Segurança no
Trânsito
Casos brasileiros
Autor
J. Pedro Corrêa
Coordenação da publicação
Anaelse Oliveira
Pesquisa
J. Pedro Corrêa
Colaboração
Jonia de Castro Schmaedecke
Apresentação e textos
J. Pedro Corrêa
Projeto gráfico
Saulo Kozel Teixeira
Ilustrações
Nilson Muller
Diagramação e editoração
SK Editora Ltda. (Curitiba, PR)
Revisão
Silmara Vitta
Impressão
Serzegraf (Curitiba, PR)
Reservados todos os direitos. Proibida qualquer forma de reprodução desta obra por qualquer meio ou forma,
seja mecânica ou eletrônica, sem permissão expressa, sob pena de incidir nos termos previstos em lei.
ISBN: 978-85-63034-07-6
CDU 351.81
As opiniões emitidas neste livro são do autor e não representam necessariamente a dos patrocinadores da obra.
Endereço do autor: J. Pedro Corrêa - Rua Coronel Dulcídio, 1596 - Água Verde - 80 250-100 - Curitiba - PR - e-mail: jpedrolivro@terra.com.br
Cultura de
Segurança no
Trânsito
Casos brasileiros
J. Pedro Corrêa
Patrocínio Realização
Quando a Volvo chegou ao Brasil, no final dos anos 1970, trazendo na bagagem a cultura sueca
de segurança no trânsito, deparou-se com a dura realidade das ruas e estradas brasileiras. A
guerra cotidiana mata anualmente mais de 40 mil pessoas, além de deixar milhares de feridos
e prejuízos sem precedentes.
Muito mais que um programa, o PVST é uma missão com o claro objetivo de despertar a so-
ciedade para a problemática do trânsito e estimular a busca de soluções – seja na mudança de
comportamento ou pela adoção de programas ou equipamentos com resultados mais efetivos.
Busca estimular uma cultura de trânsito e reduzir o número de acidentes e fatalidades nas ruas
e nas estradas brasileiras.
Quase 30 anos se passaram. Uma grande mobilização nacional rendeu ao país muitas conquis-
tas. A sociedade está mais consciente e o Programa Volvo teve influência em inúmeras ações
de melhoria no dia a dia do trânsito brasileiro.
Porém, ainda há muito a ser feito. O Brasil, infelizmente, ostenta os primeiros lugares no
ranking entre os países com alto risco no trânsito.
Mas a Volvo, que tem segurança entre seus valores corporativos – ao lado de qualidade e res-
peito ao meio ambiente –, continua inabalável na sua promessa de mobilizar o país e contribuir
para mudar essa triste realidade. Mantém firme seu propósito de ajudar o país nessa transfor-
mação social.
Afinal, já em 1927, seus fundadores preconizavam: “Veículos são feitos para transportar pessoas,
por isso, o princípio de todo o trabalho que fazemos na Volvo é, e sempre será, a segurança.”
Assim, quando o J. Pedro Corrêa, um dos meus mestres, se propôs a escrever este livro sobre
cultura de segurança no trânsito, fui uma das primeiras a apoiar a iniciativa por entender a
extrema necessidade brasileira na área.
São importantes contribuições a tantos outros brasileiros, empresas, governos, escolas, ONGs
para um problema que atinge a todos nós.
Ao apoiar este livro, o Programa Volvo de Segurança no Trânsito cumpre, mais uma vez, seu
papel de instigador de soluções para a paz no trânsito.
Nós, da Volvo e do Programa Volvo de Segurança no Trânsito, temos muito orgulho de apoiar
mais esta obra de um autor incansável na luta em favor de um trânsito mais justo e mais humano.
Solange Fusco
Gerente de Comunicação Corporativa do
Grupo Volvo América Latina
Este livro é dedicado
ao Francisco, meu neto
de três anos, e a todos
os Franciscos e Franciscas
deste Brasil na esperança
de que as sementes
que estamos regando
agora gerem bons frutos
e ofereçam a eles
um trânsito mais humano
e menos violento
no futuro.
“ Se tens
conhecimento,
deixa que
as outras pessoas
acendam
as suas velas
na tua
”
Thomas Fuller,
historiador e religioso inglês
(1608-1661)
Sumário
Agradecimento 12
Muros e pontes 26
Arte 31
Trânsito, teatro e circo 32
Viratrânsito, passo firme de Passo Fundo (RS) 32
Viramundos/Viratrânsito 34
A universidade e o trânsito 39
Pelo Brasil afora 40
Peça essencial 43
Conhecimento 45
Aulas de segurança na Amazônia 46
A Mineração Rio do Norte 50
Escola pobre, mas determinada 52
Para motoristas profissionais 57
O papel da universidade 65
Disseminar cultura de segurança no trânsito 69
Unicamp – Campinas 70
A visão dos pesquisadores 72
Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) 74
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) 77
Cultura 81
Literatura de cordel 82
Cordel na escola 86
Rio reage cantando 90
Música sertaneja entra no jogo 92
Governo 97
Código de Trânsito Brasileiro – 1998 98
Educação de trânsito – a grande falta 102
Políticos, trânsito dá voto! 108
Lei Seca – O Rio fez a diferença 115
Informação 123
Um milhão pressionando pela segurança no trânsito 124
O Popular, de Goiânia 131
Uma rádio dedicada ao trânsito 139
Curitiba: uma campanha memorável 143
Sociedade 187
A sociedade e a segurança no trânsito 188
Joinville: a sociedade disse sim 190
Brasília: mudança de atitude 194
Vida Urgente – a maior ONG do trânsito brasileiro 201
Criança Segura – a serviço de quem precisa 207
Criança Segura: os desafios 210
Abramet: cultura de segurança no trânsito na medicina de tráfego 214
Ação em prol da vida 216
Evolução necessária 219
Gente que faz – histórias de quem não esperou para fazer 224
Fernando Diniz – Do luto, uma luta 225
José Franque – Vida nas curvas da morte 227
Rodolfo Rizzotto – a briga pela segurança 230
Sebastião Pires de Camargo – dedicação e recompensa 235
Conclusão 241
Se foi fácil encontrar a bússola, por que é difícil achar o caminho? 241
Referências 247
Agradecimento
É natural que na abertura dos livros exista uma lista de nomes de pessoas importantes
para a publicação da obra. Minha lista neste livro é bem extensa e por uma razão muito simples:
para resgatar histórias de 10, 15, 20 anos, tive de contar com a boa vontade, paciência e sentido
de cooperação de muita gente.
Esse “resgatar histórias”, na verdade, contemplava outras variantes que não se limitavam ao
tempo passado desde que a ação ocorreu. Em vários casos, a ação desenvolvida já havia cessado
ou, como num único caso, sequer começou para valer, apesar de haver sido planejada,
aprovada, mas na hora H faltou sequência.
Devo ressaltar que praticamente todos os casos contados foram relatados ao Prêmio Volvo de
Segurança no Trânsito nesses 25 anos de atividades. Escolhi alguns que mais me marcaram,
mesmo que não tivessem sido premiados pelo júri. Assim, minhas fontes e contatos eram pes-
soas que tinham tido envolvimento direto com a ação escolhida e foi um trabalho difícil, penoso,
de encontrar, alguns anos depois, os mesmos personagens. Quando encontrados – todos prati-
camente o foram – aí vinha um exercício de memória, de busca de dados, de encontrar mais
informações com terceiros e, enfim, recuperar tanto quanto possível de cada história. Ah, ob-
viamente, em muitos dos locais em que estive durante o período de pesquisa, nunca tinha es-
tado antes, ou, pelo menos, buscando aquele tipo de informação.
Por isso sou muito grato a todos aqueles que ajudaram nessa recuperação histórica. Foi grati-
ficante desenvolver uma investigação desse tipo num período difícil do ano – comecei no final
de novembro de 2011 e fui até a primeira semana de março de 2012 –, justamente cruzando a
época de fim de ano, Natal, Ano Novo, férias, etc.
Pensei em listar um por um dos contatos que me levaram do interior do Rio Grande do Sul ao
coração da Amazônia, passando pela maioria dos estados brasileiros, mas desisti com medo
de deixar de citar algum nome que tenha sido envolvido depois que me encontrava no local e
do qual não tinha informação anterior. Essas pessoas tiveram papel importante no conjunto
dos relatos que faço neste livro.
Assim, ao mencionar genericamente esses amigos, espero que cada um deles se sinta reco-
13
nhecido neste meu profundo agradecimento. Eles foram de grande valia para fortalecer
minha crença que, sim, o trânsito brasileiro tem jeito, que tem gente cheia de entusiasmo,
de capacidade, com enorme potencial a ser explorado. Tudo o que precisamos é que uma
liderança importante do mais alto escalão da República dê um grito de “basta” à violên-
cia do trânsito para que se comece um movimento espetacular para tirar o país do estado
de imobilidade em que se encontra.
Agradecida a fonte – no caso, dezenas, talvez uma centena delas – é a vez de agradecer
quem me possibilitou chegar a elas. Só uma empresa como a Volvo do Brasil seria capaz
de bancar um projeto como este – um livro para falar de cultura de segurança no trânsito
– algo que soa rigorosamente incomum num país que desconhece a cultura de segurança,
premissa para que desenvolva a cultura de segurança no trânsito.
Aqui cabe uma referência ao Ministério da Cultura, que, por meio da equipe da Lei
Rouanet, entendeu a importância de oferecer um trabalho investigativo sobre disse-
minação de cultura de segurança no trânsito no Brasil. Enquadrar o projeto dentro dos
parâmetros da Lei Rouanet exige bem mais que simples determinação: requer paciên-
cia, habilidade e uma vontade sem limites para atender a todos os requisitos da Lei
Federal de Incentivo à Cultura. Felizmente os obstáculos foram superados e a obra
está, doravante, à disposição de uma comunidade cujo tamanho no Brasil não está de-
vidamente dimensionado, mas que certamente atinge algumas dezenas de milhares
de interessados.
Eles são, na verdade, o público-alvo desta publicação, na medida em que já têm um in-
teresse natural pelo tema e buscam mais informações sobre quem são e o que estão
fazendo outros brasileiros pelo país afora. Espero que os relatos ajudem na continuidade
dos seus trabalhos em favor do trânsito deste país.
14
que a sociedade brasileira pudesse contar com esse programa tão relevante, ao longo
dos 25 anos de história. Sempre digo: algo que no Brasil dura mais de 10 anos precisa
ser comemorado. No caso do PVST, deve ser comemorado em dobro ou em triplo porque
realmente sua contribuição foi extraordinária no sentido de alertar a sociedade para o
negligenciado problema do trânsito e contribuir significativamente para o crescimento
registrado ao longo dos anos. Por certo, ainda é uma obra inacabada, mas cabe à so-
ciedade encontrar mais mecanismos para continuá-la.
Quero agradecer de forma especial à jornalista Jônia Castro, pela enorme contribuição
de selecionar os melhores trechos das mais de 150 horas de entrevistas que realizei com
dezenas de contatos por este Brasil afora. Muitas dessas conversas foram gravadas em
locais que não favoreciam uma boa qualidade de som, o que tornou o trabalho ainda
mais penoso.
Um obrigado muito afetuoso à Silmara Vitta, não apenas pela revisão de textos, mas
principalmente pela disposição em contribuir para um melhor alinhamento da obra. Da
mesma forma, um agradecimento ao Saulo Kozel Teixeira pela paciência e sapiência na
solução gráfica do livro. Havíamos começado contando com fotos e ilustrações de todos
os capítulos, o que certamente daria um toque todo especial aos relatos, mas a dificul-
dade de conseguir o total de material necessário nos fez rever a decisão e a solução en-
contrada pelo Saulo é digna dos bons profissionais da área.
Por fim, um agradecimento especial aos meus familiares, minhas filhas Amélia e Isabela,
que ficaram privadas da minha presença durante tanto tempo em razão dos compromissos
assumidos com a publicação do livro. E ao meu neto Francisco, cuja amizade só se fortale-
ceu nessa ausência. Afinal, trata-se de uma causa que, certamente, terá valido a pena.
15
Por que
cultura de
segurança
no trânsito
V ocê possivelmente já ouviu a história dos dois vendedores de sapatos que chegam num
país pobre e no dia seguinte têm reações diametralmente diferentes sobre como desenvolver
seu trabalho. O primeiro, sentindo a pobreza do país, não vê chance de prosperar e manda
telegrama para a empresa: “Mande passagem de volta. Aqui ninguém usa sapato.” O outro,
vendo sua chance de prosperar, manda telegrama para a empresa: “Aqui ninguém usa sapatos.
Mande um milhão de pares!”
Talvez o leitor tenha um pouco de dúvida sobre as razões que me levaram a escrever um livro
sobre cultura de segurança no trânsito no Brasil se aqui não temos esse tipo de cultura. Na ver-
dade, aqui não se trata de oportunidade de negócios, mas de algo muito maior.
Trata-se do futuro de um país e de uma sociedade que para crescer precisa desenvolver uma
série de qualidades ainda não bem sedimentadas. Por sermos um país relativamente jovem,
nos faltam ainda alguns atributos que demandam esforço e determinação para que as raízes se
criem, se fortaleçam e se espalhem pelo conjunto da sociedade.
Por sermos um país com baixos índices de escolaridade, nos faltam noções de civismo, de cidada-
nia, tão marcantes no nosso comportamento no trânsito. Por termos uma educação de baixa qua-
lidade, não temos segurança como um valor, o que ajuda a explicar os índices inaceitáveis de
acidentes de trânsito. No Brasil, morrem no trânsito cerca de 19 pessoas em cada grupo de 100.000
habitantes. Na Suécia – para comparar com o país líder mundial nesse quesito – morrem 3.
Esse abismo é que está na origem deste livro: é fundamental disseminar a cultura de segurança
no trânsito no país para diminuir a distância que nos separa dos chamados países de ponta,
pois é deste grupo que já fazemos parte no lado econômico. Já somos a sexta nação do mundo,
a caminho de nos tornarmos a quinta.
Para sermos uma nação plenamente desenvolvida, temos de ter um trânsito compatível, or-
deiro, civilizado, com baixo índice de vítimas, o que está muito longe do quadro atual. Para
chegar lá, precisamos de uma reforma completa no atual sistema do trânsito brasileiro.
17
duas últimas décadas fizemos progresso e pode-se dizer que no momento a sociedade brasileira
está bem mais atenta às questões e aos perigos do trânsito, mas ainda longe de mostrar um
comportamento que só um trabalho mais profundo de aculturação é capaz de produzir.
Ainda que o jeitinho e mesmo a lei de Gerson (“levar vantagem em tudo”) estejam presentes no
nosso cotidiano atual, é possível perceber que segmentos da sociedade dão mostras de rejeição a
esses comportamentos no trânsito, agora vistos como inadequados e, em muitos casos, condenáveis.
São esses sinais de intolerância e desaprovação que levam a acreditar que estejamos a caminho de
uma cultura de segurança no trânsito condizente com o nível econômico que afirmamos ter.
A ideia deste livro vem de longos anos, quando ficou claro para mim, como profissional da co-
municação social, que só uma mudança profunda na raiz da nossa cultura poderia alterar o
quadro do trânsito nacional. Essa mudança deve ser tão completa quanto possível, cobrindo toda
a pirâmide social brasileira, do mais alto escalão da República até a base da sociedade, passando
pelas escolas de todos os níveis, empresas, entidades, instituições de toda ordem, lideranças, etc.
Para que isso ocorra, cabe ao governo dar os primeiros passos para que a sociedade, notada-
mente pelas suas lideranças, acompanhe. Em minha opinião, o país está pronto para essa virada
monumental e as evidências estão aí nos desafiando:
1. Nossa qualidade de educação, ainda que em estágio modesto, está decolando, o que é
promissor;
2. Continuamos um país desigual, mas nossa desigualdade já é bem menor do que há al-
gumas décadas. As camadas sociais mais desprovidas hoje são menos pobres e já con-
seguem ter mais informação sobre crescimento social e ordem (catadores de materiais
recicláveis, muitos já organizados em cooperativas, são exemplos dessa mudança);
3. Na medida em que a classe média se amplia, passa a ter mais consciência do seu papel
e da importância de valores como segurança, por exemplo, o que, por enquanto e no
mínimo, a torna mais atenta aos riscos do trânsito mesmo que não os absorva por com-
pleto e muito menos os respeite;
18
6. O próprio governo, em todos os níveis, tem melhorado seu discurso sobre a segurança
no trânsito, embora isso não tenha sido traduzido na prática. Ao menos indica que co-
nhece o caminho.
O leitor mais exigente e talvez mais consciente pode achar que tudo isso é muito pouco, e cer-
tamente é, mas se compararmos com o que tínhamos há algumas décadas, não deixa de ser um
avanço considerável.
Tenho convicção (ou será torcida?) de que, se o governo acenar com intenção clara de provocar
uma verdadeira revolução no nosso trânsito, terá uma resposta concreta e à altura por parte
da sociedade civil, incluindo o setor privado. Há muita coisa por fazer, mas, como sabemos,
grandes caminhadas começam com um primeiro passo.
Um esforço nacional de inserir cultura de segurança no trânsito é tarefa para uma, duas dé-
cadas, uma geração, quem sabe mais um pouco. Com o incrível desenvolvimento da tecnologia
de hoje talvez seja possível em menos tempo.
Seja como for, estamos atrasados para esse amanhã. Assim, que comecemos logo.
19
O que é cultura
de segurança no trânsito
No Brasil, de maneira geral, não se pode dizer que a expressão é nova, mas ela entrou no vo-
cabulário cotidiano a partir do evento de Chernobyl. Na verdade, temos até certa dificuldade
de entender o que, na prática, significa cultura de segurança. A rigor, em muitos países, isso
tampouco está bem claro.
Em seu livro Improving safety culture: a practical guide (Aperfeiçoando a cultura de segurança – Guia
prático), o engenheiro Dominic Cooper descreve numa frase curta a cultura de segurança de
uma empresa como “o jeito como trabalhamos no nosso ambiente”. Bem simplista, mas dá uma
ideia clara do que se trata.
Há definições mais rebuscadas, bem completas, como a do inglês Barry Turner, usada numa
conferência do Banco Mundial em Karlstad, Suécia, em 1989: “Conjunto de crenças, normas,
atitudes, papéis e práticas sociais e técnicas que objetivam minimizar a exposição de emprega-
dos, gerentes, clientes e público em geral de situações consideradas perigosas e que podem
provocar ferimentos.”
Transportada para a área de trânsito, a cultura de segurança pode ser entendida como a maneira
como os usuários do trânsito se comportam para evitar acidentes e ferimentos.
Se até a virada do século cultura de segurança era algo não tão comum nas empresas, a partir
do ano 2000 o cenário mudou muito e a prática passou a ganhar cada vez mais espaço nas or-
ganizações, notadamente naquelas cujas atividades comportavam um certo risco de acidentes.
Atualmente empresas investem verdadeiras fortunas em programas de segurança e ao mesmo
tempo na incrementação de cultura de segurança em seus colaboradores, clientes e fornecedores.
20
A indústria do petróleo é um exemplo de preocupação com segurança, não apenas em suas
operações fora da costa marítima, mas também nas explorações em terra firme, no transporte
de combustível e demais operações cotidianas. O setor de transportes de cargas perigosas –
combustíveis, produtos químicos, etc. – tem bom programa de segurança no transporte, bem
como um ótimo sistema de atendimento de emergência nos casos de necessidade. Nessas
ocasiões, geralmente contam com o indispensável apoio de bombeiros, policiais rodoviários,
todos devidamente treinados para atender qualquer situação.
No Brasil, fora desses setores, algumas empresas, notadamente as multinacionais, mas não só
elas, têm excelentes programas de segurança no trânsito, principalmente voltados para o trans-
porte de seus produtos. Vários casos são contados neste livro porque, além de praticar bons
serviços de segurança, se preocupam também em disseminar os conhecimentos para fun-
cionários, familiares, clientes, fornecedores, etc., contribuindo muito para o fortalecimento de
uma cultura de segurança de trânsito.
21
Questão
de educação
Senador Cristovam Buarque
T emos várias explicações para a tragédia do
trânsito no Brasil. Desde econômicas, excesso de au-
tomóveis em relação aos investimentos em obras
viárias; psicológicas, do espírito irresponsável e aven-
tureiro do brasileiro; histórico, por termos passado
muito rapidamente do bonde para o carro, do ju-
mento para as motos. Mas certamente a melhor ex-
plicação para nosso fracasso, que vitima de morte
50.000 brasileiros e provoca talvez mais 50.000 por- Cristovam
tadores de deficiências físicas e mentais anualmente, Buarque
Um exemplo do acerto no enfoque educacional é o êxito das faixas de pedestre no Distrito Fe-
deral. Do ponto de vista da engenharia, foi necessário apenas pintar e iluminar as faixas. Tudo
mais foi um processo educacional ao longo de meses.
A ideia das faixas foi trazida para mim, então governador do DF, pelo engenheiro Luís Riogi
Miura, que dirigia o Departamento de Trânsito da cidade. No primeiro momento, houve uma
reação contrária do núcleo central do governo, temeroso de que o funcionamento das faixas
levasse a muitos acidentes. Logo o Miura mostrou uma estratégia para a implantação do sis-
tema inédito no Brasil.
23
Os "instrutores" distribuíam flores, de vez em quando uma simpática reprimenda, conversavam
com os motoristas, ensinavam aos pedestres seus direitos e como colocar o braço estirado até
que os carros parassem.
Foi importante, sobretudo, ganhar o apoio das crianças. Dentro dos carros elas insistiam para
que seus pais-motoristas parassem. Isso dava um sentimento de poder na criança. Foi essa
subversão da relação motorista-pedestre que permitiu o sucesso do programa. Tudo passou
a funcionar quando os motoristas descobriram que tinham o poder de parar o carro, o poder
da dignidade do comportamento elegante, cívico e educado. O pedestre, ainda mais que o
motorista, fez a subversão mais radical em um país cuja cultura está no poder do motorista,
ao perceber o poder que tinha de parar até o mais potente e caro automóvel com um simples
gesto de mão.
Mas talvez a faixa não tivesse prosperado sem a campanha maior chamada Paz no Trânsito.
Quando ela começou, em 1995, Brasília era a capital da mortalidade no trânsito. Foi preciso
uma campanha forte de educação e de repressão por meio de multas. Os “famigerados par-
dais” – em outros lugares têm outros nomes – foram espalhados pela cidade e passaram a mul-
tar os motoristas, até que eles passaram a atender aos sinais de limite de velocidade. Na frente
do Palácio do Governo foi colocado um grande painel indicando o número de mortes em cada
mês. O sucesso, com drástica redução no número de mortes, rapidamente apareceu e todos
começaram a perceber a importância do limite de velocidade.
Lembro-me de um taxista que ao me deixar em casa pediu um autógrafo para a mulher dele
dizendo que pessoalmente não gostava dos pardais que eu implantei, porque custou-lhe mul-
tas, até se acostumar a respeitar os limites, mas que a mulher dele era muito agradecida porque
passou a dormir tranquilamente enquanto ele trabalhava.
Uma das maiores provas do êxito apareceu quando pudemos mostrar a redução no número
de acidentados que chegavam ao hospital de politraumatizados. Antes da campanha Paz no
Trânsito, nos finais de semana havia acidentados pelos corredores dos hospitais com poucos
meses de campanha, comecaram a sobrar leitos. Outro exemplo surpreendente foi quando os
oficineiros me procuraram para dizer que necessitavam de um empréstimo do Banco do Estado
(BRB) para financiar mudança de ramo no trabalho deles, devido à redução nos serviços de
lanternagem.
Mas a grande vitória foi quando a população passou a se orgulhar do trânsito ordenado em
sua cidade. Sobretudo porque o cidadão passou a ser o ator principal; não mais os engenheiros
24
nem os sinais de trânsito, mas o motorista e o pedestre, unidos no respeito mútuo na cidadania.
No lugar do sinal de trânsito frio e autoritário, a vontade livre, mas respeitosa.
Essa é uma lição que o trânsito oferece para o conjunto da educação social: fazer com que as
pessoas sejam livres, mas respeitosas, sabendo compor um pacto entre motoristas, e deles com
os pedestres. Trânsito é uma questão de educação, com o propósito de mudar mentalidade. E
como tal, quando dá certo, é uma lição para todos os demais aspectos da sociedade.
Cristovam Buarque
Governador do DF entre 1995-1999;
Ministro da Educação entre 2003 e 2004;
Atualmente senador pelo Distrito Federal
25
Muros
e pontes
A publicação deste livro atende a uma ideia tão simples quanto objetiva: registrar
histórias de quem tem ajudado o Brasil a criar cultura de segurança no trânsito. Pode parecer
estranho, pois sabemos que ainda não temos tal cultura, mas todos sabemos também do pro-
gresso registrado nas últimas décadas nas questões de trânsito.
Desde o começo do planejamento deste livro, estava claro que não poderia pretender contar os
“melhores casos”, mas identificar alguns que me marcaram ao longo da história do Prêmio
Volvo de Segurança no Trânsito. Desde o início do Prêmio Volvo, foi minha a tarefa de fazer a
primeira triagem dos trabalhos concorrentes para, depois, encaminhá-los ao júri externo, que
tinha, então, a responsabilidade pela indicação dos vencedores.
Nem sempre meus palpites de quem iria vencer o prêmio “batiam” com a decisão dos jurados,
o que sempre considerei natural. Afinal, se somos diferentes, temos diferentes opiniões e assim
julgamos pelos nossos critérios.
Contudo, das milhares de histórias que passaram pelo meu crivo, um bom número me marcou
muito e algumas nem ficaram com prêmio algum. Outras sequer foram vencedoras no sentido
de conseguirem transformar em realidade o que seus autores haviam idealizado.
Para mim, contava muito a maneira como os projetos eram concebidos, seus objetivos, seu
plano de ação e, obviamente, os resultados que deles se poderia esperar quando concretizados.
Não era importante o tamanho do projeto nem a importância de quem o propunha, mas, sim,
para ganhar o meu voto, era fundamental o espírito com que era construído e como poderia
contribuir para melhorar a segurança no trânsito brasileiro.
Por isso o conjunto de casos deste livro é um mosaico de peças bastante diferenciadas, que ao
final reflete um pouco o Brasil incompleto, em busca de uma identidade no trânsito que reflita
a verdadeira personalidade da nossa gente.
Para contar essas histórias, estive em dezenas de cidades de todas as regiões do país. Foram
muitas horas de avião, de carro, de noites de hotel e, claro, de muitas e prazerosas conversas.
Muitas delas se estendiam noite adentro, varando para o dia seguinte.
27
Minhas escolhas tinham sido baseadas nos 25 anos de atuação no Programa Volvo de Segurança
no Trânsito, que me deu a oportunidade de conhecer literalmente todo o Brasil por meio de
eventos nacionais e regionais, palestras, debates e mesmo outros trabalhos na área que desen-
volvi como consultor independente. Os cases que concorreram ao Prêmio foram, certamente, a
fonte principal.
No lado frustrante da longa jornada, em alguns dos lugares percebi que o trabalho desen-
volvido e inscrito no Prêmio não tinha tido continuidade e já estava esquecido. Nem sequer
tinha sido substituído por outro que pudesse ser chamado de aperfeiçoado.
É possível ver com clareza os diversos brasis. Vê-se com facilidade onde o governo se envolve
com pouco entusiasmo e muito objetivo populista e talvez eleitoreiro, onde a determinação das
pessoas fala mais alto e consegue prevalecer, onde o agrupamento de pessoas – ONGs ou não
– mostra a força da comunidade e onde o setor privado usa inteligência, tecnologia, respon-
sabilidade social para criar um mundo muito mais seguro ao seu redor.
A imagem clara dos mais de três meses de incursão por este arquipélago Brasil é que sobram
muros e faltam pontes. Há várias ilhas de excelência mostrando progressos e resultados, mas
constata-se um número incrivelmente maior de outras em busca de uma ponte que possa ligá-
las à modernidade e à sustentabilidade. Para termos um Brasil mais igual no trânsito, o desafio
é transformar os muros nos quais se encastelam pessoas, empresas e entidades em pontes de
acesso àqueles que precisam e buscam informações de como melhorar.
Muitos desses muros não são nem foram construídos pelo egoísmo de concentrar o saber para
uso próprio, mas pelas dificuldades do processo de comunicação, talvez pela ausência de uma
visão mais proativa do trabalho comunitário e, claramente, em muitos casos, pela falta de con-
tatos de eventuais interessados em conhecer bons processos.
É importante relembrar que segurança no trânsito nunca foi uma prioridade por aqui. Se procu-
rarmos na história brasileira alguma experiência voltada à segurança constataremos o quanto
isso foi negligenciado.
Washington Luís, último presidente da chamada República velha, que governou o país de 1926
a 1930, cunhou a famosa expressão “governar é abrir estradas”. Juscelino Kubitscheck, que as-
sumiu em 1955 com seu ambicioso Plano de Metas, que incluía a construção de Brasília, deu
grande impulso ao que chamava de desenvolvimento econômico do país. Por esses dois exem-
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plos, percebe-se o sonho de crescer, mas observa-se claramente que não havia a preocupação
de crescer com segurança. Segurança, na verdade, nunca esteve presente no cotidiano nacional.
Segurança no trânsito, menos ainda.
Há um episódio interessante que ficou conhecido na história como a Revolta da Vacina e que
se passou no governo de Rodrigues Alves (1902-1906). Em 1904, o Rio de Janeiro, capital do
país, mostrava (já naquela época) um inchaço urbano, com o fim da escravatura e a imigração
europeia, e sofria profundamente com problemas de saneamento básico, o que provocava
graves epidemias, como febre amarela e peste bubônica. Rodrigues Alves nomeou Oswaldo
Cruz chefe do Departamento Nacional de Saúde Pública com a missão de atacar o problema,
criando a lei da vacina obrigatória, que permitia inclusive o uso da força para entrar nas casas
e vacinar a população, que se rebelou. Meses depois, a lei acabou sendo revogada.
Estou convencido de que se pudesse estender este meu trabalho teria acrescentado outros bons
exemplos de histórias de sucesso. Contudo, como tinha limites para a produção do livro, estou
muito satisfeito com o que consegui. Fica, assim, a sugestão a outros interessados para que
busquem caminhos similares aos que eu percorri e encontrem casos tão ou mais interessantes
do que os que publico neste livro.
Seria uma ótima contribuição à disseminação da cultura de segurança de trânsito neste país.
29
“ A arte diz
o indizível;
exprime o
inexprimível,
traduz
“
o intraduzível
(Leonardo da Vinci)
1
Dicionário Houaiss;
2
Dicionário Houaiss;
3
Enciclopédia Encarta;
4
ArtCyclopaedia;
5
Hipócrates, filósofo grego;
6
Shelley Esaak, norte-americana, escritora sobre a história da arte
A ARTE
Por que arte:
Viratrânsito
PASSO FIRME DE PASSO FUNDO (RS)
COMO MANIFESTAçãO POPULAR, o circo é das artes mais antigas do mundo, existindo
há mais de 4 mil anos. Dos chineses aos gregos, dos egípcios aos indianos, passando pela
grande fase no Império Romano até chegar ao modelo britânico no século XVIII que conhe-
cemos até hoje, o circo sempre foi um fator de arte e entretenimento dos povos.
No Brasil desde o século XIX, trazido por europeus, o circo conquistou seu espaço que,
aos poucos, foi se dividindo com outros tipos de arte, mas resistiu. Na verdade, com o cres-
cimento vertiginoso das cidades e o surgimento de novas formas de entretenimento, o circo
moderno mudou sua forma de apresentação, mas não mudou o jeito de encantar as pessoas.
Não se conhece na história algo que tenha provocado tanto fascínio e atenção como o
circo. Nas crianças, ele estimula o espírito lúdico, o sonho, a fantasia e o encantamento. Já
nos adultos, provoca um retorno ao passado romântico, reanima emoções esquecidas e ofe-
rece um resgate da paixão pela vida. Numa palavra, o circo apaixona.
Eu mesmo, quando falo de circo, sempre me emociono. Nascido em família grande
e pobre, da minha infância na pequena Gaspar, em Santa Catarina, lembro da chegada
do circo na cidade, que imediatamente passava a ser o grande assunto de todos. Lem-
bro-me de alguns dos grandes circos, o Sarrazani e o Orlando Orfei, mas muitos outros
passavam e do mesmo jeito atraíam muita gente para seus espetáculos – a preços módicos
–, claro. O circo era – e possivelmente continua sendo até hoje nos grotões do Brasil –
um encantador de multidões.
Em Passo Fundo, a 300 km ao norte de Porto Alegre, estudantes e professores da
Universidade Passo Fundo (UPF) criam, em 1992, um grupo de teatro amador chamado
Viramundos. A troupe viaja num ônibus itinerante pelo interior gaúcho com um espetá-
culo e um desafio: ir aonde o teatro nunca vai ou pouco acontece. Obtém apoio da uni-
versidade e da comunidade, faz sucesso e, consolidado, percebe que pode fazer mais:
trabalhar o teatro como instrumento de educação social! Destemidos e obstinados, esses
33
Viramundos/Viratrânsito
Se você chegar, como eu, a Passo Fundo, capital do Planalto Médio do Rio Grande do
Sul, no final de tarde de um dia comum de trabalho, se dará conta imediatamente de
que ela padece dos mesmos problemas de trânsito de qualquer cidade brasileira de porte
médio ou grande. Só para atravessar os pouco mais de 10 quilômetros da Avenida Brasil,
que corta a cidade, demorei quase uma hora, bem típico de cidades muito maiores.
Com cerca de 200 mil habitantes, Passo Fundo é cidade-polo da região de mais de
100 municípios. Nos últimos anos, ganhou notoriedade por organizar eventos de grandes
proporções no campo da literatura, do folclore e outras áreas.
Embora não tenha nascido na cidade, o maior nome passo-fundense ainda é Vitor
Mateus Teixeira, o famoso cantor Teixeirinha, nascido em Rolante, na encosta da Serra
Gaúcha. Com mais de 25 milhões de discos vendidos pelo mundo afora na década de
1960, Teixeirinha é apontado, no museu que leva seu nome em Passo Fundo, como o
maior cantor e compositor gaúcho.
Uma das grandes forças da cidade vem da UPF, a Universidade Passo Fundo, fun-
dada em 1968, e que se firmou como uma das maiores do interior do Rio Grande do Sul.
Com 59 cursos de graduação, dezenas de especializações, mestrados, doutorados, pós-
doutorados e seis campi em toda a região de abrangência, a UPF luta intensamente para
ser reconhecida como uma das melhores do país.
Foi na UPF que há 20 anos começou o interesse de juntar teatro e trânsito, com a for-
mação de um grupo de extensão de teatro. A ideia era fazer teatro como proposta tam-
bém para educar, sensibilizar e resgatar essa arte que acompanha os homens e as
mulheres ao longo de séculos. Primeiro era só um projeto de extensão na universidade,
coordenado e dirigido por uma jovem professora idealista.
No início, em 1992, eram pouco mais que 20 estudantes, mas logo a turma foi cres-
cendo e ganhando força. Na época, a reitoria da UPF percebeu a importância do movi-
mento que se iniciava e concedeu bolsas de estudo aos participantes, o que consolidou
o grupo.
Em 1996, fazendo apresentações para público infantil, ele marcou presença com a
peça Ari Areia, um grãozinho apaixonado, texto de Fátima Ortiz e Enéas Lour e direção de
Marcio Meneghell e Piéterson Duderstadt, mostrada pela primeira vez no Teatro Guaíra
de Curitiba. Em 1998, o Grupo de Teatro da UPF já havia se profissionalizado e recebia
Peça essencial
Os projetos podem se diferenciar entre si, podem ter custos que variem muito, bem como podem
ter enormes diferenças quanto às ambições e objetivos, mas todos têm um ponto em comum: al-
guém que se propõe a coordenar a operação. Sem essa figura, a chance dos projetos terem su-
cesso diminui drasticamente. É essa pessoa que assume a carga maior de conduzir a ação, de
colocar o trem nos trilhos e fazê-lo andar.
Nos próximos capítulos conheceremos outros carregadores de piano e constataremos que, sem
eles, alguns projetos dificilmente teriam chegado aonde chegaram.
1
Dicionário Houaiss (compilação do autor)
C
CONHECIMENTO
Por que conhecimento:
A intenção de colocar CONHECIMENTO
como tema do segundo capítulo ampara-se na
extraordinária necessidade de melhorar
o saber brasileiro sobre questões de
segurança no trânsito.
Neste capítulo, veremos histórias de
instituições de ensino que, cada uma do seu jeito,
marcaram de maneira especial suas formas de
disseminar conhecimento sobre segurança no
trânsito. O que constatei aqui é que segurança
não é uma questão de ricos ou pobres (empresas,
ONGs, escolas, pessoas), nem do Sul nem
do Norte – o que vale é a atitude daqueles que
querem fazer a diferença.
Aulas de segurança
na Amazônia
SOBREVOAR A AMAZôNIA É SEMPRE UMA EXPERIêNCIA INTERESSANTE e, mui-
tas vezes, fascinante. A viagem que fiz, em dezembro de 2011, foi inesquecível. Estava
animado pelo motivo que me levava ao interior daquele pulmão verde do Planeta. Estava
indo visitar Porto Trombetas, no oeste do Pará, a quase 900 km de Belém e a cerca de 400
km de Manaus. Ali se localiza a Mineração Rio do Norte, uma associação entre Compa-
nhia Vale do Rio Doce, BHP Billiton, Alcan, CBR, Alcoa, Hydro e Abalco para extrair e
comercializar bauxita, a matéria-prima do alumínio.
Apesar de ter chegado em Belém às 11 horas da noite, nem me incomodei de levantar
às 4 da manhã seguinte para pegar o voo das 5h27 para Trombetas. Tinha curiosidade
de acompanhar, do avião, o nascer do sol na Região Amazônica, mas o que queria mesmo
é conhecer Trombetas e sua exuberante segurança. Valeu a pena!
Para apoiar o complexo montado às margens do Rio Trombetas e no meio da Selva
Amazônica, a Mineração Rio do Norte (MRN) construiu a cidade de Porto Trombetas, um
núcleo urbano com completa infraestrutura de saneamento básico e social. Ali tem de
(quase) tudo.
O complexo Trombetas, situado a 70 km da sede do município de Oriximiná, a 240
km de Santarém, conta com usina de geração de energia, sistemas de suprimento de água
potável e de tratamento de esgoto. A cidade – cerca de 7 mil habitantes – é constituída
por aproximadamente mil casas, alguns dormitórios para mais de 1.500 funcionários sol-
teiros, além de um hotel para visitantes. A infraestrutura é bastante boa: escola até o en-
sino médio, com capacidade para mais de mil alunos; hospital com 32 leitos e serviços
laboratoriais; clubes de lazer; cine-teatro; Casa da Memória; centro comercial; aeroporto
e, naturalmente, um bom sistema de comunicação nacional e internacional. Além disso,
um bem estruturado programa de medicina preventiva e assistencial assegura boa qua-
lidade de vida à população local. Graças a ele, Porto Trombetas possivelmente seja o
único local da Amazônia onde não há dengue nem febre amarela.
A Escola Professor Jonathas Pontes Athias, mantida pela Mineração Rio do Norte
através da Fundação Vale do Trombetas, fornece ensino gratuito a todos os dependentes
1.
Empowerment, ou delegação de autoridade, é uma abordagem a projetos de trabalho que se baseia na delegação
de poderes de decisão, autonomia e participação dos funcionários na administração das empresas. Analisa-se
o desenvolvimento, ou grau de maturidade, do empowerment na organização, avaliando o estágio evolutivo em
que se encontram as áreas de gestão, as configurações organizacionais, as estratégias competitivas, a gestão
de recursos humanos e a qualidade. O empowerment parte da ideia de dar às pessoas o poder, a liberdade e a
informação que lhes permitem tomar decisões e participar ativamente da organização. (Fonte Wikipedia)
Escola pobre,
mas determinada
A HISTóRIA DA ESCOLA CECÍLIA MEIRELES, na zona norte de Juiz de Fora (MG), é
muito diferente da Professor Jonathas, de Porto Trombetas. A de Trombetas é particular,
mantida por uma empresa de porte internacional, enquanto a de Juiz de Fora é munici-
pal, fica numa área originalmente pobre, na periferia, e que sempre enfrentou, entre ou-
tros, perigos do trânsito.
Quando falei da Escola Professor Jonathas Pontes Athias, ressaltei a impor-
tância de uma liderança, de um carregador de piano para manter projetos so-
ciais em movimento. No caso da Escola Cecília Meireles, a história se repete.
Em 1982, quando a professora Olga Carmelita Stussi Coelho Rosa as-
sumiu a direção, a escola tinha 220 alunos e muitos problemas, entre
os quais um alto índice de reprovação. O bairro Nova Era, onde se
localiza a escola, enfrentava os problemas tradicionais da periferia,
mas começava a crescer com novos comércios e novas indústrias. O
desenvolvimento do bairro ajudou em alguns pontos, mas trouxe ou-
tros problemas até então inexistentes – um dos mais importantes foi
justamente o dos perigos no trânsito.
Em poucos anos, a escola passou de 220 para mais de mil
alunos, chegando a 1.600, depois estabilizando em 1.300.
Com o crescimento da escola, não só no número de alunos, mas
também na qualidade do ensino, ela passou a ser disputada fer-
Olga renhamente pelos pais que, então, já não moravam apenas no entorno,
Carmelita
mas a alguma distância.
‘‘
a comunidade do entorno, criando um verdadeiro espírito
A Escola Cecília
de grupo. Os projetos mostrados pela Escola cobriam uma
Meireles é a maior vencedora
grande variedade de temas: iam de discussões entre alunos
do Prêmio Volvo na categoria
que geravam recomendações sobre comportamento em re-
Escola. Venceu quatro deles:
lação às novas ameaças do trânsito nas imediações ao com-
1994, 2000, 2001 e 2004,
portamento dos ciclistas, estudos sobre distância de
sempre com trabalhos
segurança, problemas das motos de Juiz de Fora até projetos
diferenciados e julgados por
sobre revitalização da Avenida Presidente JK.
júris diferentes. O importante
Essa é a explicação, na minha leitura, para o sucesso
é que sempre envolvia os
da escola nas suas empreitadas: a união de forças com a
pais e muitas vezes a
comunidade e lideranças da vizinhança. Saber o que
comunidade do entorno,
pedir, a quem pedir, envolver pessoas-chave, sem que
criando um verdadeiro
sejam necessariamente importantes, é uma ação estratégica
espírito de grupo
do maior peso. Costurar o pacto, ganhar a confiança da
comunidade local, melhorar o nível de compreensão dos
problemas do bairro, principalmente os do trânsito, e jun-
tar forças para resolvê-los foi, certamente, o maior mérito da diretora Olga.
Ela, pelo jeito, gosta de desafios de porte: em 2008, deixou a Escola Municipal Cecília
Meireles e foi dirigir outra escola municipal, a Gilberto de Alencar, no bairro de Aldeia Náu-
tico, cerca de 20 km do centro de Juiz de Fora. Por coincidência, a escola atual tem muita si-
milaridade com a Cecília Meireles dos primeiros tempos: mesmo número de alunos, cerca
de 220, numa área pobre do município, famílias desfavorecidas, localização desfavorável,
numa curva, onde o cuidado com o movimento de veículos precisa ser redobrado.
‘‘
necessidade do mercado. Além do mais, têm um papel importantís-
simo na disseminação da cultura de segurança no trânsito no país. Essas escolas,
Não vamos esquecer que o transporte de cargas é um setor de que tanto formam novos
enorme importância para a segurança nas ruas e estradas brasileiras e motoristas como
que considerável parcela de motoristas não teve formação adequada (re)qualificam os mais
e por causa disso não tem o comportamento seguro no trânsito como antigos, têm prestado
era de se esperar. Assim, o papel dessas escolas é de requalificar os bons serviços ao setor,
condutores e devolvê-los ao mercado com outros conhecimentos que pois oferecem serviço
os tornarão não apenas melhores motoristas, mas principalmente me- considerado de boa
lhores cidadãos. qualidade e ajudam a
Conheço seis centros de treinamento atuando pelo Brasil: o pri- diminuir o tamanho da
meiro a aparecer foi a Fundação Adolpho Bósio de Educação no Trans- necessidade do mercado
porte (Fabet), em Concórdia, no oeste de Santa Catarina. Depois
surgiram o Centro de Treinamento da Região Nordeste do Rio
Grande do Sul (Centronor), em Vacaria, no Rio Grande do Sul; o Centro de Treinamento
e Qualificação no Transporte (CTQT), em Maringá, no Paraná; o Guia Volante, da As-
sociação dos Transportadores de Carga de Mato Grosso (ATC), de Rondonópolis; o
O grande orgulho de Renato são as Gavetas dos troféus, meia dúzia de gavetas de uma
cômoda, em que ele coleciona uma centena de maços de cigarro abandonados pelos mo-
toristas durante os cursos. “O gesto espontâneo dos motoristas, entregando na frente
dos colegas o maço de cigarros e prometendo nunca mais fumar, é algo tocante de-
mais como manifestação de mudança de comportamento”, afirma Renato.
Na verdade, ele afirma que no detalhamento do módulo 1, dedicado à direção de-
fensiva, observa que os motoristas demonstram grande curiosidade, pois uma grande
parte deles desconhecia certas técnicas que tornam o ato de dirigir mais seguro. Essa é
apenas uma das evidências que o faz afirmar que há muito amadorismo dentro das em-
presas de transporte de carga.
Paulo Ricardo Ossani, diretor executivo da Transportes Cavalinho, uma das em-
presas sócias da Centronor, concorda que está cada vez mais difícil encontrar bons
motoristas. E ele comanda 400 motoristas que dirigem seus 380 caminhões. “Motorista
não se forma em escola, ele vem do meio e com os vícios que esse meio tem. Ele
aprende por si só. Por exemplo, ele não tem o hábito de ler as notas fiscais que re-
cebe, se derem uma nota de carga de 500 batatas ou de 5 mil, pra ele é a mesma
coisa”, exemplifica.
Essa constatação ajuda a explicar a preocupação dos sócios em criar o Centronor.
“Quando iniciamos a escola, era para dar orientações gerais, porque há oito anos o
cenário transportador era bem diferente de hoje, mas ainda mais necessitado.” Os ou-
tros sócios, Francisco Schio e Irani Bertolini, gostaram da ideia. Já que a escola não seria
mais de fundo de quintal, decidiram envolver parceiros de peso que pudessem dar su-
porte, não só material, mas para a divulgação do projeto. Foram procurar a Random,
n Social
Diz respeito a todo e qualquer cidadão, de qualquer idade, sexo, classe social, política
ou religiosa, vale dizer a toda sociedade brasileira;
n Economia
Os acidentes de trânsito custam muito mais que os R$ 30 bilhões anuais estimados
pelo IPEA, ao se referir a um cálculo sobre perdas num universo bastante grande da
realidade brasileira, mas não completo. Em razão da informalidade tão presente na
economia brasileira, certamente os cálculos não cobrem os milhares de acidentes que
sequer são atendidos pelos órgãos que atuam no trânsito:
A indústria da segurança no
trânsito no Brasil
Automóveis
Ônibus
Encarroçadoras
Educação Transportadoras
Pronto-socorros
Consórcios Bicicletas
Hospitais
Emergências Autopeças Usados
Motocicletas Caminhões
Implementos Lubrificantes
Mídia Logística
Rastreamento
Seguradoras
Pneus
n Saúde
Trânsito é considerado pela Organização Mundial da Saúde como assunto de saúde
pública, o que oferece por si só várias alternativas de intervenções por parte da uni-
versidade:
• O estresse, por exemplo, é um dos principais resultados do trânsito caótico –
que, com seus congestionamentos quilométricos e demorados, criou um dos
grandes problemas de saúde da sociedade moderna;
• A poluição, provocada pelos carros de tecnologia ultrapassada ou simplesmente
mal mantidos, é outra consequência do trânsito complicado dos nossos centros
urbanos;
• A própria autoestima da sociedade, sistematicamente colocada em cheque pelo
caos do trânsito, é merecedora de muitos estudos acadêmicos;
• Apesar dos avanços que tem conseguido nos últimos anos, a psicologia do trân-
sito pode ser muito mais explorada, pois seu campo de crescimento é enorme;
n Comportamento
Aí está o maior desafio da academia: achar caminhos que ajudem a sair do beco sem
saída em que estamos nos metendo em razão do complicado comportamento do ser
humano no trânsito. É um trabalho e tanto para os estudiosos das ciências humanas
como filosofia, sociologia, psicologia, pedagogia, ciência política, antropologia, his-
tória, economia, administração, direito, etc:
• Países mais desenvolvidos estão adiantados graças à união de esforços de todas
essas áreas. Há países que já sonham com a utopia da fatalidade zero no trânsito,
como a Suécia. Em todos eles, os mecanismos de fiscalização são fortes, visíveis
e impiedosos, o que os tornam, em relação ao Brasil, muito diferentes;
n Tecnologia
O incrível desenvolvimento tecnológico que tem marcado as últimas décadas é outro
campo no qual a universidade pode mostrar seu valor, seja na área de produtos au-
tomotivos, da construção e da sinalização viária ou na área eletrônica:
• Nos três pilares do trânsito – veículo, máquina, homem – há enorme potencial
n Comunicação
Trânsito é, essencialmente, área de convivência da sociedade. Nele todos interagem per-
manentemente, ou seja, são espaços com momentos de pura comunicação interpessoal.
Novas tecnologias têm facilitado a interação homem-máquina, homem-via e, por consequên-
cia, podemos sempre esperar novos avanços na melhoria da inteiração homem-homem;
n Transporte
Em todos os modais de transporte, seja na cidade ou no ambiente rural, há muita
coisa a ser feita, nas áreas operacional, tecnológica, comportamental, etc.;
n Engenharia
Outra área em que a necessidade de mais conhecimento aplicado ao trânsito é
enorme e urgente, seja na construção de vias mais modernas (nosso parque rodoviário
está pedindo socorro há tempos), seja no monitoramento do tráfego ou mesmo na pro-
dução de produtos e componentes.
Universidade do Sul de
Santa Catarina (Unisul Virtual)
Foi esse, aliás, o caso da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), sediada em
Tubarão, que, através sua unidade UnisulVirtual, desenvolveu o primeiro curso de gra-
duação de Tecnólogo em Segurança no Trânsito a distância do qual tomei conhecimento
até agora. A primeira turma estava para se formar em julho de 2012, composta de 50 alu-
nos que participaram do curso a distância durante dois anos, num total de 1.620 horas.
O prof. José Onildo Truppel, coordenador do curso, explica que o curso de Tecnólogo
Em São Paulo, a Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) há muitos anos oferece cursos de
Gerentes de Cidades para interessados na administração pública, assim como outro de Geren-
ciamento Municipal, dirigido a vereadores, funcionários de prefeituras e outros interessados na
gestão pública. São mais de 4 mil formandos em gerenciamento de cidades trabalhando em fun-
ções públicas pelo país afora.
Oxalá o país desperte efetivamente para a imperiosa necessidade de profissionalizar a adminis-
tração das nossas cidades. Os resultados do caos que tomou conta do nosso trânsito demonstram
claramente a urgência de maior capacitação no setor. Ainda se ouve muito pelo país dirigentes
municipais repetindo uma afirmação que não se sabe de onde partiu: “Como as cidades cres-
ceram, cresceu a população, cresceu a frota, bem como o número de motoristas.
Assim, é lógico que tenha crescido também o número de fatalidades no trânsito.” Isso
é falso. Se assim fosse, Estados Unidos e União Europeia contariam seus mortos no trânsito às
centenas de milhares, pois o fenômeno do crescimento é igual em praticamente todo o mundo,
mas o número de mortos, não.
‘‘
e compartilhá-lo com a comunidade local e regional.
Entende que outro ponto importante, além, claro, do interesse e en- O exemplo da
volvimento dos alunos, foi a grande divulgação conseguida sobre as Universidade de São
atividades de segurança no trânsito. Atualmente há jingles na Rádio Carlos, com seu programa
UFSCar, painéis ao longo do sistema viário do Campus de São Carlos de disseminação de
e grande exposição na mídia. Isso faz com que o tema trânsito esteja cultura de segurança no
permanentemente nas mentes e nos corações dos alunos da universi- trânsito, é outra evidência
dade e da comunidade da cidade. das ilhas de excelência
Archimedes julga que, da maneira como está consolidado hoje, o que podem ser
trabalho deve continuar por muito tempo. A atuação da Comissão Per- encontradas neste
manente de Segurança de Trânsito, formada por gente da UFSCar e da imenso arquipélago
sociedade são-carlense, é uma garantia de continuidade. Seu sonho é chamado Brasil
que a comissão venha a se transformar numa ONG e que, assim, possa
melhorar ainda mais seus mecanismos de atuação.
O exemplo da Universidade de São Carlos, com seu programa de disseminação de
cultura de segurança no trânsito, é outra evidência das ilhas de excelência que podem
ser encontradas neste imenso arquipélago chamado Brasil. É a prova maior de que,
quando se sabe o que se quer, e se luta com determinação por esses objetivos, é possível,
sim, ter resultados positivos.
é um rico e natural
valores e sentimentos.
segurança no trânsito.
Literatura de cordel
DESEMBARCO NO AEROPORTO PINTO MARTINS, DE FORTALEZA, numa manhã
quente de dezembro, motivado pela grande expectativa de iniciar uma viagem incomum
por um terreno maravilhoso que sempre desejei conhecer: o mundo do cordel. Talvez
embalado pelas lembranças dos meus tempos de Gaspar (SC), onde passava horas fas-
cinado, ouvindo desafios, um tipo de disputa poética travada entre dois can-
tadores sob a forma de diálogo rimado e cantado. Tinha a certeza de que o
cordel cearense me daria uma ótima história. E deu.
Meu objetivo é conhecer em detalhes as aventuras do professor Pardal
na Escola Madre Teresa de Calcutá, num bairro simples, pertinho do centro
de Fortaleza. Vou explicando desde já que o professor Pardal é Gerardo
Frota, um piauiense de Piripiri que aos 17 anos mudou-se para Fortaleza
para fazer a vida. Chegou e, ao seu jeito, fez. Hoje é personagem conhecido no
cotidiano da cidade como um cordelista juramentado.
Gerardo é vice-diretor da escola e, unindo suas habilidades de
poeta, professor, jornalista, cordelista e apaixonado pelo trânsito,
resolveu ensinar segurança no trânsito aos alunos através da litera-
tura de cordel. Para ele, a atividade virou uma missão; para a escola, um
serviço de integração comunitária a mais; para os alunos, um aprendizado
Gerardo
importante de forma interessante e animada e, para os pais dos alunos, um alívio,
pelo bem que trouxe. Para o cordel, enfim, era um suporte para manter viva uma tradição
que se perpetua ao longo dos últimos séculos, notadamente no Nordeste.
Gerardo havia inscrito o trabalho da Escola Madre Teresa de Calcutá no Prêmio Volvo
de Segurança no Trânsito no início dos anos 90. Em 2009, voltou a apresentar o trabalho,
ganhando dessa vez o Prêmio Regional para a região Nordeste. Como já havia ocorrido
na primeira vez, continuei encantado com essa forma de trabalhar segurança no trânsito.
Basicamente a ação se passa da seguinte forma: o professor Pardal produz o material
didático, sempre com mensagens sobre trânsito em forma de cordel, apresenta aos alunos
e os ensina a declamá-los. Os alunos memorizam e ensaiam no pátio da escola, normal-
mente aos sábados e na presença dos pais. Depois de assimilados os conceitos, os alunos
saem pelo entorno da escola, guiados pelo professor Pardal, declamando, em forma de
Cordel na escola
Em 2006, quando decidiu introduzir a literatura de cordel como forma de ensino
de comportamento seguro no trânsito na Escola Madre Teresa de Calcutá, Gerardo Car-
valho tinha diversos objetivos: 1º, cumprir a missão escolar de ensinar cidadania e so-
brevivência, notadamente numa escola de bairro, num entorno carente; 2º, cultivar a
tradição bem nordestina da literatura de cordel; 3º, facilitar o aprendizado através de
uma forma de cultura que a região aprecia e valoriza e 4º e não menos importante: aju-
dar a segurança no trânsito.
Com seu currículo cordelista e seu amor ao trânsito, Gerardo teve apoio imediato
da direção da escola, que encampou a ideia e colocou seus parcos recursos à disposição.
Era o que bastava. O professor Pardal ia para casa, lá produzia seus versos, na escola
ensinava alunos e outros professores e, então, saía pelas ruas da vizinhança no bairro de
Fátima, perto do centro de Fortaleza.
O que ensinar estava claro na sua cabeça: egresso do Detran-CE, sabia que a missão
da educação de trânsito era moldar comportamento e, assim, fazê-lo com o cordel não
seria nada tão complicado. E assim foi feito.
Os alunos realizavam estudos em grupo dos folhetos de cordel, culminando com
n Incentivar o aluno a valorizar a vida, agindo com cuidado com os outros usuários
do trânsito e a respeitar a legislação de trânsito;
n Estimular e resgatar a memória da literatura de cordel, como canal de comunicação,
por intermédio do qual a comunidade escolar receba ensinamentos importantes para
a sua cidadania;
n Criar, na escola e na comunidade, um comportamento adequado no trânsito, evi-
tando acidentes e mortes;
n Utilizar a literatura de cordel como recurso didático para o aprendizado dos alunos
sobre o trânsito, com o qual, diariamente, eles têm que conviver;
n Promover, na comunidade escolar, ações para a melhoria da segurança no trânsito,
reduzindo o número de acidentes no bairro e na cidade.
Gerardo Carvalho está convicto de que o cordel pode ajudar muito nas escolas ao
familiarizar as crianças com a ideia de prevenção de acidentes por meio de um tipo de
comunicação muito efetivo. “Os alunos gostam de ouvir o cordel, e captam bem suas
mensagens e levam para discutir em casa com os pais”, afirma, depois de uma sessão
na quadra coberta da escola, numa manhã ensolarada de Fortaleza. O interesse pela de-
clamação do cordel por parte dos alunos eu mesmo constatei naquela manhã que passei
na Escola Madre Teresa. Ele próprio, Gerardo Carvalho, declama seus cordéis e o aluno
repete com ênfase. Depois, saem pelo entorno da escola recitando os versos do professor
Pardal, todos em cima de comportamentos seguros no trânsito.
Por isso, quando pergunto como descreve sua arte de cordel, responde que é educativa,
pois trata de orientar as crianças a entender a problemática do trânsito e evitar seus perigos.
Conta que, com as características que descreveu, a Escola Teresa de Calcutá é a única de
Fortaleza a ensinar segurança no trânsito dessa forma. Há outras escolas que, em determi-
nadas épocas do ano têm algumas atividades, mas são pontuais, por pouco tempo.
E no futuro, como ficará o cordel na escola? – pergunto, entendendo que dentro de al-
guns anos ele estará aposentado e não vejo um substituto por perto. “Por enquanto vou
levando. Vamos ver mais tarde como ficam as coisas. De repente surge alguém, até por-
Música sertaneja
entra no jogo
SE VOCê DECIDE PEGAR A ESTRADA AO AMANHECER DO DIA e liga o rádio do
carro vai ouvir muitos programas dirigidos aos caminhoneiros. São programas que co-
meçam cedinho – 4h, 5h ou 6h da manhã – horário em que o pessoal do volante começa
sua jornada. Se prestar atenção, ouvirá conselhos de apresentadores animados, encora-
jando motoristas a tomar cuidado nas estradas, cuidar mais na neblina, checar os freios e mais
dezenas de recomendações para evitar acidentes. Entre um conselho e outro, muita mú-
sica sertaneja, ao gosto dos caminhoneiros. Na medida em que se sobe do Sul para o
Norte, muda o estilo, mas permanece a música simples, de raiz popular, que foca e que
representa ao mesmo tempo a cultura e os valores de cada região.
Um dos mais famosos desses apresentadores é Pedro Trucão, que anima o Globo es-
trada, da Rádio Globo de São Paulo, que vai ao ar de segunda a sábado. Além disso,
trânsito de governo.
Nesse jogo de interesses, em alguns casos é possível observar claramente a força dos
lobbies e, de certa forma, a fraqueza do governo para defender algo que seria de inesti-
mável valor para o trânsito e para a sociedade.
É o caso nítido da inspeção veicular, que até hoje não foi implementada. Num país
como o nosso, com uma frota não só envelhecida, mas principalmente com manutenção
de baixa qualidade, contar com um serviço eficiente de inspeção veicular é absoluta-
mente vital. Se fosse apenas a questão de segurança, já seria de grande importância, pois,
com veículos e componentes mais seguros, o número de acidentes baixaria enorme-
mente. Há, contudo, a questão ambiental, em que a inspeção veicular poderia dar con-
Educação de trânsito –
a grande falta
OUTRO PONTO DO CTB, da maior importância e que parece longe de estar completado,
é o capítulo que diz respeito à educação para o trânsito. É um dos itens vitais do Código
e parece enfrentar complicações intransponíveis em Brasília. É quase impossível acreditar
que uma atividade que é vista unanimemente pela sociedade brasileira e pelo próprio
governo como de absoluta necessidade não consiga ser desenvolvida 14 anos depois de
promulgado o CTB.
Ao longo das últimas décadas ouço em todos os cantos deste país que educação para o
trânsito “é a solução”, “é por onde tudo começa”, “é a única maneira de endireitar o nosso trânsito”,
e por aí vai. Ninguém duvida de que tudo isso seja verdadeiro – talvez sem todo o exagero.
Se é tão importante, se teoricamente é válido para todos, por que não anda na velo-
cidade que precisamos? Vejam que já tivemos pessoas experientes ligadas à segurança
no trânsito no comando do Contran/Denatran, como Roberto Scaringella e Ailton Bra-
siliense, mas o tema sempre patinou e não deslanchou.
Art. 74. A educação para o trânsito é direito de todos e constitui dever prioritário para os com-
ponentes do Sistema Nacional de Trânsito.
§ 1º É obrigatória a existência de coordenação educacional em cada órgão ou entidade
componente do Sistema Nacional de Trânsito.
§ 2º Os órgãos ou entidades executivos de trânsito deverão promover, dentro de sua
estrutura organizacional ou mediante convênio, o funcionamento de Escolas Pú-
blicas de Trânsito, nos moldes e padrões estabelecidos pelo Contran.
Art. 75. O Contran estabelecerá, anualmente, os temas e os cronogramas das campanhas de
âmbito nacional que deverão ser promovidas por todos os órgãos ou entidades do Sis-
tema Nacional de Trânsito, em especial nos períodos referentes às férias escolares, fe-
riados prolongados e à Semana Nacional de Trânsito.
§ 1º Os órgãos ou entidades do Sistema Nacional de Trânsito deverão promover outras
campanhas no âmbito de sua circunscrição e de acordo com as peculiaridades locais.
§ 2º As campanhas de que trata este artigo são de caráter permanente, e os serviços
de rádio e difusão sonora de sons e imagens explorados pelo poder público são
obrigados a difundi-las gratuitamente, com a frequência recomendada pelos ór-
gãos competentes do Sistema Nacional de Trânsito.
Art. 76. A educação para o trânsito será promovida na pré-escola e nas escolas de 1º, 2º e 3º
graus, por meio de planejamento e ações coordenadas entre os órgãos e entidades do
Sistema Nacional de Trânsito e de Educação, da União, dos Estados, do Distrito Fe-
deral e dos Municípios, nas respectivas áreas de atuação.
Parágrafo único. Para a finalidade prevista neste artigo, o Ministério da Educação e
do Desporto, mediante proposta do Contran e do Conselho de Reitores das Universi-
dades Brasileiras, diretamente ou mediante convênio, promoverá:
I. a adoção, em todos os níveis de ensino, de um currículo interdisciplinar com
conteúdo programático sobre segurança de trânsito;
II. a adoção de conteúdos relativos à educação para o trânsito nas escolas de forma-
ção para o magistério e o treinamento de professores e multiplicadores;
Se você teve a paciência de ler com um pouco de cuidado, concordará como deve
ser difícil assumir um posto em certas áreas do governo e perceber que na prática as coi-
sas são ainda muito mais complicadas do que se esperava encontrar. Não se pode duvi-
dar das intenções de muita gente que está em postos importantes do governo. O que não
devemos nos conformar, certamente, é em aceitar pacificamente a sua inépcia no trata-
mento de questões tão vitais para o futuro do país e da sociedade.
Se o conteúdo do CTB preconizado em 1998 tivesse sido implementado, posso asse-
gurar que estaríamos hoje com a metade dos grandes problemas resolvidos. O número
de mortos e feridos teria caído para menos da metade e os grandes problemas de con-
gestionamentos e poluição estariam substancialmente reduzidos graças à aplicação pau-
latina das medidas que iriam se suceder. Isso não é novidade para ninguém.
Até hoje o Denatran resolveu apenas a questão da educação de trânsito para o ensino
fundamental, mas, dali em diante, empacou. Por uma resolução estranha, a 265, estabe-
leceu que o conteúdo para o ensino médio seria o mesmo dos cursos teóricos dos Centros
de Formação de Condutores (CFCs) e os próprios instrutores das autoescolas poderiam
ministrar aulas nas escolas de forma extracurricular. Contudo, a coisa não vingou e há
um enorme vazio nessa área. Não há outro material didático que possa ser ministrado.
No que diz respeito a cursos técnicos e universitários, simplesmente não estão na agenda.
Objetivos
Conduta segura e orientação no trânsito. Transferência de técnicas de sobrevivência no curto prazo.
Parceria, comportamento responsável e seguro no longo prazo.
Métodos
Aulas em classes, treinamento fora de sala em áreas protegidas e em situações de tráfego real, discussões,
grupos de trabalho, investigação, apresentações em público, técnicas criativas, teatro, etc.
J. Pedro – Foi importante ser relator da Lei Seca, etc., mas depois tem a venda da
ideia, responsável, consequente, que chega realmente ao povão. Como se faz?
Hugo Leal – Não adianta acertar no papel, ter uma lei, ser relator, autor, seja qual for a
posição legislativa, se não tiver engajamento com a matéria, se não souber o que está fa-
‘‘
alguém possa se aproveitar mais da posição de liderança tem sido a ex-
plicação do porque tantos movimentos bem intencionados e, eventual- O segredo da
mente, bem montados, resultam em fracasso. Quando o comando passa vitória da duplicação
a ser impessoal (no caso catarinense ficou com o Grupo RBS, não perso- da BR 101 em Santa
nificado na figura do seu executivo principal, Pedro Sirotsky) parece que Catarina foi o fato de
as coisas têm mais chances de ir adiante. a liderança do processo
Quando a causa vale, as pessoas se dispõem mais a colaborar. Essa afirma- ter ficado com o grupo
ção vale tanto para os que se envolvem profissionalmente quanto para os que de comunicação
entram voluntariamente. Observa-se com clareza o espírito colaborador, a dis- RBS, fora das lides
posição de esmerilhar as ideias para ampliar o processo e mesmo de conclamar governamentais,
outras pessoas a fazerem mais pela causa. Foi o que percebi conversando com políticas e talvez até
vários jornalistas da TV, do jornal e da rádio nos três dias que passei em Floria- industriais, comerciais
nópolis para me inteirar mais do caso. e agrícolas do estado
Da mesma forma, esse sentimento era visível nos contatos fora da
RBS – industriais, comerciantes, líderes de entidades, ONGs e mesmo
pessoas da sociedade. O problema da BR 101 não era isoladamente de ninguém, mas de
todos, e era importante que todos participassem. Nesse caso, a sensibilidade de quem
comanda o processo é vital para o sucesso da empreitada.
Falei com Margot Krause Teixeira, a pessoa que começou todo o processo. Contou-
me que, de fato, não apenas escreveu ao diretor da RBS, mas em seguida telefonou para
fortalecer a sugestão de comandar uma mobilização no estado. Como a ideia foi imedia-
tamente aceita e logo em seguida implementada, Margot, que era fiscal da Receita Fede-
ral, também foi a campo para dar sua contribuição.
Como trabalhava muito em Brasília e conhecia a bancada catarinense, independen-
temente das conversações políticas do então governador Antonio Carlos Konder Reis,
ela procurou pessoalmente cada um dos representantes do estado no Congresso Nacional
para sensibilizá-los para a causa. Da mesma forma, como mantinha contatos muito pró-
ximos com prefeitos catarinenses, aproveitava as oportunidades para reiterar a impor-
tância do movimento. Assim o fez, anonimamente, com líderes empresariais que
conhecia e cujo envolvimento pudesse somar ao processo. Visitou supermercadistas,
2010
2009 676
2008
2009 676
2008
2007 597
2007
2006 585 39,1%
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2005 524
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2005 580
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2004 568
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2003 559
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2002 535
2000
2001 444
2000 100 200 300 400 500 600 700 486800 900 1000
100 200 300 400 500 600 700 800 900 1000
2010 51,9
2010
2009 47,2
2008
2009 47,2
2008
2007 47,2 16,8%
2007
2006 42,9
2006
2005 48,3
2004
2005 48,8
2003
2004 48,8
2002
2003 47,4
2001
2002 39,9
2000
2001 44,5
2000 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100
Numa situação complicada como essa, o debate público, mais do que nunca, tor-
nava-se indispensável. O Popular tinha claro o seu papel: levantar a discussão, questio-
nar o que estava sendo feito, confrontar opiniões, provocar o contraditório, enfim, fazer
com que a sociedade não apenas tivesse mais informações, mas, principalmente, parti-
cipasse mais efetivamente do debate.
De verdade, o jornal já fazia isso há tempos e para tanto procurava oferecer sempre
mais espaço para a discussão. Costumeiramente abria chamadas e até mesmo manchetes
de primeira página para o trânsito. Como a maioria dos jornais brasileiros, não tinha se-
toristas (que cobrem exclusivamente o setor), mas tinha repórteres que acompanhavam
muito de perto as questões do trânsito.
Julgo interessante contar um pouco sobre o caso d´O Popular, pois permitirá ao leitor
interessado no relacionamento entre órgãos de trânsito e imprensa entender um pouco
mais como funciona esse mecanismo, geralmente não muito pacífico, dada a natureza
de um e outro.
Quando assume a Prefeitura de Goiânia em 2001, o prefeito Pedro Wilson Guimarães
convida Antenor Pinheiros para a Superintendência Municipal de Trânsito e Transportes.
Trata-se de uma figura pública conceituada e que se propõe a colocar em prática suas
ideias e soluções de trânsito que foram tema de tantas discussões nas gestões municipais
‘‘
realmente o trânsito na agenda. A discussão esquenta, novas vozes en-
Pela 90 passavam
tram na roda e acaba acontecendo o que se esperava. Como se diz
de 900 a 2 mil veículos
muito interior, quem diz o que quer, acaba ouvindo o que não quer. O jogo
por dia, que matavam 18
pega fogo.
pessoas por ano e feriam
Antenor sente que os argumentos não estão convencendo seus in-
mais de 300. Segundo
terlocutores que, afetados pelos resultados ruins dos acidentes que in-
Pinheiro, depois dos
sistem em não baixar – pelo contrário, sobem –, começam a
radares e por vários
questioná-lo com mais vigor. Dono de boa formação, e preparado para
anos, não houve mais
o debate, o diretor de trânsito e transporte de Goiânia se defende, ataca,
mortes na 90 que era
muda de táticas, mas os resultados continuam ruins. Então, radicalizou:
conhecida como a
encheu de radares a Avenida 90, pivô de uma grande disputa, com o
Avenida da morte
objetivo de diminuir os atropelamentos, recorrentes naquela via. Pela
90 passavam de 900 a 2 mil veículos por dia, que matavam 18 pessoas
por ano e feriam mais de 300. Segundo Pinheiro, depois dos radares e
por vários anos, não houve mais mortes na 90 que era conhecida como a Avenida da morte.
Nesse período tempo, O Popular abre espaço para as opiniões antagônicas, mas não
se omite na hora de opinar e fica do lado do leitor que, afinal, é quem está perdendo a
batalha, pois as mortes continuavam crescendo. Na busca de explicações para o fenô-
meno, o jornal questionava o poder público sobre sua incapacidade de resolver o pro-
blema. Aí ganha corpo uma constatação política de longos tempos: prefeito nenhum quer
ficar de mal com a sociedade e nem com os meios de comunicação. O fato é que, depois
de quase quatro anos e a dois meses de encerrar sua conturbada gestão, Antenor Pinheiro
deixa de ser o diretor de trânsito e transportes de Goiânia. Vale a máxima: o importante
não é apenas ter razão, mas conseguir sobrepor-se às opiniões contrárias. Se fosse no fu-
tebol seria algo como jogar bem é importante, mas o que vale é bola na rede.
Hoje Antenor entende que os quatro anos de gestão foram pedagógicos e que todos
puderam ganhar com ela e com os debates gerados. Vê o papel da mídia como funda-
‘‘
putador, no celular, no Ipad, etc.
“A consolidação da SulAmérica Trânsito mostra que o modelo O slogan da
de emissora customizada foi bem-aceito. A parceria foi positiva tanto SulAmérica é “Ajudando
para a Sul-América, que buscava aparecer mais para o público de você a enfrentar o trân-
São Paulo, quanto para o Grupo Bandeirantes, que ganhou um pro- sito de São Paulo” e
duto de notoriedade”, opina o jornalista, garantindo que os investi- serviço lá é o que não
mentos em transmissão direta e a interação nas redes sociais serão os falta. Não tem a
maiores focos de trabalho do grupo neste ano. O grupo planeja levar pretensão ser líder de
seu modelo de rádio-trânsito a outras capitais, como Rio de Janeiro, audiência, mas tornar-se
Porto Alegre, Curitiba, Belo Horizonte e Recife. A julgar pelos resulta- a segunda emissora na
dos obtidos em São Paulo, não há dúvidas de que terá sucesso. opção do ouvinte e a
Atualmente, com a pulverização da audiência dos tradicionais primeira do condutor de
meios de comunicação devido à multiplicação e hibridização das mí- automóveis, que vai
dias, grandes marcas começam a utilizar estratégias que consistem em descobrir que não precisa
ter seus próprios veículos de comunicação. Revistas de bordo, patroci- ficar preso por horas
nadas pelas companhias aéreas, foram uma das primeiras mídias cus- no trânsito, pode buscar
tomizadas e são bons exemplos do gênero até hoje. Mídia customizada caminhos alternativos e
é um conceito relativamente novo na área de comunicação, destinada até meios de transporte
a fortalecer o relacionamento entre a marca e o público-alvo, o que pode alternativos
ser conseguido pelo desenvolvimento, produção e distribuição de di-
versas formas de mídia como impressão, digital, áudio, vídeo, eventos,
etc. Assim como surgiu a SulAmérica, pode-se esperar novos produtos na área de trân-
sito, cujo potencial de consumidores é muito grande.
Isso também é resultado do avanço da tecnologia digital, que facilita a propagação
dos meios de produção, que se tornaram mais rápidos e eficazes depois que o computa-
dor assumiu as tarefas de edição, ilustração e distribuição de mensagens.
Felipe Bueno acha que a rádio está “na cidade certa”, no caso, São Paulo. O slogan
da SulAmérica é “Ajudando você a enfrentar o trânsito de São Paulo” e serviço lá é o que
não falta. Não tem a pretensão ser líder de audiência, mas tornar-se a segunda emis-
‘‘
senso gostaria de passar. E uma efetiva mudança de com-
O forte da campanha portamento começou a acontecer nas ruas de Curitiba.
foram os anúncios veiculados Lembro de um grande programa de trânsito na Espa-
na televisão protagonizando o nha, há alguns anos, que teve resultado bastante bom. Era
rato, a perua e a anta. baseado exatamente na ideia de ridicularizar o infrator e
Não é preciso dizer que, assim ganhar a adesão da sociedade. Graças a expedientes
imediatamente, os personagens desse tipo, a Espanha conseguiu diminuir o índice de fa-
se tornaram superconhecidos talidades no trânsito em mais de 50% em meia década,
na cidade e os infratores num resultado que surpreendeu toda a União Europeia.
das leis de trânsito eram Voltando à nossa Curitiba, iniciou-se um processo de
imediatamente associados educação para o trânsito, por meio de ações de comuni-
aos nomes dos bichos cação de massa, destinadas ao público em geral e, em par-
ticular, aos motoristas. Foram também desenvolvidas
Setor privado I Águia Branca – O sono, que tinha virado pesadelo, acabou 149
Há muitos anos, o atual diretor-geral Renan Chieppe diz: “Não quero ser a maior,
mas quero ser excelente, quero que os clientes sejam transportados com segurança”,
deixando bem claro o rumo que a empresa deve seguir. Testemunhos como esse balizam
o que a empresa quer que seus colaboradores se desdobrem para conseguir. Mas, claro,
há muito mais no campo das ações.
As reestruturações organizacionais periódicas serviram para ir ajustando a empresa
ao longo dos anos e sempre para enfrentar os novos tempos. A competição tem aumen-
tado muito e os esforços internos para suportar os desafios são enormes e permanentes.
Só uma equipe bem estruturada aguenta as pressões que
vêm do mercado e ao mesmo tempo dos acionistas. Sem
trocadilho, na área de transporte, ou a empresa faz poeira
‘‘
ou come poeira, não há outro espaço.
A competição tem Para manter o moral elevado, os objetivos bem defi-
aumentado muito e os esforços nidos e a equipe bem motivada, adotou há vários anos
internos para suportar os como sua bandeira o QCAMS2, acrônimo para Quali-
desafios são enormes e dade, Custo, Atendimento, Moral e Segurança, princípios
permanentes. Só uma equipe que devem estar presentes em todos os momentos da em-
bem estruturada aguenta as presa e de seus funcionários. O conceito foi forjado a par-
pressões que vêm do mercado tir de um longo esforço para identificar áreas realmente
e ao mesmo tempo dos vitais em que toda a organização necessitaria concentrar
acionistas. Sem trocadilho, suas atenções. Para dar uma ideia do que significa aten-
na área de transporte, ou a dimento, nesse contexto, a meta de cumprimento de ho-
empresa faz poeira ou come rários dos ônibus deste ano é de 97%, isto é, em cada 100
poeira, não há outro espaço viagens, 97 têm de sair e chegar no horário.
Cristina Pinheiro, gerente de segurança do trânsito da
águia Branca, revela os pilares do sucesso: recruta-
mento/seleção, treinamento, liberação do motorista para o início da jornada, manutenção
preventiva da frota, programas de prevenção de acidentes, monitoramento do motorista
em operação e comissão de segurança no trânsito. Em princípio, nada de novo, pois, em
geral, todas as empresas sabem e praticam isso. Pelo jeito, sem o mesmo empenho, a
mesma determinação.
2.
QCAMS é o conjunto de indicadores genéricos propostos pelos japoneses no seu TQC/TQM que, em princípio,
são suficientes para abranger todos os aspectos relevantes à pergunta mais importante da GDC: “Satisfaz?”.
Setor privado I Águia Branca – O sono, que tinha virado pesadelo, acabou 151
tica, e a explosão do ônibus espacial Challenger, nos Estados Unidos. Na Usina de Cher-
nobyl, as longas jornadas de trabalho eram frequentes, o que provocava privações de sono
e sonolência dos operadores. Em abril de 1986, procedimentos foram programados para
a madrugada e alguns sistemas de segurança foram desligados. Quando foi constatado o
superaquecimento do reator, os operadores – que vinham de uma longa jornada de tra-
balho e provavelmente estavam sonolentos – cometeram um erro: desligaram o resfria-
mento de emergência. É considerado o pior acidente nuclear da história, que produziu
uma nuvem de radioatividade que atingiu a União Soviética, a Europa Oriental, a Escan-
dinávia e o Reino Unido, com liberação de 400 vezes mais contaminação que a bomba
atômica de Hiroshima, no Japão. Grandes áreas da Ucrânia, Bielorrússia e Rússia foram
muito contaminadas, resultando na evacuação e reassentamento de cerca de 200 mil pes-
soas. Cerca de 10.000 pessoas teriam morrido em consequência do acidente.
No caso da explosão do ônibus espacial Challenger, no mesmo ano, o acidente foi
atribuído a um defeito em uma peça do tanque de combustível. Porém, sabe-se que a
equipe de manutenção e os diretores que autorizaram a decolagem haviam dormido
muito pouco na noite anterior ao acidente. Cientistas e especialistas das áreas da medi-
cina atribuem a este detalhe significante parcela de responsabilidade pela ocorrência da
explosão do Challenger, que matou todos os sete ocupantes, incluindo Christa McAuliffe,
a primeira astronauta americana. Esse desastre paralisou o programa espacial americano
durante meses e provocou mudanças radicais no seu futuro.
Os acidentes rodoviários marcaram muito a trajetória da águia Branca. Muitos deles
deixaram forte memória com registros de fatalidades e sequelas graves em passageiros
e outros envolvidos. Muitos dos acidentes tiveram como causa o sono do motorista ao
Setor privado I Águia Branca – O sono, que tinha virado pesadelo, acabou 153
da melatonina (substância responsável pela sonolência no período noturno) e que o sono
pode ser debelado sob forte incidência de luz na retina.
“Estava descoberto o caminho”, conta Renan. “Tínhamos quem conhecia bem o
assunto e a Águia Branca bancaria o programa. O restante da história você já sabe, fi-
zemos uma revolução.” Nascia o Programa de Medicina do Sono, cuja patente foi regis-
trada no Brasil e nos Estados Unidos e que despertou interesse em todo o mundo.
A educação dos motoristas é a base do programa. Segundo Sérgio Barros, o essencial
foi contar com o interesse e o comprometimento dos motoristas e ter à disposição uma
estrutura bem equipada. Resultado alcançado até hoje: nenhum registro de acidente por
sono desde 2001.
Funciona assim o programa, na explicação do médico Sérgio Barros: “Para cons-
cientizar os motoristas, realizamos uma série de treinamentos que reforçam a im-
portância da qualidade do sono e informam sobre rotinas que podem interferir, como
alimentação, prática de exercícios, conforto, entre outras. Para acompanhar cada
participante são utilizadas estruturas de apoio, como as salas de estimulação do
alerta e laboratórios do sono, além de rotinas de avaliação.”
Dr. Sérgio conta que, para montar o programa definitivo, visitava a residência de vá-
rios motoristas. “Numa dessas visitas, descobri que ele dormia num quarto com te-
lhado de eternit, sem forro, com infiltração, num colchão ruim, ambiente com ruído,
mas tinha uma televisão de 21 polegadas e videocassete.” Um bom exemplo de como
não deve ser.
Os testes de rotina dos motoristas são realizados antes e depois de cada viagem e
servem para verificar se o motorista está em boas condições, medindo o grau de vigília
e fadiga. Os resultados desses testes servem de base para o banco de dados, no qual cada
motorista tem um padrão individual. Segundo o dr. Sérgio, as alterações do padrão in-
dividual permitem detectar possíveis distúrbios e indicam a necessidade de fazer um
tratamento e acompanhamento preventivo com cada um. Como todos os motoristas são
submetidos a testes de aptidão para assumir o volante, além do bafômetro, o médico da
águia Branca é enfático: “Motorista com sono, não viaja!”
São nove salas de estimulação, uma das principais ferramentas do programa, loca-
lizadas nas filiais da Bahia, Espírito Santo e Rio de Janeiro. Nesses espaços, os profissio-
nais praticam exercícios físicos de alongamento e bicicleta ergométrica, atividades que
aumentam a temperatura corporal e interferem na produção do hormônio melatonina.
Pela avaliação interna realizada com os motoristas, o desempenho de quem frequenta
as salas de estimulação melhora em até 80%.
‘‘
quais são realizados diagnósticos por meio de exames de polissono-
grafia completa – avaliação do sono. Os laboratórios estão localizados Para proporcionar
em Vitória, Salvador e Três Rios. melhores condições de
Para proporcionar melhores condições de trabalho aos motoristas, trabalho aos motoristas,
o Programa Medicina do Sono patrocinou adaptações no desenho da o Programa Medicina
cadeira de motorista, na troca das lâmpadas dos faróis dos ônibus, ini- do Sono patrocinou
ciativas que buscam proporcionar maior conforto aos condutores dos adaptações no desenho
ônibus, durante seu trabalho. Foram construídas duas pistas para ca- da cadeira de motorista,
minhadas, dentro da continuação do programa que, certamente, trará na troca das lâmpadas
outras novidades. dos faróis dos ônibus,
Pergunto a Renan Chieppe, que também é presidente da Abrati iniciativas que buscam
(Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passa- proporcionar maior
geiros), que congrega cerca de 120 empresas, por que se o Programa conforto aos condutores
de Medicina do Sono deu tão certo para a águia Branca, não é aplicado dos ônibus, durante
por outras empresas do ramo. “Algumas empresas vieram até nós, seu trabalho
viram o que fazíamos e tentaram mas, pelo jeito, não deu certo”, ex-
plica Renan.
Parece que não é só isso. Ouvindo um pouco mais no mercado, dá
para perceber que o programa representa mudanças radicais nas próprias empresas e,
aparentemente, não é isso que os patrões querem. Exige investimento e mudanças cul-
turais e organizacionais fortes e, num país em que segurança não é prioridade, nem todos
estão dispostos a bancá-la.
O exemplo da águia Branca é, sem dúvida, ótimo, e deve ser seguido por tantas ou-
tras empresas de transporte de passageiros que dizem ter interesse em melhorar seu de-
sempenho.
Setor privado I Águia Branca – O sono, que tinha virado pesadelo, acabou 155
CCR/Arteris (ex-OHL):
concessionárias
de rodovias
SE Há UMA áREA DA ECONOMIA BRASILEIRA com enorme potencial de disseminar
cultura de segurança no trânsito, sem dúvida, é o setor de concessões de rodovias. Aqui,
produto e consumidor estão ligados o tempo todo, o que permite às concessionárias cum-
prir um papel extraordinário na difusão de informações sobre comportamento seguro
nas estradas. Afinal, até onde vejo, concessões vendem segurança, representada pela
qualidade da estrada, e conforto, por tudo de melhor que oferecem.
O programa de concessão de rodovias do governo federal, implementado a partir
de 1995, é, sem dúvida, um avanço considerável na melhoria das condições de mobili-
dade, ainda que hoje represente uma fatia pequena da malha nacional, tão necessitada
de melhoramentos e segurança.
No início de 2011, cobria pouco mais de 15 mil quilômetros de rodovias, algo próximo
de 7,2% da malha rodoviária sob responsabilidade do governo federal, cobrindo os esta-
dos da costa marítima (mais Minas Gerais) do Rio Grande do Sul a Pernambuco (menos
Espírito Santo, Alagoas e Sergipe). É por onde circula a maior parte da frota brasileira.
São 53 concessionárias que empregam, entre funcionários diretos e terceirizados ou de
empreiteiras e contratadas, uma mão de obra de aproximadamente 40 mil pessoas.
De maneira geral, todas as concessionárias se dedicam aos assuntos de segurança,
pois essa é a natureza de suas atividades. Fui conferir o que fazem as duas maiores do
setor: a CCR e a OHL, ambas sediadas em São Paulo com atuação em outros estados.
Pelo relato de seus programas, pode-se perceber o quanto ajudam a disseminar segu-
rança nas população das regiões por onde passam suas estradas.
Juntas, CCR e OHL gerenciam cerca de 40% da malha concessionada brasileira, no
Sudeste e Sul do país. Ambas se consolidaram rapidamente como grupos comprando
empresas que já atuavam no setor. A CCR foi a primeira do mercado no país, ganhando
a concorrência para o gerenciamento da Ponte Rio-Niterói, com seus 13 quilômetros de
comprimento.
n Embora pareça impossível, não é utopia, tanto que há vários exemplos de unidades
Shell pelo mundo inteiro, refinarias, plataformas de exploração e produção que já
chegaram lá. A própria Shell Brasil tem estatísticas de vários milhões de horas de
trabalho sem acidentes fatais;
n Segurança é um valor para a Shell. Outras empresas dizem que segurança é priori-
dade, mas prioridades mudam de tempos em tempos. Por isso, para a Shell, segu-
rança, saúde e meio ambiente são valores, porque valores não mudam. O
compromisso com saúde e segurança é igual no mundo inteiro. A maneira como a
empresa compartilha essa preocupação com seus funcionários é muito forte, mais
visível do que tenho visto em outras empresas;
n Segurança faz parte do negócio como qualquer outro parâmetro. O negócio Shell é
extremamente lucrativo, porém, se os riscos não forem controlados, o negócio deixa
de ser bom por mais que haja ainda uma boa margem de lucro;
n Baseado nisso, há cinco anos foi lançado o Goal Zero, o grande objetivo da compa-
nhia, porque reflete como a empresa vê segurança agregar valor ao negócio. Che-
n Um outro programa – Corações e mentes – foi lançado quando o grupo entendeu que as
coisas só mudam com um trabalho de desenvolvimento e mudança comportamental.
O zero é mudança de comportamento. A empresa trabalha com mudança de compor-
tamento porque atua em mais de 100 países e cada um tem sua própria cultura. Cora-
ções e mentes tem uma relação muito forte com a percepção individual do risco, que
está ligada à cultura, e, assim, trabalha muito em cima do comportamento humano;
n Segurança faz parte do DNA da Shell e de cada funcionário há muito tempo, se-
gundo seus gerentes. Desde 1985, quando lançou o programa Gerenciamento avançado
de segurança, o tema tem evoluído. Para dar ideia da importância do assunto, nos úl-
timos 20 anos, quando o presidente mundial da Shell apresenta o balanço anual das
atividades e resultados do grupo, começa sempre pelo setor de segurança;
n O resultado do ano passado foi bom e o bônus deveria ser 1,52 numa escala que vai
a 2. Entretanto, o time de liderança do grupo avaliou que o resultado de segurança,
apesar da melhoria, comparada com anos anteriores, não foi assim tão bom. Cola-
boradores continuaram morrendo (seis mortes), e houve ainda alguns derrames im-
portantes, na Costa da Escócia, que expuseram a marca e impactaram o meio
ambiente, além de um incêndio numa refinaria em Singapura. Por essa razão, o
n Ninguém consegue garantir quando será possível chegar à fatalidade zero, porque
são operações muito complexas, que dependem muito de pessoas, mas também de
outras variantes. O time da segurança, contudo, acha que não está distante;
n No início dos anos 80, quando se observou grande número de acidentes nas suas
operações pelo mundo, a empresa resolveu investir em equipamentos. A engenharia
trabalhava em cada causa para desenvolver respostas para reduzir os acidentes, que
foram caindo até estabilizar numa taxa que, na visão da companhia, ainda era alta;
n No final dos anos 90, começou-se a pensar nas pessoas, no desenvolvimento de perfis
de competência, treinamento, investigação de acidentes. Melhorou mais ainda, mas não
era suficiente. Aí, então, mantendo todo o esforço anterior, decidiu-se que era preciso
atingir e desenvolver a cultura das pessoas, para chegar ao Goal Zero. Esta é a fase atual;
n Em 2011, por exemplo, foi realizado treinamento de direção defensiva para 140 mo-
toristas de cooperativas de táxi, no Rio, onde fica a sede da empresa. O funcionário
Shell só deve usar táxis que já tenham sido avaliados como seguros pela Shell;
n O mesmo acontece com a companhia aérea que atende o funcionário e passa por au-
ditoria pela Shell Aircraft. Chegando na cidade-destino, o funcionário Shell só aluga
carro dentro dos padrões exigidos pela empresa (carro médio, airbag duplo, freio
ABS, etc.). O motorista do táxi tem que ter recebido treinamento de segurança. O
hotel em que ele vai se hospedar já terá sido avaliado quanto aos padrões de segu-
rança por empresa consultora. Há muitos hotéis pelo Brasil considerados bons, mas
não são aprovados pelos padrões Shell. Tudo isso tem custo;
n O funcionário só deve ir de carro se não for possível usar o avião e, aí, sempre por
uma companhia já auditada. Até os horários de voos são incentivados, dentro dos
mais seguros e confortáveis;
n Não existiam ainda (janeiro 2012) normas para funcionários que se deslocam em
seus carros particulares para o trabalho. Neste caso, a empresa sempre faz campa-
nhas que são levadas para dentro de casa, mas é livre-arbítrio;
n Se ele estiver usando o telefone da Shell ao volante, aí ele sabe que está descum-
prindo uma das 12 Regras salva vidas, e a empresa pode interferir. A Shell entende
que é importante trabalhar procedimentos, desenvolver posturas, mas que também
haja procedimentos obrigatórios, mandatórios. Por isso as 12 Regras, que têm caráter
disciplinador;
n Segundo avaliação interna, a cultura de segurança na Shell cobre hoje entre 95% e
100%;
n O que a Shell faz, basicamente, é ter políticas claras, bem definidas e permanentes
na agenda dos líderes, em todos os níveis. Uma vez por ano, há o Dia da segurança,
quando, no mundo inteiro, a Shell realiza eventos de segurança. Nas últimas duas
edições, o tema foi Faça a coisa certa. “Se tiver de parar a produção para evitar aci-
n Em 2011, a Shell Brasil não registrou acidente fatal. Houve apenas lesões pessoais.
O resultado melhorou;
n Não é fácil achar consultores já preparados no mercado brasileiro para dar o tipo de
treinamento e capacitação profissional no padrão exigido. A Shell pesquisou opções
e desenvolveu consultores para atender suas exigências;
n Há um princípio na Shell que diz: “Goal Zero é trabalhar todos os dias para não
ter acidentes. Cada um tem que atingir o seu Goal Zero todos os dias. Os líderes
têm que trabalhar para que suas equipes fechem o dia sem acidentes, atingindo o
zero fatalidade, mas no dia seguinte têm que começar tudo de novo. A segurança é
implacável, se houver cochilada, acontece um acidente.”
n O futuro da segurança da Shell é positivo, mas o desafio para mantê-lo vivo é cons-
tante. A companhia tem provado que o discurso não pode estar dissociado da prá-
tica. O desafio é nunca esquecer de avaliar o risco em cada ato praticado;
n Não é aceitável para a Shell nem para a Raízen serem causa de uma fatalidade ou
ferimento de pessoas, ou mesmo serem a causa de uma incapacidade de alguém ou
ainda de uma atividade que tenha consequências danosas para o meio ambiente.
Isso é um princípio empresarial;
Fonte: http://www.shell.com.br
n Sediada em São Paulo, a Raízen fundamenta suas operações de campo nos mesmos
conceitos de segurança da Shell e da Cosan. Embora comungue dos mesmos precei-
tos de segurança da Shell, a Raízen tem uma operação de campo bastante diferente,
mas nem por isso menos exposta a situações de riscos. Por isso as normas de segu-
rança são rígidas para todos os colaboradores;
n Se passar por esse primeiro filtro, há um curso de treinamento para motoristas. De-
pois, cada motorista é acompanhado por um monitor, que avalia sua habilidade. Só
então a empresa é cadastrada e passa para a fase de negociação. Há também treina-
mento em nível gerencial para disseminar a cultura de segurança para que, enfim,
possa começar a trabalhar;
n Motorista profissional que trabalha para a Raízen não dirige mais que nove horas
por dia com uma hora de descanso, em três intervalos. Hora extra só pode fazer de
dois em dois dias;
n Evidências de que a política dá bons resultados: está há dois anos sem fatalidades
no transporte rodoviário aqui no Brasil;
n Os caminhões que transportam para a Raízen rodam 140 milhões de km/ano para
atender as áreas de logística, distribuição e trading. A cada dia de operação são 400
mil km, 2.500 motoristas à disposição para aproximadamente 1.700 equipamentos,
todos contratados. A exposição nas estradas é muito grande e por isso é preciso ga-
1. Liderança e comprometimento;
2. Avaliação de risco;
3. Conformidade legal;
4. Comportamento de segurança;
5. Padrões e procedimentos operacionais;
6. Resposta de emergência;
7. Comunicação e relatório de acidentes;
8. Contratação de serviços;
9. Avaliação gerencial.
n Há ainda as auditorias invisíveis, para saber como o motorista está dirigindo: são
feitas dentro das operações de carga, descarga e trânsito e nas rotas de maior risco.
Além disso, há também um programa de incentivos para os motoristas e filiais, que
n Cultura de segurança é levar o motorista a ter atitude segura não porque está sendo
vigiado ou será punido, mas porque vai salvar a sua vida
e de outras pessoas que convivem com ele. Para a Raízen,
quem dá licença para operar é a sociedade. Quanto mais
‘‘
responsável for o motorista perante a sociedade, mais li-
Para a Raízen, quem
cença e autoridade terá para trabalhar;
dá licença para operar é a
sociedade. Quanto mais n Uma boa medida para incrementar a cultura de segu-
responsável for o motorista rança foi a de indicar um agente de mudança em cada
perante a sociedade, mais unidade, em cada transportador, cada terminal ou ne-
licença e autoridade terá gócio da companhia. Foram selecionados alguns fun-
para trabalhar cionários, espalhados no país inteiro, que atuam como
agentes de mudança e que demonstram aderência
maior às questões de segurança;
n Um seminário no Rio de Janeiro, há três anos, para essas 40-50 pessoas, identificou os
multiplicadores da parte comportamental da empresa e discutiu os cinco elementos
que cada um iria fomentar na sua unidade. Hoje, quando a empresa faz uma campanha
de segurança, não premia apenas as equipes que tiveram o melhor resultado, porque
algumas podem ter chegado ao zero acidente por sorte. O que se pretende são sinais
visíveis de que aquele gestor de segurança ou aquele agente de mudança trabalhou;
n Segurança é bom negócio. Há empresas que ficam semanas com os seus terminais e
operações paralisados por questões de segurança, de acidentes. Se um terminal parar
por uma ou duas semanas o prejuízo será muito grande. Hoje segurança é licença
para operar. Se não puder trabalhar com segurança, a empresa prefere não operar;
n Ficou claro que não adianta gastar em equipamentos se a causa dos problemas está
no comportamento. Assim, a grande mudança foi sair da cultura reativa para o que
se chamou de cultura generativa, em que o funcionário não precisa ter ninguém vi-
giando para manter um comportamento seguro, mas saber por si mesmo que é im-
portante tomar a decisão de agir de forma segura por livre vontade;
n Nos últimos dois anos a Shell (e agora Raízen) teve zero fatalidades no transporte
rodoviário, apesar do grande número de veículos de cargas (todos contratados) e
milhões de quilômetros de estradas;
n Não é aceitável para a Shell nem para a Raízen ser a causa de uma fatalidade, ferir
pessoas, ser a causa de uma incapacidade de alguém ou de uma atividade que tenha
consequências danosas para o meio ambiente. Isso é um princípio empresarial;
n O lançamento do Goal Zero, há seis anos, permeou a Shell no mundo inteiro. A Raízen
continuou o que fazia a Shell, tanto que sua campanha, quando começou, foi Zero
Acidente;
n A mensagem é: quem está fazendo uma operação, mesmo que seja no escritório, tem
que saber que uma decisão sua pode impactar uma decisão de segurança lá fora. O
n Na área de segurança, quando tudo vai bem não se tem notoriedade, mas quando
algo acontece imediatamente surgem reações. Atualmente, pelo sistema de gestão,
em cada operação da Raízen é obrigatório um plano de emergência, além dos simu-
lados de emergência, que devem produzir conhecimentos;
n Esses planos no transporte de combustível mudaram por três fatores principais: le-
gislação, que mudou bastante nos últimos anos e é mais rigorosa para o exercício
de uma atividade perigosa; a relação de equipamentos, para casos de emergências,
e o profissionalismo das empresas e serviços que atuam na simulação de respostas
de emergência. Os três pontos evoluíram bastante nos últimos 10 anos;
n O setor entende que ainda precisa melhorar com relação a respostas de emergência
que devem ser eficazes no Brasil, com atuação de forma mais abrangente, envol-
vendo governo e instituições por meio de planos de ajuda mútua. Neles, as empresas
se interfaceiam com o governo e outros órgãos;
n Entre as petrolíferas existe esse plano de auxílio mútuo. No Caribe, por exemplo, há
uma empresa de resposta de emergência para mar e rios, que utiliza avião para che-
gar aos locais de emergência;
n No Brasil, os setores de cargas perigosas e de minérios são áreas que têm melhor es-
trutura em relação a planos de emergência, à complementação de planos com ajuda
mútua, uma área de cooperação;
n Nas universidades não há cursos relacionados a isso, há algumas cadeiras que tratam
do tema de forma superficial. Há poucos consultores de bom calibre na área. E esse
é um setor que demanda muito, as investigações mostram que os acidentes estão to-
talmente ligados a comportamento de segurança.
n A experiência tem grande ênfase nas posturas proativas do motorista e o foco é com-
portamental. A ideia não é ensinar o motorista a dirigir, porque isso ele sabe. O que
se pretende é verificar de que forma ele dirige, se não gera risco para a sua vida e
para a condução;
n A experiência com a Shell apontou redução de 80% dos acidentes. Hoje todos os mo-
n Para ter certeza de que os motoristas estavam tendo comportamento adequado, foi
criado o Spy Driver, o monitoramento invisível: uma equipe em carro descaracteri-
zado, com radares de velocidade, filmadoras, etc., seguia o caminhão por 30 quilô-
metros verificando a postura do motorista, se falava ao celular, se dava carona, se
estava muito colado no carro da frente, se respeitava os limites estabelecidos no tre-
cho – coisas que a telemetria e o computador de bordo não pegam. Com essa opera-
ção, que durou três anos, chegou-se ao Zero Acidente. Depois, a experiência foi
estendida para descarga em postos de combustível;
n Há muitos motoristas tão comprometidos com segurança que até se pode dizer que
têm segurança no seu DNA. Mas ainda há muito por fazer para estender o compro-
metimento a todos. Muitas transportadoras se preocupam com segurança apenas
porque o embarcador exige;
‘‘
marca considerável para as más condições rodoviárias
A TA já ficou mais
brasileiras e considerando-se que em média seus quase
de 20 anos sem um acidente
1.300 caminhões rodam mais de 10 milhões de quilôme-
fatal, marca considerável
tros por ano. Motoristas muito bem treinados (têm uma
para as más condições
universidade dentro de casa), veículos novos – idade
rodoviárias brasileiras e
média da frota é de três anos –, suportados por tecnolo-
considerando-se que em
gia de ponta, o que também equivale a monitoramento
média seus quase 1.300
permanente e detalhado.
caminhões rodam mais de
Com 3.500 funcionários, incluindo as 43 filiais em
10 milhões de quilômetros
praticamente todos os estados da Federação, a TA in-
por ano
veste aproximadamente 75 horas/ano em treinamentos
por colaborador, que também é média bastante alta
comparada com o padrão nacional. Corresponde a pra-
ticamente duas semanas, o que é fora dos padrões das melhores médias brasileiras.
Carlos Panzan me conta que, há tempos, o carro-chefe da empresa era a comerciali-
zação, mas agora a segurança caminha junto, porque é a credibilidade, a integridade das
pessoas e da mercadoria, a participação na sociedade, que está em jogo. “Segurança, que
‘‘
a parte técnica dos novos motoristas. Depois de contratados, eles
ainda ficam sob acompanhamento e avaliação durante um período Para proporcionar
por esses monitores. melhores condições
Para ser motorista da Transportadora Americana, é preciso, antes de trabalho aos
de mais nada, ter experiência para a vaga aberta. Para promoção in- motoristas, o Programa
terna deve ter a habilitação correta, e aí o papel dos monitores, que Medicina do Sono
chegam a ficar dois meses treinando com alguém que quer ser moto- patrocinou adaptações
rista. Até que o monitor o considere apto, ele não sai sozinho. Para no desenho da cadeira
contratação externa, além de ter a CNH correta, passa por entrevistas de motorista, na troca
com psicóloga, depois com o superior da área, teste toxicológico e um das lâmpadas dos faróis
teste com o monitor. Cumpridas essas etapas, entra o processo buro- dos ônibus, iniciativas
crático da contratação. Depois de todas essas fases ele passa a conhe- que buscam proporcionar
cer as rotas como carona de outros motoristas mais experientes. Fica maior conforto aos
cerca de um mês só observando como os motoristas dirigem e conhe- condutores dos ônibus,
cendo as rotas. durante seu trabalho
A empresa chega ao ponto de exigir do motorista a qualificação
para transporte de químicos, o MOPP, muito embora esse não seja o
produto transportado pela TA. As exigências passam não só pela qualificação profissio-
nal como também pela postura pessoal do motorista.
Pelo programa Valendo, a TA financia o motorista interessado em se qualificar, ou
mesmo os que não são motoristas profissionais, como os ajudantes, a retirar a habilitação.
Exemplo, um truckeiro (carteira D) que tenha interesse em se habilitar para a carreta (E).
É um estímulo que a empresa dá para que o motorista realize o sonho, já que o custo
para a mudança gira em torno de R$ 1.200,00. A empresa cobre os custos e o funcionário,
já na nova função, vai reembolsá-la dentro de um acerto prévio.
‘‘
por exemplo. Outras lições que tiramos foi quanto aos
dormitórios dos motoristas, que antes tinham quartos
Há mais de 15
para três, mas percebemos que, para melhorar a qua-
anos a TA faz teste de
bafômetro, que não era lidade do descanso, deveriam ser para dois. São coi-
obrigado por lei, mas era sas que fomos aprendendo com o tempo e
feito com aquiescência melhorando – e isso tudo por conta da análise dos aci-
funcionários administrativos não era obrigado por lei, mas era feito com aquiescência
quando saem de viagem deles mesmos, motoristas. Todos os motoristas, e até
ou para entrega, fazem o funcionários administrativos quando saem de viagem
teste, assim como o teste ou para entrega, fazem o teste, assim como o teste toxi-
toxicológico cológico.
Qual o futuro da TA? Para onde caminha? Pergunto
a Carlos Panzan, que repete seu predecessor e irmão
Adalberto, que foi o responsável por disseminar a cultura
de segurança, credibilidade, qualidade no serviço. “Nós não queremos ser grandes,
mas eficientes. Hoje atendemos o Sudeste-Sul rodoviário, Centro-Oeste com parceria,
Norte e Nordeste com a logística e todo o país via aérea – temos duas empresas aé-
reas. Precisamos nos renovar para crescer cada vez mais, fazendo bem feito.”
No finzinho da conversa, Carlos revela seu sonho de futuro para a TA: “Gostaríamos
de chegar a uma Fedex, para quem prestamos serviço na região Sul. A Fedex nos en-
‘‘
mente, isso se vê cada vez menos. O passar do tempo, o próprio desen-
Boa parte da
volvimento, o alcance dos meios de comunicação e a consequente
sociedade brasileira, há
facilidade de acesso à informação vão se incumbir de – oxalá! – zerar essa
algumas décadas,
visão estrábica ou caolha.
mantinha a crença
Dentro da mesma linha dos muros e pontes de que falo no começo do
(crendice?) de que
livro, aqui também temos exemplos claros de ilhas de excelência de infor-
acidentes e mortes no
mação comunitária sobre segurança no trânsito e dificuldades enormes
trânsito eram “vontade
de entendimento do que significa e como exercer práticas mais eficientes
de Deus” ou “coisas do
e saudáveis. Os casos deste capítulo são evidências de que o país está no
destino”, como se não
caminho certo, ainda que num ritmo menor que o desejado mas, ao
pudessem ser evitados.
menos, a direção parece correta.
Ainda hoje em algumas
Para a redação deste capítulo optei por partir dos movimentos nas-
regiões se ouve expres-
cidos na base da sociedade – como os de Joinville (SC) e Brasília – e se-
sões como “o trânsito é
guir pelos movimentos que começaram por ações pessoais e se tornaram
assim mesmo – fazer o
regionais e nacionais – como os das ONGs Vida Urgente, de Porto Alegre
quê?”, como se o caos
e Criança Segura cuja sede atualmente está em São Paulo. Depois conto
por ele gerado viesse do
quatro histórias de pessoas que fizeram acontecer e deram dimensão es-
além e não pudesse ser
pecial aos seus trabalhos: o mineiro Sebastião Pires de Camargo, de Juiz
contido ou atenuado
de Fora, o baiano José Franque, de Itabuna, hoje vivendo em Vitória da
Conquista, o carioca Fernando Diniz e sua luta pela ONG Trânsito Amigo,
do Rio de Janeiro e o também carioca Rodolfo Rizzotto com seu
estradas.com.br na internet; abordo ainda o crescimento do uso das bicicletas como novo
parceiro na paisagem urbana brasileira e, finalmente, o desenvolvimento de uma ati-
vidade de enorme importância para o setor, a medicina do tráfego, contada na história
da Abramet.
n Criou um grupo executivo, constituído pelo secretário Piske como presidente, três
vice-presidentes (Representante do Clube dos Diretores Lojistas (CDL), comandante
do Batalhão da Polícia Militar e um representante da Associação Comercial e Indus-
trial) e um diretor-secretário (da Escola Técnica Tupy);
n Introduziu o tema Educação de trânsito no currículo escolar de 1º. e 2º. graus, por re-
solução do Conselho Municipal de Educação;
n Criou o Programa aluno guia, com cartilhas próprias, e orientação do tráfego feita
pelos próprios alunos devidamente uniformizados em frente às escolas (ação patro-
cinada pela iniciativa privada);
n Realizou pelo menos um grande seminário anual sobre segurança no trânsito com o
objetivo de avaliar o desdobramento do programa joinvilense;
1º. Nunca até então, neste país, qualquer governo mostrou preocupação com segu-
rança no trânsito; em Brasília não foi diferente;
2º. Brasília historicamente sempre valorizou a velocidade. Lúcio Costa (autor do
projeto do Plano Piloto de Brasília) falava que “é preciso criar vias largas para
que os moradores cheguem rapidamente ao local de trabalho”, que eram os
ministérios, o setor comercial e o setor hoteleiro, mas nunca se falou de segu-
rança;
Os dois primeiros pontos ajudam a explicar por que segurança nunca foi prioridade
na capital e por que velocidade sempre foi algo perfeitamente aceitável por essa socie-
dade influenciada por culturas regionais de toda ordem – aquelas que vieram com seus
habitantes desde os anos 50/60.
Há várias maneiras de contar a história da Passeata da paz em Brasília. Vi e ouvi ver-
sões de diversos personagens, mas todas têm pontos de convergência que apresento no
primeiro parágrafo deste capítulo.
Começa pela preocupação que os acidentes de trânsito estavam provocando na re-
dação do Correio Braziliense.3 A jornalista Ana Júlia Pinheiro tinha se mudado de Salva-
dor para Brasília há algum tempo e se incomodava muito com o nível de acidentalidade
e de banalização do trânsito.
Como repórter da editoria de Cidades, ela propôs à chefia de redação abordar o tema
numa série de reportagens que o Correio publicava de domingo a quinta-feira de cada semana.
Sua intenção era cobrir de forma diferente os acidentes, dando nomes das vítimas, contando
suas histórias e mostrando a diferença social entre o morto por atropelamento (pobre, baixa
renda, baixa escolaridade) e o morto em colisão (renda maior, perfil social mais elevado).
Já a partir da primeira reportagem as reações começaram a chegar ao Correio, por
todos os meios, principalmente por telefone. Era o sinal de que a linha estava correta e,
assim, havia sinal verde para continuar.
Do sucesso da série de reportagens para a continuação da cobertura sistemática do
trânsito foi um pulo. A editoria de Cidades, que já era a maior do jornal, reforçou a co-
bertura do trânsito com mais repórteres e passou a abordá-lo de forma pouco conven-
cional, até então, na imprensa brasileira.
Sylvio Costa, então editor de Cidades, que tinha recentemente voltado de um mestrado
em comunicação em Londres, onde o trânsito ensina outras formas de comportamento, per-
cebeu que o jornal estava na direção certa porque a sociedade brasiliense dava sinais que era
preciso dar um basta naquela situação que passava de insuportável para insustentável.
3.
Correio Braziliense – com Z – simboliza o início da imprensa escrita no país, quando o primeiro jornal brasileiro,
editado em Londres por Hipólito José da Costa, era trazido de navio para cá. Circulou no Brasil e Portugal entre
1808 e 1822. O título foi resgatado por Assis Chateaubriand, fundador dos Diários Associados, e utilizado com
a grafia original. A operação do jornal coincidiu com a inauguração de Brasília, em 21 de abril de 1960.
Madrugada viva
Grupos de jovens voluntários percorrem as principais casas noturnas para conscientizar
sobre os perigos da mistura de álcool e direção.
Vida Urgente no palco
Teatro para conscientizar crianças, jovens e adultos sobre a preservação e a valorização da vida.
Capacitação de voluntários
Curso de formação para desenvolver voluntários e formar multiplicadores.
Moto vida
Direcionado aos motociclistas para humanizar sua relação com o trânsito e a incentivar o uso
dos equipamentos de segurança.
Torcida pela vida
Grupo entra em campos de futebol para conscientizar as torcidas sobre a importância de va-
lorizar a vida dentro e fora dos estádios.
Transportadora da vida
Em parceria com o Sindicato das Empresas de Transporte de Cargas e Logística do RS,
nas empresas de transportes.
Escola urgente
Ações próximas aos colégios com apoio de voluntários e de agentes de trânsito.
Fórum Vida Urgente
Encontro anual de reflexão e debates de estudantes sobre temas ligados à juventude e à
valorização e preservação da vida.
Salva Vida Urgente
Nas praias, voluntários passam aos veranistas mensagem para aproveitar o verão em segurança.
‘‘
dação comemorou 10 anos de atividades foi lançado um
Por todas as
outro livro – Gente vida –, no qual 27 autores gaúchos abor-
atividades, Vida Urgente é,
dam a vida com seus variados nomes, formas, mistérios e
sem dúvida, reconhecida
alegrias.
como a maior ONG brasileira
Por todas as atividades, Vida Urgente é, sem dúvida,
na área de trânsito e um ótimo
reconhecida como a maior ONG brasileira na área de trân-
exemplo a ser seguido neste
sito e um ótimo exemplo a ser seguido neste país tão
país tão pobre de entidades
pobre de entidades voluntárias ligadas ao trânsito.
voluntárias ligadas ao trânsito
É também a mais premiada. Desde sua instituição, em
1996, amealhou dezenas de prêmios locais, regionais, na-
cionais e internacionais. É a entidade que mais longe foi
levando o seu próprio nome e o nome do Brasil. Diza mesma já esteve palestrando numa
dúzia de países contando sempre suas experiências e incentivando colegas de outras na-
ções a fazer o mesmo. Sistematicamente tem algum jovem estrangeiro fazendo estágio
na Vida Urgente, da mesma forma que jovens gaúchos também vão para o exterior para
intercâmbio com outros grupos congêneres.
Com Vida Urgente passando dos 16 anos de atuação e com Diza Gonzaga se apro-
ximando dos 60 anos de idade, é razoável questionar sobre a continuação desse trabalho
tão necessário ao Rio Grande e ao Brasil.
Diza mostra que se preocupa com o tema e que tem discutido o assunto com a serie-
dade que merece. Estudos estão sendo feitos antevendo cenários e contemplando cami-
nhos a seguir.
Ana Maria Dall´Agnese, psicóloga, que atualmente é diretora institucional da Fun-
dação, entende que a instituição precisa efetivamente cuidar bem do seu futuro. “Temos
uma bela entidade, uma excelente motivação de trabalho voluntário, uma boa legião
de seguidores e, assim, precisamos estar atentos ao futuro da Vida Urgente”, me
afirma. Trabalham atualmente na Fundação 25 pessoas, 19 funcionários contratados e 6
prestadores de serviço, alguns como estagiários.
Para Ana, até agora a Fundação tem tido uma vida estável, mantendo-se fiel à sua pai-
xão pela causa e por esse motivo sua atuação voluntária tem sido predominantemente
Criança Segura –
a serviço de quem precisa
NO BRASIL DESDE 2001, A ONG CRIANçA SEGURA fez nome e consolidou-se como
entidade de grande credibilidade. Faz parte da Safe Kids Worldwide, uma ONG inter-
nacional que atua em 22 países nos cinco continentes. É uma organização não governa-
Comunicação
Disseminação de informações sobre o tema, aprofundando o assunto na opinião pública por
meio de campanhas de massa e assessoria de imprensa. Entre outros produziu o guia:
“Acidentes com crianças: seis passos para a construção de sua notícia”, para uso da imprensa.
Está noTwitter, Facebook, Orkut e YouTube.
Políticas públicas
Monitoramento e articulação tanto no âmbito do Poder Executivo quanto do Legislativo,
incentivando o debate e participando das discussões sobre leis ligadas à criança com o objetivo
de inserir a causa na agenda e orçamento público.
‘‘
exemplo: “Trabalhamos desde 2002 numa militância para
O atropelamento, proibir a venda do álcool líquido no Brasil, estamos lidando
que é o campeão entre os com um peixe muito grande e armado. Agora estamos
acidentes de trânsito, não é quase conseguindo, estamos na última votação, nós cha-
tão noticiado, porque é coisa mamos um monte de ONGs, Sociedade Brasileira de Pe-
comum, criança atropelada diatria, Federação das APAEs, Rede Primeira Infância,
é corriqueiro. Já a criança Sociedade Brasileira de Queimados para fazer uma mobi-
afogada no balde é diferente, lização e não perdermos a última votação. Estamos mobi-
tem apelo, sensibiliza; apesar
lizando e sensibilizando os políticos.”
de ser em número muito
Tenho interesse em conhecer um pouco sobre comuni-
menor do que o de crianças
cação, principalmente como a imprensa cobre uma ONG do
afogadas em rios
tipo Criança Segura. Francine Ricci, coordenadora de comu-
nicação, me diz que “acidente com crianças é assunto de
bastante interesse público. Quando você fala em acidente
você oferece um serviço: o atropelamento é perigoso, saiba como prevenir. Isso tem ótima
aceitação na imprensa. Fazendo uma relação com causas ligadas a câncer infantil, esse
assunto choca mais, sensibiliza mais emocionalmente, tem um apelo maior. É como se o
acidente de trânsito fosse um pouco banalizado. Não que a imprensa não dê atenção, mas
o acidente é uma coisa mais corriqueira e a doença não. O atropelamento, que é o cam-
peão entre os acidentes de trânsito, não é tão noticiado, porque é coisa comum, criança
atropelada é corriqueiro. Já a criança afogada no balde é diferente, tem apelo, sensibiliza;
apesar de ser em número muito menor do que o de crianças afogadas em rios”.
‘‘
ventiva tem essa característica: toda ferramenta que possa contribuir
A medicina de
para o controle de risco passa a ser uma ferramenta da medicina pre-
tráfego é a preservação
ventiva.”
ou recuperação da saúde
Cita exemplos simples e importantes: na mobilidade. Tudo
“Fiscalização não é um ato médico, mas contribui para a redução aquilo que está
de risco. Controlar a velocidade tampouco é um ato médico, mas res- relacionado tanto às
peitar o limite da tolerância ao impacto é um ato médico. Se um indiví- doenças que o trânsito
duo tolera no máximo um impacto de 30 km/h e se um impacto de 50 produz como às doenças
km/h ninguém suporta, tenho que usar todas as ferramentas para que, que podem produzir
nas áreas em que convivem pedestres e veículos, a velocidade seja acidentes no trânsito
mantida na faixa de 30 km/h. Isso passa a ser uma atuação médica são de interesse da MT
complexa que envolve conceitos de todas as áreas para um trabalho
diário. O único jeito é o médico se aprofundar nesse tipo de conheci-
mento e vivência. A medicina de tráfego é a preservação ou recuperação da saúde na
mobilidade. Tudo aquilo que está relacionado tanto às doenças que o trânsito produz
como às doenças que podem produzir acidentes no trânsito são de interesse da MT.”
‘‘
Câmara Técnica de Medicina de Tráfego. Temos a re-
Tivemos papel sidência médica, que é referencial nessa fase de es-
pecialização. Também há um consenso com a Unifesp
importante na elaboração do
para a criação da cadeira de MT e de um ambulatório
Código de Trânsito Brasileiro.
de MT na escola. Também vamos trabalhar na parte de
No caso da Lei Seca foi
titulação acadêmica, com trabalhos de mestrado e
uma atuação decisiva, porque
doutorado em MT, para criar a possibilidade de pes-
foi na sede da Abramet
quisa e ensino voltados à área. Entre as conquistas ex-
que decidimos e bancamos
ternas, vencer o velho conceito do ‘exame de vista’ foi
o índice zero de tolerância
a primeira vitória, porque não há ofensa maior para um
e toda a argumentação médico de classe. Era um exame de vista mal condu-
do zero saiu daqui zido, feito em grupos, sem padronização. Tivemos
papel importante na elaboração do Código de Trânsito
Brasileiro. No caso da Lei Seca foi uma atuação deci-
siva, porque foi na sede da Abramet que decidimos e bancamos o índice zero de
tolerância e toda a argumentação do zero saiu daqui.”
Gosto sempre de perguntar sobre o futuro das entidades. Mauro Ribeiro responde
com confiança sobre a Abramet do futuro:
“Creio que com o lançamento de um pé na academia, a sedimentação e universa-
lização da residência, a especialidade vai caminhar com as próprias pernas, sem de-
pender de abnegados como agora. A mobilidade aumenta diariamente e é cada vez
mais importante e presente na vida das pessoas. Surge um espaço fantástico para
esse tipo de trabalho, de atuação de planejamento e acompanhamento de viagens,
pré e pós-viagens, etc. É muito rico esse universo.”
“Outro problema é a falta de consciência política. Nossos políticos não têm cons-
ciência de trânsito. Mesmo com tantas secretarias de trânsito, eles não conseguem
perceber que o trânsito tem um envolvimento diuturno na vida das pessoas. As nossas
autoridades ainda enxergam o trânsito como uma área em que basta dar uma habili-
tação, não conseguem entendê-lo como a mobilidade na segurança. Falta a consciên-
cia de que o trânsito é importante na vida das pessoas em termos de assegurar o
direito fundamental de ir e vir, mas sem ameaçar a saúde.”
Evolução necessária
José Montal, primeiro vice-presidente da Abramet, ex-diretor cien-
tífico, relembra as diferenças entre a Medicina de Tráfego dos anos 70 e
a de hoje.
“Hoje se calcula que a cada três anos e meio você dobra o conhecimento, mas a
possibilidade de se fossilizar o conhecimento também é muito grande. A especialidade
médica tem a missão de obrigar o médico a estar constantemente atualizado. Só se
consegue créditos à medida que o médico participa de atividades científicas. É preciso
ter certo número de créditos a cada ano e a cada cinco anos isso é checado. Se o mé-
dico não conseguir, perde o direito à especialidade nesse âmbito. A partir disso, pas-
samos a fazer diretrizes médicas, que são criadas a partir da melhor evidência
científica para determinadas perguntas de caráter médico. Vou dar um exemplo: ‘é se-
guro o epilético dirigir?’ A partir da pergunta, vamos atrás de informações, checar
todos os possíveis trabalhos no mundo, classificar por ordem de importância e pro-
duzir a diretriz, respondendo a uma questão desse tipo, por exemplo. A cadeirinha de
proteção da criança, a mesma coisa... São questões dirigidas para o médico, para que
possa passar orientação para os seus clientes.”
“Aí temos questões culturais. O Brasil é um país com um dos melhores índices
de uso do cinto no banco dianteiro e um dos piores no banco traseiro. Foi um vício de
origem: em 1994, quando foi feita a lei, pensamos que para comunicar talvez fosse
melhor exigir apenas no banco da frente, até porque a taxa de ocupação do veículo
era de 1,3 pessoas por veículo, o que significa o motorista e o passageiro. O problema
é que isso se tornou uma verdade e hoje para fazer as pessoas usarem o cinto traseiro
é outro desafio de comunicação. Na Europa você não precisa que a lei obrigue, é uma
exigência da sociedade. Quanto ao uso da cadeirinha, é a mesma coisa: o cidadão
quer proteger o seu filho. O ABS por lá não é uma determinação legal, mas uma exi-
gência do mercado, o consumidor quer um carro mais seguro e leva isso a sério. O
uso de cinto já está incorporado na cultura.”
‘‘
Peço para citar algumas contribuições científicas que a Abramet tenha
Quando o Detran
conseguido ou esteja a ponto de produzir e introduzir no cenário de trân-
sito nacional.
credencia um médico
para a habilitação do
“Nosso esforço é fazer com que essas regulações, do ponto de vista exame, sempre atende à
legal, automatizem a inserção do conhecimento científico produzido nos legislação federal que
momentos de caracterização de aptidão para a condução. Se produzi- exige um especialista em
mos uma diretriz médica baseada nesses princípios científicos, auto- medicina de tráfego e ele
maticamente seria uma obrigação legal do médico pesquisar por não é obrigado a se filiar
ocasião do exame de habilitação, físico e mental. Algumas já consegui- à entidade. Se
mos introduzir, como a do diabético, da apneia do sono, a fadiga que compararmos com
produz acidentes. São bandeiras da Abramet e algumas estão na legis-
especialidades mais
lação, o médico tem que pesquisar isso. Outra seria com relação ao con-
representativas, como
dutor com deficiência auditiva. Um grande drama para caracterizar isso
cardiologia, pneumologia,
é o uso da tecnologia, num país do tamanho do Brasil onde é muito di-
anestesia, que fazem
fícil aplicar testes mais sofisticados para caracterizar o problema. Então
parte da existência
uma das missões que assumimos foi procurar o mecanismo de maior
histórica da medicina,
possibilidade de universalização para caracterizar o índice de audição
de cada pessoa. Hoje há o teste oral, que se faz rotineiramente no con-
não estamos mal em
sultório e que verifica a capacidade de o indivíduo ouvir certas palavras número de especialistas,
produzidas a uma determinada distância num tom normal de voz. A cor- mas precisamos
relação com a evidência científica é muito grande. Pode-se fazer esses melhorar em número
testes em qualquer consultório no mundo, que são validados cientifica- de associados
mente. Correspondem à audiometria, a emissão autoacústica, testes
mais sofisticados de avaliação da audição. A partir deles pode-se de-
clarar se uma pessoa está apta ou não para dirigir certos veículos, ou profissional-
mente, etc.”
“A maioria, uns 40%, está em São Paulo. Em alguns estados estamos subrepre-
sentados em número de associados como no Rio, Paraná, Rio Grande do Norte. Mas
em Minas são muitos, é um estado muito ativo. Amazonas, Sergipe, Piauí, Ceará, Per-
A pergunta, então, é como fica a situação nos estados em que a Abramet não está re-
presentada ou não possui forte representação.
“Quem faz o exame de habilitação, por determinação legal, deve ser um especia-
lista em medicina de tráfego. E aí que se explica a diferença entre os 2 mil associados
da Abramet para os 7 mil especialistas na área. Quando o Detran credencia um médico
para a habilitação do exame, sempre atende à legislação federal que exige um espe-
cialista em medicina de tráfego mas ele não é obrigado
a se filiar à entidade. Se compararmos com especialida-
des mais representativas, como cardiologia, pneumolo-
‘‘
gia, anestesia, que fazem parte da existência histórica da
O futuro da medicina, não estamos mal em número de especialistas,
mas precisamos melhorar em número de associados.”
Abramet dependerá da nossa
competência em inovar, Sobre o futuro da medicina do tráfego no Brasil, ino-
encontrar novos mecanismos vação e comunicação são palavras-chave na visão de José
de colocação de conhecimento Montal.
à disposição da sociedade, “Como estratégia de afirmação e sobrevivência, é
bem como do processo preciso inovar. Como tornar esse conteúdo produzido,
contínuo de produção, absor- esse conhecimento que temos hoje a serviço da socie-
ção, maturação e transmissão dade? Só o âmbito da caracterização da habilitação
desse conhecimento. não seria suficiente. O que imaginamos é identificar
Continuamos trabalhando possíveis parceiros, que tenham propósitos confluen-
tes, naturais. Dentro do Estado é fácil perceber essa
possibilidade, a exemplo da Lei Seca, quando na hora
de produzir a norma para regular o padrão álcool-dire-
ção a Abramet desempenhou papel relevante. Do mesmo modo, no Ministério da
saúde, com a questão epidemiológica relevante e na qual temos muito conteúdo
produzido que pode ser muito útil nas estratégias sanitárias. Do mesmo modo o
Ministério das Cidades, que regula questões do trânsito, por meio do Contran, De-
natran... O desafio é passar tudo aos parceiros na sociedade, é de comunicação,
pois temos o conhecimento e o desafio é transmiti-lo de forma eficaz e passar re-
torno à sociedade.”
Observo que, embora se note a mudança no perfil da Abramet dos anos 70 para hoje,
há novos campos de atuação em que ela pode se inserir, atendendo outros modais de
transporte. Montal acha que isso “vai ser inexorável, não há como fugir dessas possi-
bilidades, de ampliação de áreas de atuação. Mais: a sociedade vai perceber a neces-
sidade disso, da mobilidade sustentável. Na logística, por exemplo, se procura o
melhor e mais econômico mecanismo para levar uma coisa de um lugar a outro. Como
não levar em conta o ser humano que faz esse processo? A gente precisa desse co-
nhecimento para administrar o processo. E isso em qualquer contexto. Aí o grande de-
safio será o de formar especialistas nessas áreas, com conhecimento científico e
traduzindo para a linguagem leiga. Uma questão transcendental seria nossa capaci-
dade de dialogar com outras esferas, como antropologia, direito, engenharia... Como
não conversar com a engenharia sobre a cadeirinha para crianças ou o cinto de segu-
rança, que é uma conjunção bonita entre a medicina e a engenharia? Há várias possi-
bilidades de diálogos, constantes, perenes, deixando as vaidades de lado para que se
possa avançar... Do mesmo modo a sociologia: a mobilidade é inerente à preservação
da espécie, e aí a mobilidade é uma estratégia de sobrevivência no mundo”.
Pergunto a Montal como vê a medicina de tráfego no Brasil quando acabar essa Década.
Sociedade I Gente que faz – histórias de quem não esperou para fazer 225
“Hoje divido meu tempo na engenharia e na busca por ações propositivas e lu-
tando, sempre militando nessa área por um trânsito mais justo. Sempre faço palestras
em empresas e escolas, participo de congressos no Brasil e no exterior”, me conta
Diniz. E continua: “A gente perde o eixo, perde o referencial. Não existe o porto seguro,
a luz no fim do túnel. Essas coisas são totalmente invisíveis àqueles que perdem um
filho.”
A proposta de ação da ONG era a trazer alguma contribuição, mudar alguma coisa
dentro desse panorama do trânsito tão carente de fiscalização e punições.
“A gente percebe que é uma dificuldade muito grande. Todas as ações são muito
lentas e você depende de revisões de código, leis de trânsito, código penal. As coisas
se arrastam, são muito morosas. A gente não pode absolutamente desistir”, afirma
Fernando Diniz. Por esse motivo, participou ativamente das ações desde a época do iní-
cio da lei 11.705, a Lei Seca, que sempre preferiu chamar
de Lei da Vida. Três anos depois do acidente do Fabrício,
ele apresentou ao deputado Hugo Leal um anteprojeto de
‘‘
lei de tolerância zero com relação ao álcool.
Diria que a impunidade
Conta também que, com parceiros cariocas, a Trânsito
desperta no ser humano a
Amigo tentou encontrar um lugar público em que pudesse
iniciativa de colocar em prática
erguer um memorial às vítimas de trânsito como o cons-
coisas absurdas, sem medir
truído em Curitiba no Parque Barigui. Essa luta começou em
consequências. No trânsito
fevereiro de 2011 e se estendeu pelo ano inteiro, com chefes
isso é uma constante. A pessoa
de gabinete, prefeito, secretário municipal e, ao final do ano,
tem que entender que aquilo
não conseguiu superar a burocracia e definir o local.
que acha que pode fazer bem
Fernando conta que a Trânsito Amigo já deu algumas
para ela, pode causar mal
contribuições valiosas para o setor: “Trouxe a celebração
a outros. Deve pensar na
do Dia Mundial em Memória das Vítimas de Trânsito ao
coletividade, sempre
Brasil, instituído pela OMS em 2004. Em 2009, em de-
corrência daquele gravíssimo acidente de trânsito envol-
vendo o deputado Carli Filho, nós fizemos o Dia Mundial
em Curitiba, em conjunto com a família Yared. Em 2010, fizemos um trabalho itine-
rante, em Florianópolis, e ano passado voltamos a fazer no Rio de Janeiro.”
A impunidade é algo que incomoda muito a esse carioca de fala tranquila, sempre
atento ao que acontece no cenário brasileiro. “Diria que a impunidade desperta no ser
humano a iniciativa de colocar em prática coisas absurdas, sem medir consequências.
No trânsito isso é uma constante. A pessoa tem que entender que aquilo que acha
Sociedade I Gente que faz – histórias de quem não esperou para fazer 227
bonitos aqueles ônibus e ali começava a fazer planos de, um dia, trabalhar na área.
Aos 13 anos comprou um Fusca velho para entregar galinhas na feira. Da meia noite
de sexta até 5 horas da manhã de sábado matavam 120 galinhas e Franque levava para
vender na feira. Às vezes vendia tão rápido que voltava correndo para buscar mais. O
lucro era aplicado no overnight (aplicação financeira feita no open-market, na época, em
um dia para ser resgatado no dia seguinte).
Em 1991, aos 18 anos, começou a realizar seu sonho de trabalhar com ônibus, sendo
admitido como cobrador na filial da Viação águia Branca em Itabuna. Depois de dois
anos, passou a motorista manobreiro, depois motorista, o mais jovem da empresa, e aos
24 anos já trabalhava como motorista instrutor. Deixou a águia Branca em 2007, como
coordenador de tráfego. Em 2009, estava na Auto Viação Camurujipe, tradicional em-
presa baiana com 50 anos. Em 2010, foi promovido a gerente de núcleo da filial de Vitória
da Conquista, onde coordena as atividades de quase 200 pessoas entre motoristas, co-
bradores, mecânicos, vendas, serviços gerais, etc.
No meio dessa história, um fato que iria alterar a trajetória profissional de Franque:
em 2004, já como motorista instrutor da águia Branca em Itabuna, ele ganha o Prêmio
Volvo de Segurança no Trânsito, que lhe dá visibilidade e reforça sua condição funcional
na empresa. De quebra, o Prêmio solidifica ainda mais seus laços com a segurança no
trânsito, tema que já fazia parte do seu cotidiano em razão da nova função. Essa é a his-
tória que quero contar a você, leitor.
Como instrutor de motoristas, Franque tem obrigação de conhecer bem as estradas
por onde circulam os ônibus da águia Branca. Em suas viagens de inspeção, usando o
ônibus-escola da águia Branca, se dá conta de que a BR 101 na Bahia, notadamente no si-
nuoso trecho compreendido entre os km 322 e 663, entre Itabuna e Salvador, era um belo
convite a acidentes em razão da inexistência de sinalização horizontal e vertical e das con-
dições topográficas da região. Os preceitos da direção defensiva recomendam ao condutor
que, ao trafegar em curvas, deve reduzir a velocidade para chegar nelas com velocidade
e marcha compatíveis. Muitos condutores, porém, desconhecem ou não cumprem essas
orientações. A sinalização consegue amenizar esse risco, pois adverte o condutor sobre
os riscos à frente e chama sua atenção para reduzir a velocidade e aumentar a cautela.
Como a sinalização na região era mais que precária, Franque procura a 10ª Delegacia
da Polícia Rodoviária Federal, em Itabuna, para solicitar levantamento estatístico dos
acidentes ocorridos no trecho. Descobriu que 15 das 250 curvas do trecho respondiam
por 34% dos acidentes em toda a área de atuação da 10ª Delegacia da PRF.
Estudou cada uma delas e resolveu pedir providências às autoridades para a devida
‘‘
Franque afirma que com seu projeto Vida nas curvas houve uma redu-
ção do número de mortos, no primeiro ano, da ordem de 7%. Em 2004, Não se mede
com sua conquista do Prêmio Volvo, houve uma repercussão muito a maturidade de um
grande na região, que chamou a atenção para o problema. Em 2005, saiu homem pela idade, mas
a recuperação naquele trecho da rodovia e a sinalização foi redesenhada, por suas atitudes.
o que melhorou muito. Um exemplo: na curva de Cassemiro, entre os mu- Às vezes a gente vê
nicípios de Buerarema e São José da Vitória, não passava uma semana gente mais jovem
sem acidentes. A inclinação da rodovia naquele trecho jogava o motorista dirigindo de forma
para o centro da pista e não para o acostamento. Isso foi corrigido. Atual- exemplar e os grisalhos
mente o sul da Bahia nesse trecho está com o asfalto em boas condições, agindo de forma
bem sinalizado. irresponsável
Franque tem consciência também de que ainda há muito que cami-
nhar até chegar num bom padrão de segurança rodoviária. Percebe que
empresas melhoraram nos seus procedimentos de segurança, porém, num percentual
pequeno. Constata também que muitos motoristas apresentam significativos sinais de
melhora em habilidade, segurança, comportamento e, do mesmo modo, há um mundo
de outros que ainda não chegaram lá e – pior – não conseguem entender o alcance de
um comportamento seguro.
E aí me dá uma sentença clara e definitiva: “Não se mede a maturidade de um
homem pela idade, mas por suas atitudes. Às vezes a gente vê gente mais jovem
dirigindo de forma exemplar e os grisalhos agindo de forma irresponsável.” Por isso,
acredita que a chegada da câmera de vídeo instalada no ônibus, gravando toda a sua
Sociedade I Gente que faz – histórias de quem não esperou para fazer 229
trajetória na estrada (“fiscalizando o motorista”) pode ser de uma ajuda muito grande
para a segurança dos passageiros e do próprio profissional do volante, pois as imagens
podem ajudá-lo caso seja acusado de algum ato inseguro que não tenha cometido.
“No primeiro momento em que se implanta a câmera é um Deus nos acuda... Vem
sindicato dizer que não pode, que é invasão de privacidade, etc. Só que o ônibus é um
veículo público, por concessão, não é privativo. O motorista, contudo, deve entender
que a câmera é para ajudá-lo, até para isentá-lo de alguma culpa ou para mostrar que
fez algo errado e na hora não se deu conta”, defende Franque.
Ele acha, todavia, que as empresas precisam ir muito além das câmeras. Treinamento,
capacitação, recapacitação – quanto mais, melhor, tanto para a empresa como para os
passageiros e, claro, para o motorista. Programas específicos sobre uso de drogas, cui-
dados com a saúde, monitorar com rigor as horas de descanso dos motoristas (muitos
deles não se dão conta dos benefícios).
Em novembro de 2002, quando Franque concluiu o trabalho de mapeamento e de
identificação das curvas com maior índice de acidentes na região, sabia que estava pres-
tando um importante serviço à comunidade, pois a sinalização de trânsito é algo essen-
cial na prevenção de acidentes. “É preciso que mais pessoas exerçam seu direito de
cidadão, sobretudo para a preservação da vida humana”, conclui.
Rodolfo Rizzotto –
A briga pela segurança
Quem encontra Rodolfo Rizzotto, num primeiro contato, não diria que ali está um
brasileiro inconformado com uma série de situações da vida pública nacional. Formado
em economia e direito, tornou-se mestre em planejamento turístico na Itália. Na volta,
junto com o pai, montou uma rede de serviços de informações em aeroportos com pro-
dução de guias, mapas, etc.
Ficou 16 anos nessa área à qual, mais tarde, agregou trabalhos com hotelaria. Não
significa que foram anos dourados, no fantasioso mundo do turismo. Pelo contrário.
Nunca aceitou a maneira de trabalhar de funcionários públicos com quem batia de frente,
o que o impediu de expandir o negócio para outros aeroportos.
usam também o rodoviário. Decidiu então, com seu pai e sócio, montar um serviço de
informações também nas estradas e estudar melhor este mercado: qual o perfil do pú-
blico, o gasto médio per capita, pontos com boas estruturas de apoio nas rodovias que,
na época, ainda não eram tantos quanto hoje.
Em 1990/91, foi montado o primeiro serviço de informações em rodovias do país,
na Via Dutra, e o resultado foi surpreendente. “Nunca vi nada do gênero no mundo.
Montamos dois estandes 24 horas na Rio-São Paulo, com 25 pessoas prestando in-
formações sobre as estradas e que vendiam um mapa específico da Dutra produzido
por nós. Tínhamos acordo com alguns hotéis, que passavam informação diariamente
sobre a disponibilidade de vagas para aquele dia que passávamos para o viajante.” Na
mesma medida em que mostrava o sucesso de uma ação, mostrava também o quanto
nossas estradas eram desprovidas de bons serviços. Rodolfo lembra que em algumas pa-
radas havia mais movimento que alguns aeroportos do país. Em feriados percebia-se um
público muito qualificado. Em 1993, começou a distribuir um informativo com dicas
sobre a estrada, que em pouco tempo chegava a 200 mil exemplares mensais.
E aí começa o namoro com a segurança no trânsito e surge uma espécie de Ralph
Nader3 brasileiro. Rodolfo se dá conta do número de acidentes, conversa muito com os
3.
Ralph Nader, advogado e ativista político norte-americano, famoso por sua luta na proteção do consumidor, ga-
nhou notoriedade por suas vitórias nos tribunais sobre a indústria automobilística dos Estados Unidos quanto à
segurança dos seus veículos. Seu livro Inseguro a qualquer velocidade, escrito em 1965, tornou-se um ícone da
segurança no trânsito no mundo.
Sociedade I Gente que faz – histórias de quem não esperou para fazer 231
motoristas de passeio e caminhoneiros e constata que muitos tinham boas ideias de como
reduzi-los. Como não pretendia dar sugestões porque ainda não conhecia tão bem o as-
sunto, procurou o Programa Pare, do Ministério dos Transportes, para dicas de segu-
rança. Aí decide fazer uma campanha com a publicação para tentar atrair anunciantes e
cria um concurso para premiar ideias simples dos usuários sobre como reduzir os aci-
dentes. O sucesso também foi imediato: “Vieram mais de duas mil sugestões; havia es-
tudos de universitários, sugestão de caminhoneiro escrita em papel de padaria, etc.”,
relembra Rodolfo. Uma coisa puxa a outra, e ele se vê diante de outro dilema: “O que
fazer com tantas sugestões”?” Não poderia simplesmente jogar no lixo!”. E então re-
solve criar um movimento com o mesmo nome do concurso, SOS Estradas, para divulgar
sugestões de pessoas de qualquer perfil, que pudessem continuar contribuindo para me-
lhorar as condições de segurança e trafegabilidade nas estradas.
Se antes, no turismo, se incomodava com abusos e corrupção de funcionários públicos,
a partir do momento em que se envolve com trânsito, Rodolfo passa a dar vazão a outro
tipo de inconformismo, desta vez com a maneira como muitas coisas são feitas nas áreas
de trânsito e como são desprezadas simples e boas ideias, de baixo custo, e que tanto po-
deriam ajudar a melhorar o trânsito deste país. Aí passou, então, a ter à disposição um
bom veículo de comunicação: o site www.estradas.com.br, em que poderia fazer seus co-
mentários e denunciar o que não lhe parecesse correto. E não são poucas coisas.
O primeiro tema que lhe chamou a atenção foi o recall do setor automobilístico (re-
convocação dos proprietários de veículos para correção/substituição de alguma peça ou
acessório que possa apresentar risco à segurança).
Conta: “Por acaso percebi que o recall era importante para a segurança. As em-
presas informavam o problema, mas a divulgação era precária, com explicação com-
plicada. Pensava naqueles que haviam comprado um carro usado e não tiveram
acesso à informação.” Resolveu investigar o assunto. Entrou em contato com várias
montadoras e pediu a relação dos veículos que tinham sido reconvocados para algum
ajuste, pois pretendia fazer a divulgação, de graça, no seu site. Retorno baixíssimo. Foi
mais a fundo em suas buscas e encontrou muita coisa que merecia ser explicada melhor.
Foi quando decidiu escrever o livro Recall - 4 milhões de carros com defeito de fábrica,
publicado em 2003 pela RDE Empreendimentos Publicitários, no qual procurou radio-
grafar a anatomia do recall, um assunto que mesmo hoje passa distante de muitos brasi-
leiros que não se importam com esse tipo de informação. No livro conta casos graves
ocorridos no Brasil que deveriam levar as pessoas a se preocupar muito mais com o tema.
No seu estilo inconformista, investigou todos os recalls que haviam ocorrido no país até
‘‘
Europa, no momento do licenciamento, o carro convocado para um re-
call que não tivesse comparecido à convocação não poderia licenciar. No segmento
Só que o problema é que muitos Detrans não tinham essa informação.” de pesados algo que
Na época denunciou, por omissão, o setor de defesa do consumidor, muito me preocupa
e na mesma acusação arrolou o Denatran que, afinal, deveria se envolver é que o caminhoneiro
com o assunto. Hoje há uma divulgação muito maior da imprensa com não toma ciência
relação a isso, os órgãos estão sendo pressionados e em função disso estão do “recall” e as
acompanhando mais. concessionárias são
Rodolfo informa que partir de 2010 começou a funcionar um sistema muito distantes.
segundo o qual cada vez que for feito um recall a informação deverá ser Há ainda muita coisa
anotada no registro oficial do veículo nos órgãos de trânsito, tornando-se para corrigir nisso
uma garantia para quem compra carro usado ou mesmo na hora do li-
cenciamento anual do veículo. “No segmento de pesados algo que muito
me preocupa é que o caminhoneiro não toma ciência do ‘recall’ e as concessionárias
são muito distantes. Há ainda muita coisa para corrigir”.
Da mesma forma, Rizzotto não se conforma com muitos acidentes envolvendo ôni-
bus de média e longa distâncias e caminhões. Sempre com base em suas investigações,
ele está certo de que grande parte desses acidentes ocorre devido ao estado de fadiga do
motorista, provocado pelas longas horas de direção, sem descanso.
Na oportunidade, chamou a atenção o grande número de acidentes de ônibus e cami-
nhões sem envolvimento de outro veículo. No caso dos ônibus apurou que mais de 50%
dos acidentes ocorriam sem colisão com outro veículo. O ônibus saía da pista, batia no
poste, ou inexplicavelmente invadia a outra faixa e colidia de frente com outro veículo e
até colisão traseira com caminhões. “Percebi que havia vários estudos sobre o cansaço.
As pessoas falam muito do uso do álcool, mas são poucos os motoristas profissionais
flagrados pelo bafômetro. É mais comum pegá-los usando rebite, drogas, para ficarem
acordados”, continua.
Segundo Rodolfo, os profissionais do volante geralmente tomam a sua cerveja à
Sociedade I Gente que faz – histórias de quem não esperou para fazer 233
noite, no jantar, quando já estão parados. E depois da Lei Seca começou a observar que
até isso mudou. “Uma vez fotografei um restaurante de caminhoneiros em que não
havia um copo de cerveja sequer sobre as mesas, só sucos e refrigerantes”, teste-
munha.
Rodolfo abre um parêntese para afirmar que o problema do cansaço afeta também
motoristas de automóveis. “É o caso dos que trabalham o dia inteiro, muitas vezes estu-
dam à noite e cochilam na direção de volta pra casa. Ou ainda quando tem feriado, saem
de uma jornada pesada de trabalho, chegam em casa, carregam o carro, pegam a família
e vão para a estrada.” Médicos que cuidam do sono recomendam que a cada 200 quilô-
metros os motoristas devem parar por 20 minutos.
Em 2011, Rodolfo Rizzotto lança-se em nova aventura, escrevendo o livro Acidentes
não acontecem, com o apoio da Escola Nacional de Seguros e da Seguradora Líder
(DPVAT). Em tom enfático, destaca que os acidentes de trânsito não são acontecimentos
casuais, fortuitos e, sim, previsíveis, podendo ser evitados, principalmente com ações
do poder público e mobilização da sociedade.
Rizzotto aborda vários temas polêmicos da área como inspeção veicular, recall, condições
das estradas, omissão da legislação brasileira, etc. Ele dá dicas de como combater o cansaço
ao volante e faz uma análise sobre a pressão dos comerciantes e clientes aos motoboys para
que as entregas sejam feitas em tempo recorde, aumentando, assim, os acidentes.
No caso dos motoristas de ônibus e caminhões, Rodolfo diz que a jornada de traba-
lho do caminhoneiro é de 80/90 horas por semana. “Eles dormem nas cabines, que, em
muitos casos, não possuem cama decente, ou seja, não conseguem descansar ade-
quadamente.” Um capítulo do seu livro é dedicado ao que chama “Escravidão sobre rodas”,
no qual disseca a saga (ou a ruína?) do caminhoneiro. Chegou a fazer campanhas com
folhetos e mobilização de profissionais da área.
Agora em 2012, depois de ver aprovada lei que regulamenta as horas de direção dos
motoristas de caminhão, Rodolfo acha que está vivenciando a “abolição da escravatura”,
pelo que representa em termos de evolução para a melhoria da condição profissional
dessa comunidade. Reconhece que vários pontos importantes acabaram não sendo con-
templados na nova lei, mas não tem dúvidas sobre os benefícios para a categoria. “Como
sempre, há os não satisfeitos e há os interessados em aproveitar para subverter a
ordem e induzir parte da categoria a defender interesses que não seus”, afirma ao jus-
tificar por que depois da publicação da lei houve manifestações de caminhoneiros em
várias partes do país.
Depois de vinte anos de estrada, literalmente, Rodolfo aponta suas conclusões: “Uma
Camargo – dedicação e
recompensa
Usando o critério de ordem alfabética para contar as
histórias deste livro, quis a coincidência que a última
delas seja a do Sebastião Pires de Camargo, mineiro
de Juiz de Fora, 67 anos, muito bem vividos. Quis o
destino que o autor deste livro tivesse papel impor-
tante na história desse profissional do volante. Desde
já deixo claro que o mérito da empreitada e do sucesso
foi todo dele. Por isso gosto de contá-la e vou fazê-lo do
meu jeito.
Sociedade I Gente que faz – histórias de quem não esperou para fazer 235
Durante 31 anos Sebastião foi motorista dos ônibus da Empresa Unida Mansur e
Filhos Ltda., em Ubá (MG), fazendo a linha Visconde do Rio Branco-Rio de Janeiro e
algumas linhas de turismo para Argentina e Paraguai. Nesse período, jamais foi mul-
tado e jamais se envolveu em qualquer acidente. Seus colegas diziam que era por
conta do comportamento mais seguro, “medroso”, segundo ele mesmo. Tinha medo
de curvas, de chuva, sempre teve muita cautela nas estradas.
Quando soube do lançamento do Prêmio Volvo de Segurança no Trânsito, na se-
gunda metade dos anos 1980, começou a participar com ideias para baixar a violência
nas estradas. Ganhou cinco prêmios, no total, sendo dois nacionais e três regionais. Com
eles, ganhou também notabilidade. Com o último Prêmio, acertou sua vida, a da família,
e de boa parte de juiz-foranos além de ter ajudado muito a segurança no trânsito. Nessa
época, já era motorista instrutor na Unida e sempre teve segurança como um valor.
Em 1993, quando ganhou o Prêmio Volvo pela segunda vez, Sebastião teria direito
a um troféu, a R$ 3.000,00 e a uma viagem à Suécia por 10 dias. Há algum tempo sonhava
em mudar de vida, ter o seu próprio negócio e estava há 11 meses de se aposentar. O
Prêmio lhe trouxe a boa ideia.
Um dia de julho, antes das 9 da manhã, toca o meu telefone na Volvo. Eu era gerente
de comunicação e responsável pelo Programa de Segurança no Trânsito. Era o Sebastião
com uma proposta tão interessante quanto tentadora. “Já estive na Suécia uma vez. Em
lugar de eu ir lá novamente, a Volvo não poderia me dar o dinheiro que corresponderia
aos meus custos de avião, hotel, comida, etc. e, junto com os três mil reis de prêmio, eu
compro equipamentos e monto aqui em Juiz de Fora um curso de Direção Defensiva
para Motoristas Profissionais?”, me pergunta.
Eu não tive dúvidas e na hora “fechei” com ele: “Está aceita a proposta”, disse, com a
certeza de que aquilo estava rigorosamente dentro dos objetivos do Prêmio Volvo, que
é ajudar a sociedade a diminuir a violência no trânsito. Um motorista que dirige há mais
de 30 anos, sem nunca se envolver em acidentes, sequer ter levado uma multa, que já
atua como instrutor de outros motoristas e que se propõe a usar o dinheiro do Prêmio
para montar o seu próprio curso de segurança no trânsito é algo muito raro e, conse-
quentemente, uma oportunidade que não pode ser desperdiçada.
Meio ano depois, já em 1994, Sebastião inaugura o Serviço de Assistência Educacio-
nal a Profissionais Ltda. (SAEP), em Juiz de Fora, que vai se especializar em treinamento
de motoristas de ônibus e de caminhões e, assim, contribuir de forma significativa para
disseminar cultura de segurança no trânsito pelo país.
Juiz de Fora é a quarta maior cidade de Minas Gerais com população superando os
Sociedade I Gente que faz – histórias de quem não esperou para fazer 237
técnica”, diferente do que era ministrado desde 1968 por muitas empresas.
Em 2001, a SAEP estava no auge, já tinha se consolidado na praça e tinha quatro veí-
culos na frota quando, aproveitando uma Lei do Contran, descobriu que poderia unir a
empresa ao serviço de autoescola, e mudou a razão social para Autoescola SAEP.
Foi aí que levou seus filhos para trabalhar com ele.
Atualmente tem uma boa equipe de instrutores de direção
defensiva, condução econômica, etc. Até 2007 ministrava
‘‘
cursos de MOPP, transporte coletivo de passageiros, veí-
A tecnologia já deu culos de emergência e transporte escolar, entretanto, uma
grande contribuição para a resolução do Denatran, em 2007, proibiu autoescolas de
segurança. Falta ainda oferecer os cursos MOPP autorizando somente o
educação aos motoristas. Sest/Senat a ministrá-los.
Falta disseminar na cabeça A SAEP soma em seu portfólio centenas de empresas
das pessoas o compromisso clientes em todo o país, notadamente em São Paulo, Minas
com a segurança, com o Gerais e Rio de Janeiro. Algumas de grande porte, como o
comportamento seguro. Grupo Cometa, Expresso Figueiredo, Caterpillar, Unidas
A gente sabe que, com o Mansur, a Baker do Brasil, etc. Tem também concessioná-
treinamento, podemos
rias de rodovia, como a Nova Dutra.
mudar a cabeça de muitos,
Na área de treinamento em Juiz de Fora, a SAEP só
mas não vamos convencer
perde, em tamanho e número de alunos, para o Sest/Senat.
a todos. De 30 motoristas
Hoje a empresa tem uma frota de 22 veículos, 28 funcioná-
treinados, uns 12 saem com
rios diretos e 4 indiretos, inclusive médico e psicóloga.
a cabeça mudada
Mantém média de 120 alunos direto, em cursos que duram
4 meses.
A autoescola representa cerca de 60% do faturamento
da empresa. Outra boa fonte de renda vem das palestras nas Sipats das empresas. “Temos
10 palestras diferentes sobre segurança no trabalho e no trânsito especialmente para
Sipats”, informa.
Sebastião tem justo orgulho em informar que, contando treinamento de motoristas
em direção defensiva e direção econômica, o número de alunos que já passaram pela
SAEP chega a uns 12 mil profissionais. Na autoescola, em 10 anos, estima em cerca de
3.000 aprovados pelo Detran-MG no curso de habilitação de motoristas. Outro passo im-
portante no âmbito da autoescola foi a aquisição de um carro automático, com nove
adaptações, para portadores de necessidades especiais, atingindo um público que tinha
vontade de dirigir e não tinha como obter a habilitação.
Sociedade I Gente que faz – histórias de quem não esperou para fazer 239
alimentação adequada, descanso, horas de sono. Eles têm que pesar quanto custam
os acidentes com seus caminhões, sem falar na responsabilidade civil e criminal, in-
denização para as vítimas, etc.”
Quero saber do Sebastião qual é o segredo do sucesso de um bom instrutor de trei-
namento de motoristas profissionais. Ele não perde tempo na resposta: “Trabalhar com
a emoção, porque só se convence através dela.” Não disse – e talvez nem precisasse –
mas é também preciso falar a língua deles, num vocabulário que eles entendam, procu-
rando estar muito bem identificado com o terreno de operações em que eles atuam, além
de reconhecer os problemas deles e provocar boas discussões de como enfrentar os de-
safios. “Aprendi com o meu pai, quando era motorista, que enquanto a gente é empre-
gado tem que ter olho de dono.”
Para mim, que conheci Sebastião um motorista instrutor que trocou uma viagem à
Suécia para montar um curso de direção defensiva para motoristas de ônibus e cami-
nhões, foi uma alegria muito grande ver o empresário Sebastião Pires de Camargo, dono
de uma bem-sucedida autoescola em Juiz de Fora, dando palestras e cursos pelo Brasil
e ajudando na disseminação da cultura de segurança de trânsito. Uma recompensa à al-
tura para quem teve uma dedicação fora do comum.
Ele admite que passou por mudanças radicais tanto no campo pessoal, familiar, como
no profissional. Precisava pensar como empresário, sem abandonar sua missão de me-
lhorar a segurança. Tinha que buscar um novo ponto de equilíbrio nos negócios, o que
acabou conseguindo com ajuda dos filhos e de uma equipe batalhadora.
Chegando perto dos 70 anos de idade, Sebastião não dá sinais de que esteja disposto
a parar de trabalhar. “A segurança no trânsito deu sentido a essas últimas décadas da
minha vida. Foram anos de luta e de muita felicidade. Minha família está bem estrutu-
rada, cada filho tem sua casa, seu carro, seu salário decente, o mesmo que acontece
comigo, graças à segurança. Assim, quero continuar me dedicando mais um pouco
para ajudar mais gente a se sentir mais seguro no trânsito”, assegura. “E isso é uma
recompensa”, enfatiza.
Sabemos o quanto o Brasil perde todos os anos por causa das centenas de milhares
de acidentes de trânsito: mais de 40 mil mortos, mais de 500.000 feridos graves, mais de
30 bilhões de reais em custos, leitos hospitalares lotados de acidentados, baixa estima da
população, além de saúde prejudicada pelo estresse provocado pelo trânsito. E por aí vai.
Da mesma forma, sabemos que trânsito melhor significa um cartão postal mais con-
vidativo para todos (cidades/estados/país), que melhora a autoestima da sociedade,
que baixa os custos inaceitáveis que todos ajudamos a pagar e que consequentemente
faz sobrar mais recursos para investir em outras áreas de grande prioridade.
Sabemos ainda que se melhorar a qualidade do ensino no país, melhora também o com-
portamento do brasileiro no trânsito, o que traz benefícios em todos os pontos citados.
Sabemos também que os países que obtiveram bons resultados na busca de um trân-
sito melhor apostaram fortemente na visão sistêmica do trânsito, notadamente no binô-
mio educação-fiscalização, sobretudo os europeus, norte-americanos e alguns asiáticos.
Além de tudo, outro ponto importante: todos os países que melhoraram consideravel-
mente seus sistemas de trânsito foram bem-sucedidos porque deram absoluta prioridade
a eles.
Resumo da ópera: sabemos qual é o problema, sabemos quais são as soluções, assim
como temos clareza absoluta do que precisamos fazer para tirar o trânsito brasileiro do
caos em que se encontra. Por isso a intrigante pergunta no título desta conclusão.
Se você acompanhou os casos abordados neste livro, percebeu claramente que, sim,
temos bolsões de atraso, de falta de conhecimento, de comportamento inseguro que expli-
cam a dimensão do problema trânsito. Por outro lado, sentiu também com grande nitidez
que temos áreas extremamente bem desenvolvidas que podem ser comparadas ao que
existe de melhor no mundo.
Por isso usei a expressão “muros e pontes” na apresentação no começo deste livro
procurando explicar que ao mesmo tempo coexistem ilhas de conhecimento avançado
Seria desejável uma aproximação desses dois extremos, diminuindo a distância que
os separa. Para que isso aconteça, falta uma ação do governo ou de outra instituição que
facilite a disponibilização de informações para os mais necessitados. Só pela melhor dis-
tribuição do saber é que vamos conseguir melhorar o trânsito porque significará com-
portamento adequado.
É importante salientar que um trânsito mais ordeiro e menos violento serve como
um belo cartão-postal, o que contribuiria significativamente para melhorar a imagem
das nossas cidades e do nosso país. Afinal, é assim que vemos os outros países e suas
cidades.
Existem vários estudos e propostas sobre como enfrentar a questão do trânsito bra-
sileiro e todos eles concordam em alguns pontos essenciais: é preciso reestruturar com-
pletamente o atual Sistema Nacional de Trânsito, substituindo-o por outro mais atual,
Conclusão I Se foi fácil encontrar a bússola, por que é difícil achar o caminho? 243
mais condizente com a importância do trânsito e do país no contexto internacional.
Nos trabalhos em que fui convidado a opinar, deixei claro que nenhum dos pilares
do atual Sistema Nacional de Trânsito (Contran, Denatran, Detrans, Cetrans, Ciretrans)
tem papel relevante no combate à violência do trânsito como se deve esperar. Quando
muito, e ainda assim de forma precária, se ocupam da legislação e procedimentos buro-
cráticos, mas de prático pouco ou nada fazem pela segurança no trânsito cuja trajetória
histórica está marcada pelo sangue de centenas de milhares de brasileiros que morreram
dentro do sistema falho do nosso trânsito.
Segundo o sociólogo Júlio Jacobo Waiselfisz, que desenvolve estudos sobre o Mapa
da Violência no Brasil, entre 1996 e 2010 mais de 500.000 pessoas morreram em acidentes
de trânsito. Se valer a regra que, para cada fatalidade, correspondem de 10 a 15 feridos
graves, significa dizer que teríamos aí entre 5 milhões e 7,5 milhões de outros sequelados.
Não é apenas assustador, é sobretudo um número inaceitável para o qual tanto governo
como a sociedade terão de dedicar mais atenção.
Custa a acreditar que o Brasil tenha conseguido galgar posições de liderança no ce-
nário econômico mundial a ponto de já ser a sexta economia global, que tenha acompa-
nhado o progresso tecnológico e a globalização em várias áreas e que tenha ficado tão
para trás na área do trânsito.
A falta de ação governamental mais firme é marca dos primeiros anos da Década,
mas a sociedade civil, apesar da forma não coordenada, procurou fazer alguma coisa.
As maiores ONGs do setor no Brasil – Vida Urgente e Criança Segura – têm estado bem
ativas em relação à Década. Empresas têm feito seus deveres de casa, várias delas inter-
namente, mas de qualquer forma de grande valor. Algumas entidades, da mesma forma,
se preocupam com o tema e o tem levado em seus trabalhos cotidianos.
O que me alegra ver é que apesar da baixa velocidade da ação governamental, a se-
gurança no trânsito continua na pauta de boa parte da sociedade, das empresas e mesmo
de alguns órgãos governamentais. Melhor ainda, tem bastante gente ajudando a disse-
minar a cultura da segurança no trânsito, condição sine qua non para chegar a um novo
patamar de comportamento dentro de alguns anos.
Conclusão I Se foi fácil encontrar a bússola, por que é difícil achar o caminho? 245
Referências
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Referências 247
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