolizando o
pássaro. Esse ator também fala numa língua desconhecida. O diálogo entre os dois é traduzido pela
narradora, evidenciado para o espectador o caráter “tradutivo” da peça.
A mulher fala ao pássaro: “Se você fosse humano, me diria onde está meu marido”. “Em
seguida, o Pássaro Totó transformou-se em um homem”, explica a narradora – o ator que, agachado
tinha o apetrecho-pássaro nas mãos, põe-se em pé, o que talvez já evidencie, cenicamente, o caráter
animista presente na noção de perspectivismo ameríndio. A mulher pede para que o pássaro a leve
até o seu marido, com o que o pássaro – depois de avisá-la que seu marido “não é mais como antes”
– concorda e a conduz à “terra dos que morreram violentamente”, funcionando como um tipo de
'animal-xamã'8, já que se mostra capaz de realizar esse trânsito entre o mundo dos vivos e mundo
dos mortos, ou seja, é capaz de transitar entre essas diferentes perspectivas, como um xamã.
Cenicamente, um outra atriz – duplo da mulher – é levada pelo pássaro à terra dos mortos,
que se abre ao fundo do palco com uma iluminação azulada indicando esse outro plano. Enquanto
isso, a outra atriz deita-se sobre uma esteira indicando que dome e está “como morta” no mundo dos
vivos.
Na terra dos mortos, a mulher encontra seu marido que pede que lhe cate os piolhos da
cabeça: “Mas a cabeça dele estava repleta de vermes e não de piolhos”, nos conta a narradora, o que
explicita a disjunção entre a perspectiva de vivos e mortos. Ainda na terra dos que morreram

8 A respeito dessa condição de xamã desse animal, como de outros seres, vale lembra, com Viveiros de Castro, que “de
certa forma, todos os personagens que povoam a mitologia são xamãs, o que, aliás, é afirmado por algumas culturas
amazônicas” (2002: 355). Isso acontece porque os mitos tratam de um tempo de indistinção entre homens e animais,
entre todas as comuns dicotomias.
violentamente, o duplo da mulher tem contato com a festa dos mortos, onde bebiam o fermentado
de sangue, dançavam e tocavam flauta. Depois disso, a mulher é trazida de volta pelo pássaro.
Nesse momento, a ação volta para o primeiro plano do palco onde a mulher está deitada. A
avó chora sobre o corpo e o “Pajé Flor de Tabaco vem de longe e faz pajelança. Toca maracá e vê
pela cortina de fumaça. Ele vai buscar a mulher na terra dos mortos. Sopra tabaco e suga o feitiço”,
assim a mulher volta a viver. E ao voltar, a mulher ensina a todos a festa dos mortos. No entanto,
quando ela vai comer, não consegue: “tudo que o que tenta comer se transforma em sangue”, relata
a narradora. Ela ficou impregnada pela perspectiva do mundo dos mortos, o que evidencia o caráter
liminar desse o trânsito xamanístico. Por fim, como ela não consegue comer, pede ao tio que a mate,
com o que tio por fim concorda.
Além do caráter tradutivo da cena evidenciado pela narradora que nos traduz a língua
estranha em que falam os outros personagens e seus duplos, a diferença de perspectiva entre vivos e
mortos é clara: enquanto uma coisa é piolho para um, para o outro é verme; enquanto para um algo
é fermentado de mandioca, para o outro é fermentado de sangue e assim por diante. Outros
elementos e cenas do espetáculo buscam se apropriar cenicamente da noção de perspectivismo e de
outras noções do universo ameríndio, como a replicação das pessoas em duplos, o que cenicamente
é representado pela duplicação de atores a desempenhar o mesmo personagem em perspectivas
diferentes, como a referida mulher e seu duplo que visita o mundo dos mortos.
Para terminar, cabe referir o espetáculo de modo geral.
VemVai – O Caminho dos Mortos constituiu-se como um espetáculo processual, com
centralidade de recursos ritualísticos. É dividido em cinco portais, passando por cada um dos quais
o público assistia a um dos cinco “movimentos” do espetáculo que incluem narrativas a apresentar
distintas abordagens do tema morte.
Como relata Forjaz, em entrevista à Daniele Ávila: “As três primeiras cenas [movimentos]
têm a mesma estrutura, que é um problema no presente que é resolvido com a narrativa de um mito
e que transforma o fim da história, resolve de alguma forma aquele conflito a partir do mito.” O
primeiro trata da morte simbólica, um executivo procura uma pajelança na Avenida Paulista, com
dúvidas sobre a sua morte e o que há para além dela.
Nessa pajelança, o executivo entra em contato com um hiper-parente na forma de uma velha
que lhe narra a história da Mulher que trouxe a festa dos mortos, conforme descrevemos acima. Por
fim, a hiper-avó diz sobre a mulher: “Ela não conseguia mais vivê aqui, tendo estado lá. Aqui é
aqui, lá é lá, tendeu? A vida é o tempo que a gente tem para aprender a morrer...”, resolvendo pelo
mito encenado o problema inicial do executivo que procura o pajé-charlatão, que lhe pergunta ao
executivo, por fim, se vai pagar com Visa ou Credicard. Assim, o espetáculo traz à tona questões
rituais e míticas para o mundo contemporâneo, ao mesmo tempo em que problematiza a posição
desses elementos no mundo de hoje.
Voltando aos movimentos do espetáculo, o segundo trata da morte no canibalismo guerreiro.
O terceiro, o canibalismo funerário, em que se devora o próprio parente morto. O quarto movimento
trata especificamente do Caminho-Morte, da trajetória dos mortos pelo perigoso Caminho dos
Mortos. Enquanto o quinto movimento tematiza a chegada de um dos duplos ao Céu da Troca de
Pele, onde o duplo é devorado pelos Deuses Canibais para renascer outro.
Quanto à encenação, vale destacar ainda que a ocupação do espaço oferecia, à passagem por
cada portal, a sensação de se estar se aprofundando cada vez mais nesse caminho escatológico que o
título propõe. A cenografia e a iluminação, juntamente com elementos sinestésicos, funcionavam
não apenas como ambientação e cor local, mas também, em diversos momentos, operavam como
elementos centrais para a condução da ação cênica, instaurando uma discursividade própria. Além
de uma sonoplastia com elementos gravados, a música executada ao vivo – inclusive com canções,
algumas das quais cantadas também pelos atores – exercia função central no desenvolvimento da
peça, sobretudo no quarto movimento quase inteiro cantado.
O espetáculo de modo geral é preocupado em proceder a esse recurso cultural evidenciando
as questões de interface e tradução entre os dois universos em jogo, com o destaque de que é o Povo
das Paulistas que conta os mitos dos Povos das Florestas.
Nesse jogo tradutivo, pode ser citado, por exemplo, o uso de rádios, telefones e gravadores
para manifestar os transportes xamanísticos. Na relação da hiper-avó com a Narradora que vai
relatar o episódio da Mulher que Trouxe a Festa dos Mortos, o texto da peça indica: a hiper-avó
“tira o telefone do gancho e disca. Do lado de lá, Narradora atende. As duas se olham e colocam o
fone no chão, conectados.” Em outros trechos do espetáculo, a mesma metáfora entre xamanismo e
tecnologias de mediação são traçadas. E essa associação é feita pelos próprio indígenas hoje: “'O
Pajé é como um rádio', os Araweté costumam explicar para os brancos.” (VIVEIROS DE CASTRO,
1992: 140)
Cenicamente, um outro exemplo nesse jogo tradutivo é quando o pajé, antes de narrar uma
história, acende o seu cigarro de tabaco, em seguida ao que toda a luz da cena se altera, torna-se
mais avermelhada. Esse recurso expressionista revela no fundo a importância do tabaco para a ação
xamânica, como ficou sugerido no exemplo do Pajé Flor de Tabaco que “vê pela cortina de fumaça”
e “sobra tabaco” sobre o doente. Um dos nomes para pajé na língua dos Araweté é justamente
“comedor de tabaco”.
À guisa de conclusão, vale reafirmar a ambivalência de se estabelecer um recurso
intercultural para a criação: por um lado, a busca de reinvenção radical de tudo aquilo que é
assimilado, por outro, a necessidade, pelo menos por parte da Cia. Livre nesse espetáculo, de não
ocultar a condição de embate e dominação que se coloca na relação com as culturas indígenas. E,
por fim, vale reiterar que o processo colaborativo, pela busca de estabelecer novos modos de
interação criativa entre os artistas envolvidos, muito provavelmente é o solo mais propício ao
desenvolvimento de uma criação cênica baseada na interculturalidade.

Bibliografia

BARBA, Eugênio. A canoa de papel. São Paulo: Editora Hucitec, 1994.


CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da Alma Selvagem. São Paulo: Cosac Naif, 2002.
__________. Araweté: o povo do Ipixuna. São Paulo: CEDI, 1992.
CESARINO, Pedro. Oniska: A poética da morte e do mundo entre os Marubo da Amazônia
ocidental. Rio de Janeiro, PPGAS-MN/UFRJ, 2008. (Tese de doutorado)
__________ (org). Revista NóZ: Caderno Livre - Espetáculo VemVai, O Caminho dos Mortos. São
Paulo: Companhia Livre da Cooperativa Paulista de Teatro / Programa Municipal de
Fomento ao Teatro da Cidade de São Paulo, 2007
FÉRAL, Josette. “Pluralism in art or Interculturalism?” In Conference The Power of Culture,
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FISCHER-LICHTE (edit.). The Dramatic touch of diference: theatre, own and foreing. Tübingen:
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LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Barueri:
Manole, 2005.
PAVIS, Patrice. Theatre at the crossroads of culture. London: Routledge, 1992.
WIRTH, Andrzej. “Interculturalism and Iconophilia in the New Theatre”, in Blesok, nº 31, March-
April, 2003.
A CENA CONTAMINADA:
O CASO DA COMPANHIA DE ARTE INTRUSA
José Tonezzi
Professor Doutor (Adjunto II)
Universidade Federal da Paraíba – UFPB
E-mail: tonezzi@hotmail.com

Resumo: A Companhia de Arte Intrusa foi um projeto iniciado em 2006 na cidade de


Campinas, SP, que tinha como principal característica a reunião de integrantes com e
sem deficiência. Inspirador para o seu surgimento foi a montagem do monólogo
Lautrec, escrito e interpretado por Katia Fonseca, no ano anterior, ainda com
características convencionais de composição cênica (texto, personagem, trama). Em
2007, a Companhia estreou o espetáculo Os dias antes de amanhã, trabalho
emblemático para o desenvolvimento de uma estética calcada não em personagens
previamente estabelecidos, mas nas qualidades corporais e comportamentais de alguns
dos atores, que tinham disfunções motoras, como a tetraplegia, ou mentais, como a
Síndrome de Down. Este trabalho trata do uso cênico das singularidades como uma
iniciativa distante do caráter de inclusão social, em que comumente se chama a atenção
para o que o indivíduo é capaz de realizar apesar de sua condição, numa lógica de
mimesis das atribuições sociais comuns. Trata-se muito mais de um uso cênico das
singularidades, daquilo que é próprio do indivíduo transformado em matéria prima da
cena. Através da descrição e análise dos processos de criação desses dois espetáculos, o
texto busca trazer à tona questões ligadas tanto à produção cênica quanto à sua recepção
pelo público.

Palavras-chave: corpo; disfunção; contágio cênico.

Em fins do ano de 2005, foi lançada em Campinas, SP, a Companhia de Arte


Intrusa, projeto que previa a constituição de um coletivo teatral aberto à participação de
atores com dificuldades ou disfunções motoras, sensoriais, mentais e/ou cognitivas.
Tratava-se de um projeto desenvolvido pelo Laboratório do Ator, companhia existente
na cidade há mais de uma década, e com o apoio do Centro de Vida Independente (CVI-
Campinas), entidade de âmbito nacional criada e gerida por pessoas com deficiência,
visando a defesa de seus direitos e interesses.
A proposta da Companhia era justamente buscar a possibilidade de agregar à
criação cênica as condições apresentadas por atores incomuns. Num artigo publicado à
época, informava-se que, diferentemente de uma prática puramente terapêutica ou
pedagógica, o intuito seria a prática de um procedimento artístico que não considerasse
as ditas deficiências como empecilho ou limitação, mas, ao contrário, as percebesse
como matéria efetiva de criação teatral e experiência estética. Ou seja, a extrema
singularidade apresentada por tais indivíduos era o principal elemento a estimular a
criação do projeto.
Singularidade: termo instigante para uma época em que ainda se é levado, quase
todo o tempo, a aceitar e a submeter-se a padrões que vão do comportamento até a
maneira de pensar, já que, se nos é dado alguma possibilidade de escolha, esta
geralmente se limita a opções previamente estabelecidas e estranhas a nós. Pode-se
dizer até que não se percebe o diferente (sobretudo, o deficiente) senão por meio da
ironia, da compaixão ou de certo constrangimento. Poucas vezes admitida com o devido
reconhecimento, a singularidade é, na verdade, a marca de cada um de nós que, antes de
sermos “normais”, somos nós mesmos.
Para Richard Schechner (2003), a performance acontece em ação, interação e
relação, não estando em mas entre dois seres ou instâncias, o que nos permite afirmar
que a performatividade pode instaurar-se no simples ato de dar-se a perceber por parte
de alguém com características extremamente diferenciadas, como a deformação
corporal ou distúrbios de comportamento. Assim, o estranhamento ou rejeição causada
no observador seria, em si, resultante de uma performance instada entre os dois. Além
disso, as condições pré-estabelecidas de aparência ou comportamento incomum
possibilitam a criação de um estado de surpresa que, para De Marinis (1987), é o que
atrai e mantém, juntamente com o assombro, o interesse do espectador.
Tais preceitos foram alguns dos que nortearam a existência da Companhia de
Arte Intrusa, constituída de atores com e sem deficiência, embora este termo quase
nunca fosse utilizado pelos envolvidos, já que de maneira geral denota falta, ausência ou
incapacidade. Dentre seus objetivos, estava a busca de alternativas dramáticas e
expressivas, cuja matéria prima se fundia nas diferenças e na diversidade explícita, o
que poderia deslocar o sentido da cena de uma estrutura convencional para
manifestações enquanto fenômenos particulares. Assim, o grupo se valia da fisicalidade
e do estímulo corporal para a geração de uma teatralidade específica, para o que as
dificuldades de ordem motora ou intelectual estavam longe de serem obstáculos.
Dentre os inspiradores para a proposta estavam alguns dos principais
encenadores do teatro ocidental, como o norte-americano Robert Wilson e o italiano
Pippo Delbono. Também teve papel fundamental para o surgimento da Companhia, a
peça Lautrec, estreada em 2005, escrita e interpretada por Katia Fonseca, atriz com
atrofiamento dos membros superiores e inferiores devido a uma má formação óssea
congênita. Seu texto tinha como inspiração a vida do pintor francês Toulouse- Lautrec,
que também possuía nanismo em função de uma doença nos ossos. No espetáculo,
dirigido pelo autor do presente artigo, a maior força de expressão e dramaticidade ficava
por conta das características incomuns da atriz, cujo corpo e comportamento
extremamente singulares foram aproveitados como elementos de composição
dramatúrgica e objeto da própria encenação. Instaurava-se, assim, o contágio cênico,
entendido aqui como procedimento de trabalho ou criação em que o indivíduo não tem a
necessidade de dissimular suas peculiaridades e nem fazer-se outro.
Em Lautrec, diversos objetos encontravam-se espalhados pelo palco enquanto a
cena permanecia aberta, à entrada do público: algumas banquetas extremamente
pequenas, duas mesinhas e bengalas de diversos tamanhos. Enquanto a luz da plateia ia
diminuindo, um azul tênue deixava entrever apenas a silhueta das bengalas, de pé sobre
o palco. Em off, ouvia-se uma voz masculina que dizia: "Nasci disputando com a morte
o meu lugar no mundo". Então, algo começava a mover-se pelo chão, arrastando-se
vagarosamente como um bicho. Um pequeno corpo, até então imperceptível, que se
dirigia até uma das banquetas, localizada no centro do palco.
Concordando com Ubersfeld (2005), para quem o texto teatral torna-se
dependente das circunstâncias enunciativas – discurso do autor, falas da personagem e
características do ator –, as condições da atriz-autora-personagem Katia, em Lautrec,
tornaram possível uma enunciação multifacetada e polifônica. Isto porque ela já não
dizia apenas por meio da personagem, mas aludia a si mesma, em cena, cujas
características constituíam-se num importante elemento de enunciação, pois que
agregavam dramaticidade ao personagem, evocando questões ligadas ao próprio
imaginário do público. Neste sentido, seria possível afirmar que, sem a necessidade de
dissimular ou de representar, o corpo da atriz – de aparência ao mesmo tempo grotesca e
singela – atingia um sentido inusitado, vinculado à subjetividade e ao imaginário
coletivo. Para tanto, buscava-se enaltecer cenicamente as suas naturais características,
como o tamanho diminuto, a deformidade e a dificuldade em cumprir com tarefas
bastante simples para um corpo comum, como caminhar, rolar pelo chão ou fixar o
pince-nez no nariz. Difíceis de serem executadas pela atriz, tais ações tornavam-se
centrais em algumas passagens. Tratava-se do uso cênico de uma disfunção, que já não
era aludida nem representada, mostrando-se como testemunho inconteste de sentidos
que, de outra forma, não seriam possíveis.
Também as situações descritas por Toulouse-Lautrec encontravam eco na
memória de Katia, que havia experimentado idênticas sensações e fatos em sua relação
com o mundo. Assim, as semelhanças entre a história do pintor e as experiências de
vida da atriz fundiam-se numa só narrativa, o que além de tornar a experiência
perceptiva do espectador mais concreta servia também como estímulo real para o
trabalho atoral. Por fim, numa feliz coincidência, o tom irônico e bem humorado que lhe
era natural vinha de encontro ao espírito sarcástico do artista francês.
A peça permaneceu em cartaz entre os anos de 2005 e 2006, com apresentações
em Campinas, Santos e São Paulo, em turnês e participações em festivais e eventos,
principalmente aqueles dedicados à discussão sobre arte e deficiência.

A Companhia

Após o lançamento, a Companhia de Arte Intrusa iniciou suas atividades com a


realização de uma seleção de atores, na qual se inscreveram cerca de quarenta
interessados. Um fato inusitado ocorrido na divulgação da audição foi que os
idealizadores, contra sua vontade, tiveram que se valer do termo “pessoas com
deficiência”, sem o que a campanha não atingiria o público que mais lhe interessava.
Assim, o anúncio na imprensa foi de que haveria um teste para a constituição de elenco
com atores com e sem deficiência e, como resultado, obteve-se a participação de
pessoas com variadas disfunções (motoras, mentais, cognitivas).
Iniciaram-se, então, os ensaios visando a constituição de um programa de
trabalho que contemplasse as inovadoras condições do grupo e que atendesse às
necessidades específicas do projeto. Considerou-se a necessidade também de preparação
daqueles que não apresentavam dificuldades, mas que nunca antes haviam trabalhado
em interação com outros em circunstâncias tão específicas. Ou seja, tanto quanto
conhecer as singularidades e atuar na preparação daqueles que apresentavam
dificuldades físicas ou mentais, era necessário investir na formação e preparo dos atores
“comuns” – os ditos normais – para a lida com a nova realidade que se apresentava.
Para tanto, questionou-se a necessidade de se ter, durante os ensaios, a presença de
algum profissional da área da Saúde e, por fim, optou-se pelo aprendizado “em
processo”, ou seja, a partir de informações preliminares sobre as condições de cada um,
dadas por familiares e/ou especialistas, o grupo buscaria uma adaptação através do
reconhecimento adquirido em sala de ensaio, através da prática de exercícios e relação
direta uns com os outros.
Em sua primeira constituição, quase metade dos integrantes do grupo
apresentavam algum tipo de disfunção: um rapaz paraplégico, uma jovem tetraplégica,
um adolescente com síndrome de Down, uma senhora com sequelas de paralisia infantil
e uma mulher com nanismo decorrente de má formação óssea congênita. Dentre os ditos
“normais”, estavam dois artistas profissionais que já integravam o Laboratório do Ator.
Essa constituição alterou-se no correr dos ensaios, que duraram cerca de dezoito meses,
entre os anos de 2006 e 2007, sempre sob o comando do diretor José Tonezzi e da
coreógrafa Valéria Franco.
Considerando o interesse em criar um trabalho calcado não em personagens
previamente estabelecidos, mas nas características físicas e comportamentais dos
integrantes, os exercícios primaram pelo jogo de improvisação e pelo trabalho corporal.
Cada exercício criado recebia uma denominação e passava a compor um conjunto de
práticas visando a criação de uma metodologia. Sistematizadas, as ações deram aos
ensaios uma dinâmica bastante particular onde, após o aquecimento físico, atividades
verbais e, sobretudo, não verbais ocorriam individualmente, em duplas ou em grupo,
estimulando o contato físico e a interação entre os participantes. Tais atividades
privilegiavam quase sempre a percepção das singularidades e permitia ao grupo de
atores comuns (sem deficiência) adaptarem-se às capacidades e dificuldades dos
demais, além de lidarem com as suas próprias.

Uma estética das singularidades

A Companhia estreou em julho de 2007 o espetáculo Os dias antes de amanhã,


trabalho emblemático para o desenvolvimento de uma estética calcada nas
singularidades. Além da direção de José Tonezzi, com assistência e preparação corporal
de Valéria Franco, o trabalho contou com a atuação de Alexandre Antunes, Andrea
Sesso, Ariel de Lucena, Cecília Gomes, Denise Richaud e Fábio Alves.
Em seu processo, a montagem teve como marca o colaborativismo, com atuação,
direção e dramaturgia ocorrendo de maneira integrada, a partir de sugestões apontadas
pelo diretor/dramaturgo e também da percepção do que de mais significativo ia sendo
apresentado pelos participantes ao longo dos ensaios. As bases para o trabalho deram-se
a partir do entendimento do que se convencionou chamar "teatro físico" (physical
theatre), que privilegia a geração de expressões e diálogos entre os corpos. A partir de
preceitos desenvolvidos por Rudolf Laban e Moshe Feldenkrais, além da rítmica
corporal de Jaques Dalcroze, desenvolveu-se um trabalho de exploração das referências
e possibilidades de cada um que, juntamente com as temas, textos e imagens sugeridas,
iam dando forma às cenas. Através de laboratórios de corpo e voz, foi estimulado o teor
expressivo do grupo, com um programa calcado na rítmica e na percepção do corpo
como objeto significante. O intuito era destacar e se valer das eventuais dificuldades de
ordem física ou intelectual, assim como as características de cada um como elementos
expressivos, tidos como recursos autênticos de uso cênico, matéria-prima para o texto
espetacular.
Não havendo um texto prévio, a criação das cenas se dava em processo, em
consonância com os ensaios, com o uso de vozes gravadas, ruídos e movimentações
corporais. Assim, o roteiro dramatúrgico se constituía com base nas atividades e
relações corporais e vocais, apoiado nos preceitos do texto espetacular e da partitura
cênico-corporal, em que importava mais a particularidade de cada um e a apropriação
que o grupo fazia das características daqueles que apresentavam uma singularidade
efetiva, em função de sua deficiência. A temática inicial para a roteirização foi a
metáfora da navegação e da morte, inspirada nos escritos de O Barco Bêbado, de Arthur
Rimbaud, e A ilha do dia anterior, de Umberto Eco, com incursões pela obra de Joseph
Chaikin, Charles Baudelaire e Samuel Beckett. Em paralelo, ocorreu a incorporação de
elementos sonoros, adereços e demais recursos que, de alguma maneira, mostraram-se
importantes para a constituição do resultado cênico.
Os dias antes de amanhã ficou em cartaz durante o mês de julho de 2007 na
cidade de Campinas, além de participar do Festival Arte Sem Barreiras “Albertina
Brasil” e do II Arte Intrusa, este último organizado pelo próprio Laboratório do Ator.
Entre os anos de 2006 e 2007, a Companhia de Arte Intrusa ofereceu oficinas, palestras,
exposições e demonstrações de trabalho à população, realizando também intercâmbios
com outros grupos interessados no tema.
Conclusão

Talvez a principal conclusão da presente reflexão seja o entendimento de que,


mais do que uma prática complementar a serviço de áreas que naturalmente lidam com
as disfunções (como a saúde, a educação, etc), as artes do espetáculo trilham um
caminho específico, com leis, referenciais e necessidades próprias. Elas se instituem
como instância de expressão em que a singularidade extremada torna-se condição
efetiva de criação e experiência estética.
De acordo com Ubersfeld (1997), existem três tipos de signos emitidos pelo ator:
os intencionais icônicos, os intencionais representativos de signos não intencionais, e os
propriamente não intencionais. Os signos intencionais icônicos dizem respeito a
procedimentos técnicos intencionalmente usados para um resultado de cunho intelectual
ou afetivo, como é o caso do discurso oral e da emissão de mensagens. Entram aqui a
dicção e a gestualidade, além de outros signos convencionalmente admitidos pelo
código teatral. Na segunda categoria, incluem-se os signos ligados à emoção, que
emitimos de maneira inconsciente, mas que são intencionalmente produzidos pelo ator,
como, por exemplo, o ato de envergonhar-se, de assustar-se ou de enfurecer-se.
Entretanto, mesmo sendo capaz de simulá-los, o ator não está imune aos efeitos dos
signos não intencionais que ele próprio pode produzir involuntariamente, como a sua
estatura, o seu timbre de voz e outras características corporais e/ou comportamentais.
Portanto, quando marcado pela deformidade ou pelo comportamento incomum, o corpo
torna-se instância inconteste de signos não intencionais, testemunho de seu próprio
inacabamento e imperfeição. E, por mais que o ator fora de padrão seja capaz de
construir intencionalmente um sem número de significações, ele sempre terá de lidar
com os signos involuntários que emite. Sua dificuldade em neutralizar ou adaptar
conscientemente tais sinais será bem maior que a do ator comum – o “sem deficiência”.
Neste sentido, lhe será de muito mais valia a apropriação de tais características,
transformando-as de signos involuntários em voluntários e, se possível, de inconscientes
em conscientes. Ganha importância, aqui, o procedimento cênico em que as condições
do ator-performer deixem de se submeter a um pretexto fabular ou ao exercício de
representação de personagens, para tornar-se protagonista.
Por fim, cabe observar a importância de uma adequada noção de significação e
de uma necessária competência poética do criador – seja ele o próprio ator-performer
fora de padrão ou de quem o põe em cena – a fim de que sua presença não se transforme
numa mera exibição de excentricidade. Isto porque, a criação cênica configura-se como
exercício constante de elaboração de sentidos, seja pelo domínio de práticas
convencionais ou pela apropriação de novos elementos que venham a integrar sua
composição e estruturação. Trata-se, no caso da cena contaminada, de valorizar práticas
e iniciativas que tomem a humana peculiaridade como matéria prima, percebendo o
mundo por um via diferenciada e intervindo nele de maneira inusitada e não
convencional.
O exemplo da Companhia de Arte Intrusa e os procedimentos aqui descritos
permitem dizer que a contaminação cênica – seja pelas disfunções do corpo, da mente
ou do comportamento – pode se impor como uma concreta contribuição para as artes do
espetáculo.

Referências bibliográficas
DE MARINIS, Marco. Dramaturgy of the spectator. The Theatre Drama Review, New
York University, USA, Volume 31, Number 2 (T114), Summer, 1987, p. 100-114.
SCHECHNER, Richard. O que é performance. O Percevejo, Rio de Janeiro, UNIRIO,
Ano 11, N° 12, 2003, p. 25-50.
TONEZZI, José. A cena contaminada (no prelo). São Paulo: Perspectiva, 2011.
UBERSFELD, Anne. La escuela del espectador, Série: Teoria y práctica del teatro N°
12, Madri: ADES, 1997.
São Paulo, 15 de agosto de 2011
Programa de pós-graduação em Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo
Autor do trabalho: Livia Piccolo

Leitura e emissão no trabalho do ator: um estudo sobre a Cia. Club Noir a partir
de Paul Zumthor

Introdução
O século XX presenciou a revolução das artes cênicas produzida por diferentes
pensadores e artistas ao redor do globo. Com o advento do cinema o teatro passou por
mudanças estruturais radicais. Se antes a linguagem teatral estava compromissada com
a idéia de representação fiel e naturalista da realidade, após o surgimento do cinema ela
teve que repensar seu alcance e sua capacidade. Bertold Brecht, Constantin Stanislavski,
Meyerhold, Jerzy Grotowski, Peter Brook, Eugênio Barba, Julian Beck, Judith Malina:
esses foram alguns dos artistas, entre muitos outros, que se engajaram em investigar
os novos caminhos do teatro. Dentre as questões relativas à linguagem teatral com as
quais os reformadores se debruçaram, o trabalho do ator muitas vezes ocupou lugar
central. Afinal, como disse o encenador inglês Peter Brook1, basta alguém fazer alguma
coisa e alguém assistir que já se instaura o teatro. Diante da popularização do cinema
e do status que o ator alcançou nessa indústria milionária, tornou-se urgente perguntar
qual o papel desempenhado pelo ator no fenômeno teatral. Qual a potência do ator, qual
a especificidade de seu trabalho e quais são seus mecanismos técnicos? Essas foram
algumas das perguntas que receberam múltiplas respostas ao longo do século XX e que
continuam a existir no teatro contemporâneo.
A questão relativa ao trabalho do ator com o texto teatral continua bastante atual.
Historicamente houve um momento em que o texto dramático ocupava o lugar central
na cena: todos os elementos constituintes da linguagem teatral – cenografia, iluminação,
sonoplastia, figurino – se articulavam para revelar os sentidos latentes do texto. Uma
relação piramidal se estabelecia: o texto no topo e o restante nos demais degraus da
pirâmide. Hoje, após todas as reformas ocorridas, a relação transformou-se. O texto
não está mais centralizado e os componentes da cena estão em uma relação horizontal.

1BROOK, Peter. A porta aberta. Reflexões sobre a interpretação e o teatro. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1994
Todos possuem o mesmo peso na composição dos sentidos da obra. Com essa operação
na linguagem teatral, houve, concomitantemente, a transformação do trabalho do ator.
Na relação piramidal, o ator deveria, em primeira instância, trabalhar sua performance
focando totalmente no texto. Todo seu trabalho técnico, sua atenção e seu compromisso
estavam ligados aos sentidos do texto. Essa perspectiva explodiu e hoje sabemos que
a potência do ator extrapola os limites do texto. E, ao trabalhar o texto, o ator tem em
suas mãos uma infinidade de possibilidades, não mais somente trabalhar para revelar os
sentidos semânticos do texto.
É aqui que trazemos à tona a Cia. Club Noir, companhia teatral sediada na
cidade de São Paulo (SP). No panorama da produção contemporânea, a Cia. Club Noir
ocupa um lugar de investigação radical sobre o papel do ator e o que ele pode realizar
com o texto teatral.

Palavra: usina de energias e sensações


A Cia. Club Noir foi criada em 2006 pelo diretor e dramaturgo Roberto Alvim
e pela atriz Juliana Galdino com o objetivo de encenar prioritariamente autores
contemporâneos (brasileiros e internacionais). Para melhor conhecer a companhia
podemos ler o que os próprios criadores dizem sobre seu trabalho:

Em virtude das Poéticas dos novos autores, houve a necessidade de


criação e conceituação de abordagens e técnicas originais no que
concerne à atuação/encenação destas obras. Surgiu assim a pesquisa da
companhia, que ao longo de seus anos de existência, assimilou novos
integrantes à sua formação. A companhia se configura atualmente como
um coletivo de 20 artistas que trabalham permanentemente em sua
sede. Nosso trabalho em arte é norteado pela criação de espetáculos que
traduzam cenicamente as obras de autores contundentes, provocativos,
desestabilizadores; criadores de Poéticas que nos levam a reconstruir o
modo como percebemos, pensamos e sentimos o mundo. Nossas escolhas
recaem sobre as obras nas quais o confronto com o implacável se dá
sem didatismos; peças incontornáveis que permanecem revolucionárias
pela força da escritura – textos urgentes nos quais o pensamento e o
inconsciente dos autores estão investidos profundamente. (...) Somos
uma companhia que investiga, sobretudo, a palavra e seu poder de
construção de realidades e de estímulo ao imaginário da platéia,
construindo Poéticas que se pautam, fundamentalmente, na exploração
inusual da fala humana – e nos silêncios que se contrapõe à ausência
desta fala. (ALVIM, 2010) 2

2A passagem escrita pelo diretor, dramaturgo e gestor da companhia, Roberto Alvim, encontra-se no site
oficial do grupo: www.ciaclubnoir.com.br
Algumas das últimas montagens do grupo são as peças Pinókio – inspirado na
fábula Pinóquio, de Carlo Collodi (1826-1890) e a trilogia de peças do dramaturgo
norte-americano Richard Maxwell – Burguer King, Casa e O Fim da Realidade.
Durante os meses de maio, junho e agosto de 2010 participei de uma oficina de
interpretação na sede da companhia, ministrada por Juliana Galdino e por dois outros
jovens atores da companhia. Os encontros aconteciam segundas e quartas feiras, das
10:00 às 13:00 hrs e contavam com vinte participantes. A oficina encerrou-se com um
ciclo de leituras, onde pudemos experimentar junto à platéia o que foi vivenciado ao
longo dos encontros. No decorrer da oficina pude compreender melhor os pilares que
fundamentam a linguagem da companhia. E, ainda, verifiquei como seria fértil analisar
o trabalho da companhia à luz do pensamento de Paul Zumthor – começaremos a falar
de Zumthor nas páginas seguintes.
Todos os dias, sem exceção, começávamos com um exercício de desaceleração3.
A indicação era a seguinte: deveríamos andar pelo espaço no tempo mais lento que
conseguíssemos, em silêncio absoluto. O tempo deveria ser realmente lento e os
ministrantes nos observavam atentamente. Se alguém começasse a acelerar, mesmo que
pouco, deveria imediatamente desacelerar. Durante a caminhada deveríamos perceber
nossas tensões físicas e nossos impulsos. Obviamente nos primeiros dias a atividade
foi bastante desconfortável. Houve vezes que andamos durante mais de uma hora,
ininterruptamente, e sempre em um ritmo muito lento.
Após a caminhada começávamos a experimentar o texto – nos primeiros
encontros cada participante escolheu um trecho de sua predileção, depois trabalhamos
com uma adaptação de Juliana Galdino sobre o mito de Prometeu, depois com
as Elegias de Duíno, de Rainer Maria Rilke e, nos encontros finais, com o texto
dramatúrgico Vai vir alguém do dramaturgo norueguês Jon Fosse. Ao terminar a
caminhada meu corpo sempre estava em outro estado. Minha respiração estava alterada
e eu não sentia meu corpo ‘cotidiano’ – o corpo que acorda todos os dias, que sai para
a rua, que vai até a padaria e que executa as diversas tarefas diárias. Após a experiência
da caminhada em tempo ultra-lento meu corpo não pulsava nem se mexia da mesma

3 A atriz e pedagoga Juliana Jardim analisa algumas práticas de desaceleração em seu doutorado. Nele
podemos entender melhor como os exercícios em ritmo ultra-lento geram um estado de sensibilidade e
escuta no corpo do ator. BARBOZA, Juliana Jardim. Vestígios do dizer de uma escuta (repouso e deriva
na palavra). Tese de doutorado. São Paulo, CAC-ECA-USP, 2009.
maneira. Posso dizer que meu corpo estava em um estado extra-cotidiano. E, ao abrir
a boca para dizer as primeiras palavras do meu texto, absolutamente tudo acontecia de
modo desconhecido.
Juliana nos dizia: “fale palavra por palavra, utilize seu estado desacelerado
para desencobrir a palavra. Construa no momento presente e sem ansiedades”.
Roberto Alvim nos disse que a expressão “desencobrimento” foi cunhada pelo filósofo
Martin Heidegger em seus estudos sobre linguagem e servia de norte para a pesquisa
da Cia. Para eles, a expressão é ideal para que o ator compreenda o que deve fazer
em cena: desenhar o abstrato pelo concreto. Por meio da concretude da palavra –
seu tamanho, sua sonoridade – o ator deve trazer à tona os sentidos do texto. Em
determinados tipos de performances o ator coloca intenções e subtextos nas palavras.
Aqui a perspectiva é claramente outra. O ator não deve acoplar musicalidades formais e
externas. Se fizer isso, ele está deliberadamente transformando o movimento e a energia
inerente a cada palavra. Não interessa aquilo que o ator pode fazer com a palavra, ou
seja, ou desenhos vocais que consegue executar. Cada palavra é uma usina de energia
e de sensações. Todo o trabalho técnico de desaceleração serve como base para que
o performer seja capaz de perceber essas sensações. Cada sensação leva o ator a um
lugar e, neste lugar – muitas vezes desconhecido – o performer está exposto e cheio de
possibilidades. Deste modo, a transmissão do texto deixa de ser uma construção formal
fria e passa a ser o movimento vivo que denota as reais energias contidas no texto.
Assim, o performer não determina tudo antes e não permanece alheio.
Durante todo esse processo o ator deve se observar. Uma das capacidades que
o performer precisa desenvolver é a auto-observação. Ao mesmo tempo que executa,
precisa observar sua ação e seus impulsos. Segundo Roberto Alvim e Juliana, tudo o
que se desenrola no trabalho de apropriação do texto é da ordem do acontecimento. Se
está formalizado e desconectado com o momento presente, está morto. O diálogo com a
obra precisa ser no momento presente, absolutamente.
Durante a oficina realizamos muitos outros exercícios: equilíbrio e desequilíbrio
corporal, fonemol, exercícios técnicos de aquecimento da voz, etc. A despeito das
diferenças entre os exercícios, todos convergiam para o mesmo ponto de vista: o ator
não está a frente da palavra. Isso equivale a dizer: o ator não deve colocar sentidos
prévios na palavra, não deve submeter o texto às suas próprias interpretações. Deve
colocar a palavra em primeiro lugar. Ela, por si só, já é um universo complexo e
pulsante. As interpretações pessoais enclausuram o texto em uma realidade muitas vezes
medíocre.
Segundo Roberto Alvim e Juliana, cada ator deve perceber seu próprio diálogo
com a obra. O que uma palavra gera em um ator não é o mesmo que em outro. Aquilo
que se diz começa naquilo que se lê – e o fenômeno da leitura é indiscutivelmente
pessoal e intransferível. É aqui que Zumthor nos oferece substrato para continuarmos a
reflexão.

Paul Zumthor: leitura e performance oral


É necessário aqui esclarecermos alguns conceitos para que o estudo se apresente
de forma clara. A palavra performance pode possuir diversas acepções, tanto no campo
da arte como nos vários estudos da cultura. Paul Zumthor a define num sentido bastante
particular, e será esse o sentido que nos moverá daqui para frente. Zumthor encerrou
sua carreira de professor no programa de Literatura Comparada da Universidade de
Montreal, vindo a falecer ali, em 1995. Desenvolveu, paralelamente às atividades de
pesquisador e medievalista, uma obra dedicada à poesia e à ficção. Seus estudos acerca
da performance ganham fôlego, gradativamente, em meio às mais diferentes áreas, e,
na que aqui estamos – Programa de Pós-Graduação em Artes, Área de Concentração
Pedagogia do Teatro, Linha de Pesquisa Formação do Artista Teatral – eles são
profundamente estimuladores e provocadores.
Primeiramente devemos dizer que Zumthor trabalha com a noção de texto
literário. Sua acepção da palavra performance não se refere à forma artística
(performance art) surgida na segunda metade do século XX, herdeira dos movimentos
de ruptura - tais como dadaísmo, happening, live art, entre outros.4 Zumthor iniciou
seus estudos como medievalista para, depois, expandir-se em direção a outros domínios
da literatura e poesia oral.
A professora Jerusa Pires Ferreira, tradutora da obra do pesquisador no Brasil,
nos diz que

Paul Zumthor representou para os estudos medievais e de poéticas do


oral um divisor de águas. Sua postura renovadora e criativa procurou
dissolver dicotomias obsoletas e criar uma plataforma de atuação
em que a voz, o corpo, a presença desempenham um forte papel.

4 Sobre a performance como forma artística há um livro excelente, no qual o autor conceitua
detalhadamente o fenômeno artístico: COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo:
Perspectiva: 2004.
Discutindo e ampliando a noção de texto literário, passa por teorias
estéticas contemporâneas, bem como pelas da comunicação e da cultura,
deixando-nos a percepção de que o texto se tece na trama das relações
humanas. (ZUMTHOR, 2004, p. 125)

Bem, vamos a ele.


Zumthor trabalha com a idéia de performance como emissão em presença.
Trata-se de um ato presencial, ligado à transmissão e seus processos. Nesse
ato presencial uma das primeiras situações que se coloca, é, necessariamente, a
manifestação de um corpo vivo.

Qualquer que seja a maneira pela qual somos levados a remanejar


(ou a espremer para extrair a substância) a noção de performance,
encontraremos sempre um elemento irredutível, a idéia da presença de
um corpo. Recorrer à noção de performance implica então a necessidade
de reintroduzir a consideração do corpo na obra. Ora, o corpo (...) é da
ordem do indizivelmente pessoal. (ZUMTHOR, 2007, p. 38)

Zumthor pensa performance em relação à transmissão de textos poéticos5, sejam


eles orais ou escritos, como já foi dito logo acima. O que, particularmente, nos chama
a atenção em seus estudos é a sua negação, bastante enfática, pela oposição entre texto
escrito e texto falado. Zumthor não opõe a leitura de um texto escrito (literário) à leitura
de um texto transmitido oralmente. Assim como em uma situação de transmissão oral o
corpo do emissor e do espectador são chamados para a experiência, o mesmo pode ser
dito acerca da transmissão escrita. Vejamos nesses dois trechos:

A questão que se coloca é esta: em que medida pode-se aplicar a noção


de performance à percepção plena de um texto literário, mesmo se essa
percepção permanece puramente visual e muda, como é geralmente a
leitura em nossa prática, há dois ou três séculos? (ZUMTHOR, 2007,
p.33)

É ele (o corpo) que eu sinto reagir, ao contato saboroso dos textos que
5 A qualidade do que é poético o autor nos dá nesse trecho: “Se admitimos que há, grosso modo, duas
espécies de práticas discursivas, uma que chamaremos, para simplificar, de “poética”, e uma outra,
a diferença entre elas consiste em que o poético tem de profundo, fundamental necessidade, para ser
percebido em sua qualidade e para gerar seus efeitos, da presença ativa de um corpo: de um sujeito em
sua plenitude psicolfisiológica particular, sua maneira própria de existir no espaço e no tempo e que ouve,
vê, respira, abre-se aos perfumes, ao tato das coisas. Que um texto seja reconhecido por poético (literário)
ou não depende do sentimento quer nosso corpo tem. Necessidade para produzir seus efeitos; isto é, para
nos dar prazer. É este, a meu ver, um critério absoluto. Quando não há prazer – ou ele cessa – o texto
muda de natureza.” (ZUMTHOR, 2004, p. 35)
amo; ele que vibra em mim, uma presença que chega à opressão. O
corpo é o peso sentido na experiência que faço dos textos. Meu corpo
é a materialização daquilo que me é próprio, realidade vivida e que
determina minha relação com o mundo. Dotado de uma significação
incomparável, ele existe à imagem de meu ser: é ele que eu vivo, possuo
e sou, para o melhor e para o pior. (ZUMTHOR, 2007, p.23)

O ator, em seu trabalho, passa por dois momentos facilmente identificáveis.


Em um deles ele lê o texto que será trabalhado. Em um outro momento ele será o
transmissor desse mesmo texto lido anteriormente. Não estamos falando apenas da
leitura de textos já finalizados, mas também de dramaturgias criadas processualmente.
Mesmo aqui existe o momento da leitura – seja da dramaturgia temporária que
será depois modificada ou do texto que será finalmente levado à cena. Em ambas
as situações, há a movimentação do corpo, dos ritmos sanguíneos. Assim sendo, o
ator performa em no mínimo duas situações diferentes: no ato da leitura e no ato da
transmissão. Surge então uma pergunta: o resultado final do trabalho do ator - a saber, o
resultado colocado em cena na presença do espectador - não estaria ligado ao primeiro
contato do ator com o texto? Ou seja, à primeira leitura? Em outras palavras: o ator
começa como leitor? Não estamos, ainda, considerando as circunstancias nas quais se dá
a leitura primeira: individualmente, em grupo, em cadeiras, em cena, após exercícios de
aquecimento, etc. Há infinitos modos e, certamente, eles exercem influências das mais
diferentes naturezas. Se assim prosseguirmos, é preciso lembrar que o ator em cena
não está ligado somente à primeira leitura. Cada um de nós está ligado ao momento de
nosso nascimento, mas também a muitas outras histórias. Entre a primeira leitura e o
momento em cena há, com certeza, outras leituras.
Um novo trecho de Zumthor faz prosseguir o pensamento:

Minha hipótese de partida poderia se exprimir assim: o que na


performance oral pura é realidade experimentada, é, na leitura, da ordem
do desejo. Nos dois casos, constata-se uma implicação forte do corpo.
(ZUMTHOR, 2007, p.35)

Adentrar a seara do desejo significa adentrar naquilo que é ‘indizivelmente


pessoal’, nas palavras do próprio pensador. Não pretendemos, de modo nenhum,
averiguar o fenômeno da leitura. Esse nos parece ser um domínio dos estudos da
linguagem e não podemos ambicionar ir tão longe. Aqui falaremos da leitura como parte
constitutiva da preparação do ator.
Na Cia. Club Noir o momento de leitura é tratado como uma estágio crucial
para a performance do ator. A leitura é infinitamente mais importante do que aquilo
que comumente associamos ao trabalho do ator - compor um personagem, procurar
intenções e subtextos para a palavra ou transformar o corpo para fingir ser outrem. O
momento em que o ator lê a palavra em sua preparação – seja nos ensaios coletivos ou
em sua rotina individual de treinamento - é, ao mesmo tempo, um instante de delicadeza
e mistério. Talvez a pesquisa da companhia compreenda a tese de Paul Zumthor de que
leitura literária e performance oral não estão em relação de oposição. E, como lemos no
trecho acima, em ambos os casos há uma implicação forte do corpo.
Nas montagens da Cia Club Noir os atores se movem muito pouco. O encenador
Roberto Alvim os coloca em uma situação de imobilidade quase total, a fim de que
a pesquisa com a potência da voz e da palavra rompa os limites. Independentemente
das personagens que desempenham, todos os atores vivem a imobilidade. O que essa
situação extrema gera nos performers? Por meio da curta experiência que tive na oficina
do grupo e com a observação como espectadora das montagens, arrisco-me em uma
resposta: acredito que a imobilidade física, nas circunstâncias colocadas pela encenação
de Alvim, empurram o ator para a ampliação da suas habilidades sensíveis. Não lhe
interessa as habilidades mecânicas, mas sim outras, muitas vezes pouco mapeadas pelo
homem. No cotidiano usamos nosso corpo para executar diversas tarefas. Muitas delas
repetimos por toda uma vida: acordar, levantar, sentar, andar, dormir, etc. Existe certa
mecanização do corpo e de seus movimentos, um sistema que se organiza com muita
facilidade e não nos coloca novos desafios. No palco, então, Alvim opta por suprimir
todo esse sistema. O corpo ganha um status de escultura, de imagem. Nessa imobilidade
não há espaço para respostas automatizadas. Assim sendo, o mergulho no desconhecido
se impõe. E o performer atravessa momentos de extrema surpresa consigo mesmo, com
o outro, com o texto e com o receptor/espectador das palavras que está a proferir:

Ora, compreender-se, não será surpreender-se, na ação das próprias


vísceras, dos ritmos sanguíneos, com o que em nós o contato poético
coloca em balanço? Todo texto poético é, nesse sentido, performativo, na
medida em que aí ouvimos, e não de maneira metafórica, aquilo que ele
nos diz. Percebemos a materialidade, o peso das palavras, sua estrutura
acústica e as reações que elas provocam em nossos centros nervosos.
Essa percepção, ela está lá. Não se acrescente, ela está. (...) É a partir
dela que, este texto, eu o reconstruo, como o meu lugar de um dia. E se
nenhuma percepção me impele, se não forma em mim o desejo dessa (re)
construção, é porque o texto não é poético; há um obstáculo que impede
o contato das presenças. (ZUMTHOR, 2007, p.54)

Conclusão/indagação
A Cia. Club Noir está comprometida com a pesquisa de um teatro conectado
ao seu tempo. Roberto Alvim acredita que o teatro é presença humana pura e sem
intermediações, em sua máxima potência, modelando o tempo, o espaço e a própria
condição humana. Sua aspiração é de inaugurar uma nova relação entre espectador
e obra, pressionando a linguagem teatral além de seus limites. A respeito de seu
empreendimento, a jornalista Gabriela Melão escreveu:

Os dez espetáculos montados pela companhia evocam uma realidade


que nasce a partir do texto e concretiza a ausência, rejeitando conceitos
enraizados sobre sujeito, narrativa e interpretação. Evidenciam também o
apetite de Alvim por uma cena penumbral capaz de instigar o imaginário
e uma arquitetura dramatúrgica original, na qual inúmeros emissores
habitam um personagem. Há cinco anos Alvim amadurece – e radicaliza
– seus conceitos em cena. O ciclo dessa trajetória investigativa, que
faz avançar o teatro contemporâneo no país, culmina justamente em
Pinokio, seu experimento artístico mais radical. Pinokio é um filho feio
(no sentido de que não está no padrão de beleza que a hegemonia elegeu)
que marca o começo de algo realmente fundante. O início de uma vereda
em direção a um planeta que não se conhece, mas onde se quer morar.
(MELLÃO, 2011) 6

Uma das características fundamentais de nosso tempo – certamente algo que


a Cia. Club Noir sabe e releva ao estruturar sua linguagem – é a explosão do poder
digital. O teatro está vivo e sua dimensão artesanal continua forte. Mas fora das salas
de ensaio e de espetáculo há todo um universo de realidades e ferramentas virtuais. Se
o teatro, segundo Alvim, é a presença humana sem intermediações, o mundo digital é o
reino soberano das intermediações.
Pra concluir o presente trabalho, faço uma indagação que não almeja ser
respondida de imediato. Trata-se de uma questão que certamente ocupa as mentes de
todos aqueles que se interessam pelo poder das performances orais. Paul Zumthor não
chegou a assistir ao imenso avanço e popularização da internet e das redes sociais.

6Gabriela Mellão, jornalista, dramaturga e crítica teatral, em colaboração para o jornal Folha de São
Paulo
Não podemos negar a força de redes como o facebook ou o twitter, essas gigantes
comunidades onde todos podem participar e ter voz. Usuários ao redor de todo o globo
internalizaram essas ferramentas virtuais de tal forma que não podemos mais conceber a
internet sem elas. Fazemos uso diário do facebook e do twitter, para diferentes funções.
Uma prática que é bastante comum no facebook, por exemplo, é o compartilhamento de
conteúdo em vídeo - extraídos do Youtube ou do Vimeo. Milhares de vídeos musicais
são postados pelos usuários todos os dias. Alguém posta alguma coisa e outros fazem
comentários sobre a postagem.
Sabemos que dentro da existência de uma sociedade humana, a voz é
verdadeiramente um objeto central, um poder, representa um conjunto de valores que
não são comparáveis verdadeiramente a nenhum outro, valores fundadores de uma
cultura e criadores de inúmeras formas de arte. É claro que, entre os povos cuja cultura
é puramente oral, a voz preenche uma função muito mais eminente que entre nós, onde
ela é muito frequentemente substituída pela escrita ou pelas mídias. A indagação que
lançamos aqui é a seguinte: será que a tendência cada vez maior do compartilhamento
de conteúdo musical nas redes sociais não assinala uma nostalgia da voz viva? Os dois
trechos seguintes de Zumthor nos abrem caminhos possíveis para pensar a questão:

A voz é presença. A performance não pode ser outra coisa senão


presente. Eu não posso escutar nada do passado. No entanto, sei que no
passado outros falaram, escutaram, da mesma forma que outros talvez o
façam nesse momnto nos seus lugares, em espaços tão longínquos que eu
estou fora da capacidade de os ouvir. Todas essas vozes só podem chegar
ao meu conhecimento mediatizadas. (ZUMTHOR, 2005, p. 83)

A transmissão mediática retira da performance muito de sua


sensualidade. O rádio (o disco ou o cassete) só deixa subsistir aquilo
que é auditivo. No caso da televisão, a vista funciona. Por outro lado,
o que falta completamente, mesmo na televisão, ou no cinema, é o
que denominei tatilidade. (...) Essas máquinas (...) foram inventadas
numa época relativamente recente, e representam como tal um esforço
da humanidade (depois de séculos em que toda cultura foi transmitida
por formas de escrita) para reencontrar a autoridade da voz viva.
(ZUMTHOR, 2005, p. 70)
Bibliografia
BARBOZA, Juliana Jardim. Vestígios do dizer de uma escuta (repouso e deriva na
palavra). Tese de doutorado. São Paulo, CAC-ECA-USP, 2009.
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 2009.
______________. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2002.
BONFITTO, Matteo. O ator compositor. São Paulo: Perspectiva: 2006
BROOK, Peter. A porta aberta. Reflexões sobre a interpretação e o teatro. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.
____________. O ponto de mudança: quarenta anos de experiência teatrais: 1946-
1987. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.
ZUMTHOR, Paul. Escritura e nomadismo: entrevistas e ensaios. São Paulo: Ateliê,
2005.
______________. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007
SONORIDADES EM MEYERHOLD

Adriana Fernandes
Departamento de Artes Cênicas - UFPB

Em se tratando de discutir sobre as questões sonoras em Meyerhold, faz-se


necessário, ao meu ver, partir do contexto de ideias da época, ou pelo menos o
que sabemos delas. Dessa maneira o movimento simbolista vem à tona, trazendo
com ele a área de literatura para ser agregada a este estudo que já lida com duas
áreas: música e teatro, mas felizmente, ao meu ver, considero que continuamos no
campo das artes.
Já de partida nos deparamos com um problema de difícil resolução: a
definição de simbolismo e por conseguinte símbolo. Símbolo possui dezesseis
definições no velho e sábio Aurélio que começa nas explicações mais usadas,
contemplando a analogia e o misticismo - “1.aquilo que, por um princípio de
analogia, representa ou substitui outra coisa;...3. aquilo que tem valor evocativo,
mágico ou místico;” - passando por uma explicação onde a ideia de convenção é
agregada “...4. objeto material que, por convenção arbitrária, representa ou
designa uma realidade complexa;” - e chegando finalmente na explicação
semiológica e semiótica do signo-símbolo “...16. Signo que, em oposição
simultânea ao ícone e ao índice, se fundamenta numa convenção social e mantém
uma relação instituída, convencional, com o referente” (FERREIRA, 2009).
Aproveitando a generosidade do dicionário, a definição de simbolismo
encontra-se um pouco antes e reza:
Escola literária do fim do século XIX, que se originou na França, surgida como
reação contra o parnasianismo, e que, caracterizando-se por uma visão subjetiva,
simbólica e espiritual do mundo, adotou novas formas de expressão, traduzindo
as impressões por meio de uma linguagem em que dominava a preocupação
estética. Escola de tendências análogas, nas artes plásticas e na música (Idem,
ibidem).

Juntando estas informações pode-se perceber a complexidade do assunto e,


seguindo o exemplo de Anna Balakian (2007), não se pretende chegar a uma
definição final ou conceitualização da palavra “simbolismo” e muito menos do
movimento simbolista. Pretendo sim usar elementos destas informações para
conduzir este breve e inicial estudo, tais como analogia, misticismo e convenção,
2

pois ao meu ver, estes termos é que vão propiciar a aproximação da questão
sonora e musical com o teatro de Meyerhold.
O estudioso inglês Sir Cecil Maurice Bowra (1898-1971) citado por
Balakian vai incluir na tradição simbolista todos os poetas que
tentaram manifestar uma experiência supernatural na linguagem das coisas
visíveis e assim quase toda palavra é um símbolo e é usada não em seu sentido
comum, mas em associação com aquilo que ela evoca de uma realidade situada
além dos sentidos. (Bowra apud BALAKIAN, 2007, p. 12)

É nesta relação da palavra e aquilo que ela evoca mentalmente e também


na sua elocução sonora que os caminhos da literatura e da música se entrecruzam
mais uma vez. É sabido que, desde os gregos, a música é tratada e reverenciada
como uma arte de “poderes especiais.” Esta categorização é reforçada mais ou
menos ao longo da história da música, mas de certa forma ela é quase onipresente.
Henry Raynor em seu livro História Social da Música afirma, em relação à idade
média, que “a igreja cristã utilizou a música, como o culto pagão o fizera, para
fins de uma atmosfera extraterrena que ela podia criar, e para afastar o culto do
reino da experiência e sentimento subjetivos pessoais” (1981, p.26). Convém
lembrar que a idade média musical vai do século V ao século XIV-XV, ou seja,
são quase mil anos de crença e inculcação desta ideologia que professa poderes
ocultos da música (que inclusive serve de título para um outro livro, escrito por
David Tame, 1984). Observe também pela afirmação de Raynor que o culto
pagão, anterior e praticamente ainda mais velho e persuasivo que o culto cristão,
também promulgava esta ideia “superpoderosa” da música.
Não estou dizendo e nem criticando esta ideia como infundada. A questão
a meu ver é o excessivo peso dado às propriedades de alteração temporais
inerentes ao fazer musical para as quais são dadas explicações metafísicas e
esotéricas. Mas o fato é que o fazer musical, a lida com os sons e as sonoridades
no decorrer da trajetória humana tem sido permeada por analogias e misticismo,
ou seja, esta é uma atividade artística que carrega intrinsicamente consigo a ideia
simbólica. Talvez pela sua característica abstrata, de onda sonora que é
perceptível mas não é visível é que se fez necessário esta conexão com imagens
ou quaisquer outros signos mais palpáveis e facilmente compreensíveis. Daí a
necessidade de analogia e a introdução de explicações místicas. A própria escrita
musical que vai se desenvolver a partir do ano 1000 com Guido D’Arezzo é toda
3

baseada num sistema simbólico convencionado que vai culminar com a escrita
musical ocidental conhecida, utilizando o pentagrama, claves, fórmulas e figuras
musicais.
A questão simbólica dentro da trajetória da música inicia-se com os mitos
que rondam a sua origem ao redor da criação da lira de Apolo e do aulos de
Dionísio, passa por Pitágoras explicando as relações da música com os números e
a harmonia das esferas e chega a seu ápice no século XVIII, ao final do período
barroco, quando estabelece-se a teoria dos afetos e a doutrina das figuras. Ambas
estabelecem relações da palavra com a música e entendem música como a
expressão dos sentimentos. A primeira relaciona diretamente as emoções
características, ou afetos, a determinados procedimentos musicais e a segunda
relaciona música e retórica e cria o “word painting” , ou seja, a transposição por
sugestão ou semelhança de um determinada palavra para um procedimento
musical. Percebe-se nestas duas teorias uma tentativa sinestésica, de diálogo entre
as percepções e uma sutil mudança no entendimento da música que passa a ser
pensada como um recurso para compreensão das emoções e dos sentimentos.
Portanto, ao se estudar o simbolismo e suas relações com a música é
necessário ter em mente que a música em si já é bastante carregada de símbolos
que foram sendo agregados ao longo de sua existência, quer seja em relação a sua
performance ou a sua escrita. Tem como característica intrínseca a convenção
sonora, inclusive a categorização do que é ou não música passa pela organização
destes sons convencionalmente, ou seja, ela é formalizada. Um outro dado
bastante importante desta digressão é a tendência sinestésica que envolve música,
seu trânsito livre entre imagens, associações, movimentos corporais, sentimentos,
que será um dos pontos de contato com as técnicas simbolistas.
Depois desta breve explanação sobre a questão do simbolismo na música,
dirijo-me ao simbolismo do final do século XIX que vai influenciar Meyerhold.
Enquanto movimento literário, o simbolismo tem como principais figuras
Baudelaire, Rimbaud, Verlaine, Mallarmé, Henrich von Schubert, Brentano,
Novalis, Tieck, E. T. A. Hoffmann, Villiers, Hofmannsthal, Rilke e D’Annunzio.
No teatro simbolista temos as figuras de Lugné-Poe, Villiers, Maeterlinck,
Hauptmann, Hoffmannsthal, Paul Claudel (seus dois primeiros diálogos
dramáticos) e Yeats. Segundo Balakian a maior preocupação do simbolismo era
“...o confronto entre a mortalidade humana com o poder de sobrevivência, através
4

da preservação das sensibilidades humanas nas formas artísticas”(p.15). As


sensibilidades humanas são uma combinação das percepções interior e exterior e o
simbolismo vai tornar estas percepções maleáveis estabelecendo relações entre o
abstrato e o concreto. A autora nos lembra que na época do movimento ainda não
tínhamos Freud e que os conceitos de realidade e consequentemente de verdade
são entendidos no sentido do “divino, inatingível aqui e agora” (p.25) e portanto a
realidade é espiritual, o realista é o sonhador. No meu ponto de vista é exatamente
por causa deste diálogo entre o concreto e o abstrato que a música é tão bem vinda
entre os simbolistas. Ela faz dessa “realidade espiritual” sua matéria-prima porque
o som é o veículo de transporte.
O movimento simbolista vai utilizar a música principalmente no seu
aspecto formal: tema e variação, exposição e desenvolvimento, uso de pausas,
porque tem como princípio um discurso indireto onde as palavras devem sugerir
imagens provocando a liberação onírica. Além disso, a música possui uma
estrutura que rompe com a progressão lógica comum na poesia que antecede o
movimento simbolista. O simbolismo também vai utilizar da sonoridade de
palavras especiais em associação, criando uma recorrência sonora de fonemas que
resulta em uma série de sons musicais, apelando aos ouvidos. A música tem em
comum com a poesia o paradoxo entre espontaneidade e cálculo, onde “um
processo intelectual e matemático [ocorre] em lugar de uma reação instintiva a
uma emoção” ( BALAKIAN, 2007, p.71).
Logicamente o movimento teve muito mais características e fases onde os
elementos musicais foram tratados de diferentes formas por diferentes autores. O
movimento simbolista foi de uma importância gigantesca para outros movimentos
de vanguarda na arte que o sucederam, e suas influências podem ser percebidas
até os dias de hoje. Na Rússia em tempos de revolução, logo no início do século
XX, o movimento simbolista chega também causando curiosidade e
experimentos. Em S. Petersburgo, a velha capital, Ivánov, um dos principais
teóricos do simbolismo russo, reúne em seu apartamento, chamado de “Torre,”
vários nomes ligados à intelectualidade e ao meio artístico para discutir esta “nova
arte.” (GUINSBURG, 2008, p.20). Dentre eles Meyerhold.
Estas reuniões foram importantes para montagens subsequentes realizadas
por Meyerhold em Poltava e depois quando da sua filiação à atriz Vera
Komissarjévskaia de volta em S. Petersburgo. São trabalhos do período de 1906 e
5

1907 onde o diretor experimenta com as técnicas, preceitos e autores simbolistas,


tais como: Irmã Beatriz de Maeterlinck, Barraca de Feira de Aleksandr Blok, O
casamento de Zobeida de Hoffmannstahl e A Vitória da Morte de Sologub.
Nestes trabalhos e também a partir de experimentos anteriores com a sua
própria companhia chamada de Teatro-Estúdio, Meyerhold está colocando em
prática “um novo repertório, um teatro de Maeterlinck, D’Anuzzio (sic)
Przybyszewski...um teatro como reação contrária ao naturalismo, um teatro de
Convenção, não um teatro d’alma.” (Meyerhold apud THAIS, 2009, p.20). Esse
teatro de convenção que teve formulação teórica de Briússov (do círculo de
Ivánov), vai ser delineado por Meyerhold através de uma nova organização do
espaço cênico, acompanhado de uma concepção do corpo do ator como uma
estatuária plástica e ainda, uma composição da cena teatral baseada numa rítmica
musical wagneriana. Propunha uma cena descompromissada com as exigências
da realidade, um ator que não reproduz a vida mas que a cria “na arte, tudo não
como na vida, mas como na super vida.” (Tcherbakov apud THAIS, 2009, p.36).
É uma concepção baseada na forma, o que Meyerhold chama de drama
estático, “em que a ação é definida não como uma série de eventos externos, mas
como um acontecimento da alma dos personagens, materializando-se nas pausas,
nos silêncios e, principalmente, nas formas e nos movimentos plásticos.” (THAIS,
ibidem, p.33-34). É nesta ênfase na forma e nos vários níveis de organização (do
corpo, da cena, dos sons) que o teatro de Meyerhold vai dialogar mais de perto
com a música.
Meyerhold teve uma forte educação musical e possuía um profundo
conhecimento dos escritos e ideias de Richard Wagner, assim como de suas obras.
Ao elaborar e corroborar com as ideias desse “novo teatro,” dessa “nova arte,”
essas informações musicais serão utilizadas e se tornarão muito presentes na
formulação de suas proposituras de direção e concepção cênicas.
Richard Wagner é o grande revolucionário da segunda metade do período
romântico musical já imbricado de sentimento nacionalista (aproximadamente
1860 em diante). Ele vai propor a obra de arte total principalmente através de seus
trabalhos operísticos e, estruturalmente, é o propositor do leitmotiv (motivo-guia,
mais ou menos como uma linha melódica que identifica um personagem, uma
coisa, uma ideia ou um símbolo no drama musical). Um outro elemento estrutural
muito importante utilizado por Wagner é o cromatismo, a instabilidade tonal por
6

excelência pois emprega-se os doze sons possíveis da oitava tonal (todas as teclas
entre duas notas dó consecutivas no piano, por exemplo). Foi bastante
influenciado por Beethoven (1770-1827) cujas sinfonias foram e ainda são de
grande relevância dentro da história da música ocidental. Em vários pontos sobre
a obra de Meyerhold, a sinfonia é mencionada como a forma musical modelo para
compreender suas encenações.
A sinfonia está diretamente relacionada com a sonata, forma musical por
excelência desenvolvida durante o classicismo (segunda metade do século XVIII,
aproximadamente 1750-1825). A forma sonata que será empregada em pelo
menos um dos movimentos da sinfonia (normalmente o primeiro) é caracterizada
pelo contraste e daí ser tão interessante para o compositor o seu uso. Através desta
forma o compositor tem maior liberdade de expressão, porque a forma impõe a
criação de contrastes, quer sejam rítmicos, melódicos, harmônicos, quer sejam
com relação às tonalidades ou ao material temático. Ela apresenta uma primeira
seção denominada de exposição onde um primeiro tema é apresentado na
tonalidade que normalmente dá nome à peça (ex. Sonata em Sib Maior, Mozart, o
primeiro tema está em sib maior), depois vem uma transição (chamada de ponte)
que instaura uma instabilidade tonal e já deve propor uma outra tonalidade que
conformará um segundo material temático. Esta seção normalmente é terminada
com recursos claros, incisivos, repetitivos que podem estar ou não dentro de uma
cadência (fechamento). Toda a exposição normalmente é repetida, para deixar
claro para o ouvinte o material proposto.
A segunda seção é denominada de desenvolvimento e nela se instaura a
instabilidade e é aqui que o compositor pode mostrar a sua inventividade a partir
do material apresentado na primeira seção. É uma seção tensa e excitante, onde os
temas podem ser quebrados, combinados, recombinados, estendidos, encurtados,
re-orquestrados. Além disso o material tonal pode ser tratado livremente, usando
do cromatismo. Sua última parte prepara para um retorno ao tema inicial quando
se dá a recapitulação.
A terceira e última seção da forma sonata é chamada de reexposição ou
recapitulação. Nela é como se ouvíssemos novamente a primeira seção com um
pequeno diferencial: a tonalidade deve ser a mesma em toda a seção afirmando e
reafirmando o tom da peça, no primeiro tema, na ponte, e no segundo tema. Caso
7

haja uma coda (parte final), ela também deve estar na tonalidade principal da
peça.
Como se pode depreender nesta descrição e ao se acompanhar a história da
música e se comparar os estilos de sonata de Haydn, Mozart, Beethoven por
exemplo, é notável o que esta forma pode propiciar de inventividade e criação e
ainda contando com um princípio que ao meu ver é altamente carregado de
dramaticidade: o contraste.
No meu entendimento, é aqui, na questão dramática do contraste onde
convergem a sinfonia – onde a forma sonata é executada na dimensão da
orquestra (portanto agregando mais contraste no que concerne aos timbres),
Wagner e suas ideias de obra de arte total, leitmotiv e cromatismo, e os
experimentos do teatro meyerholdiano. Também é importante notar que desde o
aparecimento da forma sonata no século XVII até Beethoven e depois Wagner,
temos a agregação de outros elementos sonoros que se aproximam da literatura e
da arte dramática nas formas difundidas no período. Teremos, por exemplo, o
aparecimento da música programática, que é essencialmente instrumental e está
associada a um poema, uma estória ou alguma fonte literária e em linhas gerais
pretende, em sons, descrever esta estória. Assim surge a sinfonia programática,
cuja Sinfonia Fantástica, op.14 de Berlioz é o mais conhecido exemplo, as
aberturas programáticas, teatrais e de concerto (p.ex. Mendelssohn – Sonho de
uma noite de Verão), as peças de caráter (ex. Schumann), o poema sinfônico
(Liszt e Strauss) e o próprio drama wagneriano.
Jonathan Pitches em seu livro sobre Meyerhold (2003) descreve um pouco
do processo adotado de preparação do ator tendo em vista as questões musicais.
Meyerhold queria de seus atores um comportamento em cena que se aproximasse
de uma composição musical, para que houvesse fluidez, contraste, forma e cor
(p.56). Para isso treina seus atores ritmicamente – ritmo do movimento e da ação.
Descreve esse treinamento rítmico em 3 fases1: otkaz (recusa), posil (enviar) e

1
Embora Pitches não mencione em seu trabalho, existem 4 fases descritas para o treinamento da
biomecânica. Esta outra fase estaria incluída depois da posil, antes da tochka, é chamada de
tormoz, que significa ruptura ou liberação. Como ela ainda é relativa à ação propriamente,
considero que podemos continuar o estudo pensando apenas nas 3 fases citadas por Pitches.
Encontrei em outros estudos referência a apenas 3 fases também, e ainda uma suposta fonte para
Meyerhold foi um princípio japonês de treinamento dos atores e dançarinos conhecido por Jo-Ha-
Kyu (reter – quebrar – permitir), também dividido em 3 partes. Ver Ritmo em Barba e Savarese,
1991.
8

tochka (final do ciclo de ação). Durante a otkaz o ator prepara a ação em sentido
contrário, é o impulso, é o negativo ou a contra ação. Pode também ser pensada
como um prólogo. Se a ação é pular, durante o otkaz o ator se agacha. A posil é a
ação propriamente, a expressão daquilo que foi sugerido no prólogo. De acordo
com o exemplo é o pulo em si. E finalmente a tochka é a finalização da ação,
como um epílogo, mas deve conter e sugerir um novo começo. Então,
completando o exemplo, o ator termina seu salto na aterrissagem e já prepara ou
dá a dica de sua próxima ação.
Podemos perceber aqui uma certa proximidade com a forma sonata. A
otkaz equivaleria a exposição, uma apresentação daquilo que se pretende fazer; a
posil equivaleria ao desenvolvimento, é quando o ator e o compositor fazem
aquilo que são capazes; e finalmente a tochka equivaleria à reexposição que
também guarda segredos e surpresas para o espectador. Embora na sonata a ênfase
esteja na primeira parte, quando da exposição dos temas, e no teatro, ao meu ver,
a ênfase esteja na segunda parte, no desenvolvimento, na ação propriamente dita,
acho que podemos pensar formalmente nesta aproximação como válida. Na
tentativa de ilustrar mais e entender melhor estes procedimentos, passo a traduzir
uma descrição de uma cena citada por Pitches do ator Igor Ilinsky, sobre a peça A
Proposta, de Chekhov. O texto diz: Ele bebe um copo de água. Segundo Ilinsky
esta única frase se torna uma cena inteira:
Ilinsky quebra sua fala, aperta seu coração com uma mão, a lapela do casaco
com a outra. O pai levanta, dá um passo para traz e levanta ambos os braços,
como se Ilinsky fosse nadar para ele. A empregada no fundo levanta a sua
vassoura e a segura em riste no ar sobre a sua cabeça. Existe uma pausa. A
música de Chopin começa a tocar. Ilinsky, ainda segurando a sua lapela, estica a
outra mão para o copo sobre a mesa. Ele segura o copo a uma distância de um
braço de sua boca. Seus olhos se arregalam. A música toca mais alto. O pai e a
empregada permanecem congelados. Com um rápido e brusco movimento traz o
copo para si e bebe a água. A música pára, a empregada retorna para a sua
varredura. Ilinsky cuidadosamente alisa sua lapela e retorna o copo para a mesa.
O pai continua com a sua próxima fala. (Houghton, 1938, p. 123 apud
PITCHES, 2003, p. 56-57, minha tradução)

Como se pode perceber, toda a cena é preparada, pensada, formalizada.


Existe diálogo e contraponto de ações entre os atores em cena e a música de
Chopin que entra, cresce e sai de cena. Ainda de acordo com Pitches, Meyerhold
pensava na música como um estímulo constante para a ação, como parte da forma
da cena, e não simplesmente uma outra camada em cima de todo o resto (p.54).
9

Recorro mais uma vez a Maria Thais explicando em outra montagem, A


Morte de Tintagiles, de Maeterlinck, os princípios básicos adotados por
Meyerhold que ao meu ver estão presentes nesta descrição de Ilinsky.
Vivência da forma: mecanismo de fixação e controle da instabilidade emocional,
livrando o ator dos fatores casuais da interpretação; ...
Pausa: não se destina a potencializar o estado de espírito, mas, acima de tudo,
destina-se à construção intelectual. (Thais, 2009, p.28)

No meu entendimento a cena de Ilinsky é toda marcada e ensaiada já com


a música de Chopin e inclusive a pausa inserida antes da música começar a tocar
deve ter sido cronometrada. Observem que a descrição feita é como um
planejamento pré-estabelecido, uma partitura mesmo. Coloco-me a imaginar o
restante da peça e misturo referências musicais com referências coreográficas,
vejo a peça como teatro coreografado sobre música. Mas ainda tem as falas.
Segundo Thais, para Meyerhold havia um uso abusivo de palavras no
teatro de repertório, tradicional. Era necessário utilizar as palavras como matéria
de cena, “como desenhos sonoros integrados à ação” (p.63). Ainda com relação à
montagem d’A Morte de Tintagiles, posso destacar as prescrições de Meyerhold
para as falas:
3. Nunca usar trêmulos; 4. ler as linhas como se estivesse oculto em cada frase
uma profunda crença numa força onipotente; 5. Firmeza do tom, pois se for
borrado soará como elegantemente “moderno”; ....7. Não arrastar o final das
palavras. O som deve cair em grande profundidade. Deve ser claramente
definido e não tremer no ar; 8. Como um piano. É a razão para não haver
vibração; 9. Não falar em rápida tagarelice. Calma épica....” (GUINSBURG,
2008, p.26)

Fica claro destes itens que Meyerhold tinha que tirar vícios de oratória e
do estilo declamativo que era corrente no século XIX e começo do século XX no
teatro. Propunha uma fala mais leve, mais transparente, que não era a fala trivial e
nem a fala impostada. Queria uma fala associada à linguagem gestual, que por sua
vez era próxima de uma linguagem pictórica (THAIS, 2009, p.23).
Para isso contou com uma parceria interessante, embora tenha durado
pouco tempo. Teve como músico colaborador Mikhail Fabianovich Gnesin (1883-
1957) que estudou com Rimsky-Korsakov, e seus primeiros trabalhos estavam
ligados ao movimento simbolista. Gnesin propôs aos atores de Meyerhold uma
forma partiturizada de falar, que ele chamou de musical reading (leitura musical).
Ele mesmo explica que seria uma composição musical falada onde “não uma
declamação...mas a leitura com uma precisa observação de ritmo e altura.”
10

(Gnesin apud SITSKY, 1994, p.243, minha tradução). Embora eu tenha


encontrado poucos escritos sobre Gnesin, ficou claro que ele não queria um
recitativo e nem tampouco o “sprechgesang” (a fala entoada) de Wagner ou o
“sprechstimme” (voz falada) de Schoenberg. Encontrei sim uma partitura rítmica
com as palavras embaixo das figuras, mas parece-me que haveria também
indicação de altura, mas ainda não encontrei documentos. Ao que tudo indica os
atores de Meyerhold não conseguiram realizar sua proposta, mas é possível que
Meyerhold sendo ele mesmo um ator experiente, tenha compreendido a proposta
de Gnesin e tenha tentado em seus trabalhos posteriores treinar os atores neste
novo tipo de fala. Daí a insistência nas suas prescrições com relação a
procedimentos que devem ser evitados.
Ainda com relação à questão da fala dos atores, Meyerhold em suas
palestras vai traçar uma espécie de “linha progressiva” com relação à emissão
vocal em cena. Começa em Glück (1714-1787) com a não discriminação entre as
árias e os recitativos, passando por Wagner onde ele ressalta o papel da orquestra
em diálogo com o ator-cantor que fala em cena, mas uma fala melódica, para
causar associações de ideias no espectador. Depois cita Scriabin (1872-1915) que
refutava a ópera e queria criar uma representação massiva que fundisse música,
sons e luz. Prokofiev ((1891-1953) é o próximo a ser enfatizado por ter eliminado
a “doçura” de suas óperas e obrigado os personagens a moverem-se
continuamente em recitativos em prosa, exigindo atores dramáticos e não cantores
de ópera. E finalmente ele chega a Gnesin, quase como um continuador de
Prokofiev (MEYERHOLD, 1972). Como se pode depreender é muito forte a
presença da ópera no pensamento meyerholdiano quando se trata da questão
sonora. No entanto, ele era contundente na sua crítica aos resultados e montagens
que ele conhecia, adjetivando frequentemente de “estúpidos” os procedimentos
adotados na maior parte das encenações operísticas, inclusive as wagnerianas.
Existe uma outra descrição de outra montagem, Hedda Gabler de Ibsen,
feita pelo assistente de Meyerhold, Iartzev, onde pode-se ter uma ideia mais
palpável do procedimento das falas:
A primeira cena entre Levborg e Hedda também ocorre à mesa. Durante toda a
cena, eles ficam sentados lado a lado, tensos e imóveis, olhando fixamente à
frente. Suas palavras pausadas, inquietantes, caem ritmicamente dos lábios, que
parecem secos e frios. Diante deles, há dois copos e uma chama queima na
poncheira (Ibsen estipula ponche frio norueguês). Nem uma vez sequer , durante
esta longa cena, alteram a direção do olhar ou a pose. Somente na frase “ Então
11

você tem sede de vida!” , Loevborg esboça um movimento violento em direção a


Hedda, e nesse ponto a cena chega a uma conclusão abrupta. (GUINSBURG,
2008, p. 44)

Aqui mais uma vez a questão das pausas e da rítmica estão ressaltadas.
Percebe-se também uma marcação cerrada dos gestos e ações dos atores em cena
e embora não muito claro nestas descrições, eu acho que havia uma preocupação
composicional a se estabelecer entre e o gesto e a fala, que fosse em contraponto
ou em harmonia. Mas preciso encontrar mais dados e me aprofundar melhor
nestas questões para chegar a conclusões mais contundentes.
Assim, passo a um desfecho destas ideias lançadas neste breve estudo. O
assunto é extremamente intrincado e algumas informações ainda só estão
acessíveis em idioma russo. No entanto, para os objetivos deste trabalho, penso
que pudemos apontar para as possíveis sonoridades pretendidas pelo diretor russo.
Uma das primeiras premissas é o entendimento da música como capaz de
criar uma realidade outra (devido ao seu forte aspecto temporal), que não é a
realidade cotidiana e que precisa contaminar a cena teatral, que também deve
apresentar uma outra realidade, a realidade da arte. Esse contágio se dá a partir do
uso do símbolo, da convenção, da formalização das ações, dos gestos, da voz, do
cenário, da luz, em partituras. Através da convenção, a forma, o tempo, o ritmo
são pensados e planejados com antecedência e ou em diálogo com a música do
espetáculo. “Os atores e a música ocupam o mesmo espaço em viva e direta
relação,” como afirma Pitches (2003, p.54). Meyerhold vai tratar plasticamente o
corpo do ator, baseado em música, em coreografia, em estímulos pictóricos. Os
sons musicais compõem a cena como mais um personagem e participam dos
ensaios cotidianamente. A voz é tratada enquanto som, e traz mais do que seu
significado semântico. É a sua emissão, seu ritmo, sua entonação e as pausas que
lhe são enfatizadas em diálogo com a ação física e a música de cena. Pretende-se
que o espectador exercite a sua imaginação como quando ouve música, mas sendo
estimulado pela cena teatral que envolve imagens e sonoridades. O espetáculo não
é para mostrar uma possibilidade da vida cotidiana, mas uma possibilidade
onírica. É de sonhos que Meyerhold procura provir o seu teatro, mas o sonho
entendido como experiência liminar (lembrando de Victor Turner), de fronteira,
como queria o movimento simbolista: um confronto entre a mortalidade e a
sobrevivência onde imperam as sensibilidades.
12

Referências:
BALAKIAN, A. O Simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 2007.
BARBA, E; SAVARESE, N. The Secret Art of the Performer (A Dictionary of
Theatre Anthropology). New York: Routledge, 1991.
FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário Aurélio de Lingua Portuguesa. 4a.ed.
Curitiba: Editora Positivo, 2009.
FONTERRADA, M. T. O. De Tramas e Fios - Um ensaio sobre música e
educação. São Paulo: Editora da UNESP, 2005
GUINSBURG, J. Stanislávski, Meierhold & Cia. São Paulo: Perspectiva, 2008.
KERMAN, J. Listen. 3rd.brief ed. New York: Worth Publishers, 1996.
MEYERHOLD. Textos Teóricos. Vol.2. Tradução de Jose Fernandez. Madrid:
Alberto Corazon Editor, 1972.
PITCHES, J. Vsevolod Meyerhold. London: Routledge, 2003
RAYNOR, H. História Social da Música. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
SITSKY, L. Music of the Repressed Russian Avant-Garde, 1900-1929. Westport,
CT: Greenwood Press, 1994.
TAME, D. O Poder Oculto da Música. São Paulo: Cultrix, 1984.
THAIS, M. Na Cena do Dr. Dapertutto. São Paulo: Perspectiva, 2009.
TRADIÇÃO FUTURISTA E REGIONALISMO GLOBAL NA PERFORMANCE DO
TECNOBREGA EM BELÉM DO PARÁ 1

Paulo Murilo Guerreiro do Amaral 2

Universidade do Estado do Pará (Uepa)

Resumo

O presente ensaio discute sobre um evento de performance do tecnobrega, gênero de música


popular eletrônica midiaticamente rotulado como de “mau gosto” estético e encontrado em
Belém, Capital do Pará, no norte do Brasil. Apóio-me em sociólogos, antropólogos e
lingüistas para discutir sobre certas ambigüidades dentro do que vou chamar de
“performances midiáticas”, e que, por sua vez, no particular etnográfico da pesquisa que
orientou este trabalho, vêm sendo entendidas em termos de suas “ambivalências produtivas”.
Tomando como base as idéias de Cynthia Fucks em seu texto Michael Jackson’s Penis, as
“contextualizações” desencadeadas pela amostragem audiovisual e a própria experiência de
campo que tive no universo de produção do tecnobrega, pretendo situar temas
contemporâneos e bastante caros para os estudos sobre músicas em seus contextos culturais,
tais como tecnologia, regionalismo musical, cosmopolitismo, identidade, autenticidade e
colonialismo.

Palavras-chave: tecnobrega (brega), gosto (musical), música (e) globalização,


cosmopolitismo.

A despeito de poucas manifestações musicais locais que oficialmente dão visibilidade


à música regional/local de Belém e do Estado do Pará, a cena da produção artística nesta
cidade é profusa e diversa, realidade que talvez pudesse ser incorporada ao seu

1
Sugiro que a leitura do presente artigo seja preferencialmente acompanhada pela mídia audiovisual citada nas
Referências.
2
Guerreiro do Amaral é Professor Adjunto no Departamento Acadêmico de Artes (Dart) da Universidade do
Estado do Pará (Uepa), onde leciona para os cursos de Licenciatura Plena e Bacharelado em Música. Coordena
ainda o GEMAM – Grupo de Estudos Musicais da Amazônica, criado em 2010 e voltado a pesquisas dentro do
campo da Etnomusícologia.
propagandístico status de “metrópole da Amazônia” – culturalmente falando –, expressão
3
estampada na homepage da Prefeitura Municipal e que me parece ter caído na “boca do
povo” há algum tempo. Mas a acepção usual do termo metrópole parece ser outra, todavia. Eu
não sou um caso à parte: nasci em Belém e lá vivi grande parte de minha vida, de tal modo
que, naturalmente, vejo-me por aí falando bem de minha terra-natal, inclusive de que ela é
sim, em termos do não-sei bem como explicar, a “metrópole da Amazônia”. De uns tempos
para cá, porém, tenho pensado bastante a respeito de como eu poderia defender a idéia de uma
Belém metropolitana sem precisar lançar mão da geografia, da economia ou da administração,
isto é, das áreas de conhecimento às quais costumeiramente eu relacionava metrópole.

Quando saí de Belém pela primeira vez para morar em outro lugar, pessoas
costumavam me dizer que eu passaria a residir não mais em uma província, mas em uma
grande metrópole. O detalhe, no entanto, é que em São Paulo eu estabeleceria contato com a
cultura do mundo, percorrendo-a sem precisar arredar os pés de lá. Ou ainda, que São Paulo
significava a reunião de diversas culturas em uma mesma cidade, a exemplo das comunidades
estrangeiras que se concentram em determinados bairros da cidade: os japoneses na
Liberdade, os italianos no Bexiga, os judeus em Higienópolis, os alemães em Santo Amaro,
entre outros.

Ampliou-se a acepção anterior, portanto: de provinciano eu passaria a cosmopolita,


embora sob a falácia de que constituem universos distintos e incomunicáveis. Daqui em
diante, a idéia de metrópole começou a fazer sentido para mim, provavelmente porque passei
a pensá-la a partir de uma categoria de entendimento que me é mais digerível, apesar de sua
complexidade: a cultura, que por sua vez encampa a música.

Enquanto estive em São Paulo, e apesar dos vários problemas de adaptação à nova
vida, eu acreditava que estava no lugar e no tempo certos para tanto encharcar-me desse
4
cosmopolitismo emanado da cidade quanto para exercê-lo da melhor maneira que pudesse,
especialmente por sentir-me assombrado pela possibilidade de não poder novamente
experimentá-lo quando de meu retorno a Belém.

A essa altura, e sem que me apercebesse, “estourava” no coração da Amazônia um


gênero musical que propunha acústica e esteticamente uma mistura entre elementos que

3
Acessar http://www.belem.pa.gov.br/app/paginas/conheca.belem.php
4
Exercer o cosmopolitismo é também lançar mão das experiências acumuladas nas trajetórias de vida de cada
indivíduo.
simultaneamente o identificaria com sua região de “origem” e com certo modelo conceptual
difundido em escala global. Ou ainda, respeitando certa hierarquia, isto equivaleria à
representação de sonoridades locais partindo de uma linguagem universal, assim como o
inverso, isto é, se utilizaria sistemas locais para reinterpretar matrizes sonoras mais
abrangentes. Trata-se do tecnobrega.

Hermano Vianna (2003) diz que o tecnobrega consiste na “nova evolução de um dos
estilos mais populares que a música popular brasileira já produziu”, ou seja, do brega, que na
década de 1960 invadiu diferentes regiões do Brasil, dentre as quais Goiás, Pernambuco e
Pará. Sob influência da Jovem Guarda, o brega brotou de um modo mais “suave” de tocar o
rock básico (guitarra, baixo e bateria) – batizado no Brasil de “iê-iê-iê” – e trilhou um
caminho diferente da secular tradição musical romântica nacional. De um lado, a música pop
internacional disseminava-se em território brasileiro sem parcimônia; de outro, ganhavam
popularidade artistas brasileiros da Jovem Guarda tais como Roberto Carlos, Wanderléia,
Ronnie Von, Erasmo Carlos, Renato e Seus Blue Caps, entre outros que cantavam em
português, mas que se embebiam do espírito cosmopolita gestado no rock and roll e na
“febre” da guitarra elétrica que se espalhava pelo Ocidente.

Apesar de a Jovem Guarda ter florescido em circunstâncias político-sociais oportunas,


perdeu espaço no início da década de 1970 por não partilhar de um espírito de protesto que se
contrapôs ao momento histórico da Ditadura Militar (ver Napolitano, 2001; Araújo, 2002) e
que se concretizou nas músicas de um segmento de artistas particularmente valorizado nas
camadas médias urbanas intelectualizadas. Neste panorama imortalizaram-se alguns
“incontestáveis” da música popular brasileira, vivos ou mortos, a exemplo de Chico Buarque,
Caetano Veloso, Elis Regina e Gilberto Gil.

Acanhado nas altas rodas, a Jovem Guarda migrou para os interiores. Nas cidades, por
sua vez, “manteve público fiel entre as camadas mais pobres da (...) população, passando a ser
chamada pejorativamente de brega” (Vianna, 2003). Em Belém, semelhante público passou a
freqüentar os chamados “bregões”, vocábulo nativo (presente em narrativas de atores da cena
5
musical brega de Belém – produtores, DJs, compositores e cantores) para identificar casas

5
Os produtores (também chamados de DJs) criam o tecnobrega em estúdios, enquanto que os DJs propriamente
ditos comandam festas populares onde estas músicas são tocadas. Os compositores criam músicas fora do
estúdio, geralmente auxiliados por instrumentos como violão ou teclado. Alguns compositores cantam suas
próprias músicas, embora existam cantores que atuam apenas como intérpretes. Adiante eu trago informações
sobre o circuito produção-circulação-recepção do tecnobrega.
de shows especializadas em tocar música brega para um público “brega”. Em seu artigo
Brega, Samba e trabalho acústico: variações em torno de uma contribuição teórica à
Etnomusicologia, Samuel Araújo (1999) traz a discussão em torno da banalização nacional do
termo brega, ou seja, qualquer música que sugira conteúdo “grotesco” poderia ser classificada
como “brega”.

Sobre o tecnobrega e o circuito de sua produção-circulação-recepção, Hermano


Vianna (2006) considera que:

Las primeras señales del tecnobrega se oyeron en el verano (que en Pará se


vive a mitad de año) de 2002, pero se apoderó en realidad de las fiestas
populares en 2003. Es el viejo brega, de ritmo más acelerado, hecho
únicamente con sonidos producidos por computador. Parece un Kraftwerk
en palafitos, compuesto bajo el calor ecuatorial por alguien que ha oído
mucho carimbó, cumbia, zouk y Renato y sus Blue Caps, y aún no domina
totalmente las técnicas de cortar y pegar que hoy se encuentran en la base
de los softwares de producción musical. Hay cinco estudios en la ciudad
donde se graba tecnobrega. Semanalmente, reciben la visita de
«intermediarios » que pasan por allí para escuchar las novedades. Los
estudios pueden producir cerca de dos canciones nuevas por día. Los
intermediarios escogen las canciones que más les gustaron, las que creen
que tienen más posibilidades de volverse exitosas, y se las llevan a quienes
fabrican los CD, que los distribuyen inmediatamente a los vendedores
ambulantes o camelôs, los cuales venden el producto final a los
consumidores. Se trata de compilados en los que se incluyen obras de varias
bandas, producidas en diversos estudios. No son CD piratas, pues los CD
oficiales, que realmente se podrían piratear, son cada vez más raros. Los
músicos ya no tienen casas disqueras ni el gasto de prensar los discos,
imprimir las carátulas o distribuir el producto. Ese gasto corre por cuenta
de las fábricas caseras de CD y de los camelôs con sus sistemas no oficiales
de industria y comercio. Los discos, para sus autores y productores, apenas
son vistos como medios de divulgación y, muchas veces, sus grandes éxitos
son metamedios: las canciones elogian DJ, programas de radio (como el
Mexe Pará) y de televisión, y a las aparelhagens (término usado para
nombrar los equipos de sonido utilizados para animar las fiestas del Pará).
Un nuevo gran éxito se hizo en homenaje a la camioneta que anda por la
periferia de Belém anunciando las fiestas de la aparelhagem (…). Un
cantante y compositor que estaba grabando en el estudio (…) me dijo que
no hay cosa que lo haga más feliz que escuchar sonar sus canciones entre
los vendedores ambulantes del centro de Belém. Él sabe muy bien que no
gana ningún dinero por la venta de discos, pero eso ya no importa. Es
fundamental que los vendedores ambulantes comercialicen su música para
que se vuelva un éxito y que inviten a su banda a hacer espectáculos en vivo
en las fiestas de la periferia de la ciudad (las fiestas de aparelhagem), que
es donde va a ganar dinero para sobrevivir. Por su parte, los estudios de
grabación también donan sus producciones al mercado de los camelôs, a la
radio y a las fiestas de aparelhagem. Ya no funcionan como casas disqueras
que viven de la venta de los discos. Ahora, viven del dinero que las bandas
les pagan por grabar sus canciones. Cuantos más éxitos produzcan, mayor
clientela tendrán. Por tanto, el mercado del tecnobrega deja de ser
centralizado: ya no hay un elemento dentro de la cadena productiva que
tenga el poder de controlar las demás etapas, papel que ejercen las grandes
disqueras dentro del mercado de la música pop oficial. En el tecnobrega de
Belém, el dinero y el poder se reparten entre muchos socios diferentes: el
músico, el productor, los intermediarios, la fábrica casera de CD, los
distribuidores para los vendedores ambulantes, los camelôs, los programas
de radio, los dueños de las aparelhagens, los DJ. Los éxitos se producen
gracias a la acción conjunta de todos esos emprendedores, la mayoría de
ellos informales. Un lugar relevante dentro del circuito tecnobrega son las
fiestas de aparelhagem. Es allí, y no en la radio o en la lista de los más
vendidos, donde se definen los éxitos, en contacto directo con el público de
bailarines. Las radios transmiten lo que suena en las aparelhagens, y no al
contrario, y las bandas tienen la seguridad del éxito cuando las contratan
para hacer presentaciones en vivo en las principales fiestas. Las
aparelhagens son instituciones típicas de la cultura popular de Pará.
Existen hace casi cinco décadas. En ese período, han pasado por varias
«evoluciones», que es el término nativo con el que se denominan los
cambios anuales de equipos que las grandes aparelhagens realizan para
mantener el interés del público que, a su vez, valora la introducción de las
últimas novedades tecnológicas en materia de luces y sonido. Se trata de
equipos ambulantes gigantescos y potentísimos, una verdadera pared
electrónica con cajas de sonido, amplificadores, televisores y computadores
apilados unos sobre los otros, que circulan por los salones de fiesta de la
ciudad cada fin de semana. Hace quince años, vi que en las aparelhagens se
usaban todavía discos de vinilo. Los DJ pasaron a utilizar CD, después MD
y ahora sólo trabajan con MP3, mezclando los éxitos del tecnobrega con la
ayuda del mouse y los teclados, controlando todo a partir de la pantalla
plana de sus computadores. Ellos sienten la misma fascinación que el
público ante la tecnología. (…) La gente de las aparelhagens no vacila a la
hora de botar los equipos antiguos. Ellos quieren ser reconocidos como los
pioneros, los primeros en adoptar las novedades (…).

Com base no excerto acima, pretendo problematizar a questão das “metamídias”,


background sobre o qual Hermano Vianna descreve o referido circuito. Feito isto, comentarei
sobre as “ambivalências produtivas” no tecnobrega através da análise de uma performance
particular. De início, e em diálogo com o excerto acima, destaco três observações que fiz em
um blog de internet: 6

O pessoal do tecnobrega vem cedendo espaço a outras mídias, aquelas que


talvez consigam desterritorializar esta música - não que as alternativas não
o possam. Isto já vem acontecendo, modestamente (...).

Sentem-se orgulhosos porque apareceram no Faustão, por terem sido


citados na revista x ou y, por terem sido convidados para participar do
Terruá 7 em São Paulo etc. Sentem-se bem por estarem circulando nos meios
oficiais, apesar de não terem em momento algum aberto mão das mídias

6
Acessar http://www.overmundo.com.br/overblog/dominguinhos
7
Acessar http://www.portalcultura.com.br/terrua
alternativas. O que há de mal nisto? Nada mesmo, especialmente se
começarmos a relativizar este modo de produção e considerarmos as
mudanças estéticas que o tecnobrega vem sofrendo (...).

Não sou militante da música produzida alternativamente (ao contrário de


Vianna), embora reconheça a existência do monopólio dos selos (...).

Mais do que em uma música criativa, para Vianna o tecnobrega consiste em uma
alternativa fascinante de negócio auto-sustentável, em que a atuação de gravadoras é
completamente dispensável. Considera ainda que a interferência dos selos impede que se entre
em contato com certas músicas e gêneros existentes mas que não circulam.

Ponderando sobre as afirmações deste autor, o fato é que o tecnobrega já vem, há


algum tempo, fazendo parceria com mídias convencionais, tais como a televisão, as próprias
gravadoras e a indústria dos espetáculos. Não é à toa que uma das preocupações correntes de
certos artistas locais é passarem a compor suas próprias músicas em vez de manipularem
canções já existentes, haja vista que a circulação musical no mainstream implica no
pagamento de direitos autorais, além do que o plágio, através de “versões” de músicas já
existentes (neste caso), encerra a noção de ato criminoso.

As chamadas “festas de aparelhagem” constituem espaços ordinários para as


performances do tecnobrega. Ali se encontram produtores, DJs, proprietários das
parafernálias tecnológicas que fazem o som do lugar, iluminadores, camera-men, públicos
diversos, vendedores de “cachorro quente” (sanduíche com carne bovina moída) e bebidas,
dentre outros que constituem a cena musical. As “festas de aparelhagem” consistem em
espécies de boates itinerantes ao ar-livre freqüentadas principalmente por residentes em
8
bairros ditos periféricos. O equipamento, controlado por DJs, é atualmente formado por
enormes caixas de som, amplificadores, telões, canhões de luzes, computadores, teclados,
aparelhos para mixagem e samplers. 9

Se, por um lado, o tecnobrega firmou-se no comércio de discos e de shows pela via da
informalidade, não é incorreto dizer que, recentemente, bandas, cantores, e até
“aparelhagens”, vêm buscando conquistar outros públicos, mesmo os que tradicionalmente

8
O surgimento das “aparelhagens” em Belém remonta à década de 1950 (Costa, 2004).
9
Os samplers são aparelhos utilizados no sampling, isto é, em técnicas de construção de ritmos e melodias
provenientes do house e do techno (Contador, 2001:56).
lhes viram as costas. Desse contexto surgem o que vou denominar “performances midiáticas”,
que nada mais são do que performances extraordinárias que estabelecem relações mais
estreitas com atuais mídias exploradas dentro do circuito convencional de produção,
circulação e recepção musicais, a exemplo de espetáculos ao vivo em que são gravados
DVDs.

Em 2002, época provável da aparição do tecnobrega enquanto gênero musical tocado


nas “festas de aparelhagem”, Gabi Amarantos (Guerreiro do Amaral, 2009) fundava a
Tecnoshow, das poucas bandas de tecnobrega em Belém do Pará. Diferentemente das
“aparelhagens” e do trabalho de produção musical em estúdio, as bandas de tecnobrega não se
utilizam apenas da manipulação sonora. Quer dizer, nos shows ao vivo das bandas também é
notada a presença de instrumentistas, mais comumente tecladistas, baixistas e guitarristas.

A trajetória da Tecnoshow em Belém é marcada pela atuação da banda em parceria


com as “aparelhagens”, que por sua vez tratam de divulgar gratuitamente o trabalho da
cantora. Em agradecimento à divulgação, ou mesmo a pedido dos integrantes das
“aparelhagens”, determinados hits homenageiam diretamente os equipamentos, DJs e/ou
proprietários. O excerto de DVD que selecionei para este exercício consiste exatamente em
um exemplo desta deferência especial.

Gravado em março de 2005, o primeiro DVD da banda Tecnoshow conta com vinte
duas músicas, sendo dezoito delas assinadas por Gabi Amarantos. Escolhi para comentar a
última dessas músicas, intitulada A espaçonave do som, nome inspirado no formato da
“aparelhagem” Rubi, que pertence à família do DJ Gilmar. A música em questão consiste em
uma “versão” de Shut up, canção gravada pela banda americana (de Los Angeles) de hip-hop
Black Eyed Peas. Segue abaixo a adaptação da letra original por Gabi Amarantos.

10
Shut up, shut up, shut up, shut up, shut up, shut up,
shut up, shut up, shut up,
10
Para ouvir a gravação original, acessar o shut up, shut up, shut up,
endereço
http://musica.busca.uol.com.br/radio/índex.php?bus
ca=shut+up&param1=homebusca&check=musica&
enviar=OK# Afim de que sejam percebidas mais Agora eu vou curtir a espaçonave do som
claramente certas passagens vocais improvisatórias,
sugiro que, além da leitura da legenda que vem na Sentir muita emoção e ouvir Tecnoshow
mídia, o leitor/ouvinte/espectador acompanhe a
transcrição da letra da versão da canção.
DJ Gilmar, o poderoso do Pará
Faz a nave decolar E agora eu vou curtir a espaçonave do
som
Sentir muita emoção, ouvir Tecnoshow
Um dia eu consigo encontrar a saída
DJ Gilmar, o poderoso do Pará
Pra esse sentimento que invade minha vida
Faz a nave decolar
Até me desespero e a solidão domina
Que vontade de gritar
O som que bate forte
Eu quero ouvir você cantar
E me faz delirar
Espaçonave a decolar
Agora eu vou curtir a espaçonave do som
Quero ver você sair do chão
Sentir muita emoção, ouvir Tecnoshow
Sai do chão, sai, sai, sai, uhhh!
DJ Gilmar, o poderoso do Pará
Tecnoshow!!
Faz a nave decolar

Eu... vou pro Rubi


Me bate uma revolta
Oh! Meu Rubi
Tudo é monotonia
Eu sou Rubi
No peito uma tristeza
An, an, an, an,
A vida é tão vazia
O som que bate forte
Agora eu vou curtir a espaçonave do som
Me faz ter alegria
Sentir muita emoção, ouvir Tecnoshow
Que vontade de gritar
DJ Gilmar, o poderoso do Pará
Eu quero ouvir
Faz a nave decolar
Vem! Vem!

Eu... vou pro Rubi


Shut up, shut up, shut up,
Ah! Meu Rubi
shut up, shut up, shut up,
Eu sou Rubi
shut up, shut up, shut up,
Na, na, na, na, na
shut up, shut up, shut up,
Uuuuuuuu...
A crítica em torno do “mau gosto” estético da música brega de uma maneira geral
engloba questões de juízo de valor que enunciam e denunciam uma música construída sem
critérios, sem reflexão e deslocada de um determinado senso de coerência. Ao dialogar com
Hermano Vianna e com este pesquisador, Henry Burnett faz algumas considerações nesta
linha: 11

O que motiva alguma reflexão pra mim a respeito dessa chamada "música
de periferia" é que você e o Pedro Sanches, por exemplo, mostram a
importância de se perceber que há algo acontecendo por trás dessa
produção, mas não se preocupam em apontar a possível limitação da
sensibilidade que vem a reboque disso tudo (...). Acho que alguém precisa,
com e contra você [referindo-se a Hermano Vianna], tensionar essa visão, a
meu ver, parcimoniosa, de achar que a música da periferia é uma linha de
continuidade de certo padrão do cancioneiro nacional e que isso não
significa um enorme prejuízo para o nosso desenvolvimento como nação. Se
a música popular nos representa, se é nossa mais forte "representação", é
preciso pensar sobre essa "nova identidade", que põe até um Chico Buarque
em dúvida a respeito do fim da canção, por exemplo... se a canção está
acabando como, de fato, parece estar, é porque nós também estamos
definhando como país. (...) Não esqueçamos que a música popular nos
expressa enquanto povo, e se antes nos sentíamos representados por um
Luiz Gonzaga e hoje precisamos nos ver no tecnobrega, estamos descendo
ladeira a baixo, junto com a política, a sociedade... (...) Não posso levar a
sério - de um ponto de vista formal, rigoroso, técnico uma música que nunca
quis ser séria, que sempre foi mestre na auto-ironia (...).

De encontro às observações de Burnett e reprimindo aquilo que considero uma


“fixação Ocidental no fenômeno musical em si”, compreendo que todo e qualquer som é
constituído para além do que é unicamente tocado/cantado, mesmo que a música instaure
“ambigüidades” sob certo ponto de vista. Este é certamente um ponto nevrálgico que me
parece posicionar bem a Etnomusicologia no rol das disciplinas que se prestam a estudar
música. Relembrando Merriam (1964), a música precisa ser compreendida “na” cultura onde
foi gestada.

Continuo me debatendo na tentativa de discutir com profundidade sobre uma música


que me gerava as mesmas sensações descritas por Burnett no excerto anterior, embora hoje já
me veja atento àquilo que implica no gosto musical e não somente em “preferências”
atreladas a um discurso banalizado (do qual fui porta-voz) sobre o brega e o ser “brega” (ver
Araújo, 1999), massificado midiaticamente. Ora... Preferências todos nós possuímos. O

11
Acessar o endereço http://www.overmundo.com.br/overblog/dominguinhos
difícil-criativo é defendê-las ou falar delas sem necessitarmos recorrer aos poderosos clichês
conceituais, especialmente em se tratando de uma música estigmatizada.

Sobre esta questão trago um fragmento de minha autoria em que elucido minha relação
de aproximação/estranhamento com a música brega. 12

Até “ontem” jamais havia pensado em pesquisar sobre uma música tão
distante da minha realidade, seja em função do trajeto que percorri como
músico de formação erudita, seja também por ter crescido em um grupo
sociocultural pequeno-burguês atento a certos padrões de como se vestir, o
que apreciar musicalmente, que lugares freqüentar, com quem relacionar-
se, que profissões valorizar etc. A “moda”, através da qual estes e outros
modelos se revelam, integra um conjunto de fatores que encorpam
distanciamentos entre pessoas com estilos de vida já bastante diferenciados;
implicam também na adoção de categorias como “chique”, “brega”,
“elegante”, “fora de moda”, daí em diante. (…) Impressionado com
notícias sobre a mobilização de público gerada por estas festas [refiro-me às
“festas de aparelhagem”], apesar de serem pouco divulgadas nas mídias
oficiais, fui conferi-las a olhos e ouvidos nus. Ao fim de uma festa, saí dali
completamente ávido por entender que força é essa que consegue
simultaneamente contentar tanta gente e importunar outros tantos. (…)
Certa vez, em Belém, sentado à mesa de um barzinho com amigos e
assistindo a um show de MPB, criei coragem e comentei que estava
estudando o tecnobrega para a minha tese de doutorado. A reação foi
imediata, tanto a deles quanto a minha. Levantei a voz e disse-lhes que
somente compreendia o acontecido porque um dia, infelizmente, já me vi por
aí falando “asneiras” dessa natureza. Sinceramente, a verdade é que pouco
sabia sobre o tecnobrega para dar-lhes uma resposta mais à minha
maneira. Isso requeria mais conhecimento da minha parte; continua
requerendo, aliás. Eu estava sim imbuído de um desconforto semelhante
àquele sentido pelas pessoas que carregam o estigma de ser “brega”, os que
realmente conhecem a música. Retomando um comentário anterior, lá
estava eu deliberadamente falando sobre o que não conhecia. Assim sendo,
numa tentativa de quem sabe abandonar meu discurso vazio em defesa da
música brega – tão vazio quanto o discurso que lhe atribui a marca de “mau
gosto estético” –, resolvi intensificar minhas idas às festas, além de
acompanhar a produção do tecnobrega em estúdio (...).

Dentro dos estudos da performance, entendo que um primeiro passo para se tentar
rediscutir o discurso midiático ligado à música brega e a um estilo de vida “brega” consista
em redimensionar a idéia de gênero musical, que na visão de Bauman (1996: 88) não se limita
a critérios formais fixos – conforme sustenta Burnett em sua citação. Aquele autor considera
que, se por um lado o gênero é definido pela forma, por outro o é pela função ou efeito,
conteúdo, colocação no mundo e no cosmos, valor de verdade, tom (entonação, importância),

12
Acessar texto no endereço www.cafetinaeletroacustica.com e buscar no banco de dados a palavra
“tecnobrega”.
distribuição social, modo e contextos de uso. Quer dizer, além das propriedades estruturantes,
o texto [musical] possui um “espectro flexível e ilimitado de possibilidades e expectativas
concernentes à organização dos meios e estruturas formais dentro da prática discursiva”
[tradução minha do inglês para o português] (p.99).

Com base nesta concepção de gênero, parece-me fácil compreender que, por conta do
estigma, a música brega simplesmente deixa de ser pensada e enquadrada em características
estruturantes e flexíveis. No que tange à performance, Fucks (1995) defende que não apenas
são minuciosamente orquestradas – “well-orchestrated” (p.14) –, como também exercem
poder e domínio (p.15).

A proposta da Tecnoshow, refletida na proposta do DVD, consiste em falar


abertamente de um regionalismo musical, mas a partir de uma linguagem universal. Os termos
“tecnopará”, “tecnocalypso” e “tecnobrega”, citados por Gabi Amarantos momentos antes de
dar início à performance musical que homenageou o DJ Gilmar, me parecem exemplificar
bem a tensão existente entre o global e o local no tecnobrega. Se o tecnobrega é “autêntico”
ou se a “Nazinha” (referência a Nossa Senhora de Nazaré, padroeira da Amazônia) representa
a “tradição” religiosa-popular do Pará, a “versão” de Schut up faz a conexão entre o
regionalismo cultural e referenciais musicais internacionais.

No que diz respeito ao tratamento sonoro, porém, entendo que a relação global/local
torna-se menos distinta, a exemplo da participação das tecnologias computacionais na grade
instrumental e vocal, que por um lado projeta o tecnobrega para uma estética globalmente
compartilhada, mas que por outro a recontextualiza (Bauman, 1990) em nível local. Isto me
soa cosmopolita (Hannerz, 1999), agora na Belém-metrópole e não mais na São Paulo-
metrópole.

A utilização cada vez mais presente de recursos computacionais na produção do


tecnobrega não apenas me faz pensar que se trata de uma música muito bem relacionada com
tecnologias disponíveis no mercado mundial, desde equipamentos de som até programas para
“seqüenciação” (Contador, 2001: 56) e sampling. Os próprios produtores e DJs deixam claro
o desejo de que o gênero se encontre o mais atualizado possível, ou seja, que esteja seguindo
linguagens mais contemporâneas e universais presentes na música internacional.

Estar envolvido com a cultura do outro é, segundo Hannerz (1999), o fundamento


mais autêntico daquilo que chama de “cosmopolitismo”, um princípio pós-moderno em que a
cultura global deve ser compreendida não apenas como repetição de uniformidades, mas
também como entrelace de culturas locais diversificadas. Ao cosmopolita (o praticante do
cosmopolitismo) amalgama-se “(…) o aspecto de um estado de destreza, de habilidade
pessoal (…) através da escuta, da intuição e da reflexão” (Hannerz, 1999: 254). Isto me soa
“local” na Belém-metrópole-global.

O “cosmopolitismo” de Hannerz redimensiona uma idéia mais corrente sobre


globalização (Friedman, 2000), em que categorias representacionais e suas abstrações
descontextualizam-se rumo a um universo global liberto de significados locais (regionais). O
discurso globalizador, nesta perspectiva, seria emoldurado tão-somente por um neoliberalismo
hegemônico, em que se associam elementos como multiculturalismo, hibridização, border-
crossing e transnacionalismo. Noutra perspectiva, enquanto lugar de origem, a “terra natal”
mantém-se como foco de um extenso espectro de contatos e relações culturais, constitui uma
fonte de heranças identitárias e dá contorno às condutas de seu povo, em territórios
estrangeiros e/ou nos contextos urbanos locais. 13

A compreensão cosmopolita amplia-se, internacionalmente, na medida em que


cantores, produtores, DJs etc. passam a conhecer quais tendências musicais circulam na esfera
global. Com isto, de alguma maneira o mundo externo ficaria sob o controle desses
indivíduos. Paradoxalmente, porém, o domínio convive com certa subordinação, levando em
conta que aceitam, ainda que seletivamente [por conveniências estéticas], a cultura exterior.
Neste sentido, Hannerz (1999: 254) afirma que “a subordinação do cosmopolita à cultura
estrangeira envolve a autonomia pessoal em face da cultura da qual ele se originou”. Neste
sentido, falar em colonialismo musical parece não ter sentido algum.

A performance em questão parte de um estado de tristeza – expresso em narrativas de


vitimização (Fucks, 1995: 14) que expõem e reforçam um estado de fragilidade (p.15) – para
outro de alegria, este decorrente do exercício do domínio sobre um som que bate fraco, mas
que, de repente, fica forte e faz a “nave” decolar. É o que diz a música.

Mais até do que nas performances ordinárias do tecnobrega, certas “ambigüidades”


em temas emergentes enredados nas “performances midiáticas” devem ser pensadas em
termos de suas “ambivalências produtivas” (Bhabha apud Fucks, 1995: 16), ou seja, o próprio
da cultura é recriado através da confluência de audiências, forças sociais e mecanismos
políticos. As “ambigüidades”, por sua vez, têm a ver com a “inexistência” de pontos de
13
Hannerz (1999) discute sobre a possibilidade de se praticar o cosmopolitismo sem sair de casa.
conexão entre identidades essencializadas e suas reconstruções. No tocante à música brega e
particularmente ao tecnobrega, as ambigüidades se ampliam na discussão que tensiona o
discurso midiático estigmatizador com narrativas que me fazem pensá-los enquanto gêneros
de resistência, apesar de seu cosmopolitismo.

Sobre o enredamento dos temas emergentes a princípio ambíguos, a tecnologia nas


batidas eletrônicas vem dialogar com um regionalismo musical cosmopolita contra-
estigmatizador. Esse diálogo, todavia, aparece dissolvido em uma performance que me faz
recordar de comentários que já tive oportunidade de ouvir, falando que, para se fazer
tecnobrega, basta colocar vários ingredientes num liquidificador e ligar a tomada. Desde que
isto não sugira a ausência da “quality of knowledge” (Hymes, 2002) e, por conseguinte, a
ausência da “competência comunicativa” (Bauman, 2002 [1975]: 123) na performance,
poderia admiti-los até certo ponto.

Mesmo assim, ainda preciso reforçar a idéia de que a música não é ingênua, da forma
que o discurso midiático costuma definir o brega (Araújo, 1999). Retomando Fucks (1995:
14-17), a música é construída, tal como sua narrativa o é, ainda que sugerindo certas
“ambigüidades” que se projetam naquilo que Bhabha (apud Fucks, 1995: 17) denomina
“forms of difference”. Por outro lado, as representações das formas de diferença são
musicalmente articuladas de maneira multíplice e interdependente, como se essas diferenças
não existissem.

Temas como tradição e modernidade, autenticidade e inautenticidade, regionalismo e


globalização, elegância e breguice, produção acústica e eletrônica, entre outros,
acompanharam minhas observações em campo – por ocasião das performances ordinárias nas
“festas de aparelhagem” – e apreciações em cima de “performances midiáticas” que
produzem DVDs, por exemplo. Percebo, no entanto, que as relações entre estes temas se
modificam, dependendo do tipo de performance implicada.

Em uma “performance midiática” as relações aparecem com mais nitidez do que em


uma performance ordinária, provavelmente pela necessidade de se dar uma resposta mais
imediata aos porta-vozes do “discurso midiático” através da explicitação de aspectos
legitimadores da música como “tradição” e “autenticidade” (para dar um exemplo), sendo que
numa linguagem tecnológica futurista. Apesar de entremeadas, as relações binárias parecem
estar mais nítidas aqui.
Nas performances ordinárias, por sua vez, e a exemplo das “festas de aparelhagem”,
estes porta-vozes não se fazem presentes (o que não quer dizer que o “discurso midiático” não
lhes esteja internalizado), daí talvez o porquê de estes elementos não necessitarem ser postos
tão à vista.

Apesar da mesma intenção legitimadora, não me é fácil detectar musicalmente o


regionalismo do tecnobrega em uma “festa de aparelhagem”, onde as “forms of difference” se
escondem sob a face mais visível/audível da alta tecnologia audiovisual, de efeitos luminosos
14
e hidráulicos, também sob músicas globais integradas às manipulações sonoras que
produzem um hit, entre outras possibilidades.

Adaptando a letra de um samba-enredo de Joãozinho Trinta que diz que “o povo gosta
de luxo...”, o luxo do tecnobrega pode ser representado pela tecnologia, que transforma a
15
“festa de aparelhagem” em um show de “classe A”. Estaria então o “luxo-brega”
assenhoreando-se de terrenos “tradicionais” pertencentes a uma “miserável” classe intelectual
(parafraseando mais uma vez o carnavalesco) estigmatizadora que defende a dita música de
“raiz”?

As “performances midiáticas” vêm contemporizar os ânimos, quem sabe. Nelas, como


em recentes projetos que combinam o tecnobrega com “tradições” musicais regionais – a
exemplo do Tecnopará, idealizado por Gabi Amarantos em parceria com produtores musicais
e “aparelhagens” – o “futurismo” está para a “tradição” e vice-versa, assim como o
“regionalismo” está para a “globalização” e vice-versa. Agora, ser “brega” é ser “chique”.

Referências

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Militar. 2 ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.

ARAÚJO, Samuel. “Brega, Samba e trabalho acústico: variações em torno de uma


contribuição teórica à Etnomusicologia”. In: Revista Opus. n.6, out/1999.

14
A “nave do som” se move em palco (para dar um exemplo).
15
Extraí a expressão “classe A” do depoimento de um DJ de aparelhagem ao programa televisivo Central da
Periferia, apresentado pela atriz Regina Casé na emissora Rede Globo. No caso, trata-se de uma das edições
transmitidas no primeiro semestre de 2006, gravada em Belém do Pará e com tema nas músicas da “periferia” da
cidade. O DJ relacionava “classe A” a todo o aparato tecnológico existente em sua “aparelhagem” para que se
pudesse realizar um espetáculo de “qualidade”.
BAUMAN, Richard. “El arte verbal como ejecución”. In: Golluscio, Lucia (org). Etnografia
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2004. 320 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e
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FUCKS, Cynthia. “Michael Jackson’s Penis. In: Cruising the performative: interventions into
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1995.

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uma música popular urbana de periferia: etnografia da produção do tecnobrega em Belém
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__________. Diario de Viaje. Revista Número, Bogotá, n. 49, 2005. Disponível em:
<http://www. revistanumero.com/49/sepa1b.html>. Acesso em 24 ago. 2006.

Audiovisual:

TECNOSHOW E PONTO FINAL. Gabi Amarantos; Márcio Pereira. S.l. Zenker, 2005. 1
DVD.
Performance, Ritual e Semiótica: um estudo do breaking

Autora: Joana Brauer Gonçalves

Instituição: Universidade Federal de Minas Gerais

Introdução

Breaking, ou B-boying é um dos principais estilos de dança da Cultura Hip Hop.


Essa dança muitas vezes envolve batalhas, na qual os dançarinos mostram suas
habilidades, sem qualquer contato físico com os adversários. O homem que dança
breaking é o B-boy (Break-boy) e a mulher a B-girl (Break-girl). Inicialmente, b-boy
era o termo usado para dançarinos específicos, que dançavam nas festas do DJ Kool
Herc. Esses dançarinos eram conhecidos também como bronx-boys ou beat-boys. Esses
b-boys guardavam os seus melhores movimentos de dança para o break da música,
quando a percussão fica em evidência. Alguns anos depois esse termo se tornou o
próprio nome da dança.

Este trabalho é uma tentativa de analisar, a partir de imersão no campo e estudos


de performance, a dança da cultura Hip Hop conhecida por breaking. O trabalho versa
sobre a dança sob a perspectiva da performance, além de explorar o ritual performático
da batalha de breaking, bem como propor uma análise dos signos e gestos do breaking a
partir de uma abordagem semiótica. Por fazer parte de algo maior – projeto de mestrado
– este ensaio não se esgota e se propõe apenas a tomar o pontapé inicial e necessário
para amplificar os estudos sobre o breaking, sendo assim, as análises feitas são breves e
devem ser vistas como uma introdução à um trabalho maior.

A Cultura Hip Hop e o Breaking

A Cultura Hip Hop tem suas origens nas culturas caribenhas e jamaicanas, no
entanto, ela de fato nasceu como um movimento underground em meados dos anos 70
nas comunidades negras e latinas do South Bronx, na cidade de Nova York (E.U.A). No
início dos anos 60 e 70, os guetos e subúrbios norte-americanos estavam passando por
uma crise – havia muita violência e gangues. Foi dentro desse contexto que o
movimento hip hop surgiu – como uma forma de combate ao racismo, à violência e à
opressão. O jamaicano DJ Kool Herc, considerado um dos pioneiros da música e cultura
Hip Hop, organizava festas em sua casa e em prédios abandonados, nas quais ele
utilizava grandes sistemas de som (sound systems) e usava uma forma específica de
recitação jamaicana, o toasting. Essas festas se tonaram tão populares que tiveram que ir
para locais públicos, a fim de acomodar um número maior de pessoas. DJ Kool Herc e
outros DJs usavam as linhas de energia das ruas para conectar seus equipamentos e
assim faziam performances em parques, nas ruas, nas quadras de basquete públicas, etc.
A dança, o grafite e a música eram utilizados pelas gangues como variações das
competições masculinas e como formas de expressão. Nos anos 80, os elementos do hip
hop que vinham crescendo isoladamente (dança, grafite, música), se uniram para criar
um sistema e o hip hop se tornou o movimento cultural dominante das comunidades
negras e latinas. Percebe-se que essa cultura está relacionada com um estilo de vida, ou
modo de viver, quem se diz „da cultura‟, vive, respira, trabalha hip hop – está presente
no linguajar, nas roupas, nas músicas que ouve, nos locais que freqüenta. A Cultura Hip
Hop não tem base em somente quatro elementos, como é comumente divulgado, além
dos quatros mais conhecidos – breaking, MC, DJ, grafite – outros elementos também
pertencem a essa Cultura, como o beatboxing, a moda e a produção cultural.

O breaking é uma das danças características da Cultura Hip Hop, podendo ser
definido como “uma dança norte-americana criada por jovens (em grande parte negros e
latino-americanos) que nasceu nos block parties do DJ Kool Herc nos anos 70 no sul do
Bronx. É caracterizado por movimentos no solo e movimentos de acrobacia, capoeira e
power moves – movimentos que requerem força” (Fabgirl, B-girl de Brasília)1. Os
movimentos do breaking são rápidos, muitas vezes agressivos e fortes. A rivalidade
costuma estar presente nas performances dessas danças, tanto na improvisação, quanto
na coreografia. Nas rodas, é comum „medir‟ o outro através de sua criatividade, técnica
e ritmo. Ganha quem consegue criar em cima das bases de maneira criativa e lúdica,
sem esquecer-se da técnica e principalmente usando diferentes partes e instrumentos da
música. Isso contrasta fortemente com as danças africanas e latino-americanas (como a
salsa), na qual o espaço das rodas é um local de confraternização, diversão, e incentivo à
dança dos outros, nessas danças o dançarino se alimenta da energia positiva dos outros.
No espaço das rodas das danças urbanas norte-americanos fica nítido que o foco está no
indivíduo, o coletivo quase não está presente. Para os movimentos serem bem
executados, requerem conhecimento do próprio corpo, rapidez, leveza, flexibilidade,
força, técnica, energia e ritmo. Os movimentos, como aqueles encontrados em danças

1
Entrevista concedida a autora dia 12 de julho de 2011
africanas, são „para baixo‟ – o chão é a força propulsora, diferentemente no balé, onde
tudo é esticado, alongado, „para cima‟.

O que é performance?

Identificar com exatidão o que pode ser considerado como sendo performance é
tarefa árdua para aqueles que lidam com performance studies, no entanto, como aponta
Richard Schechner (2006), quase tudo pode ser estudado como performance. O que é ou
não considerado sendo performance não depende do evento em si, mas sim da maneira
como esse evento é recebido e colocado. Nas artes, fazer uma performance é fazer um
show, uma peça, uma dança. Ainda, as performances marcam identidades, brincam com
o tempo, adornam o corpo e contam estórias. De acordo com Victor Turner (1982), a
etiologia da palavra performance deriva da palavra francês arfournir, que significa
„completar‟ ou „executar por completo‟ – uma performance então não está relacionado à
forma, mas sim à um fim apropriado de uma experiência.

Segundo Schechner (2006), performances são „comportamentos restaurados‟


(restored behavior), „comportamentos comportados duplamente‟ (twice-behaved
behaviors)2, ou ações performadas para as quais pessoas treinam e ensaiam (Schechner,
2006, p.28). De acordo com Schechner, o „comportamento restaurado‟ é o processo
chave de todo o tipo de performance. O autor o define como estando lá, separado de
mim, ou “eu me comportando como se fosse outra pessoa” (Schechner, 2006, p.34). O
„comportamento restaurado‟ inclui uma gama variada de ações e todo comportamento
pode ser considerado como sendo „comportamento restaurado‟ já que consiste em
reorganizar pedaços de comportamento comportados anteriormente.

Ervin Goffman (apud Schechner, 2006) aponta que performance pode ser
definido como toda a atividade de um dado participante em uma dada ocasião que serve
para influenciar, de qualquer maneira, outros participantes. Ou seja, há de ter uma
intenção do participante. Apesar das performances serem feitas de pedaços de
„comportamento restaurado‟ – cada uma é diferente da outra, cada pedaço pode ser
recombinado de diversas maneiras, ressalta Schechner (2006). Ainda, a singularidade de
um evento não só depende de sua materialidade, como também de sua interatividade,

2
Richard Schechner entende twice-restored behavior como “ações físicas, verbais ou virtuais que não
acontecem / são pela primeira vez, que são preparadas ou ensaiadas. Uma pessoa pode não estar
consciente de que ela está fazendo uma performance de uma parte de restored behavior. Também
conhecido por twice-behaved behavior” (Schechner, 2006, p.29)
que está sempre em fluxo, algo bastante presente em performances ao vivo. Uma
performance, aponta Schechner (2006), acontece como uma ação, interação e relação.
Como foi dito anteriormente, tudo pode ser estudado como performance, para, por
exemplo, entender um objeto como performance, torna-se necessário se preocupar em
investigar o que o objeto faz, como interage com outros objetos (ou seres), e como se
relaciona com outros objetos (ou seres). Entre os oitos tipos de situações que geram
performance apontados por Schechner (2006), está a arte (ou seja, a dança). O autor
aponta, no entanto, que definir o que é arte varia histórica e culturalmente e depende de
sua função e de seu uso.

Breaking como e sendo performance

Perfomances são comportamentos marcados, emoldurados ou intensificados,


separados do cotidiano, aponta Schechner (2006). Para o autor, é difícil estipular as
funções de uma performance, no entanto, ele aponta para sete: 1. Entreter; 2. Fazer algo
que é lindo; 3. Marcar ou mudar identidade; 4. Fazer ou promover comunidade; 5.
Curar; 6. Ensinar, persuadir ou convencer; 7. Lidar com o sagrado e/ou demoníaco.
Ainda, é possível dizer que quase todas as performances visam, de um modo ou outro,
entreter. Sendo assim, uma batalha de breaking, cuja proposta não é somente definir o
melhor dançarino, como também apresentar as habilidades de cada um, promover
comunidade, entreter seu público e seus jurados, cuja ocorrência se dá em determinado
espaço e tempo separado do cotidiano, pode ser entendido não só como performance,
mas também como sendo performance, uma vez que determinado pela sociedade
ocidental, o breaking é visto como dança, ou seja, performance estética.

De acordo com Schechner (2006), o processo da performance é uma seqüência


tempo-espacial composta de proto-performance, performance e conseqüência/resultado.
Essas três categorias podem ser subdivididas em: Proto-performance - 1.Treino,
2.Workshop, 3. Ensaio; Performance – 4.Aquecimento, 5.Performance pública,
6.Eventos/contextos sustentando a performance pública, 7.Acalmar/esfriar (cooldown);
Consequência/resultado (aftermath) – 8.Reações críticas, 9.Arquivos, 10.Memórias.

Schecher (2006) aponta que essa esta estrutura pode ser encontrada em todos os
tipos de performance, apesar de não ser uma regra, mas sim um guia para entender os
processos das performances. Sendo assim, farei uma breve análise da performance do
breaking, tendo como foco a batalha da Cidade Hip Hop (que aconteceu em maio de
2011 em Belo Horizonte no Centro Cultural UFMG) e da Batom Battle (que aconteceu
em agosto de 2011 em Brasília no Centro Cultural Renato Russo) a partir da estrutura
proposta pelo autor.

Proto-performance: O proto performance é o que gera ou como começa uma


performance, é o ponto de partida. O treino é a fase do processo de performance na qual
habilidades específicas são aprendidas. Nas artes, é comum que um indivíduo continue
treinando enquanto continue trabalhando como performer. O workshop é a parte de
pesquisa ativa – é uma maneira de destrinchar, se abrir, se aprofundar, e na qual
materiais são encontrados. Já os ensaios são processos de construção, os materiais que
foram encontrados são organizados de maneira tal que uma performance (normalmente
uma performance pública) vem em seguida. “Os ensaios desenvolvem e completam as
fundações demarcadas no treino e o novo material descoberto e explorado no
workshop”, ressalta Schechner (Schechner, 2006, p.236). Assim, o objetivo do ensaio é
trazer o produto final em harmonia com o processo que o produziu.Como apontado
anteriormente por Schechner, nas artes o indivíduo treina enquanto é performer. Isso
não seria diferente no breaking. É comum que dançarinos passem anos treinando e
fazendo workshops (que ocorrem em eventos específicos de danças urbanas em todo o
Brasil) para adquirem as habilidades necessárias para tal dança. Uma grande quantidade
de grupos de breaking, como por exemplo, Backspin Crew, StreetBreakers, BSBgirls,
entre outros, treinam semanalmente. Quando se preparam para uma performance, seja
uma batalha ou uma apresentação de coreografia, os treinos se intensificam e em muitos
casos dão lugar aos ensaios, nas quais coreografias e seqüências específicas serão
desenvolvidas para a performance que está por vir.

Performance: Toda performance é imediatamente precedida por um aquecimento. Antes


de cada performance há um tempo liminar quando os performers se preparam para saltar
do „readiness‟ (da prontidão) para a performance. De um lado está a vida ordinária, de
outro a performance. O aquecimento acontece no lado da vida ordinária e prepara o
performer para o salto. Aquecimentos são usualmente ritualizados, evolvendo costumes
específicos (Schechner, 2006). Nas duas batalhas de breaking observadas o
aquecimento foi uma parte importante do processo. Na batalha do Cidade Hip Hop,
enquanto um rapper cantava, os dançarinos se preparavam para dançar – faziam
alongamentos, treinavam em rodas, conversavam com suas crews e até rezavam. Da
mesma maneira, na Batom Battle, as dançarinas dançavam em rodas, alongavam,
treinavam suas rotinas. É comum também nesse tipo de evento que o próprio espaço
seja preparado nessa fase – o decorflex (tapete quadriculado utilizado no breaking) é
colocado, os aparelhos de som são montados, o DJ seleciona os discos que utilizará.

A performance é qualquer coisa que acontece entre um começo e um fim


demarcado, aponta Schechner (2006). Essa marcação varia, obviamente, de cultura para
cultura e de tempo para tempo. Ainda, de acordo com o autor, toda perfomance pública
focada está situada dentro de um ou mais eventos ou contextos maiores. É importante
conhecer esses grandes eventos, que dão à performance focada parte de seu significado.
Nenhuma perfomance é uma ilha, ressalta Schecher, o evento em si afeta e é afetado por
círculos concêntricos de atividades e interesses.

A batalha que ocorreu no Cidade Hip Hop aconteceu dentro de um evento maior
(o Cidade Hip Hop) que contou não só com batalhas de breaking, como também com
duelo de MCs e apresentações, workshops e palestras que envolviam vários elementos
da Cultura Hip Hop. Ainda, o Cidade Hip Hop é fruto de uma série de grandes eventos
que já passaram pela região metropolitana de Belo Horizonte, como o Hip Hop in
Concert, a Bienal de Grafite, o Duelo de MC´s, o Classics, o Hip Hop Aciona, o Hip
Hop na Veia, entre outros. O Cidade Hip Hop tinha como objetivo unir e articular DJs,
MCs, grafiteiros, e b-boys, com o entendimento que a cidade é o lugar do encontro, do
debate, do amadurecimento. A Batom Battle, que contou também com workshops, além
de batalhas e visou reunir e articular as b-girls do Brasil, foi a fase final de um projeto
maior, intitulado de Resiliência Para Mulheres. Esse projeto teve como objetivo
oferecer oficinas em Brasília para promover o bem-estar e o empoderamento de jovens
mulheres ao longo do período de um ano. Todas as atividades do Cidade Hip Hop e da
Batom Battle eram abertas ao público geral e gratuitas. Em alguns casos, dependendo da
atividade, foi necessário fazer uma inscrição prévia, no entanto, para assistir as batalhas
isso não foi necessário. Esse caráter „aberto‟ fez com que muitas pessoas que estavam
apenas passando pelo local, escutassem a música e os gritos da multidão e entrassem
para conferir o que estava acontecendo.

Da performance vem o cooldown, ou o momento de esfriar, acalmar, pois


independente da performance, sempre haverá um fim. O performer relaxa, os
espectadores pegam suas coisas, conversam sobre o que viram ou sobre sua
participação, saem ou vão para casa. As coisas voltam ao „normal‟. O cooldown leva as
pessoas de volta a sua vida diária. O cooldown é também uma ponte, uma fase liminar,
saindo de uma atividade mais focada da performance até as experiências mais abertas e
difusas da vida cotidiana (Schechner, 2006).

Os eventos analisados tiveram um cooldown bastante diferente. No Cidade Hip


Hop, após o término da batalha o som foi automaticamente desligado, as pessoas
conversavam sobre o resultado do evento e ao mesmo tempo saiam para voltar para
casa, devido ao horário, todos tiveram que sair as pressas, já que o Centro Cultural
UFMG deveria ser esvaziado e limpado. Alguns dançarinos que batalharam
conversaram com os jurados, a fim de entender melhor o resultado. Já após o término da
batalha na Batom Battle, a DJ continue tocando, algo que deu lugar à um „festa‟, onde
todos dançaram, inclusive os espectadores e „curiosos‟. Aos poucos as pessoas iam se
despedindo e indo embora para casa (em muitos casos em outros Estados). Isso durou
por cerca de uma hora, até o som cessar por completo e o local começar a ser
organizado.

Aftermath: A vida continua após uma performance, isso é o aftermath, ou conseqüência


e resultado. Essa fase pode se estender por anos ou séculos – seu tempo é indefinido. O
aftermath persiste em evidência física, resposta ou reação crítica, arquivos e memórias.
O aftermath registra como as pessoas reagem e se sentem frente à performance. O
aftermath de ambos os eventos pode ser medido pelas fotos tiradas e postadas em sites e
os vídeos gravados e postados no youtube. Os resultados dos eventos são discutidos até
dias e semanas após as batalhas – principalmente entre aqueles que participaram
diretamente dos eventos, como jurados, organizadores e dançarinos que batalharam. O
site com as informações do Cidade Hip Hop continua no ar, bem como o do Batom
Battle e foram atualizados a fim de apresentar o que aconteceu durante os eventos.

Entendo o Ritual

A forte conexão entre performance e ritual aparece nos estudos de antropologia


da performance. Schechner (2006) aponta que performances consistem em gestos e sons
ritualizados - a maioria do que fazemos já foi dito ou feito anteriormente. Uma
definição de performance dada pelo autor é de um comportamento ritualizado que é
condicionado e/ou permeado por play. Schechner aponta que a idéia de um ritual como
uma performance é de longa data, inclusive Emile Durkheim indicou que rituais
performados criam e sustentam „solidariedade social‟ (apud Schechner, 2006, p.57). O
autor ainda ressalta que rituais não são idéias ou abstrações, mas performances
expressando padrões de comportamento e texto conhecidos. Rituais não tanto pensam
idéias, como as incorporam.

Do mesmo modo, Turner (1982) ressalta que gosta de pensar o ritual


essencialmente como performance e não primariamente como regras e rubricas. As
regras, para o autor, emolduram o processo ritual, mas o processo transcende sua
moldura, já que o „flow‟ das ações e interações dentro desse enquadramento podem
conduzir a insights até então escondidos e até gerar novos símbolos e significados que
podem ser incorporados em performances subseqüentes. Para Turner, poucos rituais são
tão completamente estereotipados que toda palavra, gesto, cena é autoritariamente
prescrita. Em muitos casos a improvisação não é só permitida como requerida. O ritual
ocorre para comunicar os valores mais profundos do grupo que o performa
regularmente, assim tendo uma função paradigmática (no senso de Clifford Geertz) –
uma vez que como „modelo para‟ o ritual pode antecipar e até gerar mudança e como
„modelo de‟ pode inscrever ordem em mentes, corações e a vontade dos participantes.
Ainda, o ritual não distingue entre audiência ou publico e performers, uma vez que
todos participam.

Para Schechner (2006), um ritual leva uma pessoa à uma segunda realidade que
está separada da vida cotidiana e de certa maneira uma performance pode transformar o
performer e o público. Todos os rituais compartilham certas características: alguns
comportamentos ordinários são libertados de suas funções originais; o comportamento é
exagerado e simplificado (movimentos são congelados, etc); partes do corpo visíveis
para exibição são desenvolvidas (em humanos são providenciados artificialmente); o
comportamento é executado (performed) na hora certa de acordo com mecanismos
libertadores (estímulos libertando respostas condicionadas) (Schechner, 2006).

Como no „comportamento restaurado‟, rituais são tiras de comportamento que


são repetidas independentemente de sua origem ou função original. Os movimentos,
dizeres, posturas de rituais humanos são com freqüência ações ordinárias que foram
exageradas, simplificadas e depois repetidas (Schechner, 2006). Schechner aponta que
devido ao fato de que rituais acontecem em lugares especiais, vezes isolados, o próprio
ato de entrar o „espaço sagrado‟ tem um impacto nos participantes. Em tais lugares,
comportamento especial é requerido – há um ritual de entrada (que cria communitas).
Lugares seculares podem se tornar temporariamente lugares especiais por meio de ação
ritual. De acordo com Turner (apud Schechner, 2006), os rituais são mais do que função
e estrutura, são também entre as experiências mais poderosas que a vida tem de
oferecer.

Rituais e ritualização podem ser compreendidos a partir de ao menos quatro


perspectivas: 1. Estruturas – como são e soam os rituais, como são executados, como
usam o espaço e quem o executa; 2. Funções – o que os rituais conquistam para os
indivíduos, grupos e culturas; 3. Processos – a dinâmica oculta que conduz os rituais,
como os rituais acontecem/expressam e trazem as mudanças; 4. Experiências – com é
estar dentro de um ritual (Schechner, 2006).

Rituais liminóides3, segundo Turner (apud Schechner, 2006) efetuam uma


mudança temporária – às vezes nada mais do que uma breve experiência de communitas
(experiência de companheirismo ritual) ou um papel que dura algumas horas – são
transportações. O fenômeno liminóide tende a ser gerado por indivíduos específicos
e/ou grupos particulares. Em muitos casos liminóides fazem parte de gêneros de lazer
das artes, esportes, jogos. É livre e espontâneo. Em uma transportação, a pessoa entra na
experiência, é movido ou tocado e depois volta por onde entrou. Uma pessoa pode
experimentar transportações quase que diariamente. Transportações não só ocorrem em
situações de ritual, mas em performances estéticas também. De fato, é aqui que todos os
tipos de performance convergem - treinar, praticar, ensaiar para deixar de ser quem são
temporariamente. Enquanto fazem sua performance, atores não são eles mesmos, e nem
seus personagens (Schechner, 2006; Turner, 2008). Uma batalha de breaking pode ser
entendida como um ritual liminóide, gerando communitas, uma vez que unifica todos
aqueles envolvidos, inclusive os espectadores. É comum que aqueles que batalham se
sintam em uma espécie de transe enquanto dançam, ou seja, se sentem transportados.

Turner (apud Schechner, 2006) aponta que communitas é um termo complexo.


Ele entende communitas como uma “modalidade de relação social de uma área de vida
em comum” (Turner, 1974, p.119), ainda sua compreensão de communitas têm uma
certa característica de „flow‟, mesmo que muitas vezes surja de maneira espontânea e

3
Liminóides são “ações simbólicas ou atividades de laser em sociedades modernas ou pós-modernas que
servem uma função similar aos rituais em sociedades pré-modernas ou tradicionais. De forma geral são
atividades voluntárias. As atividades recreativas e as artes são liminóides” (Turner apud Schechner,
2006).
sem antecipação. Csikszentmihalyi e MacAloon (apud Turner, 1982) o „flow‟ é uma
“sensação holística presente quando atuamos com total envolvimento” (p.55). O „flow‟
se apresenta em indivíduos - é um sentimento de controle das ações, uma corrente em
fluxo que unifica um momento ao outro, o passado, o presente e o futuro (Schechner,
2006; Turner, 1982). É interessante notar que a palavra „flow‟ é muito utilizada no
breaking no sentido de uma fluidez de um movimento para o outro. O dançarino que
tem „flow‟ tem harmonia em sua dança – seus movimentos dialogam, não há ruptura
ente um movimento e outro.

Para entender melhor o ritual performático de uma batalha de breaking, a seguir


é apresentado uma breve análise da batalha que ocorreu na Cidade Hip Hop no dia 12 de
maio de 2011.

A Batalha como Ritual

A batalha de breaking do Cidade Hip Hop estava marcada para começar às 22h
no pátio externo do Centro Cultural UFMG. Organizado por pessoas envolvidas com os
elementos da Cultura Hip Hop, como é de costume em eventos da mesma, o Cidade Hip
Hop visava não só a articulação entre as artes urbanas, como também o empoderamento
das mesmas e o uso e apropriação de espaços tradicionais da cidade de Belo Horizonte.
Cheguei por volta de 22.30h, ao entrar no prédio já escuta a voz do rapper, indicador de
que a batalha ainda não havia começado. No pátio externo, me deparei com um palco,
algumas barracas de comida e bebida e homens e mulheres – entre 50 e 60 adultos,
jovens e crianças - que conversavam livremente enquanto „curtiam‟ o som do rapper.
Logo na entrada vi alguns b-boys que conhecia, os outros, facilmente identificado pelas
vestimentas, principalmente aqueles que portavam camisetas ou jaquetas de sua „crew‟,
se alongavam ou dançavam em pequenas rodas.

Após o show de rap, o MC da Família de Rua anuncia que em instantes


começará a batalha de breaking- dando assim início a preparação do ritual. O palco é
cuidadosamente montado: as turntables do DJ são colocadas do lado direito, voltadas
para o palco, a fim de dar visibilidade ao DJ que deve saber a hora exata de trocar a
música, que vai de acordo com a entrada dos dançarinos; o decorflex, tapete
quadriculado usado no breaking, é posto no chão; as cadeiras dos três jurados são
colocadas no fundo do palco, viradas para os dançarinos e a platéia.
Ao lado do palco alguns dançarinos vão se „preparando‟ para a performance, é a
etapa do aquecimento: se aquecem; fazem alongamentos; ensaiam seqüências; preparam
suas roupas – colocam um boné ou gorro, alguns levantam a calça para mostrar o tênis,
vestem a jaqueta ou camiseta da crew (grupo de batalha). O clima ainda é de festa,
gerado pela communitas do ritual de entrada - eles brincam entres eles mesmos, se
cumprimentam, dançam juntos. Ainda, antes de subir ao palco, as crews rezam, beijam
o chão, se abraçam e falam palavras de encorajamento, para assim estarem prontos para
entrar no „espaço sagrado‟ da batalha – o palco. Aqui se nota o sentido liminar – o estar
nem lá e nem cá – desse evento. Os dançarinos ainda não são dançarinos, mas também
não são somente eles mesmos, alguns ainda vestem roupas do cotidiano outros já estão
prontos para a batalha.

Eduardo Sô, um dos primeiros b-boys de Belo Horizonte, foi convocado para
selecionar as oito crews (compostas por três dançarinos) que participariam da batalha e
que competiriam para ganhar o prêmio de R$700,00: Laup Crew, Jesus King,
Lokomotion, Hebreus 11, Stance 333, Skeleton, Radical Breakers e Hunter Of Style. As
regras desta batalha são: duas entradas para cada membro de cada crew. Enquanto uma
crew dança, a outra tem de se manter fora do decorflex. É válido executar uma
coreografia, ou „sequência‟, ou improvisar, no entanto, nas batalhas e nas rodas, os
improvisos são fundamentais. Faz parte do ritual sortear os nomes das crews que irão se
enfrentar em frente aos espectadores (alguns deles, inclusive, são chamados para
participar dessa etapa) a fim de atribuir à batalha um sentido de seriedade, transparência
e justiça. O MC então anuncia o nome e a ordem de batalha das oito crews. Os jurados
(os b-boys Eduardo Sô, Fabrício e Arthur) irão avaliar cada crew em quatro quesitos:
fundamentos, ritmo/musicalidade, criatividade e personalidade. Antes de a batalha
começar, é de praxe que os jurados subam ao palco para fazerem uma pequena
apresentação a fim de mostrarem sua habilidade, ato que marca o início da batalha.

É então dado o salto do cotidiano para a performance – causando uma mudança


na atitude dos dançarinos. Aqueles que antes conversavam como velhos amigos agora
se olham com desprezo e afrontam um ao outro. Os b-boys fazem gestos obscenos,
gestos codificados (que são decodificados somente por aqueles que dançam breaking,
funcionando como uma linguagem universal da dança), ignoram o adversário, caçoam
um do outro, se confrontam como quem está em guerra. O público segue – gritam o
nome de suas crews favoritas, questionam o resultado dos jurados, vaiam, xingam,
aplaudem – é uma performance em massa. A transportação então está em pleno vapor -
as pessoas podem se tornar outros diferentes daqueles experimentado diariamente,
podem sentir raiva e desprezo à seus adversários (que são seus amigos na vida
cotidiana), podem ser agressivos e o público pode se juntar a eles – desafiando assim a
linha que separa o performer do espectador.

A performance do b-boy é movida pela música, pelo vocabulário que tem, por
seus oponentes e pelo público. O dançarino tem como intenção não só ganhar a batalha
e expressar seus sentimentos, como também mostrar suas habilidades para o público,
ganhando assim mais adeptos. O dançarino sabe como agradar o público, alguns jurados
e seus adversários – musicalidade e power moves (movimentos que requerem muita
habilidade e força física). Nesses momentos, o público, e até alguns jurados (que tentam
ao máximo manter a imparcialidade), deliram em êxtase – mãos vão para o alto, gritos e
aplausos são ouvidos. Essa interação e relação, típicos da performance, ocorrem em um
fluxo constante na batalha – criando laços entre todos aqueles envolvidos na
performance – entre o b-boy, o DJ, o jurado, o público, e inclusive, a música. Os
vencedores da noite são Jesus King e Hebreus 11, a final será no dia seguinte no Lapa
Multishow.

É importante ressaltar que a batalha está presente no breaking desde seu


surgimento no Bronx. Inicialmente a batalha tinha como propósito mostrar quem tinha
movimentos novos – como a „assinatura‟ de um dançarino específico – de maneira a
evitar a cópia de „seu‟ movimento. Hoje, alguns dançarinos argumentam que a batalha
somente serve como competição – para mostrar quem é considerado o „melhor‟ e lucrar
com a premiação, que em muitos casos é feita em dinheiro.

Após a performance, chega a parte do cooldown - o som é desligado, as pessoas


saem do êxtase, os dançarinos voltam a conversar uns com os outros como velhos
amigos, cumprimentam os jurados, perguntam sobre como melhorar e o motivo por trás
do resultados. Alguns, indignados com o outcome, comentam, às vezes junto ao público,
mas longe de ser o fervor visto há poucos minutos atrás - a massa se dissipou. A
mudança que ocorre não só nos dançarinos, mas como também no público é temporária.
Aqueles que participaram da batalha, direta ou indiretamente, voltam por onde
entraram, voltam a ser quem eram. Os organizadores pedem para todos se retirarem e a
limpeza do local começa, dando um fim, assim, ao ritual.
Semiótica e a gramática do breaking

A semiótica, de modo muito geral, é a teoria de todos os tipos de signos,


códigos, sinais e linguagens. Sendo assim, a semiótica estuda os processos de
comunicação, uma vez que não há mensagem sem signos e não há comunicação sem
mensagem. Para Charles Peirce, o signo é algo que representa algo, aquilo denominado
de seu objeto. Ele só pode ser considerado como sendo signo se tiver esse poder de
“representar, substituir uma outra coisa diferente dele” (apud Santaella, 2003, p.58).
Assim, o signo não é seu próprio objeto, mas está no lugar dele. “A partir da relação de
representação que o signo mantêm com seu objeto, produz-se na mente interpretadora
um outro signo que traduz o significado do primeiro (é o interpretante do primeiro).
Portanto, o significado de um signo é outro signo [...] porque esse seja lá o que for, que
é criado na mente pelo signo, é um outro signo (tradução do primeiro)” (Santaella,
2003, p.58-59). Lúcia Santaella (2003) ressalta que qualquer coisa que estiver presente à
mente tem a natureza de um signo – signo é aquilo que dá corpo ao pensamento, as
emoções, reações, etc, sendo assim, qualquer coisa pode ser analisada semioticamente
(Santaella, 2002; Santaella, 2003).

Santaella (2003) aponta que Peirce estabeleceu uma rede de classificações


triádicas dos tipos possíveis de signo. As mais conhecidas são as que exploram a relação
do signo consigo mesmo, a relação do signo com seu objeto dinâmico, e a relação do
signo com seu interpretante. Na relação do signo consigo mesmo, o signo pode ser uma
mera qualidade, um existente, ou uma lei. Se o signo aparece como simples qualidade,
na sua relação com seu objeto, ele é ícone, uma vez que qualidades não representam
nada, mas apresentam (nível da primeiridade). Se não representam não podem funcionar
como signos, por isso são considerados como quase-signos. Aquilo que se apresenta
como existente singular, material, aqui e a agora é um sin-signo (nível da secundidade).
Segundo Santaella (2003), todo existente é índice uma vez que apresenta uma conexão
de fato com o todo do conjunto do qual faz parte. O índice é um signo que indica uma
outra coisa com a qual está factualmente ligado, há uma conexão de fato entre ambos. O
interpretante do índice não vai alem da constatação de uma relação física entre
existentes. O nível da terceiridade se encontra quando o signo (na relação com si
mesmo) é de lei (legi-signo). Sendo uma lei, com relação ao seu objeto, o signo é um
símbolo - é portador de uma lei que, por meio de convenção ou pacto coletivo,
determina que aquele signo represente seu objeto. Assim, o símbolo não é algo singular,
mas sim geral.

O breaking, como apontado por alguns dos entrevistados, tem como principal
característica ser uma dança „gestual‟ – uma dança na qual os gesto são tão importantes
quanto os passos executados. Kelly, b-girl da crew BSBgirls, ressalta que a batalha é
como uma diálogo, ou uma comunicação, na qual há ação e reação, ou seja, na qual
mensagens estão sendo emitidas o tempo todo. Nesse sentido, o breaking, como outras
danças, está repleto de códigos e signos, os quais dependem de interpretantes para
decodificá-los.

Como foi dito anteriormente, o breaking tem passos básicos, como six-step,
freezes, power moves, no entanto, a passagem entre um passo e outro oferece uma
oportunidade aos dançarinos de realmente „conversarem‟ entre si, por meio de „gestos
codificados‟. É possível analisar os gestos e signos do breaking a partir da qualidade
dos movimentos ou de sua existência, no entanto, para o presente trabalho, farei uma
breve apresentação dos signos como símbolos, uma vez que há uma convenção que dita
o significado de certos movimentos – funcionando como uma linguagem universal do
breaking que tem significado apenas para aqueles que a falam, ou seja, para os b-boys e
b-girls. Os símbolos apresentados abaixos são usualmente performados dentro das
rodas, principalmente nas batalhas, entre um passo e outro e tem o intuito de „dialogar‟
com o adversário – ora dizendo o que será dançado, ora menosprezando o adversário
(como pessoa ou como dançarino), ora mostrando respeito ao adversário.

Foto 1: Superman

Significados: fique atento, pois farei um movimento sem


as mãos OU sou superior à você, sou „o‟ poderoso.

Foto 2: „Vou te queimar/fumar‟

Significado: vou acabar com você.


Foto 3: „Você está longe‟

Significado: maneira de menosprezar ou


diminuir o adversário.

Foto 4: Biting

Significado: você está copiando o movimento de alguém.


(Interessante notar que esse gesto é conhecido fora do
circulo de quem dança breaking, sendo utilizado e
entendido por pessoas envolvidas com as outras artes da
Cultura Hip Hop).

Foto 5: Leproso (mordendo a mão)

Significado: você é um leproso. Este movimento é


especifico a linguagem do Bronx, lugar onde o breaking
nasceu, não sendo utilizado no Brasil.

Considerações finais

Inúmeros são os estudos que exploram a Cultura Hip Hop a partir de questões
como a identidade, o território e a violência. No entanto, é possível entender essa
Cultura e suas manifestações a partir de outras perspectivas, como foi apresentado nesse
ensaio. O objetivo não é esgotar o trabalho aqui, mas sim continuar explorando (e
mostrar a possibilidade de explorar o breaking a partir de uma perspectiva, entre
inúmeras outras) a beleza ritualística e performática do breaking, bem como seus gestos
e códigos, utilizando os performances studies para analisar a composição de corpos em
tensão, as fortes batidas, os movimentos acrobáticos e as relações e interações que deles
resultam.
Bibliografia

SANTAELLA, Lúcia. 2002. Semiótica Aplicada. São Paulo: Thompson.

SANTAELLA, Lúcia. 2003. O que é Semiótica. São Paulo: Brasiliense.

SCHECHNER, Richard. 2006. Performance Studies: An introduction. New York:


Routledge.

TURNER, Victor. 1974. O Processo Ritual: Estrutura e Antiestrutura. Petrópolis:


Editora Vozes.

TURNER, Victor. 1982. From Ritual to Theatre: The human seriousness of play. New
York: PAJ Publications.

TURNER, Victor. 2008. Dramas, Campos e Metáforas: Ação simbólica na sociedade


humana. Niterói: EdUFF.
A festa de aparelhagem e as galeras que fazem o espetáculo.

Ana Paula Mendes Pereira de Vilhena.


Mestranda em Ciências Sociais - Antropologia
Universidade Federal do Pará
anapaula.vilhena@gmail.com

Já é, setor, sou dos Imbatíveis. Tô só de boa, agitando na moral, a minha


equipe é que comanda a capital. Gostou, DJ, essa onda já é. É Deus no céu, e
o Eletro na terra. Com os imbatíveis, a festa está completa. É DJ, detona na
moral [...] (Os Imbatíveis da Condor - Gang do Eletro)

A letra da música, cujo ritmo se chama eletro (variação do tecnobrega1, só que com uma
batida mais acelerada), foi encomendada por uma equipe de jovens apreciadores das
festas de aparelhagem2 de Belém, oriundos do bairro da Condor, e traz algumas
expressões muito significativas para se entender a dinâmica de suas relações. É
importante, para eles, ter prestígio perante os demais. Isso lhes confere popularidade e
status dentro do espetáculo que é a festa de aparelhagem.

É neste ambiente das festas de aparelhagem e com o olhar voltado para os grupos
juvenis que se formam em torno delas que pretendo, neste trabalho, analisar como as
relações estabelecidas por estes jovens dentro e fora das festas de aparelhagem orientam
seus hábitos de consumo e suas práticas de sociabilidade. Entendo que este jovem
frequentador da festa de aparelhagem vive uma juventude peculiar que merece ser
pensada. Conforme Novaes (2006), “existem grupos e segmentos juvenis organizados
que falam por parcelas da juventude, mas nenhum grupo tem a delegação de falar por
todos aqueles que fazem parte da mesma faixa etária”

1 A batida conhecida como tecnobrega surgiu no início dos anos 2000, concebida por produtores
musicais, DJs e músicos da região. Trata-se de um som dançante, de ritmo acelerado, que mistura
diversas vertentes musicais através de um trabalho em estúdio com a utilização de aparatos
tecnológicos. O ritmo é uma espécie de fusão de sons eletrônicos com ritmos musicais como o funk, o
pagode, o axé o dance, e com o brega tradicional paraense, este que surgiu na década de 60 e se
intensificou na região a partir da década seguinte, quando a música produzida no Pará, resultante da
mistura de gêneros dançantes de origem caribenha como o bolero e o calipso, passou a ser difundida
com o nome de “brega” regional (Guerreiro do Amaral, 2009).

2 A definição do que vem a ser uma ‘festa de aparelhagem’ será bem detalhada no decorrer do trabalho.
Com base no circuito atual de festas de aparelhagem promovidas na cidade de Belém,
defini duas festas para fazer o meu percurso etnográfico: uma festa da aparelhagem
Super POP3 na casa de festa Pompílio, localizada no bairro da Condor, que é
considerado um bairro de periferia; e outra festa da mesma aparelhagem Super POP na
casa de festa African Bar, localizada no bairro do Reduto, considerado um bairro mais
central. A escolha pela aparelhagem Super POP deu-se pelo fato de a maioria dos jovens
com os quais conversei antes de ir às festas terem se referido ao Super POP como a
aparelhagem “do momento”, “da moda”, além de alguns deles também fazerem parte de
equipes de “fãs do POP” 4. As casas de festa escolhidas foram consideradas pelos meus
entrevistados como um lugar de festa mais “classe média” (African Bar) e um lugar
“mais povão” (Pompílio). Esses paralelos entre periferia e centro estão presentes nas
minhas indagações, por isso achei interessante frequentar uma festa dita “de periferia” e
outra festa dita “de classe média”, para que inclusive pudesse avaliar as práticas de
consumo em cada um destes ambientes. A visita a algumas lojas que vendem as marcas
mais citadas e consumidas pelos meus entrevistados completou o meu percurso, onde
pude comprovar muito do que vi nas festas.

Estas festas de aparelhagem de Belém vêm assumindo, desde meados da década de 80,
um caráter performático em função de toda a diferenciação a que se propõem, seja no
ambiente específico da festa, seja nos ecos produzidos na vida de seus frequentadores.
Elas têm esse nome porque seu eixo central são potentes aparelhagens sonoro-
eletrônicas comandadas por DJs.

Os eventos são um verdadeiro espetáculo de desdobramentos diversos. O tamanho, a


potência da aparelhagem e a popularidade do (s) DJ(s) são pontos altos das festas. O DJ
é o considerado5, o astro da festa, o que controla a seleção musical e interage com o
público.

3 Nome de uma “aparelhagem” muito conhecida na cidade, cujos proprietários, que também são os DJs
que comandam a aparelhagem, são os irmãos Elison e Juninho.
4 Outras aparelhagens foram citadas por meus entrevistados: Mega Príncipe, Rubi Light e Vetron. As
duas primeiras são mais antigas até que o Super POP, sobreviveram ao tempo e continuam
“arrastando” multidões em suas apresentações. A aparelhagem Vetron tem sido considerada uma
“novidade” no circuito e tem se tornado mais conhecida pelas festas realizadas nas cidades do interior.
5 Gíria nativa que designa uma pessoa prestigiada, querida e respeitada pelos outros, o que confere a ela
um status de celebridade.
O ambiente de uma típica festa de aparelhagem é eclético: regionalismo e
cosmopolitismo se misturam (Guerreiro do Amaral, 2009). A aparelhagem, o DJ e os
painéis de LED instalados em torno dos suntuosos equipamentos sonoros, formam uma
tríade futurista que anima o público de uma forma pouco convencional e o convida a
interagir fazendo símbolos e entoando gritos de guerra em homenagem à aparelhagem.
É mesmo como Regina Casé exaltou no início do programa Central da Periferia (2006):
“viva o raio laser, viva o laptop, viva o MP3, viva a periferia tecnológica!”. Trata-se de
uma Belém “híbrida”, cuja palavra busca referência no conceito de hibridação de
Canclini (2006), no qual a interseção de culturas provoca a junção de elementos até
certo ponto antagônicos, resultando em um sincretismo musical e cultural.

O circuito das festas de aparelhagem extrapola o espaço da festa em si. Ele remonta a
uma compreensão maior, de todos os elementos simbólicos que fazem parte da festa:
participar da festa, conhecer as músicas, conhecer os locais onde elas se realizam, saber
os passos de dança, participar dos fãs-clubes, conhecer as bandas e os DJs e, também,
vestir-se conforme as tendências que apreciam no momento. Tais práticas evidenciam
padrões coletivos de comportamento e de pensamento destes jovens, fazendo que as
festas adquiram um significado sociocultural que vai muito além do seu ambiente
específico. Estas performances dão à festa uma dimensão extraordinária; a festa envolve
toda uma questão tátil que se traduz nos gestos, no corpo e no espetáculo. Trata-se de
um “universo de sociabilidade marcado por códigos” (Costa, 2009).

O significado destas festas é expresso, segundo Lima (2008, p. 23),

através de discursos que as representam ora como sustentáculos de toda


uma cadeia (mainstream alternativo) cultural e econômica “periférica”,
“independente” e “original”; que norteia e reafirma identidades segundo uma
lógica contemporânea – gostos, sociabilidades e interesses típicos da
“periferia” paraense – conforme os meios de comunicação recorrentemente
veiculam; ora como uma “cultura nociva, perniciosa e alienante” que
homogeneíza, pela influência da “indústria de massa”, as práticas culturais
realmente “autênticas”.

Conforme Almeida (2003), o jovem entende a “night” (termo utilizado pelas autoras)
como se ela, ao todo, fosse um lugar. O jovem não vai apenas para a festa por si só, ele
vai para um acontecimento como um todo, cujo lugar da festa é um dos elementos que
compõem esse momento de diversão.
Para saber qual será o circuito de festas do próximo final de semana e onde as
aparelhagens mais badaladas do momento irão tocar, basta acompanhar os sites das
aparelhagens na internet, ouvir os programas de rádio especializados em músicas de
aparelhagem, ou mesmo visualizar as faixas fixadas nas ruas do entorno das casas de
festa. Foi através de uma faixa de rua que eu tomei conhecimento da festa do Super POP
no African Bar. Já a festa do Pompílio, eu soube através de consulta ao site do Super
POP na internet, cuja programação do mês inteiro estava disponível logo na página
inicial.

A festa do African Bar foi numa sexta-feira. Cheguei cedo para acompanhar a entrada
dos grupos e como se articulavam na porta da festa. Alguns vinham andando da direção
do ponto de ônibus mais próximo, outros chegavam de táxi, e outros vinham de carro.
Sempre em grupos. Quase não vi pessoas desacompanhadas. Alguns já começavam a
comprar cerveja em lata na entrada da festa, para “aquecer”, conforme um dos jovens
que conversei comentou. Nessas formações grupais, percebi traços de afinidade, tanto
no visual e nas roupas, como nos comportamentos. Conversei com um grupo de
rapazes, cujas camisetas pretas traziam o nome de sua equipe: “os K-ras de Pau”, junto
com uma ilustração dos três personagens do desenho animado “Du, Dudu e Edu”.
Perguntei a um dos rapazes que vestia esta camiseta o porquê da alusão ao desenho
animado: “no desenho, os três meninos moram na mesma rua e são muito amigos. Eles
se juntam e fazem de tudo pra conseguir bombons de caramelo”. Daí, compreendi que a
razão da escolha daquele desenho significava que os membros daquele grupo possuíam
alguma coisa em comum: seja o fato de morar no mesmo bairro, seja os gostos afins,
seja o fato de se unirem em torno de um “ideal”. Observar não só este grupo, mas outros
que se aglomeravam na entrada do African Bar, me despertou grande curiosidade em
entender essas formações de galeras, fãs-clubes e equipes de aparelhagens, que são
“composições lúdico-associativas, geralmente juvenis, para os quais a festa parece uma
constante” (Lima, 2008).

Existem, entre estes jovens, ‘ritos de sociabilidade’ (Guerreiro do Amaral, 2009)


peculiares que fornecem significados importantes para entendermos como se dão as
suas relações. Estes grupos se formam pela existência de gostos afins e vínculos
atrelados comumente a relações pré-existentes de amizade, vizinhança ou parentesco. O
gosto por uma determinada aparelhagem é um dos aspectos que os aproxima. Um dos
meus entrevistados, que conheci antes de ir a essa festa do African Bar, André, morador
da Rua dos Timbiras, no bairro do Jurunas, faz parte de uma equipe de fãs do Super
POP que se originou na própria rua. Sua relação com a aparelhagem preferida é tão forte
que pode ser comparada ao amor de um torcedor pelo seu time de futebol. Outros
aspectos como os relacionados a territorialidade também são considerados. Daí a
existência dos grupos com os nomes dos bairros ou das ruas a que pertencem os
integrantes, por exemplo, os Imbatíveis da Condor, cujo trecho da música foi citado
logo no início deste trabalho. Dessa forma, eles encontram seu traço distintivo, adotam
um nome, às vezes uma marca - como é o caso dos “K-ras de Pau” -, um sinal de
cumprimento, enfim, um código que os caracteriza. Daí suas práticas tornam-se uma
conduta rotineira, onde seu modo de agir acontece de acordo com o que o grupo
convenciona a chamar de certo ou errado. Este efeito da opinião do grupo sobre a
construção da identidade me remeteu aos estudos de Mead (1969) nas ilhas Samoa,
onde questionava se os problemas que afligiam os “adolescentes” americanos deviam-se
ao fato de esta idade da vida ser de fato problemática ou se eram oriundos de um
processo de civilização. Entendo que, no caso específico do meu objeto de estudo, a
cidade influencia e interfere no comportamento destes jovens, fazendo com que esta
fase de vida seja condicionada, em grande parte, pelos estímulos oriundos do modo de
vida nas metrópoles.

Ali, no ambiente da festa e também fora dela, os jovens em questão representam papéis
e podem se convencer de que “a impressão de realidade que encena é a verdadeira
realidade” (Goffman, 1975, p. 25)

Na entrada do African, percebi jovens usando uma indumentária muito parecida: a


maioria dos rapazes trajava calça jeans, camiseta de malha, boné e tênis. As moças
usavam calça jeans muito justa, blusas sensuais deixando ombros e barriga à mostra e
sandálias de saltos bem altos. Já no Pompílio, muitos rapazes estavam mais à vontade
vestindo bermudões, camisetas sem manga e sandálias. As moças usando shorts ou
saias, muito curtos. Percebi que no Pompílio havia um público diferente do público do
African. Em ambos havia uma preocupação estética visível, porém os jovens que
estavam no African pareciam pertencer a uma camada média da população, enquanto
que os jovens do Pompílio pareciam pertencer às classes mais baixas. O fato de haver
grupos de jovens chegando de carro à festa do African, enquanto a maioria dos que
chegavam ao Pompílio vinham de ônibus ou a pé, já demonstrava uma diferença. No
entanto, havia grupos de rapazes no African que pareciam frequentar qualquer festa de
aparelhagem, não importando o lugar. Estes eram, em geral, os jovens de fãs-clubes,
galeras e equipes, seguidores “fiéis” do Super POP.
Principais entusiastas das festas de aparelhagem, estes jovens de fãs-clubes, galeras e
equipes são facilmente identificados nas festas pois se distinguem dos tipos comuns6 de
apreciadores das aparelhagens, tanto pelo modo de vestir coletivo, como pelos gestos e
códigos que adotam fazendo com que se reconheçam como grupo. Sua relação com as
aparelhagens constitui-se uma nova prática dentro desse universo das festas. Existem
algumas diferenças sutis entre as definições de fãs-clubes, galeras e equipes; elas,
entretanto, não são sempre distintas. Na própria fala dos meus entrevistados, observei
que existem fãs-clubes que se denominam equipes, equipes que se denominam galeras,
e assim por diante. Originalmente as definições de cada uma das denominações
apontava para o seguinte: os fãs-clubes se formam em torno de uma aparelhagem
específica (ou um DJ de uma aparelhagem), acompanhando as apresentações, utilizando
camisetas padronizadas, faixas e outros adereços. São os admiradores que seguem a
aparelhagem nas festas onde elas tocam e que, inclusive, têm uma relação estreita com a
aparelhagem. As galeras, muito semelhantes aos fãs-clubes, também são admiradoras,
porém não apenas de uma aparelhagem ou DJ específicos: são apreciadores das festas
em si e, em torno delas, escolhem nomes, adotam símbolos e andam em grupos,
‘uniformizados’ ou não. Já as equipes têm como principal característica os sons
automotivos. Membros das equipes investem em equipamentos potentes instalados em
carros ou em carretinhas7 e realizam suas próprias festas em locais públicos ou privados
(como balneários e sítios alugados pelos membros das equipes).
As galeras, fãs-clubes e equipes de aparelhagens são, de acordo com Costa (2009),

Um fenômeno novo de sociabilidade e integração ao circuito bregueiro, que


representa um fortalecimento na identificação do público com este tipo de
festa (e sua principal “estrela”: a aparelhagem) (p. 152).

Os rapazes que fazem parte da equipe de André, “Os camaradas do POP”, costumam

6 São considerados 'tipos comuns' os sujeitos que apreciam as aparelhagens assim como apreciam
outros tipos de festa (forró, pagode, boate). Podem ser fãs de uma aparelhagem, mas não chegam a
estabelecer com ela uma relação de devoção.
7 Carretas de quatro rodas, pequenas ou médias, acopladas aos carros através de reboques. Às vezes o
equipamento de som é tão grande que já não cabe mais na mala dos carros, por isso é instalado em
carretas.
marcar encontros na rua onde moram. Isso acontece inclusive antes de ir para qualquer
festa, pois eles fazem questão de chegar à festa em grupos. Eles apropriam-se do espaço
urbano reunindo-se nas ruas, ou até mesmo nas esquinas, nas portas das casas, nas
praças. Criam um ponto-de-encontro fixo, um pedaço8 onde as informações circulam,
onde aprendem as letras das músicas, ensaiam passos das coreografias e acertam os
detalhes para a próxima festa.

Os jovens que frequentam o mesmo pedaço “se reconhecem enquanto portadores dos
mesmos símbolos, que remetem a gostos, orientações, valores, hábitos, consumo e
modos de vida semelhantes” (Magnani, 1992). O pedaço é menos dependente de uma
variável territorial pois, se for o caso, o grupo muda de ponto de referência e passa a
adotar outro lugar. Magnani pesquisa toda uma família terminológica que permite
alcançar outras modalidades de experiências urbanas. Dentre elas, está o circuito, a
categoria mais abrangente de todas, um espaço frequentado pelos sujeitos onde, ali, se
conhecem e se reconhecem, um lugar onde se tem a expectativa de encontrar as
mesmas pessoas. No circuito os sujeitos exercitam a sociabilidade por meio do encontro
em estabelecimentos, equipamentos e espaços. No pedaço, as pessoas se conhecem
publicamente, mas nem sempre se reconhecem como afins. O circuito guarda uma
independência diante da contiguidade espacial (Magnani, 2007) e é nele que os jovens
das galeras, equipes e fãs-clubes encontram seus afins. Eles pertencem a determinados
pedaços, mas é nos circuitos que se reconhecem. O African Bar faz parte deste circuito
de festas de aparelhagem que acontecem na cidade de Belém. Embora a casa de festa
esteja localizada num bairro considerado central, o que representa uma novidade neste
circuito até então reconhecido por ser voltado para a periferia, a aparelhagem que se
apresenta no local acaba por redefinir essas fronteiras. “Não importa onde é, se é o POP,
a gente vai onde ele estiver”, comenta uma das garotas na bilheteria do African Bar.
Esta ideia de que o tecnobrega – e, com ele, a festa de aparelhagem – saiu da periferia e
tomou novos rumos é discutida por Lemos (2008, p. 30):

À margem da indústria cultural tradicional, o mercado tecnobrega se


expandiu, de maneira independente, da periferia para toda a região

8 A categoria “pedaço” é uma definição de José Guilherme Cantor Magnani que caracteriza um espaço
entre a casa e a rua, onde as pessoas se conhecem e mantêm relações particulares. Para fazer parte do
pedaço não basta conhecer e transitar por este espaço; é preciso estar familiarizado e entrosado numa
rede de sociabilidade.
metropolitana de Belém, da cidade para o estado do Pará, do estado para o
Brasil.

Entre os jovens das galeras, equipes e fãs-clubes, é comum chamarem de “setor” ao


local que constitui o território de sua galera. A categoria “setor”, que nos anos 80 era
muito relacionada às gangues juvenis, hoje foi apropriada pelos jovens frequentadores
das festas, principalmente os de bairros considerados de periferia, com uma conotação
de pertencimento a determinada área da cidade. De acordo com Costa (2006, p. 168),

O setor está relacionado aos espaços de sociabilidade no interior dos bairros,


identificados por ruas ou conjunto de ruas e apropriados de modo muito
particular, com todos os seus equipamentos referenciais. O setor equivale,
assim, a uma lógica peculiar e informal de compreender o espaço urbano e
tomar parte na disputa pela cidade.

Nas próprias letras das músicas compostas especialmente para suas galeras, a palavra
surge como o lugar onde eles são respeitados e reconhecidos por todos. É no “seu setor”
que se descortinam as suas redes de relações que combinam laços de parentesco e de
vizinhança.

“GDP chegou, arreda, arreda. Sai da frente meu irmão, que a pista é nossa.
Minha equipe, onde chega, ela incomoda. É muita pressão, a minha equipe
manda ver. Galera do POP agitando no setor. É nós, é nós!” (Trecho da
música da Galera do POP – GDP)

Os “setores” ocupados pelas galeras assumem caráter de território com leis próprias e
por onde galeras rivais não podem atravessar. Dentro dos lugares onde as festas se
realizam há uma espécie de pacto de não-violência entre as galeras, pois o ambiente é
considerando um “templo sagrado”. É fora, principalmente no “território demarcado” de
alguma galera, no seu “setor”, que os conflitos acontecem e onde as desavenças são
resolvidas muitas vezes com episódios de violência. A definição de setor é, por assim
dizer, semelhante à definição de pedaço, pois em ambos há uma variável territorial onde
as relações se dão. A diferença é que, enquanto no pedaço o território “físico” é passível
de mudança, no setor, os sujeitos apropriam-se daquele espaço e brigam por ele, se for o
caso.

Na festa do Pompílio, pude perceber a força da categoria setor para os jovens que ali
estavam. No African, os jovens que ali chegavam, embora também pertencessem a
galeras, equipes ou fãs-clubes, não pareciam disputar tanto quanto no ambiente do
Pompílio. Equipes, principalmente de rapazes, chegavam em comboio. Quanto mais
gente melhor, justamente para mostrar que ali era o seu setor. A equipe de André, que é
do bairro do Jurunas, estava presente na festa do Pompílio. Embora não seja o seu setor,
ali não havia “rivais declarados” da equipe:

a gente somos uma união, entra todo mundo junto na festa [...] os caras da
Galera da Laje, eles são nossos rivais, eles ficam tirando barato com nós. Se
nós tiver com menos baldes9 do que eles, eles vão lá com o DJ e detonam a
gente, aí o DJ vai no microfone e fica provocando. Mas se a gente chega na
festa e não mexe com eles, eles também não mexem com a gente.

Tanto na festa do African Bar, como na festa do Pompílio, os DJs do Super POP
mencionavam a presença de tantas equipes e galeras no local, que já não é possível
quantificá-las. Já são tantos os grupos formados por jovens em torno das aparelhagens
que o fenômeno merece especial atenção, não somente pela reunião em torno de um
mesmo gosto musical e frequência nas festas, mas também pela construção de uma
identidade coletiva ao se denominarem “galeras” ou “equipes”. A convivência e a
aceitação pelo grupo estão então intimamente relacionadas a hábitos de consumo
compartilhados. Estes padrões coletivos de comportamento, segundo Benedict (s.d), são
produtos da vida em sociedade, cujos costumes apreendidos desempenham um papel
importante e regulador de suas escolhas.

Além da ostentação de poder presente na aquisição dos baldes de cerveja na festa, estes
jovens procuram demonstrar prestígio, status e diferenciação através do figurino e das
atitudes no ambiente das festas. Nas duas festas, percebi que estes jovens valorizam
muito a marca de roupa que estão usando. Usar roupas de marcas caras e famosas, assim
como possuir moto ou carro equipado com som potente são atitudes que lhes conferem
a sensação de poder e de sucesso. Ao ver que estes rapazes e moças estavam usando, nas
festas, exatamente as mesmas marcas de roupa que vi na vitrine das lojas do comércio
de Belém, lembrei do meu primeiro contato com a Loja Estátuas e com as lojas da
Galeria Portuense, ambas localizadas nas imediações do Shopping Pátio Belém, centro
da cidade, onde o que estava exposto nas vitrines era um espelho do que aqueles jovens

9 Nas festas de aparelhagem, é comum os jovens das equipes comprarem cervejas em baldes de
plástico. O garçom traz os baldes – “arreia os baldes”, como se diz na linguagem dos jovens – e dessa
forma eles demonstram que estão com “grana no bolso”, que “estão podendo”. Quanto mais baldes,
mais prestigiada a galera.
usavam nas festas. Perguntei ao vendedor da Estátuas, que, curiosamente estava na
porta chamando os transeuntes para entrarem na loja, qual era o perfil do cliente da
Estátuas:
o moleque vem com uma camisa da Pena, da Greenish, da Adidas, da Nike.
Ou ele vem de “sport” ou ele vem de “surf”. Tem outros clientes, tem muitos
moleques aí do lado, que eles trabalham com açaí, com peixe, com camarão,
que eles trabalham também só pra se vestir aqui.

Estes jovens querem comprar roupas de marcas famosas, cujos preços nem sempre
condizem com sua situação financeira. O desejo por consumir estas marcas é muito
evidente entre eles. André, por exemplo, sem ter condições financeiras para usar uma
roupa “de marca”, faz diversos tipos de acordo para possuí-las. Vale inclusive apelar
para as imitações vendidas no comércio da cidade. Porém, por achar que é algo
depreciativo, ele não revela esta prática. Através das marcas que vestem, estes jovens
querem expressar uma “atitude”, uma postura diante da vida. Esta moda diz muito sobre
a sociedade local. Falar dela, no contexto das aparelhagens, é falar sobre os indivíduos
que fazem parte deste universo das festas. O que eles pensam, o que pretendem ser, os
modelos com os quais se identificam. As marcas que vestem transmitem um
determinado estilo, um conjunto de atribuições desejadas por estes grupos. A escolha de
uma roupa para vestir pode revelar os desejos que existem por trás dessa opção. Os
jovens com os quais conversei citaram inclusive artistas que admiram e/ou com os quais
desejam se parecer. Marcelo D2, Racionais MC e cantoras internacionais como Beyoncé
e Lady Gaga estão entre as pessoas famosas citadas pelos jovens das galeras. A moda
que vestem é, portanto, um meio de expressão de sua identidade e de vínculos grupais,
um aspecto marcante da cultura das aparelhagens, um universo de socialização que
exprime comportamentos.

Cabelos tingidos com o efeito conhecido como “luzes”, perfume da moda, corrente de
aço no pescoço, relógio e roupa de marca. A ideia é não repetir roupa. Nas duas festas,
André estava com bermuda, calça e tênis diferentes. Conforme citei anteriormente,
percebi que, no African, havia muitos rapazes de calça jeans. Já no Pompílio, a grande
maioria estava usando bermudas. Porém, nos dois casos, tanto as calças compridas
quanto as bermudas eram “de marca”. Justamente as marcas que vi nas vitrines das lojas
a preços bem altos. As marcas mais apreciadas pelos rapazes são Pitbull, Kenner,
Adidas, Nike e Reebok. As garotas que conversei, na maioria, usavam roupas que
evidenciam o corpo, reforçando a forma física e a beleza. A marca que mais percebi foi
a Pitbull e, sem seguida, Hero. As marcas Absoluta e Fun House, outrora preferidas do
público feminino das aparelhagens, estão hoje em segundo plano. Segundo a vendedora
de uma das lojas que visitei, “são marcas de gordinhas”. Há também um desejo de
consumir as marcas consideradas “de meninas ricas”, como Colcci e Planet Girls.

Estas práticas de consumo carregam significados sociais e culturais importantes; são


uma forma de comunicação com o grupo. O consumo é um processo onde todas as
categorias sociais se definem, se afirmam ou se redefinem (Douglas & Isherwood,
2004) . Ele reforça as questões de individualismo e de construção de identidades sociais
no mundo moderno. Além de produzir vínculos sociais, o consumo também gera formas
particulares de solidariedade, confiança e sociabilidade fundamentais para a vida social.

Outra prática comum atualmente entre as galeras, e que também é uma forma de
prestígio, é possuírem uma música composta especialmente para eles. Eles se reúnem
para fazer uma coleta e contratar um compositor que, em questão de horas, crie letra e
melodia que fale da galera ou equipe. Quando eles conseguem que o DJ execute sua
música na festa, experimentam a sensação de fama, ganhando inclusive mais
admiradores e seguidores. Com orgulho, o pessoal da equipe dos Camaradas do POP
cantarolou um trecho de sua música, encomendada dias antes da festa do Pompílio:
“camarada eu sou, eu sou. Esse aqui é o meu setor, e o Super POP é o meu amor”.

A dinâmica da interação social destes grupos é marcada por um constante dar-receber-


retribuir. Membros de uma mesma galera ou equipe costumam ajudar um ao outro
emprestando, dando ou trocando bens; e essa troca de dádivas é um dos fundamentos da
comunicação entre eles, produzindo a aliança que os une em muitos momentos. Quando
um membro da galera empresta roupa ou dinheiro para o colega ir à festa, está firmando
um pacto de visualidade e de comportamento coletivos, garantindo assim a unidade do
grupo perante os demais. Implícito nesta atitude reside o desejo de retribuição. Fazer
parte da equipe, então, pressupõe um sistema de obrigações (Mauss, 2003), no qual o
ato de dar não é totalmente desinteressado (Bourdieu, 1974).
Tal como os jovens de “sociedade de esquina” (Whyte, 2005), as relações entre os
jovens das galeras das aparelhagens são marcadas por competições de liderança,
distribuição de bens, troca de favores e laços de amizade. Interessa-me, porém, não
apenas a relação entre os sujeitos, mas também a sua interferência com o espaço da
cidade.

A festa de aparelhagem é uma opção de lazer ainda muito associada ao universo da


periferia da cidade. Uma festa no African Bar, embora já seja considerada mais comum
entre os jovens apreciadores das aparelhagens, atrai outro tipo de público que não
costuma frequentar o Pompílio, por exemplo. Isso eu percebi nas duas festas: no African
Bar, havia jovens de carro equipado com potentes equipamentos de som, enquanto que
no Pompílio, a maioria dos jovens chegava a pé, de ônibus, ou, no caso das meninas, de
táxi. Hoje, a diferenciação entre periferia e centro em Belém – assim como em outras
metrópoles brasileiras – reside não somente na localização, mas também na presença ou
não de infraestrutura urbana. As regiões consideradas “de baixada”, cuja condição
geográfica é mais propensa aos alagamentos e inundações provenientes dos efeitos das
marés, são comumente relacionadas com o termo “periferia”, pelo fato de ali haver uma
maior concentração de áreas desprovidas de infraestrutura de saneamento,
pavimentação, limpeza ou transporte. Porém, mesmo nestas áreas consideradas mais
pobres e, portanto, onde reside um maior contingente de população de baixa renda, é
possível encontrar contrastes, e vice-versa:
A especificidade de Belém é que, mesmo no interior dos bairros considerados
periféricos, como o Jurunas, a Pedreira, o Guamá, a Terra Firme, dentre
outros, marcados por serem populosos, pela carência de serviços e de
infraestrutura urbana e pela pequena importância econômica para a cidade,
existem as ‘regiões centrais’, à imitação da lógica de organização espacial da
cidade maior (Costa, 2006, p. 171).

Assim, embora ainda haja a nítida separação entre o centro e a periferia, há sinais de
uma mistura espacial quando se fala na circulação de pessoas, notadamente no ambiente
das festas de aparelhagem. Daí a afirmação de que a festa não mais se resume à
periferia. Tanto o lugar como o público da festa se dissolveram. Arrisco dizer que a festa
de aparelhagem hoje ocupa um espaço simbólico na vida da cidade; um espaço entre o
centro e a periferia, entre as camadas médias e as camadas pobres da população. Prova
disso é a própria festa que hoje toma conta do African Bar, lugar que antes só promovia
festas “de elite”. É bem verdade que essa situação ainda é nova neste cenário. O público
cativo10 ainda é, em sua maioria, oriundo da chamada periferia; porém, há um ecletismo
recente, muito provavelmente iniciado pela própria superprodução musical observada
nas festas, que vem transformando a frequência nas festas.

A proliferação deste modelo de festa pela cidade de Belém, em virtude da influência da


própria cultura urbana contemporânea cosmopolita, provoca o que Maia (2008) chama
de “gravitação dos produtos culturais de elite e das expressões da cultura popular em
torno da filosofia do dinheiro e do mercado”. Ainda segundo o autor, esse
acontecimento produz novos tipos de sociabilidade, ajustadas às próprias configurações
do mercado.

Este percurso triplo que fiz: uma festa na periferia, outra festa no centro, e visitas aos
locais de consumo dos jovens frequentadores das festas de aparelhagem contribuíram
para a minha reflexão sobre até que ponto os hábitos de consumo desenvolvidos pelos
jovens articulam ou orientam elementos de reconhecimento de vínculos de sociabilidade
estabelecidos no ambiente das festas de aparelhagem. As questões que levantei se
entrecruzaram em minha pesquisa, fazendo-me acreditar que, no universo simbólico e
performático da festa de aparelhagem residem significados múltiplos para se entender
os hábitos de consumo e os vínculos de sociabilidade dos jovens que as frequentam.

10 Costa (2009) define três públicos mais comuns das festas de aparelhagem: o público cativo, composto,
na maioria pela população mais pobre que, além de frequentar a festa, compra os Cds do ritmo e ouve
os programas específicos; o público opcional, que aprecia e dança o tipo de música, sem no entanto
consumir os Cds; e o público momentâneo, composto por pessoas de classe média, que frequentam as
festas de aparelhagem mais esporadicamente, mas que também frequenta outros tipos de festa.
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2008.

Central da Periferia em Belém do Pará. Direção: Estevão Ciavatta. Apresentação:


Regina Casé. Rio de Janeiro: Pindorama Filmes, 2006

Good Copy, Bad Copy Documentary Film. JOHNSEN, Andreas. Denmark, 2007.

PÁGINAS DA INTERNET
Aparelhagem Super POP – (http://www.superpop.som.com.br)
Músicas de Equipes – (http://www.youtube.com/watch?v=b97XFbMmPnK)
O jogo na criação de formas plásticas no espaço.

Inês Alcaraz MAROCCO


Depto Arte Dramática/UFRGS
GT 1: Antropologia e artes da performance

RESUMO

Neste trabalho pretende-se refletir sobre a influência de um sistema de treinamento


na criação artística através da técnica do jogo e da improvisação . Trata-se de uma
abordagem formal do movimento cênico, contendo os princípios da presença física,
onde prioriza-se o desenho que o ator faz no espaço através dos seus movimentos.
Assim, com o corpo treinado e organizado o ator /dançarino torna-se produtor de
ficções a partir de seu próprio trabalho plástico, imagético. De posse do sistema de
treinamento, os alunos/atores foram instrumentalizados nesse estilo de teatro. Depois
da leitura e discussão de cada conto de Sérgio Faraco, organizou-se através da
técnica do jogo e da improvisação, a transposição para a cena da atmosfera da história
. Como conclusão parcial, percebe-se que o domínio das partituras de movimentos do
sistema de treinamento ensina a olhar os outros e a si mesmo no espaço, e a
desenvolver a consciência do mecanismo de seus corpos. Este domínio fisico libera
a imaginação possibilitando uma disponibilidade fisica maior no espaço de jogo,
oportunizando a realização de formas plásticas na criação dos climas e atmosferas,
assim como dos estados e situações em que se encontram os personagens .

Palavras –chave: Sistema de treinamento. História em quadrinhos. Jogo. Teatro


imagético.

1
Neste trabalho pretendo refletir sobre a influência de um sistema de
treinamento na criação artística através do estilo teatral da História em Quadrinhos ou
Quadros Mímicos1.

Qual a relação entre estes dois elementos, um sistema de treinamento e um


estilo teatral? Talvez seja interessante colocar inicialmente a nossa posição em relação
ao tipo de teatro que estamos nos propondo fazer e depois partir para a definição e
esclarecimento do que entendemos como sistema de treinamento e o estilo teatral que
iremos desenvolver. Num terceiro momento como conclusão parcial do trabalho, pois
ainda estamos em processo , assinalaremos alguns pontos importantes que detectamos
no decorrer da investigação.

O tipo de teatro que é desenvolvido no trabalho de pesquisa2 é o preconizado


por Jacques Lecoq3 (2010,pg153) no seu sistema pedagógico, onde o (...) processo
visa a favorecer a emergência de um teatro em que o ator está em ação, um teatro do
movimento, mas sobretudo um teatro do imaginário Por evocar uma atuação mais
física, o corpo passa a ocupar um lugar de destaque. É através dele que o imaginário
é acionado possibilitando a instalação nos atores de estados e paixões , promovendo
uma via de mão dupla, onde os aspectos interior e exterior se mesclam,
complementando-se, resultando numa ação psicofisica. Neste sentido percebo
semelhanças entre os princípios do sistema pedagógico de Jacques Lecoq e os
preceitos do Teatro pós dramático 4 , no que concerne a questão da corporeidade.
Dentre os traços estilísticos do teatro pós dramático ,citados por Hans-Thies Lehmann
(2007,pg157) encontramos o da corporeidade ,onde o corpo

(..) passa a ocupar o ponto central não como portador de sentido, mas em sua substância física
e gesticulação. O signo central do teatro, o corpo do ator, recusa o papel de significante. De
modo geral, o teatro pós dramático se apresenta como o teatro de uma `corporeidade auto
suficiente’ , que é exposta em suas intensidades, em seus potenciais gestuais, em sua `presença’
aurática e em suas tensões internas ou transmitidas para fora.

1
Tradução da expressão Bande dessinée por Marcelo Gomes do livro O corpo Poético (2010) de Jacques
Lecoq
2
Desenvolvo desde 2001 uma pesquisa junto com grupos de alunos do curso de Teatro no departamento de Arte
Dramática /Instituto de Artes da UFRGS, que se intitula As técnicas corporais do gaúcho e a sua relação com a
performance do ator/dançarino.
3
Jacques Lecoq criou a sua escola Internacional de Mime ,Théâtre et Mouvement em Paris, no ano de 1956.
4
“No teatro pós dramático, a respiração,o ritmo e o agora da presença carnal do corpo tomam a frente do
lógos.Chega-se a uma abertura e a uma dispersão do lógos de tal maneira que não mais necessariamente se
comunica um significado de A (palco) para B (espectador),mas dá-se por meio da linguagem uma transmissão e
uma ligação `mágicas`, especificamente teatrais”(Lehmann, 2007,pg 246)

2
Evidentemente que guardadas as diferenças, entre os vários tipos de teatro a
que ele se refere, existe um denominador comum nesses que é o papel do corpo, que
passa a ser preponderante . A partir desse tipo de teatro, torna-se fundamental um
treinamento que possibilite ao ator desenvolver suas potencialidades corpóreas.

A primeira idéia que vem quando nos referimos a um sistema de treinamento


para o ator é geralmente de um trabalho racional, ginástico e que só serve para tornar
os corpos dos atores flexíveis fisicamente. Parto do pressuposto de que um sistema de
treinamento deve ter a função de exercitar o ator/dançarino, no desenvolvimento de
sua presença física assim como na aptidão para realizar formas e desenhos no espaço
cênico , enquanto joga. Lorna Marshall ,no livro O Ator Invisível
(Oida,2001,pg70),comenta os benefícios de um treinamento para o ator

se se trabalhar fisicamente todos os dias, focando todos os níveis de prontidão, clareza e


coerência, o “corpo do ator” irá, finalmente, transformar-se em algo natural. Mesmo que nos
peçam que façamos alguma coisa completamente nova e desconhecida, nosso corpo irá
responder de maneira apropriada. Ele encontrará automaticamente o caminho mais fácil e
correto para fazer qualquer coisa.

A repetição dos movimentos ,longe de torná-los rígidos ,são necessários para o


desenvolvimento do ator, como afirma Oida (idem,pg76), movimentos repetidos tem o
efeito de estimular nossa energia interna, tornando-nos mais sensíveis e despertos
como pessoas. Este mesmo tipo de preocupação tinha Meyerhold que com a sua
abordagem biomecânica 5 preparava o ator para o desenvolvimento do jogo no
aqui/agora, através de um treinamento. Segundo Picon-Vallin (1993,pg70) , o
treinamento para Meyerhold

não reduz o ator ao estado de máquina e não nega a sua capacidade de improvisação, ela (a
abordagem biomecânica) abre o jogo ao principio de montagem, coloca o ator diante das
tarefas de criação de imagens espacio-rítmicas, sem função ilustrativa redundante em relação
ao texto, ela o obriga a ver e a se ver no espaço.

Nesta mesma linha de pensamento, desenvolvo desde 2001, dentro do âmbito


acadêmico, uma pesquisa que procura aliar o conhecimento cientifico à prática

5
Biomecânica- Estudo da mecânica aplicada ao corpo humano.Meyerhold utiliza esta expressão para descrever
um método de treinamento de ator baseada sobre a execução de tarefas (..) A técnica biomecânica se opõe ao
método introspective,`inspirado’ nas emoções autênticas.O ator aborda seu papel do exterior,antes de pegá-lo
intuitivamente. (PAVIS,1996,pg34)

3
artística. Esta pesquisa se realiza em equipe com grupos de alunos do Curso de
Teatro6 .Inicialmente criou-se o sistema de treinamento para o ator/dançarino a partir
de técnicas corporais da lide do campeiro gaúcho7 constituída por nove partituras de
movimentos estilizadas baseadas nas atividades da sua lide. Essas partituras
possibilitam ao ator desenvolver a consciência de si no espaço, de mover-se com o
máximo de economia e eficácia. Trata-se de uma abordagem formal do movimento
cênico, contendo os princípios da presença física, onde prioriza-se o desenho que o
ator faz no espaço através dos seus movimentos. Assim, com o corpo treinado e
organizado o ator /dançarino torna-se produtor de ficções a partir de seu próprio
trabalho plástico, imagético. Desde o inicio até a atualidade, a pesquisa já passou por
diferentes fases de trabalho e o sistema de treinamento vem sendo utilizado como um
alfabeto de base para a equipe ,servindo tanto como uma técnica pré expressiva para a
construção de espetáculos como material para a construção de dramaturgias.

8
Após a instrumentalização no sistema de treinamento, o grupo de alunos 9
juntamente com os componentes do grupo Cerco 10 ,iniciou o processo de criação
artística, onde a linguagem utilizada seria a do estilo teatral de História em
quadrinhos 11 . Esse , que se utiliza de elementos da Pantomima Branca 12 e da
figuração mímica 13 , caracteriza-se por ser um trabalho físico que exige muita
precisão, clareza e eficácia gestual pois trata-se de (...) uma linguagem muito
próxima do cinema, em sua seqüência, restituem, pelo gesto, a dinâmica contida no
interior das imagens (Lecoq,idem,pg159).

6
Desde 2001 conto com grupos de alunos durante o periodo de sua formação na graduação , que varia de 3 a 4
anos. Estes alunos seguem os cursos de Bacharelado em Interpretação ou Direção Teatral ou Licenciatura em
Teatro,no departamento de Arte Dramática do Instituto de Artes da UFRGS, em Porto Alegre.
7
As razões de buscar nos elementos da cultura do RGS ,mais especificamente nas atividades da lide campeira
para criar um sistema de treinamento se deve ao fato de percebermos que as técnicas corporais do gaúcho
campeiro , contem os principios da presença física do ator detectados por Eugenio Barba (1993,pg.29-48) a saber:
oposições, equilibrio de luxo, equivalência, icoerência coerente e virtude da omissão.
8
O sistema de treinamento é passado de grupo para grupo desde 2001 ,mantendo assim uma tradição e um rede de
transmissão e de conhecimento.
9
Fazem parte do grupo atual,os alunos Anildo Boes Michelotto,Elielto Rocha e Natália Souza.
10
O grupo Cerco, formado por alunos e ex alunos do Curso de Teatro do mesmo departamento de teatro
(DAD/IA/UFRGS) foi criado em 2008,com o espetáculo O Sobrado a partir do texto homônimo que faz parte da
obra O tempo e o Vento de Erico Verissimo.
11
Quando aprendemos esse estilo teatral, Jacques Lecoq o chamava de Bande Dessinée ,a mesma expressão que
consta no livro original, o que na tradução para português equivale a História em quadrinhos. Na tradução do livro
original feita por Marcelo Gomes vemos a expressão Quadros Mímicos. Mas eu manterei a expressão original,
aqui neste texto.
12
“Chamei Pantomima branca-termo emprestado das pantomimas de época ,em que se representava um Pierrô- à
pantomime que se limita a fazer gestos para traduzir palavras (…) Impõe ,inevitavelmente ,uma sintaxe diferente
daquela da linguagem falada” (Lecoq, 2010,pg158).
13
“A figuração mímica (..) consiste em representar pelo corpo, não mais palavras, mas objetos, arquiteturas,
elementos decorativos de cena”(idem)

4
Instrumentalizados nessa nova linguagem ,e após a seleção de alguns dos contos
do autor Sérgio Faraco, iniciamos a transposição deste material literário para a cena
.Depois da leitura e discussão dos aspectos considerados importantes de cada conto,
organizou-se através da técnica da História em Quadrinhos, do jogo e da
improvisação, a transposição para a cena da atmosfera da história . Como conclusão
parcial , percebe-se que existem princípios comuns entre os objetivos do sistema de
treinamento e o estilo teatral de História em Quadrinhos como a prioridade dada ao
teatro de movimento e de imagens físicas. O domínio das partituras de movimentos
do sistema de treinamento e da linguagem de História em Quadrinhos , além de
possibilitar a precisão, clareza e eficácia gestual, ensina a olhar os outros e a si
mesmo no espaço, e a desenvolver a consciência do mecanismo de seus corpos. Este
domínio físico desses dois sistemas libera a imaginação possibilitando uma
disponibilidade maior no espaço de jogo, oportunizando a realização de formas
plásticas na criação dos climas e atmosferas, assim como dos estados e situações em
que se encontram os personagens .

Referências Bibliográficas:

BARBA,Eugenio. Le canoë de papier.Traité d`Anthropologie Théâtrale.Lectoure


(Fr.): Bouffonneries ,n.28-29,1993
LECOQ, Jacques.O Corpo Poético.Uma pedagogia da criação teatral. São Paulo:
Ed.Senac/Sesc, 2010.
LEHMANN,Hans-Thies.Teatro Pós – dramático. São Paulo: Cosac Naify,2007.
OIDA,Yoshi.O ator invisível.São Paulo: Beca Produções Culturais, 2001.
PAVIS,Patrice.Dictionnaire du Théâtre.Paris: Dunod,1996.
PICON-VALLIN,Béatrice. Réflexions sur la biomécanique de Meyerhold. In: Les
Fondements du mouvement scénique. Actes du Colloque International Beyond
Stanislavski/Par delà Stanislavski.Saintes/La Rochelle: Ed.Rumeur des
Âges/Maison de Polichinelle,1993.

5
1

Sobre as cores e sua magia: imagem, experiência e mimeis na trilogia de


Kieślowski

Bruna Nunes da Costa Triana


Mestranda em Antropologia Social
FFLCH – USP

Resumo: O conceito de inconsciente ótico, de Walter Benjamin, é central para a


compreensão das mudanças na percepção operadas pelas modernas tecnologias de
reprodução, em especial a fotografia e o cinema - alterações estas a que, ainda hoje,
estamos sujeitos. Michael Taussig, retomando os trabalhos do filósofo alemão, atenta
para o fato de que essas máquinas possibilitam o ressurgimento da faculdade mimética
na modernidade, o que, acreditamos, provoca um conhecimento sensível e altera e
atualiza a experiência, tal como concebida nos termos benjaminianos. O cinema, nesse
sentido, será tomado aqui como o narrador moderno. Com efeito, os conceitos de
experiência, narração, mimesis serão utilizados na análise da Trilogia das Cores, do
diretor polonês Krzysztof Kieślowski. Considerando, então, o impacto dessa obra
internacionalmente e as inovações cinematográficas, tanto temáticas quanto formais,
entendemos que esses longas provocam experiências e, pela mimesis, o desejo de
“tornar-se Outro”. Assim, atinente a essas questões, temos como objetivo examinar, nos
filmes, a problematização da alteridade, da ausência, da imigração; uma alteridade
relacionada a experiências dolorosas com o Outro, sobretudo tendo em vista o pano de
fundo dos longas: a problematização dos ideais “universais” da Revolução Francesa e a
unificação européia.

Palavras-chave: Antropologia Visual; Experiência; Mimesis; Kieślowski; Alteridade.


2

A INVENÇÃO DE UM OLHAR
“Uma definição do homem, do nosso ponto de
vista específico, poderia ser que o homem é o
animal que vai ao cinema.”
Giorgio Agamben

O conceito de inconsciente ótico, de Walter Benjamin, é central para a


compreensão das mudanças na percepção operadas pelas modernas tecnologias de
reprodução, em especial a fotografia e o cinema - alterações estas a que, ainda hoje,
estamos sujeitos. Benjamin, conquanto crítico da modernidade pela perda da
experiência (Erfahrung) e da própria arte de narrar, característicos desses tempos,
avistava possibilidades de resistência, experimentação e aprendizado nas tecnologias do
cinema e da fotografia. Assim, o pensador desvela os potenciais contidos nessas novas
formas de arte e nota como essas inovações técnicas transformaram a percepção do
homem contemporâneo e sua forma de olhar:
Através dos seus grandes planos, de sua ênfase sobre pormenores ocultos dos
objetos que nos são familiares, e de sua investigação dos ambientes mais
vulgares sob a direção genial da objetiva, o cinema faz-nos vislumbrar, por
um lado, os mil condicionamentos que determinam nossa existência, e por
outro assegura-nos um grande e insuspeitado espaço de liberdade
(BENJAMIN, 1994a, p.189).
Assim, diante da pergunta de qual a capacidade da imagem de dar a conhecer
alguma coisa, observamos que o cinema permite que se perceba o que se passa entre a
mão e o objeto tocado, que se veja o que ocorre no momento em que um homem
caminha. Ou seja, ele possibilita uma maior apreensão da realidade, pois, por conta do
inconsciente ótico, abre-nos um mundo. O cinema, conforme resume o filósofo alemão
(1994a, p.189), explodiu nossa prisão cotidiana “[...] com a dinamite dos seus décimos
de segundo, permitindo-nos empreender viagens aventurosas entre as ruínas
arremessadas à distância. O espaço se amplia com o grande plano, o movimento se torna
mais vagaroso com a câmara lenta”. É nesse espaço fragmentado e efêmero que uma
nova percepção surge, posto que o cinema revela
[...] mundos de imagens habitando as coisas mais minúsculas,
suficientemente ocultas e significativas para encontrarem um refúgio nos
sonhos diurnos, e que agora, tornando-se grandes e formuláveis, mostram que
a diferença entre a técnica e a magia é uma variante totalmente histórica
(BENJAMIN, 1994a, p.94-95).
No mesmo sentido, Jean-Claude Carrière (1995, p.16) afirma que durante sua
história, o cinema “[...] forçou caminho no mundo das idéias, da imaginação, da
3

memória e dos sonhos” dos espectadores, até que dominasse nossa percepção e nossa
forma de ver o mundo, perseguindo-nos “[...] mesmo quando fechamos os olhos”. Ou
seja, desde sua origem, aponta-nos o antropólogo Massimo Canevacci (1990, p.29), o
cinema teve a necessidade de “[...] reflexões globais e radicais para responder às
perguntas sobre sua relação entre máquina-cinema e as modificações das categorias
centrais da humanidade: o tempo, o espaço, a fábula, o riso, o comportamento”.
Fundamentalmente, tomamos o cinema como um domínio capaz de inventar temas,
mundos e espacialidades, como uma “máquina mimética” (TAUSSIG, 1993a), que
produz e suscita esteticamente espaços de alteração.
Assim, ao analisarmos, na Trilogia das Cores, a problematização da perda, da
ausência, da imigração, notamos uma alteridade relacionada a experiências dolorosas
com o Outro, sobretudo tendo em vista o pano de fundo dos longas: a problematização
dos ideais “universais” da Revolução Francesa e a unificação européia. Esse pano de
fundo está subjacentes aos longas de Kieślowski. Destarte, inquirimos em que medida
se faz presente espaços de alteração e como a construção técnica e narrativa dos filmes
problematiza o “viver” num mundo contemporâneo. Em nossa leitura, um
questionamento transparece nos filmes: que espécie de mundo é esse? É possível, num
continente que se orgulhava de ser herdeiro das tradições iluministas e humanistas, e
que então se renovava, ainda viver esses princípios éticos de forma absoluta?
A Trilogia das Cores, certamente, foi a obra de maior sucesso de público e de
crítica de Kieślowski, que estudou cinema na Escola de Teatro e Cinema de Lodz, na
Polônia, por onde também passaram cineastas poloneses de renome, como Andrzej
Wadja e Roman Polanski. O estilo “oriental”, presente em tantos diretores do leste
europeu, marcou as obras de Kieślowski. Todavia, nesse último, essas caracteríscas
aparecem de maneira inconfundível, com o uso subversivo das convenções estéticas
clássicas, a ambigüidade e a vagueza, os movimentos lentos das câmeras e das
personagens, as elipses, o corte seco, a forte presença da música, entre outras. A
filmografia do diretor costuma ser divida em uma fase polonesa e uma fase francesa: a
primeira, contando a partir de seus primeiros estudos, vai de 1966 até 1989, e tem como
obras mais conhecidas O Amador (Amator, 1979) e O Decálogo (Dekalog, 1988); já a
segunda, teve como estréia A dupla vida de Véronique (La double vie de Véronique,
1990), que lançou Kieślowski como cineasta de prestígio internacional, e terminou com
4

a Trilogia das Cores, considerada por muitos críticos como sua magnum opus1.
Os três longas receberam diversas indicações e prêmios em festivais de cinema,
o que demonstra seu reconhecimento por parte dos profissionais do ramo
cinematográfico2. Kieślowski realizou uma trilogia baseada nos ideais da Revolução
Francesa, imbricando nessa construção cores, sons e tormentos; com efeito, ele fabricou
irônicas e misteriosas meditações sobre os três universais que compõem o lema da
Revolução. Ambientados em Paris e Varsóvia, Bleu, Blanc e Rouge são constituídos por
conturbadas relações humanas e frágeis encontros. Os longas são repletos de zonas de
penumbra e indeterminação; as elipses, os cortes secos e descontínuos e as
interferências (visuais e/ou musicais) nas seqüências dão um ritmo próprio a cada obra.
Nessa medida, propomos como hipótese que a Trilogia, ao desconstruir o ideário
tríptico de valores, problematizando, para tanto, a alteridade ao viver essas entidades
absolutas no mundo que se constituía, inventa esse valores a partir de encontros e
contingências, e propõe uma experimentação – do tempo, do espaço, do sujeito. Por
conseguinte, acreditamos que a desconstrução das idéias de liberdade, igualdade e
fraternidade realizada por Kieślowski objetiva reinventá-las e rearranjá-las por meio de
eventualidades e acasos cotidianos (FRANÇA, 1996, p.36). Ao que parece, essa esfera
de invenção e desconstrução aparece nos três filmes em primeiro plano e em detalhes
secundários, na forma da montagem e na história narrada.
Temos em Bleu, a trajetória de Julie, que perde o marido e a filha em um
acidente de carro e isola-se do mundo e das pessoas por conta de seu sofrimento. A
partir desse retraimento, Kieślowski vai acompanhar o processo de reabertura de Julie
ao mundo e ao Outro. Nesse filme, encontramos a problematização da subjetividade da
imagem, tendo em conta que a câmera só nos mostra Julie e seu mundo através de
closes e primeiros planos; as cores e a música estão ligadas, diretamente, à Julie e à sua
vontade de enxergar o Outro.

1
O crítico de cinema Roger Ebert, toma a Trilogia como a obra mais paradigmática e poética de
Kieślowski. Disponível em: rogerebert.suntimes.com/apps/pbcs.dll/article?AID=/20030309/REVIEWS08
/303090308/1023.
2
Bleu ganhou o Leão de Ouro em Veneza, de 1993, como melhor filme, ganhando ainda os prêmios de
melhor fotografia e melhor atriz, para Juliette Binoche. Binoche também ganhou o Cesar, em 1994, como
melhor atriz, que também foi concedido ao filme nas categorias melhor montagem e melhor som. O filme
também recebeu três indicações ao Globo de Ouro: nas categorias de melhor filme estrangeiro, melhor
música e melhor atriz. Blanc deu o Urso de Prata de 1994, em Berlim, para Kieślowski como melhor
diretor. Rouge ganhou o Cannes, em 1994, como melhor filme; no mesmo ano, ganhou o Cesar por
melhor trilha sonora e foi indicado ao Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro e ao Oscar de melhor
direção, melhor roteiro e melhor fotografia.
5

Por sua vez, o segundo filme, Blanc, retrata os (des)caminhos de Karol Karol,
imigrante polonês na França. Este é, certamente, o mais nitidamente político dos filmes,
pois revela como a “igualdade”, mesmo a do novo “cidadão europeu”, não é tão
igualitária assim, como tentam expor as várias cartas de direitos humanos. Karol é
tratado como indesejável pelo tribunal francês e por sua ex-mulher, Dominique. Esse
filme já apresenta uma narrativa mais cadenciada: a câmera não se concentra apenas em
Karol (como se concentrava em Julie, em Bleu), e, além disso, Karol age, ele toma
atitudes frente aos problemas que lhe são colocados. Se Julie se fecha e se recusa a agir
e a tomar decisões depois do acontecimento trágico que marca sua vida, Karol procura
saídas, formas de se fazer ouvir, de se fazer ver por Dominique, ainda que isso implique
ter de matar uma pessoa e simular sua própria morte.
Por fim, Rouge fecha a Trilogia das Cores com a história da modelo Valentine,
que no decorrer da narrativa encontra-se com um juiz aposentado, Joseph. É nesse
encontro que ambos começam a repensar suas vidas e valores, e, como amigos,
desafiam e questionam um ao outro em gestos e atitudes, enxergando, então, que é na
construção da relação entre si que esses valores poderiam ser vividos e concretizados,
mediante o que eles mesmos sentiam. Esse filme, dentre os três da série, é o que faz a
câmera mais se movimentar: os planos são mais abertos, o ritmo é mais rápido, haja
vista que a câmera segue duas tramas paralelas.
Observa-se que Kieślowski faz, por meio dos filmes da Trilogia, uma leitura
crítica do projeto de unificação européia. Sua obra nos coloca diante dessa Europa
fragmentada e incerta sobre a solidificação da união geográfica (Bleu), interrogando a
igualdade sub-reptícia do “europeu”, o problema do imigrante e o posicionamento dos
países marginais nessa nova “constelação” (Blanc), assinalando, por fim, as rachaduras
desse projeto unificador (Rouge). Portanto, é importante ressaltar a conjuntura histórica
em que se inserem tais filmes, para que possamos apreender alguns índices deixados na
imagem que, ainda hoje, podem ser lidos como prenúncios das possibilidades inerentes
ao projeto de uma U.E. que integraria países tão distintos e com realidades tão
discrepantes sob a designação homogeneizante de “cidadão europeu”3. Procuramos

3
Atualmente, a Europa tem aplicado variadas políticas aos imigrantes ilegais, e também “suspeitos” de
terrorismo e minorias étnicas – como os ciganos e gens du voyage – que são depositados em “centros de
permanência temporária” e outros locais “juridicamente vazios” que se constituem como novos espaços
de exceção, nos quais a Declaração dos Direitos Humanos, de fato, perde toda sua aplicabilidade e é
esquecida in toto, já que nesses espaços ocorre a total dominação e desumanização do Outro, submetido à
violência e discriminação. O antropólogo francês Michel Agier (2006, p.199) distingue diversos espaços
6

entender como esses filmes, ao trabalharem o ideário iluminista, operam esses conceitos
em circunstâncias singulares e pequenos encontros; compreendendo que a Trilogia não
invalida esse ideário, questionamos de que maneira eles são desconstruídos e
explorados em cada situação.
Nos três filmes, notamos que o diretor polonês mantém uma narrativa aberta, no
sentido de que existem muitas lacunas e espaços na imagem a serem completados pelo
espectador: a irrupção da música em Bleu, as motivações de Karol em Blanc e os
sentimentos das personagens em Rouge. Os espaços também aparecem no uso não
convencional do fade in/fade out, da câmera subjetiva e dos flashbacks. Tomamos essa
abertura como um elemento fundamental da narrativa de Kieślowski; sua imagem, além
de polissêmica e repleta de detalhes, é ao mesmo tempo lenta, rarefeita.
Destaca-se, na forma e no conteúdo da Trilogia das Cores, um modo próprio de
dar visibilidade a experiência da alteridade. Essa visibilidade se distingue a partir da
heterogeneidade e, ao mesmo tempo, da proximidade na constituição das imagens dos
três longas: todos guardam alguma semelhança formal entre si e, mesmo, entrelaçam-se;
mas também cada um detém sua singularidade, seja na técnica (closes e fades, em Bleu;
flashbacks, em Blanc, e montagem paralela, em Rouge) ou na temática. O uso de
maneira inusual do fade in/fade out4, em Bleu, por exemplo, suscita efeitos de choque
no espectador. As caracteríscas estilísticas de Kieślowski (o uso subversivo das
convenções estéticas clássicas, a ambigüidade e a vagueza, os movimentos lentos das
câmeras e das personagens, as elipses, o corte seco, a forte presença da música, entre
outras), as especificidades de cada obra, tudo isso concorre para caracterizar e dar a ver

de exceção atuais, que ele denomina não-lugares: os centros de trânsito, os campos de detenção dos que
pedem asilo, os campos de agrupamento de deslocados, no Sudão e em Angola, os centros de acolhida de
urgência, na França, certas zonas portuárias e algumas ilhas, como Nauru. Esses não-lugares, por mais
diversos, compõem “um conjunto de espaços, hoje em crescimento, para manter refugiados,
‘clandestinos’ e indesejáveis à espera, em sobrevivência e sem direitos”. Sobre esses novos vazios
jurídicos e o novo racismo no ocidente, cf. Agamben (2004), Butler (2007). Sobre os problemas de
exclusão da integração européia cf. Stolcke (1993).
4
Como exemplo de subversão de técnicas convencionais, Kieślowski faz o uso do de fade in e do fade
out de maneira não usual em Bleu. Fade out é o escurecimento ou clareamento gradual de uma imagem,
até que ela desapareça totalmente. O fade in é o oposto, ou seja, de uma imagem totalmente preta ou
branca voltar gradualmente à outra imagem. Esses efeitos são utilizados para transição, são técnicas
empregadas convencionalmente para ir de uma cena a outra com o sentido de passagem de tempo. Em
Bleu, toda vez que Julie é confrontada com alguma lembrança de seu passado, ocorre um fade out e a
música “Concerto para Inauguração da Europa”, que seu falecido marido estava compondo, arrebata-nos.
Todavia, quando ocorre o fade in voltamos à mesma cena, com Julie em frente a alguém ou alguma coisa
que a fez lembrar e entrar, ontologicamente, para dentro de si mesma. Assim, visto que o recurso técnico
não é utilizado com o sentido que convencionalmente lhe é dado, se produz um efeito impactante no
espectador, que deve buscar compreender e interpretar seu significado na narrativa.
7

um exemplo, uma leitura da experiência da alteridade.


Sob essa perspectiva, notamos que a Trilogia das Cores coloca três questões
acerca da alteridade no mundo contemporâneo: o fechamento no si mesmo e o luto, em
Bleu; a alteridade do estrangeiro, em Blanc; e o contato com o Outro na metrópole, em
Rouge. Todavia, essas três problematizações não são estanques em cada filme (assim
como o diretor não procurou ligar cada filme com uma palavra do lema da Revolução
Francesa), mas atravessam as obras, contaminando-se reciprocamente. De modo geral,
os longas apresentam uma preocupação com o Outro, com os problemas das novas
maneiras de se relacionar no mundo contemporâneo. Contudo, que tipo de sujeito é o
Outro que Kieślowski divulga? Entendemos que não se trata simplesmente de um Outro
abstrato, mas de um Outro concreto, mesmo que ficcional: o Outro marginalizado e
excluído (a prostituta, o imigrante), ridicularizado ou apagado (a velhice, o morador de
rua), que causa choque e repulsa (o morto, o estrangeiro, o criminoso).
Sabemos o quanto a abordagem do outro parte equivocadamente da
Identidade, do Mesmo, e o quanto é difícil reencontrar o outro por ele
mesmo, para além das nossas projeções. Essa dificuldade deve levar-nos a
desnaturalizar, a desconstruir tanto a aparente evidência da presença do outro
no cinema documentário quanto a sua encenação no filme ficcional. A
tentativa de vencer essa dificuldade não implica, contudo, no apagamento
(sempre ideal) daquele que se posta diante do outro, mas antes, de fazer com
que a diferença nasça e alimente-se da interlocução de tal modo que a
alteridade seja produzida pela negociação (o que não exclui o conflito e o
desentendimento) e pela polifonia que a anima (GUIMARÃES, 2001, p.82).

CINEMA, EXPERIÊNCIA E MIMESIS


“Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.”
Mário de Sá Carneiro

Para Benjamin (1994a, p.108), “[...] é o homem que tem a capacidade suprema
de produzir semelhanças”, sendo a faculdade mimética uma de nossas “funções
superiores”. Segundo Gagnebin (1993, p.80), a originalidade da teoria mimética de
Benjamin está em problematizar uma história da capacidade de mimesis, já que o
filósofo alemão nota que na modernidade essa faculdade não se extinguiu, mas se
transformou – e seu principal locus de aplicação, nesses tempos, seria a linguagem. O
filósofo observa, então, que o domínio da existência regido pela mimesis era, outrora,
muito maior, e que “[...] o universo do homem moderno parece conter aquelas
8

correspondências mágicas em muito menor quantidade que a dos povos antigos ou


primitivos” (BENJAMIN, 1994a,p.109).
Nessa medida, Taussig (1993a, p. XIII, tradução minha), retomando os trabalhos
do autor alemão, concebe a capacidade mimética como a “[...] natureza que a cultura
usa para criar uma segunda natureza”, isto é, a faculdade de copiar, desenhar, imitar,
fazer modelos. Taussig (1993a), recupera na noção de mimesis a capacidade de explorar
a diferença e, assim, conclui que a habilidade mimética envolve a capacidade de
“tornar-se Outro”. Se a capacidade mimética se transforma historicamente 5, com as
novas condições técnicas, ela ressurge nas novas tecnologias de reprodução imagética,
como a câmera fotográfica e cinematográfica. As máquinas de reprodução imagética são
chamadas pelo antropólogo de “máquinas miméticas”, pois excitam coisas banais e
cotidianas – o “encanto da imagem”, hipostasiado por Morin (1970) – e exercitam nossa
faculdade mimética de desejar “[...] tornar-se e comportar-se como outrem”
(BENJAMIN, 1999, p.720, tradução minha). Afinal, ainda com Benjamin (1994a,
p.179), é no cinema que massas inteiras de citadinos vão alienar-se após um dia de
trabalho, entregando-se e desejando as vidas encantadas das telas, onde assistem “[...] à
vingança que o intérprete executa em nome delas, na medida em que o ator não somente
afirma diante do aparelho sua humanidade (ou o que aparece como tal aos olhos dos
espectadores), como coloca esse aparelho a serviço do seu próprio triunfo”.
Conforme salientou o crítico de cinema Jacques Aumont (2007, p.134), a
impressão de realidade, a semelhança com o mundo vivido, no cinema, deve-se ao
realismo tanto dos materiais de expressão (as imagens e sons) quanto ao realismo do
tema dos filmes. O “encanto da imagem”, o reconhecimento do semelhante, a mimesis,
são aspectos presentes na imagem cinematográfica, de modo que a
[...] reflexão sobre a impressão de realidade no cinema, considerada em todas
as suas ramificações [...] permanece, ainda hoje, atual, na medida em que, por
um lado, permite desmontar a idéia sempre compartilhada de uma
transparência e de uma neutralidade do cinema em relação à realidade e, por
outro, permanece fundamental para captar o funcionamento e as regulagens
da indústria cinematográfica, concebida como uma máquina social de
representação (AUMONT, 2007, p.152).
Note-se que, apesar do “encanto da imagem”, dos processos de “projeção-

5
Para Benjamin, s caráter histórico também é uma premissa fundamental no campo da visibilidade. Ele
afirma: “No interior de grandes períodos históricos, a forma de percepção das coletividades humanas se
transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência. O modo pelo qual se organiza a percepção
humana, o meio que ela se dá, não é apenas condicionado naturalmente, mas também historicamente”
(BENJAMIN, 1994a, p.169)
9

identificação” (MORIN, 1970), a realidade não é refletida na tela, e também não é


entendida com tal pelo público – consciente que está diante de uma dramatização. Os
filmes apresentam uma leitura possível do mundo, uma construção transformada de um
ponto ou problema da realidade. Dessa forma, compreendemos os filmes que compõem
a Trilogia das Cores como uma leitura possível da experiência da alteridade.
Para Taussig (1993b, p.139), a magia da mimesis se encontra “[...] na
transformação pela qual a realidade passa quando se descreve sua imagem”. E a
mimesis ressurge nas tecnologias do cinema e da fotografia por um elemento presente
nessas tecnologias: a abertura de inconsciente ótico, conceito de Walter Benjamin
fundamental para a compreensão das mudanças na percepção operadas pelas modernas
tecnologias de reprodução. Para Benjamin (1994a), uma das principais propriedades das
“máquinas miméticas” é que elas restauram o sentido esquecido do contato, e isso
ocorre devido à descoberta do inconsciente ótico que abre novas possibilidades de
explorar o mundo: as imagens atingem o espectador como um tiro, pela agressão, e isso
recupera a qualidade tátil da recepção. O que queremos explicitar com isso é que esse
jogo de restauração do contato que o inconsciente ótico e a montagem colocam em
prática transforma o que Benjamin chama de aura, pois da recepção contemplativa,
própria às obras de arte “tradicionais”, com o cinema domina a recepção tátil6. “Retirar
o objeto do seu invólucro, destruir sua aura, é a característica de uma forma de
percepção cuja capacidade de captar o ‘semelhante no mundo’ é tão aguda, que graças a
reprodução ela consegue captá-lo até no fenômeno único” (BENJAMIN, 1994a, p.170).
Com efeito, a montagem, como técnica cinematográfica, é essencial para essa
reestruturação da percepção e da recepção.
A associação de idéias do espectador é interrompida imediatamente, com a
mudança da imagem. Nisso se baseia o efeito de choque provocado pelo
cinema, que, como qualquer outro choque, precisa ser interceptado por uma
atenção aguda. O cinema é a forma de arte correspondente aos perigos
existenciais mais intensos com os quais se confronta o homem
contemporâneo. Ele corresponde a metamorfoses profundas do aparelho
perceptivo (BENJAMIN, 1994a, p.192, grifos do autor).
A noção de choque como percepção descontínua, também é fundamental na
constituição da modernidade para Walter Benjamin. A efemeridade descontínua é

6
Benjamin relaciona o declínio da aura com o impacto crescente das tecnologias do cinema e da
fotografia e a necessidade de aproximar-se dos objetos que essas tecnologias possibilitam: “Fazer as
coisas ‘ficarem mais próximas’ é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua
tendência a superar o caráter único de todos os fatos através da sua reprodutibilidade. Cada dia fica mais
irresistível a necessidade de possuir o objeto, de tão perto quanto possível, na imagem, ou antes, na sua
cópia, na sua reprodução” (BENJAMIN, 1994a, p.170).
10

característica dos tempos modernos e também das imagens cinematográficas –


eminentemente modernas. Logo, a interrupção perceptiva está no centro das
experiências comuns à modernidade (a divisão do trabalho, a circulação nas
metrópoles), e é constitutiva da experiência do cinema, na qual a descontinuidade da
percepção condiciona a recepção e estabelece-se como princípio formal (BENJAMIN,
1994a). A montagem, entendida como justaposição de fragmentos, tem uma
especificidade, pois, como revela Eisenstein (1990, p.14, grifos do autor), “[...] dois
pedaços de filme de qualquer tipo, colocados juntos, inevitavelmente criam um novo
conceito, uma nova qualidade, que surge da justaposição”. E, continua o diretor (1990,
p.16, grifos do autor), “[...] em toda justaposição deste tipo o resultado é
qualitativamente diferente de cada elemento considerado isoladamente”.
A montagem, então, é esse princípio formal essencial, necessário e característico
do cinema. Tal princípio será apropriado e utilizado por diversas áreas do
conhecimento, como pela literatura, pela filosofia e pela própria antropologia – a
etnografia de Taussig (1993b), Xamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem, é um
exemplo expressivo de etnografia baseada na técnica da montagem. Na antropologia
esse conceito vem justamente problematizar a representação do Outro, possibilitando
outra forma de comunicar a experiência com a diferença encontrada em campo.
Benjamin (1994a) entende a citação como a técnica literária que corresponde à
montagem cinematográfica; e esta é compreendida como uma práxis que intervém
ativamente na percepção da imagem. Assim, a função da montagem se encaixa na
concepção benjaminiana de construir uma experiência com o passado e de como
comunicar essa experiência. E se a citação em um texto deve “interromper seu
contexto”, compreendemos que a montagem, pensando aqui no cinema e,
especialmente, em Kieślowski, deve impactar o espectador e interromper sua visão.
Como Döblin, em Alexanderplatz, também Kieślowski “[...] acompanha seus
personagens, sem correr o risco de fazê-los falar. Como o poeta épico, ele chega até as
coisas com grande lentidão. Tudo o que acontece, mesmo o mais repentino, parece
preparado há longo tempo” (BENJAMIN, 1994a, p.57).
Forma e conteúdo da imagem se revelam intrinsecamente vinculados para dar a
ver uma experiência da alteridade. A análise de técnicas (como o fade in/fade out, a
câmera subjetiva, os flashbacks) e temas (como a amizade, a rejeição) são elementos
que compõem uma visibilidade contemporânea, tanto nos motivos como nos
11

enquadramentos, da experiência com o Outro. Ao escolhermos a Trilogia das Cores


como objeto, compreendemos que estes filmes são paradigmáticos ao se interessarem
tanto pelos grandes temas de sua época (os direitos humanos, a União Européia, os
ideais iluministas) quanto pelas constelações micrológicas (os encontros, os
relacionamentos desfeitos, as escolhas) 7.

Na abertura de Blanc, Kieślowski faz uso de flash forwards. Os cortes são


rápidos entre uma mala no aeroporto e os passos de um homem. Nada foi apresentado
ao espectador ainda. O close nos passos se abre e nos deixa ver Karol Karol, ele pára
diante de um tribunal, olha, com um olhar de quem tem lembranças contraditórias,
simultaneamente, boas e ruins, as pombas, as escadas (que lembranças seriam essas?
Quem é este homem?).
No final do filme temos o uso de flashbacks, que já foram utilizados nas cenas
do começo, no tribunal. Mas em todas as utilizações deste recurso ele é subvertido, pois
não é usado como usualmente aprendemos a reconhecer essas recordações de
personagens nos filmes. Assim, perto do fim do filme ocorre um flashback do
casamento de Karol e Dominique. Essa recordação, que já apareceu antes, agora é,
aparentemente, uma reminiscência de Dominique, pois é nela que a câmera está
centrada quando ocorre a lembrança. Nessa memória, Dominique caminha a frente da
câmera, no corredor de uma igreja, em direção ao pátio. Corte. A câmera mostra Karol
reflexivo, a se olhar no espelho. Corte. Voltamos à lembrança: Dominique olha para trás
e encara a câmera. Esse recurso, bastante conhecido e utilizado, é chamado “câmera
subjetiva”, em que o aparelho é identificado com o olhar de uma personagem sobre a
cena. É essa convenção que Kieślowski emprega fortuitamente. Nessa cena, o emprego
desse recurso nos faz crer que é o olhar de Karol que estamos acompanhando, uma vez
que Dominique caminha à frente da câmera – o que também nos faz questionar se essa
seria uma lembrança dela, afinal, não é o seu olhar sobre a cena que se nos apresenta.
Como a câmera corta para Karol, quando Dominique se vira para encarar a câmera,

7
Assim também Canevacci (1990a, p.149-150, grifos do autor) justifica sua escolha por Benjamin como
condutor de seus estudos sobre cultura visual: “[...] ele usou como plano para o seu trabalho não somente
os ‘grandes’ produtos da cultura intelectual – como o nascimento da fotografia, a pintura impressionista, o
programa urbanístico de Haussmann, a arquitetura liberty, a poesia de Baudelaire –, mas também e
principalmente uma série de constelações micrológicas sobre os costumes, o modo de viver e de agir, tais
como o colecionador, as multidões, o flaneur, a rua, a moda”.
12

acreditamos, então, que aquele é o olhar de Karol sobre a cena, que é ele quem
Dominique encara de fato.
Na realidade, não apenas o recurso ao flashback é subvertido com esses cortes
secos entre Dominique e Karol, como a própria câmera subjetiva, afinal, ao se virar para
encarar a câmera, Dominique se aproxima da lente para beijar a câmera/Karol, mas o
aparelho se movimenta para trás, revelando a verdadeira posição do personagem, que é
ao lado da câmera: notamos, então, que a câmera não era Karol, e damo-nos conta de
que aquela era a perspectiva de um aparelho, e não a do personagem.

Destarte, ressalvamos que o cineasta polonês vai recorrer a variadas técnicas e


convenções consolidadas no repertório imagético do espectador, para então questionar
tanto as técnicas normatizadas – mostrando as diversas possibilidades de suas
utilizações –, quanto o espectador – e suas certezas quanto às significações dessas
técnicas –, mostrando-lhe a câmera, a encenação. Na cena descrita, percebemos que o
flashback pode ser de ambos e que a perspectiva da lembrança era a da lente de uma
câmera e não do próprio Karol. Essa cena é um exemplo de como Kieślowski nos
induziu não ao erro, mas ao choque e à reflexão, pois, ao nos confundir com o flashback
e com a câmera subjetiva, compreendemos que o repertório imagético do espectador foi
aproveitado e subvertido pelo diretor.
Assim, com este exemplo, percebemos que espaços são criados, espaços vazios,
novos espaços, que demandam a atenção e a participação do público. A narração
compreende essa indecisão e subversão dos sentidos imagéticos. A onipresença das
máquinas miméticas no nosso cotidiano faz com que acreditemos, com Taussig (1993a,
p.35-36), que o cinema pode ser entendido como o narrador moderno. Como dissemos,
assistir a um filme é uma experiência cotidiana para a grande maioria das pessoas – seja
no cinema ou em casa. Com base nisso, Taussig explora a potência narrativa e
provocativa dos filmes desenvolvendo a hipótese do cinema como o contador de
histórias do mundo moderno. Benjamin (1994a) acreditava que a modernidade se
caracterizava pela perda da experiência (Erfahrung) e da arte de narrar. A figura do
narrador, a faculdade de intercambiar experiências e dar conselhos, entrou em declínio
na era da reprodutibilidade técnica. Para o filósofo alemão (1994a, p.203-204), a arte da
narrativa está em evitar explicações, pois o leitor “[...] é livre para interpretar a história
como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na
13

informação”, de tal modo que a narrativa “[...] conserva suas forças e depois de muito
tempo ainda é capaz de se desenvolver”. Essa assertiva nos leva ao conceito de Umberto
Eco (1971) de “obra aberta”, uma obra baseada, sobretudo, na sugestão de
possibilidades, onde o leitor (ou o espectador) é o centro ativo que relaciona essas
possibilidades de acordo com seu universo pessoal, suas memórias e experiências8.
Taussig (1993a, p.36, tradução minha), ciente da perda do papel do contador de
histórias, do declínio de uma comunicação artesanal ligado à figura do narrador, atenta
que “[...] há, no entanto, este novo, este moderno ‘contador de histórias’, o filme”. O
cinema, nesse ínterim, se coloca como o narrador moderno; e as histórias que ele nos
narra são poderosas. O filme inova sobre a arte narrativa, sobre a relação artesanal entre
“[...] a alma, o olho e a mão [...] inscritos no mesmo campo” (BENJAMIN, 1994a,
p.220), por conta, justamente, da abertura do inconsciente ótico (TAUSSIG, 1993a,
p.36).
O antropólogo australiano, atento ao ressurgimento da mimesis na modernidade
com as “máquinas miméticas”, à onipresença dessas máquinas no cotidiano das pessoas,
observa que o cinema também atualiza a narração. Assim, como um gênero
comunicativo, o cinema inova sobre as narrativas tradicionais9, ele as transforma; as
histórias que o cinema nos narra são poderosas, contam-nos sobre experiências, as mais
distantes e exóticas, sem qualquer preocupação em ser plausível ou verificável. O
cinema é “bom para pensar” (HIKIJI, 1998; CABRERA, 2006), porquanto possibilita
entrever, no caso da Trilogia, todos os detalhes da experiência com o Outro, as
dificuldades e as pontes de comunicação. A Trilogia, adotando como seu mote a
problematização da alteridade num determinado contexto contemporâneo, expande a
percepção dessa experiência em exemplos concretos – ainda que ficcionais.

8
É interessante observar que, como aponta Jeanne Marie Gagnebin (1994, p.12), o texto “O Narrador”, de
1936, de Benjamin, apresenta e antecipa a teoria de “obra aberta” de Eco.
9
As narrativas tradicionais, ligadas à oralidade e às outras formas transmissoras de experiências, de
acordo com Benjamin (1994a), caracterizavam-se por seu “não-acabamento”, por sua abertura a diversas
possibilidades. Assim, como dissemos anteriormente, para o filósofo (1994a, p.203-204), a arte da
narrativa está em evitar explicações, permitindo ao leitor uma liberdade de interpretar a história. Também
no cinema, existe um espaço para a participação e interpretação do espectador, afinal, é o receptor quem
conecta as imagens e cenas, quem dá continuidade e inteligibilidade aos cortes e elipses. Conforme a
equação de Eisenstein (1990, p.28), “[...] todo espectador, de acordo com sua individualidade, a seu
próprio modo, e a partir de sua própria experiência, [...] cria uma imagem de acordo com a orientação
plástica sugerida pelo autor, levando-o a entender e sentir o tema do autor”.
14

A MAGIA DAS CORES


“A questão é o que fazer com os sentimentos que
vieram à tona, com o conhecimento que foi
transmitido.”
Susan Sontag

Os conceitos de experiência, montagem e mimesis, expostas por Benjamin


(1994a; 1994b), permitem a consideração do cinema como forma de narrativa
contemporânea. Ademais, o cinema possibilita, por sua mimesis, a transmissão e a
vivência de experiências sensíveis. Nessa medida, Taussig (1993a), retomando os
trabalhos do autor alemão, concebe a capacidade mimética como a disposição e a
vontade de “tornar-se Outro”. Na Trilogia das Cores a narrativa se utiliza de elementos
formais (subversão de técnicas, forte presença da trilha sonora, interferindo no próprio
filme) e temáticos (as angústias, as perdas e ausências, a rejeição, a amizade) para
provocar uma experiência específica, que envolve a reflexão, a apreensão mimética, e,
assim, abarca, em alguma medida, uma potência de alteração.
Assim, compreendemos que a Trilogia das Cores provoca um impacto sensível e
sensorial, um conhecimento sensível que tomamos como campo, como experiência.
Procuramos analisar a desconstrução da Europa e de seus ideais universais a partir das
situações particulares das personagens e das subversões formais realizadas por
Kieślowski a partir de conceitos como narração, experiência, montagem e mimesis. A
invenção sobre as técnicas cinematográficas, o uso conceitual da montagem e a mimesis
suscitam o despertar dessa sensibilidade para ver, nas imagens já cotidianas, o
impenetrável, o longínquo, o insondável (BENJAMIN, 1994a). Por meio das subversões
técnicas, das invenções narrativas, das cores, músicas e angústias, Kieślowski fabrica
olhares de como se viver e experimentar a alteridade nessa “constelação pós-nacional” e
no mundo contemporâneo.
A modernidade caracterizada pela efemeridade descontínua provoca, no teórico
do materialismo histórico, uma “iluminação momentânea”, numa experiência que é
capturada em forma de imagem, uma “imagem dialética”, que tem como atributo a
“ambigüidade” (BENJAMIN, 2006). E se o objeto com o qual Benjamin quer instaurar
essa experiência é a história, o passado, pontuando suas “estranhezas” e “incoerências”,
nosso objeto (os filmes) se utiliza das “elipses” e dos “cortes secos”, a fim de instaurar
uma experiência com outra configuração de tempo, utilizando a montagem para
interromper o fluxo, introduzir detalhes, construir espaços simultâneos e alheios à
15

narrativa.
Kieślowski explora a estranheza do modelo fílmico, revelando suas
inconsistências (por meio da revelação da câmera, por exemplo), estilhaçando os
sentidos e as técnicas convencionais. Desse modo, o diretor arranca o filme de seu
contexto e propõe novas significações10. Ao procurar “escovar a história [e o modelo
fílmico] a contrapelo” (BENJAMIN, 1994a, p.225), Kieślowski subverte sentidos,
interrompe a leitura e busca liberar a “[...] enorme energia da história que se encontra
confinada no ‘era uma vez’ da narrativa histórica [e cinematográfica] clássica”
(TAUSSIG, 1993b, p.15).
Tomando o cinema como um recorte e uma reelaboração de determinada
realidade, o diretor, autor do filme, opera com uma seleção, de temas e de técnicas,
para, com isso, construir uma leitura própria da realidade, de um problema. O que se
fabrica pela mimesis cinematográfica é uma possibilidade de mundo. A mimesis, como
conhecimento sensível, uma das primeiras faculdades do homem, segundo Taussig
(1993a), ressurge no cinema. E essa faculdade reaparece no cinema, assim como na
fotografia, justamente, porque essas tecnologias de reprodutibilidade permitem ao
homem reencontrar

[...] uma experiência visual em uma imagem, sob forma ao mesmo tempo
repetitiva, condensada e dominável. Desse ponto de vista, o reconhecimento
não é um processo de mão única. A arte representativa imita a natureza, e
essa imitação nos dá prazer: em contrapartida, e quase dialeticamente, ela
influi na “natureza”, ou pelo menos em nossa maneira de vê-la. [...] O
reconhecimento proporcionado pela imagem artística faz parte pois do
conhecimento; mas encontra também as expectativas do espectador, podendo
transformá-las ou suscitar outras: o reconhecimento está ligado à
rememoração (AUMONT, 1995, p.83).

10
Além do recurso ao fade in/fade out, em Bleu, e dos flashbacks, em Blanc, Kieślowski, faz uso da
câmera subjetiva. Em Blanc e em Rouge, o diretor utiliza diversas vezes a câmera subjetiva, só que esta
gira até revelar a verdadeira posição da personagem sobre a cena e a posição da câmera, revelando,
portanto, o próprio processo de filmagem.
16

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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AGIER, M. Refugiados diante da nova ordem mundial. Tempo Social, São Paulo, v.18-
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TAUSSIG, Michael. Mimesis and alterity. New York: Routledge,1993a.
_____. Xamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1993b.
17

FILMOGRAFIA

A LIBERDADE é azul (Trois couleurs: Bleu). Direção: Krzysztof Kieślowski.


Intérpretes: Juliette Binoche, Benoít Régent, Floence Pernel, e outros. Roteiro:
Krzysztof Kieślowski e Krzysztof Piesiewicz. França: France 3 Cinéma, 1993. 1 DVD
(97 min), son., color.
A IGUALDADE é branca (Trois Coleurs: Blanc). Direção: Krzysztof Kieślowski.
Intérpretes: Zbigniew Zamachowski, Julie Deply, Janusz Gajos, e outros. Roteiro:
Krzysztof Kieślowski e Krzysztof Piesiewicz. Polônia: France 3 Cinéma, 1994. 1 DVD
(89 min), son., color.
A FRATERNIDADE é vermelha (Trois couleurs: Rouge). Direção: Krzysztof
Kieślowski. Intérpretes: Irène Jacob, Jean-Louis Trintignant, e outros. Roteiro:
Krzysztof Kieślowski e Krzysztof Piesiewicz. França: France 3 Cinéma, 1994. 1 DVD
(99 min), son., color.
Entre valsados e batidos: a dança do Fandango Caiçara nos sítios e palcos1

Joana R. O. Corrêa
Mestranda do Programa de Pós-Graduação
em Sociologia e Antropologia – PPGSA / UFRJ

O Fandango pode ser reconhecido dentro do vasto e complexo conjunto de


conhecimentos e práticas culturais que conceituamos como “folclore” ou “cultura
popular”. Neste trabalho trataremos especificamente do Fandango relacionado à
cultura caiçara, que pode ser localizada territorialmente na extensão litoral sul e
sudeste do Brasil.

A prática do Fandango está associada aos mutirões ou pixiruns de trabalho,


pautados pela ajuda mútua na preparação da terra para o plantio do roçado, na
varação de canoa e em outras atividades que exigem empreendimento coletivo. Em
geral, o beneficiário do mutirão é quem oferece, após o dia de trabalho, um baile de
Fandango do qual todos participam tocando e dançando, além de farta comida,
preparada coletivamente pelas mulheres. O Fandango articula-se ainda junto ao
universo de festas religiosas, ao Carnaval ou ao simples divertimento. Há algumas
décadas, tornou-se comum na região a formação de grupos relativamente fixos de
tocadores e dançadores, que se apresentam em festas, bailes e palcos e sobre os quais
há registros desde a década de 1960, sob forte estímulo de folcloristas do Paraná,
especialmente em Morretes e Paranaguá. Além disto, o Fandango está inserido em
uma rede de iniciativas de caráter sociocultural que reformulam processos de
aprendizado do Fandango em oficinas, cursos e atividades vivenciais.

Podemos descrever sumariamente o Fandango como uma expressão cultural


que envolve duas dimensões articuladas: a música e a dança. Ainda que a música
tenha autonomia em relação à dança – é possível apenas tocar e ouvir o Fandango –
ambas demandam conhecimento e apuro técnicos igualmente complexos. A
variabilidade de formas de tocar e dançar é organizada a partir de marcas, também
conhecidas como modas. As marcas são agrupadas pelos fandangueiros a partir de
dois grandes grupos: os bailados ou valseados e os batidos ou rufados. O folclorista


 Agradeço pelos diálogos estabelecidos ao longo dos anos e pelas contribuições dos amigos e
parceiros de trabalho Alexandre Pimentel, Edmundo Pereira, Daniella Gramani, Dauro Marcos do
Prado, Rogério Gulin e Oswaldo Rios; e também aos fandangueiros que nos receberam em suas casas. 

1
Inami Custódio Pinto identifica ainda um terceiro grupo mencionado por
fandangueiros de Paranaguá, que, segundo ele, são chamadas de rodas passadas
(Pinto, 2003, p.58). O primeiro grupo representa o conjunto de músicas a serem
dançadas em pares reunidos pelo salão; o segundo envolve coreografias mais
complexas, em que os pares executam rodopios entremeados pelo marcante sapateado
dos tamancos de madeira utilizados pelos homens; e o terceiro se refere a rodas mais
soltas, em que círculos masculino e o feminino formam trançados em sentidos
opostos.

A música é executada principalmente com instrumentos artesanais, feitos por


construtores que são respeitados e admirados pelos tocadores. Instrumentos de
determinados construtores são verdadeiramente almejados, pois atribui-se a eles uma
possibilidade de tocar melhor, de fazer um som mais potente. A viola branca ou de
Fandango é construída a partir da caixeta, madeira bastante maleável, seguindo
processos diversos na região. Pode ser montada por partes, utilizando-se uma forma,
ou esculpida a partir de uma peça única de madeira, em técnica conhecida como
cavucada, semelhante à viola de cocho encontrada no Mato Grosso e no Mato Grosso
do Sul. No Fandango, os violeiros se apresentam em pares e, assim como seus
instrumentos, fazem a primeira e a segunda voz. A rabeca acompanha a dupla, com
maior liberdade na execução de solos. Suas técnicas de fabricação são semelhantes às
da viola. Em algumas localidades apresenta três cordas e, em outras quatro, marcando
diferenças significativas de execução de acordo com a região e a tradição em que se
insere. Os demais instrumentos utilizados são o adufo, que se parece com um
pandeiro, o machete, que lembra o cavaquinho e hoje é pouco usado, além de outros
instrumentos de fabricação industrial que já algumas décadas vem sendo inseridos na
formação musical do fandango.
O tamanco também pode ser considerado um instrumento, porém sua presença
depende da execução da dança, sendo usado apenas por homens nas modas batidas ou
rufadas para marcar intensamente o ritmo. Podemos, desta forma, pensar o tamanco
como um elemento mediador entre a música e a dança, cuja ação simboliza a
completude e a força do Fandango2. Sua confecção é também diversificada. A base, ou
sola, é feita sempre de madeira rígida, como canela ou laranjeira, presa ao pé com

Agradeço pela contribuição de Luzimar Pereira, que destacou este aspecto em seus comentários sobre
a apresentação deste trabalho na mesa Visualidades e Performances Rituais, do “Encontros de
Pesquisa”, realizado no IFCS/UFRJ, em 2011.

2
couro que recobre os dedos ou por uma tira de borracha. As palmas, marcadas pelos
dançadores durante os batidos, intercaladas ao rufar dos tamancos, também têm
importante efeito visual e percussivo, intensificando o ritmo.
O tamanqueado pede um assoalho de madeira para possa ser produzido um
som forte durante a dança. Este piso é facilmente encontrado já que a madeira é
empregada na construção de casas inteiras nesta região. Para que se obtenha maior
conforto térmico, os assoalhos destas construções são suspensos cerca de um metro do
chão. Esta distância do solo permite também um resultado acústico ainda mais potente
ao rufar do tamanco. Quando o Fandango é apresentado em palcos ou programações
festivas costuma-se montar um tablado de madeira para os dançadores.
Cavalcanti (2001; 2002; 2005) aponta para a heterogeneidade presente dentro
de um mesmo processo cultural tido como popular, ampliando o campo para
apreensão de diferentes experiências e sentidos vividos e elaborados pelos atores
sociais. A antropóloga Luciana Carvalho, ao analisar a complexidade do universo do
bumba-meu-boi maranhense, reconhece que este constitui um “verdadeiro sistema ou
idioma cultural no Maranhão, capaz de organizar falas, ações, pensamentos e relações
não só entre os boieiros, mas também na sociedade mais ampla” (Carvalho, 2011,
p.74). Acreditamos que, com escala, nuances e densidades distintas, podemos pensar
de forma equivalente, não em relação ao Fandango estritamente, mas sim ao conjunto
de expressões culturais no qual se insere e que de certa forma é organizador de um
certo modo de vida de diversas comunidades que chamaremos aqui de caiçaras3.


 A categoria caiçara reúne populações de um território mais abrangente do que me refiro ao tratar do
Fandango, englobando boa parte do litoral sul e sudeste do pais. Segundo Diegues e Arruda (2001),
“entende-se por caiçaras aquelas comunidades formadas pela mescla étnico-cultural de indígenas, de
colonizadores portugueses e, em menor grau, de escravos africanos. Os caiçaras têm uma forma de vida
baseada em atividades de agricultura itinerante, de pequena pesca, do extrativismo vegetal e do
artesanato. Essa cultura se desenvolveu principalmente nas áreas costeiras dos atuais estados do Rio de
Janeiro, São Paulo, Paraná e norte de Santa Catarina.”. Podemos perceber que esta categoria carrega
consigo uma série de questões problemáticas que oscilam entre a ideia de uma identidade miscigenada
e uma essencialização exacerbada. Contudo, caiçara, durante muitas décadas, foi palavra empregada
de forma pejorativa, como sinônimo de “gente pobre e preguiçosa, pouco afeita ao trabalho”, definição
que muitos dicionários revalidaram. Por outro lado, mais recentemente, a partir da década de 1980, o
termo vendo sendo reelaborado no bojo dos processos de luta por reconhecimento de direitos sociais,
principalmente territoriais, de muitos núcleos comunitários desta região. Segundo Pimentel (2010,
p.67), “importantes fatores dessa re-significação caiçara – em nosso entendimento como resultado de
um processo de identificação construído nas lutas pelo território e pela afirmação de determinados
modos de viver, pensar e agir – são as lutas pela criação de unidades de uso sustentável (como a
Reserva Extrativista do Mandira, em Cananéia, cujo exemplo positivo, incentiva a criação de outras
áreas semelhantes nos territórios caiçaras), pela reclassificação de unidades de uso restrito como de uso
sustentável (a luta dos moradores da Juréia, por exemplo) e a articulação das populações caiçaras com
outros sujeitos políticos, que entraram em cena nessas regiões (núcleos e institutos de pesquisa
vinculados à universidades, associações culturais e ambientais), representando importantes alianças e

3
Eis então o enfoque deste primeiro exercício de pensar antropológico: iniciar
um caminho de possibilidades de análise dos significados da dança no Fandango.
Articularei reflexões a partir de dois contextos distintos em que o Fandango se
apresenta, em situações mais “tradicionais” como bailes, e nos grupos fixos de
tocadores e dançadores, que pelo menos desde a década de 1960 tem se tornando
comuns na região. Destaco que esta é uma organização analítica proposta no âmbito
deste estudo, pois no contexto etnográfico, emerge mais fortemente apenas a categoria
nativa de Fandango de sítio ou de mutirão como fator de distinção de todas estas
variações do Fandango praticado atualmente. Esta categoria, especialmente dentre os
mais velhos, remete a um tempo em que o Fandango era dotado de qualidades
inalcançáveis nestes novos contextos, em falas sempre recheadas de nostalgia e
saudade daquele tempo.
Nossa perspectiva de análise corrobora com as propostas dialógicas
explicitadas por Blacking (1984) e Cavalcanti (2002), que consideram fundamental
em um trabalho etnográfico, para além da observação, o acesso aos significados
atribuídos à dança por meio da escuta e do entendimento das categorias nativas. É
esperado que um antropólogo se permita um certo grau de autonomia interpretativa
que lhe assegure sua posição analítica, e não meramente descritiva, em um processo
de pesquisa, contudo, uma prática etnográfica dialógica nos parece um componente
essencial à construção teórica. Neste aspecto, concordamos com Blacking (1984) ao
marcar sua posição: os pontos de partida são a observação apurada e o diálogo com
aqueles que dançam. Deve-se indagar os dançarinos sobre o que eles estão fazendo e
refletir sobre estes significados atribuídos.4
Neste percurso de contato inicial com uma bibliografia de Antropologia da
Dança, o antropólogo John Blacking ofereceu um argumento convidativo e
reconfortante: um antropólogo não precisa saber dançar para proceder uma análise

contribuindo para um debate teórico e com ações concretas na luta por direitos.” Em reconhecimento a
este histórico de lutas e, ao mesmo tempo, entendendo que cada vez mais o termo vem encontrando
acolhimento dentre estas comunidades, assumiremos aqui a adoção da categoria caiçara para nos
referirmos ao universo socioeconômico e cultural mais amplo ao qual o Fandango está relacionado.
Como nos ensina Weber, esta categoria pode também ser entendida como um tipo ideal, uma
ferramenta metodológica que nos ajude a organizar a complexidade do fluxo da vida.

 Cabe dizer, entretanto, que os dados etnográficos sobre o Fandango que utilizaremos não foram
produzidos até agora a partir desta perspectiva mais aprofundada de compreensão da dança e, portanto,
ainda poderão ser mais bem explorados futuramente em um trabalho de campo a ser desenvolvido
especificamente no percurso de mestrado.


4
antropológica da dança. A Antropologia vem justamente reivindicando e construindo
sua autonomia metodológica e analítica em relação aos significados das formas
expressivas. No artigo Dance as cultural system and human capability: an
anthropological perspective, Blacking (1984) defende que qualquer pessoa está
habilitada a expressar um julgamento sobre arte, uma vez que a capacidade artística é
entendida por ele como inata ao ser humano. Em suas palavras: “assim como a cultura
não nos faz, mas nós fazemos a cultura, a experiência em arte não é uma condição
necessária para ser artista: nós concedemos o sentido artístico do mundo pelo
exercício de nossas capacidades artísticas inatas” (Blacking, 1984). Sob esta ótica, ele
procura desconstruir alguns questionamentos em torno da autoridade ou direito de um
antropólogo tomar a dança como campo de investigação.
O argumento, entretanto, definitivamente instigante e arrebatador do meu
recente interesse por este campo analítico foi apresentado por Lonsdale (1993), que
chama a atenção para a força simbólica da dança, equiparando-a em importância a
outros espaços mais consagrados de articulação social. Em Dance and Ritual Play in
Greek Religion, Lonsdale nos conduz a uma dimensão pouco explorada dentre os
estudos sobre a Grécia Antiga, destacando a participação da dança na conformação da
polis. Fazendo uso de fontes históricas e culturais diversas – e compreendendo os
limites e possibilidades de cada uma – nos apresenta ao universo dos festivais de
dança, que tinham valiosos significados para as clássicas cidades gregas fundadoras
da ideia de democracia. Londsdale ressalta que funcionamento da polis articula
múltiplas dimensões da atividade humana, o que dialoga inclusive com a fértil
categoria de fato total de Mauss (2003). A dimensão cultural tinha ali um caráter tão
crucial no reforço de vínculos e sentimentos comuns de pertencimento entre os
cidadãos, quanto o espaço político como ordenador da vida social grega.
A Antropologia da Dança procura desvelar e categorizar este lugar de
importância da dança como força ativa na sociedade, oferecendo-nos o desafio de
uma análise não reducionista da dimensão expressiva da experiência humana coletiva.
Dançar articula os sentidos sob a forma de uma linguagem da qual a unidade mínima
é o gesto. Por meio da gestualidade é possível figurar sentimentos e, ao mesmo
tempo, enriquecer a experiência sensível e o conhecimento do mundo, expresso sob a
forma não verbal.
O gesto é organizador de nossa presença no mundo. Os sentidos do gesto são
relativamente fixos em um dado contexto social, mas não podem ser universalizados.

5
A unidade do gesto não só fundamenta o movimento, como é o próprio instrumento
mínimo sem o qual não podemos sequer estabelecer um sistema de comunicação.
Segundo Schmitt (2001), se há algo de universal na compreensão do humano, esta
comunhão se encontra na linguagem gestual. A própria ação de pronunciar uma
palavra é um gesto. Gesto que foi ganhando um lugar privilegiado na trajetória de
afirmação da racionalidade ocidental, sendo por vezes confundido a capacidade
humana de se comunicar.

Susanne Langer apresenta o gesto como um movimento vital que é


configurado em um sistema de símbolos. Segundo a autora “todo ser que faz gestos
naturais é um centro de força vital, e seus movimentos expressivos são vistos por
outros como sinais de sua volição” (Langer, 2003, p.183). É preciso entretanto
distinguir o gesto da vida cotidiana, do gesto na dança. Especialmente quando
falamos deste gestual, devemos ter em mente que não cabem ideias como
espontaneidade e expressão de uma emotividade real. Dançar é um lugar de
organização ainda mais intensa do movimento, a partir da escolha e ordenação de
gestos para a produção de sentidos que não são facilmente acessíveis pela razão. Para
Langer, o gesto da dança é dotado de um poder virtual:
Ao observar uma dança coletiva (...) não se vê pessoas correndo
de um lado para o outro, vê-se dança sendo impulsionada nesta direção,
puxada naquela, reunindo-se aqui, espalhando-se ali – fugindo,
repousando, erguendo-se, e assim em diante; e todo movimento parece
emergir de poderes situados além dos executantes. (Langer, 2003, p.184)

A Antropologia da Dança reflete também sobre esta impossibilidade de


universalizar a dança como padrão comportamental. Trata-se de uma categoria
analítica que só pode ser interpretada dentro de um determinado contexto, pois a
simbolização do gesto é um processo eminentemente cultural. Segundo Blacking, a
Antropologia deve se interessar especialmente pela “natureza não verbal dos símbolos
na dança e sua eficácia na ação social” (Blacking, 1984). Os padrões de movimento
que conformam a estrutura da dança configuram um sistema de símbolos não verbais,
que só podem ser entendidos a partir de significados que lhes são atribuídos em seus
diferentes contextos sociais. Neste sentido, o autor aponta inclusive para os riscos de
uma abordagem excessivamente etnocêntrica quando, ao lançar seu interesse sobre
uma dança de outra cultura, um dançarino ou alguém habilitado em dança toma a sua
própria experiência e o significado dos padrões de movimento em seu contexto como
referência para o desenvolvimento de sua análise.

6
Blacking (1984) chama também para atenção para este aspecto, em princípio
paradoxal, da análise antropológica, que prescinde do gesto e se estrutura por meio de
uma linguagem verbal para acessar os sentidos de um processo de simbolização
eminentemente não verbal. Sem dúvida, trata-se de um caminho analítico difícil de ser
percorrido e sempre sujeito a elocubrações equivocadas.
Cabe também destacar que não podemos reduzir a experiência de dançar à
dimensão corporal do movimento. Langer (2003) ressalta que a dança é também uma
experiência que engloba uma dimensão visual, por vezes não tão clara no estudo da
dança fora dos palcos.
(...) a dança é dirigida essencialmente à visão. Não sei de nenhum
culto que pratique a dança na escuridão total. (...) A solução desta
dificuldade em perceber-se que a abstração básica é o gesto virtual, e que
este gesto é tanto um fenômeno visível quanto um fenômeno muscular,
isto é, que pode ser visto ou sentido. (Langer, 2003, p. 205)

Esta dimensão visual ilumina as disputas e rivalidades que são comuns em


contextos de dança. Na arena da dança, indivíduos se reúnem de forma vitalizada em
intensa ação coletiva. Por meio desta vitalidade orgânica cria-se uma ilusão de
totalidade, que, entretanto não elimina conflitos, ao contrário, estes podem se tornar
ainda mais explícitos na competitividade pela demonstração de uma melhor
performance corporal.
Lonsdale (1993), na introdução de Ritual Play in Greek Religion, apresenta de
forma sumária uma organização dos principais temas que emergem dos estudos
etnográficos de dança, especialmente a partir da coletânea de artigos organizada por
Paul Spencer em Society and the dance - the Social anthropology of process and
performance (1985), destacando três contribuições principais: a necessidade de
analisar a dança a partir de contextos culturais; a clareza de não se pode compreender
a dança meramente a partir das categorias e conceitos ocidentais; e a possibilidade de
vislumbrar “um número finito de temas recorrentes que emergem dos estudos sobre a
complexidade da dança” (Londsdale, 1993, p. 19), que, de um modo geral, ressaltam
experiências de intensa carga emocional, ativadoras de processos agregadores,
rupturas e transfigurações, ou ainda de caráter mais ordenador da vida social.
Voltando nossa atenção ao contexto do Fandango, as situações que tratarei
aqui como “tradicionais” são as dos bailes, domingueiras e mutirões. Ao longos dos
anos presenciei e participei de várias destas situações, porém nunca de um mutirão,
apesar de ter tido notícia da realização de alguns poucos. A redução dos mutirões na

7
região pode ser associada às drásticas mudanças sociais e econômicas ocorridas nas
últimas décadas que, seja pela especulação de terras ou por processos de
desapropriação e restrição ao uso de recursos naturais para fins de conservação
ambiental, levaram grande parte dos moradores de áreas rurais, ribeirinhas ou
praianas a migrar para a periferia das áreas urbanas, que pouco a pouco foram sendo
circundadas por bairros caiçaras.
Esta região é ser facilmente reconhecida como a maior área verde nos mapas
ambientais que indicam a Mata Atlântica remanescente do Brasil. As comunidades
que persistem nestas várias unidades de conservação formalizadas a partir da década
de 1980, convivem com a regulação do acesso aos recursos naturais. Frequentemente
são fiscalizadas pelos órgãos de controle ambiental, que impedem os roçados as
colheitas, justamente os principais motivos que articulam a organização de um
mutirão. Contudo, os mutirões têm um lugar de importância assegurado na memória
dos fandangueiros, jovens ou velhos, que viveram o tempo dos sítios. O trabalho
coletivo, seguido de Fandango, era um momento fundamental de encontro na vida
social. Elegemos aqui uma fala do fandangueiro Leonildo Pereira, de Guaraqueçaba,
que traduz um pouco da força emotiva que é acionada nestes relatos:
Sabe qual era o pagamento? Era que você trabalhava o dia inteiro
na cavação, você suava, você quase arrebentava de trabalhar, comia e
bebia bem certo no dia. À noite você tinha que dançar, você tinha que
trabalhar mais porque você tinha que pegar um tamanco de pau e bater até
oito horas do outro dia. Esse era o seu pagamento: o divertimento. O
pagamento era o seu divertimento. Você vai lá dançar, vai dançar com
todo mundo. E anoitecia, e amanhecia, ia para a casa contente descansar.
Esse é o contentamento do povo, uma coisa de origem que eles traziam de
família, a criar amor naquela dança. (Leonildo Pereira, em entrevista
gravada em 2005 pela equipe do Museu Vivo do Fandango. Apud: Corrêa,
Gramani e Pimentel, 2006, p.28)

Nestas situações “tradicionais”, a formação dos pares na dança se organiza de


maneira bastante fluida. O espaço central de um salão, reservado à dança, esvazia-se
rapidamente ao fim de cada marca, que envolve uma breve pausa instrumental. Em
seguida, quando uma nova marca se inicia, o salão volta a ser preenchido de forma
gradual por novos pares que se formam, em uma dinâmica de constante
recombinação. Os valsados ou bailados, pela facilidade dos passos, mobilizam um
maior número de dançadores. Em alguns lugares estas marcas são chamadas também
de limpa banco, já que ninguém fica sentado. A maior parte dos bailes corriqueiros
que hoje são realizados se limitam à execução das marcas valsadas. Muitos dizem que

8
é difícil agregar nestes contextos urbanos um grupo significativo de fandangueiros
que reconheçam o mesmo padrão gestual na execução dos batidos.
Percebemos que há uma grande variabilidade na forma de dançar uma mesma
marca de acordo com a comunidade de origem. Alguns fandangueiros relatam que, ao
participarem na juventude de bailes de comunidades mais distantes, se deparavam
com a impossibilidade de dançar nos momentos em que eram executadas as marcas
batidas. Este ponto é interessante, pois justamente deflagra o quanto estes ambientes
que chamamos de “tradicionais”, quando tratamos do universo da cultura popular, são
justamente os que envolvem maior variabilidade, frutificada em um processo
constante de reelaboração criativa.
Por outro lado, esta variabilidade não inviabiliza que se reconheça um
compartilhamento amplo de padrões de movimento muito similares. Blacking propõe
a categoria de grupos de corpo (body groups) para reunir analiticamente “pessoas que
compartilham uma linguagem comum do corpo, com ideais em comum, posturas,
gestos e padrões de comunicação não verbal” (Blacking, 1984, pg. 10), ou seja, que
pertencem a um mesmo sistema primário de modelação/modelagem. É interessante
perceber, a partir do contexto do Fandango que, na medida em que se amplia a
convivência e a interação entre os núcleos que compõem um grupo de corpo
expandido, as linguagens corporais tendem a se aproximar. Em Paranaguá,
contrariando os relatos registrados em outros municípios, fandangueiros de grupos
distintos e de todas as idades, nascidos nos mais diversos sítios ou mesmo na Ilha de
Valadares (onde quase todos os fandangueiros deste município residem atualmente),
reúnem-se nos bailes promovidos pela Fundação Municipal de Cultura e a Associação
de Cultura Popular Mandicuéra, e formam grandes rodas de batido que impressionam
os sentidos. Acredito que é possível atribuir esta aproximação dos padrões gestuais às
permutas intensificadas pelas iniciativas de fomento e articulação cultural que se
configuraram de forma mais ativa e constante neste município.
O Fandango pode ser aproximado às danças de aspecto mais ordenador. Seu
movimento é contido e regrado, com marcações bem determinadas. Contudo, dança-
se até a exaustão. Um baile de fandango pode varar a noite, sob festivos gritos de
“Amanhece!”5. Durante uma noite, a interação entre os participantes é muito intensa.
Os pares se agregam e desfazem a cada nova marca, sendo possível que todos os


Bordão criado pelo fandangueiro Leonildo Pereira, de Guaraqueçaba, e amplamente difundido.

9
cavaleiros dancem com todas as damas. É raro uma mulher tirar um homem para
dançar, apesar de já ter presenciado e até mesmo protagonizado algumas situações
como esta. Esta permutabilidade tem seu aspecto revigorante no ambiente social. Por
mais formal que seja a aproximação – no Fandango o arrocho do Forró, por exemplo,
é impensável – há sempre uma intimidade que se estabelece no casamento rítmico dos
pares. Como se dançando coletivamente os indivíduos soltassem algumas amarras do
convívio cotidiano para se envolverem em uma trama interativa que reconfigura os
elos sociais.
Schmitt (2001) ao analisar a importância do gesto na sociedade medieval,
aborda a ideia do gesto como elemento dotado de uma permanência histórica, que
insere em sistemas culturais de longa duração e, ao mesmo tempo, é constantemente
ressignificado ao longo destes extensos percursos temporais. Este é um aspecto muito
interessante para pensar a dança do Fandango, longamente discutido especialmente
em trabalhos historiográficos que problematizam sua origem ibérica. É inegável que
em alguns movimentos podemos vislumbrar as valsas dos tempos da Corte. Por outro
lado, há registros históricos do Fandango como dança de caráter pernicioso. Pereira
(1996) e Leandro (2008) registram o Fandango do litoral sulista como baile sensual,
alvo de severas proibições nos séculos XVIII e XIX, que durante longos períodos
obrigaram os organizadores dos bailes a pedirem licença prévia às autoridades locais
para a realização das festas.
O fato é que na Europa a manifestação já carregava um
significado pejorativo. Dizia-se, por exemplo, que a mulher nada recusaria
ao seu parceiro depois de dançar o fandango. O primeiro Dicionário da
Língua Portuguesa, de Moraes e Silva, incorpora em 1813 esta visão
negativa, definindo a prática como “certa dança alegre, e algo tanto
desonesta”. (Leandro, 2008, s/p.)

Esta característica voluptuosamente sensual se perdeu, entretanto, no tempo.


Os fandangueiros com os quais convivi nos últimos dez anos não se referem jamais ao
Fandango desta forma e tão pouco aos bailes como espaços de confusão e brigas.
Histórias desta natureza são de caráter pontual e em sua maioria tem desfechos que
enaltecem a prevalência da moral e dos bons costumes. Os arruaceiros eram expulsos
dos bailes pelos próprios convivas. Os relatos sobre os Fandangos de sítio sempre
evocam a dimensão de respeito e a importância da boa conduta social para um
convívio harmonioso. O respeito entre os elementos de um par na dança é notório e
confere uma rara sensação de conforto que faz com que as damas se sintam muito à

10
vontade para dançar com qualquer cavalheiro, seguras de que dificilmente passarão
pelo constrangimento de assédios exacerbados comuns a tantos outros ambientes de
dança. A sensualidade do Fandango é algo muito sutil.
Uma dimensão enriquecedora é pensar estes pares, sempre presentes em todas
as marcas, a partir do entendimento da díade como unidade mínima dos processos
associativos, que Simmel (1950) propõe ao formular sobre as conseqüências
sociológicas de certos números específicos. Simmel afirma que a relação entre dois
elementos é a formação sociológica mais simples. Segundo o autor “as relações a dois
se caracterizam por não formar unidades superiores aos próprios indivíduos, ao passo
que quanto mais extensa uma comunidade mais facilmente se formará uma unidade
objetiva acima dos indivíduos.” (Simmel, 1950, p.127). Evidentemente, as díades
como unidades associativas para a formação da dança do Fandango só fazem sentido
se pensadas dentro desta comunidade mais ampla, que depende dos pares para
preencher o salão e formar a roda. Desta forma, podemos avançar com o autor nesta
compreensão da díade em ação dentro contextos sociais mais numerosos: “a tensão
peculiar entre elementos dualísticos em uma grande estrutura garante a função status
quo de uma díade. (...) A fusão em unidade poderia facilmente resultar na
predominância de um indivíduo, e na expansão a uma pluralidade, em um grupo
oligárquico fechado.” (idem, p.140). Vislumbramos desta forma este aspecto
ambíguo dos pares, que apontam simultaneamente para a permutabilidade e para a
estabilidade equalizadora de relações, que no contexto do Fandango contribuem para
a organização dos laços comunitários.
Na execução das marcas batidas é acrescentada à experiência dos participantes
o desafio pessoal da qualidade da performance. Não podemos perder de vista que
dançar é uma técnica do corpo (Mauss, 2003). A boa performance é aquela em que a
técnica já foi tão intensamente corporificada a ponto de simular uma naturalidade aos
olhos de quem assiste. O conhecimento técnico da dança precisa estar acima de tudo
no próprio corpo. O bom fandangueiro executa com segurança cada gesto da marca da
vez para dançar com fluidez.
Nos batidos acentua-se também o caráter agonístico (Mauss, 2003) do
Fandango. A mesma força que mobiliza a autosatisfação de uma performance precisa,
volta-se com olhos atentos ao deslize alheio. Segundo relatos de alguns
fandangueiros, nos bailes de mutirão errar um passo, ou cometer um balaio, era tido
como inaceitável, pois uma vez que todas as crianças se criavam entre fandangueiros

11
para somente se arriscar na dança na juventude mais avançada, o domínio técnico era
sempre esperado. Cometer um balaio poderia ser motivo para a completa
desmoralização do participante, fazendo-o muitas vezes abandonar o baile. O erro,
entretanto, só é problemático durante a execução dos batidos. Em um bailado passará
sempre desapercebido. Isto se deve primeiramente ao fato das marcas batidas serem
executadas em um fluxo mais preciso. Este fluxo da performance é destacado por
Cavalcanti como articulador de uma percepção visual que, “ao implicar uma certa
relação entre tempo e espaço, traz informações cognitivas importantes” (Cavalcanti,
2002, p.52). Durante a execução do batido se estabelece uma divisão momentânea
entre os participantes de um baile de Fandango. Quem não entra na roda para dançar,
torna-se espectador da dança, uma vez que este fluxo tem grande apelo visual. Sua
interrupção por falha de um dos elementos que o compõe, reduz sua força expressiva,
impactando negativamente o sentido visual, e também o auditivo, quando o erro
também promove o descompasso do rufado dos tamancos.
A intensidade e a precisão rítmica de um batido é pautada pela música e pelo
domínio destes padrões de movimento. Nos batidos, entra na roda figura de um
marcador ou mestre, que assume a liderança do tamanqueado para que os outros
homens persigam seus movimentos, criando um resultado sonoro mais preciso. Basta
dominar os movimentos da marca para ser seu puxador, o que permite que muitos
dançadores possam ser momentaneamente líderes durante um mesmo baile. Evans-
Pritchard (1928) ressalta a função da liderança em um artigo sobre a dança da cerveja
dos Azande: “a dança, como quaisquer atividades coletivas, gera necessariamente
liderança, que tem como função organizar a atividade” (p.13) No Fandango, esta
função normalmente é assumida pelos fandangueiros mais velhos.
Alguns estudos etnográficos sobre dança tratam destas diferentes
sociabilidades experimentadas por subgrupos etários que compartilham de um mesmo
ambiente cultural. Ainda em seu artigo sobre a dança entre os Azande, Evans-
Pritchard (1928) distingue níveis de interesse pela dança conforme à idade,
ressaltando que para os jovens “é um meio de flertar”, e segue afirmando: “Para eles,
como na verdade para todos que vão à dança, é a própria dança a principal atração.
Mas os adultos parecem menos inclinados a serem atraídos pelas distrações e dedicam
toda a sua atenção ao ritmo da dança. Os idosos geralmente não tomam parte na
dança.” (Evans-Pritchard, 1928, p.13) É preciso, entretanto, destacar que no Fandango
percebemos atualmente o envolvimento dos idosos equivalente ao dos adultos

12
descritos por Evans-Pritchard, podendo ainda recuperar o interesse pelo flerte, com
acontece no histórico Clube Sandália de Prata, em Iguape, que já reuniu muitos
viúvos e descasados.
Midletton (1985) aprofunda-se sobre estas apreensões distintas de sentido
entre grupos de idade e parentesco, construindo sua análise da dança entre os Lugbara
em diálogo com a percepção de que se trata de um momento de transição para a
reestruturação das categorias sociais. Momento que enfatiza um caráter propositivo de
comportamentos socialmente esperados ou recusados. Para ele, as danças ocupam um
lugar de organização social, que o verbal não daria conta, permitindo níveis de
elaboração distintos sobre as próprias questões conflitantes e paradoxais que são
estruturantes de uma sociedade. Os Fandangos feitos em situações “tradicionais” são
aqueles que englobam de forma mais abrangente esta totalidade social. Crianças,
jovens, adultos e velhos entram coletivamente em cena, ocupando lugares distintos e
compreendendo de maneira diversa os sentidos de sua participação. Pensar sobre estas
diferenças pode ser muito rentável para os passos futuros de complexificação deste
campo, que agora ainda não tenho elementos suficientes para percorrer.
Levando nosso enfoque a estas outras maneiras de fazer o Fandango,
constituindo grupos relativamente fixos, perceberemos que estes agrupamentos etários
também assumirão lugares distintos. A formação de grupos pode ser associada à
aproximação de folcloristas com este campo que, a partir dos anos de 1960, começam
a atuar propositivamente para encontrar alternativas de continuidade que atendessem
aos anseios desta percepção nativa de que Fandango estaria “morrendo”. O primeiro
grupo de que se tem registro é de Manequinho da Viola, no município de Paranaguá,
constituído a partir de uma ativa parceria com Prof. Inami Custódio Pinto,
pesquisador do Fandango paranaense desde a década de 1950. Foi reunido em 1966,
envolvendo adultos e velhos que haviam migrado de núcleos comunitários, os
chamados sítios, para a Ilha de Valadares, um dos principais bairros populares de
Paranaguá. Na década de 1970, em Morretes, foi também organizado um grupo de
fandangueiros tradicionais, por incentivo da Profa. Helmosa Salomão Ritcher. Nos
anos de 1980 estas formações foram desfeitas e só temos informações de um grupo
formado na década de 1990, o Violas de Ouro de São Paulo Bagre, em Cananéia, este

13
estritamente musical, sem participação de dançadores.6 Muitos fandangueiros
apontam as décadas de 1980 e 1990 como períodos de intensas mudanças na região, e
também de redução da vitalidade do Fandango. A formação de grupos foi, entretanto,
intensificada na primeira década do século XX, apresentando diferenças marcantes
entre os municípios do estado do Paraná e de São Paulo.
No Paraná, a dança continuou sendo uma dimensão sempre presente, contudo,
os novos grupos foram organizados em oficinas voltadas essencialmente para jovens,
em sua maioria filhos e netos de fandangueiros. A execução musical e a marcação do
Fandango continuaram como funções dos adultos e velhos, enquanto os jovens
assumiram o lugar de dançadores. Estas oficinas tinham um propósito formador de
uma conduta moral, reaproximando os jovens de uma convivência comunitária
permeada pelo respeito e um espírito solidário.
Neste ponto é interessante aqui dialogar com o argumento que Lonsdale
(1993) recupera do modelo pedagógico de Platão – a paideia –, como uma
antecipação do paradigma antropológico de interpretação da dança. Em Platão dança
aparece como diversão comunal – ao dançar os participantes se reafirmam como
membros de uma mesma comunidade. Por meio de uma aprendizagem prazerosa, as
virtudes se formam na alma humana, que, segundo a concepção platônica, deveria
anteceder o amadurecimento da razão. Para Platão, não seria qualquer dança que
funcionaria como instrumento de socialização. Haveria um conjunto rígido de
formalidades, calcadas na tradição, a serem determinadas e cumpridas. Sua
preocupação central voltava-se para o potencial de agregar e reunir a coletividade em
torno de um comportamento esperado, que concedesse longevidade e estabilidade às
regras sociais.
O processo de formação destes novos grupos introduz muitas novidades na
cena do Fandango, como a adoção de uma indumentária específica, um vestuário
comum a homens e mulheres. As jovens dançadoras do Paraná passam a usar roupas
de tecidos exuberantes que pouco lembram aquela melhor roupa usada para um baile
de Fandango. Os vestidos das meninas assemelham-se aos das prendas gaúchas, com
saias rodadas, cores vibrantes, e estampados com flores. Grandes arranjos florais nos
cabelos e forte maquiagem também aparecem como regra geral. Para os puristas, este


Por influência dos contatos com outros grupos de Fandango, travados durantes o I e o II Encontro de
Fandango e Cultura Caiçara, o grupo Violas de Ouro tem procurado recuperar o batido, a seu modo,
nas festas realizadas nas comunidades de São Paulo Bagre e Agrossolar, em Cananéia.

14
novo visual poderia ser entendido como deflagador de um processo condenável de
espetacularização da cultura popular. Contudo, como já nos alertou Langer (2003), a
dança guarda em si uma dimensão espetacular, pois é sempre uma performance a ser
vista. Nestes espetáculos de Fandango, as figuras femininas exacerbam a dimensão
visual da dança, acentuando o contraste com o masculino, sempre responsável pela
dimensão auditiva na conduta instrumental. Rostos sérios, com olhares sempre
voltados para o chão ou as paredes, predominantes nas figuras femininas do Fandango
“tradicional”, dão lugar a sorrisos vermelhos e olhares que convidam os espectadores
a apreciar a graciosidade de suas condutoras. Esta postura exuberante das jovens
dançadoras tem influenciado, mais recentemente, adultas e velhas dançadoras dos
grupos Família Pereira e Pés de Ouro, formados há poucos anos.
Em São Paulo, a reorganização do Fandango se deu de maneira diversa do
Paraná. A maior parte dos novos grupos, que reúnem indistintamente jovens, adultos e
velhos, é composta apenas por tocadores. Além do Violas de Ouro, o Caiçaras de
Cananéia, o Caiçaras do Acaraú, os Jovens Fandangueiros de Itacuruçá e a Família
Neves, são todos organizados por homens tocadores de instrumentos. A dança
continuou reservada a contextos mais “tradicionais”, presente nas comemorações
comunitárias das comunidades quilombolas rurais do Mandira e do Morro Seco, nas
festas caiçaras organizadas pela Associação Jovens da Juréia e nos bailes urbanos do
Clube Sandália de Prata. Os batidos, contudo, foram deixados de lado, e os tamancos
tornaram-se artigos raros, encontrados apenas no Morro Seco, em Iguape. Este
abandono do batido que acompanha a dissociação do Fandango dos ambientes de
trabalho comunitário, nos faz pensar numa possível relação de sua força sonora e
performática com a força dos mutirões de trabalho.
Este primeiro mergulho na tentativa de organizar, em diálogo com o campo
etnográfico, algumas categorias analíticas que emergem de um contato inicial com a
Antropologia da Dança, permitiu-me pensar em algumas questões de pesquisa que
poderei futuramente perseguir. Como, por exemplo, um possível contraponto entre a
função ordenadora da liderança do marcador e o aspecto equalizador de forças dos
pares como unidade estrutural básica da dança do Fandango.

15
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17
UNIRIO
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (Doutorado)

O palhaço de Folia de Reis e o diabo festivo na América Latina

ARESSA RIOS

Rio de Janeiro

2011
O palhaço de Folia de Reis e o diabo festivo na América Latina

Em 2003, quando iniciei minhas pesquisas a respeito do palhaço de Folia de


Reis, na cidade de Volta Redonda – RJ, estabeleci os primeiros contatos com esses
grupos de foliões andarilhos, devotos dos Santos Reis. Quando digo primeiros contatos,
refiro-me àqueles relacionados às pesquisas acadêmicas, pois foi a partir dessas
pesquisas que fui pouco a pouco reavivando as lembranças das experiências que vivi na
infância. Recordo-me de ainda pequena, ver passar pelas ruas de minha cidade – Volta
Redonda – RJ – estes grupos de andarilhos, com seus mascarados, que vinham
cruzando o caminho e assustando as crianças que viam pela frente. Eu era uma delas!
Era uma sensação de atração e repulsa, de uma vontade de chegar mais perto e o medo
que nos mantém distantes, ao ver o palhaço da Folia se aproximando, se aproximando,
se aproximando, chegando bem pertinho...e eu, sem entender o que me acontecia, sair
correndo...! Rindo e chorando, numa mistura de prazer e horror.
Essas vivências, amontoadas em vagas lembranças, foram paulatinamente sendo
restauradas e trazidas à tona, já dentro da academia. E foi buscando entender a
experiência do que senti na própria pele, que resolvi me aprofundar nesse misticismo
que o palhaço da Folia de Reis carrega consigo e que nos encanta. Esse encantamento
talvez seja a força motriz que une o sentimento e a razão num processo único em
relação à nossa escolha.
Sob essa ótica emocional, aliada à técnica, à pesquisa científica, prossegui
pesquisando. E desde então não parei mais! Aproximei-me dos foliões da Jornada de
Reis Estrela Moderna de Volta Redonda nas primeiras pesquisas em 2003 e sigo até
hoje acompanhando-os em suas andanças, tendo ao meu lado o grande amigo: Mestre
Luizinho, que me iniciou nos primeiros aprendizados sobre Folia.
Todo o trabalho e pesquisa desenvolvidos até hoje são uma espécie de
reencontro com o meu passado e com a minha origem, na tentativa de perceber o
conhecido com olhos de estranhamento, que é exatamente o que nos propõe Gilberto
Velho quando afirma que:
.
o conhecimento de situações ou indivíduos é construído a partir de um
sistema de interações culturais e historicamente definidos. Embora aceite a
idéia de que os repertórios humanos são limitados, suas combinações são
suficientemente variadas para criar surpresas e abrir abismos, por mais
familiares que indivíduos e situações possam parecer. (1978:42)
Dentro dessa perspectiva e desta temática, desenvolvi minha dissertação de
mestrado de título “A performance do palhaço e da Folia de Reis no Vale do Paraíba:
jogo e ritual – a tradição em transformação”, defendida em 2009. A pesquisa
desenvolvida investigou e analisou a origem histórica da Folia de Reis, identificando
não só sua raiz cultural européia, mas também, ameríndia e africana, como fruto do
processo de miscigenação ocorrido no Brasil. Partindo desta análise, fez-se um
levantamento histórico da formação cultural do Vale do Paraíba e da cidade de Volta
Redonda, buscando compreender os fatores que conduziram ao surgimento das Folias
de Reis na cidade e da força dessa manifestação da cultura popular na região.
A partir da pesquisa de campo realizada junto à Jornada de Reis Estrela Moderna
de Volta Redonda, foi feita uma descrição e análise dos aspectos estruturais e
ritualísticos dessa manifestação da cultura popular brasileira, que anualmente sai às
ruas, no período de 24 de dezembro a 6 de janeiro (no estado do Rio de Janeiro até 20
de janeiro, dia de São Sebastião) e através de sua jornada, cumpre a missão de reviver a
passagem bíblica que narra a viagem e adoração dos três Reis Magos ao Menino Jesus
nascido. Com foco na figura do palhaço, personagem mascarado de aspecto cômico e
grotesco, analisou-se os elementos performáticos presentes neste brincante, tratado na
dissertação, como um ser liminar, identificando os aspectos de jogo e ritual presentes
em sua performance. Integrando palhaços e foliões num corpo ritual, analisou-se esse
corpo como uma unidade simbólica movida pela fé e devoção aos Santos Reis. A partir
da crise instaurada no núcleo do grupo, investigou-se seus fatores geradores, tanto
internos quanto externos, entendendo a Folia de Reis como uma manifestação que
reflete o estado das forças sociais. Neste sentido foi desenvolvida uma análise das
transformações sociais que afetam direta ou indiretamente o grupo e, neste contexto, o
papel exercido pelo poder público e suas políticas culturais, diagnosticando um estado
de descaso e ineficiência desses mecanismos, junto a uma tradição em permanente
transformação.
A partir dessa pesquisa desenvolvida ao longo do mestrado, surgiram uma série
de questões, algumas abordadas de forma breve e outras que não chegaram a ser
desenvolvidas na dissertação, pela necessidade de ater-me ao tema proposto no projeto e
pelo curto tempo para a pesquisa. Sendo assim, este ensaio é uma tentativa de trazer a
tona algumas das questões que surgiram como fruto de minha pesquisa de mestrado,
entre elas a investigação da ocorrência de festas similares a Folia de Reis brasileira em
países latino-americanos, como Peru e Colômbia, e a recorrente associação simbólica,
nesses festejos, do palhaço (e personagens equivalentes) com a figura do diabo.

O palhaço de Folia de Reis

Os palhaços, também chamados de “bastião”, “mascarado” ou “marugo 1” dentro


da Folia de Reis são, de acordo com o mestre Luizinho e outros tantos foliões, palhaços
e devotos, a representação dos soldados do rei Herodes, ou mesmo o próprio Herodes,
que conforme o relato popular e citados (os soldados) no Evangelho de Mateus,
perseguiram o Menino Jesus, encarnando os “traidores de Cristo” e por isso são
associados ao mal, ao negativo, à figura do diabo, demônio, ao “cão”, à Exu, à satanás
dentro da fé popular. É o elemento comumente tratado como profano dentro da Folia.
Dançam a chula, composta de dança e versos de tom satírico, vestem uma roupa feita,
em geral, de tecidos com grandes babados ou mesmo retalhos de tecidos, também
denominada farda, podendo vir acompanhada de capa; utilizam máscaras e carregam um
bastão, distinguindo-se por esses aspectos dos outros foliões.
Araújo descreve uma festa popular religiosa em que esta relação fica bem clara:

Havia a turma de meninos que representava os Santos Inocentes ou Mártires


de Marrocos, vinham manchados de tinha vermelha, para fazer as vezes de
sangue, e eram ladeados pelo Anjo da Guarda e por Lúcifer, também
chamado Rei Herodes pelo povo. (1996:75)

Nas palavras do palhaço Catapora, que foi quem iniciou o mestre Luizinho como
palhaço2, podemos perceber a leitura que é feita desse personagem pelos próprios
foliões, revelando um sincretismo entre o palhaço e elementos presentes em cultos afro-
brasileiros (FRADE, 1997), como Exu, e sua associação simbólica do palhaço com a
figura do diabo:

Quando os reis pediram pousada no palácio de Herodes, ele quis saber


porque eles estavam viajando, pra onde iam. Aí os Reis contaram que tinha
nascido o Rei dos reis. Herodes então queria matar esse Menino, com medo

1
Em Cascudo consta o vocábulo “malungo”, do qual se derivou a palavra “marungo”, que significa
companheiro, camarada e era utilizado pelos negros para chamar “aos companheiros de bordo ou viagem”
(2002:352). Este vocábulo, de origem africana, com a extinção do tráfico, foi perdendo sua função e
deixando de ser utilizado. Mas ainda é possível identificar seu uso no universo da capoeira.
2
Luizinho é mestre da Jornada de Reis Estrela Moderna de Volta Redonda, Folia pesquisada para o
desenvolvimento da dissertação de mestrado. Luizinho, antes de se tornar mestre de Folia, atuou por
muitos anos como palhaço, tento como um de seus mestres o palhaço Catapora.
dele ser rei dele também. Aí então mandou uns soldados dele acompanhar os
Reis e depois voltar pra dizer onde era o lugar. Assim foi: com a desculpa de
que o caminho era perigoso – naquele tempo já tinha ladrão –, mandou os
soldados dele. Mas os soldados quando viram o Menino, foram tocados por
Ele. E eles não voltaram pra contar. Se disfarçaram com outra farda, botaram
máscara e se soltaram no mundo. Herodes foi pro inferno depois que morreu.
Virou diabo. E o diabo não é Exu? Então é isso que nós fazemos, a parte dos
soldados de Exu. (apud FRADE, 1997:119)

Nesse sentido, Ligiéro fornece uma definição para Exu esclarecedora não só da
relação de associação simbólica do palhaço com Exu, mas principalmente, da relação
que é estabelecida entre o palhaço e a figura do diabo:

Exu é o mestre de cerimônias do “teatro das sanções espirituais” – a


encruzilhada. Cenário de trocas, mudanças, perdas, ganhos, confusões,
reencontros. A encruzilhada marca um ponto de encontro entre diferentes
mundos. Mundano e brincalhão, Exu assiste de camarote às idas e vindas da
vida humana, rindo-se de nós quando tropeçamos em nossos próprios
instintos básicos não domesticados, ou quando nos deixamos ludibriar por
nossas pequenezas diárias e sentimentos menores. [...] Não é de se admirar
que seja sincretizado com o Satã – o diabo.
Satã, a besta andrógina e cornuda, meio humana, meio animal, cuja imagem
hedionda era adorada nas orgiásticas missas negras da Idade Média, é uma
recriação de Pã e também uma representação do guardião do Umbral.
Presente nos mitos assustadores que envolvem a iniciação oculta, a criatura
bestial de olhar maldito e escarnecedor é quem monta guarda nos limites
entre o mundo inferior e o plano superior, onde a mente alcança a
consciência das verdades absolutas. (1998:91)

O palhaço, pela ambigüidade que guarda, por representar o guardião e protetor


da Folia nas encruzilhadas durante sua longa jornada e em ocasiões em que acontece o
encontro entre duas Folias, ao mesmo tempo em que representa o soldado de Herodes,
associado muitas vezes ao diabo, acaba por carregar consigo um aspecto de impureza.
Por isso o impedimento em relação ao ato de entrar em casas ou igrejas ou mesmo de
passar ou andar na frente da bandeira.
A recorrente associação simbólica do palhaço com a figura do diabo, foi um dos
pontos que ao longo da pesquisa, despertaram meu interesse e que foi possível
identificar não só nas Folias de Reis de diversos estados brasileiros, mas também nas
festas dedicadas aos Reis Magos em países latino-americanos como Colômbia e Peru,
nos quais pude investigar e constatar a ocorrência de manifestações da cultura popular
similares à Folia de Reis.
Em pesquisa de campo realizada no Peru no ano de 2008, pude constatar a
presença da tradição da Folia de Reis no país, que lá atende pelo nome de Bajada de
Reyes3 e que é descrita da seguinte forma: “...és una de las pocas representaciones con
parlamento y verso cantado en español y quéchua, que sobreviven de la tradición
dramática del Auto Sacramental español en el território surandino del Perú.” 4
(BEYERDORFF, 1988:11).
No ciclo festivo do Natal os peruanos comemoram em diversas províncias a
Navidad onde se armam nacimientos5, que no caso de Cuzco, apresenta a figura do Niño
Manuelito, que é uma versão cuzquenha do Menino Jesus, só que Manuelito,
diferentemente deste, nasceu em Cuzco (PRADO, 1992). Neste período, segundo Koch,
é “común la participación de grupos de danzantes que representan a los esclavos negros
de la Colonia, ofreciendo sus bailes y cantos y visitando los nacimientos durante las
fiestas de Navidad6” (2001:225). Nesta passagem é possível perceber não só a herança
européia, que no caso do Peru, teve maior influência dos espanhóis, mas podemos
perceber também que mesclados a essa herança estão a tradição indígena andina e a
influência dos negros escravizados e levados para essa colônia, que num processo
semelhante ao ocorrido no Brasil (e na Colômbia), contribuiu culturalmente na
constituição das diversas tradições populares existentes no país. E lá, assim como no
Brasil, os negros aparecem como aqueles que dançam dentro do ritual.
Em Cuzco, na praça do bairro de San Blás no dia 6 janeiro é feita uma
encenação que vai desde a passagem dos três Reis Magos pelo castelo de Herodes até a
adoração do Menino Jesus. Os dançantes acompanham o cortejo que encerra a
representação.
Em Huaytará, na festa da Navidad, estão presentes os dançantes lá chamados de
negritos7. Estes, somados aos pastores, no dia 27 de dezembro “compiten
inevitablemente, durante el atipanakuy, en el átrio de la iglesia, zapateando, haciendo
acrobacias y creando nuevas figuras coreográficas. No hay apuestas pero los
triunfadores son premiados con un dilúvio de monedas que muchas veces pasan de los

3
Ver Beyersdorff (1988) e EMUFEC (2008).
4
“...é uma das poucas representações com parlamento e verso cantado em espanhol e quéchua, que
sobrevivem da tradição dramática do Auto Sacramental espanhol no território sul andino do Peru”
(tradução própria).
5
O mesmo que presépio. Acrescento, conforme pude observar, que os presépios no Perú incorporaram
aspectos nitidamente andinos, tanto nos trajes dos personagens e seus adereços, como nos aspectos
fisionômicos. Nele estão presentes, por exemplo, llamas e os Reis Magos na versão peruana carregam
como presentes: batata, milho e animais típicos da região.
6
“comum a participação de grupos de dançantes que representam aos escravos negros da Colônia,
oferecendo seus bailes e cantos e visitando os nascimentos durante as festas de Natal.” (tradução própria).
7
Ver Bigenho (apud ROMERO, 1993).
cien mil soles.”8 (BARRIONUEVO, 1981:40). Pela descrição nota-se uma semelhança
entre a dança dos negritos e dos palhaços, incluindo o gesto do público de jogar moedas
aos mascarados, costume existente entre as Folias de Reis brasileiras. Em Andahuaylas
acontece a Bajada de Negros, que inicia no Ano Novo e vai até o dia 6 de janeiro e
conta com a participação de dançantes mascarados (OLIVARI, 1974).
Registra-se também nas festas do Dia de Reis a presença dos cômicos
mascarados, denominados Weraqos, que subvertem a ordem durante o festejo, como
relata este artigo de jornal:

También están los Weraqos, ellos se ponen espinas, en Navidad y Reyes son
igual; son cômicos vamos a decir, hacen todos esas chistocerías y van a
algunos sítios, donde sea, y traen sea choclo, sea pisco, sea cualquier cosa
que encuentran para el carguyoc; ellos entregan y también llevan mérito;
ellos se ‘roban’, nada les dice nada, así es costumbre. El Weraqo remeda a
todo y a todos incluso al mayordomo que lleva al Niño; tienen máscara, de
yeso o de runa chuco de Lana.9 (NAKAMURA, 1978: IV)

Este relato revela uma similaridade entre o palhaço da Folia de Reis e os


mascarados da Bajada de Reyes. Em Lima – Peru, aparecem também os pastores
costumbristas, formados por três pares de negros mascarados e músicos que dançam
diante do presépio nos dias 25, 26 e 27 de dezembro e 6, 7 e 8 de janeiro (LA PRENSA,
1982). Cruz descreve uma Navidad Negra em que dançarinos humorísticos disfarçados
fazem parte da festa, além dos negritos que neste caso apresentam-se em quadrilhas
formadas por crianças que dançam demonstrando “agilidad, gracia y picardia,
cosechando muy buenas monedas do los espectadores.”10 (1969:13).
Os elementos como a indumentária, máscara, dança, musicalidade e a própria
origem histórica da dança dos negritos revela um mesmo processo de miscigenação
ocorrido no Brasil, entre as culturas européia e ameríndia somadas à africana,
representada no Peru pelos afro-peruanos, e que reserva a esses mascarados heranças
culturais distintas, também presentes no palhaço de Folia de Reis.

8
“competem inevitavelmente durante o atipanakuy, no átrio da igreja, sapateando, fazendo acrobacias e
criando novas figuras coreográficas. Não há apostas mas os ganhadores são premiados com uma chuva de
moedas que muitas vezes passam de cem mil soles.” (tradução própria). Nesta citação soles é o plural de
sol, que corresponde à moeda peruana.
9
“Também estão os Weraqos, eles se põem espinhos, no Natal e Reis são iguais; são cômicos vamos
dizer, fazem todos esses gracejos e vão a alguns lugares, onde seja, e trazem seja cholo, pisco, seja
qualquer coisa que encontram para o carguyoc; eles entregam e também levam mérito; eles se “roubam”,
nada lhes diz nada, assim é o costume. O Weraqo remeda a tudo e a todos inclusive ao mordomo que leva
o Menino; têm máscara, de gesso ou de runa chuco de lã.” (tradução própria).
10
“agilidade, graça e picardia, colhendo muito boas moedas dos espectadores.” (tradução própria).
A associação à figura do diabo, no caso da Bajada de Reyes, assim como no
palhaço da Folia de Reis, se dá através de elementos presentes em sua indumentária,
incluindo a máscara, ou mesmo através da performance realizada pelos Weraqos e/ou
negritos ao longo do ritual. Conforme as descrições, estes personagens apresentam-se
mascarados e têm caráter cômico, subversivo e transgressor dentro da festa.
Seguindo em pesquisa de campo, no ano de 2009, na Colômbia, dando
prosseguimento a investigação e pesquisa realizada no Peru, como continuidade e
aprofundamento dos estudos sobre Folia de Reis desenvolvidos no Brasil, foi possível
identificar a ocorrência de uma festa, que acontece de dois em dois anos, no dia 6 de
janeiro (Dia de Reis), na cidade de Riosucio – Colômbia. A festa denominada Carnaval
del Diablo (VIGNOLO, 2008), está relacionada à Fiesta de los Reyes Magos, que
acontece no período natalino. Sua origem relaciona-se ao processo de colonização do
país iniciado no século XVI pelos espanhóis, herdando de seus colonizadores, num
processo similar ao ocorrido no Peru e no Brasil, suas heranças culturais, entre elas, os
rituais e festas, incluindo as dedicadas aos Reis Magos. Mesclada à cultura afro-
ameríndia, a Fiesta de los Reyes Magos transformou-se no que hoje conhecemos como
Carnaval del Diablo, que tem como personagem central o Diablo (o diabo). Conforme
Lopez (2006), esta festa surge de uma rivalidade existente entre os povos indígenas da
região aurífera de Quiebralomo e os da região da Montaña. Para firmar um acordo de
paz decidem comemorar juntos a Fiesta de los Reyes Magos e deste fato surge o
Carnaval del Diablo, onde o diabo, personagem principal, aparece na festa para lembrar
a esses povos o acordo de paz.
Ao investigar e analisar, o universo simbólico e representativo que o palhaço de
Folia de Reis assume nas festas de Reis brasileiras e nas realizadas no Peru e na
Colômbia, a partir da pesquisa dessas três festas latino-americanas que têm como mito
fundador a passagem bíblica que narra a viagem dos três Reis Magos para adorar o
Menino Jesus, apresentando cada uma delas aspectos peculiares em sua estrutura ritual,
foi possível perceber nos três festejos (Folia de Reis – Brasil; Bajada de Reyes – Peru; e
Carnaval del Diablo – Colômbia) a associação simbólica do personagem mascarado, o
palhaço e seus equivalentes (negritos/weraqo e diablo) com a figura do diabo.
A questão que se coloca neste breve ensaio é: de que maneira se estabelece esta
relação nos diferentes contextos (Brasil, Peru e Colômbia) entre o palhaço e seus
equivalentes com o diabo, qual a representatividade e significação da figura do diabo
nestes festejos e a inversão simbólica que se opera dentro da própria simbologia
associada à figura do diabo? Dentro da ideologia cristã o diabo é aquele que representa
o anticristo; que na dicotomia bem e mal, é o que ocupa o lugar do baixo, do terreno,
um representante do mal, do profano em oposição ao sagrado, do infernal. Nessas festas
latino-americanas o personagem do diabo está profundamente enraizado na cultura
popular, ele reflete o pensamento da cultura popular e é a sua síntese, assumindo um
caráter festivo, sarcástico, alegre e transgressor e que traz em si a própria síntese do
conflito do bem contra o mal, apresentando sagrado e profano como opostos
complementares. É o diabo que protege, que cura, que traz prosperidade; é um
catalisador, um transformador, representa a voz do povo e o diverte e faz rir. É aquele
que inverte e subverte momentaneamente a ordem social, suas hierarquias e que nos faz
refletir sobre a própria condição humana. É o diabo que subverte a própria simbologia a
ele atribuída pelo cristianismo.
Tal qual o palhaço, esses mascarados, zombam do poder e “simboliza os valores
morais da communitas, contrapondo-se ao poder coercitivo dos dirigentes políticos
supremos” (TURNER, 1974:135). A Folia de Reis, bem como a Bajada de Reyes e o
Carnaval del Diablo, como manifestação da cultura popular que acontece nas ruas,
recupera a idéia presente nos festejos da Idade Média, da criação, durante a sua
apresentação, de um mundo utópico, esse mundo desejado e que só pode ser vivido
através da experiência. Um mundo utópico em que o povo se reveste de uma segunda
vida, penetrando temporariamente no reino da universalidade, da liberdade, igualdade e
abundância. Um mundo em que o indivíduo toma posse dessa outra vida que lhe
permite

estabelecer relações novas, verdadeiramente humanas, com os seus


semelhantes. A alienação desaparecia provisoriamente. O homem tornava a
si mesmo e sentia-se um ser humano entre os seus semelhantes. O autêntico
humanismo que caracterizava essas relações não era em absoluto fruto da
imaginação ou do pensamento abstrato, mas experimentava-se
concretamente esse contato vivo, material e sensível. (BAKHTIN, 2008:9)

E por isso, em algumas dessas festas, como a de Riosucio, o Diablo se tornar


protagonista de um festejo cujo mito fundador é um mito cristão.
Atualmente, tem-se desenvolvido uma série de estudos por toda a América Latina a
respeito da figura do diabo festivo, como uma figura recorrente nos festejos e rituais da
cultura popular de diversos países latino-americanos, buscando compreender a
teatralidade e a força desse personagem em nossa cultura, a ponto de haver em quase
todos os países alguma festa em que este personagem mascarado esteja presente. Diante
disso este ensaio apresenta-se como o início de uma investigação e um breve relato de
pesquisa que revela, cada vez mais, a amplitude dos festejos dedicados aos Reis Magos
do Oriente e o simbolismo, representatividade, teatralidade do personagem do diabo
festivo na cultura popular latino-americana e sua capacidade de permear as
manifestações, as culturas e as identidades, transformando-as e ressignificando-as e
cumprindo assim um papel que é também social.
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Trabalho completo: “A dança do Palhaço da Folia: cena e apropriação na diversidade cultural.”

De: Ausonia Bernardes Monteiro ausonia@alternex.com.br

Doutora
Faculdade Angel Vianna

RESUMO
A natureza teatral das ritualizações das sociedades humanas, desenvolvida pelos Estudos
da Performance com Schechner (1988) e Turner (1982), leva-nos a entender o ritual da Folia de
Reis como uma encenação religiosa e dramática, que, regulada no tempo e no espaço, apresenta
eventos e cria rituais festivos em seus percursos.

Neste estudo que propomos destacamos especialmente o palhaço da Folia de Reis como
intérprete deste drama ritual, que estabelece uma relação de atuar com papéis e desempenhos
calcados na re-criação de acontecimentos e de personagens, atualizando-os temporalmente,
usando o próprio corpo enquanto campo de trabalho. Na sua ação, observamos que o palhaço da
Folia de Reis é identificado alternadamente com Herodes, ou um dos seus soldados; com o diabo
propriamente dito; com o Exu, com o espírito que guarda a Folia nas encruzilhadas das estradas;
ou simplesmente com qualquer brincante, que está credenciado a explicitar o lúdico dentro do
cotidiano da sua comunidade.

O palhaço da Folia, instituído no âmbito dos cruzamentos entre as representações das


religiosidades e das artes dos afro-descendentes, desvencilhando-se da capa de produtos
estilizados e folclóricos (Ligiéro 2004) compõe com sua teatralidade do cotidiano a criação de
espaços na sociedade brasileira, ao mesmo tempo que é tema de festa e apresenta-se como
comportamento humano performático. Desejamos propor a discussão sobre a dança do palhaço
da Folia enquanto linguagem corporal capaz de provocar dinâmicas e sentidos específicos, de criar
novos espaços de percepção relacionados a dança cênica e a apropriação do corpo na sua
diversidade cultural. O que nos aproxima sobremodo das observações de Carvalho (1996) sobre as
comunidades negras brasileiras, forçadas a se tornarem invisíveis, simbólica e socialmente para
sobreviverem, e que hoje se expressam, atestando a sua capacidade de fazer, e de “trazer as coisas
à existência”.

Palavras chave: Corpo, Cultura Popular, Folia de Reis, Performance.


2

A DANÇA DO PALHAÇO DA FOLIA: CENA E APROPRIAÇÃO NA


DIVERSIDADE CULTURAL

“Não há silêncio na manhã: há vacas, crianças, buzinas de bicicletas, música, a


família que vive debaixo de nós, vendedores ambulantes, corvos muito
barulhentos, alguns carros. Porém aprendi a concentrar-me. O segredo da
concentração não é fechar-se para as coisas, mas sim deixá-las passar. Assim que
deixo que este ruído passe, e passa através de mim como se fosse água do mar e eu
fosse uma rede para pescar - só caem as coisas maiores, disparam cadeias de
associações. Eu canto um pouquinho, nada mais que um pouquinho” Schechner,“El
Teatro Ambientalista”(1973) 1988, pg. 24.

INTRODUÇÃO

Procuramos neste trabalho investir na maior ligação do estudo da Folia de Reis, brincadeira
popular com raízes nos tempos coloniais, e objeto da nossa pesquisa, com os estudos da
performance, inserido no contexto sócio-político do Brasil Colônia.
Ao relacionarmos neste trabalho o estudo da performance aos aspectos históricos da
cultura brasileira, e sua pluralidade de formação, deparamo-nos com um novo desafio. Que exige
escrever com atenção e cuidado sobre um período da nossa história já tão longe, mas presente,
atuante e atravessando alguns séculos. Pensar sobre definições, categorias e classificações, a partir
de um passado conflitante, apesar de difícil, também é necessário, pois necessitamos disto para
renovarmos os sinais culturais, que fazem parte da nossa linguagem e do processo mesmo de
pensamento.
Estudando aspectos do Brasil Colônia, seus ritos políticos e performáticos, nada melhor
que seguir o mestre Schechner, quando em correspondência com amigos, durante sua viagem pela
Índia, fala sobre a nossa capacidade de concentração, na medida em que deixamos as coisas
passarem por nós. Estamos certos de que esta é uma viagem através dos tempos, e que agora é
deixar escorrer por entre os dedos, mãos, todo o corpo, tantas informações interessantes e
3

referenciais, para que finalmente permaneça o que de mais essencial seja possível filtrar, e de
mansinho possamos escrever e cantar.
Assim, pesquisando as tradições, festas religiosas e formas memoráveis de convivência
destas sociedades, encontramos material para entendermos o quanto a performance, com toda sua
abrangência sobre a história, seus conflitos, são possibilidades de repensarmos a nossa cultura. Daí
será possível articular a análise dos corpos subjugados e festivos da população brasileira nas
manifestações e performances sociais, com o palhaço da Folia de Reis. E apreender, no estudo dos
sinais culturais, um maior entendimento dos conflitos e da constante polaridade entre aceitá-los ou
negá-los.
É indispensável escrever e pensar sobre o passado, para pensarmos o presente, para ir
adiante compreendendo como foi feito antes. E deparar-nos com a possibilidade de cantar, mesmo
que pouco. E refletir que cantaremos na medida em que tivermos trabalhando para abrir e ampliar
a nossa atenção para com todos os nossos traços culturais, formadores disto que chamamos de
cultura brasileira.

I SOB AS LENTES DA PERFORMANCE

De acordo com Schechner (1988), o termo performance ganha um sentido essencial e


dinâmico, na medida em que passa a incluir e referenciar o cotidiano da vida, abrangendo as ações
que vão desde as ritualizações animais, aqui compreendendo os humanos, até as comemorações
grupais, cenas familiares e profissionais, o jogo, o esporte, o teatro, a dança, as cerimônias e os
ritos de uma sociedade.
O caminho percorrido por Richard Schechner até aqui foi basicamente fruto de seu
trabalho sobre a linguagem teatral. Permeando suas idéias e pesquisas, encontramos o rastro de
questões colocadas desde Meyerhold, Artaud, Brecht, Grotowski, que discutiram a função do
teatro diante das crises e transformações da sociedade moderna e pós-industrial, como a
necessidade da renovação das artes cênicas diante dos grandes acontecimentos do início do século
XX: o avanço tecnológico, a psicanálise e as noções revolucionárias do inconsciente, a ideologia
marxista, e o teatro político, emergente da discussão de um mundo cindido em sacro-profano, com
o ressurgimento ritualístico do teatro.
4

Um bom exemplo destes trabalhos interdisciplinares de Schechner, é Between Theater and


Anthropology (1985), em que nos fala da convergência entre o teatro e a antropologia como um
movimento intelectual que proporciona maior compreensão do comportamento humano. Com
este duplo foco, torna-se possível dar ênfase à desconstrução/reconstrução de atualidades, e criar
hoje um processo de emoldurar, editar e pensar o comportamento do homem.
Turner (1982), representante de uma das principais correntes do pensamento
antropológico contemporâneo, faz um significativo trabalho ligando a antropologia e os estudos
da performance, ao perceber o comportamento do homem como ações performáticas, na medida
em que elas são essencialmente expressivas. Chama este processo de “analogia dramática” e
desenvolve a idéia de que os conflitos sociais seguem uma estrutura dramática. Todos os níveis da
organização de uma sociedade, da família ao Estado, apresentam dramas e conflitos, que podem se
iniciar quando a rotina desta vida social, regulada por normas, é quebrada por qualquer mudança
no seu próprio mecanismo controlador. Súbita ou vagarosamente, as crises se estabelecem,
muitas vezes dividindo a comunidade em facções e coalizões. O fluxo da vida social é
interrompido, os papéis cotidianos das pessoas são suspensos, os grupos tomam consciência dos
seus comportamentos e valores, sendo possível toda sorte de questionamentos. Desta forma, os
dramas induzem e contêm processos reflexivos que geram outras molduras culturais. Assim, este
sentido de performance abrange mais que uma implicação estruturalista de manifestar “forma”,
contendo mais a idéia processual de “levar a completar”, de “realizar”.
Portanto, seja “incluir/referenciar” como em Schechner, seja “completar um processo”
como assinala Turner, o uso do termo performance vem nos propor uma ampla abordagem. Um
novo conceito que soma, em lugar de restringir, aprisionar ou circunscrever, como já estamos
acostumados a fazer, nas nossas costumeiras classificações do que é teatro, dança, ou outra
qualquer manifestação artística. E convida-nos a ampliar nosso olhar, diante destas manifestações
culturais que são reveladoras de todo um tecido social e humano.
5

II O FOCO NA TRADIÇÃO

“O conceito „performance’ tem sido usado também para compreender o teatro feito
pelo povo iletrado, seguindo a tradição oral, alheia aos modelos greco-romanos que
permearam a construção da estética dominante. Desta forma, performance tornou-
se sinônimo de apresentação e representação, quase sempre tendo caráter festivo
e/ou religioso mas em qualquer destas formas preservando o seu alto grau de
ritualismo.” Zeca Ligièro, “A Performance Afro-Ameríndia”, texto apresentado
no I Encontro de Performance e Política das Américas, 2000.

Certamente é sob o prisma de cinco séculos de opressão econômica, militar, religiosa e


estética exercida pela elite euro-brasileira que devemos compreender nossas expressões sócio-
culturais, e dentre elas, nossos tradicionais festejos populares - ensinando-nos em falas como a de
Mestre Carnaúba, 99 anos, poeta, curandeiro, pai de santo e repentista cearense, que devemos
“abraçar os encantos” das mentes e das bocas dos nossos ancestrais afro-ameríndios, para que esta
compreensão seja possível.
Nossa atenção é detida, por exemplo, na relação estabelecida entre os usos do canto, da
dança e do batuque, em todas as manifestações expressivas apresentadas nos desenhos de
Rugendas, artista da Missão Francesa, Brasil século XIX; ou ainda nos primeiros registros de
índios brasileiros, feitos pelos filmes da expedição Rondon, no início do século XX, com destaque
nos momentos dos festejos e brincadeiras feitos em roda. São tipos de performances interativas e
ambientalistas, encontradas até nossos dias nos sambas de roda, nas danças Kariri-Xocó, no
Maneiro Pau, no Reisado do cavalo marinho - em que o público permanece agindo e interagindo
com tudo o que o performer faz. Este ocupa o espaço central, ritualisticamente propondo e
respondendo, em contato com as forças e energias de todo seu grupo social.
Teremos dificuldades em recuperar os contatos entre as culturas afro-indígenas, se nos
debruçarmos sobre a documentação oficial do nosso passado colonial. Márcia Amantino, em sua
pesquisa de doutoramento sobre a convivência entre índios e escravos negros aquilombados,
alerta-nos para o fato de que índios e negros, (e os quilombolas, em escala maior), não eram vistos
como produtores de cultura. Isso contribuía para se considerar desnecessário o registro de muitas
destas manifestações performáticas.
6

Em geral herdamos referências que são citações genéricas, garantindo somente que se
tratavam de povos selvagens, sem dados precisos sobre os aspectos sociais, culturais e
populacionais pertinentes. Resta-nos trabalhar com outras fontes, especialmente registros de
caráter etnográfico e folclórico, feitos entre o século XIX e início do século XX. “Estes
documentos buscam recuperar no tempo, através da história oral, a memória mais antiga a respeito
dos vários contatos travados entre as diferentes categorias sociais.” Com base neste pressuposto,
danças que envolvem grupos associados a escravos fugidos e aos indígenas, recriados pelo
folclore brasileiro e executadas em festas religiosas ou profanas na cidade, puderam ser
pesquisadas. São elas: “Dança do Quilombo” (Alagoas); “Lambe-sujo” (Sergipe) ; “Tapuiada”
(Minas Gerais) e “Caiapó” (Minas Gerais e São Paulo). Estas danças dramáticas são
manifestações culturais repletas de elementos históricos e populares típicos destas regiões. Elas
são apresentadas fazendo parte de autos, que incorporam em suas encenações os contatos havidos
entre os índios e quilombolas, com suas disputas territoriais, conflitos étnicos, e percepções do
mundo colonialista em que se produziram. Pontos comuns entre elas são os momentos de coleta
de alimentos, que são consumidos festivamente em grupo, e a circulação do dinheiro entre os
brincantes e assistentes.
Mais que tudo, as danças pesquisadas têm o sentido de recordação de uma experiência
vivida, construída por suas comunidades para relatar a história, incorporada através dos tempos.
Assumem, portanto, o significado de uma memória social, que, através da tradição oral,
performática, transmite aspectos referentes à saga dos negros no Brasil, e principalmente revela
aos mais novos a vivência de seus antepassados, que construíram a história buscando a liberdade e
se rebelando contra a condição de escravo.
José J. de Carvalho (1996), estudando sobre comunidades formadas pelos negros escravos,
que fugiram do trabalho forçado e resistiram à recaptura por parte das forças escravistas, aponta
para vários níveis de isolamento que sofremos da experiência histórica do negro escravo no Brasil.
Internamente “nossa compreensão da influência comunitária negra tradicional - seja quilombola,
escrava ou pós-abolição - é ainda muito dispersa e incompleta.” Além disto, informações sobre a
escravidão negra nos outros países da América são escassas, privando-nos de um sentido
histórico mais amplo.
7

As comunidades negras, submetidas às injustiças do regime escravocrata, foram forçadas a


se tornar invisíveis, simbólica e socialmente, para poderem sobreviver. 300 anos após a destruição
da maior experiência nacional de resistência, que foi a República dos Palmares, e mais de 100 anos
depois da Abolição da Escravatura, com o decreto da Lei Áurea, muitas questões continuam
atestando o espaço imposto pela sociedade escravocrata à cultura negra.
O silêncio em relação à escravidão tornou-se uma condição para a vitalidade mítica das
religiões afro-brasileiras tradicionais. Diferentemente de outras nações americanas, como o Haiti,
o Suriname, ou a Jamaica, onde a religião se fundou sobre a saga das guerras antiescravistas,
superpondo em sua liderança política, atributos míticos e históricos, naturais e sobrenaturais, no
Brasil não se faz referência a que Zumbi, Ganga Zumba ou qualquer outro líder negro fossem
dotados de poderes sobrenaturais. Abolindo-se qualquer referência simbólica à escravidão, ou à
experiência quilombola, passamos a não ter “uma identidade negra autoconsciente”.
Em conseqüência, devemos refletir significativamente que, a partir dos mitos religiosos
afro-brasileiros, todas as manifestações que herdamos como cerimônias e festejos comemorativos,
trazem inscritos silêncio e sujeição, destoando dos sons dos batuques ouvidos, até hoje.

III ATRAVÉS DAS CERIMÔNIAS ESPETACULARES

“Antes mesmo que o primeiro escravo desembarcado no Brasil se rebelasse, os


senhores e autoridades coloniais já sabiam ser necessário controlar seu corpo e seu
espírito. O regime escravocrata, como todo regime de trabalho forçado, baseou-se
fundamentalmente no chicote e em outras formas de coerção, mas não teria
vigorado por muito tempo se tivesse usado apenas a violência.” João José Reis.
Identidades e diversidades étnicas nas irmandades negras no tempo da escravidão.
In: Revista Tempo/ UFF: Rio de Janeiro: Relume-Dumará ,1997.V.3.

O que será que vigorou nos outros momentos ? É sabido pelos estudos mais recentes que
os escravocratas necessitaram mesclar força e persuasão, e que um tempo de negociação ajudava
todos a se reequilibrarem, na busca de poder e controle da situação. Neste espaço de convivência
e negociação entre senhores, escravos negros, forros e brancos, surgem as instituições religiosas,
às quais os negros se agregaram, as chamadas “confrarias” ou “irmandades”. Estas associações
8

constituíram-se sob a autoridade do governo colonial, como uma das formas de expressão e
organização cultural negra, e espaço de exercício de sua autonomia, apesar do espaço dedicado à
devoção religiosa dos santos católicos.
As irmandades significaram uma conquista de relativa independência, onde seus associados
contribuíam com pagamentos e tinham assegurados assistência, ajuda quando doentes, e
principalmente funerais solenes. Com uma organização hierarquizada e operante, deixaram em
seus estatutos, chamados de “compromissos”, fontes históricas especiais, que permitiram o
registro do interior de uma comunidade de escravos brasileiros.
É possível afirmar que, se por um lado estas irmandades não puderam combater a
escravidão enquanto sistema, em compensação exerceram o papel de abrir espaços dentro dos
seus limites. Uma das principais atividades das irmandades era a promoção da vida lúdica, ou
estabelecer o “estado de folia” de seus membros e da comunidade negra em geral. Nas festas de
santos padroeiros, elegiam reis, rainhas, imperadores e imperatrizes que fundavam simbolicamente
no Novo Mundo reinos africanos, embora nunca esquecessem de anunciar que tudo faziam “para
grandeza e aplauso” dos santos da devoção. Entretanto, muitos dos costumes, como o bater de
atabaques, danças, mascaradas e canções, cantadas em línguas africanas, ao se mesclarem às
cerimônias religiosas, transformavam seus rituais e reviviam tradições ancestrais.
Fora do âmbito das irmandades católicas, há relatos de incidentes, entre escravos da região
açucareira de Santo Amaro, na Bahia, e representantes da Igreja Católica, durante as
comemorações religiosas, do Natal de 1809. Segundo João José Reis (1997), “sabedores de que
a paz nas senzalas não dependia apenas do chicote, os senhores em sua maioria permitiam que
seus escravos celebrassem a seu modo o Natal.” Naquele ano, algumas formas de confraternização
de vários escravos, apresentadas por agrupamentos das nações nagôs, haussás, geges e angolas,
foram consideradas excessivas. Na descrição da correspondência oficial entre as milícias
responsáveis pela região daqueles engenhos de açúcar, os escravos formavam ranchos de
atabaques, com seus costumeiros brinquedos, ou danças, passando a noite festejando, a comer e
beber, perturbando a ordem noturna da vila de Santo Amaro. De acordo com o governador e
capitão-general da Bahia, o Conde da Ponte, as reuniões de escravos deveriam ser evitadas, os
senhores dos engenhos advertidos sobre isso, e finalmente, os negros deveriam ser mantidos
dentro dos limites das propriedades e presos os reincidentes. Este acontecimento nas ruas do
9

Recôncavo baiano, assim como outras situações observadas dentro das irmandades, mostram o
que estava em jogo, através das celebrações: os limites da organização e expressão da cultura
africana no Brasil, que a todo momento se redefiniam. Tais registros apresentam situações
significativas, de quanto os escravos festejavam de acordo com o calendário cristão reelaborando
suas próprias tradições, e de que, ao se organizarem, reafirmavam suas identidades culturais,
conforme suas origens étnicas. Só aparentemente estaria encerrado o episódio do Natal de 1809,
nas regiões açucareiras da Bahia. Se os escravos tinham se reunido para fazer daquela celebração
africana a mais lúdica e estranha festa natalina, também tinham afirmado aquilo que os marris, em
seu Estatuto da Congregação dos Pretos Minas Marri, no Rio de Janeiro em 1786, diziam: “O
estado de folias serve de muita utilidade, assim de exercitar os ânimos dos pretos, como para
acudirem de novo muitos de fora, assentarem-se na Congregação afim de os ir atraindo....”

NA MIRA DAS CONCLUSÕES

Ao longo de quatro séculos de contato com as culturas afro-ameríndias, a Folia de Reis


como expressão medieval portuguesa, aqui no Brasil, se transformou. Neste contexto priorizamos
a figura do palhaço, que nas Folias brasileiras está usualmente caracterizado de máscara negra,
identificando-se com o animal e o demônio. Sua presença é marcada pela irreverência e é através
dos seus versos e danças acrobáticas que a lógica da narrativa sacra é subvertida. Em
conseqüência, sua presença é interditada em alguns lugares da Folia: ele só pode participar do
cortejo atrás da bandeira, e não permanece nas casas que acolhem o festejo, confraternizando com
o mestre e os foliões, ao redor da ceia então oferecida.
De acordo com Turner (1982), os dramas induzem e contêm processos reflexivos, e geram
novas molduras culturais. Para a antropologia, quando se examina a cultura como uma reunião de
textos - entendendo-se aqui por texto muito mais do que um material escrito ou verbal - podemos
apreender da nossa experiência do cotidiano, e do que realizamos em festividades, ritos, a
expressão das nossas etnias reunidas. Assim, articulamos as expressões culturais e artísticas,
apresentadas nos festejos do Brasil, como a coroação do Rei e da Rainha do Congo, reisados,
10

folias de reis, congadas, permeadas de elementos medievais europeus com estas formas de danças,
teatralizações, de sentido ritualístico, que recordam práticas sócio-culturais originais. Igualmente,
se pensarmos o Brasil a partir da colonização dos portugueses e espanhóis, encontramos diversas
identificações com outras experiências históricas das Américas, marcadas pelas relações entre os
fatos históricos e sociais da época colonial.
Com o corpo, e através do corpo, manifestam-se imagens que expressam as crises e os
ritos de passagem. E se a memória está sedimentada no corpo, conforme Paul Connerton (1993), é
o estudo das imagens manifestas na dança do palhaço da Folia, que nos permite o estudo de seu
gestual enquanto espaço de memória e tradição da cultura afro-brasileira, redimensionando nossas
considerações.
Pensamos principalmente na importância de pesquisar as danças do palhaço da Folia, a
partir do papel que representam neste festejo: o palhaço é o personagem do conflito, que não está
submetido à idéia cristã de venerar e se submeter ao poder do Menino Jesus. Através da sua
dança, dos seus trajes e adereços, como a máscara e o bastão, sinaliza-nos conteúdos e elementos
simbólicos da cultura africana, comumente colocados em segundo plano.

Da história das irmandades negras no Brasil, segundo João José Reis, sabemos que os
africanos cultivavam suas diferenças étnicas, organizavam-se aprofundando laços raciais e
identidades, e tinham orgulho destas diferenças. Este sentimento de pertencimento a uma nação
funcionou no desenvolvimento das suas sociedades e afirmou a prática da solidariedade como
fator de coesão social. Estes espaços, provavelmente, foram conquistados através da organização
e manutenção das festas e solenidades, que se desenvolveram no âmbito deste sistema de crenças e
garantias religiosas. O que nos permite compreender o palhaço da Folia, ou a coroação do Rei e
da Rainha do Congo, junto a embaixada de cristãos contra os mouros, e tantos outros como
registros originais de resistências, memórias, representações.
Sabemos que a escrita, ao se desenvolver, gerou uma perda de elementos como o som, as
entonações, os gestos próprios da cultura oral. Isto acarreta uma desmaterialização do texto,
que sem essas referências sensíveis não se identifica mais com seu suporte. Tais transformações
históricas, relacionadas com o nosso estudo da cultura popular, entendem a Folia de Reis como
uma forma de festejo popular que passa por gerações, com as características da transmissão oral,
11

e questionamo-nos como esse conhecimento se dá até nossos dias. As narrativas, os casos,


entonações e melodias estão atuantes nas Folias, e nos garantem elementos para ampliar o estudo
sobre elas.
Neste contexto, é fundamental pensar a performance do palhaço da Folia, como um jogo
político, de graça malabarística, onde a africanidade presente se afirmava pelo equilíbrio da astúcia
e da malícia. São poderes tão sagrados quanto os valores emanados no período da colônia-
império, que naquele instante, através da dramatização, eram representados por um suave bebê, de
olhos azuis, na manjedoura.
É como se descobríssemos o uso que as culturas sempre fizeram do festejo, qual seja: o de
educar e socializar através das dramatizações, construindo um fio da história sustentado na música
e na dança. E, afinal, permitindo-nos para sempre, quando nos propomos a estudá-la,
a possibilidade de um abraço encantado e uma canção de esperança.

Rio de Janeiro, 22 de agosto de 2011


12

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Rio de Janeiro, 14 de agosto de 2011


Tumba Carnaval: A performance da dança a partir da reconstrução da afro-chilenidade

Nestor Gomes Mora Cortés


Universidade Federal Fluminense

O trabalho apresenta a dança tradicional afro-chilena chamada tumba utilizada em um


processo de manipulação discursiva para reconstruir a identidade afro-chilena que durante todo o
séc. XX permaneceu desconhecida pelos chilenos e pelo próprio estado-nação. Antes de mais nada,
é necessário entender e situar o problema no seu território geopolítico e, por consequência, na sua
fronteira que passou a ter novos contornos a partir da Guerra do Pacífico, ainda no séc. XIX.
A comunidade afro-chilena vive em Arica, cidade localizada ao extremo norte do Chile, e
que antes da guerra pertencia ao território peruano. No período do pós-guerra Arica passou a
pertencer ao Chile e a população negra que vivia na região sofreu um grande trauma gerado por
perseguições e degredo. Essa medida pretérita determinada pelo estado-nação chileno é designado
pela como chilenização, ou seja, um processo de demarcação das novas fronteiras geopolítica e
étnica a fim de instituir a nova nacionalidade em Arica. Com isso todos que viviam na região,
inclusive a população afrodescendente, deveriam adotar a nova cultura e todos os elementos que
dela deriva. Em contrapartida não havia a possibilidade de coexistir culturalidades, territórios
distintos da identidade nacional chilena, fato que forçou a população afrodescendente a ocultar os
resquícios da sua cultura e identidade que até o momento era considerada peruana.
Com efeito, ao longo de todo o séc. XX, era impossível conciliar a identidade negra e a
chilena e por isso a população afrodescendente conviveu na invisibilidade abdicando da sua cultura,
identidade e territorialidade, na tentativa de conquistar algum reconhecimento do chilenos. Dado
processo permitiu que as próximas gerações decorrentes do trauma convivessem com uma nova
mentalidade, memória, discurso e comportamento. Os filhos dos filhos dos antigos
afrodescendentes da região, que agora passam a ser chilenos, assimilaram uma pedagogia
intermediada pela família, escola e estado-nação, a fim de naturalizar o sentimento de nação e de
pertencimento que até aquele momento nunca existiu.
Somente a partir de 2001, devido a mobilização de lideranças da comunidade afro-chilena
em Arica, criou-se organizações jurídicas como a Oro Negro e Associação de Afrodescendentes
Lumbanga. Duas das principais organizações que hoje trabalham em conjunto para articular a
produção política e cultural da sua negritude a fim de conquistar reconhecimento da sua identidade
étnica e territorialidade perante o estado-nação. Feito esse breve preâmbulo fundamental para
entender a emergência étnica da população afro-chilena, da sua localidade para a fronteira nacional
e global, é pertinente explicar como a comunidade produz no seu viés cultural o discurso pela
reconstrução da sua identidade.
A principal frente cultural para a representação da identidade étnica afro-chilena é a
tradicional tumba. A palavra é originária do bantu, tronco-linguístico presente na região da África
Ocidental. No Congo a palavra significa “tambor”, “baile” e “ventre”, expressão que também deriva
do umbundo kumba e que significa “fazer ruído”, “uivar”, “bramar”, “gemer” e, por derivação,
“aplaudir”, “murmurar”. No quicongo, para designar o plural de Kumba é acrescentado o prefixo
Ma que, por sua vez, vira Makumba. No Brasil essa palavra significa “os bailes e as festas das seitas
afros” (ORTIZ, 1982). Além disso, a palavra Kummba significa “umbigo grande” e é sabido que a
“umbigada”, como o “vacunao” em Cuba, é uma linguagem corporal típica de muitos bailes afro-
americanos como o jongo no Brasil. A tumba também é designada pelos afro-chilenos como tumbe,
derivação masculina que em bantu também significa “barriga” ou “ventre”.
Em muitas culturas o ventre é região sagrada do corpo e apesar da palavra tumba ter essa
relação direta com o significado ventre, não existe atualmente no baile afro-chileno nenhuma
conotação com o sagrado. É interessante notar que todas aquelas derivações de significados em
torno da tumba prescrevem uma relação com o ritual da dança, com a prática interativa dos
participantes e a intensidade da sua expressão. As palavras ventre e bramar, por exemplo, são
significados decorrentes ao termo referido e que expressam ao mesmo tempo a parte do corpo e a
linguagem corporal que dela resulta.
A dança tumba é conhecida tradicionalmente como prática cultural afro-chilena e hoje é
configurada basicamente por dois elementos: o primeiro deles composto pelas dançarinas e o
segundo pelos tambores. No entanto, antes de ocorrer a chilenização, a dança era praticada em uma
roda onde no centro havia homens e mulheres que se chocavam com seus quadris, o chamado
caderazo1. O ato do golpe estava diretamente associada ao termo tumba. Por isso, quando dançavam
na roda costumavam gritar “tumba!!!”. De acordo com o depoimento do Senhor Jorge Llerena,
afro-azapenho, é possível notar o entusiasmo e a alegria da dança em sua época:

“Era un baile muy bonito, divertido. Se tu estavas distraído, paf!!! Te golpeaban y caias en el solo.
Todos se rian. Era una espécie de competición y en certas ocasiones las danzas acontecian com
parejas en el redor de un círculo de gente. E se movian para allá, para acá, tratando de golpear el
opuesto. Bailavamos para el carnaval”

1 O termo “caderazo” deriva de “cadera” que em português significa quadril. O termo é utilizado pelos afro-chilenos
para explicar o movimento do golpe de quadril contra o seu companheiro de dança.
Além do movimento do quadril e o golpe dado contra o companheiro havia outro elemento
importante e fundamental para dançar a antiga tumba: os instrumentos musicais. No tempo do
Senhor Jorge Llerena havia tambores improvisados, construídos artesanalmente pelos próprios
músicos. Chamados até hoje de tumbas esses tambores compunham o ritmo padrão da dança
acompanhados pelos violões e pela quijada. As tumbas afro-chilenas são tocadas por um pequeno
bastão de madeira em alternância com a palma da outra mão. O som produzido é grave, composto, e
é através dele que se produz o ritmo padronizado da dança exigindo dos músicos poucas alterações
ou improvisos. Seu material era composto do barril de azeitona reciclado e adaptado para a
ressonância do som. Além disso, presa à sua extremidade, havia também uma membrana da pele de
algum animal onde o som era produzido com o golpe. As tumbas também eram compostas em
diferentes tamanhos a fim de criar distintas alturas entre graves e agudos.
A quijada, por sua vez, era outro instrumento improvisado que consistia no esqueleto seco e
fervido do maxilar inferior de um burro. Para tocá-lo era necessário segurar com a mão esquerda
pelo espaço livre que ficava entre os caninos e os molares, enquanto a mão direita esfregava com
uma vara sobre os dentes soltos do esqueleto batendo com o punho a parte mais cheia do
instrumento. A quijada era fundamental na tumba porque demarcava na coreografia os golpes de
quadris entre os dançarinos dentro da roda. O conjunto dos instrumentos imprimia na tumba um
padrão rítmico e repetitivo através do qual os dançarinos cantavam estrofes carnavalescas:

“Carnaval de Lluta, tumba carnaval!!!


Carnaval de Azapa, tumba carnaval!!!
Carnaval de Arica, tumba carnaval!!!”2

Contudo, hoje a tumba passa a ter um novo aspecto morfológico. Os grupos Oro Negro e
Lumbanga, engajados em difundir a tumba, usam a própria dança como instrumento de
representação à tradição e aos antigos costumes afro-chilenos. Se antes o baile era praticado em
roda, atualmente há uma disposição uniforme das dançarinas para que as coreografias ensaiadas
sejam representadas nos desfiles de carnaval da cidade e em diversos eventos celebrativos no Chile.
Por conta desse processo, o tradicional caderazo deu lugar ao movimento coreografado das
dançarinas que representam a colheita da azeitona e do algodão, antigos costumes dos afro-chilenos
de Arica. Por isso, entendemos a partir daqui a nítida preocupação desses dois principais grupos
afro-chilenos por recriar os seus antigos costumes através da tumba. Dessa forma, a dança passou a
ser ferramenta cultural pela re-construção da identidade étnica afro-chilena.

2 Trecho de canção do baile tumba. (LARIOS, 2003, p.37)


Em certo sentido, é interessante notar que o informalismo, a afetividade e até mesmo a
diversão que o baile proporcionava antigamente foram substituídos pelo formalismo da coreografia
criada para representar a tumba hoje. Na roda os dançarinos se chocavam, usavam os quadris para
jogar com o corpo em sincronia com o som dos tambores. Os participantes improvisavam nos
passos de dança e se entre olhavam durante a música. A roda era lugar onde o corpo tinha seu
movimento livre para os improvisos e sabia exatamente o momento certo para o caderazo. Esse
improviso, na verdade, começava com a criatividade dos negros escravos em adaptar ferramentas e
objetos em instrumentos de percussão. Como não bastasse isso, o improviso encarnava nos corpos
dentro da roda. Para Tavares a roda é “uma unidade do intertexto que o complexo cultural,
constituído como resistência, estabeleceu, (…) o lugar-texto que contém sub-textos que são os
jogos compostos por frases individuais.”3 Esse “jogo de frases individuais” talvez seja traduzido
pelo improviso da roda capaz de criar um novo universo interativo entre os dançarinos. Na roda a
corporalidade da emancipação também se faz presente quando o dançarino encarna a liberdade de
improvisar, de ir para lá e para cá, assumindo sua negritude e seu poder discursivo. A manipulação
da tradicional tumba para melhor representar sua própria dança, e por conseguinte, a identidade
étnica afro-chilena exige a negociação com as antigas gerações e, por vezes, gera-se alguns
conflitos.
Existe a preocupação dos grupos em retratar a tumba tradicional e por isso é comum
observar nos desfiles de carnaval pelo menos um casal de dançarinos se movimentando afim de
representar a antiga roda. No entanto, a roda (ou a intenção de criar uma) tem caráter complementar
nesses desfiles, já que a tumba atualmente também é usada para novas proposições através de todo
o conjunto do grupo, composto por dançarinos com suas coreografias e dos músicos com seus
tambores. No que concerne aos instrumentos houve pequenas transformações em seu aspecto
prático. As tumbas continuam sendo usadas, porém, não há mais violões ou quijadas. Em vez disso,
os músicos também utilizam outro tipo de tambor chamado repique. Os repiques são tambores que
podem variar de tamanho, ao passo que as tumbas utilizadas são de tamanhos padronizados já que
são recicladas de barris de azeitona. Já os repiques são instrumentos mais flexíveis, podem ser
batucados com as mãos ou com um bastão de madeira, geralmente mais longo e fino. O som
produzido é mais agudo e seco, o que exige do músico uma maior variação e cadência de ritmo. Por
isso, esse tipo de tambor é tratado pelos músicos como instrumento de improvisação enquanto as
tumbas marcam o pulso padronizado, norteando o seu ritmo e o movimento dos dançarinos. Os
tambores ainda são acompanhados uma vez ou outra por outros instrumentos de percussão como o
reco-reco e o agogô, mas não é regra obrigatória o uso desses últimos.

3 TAVARES, Julio Cesar de. Dança de Guerra, Arquivo e Arma. Elementos de uma Teoria da Capoeiragem e da
Comunicação Corporal Afro-brasileira. Universidade de Brasília. Dissertação de Mestrado, 1984.
Existe uma preocupação dos grupos Oro Negro e Lumbanga em manter os instrumentos
tradicionais da tumba sem que haja possibilidade de substituição por outros instrumentos de
percussão, como o pandeiro e outros semelhantes. Dessa maneira, o cuidado pela preservação dos
instrumentos tradicionais ajuda a legitimar a tumba, ainda que tenha sofrido mudanças na sua
morfologia. O afro-chileno Nelson Corvacho lembra que antigamente usava-se um instrumento de
percussão reconhecidamente peruano, mas que hoje foi abandonado propositadamente objetivando
demarcar a fronteira do ritmo e a identidade afro-chilena perante a afro-peruana. De acordo com o
seu comentário, Nelson Corvacho lembra que:

“Antiguamente se usaban cajones y no tambores. La tumba se bailaba en un ronda, en un lugar


fijo, no tenia necesidad de transportar el instrumento. Por eso el uso de los cajones. Habia
guitarras, cajones y la quijada”4

É interessante perceber que atualmente tanto a tumba como o cajón medem bem o nível da
representação da nacionalidade chilena e peruana, respectivamente, bem como as características de
cada afro-localidade. Sabemos que toda a região de Arica já pertenceu ao país peruano e por isso era
comum o uso do cajón nas músicas e danças dos antigos afrodescendentes na cidade. Com o
processo da chilenização, e com o embranquecimento da cultura nacional, não só o cajón caiu em
desuso como também os tambores e todos os instrumentos que poderiam ter associação à cultura
afro-peruana naquela região.
Havendo a necessidade de reproduzir tradicionalmente a tumba, o cajón poderia voltar a ser
usado pelos músicos hoje promovendo maior legitimidade na sua prática. No entanto, esse
instrumento já está naturalmente relacionado à cultura afro-peruana e, para não haver conflitos ou
confusões entre as afro-localidades, os músicos de cada grupo afro-chileno decidiram não usar o
próprio cajón. Por consequência, o instrumento passou a ser um símbolo que demarca fronteiras
regionais da diáspora africana, sobretudo agora, quando o cajón é considerado patrimônio cultural
da nação peruana. Decorre daí o cuidado ou até a repulsa dos músicos em adotar novos ou antigos
instrumentos para complementar o ritmo das tumbas e repiques. Alguns jovens são radicais nesse
sentido procurando preservar a tradição usando somente os instrumentos que remetem à identidade
afro-chilena. Com isso, não há alguma possibilidade dos integrantes, e sobretudo da plateia, em
confundir o ritmo tumba com outros ritmos afros, já que os instrumentos definem as diferenças de
cada localidade e sua identidade étnica.

4 “Cajón” significa caixa grande, em português. Esse instrumento é originalmente afro-peruano e consiste em uma
caixa de madeira retangular onde o músico senta em cima e bate com as duas palmas da mão na sua parte exterior
produzindo um som opaco.
Há também a recusa em usar o pandeiro ou por vezes o agogô mesmo que haja admiração
dos jovens por estes instrumentos e pela cultura musical brasileira. É importante notar também que
o cajón foi sendo abandonado porque o instrumento não oferece a mobilidade que o músico precisa
ter nos desfiles da tumba. Entende-se, com isso, que manipular a tradição é também selecionar os
elementos que dela se originaram para melhor legitimar a afro-chilenidade. É nesse exercício de
selecionar os antigos instrumentos, de agregar novos e de adaptar todos eles para o desfile que a
identidade cultural é moldada. Para Stuart Hall possuir uma identidade cultural nesse sentido “é
estar primordialmente em contato com um núcleo imutável e atemporal, ligando ao passado o
futuro e o presente numa linha ininterrupta. Esse cordão umbilical é o que chamamos de
“tradição”, cujo teste é o de sua fidelidade às origens, sua presença consciente diante de si mesma,
sua 'autenticidade'”(HALL, 2009).
A manipulação do uso e desuso dos instrumentos e das coreografias passa por essa busca de
autenticidade baseada no “cordão umbilical” de Hall. Além disso, a seleção de instrumentos
específicos também é definida pela própria morfologia da dança atualmente, isto é, da estrutura do
desfile composta pelas dançarinas e pelos músicos. Já que os grupos precisam desfilar pelas ruas,
seus músicos precisam de instrumentos que ofereçam certa mobilidade e praticidade para a
reprodução do ritmo. Por isso as tumbas e os repiques são os mais utilizados. Com isso, esses
instrumentos ganham o reconhecimento dado pelos afro-chilenos porque é através deles que a
tradição da tumba se legitima, mesmo que hoje não haja mais a quijada, violões ou o próprio cajón.
É interessante notar ainda que a marcação padronizada que imprimia o ritmo da tumba e
demarcava o momento dos caderazos era realizada pela quijada. E essa marcação padronizada foi
substituída atualmente pelas tumbas. Enquanto as tumbas reproduzem o ritmo mais forte, grave e
padronizado, os repiques acompanham com seu ritmo mais acelerado e improvisado. Porém, para
que o ritmo não tenha sempre o mesmo padrão, os jovens músicos que compõem o grupo Oro
Negro criaram certas variações realizadas pelas tumbas. Essas variações podem ocorrer durante o
ritmo ou podem ser realizadas para anunciar o começo da apresentação. O aprendizado do ritmo
padrão e das suas variações pode parecer um verdadeiro desafio para alguém que nunca realizou
certa experiência.
As tumbas continuam sendo recriadas seguindo a tradição de adaptar o antigo barril de
azeitona em instrumento de percussão. Nesse sentido, o modo de saber é ferramenta para a
reprodução dos antigos costumes e a preocupação do grupo é transmitir para os demais jovens a
tarefa de construir seus próprios instrumentos como antigamente. Para Francisco Piñores, principal
músico do grupo Oro Negro, o resgate da tradição da dança e do artesanato do tambor possibilitam
a melhor divulgação da cultura afro-chilena, permitindo que o país inteiro tome conhecimento da
sua etnicidade viva.
Segundo seu depoimento:

“Hoy en día, existe solo un puñado de personas que saben como fabricar este tipo de tambores, los
que en un principio solo contaban con un cuero de animal clavado al barril por medio de clavos o
tachuelas. Estas personas tienen el interés y la preocupación de enseñar a otras personas de la
comunidad a fabricar este tipo de instrumentos musicales, ya que son una parte característica de
la cultura Afro-chilena”

O desafio é legitimar essas práticas como formas de saber, como um campo cultural ou mais
propriamente o que Foucault alude como uma forma cultural em que “dentro de uma cultura
determinada se organiza um saber, se institucionaliza, libera-se uma linguagem que lhe é próprio e
eventualmente alcança uma forma científica” (FOUCAULT, 1965). Considero o ginásio usado para
os ensaios como lugar estratégico onde se organiza esses saberes resgatando e manipulando a
tradição como um “cordão umbilical” (HALL, 2009) preparando para ser reproduzida nos seus
múltiplos espaços ou arenas.
Esse projeto evidencia a vontade dos que detêm o conhecimento almejando a sua
transmissão e sedimentando não só o costume de fazer os tambores artesanalmente, mas também
valorizando a própria prática, fortalecendo os costumes antigos da população afro-chilena. Dessa
forma, valoriza-se a cultura através da dança e os instrumentos através da sua transmissão às futuras
gerações. Por conta disso, Francisco Piñores criou o curso de fabricação de tambores com a parceria
de Oro Negro e com o investimento da Fondart5. Esse processo de patrimonialização ajuda a
construir a consciência da memória e do passado afro-chileno, já que os tambores, a princípio eram
construídos de barris reciclados.
Antes dos grupos desfilarem suas tumbas pelas ruas de Arica há frequentes ensaios,
sobretudo quando é época de carnaval na cidade. Tanto os músicos como as dançarinas costumam
se reunir no ginásio da Universidade de Tarapacá, a principal da cidade, para aprimorar o ritmo e as
coreografias. As dançarinas costumam compor de quatro a cinco fileiras (depende do número de
jovens), uma atrás da outra, e em cada fileira há geralmente quatro ou cinco dançarinas. Dessa
maneira, o conjunto apresenta uma disposição uniforme para que a dança seja melhor apreciada.
Essa é a morfologia constituída para a apresentação da tumba nos desfiles. As coreografias são
divididas em nove e são alternadas de acordo com o aviso prévio de uma das jovens que se encontra
na primeira fileira.

5 Fondart é sigla de “Fondo Nacional para el Desarrollo de las Artes” e foi criada em 1992 para fomentar projetos
artísticos e culturais de interesse ao país. Administrado pelo Ministério da Educação, a Fondart financia os projetos
previamente aprovados em concurso público convocado anualmente.
Para avisar a mudança de coreografia a jovem primeiro levanta o braço e em seguida assopra
o apito. As principais coreografias se preocupam em representar os antigos costumes dos afro-
chilenos como a produção de azeitonas e a colheita do algodão na zona agrícola da cidade. A
primeira coreografia combinada é a colheita da azeitona. Nela as dançarinas movimentam os braços
para cima e para baixo fingindo colher as azeitonas e colocando em um cesto imaginário preso à
cintura. Os joelhos e o quadril complementam o movimento do corpo que oscila para esquerda e
para a direita. Em seguida as dançarinas iniciam a segunda coreografia que consiste na colheita do
algodão. Nela as dançarinas fingem puxar o algodão com o movimento dos braços para frente e
para trás enquanto se dança para esquerda e para a direita novamente. Já a terceira coreografia
representa o ato de cortar a cana-de-açúcar. Para isso as dançarinas jogam os ombros para frente e
com o braço direito fingem o corte da cana. Ao mesmo tempo o corpo oscila para frente e para trás.
Assim que terminavam de cortar a cana as dançarinas moviam seus ombros e braços para a
esquerda e para a direita e logo em seguida realizavam um giro em torno do próprio eixo.
Nesse processo de produção estética a “interação social” do negro é definida (GILROY,
2000) no ser afrodescendente reproduzida na dança e nos tambores. É necessário lembrar ainda que
essa estética diaspórica nasce na arte do improviso definida por mestre Darcy do Jongo como
“resistência cultural, aquilo que se faz no peito e na raça sem nenhuma tipo de ajuda
governamental”. Com isso, o corpo das dançarinas e o tambor dos rapazes se fundem em um só
criando a “interação social” emancipatória do negro na diáspora.
Enquanto as tumbas e os repiques continuam a ressoar as dançarinas voltam a reproduzir o
passado nas coreografias. Quando o braço e os ombros são movidos para frente como se um grande
peso recaísse nas costas de cada dançarina é realizada a quinta coreografia. Em seguida as
dançarinas se movem para esquerda e para a direita golpeando o ar com seus quadris. E cada golpe
é acompanhado com os calcanhares dos pés levantados. A última coreografia é importante porque
retrata o caderazo, movimento central da antiga tumba. Fica claro que a coreografia idealiza não só
os antigos costumes do dia-a-dia da população afro-chilena, mas também faz menção ao antigo
modo de dançar a tumba. Em seguida é a vez dos ombros serem girados brevemente para frente e
para trás seguidos pelos braços.
A oitava coreografia consiste em um giro do corpo seguido de um movimento de quadril
para esquerda e para a direita. Existe ainda, entre uma coreografia e outra, um movimento básico no
qual as dançarinas balançam os braços com os ombros enquanto os joelhos flexionados dão
sustentação para o movimento do quadril. Esse movimento básico corresponde ao ritmo dos
tambores com sua marcação padronizada, criando assim determinada sincronia entre o corpo e a
ritmo.
Dessa forma, a dança, com o seu conjunto de coreografias, é vista como linguagem corporal,
como discurso a favor de uma afro-chilenidade emergente capaz de promover seu esquema
simbólico e representar os antigos costumes afro-azapenhos. A linguagem corporal é um sistema
representativo cujo processo de transmissão começa na inteligência corpo-cinestésica e termina na
expressão do corpo significando o que dela resulta. Para Tavares a linguagem corporal é “um signo
entendido como momento liminar entre o significante (corpo), o significado (memória corpórea), o
sentido (a resistência/participação) e o referente (a situação específica). E este signo, ou o corpo
como signo, através dos tempos tem-se metamorfoseado em vários sentidos, numa constante”
(TAVARES, 1984). Assim, a coreografia enquanto esquema da linguagem corporal e sistema
representativo estruturada na inteligência cinética-espacial, proporcionará uma carga simbólica
contextualizada na intenção do enunciador. Essa carga simbólica pode ter uma nova interpretação se
ela não for bem enunciada. O gesto de cortar o ar com as mãos possibilita o entendimento do cortar
a cana-de-açúcar se o mesmo gesto for preparado em um contexto e bem representado pelo
enunciador. A coordenação e o senso rítmico, bem como o controle voluntário dos gestos, termina
por produzir o significado desejado.
É nesse sentido que o humano se comporta de modo inato como um ator performático em
sincronia com seu tipo orgânico. Ele é potência animalesca que vai exprimir nos ritos e nas danças
sua violência, criatividade capaz de gerar um esquema representativo da sua identidade, suas
tradições e território. Quando as regras da dança estão dispostas com base na interação e no modo
holárquico dos seus atores a tendência é que a criatividade e, portanto, o improviso estabeleçam o
norte do ritual. Essa interação é capaz de ditar o ritmo da música e a leveza da corporalidade na
roda dos seus atores. O rito em si é sistemático, narrativo, textual, porém, uma vez iniciado, é
sujeito aos imprevistos da pulsão animalesca do ator. É nessa potência psíquica que há a
inexistência de leis e o exercício da criatividade, que criará novos signos, significados enunciados e
traduzidos pelo corpo, criando uma corporeidade simbólica.
Era o ritual da dança em roda que a corporalidade extrapolava as regras impostas no
cotidiano dos antigos afro-chilenos. O biopoder, o controle e a disciplina imposta eram ignoradas
naquele breve momento entre o primeiro pulso da tumba até o último golpe de quadril. Nesse
sentido o corpo era resistência e continua sendo, só que hoje com uma outra lógica e proposição. A
morfologia mudou, mas o fundamento da dança não. A diversão e ao mesmo tempo a indignação
contra o biopoder no passado e presente continuam movendo a corporalidade afro-chilena. A ação
do ritual realizada pelo desfile da tumba alimenta a tradição de um povo, cria novos significados,
media as tensões entre continuidade e mudança, integra os indivíduos no sistema social e não deixa
de ser celebrada com frequência.
Com isso as fricções construídas até o momento na relação inter-étnica são agenciadas pelas
performances dos rituais, ou pelas ações dramáticas (GOFFMAN, 2008), proporcionando arte,
criação, ruptura e reconsideração de uma nova realidade. A incorporação processual dos rituais da
dança no sistema cognitivo permite, portanto, instruir e mobilizar os participantes com seus
interlocutores. Os afro-chilenos com sua performance cultural é capaz de produzir uma uma
narrativa que remete à ancestralidade do seu grupo étnico. As estruturas da dança apesar de não
serem fixas, são construídas pragmaticamente durante a narrativa e os seus significados renovados
através da interação social (SCHIEFFELIN, 1993).
Sheub considera a narrativa como um produto estético, já que seus efeitos sobre a plateia se
traduzem na dança e na música. Quatro elementos parecem determinar a narrativa: as imagens
transmitidas (coreografia), o atores (dançarinas e músicos), a plateia (público), seu contexto
(carnaval), e a tradição (discurso). Entre os atores e a plateia é construída uma rede de cooperação
cuja função é a de colaborar para o desenvolvimento da narrativa e, por conta disso, padrões de
comportamento serão estabelecidos entre os dois. Os músicos e as dançarinas através da sua ação
dramática, corporeidade, constroem as imagens narrativas, o seu repertório que irá culminar na
aceitação e reconhecimento da plateia. Com essa rede cooperativa estabelecida na ação
performática a valorização da identidade é construída processualmente. Uma pedagogia que deve
ser repetida todos os anos, todos os carnavais a fim de que o reconhecimento esteja imbricado às
práticas sociais do dia a dia da população. Para o autor o tempo é uma ferramenta para o
entendimento dos mecanismos de um sistema estético (SHEUB, 1977).
Neste universo estético da narrativa, a performance corporal se manifesta por meio de
mensagens também corporais (coreografia) captadas pela não-verbalidade, pelos gestos emitidos
interagindo e ratificando a linguagem transmitida (GOFFMAN, 2008). Decorre daí a interação com
a plateia que reage prontamente com o ritmo do tambor, batendo palmas e chacoalhando os
calcanhares contra o chão. A coreografia em uma narrativa (desfile) provoca à plateia a noção de
verossimilidade da tradição dos atores. Nessa lógica, há uma interação simbólica entre os atores e a
plateia quando há o reconhecimento das imagens recolhidas pela consciência e transformadas em
reconhecimento. A narrativa, por sua vez, consegue envolver a audiência com seu ritmo, estética e
sensualidade, promovendo no corpo a exteriorização das imagens construídas. O corpo e sua
linguagem gestual evocam as imagens através de um chamamento, uma interpretação convidando a
plateia a participar da narrativa. Os gestos, a sua espacialidade e direção, estabelecem uma conexão
com as imagens verbais, ou com a inexistência das mesmas, ambientadas num contexto rítmico, de
cadência, através da repetição. Sendo assim o corpo é a própria performance, é presença, interação e
cooperação.
O corpo é também poder, ser e estar, intensa construção e transformação, ou seja, é uma
espacialidade de posição, diferentemente de uma espacialidade de situação. É, portanto, na ação que
a espacialidade do corpo se completa. Se não há ação, não há lugar na sociedade, e tampouco o
espaço a ser conquistado pelos afro-chilenos. Nesse sentido Merleau-Ponty explica que o balanço
dos movimentos, os gestos, impressões sinestésicas e articulares produzem linguagem visual para o
momento. E com isso o seu esquema corporal é mais do que resultado das associações estabelecidas
ao longo da experiência, é também uma tomada de consciência dos sujeitos-atores no mundo
(MERLAU-PONTY, 1971).
Em relação a interação entre os participantes é interessante observar que antes a tumba
promovia o contato direto com o outro, no caso o parceiro de dança. Porém aquela improvisação
que havia antes entre os dançarinos na roda perdeu espaço por conta da coreografia. Ainda sim, essa
improvisação foi transferida para os músicos que procuram alterar com o repique algumas variações
o ritmo padrão da tumba. A coreografia deixa de promover o contato com o parceiro para iniciar o
contato com o público no desfile. Tendo isso em vista, é nas ruas que se manifesta com frequência o
baile tumba. A rua é o espaço central da expressão do baile o que facilita naturalmente a sua
aproximação com o público em geral. Nesse sentido, não poderia haver espaço mais público e
democrático que as ruas e avenidas para a conquista de reconhecimento. E por esse intermédio, a
coreografia termina sendo instrumento discursivo para a legitimação da identidade étnica e tradição
afro-chilena.
Como tenho dito, mesmo que a tumba tenha sido modificada em um instrumento político-
cultural cujo local discursivo passou a ser as ruas, algumas de suas características pretéritas ainda
podem prevalecer enquanto outras são deixadas de lado. A tumba antiga de certa forma não deixou
de ser praticada se considerarmos que tal prática nasceu nos quintais e nos núcleos familiares
afrodescendentes. Em época de carnaval, a tumba ainda pode ressoar entre quatro paredes
dependendo da iniciativa e engajamento de cada núcleo familiar. No entanto, esse baile ganhou
novos contornos assumindo uma carga simbólica muito maior quando passou a assumir sua própria
travessia. Significa dizer que a tumba conseguiu transpor as casas e o vale de Azapa para ganhar
ainda mais as ruas, a cidade e o país. Esse movimento do âmbito privado para o público e, por que
não dizer, do local para o global, foi fundamental para o projeto de re-construção da afro-
chilenidade, certa vez ocultada enquanto símbolo tradicional da sua cultura. principal expressão
enquanto performance, estética e qualidade política para mediar a construção e reconhecimento da
etnicidade afro-chilena a nível nacional e local, acabando, por fim, com possíveis fricções étnicas
nesses dois âmbitos.
Assim sendo, os afro-chilenos rompem com as amarras da espoliação cognitiva saindo de
Azapa para ganharem a cidade – não se deve entender este processo apenas de maneira literal. A
partir daí, a cidade Arica recebe a Tumba traduzida no canto, na dança e na corporeidade como
forma política buscando o reconhecimento. Em consequência, nas diferentes arenas da “periferia” a
travessia ganha o asfalto, o reconhecimento local e global. A força narrativa do discurso através da
corporeidade, das performances e do trabalho político dessa etnicidade delineará mais solidamente
o espaço a ser conquistado na sociedade que se diz ser diversa.
Essa emergência de valores para além do seu lugar de origem são reconhecidos e
interpretados pelo outro como novos valores. Valores que terão possibilidades de desenvolver novos
instrumentos de expansão das arenas com o devido trabalho em conjunto com as mediações
institucionais como o Estado e a escola. Assim, cria-se o vínculo institucional fortalecendo a
positividade do viés político-cultural. Portanto, a emancipação está mais do que selada e
encaminhada para novos desenvolvimentos quando as práticas culturais são utilizadas como virtude
ou qualidade estética. Cria-se uma nova estética e comportamento popularizada em todas as classes.
As práticas culturais afro-chilenas, a partir daí, livram-se das amarras cognitivas ou discursivas do
passado, no qual sofreu repressão em prol da cultura majoritária.

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