Anda di halaman 1dari 247

Cultura de

Segurança no
Trânsito
Casos brasileiros
Autor
J. Pedro Corrêa

Coordenação da publicação
Anaelse Oliveira

Pesquisa
J. Pedro Corrêa

Colaboração
Jonia de Castro Schmaedecke

Apresentação e textos
J. Pedro Corrêa

Projeto gráfico
Saulo Kozel Teixeira

Ilustrações
Nilson Muller

Diagramação e editoração
SK Editora Ltda. (Curitiba, PR)

Revisão
Silmara Vitta

Impressão
Serzegraf (Curitiba, PR)

Reservados todos os direitos. Proibida qualquer forma de reprodução desta obra por qualquer meio ou forma,
seja mecânica ou eletrônica, sem permissão expressa, sob pena de incidir nos termos previstos em lei.

Corrêa, J. Pedro. Cultura de segurança no trânsito:


casos brasileiros; ilustrações Nilson Muller. Curitiba,
SK Ed. Junho, 2013. 248 p.

ISBN: 978-85-63034-07-6

1. Segurança de trânsito 2. Educação no trânsito

CDU 351.81

As opiniões emitidas neste livro são do autor e não representam necessariamente a dos patrocinadores da obra.

Endereço do autor: J. Pedro Corrêa - Rua Coronel Dulcídio, 1596 - Água Verde - 80 250-100 - Curitiba - PR - e-mail: jpedrolivro@terra.com.br
Cultura de
Segurança no
Trânsito
Casos brasileiros
J. Pedro Corrêa

Patrocínio Realização

SK Editora Ltda. I Curitiba I junho I 2013


Segurança
no DNA
Solange Fusco
C onvivo com a cultura escandinava há muito tempo. E já posso
me considerar uma embaixadora do DNA sueco em segurança. À frente
da comunicação institucional da Volvo há muitos anos, testemunho a im-
portância e a prioridade que o tema tem na alma do povo nórdico.
Não por acaso, a Suécia é referência em segurança de trânsito,
um dos países com menor índice de acidentes do mundo.

Entre tantas ações que tornam o país modelo em segurança,


admiro a coragem ao lançar o programa Visão Zero. Um pro-
jeto ambicioso que preconiza um enorme esforço do governo
em todas as áreas dos setores público e privado e em conjunto
com a sociedade, com o objetivo de reduzir a zero o número de
fatalidades no trânsito.
Solange
Fusco
Os descrentes podem considerar uma visão utópica, mas na Suécia se-
gurança transcende as leis. Está na alma da sociedade, no cotidiano das pes-
soas. É parte fundamental da educação, da evolução de um país que apresenta um dos mais
baixos níveis de desigualdade de renda do mundo e figura entre os mais bem colocados em
Índice de Desenvolvimento Humano.

Quando a Volvo chegou ao Brasil, no final dos anos 1970, trazendo na bagagem a cultura sueca
de segurança no trânsito, deparou-se com a dura realidade das ruas e estradas brasileiras. A
guerra cotidiana mata anualmente mais de 40 mil pessoas, além de deixar milhares de feridos
e prejuízos sem precedentes.

Reconhecida pela vanguarda em tecnologia e segurança de seus veículos – considerados os mais


seguros do mundo – a Volvo não poderia ficar alheia a essa dura realidade. Assim nasceu o Pro-
grama Volvo de Segurança no Trânsito (PVST), a mais longa saga brasileira em prol do trânsito.

Muito mais que um programa, o PVST é uma missão com o claro objetivo de despertar a so-
ciedade para a problemática do trânsito e estimular a busca de soluções – seja na mudança de
comportamento ou pela adoção de programas ou equipamentos com resultados mais efetivos.
Busca estimular uma cultura de trânsito e reduzir o número de acidentes e fatalidades nas ruas
e nas estradas brasileiras.

Quase 30 anos se passaram. Uma grande mobilização nacional rendeu ao país muitas conquis-
tas. A sociedade está mais consciente e o Programa Volvo teve influência em inúmeras ações
de melhoria no dia a dia do trânsito brasileiro.

Porém, ainda há muito a ser feito. O Brasil, infelizmente, ostenta os primeiros lugares no
ranking entre os países com alto risco no trânsito.

Mas a Volvo, que tem segurança entre seus valores corporativos – ao lado de qualidade e res-
peito ao meio ambiente –, continua inabalável na sua promessa de mobilizar o país e contribuir
para mudar essa triste realidade. Mantém firme seu propósito de ajudar o país nessa transfor-
mação social.

Afinal, já em 1927, seus fundadores preconizavam: “Veículos são feitos para transportar pessoas,
por isso, o princípio de todo o trabalho que fazemos na Volvo é, e sempre será, a segurança.”

Assim, quando o J. Pedro Corrêa, um dos meus mestres, se propôs a escrever este livro sobre
cultura de segurança no trânsito, fui uma das primeiras a apoiar a iniciativa por entender a
extrema necessidade brasileira na área.

A obra traz relatos e depoimentos interessantes, e até comoventes, de vencedores do Prêmio


Volvo de Segurança no Trânsito e de programas e iniciativas da imprensa, do governo, de mo-
toristas, de professores e de pessoas comuns que têm feito o seu papel para poupar vidas.

São importantes contribuições a tantos outros brasileiros, empresas, governos, escolas, ONGs
para um problema que atinge a todos nós.

Ao apoiar este livro, o Programa Volvo de Segurança no Trânsito cumpre, mais uma vez, seu
papel de instigador de soluções para a paz no trânsito.

Nós, da Volvo e do Programa Volvo de Segurança no Trânsito, temos muito orgulho de apoiar
mais esta obra de um autor incansável na luta em favor de um trânsito mais justo e mais humano.

Solange Fusco
Gerente de Comunicação Corporativa do
Grupo Volvo América Latina
Este livro é dedicado
ao Francisco, meu neto
de três anos, e a todos
os Franciscos e Franciscas
deste Brasil na esperança
de que as sementes
que estamos regando
agora gerem bons frutos
e ofereçam a eles
um trânsito mais humano
e menos violento
no futuro.
“ Se tens
conhecimento,
deixa que
as outras pessoas
acendam
as suas velas
na tua


Thomas Fuller,
historiador e religioso inglês
(1608-1661)
Sumário
Agradecimento 12

Por que cultura de segurança no trânsito 16


O que é cultura de segurança no trânsito 20

Questão de educação (Senador Cristovam Buarque) 22

Muros e pontes 26
Arte 31
Trânsito, teatro e circo 32
Viratrânsito, passo firme de Passo Fundo (RS) 32
Viramundos/Viratrânsito 34
A universidade e o trânsito 39
Pelo Brasil afora 40
Peça essencial 43

Conhecimento 45
Aulas de segurança na Amazônia 46
A Mineração Rio do Norte 50
Escola pobre, mas determinada 52
Para motoristas profissionais 57
O papel da universidade 65
Disseminar cultura de segurança no trânsito 69
Unicamp – Campinas 70
A visão dos pesquisadores 72
Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) 74
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) 77

Cultura 81
Literatura de cordel 82
Cordel na escola 86
Rio reage cantando 90
Música sertaneja entra no jogo 92
Governo 97
Código de Trânsito Brasileiro – 1998 98
Educação de trânsito – a grande falta 102
Políticos, trânsito dá voto! 108
Lei Seca – O Rio fez a diferença 115

Informação 123
Um milhão pressionando pela segurança no trânsito 124
O Popular, de Goiânia 131
Uma rádio dedicada ao trânsito 139
Curitiba: uma campanha memorável 143

Setor privado 147


Águia Branca
O sono, que tinha virado pesadelo, acabou. 148
Programa Medicina do Sono 151
CCR/Arteris (ex-OHL): concessionárias de rodovias 156
Perkons 160
Shell / Raízen 163
Zero acidente – a meta 165
Raízen 172
A visão do consultor 177
Transportadora Americana 179

Sociedade 187
A sociedade e a segurança no trânsito 188
Joinville: a sociedade disse sim 190
Brasília: mudança de atitude 194
Vida Urgente – a maior ONG do trânsito brasileiro 201
Criança Segura – a serviço de quem precisa 207
Criança Segura: os desafios 210
Abramet: cultura de segurança no trânsito na medicina de tráfego 214
Ação em prol da vida 216
Evolução necessária 219
Gente que faz – histórias de quem não esperou para fazer 224
Fernando Diniz – Do luto, uma luta 225
José Franque – Vida nas curvas da morte 227
Rodolfo Rizzotto – a briga pela segurança 230
Sebastião Pires de Camargo – dedicação e recompensa 235

Conclusão 241
Se foi fácil encontrar a bússola, por que é difícil achar o caminho? 241

Referências 247
Agradecimento
É natural que na abertura dos livros exista uma lista de nomes de pessoas importantes
para a publicação da obra. Minha lista neste livro é bem extensa e por uma razão muito simples:
para resgatar histórias de 10, 15, 20 anos, tive de contar com a boa vontade, paciência e sentido
de cooperação de muita gente.

Esse “resgatar histórias”, na verdade, contemplava outras variantes que não se limitavam ao
tempo passado desde que a ação ocorreu. Em vários casos, a ação desenvolvida já havia cessado
ou, como num único caso, sequer começou para valer, apesar de haver sido planejada,
aprovada, mas na hora H faltou sequência.

Devo ressaltar que praticamente todos os casos contados foram relatados ao Prêmio Volvo de
Segurança no Trânsito nesses 25 anos de atividades. Escolhi alguns que mais me marcaram,
mesmo que não tivessem sido premiados pelo júri. Assim, minhas fontes e contatos eram pes-
soas que tinham tido envolvimento direto com a ação escolhida e foi um trabalho difícil, penoso,
de encontrar, alguns anos depois, os mesmos personagens. Quando encontrados – todos prati-
camente o foram – aí vinha um exercício de memória, de busca de dados, de encontrar mais
informações com terceiros e, enfim, recuperar tanto quanto possível de cada história. Ah, ob-
viamente, em muitos dos locais em que estive durante o período de pesquisa, nunca tinha es-
tado antes, ou, pelo menos, buscando aquele tipo de informação.

Por isso sou muito grato a todos aqueles que ajudaram nessa recuperação histórica. Foi grati-
ficante desenvolver uma investigação desse tipo num período difícil do ano – comecei no final
de novembro de 2011 e fui até a primeira semana de março de 2012 –, justamente cruzando a
época de fim de ano, Natal, Ano Novo, férias, etc.

Pensei em listar um por um dos contatos que me levaram do interior do Rio Grande do Sul ao
coração da Amazônia, passando pela maioria dos estados brasileiros, mas desisti com medo
de deixar de citar algum nome que tenha sido envolvido depois que me encontrava no local e
do qual não tinha informação anterior. Essas pessoas tiveram papel importante no conjunto
dos relatos que faço neste livro.

Assim, ao mencionar genericamente esses amigos, espero que cada um deles se sinta reco-

13
nhecido neste meu profundo agradecimento. Eles foram de grande valia para fortalecer
minha crença que, sim, o trânsito brasileiro tem jeito, que tem gente cheia de entusiasmo,
de capacidade, com enorme potencial a ser explorado. Tudo o que precisamos é que uma
liderança importante do mais alto escalão da República dê um grito de “basta” à violên-
cia do trânsito para que se comece um movimento espetacular para tirar o país do estado
de imobilidade em que se encontra.

Agradecida a fonte – no caso, dezenas, talvez uma centena delas – é a vez de agradecer
quem me possibilitou chegar a elas. Só uma empresa como a Volvo do Brasil seria capaz
de bancar um projeto como este – um livro para falar de cultura de segurança no trânsito
– algo que soa rigorosamente incomum num país que desconhece a cultura de segurança,
premissa para que desenvolva a cultura de segurança no trânsito.

Aqui cabe uma referência ao Ministério da Cultura, que, por meio da equipe da Lei
Rouanet, entendeu a importância de oferecer um trabalho investigativo sobre disse-
minação de cultura de segurança no trânsito no Brasil. Enquadrar o projeto dentro dos
parâmetros da Lei Rouanet exige bem mais que simples determinação: requer paciên-
cia, habilidade e uma vontade sem limites para atender a todos os requisitos da Lei
Federal de Incentivo à Cultura. Felizmente os obstáculos foram superados e a obra
está, doravante, à disposição de uma comunidade cujo tamanho no Brasil não está de-
vidamente dimensionado, mas que certamente atinge algumas dezenas de milhares
de interessados.

Eles são, na verdade, o público-alvo desta publicação, na medida em que já têm um in-
teresse natural pelo tema e buscam mais informações sobre quem são e o que estão
fazendo outros brasileiros pelo país afora. Espero que os relatos ajudem na continuidade
dos seus trabalhos em favor do trânsito deste país.

Dentro da Volvo do Brasil, preciso destacar o papel extraordinário da Anaelse Oliveira,


coordenadora dos projetos institucionais, a quem coube, entre outras questões impor-
tantes, a negociação com o Ministério da Cultura/Lei Rouanet, com a ajuda do Leirton
Marques, da Interativa Projetos, de Londrina, encarregado pelo encaminhamento e
acompanhamento do processo de financiamento do livro. A Ana foi incansável na busca
das formas de viabilização do projeto.

Foi vital o suporte da Solange Maria Fusco, gerente de comunicação corporativa da


Volvo, para que uma obra como esta possa estar em suas mãos. Mais que isso: o apreço
da Solange pelo Programa Volvo de Segurança no Trânsito (PVST) foi fundamental para

14
que a sociedade brasileira pudesse contar com esse programa tão relevante, ao longo
dos 25 anos de história. Sempre digo: algo que no Brasil dura mais de 10 anos precisa
ser comemorado. No caso do PVST, deve ser comemorado em dobro ou em triplo porque
realmente sua contribuição foi extraordinária no sentido de alertar a sociedade para o
negligenciado problema do trânsito e contribuir significativamente para o crescimento
registrado ao longo dos anos. Por certo, ainda é uma obra inacabada, mas cabe à so-
ciedade encontrar mais mecanismos para continuá-la.

Cabe um agradecimento especial ao diretor de assuntos institucionais da Volvo do Brasil,


Carlos Morassuti, pelo permanente endosso ao PVST e a esta publicação. É da sua lavra,
do período que está à frente das relações institucionais da Volvo, que o Programa afirmou-
se e conseguiu desenvolver essa incrível experiência, aliás, única na história brasileira.

Muito obrigado também a Ariana Machioski e Eduardo Giglio, da Associação Viking


dos funcionários da Volvo do Brasil, que abraçaram este projeto e lhe deram todo o su-
porte necessário para seu encaminhamento.

Quero agradecer de forma especial à jornalista Jônia Castro, pela enorme contribuição
de selecionar os melhores trechos das mais de 150 horas de entrevistas que realizei com
dezenas de contatos por este Brasil afora. Muitas dessas conversas foram gravadas em
locais que não favoreciam uma boa qualidade de som, o que tornou o trabalho ainda
mais penoso.

Um obrigado muito afetuoso à Silmara Vitta, não apenas pela revisão de textos, mas
principalmente pela disposição em contribuir para um melhor alinhamento da obra. Da
mesma forma, um agradecimento ao Saulo Kozel Teixeira pela paciência e sapiência na
solução gráfica do livro. Havíamos começado contando com fotos e ilustrações de todos
os capítulos, o que certamente daria um toque todo especial aos relatos, mas a dificul-
dade de conseguir o total de material necessário nos fez rever a decisão e a solução en-
contrada pelo Saulo é digna dos bons profissionais da área.

Por fim, um agradecimento especial aos meus familiares, minhas filhas Amélia e Isabela,
que ficaram privadas da minha presença durante tanto tempo em razão dos compromissos
assumidos com a publicação do livro. E ao meu neto Francisco, cuja amizade só se fortale-
ceu nessa ausência. Afinal, trata-se de uma causa que, certamente, terá valido a pena.

A todos, indistintamente, que contribuíram de alguma forma para a produção e dis-


tribuição deste livro, o meu melhor muito obrigado.

15
Por que
cultura de
segurança
no trânsito
V ocê possivelmente já ouviu a história dos dois vendedores de sapatos que chegam num
país pobre e no dia seguinte têm reações diametralmente diferentes sobre como desenvolver
seu trabalho. O primeiro, sentindo a pobreza do país, não vê chance de prosperar e manda
telegrama para a empresa: “Mande passagem de volta. Aqui ninguém usa sapato.” O outro,
vendo sua chance de prosperar, manda telegrama para a empresa: “Aqui ninguém usa sapatos.
Mande um milhão de pares!”

Talvez o leitor tenha um pouco de dúvida sobre as razões que me levaram a escrever um livro
sobre cultura de segurança no trânsito no Brasil se aqui não temos esse tipo de cultura. Na ver-
dade, aqui não se trata de oportunidade de negócios, mas de algo muito maior.

Trata-se do futuro de um país e de uma sociedade que para crescer precisa desenvolver uma
série de qualidades ainda não bem sedimentadas. Por sermos um país relativamente jovem,
nos faltam ainda alguns atributos que demandam esforço e determinação para que as raízes se
criem, se fortaleçam e se espalhem pelo conjunto da sociedade.

Por sermos um país com baixos índices de escolaridade, nos faltam noções de civismo, de cidada-
nia, tão marcantes no nosso comportamento no trânsito. Por termos uma educação de baixa qua-
lidade, não temos segurança como um valor, o que ajuda a explicar os índices inaceitáveis de
acidentes de trânsito. No Brasil, morrem no trânsito cerca de 19 pessoas em cada grupo de 100.000
habitantes. Na Suécia – para comparar com o país líder mundial nesse quesito – morrem 3.

Esse abismo é que está na origem deste livro: é fundamental disseminar a cultura de segurança
no trânsito no país para diminuir a distância que nos separa dos chamados países de ponta,
pois é deste grupo que já fazemos parte no lado econômico. Já somos a sexta nação do mundo,
a caminho de nos tornarmos a quinta.

Para sermos uma nação plenamente desenvolvida, temos de ter um trânsito compatível, or-
deiro, civilizado, com baixo índice de vítimas, o que está muito longe do quadro atual. Para
chegar lá, precisamos de uma reforma completa no atual sistema do trânsito brasileiro.

Um dos pontos iniciais mais importantes é precisamente a disseminação da cultura de segu-


rança no trânsito. A bem da verdade, é bom que se diga que não estamos partindo do zero. Nas

17
duas últimas décadas fizemos progresso e pode-se dizer que no momento a sociedade brasileira
está bem mais atenta às questões e aos perigos do trânsito, mas ainda longe de mostrar um
comportamento que só um trabalho mais profundo de aculturação é capaz de produzir.

Ainda que o jeitinho e mesmo a lei de Gerson (“levar vantagem em tudo”) estejam presentes no
nosso cotidiano atual, é possível perceber que segmentos da sociedade dão mostras de rejeição a
esses comportamentos no trânsito, agora vistos como inadequados e, em muitos casos, condenáveis.
São esses sinais de intolerância e desaprovação que levam a acreditar que estejamos a caminho de
uma cultura de segurança no trânsito condizente com o nível econômico que afirmamos ter.

A ideia deste livro vem de longos anos, quando ficou claro para mim, como profissional da co-
municação social, que só uma mudança profunda na raiz da nossa cultura poderia alterar o
quadro do trânsito nacional. Essa mudança deve ser tão completa quanto possível, cobrindo toda
a pirâmide social brasileira, do mais alto escalão da República até a base da sociedade, passando
pelas escolas de todos os níveis, empresas, entidades, instituições de toda ordem, lideranças, etc.

Para que isso ocorra, cabe ao governo dar os primeiros passos para que a sociedade, notada-
mente pelas suas lideranças, acompanhe. Em minha opinião, o país está pronto para essa virada
monumental e as evidências estão aí nos desafiando:

1. Nossa qualidade de educação, ainda que em estágio modesto, está decolando, o que é
promissor;

2. Continuamos um país desigual, mas nossa desigualdade já é bem menor do que há al-
gumas décadas. As camadas sociais mais desprovidas hoje são menos pobres e já con-
seguem ter mais informação sobre crescimento social e ordem (catadores de materiais
recicláveis, muitos já organizados em cooperativas, são exemplos dessa mudança);

3. Na medida em que a classe média se amplia, passa a ter mais consciência do seu papel
e da importância de valores como segurança, por exemplo, o que, por enquanto e no
mínimo, a torna mais atenta aos riscos do trânsito mesmo que não os absorva por com-
pleto e muito menos os respeite;

4. A globalização trouxe novos conhecimentos e significados para a sociedade, como por


exemplo o comportamento no trânsito;

5. O fato de parte da sociedade já estar se dando ao luxo de viagens ao exterior permite


observar as diferenças de um trânsito quase caótico como o nosso para aquele que deve
ser, o que certamente impacta esse segmento da população;

18
6. O próprio governo, em todos os níveis, tem melhorado seu discurso sobre a segurança
no trânsito, embora isso não tenha sido traduzido na prática. Ao menos indica que co-
nhece o caminho.

O leitor mais exigente e talvez mais consciente pode achar que tudo isso é muito pouco, e cer-
tamente é, mas se compararmos com o que tínhamos há algumas décadas, não deixa de ser um
avanço considerável.

Tenho convicção (ou será torcida?) de que, se o governo acenar com intenção clara de provocar
uma verdadeira revolução no nosso trânsito, terá uma resposta concreta e à altura por parte
da sociedade civil, incluindo o setor privado. Há muita coisa por fazer, mas, como sabemos,
grandes caminhadas começam com um primeiro passo.

Um esforço nacional de inserir cultura de segurança no trânsito é tarefa para uma, duas dé-
cadas, uma geração, quem sabe mais um pouco. Com o incrível desenvolvimento da tecnologia
de hoje talvez seja possível em menos tempo.

Seja como for, estamos atrasados para esse amanhã. Assim, que comecemos logo.

19
O que é cultura
de segurança no trânsito

O mundo começou a se preocupar mais com cultura de segurança a partir da explosão na


Usina Nuclear de Chernobyl, na antiga União Soviética, em 1986. As agências internacionais con-
troladoras das usinas nucleares passaram a usar a expressão de forma mais enfática para demonstrar
os extremos cuidados que devem ser observados na condução da política de segurança.

No Brasil, de maneira geral, não se pode dizer que a expressão é nova, mas ela entrou no vo-
cabulário cotidiano a partir do evento de Chernobyl. Na verdade, temos até certa dificuldade
de entender o que, na prática, significa cultura de segurança. A rigor, em muitos países, isso
tampouco está bem claro.

Em seu livro Improving safety culture: a practical guide (Aperfeiçoando a cultura de segurança – Guia
prático), o engenheiro Dominic Cooper descreve numa frase curta a cultura de segurança de
uma empresa como “o jeito como trabalhamos no nosso ambiente”. Bem simplista, mas dá uma
ideia clara do que se trata.

Há definições mais rebuscadas, bem completas, como a do inglês Barry Turner, usada numa
conferência do Banco Mundial em Karlstad, Suécia, em 1989: “Conjunto de crenças, normas,
atitudes, papéis e práticas sociais e técnicas que objetivam minimizar a exposição de emprega-
dos, gerentes, clientes e público em geral de situações consideradas perigosas e que podem
provocar ferimentos.”

Transportada para a área de trânsito, a cultura de segurança pode ser entendida como a maneira
como os usuários do trânsito se comportam para evitar acidentes e ferimentos.

Se até a virada do século cultura de segurança era algo não tão comum nas empresas, a partir
do ano 2000 o cenário mudou muito e a prática passou a ganhar cada vez mais espaço nas or-
ganizações, notadamente naquelas cujas atividades comportavam um certo risco de acidentes.
Atualmente empresas investem verdadeiras fortunas em programas de segurança e ao mesmo
tempo na incrementação de cultura de segurança em seus colaboradores, clientes e fornecedores.

20
A indústria do petróleo é um exemplo de preocupação com segurança, não apenas em suas
operações fora da costa marítima, mas também nas explorações em terra firme, no transporte
de combustível e demais operações cotidianas. O setor de transportes de cargas perigosas –
combustíveis, produtos químicos, etc. – tem bom programa de segurança no transporte, bem
como um ótimo sistema de atendimento de emergência nos casos de necessidade. Nessas
ocasiões, geralmente contam com o indispensável apoio de bombeiros, policiais rodoviários,
todos devidamente treinados para atender qualquer situação.

No Brasil, fora desses setores, algumas empresas, notadamente as multinacionais, mas não só
elas, têm excelentes programas de segurança no trânsito, principalmente voltados para o trans-
porte de seus produtos. Vários casos são contados neste livro porque, além de praticar bons
serviços de segurança, se preocupam também em disseminar os conhecimentos para fun-
cionários, familiares, clientes, fornecedores, etc., contribuindo muito para o fortalecimento de
uma cultura de segurança de trânsito.

Além delas há inúmeras instituições praticando e desenvolvendo cultura de segurança pelo


país afora. São essas histórias que conto neste livro, na esperança de que possam servir de
exemplo a muita gente que está procurando o mesmo caminho.

21
Questão
de educação
Senador Cristovam Buarque
T emos várias explicações para a tragédia do
trânsito no Brasil. Desde econômicas, excesso de au-
tomóveis em relação aos investimentos em obras
viárias; psicológicas, do espírito irresponsável e aven-
tureiro do brasileiro; histórico, por termos passado
muito rapidamente do bonde para o carro, do ju-
mento para as motos. Mas certamente a melhor ex-
plicação para nosso fracasso, que vitima de morte
50.000 brasileiros e provoca talvez mais 50.000 por- Cristovam
tadores de deficiências físicas e mentais anualmente, Buarque

está no fato de tratarmos o trânsito como questão de en-


genharia, e não de educação.

O que deformou o trânsito no Brasil foi a falta de campanhas edu-


cacionais competentes e de massa para formar cada brasileiro, motorista ou pedestre.

Um exemplo do acerto no enfoque educacional é o êxito das faixas de pedestre no Distrito Fe-
deral. Do ponto de vista da engenharia, foi necessário apenas pintar e iluminar as faixas. Tudo
mais foi um processo educacional ao longo de meses.

A ideia das faixas foi trazida para mim, então governador do DF, pelo engenheiro Luís Riogi
Miura, que dirigia o Departamento de Trânsito da cidade. No primeiro momento, houve uma
reação contrária do núcleo central do governo, temeroso de que o funcionamento das faixas
levasse a muitos acidentes. Logo o Miura mostrou uma estratégia para a implantação do sis-
tema inédito no Brasil.

Consistia em um programa de educação de massas. Foi preciso ganhar o apoio do principal


jornal, o Correio Braziliense, e da principal televisão, a Globo. No Correio Braziliense, o grande
defensor do programa foi seu editor Ricardo Noblat e na Globo foi o jornalista Alexandre Gar-
cia. Através desses veículos, começamos uma campanha explicando as vantagens e a simplici-
dade das faixas. Ao mesmo tempo, foram colocados "instrutores", nas faixas experimentais,
muitos deles fantasiados de palhaços para atrair a atenção e o gosto das crianças.

23
Os "instrutores" distribuíam flores, de vez em quando uma simpática reprimenda, conversavam
com os motoristas, ensinavam aos pedestres seus direitos e como colocar o braço estirado até
que os carros parassem.

Foi importante, sobretudo, ganhar o apoio das crianças. Dentro dos carros elas insistiam para
que seus pais-motoristas parassem. Isso dava um sentimento de poder na criança. Foi essa
subversão da relação motorista-pedestre que permitiu o sucesso do programa. Tudo passou
a funcionar quando os motoristas descobriram que tinham o poder de parar o carro, o poder
da dignidade do comportamento elegante, cívico e educado. O pedestre, ainda mais que o
motorista, fez a subversão mais radical em um país cuja cultura está no poder do motorista,
ao perceber o poder que tinha de parar até o mais potente e caro automóvel com um simples
gesto de mão.

A faixa nada tem de engenharia, é um programa educacional, de revolução da mentalidade


prevalecente. E a vitória foi a mudança de cultura.

Mas talvez a faixa não tivesse prosperado sem a campanha maior chamada Paz no Trânsito.
Quando ela começou, em 1995, Brasília era a capital da mortalidade no trânsito. Foi preciso
uma campanha forte de educação e de repressão por meio de multas. Os “famigerados par-
dais” – em outros lugares têm outros nomes – foram espalhados pela cidade e passaram a mul-
tar os motoristas, até que eles passaram a atender aos sinais de limite de velocidade. Na frente
do Palácio do Governo foi colocado um grande painel indicando o número de mortes em cada
mês. O sucesso, com drástica redução no número de mortes, rapidamente apareceu e todos
começaram a perceber a importância do limite de velocidade.

Lembro-me de um taxista que ao me deixar em casa pediu um autógrafo para a mulher dele
dizendo que pessoalmente não gostava dos pardais que eu implantei, porque custou-lhe mul-
tas, até se acostumar a respeitar os limites, mas que a mulher dele era muito agradecida porque
passou a dormir tranquilamente enquanto ele trabalhava.

Uma das maiores provas do êxito apareceu quando pudemos mostrar a redução no número
de acidentados que chegavam ao hospital de politraumatizados. Antes da campanha Paz no
Trânsito, nos finais de semana havia acidentados pelos corredores dos hospitais com poucos
meses de campanha, comecaram a sobrar leitos. Outro exemplo surpreendente foi quando os
oficineiros me procuraram para dizer que necessitavam de um empréstimo do Banco do Estado
(BRB) para financiar mudança de ramo no trabalho deles, devido à redução nos serviços de
lanternagem.

Mas a grande vitória foi quando a população passou a se orgulhar do trânsito ordenado em
sua cidade. Sobretudo porque o cidadão passou a ser o ator principal; não mais os engenheiros

24
nem os sinais de trânsito, mas o motorista e o pedestre, unidos no respeito mútuo na cidadania.
No lugar do sinal de trânsito frio e autoritário, a vontade livre, mas respeitosa.

Essa é uma lição que o trânsito oferece para o conjunto da educação social: fazer com que as
pessoas sejam livres, mas respeitosas, sabendo compor um pacto entre motoristas, e deles com
os pedestres. Trânsito é uma questão de educação, com o propósito de mudar mentalidade. E
como tal, quando dá certo, é uma lição para todos os demais aspectos da sociedade.

Eu devo ao engenheiro Miura ter me tornado um professor de trânsito.

Cristovam Buarque
Governador do DF entre 1995-1999;
Ministro da Educação entre 2003 e 2004;
Atualmente senador pelo Distrito Federal

25
Muros
e pontes
A publicação deste livro atende a uma ideia tão simples quanto objetiva: registrar
histórias de quem tem ajudado o Brasil a criar cultura de segurança no trânsito. Pode parecer
estranho, pois sabemos que ainda não temos tal cultura, mas todos sabemos também do pro-
gresso registrado nas últimas décadas nas questões de trânsito.

Desde o começo do planejamento deste livro, estava claro que não poderia pretender contar os
“melhores casos”, mas identificar alguns que me marcaram ao longo da história do Prêmio
Volvo de Segurança no Trânsito. Desde o início do Prêmio Volvo, foi minha a tarefa de fazer a
primeira triagem dos trabalhos concorrentes para, depois, encaminhá-los ao júri externo, que
tinha, então, a responsabilidade pela indicação dos vencedores.

Nem sempre meus palpites de quem iria vencer o prêmio “batiam” com a decisão dos jurados,
o que sempre considerei natural. Afinal, se somos diferentes, temos diferentes opiniões e assim
julgamos pelos nossos critérios.

Contudo, das milhares de histórias que passaram pelo meu crivo, um bom número me marcou
muito e algumas nem ficaram com prêmio algum. Outras sequer foram vencedoras no sentido
de conseguirem transformar em realidade o que seus autores haviam idealizado.

Para mim, contava muito a maneira como os projetos eram concebidos, seus objetivos, seu
plano de ação e, obviamente, os resultados que deles se poderia esperar quando concretizados.
Não era importante o tamanho do projeto nem a importância de quem o propunha, mas, sim,
para ganhar o meu voto, era fundamental o espírito com que era construído e como poderia
contribuir para melhorar a segurança no trânsito brasileiro.

Por isso o conjunto de casos deste livro é um mosaico de peças bastante diferenciadas, que ao
final reflete um pouco o Brasil incompleto, em busca de uma identidade no trânsito que reflita
a verdadeira personalidade da nossa gente.

Para contar essas histórias, estive em dezenas de cidades de todas as regiões do país. Foram
muitas horas de avião, de carro, de noites de hotel e, claro, de muitas e prazerosas conversas.
Muitas delas se estendiam noite adentro, varando para o dia seguinte.

27
Minhas escolhas tinham sido baseadas nos 25 anos de atuação no Programa Volvo de Segurança
no Trânsito, que me deu a oportunidade de conhecer literalmente todo o Brasil por meio de
eventos nacionais e regionais, palestras, debates e mesmo outros trabalhos na área que desen-
volvi como consultor independente. Os cases que concorreram ao Prêmio foram, certamente, a
fonte principal.

No lado frustrante da longa jornada, em alguns dos lugares percebi que o trabalho desen-
volvido e inscrito no Prêmio não tinha tido continuidade e já estava esquecido. Nem sequer
tinha sido substituído por outro que pudesse ser chamado de aperfeiçoado.

O lado positivo, entretanto, é bem maior. O grau de conhecimento e de aplicação de padrões


de segurança que senti em alguns exemplos é encantador. Para mim, é a evidência maior de
que o país tem jeito, inclusive no trânsito.

É possível ver com clareza os diversos brasis. Vê-se com facilidade onde o governo se envolve
com pouco entusiasmo e muito objetivo populista e talvez eleitoreiro, onde a determinação das
pessoas fala mais alto e consegue prevalecer, onde o agrupamento de pessoas – ONGs ou não
– mostra a força da comunidade e onde o setor privado usa inteligência, tecnologia, respon-
sabilidade social para criar um mundo muito mais seguro ao seu redor.

A imagem clara dos mais de três meses de incursão por este arquipélago Brasil é que sobram
muros e faltam pontes. Há várias ilhas de excelência mostrando progressos e resultados, mas
constata-se um número incrivelmente maior de outras em busca de uma ponte que possa ligá-
las à modernidade e à sustentabilidade. Para termos um Brasil mais igual no trânsito, o desafio
é transformar os muros nos quais se encastelam pessoas, empresas e entidades em pontes de
acesso àqueles que precisam e buscam informações de como melhorar.

Muitos desses muros não são nem foram construídos pelo egoísmo de concentrar o saber para
uso próprio, mas pelas dificuldades do processo de comunicação, talvez pela ausência de uma
visão mais proativa do trabalho comunitário e, claramente, em muitos casos, pela falta de con-
tatos de eventuais interessados em conhecer bons processos.

É importante relembrar que segurança no trânsito nunca foi uma prioridade por aqui. Se procu-
rarmos na história brasileira alguma experiência voltada à segurança constataremos o quanto
isso foi negligenciado.

Washington Luís, último presidente da chamada República velha, que governou o país de 1926
a 1930, cunhou a famosa expressão “governar é abrir estradas”. Juscelino Kubitscheck, que as-
sumiu em 1955 com seu ambicioso Plano de Metas, que incluía a construção de Brasília, deu
grande impulso ao que chamava de desenvolvimento econômico do país. Por esses dois exem-

28
plos, percebe-se o sonho de crescer, mas observa-se claramente que não havia a preocupação
de crescer com segurança. Segurança, na verdade, nunca esteve presente no cotidiano nacional.
Segurança no trânsito, menos ainda.

Há um episódio interessante que ficou conhecido na história como a Revolta da Vacina e que
se passou no governo de Rodrigues Alves (1902-1906). Em 1904, o Rio de Janeiro, capital do
país, mostrava (já naquela época) um inchaço urbano, com o fim da escravatura e a imigração
europeia, e sofria profundamente com problemas de saneamento básico, o que provocava
graves epidemias, como febre amarela e peste bubônica. Rodrigues Alves nomeou Oswaldo
Cruz chefe do Departamento Nacional de Saúde Pública com a missão de atacar o problema,
criando a lei da vacina obrigatória, que permitia inclusive o uso da força para entrar nas casas
e vacinar a população, que se rebelou. Meses depois, a lei acabou sendo revogada.

Estou convencido de que se pudesse estender este meu trabalho teria acrescentado outros bons
exemplos de histórias de sucesso. Contudo, como tinha limites para a produção do livro, estou
muito satisfeito com o que consegui. Fica, assim, a sugestão a outros interessados para que
busquem caminhos similares aos que eu percorri e encontrem casos tão ou mais interessantes
do que os que publico neste livro.

Seria uma ótima contribuição à disseminação da cultura de segurança de trânsito neste país.

29
“ A arte diz
o indizível;
exprime o
inexprimível,
traduz

o intraduzível
(Leonardo da Vinci)

Arte. 1. Técnica, habilidade; capacidade especial; aptidão, jeito, dom1. 2.


Produção consciente de obras, formas ou objetos voltada para a concre-
tização de um ideal de beleza e harmonia ou para a expressão da subje-
tividade humana. Para compreender uma obra de arte, é preciso
considerar o contexto em que ela foi produzida. Ou seja, a arte é influen-
ciada por um pensamento, uma ideologia, uma época ou lugar.2 3. Arte é
derivada do latim ars, significando habilidade. A arte é, pois, a habilidade
de desenvolver um conjunto de ações especializadas, desde a jardinagem
ao jogo de xadrez.3 4. Arte – a palavra mais difícil de definir sem se agar-
rar a uma interminável lista de argumentos.4 5. “Ars longa, Vita brevis” (A
arte é longa, a vida curta).5 6. Arte é forma e conteúdo.6

1
Dicionário Houaiss;
2
Dicionário Houaiss;
3
Enciclopédia Encarta;
4
ArtCyclopaedia;
5
Hipócrates, filósofo grego;
6
Shelley Esaak, norte-americana, escritora sobre a história da arte
A ARTE
Por que arte:

Tema multifacetado, o trânsito deve

ser abordado de maneira multidisciplinar, isto

é, a partir dos mais diversos ângulos. A ARTE,

tema do primeiro capítulo deste livro,

comprova ser uma excelente maneira de

disseminar a cultura de segurança no trânsito.

Dentro das inúmeras formas de manifestações

de arte voltadas ao trânsito, escolhi o teatro

para destacar algumas experiências que

conheci em alguns estados ao longo das

últimas duas décadas e meia.


Trânsito, teatro e circo

Viratrânsito
PASSO FIRME DE PASSO FUNDO (RS)

COMO MANIFESTAçãO POPULAR, o circo é das artes mais antigas do mundo, existindo
há mais de 4 mil anos. Dos chineses aos gregos, dos egípcios aos indianos, passando pela
grande fase no Império Romano até chegar ao modelo britânico no século XVIII que conhe-
cemos até hoje, o circo sempre foi um fator de arte e entretenimento dos povos.
No Brasil desde o século XIX, trazido por europeus, o circo conquistou seu espaço que,
aos poucos, foi se dividindo com outros tipos de arte, mas resistiu. Na verdade, com o cres-
cimento vertiginoso das cidades e o surgimento de novas formas de entretenimento, o circo
moderno mudou sua forma de apresentação, mas não mudou o jeito de encantar as pessoas.
Não se conhece na história algo que tenha provocado tanto fascínio e atenção como o
circo. Nas crianças, ele estimula o espírito lúdico, o sonho, a fantasia e o encantamento. Já
nos adultos, provoca um retorno ao passado romântico, reanima emoções esquecidas e ofe-
rece um resgate da paixão pela vida. Numa palavra, o circo apaixona.
Eu mesmo, quando falo de circo, sempre me emociono. Nascido em família grande
e pobre, da minha infância na pequena Gaspar, em Santa Catarina, lembro da chegada
do circo na cidade, que imediatamente passava a ser o grande assunto de todos. Lem-
bro-me de alguns dos grandes circos, o Sarrazani e o Orlando Orfei, mas muitos outros
passavam e do mesmo jeito atraíam muita gente para seus espetáculos – a preços módicos
–, claro. O circo era – e possivelmente continua sendo até hoje nos grotões do Brasil –
um encantador de multidões.
Em Passo Fundo, a 300 km ao norte de Porto Alegre, estudantes e professores da
Universidade Passo Fundo (UPF) criam, em 1992, um grupo de teatro amador chamado
Viramundos. A troupe viaja num ônibus itinerante pelo interior gaúcho com um espetá-
culo e um desafio: ir aonde o teatro nunca vai ou pouco acontece. Obtém apoio da uni-
versidade e da comunidade, faz sucesso e, consolidado, percebe que pode fazer mais:
trabalhar o teatro como instrumento de educação social! Destemidos e obstinados, esses

32 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


jovens, de tanto rodar pelas estradas de asfalto e pó, concordam que o tema para o pró-
ximo espetáculo precisa ser o trânsito, visto que estavam cada vez mais dependentes
dele e, consequentemente, de seus perigos!
A equipe de atores do Viramundos continuou sua jornada de levar espetáculos de teatro
às cidades. Anos depois, uma nova equipe de atores oriundos do primeiro grupo de teatro
é organizada e passa a se chamar Cia. de Espetáculos da UPF. Com apoio da universidade,
do governo do estado do Rio Grande do Sul e também de outros parceiros, compra mais
um ônibus, arma sobre ele um verdadeiro circo e sai pelo Brasil apresentando a peça Tô sem
freio, de Sérgio Caparelli, que tem a habilidade ímpar de “falar às crianças e aos jovens”
palavras que querem ouvir.
A Cia. de Espetáculos usa o teatro e o circo como formas de passar mensagens de segu-
rança para o público infantil e juvenil, ávido de coisas interessantes e recados oportunos. A
aventura durou cerca de três anos, mas é suficiente para mostrar como se pode espalhar
cultura de segurança no trânsito no país.
Fui a Passo Fundo anos depois da experiência do Viramundos, encontrar o pessoal
do teatro, conhecer a UPF, bem como alguns dos personagens que marcaram um capítulo
importante na história das artes na cidade. Quando se toma contato com o ambiente, se
conhece as circunstâncias e as dificuldades para que ideias se desenvolvam e se concre-
tizem, fica muito mais fácil de entender por que as coisas muitas vezes não acontecem
neste país. A história do Viramundos é emblemática porque se repete pelo Brasil afora –
gente que procura espalhar segurança no trânsito, mas que enfrenta dificuldades de toda
ordem. Alguns desistem, outros conseguem seguir em frente e outros precisam mudar
estratégias para poder continuar. De qualquer forma, são pessoas,
grupos, empresas, entidades, organizações que merecem respeito e
aplauso pelas tentativas de manter a chama acesa, apesar dos
ventos contrários.

33
Viramundos/Viratrânsito
Se você chegar, como eu, a Passo Fundo, capital do Planalto Médio do Rio Grande do
Sul, no final de tarde de um dia comum de trabalho, se dará conta imediatamente de
que ela padece dos mesmos problemas de trânsito de qualquer cidade brasileira de porte
médio ou grande. Só para atravessar os pouco mais de 10 quilômetros da Avenida Brasil,
que corta a cidade, demorei quase uma hora, bem típico de cidades muito maiores.
Com cerca de 200 mil habitantes, Passo Fundo é cidade-polo da região de mais de
100 municípios. Nos últimos anos, ganhou notoriedade por organizar eventos de grandes
proporções no campo da literatura, do folclore e outras áreas.
Embora não tenha nascido na cidade, o maior nome passo-fundense ainda é Vitor
Mateus Teixeira, o famoso cantor Teixeirinha, nascido em Rolante, na encosta da Serra
Gaúcha. Com mais de 25 milhões de discos vendidos pelo mundo afora na década de
1960, Teixeirinha é apontado, no museu que leva seu nome em Passo Fundo, como o
maior cantor e compositor gaúcho.
Uma das grandes forças da cidade vem da UPF, a Universidade Passo Fundo, fun-
dada em 1968, e que se firmou como uma das maiores do interior do Rio Grande do Sul.
Com 59 cursos de graduação, dezenas de especializações, mestrados, doutorados, pós-
doutorados e seis campi em toda a região de abrangência, a UPF luta intensamente para
ser reconhecida como uma das melhores do país.
Foi na UPF que há 20 anos começou o interesse de juntar teatro e trânsito, com a for-
mação de um grupo de extensão de teatro. A ideia era fazer teatro como proposta tam-
bém para educar, sensibilizar e resgatar essa arte que acompanha os homens e as
mulheres ao longo de séculos. Primeiro era só um projeto de extensão na universidade,
coordenado e dirigido por uma jovem professora idealista.
No início, em 1992, eram pouco mais que 20 estudantes, mas logo a turma foi cres-
cendo e ganhando força. Na época, a reitoria da UPF percebeu a importância do movi-
mento que se iniciava e concedeu bolsas de estudo aos participantes, o que consolidou
o grupo.
Em 1996, fazendo apresentações para público infantil, ele marcou presença com a
peça Ari Areia, um grãozinho apaixonado, texto de Fátima Ortiz e Enéas Lour e direção de
Marcio Meneghell e Piéterson Duderstadt, mostrada pela primeira vez no Teatro Guaíra
de Curitiba. Em 1998, o Grupo de Teatro da UPF já havia se profissionalizado e recebia

34 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


suas primeiras remunerações por apresentações. Naquele momento, de forma profis-
sional, sem desprezar seu início amador, o grupo trabalhou a ideia de criar um projeto
de teatro itinerante que apresentasse suas peças, num ônibus-palco, pelas cidades do Rio
Grande do Sul. No ano 2000, surgiu então o Projeto Viramundos. Maduros, atores, atrizes
e coordenação perceberam que era hora de criar um projeto com novas propostas, agora
também educacionais e necessariamente conscientizadoras, para um público-alvo: crian-
ças, adolescentes, jovens. Partiu com sucesso e continuou nos anos seguintes, quando o
grupo sentiu que já estava pronto para projetos mais ousados.
Do Viramundos para a Cia. de Espetáculos, que desenvolveu o Projeto Viratrânsito, foi
um pulo. Com mais de 20 mil alunos indo e vindo diariamente pelas estradas da região
para os seis campi da UPF, é claro que o trânsito era, e continua sendo até hoje, um
grande problema. O desafio da Cia. de Espetáculos era encontrar uma forma de produzir
uma peça sobre trânsito de bom nível para ser mostrada não apenas em Passo Fundo e
região como também nas muitas cidades gaúchas e brasileiras que com pouca frequência,
para não dizer nenhuma, podiam assistir a um espetáculo de teatro. Assim, além da cul-
tura do teatro, a Cia. de Espetáculos levaria também a cultura do trânsito.
O líder do grupo era o inquieto Piéterson Duderstadt, um estudante do curso de
graduação em educação física que teve papel fundamental na estratégia para viabilizar
o projeto. A professora Cilene Maria Potrich, mestre em educação, que coordenou junto
com os estudantes os primeiros passos do Grupo de Teatro na UPF, do qual fazia parte
o aluno Piéterson, na época do Viratrânsito dirigia a Faculdade de Artes e Comunicação,
a quem cabia coordenar a parte pedagógica do novo projeto.
Cilene, como professora, tinha, de fato, outras inquietações em relação ao trânsito e
às influências que sofria de fora. Como professora do curso de pedagogia da UPF, que
prepara profissionais para atuar no ensino de crianças e jovens, sempre abordou de
forma aberta a questão da influência da comunicação de massa na sociedade como um
todo, principalmente no público jovem.
“A cada sete minutos na TV temos três, quatro minutos de propagandas interca-
ladas: cerveja/automóvel, cerveja/automóvel... É extremamente esquizofrênica a si-
tuação, isso é insano”, protesta. Para ela, uma professora de pedagogia que conversa
com seus alunos precisa fazer uma leitura crítica disso, mediar o que as crianças veem
de propaganda. Às vezes, quatro horas diárias na frente de um aparelho de TV. A criança
brasileira, para Cilene, é a que mais assiste TV no mundo.
Para tentar colocar de pé um bom projeto do teatro, com mensagem e educação
para o trânsito, os interessados e a direção da UPF perceberam uma boa oportunidade:

Arte I Trânsito, teatro e circo 35


o deputado Beto Albuquerque, passo-fundense de nascimento e de coração, ex-aluno
graduado na UPF, na época era secretário estadual de transportes do Rio Grande do
Sul. Ele seria o fio condutor do desejo da Cia. de Espetáculos da UPF de viabilizar a
peça de teatro sobre trânsito com apoio do governo do estado. O Detran-RS poderia
financiar pois, além da função de difundir educação de trânsito, tinha recursos para
tanto. Dito e feito. Com apoio da Secretaria dos Transportes, da Justiça e da Segurança,
do Detran-RS e Daer (Depto. Autônomo de Estradas de Rodagem do RS) o sonho,
enfim, se tornava realidade.
Foi montado um grupo interdisciplinar na UPF para dar o formato definitivo ao pro-
jeto, estabelecendo a temática, público-alvo, área de cobertura, estrutura física, material,
suporte logístico, etc. A primeira peça seria Tô sem freio, de autoria de
Sérgio Caparelli e dirigida por Ângela Gonzaga, nomes fortes da arte
gaúcha, escolhidos por unanimidade pelos membros do grupo.
O projeto consistia em montar um espetáculo de circo/teatro,
usando um ônibus adaptado com palco, gerador próprio, recursos
de som e luz suficientes para a realização das atividades em diferen-
tes locais. “A estrutura do circo era bem completa”, lembra Piéterson,
“com trapézio e tudo, o que exigiu de cada ator um grande esforço
para aprender por quase seis meses essa nova arte que não domi-
návamos”.
O objetivo da peça era educar adolescentes da 5ª série até o 2º
grau de 80 cidades de maior fluxo de trânsito do Estado, levando
a eles a problemática do trânsito e valorizando a vida de pedestres
Piéterson e condutores. Na justificativa do apoio ao Projeto Viratrânsito, a UPF
explica que “educar é, essencialmente, ensinar a viver, e isso significa for-
mar cidadãos conscientes e contribuir para uma sociedade melhor”.
Sérgio Caparelli, considerado um dos maiores autores brasileiros para adolescentes,
gostou do projeto porque a peça representava o trânsito em vários sentidos, lembrando
que “a carne é fraca, mas os para-choques são fortes”. Para escrever o texto, Sérgio se
inspirou nos quadros da fase azul de Pablo Picasso, quando ele se dedicou a retratar per-
sonagens e artistas de circo.
A peça é dinâmica e os atores são acrobatas saídos das telas de Picasso – tal como
todos somos acrobatas quando enfrentamos o trânsito das nossas cidades. Em seu ôni-
bus, eles viajam descobrindo um novo mundo. A aventura começa na cidade, que é
ponto de encontro e desencontro nas amizades, nas famílias, no amor, e, claro, no trân-

36 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


sito. À medida que cresce, a cidade vai se transformando e se tornando um labirinto. O
mesmo ocorre com o adolescente, que cria um labirinto de dúvidas na cabeça. “A vida
é curta e um dia teremos de descer do ônibus, só não sabemos em que parada”,
acentua Sérgio Caparelli. Para ele, “a vida é cheia de malabaristas, acrobatas e equili-
bristas, o que não deixa de ser trânsito. No fundo, sem trocadilho, na vida somos
todos passageiros”, conclui.
Concebido para ser encenado na rua, o ônibus-palco do Tô sem freio! ocupa uma área
de 18 m de largura por 12 m de profundidade. A altura do cenário é de 10 m, sem inter-
ferir com fiação elétrica, árvores, etc.
O ônibus tem uma abertura lateral, que serve de palco; nas paredes estão os ganchos
que possibilitam a marcação de cena do elenco e na parte superior está um arco de 5 m
de altura, que serve de estrutura para o trapézio. Nas partes frontal e traseira do ônibus
ficam as estruturas de alumínio em que estão presos os tecidos que, junto com o trapézio,
servem para as acrobacias aéreas que fazem parte do espetáculo. No solo, em cada lateral
do palco, dois trampolins impulsionam a subida dos atores ao palco.
Para Ângela Gonzaga, diretora da peça, “tratar sobre trânsito com adolescentes é
sempre complicado, a princípio, careta”. Para ela, “falar de trânsito é falar da própria
vida. Quem sabe cuidar do seu trânsito pessoal, reconhecerá seus limites, do seu
carro, dos semáforos, enfim, os direitos e deveres de cada um”.
Como se tratava de projeto do governo do estado, foram contatadas as coordenado-
rias de educação estaduais e os colégios estaduais para apresentar o projeto e mostrar o
conjunto de materiais desenvolvido pela equipe multidisciplinar. Cabia aos diretores
aceitar ou não o projeto e só então era agendada a apresentação da peça.
Em todas as cidades onde apresentou o Viratrânsito, a Cia. de Espetáculos de teatro
foi recebida com festa e alegria, o que não impedia que acontecessem lances surpreen-
dentes e inusitados. Piéterson conta que, quando soube que a peça era patrocinada pelo
governo do estado, o prefeito de uma cidade gaúcha de porte médio determinou à polícia
que impedisse a apresentação da peça. “Se insistirem”, fulminou o prefeito, “prendam
todos!”. Não podia dar chance ao partido do governador, que obviamente, não era o seu,
de roubar o seu eleitorado, na sua casa!
Às escolas eram distribuídos CD-ROMs com recurso multimídia com a temática do
projeto e a trilha musical do Tô sem freio, para execução normal em aparelhos CD player.
Aos professores foi oferecido material de apoio pedagógico em forma de livro, com su-
gestões de trabalhos usando os recursos disponibilizados pelo projeto. Como comple-
mento às atividades, foi editada uma revista para os alunos, intitulada Livro para gurias

Arte I Trânsito, teatro e circo 37


e guris, ilustrada, contendo orientação sobre valorização da vida e comportamento no
trânsito, com linguagem destinada à faixa etária do público-alvo do projeto.
Nesse sentido, um ponto que marcou profundamente os integrantes do grupo foi a
reação das crianças, que escreviam cartas aos atores, utilizando um formulário que fazia
parte do kit. Eram centenas, milhares de cartas de todas as cidades, com depoimentos
de como se sentiram assistindo à peça. Cilene Potrich, que recebia as cartas, acabou con-
tratando uma estagiária do curso de jornalismo para se ocupar da correspondência, ta-
manho era o volume de mensagens que chegava.
Cilene não esquece uma carta, escrita por Jéssica, uma aluna de 14 anos, que havia
perdido pai e irmão num acidente de carro. Ao assistir à peça, Jéssica teria dito à mãe,
que ao seu lado assistia à apresentação: “É o que quero fazer no futuro: montar uma
peça de teatro para explicar a todos que o trânsito pode matar qualquer um, como
matou meu pai e meu irmão.” Cilene diz que a carta de Jéssica, cheia de emoção, acom-
panhada de fotos dos familiares mortos no acidente, levou o grupo às lágrimas.
As apresentações ocorreram em 2002. O objetivo era realizar 120 apresentações,
mas o orçamento não permitiu mais que 87 – o que não foi pouco para o período de
um ano. Com o fim do contrato com o governo gaúcho, o Projeto Viratrânsito acabou,
mas a Cia. de Espetáculos da UPF continuou com as apresentações, incluindo agora
outros estados da federação. Cidades gaúchas que não tinham sido contempladas com
o projeto pelo estado, mas que continuavam interessadas, tiveram, então, sua chance.
Prefeituras, escolas particulares e empresas locais juntavam R$ 2.500,00 para custear
o espetáculo. O Viratrânsito chegou a fazer de 10 a 15 apresentações/mês até o final
de 2004.
Pelos cálculos do hoje produtor cultural Piéterson Duderstadt, a Cia. de Espetáculos
chegou a realizar, em três anos, cerca de 150 apresentações, assistidas por cerca de 200
mil pessoas. A receptividade era enorme. “Na semana do trânsito, a peça ‘Tô sem freio’
era disputada a tapas”, conta. O reconhecimento não ficou apenas nos aplausos, mas
também em premiações. Segundo Piéterson, o grupo recebeu mais de 100 prêmios em
várias partes do país.
Como o sucesso da troupe recomendava, seus integrantes decidiram continuar vi-
vendo de teatro e shows. Em 2005, criaram a Cia. da Cidade, agora uma empresa autô-
noma de espetáculos com grande atuação no teatro, mas também trabalhando na
organização, montagem e apresentação de shows comerciais, contratados por empresas
de maior porte. Piéterson Duderstadt tem orgulho de repetir que ele e seus colegas não
são sobreviventes do teatro, mas vivem dignamente dessa difícil e necessária arte.

38 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


A universidade e o trânsito
Pelas características com que foi desenvolvido o projeto – um grupo de teatro, for-
mado dentro da universidade, com apoio da reitoria, participação de diversos setores
da própria instituição e ainda contando com apoio de órgãos do governo do estado –
não me lembro de nenhum caso similar ao longo desses 25 anos em que atuo na área de
trânsito.
É digno de nota, no caso do Viratrânsito, a determinação dos estudantes e professora
para criar um projeto de teatro em Passo Fundo do porte do Viramundos e Viratrânsito,
enfrentar as dificuldades que isso significa – e vencê-las – para levar entretenimento e
educação de trânsito a milhares de jovens e adolescentes.
Dez anos depois, revisitando o caso, um ponto alto que me chamou a atenção foi o
papel da universidade, a importância de ela apoiar uma ação desse tipo, que vem ao en-
contro de um dos seus maiores objetivos, o de ajudar a sociedade a entender seus grandes
desafios e contribuir para enfrentá-los. O trânsito não era apenas o desafio cotidiano dos
seus estudantes, mas de toda a sociedade de Passo Fundo e da região.
Bernadete Dalmolin, vice-reitora de extensão e assuntos comunitários da UPF, lem-
bra do Viratrânsito com saudades e do quanto ele se inseria dentro dos
objetivos maiores da universidade. Depois que o projeto acabou, a UPF
continuou com seus esforços para a melhoria da qualidade de vida nas
cidades e há anos debruça-se sobre o grande tema da mobilidade ur-
bana. Dentro da sua própria área, de Extensão e Assuntos Comunitá-
rios, foi criado um grupo de mobilidade urbana, com a missão de
debater os desafios da cidade e desenhar um relacionamento mais pró-
ximo entre a universidade e a sociedade.
Bernadete, que é doutora em saúde pública pela USP e foi profes-
sora do curso de enfermagem da UPF, é uma das organizadoras do livro
‘‘ O trânsito não
era apenas o
desafio cotidiano
dos seus estudantes,
mas de toda a
sociedade de Passo
Fundo e da região
Violência no trânsito – Retratos de Passo Fundo, editado pela Editora Bert-
hier, da cidade. Conta que, preocupado com os índices de acidentali-
dade, um grupo da UPF resolveu propor um projeto de redução de mortalidade no
trânsito, em Passo Fundo. “Não queríamos escrever uma política e entregar, mas cons-
truir uma política nesse coletivo”, afirma, “com envolvimento do executivo, do legisla-
tivo e, claro, da sociedade”.

Arte I Trânsito, teatro e circo 39


Pelo Brasil afora
Há INúMEROS TRABALHOS POR ESTE BRASIL usando a linguagem do teatro e enfo-
cando a problemática da segurança no trânsito. A maioria é destinada às crianças e adoles-
centes – públicos que se identificam com a linguagem lúdica do teatro infantil. O teatro é
uma arte que proporciona uma comunicação singular. O ator olha nos olhos do espectador
e essa química é capaz de emocionar, de fazer rir e fazer pensar.
Uma dessas boas experiências foi a da Via Certa Companhia Teatral, formada por gra-
duandos em Artes Cênicas do Centro Universitário Barão de Mauá, de Ribeirão Preto, São
Paulo, e que continua em outro formato até hoje. Desde 2002, a equipe desenvolve um tra-
balho de teatro voltado para a educação no trânsito, levando a arte para inúmeros municí-
pios do interior paulista. Rober Caligari, um dos líderes do grupo, conta que os primeiros
anos foram uma experiência extraordinária.
Os temas das peças eram escolhidos para abordar as necessidades mais frequentes do
trânsito dos municípios visitados. No repertório, espetáculos para crianças de pré à 4ª série,
e para adolescentes de 5ª série à 3ª série do ensino médio, aí já pegando o “quase motorista”.
Havia também performances em ônibus, destinadas a idosos, motoristas e cobradores, bem
como em postos de combustível e cruzamentos semaforizados. A ideia era buscar sempre
uma identificação com a plateia e o carro-chefe sempre era o trânsito. Utilizava, entre outras,
a técnica de contação de histórias.
Nos primeiros dois anos, a Via Certa atingiu mais de 100 mil crianças de escolas públicas
e particulares, além de grande público, pelas campanhas educativas e apresentações nas
ruas e nos coletivos dos municípios da região de Ribeirão Preto.
Terminado o vínculo com o Centro Universitário Barão de Mauá, de Ribeirão Preto, o
grupo se desfez, mas Rober manteve o controle da Via Certa Companhia Teatral e fixou resi-
dência em São Paulo, onde continuou suas atividades. O grupo se apresenta por todo o país
e faz muitas apresentações patrocinadas por empresas, para seus próprios funcionários e
familiares ou outros públicos.
A Companhia de Engenharia de Tráfego da cidade de São Paulo (CET-SP) mantém seu
próprio grupo de teatro infantil, com grande volume de apresentações no seu Centro de
Treinamento e Educação de Trânsito (Cetet), na Barra Funda. Além das atividades para
crianças e jovens, equipes de profissionais da CET oferecem cursos de capacitação de pro-

40 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


fissionais de diversos níveis de ensino, incluindo outros para motoristas de táxi, motociclis-
tas, ciclistas, etc.
Durante alguns anos, o Cetet manteve em cartaz no seu auditório a peça O céu
já tem anjos demais, de autoria da baiana Rosane Frerichs, que provavelmente
tem o mais longo currículo de trabalhos de teatro para público jovem
das últimas décadas.
Ganhadora de quatro Prêmios Volvo de Segurança
no Trânsito, ela começou a se interessar por teatro in-
fantil em 1986, em Salvador, Bahia, por uma razão bem
simples: seus filhos estavam crescendo e ela sentia a neces-
sidade de passar informações adequadas para garantir a se-
gurança deles no trânsito.
Foi assim que nasceu o Stop, o herói sinal verde, a história de
um palhacinho que vivia no planeta Teatrus e que, um dia, recebe
Rosane
a missão de vir à Terra para ajudar as crianças a melhorar o trânsito
confuso e perigoso em que viviam. Aqui ele conhece Dorothy e, jun-
tos, ensinam tudo o que sabiam e combatem a terrível Imprudência e
o diabólico Acidente. Depois de vencer as batalhas, Stop volta ao seu planeta e, de longe,
acompanha a continuidade do seu trabalho de conscientização.
Percebendo que o tema segurança no trânsito era promissor, e impulsionada pela visi-
bilidade nacional dada pelo Prêmio Volvo, Rosane muda-se para São Paulo onde imprime
ritmo mais acentuado ao seu trabalho. Depois do sucesso de Stop, que virou livro e é ven-
dido até hoje, surge O céu já tem anjos demais, no qual experiências vividas por uma turma
de amigos no trânsito mostram perigos e precauções vitais dentro do universo arriscado
das ruas e estradas. Essa peça, como a anterior, também ganhou formato de livro e continua
sendo exibida até hoje. Desde 2006, ela se associou a Alberto Almeida e juntos comandam
o Programa Novo Trânsito, com planos de expansão das atividades sempre voltadas à segu-
rança no trânsito, à cidadania e ao meio ambiente.
Uma atividade que tem se repetido em inúmeros estados brasileiros, notadamente nas
proximidades da Semana Nacional do Trânsito, em setembro, são os festivais de teatro, ge-
ralmente com peças infantis e sempre envolvendo escolares de diversos níveis. Muitas vezes
os alunos são os próprios atores e, quando não, o público-alvo. São sempre ótimas oportu-
nidades para passar boas mensagens sobre a problemática do trânsito.
O Programa Volvo de Segurança no Trânsito teve o seu próprio festival. Em 2002, lançou
o Festival de Teatro Juvenil Transitando, um concurso de peças de teatro entre escolas de uma

Arte I Pelo Brasil afora 41


mesma região para estimular o aprendizado e a vivência do trânsito. O projeto, apoiado
pela Lei Rouanet, do Ministério da Cultura, começou em Curitiba e, nos anos seguintes, foi
reprisado em vários estados da federação.
No Paraná, em 2002, contou com a participação de 37 grupos de teatro de escolas pú-
blicas de ensino médio de Curitiba e Região Metropolitana durante a Semana Nacional de
Trânsito. A experiência, repetida durante alguns anos, foi levada a outros estados – São
Paulo, Goiás e Mato Grosso do Sul – sempre com aceitação muito grande. Recebeu prêmios
nacionais e até uma menção honrosa da IPRA (Associação Internacional de Relações Públi-
cas), sediada em Londres.
Uma das experiências regionais mais vigorosas do país nesse campo e nessa década é
o Festival Estudantil Temático Teatro para o Trânsito (Fetran-MT), que em 2012 chegou à sua 9ª
edição. É promovido pela 2ª Superintendência Regional da Polícia Ro-
doviária Federal do Mato Grosso em parceria com o Detran-MT, Se-
cretaria Estadual da Educação, Assembleia Legislativa e várias
prefeituras municipais, com o apoio de outros parceiros.
Segundo Vanderlei Munhoz, inspetor da PRF-MT, “a alma do pro-
jeto, seu maior objetivo, é alertar crianças e adolescentes para
a necessidade de conhecer as normas e leis que regem o
trânsito brasileiro, auxiliando-os em sua formação de fu-
turos cidadãos e tornando-os conscientes e comprome-
tidos com a segurança no trânsito”.
Vanderlei O festival destina-se a alunos regularmente matriculados
no ensino fundamental e no ensino médio das escolas públicas e pri-
vadas, bem como aos alunos matriculados em projetos sociais realizados pelo estado e pelo
município. Anualmente são realizadas cinco etapas regionais: Guaporé (Comodoro e Pontes
e Lacerda), Pantanal (Primavera do Leste) Nortão (Sorriso), Araguaia (Nova Xavantina) e
Cuiabana (Nossa Senhora do Livramento), além da Etapa Estadual (Cuiabá).
O festival é dividido em quatro categorias (infantil, infanto-juvenil, juvenil e educação
especial). O Fetran premia alunos, professores e escolas participantes com computadores,
notebooks, televisores, aparelhos de som, aparelhos de DVD e outros, além de uma viagem
de uma semana a Brasília.
O julgamento dos trabalhos ocorre de duas maneiras: numa, as apresentações são ava-
liadas por uma comissão julgadora, composta por profissionais com experiência em lingua-
gens artísticas, pedagógicas e regras de trânsito. Noutra, as performances são avaliadas por
um júri popular, escolhido pela coordenação do evento, para julgar os espetáculos concor-

42 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


rentes de acordo com a visão
da plateia. Devem ser obser-
vados itens como temática,
montagem, percepção do
público e criatividade de
cada grupo.
As apresentações têm
início em maio e vão até
julho, quando acontece a
grande final, em Cuiabá, na
qual são premiados os vencedo-
res de cada categoria. Há premiações
para melhor espetáculo, melhor ator,
atriz, revelação, texto e a melhor direção. Os vencedores disputam uma viagem cultural e
pedagógica de uma semana a Brasília, além de diversos outros prêmios.
Em 2012, o festival agregou mais um item interessante com a inclusão da categoria edu-
cação especial. Alunos portadores de necessidades especiais, de todas as idades, podem
participar, dando um novo e importante contorno a ele.

Peça essencial
Os projetos podem se diferenciar entre si, podem ter custos que variem muito, bem como podem
ter enormes diferenças quanto às ambições e objetivos, mas todos têm um ponto em comum: al-
guém que se propõe a coordenar a operação. Sem essa figura, a chance dos projetos terem su-
cesso diminui drasticamente. É essa pessoa que assume a carga maior de conduzir a ação, de
colocar o trem nos trilhos e fazê-lo andar.

É o carregador de piano, como costumamos chamar. Geralmente é o visionário da turma, o que


acredita firmemente que, apesar das dificuldades difíceis de transpor, é possível ir em frente e in-
centiva os demais.

Nos próximos capítulos conheceremos outros carregadores de piano e constataremos que, sem
eles, alguns projetos dificilmente teriam chegado aonde chegaram.

Arte I Pelo Brasil afora 43


“ Feliz aquele
que transfere
o que sabe
e aprende

o que ensina
(Cora Coralina, poetisa e escritora)

Conhecimento. 1. Ato, efeito, faculdade de conhecer, de perceber ou


compreender por meio da razão e/ou da experiência. 2. Domínio teórico
ou prático de uma arte, uma ciência, uma técnica, etc.. 3. Fato ou condição
de estar ciente ou consciente de algo; ciência, informação, notícia. 4. So-
matório do que se conhece; conjunto das informações e princípios arma-
zenados pela humanidade. 5. Ato ou faculdade do pensamento que
permite a apreensão de um objeto, por meio de mecanismos cognitivos
diversos e combináveis, como a intuição, a contemplação, a classificação,
a analogia, a experimentação, etc. 6. Erudição, cultura, instrução.1

1
Dicionário Houaiss (compilação do autor)
C
CONHECIMENTO
Por que conhecimento:
A intenção de colocar CONHECIMENTO
como tema do segundo capítulo ampara-se na
extraordinária necessidade de melhorar
o saber brasileiro sobre questões de
segurança no trânsito.
Neste capítulo, veremos histórias de
instituições de ensino que, cada uma do seu jeito,
marcaram de maneira especial suas formas de
disseminar conhecimento sobre segurança no
trânsito. O que constatei aqui é que segurança
não é uma questão de ricos ou pobres (empresas,
ONGs, escolas, pessoas), nem do Sul nem
do Norte – o que vale é a atitude daqueles que
querem fazer a diferença.
Aulas de segurança
na Amazônia
SOBREVOAR A AMAZôNIA É SEMPRE UMA EXPERIêNCIA INTERESSANTE e, mui-
tas vezes, fascinante. A viagem que fiz, em dezembro de 2011, foi inesquecível. Estava
animado pelo motivo que me levava ao interior daquele pulmão verde do Planeta. Estava
indo visitar Porto Trombetas, no oeste do Pará, a quase 900 km de Belém e a cerca de 400
km de Manaus. Ali se localiza a Mineração Rio do Norte, uma associação entre Compa-
nhia Vale do Rio Doce, BHP Billiton, Alcan, CBR, Alcoa, Hydro e Abalco para extrair e
comercializar bauxita, a matéria-prima do alumínio.
Apesar de ter chegado em Belém às 11 horas da noite, nem me incomodei de levantar
às 4 da manhã seguinte para pegar o voo das 5h27 para Trombetas. Tinha curiosidade
de acompanhar, do avião, o nascer do sol na Região Amazônica, mas o que queria mesmo
é conhecer Trombetas e sua exuberante segurança. Valeu a pena!
Para apoiar o complexo montado às margens do Rio Trombetas e no meio da Selva
Amazônica, a Mineração Rio do Norte (MRN) construiu a cidade de Porto Trombetas, um
núcleo urbano com completa infraestrutura de saneamento básico e social. Ali tem de
(quase) tudo.
O complexo Trombetas, situado a 70 km da sede do município de Oriximiná, a 240
km de Santarém, conta com usina de geração de energia, sistemas de suprimento de água
potável e de tratamento de esgoto. A cidade – cerca de 7 mil habitantes – é constituída
por aproximadamente mil casas, alguns dormitórios para mais de 1.500 funcionários sol-
teiros, além de um hotel para visitantes. A infraestrutura é bastante boa: escola até o en-
sino médio, com capacidade para mais de mil alunos; hospital com 32 leitos e serviços
laboratoriais; clubes de lazer; cine-teatro; Casa da Memória; centro comercial; aeroporto
e, naturalmente, um bom sistema de comunicação nacional e internacional. Além disso,
um bem estruturado programa de medicina preventiva e assistencial assegura boa qua-
lidade de vida à população local. Graças a ele, Porto Trombetas possivelmente seja o
único local da Amazônia onde não há dengue nem febre amarela.
A Escola Professor Jonathas Pontes Athias, mantida pela Mineração Rio do Norte
através da Fundação Vale do Trombetas, fornece ensino gratuito a todos os dependentes

46 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


dos empregados da MRN, de suas
empresas contratadas (presta-
doras de serviço) e de parte
da população ribeirinha do
entorno de Porto Trombe-
tas. O nome da escola é ho-
menagem ao ilustre educador
oriximinaense, professor Jonathas
Pontes Athias, membro do Conse-
lho Nacional de Educação e ex-se-
cretário de educação do Estado
do Pará.
No final de 2011, estavam
matriculados 1.035 alunos, entre
ensino médio e fundamental. A es-
cola conta com 90 funcionários, sendo
47 professores (70% com curso superior) e 43
do quadro de apoio pedagógico e operacional. Entre as várias ações comunitárias que
desenvolve, está o projeto ATA (Alunos de Trombetas em ação), que, em 2001, havia recebido
o Prêmio Volvo de Segurança no Trânsito, pelo trabalho de conscientização voltado para
a educação no trânsito.
Os indicadores da escola são muito bons: 95% de aprovação no ensino fundamental
e médio; taxa de evasão escolar de 0,4% (em 1997, a média brasileira era de 12,9%; em
Oriximiná, 16% e, no Pará, 20,7%). O índice de satisfação dos pais é de 96%.
No trabalho que concorreu e venceu o Prêmio Volvo, o que me havia chamado a
atenção era esse projeto de educação de trânsito, bem desenhado e consistente e desen-
volvido no meio da Amazônia. Afinal, não se chega a Porto Trombetas de carro – o acesso
se dá apenas por barco ou avião – e, assim, era natural o interesse em conhecer o tipo de
educação implementada e principalmente para que tipo de trânsito.
A partir dos primeiros contatos telefônicos e por e-mail para acertar a visita, comecei
a perceber a diferença entre as várias realidades da escola brasileira, uma confirmação
da existência dos diversos brasis que estão dentro do Brasil.
Claro, já conhecia inúmeras escolas municipais, estaduais, particulares em diversos
estados, mas ainda não havia visitado nenhuma mantida por empresa de padrão inter-
nacional. É outra história – a começar pelo sistema organizacional.

Conhecimento I Aulas de segurança na Amazônia 47


Ela funciona com orçamento anual, planejamento trimestral, direção e corpo docente
bem remunerados, avaliação de resultados, grande envolvimento dos pais de alunos.
Dessa forma, trabalhando de maneira organizada, com motivação e sem problemas de
(falta de) recursos, as coisas ficam mais fáceis. Tem mais: a escola utiliza o sistema edu-
cacional da Rede Pitágoras, de Minas Gerais, hoje Kroton Educacional, uma das maiores
organizações privadas do país, com atuação nas áreas de ensino básico e superior.
Isso já é bastante para ajudar a explicar o sucesso da escola, mas ainda
não é tudo: para tocar um programa de educação de trânsito, é fundamen-
tal ter alguém que puxe os cordéis, que coordene as ações, que carregue
o piano. Vale para todo mundo. Na Escola Jonathas Pontes Athias, essa
pessoa é Rozzane Gruba, paulista de Araçatuba (SP) que adotou Trom-
betas no final da década passada.
Em 1998, Rozzane planejou, criou e administra até hoje o Projeto
ATA (Alunos de Trombetas em ação), com o objetivo de conscientizar a es-
cola e a comunidade sobre questões de trânsito e de meio ambiente.
Basicamente, são quatro projetos – Educação de trânsito, ATA navegação,
Cipa escolar e Cipa recreativa – que funcionam em paralelo e que mobi-
lizam não apenas alunos e professores da escola, mas todos os mora-
dores de Trombetas.
O objetivo principal é a aprendizagem e o exercício consciente da ci-
Rozzane dadania, colocando o aluno em sintonia com seu tempo e lugar, para que assim
possa atuar ativamente como motivador, transformador e multiplicador. Os alunos
que participam dos projetos são selecionados a partir de alguns indicadores como bom
rendimento acadêmico, ótimo relacionamento interpessoal com os colegas, disponibili-
dade para trabalhar no projeto e espírito de liderança. Anualmente, para cada um dos
programas são treinados e capacitados 45 alunos que atuam como facilitadores e multi-
plicadores, escolhidos geralmente da 3ª e 4ª séries do ensino fundamental.
O programa de educação de trânsito é amplo e permanente. Inclui até aulas mensais
dadas pelos próprios monitores aos demais alunos. O conteúdo é discutido com o grupo
e no final é complementado por um treinamento específico para a aplicação. Outra ação
marcante é o monitoramento do trânsito em frente à escola, orientando pedestres e mo-
toristas nos horários de entrada e saída de turnos.
O Programa Cipa escolar objetiva firmar a qualidade total e trabalhar com conceitos
de segurança na comunidade de Porto Trombetas. Dentro dessa linha, foi criado o Pro-
grama de segurança no ambiente escolar, para fornecer conhecimentos, provocar atitudes e

48 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


revelar habilidades para o exercício consciente e seguro das atividades dos alunos. Nessa
perspectiva, são realizados mensalmente os Diálogos de segurança, que obedecem um pla-
nejamento anual de temas a serem abordados. Outra missão do grupo é o Relato de não
conformidade de segurança, como entulho nos pátios da escola, falta de equipamentos de
segurança, de policiamento nos cruzamentos próximos, etc. Nesse sentido, a cobrança
dos trombetinhas é implacável, conta com todo apoio da direção da escola e por essa razão
é levada a sério por todos. O grupo, também responsável pela integração dos novos alu-
nos, passa por treinamento com pessoal especializado para prevenção de incêndios.
O grupo da Cipa recreativa promove atividades lúdicas que possibilitem a socializa-
ção, integração dos novos alunos, bem como o resgate da arte de brincar, sempre levando
em conta a importância da prevenção de acidentes nas brincadeiras. Todos recebem trei-
namento em técnicas de recreação e relações humanas.
Outra ação importante é o ATA navegação, no qual a escola coloca seu olhar de preo-
cupação em cima do meio de transporte cotidiano mais utilizado uma vez que, como
não há estradas na região, a única forma de deslocamento, além do avião, são as inúme-
ras embarcações que navegam pelos rios das redondezas. Diariamente são dezenas de
alunos que utilizam os barcos para ir à escola, mas cuja tripulação nem sempre oferece
a orientação adequada no que diz respeito à segurança. Os alunos membros da ATA na-
vegação, devidamente treinados pelo Comando do Distrito Naval de Trombetas e por téc-
nicos da MRN, ministram palestras e atuam em abordagem nas balsas, informando os
passageiros sobre normas básicas de segurança, direitos e deveres.
Marinette Freitas, atual diretora da Escola Professor Jonathas Pontes Athias, conta,
com justo orgulho, um episódio ocorrido com uma das alunas de Trombetas. Ao entrar
numa barca para uma viagem de Manaus a Santarém, a aluna foi impedida pelo coman-
dante da embarcação de colocar o colete salva-vidas “para não desarrumar o local”. Ela rea-
giu com força: “De forma alguma”, disse, “não apenas eu, mas todo mundo
aqui neste barco vai ter, sim, que usar colete, pois, além de necessário,
é obrigatório”. E assim foi feito. As lições de Trombetas estavam mos-
trando seu valor.
Um dos momentos de maior destaque anual do ATA ocorre por
ocasião da Semana Interna para Prevenção de Acidentes (SIPAT), em
que a turma capricha e manda ver. Numa delas foi construída uma
cidade-mirim de madeira, denominada Atalândia, na qual os alu-
nos puderam levar à prática aquilo que aprenderam nas salas de
aula. Da mesma forma, foram produzidas várias cartilhas de

Conhecimento I Aulas de segurança na Amazônia 49


educação para o trânsito, como os guias às crianças, aos pedestres, aos ciclistas e aos
motociclistas, além de outras publicações voltadas à proteção do meio ambiente e de
interesse comunitário.
“Não é apenas importante que a comunidade passe a tomar mais cuidado com
as coisas do trânsito na cidade, mas que eles próprios, os alunos, saiam muito mais
convencidos da importância do que aprendem na escola e praticam fora dela”, diz
Rozzane Gruba. Em razão do programa, a escola recebeu várias premiações, incluindo
o Prêmio Volvo de Segurança no Trânsito e o Prêmio Denatran de Educação, além de
convites para apresentar seu modelo noutras cidades brasileiras.
De onde vem toda essa conscientização e disciplina? Como um programa assim
consegue ser bem-sucedido no coração da Selva Amazônica, onde nem sequer há um
trânsito preocupante? A Escola Jonathas tem papel fundamental no processo, mas o
que vivenciei nos três dias que passei em Trombetas foi algo que superou em muito
minha expectativa.

A Mineração Rio do Norte


Ela é a razão de ser de Porto Trombetas. Assim, tudo gira em torno dela. Ela não só
dá as cartas como dita as regras do jogo, o que vale para a empresa e para todo mundo
que trabalha no projeto.
O bom de Trombetas, que vivenciei, é que se trata de um jogo saudável, limpo, trans-
parente, ético e que, talvez por todas essas virtudes, torne-se um jogo exemplar. O que
quero ressaltar aqui é o que percebi como influência da política de segurança da MRN
na vida de Porto Trombetas, incluindo a Escola Jonathas. Todos sabemos que uma ótima
forma de educar é pelo exemplo e aqui temos um modelo ótimo. O padrão de segurança
da mineradora é percebido em todos os cantos por onde você se desloca na Vila, como
alguns a chamam.
E não é apenas segurança que chama a atenção. O tema meio ambiente é outro ponto
de honra para a MRN, tanto que Porto Trombetas ganhou certificação ISO 14001, que
trata da questão ambiental, “não porque fosse um fim, um objetivo, mas por conse-
quência”, me explica Arlete Ferreira dos Santos, coordenadora de contratos, 31 anos em
Porto Trombetas, 25 de MRN.

50 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Ela fala com orgulho do trabalho em Porto Trombetas, que realmente mobiliza todo
mundo que ali trabalha ou vive. “Houve fornecedores que vieram nos oferecer serviços
mostrando todas as credenciais que os qualificariam para o trabalho, mas que, sen-
tindo o padrão e o rigor das normas da MRN, acabaram desistindo”, historiou.
Mais adiante explica com clareza por que é importante desenvolver bons sistemas
de segurança, mas que isso só não basta: “Segurança é um valor perecível, por conta
das contribuições negativas que minam o que já está edificado. Por exemplo, há fun-
cionários que, aqui, são ardorosos fãs da segurança, mas nas cidades vizinhas, como
motociclistas, não usam capacetes ou só usam quando há uma fiscalização, quer dizer,
por obrigação.” E prossegue: “É preciso aperfeiçoar sistematicamente os mecanismos
de segurança, até porque a operação numa mineração é muito dinâmica e exige cons-
tante acompanhamento.” O resultado desse esforço contínuo está na involução das es-
tatísticas de acidentes na MRN: em 1982, foram 292 acidentes; em 2009, 31; em 2010, 21
e em 2011, até fim de novembro, 13. O laudo médico é que define o acidente.
O segredo do sucesso desse trabalho, para mim, está na forma como a empresa ele-
geu seu lema de ação e deu força para que fosse praticado por todos: “Se não for seguro,
não faça e nem deixe que outros façam.” O colaborador não faz segurança para a empresa,
ele faz para si próprio. Qualquer funcionário tem autonomia para cobrar de outro colega
alguma não conformidade com segurança, independentemente de hierarquia. Isso
atende pelo nome de empowerment que, em português, tem sido chamado de empodera-
mento,1 ou seja, a empresa dá poder aos empregados para tomar decisões.
Se você se desloca até o centro comercial da Vila, vai ao porto fluvial ou até as áreas
de mineração, em todos os momentos percebe preocupação absoluta com segurança. Por
exemplo, o carro não dá a partida no motor sem que todos os passageiros, incluindo os
do banco de trás, tiverem colocado o cinto de segurança. O interessante é que não há
uma pessoa que possa ser apontada como o comandante desse complexo sistema.
Quando você pergunta “quem é o maestro?”, a resposta é sempre a mesma: todos. Na ver-
dade, o sistema vem sendo aprimorado desde os anos 80 com grandes investimentos,
muitos estudos, trocas de experiências – benchmarking – com empresas brasileiras e do

1.
Empowerment, ou delegação de autoridade, é uma abordagem a projetos de trabalho que se baseia na delegação
de poderes de decisão, autonomia e participação dos funcionários na administração das empresas. Analisa-se
o desenvolvimento, ou grau de maturidade, do empowerment na organização, avaliando o estágio evolutivo em
que se encontram as áreas de gestão, as configurações organizacionais, as estratégias competitivas, a gestão
de recursos humanos e a qualidade. O empowerment parte da ideia de dar às pessoas o poder, a liberdade e a
informação que lhes permitem tomar decisões e participar ativamente da organização. (Fonte Wikipedia)

Conhecimento I Aulas de segurança na Amazônia 51


exterior. E, tão ou mais importante que tudo,com muita dedicação de uma equipe em
que cada um sabe seu papel e o desempenha da melhor forma possível. É quando per-
cebemos que a soma das partes, neste caso, acaba dando um todo.

Escola pobre,
mas determinada
A HISTóRIA DA ESCOLA CECÍLIA MEIRELES, na zona norte de Juiz de Fora (MG), é
muito diferente da Professor Jonathas, de Porto Trombetas. A de Trombetas é particular,
mantida por uma empresa de porte internacional, enquanto a de Juiz de Fora é munici-
pal, fica numa área originalmente pobre, na periferia, e que sempre enfrentou, entre ou-
tros, perigos do trânsito.
Quando falei da Escola Professor Jonathas Pontes Athias, ressaltei a impor-
tância de uma liderança, de um carregador de piano para manter projetos so-
ciais em movimento. No caso da Escola Cecília Meireles, a história se repete.
Em 1982, quando a professora Olga Carmelita Stussi Coelho Rosa as-
sumiu a direção, a escola tinha 220 alunos e muitos problemas, entre
os quais um alto índice de reprovação. O bairro Nova Era, onde se
localiza a escola, enfrentava os problemas tradicionais da periferia,
mas começava a crescer com novos comércios e novas indústrias. O
desenvolvimento do bairro ajudou em alguns pontos, mas trouxe ou-
tros problemas até então inexistentes – um dos mais importantes foi
justamente o dos perigos no trânsito.
Em poucos anos, a escola passou de 220 para mais de mil
alunos, chegando a 1.600, depois estabilizando em 1.300.
Com o crescimento da escola, não só no número de alunos, mas
também na qualidade do ensino, ela passou a ser disputada fer-
Olga renhamente pelos pais que, então, já não moravam apenas no entorno,
Carmelita
mas a alguma distância.

52 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Um dos fatores que levaram ao crescimento
do bairro Nova Era foi a revitalização da Avenida
Presidente Juscelino Kubitscheck que, alargada e
modernizada, passou a ser a principal ligação com
o centro de Juiz de Fora. A região é vizinha da BR
040, que liga Brasília ao Rio de Janeiro, o que lhe con-
fere maior importância. Por ser a Avenida JK uma via de grande importância, é natural
que os preços dos imóveis da região tenham aumentado muito e como consequência
atraído novos estabelecimentos comerciais e industriais. E, como sabemos, isso implica
em ruas alargadas, ampliadas, mais movimentadas e, naturalmente, mais perigosas e
com maior número de acidentes.
O risco a que se expunham os alunos da Escola Cecília Meireles passou a ser grande
preocupação da diretora Olga Stussi e sua equipe. Muitos alunos tinham de cruzar a
Avenida JK, que ficou conhecida como Avenida da morte, e outros vinham de mais longe
e enfrentavam, da mesma forma, situações de constante perigo no trânsito. A direção da
escola assumiu o compromisso de responder a esse desafio.
Nascia, assim, o Programa de educação para o trânsito, a ser desenvolvido como matéria
interdisciplinar, como apoio à prevenção de acidentes, envolvendo não apenas alunos e
professores da escola, mas toda a comunidade da vizinhança. O histórico de acidentes
nas redondezas efetivamente recomendava ações mais enérgicas. Na pior lembrança dos
professores, ficou um acidente com um trem que arrastou um ônibus escolar por boa
distância, provocando a morte de várias crianças. Olga Stussi lembra que acidentes com
trens eram constantes numa passagem de nível nas proximidades. Por todas essas razões,
era preciso melhorar bastante a infraestrutura da escola e do entorno.
Aos poucos as conquistas desejadas pela escola começavam a aparecer. De um lado,
dentro da escola, intensificavam-se as aulas e os debates sobre comportamento no trân-
sito; de outro, fora das salas, a luta era para conseguir melhoria das condições para uma
aprendizagem mais efetiva. Foi criada uma lista de reivindicações, sob a coordenação
da diretora Olga Stussi. A batalha externa envolvia contatos com empresas do bairro,
prefeitura e órgãos do governo e lideranças comunitárias.
“Conseguimos tudo que pedimos, mas em conta-gotas e ao longo do tempo”, lem-
bra Olga. A conquista maior foi uma Transitolândia, muito utilizada, no pátio da escola.
A biblioteca ganhou reforço substancial, incentivando os alunos a buscar nos livros for-
mas de melhorar comportamento e ajudar outros necessitados. As caixas que andam, de
autoria da escritora infantil, psicóloga e psicofarmacologista Jandira Masur, foi um dos

Conhecimento I Escola pobre, mas determinada 53


livros de maior sucesso na escola, abordando o fascínio que o automóvel exerce sobre as
pessoas. No livro, Jandira formula uma intrigante questão: “Se alguém, lá do alto, ob-
servasse a Terra, iria se perguntar que poder estas caixas que andam têm para mudar
o comportamento das pessoas.”
Olga se emociona ao lembrar que uma aluna de 7 anos, depois da leitura do livro,
construiu sua Caixa-automóvel e pelo trabalho ganhou menção honrosa do Prêmio Volvo
de Segurança no Trânsito de 1993 por sugestão do ex-piloto Nelson Piquet, que era mem-
bro do júri e se encantou com o interesse e a criatividade da menina.
Na verdade, a Escola Cecília Meireles é a maior vencedora do Prêmio Volvo na categoria
Escola. Venceu quatro deles: 1994, 2000, 2001 e 2004, sempre
com trabalhos diferenciados e julgados por júris diferentes.
O importante é que sempre envolvia os pais e muitas vezes

‘‘
a comunidade do entorno, criando um verdadeiro espírito
A Escola Cecília
de grupo. Os projetos mostrados pela Escola cobriam uma
Meireles é a maior vencedora
grande variedade de temas: iam de discussões entre alunos
do Prêmio Volvo na categoria
que geravam recomendações sobre comportamento em re-
Escola. Venceu quatro deles:
lação às novas ameaças do trânsito nas imediações ao com-
1994, 2000, 2001 e 2004,
portamento dos ciclistas, estudos sobre distância de
sempre com trabalhos
segurança, problemas das motos de Juiz de Fora até projetos
diferenciados e julgados por
sobre revitalização da Avenida Presidente JK.
júris diferentes. O importante
Essa é a explicação, na minha leitura, para o sucesso
é que sempre envolvia os
da escola nas suas empreitadas: a união de forças com a
pais e muitas vezes a
comunidade e lideranças da vizinhança. Saber o que
comunidade do entorno,
pedir, a quem pedir, envolver pessoas-chave, sem que
criando um verdadeiro
sejam necessariamente importantes, é uma ação estratégica
espírito de grupo
do maior peso. Costurar o pacto, ganhar a confiança da
comunidade local, melhorar o nível de compreensão dos
problemas do bairro, principalmente os do trânsito, e jun-
tar forças para resolvê-los foi, certamente, o maior mérito da diretora Olga.
Ela, pelo jeito, gosta de desafios de porte: em 2008, deixou a Escola Municipal Cecília
Meireles e foi dirigir outra escola municipal, a Gilberto de Alencar, no bairro de Aldeia Náu-
tico, cerca de 20 km do centro de Juiz de Fora. Por coincidência, a escola atual tem muita si-
milaridade com a Cecília Meireles dos primeiros tempos: mesmo número de alunos, cerca
de 220, numa área pobre do município, famílias desfavorecidas, localização desfavorável,
numa curva, onde o cuidado com o movimento de veículos precisa ser redobrado.

54 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Olga Stussi deixou a Escola Cecília Meireles numa situação muito melhor do que a
encontrou 15 anos antes. A escola está à altura do bairro e pronta para alçar novos voos.
Tudo vai depender de como o projeto for continuado, mas, a julgar pela dedicação da
atual gestão, ele seguirá em busca de resultados ainda melhores.
Por que projetos como esses dão certo? É importante destacar que projetos de sucesso
geralmente decorrem de uma ação bem coordenada e principalmente bem comandada.
Recursos surgem como consequência. A figura da liderança efetiva no processo é vital
para sua sustentabilidade. Essa questão ficou clara no caso da escola de Porto Trombetas,
como também ocorreu na de Juiz de Fora: a liderança do projeto fez a diferença. Traba-
lhando em circunstâncias totalmente diferentes, as duas diretoras mostraram habilidade,
determinação para montar seus projetos, dar-lhes visibilidade e sustentação.
Rozzane Gruba diz com orgulho que a preparação extracurricular dada pela Escola
Jonathas em Porto Trombetas tem se revelado à altura das melhores expectativas. Os alu-
nos que saem do meio da Floresta Amazônica para outras escolas nos grandes centros
não tem mostrado qualquer dificuldade de adaptação ao novo ambiente e, em muitos
casos, aos novos cursos que passam a frequentar. Vale, inclusive, para estudantes que
hoje cursam boas universidades.
Olga Stussi diz o mesmo sobre muitos que saíram da Escola Cecília Meireles. “Temos
doutores de universidades, professores, graduados nas forças armadas, mas o mais
importante de tudo é que eles próprios dizem ser gratos pelo que aprenderam na nossa
escola, o que os ajudou muito a serem os cidadãos honrados de hoje”, acrescenta.
É claro que só o carregador de piano, sozinho, não basta. É preciso o envolvimento da
cúpula da escola e comprometimento total da equipe envolvida. Este é apontado por
Olga como um ponto importante na Escola Cecília Meireles. “Tínhamos reuniões men-
sais com a equipe, mas todas as semanas fazíamos encontros com os professores.
Para dar certo não podem existir ilhas. Todas as pontes da instituição têm de estar
abaixadas para permitir o fluxo de informações.”
E as dificuldades de arranjar dinheiro para ações dentro do projeto? “Nunca tivemos
esse tipo de problema”, conta Olga. “Quando precisávamos, íamos atrás e sempre con-
seguíamos.” Se a Prefeitura de Juiz de Fora quase nada ajudou, tampouco atrapalhou – o
que muitas vezes também é importante. A grande incentivadora da escola acabou sendo a
Belgo Mineira, hoje Arcelor Mittal, que acreditou muito no projeto apresentado e financiou
as grandes atividades. Ela doou, por exemplo, a Transitolândia, cuja cobertura custou perto
de R$ 100 mil. Do seu apoio saíram também os ônibus que a escola precisava para trans-
portar seus alunos para as atividades. A Prefeitura contribuiu com material pedagógico.

Conhecimento I Escola pobre, mas determinada 55


Se deu certo numa escola de periferia de Juiz de Fora, por que projetos desse tipo
empacam na maioria das escolas brasileiras? Olga dá uma ideia da dificuldade: “Não é
fácil trabalhar com 100 professores, cada um com sua cabeça, com suas aspirações
pessoais e devaneios.” Se o diretor não tiver um bom plano, uma equipe básica e prin-
cipalmente uma boa liderança, dificilmente o projeto se desenvolve. Quais são os segre-
dos da liderança?
Olga dá a sua receita: “Primeiro, ter os pés no chão. E saber que, dividindo as ta-
refas, multiplicam-se os resultados. Depois, conhecer a sua clientela, o aluno, seus
pais, trazer os pais para dentro da escola, eles têm o direito e o dever de saber o que
a escola está oferecendo aos seus filhos. O líder tem a obrigação de dar satisfação
aos professores, oferecer o que eles precisam para trabalhar. E cobrar. O líder tem
que estar o tempo todo avaliando, e isso é retroalimentação: avaliar, apoiar, aparar
arestas, buscar alternativas de correção, cumprimentar pelo benfeito... Acompanhar
o tempo todo.”
Só não disse que o líder (quase) nunca está satisfeito com o resultado conseguido e,
realisticamente, sempre quer mais e procura motivar a equipe. Quando percebe que
suas metas foram atingidas sai em busca de outras, tão ou mais difíceis quanto as já
conseguidas.
É o caso de sair de uma escola vencedora, a Cecília Meireles, para assumir a tarefa
dignificante de fortalecer as estruturas da pequena Escola Municipal Gilberto de Alencar,
em Aldeia Náutico, distante 25 quilômetros de sua casa, percurso que cobre diariamente
de ônibus. Um desafio e tanto, encarado com naturalidade por Olga Stussi, apesar de já
ter passado dos 50. “Coisa de jovem”, brinca.
Alguém duvida que o consiga?

56 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Para motoristas
profissionais
QUANDO SE FALA QUE DISSEMINAR CULTURA DE SEGURANçA NO TRÂNSITO
deve ser uma ação absolutamente nacional e cobrir a totalidade da nossa sociedade,
tenho a clara dimensão do tamanho do desafio. Efetivamente é hora de pensar mais se-
riamente no conjunto da sociedade brasileira e incentivar esforços para que cada seg-
mento da economia tenha preocupação de abrir espaços na sua área para a chegada ou
implementação dessa cultura. Como não temos nem nunca tivemos cultura de segu-
rança, podemos entender porque nosso trânsito é tão caótico.
Poder-se-ia esperar que motoristas profissionais, tanto de caminhões como de ônibus
ou mesmo de táxis tivessem comportamento mais seguro pois, afinal, vivem no trânsito,
passam a maior parte do seu tempo atrás do volante e, consequentemente, devem co-
nhecer melhor os perigos do cotidiano. Não é bem assim.
De fato, motoristas profissionais têm grande envolvimento em acidentes de trânsito.
Afinal, passam mais tempo no trânsito e, consequentemente, se expõem mais aos riscos.
Das três categorias de condutores citadas, os de caminhão se envolvem mais. É lamen-
tável que não exista uma estatística confiável para embasar a informação. Aliás, falta de
estatística no país é redundância, principalmente no trânsito.
Não sabemos ao certo o número de acidentes de trânsito e de mortos e feridos, porque
nossas estatísticas não são confiáveis. Nem sequer temos certeza do tamanho da frota na-
cional e do número de motoristas. Sobre frota, o Denatran informa que, no final de abril
de 2012, ela passava dos 71 milhões de veículos registrados, mas reconhece que muitos
proprietários não dão baixa nos registros de veículos que saem de circulação por não
terem mais condição de rodar, seja por idade ou porque se envolveram em acidentes e se
tornaram imprestáveis. A frota de caminhões registrada era de 2,7 milhões e a de ônibus
beirava as 800 mil unidades. O número de CNHs expedidas era da ordem de 58 milhões.
Se temos 2,7 milhões de caminhões, qual será o número de motoristas profissionais
no Brasil? Pelo jeito, ninguém sabe ao certo. Depois dos vários números que ouvi, julgo
razoável ficar com o de cerca de 3,5 milhões, número saído de um cálculo refeito ao longo
dos últimos anos: para cada caminhão haveria 1,5 motorista. O número já foi maior, so-

Conhecimento I Para motoristas profissionais 57


bretudo quando os carreteiros eram muito mais e não enfrentavam os efeitos devasta-
dores das crises econômicas e outras dificuldades conjunturais que tanto castigaram o
transporte rodoviário de cargas no país.
Quem são esses homens – e poucas mulheres – que escolheram a cabine dos cami-
nhões para sua casa e passar nela a maior parte do ano? Em geral, gente simples, de pouca
escolaridade, que, há bom tempo, via na liberdade de ir para qualquer lugar uma realização
dificilmente encontrada em outras profissões.
A maioria desses profissionais aprendeu a dirigir com amigos, familiares, sem fazer
qualquer curso. Boa parte deles, notadamente os que trabalham para transportadoras,
fez, mais tarde, cursos patrocinados pelas empresas. Desse contingente, muitos fizeram
o curso de Movimentação Operacional de Produtos Perigosos (MOPP), que os capacita
a dirigir caminhões que transportam cargas perigosas.
Aliás, o setor de transporte de cargas perigosas é, sem dúvida, o que precisa de maior
atenção quanto à segurança no trânsito. A explicação pode ser clara e óbvia, mas nem
tudo é tão óbvio assim: a natureza da atividade – transporte de produtos químicos e,
portanto, com alta dose de periculosidade – obriga os transportadores a terem um cui-
dado extra na sua atividade cotidiana. Contudo, num país onde a fiscalização é tão falha,
não seria surpreendente se alguém deixasse de respeitar as normas de segurança na es-
perança de nunca ser autuado como, aliás, ocorre com as leis de trânsito. Não parece ser
o caso nesse setor: as regras são claras, o treinamento é monitorado, o aproveitamento
dos participantes é expressivo e os mecanismos de monitoramento operacional são ri-
gorosos. Para dirigir esses caminhões que cortam nossas estradas e nossas cidades com
produtos perigosos, a Associação Brasileira de Transporte e Logística de Produtos Peri-
gosos (ABTLP) exige dos motoristas não apenas o MOPP, mas um nível de especialização
superior à média dos demais setores por meio de cursos de atualização.
Esse novo posicionamento do setor de produtos perigosos, acompanhando proce-
dimentos dos países mais desenvolvidos, levou empresas de transporte rodoviário de
cargas de outros segmentos a revisar seus padrões de segurança e adotar nova conduta
no que diz respeito à segurança no trânsito. Representou um avanço nos últimos 20 anos
em termos de segurança rodoviária, embora ainda bem distante do nível desejado.
O crescimento da economia brasileira nas últimas décadas encarregou-se de dar um
empurrão adicional na questão da segurança no trânsito das empresas de transportes.
O desenvolvimento dos caminhões impôs um novo marco na história do transporte de
cargas do país: a necessidade de contar com motoristas com mais habilidades para dirigir
os novos caminhões: modernos, tecnologicamente muito mais desenvolvidos e que,

58 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


assim, exigiam operadores mais qualificados. O que se viu, então, foi quase um efeito
gangorra: o mercado sofisticou-se, mas desde então o problema da falta de motoristas
qualificados começou a ganhar corpo. No início de 2012, o setor de transporte de cargas
estimava em mais de um milhão a falta de motoristas no mercado.
Em 1993, o governo cria dois fortes apoiadores do TRC brasileiro: o Serviço Social
do Transporte (Sest) e o Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (Senat), com
o objetivo de prover mão de obra qualificada para o setor. Hoje a dupla Sest/Senat tem
cerca de 140 unidades, em todos os estados brasileiros, comprometidas com a formação
profissional para a área de transporte, usando diversos meios de ensino como a internet,
o vídeo e, claro, a tradicional sala de aula. A meta de capacitação era chegar a 100 mil
novos profissionais por ano, número aparentemente alto, mas insuficiente para atender
a capacidade de absorção do mercado.
Apesar do forte trabalho desenvolvido, o sistema Sest/Senat não dá conta do recado
de formar tantos profissionais quanto o mercado precisa. Assim se explica o apareci-
mento de centros privados de formação de motoristas profissionais.
Essas escolas, que tanto formam novos motoristas como (re)qualificam os mais an-
tigos, têm prestado bons serviços ao setor, pois oferecem serviço con-
siderado de boa qualidade e ajudam a diminuir o tamanho da

‘‘
necessidade do mercado. Além do mais, têm um papel importantís-
simo na disseminação da cultura de segurança no trânsito no país. Essas escolas,
Não vamos esquecer que o transporte de cargas é um setor de que tanto formam novos
enorme importância para a segurança nas ruas e estradas brasileiras e motoristas como
que considerável parcela de motoristas não teve formação adequada (re)qualificam os mais
e por causa disso não tem o comportamento seguro no trânsito como antigos, têm prestado
era de se esperar. Assim, o papel dessas escolas é de requalificar os bons serviços ao setor,
condutores e devolvê-los ao mercado com outros conhecimentos que pois oferecem serviço
os tornarão não apenas melhores motoristas, mas principalmente me- considerado de boa
lhores cidadãos. qualidade e ajudam a
Conheço seis centros de treinamento atuando pelo Brasil: o pri- diminuir o tamanho da
meiro a aparecer foi a Fundação Adolpho Bósio de Educação no Trans- necessidade do mercado
porte (Fabet), em Concórdia, no oeste de Santa Catarina. Depois
surgiram o Centro de Treinamento da Região Nordeste do Rio
Grande do Sul (Centronor), em Vacaria, no Rio Grande do Sul; o Centro de Treinamento
e Qualificação no Transporte (CTQT), em Maringá, no Paraná; o Guia Volante, da As-
sociação dos Transportadores de Carga de Mato Grosso (ATC), de Rondonópolis; o

Conhecimento I Para motoristas profissionais 59


Grupo Brasília, localizado em Lins, São Paulo, e o Instituto Serrano de Educação no
Trânsito e no Transporte (ISETT), de Lages, Santa Catarina.
O traço comum entre esses empreendimentos é que foram construídos a partir do
interesse de transportadores locais buscando solução primeiro para eles mesmos e, mais
tarde, para outros interessados. A estratégia, pelo que se vê, deu certo porque consegui-
ram manter as escolas nos padrões que pretendiam e sustentar o próprio negócio. Claro
que, pelos preços dos cursos praticados, não se trata de uma atividade em que se pode
ganhar dinheiro, mas não perder já é muito bom. Os exemplos são bons e bem que po-
deriam ser copiados em outros centros do país.
A Fabet, por exemplo, foi criada em 1997 pelo Sindicato das Empresas de Transportes
de Cargas do Oeste e Meio Oeste Catarinense de Concórdia, SC. No ano 2000, graças ao
convênio firmado com órgãos do governo federal, a Fabet lançou o Centro de Educação
e Tecnologia no Transporte, o CETT, que se constituiu num marco do desenvolvimento
educacional para o segmento. Diante dos ótimos resultados obtidos, inaugurou em 2010
sua filial em Mairinque, no estado de São Paulo.
O CTQT, de Maringá, foi criado pelo G10, um grupo formado pelas transportadoras
Transpanorama, Transfalleiro, Cordiolli, Rodofaixa e VMH Transportes. Juntas, as empresas
administram o G10 Transportes, G10 Logística e Serviços de Transporte e G10 Autoposto.
Já o Guia Volante é resultado de uma das primeiras ações da ATC, de Rondonópolis,
criada em 2002 com o objetivo de promover o desenvolvimento da atividade de trans-
porte rodoviário de cargas e formar profissionais com nova consciência e atitude.
Por sua vez, o ISETT, de Lages, é uma iniciativa da Binoto S.A., uma das maiores trans-
portadoras do país. Seu objetivo primordial é a formação de motoristas profissionais.
Em Lins, no interior de São Paulo, funciona o CETT, uma iniciativa do Sindicato dos
Condutores de Veículos Rodoviários e Anexos de Lins e Região (Sicovel), que conta com
parceria de empresas de transportes e montadoras de caminhão, bem como de embarcado-
res. O diferencial do CETT é ter sua origem num sindicato de empregados e não de patrões.
Vou me deter no Centronor, de Vacaria. Foi criado em 2003, pela união de esforços de
três transportadoras gaúchas – Transportes Cavalinho, Rodoviário Schio (hoje parte da
Júlio Simões Logística, de São Paulo) e Transportes Bertolini. O fato de ter sido concebido
e desenvolvido por três transportadoras da região – para suprir suas próprias necessida-
des de qualificação de motoristas – foi uma das principais razões para visitar o Centronor.
O prédio em que funciona o Centronor, na entrada de Vacaria, abrigava no passado
um seminário diocesano. Como recomendavam os usos e costumes da época, era retirado
da cidade e precisou de uma reforma até não muito grande para se tornar no centro de

60 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


formação de mão de obra carreteira, como muitos chamam, na região. É um prédio de
quase 2 mil metros de área construída num tranquilo terreno de 20.000 m2.
O Centro está estruturado para atender plenamente as necessidades dos alunos dos
cursos, como dormitórios, refeitório, salas de aula, área de lazer, salas de reuniões, vi-
deoteca, caminhões para aulas práticas de condução econômica e direção defensiva.
A estrutura física foi desenhada pela equipe que ainda hoje responde pelo gerencia-
mento. Até a parte pedagógica foi concebida pela equipe, mas, aí, contando com consul-
toria de profissionais da área com mais experiência. Atualmente o Centro conta com 14
funcionários, incluindo pessoal de limpeza e manutenção. Conta com 9 instrutores.
Criado para treinar apenas motoristas das empresas idealizadoras, poucos meses
depois começaram a aparecer interessados em qualificar seus profissionais. Primeira-
mente as interessadas eram empresas gaúchas, depois, em janeiro de 2004, houve uma
abertura para todos os interessados. Quem quisesse poderia se beneficiar do Centronor,
resguardando uma cota para os idealizadores. Aí a atividade começou a ganhar ritmo
bem mais intenso.
Até o começo de 2012, o Centronor já havia treinado mais de 6.100 profissionais, boa
parte motoristas das próprias empresas sócias do projeto, muitos de outras empresas e
certo número de carreteiros autônomos que buscavam, assim, colocação em transporta-
doras rodoviárias de cargas.

Os cursos do Centronor estão divididos em quatro módulos principais:


n Direção Defensiva;
n Meio Ambiente, Segurança, Álcool, Drogas, Primeiros Socorros;
n Mecânica Básica, Manutenção de Pneus, Custos Operacionais, Noções de Rastreamento
Veicular e Noções de Refrigeração e Resfriamento de Cargas;
n Direção Econômica, Teórica e Prática. A prática de estrada é efetuada num trecho de 33 km,
em relevo, com orientação e acompanhamento de instrutor;
n Curso de reciclagem do MOPP, em parceria com o Sest/Senat.

Além dos motoristas carreteiros, de veículos articulados, inscrevem-se nos cursos


do Centronor pessoas de outras áreas como diretores de empresas, gerentes de recursos
humanos, coordenadores, supervisores de frota, que não pegam o volante, mas que que-
rem conhecer no que consiste o treinamento.

Conhecimento I Para motoristas profissionais 61


O curso de Qualificação de Motoristas, para aqueles que já são profissionais e que-
rem aprimoramento, dura cinco dias e tem 44 horas/aula, começando sempre na 2ª feira
pela manhã e terminando na 6ª à tardinha. Custa R$ 900,00 incluindo hospedagem e ali-
mentação por uma semana. São distribuídas aos participantes 20 apostilas, 1 para a for-
mação de mão de obra carreteira e as outras 19 para o treinamento de qualificação.
Já o curso de Formação de Mão de Obra Carreteira, é feito em 4.200 km de estrada
percorridos por dois motoristas e um instrutor entre os estados do Rio Grande do Sul e
Goiás durante seis ou sete dias. Cada profissional tem que dirigir entre 30% e 35% do
tempo para dominar o ambiente da carreta, coisa que ele não conhecia bem até então.
Custa R$ 1 mil, também com alimentação e hospedagem.
Quase 100% dos participantes dos cursos do Centronor são motoristas de empresas
transportadoras. Dos que não são, metade são autônomos em busca de certificado para
encontrar emprego nas transportadoras e os demais são jovens que procuram formação
para motorista profissional. Concluído o curso, o Centronor expede certificado, acom-
panhado de carta de apresentação com relatório do desempenho atingido pelo aluno.
Dos 180 treinandos sem vínculos com transportadoras até o começo de 2012, apenas
dois não foram habilitados. De todos os demais, 80, que buscavam emprego, saíram
contratados.
Renato Rossato, coordenador e responsável desde o início da montagem do projeto
pela operação do Centronor, tem orgulho, justificado, do êxito da instituição. “Montamos
o projeto a partir do zero e nos orgulhamos pelo bom caminho trilhado até aqui”, diz,
exibindo o índice de satisfação dos participantes dos cursos do Centronor, que hoje é de
99,75% de aprovação.
Renato diz que o Centronor dedica 60% da sua carga didática à vida, à área hu-
mana. “Evidentemente”, continua, “se falarmos com as empresas, elas vão respon-
der que estão mandando os motoristas para melhorar a economia operacional, o
consumo (combustível, pneus, etc.), porque estão muito altos”. Constata, triste, que
segurança no trânsito ainda não é a principal razão de ser dos seus cursos, como gos-
taria que fosse. “Para dizer isso, precisaria fazer demagogia”, enfatiza, constrangido,
como se fosse novidade para quem está nas estradas há mais de 40 anos. Ressalta,
contudo, que há exceções – poucas – mas que há empresas preocupadas com segu-
rança, sim.
Pergunto sobre hábitos dos motoristas participantes dos cursos. Aí o quadro é com-
plicado pelos números que tem na ponta da língua. Mostra resultados de levantamento
num universo de 4.282 profissionais avaliados pelo Centronor.

62 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Bebida – 72% deles bebem, socialmente. Não fazem diferença entre o beber social e o
cair de bêbado, vai depender do que cada um acha que pode tomar.
17% pararam de beber e 11% não bebem nada;
Drogas – cerca de 8% que passaram pelo treinamento indicaram uso de alguma droga
(anfetamina, cocaína, maconha, etc.); 10% admitiram que usam; 45% pararam de usar, conforme
intenção declarada;
Cinto de segurança – 68% dizem usar sempre; 32% não usam, usam às vezes
ou só usam se perceberem a fiscalização.
Em cada dez motoristas, três acham que cinto de segurança é inútil.

O grande orgulho de Renato são as Gavetas dos troféus, meia dúzia de gavetas de uma
cômoda, em que ele coleciona uma centena de maços de cigarro abandonados pelos mo-
toristas durante os cursos. “O gesto espontâneo dos motoristas, entregando na frente
dos colegas o maço de cigarros e prometendo nunca mais fumar, é algo tocante de-
mais como manifestação de mudança de comportamento”, afirma Renato.
Na verdade, ele afirma que no detalhamento do módulo 1, dedicado à direção de-
fensiva, observa que os motoristas demonstram grande curiosidade, pois uma grande
parte deles desconhecia certas técnicas que tornam o ato de dirigir mais seguro. Essa é
apenas uma das evidências que o faz afirmar que há muito amadorismo dentro das em-
presas de transporte de carga.
Paulo Ricardo Ossani, diretor executivo da Transportes Cavalinho, uma das em-
presas sócias da Centronor, concorda que está cada vez mais difícil encontrar bons
motoristas. E ele comanda 400 motoristas que dirigem seus 380 caminhões. “Motorista
não se forma em escola, ele vem do meio e com os vícios que esse meio tem. Ele
aprende por si só. Por exemplo, ele não tem o hábito de ler as notas fiscais que re-
cebe, se derem uma nota de carga de 500 batatas ou de 5 mil, pra ele é a mesma
coisa”, exemplifica.
Essa constatação ajuda a explicar a preocupação dos sócios em criar o Centronor.
“Quando iniciamos a escola, era para dar orientações gerais, porque há oito anos o
cenário transportador era bem diferente de hoje, mas ainda mais necessitado.” Os ou-
tros sócios, Francisco Schio e Irani Bertolini, gostaram da ideia. Já que a escola não seria
mais de fundo de quintal, decidiram envolver parceiros de peso que pudessem dar su-
porte, não só material, mas para a divulgação do projeto. Foram procurar a Random,

Conhecimento I Para motoristas profissionais 63


Scania, Bridgstone, Esso e Vipal e elas também toparam. A partir daí, foi só montar uma
boa estrutura, com pessoal capacitado, e falando a mesma língua do motorista. A coisa
deslanchou e está aí até hoje.
Paulo vê que, mesmo com o cenário do TRC muito mudado ultimamente, com
grande escassez de motoristas, ainda há resistência por parte do empresariado com re-
lação à qualificação de mão de obra, porque não está na cultura do empresário que é im-
portante e que deve ser feito.
“Devemos ser muito exigentes quanto à tecnologia do caminhão, ao desenvolvi-
mento da logística dos transportes. Então, vamos procurar grandes clientes, compro-
metidos com responsabilidade social, com meio ambiente, etc. Investimos em
atendimento, estrutura da empresa, tudo para agradar o cliente. Mas no final da história
entregamos o caminhão para o sr. João, que precisa saber da sua importância nessa
cadeia, conhecer o caminhão, saber da importância do cliente... Infelizmente boa parte
dos transportadores não tem esse conceito”, lamenta Paulo Ossani.
O papel do Centronor e de todos os demais centros de formação de motoristas pro-
fissionais, incluindo Sest/Senat, é este, entre outros: cuidar para que o transporte rodo-
viário de cargas do país continue sendo tão importante como sempre foi até aqui, mas
para obter o resultado precisa de gente qualificada na retaguarda, nas bases, e, princi-
palmente, na linha de frente da batalha, isto é, nas estradas, com bons motoristas.

64 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


O papel da universidade
É EVIDENTE QUE SE O BRASIL QUER DIMINUIR seu atraso em algumas áreas de ati-
vidades terá de apurar o passo no caminho de melhorar conhecimento. O saber tem se evi-
denciado como fator decisivo quando se analisa crescimentos vertiginosos de países e
instituições.
Todos sabemos das deficiências da educação brasileira e do papel essencial como
alavancadora do progresso que ela pode desempenhar no enfrentamento dos grandes
desafios nacionais. Felizmente, ao longo das últimas décadas, nossos governantes têm
mostrado preocupação com o tema e pode-se dizer que o tamanho do descompasso di-
minuiu. Se o ensino fundamental e médio de qualidade é de extrema importância, o uni-
versitário é crucial para reduzir a distância que nos separa das nações que atingiram
altos níveis de desenvolvimento nas últimas décadas.
Dentro da atual realidade brasileira, a universidade pode prestar inestimável serviço,
dada a precariedade de conhecimentos com que conta a nossa sociedade para compar-
tilhar um trânsito melhor. Até agora a contribuição dada pela universidade para o melhor
domínio das questões de trânsito em geral e da segurança de trânsito em particular é
modesta, considerando-se o potencial existente.
É preciso deixar claro que estamos abordando um tema multidisciplinar, de superior
importância para o país. Nele há inúmeras variantes que, justamente pelas suas caracte-
rísticas, exigem tratamentos específicos e diferenciados. Vejamos alguns campos:

n Social
Diz respeito a todo e qualquer cidadão, de qualquer idade, sexo, classe social, política
ou religiosa, vale dizer a toda sociedade brasileira;

n Economia
Os acidentes de trânsito custam muito mais que os R$ 30 bilhões anuais estimados
pelo IPEA, ao se referir a um cálculo sobre perdas num universo bastante grande da
realidade brasileira, mas não completo. Em razão da informalidade tão presente na
economia brasileira, certamente os cálculos não cobrem os milhares de acidentes que
sequer são atendidos pelos órgãos que atuam no trânsito:

Conhecimento I O papel da universidade 65


• Se considerarmos todos os setores de atividade econômica envolvidos no setor
de trânsito, vamos nos dar conta de que a indústria da segurança no trânsito no
Brasil é enorme e que atinge um percentual expressivo do PIB nacional.
• Na verdade, como “indústria da segurança”, ela não existe ou não é reconhecida
mas, quem sabe, deveria ser como forma de mostrar sua força. Veja o quadro
abaixo para constatar a potência (incompleta) do setor.

A indústria da segurança no
trânsito no Brasil

Automóveis
Ônibus
Encarroçadoras
Educação Transportadoras
Pronto-socorros
Consórcios Bicicletas
Hospitais
Emergências Autopeças Usados
Motocicletas Caminhões

Implementos Lubrificantes

Mídia Logística

Rastreamento

Seguradoras

Pneus

66 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


• Todas são áreas com grande atividade, intensa circulação de recursos e em que
mais conhecimentos são bem-vindos e necessários. A universidade pode desem-
penhar papel importante na formação de quadros para esses setores;

n Saúde
Trânsito é considerado pela Organização Mundial da Saúde como assunto de saúde
pública, o que oferece por si só várias alternativas de intervenções por parte da uni-
versidade:
• O estresse, por exemplo, é um dos principais resultados do trânsito caótico –
que, com seus congestionamentos quilométricos e demorados, criou um dos
grandes problemas de saúde da sociedade moderna;
• A poluição, provocada pelos carros de tecnologia ultrapassada ou simplesmente
mal mantidos, é outra consequência do trânsito complicado dos nossos centros
urbanos;
• A própria autoestima da sociedade, sistematicamente colocada em cheque pelo
caos do trânsito, é merecedora de muitos estudos acadêmicos;
• Apesar dos avanços que tem conseguido nos últimos anos, a psicologia do trân-
sito pode ser muito mais explorada, pois seu campo de crescimento é enorme;

n Comportamento
Aí está o maior desafio da academia: achar caminhos que ajudem a sair do beco sem
saída em que estamos nos metendo em razão do complicado comportamento do ser
humano no trânsito. É um trabalho e tanto para os estudiosos das ciências humanas
como filosofia, sociologia, psicologia, pedagogia, ciência política, antropologia, his-
tória, economia, administração, direito, etc:
• Países mais desenvolvidos estão adiantados graças à união de esforços de todas
essas áreas. Há países que já sonham com a utopia da fatalidade zero no trânsito,
como a Suécia. Em todos eles, os mecanismos de fiscalização são fortes, visíveis
e impiedosos, o que os tornam, em relação ao Brasil, muito diferentes;

n Tecnologia
O incrível desenvolvimento tecnológico que tem marcado as últimas décadas é outro
campo no qual a universidade pode mostrar seu valor, seja na área de produtos au-
tomotivos, da construção e da sinalização viária ou na área eletrônica:
• Nos três pilares do trânsito – veículo, máquina, homem – há enorme potencial

Conhecimento I O papel da universidade 67


de crescimento. Países mais desenvolvidos têm mostrado grandes avanços nos
que se pode chamar de veículos inteligentes, estradas inteligentes e motoristas
mais inteligentes, utilizando os progressos da tecnologia. Temos potencial para
desenvolver soluções criativas, inovadoras e na medida das nossas necessidades;
• O exemplo do para-choques rebaixado, desenvolvido dentro da Unicamp, é ape-
nas um exemplo do que a universidade pode fazer, desde que seja incentivada
e obtenha recursos para implementar ações;

n Comunicação
Trânsito é, essencialmente, área de convivência da sociedade. Nele todos interagem per-
manentemente, ou seja, são espaços com momentos de pura comunicação interpessoal.
Novas tecnologias têm facilitado a interação homem-máquina, homem-via e, por consequên-
cia, podemos sempre esperar novos avanços na melhoria da inteiração homem-homem;

n Transporte
Em todos os modais de transporte, seja na cidade ou no ambiente rural, há muita
coisa a ser feita, nas áreas operacional, tecnológica, comportamental, etc.;

n Engenharia
Outra área em que a necessidade de mais conhecimento aplicado ao trânsito é
enorme e urgente, seja na construção de vias mais modernas (nosso parque rodoviário
está pedindo socorro há tempos), seja no monitoramento do tráfego ou mesmo na pro-
dução de produtos e componentes.

Enfim, os campos para crescimento são inesgotáveis e a universidade pode contribuir


significativamente para explorá-los. É preciso, no entanto, que a demanda seja mais bem
explicitada pelos segmentos mais interessados – governo, setor privado, sociedade, etc.
Temos ilhas de conhecimento espalhadas pelo país, pouco aproveitadas pelo con-
junto da sociedade e, ao mesmo tempo, percebo segmentos, empresas, instituições an-
gustiadas na busca de acesso a esse saber. É por essa razão que no texto de apresentação
deste livro falo que sobram muros e faltam pontes para facilitar a maior integração do
nosso povo.
Minha esperança é de que, se soubermos expressar nossas necessidades e fomentar
uma base de apoios, o setor acadêmico poderá responder de maneira rápida e eficaz.
Esse é o papel que cabe às nossas lideranças políticas, econômicas e sociais.

68 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Disseminar cultura
de segurança no trânsito
Sempre entendi que nossas universidades deveriam aproveitar seu potencial incon-
teste para melhorar o conhecimento também na área de segurança no trânsito. Até agora,
contudo, as ações conhecidas são tímidas e os resultados pouco expressivos. O fato de o
Brasil nunca ter se preocupado com cultura de segurança, menos ainda de trânsito, ajuda
a explicar essa distância entre o setor acadêmico e o despertar de um comportamento
mais seguro no trânsito.
Tal como consigo perceber a partir do meu posto de observação em Curitiba, poucas
universidades brasileiras mantêm cursos de graduação e pós-graduação em trânsito,
considerando-se a extraordinária necessidade de quadros para gerenciar nosso trânsito
com mais qualificação. A maioria dos cursos está no Sudeste-Sul, embora alguns tenham
sido iniciados noutras regiões. Alguns deles, inclusive, foram desenvolvidos sem o re-
conhecimento formal e obrigatório do Ministério da Educação.
Até meados de maio de 2012, eu sabia da existência de apenas um curso sobre segu-
rança no trânsito, na Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), que tem cinco campi,
em Tubarão, no sul do Estado, e na região de Florianópolis. Falarei dela na sequência.

Conhecimento I O papel da universidade 69


Unicamp – Campinas
Sobre o papel da universidade na segurança no trânsito, um dos exemplos mais em-
blemáticos que acompanhei de perto foi o da Universidade Estadual de Campinas (Uni-
camp), sem dúvida uma das instituições mais bem-conceituadas do país. Por ele, pode-se
perceber a importância da iniciativa de alunos e professores e do apoio da instituição.
Em 1996, um pequeno grupo de professores e alunos da Faculdade de Engenharia Me-
cânica decidiu trabalhar naquele que viria a ser chamado mais tarde de Projeto impacto.
O objetivo era projetar, construir e testar modelos de para-choques confiáveis para ca-
minhões e apresentá-los às autoridades governamentais.
Ao mesmo tempo, o grupo decidiu chamar a atenção da sociedade para a armadilha
mortal oculta na traseira dos caminhões de carga. Quando um automóvel colidia com a
traseira de um caminhão, como o para-choque traseiro do veículo de carga era mais alto,
o carro entrava debaixo dele e, conforme a velocidade em que estivesse, tinha cortada
completamente a parte superior, matando seus ocupantes. Esse tipo de acidente era cha-
mado de efeito guilhotina.
O desenvolvimento do para-choque traseiro rebaixado para caminhões evitaria esse
tipo de acidente e o efeito guilhotina, responsável pela morte de muitos ocupantes de car-
ros. Enfim, tratava-se de um projeto para salvar vidas e ao mesmo tempo disseminar
cultura de segurança no trânsito.
O projeto era ousado e ao mesmo tempo oportuno, pois se tratava de problema de
dimensões mundiais e que, apesar de ser considerado importante, quase não tinha ex-
posição nos grandes debates do setor.

Efeito guilhotina – Quando um automóvel pe-


netra sob a carroceria ou o chassi de um cami-
nhão, o impacto se concentra nos pilares A
(primeiras colunas que fazem parte da estru-
tura da cabine do veículo e que dão suporte ao
para-brisa) e no teto do veículo, exceto se os
pneus traseiros do caminhão estiverem próxi-
mos ao final da carroceria. Como os pilares e o
teto não são dimensionados para resistir a impac-

70 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


tos severos, a carroceria ou o chassi do caminhão penetram no compartimento de passa-
geiros do automóvel até mesmo a velocidades baixas como 15 km/h. Quando ocorre in-
trusão do compartimento de passageiros, os equipamentos de segurança do automóvel,
como os cintos de segurança e airbags, se tornam inúteis. Portanto, só será possível au-
mentar a segurança dos passageiros de automóveis em colisões contra a traseira de veí-
culos pesados se estes forem dotados de para-choque capaz de impedir a penetração do
carro sob sua carroceria ou chassi.
A maioria dos caminhões já tinha alguma espécie de para-choque traseiro, mas muito
frágil e montado em posição inadequada. Mesmo os para-choques construídos de acordo
com as normas então existentes não eram capazes de evitar a penetração do automóvel
sob a carroceria. Em vários países já existia alguma regulamentação especificando os re-
quisitos técnicos de para-choque traseiro para caminhões, mas as estatísticas de acidentes
mostravam que esses requisitos não eram adequados.
No Brasil, um decreto-lei de 1968 estabeleceu que para-choques dianteiros
e traseiros eram equipamentos obrigatórios dos veículos automotores e ôni-
bus elétricos. No caso do para-choque traseiro de caminhões, a exigência
só foi regulamentada em 1995, por uma resolução do Conselho Nacional
de Trânsito (Contran). O problema é que, mesmo com as novas especifica-
ções, o para-choque continuava não oferecendo a segurança necessária.
Sendo algo tão simples de ser percebido, o que os engenheiros da
Unicamp não entendiam era como um problema assim não tinha cha-
mado a atenção dos setores mais interessados e da sociedade. O
sonho da turma da Unicamp era mostrar uma solução exequível e
com custos que não fugissem da realidade brasileira.
O grupo era formado por José Ricardo Lenzi Mariolani, Luís Otto
Faber Schmutzler, Antonio Celso Fonseca de Arruda e Sidney Occhi-
pinti, todos da Faculdade de Engenharia Mecânica, da Unicamp. Ma-
riolani carregava o piano, muito incentivado pelo Luís Otto e sempre na
companhia do Celso e Sidney. Foi um período intenso de trabalho, estudos e
Mariolani
contatos, e o projeto rumou na direção certa, com os resultados que todos esperavam.
O grupo Unicamp fechou parceria com a General Motors, que cedia seu campo de
provas em Indaiatuba, que fica a cerca de 30 km, e com a Mercedes Benz, que ofereceu os
primeiros para-choques para estudos. Foram feitos vários testes usando os para-choques
produzidos pelo próprio grupo, pela Mercedes e, depois, por outro estudante – Carlos
Rezende de Menezes – que fazia dissertação de mestrado na Unicamp, isso já em 2002.

Conhecimento I O papel da universidade 71


Até aí o projeto da turma da Unicamp já tinha dado muitas voltas ao redor do
mundo. O Denatran já havia se interessado pelo assunto e a Associação Brasileira de
Normas Técnicas (ABNT) entrou no debate, propondo uma nova norma de para-choques
de caminhões. Enfim, o objetivo principal da turma foi atingido: levantar um tema im-
portante, discuti-lo nos foros apropriados, levá-lo à mídia para conhecimento da socie-
dade e ganhar o reconhecimento pelo trabalho feito. Faltava ver o projeto em ação e
dando resultados ou, por outro viés, salvando vidas.
Esse reconhecimento ganhou maior visibilidade com a conquista do Prêmio Volvo
de Segurança no Trânsito de 2002, que deu notoriedade nacional ao trabalho e destran-
cou algumas importantes portas que até então permaneciam fechadas para discutir o
assunto. A viagem de prêmio de José Ricardo Mariolani, como representante da turma
Unicamp, à Suécia permitiu importante troca de experiências com engenheiros e com
membros do grupo de investigação e análise de acidentes da Volvo Trucks Corporation,
que por sinal estava com seu projeto de para-choque dianteiro rebaixado bem resolvido
há alguns anos.
No Brasil, a Volvo utiliza o para-choque dianteiro rebaixado no cavalo mecânico desde
1997. Já o para-choque traseiro é colocado pelos fabricantes de carroceria e não pelas mon-
tadoras. O grupo Unicamp queria que o fabricante do caminhão produzisse também o
para-choque traseiro e que a encarroçadora o instalasse seguindo a estrita orientação da
montadora, prática não existente em qualquer mercado. Aqui, tampouco, vingou.
O essencial é que o para-choque rebaixado é lei no país desde 2003 e, assim, amplamente
utilizado pela frota de caminhões, o que salva milhares de vidas. Esse é o grande mérito do
grupo de entusiastas e estudiosos da Unicamp. É assim que vejo o papel da universidade
contribuindo com a indústria e com a sociedade e cumprindo sua finalidade maior.

A visão dos pesquisadores


Fui até Campinas conversar com os dois pesquisadores da Unicamp, José Ricardo
Lenzi Mariolani, hoje atuando no Laboratório de Biomateriais em Ortopedia, da Facul-
dade de Medicina, e Antonio Celso Fonseca de Arruda, da Faculdade de Engenharia Me-
cânica. Queria entender melhor como acontece o envolvimento e a contribuição da

72 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


universidade nos grandes temas que dominam a agenda brasileira nos diversos campos,
notadamente naquele que mais me interessa, que é o trânsito.
Celso Arruda ressalta que a universidade brasileira não atua como grandes univer-
sidades americanas ou de países desenvolvidos, que contam com volumes apreciáveis
de recursos para pesquisas, estudos e projetos de grande porte. “No caso do Projeto im-
pacto, por exemplo, a Unicamp achou o projeto importante a partir do momento em
que disponibilizou um site para nós; isso gerou tese e teve um impacto na sociedade,
na indústria e na mídia. Mas não houve um suporte financeiro ou de cessão de espaço
para esse tipo de atividade”, recorda.
Celso lembra que a universidade não se posiciona em relação a nenhum tema.
“Quando fazemos um relatório técnico nunca responsabilizamos a Unicamp pela sua
autoria, até porque pode ter outro pesquisador desenvolvendo trabalho com outra
visão”, sublinha. Relembra ainda que na época a Unicamp tinha um laboratório de ins-
peção veicular que, infelizmente, foi descontinuado.
José Ricardo Mariolani explica que a indústria (no caso, a automobilística) tem re-
cursos para construir e manter caríssimos laboratórios para desenvolver seus projetos,
algo que a universidade brasileira não tem condições de ter. “Ações como avanços em
segurança veicular – airbag, ABS, controle eletrônico de estabilidade, estruturas de-
formáveis – são apenas alguns itens que a indústria desenvolve dentro do seu parque
industrial. Muitos avanços vêm da matriz da própria empresa ou mesmo de outras uni-
dades no exterior e sempre são testados aqui no nosso mercado, dentro das condi-
ções brasileiras. Não temos órgãos públicos com essa estrutura, sejam universidades
ou organismos governamentais capazes de acompanhar a evolução e dispor de equi-
pamentos para tais avaliações”, exemplifica.
São dados assim que levam Celso Arruda a afirmar que, quando a universidade rea-
liza ações com o suporte da indústria, os trabalhos saem muito melhores do que os de-
senvolvidos apenas dentro das universidades.
Cita outro exemplo: o Brasil está se destacando no cenário mundial na produção de
petróleo e vive a grande expectativa da exploração do pré-sal. “Como a indústria (Petro-
bras, especialmente) tem interesse e se dispôs a apoiar, a Unicamp criou um Departa-
mento de Engenharia do Petróleo e assim consegue contribuir de forma expressiva no
enfrentamento do grande desafio de explorar essa riqueza de excepcional importância.
Quer dizer: se houver interesse econômico e recursos, a universidade pode ajudar e
muito. Sem isso, ela não dispõe de meios para se envolver mais profundamente”,
afirma, o que é uma pista muito importante para os interessados em trânsito.

Conhecimento I O papel da universidade 73


José Ricardo Mariolani levanta outro ponto interessante e também importante: pro-
fessores e pesquisadores das universidades são julgados pelas contribuições científicas
publicadas em periódicos internacionais. Trabalhos publicados em órgãos internacionais
de peso são decisivos no currículo do pesquisador. Trânsito é uma área mais tecnológica,
não exatamente científica. Não temos publicações de alto impacto, comparadas às exis-
tentes no exterior (publicações de alto impacto são aquelas em que é bem mais difícil publicar
artigos, dado o grau de exigência dos editores).
Todos os pontos levantados pelos dois pesquisadores da Unicamp ressaltam um
novo tópico que merece discussão dentro do quadro de desenvolvimento do trânsito
brasileiro: é indispensável criar melhores condições para que o setor acadêmico possa
produzir mais conhecimento sobre trânsito em geral e segurança no trânsito em parti-
cular. Dito em outras palavras, se o setor quer e precisa evoluir, será necessário encontrar
recursos (financiamentos) para projetos que efetivamente possam ajudar o trânsito bra-
sileiro. Como temos um gerenciamento pobre do sistema trânsito no país, é difícil ima-
ginar mudança substancial no quadro nacional pela estrutura administrativa atual.
De qualquer forma, é importante que o ensino superior brasileiro mostre sensibili-
dade para com a causa e procure também fazer a sua parte. Afinal, ao criar mais opor-
tunidades de desenvolver conhecimento, com, por exemplo, novos cursos na área, a
universidade estará simplesmente aumentando sua prateleira de produtos, criando
novas opções que não existiam ou eram poucas até agora.

Universidade do Sul de
Santa Catarina (Unisul Virtual)
Foi esse, aliás, o caso da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), sediada em
Tubarão, que, através sua unidade UnisulVirtual, desenvolveu o primeiro curso de gra-
duação de Tecnólogo em Segurança no Trânsito a distância do qual tomei conhecimento
até agora. A primeira turma estava para se formar em julho de 2012, composta de 50 alu-
nos que participaram do curso a distância durante dois anos, num total de 1.620 horas.
O prof. José Onildo Truppel, coordenador do curso, explica que o curso de Tecnólogo

74 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


em Segurança no Trânsito da Unisul visa formar profissionais com competência e habi-
lidades para diagnosticar, elaborar projetos e executar atividades voltadas à administra-
ção e implantação de políticas públicas e privadas que visem à segurança no trânsito,
auxiliando na conscientização dos cidadãos e na mudança cultural no comportamento
das pessoas no trânsito.
O curso de graduação tem como foco capacitar profissionais para planejar, analisar,
fiscalizar e executar os serviços definidos pelo Sistema Nacional de Trânsito, centrado
no desenvolvimento tecnológico, social e na segurança do trânsito, com respeito ao ser
humano e ao meio ambiente. Para isso, esse profissional deterá o conhecimento das atri-
buições dos órgãos de trânsito, no âmbito federal, estadual e municipal, assim como da
iniciativa privada. Tem a função de conscientizar, com a devida reeducação do cidadão,
objetivando uma mudança cultural, na observância do tema trânsito, como forma de
exercício proativo da cidadania.
“Nossa missão”, explica Truppel, “é qualificar esse profissional de forma que seja
capaz de identificar problemas e buscar alternativas para a construção de soluções
de problemas locais, conforme a legislação de trânsito, com o envolvimento dos ór-
gãos públicos e da sociedade civil, com um fim único: a segurança no trânsito e a pre-
servação da vida”.
São quatro semestres, com carga-horária variando entre 360 horas e 420 horas de
aulas cada. São as seguintes as disciplinas por semestre:

n Língua Portuguesa e Redação Oficial, Noções de Direito Constitucional, Penal e Ad-


ministrativo, Direitos Humanos e Cidadania, Administração Pública Gerencial, Su-
porte Básico da Vida e Introdução ao Estudo do Trânsito;
n Educação para o Trânsito, Gestão da Informação, Ações Preventivas de Acidentes
de Trânsito, Ciência e Pesquisa, Sociologia, Sistema Nacional de Trânsito e Políticas
Públicas;
n Análise de Dados em Segurança Pública, Psicologia nas Instituições Jurídicas, Nor-
mas Gerais de Circulação e Conduta, Medidas Administrativas, Penalidades e Cri-
mes de Trânsito, Infrações de Trânsito e Processo Administrativo, Gestão Estratégica
na Segurança Pública, Operações e Fiscalização de Trânsito;
n Tecnologias Aplicadas à Segurança Pública, Administração do Trânsito em Conglo-
merados Urbanos, Gestão de Conflitos e Eventos Críticos, Avaliação do Impacto do
Acidente de Trânsito, Inspeção e Periciamento Veicular, Engenharia e Segurança no
Trânsito, Disciplina Eletiva.

Conhecimento I O papel da universidade 75


O coordenador Truppel enfatiza a importância de os professores terem uma visão
bastante prática do trânsito para que, assim, os formandos possam sair adequadamente
qualificados para assumir funções importantes na administração do trânsito de qualquer
cidade. Considera como um ponto diferenciado no curso a disciplina de Administração
do Trânsito em Conglomerados Urbanos, um dos maiores desafios das nossas cidades
de portes médio e grande.
Entusiasmada com o sucesso da primeira etapa, a Unisul continua firme no desejo
de continuar com o curso, que, até meados de 2012, tinha 290 alunos inscritos. Essa é a
evidência de que o tema é importante, oportuno e precisa ser tratado com mais cuidado
por parte de todo o sistema trânsito. E o curso deve continuar oferecendo sempre melho-
res condições de capacitação aos interessados na administração do trânsito municipal.

Em São Paulo, a Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) há muitos anos oferece cursos de
Gerentes de Cidades para interessados na administração pública, assim como outro de Geren-
ciamento Municipal, dirigido a vereadores, funcionários de prefeituras e outros interessados na
gestão pública. São mais de 4 mil formandos em gerenciamento de cidades trabalhando em fun-
ções públicas pelo país afora.
Oxalá o país desperte efetivamente para a imperiosa necessidade de profissionalizar a adminis-
tração das nossas cidades. Os resultados do caos que tomou conta do nosso trânsito demonstram
claramente a urgência de maior capacitação no setor. Ainda se ouve muito pelo país dirigentes
municipais repetindo uma afirmação que não se sabe de onde partiu: “Como as cidades cres-
ceram, cresceu a população, cresceu a frota, bem como o número de motoristas.
Assim, é lógico que tenha crescido também o número de fatalidades no trânsito.” Isso
é falso. Se assim fosse, Estados Unidos e União Europeia contariam seus mortos no trânsito às
centenas de milhares, pois o fenômeno do crescimento é igual em praticamente todo o mundo,
mas o número de mortos, não.

76 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Universidade Federal
de São Carlos (UFSCar)
Uma das ações mais efetivas que acompanhei, dentro da academia brasileira, foi da
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), interior de São Paulo, que, até onde sei, é a
primeira universidade brasileira a desenvolver um amplo e sistemático trabalho de disse-
minação de cultura de segurança no trânsito. O trabalho bem-sucedido deve-se à dedicação
e à habilidade do professor Archimedes Raia Jr., que entrou para os quadros da UFSCar
para colocar segurança no trânsito no DNA da instituição. Depois de uma década e meia,
pode-se dizer que conseguiu, o que deve ser comemorado como um feito extraordinário,
considerando-se que no começo não havia praticamente nada na área. Archimedes relem-
bra alguns marcos históricos dessa jornada.
A UFSCar começa o ensino de trânsito em 1977, com a criação do curso de Engenha-
ria Civil que, de fato, iniciou no ano seguinte. Em 1999, a aborda-
gem sobre a segurança do trânsito foi considerada
insuficiente e foi alavancada com a criação de uma dis-
ciplina específica, na graduação, sobre segurança no
trânsito.
Em 2000, é criada a linha de pesquisa em segu-
rança no trânsito, assim como a disciplina
Segurança no Trânsito. Era necessário,
adicionalmente, proporcionar oportuni-
dades a outros profissionais de nível
superior, para realizar a sua ca-
pacitação em problemas ur-
banos e regionais no âmbito
do Programa de Pós-Graduação
em Engenharia Urbana (PPGEU).
Dezenas de trabalhos em
nível de graduação e pós-gradua-
ção foram desenvolvidos nas áreas
de engenharia e segurança de tráfego –

Conhecimento I O papel da universidade 77


muitos deles centrados em aspectos do cotidiano da vida de São Carlos, incluindo a
gestão dos acidentes de trânsito no município.
Graduandos e pós-graduandos começam, então, a dissecar a segurança no trânsito
no campus da UFSCar, fazendo análise dos pontos críticos, sob a ótica da Técnica de
Análise de Conflitos de Tráfego, trazida pelo cientista e pesquisador sueco Sverker Almq-
vist, do Departamento de Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lund, Suécia, que
atuava como professor convidado.
Em 2002, a UFSCar cria o seu Núcleo de Estudos sobre Trânsito, Transporte e Logís-
tica (NETTL), devidamente registrado no Conselho Nacional de Desenvolvimento Cien-
tífico e Tecnológico (CNPq). Em 2005, novo passo na direção do incremento da cultura
de segurança no trânsito com a criação do, hoje, Núcleo de Estudos Sobre Trânsito (NES-
Tran), baseado na constatação de que segurança começa já na fase de planejamento, pro-
jeto e operação de trânsito.
Outro aspecto importante na relação graduação e pós-graduação da UFSCar aplicado
à segurança do trânsito foi a criação da Atividade Curricular de Integração Ensino, Pes-
quisa e Extensão (Aciepe). É uma experiência educativa, cultural e científica que, articu-
lando o ensino, a pesquisa e a extensão, e envolvendo professores, técnicos e alunos da
UFSCar, procura viabilizar e estimular o seu relacionamento com diferentes seg-
mentos da sociedade em torno de um tema. Trocado em miúdos, além de de-
senvolver conhecimento sobre trânsito no âmbito da universidade, a UFSCar
passou a disseminar cultura de trânsito na comunidade, começando pelas es-
colas, por meio de palestras para os alunos e para formação de professores.
Em 2008, vem a consolidação do trabalho de disseminação da cultura de
segurança de trânsito na Universidade Federal de São Carlos com a criação
da Comissão Permanente de Segurança de Trânsito (CPSTU), com o objetivo
de envolver não apenas os campi da instituição, mas toda a sociedade
são-carlense e regional.
Para fechar o ano de 2008, a UFSCar comemorou o lançamento
do livro Segurança no trânsito, fruto de longo trabalho de ensino,
pesquisa e extensão na área do coordenador do NESTran e do
CSPTU, professor Archimedes Raia Jr., do professor Antonio Clóvis
Archimedes Coca Ferraz e da professora Barbara Stolte Bezerra, da Escola de Enge-
nharia da USP-São Carlos.
Archimedes Raia Jr. ressalta como ponto fundamental do sucesso do trabalho o
interesse dos reitores da UFSCar que se sucederam ao longo do período sem deixar

78 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


de dar todo o apoio à atividade de desenvolver mais conhecimento

‘‘
e compartilhá-lo com a comunidade local e regional.
Entende que outro ponto importante, além, claro, do interesse e en- O exemplo da
volvimento dos alunos, foi a grande divulgação conseguida sobre as Universidade de São
atividades de segurança no trânsito. Atualmente há jingles na Rádio Carlos, com seu programa
UFSCar, painéis ao longo do sistema viário do Campus de São Carlos de disseminação de
e grande exposição na mídia. Isso faz com que o tema trânsito esteja cultura de segurança no
permanentemente nas mentes e nos corações dos alunos da universi- trânsito, é outra evidência
dade e da comunidade da cidade. das ilhas de excelência
Archimedes julga que, da maneira como está consolidado hoje, o que podem ser
trabalho deve continuar por muito tempo. A atuação da Comissão Per- encontradas neste
manente de Segurança de Trânsito, formada por gente da UFSCar e da imenso arquipélago
sociedade são-carlense, é uma garantia de continuidade. Seu sonho é chamado Brasil
que a comissão venha a se transformar numa ONG e que, assim, possa
melhorar ainda mais seus mecanismos de atuação.
O exemplo da Universidade de São Carlos, com seu programa de disseminação de
cultura de segurança no trânsito, é outra evidência das ilhas de excelência que podem
ser encontradas neste imenso arquipélago chamado Brasil. É a prova maior de que,
quando se sabe o que se quer, e se luta com determinação por esses objetivos, é possível,
sim, ter resultados positivos.

Conhecimento I O papel da universidade 79


“ A cultura
das nações reside
nos corações e
mentes dos

seus povos
(Mahatma Gandhi)

Em 1871, o antropólogo inglês Edward B. Tylor definiu cultura em seu


livro “Cultura primitiva” como “um todo complexo, incluindo conhecimen-
tos, crenças, arte, leis, moral, costumes e quaisquer outros hábitos e ha-
bilidades adquiridos pelo homem como membro da sociedade”. Até hoje
esse conceito continua valendo.
Cultura é palavra que permite inúmeras definições, dependendo do
campo em que queremos abordá-la. Em Ciências Sociais, nosso foco
aqui, cultura é o conjunto de ideias, símbolos, comportamentos e práticas
sociais, aprendidos de geração em geração pela vida em sociedade. Seria
a herança social da humanidade ou ainda, de forma específica, uma de-
terminada variante da herança social. A cultura está presente nas ativi-
dades e modos de agir, costumes e instruções de um povo, com os quais
o homem se adapta às condições de existência transformando a reali-
dade. É um processo em permanente evolução, diverso e rico. Ela é fun-
damental para a compreensão de diversos valores morais e éticos que
guiam nosso comportamento social. (Essência resumida de definições
encontradas em sites sobre cultura).
C
C U LT U R A
Por que cultura:

Nação continental, com grande

mistura de raças e costumes, o Brasil

é um rico e natural

laboratório para estudos culturais.

Aqui cada região tem

maneiras próprias de expressar seus

valores e sentimentos.

Neste capítulo veremos três formas

de manifestações culturais, típicas

de diferentes regiões brasileiras,

para disseminar CULTURA de

segurança no trânsito.
Literatura de cordel
DESEMBARCO NO AEROPORTO PINTO MARTINS, DE FORTALEZA, numa manhã
quente de dezembro, motivado pela grande expectativa de iniciar uma viagem incomum
por um terreno maravilhoso que sempre desejei conhecer: o mundo do cordel. Talvez
embalado pelas lembranças dos meus tempos de Gaspar (SC), onde passava horas fas-
cinado, ouvindo desafios, um tipo de disputa poética travada entre dois can-
tadores sob a forma de diálogo rimado e cantado. Tinha a certeza de que o
cordel cearense me daria uma ótima história. E deu.
Meu objetivo é conhecer em detalhes as aventuras do professor Pardal
na Escola Madre Teresa de Calcutá, num bairro simples, pertinho do centro
de Fortaleza. Vou explicando desde já que o professor Pardal é Gerardo
Frota, um piauiense de Piripiri que aos 17 anos mudou-se para Fortaleza
para fazer a vida. Chegou e, ao seu jeito, fez. Hoje é personagem conhecido no
cotidiano da cidade como um cordelista juramentado.
Gerardo é vice-diretor da escola e, unindo suas habilidades de
poeta, professor, jornalista, cordelista e apaixonado pelo trânsito,
resolveu ensinar segurança no trânsito aos alunos através da litera-
tura de cordel. Para ele, a atividade virou uma missão; para a escola, um
serviço de integração comunitária a mais; para os alunos, um aprendizado
Gerardo
importante de forma interessante e animada e, para os pais dos alunos, um alívio,
pelo bem que trouxe. Para o cordel, enfim, era um suporte para manter viva uma tradição
que se perpetua ao longo dos últimos séculos, notadamente no Nordeste.
Gerardo havia inscrito o trabalho da Escola Madre Teresa de Calcutá no Prêmio Volvo
de Segurança no Trânsito no início dos anos 90. Em 2009, voltou a apresentar o trabalho,
ganhando dessa vez o Prêmio Regional para a região Nordeste. Como já havia ocorrido
na primeira vez, continuei encantado com essa forma de trabalhar segurança no trânsito.
Basicamente a ação se passa da seguinte forma: o professor Pardal produz o material
didático, sempre com mensagens sobre trânsito em forma de cordel, apresenta aos alunos
e os ensina a declamá-los. Os alunos memorizam e ensaiam no pátio da escola, normal-
mente aos sábados e na presença dos pais. Depois de assimilados os conceitos, os alunos
saem pelo entorno da escola, guiados pelo professor Pardal, declamando, em forma de

82 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


cordel, os ensinamentos adquiridos, para vivenciar as situações reais de trânsito.
Por ser o cordel uma forte tradição na cultura cearense e nordestina e por ser a Escola
Madre Teresa de Calcutá a única na cidade a fazer uso dessa forma de aprendizado, é
natural que tenha ganhado certa notoriedade em Fortaleza e no estado do Ceará.
Antes de aprofundar um pouco mais no caso da Escola Madre Teresa, creio ser inte-
ressante passar a você, leitor, um pouco do que aprendi sobre literatura de cordel, algo
que, para quem não é do Nordeste do país, se conhece pouco.
Cordel é um gênero literário popular com formato definido, escrito de forma ri-
mada, originado em relatos orais e depois impresso em folhetos. Remonta ao século
XVI, quando o Renascimento popularizou a impressão de relatos orais, e mantém-se
um estilo literário popular no Brasil. O nome tem origem na forma como tradicional-
mente os folhetos eram expostos para venda, pendurados em cordas, cordéis ou bar-
bantes, em Portugal.
No Nordeste brasileiro, o nome cordel foi herdado, mas a tradição do barbante não
foi mantida: aqui o folheto pode ou não ser exposto em barbantes. Alguns poemas são
ilustrados com xilogravuras, bastante utilizadas nas capas. As estrofes mais comuns são
as de seis, oito ou dez versos. Os autores, ou cordelistas, recitam esses versos de forma
melodiosa e cadenciada, acompanhados de viola, como também fazem leituras ou de-
clamações muito empolgadas e animadas para conquistar os possíveis compradores.
Há inúmeras entidades ligadas à literatura de cordel, principalmente no Nordeste,
onde é muito mais conhecida e praticada. Em setembro de 1988 foi criada, no Rio de Ja-
neiro, a Academia Brasileira de Literatura de Cordel. Há abundante material disponível

Cultura I Literatura de cordel 83


na internet para aqueles que se interessarem pelo tema que, efetivamente, é cativante.
Pernambuco, Paraíba e Ceará são os estados em que o cordel tem maior difusão, mas
outros estados também o usam como expressão de literatura popular.
Nos dias que passei em Fortaleza tive oportunidade de encontrar alguns cordelistas
e uma pesquisadora francesa que vive no Ceará há mais de 30 anos e que é apaixonada
pela cultura popular nordestina e brasileira. Começo a entender o cordel por ela.
Martine Kunz, mestre em letras modernas e doutora em literatura estrangeira pela Uni-
versidade de Paris Sorbonne, professora de língua e literatura francesas do Departamento
de Letras Estrangeiras e integrante do corpo docente dos Mestrados em Literatura Brasileira
e História, da Universidade Federal do Ceará, descobriu o Brasil em 1975, e adorou.
Na primeira vez, recém-formada, veio como mochileira e desejosa de conhecer outros
mundos. Nosso Nordeste a encantou. Voltou à França com a certeza de que retornaria.
Voltou e se radicou em Fortaleza, onde se envolveu com o meio acadêmico cearense
e brasileiro. Ainda em 2007, concluiu um pós-doutorado em comunicação e semiótica
na PUC de São Paulo. É autora de diversos livros, incluindo Cordel, a voz do verso, editado
pela Associação Amigos do Museu do Ceará, em 2011.
Em 1975/76, embrenhou-se pelo interior do Pernambuco conhecendo um pouco da
cultura popular. Em Calumbi, 360 km de Recife, teve seu primeiro contato com o cordel
ou, como se dizia, com a leitura coletiva dos folhetos nas residências. “As pessoas inter-
rompiam, riam, mexiam no texto; contribuíam pelas reações, de modo espontâneo,
eles mesmos criavam a própria literatura”, relembra. E arremata: “Era como se o pú-
blico ouvinte se apropriasse da leitura contada. Achei magnífica a leitura barulhenta e
participativa.” Para quem estava acostumada com o rigor acadêmico francês, era simples-
mente algo inusitado. Debruçou-se sobre o tema e tornou-se uma das grandes conhece-
doras.
No simpático jardim nos fundos de sua casa banhados pela Praia do Futuro, Martine
fala com muito carinho da história do cordel. O cordel, tal como o conhecemos hoje, veio
de Portugal, mas greco-romanos, fenícios, cartagineses, saxões, etc. já haviam se utilizado
de sistema similar muito antes em suas manifestações culturais, segundo pesquisadores.
Aqui ele adquire uma temática nacional, abordando temas mais atuais e jornalísticos.
Gerardo Carvalho, o professor Pardal, lembra que o cordel já teve importância
muito maior no país, sobretudo no Nordeste. “O cordel era quase como o jornal de
hoje, trazendo notícias ou comentários sobre temas importantes para a nossa socie-
dade.” Lembra que, por ocasião da morte do presidente Getúlio Vargas, em 1954, um
autor de cordel, sozinho, vendeu cerca de 50 mil cópias da notícia, em forma de cordel.

84 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Claro, na época, os meios de comunicação eram outros e não tinham o imediatismo de
hoje.
Martine e Pardal concordam que o cordel teve seu auge justamente entre 1940 e 1950,
notadamente em razão do populismo político (período getulista). Com o desenvolvi-
mento brasileiro, a chegada de métodos mais modernos de disseminar informações (jor-
nais passaram a usar novos equipamentos, rádios, TVs, internet, etc.) o cordel perdeu a
força natural que detinha como veículo jornalístico.
A partir dos anos 80, graças, em parte, ao interesse de pesquisadores, o cordel volta
a ter seu lugar. Pode-se dizer que atualmente desfruta de bom espaço de difusão e boa
aceitação popular, principalmente no Nordeste, onde continua sendo praticado.
Martine conhece todos os grandes cordelistas da história e da atualidade. “Há gran-
des nomes na poesia popular. O primeiro a publicar e viver da sua produção é Leandro
Gomes de Barros. Um grande poeta popular é aquele que respeita as regras da mé-
trica: a sextilha, os versos de sete sílabas e a rima dos versos pares, que é o que faz
a qualidade da produção do poeta. O público reconhece quando a métrica não é bem
produzida.”
Embora tenha seu aspecto positivo de mantê-lo vivo e até disseminá-lo, o cordel che-
gou à internet, o que o descaracteriza em relação à sua origem impressa. No período elei-
toral, ele é amplamente utilizado para atingir as camadas mais simples da população e
mesmo em certas áreas onde o acesso é mais difícil e até mesmo o custo/benefício das
visitas eleitorais é levado em conta.
Gerardo Pardal Carvalho me leva para conhecer a Casa de Juvenal Galleno, no centro
de Fortaleza, que abriga atualmente o Centro Cultural dos Cordelistas do Nordeste
(Cecordel), uma espécie de Academia Cearense do Cordel. Em torno de uma mesa comprida,
sento com uma meia dúzia de cordelistas para ouvir suas histórias, entender seus cora-
ções e seus amores por esse tipo de cultura.
Em Fortaleza, associados ao Cecordel são aproximadamente 100 cordelistas; no
Ceará estima-se em mais de 400, mas, “na Paraíba tem mais”, afirma Lucarocas, que,
como poeta, jornalista e professor de língua portuguesa em escola pública cearense, cul-
tiva e divulga o cordel pela internet.
Sem surpresas, percebe-se fácil que se trata de cultura que vem dos ancestrais e que
se acha presente numa certa faixa da população, atraindo poetas de plantão e aqueles
que mostram certa inclinação para a poesia e para a comunicação popular. Um acesso
no Google, hoje, na palavra CORDEL e surgirão perto de 7 milhões de opções, o que dá
uma ideia de como essa cultura está arraigada na sociedade nordestina e brasileira.

Cultura I Literatura de cordel 85


Quem é o cordelista de hoje? Boa pergunta! “Tem de tudo”, me explica o professor
Pardal. “Você vai encontrar aquele poeta de rua, simplório, o sujeito de nível educa-
cional rudimentar, mas também vai encontrar gente com boa formação”, conta. Eu
mesmo recebo, desde que estive no Ceará, uma newsletter do Lucarocas. Ele vende sua
produção pela internet e ao mesmo tempo ensina os interessados sobre os segredos do
cordel.
Fica claro também que é raro quem viva unicamente do cordel. “Dá muito mais pra-
zer que dinheiro”, explica a cordelista Maria Luciene da Silva, de Quixadá, que fez seus
primeiros versos em 1985 e hoje tem mais de 100 obras na sua coleção. Em 2004, ganhou
o troféu A Cruz de Santiago, na Espanha, e já teve participação num curta-metragem
com o nome artístico de Maria Bonita, possivelmente pela semelhança física com a mu-
lher do cangaceiro.

Cordel na escola
Em 2006, quando decidiu introduzir a literatura de cordel como forma de ensino
de comportamento seguro no trânsito na Escola Madre Teresa de Calcutá, Gerardo Car-
valho tinha diversos objetivos: 1º, cumprir a missão escolar de ensinar cidadania e so-
brevivência, notadamente numa escola de bairro, num entorno carente; 2º, cultivar a
tradição bem nordestina da literatura de cordel; 3º, facilitar o aprendizado através de
uma forma de cultura que a região aprecia e valoriza e 4º e não menos importante: aju-
dar a segurança no trânsito.
Com seu currículo cordelista e seu amor ao trânsito, Gerardo teve apoio imediato
da direção da escola, que encampou a ideia e colocou seus parcos recursos à disposição.
Era o que bastava. O professor Pardal ia para casa, lá produzia seus versos, na escola
ensinava alunos e outros professores e, então, saía pelas ruas da vizinhança no bairro de
Fátima, perto do centro de Fortaleza.
O que ensinar estava claro na sua cabeça: egresso do Detran-CE, sabia que a missão
da educação de trânsito era moldar comportamento e, assim, fazê-lo com o cordel não
seria nada tão complicado. E assim foi feito.
Os alunos realizavam estudos em grupo dos folhetos de cordel, culminando com

86 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


um recital de folhetos referente a um tema (escolhido pelo grupo) dentro da temática
do trânsito.
Estudantes da 3ª à 5ª série cuidavam da montagem e apresentação em teatro de fan-
toche, tendo como argumento a literatura de cordel.
Na aula de campo, cada série (do jardim à 5ª série) saía junta para dar uma volta no
quarteirão (caminhada pelo quarteirão). Na caminhada aconteciam várias paradas para,
por exemplo, atravessar sobre a faixa de pedestres, travessia sem a faixa (muito comum
nos bairros), esperar o ônibus no ponto de parada, etc.
Em cada parada o professor passava instruções de trânsito tendo como funda-
mentação o Código de Trânsito Brasileiro. A literatura de cordel era utilizada como
motivação e ilustração, sendo recitadas uma ou duas estrofes alusivas ao assunto da
parada.
Além disso eram realizadas exibições de filmes (DVDs) para todas as séries sobre os
assuntos mais tratados, como pedestres, ciclistas, como cidadãos, além de outros cobrindo:
o CTB e o pedestre; o CTB e o ciclista, o CTB e o motociclista, a criança no trânsito, entre
outros. O cordel sempre é colocado como recurso didático para ilustrar algum trecho do
filme.
Finalmente a montagem e apresentação de uma simulação de um pequeno bairro
no pátio da escola. Na apresentação, os alunos simulavam os diversos atores do trânsito:
uns “eram” veículos, outros, motocicletas, pedestres, guardas de trânsito. A literatura de
cordel era sempre motivação e argumento.

No seu Plano de Ação, o professor Pardal colocou os objetivos:

n Incentivar o aluno a valorizar a vida, agindo com cuidado com os outros usuários
do trânsito e a respeitar a legislação de trânsito;
n Estimular e resgatar a memória da literatura de cordel, como canal de comunicação,
por intermédio do qual a comunidade escolar receba ensinamentos importantes para
a sua cidadania;
n Criar, na escola e na comunidade, um comportamento adequado no trânsito, evi-
tando acidentes e mortes;
n Utilizar a literatura de cordel como recurso didático para o aprendizado dos alunos
sobre o trânsito, com o qual, diariamente, eles têm que conviver;
n Promover, na comunidade escolar, ações para a melhoria da segurança no trânsito,
reduzindo o número de acidentes no bairro e na cidade.

Cultura I Literatura de cordel 87


Gerardo Carvalho se diz muito satisfeito com os resultados obtidos
e aponta algumas das conquistas:

n Os alunos passaram a conhecer o Código de Trânsito Brasileiro, sobretudo os 69 ar-


tigos que se referem aos direitos e deveres dos pedestres, bem como dos ciclistas e
motociclistas;
n Percebe-se claramente a mudança de comportamento, quando saem da escola, ao
atravessar a via pela faixa de pedestre, ao andar pela calçada etc.;
n Através das crianças, os pais passaram a prestar mais atenção aos perigos no trânsito,
quando as trazem para a escola;
n A utilização da literatura de cordel na execução das ações do programa fez a dife-
rença. Os alunos passaram a se interessar mais pelas aulas, pelas atividades e se tor-
naram partícipes das ações;
n Os alunos passaram a se interessar pela leitura de cordel, valorizando, assim, uma
literatura muito própria do Nordeste brasileiro;
n Os demais professores da escola apostam na metodologia utilizada pelo professor
responsável e estão sempre prontos a ajudar na execução das atividades.

Gerardo Carvalho está convicto de que o cordel pode ajudar muito nas escolas ao
familiarizar as crianças com a ideia de prevenção de acidentes por meio de um tipo de
comunicação muito efetivo. “Os alunos gostam de ouvir o cordel, e captam bem suas
mensagens e levam para discutir em casa com os pais”, afirma, depois de uma sessão
na quadra coberta da escola, numa manhã ensolarada de Fortaleza. O interesse pela de-
clamação do cordel por parte dos alunos eu mesmo constatei naquela manhã que passei
na Escola Madre Teresa. Ele próprio, Gerardo Carvalho, declama seus cordéis e o aluno
repete com ênfase. Depois, saem pelo entorno da escola recitando os versos do professor
Pardal, todos em cima de comportamentos seguros no trânsito.
Por isso, quando pergunto como descreve sua arte de cordel, responde que é educativa,
pois trata de orientar as crianças a entender a problemática do trânsito e evitar seus perigos.
Conta que, com as características que descreveu, a Escola Teresa de Calcutá é a única de
Fortaleza a ensinar segurança no trânsito dessa forma. Há outras escolas que, em determi-
nadas épocas do ano têm algumas atividades, mas são pontuais, por pouco tempo.
E no futuro, como ficará o cordel na escola? – pergunto, entendendo que dentro de al-
guns anos ele estará aposentado e não vejo um substituto por perto. “Por enquanto vou
levando. Vamos ver mais tarde como ficam as coisas. De repente surge alguém, até por-

88 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Seja educado no trânsito
Autor: Gerardo Carvalho (Pardal)

Meus amigos motoristas Mais cuidado com os pedestres


Pedestres ou passageiros Que não são bem educados
Escutem bem meu recado Pois é muito grande o número
Nestes versos verdadeiros Dos que são atropelados.
Pois neste trânsito louco Mesmo tendo a preferência
Todo o seu cuidado é pouco Aja com maior prudência
Pra permanecerem inteiro. Dê passagem aos apressados.
Infelizmente se leem Em caso de ultrapassagem
Nas páginas dos jornais Veja se tem boa visão
As mais horríveis manchetes Porque é sempre u’a manobra
Sobre acidentes fatais Que requer muita atenção.
São mais de 40 mil Nunca apele para a sorte
Por ano neste Brasil Que poderá mesmo a morte
De mortes que o trânsito faz. Lhe tirar da direção.
Todo mundo tá sabendo Não há perigo maior
Que no trânsito a questão Do que sempre andar colado
Da violência é tamanha Mantendo uma boa distância
Que exige uma solução Na certa será poupado
Para EDUCAR essa gente Se ao motorista da frente
Que não está consciente Acontecer de repente
Pra dirigir com atenção. Um perigo inesperado.
Motoristas brasileiros Pra terminar meu recado
Não são lá bem educados Aqui deixo uma lição:
Não têm respeito aos pedestres Reexamine sua atitude
Os sinais são avançados Diante da direção
Deste modo os acidentes A fim de que tenha êxito
Cada vez mais são frequentes Lutar pela EDUCAÇÃO.
Que nos faz preocupados.

Cultura I Literatura de cordel 89


que não é coisa tão complicada assim. Talvez seja mais complicada a burocracia da es-
cola, da Prefeitura, de contratar um professor que já seja do ramo e que possa dar con-
tinuidade. Gostaria de ver as três coisas ‘de mãos dadas’: a escola, a segurança no
trânsito e o cordel”, conclui cheio de esperanças.
Como seria bom se cada região do país usasse a força da sua cultura local para dissemi-
nar conhecimentos sobre trânsito àqueles que necessitam. O exemplo do cordel é expressivo.

Rio reage cantando


EM 2007, O RIO DE JANEIRO ACORDOU PARA UM DADO ALARMANTE: o trânsito
carioca estava matando uma média de três pessoas por dia, número que de forma alguma
combinava com o espírito da cidade. Embora seja órgão estadual, o Detran-RJ toma as
dores da cidade e resolve reagir com um programa de ações para atingir toda a popula-
ção carioca, independentemente da faixa etária ou social.
Nasce, assim, o programa Mudança de atitude, que visa resgatar no trânsito, junto
com os cidadãos, o espírito alegre que a cidade sempre procurou passar aos munícipes
e principalmente seus visitantes.
Fez-se um diagnóstico sobre o comportamento dos motoristas, perceberam-se seus
graves desvios de conduta e decidiu-se investir pesado no programa, inédito na história
do Detran. Foram planejadas campanhas diferenciadas para os diversos grupos de usuá-
rios, utilizando vítimas de acidentes, escolas, jovens e empresas privadas como parceiros.
Para se atingir os objetivos foram usados jogadores de futebol, atletas de outros esportes
e estrelas do mundo artístico e cultural, incluindo cartunistas.
Até aí, nada de tão diferente do que já se tenha visto noutras cidades de algum porte.
O que me chamou a atenção no meio daquele arsenal de armas de grande calibre social
foi a produção de um CD com 11 músicas, todas dedicadas à segurança no trânsito e in-
terpretadas por nomes de peso da vida artística e cultural carioca. O que diferenciava
esse CD de tantos outros que já tinha visto e ouvido era a sua qualidade.
Eu estava no Rio a trabalho e me lembro de ouvir, baixinho, no rádio do táxi, uma

90 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


música que mexia comigo, mas não me dei conta num primeiro momento. Quando acor-
dei para o que poderia ser, pedi ao motorista para aumentar o volume do rádio e percebi
que se tratava de uma música nada comum para um programa normal da emissora, pois
falava exclusivamente de trânsito. Era Beth Carvalho cantando Não beba se for dirigir, de
autoria de Edu Casanova, com participação de Dudu Nobre. Fazia parte do CD produ-
zido pelo Detran-RJ.
A ideia que estava na origem da produção do CD era tão simples quanto objetiva:
se o Rio é uma cidade musical, que canta dia e noite e se o carioca ouve música o dia
todo, por que não ouvir algo que fale de trânsito, que faz parte da vida dele todo o
tempo? Só que produzir um CD com músicas é uma coisa, mas produzir um CD que
provoque impacto e com chances de ser tocado nas emissoras locais e
produzir algum resultado, aí já é algo diferente.
O pessoal do Detran-RJ já conhecia um CD produzido pelo autor,
cantor e produtor baiano Edu Casanova, que havia feito trabalho similar
para o Detran da Bahia. Contato estabelecido, o desafio então seria en-
contrar as músicas, os intérpretes adequados e, se possível, uma em-
presa para patrocinar. Conseguiu-se tudo.
Beth Carvalho era o nome mais famoso da turma, mas havia
também Dudu Nobre, George Israel (Kid Abelha), Cláu-
dia Leite, Sérgio Loroza, Max Viana, Luiza Possi, Léo
Maia, DJ Marlboro, Bochecha, Edu Casanova. Se al-
guns não eram de tanta expressão nacional, todos eram conhe-
cidos no Rio de Janeiro.
O CD foi um sucesso assim que as ações operacionais da cam-
panha ganharam as ruas. As músicas eram para todas as idades
e as interpretações bastante boas, por profissionais que, além
de tudo nada cobraram. Com ritmos que vão do samba ao rap, passando por bossa-nova,
axé e infantil, todas as músicas falam sobre educação no trânsito, puxando para a mu-
dança de atitude.
Em parceria com a Prefeitura do Rio de Janeiro, foram identificados os 100 pontos
críticos em que ocorriam acidentes em maior número, marcados por cartazes Não seja
você a próxima vítima. Casas noturnas e bares eram visitados por voluntários que solici-
tavam a execução das músicas do CD e sempre eram atendidos. Paralelamente a cam-
panha chegou às escolas, notadamente as do ensino médio – para atingir a faixa dos
pré-motoristas – a quem eram distribuídas cópias do CD.

Cultura I Rio reage cantando 91


Numa outra variante, a campanha usou atletas de expressão na época para chamar
a atenção do motorista carioca de que as coisas passaram do limite e era preciso colocar
um basta naquela situação. Ali estavam Zico (futebol), Luiza Parente (ginasta), Thiago
Pereira (natação), Popó (box), Nalbert (vôlei), Jackie (vôlei) emprestando seus nomes e
seu prestígio numa campanha meritória, necessária e oportuna. Uma das personalidades
mais conhecidas era o cantor Zeca Pagodinho, um conhecido bebedor de cerveja. Como
ele fazia parte do time Se beber não dirija? Simples, na explicação do Detran: Zeca bebe,
sim, mas não dirige, aliás nem carteira de habilitação tem!
A campanha do Detran-RJ durou cerca de um ano e meio, entre 2007 e 2008. Não há
dados disponíveis sobre resultados obtidos, mas parece não haver dúvidas de que a ima-
gem da instituição ficou consideravelmente reforçada em razão da campanha. Afinal,
ela ganhou visibilidade com uma proposta concreta, utilizando meios modernos e formas
consistentes. Pena que não tenha feito uma pesquisa de imagem, antes e depois da cam-
panha, para medir sua eficiência real.

Música sertaneja
entra no jogo
SE VOCê DECIDE PEGAR A ESTRADA AO AMANHECER DO DIA e liga o rádio do
carro vai ouvir muitos programas dirigidos aos caminhoneiros. São programas que co-
meçam cedinho – 4h, 5h ou 6h da manhã – horário em que o pessoal do volante começa
sua jornada. Se prestar atenção, ouvirá conselhos de apresentadores animados, encora-
jando motoristas a tomar cuidado nas estradas, cuidar mais na neblina, checar os freios e mais
dezenas de recomendações para evitar acidentes. Entre um conselho e outro, muita mú-
sica sertaneja, ao gosto dos caminhoneiros. Na medida em que se sobe do Sul para o
Norte, muda o estilo, mas permanece a música simples, de raiz popular, que foca e que
representa ao mesmo tempo a cultura e os valores de cada região.
Um dos mais famosos desses apresentadores é Pedro Trucão, que anima o Globo es-
trada, da Rádio Globo de São Paulo, que vai ao ar de segunda a sábado. Além disso,

92 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


transmite boletins sobre as estradas ao longo da programação do Sistema Globo de
Rádio, em rede, para todo o Brasil.
Na televisão, Pedro Trucão começou a atuar em 1991, no programa Roda Brasil, na
Rede Record e fez parte, de 1995 a 2004, da equipe de repórteres do programa Siga bem
caminhoneiro, no SBT. Até a metade do ano de 2012, apresentava o programa Pé na estrada,
todos os domingos, pela Rede TV, e todo sábado pela TV Aparecida.
Formado em publicidade e jornalismo, Pedro sempre se interessou muito pelas es-
tradas e pelos caminhoneiros, buscando, com um estilo muito próprio, interagir com
eles, ouvindo suas reivindicações, defendendo suas causas e dando-lhes voz para se ma-
nifestar. É uma unanimidade entre caminhoneiros, que diversas vezes o elegeram como
seu defensor em muitas demandas.
No Sul, há um motorista de caminhão que, ele mesmo, é o apresentador do programa
de rádio. Gevi Antonio Dilda, de Nova Prata, Rio Grande do Sul, todos os domingos das
6h às 8h apresenta A hora do caminhoneiro, em que faz de tudo: fala muito de estrada, de
caminhoneiros, aconselha, discute, brinca, dá notícias e toca muita música gaúcha e ser-
taneja-raiz. Para animar seus programas, tem em casa uma discoteca com mais de 800
músicas sobre caminhões e caminhoneiros entre CDs, dis-
cos de vinil, fitas, etc. Gevi foi ganhador do Prêmio
Volvo de Segurança no Trânsito em 2002.
Em Santa Catarina, conheço um caso que creio ser
único no Brasil na relação da música sertaneja com a
segurança no trânsito. Há mais de 20 anos, dois ami-
gos decidiram formar uma dupla sertaneja para can-
tar as coisas do trânsito e principalmente da
segurança no trânsito. A dupla se chama Prudente e
Negligente.
Um deles, Adilson Firmino Cruz, já comandava
seu CFC Auto Vale, em Rio do Sul, 70 mil habitantes,
no alto Vale do Itajaí, a 190 quilômetros de Florianópolis
e, portanto, já estava imerso na problemática do trânsito. Ele era (e ainda é) o líder da
dupla, o mais entusiasmado com a atividade. O outro era Mário da Silva, antigo e expe-
riente motorista de caminhão que gostava de um violão e de cantar com e para os amigos.
Adilson era o Negligente e Mário, o Prudente.
Compuseram e cantaram dezenas de músicas em que abordavam os perigos do trân-
sito e passavam as recomendações mais importantes. Tocavam e cantavam geralmente

Cultura I Música sertaneja entra no jogo 93


sem cobrar nada. O objetivo era alertar, principalmente motoristas de caminhão, sobre
os perigos das estradas e do trânsito em geral. Tinham convicção de estar fazendo a sua
parte para zelar por um trânsito menos violento e por isso nunca desistiram.
A história dos dois começou em 1992, quando os amigos decidiram cantar juntos –
“mais por passatempo”. Cantariam músicas do tipo sertanejo-raiz e que sempre cha-
massem a atenção para as questões do trânsito. Em 1996, surgiu o primeiro convite para
uma apresentação pública, no 1º Encontro da Mulher Policial, em Lages, Santa Catarina,
a cerca de 100 quilômetros de Rio do Sul. Depois se apresentaram na Festa dos Motoris-
tas, em Presidente Getúlio, que se repetia a cada ano. A dupla cantava também na TV
Bela Aliança e na Rádio Difusora, ambas de Rio do Sul.
Prudente e Negligente cantavam também no final dos cursos de renovação de carteiras
de habilitação do CFC Auto Vale. Adilson acredita mesmo que muita gente renovava
sua habilitação na sua escola em parte por causa do show que era dado e que tornava as
aulas menos maçantes.
Chegaram a gravar um CD, intitulado Educando para o trânsito, com 12 músicas, todas
de autoria de Adilson Cruz, que usa o pseudônimo de Jaguaruna. Mário morreu há al-
guns anos e foi substituído por Antonio, outro amigão de Adilson, ex-gerente de banco
e professor de música. Até o final do ano de 2012, a dupla espera lançar um novo CD
com 20 músicas, todas dirigidas aos caminhoneiros e sempre sobre segurança nas estra-
das. A tiragem inicial será da ordem de 3 mil cópias.
O sonho da dupla – após se aposentar – é “viajar por este Brasil cantando para quem
quiser ouvir”, conta Adilson. Repertório de música é o que não falta e assunto para con-
versas, muito menos.
Adilson Firmino Cruz é formado pela Universidade Vale do Itajaí, em Administra-
ção e Segurança de Trânsito, pós-graduado em Gestão em Meio Ambiente e Segurança
de Trânsito e, recentemente, formado em Psicologia. Foi produtor de vários filmes edu-
cativos de trânsito, com destaque para o de Direção defensiva, muito usados na sua au-
toescola, assim como em seus cursos, ministrados no interior do Estado.
A dupla canta com voz mediana aguda e grave, estilo sertanejo-raiz, que acredita
estar dentro do gosto do caminhoneiro. As músicas mais tocadas do primeiro CD foram
Imperícia, imprudência e negligência, Infrações de trânsito e Chofer de sogra. Aliás, talvez a
dupla passe para trio, com a entrada de um acordeonista. A ideia de Adilson é chamá-lo
de Imprudente, Imperito e Negligente, o que parece estranho para não dizer paradoxal, pois
as mensagens são sempre positivas e passadas por gente responsável.
Não conheço nenhum outro caso brasileiro como esse. “Não ganhamos dinheiro,

94 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


não ficamos no topo das paradas de músicas e nem era essa a intenção”, conta Adil-
son. “Mas tivemos nossa gratificação, pois muita gente nos ouviu, recebeu nossa men-
sagem e certamente absorveu nossos conselhos.” É compreensível: se no mercado
fonográfico é muito difícil emplacar uma música, mesmo com grandes promoções e até
investimento, imagine pretender ganhar destaque com músicas sertanejas abordando os
perigos do trânsito!
Passa certamente de mil o número de artistas pelo Brasil afora que gravaram CDs
de músicas para prazer próprio e utilização em eventos. Grande parte deles não tinha
maior pretensão em ganhar visibilidade. No caso dos cantores rio-sulenses, o sonho
mesmo era ajudar o trânsito e as pessoas, o que certamente conseguem na medida em
que repetem seus shows.
No contrafluxo deles, há alguns artistas que se notabilizaram justamente pela men-
sagem contrária, cantando na contramão. Talvez o caso mais famoso de todos seja o Rei
Roberto Carlos, nos seus velhos tempos, com canções que marcaram como Parei na con-
tramão, 120... 150... 200 km por hora, As curvas da estrada de Santos, etc.
Na época, claro, a sociedade não estava atenta para o discurso atual da responsabi-
lidade social, do politicamente correto nem da cidadania participativa. Contudo, mesmo
hoje e apesar de todo o movimento pelo bem, de fazer as coisas certas, há um grande nú-
mero de personalidades que marcam justamente pela contramão. São pessoas que, sejam
quais forem as intenções, induzem os outros a não refletir sobre os riscos de viver peri-
gosamente.
No interior de São Paulo, por exemplo, a animada dupla Jad e Jefferson fez, e continua
fazendo, enorme sucesso com a música intitulada Nóis capota mais não freia. É só olhar no
site deles na internet para perceber sua grande popularidade. Cantando num português
errado, mas de forma descontraída, arrasta multidões para seus shows numa agenda
que não acaba nunca.
Essa é a grande marca da democracia em que todos têm o direito de se exprimir
como quiserem e cabe aos que não concordarem deixar de ouvi-los. Melhor seria propor
um outro caminho – aquele que se acredita levar a um destino melhor.
Uma vez, no interior da Rússia, ouvi um ditado popular que, depois, ouvi repetido
inúmeras vezes: Não importa a cor do gato, desde que ele mate o rato. Assim vejo o papel da-
queles que lutam pela disseminação da cultura de trânsito neste país. Desde que respei-
tadas as regras básicas da ética, da legalidade, da justiça, etc., vale qualquer esforço para
tentar colocar o trânsito brasileiro nos eixos. Da música sertaneja ao cordel, da arte, da
literatura ao cinema.

Cultura I Música sertaneja entra no jogo 95


“ O primeiro
dever e a maior
obrigação de
um governo é
a segurança

das pessoas
(Arnold Schwarzenegger, ator e ex-governador da Califórnia)

Ao contrário do que acontece em países mais desenvolvidos, segurança


no trânsito não é uma prioridade no Brasil. A ausência de programas con-
sistentes e de longo prazo tem sido a marca dos governantes que co-
mandaram o país ao longo de sua história. Isso vale para o governo
federal assim como para os estaduais e municipais.
Como nunca se deve generalizar, também no setor governamental há ex-
ceções e algumas delas serão abordadas neste capítulo. Além de co-
mentar sobre dois grandes eventos na área de governo nos últimos 15
anos – a entrada em vigor do Código de Trânsito Brasileiro e a adoção
da Lei Seca – aproveito para despertar interesse da classe política para
um fato que, historicamente, é novo no país: que trânsito também dá votos
e que um político que saiba fazer dele sua bandeira de campanha tem
grandes chances de se (re)eleger.
G
GOVERNO
Por que governo:

Sempre que falarmos de trânsito, o GOVERNO

estará presente. Afinal de contas, é dele a

responsabilidade de garantir o direito de ir e vir

dos cidadãos. Da mesma forma, é da alçada do

governo garantir a segurança.

Por isso é impossível dissociar segurança no

trânsito de governo.

Pretendo, neste capítulo, mostrar alguns

casos em que o governo foi o disseminador de

cultura de segurança, sejam quais tenham sido

suas intenções nos fatos relatados.


Código de Trânsito
Brasileiro – 1998
O CóDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO, que vou chamar doravante de CTB, foi, de
longe, o mais visível ato do governo federal na área de trânsito nos últimos 20 anos. É
claro que concorreu muito para a sua visibilidade, o interesse e a divulgação da mídia,
fazendo com que o tema entrasse e permanecesse no cotidiano brasileiro por bom tempo.
Contribuiu muito também o momento que o país vivia e, naturalmente, a fase que
o trânsito brasileiro atravessava. Acima de tudo, havia uma enorme expectativa pelo
que o novo Código iria trazer de benefício ao nosso trânsito e, não menos importante,
os ventos da globalização traziam informações de como outros países, sobretudo os
mais desenvolvidos, estavam resolvendo seus problemas de acidentalidade. Para uma
nação que estava caminhando para a elite mundial, era vital contar com um sistema
de trânsito à altura das nossas pretensões.
Quem conhecia o trânsito brasileiro um pouco melhor e tinha consciência da maneira
como era administrado, dificilmente acreditaria que alguém poderia tirar nota tão alta
sem ter feito devidamente os deveres de casa. Dizia-se mesmo que se o Código anterior
fosse respeitado, não precisaríamos de um novo. Em todo caso, criou-se uma esperança
de que o novo Código iria mudar radicalmente o nosso trânsito. Assim, quando foi lan-
çado, com uma cobertura extraordinária dos meios de comunicação, o impacto foi muito
grande.
Na verdade, não fez tudo, mas fez muito. Como primeiro sinal de que chegou
para valer e colocar ordem na casa, graças a uma fiscalização intensa e a um valor de
multa como nunca se havia visto na história deste país, enquadrou os que rejeitavam
usar o cinto de segurança, teve forte influência nos limites de velocidade, entre outras
conquistas, e efetivamente impôs uma certa ordem nas ruas e estradas.
Venderam-se tantos cintos de segurança que o governo acabou adiando a punição
aos infratores para dar tempo ao comércio de repor os estoques e atender a demanda.
A fiscalização de quem dirigia acima do nível de alcoolemia permitido fez com que
bares e restaurantes colocassem motoristas à disposição dos que chegassem dirigindo
para levá-los de volta sem serem pegos pela polícia. Com a intensa cobertura da im-

98 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


prensa, essas ações provocaram significativas mudanças no hábito dos brasileiros. Os
mais otimistas já achavam que, enfim, o país estava se mudando para o grupo dos
países desenvolvidos.
Infelizmente, como faz parte da nossa tradição, na continuidade a fiscalização foi
afrouxando e a turma foi percebendo que aquilo não iria durar muito tempo. Dito e
feito. Aos poucos a fiscalização foi se reduzindo, os testes de bafômetros não eram
feitos com a mesma intensidade, os bares começaram a dispensar seus serviços de en-
trega de clientes e alguns anos depois a situação estava bastante deteriorada.
Os resíduos do impacto inicial do CTB certamente foram positivos e boa parte
dos benefícios auferidos está aí até hoje. O que os técnicos lamentam é que o país
tenha perdido uma das melhores oportunidades de sua história de colocar seu trânsito
num patamar muito mais elevado, talvez à altura do seu potencial econômico. Signi-
fica dizer que sabíamos o que deveríamos fazer, como deveríamos tê-lo feito, come-
çamos a fazê-lo bem e afrouxamos na melhor hora de reforçá-lo.
Por que, então, coloquei o CTB neste livro? Simples, porque ele ajudou e muito a
disseminar a cultura de segurança do trânsito no Brasil. Graças a ele – e à repercussão
do seu lançamento – muita gente tomou conhecimento de regras mais rígidas e tantos
outros passaram a tomar mais cuidado, a se policiar mais e a cuidar mais dos outros
também. Pena que não teve o mesmo nível de sustentação.

Governo I Código de Trânsito Brasileiro – 1998 99


O CTB é a lei maior do trânsito no país. Ele define atribuições das autoridades e dos
órgãos que fazem parte do Sistema Nacional de Trânsito; é ele que aponta diretrizes da
engenharia de tráfego, normas de conduta, infrações e penalidades para todos os usuá-
rios do sistema viário. A Constituição da República é a sua base e ele está de acordo com
a Convenção de Viena, de 1968, e com o Acordo do Mercosul, de 1991.
Nosso CTB foi promulgado pelo Congresso Nacional no dia 23 de setembro de
1997, através da Lei nº 9.503 e sancionado pelo presidente da República, Fernando
Henrique Cardoso, para entrar em vigor dia 22 de janeiro de 1998, substituindo o an-
tigo, de 1966. Logo no seu primeiro artigo, o CTB diz que “trânsito seguro é um direito
de todos e um dever dos órgãos e entidades do Sistema Nacional de Trânsito”.
Nosso Código esteve perambulando pelos gabinetes de Brasília, sofrendo altera-
ções, remendos, supressões de todos os tipos durante cerca de 10 anos. Em 1997, de
repente, surge uma discussão forte sobre a necessidade imperiosa de aprová-lo. Há
algumas versões – nenhuma confirmada, claro – que explicariam porque a discussão
sobre a aprovação do CTB ganhou força e velocidade na época, mas o fato é que houve
uma aceleração na aprovação das medidas que eram discutidas há anos.
Não é difícil de imaginar a dificuldade de aprovar um Código Nacional de Trân-
sito com tantos interesses envolvidos. As pressões, os lobbies de todos os lados eram
permanentes e sistemáticos em cima dos congressistas e órgãos diretamente envolvi-
dos, alguns para preservar certas conquistas, outros para alterar, quando não para su-
primir e até para reforçar.
No meio desse tiroteio, um Sistema Nacional de Trânsito frágil, pouco alicerçado
por especialistas com envergadura técnica para sustentar as pressões e para defender
as razões maiores das mudanças em discussão.
É nesse cipoal de pressões e contrapressões que o presidente Fernando Henrique
decide, por exemplo, vetar 17 artigos, entre eles o artigo 56, justamente aquele que
proibia motociclistas de circular entre duas filas de automóveis. Ao não proibir o mo-
vimento, o que equivale a permiti-lo, estima-se que o governo tenha perpetrado uma
imprudência que resultou numa espiral anual de mortes de motociclistas no trânsito
que em 2011 já ultrapassou 11 mil.
O Código é composto por 341 artigos, divididos em 20 capítulos. Além dos 17 artigos
vetados, um deles revogado.
Apesar de 14 anos de vida, o CTB continua incompleto tanto na sua regulamentação
quanto, principalmente, na sua execução. Se há resultados, e importantes, a serem con-
tabilizados nos créditos, há outros, não menos importantes, na coluna dos débitos.

100 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


São os seguintes os artigos do presente CTB:
Disposições preliminares

1. Do sistema nacional de trânsito


2. Das normas gerais de circulação e conduta
3. Dos pedestres e condutores de veículos não motorizados
4. Do cidadão
5. Da educação para o trânsito
6. Da sinalização para o trânsito
7. Da engenharia de tráfego, da operação, da fiscalização e do policiamento ostensivo
8. Dos veículos
9. Dos veículos em circulação internacional
10. Do registro de veículos
11. Do licenciamento
12. Da condução de escolares
13. Da habilitação
14. Das infrações
15. Das penalidades
16. Das medidas administrativas
17. Do processo administrativo
18. Dos crimes de trânsito
19. Das disposições finais e transitórias.

Nesse jogo de interesses, em alguns casos é possível observar claramente a força dos
lobbies e, de certa forma, a fraqueza do governo para defender algo que seria de inesti-
mável valor para o trânsito e para a sociedade.
É o caso nítido da inspeção veicular, que até hoje não foi implementada. Num país
como o nosso, com uma frota não só envelhecida, mas principalmente com manutenção
de baixa qualidade, contar com um serviço eficiente de inspeção veicular é absoluta-
mente vital. Se fosse apenas a questão de segurança, já seria de grande importância, pois,
com veículos e componentes mais seguros, o número de acidentes baixaria enorme-
mente. Há, contudo, a questão ambiental, em que a inspeção veicular poderia dar con-

Governo I Código de Trânsito Brasileiro – 1998 101


tribuição muito grande para a redução da emissão de gases que tanto poluem nossos
centros urbanos em razão da falta de manutenção do motores dos veículos da frota.
Embora ninguém assuma as razões de ainda não ter começado a inspeção, é claro
que o confronto de interesses emperrou o processo. Existem estações de inspeção em al-
gumas cidades brasileiras, mas voltadas para os problemas ambientais, não para a se-
gurança veicular que era, originalmente. o objetivo do CTB.
Essa inércia coloca o Brasil em situação bastante desconfortável desde já e para os
próximos anos, quando for sede de grandes eventos internacionais e deixará o mundo
perceber que ainda não temos funcionando um sistema de inspeção de segurança veicular.
Aí provavelmente será decidido começar um programa em caráter emergencial, correndo
o grande risco de fazermos malfeito. Tal como já o fizemos em tantas oportunidades.

Educação de trânsito –
a grande falta

OUTRO PONTO DO CTB, da maior importância e que parece longe de estar completado,
é o capítulo que diz respeito à educação para o trânsito. É um dos itens vitais do Código
e parece enfrentar complicações intransponíveis em Brasília. É quase impossível acreditar
que uma atividade que é vista unanimemente pela sociedade brasileira e pelo próprio
governo como de absoluta necessidade não consiga ser desenvolvida 14 anos depois de
promulgado o CTB.
Ao longo das últimas décadas ouço em todos os cantos deste país que educação para o
trânsito “é a solução”, “é por onde tudo começa”, “é a única maneira de endireitar o nosso trânsito”,
e por aí vai. Ninguém duvida de que tudo isso seja verdadeiro – talvez sem todo o exagero.
Se é tão importante, se teoricamente é válido para todos, por que não anda na velo-
cidade que precisamos? Vejam que já tivemos pessoas experientes ligadas à segurança
no trânsito no comando do Contran/Denatran, como Roberto Scaringella e Ailton Bra-
siliense, mas o tema sempre patinou e não deslanchou.

102 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


É mais um daqueles enigmas que desafiam o bom senso nacional, mas que parece
encontrar alguma explicação na famosa falta de vontade política do comando da República.
Vou ressaltar alguns pontos do Capítulo 4, do Código de Trânsito Brasileiro, que trata
de educação para o trânsito, para que tenhamos todos uma ideia geral do quanto estamos
deixando de melhorar nosso trânsito por falta de ação. Só selecionei alguns trechos do
capítulo, aqueles que se referem às promessas:

Art. 74. A educação para o trânsito é direito de todos e constitui dever prioritário para os com-
ponentes do Sistema Nacional de Trânsito.
§ 1º É obrigatória a existência de coordenação educacional em cada órgão ou entidade
componente do Sistema Nacional de Trânsito.
§ 2º Os órgãos ou entidades executivos de trânsito deverão promover, dentro de sua
estrutura organizacional ou mediante convênio, o funcionamento de Escolas Pú-
blicas de Trânsito, nos moldes e padrões estabelecidos pelo Contran.
Art. 75. O Contran estabelecerá, anualmente, os temas e os cronogramas das campanhas de
âmbito nacional que deverão ser promovidas por todos os órgãos ou entidades do Sis-
tema Nacional de Trânsito, em especial nos períodos referentes às férias escolares, fe-
riados prolongados e à Semana Nacional de Trânsito.
§ 1º Os órgãos ou entidades do Sistema Nacional de Trânsito deverão promover outras
campanhas no âmbito de sua circunscrição e de acordo com as peculiaridades locais.
§ 2º As campanhas de que trata este artigo são de caráter permanente, e os serviços
de rádio e difusão sonora de sons e imagens explorados pelo poder público são
obrigados a difundi-las gratuitamente, com a frequência recomendada pelos ór-
gãos competentes do Sistema Nacional de Trânsito.
Art. 76. A educação para o trânsito será promovida na pré-escola e nas escolas de 1º, 2º e 3º
graus, por meio de planejamento e ações coordenadas entre os órgãos e entidades do
Sistema Nacional de Trânsito e de Educação, da União, dos Estados, do Distrito Fe-
deral e dos Municípios, nas respectivas áreas de atuação.
Parágrafo único. Para a finalidade prevista neste artigo, o Ministério da Educação e
do Desporto, mediante proposta do Contran e do Conselho de Reitores das Universi-
dades Brasileiras, diretamente ou mediante convênio, promoverá:
I. a adoção, em todos os níveis de ensino, de um currículo interdisciplinar com
conteúdo programático sobre segurança de trânsito;
II. a adoção de conteúdos relativos à educação para o trânsito nas escolas de forma-
ção para o magistério e o treinamento de professores e multiplicadores;

Governo I Educação de trânsito – a grande falta 103


III. a criação de corpos técnicos interprofissionais para levantamento e análise de
dados estatísticos relativos ao trânsito;
IV. a elaboração de planos de redução de acidentes de trânsito junto aos núcleos in-
terdisciplinares universitários de trânsito, com vistas à integração universida-
des-sociedade na área de trânsito.
Art. 77. No âmbito da educação para o trânsito caberá ao Ministério da Saúde, mediante pro-
posta do Contran, estabelecer campanha nacional esclarecendo condutas a serem se-
guidas nos primeiros socorros em caso de acidente de trânsito.
Parágrafo único. As campanhas terão caráter permanente por intermédio do Sis-
tema Único de Saúde – SUS, sendo intensificadas nos períodos e na forma estabele-
cidos no art. 76.
Art. 77-A. São assegurados aos órgãos ou entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito
os mecanismos instituídos nos arts. 77-B a 77-E para a veiculação de mensagens edu-
cativas de trânsito em todo o território nacional, em caráter suplementar às campanhas
previstas nos arts. 75 e 77. (Incluído pela Lei nº 12.006, de 2009).
Art. 77-B. Toda peça publicitária destinada à divulgação ou promoção, nos meios de comunicação
social, de produto oriundo da indústria automobilística ou afim, incluirá, obrigato-
riamente, mensagem educativa de trânsito a ser conjuntamente veiculada. (Incluído
pela Lei nº 12.006, de 2009).
§ 1º Para os efeitos dos arts. 77-A a 77-E, consideram-se produtos oriundos da in-
dústria automobilística ou afins: I – os veículos rodoviários automotores de qual-
quer espécie, incluídos os de passageiros e os de carga; II – os componentes, as
peças e os acessórios utilizados nos veículos mencionados no inciso I.
§ 3º Para efeito do disposto no § 2º, equiparam-se ao fabricante o montador, o encar-
roçador, o importador e o revendedor autorizado dos veículos e demais produtos
discriminados no § 1º deste artigo.
Art. 77-C. Quando se tratar de publicidade veiculada em outdoor instalado à margem de rodovia,
dentro ou fora da respectiva faixa de domínio, a obrigação prevista no art. 77-B es-
tende-se à propaganda de qualquer tipo de produto e anunciante, inclusive àquela de
caráter institucional ou eleitoral.
Art. 77-D. O Conselho Nacional de Trânsito (Contran) especificará o conteúdo e o padrão de apre-
sentação das mensagens, bem como os procedimentos envolvidos na respectiva veicu-
lação, em conformidade com as diretrizes fixadas para as campanhas educativas de
trânsito a que se refere o art. 75.
Art. 77-E. A veiculação de publicidade feita em desacordo com as condições fixadas nos arts. 77-

104 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


A a 77-D constitui infração punível com as seguintes sanções(seguem sanções).
§ 2º Sem prejuízo do disposto no caput deste artigo, qualquer infração acarretará a
imediata suspensão da veiculação da peça publicitária até que sejam cumpridas
as exigências fixadas nos arts. 77-A a 77-D.
Art. 78. Os Ministérios da Saúde, da Educação e do Desporto, do Trabalho, dos Transportes e
da Justiça, por intermédio do Contran, desenvolverão e implementarão programas des-
tinados à prevenção de acidentes.
Parágrafo único. O percentual de 10% do total dos valores arrecadados destina-
dos à Previdência Social, do Prêmio do Seguro Obrigatório de Danos Pessoais cau-
sados por Veículos Automotores de Via Terrestre - DPVAT, de que trata a Lei nº
6.194, de 19 de dezembro de 1974, serão repassados mensalmente ao Coordenador
do Sistema Nacional de Trânsito para aplicação exclusiva em programas de que
trata este artigo.
Art. 79. Os órgãos e entidades executivos de trânsito poderão firmar convênio com os órgãos
de educação da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, objetivando
o cumprimento das obrigações estabelecidas neste capítulo.

Se você teve a paciência de ler com um pouco de cuidado, concordará como deve
ser difícil assumir um posto em certas áreas do governo e perceber que na prática as coi-
sas são ainda muito mais complicadas do que se esperava encontrar. Não se pode duvi-
dar das intenções de muita gente que está em postos importantes do governo. O que não
devemos nos conformar, certamente, é em aceitar pacificamente a sua inépcia no trata-
mento de questões tão vitais para o futuro do país e da sociedade.
Se o conteúdo do CTB preconizado em 1998 tivesse sido implementado, posso asse-
gurar que estaríamos hoje com a metade dos grandes problemas resolvidos. O número
de mortos e feridos teria caído para menos da metade e os grandes problemas de con-
gestionamentos e poluição estariam substancialmente reduzidos graças à aplicação pau-
latina das medidas que iriam se suceder. Isso não é novidade para ninguém.
Até hoje o Denatran resolveu apenas a questão da educação de trânsito para o ensino
fundamental, mas, dali em diante, empacou. Por uma resolução estranha, a 265, estabe-
leceu que o conteúdo para o ensino médio seria o mesmo dos cursos teóricos dos Centros
de Formação de Condutores (CFCs) e os próprios instrutores das autoescolas poderiam
ministrar aulas nas escolas de forma extracurricular. Contudo, a coisa não vingou e há
um enorme vazio nessa área. Não há outro material didático que possa ser ministrado.
No que diz respeito a cursos técnicos e universitários, simplesmente não estão na agenda.

Governo I Educação de trânsito – a grande falta 105


Enfim, a educação de trânsito, solução para todos os males do trânsito, é possivelmente um
dos maiores fracassos do CTB.
O Denatran reconhece o impasse e aparentemente está imobilizado diante dele. A saída
passa por uma liderança do setor que assuma o problema e resolva enfrentá-lo com deter-
minação. Se o fizer, encontrará um monte de parceiros dispostos a colaborar e com grandes
chances de sairmos do marasmo em que nos encontramos num prazo relativamente rá-
pido. Novamente – desculpe, leitor, a repetição – é só uma questão de vontade política.
Enquanto isso, a sociedade continua assistindo ao massacre de mais de 40 mil brasileiros
no trânsito por ano, sem que a educação de trânsito cumpra seu grande papel. Está certo
que nosso Sistema Nacional de Trânsito não está estruturado adequadamente para cumprir
seu papel, mas surpreende a falta de interesse político e dos políticos para atacar o assunto.
A percepção que se tem é de que trânsito não dá voto e por esse motivo tem sido ali-
jado dos debates em praticamente todas as eleições. São raríssimos os candidatos que
têm o trânsito como bandeira em suas campanhas eleitorais. Creio ter chegado a hora
de provar o contrário.
Apesar de a matéria estar mal administrada, percebe-se grande interesse de muita
gente pelo país inteiro buscando oferecer educação de trânsito, seja nas escolas ou qual-
quer outra instituição como ONG, empresa, entidade, etc.
Como não há uma orientação clara de quem de direito no governo federal, minha
leitura do que acontece é preocupante, pois vejo que falta muita informação, notada-
mente aos professores/instrutores. Não tendo material básico para ensinar, cada um usa
o seu bom-senso e o que tiver à mão para passar aos alunos, o que obviamente pode sig-
nificar riscos grandes de transmissão incorreta de ensinamentos que serão muito mais
difíceis de corrigir posteriormente.
Resumo da ópera: o que temos de verdade hoje, no sistema educacional brasileiro,
é material para o ensino fundamental e uma recomendação do Denatran para que escolas
usem o material dos CFCs para o ensino médio, podendo utilizar inclusive seus instru-
tores, o que parece nunca ter acontecido. Daí para frente, continuamos sem nada.
O que surpreende é que a sociedade ainda reclame do comportamento do brasileiro
no trânsito. Como pretender comportamento seguro, se nunca o ensinamos correta-
mente? Lembro sempre que, cada vez que acompanhava os vencedores do Prêmio Volvo
de Segurança no Trânsito à Suécia, tinha dificuldades de explicar que as escolas suecas
não têm educação de trânsito nos seus currículos.
Pensando em ser mais útil nessa matéria sobre educação para o trânsito, resolvi co-

106 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


locar a seguir alguns ensinamentos básicos que tenho visto em sites de instituições im-
portantes do exterior que têm sólidos laços com a educação. Preocupei-me com o que
significa educação para o trânsito e quais devem ser seus conteúdos básicos.
Nos países desenvolvidos, educação para o trânsito começa nos primeiros anos de
vida, nas creches e jardins de infância. Baseia-se na compreensão do comportamento se-
guro e no estímulo dos hábitos seguros de conduta em qualquer situação da vida real.
Veja este quadro publicado no estudo A eficácia da educação para o trânsito, de autoria
de Nina Dragutinovic e Divera Twisk, do SWO – Instituto para Pesquisa em Segurança
no Trânsito, da Holanda, de 2006. Ele dá uma ótima ideia do universo da educação para
o trânsito nas escolas.

EDUCAÇÃO PARA O TRÂNSITO

Objetivos
Conduta segura e orientação no trânsito. Transferência de técnicas de sobrevivência no curto prazo.
Parceria, comportamento responsável e seguro no longo prazo.

Métodos
Aulas em classes, treinamento fora de sala em áreas protegidas e em situações de tráfego real, discussões,
grupos de trabalho, investigação, apresentações em público, técnicas criativas, teatro, etc.

Conhecimento Habilidades Atitude

Leis de trânsito e situações Habilidades motoras Comprometimento

Riscos pessoais (vida e saúde) Transformação de Motivação para obedecer


conhecimento e habilidade regras, evitar riscos, agir com
Consequências de motora em participação segura segurança e ser socialmente
comportamentos perigosos no trânsito responsável

Reflexões sobre padrões de Concentração Comportar-se como modelo de


mobilidade e consequências segurança e de
Avaliação de distância e responsabilidade social
Riscos ecológicos, econômicos velocidade
e de saúde no tráfego Compromisso com padrões
Capacidade de auto-avaliação sustentáveis de trânsito e
de meio ambiente

Fonte: SWO – Instituto para Pesquisa em Segurança no Trânsito, Leidschendam, Holanda.

Governo I Educação de trânsito – a grande falta 107


Políticos, trânsito dá voto!
QUEM ATUA NA áREA DA SEGURANçA NO TRÂNSITO não cansa de reclamar da
falta de apoio da classe política, que parece indiferente diante de mais de 40 mil mortes,
500 mil feridos e mais de R$ 30 bilhões despendidos por causa das centenas de milhares
de acidentes de trânsito no Brasil. A reclamação geral é que os políticos não se interessam
“porque trânsito não dá voto”.
Na verdade, se olharmos para as campanhas eleitorais na nossa história, em qual-
quer nível, não será fácil achar algum candidato que tenha escolhido o trânsito como
sua principal bandeira. Nem precisava ser como principal bandeira, bastava ser uma
delas e já estaria bom. Contudo, até onde consigo enxergar, quase nada. Ouvindo meus
contatos pelo Brasil afora, sinto também muito pouco, quase nada.
Desconheço a existência de uma grande pesquisa com políticos para entender melhor
esse fenômeno, mas julgo que se ela for feita vamos ter resultado bastante previsível e
possivelmente frustrante: o próprio povo não tem maior interesse na segurança no trân-
sito. Ultimamente o trânsito vem ganhando espaço no debate nacional por causa do es-
tresse, dos congestionamentos que têm afetado a vida de muita gente e, naturalmente,
dos custos econômicos para os cofres da Nação e para o bolso da sociedade.
“Trânsito, sim, mas segurança no trânsito, ainda não.” Provavelmente esse seria o resul-
tado dessa eventual pesquisa pública. A sociedade está, hoje, mais preocupada com o
tempo de espera, a lotação dos ônibus, a demora em chegar ao trabalho, o congestiona-
mento. Pouco se preocupa com o número e a gravidade dos acidentes. Josef Stalin, revo-
lucionário e ditador russo do século passado, teria dito que “Uma única morte é uma
tragédia; um milhão de mortes é uma estatística”. Como não somos muito dados a es-
tatísticas, e se minha suposição sobre o desinteresse popular sobre segurança no trânsito
for confirmada, pode-se entender os políticos e sua pouca afeição aos assuntos de trân-
sito. É tão fácil assim: “Se o cliente não se interessa pelo produto, o vendedor não será
estúpido de forçar a barra para vendê-lo.”
Se esse meu desapontador diagnóstico estiver correto, a pergunta, então, passa a ser:
“E agora, turma do trânsito, o que fazer?” Acho que o caminho é procurarmos ser mais cria-
tivos para encontrar formas de interessar mais gente e, assim, atrair os políticos para o
tema. Onde tem povo, há interesse de políticos. Faz sentido? É possível? Será tão fácil?

108 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


A raiz do problema está na falta de educação básica do nosso povo, que por sua vez
implica na falta de cultura de segurança. Daí advém nossa pouca preocupação com a se-
gurança no trânsito e a quase indiferença diante da morte de dezenas de milhares de
pessoas. Se fizermos uma detalhada pesquisa de opinião pública em qualquer cidade
brasileira e perguntarmos quantas pessoas morrem por ano na sua cidade, não me sur-
preenderei se a maioria esmagadora não souber responder. Isso vale para a mídia e vale
para o próprio governo (todos os níveis), que tampouco administra com interesse esses
números.
Esse quadro angustiante está na origem deste livro: o país precisa saber mais sobre
trânsito e sobre segurança para melhorar o grau de civilidade ou de convivialidade. A
consequência será obvia: quanto mais soubermos sobre o assunto, mais saberemos como
evitar a sua violência e mais poderemos exigir dos nossos comandantes em termos de
políticas públicas de contenção. É uma simples questão de causa e consequência.
Enquanto a disseminação de cultura de segurança no trânsito não acontece no nível
desejado, resta a iniciativa daqueles que se interessam pela causa de buscar interessar
políticos influentes para que deem mais atenção ao setor. Como retorno, terão maior vi-
sibilidade, mais respeito público e, provavelmente, mais votos.
Na comunidade brasileira ligada à segurança no trânsito, o nome do deputado fe-
deral Hugo Leal é muito respeitado. No meio, ele é uma das raras exceções no universo
político nacional. Fez nome graças, em grande parte, ao trânsito. Advogado formado
pela UFRJ, bacharel em ciências econômicas pela Faculdade Cândido Mendes, especia-
lista em políticas públicas e gestão governamental (UFRJ), havia sido secretário de ad-
ministração e da justiça e depois deputado estadual no Rio de Janeiro. Guindado ao posto
de presidente do Detran-RJ, faz uma boa gestão, marca sua passagem pelo comando do
trânsito fluminense, entra numa campanha para deputado federal e é eleito.
Líder do PSC na Câmara Federal e coordenador da bancada fluminense no con-
gresso nacional, dedica grande atenção ao trânsito e aos poucos vai se tornando o
dono da bola no assunto. Por força do setor e do interesse, torna-se membro da Comis-
são de Viação e Transporte, da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania e da
Comissão de Segurança Pública. Ocupa a presidência da Frente Parlamentar em De-
fesa do Trânsito Seguro. Quando o presidente da comissão, deputado Beto Albuquer-
que, se afasta do cargo para retornar ao Rio Grande do Sul, Hugo Leal assume. Sua
atuação como autor do Projeto de Lei 11.705/08, que estabeleceu a alcoolemia zero
para condutores de veículos, a chamada Lei Seca, torna-o consagrado na área e lhe
dá uma visibilidade até então inimaginada.

Governo I Políticos, trânsito dá voto! 109


Quero entender melhor a relação trânsito-voto. Quero saber
como pensa esse mineiro de Ouro Fino, carioca de coração, 50 anos,
e que conselhos pode dar aos novos (e velhos) políticos sobre como
tratar as coisas do trânsito e da segurança, notadamente em função
de ter sido relator da famosa Lei Seca.

J. Pedro – Trânsito dá voto?


Hugo Leal – Dá visibilidade, conhecimento, discurso. Os três
se transformam em voto. Sozinho, não. No meu caso especí-
fico, o trânsito se transformou em voto, me deu visibilidade,
projeção. Na minha primeira eleição, em 2002, para estadual no Rio
Hugo Leal de Janeiro, tive 30.400 votos, era uma boa votação, mas ainda não militava
no trânsito. Em 2003, fui para o trânsito, no exercício da presidência do Detran. Com
a imersão no tema, o fato de ser um tema universal, valer para qualquer lugar e perpassar
por vários outros ambientes, ganhei muita visibilidade. Minha reeleição foi baseada na
atuação parlamentar, já muito vinculada à questão do trânsito. Essa visibilidade ajuda.
Quando chego em qualquer local, me associam à Lei Seca ou trânsito.
Acho que o que está acontecendo hoje no país, essa movimentação em torno do trân-
sito que gera debates na sociedade, é o mesmo que aconteceu com a ecologia. Dá voto,
mas tem toda uma questão de posicionamento e o trânsito vai pela mesma linha. Você
tem que mostrar a realidade, disposição para lutar pela causa. Mais do que o voto, é a
visibilidade, o discurso, válido para vários segmentos da sociedade, desde que agindo
em favor da sociedade como um todo.

J. Pedro – Tem que estudar?


Hugo Leal – Estudar e se comprometer. Tem que entender, debater, ralar muito. O dis-
curso tem de ser coerente com o que se quer fazer na prática. Eu usei muito a marca o de-
putado da Lei Seca. Como cartão de visita, abre portas. Como diferencial foi muito
importante, porque ninguém tem muita paciência para ficar ouvindo político falar. Essa
associação (com o trânsito) criou uma identidade.

J. Pedro – Foi importante ser relator da Lei Seca, etc., mas depois tem a venda da
ideia, responsável, consequente, que chega realmente ao povão. Como se faz?
Hugo Leal – Não adianta acertar no papel, ter uma lei, ser relator, autor, seja qual for a
posição legislativa, se não tiver engajamento com a matéria, se não souber o que está fa-

110 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


lando. Às vezes arrisco alguns temas dentro da Câmara, mas não mergulho, embora seja
tema que me interesse. Aqui, no trânsito, eu mergulho, ninguém vai falar mais que eu.
Tive oportunidade de alterar a Lei Seca, por iniciativa minha, colhida num debate com o
pessoal da Abramet. Mas se eu não viesse já da militância, não teria condições de fazer
isso. A lei ajudou como identificação, mas a gente continua apurando e discutindo o tema.

J. Pedro – Uma coisa é ter um discurso que atenda à sociedade e outra


é a sociedade responder que entendeu o recado e votar. Como conseguir isso ?
Hugo Leal – Eu não sou unitemático, entro em outros temas. Apenas um quarto da minha
votação foi no Rio, capital, o restante foi no interior. No diálogo com o interior, o eleitor
não vai entender se eu falar só de trânsito. A gente acrescenta a discussão da agricultura,
da agricultura familiar, etc. São outros temas que dão condições de debater, de falar da
vida daquele eleitor, do seu dia a dia.

J. Pedro – Como é que fica o deputado quando chega no bar e o pessoal da


geladinha está por lá e cobra a Lei Seca?
Hugo Leal – Isso acontece. De vez em quando nos deparamos com a questão – às vezes
para o bem, outras para o mal – que a Lei Seca cerceia. Quem gosta de uma cervejinha
acha que é ruim, mas, pelo menos, sabe que o efeito para o qual a lei foi feita é bom, então
não vai criticar. E quem não gosta de beber acha ótimo. Uma pesquisa da Universidade de
São Carlos, a pedido da Anade, feita na época, mostrou que 50% da população não bebe
(álcool). Dentro dos outros 50%, apenas 15% fazem uso de álcool e são habilitados a dirigir,
mas nem por isso quer dizer que sejam contra. O mais importante foi a ideia de que a lei
tenha sido a favor da vida das pessoas. Ninguém é contra ninguém, mas do direito e a
favor da vida das pessoas. Assim, virei o deputado que defende a vida, o mote foi excepcional.
Outra coisa interessante quanto à Lei Seca é que nem todos associam com o trânsito. Muitas
vezes você vê o cara no botequim, reclamando da lei, e ele nem sequer dirige.

J. Pedro – Quais foram os seus temas de campanha nas eleições anteriores?


Hugo Leal – No primeiro mandato, em 2002, falava em nome da renovação. Já em de 2006,
eu era o candidato do ano, meu número também era 2006, já tinha vindo do Detran, o
trânsito era foco, a segurança. Mas usei muito o trânsito ligado à questão da administra-
ção, mudança de comportamento do Detran, atendimento, agilização dos serviços, pres-
tação de serviços para a sociedade. Ao assumir o mandato na Câmara, em 2007, a
primeira comissão que escolhi foi de Viação e Transporte.

Governo I Políticos, trânsito dá voto! 111


J. Pedro – Quanto a divulgação pela imprensa ajudou?
Hugo Leal – O grande elemento agregador de sucesso da Lei Seca, quando nós não tí-
nhamos nem equipamentos para fazer a fiscalização, foi, num primeiro momento, a com-
preensão da sociedade por conta do trabalho dos meios de comunicação que, durante
três ou quatro meses, falavam diariamente do tema e predominantemente favorável.
Havia manifestações que mantinham o debate aquecido também. A imprensa foi um
grande impulsionador para que a lei pegasse, porque não houve um plano de comuni-
cação arquitetado, pronto.

J. Pedro – O que explica o fato de o Rio de Janeiro aparecer tão mais do


que os outros estados no caso da Lei Seca?
Hugo Leal – Já vínhamos trabalhando e falando insistentemente sobre os acidentes
de trânsito. Seis meses após a lei, já tinha ocorrido uma redução dos acidentes no
Rio. O dr. Marcos Musafir, que havia sido presidente da Sociedade Brasileira de Or-
topedia e Traumatologia, atuava na Organização Mundial da Saúde, em Genebra,
veio carregado de informações e fez contato com o secretário de governo do RJ, Wil-
son Carlos. O Musafir mostrou a proposta de fiscalização que já existe no manual da
OMS, com todas as sugestões técnicas, tipo de abordagem, como fazer, quantas por
ano... O Wilson Carlos comprou a ideia e o governo resolveu colocar na rua. Ficou
na esfera do gabinete do governador, não sofreu influência política da PM ou do De-
tran. Essa foi a grande diferença. E começou a dar certo porque ficou nesse nível. O
governo reuniu todas as autoridades policiais numa operação só, num só comando,
e se desse problema não seria a qualquer instância que iria reportar, mas direto ao
governador.
A imprensa adorou e a questão virou motivo de constrangimento para muitos barra-
dos, muitos deles importantes. Se o cara é parado numa blitz e enquadrado no erro, pode
ser a autoridade que for, não rateia, porque sabe que não tem choro, entrega a carteira e
vai para casa sem falar nada. Eu conheço dois desembargadores que tiveram suas car-
teiras recolhidas. Se todas as blitze fossem dessa forma, a coisa seria diferente.

J. Pedro – Como vê essa característica marqueteira da atuação da lei no Rio


sobre uma ação que deveria ser efetivamente social?
Hugo Leal – Acho fundamental. A população tem que perceber que está valendo para
todo mundo. Esse é o grande diferencial e motivo de alegria para as pessoas – saber que
não há tratamento diferenciado.

112 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


J. Pedro – Trânsito também dá voto quando deputado propõe redução,
parcelamento de multas?
Hugo Leal – Esse tipo de trânsito dá algum voto, porque é demagógico, quando o cara diz
que vai parcelar ou extinguir multa, acabar com radar. Uma coisa delicada é dizer que defende
uma punição mais rigorosa no trânsito, isso não ajuda sob o ponto de vista eleitoral. Mas ainda
creio que vale a pena ser coerente, consistente com suas promessas de campanhas.
Assim que me familiarizei com a função de deputado federal e procurei ficar na Co-
missão de Viação e Transporte, percebi que grande parte dos projetos que tramitam na
Comissão não tem os fundamentos necessários para uma aprovação responsável. Por
isso, a gente tinha que estar atento para poder neutralizar aquele mal ou então trabalhar
num voto substitutivo para debater com o voto do relator. A proposta era ficar atento
aos descaminhos, para não deixá-los passar.

J. Pedro – A sociedade é coerente?


Hugo Leal – A sociedade trata o deputado, o vereador, como se fosse alguém diferente,
reclama do nível dos políticos. Mas eles saem do meio do povo. Como uma parcela con-
siderável da sociedade não faz esse debate mais aprofundado, político, de representação,
não fica muito comprometida e aí vota em qualquer um. Então, muitas vezes não é coe-
rente, embora estejamos observando melhorias ultimamente.

J. Pedro – Como um deputado pretende se eleger tendo o trânsito como fundamento,


se trânsito não é prioridade neste país?
Hugo Leal – Primeiro você se elege com todos os seus discursos, depois mostra que o
trânsito é prioridade. Foi o que fiz nas últimas eleições, me elegi representante dessa so-
ciedade e, então, elegi o trânsito como minha prioridade. Se não elegê-lo como prioridade
no meu mandato, como discutir com o governo para ser prioridade? Tanto que na minha
prioridade eu acrescentei também o viés do transporte, da mobilidade. Outra coisa: fazer
política de redução de IPI para aumentar a venda de veículos é política burra, estimular
a venda de veículos num país com o mesmo sistema viário de 20, 30 anos atrás... Vai re-
sultar num colapso.

J. Pedro – E por que trânsito não é prioridade para o governo?


Hugo Leal – É corriqueiro, é banalizado. Morrer no trânsito parece ter virado coisa normal.
Não é prioridade porque encaramos a violência no trânsito como uma rotina, além do que
é uma responsabilidade partilhada, em que muitos mandam e ninguém toma conta...

Governo I Políticos, trânsito dá voto! 113


J. Pedro – Os países desenvolvidos tratam o trânsito com uma visão sistêmica.
Na Suécia, a violência no trânsito é uma questão ética...
Hugo Leal – Isso é a sociedade no paraíso. Esse é um raciocínio corretíssimo e é o que
deveria imperar aqui também. Tenho falado sempre... Por que o acidente aconteceu? Não
se trata de perícia, mas da responsabilidade de cada um pelo que aconteceu. Num aci-
dente aéreo se investiga tudo, no de trânsito não; de forma precária se investiga a via, o
veículo. Quanto ao condutor, vão verificar a condição dele ali. Não querem saber como
era a vida dele, como conseguiu a carteira, os fatores que o levaram àquela situação.
Num acidente de trânsito, o tratamento é dado ao fato e não ao que gerou o fato. Esse é
o maior problema que temos hoje. Temos que chegar à causa. Não se investiga e fica só
na culpa do motorista.

J. Pedro – Como vai terminar a Década de Ação para um Trânsito Seguro


se mal começou no Brasil?
Hugo Leal – Acredito que vamos conseguir reduzir em 10%, 15%. O governo vai entrar
na Década, mesmo que tardiamente, e isso depende muito da ação parlamentar. Sou oti-
mista em relação ao futuro do país. O trânsito ainda não é prioridade, mas avançou muito
nos últimos anos. Minha expectativa é que ainda com a presidente Dilma teremos uma
substancial redução de acidentes e de fatalidades. Foi a primeira vez que vi alguém fa-
lando em álcool e direção na TV – e ela é decidida.

J. Pedro – Como vai ficar o trânsito para seus filhos e netos?


Hugo Leal – O maior problema é a mobilidade. Não sei como a gente vai conseguir andar
em breve, porque o número de carros é muito grande e sempre aumenta. Quanto à vio-
lência, as mensagens e quantidade de informações ajudam a futura geração a criar uma
cultura mais responsável. A nossa geração já tá contaminada, somos sobreviventes.

114 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Lei Seca –
O Rio fez a diferença
O DIA 19 DE JUNHO TEM DIFERENTES SIGNIFICADOS para diferentes nações. No
Paraguai, é o Dia da árvore; na Hungria e no Kuwait, é o Dia dos Independentes; nos Es-
tados Unidos, Dia da Libertação dos Escravos; na Argélia, Dia da Revolução, e por aí vai.
No Brasil descobre-se, entre outras comemorações, que é o Dia do Cinema Brasileiro,
tributo à data da primeira filmagem da baía da Guanabara, obtida com uma câmera Lu-
mière pelo primeiro cineasta brasileiro, Afonso Segreto, a partir do navio francês Brésil
em 1898, quando retornava de viagem à Europa.
Pois bem, a partir de 2008, o 19 de junho ficará marcado também como o Dia da Lei
Seca, que fixa tolerância zero em relação ao nível de alcoolemia no sangue por parte dos
motoristas. Lançada pelo então ministro da justiça, Tarso Genro, com grande estarda-
lhaço na imprensa, a lei realmente enquadrou muita gente que bebia e dirigia sem se
preocupar.
Fiscalizações como raras vezes se viram no Brasil, com uso de bafômetros, multas
pesadas, apreensão do veículo e da carteira de habilitação marcaram de maneira muito
forte o início da operação, provocando receios e justificando
alteração no comportamento dos motoristas. Afinal,
o artigo 276 do CTB passou a ter a seguinte
redação: “Qualquer concentração de álcool por
litro de sangue sujeita o condutor às penalida-
des previstas no art. 165 deste Código.” Era
uma decisão ousada, mas provavel-
mente necessária para impactar a socie-
dade e provocar uma correção de rumos
na perigosa relação bebida e direção.
Ousada porque, naquela ocasião,
eram raros os países que haviam che-
gado ao limite extremo da tolerância zero.
Governos estrangeiros que são referências

Governo I Lei Seca – O Rio fez a diferença 115


no mundo da segurança no trânsito como Suécia, Holanda, Inglaterra e mesmo Estados
Unidos, têm seus índices menos rígidos.
No caso brasileiro, na minha leitura, a medida se apoiava em dois fundamentos im-
portantes: primeiro, o suporte oferecido pela área médica, notadamente a Associação
Brasileira de Medicina do Tráfego (Abramet), que provou por estudos que não há limite
seguro de alcoolemia senão zero, e, segundo, a necessidade de provocar um choque na
sociedade para virar o jogo. Bingo!
Parecia que o país acordava de um porre e, ainda zonzo, perdido, partiu para a busca
de soluções. Como fazer para quebrar um hábito tão natural como sair para jantar ou
tomar uma cerveja com amigos e voltar para casa dirigindo? Continuar, equivaleria à
grande chance de ter sua carteira de habilitação confiscada pela polícia numa blitz. Táxi,
ônibus, carona, tudo fora dos hábitos? O quebra-cabeças tinha sido formado e necessitava
de soluções.
Respostas foram surgindo: a solução nos Estados Unidos era o Motorista designado;
em alguns países europeus, era Bob, o amigo que acompanhava a turma e não beberia
álcool para conduzir o veículo na volta; cada país tinha sua saída, que passava necessa-
riamente pela escolha de alguém que levaria o carro para casa sem beber.
No Brasil surgiam caminhos: lembro que a Polícia Militar de Belo Horizonte tinha um
simpático serviço chamado Disque pileque, em que o motorista solicitava, do estabelecimento
em que estava, a vinda de um guarda da PM que iria conduzir o carro; restaurantes/bares
colocavam motoristas ou carros à disposição dos clientes. Surgiu também o Amigo da vez,
aquele que se absteria de beber álcool e assumiria o volante na volta para casa. As blitze na
maioria das cidades e, principalmente, a grande cobertura da imprensa, se incumbiriam de
criar um ambiente definitivo que se prenunciava como “desta vez, vamos!”.
Ainda não foi dessa vez. Um ano depois, se tanto, e a turma já estava percebendo
que a Lei Seca, tampouco, era para sempre, pelo menos para grande parte do país. A fis-
calização foi afrouxando; as blitze tornaram-se menos intensas, quando não desapare-
ceram em muitas cidades; os responsáveis pela lei mudaram de cargos e a ação perdeu
o eixo e a sustentação maior, notadamente pelo andar de cima. A luta prosseguiu – e con-
tinua até hoje – nas mãos dos sargentos (operadores do cotidiano), mas coronéis e gene-
rais saíram da batalha. Pena!
Pena, porque o país tinha dado um passo extraordinário para melhorar o quadro
dos acidentes de trânsito devido às consequências da bebida. Com a opinião pública e
os meios de comunicação fortemente a favor, a julgar pelas reações dos primeiros meses,
o jogo já estava praticamente ganho. Ninguém parecia achar que pudesse dar errado, já

116 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


que, apesar de alguns probleminhas no começo, o plano tinha todas as condições de ser
bem-sucedido. Por que não deu?
Depois que o presidente Jânio Quadros renunciou à Presidência da República, sete
meses após a posse, alegando forças ocultas, parece que elas permaneceram sobrevoando
Brasília e o Brasil e acabaram se transformando num inexplicável Triângulo das Bermu-
das, num mistério que ninguém consegue elucidar. Acompanhe esta linha do tempo que
fiz, claro, baseado na minha percepção de como vivenciei os fatos:

n País tem um índice alarmante de acidentalidade no trânsito;


n Álcool é responsável por mais da metade dos acidentes de trânsito ocorridos no Brasil
e aparece em 70% dos laudos cadavéricos das mortes violentas;
n Custos sociais e econômicos são inaceitáveis;
n Governo aprova a Lei Seca, para combater os abusos;
n A opinião pública – incluindo meios de comunicação – aprova;
n Execução inicial é bem-sucedida;
n Sociedade, principalmente os que bebem e dirigem, leva choque e começa a alterar
comportamento;
n Bons resultados com a redução dos acidentes são promissores;
n De repente, o cerco, que estava se fechando, se abre, abranda a fiscalização, as mudanças
de atitudes da sociedade vão retornando ao que eram antes da lei;
n País reencontra os padrões antigos de acidentalidade e até os supera;
n Em 2007, números de mortos foi de 37.403; em 2010, chegou a 40.989;
n Há poucas exceções entre os estados que continuam a cumprir a lei.

Aí me veio à lembrança o 19 de junho, como Dia do Cinema Brasileiro. Minha espe-


rança é que não tenha sido o dia do filme de ficção e que a realidade ainda possa ser reto-
mada. Ou, dito de outra forma, tomara que o que tenhamos visto no dia 19 de junho não
tenha sido apenas um trailer do filme e que agora ele possa ser rodado por inteiro.
É possível que isso aconteça? É razoável supor que o governo retome o controle efe-
tivo da situação e reponha as coisas nos devidos lugares? Ora, se já fez uma vez, por que
agora, de forma mais organizada, não o faria de novo? Os argumentos estão todos aí e a
bênção da opinião pública é garantida.

Governo I Lei Seca – O Rio fez a diferença 117


Não se deve dizer que a Lei Seca não tenha dado sua contribuição. Pelo contrário,
deu e grande. Além dos resultados que atingiu na época, serviu, por exemplo, para mos-
trar que quando o governo quer fazer alguma coisa e a sociedade entende o gesto, vai
para a frente.
Tampouco se deve dizer que ela esteja totalmente inativa. Alguns estados, ou pelo
menos algumas cidades, continuaram o trabalho e estão obtendo resultados interessan-
tes. Pelo que pude observar, acabou sobrando para o Rio de Janeiro as honras de salvar
a pátria no que diz respeito à aplicação da Lei Seca no Brasil. Justamente a terra do
samba, das praias famosas, dos botequins lotados foi a que deu o melhor exemplo bra-
sileiro de aplicação da lei de 19 de junho de 2008. Ela havia começado com o mesmo
vigor em outras capitais como São Paulo, Brasília, Belo Horizonte, Porto Alegre, Forta-
leza, Recife, Curitiba, Salvador.
Essas capitais, porém, com maior ou menor intensidade, foram encolhendo na fis-
calização, algumas delas desativando as blitze quase que completamente, embora não
seja admitido publicamente. Pena, realmente, que não tenha havido cobrança firme para
que não fossem descontinuadas.
Da parte do governo federal, faltou maior envolvimento no comando da operação,
maior apoio de comunicação, campanha publicitária forte para manter vivo o interesse
das cidades e da sociedade. Pelo lado da maioria dos estados e capitais, faltou o alto co-
mando do executivo comprar a ideia e comandar um amplo, sistemático e permanente
esforço. Todos sabem que se não houver um comprometimento dos principais dirigentes
do estado ou do município dificilmente o programa terá chance de sucesso.
E é precisamente esse ponto que fez com que o Rio de Janeiro se tornasse no único
estado que efetivamente se destacou na aplicação da Lei Seca. O Rio soube explorar a
lei muito bem. Quando o governador do Rio, Sérgio Cabral, foi alertado de que o nú-
mero de vítimas do trânsito no seu estado era alto demais e teria chance de reverter o
jogo aproveitando-se da oportuna Lei Seca que tinha sido anunciada, não teve dúvida:
montou uma operação bem estruturada, colocou a ação sob o comando da Secretaria
de Governo e teve a habilidade de criar um grande envolvimento com a sociedade via
meios de comunicação.
Tudo começa com um golpe de sorte. Marcos Musafir, carioca, ex-presidente da So-
ciedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia estava retornando ao Rio após contrato
de dois anos com a Organização Mundial de Saúde, em Genebra, Suíça, trazendo farto
material sobre mobilização da sociedade, realização de blitze de trânsito para o combate
ao uso de bebida alcoólica por parte dos motoristas. Mostrou o material ao secretário de

118 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


governo do Rio, Wilson Carlos Carvalho, que
imediatamente comprou a ideia e vendeu-a ao
governador Sérgio Cabral.
Cabral não só apoia a ação como indica ele
próprio, Wilson Carlos, para coordenar o pro-
grama fluminense. Carlos passa, então, a traba-
lhar com os subsecretários, Carlos Alberto Lopes
e Reynaldo da Silva Braga. A coordenação execu-
tiva da Operação Lei Seca fica com o secretário Car-
los Alberto, mas envolve outras secretarias e outros
órgãos do governo do estado do Rio, como o Detran.
A operação não se caracterizará apenas pelas
blitze de rua, mas será acompanhada de palestras nas
escolas, faculdades, empresas, onde for possível e,
como nas ruas, utilizando como motivadores cadeirantes vítimas de acidentes de trânsito.
O depoimento dos cadeirantes – como se envolveram e como saíram dos acidentes – é um
ponto fortíssimo desses encontros. Na abordagem dos motoristas, nas blitze, nos bares, os
cadeirantes são peças de fundamental importância para convencer quem estiver bebendo
a não dirigir. De verdade, constituem-se num dos pilares do sucesso da operação.
O major Marco Andrade, há 19 anos na PM do Rio, há quase três anos coordenador
geral e atual porta-voz do projeto Lei Seca RJ, me diz que esse é um dos projetos de maior
sucesso e aceitação na sociedade fluminense. Pesquisa de 2012 mostra mais de 90% de acei-
tação pela sociedade. Os resultados divulgados pelo Corpo de Bombeiros – Samu e Insti-
tuto de Segurança Pública mostram redução nos acidentes noturnos. O governo vê o
programa com entusiasmo, porque funciona, tanto que foi ampliado em 2012, com o au-
mento do efetivo, que passou de 200 para 250 integrantes, que trabalham em 15 equipes.
Além de atuar com grande ênfase na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, com o recente
aumento do efetivo passou a atender também o interior do Estado com regularidade.
Em 2009, 130 mil veículos foram fiscalizados, número que dobrou nos dois anos se-
guintes. Nesse particular, um detalhe importante: muitos dos passageiros dos veículos
fiscalizados estavam em visível estado de embriaguês, mas os motoristas, não. Sinal de
que a ação cumpre corretamente seu papel de informar, educar e mudar comportamento.
As blitze acontecem todos os dias e em variados pontos do Rio de Janeiro, sempre
comandadas por um oficial superior da Polícia Militar e sob a coordenação geral do
major Andrade.

Governo I Lei Seca – O Rio fez a diferença 119


Quais são as chaves do sucesso no Rio de Janeiro? O major dá algumas pistas: “Pri-
meiro é o interesse do governo. Ser encarado como política pública de governo é
fundamental. Segundo, é o caráter permanente das ações, tanto de fiscalização
quanto de prevenção. Para mudar hábitos não adianta ser esporádico, precisa ser
todo dia, senão a sociedade passa a entender que no feriado não pode, mas no outro
pode. Se não for todos os dias, não muda o hábito. O terceiro viés responsável pelo
sucesso é a forma como foi realizado o trabalho de prevenção, todo alicerçado sobre
a vítima do trânsito.” Para ele, “a ideia é realmente chocar a sociedade e mostrar que
o problema existe, é real e pode acontecer com qualquer um. E aí entra o trabalho
dos cadeirantes, todos vítimas de trânsito e da combinação álcool/direção. Além
disso, tem todo um trabalho de comunicação e marketing. Hoje nenhum morador
do Rio pode alegar o desconhecimento da operação. Nós temos trens, metrôs enve-
lopados com a marca do programa, outdoors e até um balão foi usado durante o re-
veillon e o carnaval”.
Um ponto que me chama a atenção é a apresentação da operação, o discurso, que
precisa ser repetido por todas as equipes. O major Marcos explica que “essa orientação
é toda feita dentro da Secretaria de Governo, discutida com o coordenador geral do
projeto, a coordenação de educação e coordenação geral de logística. Depois de ali-
nhado aquilo que consideramos melhor, passamos para toda a estrutura para conso-
lidar”. Ele explica ainda que a assessoria de imprensa da Lei Seca é a mesma assessoria
do governo de estado. A propaganda da operação é definida, acompanhada e alicerçada
com a comunicação do estado. “A ideia é alinhar os discursos”, ressalta major Marcos.
“Não há qualquer interferência externa ou contratação de outros profissionais. E o
porta-voz da operação sou eu”, conclui.
Tenho curiosidade de saber como resolveram o grave problema das carteiradas, as
autoridades que se julgam acima da lei e não admitem ser barradas numa blitz. O noticiá-
rio da imprensa sobre as ações no Rio já responde. De vez em quando tem um peixe
graúdo caindo na rede das blitze, um famoso cantor, jogador de futebol, artista de TV,
membros do Judiciário e, naturalmente, políticos. O major conta que “a resistência
existe, mas o trabalho foi sério, os resultados já aparecerem e aí as próprias estruturas
de poder tiveram que se curvar e as resistências foram vencidas”. Segundo ele, a de-
terminação do secretário é de que os agentes cumpram a lei, conforme previsto, para
todo mundo, sem exceção. Tivemos até um subsecretário de estado que foi exonerado e
exemplos assim nos dão fôlego para continuar. Tivemos figuras importantíssimas, como
um senador da república, que tentou, mas não levou.

120 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Marcos Andrade faz questão de diferenciar o trabalho de campo, que redunda em
visibilidade do sentido de marketing da operação: “Os números falam por si, só apre-
sentamos os resultados e pela voz de quem tem autoridade pela área: os próprios
hospitais, a Secretaria de Saúde, etc. Desde o início da operação Lei Seca, nós fisca-
lizamos mais de 800 mil veículos, destes, em 56.680 os condutores estavam sob in-
fluência de álcool. Se nós tiramos os bêbados da rua é porque eles estavam lá e dirigir
embriagado, por lei, é crime. O Estado não está fazendo um favor para a sociedade,
mas cumprindo uma obrigação determinada por lei. Isso não é marketing.”
Quero saber quanto custa a operação Lei Seca no Rio de Janeiro. Não tem caixa preta:
o orçamento total de 2011 foi de R$ 9,6 milhões em todos os níveis, de pessoal, logística,
equipamentos, veículos, etc. Todo o valor é repassado pelo Detran, que está presente na
operação. Na verdade, é ele que lavra o auto de infração. A operação, hoje, é autossus-
tentável.
Depois de acompanhar uma noite de operação no Rio, de ver o interesse e o entu-
siasmo das equipes, não há como não fazer a intrigante pergunta: se dá certo no Rio, por
que não dá certo em outros Estados?
Marcos explica que já receberam visita de 13 estados, para ver como funciona o pro-
jeto, buscar o diferencial. “Temos visto estados replicando ações nos mesmos moldes
que o RJ, como Pernambuco, que também tinha ações isoladas e hoje está integrando
Detran, PM e Secretaria de Saúde, com fiscalização e prevenção, inclusive com os ca-
deirantes. Também estiveram nos visitando e usaram parte do nosso modelo os es-
tados de Minas, Goiás, Rio Grande do Sul.” E continua: “Percebemos que muitas vezes
só ocorre a fiscalização, não há trabalho preventivo, e ainda assim, são trabalhos iso-
lados: só o Detran, ou só a PM... E aí batem nos entraves de estrutura da máquina ad-
ministrativa.”
A minha conclusão é que falta maior interesse, empenho, por parte do chefe do exe-
cutivo, seja ele governador ou prefeito, sem falar do governo federal. Quando o chefe
quer e se empenha, a coisa sai. Aí quem ganha não é apenas o chefe, ou seu governo,
mas toda a sociedade.

Governo I Lei Seca – O Rio fez a diferença 121


“ Informação
é o oxigênio
da idade

moderna
(Ronald Reagan, ex-presidente dos Estados Unidos)

Informação – Dicionário Houaiss, substantivo feminino. 1. Ato ou efeito


de informar(-se); informe; 2. Notícia, conhecimento, ciência; 3. Conjunto
de conhecimentos reunidos sobre determinado assunto ou pessoa; 4.
Fato de interesse geral a que se dá publicidade.
Informação – Webster’s Encyclopedic Unabridged Diccionary of the
English Language. 1. Conhecimento comunicado ou recebido sobre um
fato particular ou circunstância; 2. Qualquer conhecimento ganho através
de comunicação, pesquisa, instrução, etc.; 3. A arte ou o fato de informar.
INFORMAÇÃO I
Por que informação:

Neste capítulo, a intenção é mostrar a

importância da INFORMAÇÃO a serviço da

segurança no trânsito. Meios de comunicação

geralmente são utilizados para veicular

programas, campanhas e informações, mas

algumas vezes os próprios veículos são os

promotores dessas ações. Conto aqui

casos de campanhas de informação, programas

de mobilização da sociedade e projetos de

comunicação para resolver problemas

pontuais em regiões do país.


Um milhão pressionando
pela segurança no trânsito
FOI A MAIOR MOBILIZAçãO DE PESSOAS QUE EU Já VI NA NOSSA HISTóRIA,
depois das Diretas já, e, de longe, o maior grito em favor do trânsito já dado na história
deste país. Mais de um milhão de pessoas se uniram numa grande corrente, pressio-
nando o governo federal pela duplicação da BR 101 no estado de Santa Catarina. A
proeza foi conseguida em 1995, pelo grupo de mídia RBS, que tem redes de televisão,
jornais e emissoras de rádios no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina.
A mobilização era a parte mais visível de uma estratégia organizada pelo comando
da RBS-SC, baseado em Florianópolis, para unir toda a sociedade catarinense e pressio-
nar o governo federal para a duplicação da BR 101 no território catarinense, promessa
de longos e distantes carnavais. A partir da criação de um forte bloco político juntando
governo e os parlamentares do estado, principalmente em Brasília, o plano era adicionar
ao movimento todas as entidades de maior representação – como indústria, comércio,
lideranças regionais, comunidades cortadas pela BR 101 –, assim como as demais cida-
des. Todos, indistintamente, eram vítimas da violência na estrada e, consequentemente,
seriam beneficiários dos resultados positivos da mobilização.
Motivos para tal movimento eram por demais conhecidos, sobretudo pela popula-
ção, não apenas do estado, mas de todo o Sul e Sudeste do país. Santa Catarina é passa-
gem obrigatória de mercadorias para o Extremo Sul brasileiro e todo o Cone Sul –
Uruguai, Argentina e Chile. Tem uma economia expressiva, considerando seu tamanho
e população. Além do mais, tem belezas naturais, praias magníficas, serras geladas que
atraem não apenas os brasileiros como também enorme quantidade de turistas dos países
vizinhos. Estimava-se, na época, que 1,5 milhão de turistas visitavam o estado – e muitos
não voltavam às suas bases, porque morriam nos acidentes rodoviários.
Se até hoje nossas estatísticas continuam deficientes, imagine como deveriam ser há
20 anos. Com a BR 101 cortando 466 quilômetros do território catarinense em pista sim-
ples, o número de acidentes fatais ao longo da rodovia era alto demais, fora até mesmo
dos padrões brasileiros, demasiadamente elevados. A 101 havia sido projetada para 4.600
veículos/dia, mas estava saturada em quase 10 vezes mais há tempos. Em 1993, a Polícia

124 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Rodoviária Federal fez levantamento sobre o morticínio na pista e constatou que no pe-
ríodo de 1983 a 1992 morreram 28.257 pessoas em acidentes na rodovia. A região da
Grande Florianópolis concentrava então o maior número de acidentes.
O ponto interessante e curioso é que tudo começou com a carta de uma
leitora – Margot Krause Teixeira –, que residia em Tubarão, no sul do estado.
Ela, angustiada com o número de acidentes e de mortes na BR 101, escreveu
uma carta ao presidente da RBS-SC, pedindo que fizesse alguma coisa e
sugerindo um abaixo-assinado da população.
Pedro Sirotsky, então vice-presidente da RBS para o estado de
Santa Catarina, comprou a briga e decidiu agir. Reuniu sua equipe
e juntos concordaram que era hora de organizar um grande
mutirão para fazer a duplicação acontecer. Afinal,
era um sonho antigo dos catarinenses. Os esforços
das forças políticas até então haviam se revelado in-
suficientes e estava claro que, sem pressão popular, o
governo não tomaria providências. Era preciso que al-
guém que tivesse liderança e credibilidade assumisse o comando.
Grupo tradicional gaúcho, expandindo suas operações no es-
tado, a RBS já tinha feito história no Rio Grande do Sul pelas múltiplas e bem-sucedidas Margot

campanhas comunitárias desenvolvidas. Comandar uma ampla mobilização em Santa


Catarina, para quem já tinha a RBS-TV, o Diário Catarinense e a Rádio CBN, não era um
desafio de meter medo. O plano começa a sair do papel e ganha força.
Políticos em geral gostam de holofotes, câmeras e microfones e nada disso iria faltar
na batalha. Assim, a adesão de autoridades do governo, deputados, senadores, foi ime-
diata, tanto pela causa quanto pela oportunidade. O envolvimento das lideranças em-
presariais era mais que óbvia, bem como da sociedade como um todo e das comunidades
do entorno da rodovia em especial.
Enquanto se formava a grande aliança catarinense, a RBS constituía um grupo in-
terno de trabalho, formado por profissionais de comunicação, para levantar o que fosse
necessário de informação para alimentar a operação e desenhar um projeto minucioso.
“É preciso munição, se estamos indo para a batalha”, me dizia um dos jornalistas do
grupo de mobilização.
Cada um dos veículos de comunicação do grupo – RBS-TV, Diário Catarinense e Rádio
CBN – planejou um esquema próprio de cobertura para a operação, abrindo espaços ab-
solutamente fora dos padrões para discutir o assunto. Por exemplo, o Diário, conhecido

Informação I Um milhão pressionando pela segurança no trânsito 125


como DC, fez vários cadernos especiais sobre a BR 101, intercalando reportagens e men-
sagens – comerciais ou não – do setor privado e comunidades interessadas. A TV abria es-
paço nos seus noticiários, especialmente no seu Jornal do almoço, de grande audiência, para
repercutir as ações que estavam em andamento. A CBN, por sua vez, com seu imediatismo,
transmitia os acontecimentos na medida em que ocorriam.
Não terei espaço para reproduzir aqui os anúncios mais sugestivos que vi, mas usarei
pelo menos o título de alguns deles para dar uma ideia do clima que reinava entre os ca-
tarinenses na luta pela duplicação.
Na verdade, na medida em que se criava pressão sobre o governo federal pela dupli-
cação, criava-se simultaneamente outro tipo de pressão (além de mais responsabilidade)
sobre o bloco de autoridades, parlamentares e lideranças catarinenses que faziam parte do
movimento. Era uma caminhada sem volta, não podia dar errado.
O trabalho durou mais de um ano. Começou no primeiro semestre de 1994 e esten-
deu-se até a segunda metade de 1995, quando foi feito anúncio formal de que a obra seria
iniciada. Consumiu horas e horas de reuniões, eventos, contatos políticos, negociações de
toda a ordem – havia entraves ambientais para certos trechos da rodovia, por exemplo.
Dia 8 de junho marcou praticamente o final da jornada com dois fatos marcantes. O
primeiro foi o abraço na BR 101, quando, entre 9h e 9h30 da manhã, milhares de catari-
nenses foram para suas margens e, de mãos dadas, deram um grande abraço na estrada
que, quando iniciada, era famosa por ser a Rodovia do progresso e havia se transformado
na Rodovia da morte. A televisão transmitiu ao vivo a mobilização.
O segundo evento importante do dia aconteceria horas mais tarde ao abraço, quando
dirigentes da RBS, do governo, lideranças políticas e empresariais do estado entregavam
ao então presidente Fernando Henrique Cardoso mais de 500 mil assinaturas de catari-
nenses que pediam a duplicação da estrada, somando-se às outras 500 mil já entregues
em outubro de 1994. O evento também foi transmitido diretamente pela TV e pelo rádio,
para a alegria do povo catarinense.
No final a conquista foi pela metade, porque a duplicação autorizada correspondia
à metade do que tinha sido solicitado. O então ministro Odacir Klein, dos Transportes,
confirmou a construção da parte norte da BR 101, isto é, o trecho que começava em Ga-
ruva, na divisa com o Paraná, até Florianópolis – num total pouco superior a 200 km.
Restavam outros 200 km até a divisa com o Rio Grande do Sul, que ficou “para mais tarde”
(até hoje não foi completado, embora falte pouco).
De qualquer forma, aquela conquista lavou a alma do povo catarinense e resgatou sua
autoestima, muito em baixa em razão dos insucessos ao longo das últimas décadas. Serviu

126 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


também para mostrar que, sim, “o povo unido não será vencido”, desde que tenha planeja-
mento, instrumentos (recursos) e liderança para seguir. O segredo da vitória da duplicação
da BR 101 em Santa Catarina foi o fato de a liderança do processo ter ficado com o grupo
de comunicação RBS, fora das lides governamentais, políticas e talvez até
industriais, comerciais e agrícolas do estado. Infelizmente o medo de que

‘‘
alguém possa se aproveitar mais da posição de liderança tem sido a ex-
plicação do porque tantos movimentos bem intencionados e, eventual- O segredo da
mente, bem montados, resultam em fracasso. Quando o comando passa vitória da duplicação
a ser impessoal (no caso catarinense ficou com o Grupo RBS, não perso- da BR 101 em Santa
nificado na figura do seu executivo principal, Pedro Sirotsky) parece que Catarina foi o fato de
as coisas têm mais chances de ir adiante. a liderança do processo
Quando a causa vale, as pessoas se dispõem mais a colaborar. Essa afirma- ter ficado com o grupo
ção vale tanto para os que se envolvem profissionalmente quanto para os que de comunicação
entram voluntariamente. Observa-se com clareza o espírito colaborador, a dis- RBS, fora das lides
posição de esmerilhar as ideias para ampliar o processo e mesmo de conclamar governamentais,
outras pessoas a fazerem mais pela causa. Foi o que percebi conversando com políticas e talvez até
vários jornalistas da TV, do jornal e da rádio nos três dias que passei em Floria- industriais, comerciais
nópolis para me inteirar mais do caso. e agrícolas do estado
Da mesma forma, esse sentimento era visível nos contatos fora da
RBS – industriais, comerciantes, líderes de entidades, ONGs e mesmo
pessoas da sociedade. O problema da BR 101 não era isoladamente de ninguém, mas de
todos, e era importante que todos participassem. Nesse caso, a sensibilidade de quem
comanda o processo é vital para o sucesso da empreitada.
Falei com Margot Krause Teixeira, a pessoa que começou todo o processo. Contou-
me que, de fato, não apenas escreveu ao diretor da RBS, mas em seguida telefonou para
fortalecer a sugestão de comandar uma mobilização no estado. Como a ideia foi imedia-
tamente aceita e logo em seguida implementada, Margot, que era fiscal da Receita Fede-
ral, também foi a campo para dar sua contribuição.
Como trabalhava muito em Brasília e conhecia a bancada catarinense, independen-
temente das conversações políticas do então governador Antonio Carlos Konder Reis,
ela procurou pessoalmente cada um dos representantes do estado no Congresso Nacional
para sensibilizá-los para a causa. Da mesma forma, como mantinha contatos muito pró-
ximos com prefeitos catarinenses, aproveitava as oportunidades para reiterar a impor-
tância do movimento. Assim o fez, anonimamente, com líderes empresariais que
conhecia e cujo envolvimento pudesse somar ao processo. Visitou supermercadistas,

Informação I Um milhão pressionando pela segurança no trânsito 127


shopping centers (não havia muitos na época), foi às chefias dos principais bancos ins-
talados ali, chegou a falar com um assessor do bispo em Florianópolis para sugerir a in-
clusão do tema nos sermões das igrejas e ao mesmo tempo solicitar a colocação de um
ponto para coletar assinaturas para o abaixo-assinado que estava em pleno andamento.
No final, vendo (parte da) duplicação acontecer, sentiu-se aliviada e feliz, porque a so-
ciedade conseguiu mostrar sua força, mas ressalta que, sem a adesão e o comando do
diretor da RBS, dificilmente o assunto sairia do lugar.
Há uma concordância geral na importância do trabalho do Grupo RBS, mas todos
reconhecem que o conjunto da sociedade catarinense se envolveu na operação. Na ver-
dade, Dauzeley Benetton, presidente da Associação Catarinense dos Engenheiros (ACE)
crê que a duplicação estava bem encaminhada no Congresso Nacional, mas que a cam-
panha da RBS trouxe a ênfase que faltava. A própria diretoria da ACE havia promovido
um grande número de reuniões com políticos e autoridades em Brasília, pavimentando
o caminho que, afinal, acabou concluído.
Fui às redações do Diário Catarinense e RBS-TV para ver se ainda encontrava algum
remanescente da operação e recolhia mais algum depoimento. Encontrei alguns deles,
orgulhosos do serviço feito, dos resultados obtidos pelo Estado e sociedade de Santa Ca-
tarina e, claro, pelos benefícios auferidos pela RBS pelo trabalho prestado.
Ewaldo Willerding Neto era editor de geral do DC na oportunidade. “Foi um período
muito importante. A sociedade pedia, o Pedro Sirotsky aceitava e nós ampliávamos a
pauta para procurar atender a todos. Era difícil, mas prazeroso, porque a causa havia
comprado a nós todos”, disse-me.
Roberto Azevedo era na época coordenador geral de jornalismo da televisão. Peço
para contar um fato marcante da operação. Vem de imediato: “Havia sido programada
para o dia da entrega do abaixo-assinado ao presidente Fernando Henrique Car-
doso, uma grande mobilização ao longo da rodovia BR 101. A televisão teve a mis-
são de montar, nos mais de 400 km da BR, várias entradas ao vivo, utilizando
unidades móveis, no sul, na região de Balneário Camboriú e no norte do Estado.
As pessoas foram para lá, se deram as mãos, fizeram um grande ato, no mesmo
momento em que o abaixo-assinado com um milhão de assinaturas era entregue
ao presidente da República. Isso tudo registrado ao vivo. Foi o grande abraço e um
grande trabalho.”
Estela Benetti, hoje colunista de economia, estava na sucursal de Joinville do DC
e lembra-se da cobertura dos primeiros encontros das lideranças políticas e empresa-
riais da região e, depois que começou a campanha para valer, do entusiasmo da turma

128 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


da redação: “A gente mergulha na história. Todos estavam atentos à campanha e fa-
zendo matérias. E o que mais me indignava e indigna até hoje é que Santa Catarina
é um estado que trabalha muito, arrecada muito imposto e pouca coisa volta pra
cá. Existe o conceito no Brasil de que os mais ricos têm que ajudar os mais pobres,
mas é um absurdo ver um monte de mortes e custos que a gente tem e, no entanto,
não temos uma estrutura básica. Dá vontade de ficar fazendo matérias para mostrar
essa situação.”
Mário Mota, apresentador dos telejornais da RBS e Rádio CBN, me fala o que pensa
ser o papel dos meios de comunicação em relação a temas tão cruciais como trânsito:
“Tenho me questionado sobre o papel da mídia com relação à violência, em geral, e
do trânsito, em particular. Peço muito aos repórteres da rádio cuidarem com a ideia
de que o motorista ‘perdeu o controle do veículo e caiu fora da pista’, como se ele ti-
vesse sido o responsável pela perda do controle do veículo. Evidente que perdeu o
controle do veículo, mas o que o levou à perda do controle do veículo? Ir um pouco
mais fundo, chamar a atenção das pessoas para o que deve e também para o que não
deve ser feito. Vejo que temos esta missão: informar, formar essas pessoas.”
Quis ouvir também Derly Anunciação, na época diretor-geral do Diário Catarinense
e um dos comandantes da operação, atualmente secretário da comunicação do governo
de Santa Catarina. Para ele, havia vários fatores que motivaram a mobilização: “Primeiro,
é que nosso estado tem um dos maiores índices de mortes no país por acidentes de
trânsito. Segundo, é que a RBS sempre levantou bandeiras em benefício da sociedade.
Então fomos motivados pela carta da leitora Margot Teixeira, uma pessoa que não
desconhecia as estatísticas. Assim, um fato concreto, uma estatística ruim para Santa
Catarina, e o perfil da RBS de servir à comunidade na qual está inserida tornaram-se
ingredientes básicos para desenvolver a campanha.”
Derly acredita que haja espaço/ambiente/chances para programas como esse para
atacar grandes problemas de qualquer estado. “A área pública reage de acordo com a
pressão da sociedade. O que vem da sociedade, principalmente se bem embasado,
ganha espaço. O importante é identificar o problema e instigar a sociedade, mas al-
guém tem que puxar o cordão... Pode ser um veículo de comunicação, uma empresa,
uma entidade, a prefeitura da cidade por onde passem rodovias estaduais e federais...
todos podem ser provocadores das outras instâncias.”
Não tenho registro de outra manifestação que tenha mobilizado tanta gente durante
tanto tempo. Julgo o case da duplicação da BR 101 como um dos melhores exemplos para
quando se pensar em mexer com a sociedade em favor de uma causa comum.

Informação I Um milhão pressionando pela segurança no trânsito 129


Manchetes de jornais catarinenses por ocasião da campanha

A duplicação em nossas mãos.


A morte é mão única – BR 101 deve ter duas.
Duplicação da 101 – não há outro caminho.
BR 101 – Duplicar para não triplicar.
Nosso meio de vida não pode ser o caminho da morte.
Precisamos da 101 para desenvolver o município,
não para lamentar a perda de nossos trabalhadores.
Se você souber o esforço para o transporte seguro de cargas
na 101, chamaria nossos motoristas de heróis!
Chega de passar pelo inferno para chegar ao paraíso.
Duplicação da BR 101: a felicidade passa por aqui.
“Rodovia da morte nunca mais!” Que a 101 seja apenas
a rodovia do sol e do progresso.
A duplicação da BR 101 é indispensável para o povo catarinense.
Deus fez do litoral catarinense uma verdadeira obra- prima.
Os homens poderiam pelo menos cuidar dos caminhos.
Uma estrada deve encurtar distâncias, nunca vidas.

130 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


O Popular, de Goiânia
GOSTO DE GOIáS, GOSTO DE ESTAR EM
GOIÂNIA, embora não seja um assíduo visitante
da cidade. Gosto do jeito de tratar do goiano e me
dou bem com sua gente. Aprendi coisas importan-
tes com dona Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bre-
tas, nossa querida Cora Coralina, poeta goiana que
nos deixou na metade dos anos 80.
Numa das últimas vezes que lá estive, ouvi falar
de um dicionário goianês, com expressões próprias da
gente da terra, usadas no cotidiano da cidade que, in-
felizmente, acabei não encontrando. Esse jeito goiano
de ser possivelmente seja o que mais gosto e que justi-
fica meu prazer de estar por lá.
Com sua grande área verde, tida como a maior nas
capitais brasileiras e a segunda do mundo(!), Goiânia tem,
na minha leitura, um quê de Brasil: cidade nova – faz 80
anos em 2013 –, planejada no tempo de Getúlio Vargas den-
tro da sua Marcha para o Oeste, tem coisas bastante modernas,
mas convive com outras tradicionais que resistem ao tempo,
algumas difíceis de entender. Uma dessas incongruências está no
trânsito: o sistema viário teve um bom projeto, mas o trânsito é confuso e violento e o
resultado para a cidade e para a sociedade é muito ruim.
Érika Kneib, arquiteta e urbanista capixaba, mestre e doutora em transportes, com
passagem pelo Ministério das Cidades e órgãos voltados ao trânsito e ao transporte, pro-
fessora da Universidade Federal de Goiás, me explica que “o projeto viário de Goiânia
foi benfeito, mas se esqueceram de implementá-lo. A infraestrutura está devendo
muito. A ausência de investimentos e de infraestrutura para transporte coletivo é his-
tórica no país e aqui não é diferente. Não se investe em transporte público há 30 ou
40 anos. Desde a extinção do Geipot e da EBTU, não se fala em planejamento de trans-
porte urbano no Brasil”. Pesa ainda o fato de que Goiânia implantou um sistema de

Informação I O Popular, de Goiânia 131


transporte de massa seguindo o modelo de Curitiba que é referência nacional – apesar
de já não ser o mesmo dos primeiros tempos.
Dentro desse quadro, me chamou a atenção o papel da imprensa goianiense e mais
especificamente do maior jornal, O Popular, de Goiânia, parte de um forte grupo de mídia,
a Organização Jaime Câmara, o maior grupo empresarial do Centro-Oeste. Conhecia o jor-
nal pelas vezes em que lá estive e pelos trabalhos que inscreveu no Prêmio Volvo de Segu-
rança no Trânsito. Com um deles, aliás, ganhou o Prêmio Nacional. É dele que eu vou falar.
Em janeiro de 2012, passei três dias em Goiânia visitando O Popular, conversando
com repórteres, editores, diretores assim como com gente do trânsito da cidade. Pelo que
conhecia dele, tinha convicção de que daria uma boa história, a de um veículo de comu-
nicação que se compromete com certas causas e vai fundo nela. Bingo! Não deu outra!
Vamos falar de Goiânia, primeiro. Entre 2000 e 2010, o índice de violência do trânsito da
cidade aumentou em praticamente 40%, segundo dados do Sistema de Informação de Mor-
talidade (SIM), do Ministério da Saúde, que são fornecidos pela Secretaria Municipal de
Saúde de Goiânia. O número de mortos subiu de 486 para 676 no período. Com um índice
de 51,9 mortos por grupo de 100 mil habitantes, a cidade tem a terceira maior taxa entre as
capitais brasileiras. Para que se tenha uma ideia do que isso significa, basta comparar com a
média brasileira, de 20,5 – que já é muito alta – enquanto que nos países líderes da Europa,
ela é inferior a 5 (na Suécia, é 2,7). As duas tabelas abaixo foram coletadas do Mapa da violência,
do sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, num trabalho para o Instituto Sangari, divulgado em
2012. Dão uma boa ideia do trânsito de Goiânia nos últimos anos (Gráficos página ao lado).
Sempre se poderá argumentar que a cidade cresceu muito no período, que a frota
quase dobrou e que o número de habilitações também, o que não é incorreto. Assim, não
seria de surpreender que os números de acidentes e de fatalidades também tivessem
crescido. Ah, outro ponto importante: o crescimento da frota de motocicletas na cidade
foi às alturas com os incentivos de compra aos menos favorecidos e a consolidação do
serviço de motoentregas no país. Como muitos motofretistas entravam totalmente des-
preparados para pilotar, nunca fizeram qualquer treinamento, não é, assim, de estranhar
que as fatalidades aumentassem na proporção do crescimento da frota. Goiânia é o
grande destaque negativo nesse lamentável capítulo brasileiro do crescimento de mortes
de motociclistas ao longo do tempo desde a virada deste século. Nos últimos anos, têm
morrido no país mais de 10 mil motociclistas por ano.
O sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, que vive em Recife, desenvolveu para o Instituto
Sangari, de São Paulo, um magnífico trabalho estatístico reconstituindo a trajetória das
fatalidades no trânsito brasileiro nos últimos 20 anos. Sua missão principal é estudar,

132 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Número de óbitos em acidentes de trânsito
em Goiânia. 2000/2010*
2010

2010
2009 676

2008
2009 676

2008
2007 597

2007
2006 585 39,1%
2006
2005 524

2004
2005 580
2003
2004 568

2002
2003 559

2001
2002 535

2000
2001 444

2000 100 200 300 400 500 600 700 486800 900 1000

100 200 300 400 500 600 700 800 900 1000

* Dados de 2010, ainda preliminares.

Taxas de óbito (em 100 mil habitantes) por acidentes de trânsito


em Goiânia. 2000/2010

2010 51,9

2010
2009 47,2

2008
2009 47,2

2008
2007 47,2 16,8%
2007
2006 42,9

2006
2005 48,3

2004
2005 48,8

2003
2004 48,8

2002
2003 47,4

2001
2002 39,9

2000
2001 44,5

2000 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100

Lembrando que a taxa 10


brasileira é 20
de 20,5, mas
30os países40
líderes da 50
Europa têm60
entre 3 e 670
mortos por80
grupo de 90
100 mil habitantes.
100

Informação I O Popular, de Goiânia 133


para diferentes instituições nacionais e estrangeiras, o Mapa da violência, cujo objetivo é
explicar a anatomia dos homicídios e da violência no trânsito. Ficou pasmo com a verti-
ginosa subida dos acidentes fatais com motociclistas, que ultrapassam qualquer lógica.
Goiânia já tinha uma das maiores – senão a maior – taxa de automóveis por habitante
do Brasil. Com população na ordem de 1,3 milhão de habitantes, registrava um total de
945.833 veículos (todos os tipos), dos quais 514 mil carros e 189 mil motos (março 2012,
segundo o Denatran). Disse a Deire Assis, repórter de geral d´O Popular que “pouco
antes da virada do século, Goiânia tinha 1 carro para cada 2 habitantes. Em 2012, pas-
sou a ter 1 veículo para cada 1,2 habitante”. Com o enxame de motos, dá para imaginar
o caos que se tornou o trânsito goianiense.

Frota dezembro/2010 População Mortes 2010 Taxa Taxa


Município UF Posto
Total Auto Moto 2010 Trânsito Motos Trânsito Motos
Goiânia GO 870.900 480.790 208.144 1.302.001 676 298 51,9 22,9 35
100 maiores taxas de mortalidade em acidentes de motociclistas (em 100 mil hab.) em municípios com mais de 30 mil habitantes. Brasil, 2010.
Fonte: Mapa da violência, pág. 21, Tabela 7.2.

Numa situação complicada como essa, o debate público, mais do que nunca, tor-
nava-se indispensável. O Popular tinha claro o seu papel: levantar a discussão, questio-
nar o que estava sendo feito, confrontar opiniões, provocar o contraditório, enfim, fazer
com que a sociedade não apenas tivesse mais informações, mas, principalmente, parti-
cipasse mais efetivamente do debate.
De verdade, o jornal já fazia isso há tempos e para tanto procurava oferecer sempre
mais espaço para a discussão. Costumeiramente abria chamadas e até mesmo manchetes
de primeira página para o trânsito. Como a maioria dos jornais brasileiros, não tinha se-
toristas (que cobrem exclusivamente o setor), mas tinha repórteres que acompanhavam
muito de perto as questões do trânsito.
Julgo interessante contar um pouco sobre o caso d´O Popular, pois permitirá ao leitor
interessado no relacionamento entre órgãos de trânsito e imprensa entender um pouco
mais como funciona esse mecanismo, geralmente não muito pacífico, dada a natureza
de um e outro.
Quando assume a Prefeitura de Goiânia em 2001, o prefeito Pedro Wilson Guimarães
convida Antenor Pinheiros para a Superintendência Municipal de Trânsito e Transportes.
Trata-se de uma figura pública conceituada e que se propõe a colocar em prática suas
ideias e soluções de trânsito que foram tema de tantas discussões nas gestões municipais

134 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


anteriores. Perito criminal, com especialização em crimes e acidentes de trânsito, espe-
cialista com pós-graduação em criminalística, formado em jornalismo, articulista de jor-
nais de vários estados, enfim, era personagem importante do cotidiano goiano.
Convicto de que tinha um bom plano de ação para recolocar o trânsito de Goiânia
nos eixos, Antenor propõe – e também se expõe a – um debate público sobre a acidenta-
lidade no trânsito da cidade que também é problema de todas as cida-
des brasileiras de médio e grande portes. Levanta estatísticas, identifica
problemas, aponta caminhos e, com a participação da mídia, coloca

‘‘
realmente o trânsito na agenda. A discussão esquenta, novas vozes en-
Pela 90 passavam
tram na roda e acaba acontecendo o que se esperava. Como se diz
de 900 a 2 mil veículos
muito interior, quem diz o que quer, acaba ouvindo o que não quer. O jogo
por dia, que matavam 18
pega fogo.
pessoas por ano e feriam
Antenor sente que os argumentos não estão convencendo seus in-
mais de 300. Segundo
terlocutores que, afetados pelos resultados ruins dos acidentes que in-
Pinheiro, depois dos
sistem em não baixar – pelo contrário, sobem –, começam a
radares e por vários
questioná-lo com mais vigor. Dono de boa formação, e preparado para
anos, não houve mais
o debate, o diretor de trânsito e transporte de Goiânia se defende, ataca,
mortes na 90 que era
muda de táticas, mas os resultados continuam ruins. Então, radicalizou:
conhecida como a
encheu de radares a Avenida 90, pivô de uma grande disputa, com o
Avenida da morte
objetivo de diminuir os atropelamentos, recorrentes naquela via. Pela
90 passavam de 900 a 2 mil veículos por dia, que matavam 18 pessoas
por ano e feriam mais de 300. Segundo Pinheiro, depois dos radares e
por vários anos, não houve mais mortes na 90 que era conhecida como a Avenida da morte.
Nesse período tempo, O Popular abre espaço para as opiniões antagônicas, mas não
se omite na hora de opinar e fica do lado do leitor que, afinal, é quem está perdendo a
batalha, pois as mortes continuavam crescendo. Na busca de explicações para o fenô-
meno, o jornal questionava o poder público sobre sua incapacidade de resolver o pro-
blema. Aí ganha corpo uma constatação política de longos tempos: prefeito nenhum quer
ficar de mal com a sociedade e nem com os meios de comunicação. O fato é que, depois
de quase quatro anos e a dois meses de encerrar sua conturbada gestão, Antenor Pinheiro
deixa de ser o diretor de trânsito e transportes de Goiânia. Vale a máxima: o importante
não é apenas ter razão, mas conseguir sobrepor-se às opiniões contrárias. Se fosse no fu-
tebol seria algo como jogar bem é importante, mas o que vale é bola na rede.
Hoje Antenor entende que os quatro anos de gestão foram pedagógicos e que todos
puderam ganhar com ela e com os debates gerados. Vê o papel da mídia como funda-

Informação I O Popular, de Goiânia 135


mental para que a sociedade possa conhecer melhor seus direitos e para que o poder pú-
blico produza e persiga resultados. Acha que O Popular cumpriu bem seu papel embora
num grande número de vezes não apenas não concordasse com ele, Antenor, como o cri-
ticasse severamente. É do jogo democrático.
Silvana Bittencourt, na época editora de geral d´O Popular, explica que este é o papel
do jornal: procurar entender as ações, questionar e, se necessário, criticá-las. Antenor Pi-
nheiro era e continua sendo pessoa bem tratada pelo jornal, no qual segue contribuindo
com os debates, mas quando exerce cargo público fica passível das críticas naturais da fun-
ção. É aquela história em que um dia é da caça e outro, do caçador ou, se preferir, ser vidraça ou
estilingue – isso faz grande diferença. No caso, como o trânsito é tema apaixonante, é natural
que algumas críticas possam ser mais pesadas do que as desejadas. No que diz respeito ao
jornal, parece ter cumprido sua missão, até porque conseguiu em várias oportunidades de-
sagradar os dois lados. “Ali parece que atingimos nosso ponto ideal”, brinca Silvana.
Lembro uma frase do jornalista Armando Nogueira, primeiro diretor do Jornal Na-
cional da Rede Globo que diz: “O repórter não é seu amigo, nem seu inimigo. É sim-
plesmente um profissional pago para investigar fatos e publicá-los.”
Faço questão desse relato porque vejo pelo país afora muita gente reclamando que
“a imprensa não nos dá bola, nos ignora, não nos divulga”, só porque têm boas ações,
corretas intenções e a imprensa não as divulga. Boas ações e corretas intenções são essen-
ciais, mas não são tudo. Se não soubermos informar de maneira adequada, as ações, os
programas, as campanhas, os eventos acabarão passando despercebidos – o que é uma
pena para os organizadores e para a própria mídia que, afinal, vive de notícias.
Se para a maioria das pessoas que se envolvem com o trânsito é difícil conseguir es-
paço nos veículos de comunicação para divulgar seus eventos ou ações, para os repór-
teres ou editores não é menos complicado. Um lado tem a informação, outro busca a
notícia, mas muitas vezes os dois não se encontram nesse caminho que deveria ser de
pista única.
A sugestão do pessoal do jornal é que os interessados, à frente das atividades de
trânsito, entrem em contato com as redações, avisem os editores, repórteres, pauteiros,
sobre seus planos e suas ações. Procurem ter dados claros sobre o que estão fazendo, res-
pondendo aquelas questões elementares: o que, quando, onde, como e porque. Vale para
uma ação de bairro ou para um evento maior, um seminário, por exemplo.
É muito comum ser convidado para dar palestra em eventos cujo objetivo não está
definido e nos quais quatro, cinco ou seis palestrantes abordam temas sem qualquer re-
lação um com os outros. E aí os organizadores não entendem por que não têm cobertura

136 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


da mídia, sem perceberem que os veículos não veem gancho naquele evento. O ideal seria
fazer um trabalho mais profissionalizado, mas, mesmo que não seja, que tenha um pla-
nejamento mais consistente a ponto de convencer a imprensa de que dele podem surgir
fatos e desdobramentos importantes.
Deire Assis fala também da dificuldade da falta de dados, que é um dos maiores
martírios para quem quer se aprofundar num determinado assunto e não encontra esta-
tísticas ou só tem escassas informações. Outro problema é a falta de especialistas das di-
versas áreas. “No caso do trânsito, é importante que as pessoas que lideram ações,
movimentos, eventos, tenham os dados, o histórico sobre o assunto, que definam
quais objetivos querem atingir e como. Pode render matéria”, sinaliza Deire, lembrando
que para isso não precisa ser pesquisador da universidade, basta que a pessoa se cerque
de informações suficientes.
Outro tópico que pode incentivar os interessados (ativistas?) na segurança no trân-
sito a buscarem melhor relacionamento com os veículos de comunicação pode ser en-
contrado na disposição dos editores de melhorar a cobertura local do trânsito, isto é, fugir
da cobertura, da análise nacional, que fica para os grandes veículos. Significa que, se
tiver algo local, com consistência, dados, informações, ativistas de trânsito têm grande
chance de virar destaque no rádio, no jornal ou mesmo na TV local.
Silvana Bittencourt, hoje editora-assistente d´O Popular, explica o que elege o trânsito
como matéria num jornal: “O que conta é o número de pessoas que o assunto atinge.
É o nosso feeling de cobertura, de repercussão, o interesse que a matéria pode des-
pertar. Se o assunto é surpresa, se é inédito, se tem alguma coisa de particular, de
inusitado, enfim, vários elementos devem ser considerados na hora de escolher uma
matéria para publicar.”
O Código de Trânsito Brasileiro, de 1998, despertou um novo interesse pelo trânsito
e fez com que a mídia se preocupasse mais com o tema e lhe desse mais espaço. Muitos
veículos descobriram, então, que tinham uma verdadeira mina para explorar – bastava
colocar gente na área para (des)cobrir. Ajuda muito a explicar por que temos tido tantas
(e boas) coberturas de veículos de grande porte para assuntos de trânsito. Claro, grande
parte das reportagens ainda são sobre denúncias, mas é muito melhor do que antes,
quando não se tinha nada.
Bons trabalhos de reportagem, de mais fôlego, acabam repercutindo na sociedade e
podem terminar ganhando prêmios importantes e assim criam mais visibilidade para
seus veículos, o que por sua vez significa mais espaço para o assunto naquele veículo.
Ao longo do Prêmio Volvo de Segurança no Trânsito temos visto vários exemplos.

Informação I O Popular, de Goiânia 137


Deire chama a atenção para um ponto que muitas vezes passa despercebido do
grande público e mesmo dos que estão mais ligados na questão da cobertura de imprensa
escrita dos assuntos de trânsito: o layout das reportagens, a maneira como as matérias
são apresentadas graficamente. Embora muita gente se preocupe mais com o conteúdo,
com o texto, do que com a forma, a coisa não é bem assim. “Quando temos um pouco
mais de tempo para tratar a matéria e o pessoal da diagramação pode trabalhar mais
no layout, o resultado é bem melhor e o leitor acaba se interessando mais”, afirma
Deire.
Resolvo ir um pouco mais a fundo no assunto e converso com André Rodrigues, edi-
tor-chefe digital d´O Popular. Graduado em design, fez MBA em jornalismo na Univer-
sidade de Navarra, Espanha, trabalha com notícias digitais, online.
Começa citando uma frase muito conhecida no meio, a de que “uma imagem vale
mais que mil palavras” para enfatizar que, sim, harmonizar forma e conteúdo não só é
importante como fundamental para chamar a atenção e reter o leitor. “Em certos mo-
mentos, a imagem vai falar muito ou, quem sabe, tudo, mas tem certas horas em que
as coisas precisam ser descritas com palavras. O papel do designer não pode ser o
de substituir, mas o de apoiar a construção informativa”, acrescenta.
Falando da importância de um layout moderno mais equilibrado, André acentua que
violência no trânsito reflete dramas humanos e que por essa razão necessita de trata-
mento especializado quando chega às páginas do jornal. “A diagramação de um jornal
pode levar os leitores a se sentirem melhor, pior, mais ou menos felizes”, acrescenta,
para afirmar que “certas reportagens, pela força do conteúdo, poderiam ter tido muito
maior repercussão do que tiveram se tivessem tido uma solução gráfica mais ade-
quada. Em compensação, outras que tinham conteúdo menos consistente, mas uma
boa diagramação, obtiveram uma aceitação melhor do leitor.”
Temas como esses tratados no case d´O Popular de Goiânia seriam muito úteis se
fossem mais discutidos pela comunidade ligada à segurança no trânsito. Tenho viajado
muito pelo país nos últimos 25 anos e percebo que o relacionamento com a imprensa
não é melhor simplesmente por falta de informação de como lidar com jornalistas e in-
formá-los melhor para envolvê-los mais nas coberturas do acontece no setor.

138 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Uma rádio dedicada
ao trânsito
TENHO DEFENDIDO QUE O TRÂNSITO BRASILEIRO EVOLUIU BASTANTE NAS
úLTIMAS DÉCADAS, mas tem um enorme espaço para se desenvolver. Posso afirmar
que o grau de informação que a sociedade tem atualmente sobre trânsito é muitíssimo
maior do que era há 20 anos. É claro que nesse período o país cresceu muito, as cidades
se expandiram, o desenvolvimento tecnológico trouxe benefícios extraordinários ao
nosso cotidiano e os meios de comunicação descobriram no trânsito um ótimo filão para
se envolver.
Lembro que, quando comecei a trabalhar com trânsito, lançando o Programa Volvo
de Segurança no Trânsito em 1987, acidente de trânsito era notícia de coluna policial e
mais nada, a não ser que uma grande personalidade estivesse envolvida. Hoje em dia,
trânsito ocupa lugar de destaque na agenda dos veículos de comunicação e está presente
cotidianamente nas editorias de geral, cidades, educação, comportamento, economia,
tecnologia –– e outras – dos jornais, bem como na programação das rádios e noticiários
da TV. Temos que considerar como um ganho para o trânsito e para a segurança no trân-
sito, pois isso deixa a sociedade muito mais antenada na questão.

Informação I Uma rádio dedicada ao trânsito 139


Um sinal evidente desse crescimento foi o surgimento da Rádio SulAmérica Trân-
sito, de São Paulo, inaugurada em fevereiro de 2007 com o objetivo exclusivo de passar
o dia falando de trânsito. Emissoras que falam de trânsito são comuns em cidades de
portes médio e grande, mas dedicação exclusiva ao assunto faz da SulAmérica Trânsito
a pioneira do Brasil. Claro que isso só é possível em cidades de grande potencial, em
que a demanda por novas oportunidades (de serviços e de negócios) permita opções
desse tipo.
Fui a São Paulo conhecer a Rádio SulAmérica Trânsito. Fui recebido pelo diretor Fe-
lipe Bueno, formado em jornalismo e história na USP, ele mesmo um profissional com
grandes experiências de rádio.
Criada graças a uma parceria entre a Companhia de Seguros Sul-América e o Grupo
Bandeirantes de Comunicação, a emissora nasceu com a proposta de fornecer informa-
ções, em tempo real, sobre a situação das principais vias do intenso tráfego de São Paulo.
Quem vive em São Paulo ou a conhece bem sabe o que significa ficar preso no conges-
tionamento provocado por mais de 7 milhões de veículos. Aí vai sintonizar as emissoras
que orientam sobre caminhos alternativos em busca de auxílio. Especialmente em São
Paulo, várias emissoras prestam esse serviço, principalmente nas primeiras horas da
manhã, quando a população se desloca para o trabalho, escolas, etc. A SulAmerica Trân-
sito fica o dia todo informando, orientando e debatendo o trânsito. Só toca alguma mú-
sica durante a madrugada, mesmo assim, sempre de olho no trânsito.
O retorno, em audiência, compensa, segundo Felipe: “A audiência, segundo o Ibope,
mostrou no início uma média mensal de 4 mil a 5 mil ouvintes por minuto. Hoje chega
a 20 mil/minuto. Já chegamos a um pico de 40 mil/minuto em determinados horários.
Dá 1/3 da audiência média de uma rádio do tamanho da Bandeirantes. Chegamos a
ser a segunda rádio jornalística mais ouvida nos carros de SP, o que é uma conquista
enorme.”
Para poder manter fiel sua legião de ouvintes e prover informação de qualidade, a
rádio mantém na rua uma equipe de nove repórteres, um helicóptero e oito carros de re-
portagens. Na redação há uma retaguarda de oito profissionais e uma equipe técnica de
quatro pessoas. Trata-se de um fenômeno novo no terreno da comunicação para se rela-
cionar com o cliente, no caso, o ouvinte.
“No início, não esperávamos uma interatividade tão grande com o público ao ponto
em que está hoje”, explica Felipe. Recebe um volume tão grande de mensagens que,
muitas vezes, não consegue dar conta. “Conseguimos montar uma emissora totalmente
interativa e que, com as redes sociais e mídias móveis, está provando que uma estação

140 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


de rádio não precisa mais ficar restrita ao dial”, comenta. Diariamente a emissora recebe
uma média de duas mil mensagens de texto (via celular), quatro mil ligações telefônicas
e 1.500 e-mails. Se isso não significa o fim do rádio tradicional como se concebia há al-
gumas décadas, quando “rádio era rádio e se sintonizava no rádio”, marca pelo menos o iní-
cio de uma nova era, em que um veículo de comunicação consegue ser
ao mesmo tempo multimídia. Hoje você ouve as emissoras no seu com-

‘‘
putador, no celular, no Ipad, etc.
“A consolidação da SulAmérica Trânsito mostra que o modelo O slogan da
de emissora customizada foi bem-aceito. A parceria foi positiva tanto SulAmérica é “Ajudando
para a Sul-América, que buscava aparecer mais para o público de você a enfrentar o trân-
São Paulo, quanto para o Grupo Bandeirantes, que ganhou um pro- sito de São Paulo” e
duto de notoriedade”, opina o jornalista, garantindo que os investi- serviço lá é o que não
mentos em transmissão direta e a interação nas redes sociais serão os falta. Não tem a
maiores focos de trabalho do grupo neste ano. O grupo planeja levar pretensão ser líder de
seu modelo de rádio-trânsito a outras capitais, como Rio de Janeiro, audiência, mas tornar-se
Porto Alegre, Curitiba, Belo Horizonte e Recife. A julgar pelos resulta- a segunda emissora na
dos obtidos em São Paulo, não há dúvidas de que terá sucesso. opção do ouvinte e a
Atualmente, com a pulverização da audiência dos tradicionais primeira do condutor de
meios de comunicação devido à multiplicação e hibridização das mí- automóveis, que vai
dias, grandes marcas começam a utilizar estratégias que consistem em descobrir que não precisa
ter seus próprios veículos de comunicação. Revistas de bordo, patroci- ficar preso por horas
nadas pelas companhias aéreas, foram uma das primeiras mídias cus- no trânsito, pode buscar
tomizadas e são bons exemplos do gênero até hoje. Mídia customizada caminhos alternativos e
é um conceito relativamente novo na área de comunicação, destinada até meios de transporte
a fortalecer o relacionamento entre a marca e o público-alvo, o que pode alternativos
ser conseguido pelo desenvolvimento, produção e distribuição de di-
versas formas de mídia como impressão, digital, áudio, vídeo, eventos,
etc. Assim como surgiu a SulAmérica, pode-se esperar novos produtos na área de trân-
sito, cujo potencial de consumidores é muito grande.
Isso também é resultado do avanço da tecnologia digital, que facilita a propagação
dos meios de produção, que se tornaram mais rápidos e eficazes depois que o computa-
dor assumiu as tarefas de edição, ilustração e distribuição de mensagens.
Felipe Bueno acha que a rádio está “na cidade certa”, no caso, São Paulo. O slogan
da SulAmérica é “Ajudando você a enfrentar o trânsito de São Paulo” e serviço lá é o que
não falta. Não tem a pretensão ser líder de audiência, mas tornar-se a segunda emis-

Informação I Uma rádio dedicada ao trânsito 141


sora na opção do ouvinte e a primeira do condutor de automóveis, que vai descobrir
que não precisa ficar preso por horas no trânsito, pode buscar caminhos alternativos
e até meios de transporte alternativos. “Enfim, mostramos que a qualidade de vida –
no trânsito – pode ser melhor, mesmo em cidades da Região Metropolitana de São
Paulo” (A SulAmérica cobre a Região Metropolitana de São Paulo, num raio de 30 km,
alcançando 39 municípios).
Como era de se esperar, Felipe e equipe descobriram que faltava um pouco de pa-
ciência e educação para o ouvinte, que só queria saber das rotas alternativas, mas não
tinha paciência para ouvir as informações sobre educação, segurança, manutenção
preventiva, do nível de acidentalidade. “Aí foi um longo trabalho para reeducar esse
ouvinte, mostrar que é importante ouvir as ONGs, a medicina de tráfego, os profes-
sores, os engenheiros. Nós apoiamos a campanha ‘Chega de acidentes’, do Cesvi
e Abramet. Temos uma série de reportagens sobre deficientes físicos e mobilidade.
Então passamos de trânsito para mobilidade e o trânsito todo ganhou.”
“Não há espaço para se tocar uma música. Um dia é uma adutora da Sabesp
que rompe, outro, uma ocorrência de trânsito de maior proporção, ou um desvio,
uma obra, etc., sempre tem assunto. De repente começamos a trabalhar diretamente
com a população e ela ajuda no serviço, informando o que está acontecendo no res-
tante do trânsito onde nossos repórteres não estão. A gente descobriu que somos
uma ‘wikiradio 2.0’ e conseguimos recuperar a ideia do rádio como companheiro das
pessoas, que é o começo de tudo”, afirma Felipe, feliz da vida com a interação com
seus ouvintes.
Há boas razões para explicar essa interatividade: além de oferecer as rotas alterna-
tivas, a emissora tem vários subprodutos interessantes. Por exemplo: tem um quadro cha-
mado Das duas, uma em que coloca dois repórteres para fazer o mesmo deslocamento
entre dois pontos na cidade de São Paulo. Um vai pelo caminho usual, o outro pelo al-
ternativo, ou vai com um transporte alternativo. “A gente tenta mostrar que muitas
vezes aquele caminho que parece menor é menos confortável e mais demorado do
que se a pessoa for de trem, lendo.” Um outro quadro se chama Voz do ouvinte, que
manda qualquer reclamação por e-mail, SMS, Twitter, como quiser. “A gente veicula a
reclamação, vai atrás da resposta e na semana seguinte coloca a pergunta e a res-
posta no ar. Fazemos isso porque é um problema que pode ser de todos, mas nem
todos procuram a resposta no rádio.”
São boas maneiras de incentivar a cultura de trânsito e de segurança no trânsito.
Oxalá serviços como esses possam ser mais utilizados em outras cidades brasileiras.

142 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Curitiba: uma
campanha memorável
MANUAIS DE PROGRAMAS DE TRÂNSITO orientam que campanhas de comunicação
de trânsito funcionam quando são acompanhadas de ações de campo. Um precisa do
outro para que os resultados sejam melhores. Seguindo o modelo, uma das melhores
campanhas de trânsito que testemunhei nesses 25 anos de trabalho na área foi da cidade
de Curitiba, em 1997.
Discutia-se mais intensamente sobre o novo Código de Trânsito Brasileiro e, como tan-
tas cidades, Curitiba se defrontava com problemas pontuais. O Instituto de Planejamento
Urbano de Curitiba (IPPUC) calculou em 600 mil carros a frota circulante e estimou que,
dali em diante, a cidade iria absorver mais de 34 mil novos veículos a cada ano.
Esse fato, associado à falta de educação de muitos motoristas e à necessidade de rea-
dequação da malha viária urbana e dos sistemas de sinalização e fiscalização de trânsito,
estavam levando Curitiba a uma situação de frequentes congestionamentos de veículos,
de proporções nunca antes enfrentadas. O quadro exigia bem mais do que uma simples
e tradicional campanha de educação para o trânsito.
Para enfrentar essa situação, a Prefeitura de Curitiba, em parceria com o Detran do
Paraná e o Batalhão de Policiamento da Capital (BPTran), decidiu implementar um pro-
grama de trânsito de impacto. A ação deveria conquistar
os cidadãos e cooptá-los para as ações sugeridas. Fácil
de colocar no papel, difícil de conseguir, mas essa era
a missão.
Era o ponto de partida de um plano de comuni-
cação integrada, que iria abranger esforços de co-
municação visual, propaganda e marketing de
relacionamento. A arquitetura e a execução do
plano de comunicação ficaram a cargo da agência curi-
tibana Opus Múltipla Comunicação Integrada, ca-
bendo aos órgãos oficiais as ações de campo. O
resultado não poderia ter sido melhor.

Informação I Curitiba: uma campanha memorável 143


O programa recebeu o nome de Cidadão em trânsito e apelava
forte para a necessidade de cidadania da população, criando em-
baraços para os que infringiam as regras do trânsito. Eram três as
situações que mais traziam problemas para o trânsito da cidade e
que seriam alvo da campanha: furar o sinal fechado, parar em fila
dupla e bloquear os cruzamentos.
A estratégia da campanha era, então, levando em conta as ca-
racterísticas de cada infração, identificar cada um dos tipos de in-
fratores com um bicho: o motorista mais nocivo, o que fura o sinal,
virou Rato; a mamãe que para em fila dupla diante da escola para dei-
xar ou apanhar as crianças, transformou-se em Perua e o sujeito que
bloqueia os cruzamentos foi caracterizado como Anta – expressões que
no dicionário curitibanês faziam sentido.
Paulo Vítola, então diretor de criação da Opus Múltipla, hoje presi-
dente da Rádio e TV Educativa do Paraná, explica que “do ponto de vista
comportamental, a coerção social é uma arma poderosa para levar as pes-
soas a fazerem ou deixarem de fazer alguma coisa. Todos procuram evitar
comportamentos que possam despertar censura pública”. Foi esse o raciocínio
que embasou a criação das peças destinadas a educar para o trânsito. Apresentados
com muito bom humor, em peças de grande impacto, os
personagens levaram as infrações de trânsito à categoria
de situação vexatória, pela qual nenhum cidadão de bom-

‘‘
senso gostaria de passar. E uma efetiva mudança de com-
O forte da campanha portamento começou a acontecer nas ruas de Curitiba.
foram os anúncios veiculados Lembro de um grande programa de trânsito na Espa-
na televisão protagonizando o nha, há alguns anos, que teve resultado bastante bom. Era
rato, a perua e a anta. baseado exatamente na ideia de ridicularizar o infrator e
Não é preciso dizer que, assim ganhar a adesão da sociedade. Graças a expedientes
imediatamente, os personagens desse tipo, a Espanha conseguiu diminuir o índice de fa-
se tornaram superconhecidos talidades no trânsito em mais de 50% em meia década,
na cidade e os infratores num resultado que surpreendeu toda a União Europeia.
das leis de trânsito eram Voltando à nossa Curitiba, iniciou-se um processo de
imediatamente associados educação para o trânsito, por meio de ações de comuni-
aos nomes dos bichos cação de massa, destinadas ao público em geral e, em par-
ticular, aos motoristas. Foram também desenvolvidas

144 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


ações pontuais de marketing de relacionamento, atingindo professores, pais e alunos das
escolas públicas e particulares que apresentavam mais problemas de trânsito nos horá-
rios de entrada e saída das aulas.
O forte da campanha foram os anúncios veiculados na televisão protagonizando o
rato, a perua e a anta. Não é preciso dizer que, imediatamente, os personagens se torna-
ram superconhecidos na cidade e os infratores das leis de trânsito eram imediatamente
associados aos nomes dos bichos.
Ao mesmo tempo, a Prefeitura atuava de forma planejada, em parceria com o Detran
e o BPTran, ressaltando a importância da participação ativa de cada cidadão para que o
trânsito começasse a melhorar.
A campanha contou com folhetos educativos dirigidos aos professores, pais e alunos
de 1º e 2º graus das escolas localizadas nos pontos de maior fluxo de veículos. As men-
sagens mereceram filmes para televisão, spots e um jingle para rádio e cartazes para bus-
door (mídia utilizada em Curitiba pela primeira vez, em 500 ônibus, um terço da frota).
O busdoor, especialmente, assegurou altíssima cobertura da população (dezenas de im-
pactos diários no público-alvo), com a vantagem adicional de não apresentar custos de
veiculação, já que os veículos eram da própria frota de transporte público da cidade.
A mídia teve papel importante no desdobramento e no êxito da campanha. Atenta
ao fenômeno de comunicação ocorrido em Curitiba com o Programa cidadão em trânsito,
veiculou dezenas de matérias, artigos, crônicas, entrevistas, discussões, dando lugar no
privilegiado espaço dos editoriais à campanha.
Com os órgãos de governo afinados, atuando e fiscalizando, a mídia bombardeando
com anúncios, os debates nos meios de comunicação e a opinião pública mostrando-se
totalmente favorável para acabar com aquele estado de coisas, o resultado não poderia
ser outro senão uma redução substancial no número de infrações e, em termos, o resta-
belecimento da normalidade do trânsito curitibano. Segundo dados da Prefeitura de Cu-
ritiba, a diminuição dos acidentes urbanos superou os 10%, a Operação escola acabou com
as filas duplas em 60% e a redução de cruzamentos engarrafados chegou a mais de 50%.

Informação I Curitiba: uma campanha memorável 145


“ Empresas se
preocupam com
o custo da segurança
no trânsito
quando deveriam “
se preocupar
com o custo
da insegurança
(Roberto Scaringella)
SETOR PRIVADO S Por que setor privado:
Quando optei por escrever este livro, muito me motivou
a ideia de mostrar cases de empresas privadas que fazem
a diferença na área de segurança no trânsito. Tinha certeza
de que, neste capítulo, iria revelar pedaços do Brasil bem mais
seguros que muitos imaginavam existir.
Escolhi empresas de áreas, origens, atuações e
portes diferentes, que, em comum,
têm feito da segurança um dos principais pilares de
sustentação dos seus negócios.
Aqui ficarão expostos alguns dos “muros” de que
trato no início e no decorrer do livro. São empresas bem
resolvidas e cujas ações em segurança no trânsito ainda não
são bem conhecidas do grande público.
A esperança é que os exemplos relatados neste capítulo
possam servir de inspiração para tantas empresas que
buscam melhorar sua segurança no trânsito.
A sociedade como um todo agradece.
Águia Branca
O SONO, QUE TINHA VIRADO PESADELO, ACABOU

EM SEUS MAIS DE 60 ANOS DE ATIVIDADES, a Viação águia Branca, sediada no Es-


pírito Santo, conseguiu conquistas expressivas. Primeiro firmou-se como referência no
setor de transporte rodoviário de passageiros cobrindo expressiva parte do Brasil e, se-
gundo, notabilizou-se pelos cuidados e pelo requinte com que tratou a segurança rodo-
viária. Nessa batalha foi a pioneira na luta para vencer o grande pesadelo dos executivos
e seus motoristas profissionais: o perigo do sono ao volante, responsável por tantos aci-
dentes que ocorrem pelo país.
Para entender melhor este caso, convém conhecer um pouco do perfil da empresa.
A história da águia Branca começa em 1946, quando Carlos Chieppe toma em-
prestados dois contos de réis da família para comprar um caminhão para transportar
café no interior do Espírito Santo. Logo em seguida, porém, troca seu caminhão por
um ônibus para transportar passageiros entre Governador Valadares e Teófilo Otoni,
no noroeste de Minas Gerais. Daí para a frente, é uma sucessão de crescimentos que
trazem a águia Branca à condição de um dos maiores grupos brasileiros na área de
transporte.
Atualmente a águia Branca é um grupo empresarial composto por doze empresas
que atuam no transporte rodoviário de passageiros, encomendas, locação de ônibus
para turismo, comércio de veículos, comercialização de pneus, logística dedicada, freta-
mento, fleet service, logística automotiva, transporte aéreo de passageiros e de cargas.
O grupo, cuja sede corporativa está em Vitória, tem cerca de 14 mil funcionários,
2.400 na Viação águia Branca. A frota é de cerca de 4.000 veículos.
A águia Branca atua no transporte de passageiros em seis estados: Bahia, Espírito
Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rondônia e São Paulo, transportando aproximada-
mente 12 milhões de passageiros por ano. No setor de transporte de passageiros, além
da águia Branca, o grupo é dono da Viação Salutaris, que opera no Rio de Janeiro, Minas
Gerais e São Paulo, e da Sulba, na Bahia.
A preocupação da águia Branca com segurança vem desde o início da empresa, mas
a angústia por aperfeiçoá-la tornou-se mais aguda há cerca de duas décadas, quando

148 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Renan Chieppe assumiu o comando da empresa. Nos
30 anos que atua na empresa, já foi um pouco de tudo: Renan

começou como estagiário e passou por vários setores até


assumir o comando da companhia. Uma jornada com
muita luta, muitas lições, enormes alegrias mas, também, al-
gumas dores.
O gosto da segurança, segundo me contou, veio pelo pior caminho, o da dor. Havia
vivenciado momentos difíceis na empresa por causa de acidentes envolvendo seus veí-
culos. Alguns deles marcaram-no de tal forma a ponto dele prometer a si mesmo que
não pouparia esforços para acabar com aquilo. Uma promessa e tanto por tudo o que
isso pode representar para seus clientes, seus funcionários, seus familiares, sem falar
para os negócios que, afinal de contas só iriam melhorar na medida em que a empresa
se tornasse a referência sonhada. E tudo aconteceu.
Claro que nada aconteceu sem muito empenho, muito esforço, muitas tentativas e
alguns erros até que chegasse ao caminho que parece, agora, definitivo, embora não final.
Há mais de dez anos a águia Branca não sabe o que é um acidente fatal por motivo de
sono com sua frota e, assim, tornou-se a referência em segurança rodoviária como Renan
sonhava. Nesse período a empresa fortaleceu suas estruturas, diversificou suas ativida-
des e hoje é um dos principais nomes da economia capixaba e do país na área de trans-
portes.
Para chegar lá peregrinou por um longo caminho de melhoria de conhecimentos, de
aperfeiçoamento operacional, de consolidação de valores, sem falar nos ajustes organi-
zacionais que foram se fazendo necessários para atingir o ponto de sustentabilidade que
permite hoje olhar com muito mais confiança para o incerto amanhã.
A empresa escolheu três palavras-chaves de sua operação cotidiana como seus va-
lores básicos: segurança, pontualidade e conforto, essenciais para a sustentabilidade dos
seus negócios. Teve a grande preocupação de trabalhar profundamente o significado
desses valores dentro da organização, o que foi de grande importância.

Setor privado I Águia Branca – O sono, que tinha virado pesadelo, acabou 149
Há muitos anos, o atual diretor-geral Renan Chieppe diz: “Não quero ser a maior,
mas quero ser excelente, quero que os clientes sejam transportados com segurança”,
deixando bem claro o rumo que a empresa deve seguir. Testemunhos como esse balizam
o que a empresa quer que seus colaboradores se desdobrem para conseguir. Mas, claro,
há muito mais no campo das ações.
As reestruturações organizacionais periódicas serviram para ir ajustando a empresa
ao longo dos anos e sempre para enfrentar os novos tempos. A competição tem aumen-
tado muito e os esforços internos para suportar os desafios são enormes e permanentes.
Só uma equipe bem estruturada aguenta as pressões que
vêm do mercado e ao mesmo tempo dos acionistas. Sem
trocadilho, na área de transporte, ou a empresa faz poeira

‘‘
ou come poeira, não há outro espaço.
A competição tem Para manter o moral elevado, os objetivos bem defi-
aumentado muito e os esforços nidos e a equipe bem motivada, adotou há vários anos
internos para suportar os como sua bandeira o QCAMS2, acrônimo para Quali-
desafios são enormes e dade, Custo, Atendimento, Moral e Segurança, princípios
permanentes. Só uma equipe que devem estar presentes em todos os momentos da em-
bem estruturada aguenta as presa e de seus funcionários. O conceito foi forjado a par-
pressões que vêm do mercado tir de um longo esforço para identificar áreas realmente
e ao mesmo tempo dos vitais em que toda a organização necessitaria concentrar
acionistas. Sem trocadilho, suas atenções. Para dar uma ideia do que significa aten-
na área de transporte, ou a dimento, nesse contexto, a meta de cumprimento de ho-
empresa faz poeira ou come rários dos ônibus deste ano é de 97%, isto é, em cada 100
poeira, não há outro espaço viagens, 97 têm de sair e chegar no horário.
Cristina Pinheiro, gerente de segurança do trânsito da
águia Branca, revela os pilares do sucesso: recruta-
mento/seleção, treinamento, liberação do motorista para o início da jornada, manutenção
preventiva da frota, programas de prevenção de acidentes, monitoramento do motorista
em operação e comissão de segurança no trânsito. Em princípio, nada de novo, pois, em
geral, todas as empresas sabem e praticam isso. Pelo jeito, sem o mesmo empenho, a
mesma determinação.

2.
QCAMS é o conjunto de indicadores genéricos propostos pelos japoneses no seu TQC/TQM que, em princípio,
são suficientes para abranger todos os aspectos relevantes à pergunta mais importante da GDC: “Satisfaz?”.

150 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


O motorista é merecedor de cuidado profundo, pois é o fiel da balança no cotidiano
da empresa. O diretor de operações da águia Branca, Klinger Sobreira de Almeida, jus-
tifica: “Quase 70% da mão de obra da empresa está nas estradas, são os motoristas.
Então o risco maior está lá, ainda mais com esse cenário atual, muito complicado.” Ao
mesmo tempo em que lhe é dado o melhor treinamento, o maior suporte, ele também
deve saber que é monitorado o tempo todo. Dez anos antes do Código de Trânsito Bra-
sileiro entrar em vigor, a empresa já fazia testes de bafômetro antes das viagens. Hoje,
pelo CCO – Videomonitoramento, cada centro de controle tem um instrutor de patrulha
eletrônica que monitora as viagens e faz os acompanhamentos.
O motorista sabe, assim, que é bem tratado, mas sua contrapartida é essencial. O
bom desempenho é merecedor de forte reconhecimento e vem acompanhado de boas
recompensas e prestígio com os colegas. Numa conversa que tive com alguns deles, ficou
claro que o grupo aprecia os cuidados da empresa e retribui com um grau de fidelidade
difícil de ser encontrado. Isso explica, por exemplo, a baixa taxa de rotatividade de mo-
toristas no quadro de funcionários da empresa.
É claro que, se é bom para a empresa, é melhor ainda para a família do motorista,
por saber que ele é cercado de cuidados que tornam suas viagens mais seguras. Por sua
vez, traz aos passageiros maior sensação de segurança quando sabem o que é feito para
que os motoristas tenham melhores condições de dirigir.

Programa Medicina do Sono


A marca registrada da Viação águia Branca repousa numa de suas maiores conquistas:
a evolução e as vitórias consumadas na luta contra o sono ao volante dos motoristas. O sono
do motorista quando está dirigindo é um dos principais vilões da segurança no trânsito –
no Brasil e no mundo. A busca de soluções é perseguida nos quatro cantos do planeta.
Segundo o dr. Shigueo Yonekura, especialista em distúrbios do sono pelo Hospital
das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), o sono é responsável por um em cada
quatro acidentes automobilísticos.
Acidentes causados por problemas de fadiga e sono talvez sejam mais visíveis nas
ruas e estradas, mas, na verdade, podem ser devastadores fora delas também. Vou citar
dois exemplos: o acidente nuclear de Chernobyl, na Ucrânia, então parte da União Sovié-

Setor privado I Águia Branca – O sono, que tinha virado pesadelo, acabou 151
tica, e a explosão do ônibus espacial Challenger, nos Estados Unidos. Na Usina de Cher-
nobyl, as longas jornadas de trabalho eram frequentes, o que provocava privações de sono
e sonolência dos operadores. Em abril de 1986, procedimentos foram programados para
a madrugada e alguns sistemas de segurança foram desligados. Quando foi constatado o
superaquecimento do reator, os operadores – que vinham de uma longa jornada de tra-
balho e provavelmente estavam sonolentos – cometeram um erro: desligaram o resfria-
mento de emergência. É considerado o pior acidente nuclear da história, que produziu
uma nuvem de radioatividade que atingiu a União Soviética, a Europa Oriental, a Escan-
dinávia e o Reino Unido, com liberação de 400 vezes mais contaminação que a bomba
atômica de Hiroshima, no Japão. Grandes áreas da Ucrânia, Bielorrússia e Rússia foram
muito contaminadas, resultando na evacuação e reassentamento de cerca de 200 mil pes-
soas. Cerca de 10.000 pessoas teriam morrido em consequência do acidente.
No caso da explosão do ônibus espacial Challenger, no mesmo ano, o acidente foi
atribuído a um defeito em uma peça do tanque de combustível. Porém, sabe-se que a
equipe de manutenção e os diretores que autorizaram a decolagem haviam dormido
muito pouco na noite anterior ao acidente. Cientistas e especialistas das áreas da medi-
cina atribuem a este detalhe significante parcela de responsabilidade pela ocorrência da
explosão do Challenger, que matou todos os sete ocupantes, incluindo Christa McAuliffe,
a primeira astronauta americana. Esse desastre paralisou o programa espacial americano
durante meses e provocou mudanças radicais no seu futuro.
Os acidentes rodoviários marcaram muito a trajetória da águia Branca. Muitos deles
deixaram forte memória com registros de fatalidades e sequelas graves em passageiros
e outros envolvidos. Muitos dos acidentes tiveram como causa o sono do motorista ao

152 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


volante, um problema que se repete de vez em quando e que deslustra o setor de trans-
porte de passageiros e de cargas do país.
A história dos acidentes motivados pelo sono dos condutores dos ônibus da Viação
águia Branca tem duas fases distintas: antes e depois de 1994. De lá para cá, a empresa
mudou radicalmente sua maneira de atuar, estruturou-se para enfrentar o problema e
pode se orgulhar de dizer que, sim, a solução foi encontrada e os resultados estão aí para
provar. Desde 2001 a empresa não registra qualquer acidente devido ao sono.
Pela natureza do serviço que presta – transporte rodoviário nas estradas que todos
conhecemos, dia e noite, com sol ou chuva –, ninguém pode dizer que está a salvo do
problema, mas a águia Branca está em condições de dizer não tem mais esse pesadelo.
Quem me conta como tudo aconteceu é Renan Chieppe, diretor-geral da empresa:
“Quando fazíamos a análise de acidente, víamos que o motorista era gente bem treinada,
com muitos anos de empresa, cumprindo escala bem feita. Raramente acidentes com
sono aconteciam com novatos, mas com gente mais consolidada, mais relaxada, que
por algum motivo dormia ao volante. Aí decidimos fiscalizar nosso tráfego para que res-
peitasse as folgas dos motoristas. Tínhamos que dar um basta àquela situação.”
Os mecanismos de controle foram apertando cada vez mais. Contudo, passava
algum tempo e... novo acidente. Renan estava perdendo a paciência. Um dia chamou
um gerente e disse com clareza: “O dia em que houver um acidente porque alguém des-
respeitou a folga do motorista, não contem comigo! Vou até as últimas consequências
com quem fez isso.” Mesmo com essa decisão, casos ainda aconteciam: “Ainda assim, lá
vinha o sono... e o acidente. Muitas vezes era motorista voltando da folga, experiente,
bem informado. Obviamente não descansou na folga, foi jogar uma pelada, comeu
uma feijoada, fez um bico”, diz Renan com um certo desânimo.
E aí percebeu que o tema fugia à sua capacidade de análise. Foi em busca de outras
saídas. Soube que a Volvo Trucks estava desenvolvendo um equipamento que filmava o
rosto do motorista e avisava quando ele cochilasse. Soube que o motorista, ao dormir,
afrouxava as mãos e que a Mercedes estava produzindo um tipo de empunhadura que
sentia e avisava. Depois de algumas tentativas e outros acidentes veio uma luz. “Fomos
buscar conhecimento fora, procuramos médicos da área, fizemos pesquisa e encontrei
o dr. Sérgio Barros, que indicou o caminho e, finalmente, desenvolvemos o programa.”
Sérgio Barros Vieira é médico com pós-graduação em pneumologia e medicina do
sono, no Hospital Saint Antoine, em Paris, França, e membro da Sociedade Brasileira de
Sono, da qual foi vice-presidente. Sérgio falou que acreditava muito na estimulação lu-
minosa, além de boa educação, boa alimentação, saúde e boa escala. Explicou o processo

Setor privado I Águia Branca – O sono, que tinha virado pesadelo, acabou 153
da melatonina (substância responsável pela sonolência no período noturno) e que o sono
pode ser debelado sob forte incidência de luz na retina.
“Estava descoberto o caminho”, conta Renan. “Tínhamos quem conhecia bem o
assunto e a Águia Branca bancaria o programa. O restante da história você já sabe, fi-
zemos uma revolução.” Nascia o Programa de Medicina do Sono, cuja patente foi regis-
trada no Brasil e nos Estados Unidos e que despertou interesse em todo o mundo.
A educação dos motoristas é a base do programa. Segundo Sérgio Barros, o essencial
foi contar com o interesse e o comprometimento dos motoristas e ter à disposição uma
estrutura bem equipada. Resultado alcançado até hoje: nenhum registro de acidente por
sono desde 2001.
Funciona assim o programa, na explicação do médico Sérgio Barros: “Para cons-
cientizar os motoristas, realizamos uma série de treinamentos que reforçam a im-
portância da qualidade do sono e informam sobre rotinas que podem interferir, como
alimentação, prática de exercícios, conforto, entre outras. Para acompanhar cada
participante são utilizadas estruturas de apoio, como as salas de estimulação do
alerta e laboratórios do sono, além de rotinas de avaliação.”
Dr. Sérgio conta que, para montar o programa definitivo, visitava a residência de vá-
rios motoristas. “Numa dessas visitas, descobri que ele dormia num quarto com te-
lhado de eternit, sem forro, com infiltração, num colchão ruim, ambiente com ruído,
mas tinha uma televisão de 21 polegadas e videocassete.” Um bom exemplo de como
não deve ser.
Os testes de rotina dos motoristas são realizados antes e depois de cada viagem e
servem para verificar se o motorista está em boas condições, medindo o grau de vigília
e fadiga. Os resultados desses testes servem de base para o banco de dados, no qual cada
motorista tem um padrão individual. Segundo o dr. Sérgio, as alterações do padrão in-
dividual permitem detectar possíveis distúrbios e indicam a necessidade de fazer um
tratamento e acompanhamento preventivo com cada um. Como todos os motoristas são
submetidos a testes de aptidão para assumir o volante, além do bafômetro, o médico da
águia Branca é enfático: “Motorista com sono, não viaja!”
São nove salas de estimulação, uma das principais ferramentas do programa, loca-
lizadas nas filiais da Bahia, Espírito Santo e Rio de Janeiro. Nesses espaços, os profissio-
nais praticam exercícios físicos de alongamento e bicicleta ergométrica, atividades que
aumentam a temperatura corporal e interferem na produção do hormônio melatonina.
Pela avaliação interna realizada com os motoristas, o desempenho de quem frequenta
as salas de estimulação melhora em até 80%.

154 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Outro investimento do programa são três laboratórios do sono, nos

‘‘
quais são realizados diagnósticos por meio de exames de polissono-
grafia completa – avaliação do sono. Os laboratórios estão localizados Para proporcionar
em Vitória, Salvador e Três Rios. melhores condições de
Para proporcionar melhores condições de trabalho aos motoristas, trabalho aos motoristas,
o Programa Medicina do Sono patrocinou adaptações no desenho da o Programa Medicina
cadeira de motorista, na troca das lâmpadas dos faróis dos ônibus, ini- do Sono patrocinou
ciativas que buscam proporcionar maior conforto aos condutores dos adaptações no desenho
ônibus, durante seu trabalho. Foram construídas duas pistas para ca- da cadeira de motorista,
minhadas, dentro da continuação do programa que, certamente, trará na troca das lâmpadas
outras novidades. dos faróis dos ônibus,
Pergunto a Renan Chieppe, que também é presidente da Abrati iniciativas que buscam
(Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passa- proporcionar maior
geiros), que congrega cerca de 120 empresas, por que se o Programa conforto aos condutores
de Medicina do Sono deu tão certo para a águia Branca, não é aplicado dos ônibus, durante
por outras empresas do ramo. “Algumas empresas vieram até nós, seu trabalho
viram o que fazíamos e tentaram mas, pelo jeito, não deu certo”, ex-
plica Renan.
Parece que não é só isso. Ouvindo um pouco mais no mercado, dá
para perceber que o programa representa mudanças radicais nas próprias empresas e,
aparentemente, não é isso que os patrões querem. Exige investimento e mudanças cul-
turais e organizacionais fortes e, num país em que segurança não é prioridade, nem todos
estão dispostos a bancá-la.
O exemplo da águia Branca é, sem dúvida, ótimo, e deve ser seguido por tantas ou-
tras empresas de transporte de passageiros que dizem ter interesse em melhorar seu de-
sempenho.

Setor privado I Águia Branca – O sono, que tinha virado pesadelo, acabou 155
CCR/Arteris (ex-OHL):
concessionárias
de rodovias
SE Há UMA áREA DA ECONOMIA BRASILEIRA com enorme potencial de disseminar
cultura de segurança no trânsito, sem dúvida, é o setor de concessões de rodovias. Aqui,
produto e consumidor estão ligados o tempo todo, o que permite às concessionárias cum-
prir um papel extraordinário na difusão de informações sobre comportamento seguro
nas estradas. Afinal, até onde vejo, concessões vendem segurança, representada pela
qualidade da estrada, e conforto, por tudo de melhor que oferecem.
O programa de concessão de rodovias do governo federal, implementado a partir
de 1995, é, sem dúvida, um avanço considerável na melhoria das condições de mobili-
dade, ainda que hoje represente uma fatia pequena da malha nacional, tão necessitada
de melhoramentos e segurança.
No início de 2011, cobria pouco mais de 15 mil quilômetros de rodovias, algo próximo
de 7,2% da malha rodoviária sob responsabilidade do governo federal, cobrindo os esta-
dos da costa marítima (mais Minas Gerais) do Rio Grande do Sul a Pernambuco (menos
Espírito Santo, Alagoas e Sergipe). É por onde circula a maior parte da frota brasileira.
São 53 concessionárias que empregam, entre funcionários diretos e terceirizados ou de
empreiteiras e contratadas, uma mão de obra de aproximadamente 40 mil pessoas.
De maneira geral, todas as concessionárias se dedicam aos assuntos de segurança,
pois essa é a natureza de suas atividades. Fui conferir o que fazem as duas maiores do
setor: a CCR e a OHL, ambas sediadas em São Paulo com atuação em outros estados.
Pelo relato de seus programas, pode-se perceber o quanto ajudam a disseminar segu-
rança nas população das regiões por onde passam suas estradas.
Juntas, CCR e OHL gerenciam cerca de 40% da malha concessionada brasileira, no
Sudeste e Sul do país. Ambas se consolidaram rapidamente como grupos comprando
empresas que já atuavam no setor. A CCR foi a primeira do mercado no país, ganhando
a concorrência para o gerenciamento da Ponte Rio-Niterói, com seus 13 quilômetros de
comprimento.

156 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


As duas atuam fortemente com programas de educação de trânsito e de responsabi-
lidade social, áreas em que receberam premiações de prestígio, incluindo o Prêmio Volvo
de Segurança no Trânsito e o Toll Excellence Award, da International Bridge, Tunnel and
Turnpike Association (IBTTA) – correspondente à nossa ABCR dos Estados Unidos. O
programa da OHL é o Projeto escola, enquanto o da CCR é o Estrada para cidadania. Nesses
programas, dezenas de milhares de educadores e centenas de milhares de alunos foram
alvo de pacientes trabalhos de educação para o trânsito ministrados por equipes espe-
cialmente preparadas.
Além de sistemático trabalho com escolas dos municípios cortados pelas rodovias que
administram , tanto a CCR quanto a OHL dedicam grande parte de suas atenções a outros
modais de transportes que utilizam suas rodovias. Entre estes, destaque especial para mo-
toristas de caminhão, um segmento que merece atenção especial por duas razões signifi-
cativas: é uma categoria profissional que trabalha em condições bastante desfavoráveis,
pelo número de horas que opera todos os dias, pela distância da família e pela pouca as-
sistência médica que recebe, notadamente os autônomos; o segundo motivo é que é o seg-
mento que mais contribui para a arrecadação nos pedágios das concessionárias.
Tanto a CCR quanto a OHL têm ações relacionadas à proteção ambiental especifica-
mente desenhadas para os municípios lindeiros. Além dos cuidados que as próprias em-
presas precisam tomar para construir e manter suas rodovias, dedicam ainda substancial
atenção às parcerias com as comunidades próximas de suas estradas.

Setor privado I CCR/OHL: concessionárias de rodovias 157


As duas empresas declaram ter segurança como prioridade absoluta em todas as
suas ações e investem pesado nela. Só ano passado cada grupo investiu cerca de R$ 1 bi-
lhão em projetos de melhoria e manutenção de rodovias.
Fui visitar as sedes dos dois grupos, em São Paulo. A OHL Brasil passa em 2012 por
uma reestruturação acionária com a chegada do grupo, também espanhol, Abertis In-
fraestructuras, que já tem larga experiência no setor de concessões de rodovias. Pelo
acordo feito com a matriz da OHL na Espanha, a Abertis passa a participar da operação
brasileira, tornando-se, assim, a maior empresa do mundo no setor de concessões de ro-
dovias. Quando estava escrevendo esta parte do livro, ainda não se conheciam muitos
detalhes da operação, mas, em princípio, a chegada de um sócio com grande experiência
no setor só pode significar reforço de operação e melhoria do setor como um todo, com
a introdução de novas tecnologias, novos aportes financeiros e novos conhecimentos tra-
zidos das experiências de outros mercados.
O presidente da OHL Brasil, José Carlos Oliveira, me conta que o usuário de suas
estradas quer segurança e conforto, o que a empresa sabe fazer há muito tempo. O grupo
já tinha larga experiência na Espanha, no México e no Chile, entre outros países e, assim,
se considerava perfeitamente tranquila de que poderia oferecer um bom trabalho por
aqui também. Acha que muito foi feito, mas há muito por fazer. “Trata-se de um país
muito grande, com grandes diferenças, muitas coisas por serem consolidadas ainda
e, em alguns casos, sair em busca de um caminho definitivo a seguir”, afirma.
Entende que a OHL cumpre bem seu papel de parceiro nesse grande trabalho em
prol da segurança rodoviária no país. Além do trabalho de construção e manutenção de
suas rodovias, se vê recompensada pelo reconhecimento público da contribuição comu-
nitária de seus projetos de educação para o trânsito – Projeto escola – e de responsabilidade
social.
“Até 2014 vamos investir mais R$ 3 bilhões nas rodovias federais (a OHL também
tem algumas rodovias estaduais no interior de São Paulo), como duplicar o trecho da
116 na Serra do Cafezal, em São Paulo, um trecho da BR 101 no Rio e construir as
obras do contorno de Florianópolis, em Santa Catarina”, informa. Destaca que muitos
dos entraves se devem à falta de licenças ambientais, que impedem a execução dos tra-
balhos.
Já Marina Mattaraia, responsável pelas ações de sustentabilidade do Grupo CCR,
diz que o padrão atingido hoje pelas suas concessionárias é de nível equivalente ao de
qualquer país desenvolvido. Lembra que ano passado esteve no congresso da IBTTA em
Berlim, na Alemanha, e numa das visitas técnicas conheceu uma rodovia. Todos sabem

158 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


que as autoestradas alemãs são tidas como das melhores do mundo, mas ela afirma que
as melhores do Brasil não ficam nada a dever ao padrão europeu ou americano.
Ela concorda que há problemas de origens diversas no cenário das concessões de ro-
dovias no país, mas do ponto de vista construtivo temos hoje um ótimo padrão. “Um
grande desafio da segurança das nossas estradas está no comportamento do usuário,
motivo de intensos e permanentes estudos dentro e fora da CCR”, acentua Marina. “A
gente acredita que o investimento em educação é fundamental, porque comporta-
mento deve ser desenvolvido desde o início. Temos um grande programa que é o ‘Es-
trada para a cidadania’x, presente hoje em 112 municípios, no qual capacitamos
professores e alunos da rede pública.”
Marina menciona ainda uma contribuição ao conhecimento CCR vinda da Fundação
Dom Cabral, de Belo Horizonte, que tem desenvolvido importantes estudos sobre com-
portamento de usuários, notadamente motoristas, que, pela profundidade, são peças de
grande valor para ações de campo. “Pesquisas qualitativas e quantitativas que realiza-
mos sistematicamente com usuários das nossas rodovias são boas fontes de indica-
ção de trabalho que ainda temos que desenvolver”, afirma Marina, para explicar como
nascem as operações objetivando a melhoria do comportamento nas estradas.
No 7º Congresso Brasileiro de Rodovias e Concessões, realizado em outubro de 2011
em Foz do Iguaçu, no Paraná, foi possível constatar o grande progresso feito pelo setor
nesses quase 20 anos de atividades. O volume de investimentos feito em rodovias só de
2006 até 2010 é da ordem de R$ 12 bilhões em recuperação, ampliação e melhoria dos
15.260 quilômetros concedidos, dos quais R$ 3,5 bilhões apenas em 2010. A utilização de
tecnologias em todas as áreas de operação permite dizer que praticamente não existem
diferenças entre o melhor brasileiro e o bom padrão internacional. O que existe, sim, são
gargalos que precisam ser atacados de frente, com seriedade e transparência.
Quando essas pendências forem resolvidas adequadamente, o setor de concessão de
rodovias pode tornar-se, quem sabe, o maior disseminador da cultura de segurança no
trânsito no Brasil.

Setor privado I CCR/OHL: concessionárias de rodovias 159


Perkons
A PERKONS, DE CURITIBA descobriu a lombada eletrônica, que tem um papel muito
forte na história recente do trânsito brasileiro. Depois que a lombada começou a ser uti-
lizada e multas começaram a doer no bolso dos brasileiros, o equipamento virou coque-
luche e, certamente, é um dos responsáveis pela disseminação da cultura da segurança
no trânsito.
Alguns dirão que foi pelo medo das pesadas multas, outros a acusarão de ser parte
da indústria da multa. Muitos outros dirão que ela chegou em boa hora para enquadrar
muitos motoristas e restabelecer – por algum tempo – o respeito às leis e aos equipamen-
tos eletrônicos de sinalização.
O fato é que as lombadas vieram para ficar, aliás, no rastro de um punhado de ino-
vações tecnológicas que alteraram radicalmente a visão geral do trânsito. A mudança foi
grande, infelizmente não duradoura como se pretendia e muito menos como o país pre-
cisava. A gestão do trânsito, que havia avançado com seu advento, sofreu um baque pro-
fundo em razão da não continuidade da fiscalização enérgica.
O surgimento da lombada eletrônica começou da mesma forma como muitas coisas
que se iniciam em qualquer lugar do mundo: por acaso. Quem me contou foi Walter Al-
berto Schause, diretor da Perkons, no dia em que fui visitar a empresa. “Durante uma
viagem ao litoral do Paraná, um dos donos da Perkons testemunhou um acidente
numa lombada física e ali, na hora, pensou em criar uma lombada eletrônica. Começou
a desenvolver o projeto, que a princípio não era para ser um equipamento para multar,
mas para constranger. Ela foi criada para garantir a velocidade adequada em pontos
críticos, como no entorno de escolas, hospitais, etc. Logo ficou claro que se aquele
equipamento também multasse seria mais efetivo. Tanto que, depois disso, não houve
mais infrações nos pontos em que foi instalada.” Isso se passou no início dos anos 90,
pouco depois da criação da empresa.
A disseminação da cultura de trânsito ocorreu porque a legislação permitia a multa
por excesso de velocidade naqueles pontos críticos. Assim, o conceito de segurança ga-
nhou maior visibilidade e a percepção da população era claramente a favor ao reconhecer
sinais positivos naquela mudança. Dá para dizer, pelo depoimento do diretor Luiz Gus-
tavo Campos, que, depois de mostrar seus benefícios, as lombadas eletrônicas tiveram

160 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


seus momentos de glória.
“Temos testemunhos de
que pessoas chegaram ao
ponto de colocar jardim com
flores nas lombadas, faixas
agradecendo...”, explica.
Maria Amélia Franco, ge-
rente de marketing da Perkons,
diz: “Podemos observar que a dis-
seminação da cultura de trânsito acontece também a partir da lombada eletrônica,
porque a população percebe a insegurança no local, mas o motorista, muitas vezes,
não. Quando se coloca a lombada eletrônica, iluminada, sinalizada, de forma ostensiva,
o motorista começa a reconhecer que ali é um local de risco.”
A década de 90 marca o início do projeto de estudo em Curitiba e as primeiras uni-
dades no Paraná e Santa Catarina. Já no final de 97, as lombadas eletrônicas chegam às
rodovias federais e em Brasília. Há um período de testes, para acostumar a sociedade e
o Poder Público a entenderem melhor a dimensão daquela invenção. Com a dissemina-
ção do produto, principalmente com a adoção da multa, o resultado é apreciável. Como
toda novidade, gera polêmica – alguns esbravejando contras as multas (Olha só o começo
da indústria da multa!) e outros, naturalmente defendendo, entendendo que era hora de
acabar com os abusos.
Nesse período, na década de 90, há mudanças na legislação. O Código de Trânsito
Brasileiro ainda não estava vigente, mas decretos e resoluções do Contran permitiam a
aplicação de multas, o que provocou alterações consideráveis no comportamento dos
motoristas. Outro ponto importante foi a portaria do Instituto Nacional de Metrologia,
Qualidade e Tecnologia (Inmetro) que estabeleceu parâmetros para aferir a exatidão da
lombada eletrônica. Enfim, o cerco foi se fechando sobre os motoristas mais relapsos,
que passaram a se ver tolhidos de certas liberdades que na verdade colocavam em risco
não apenas as suas como as vidas de outras pessoas também.
Embora os objetivos das medidas fossem outros, alargaram consideravelmente a dis-
seminação da cultura de trânsito, pois, como tinham vigência nacional, fizeram com que
essas preocupações também ganhassem o país todo.
Incentivada pelo sucesso de sua descoberta, a Perkons se desenvolveu, criou novos
produtos, ganhou projeção nacional e internacional, alcançou novos mercados e buscou
posicionar-se não apenas como uma empresa produtora de equipamentos de sinalização

Setor privado I Perkons 161


eletrônica para tornar-se um forte participante do ITS, abreviatura em inglês de Sistema
Inteligente de Transportes, atualmente uma área de negócios em incrível expansão, no-
tadamente no mundo mais desenvolvido. “Se pudesse definir a Perkons em três pala-
vras diria que são: segurança, mobilidade e tecnologia”, me diz Ricardo Simões,
coordenador de produtos. “É isso que estamos espalhando por aí”, conclui.
Dos cerca de 5.560 municípios brasileiros, 17% deles estão integrados ao Sistema Na-
cional de Trânsito, isto é, têm seu trânsito municipalizado segundo preconiza o CTB de
1998. Destes 17%, que somavam 1.193 (junho 2012), cerca de 60% têm algum tipo de equi-
pamento eletrônico, como lombada, por exemplo. É bom lembrar que esses municípios
representam mais da metade da população brasileira.
Pelas estimativas da Perkons, suas lombadas eletrônicas controlam cerca de 2,3 bi-
lhões de veículos por ano e o índice de respeito dos motoristas é de quase 100%. Ainda
segundo suas avaliações, cada lombada instalada salva, pelo menos, uma vida por ano.
Um estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) afirma que “nos lo-
cais em que há equipamento de monitoramento de tráfego, o número de acidentes
diminui em torno de 30% e o de mortes em 60%. Em pontos críticos em que foram
colocadas lombadas eletrônicas, o número de mortos chegou a zerar após a instala-
ção”. Testemunhos como esses tornaram o Brasil uma referência mundial em fiscalização
eletrônica no livro Reduzindo acidentes, do BID, publicado em 2001.
Se o futuro da Perkons parece promissor, o futuro da mobilidade e dos sistemas in-
teligentes de transportes se afigura tão bom como. Nossas cidades não apenas precisam
crescer, mas sobretudo crescer de forma ordenada, o que não está acontecendo. Assim,
o apoio da tecnologia é vital.
As lombadas, bem como tantos equipamentos eletrônicos utilizados hoje no trânsito,
são indispensáveis para melhorar a nossa qualidade de vida – se não melhorar, ao menos
não piorar, o que parece estar acontecendo.
Nesse sentido, não só a Perkons tem um papel importante, como uma das líderes
do setor no país. Todas as demais empresas do setor também, pois há espaço para cres-
cimento de todas. Com folga.

162 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Shell / Raízen
IMAGINE UMA MULTINACIONAL PETROLÍFERA, com cerca de 100 mil funcionários,
operando em 140 países, sob regimes diferentes, culturas diversas e inúmeras condições
muito adversas. Entre os anos de 2000 e 2008, trabalhando em ambientes muitas vezes
inóspitos, como exploração em alto mar ou refinarias de petróleo, a Shell registrou 350
acidentes fatais, incluindo funcionários próprios e de terceiros, o que dá média de 38 mor-
tes/ano. Aos olhos brasileiros, pareceria pouco e, no mínimo, aceitável. Para a Shell, não.
Em 2009, a direção da empresa decide reagir e, após muitos estudos, opta por um
programa radical que chamou de Goal Zero, isto é, zero fatalidades, no mundo Shell. Os
mecanismos de segurança e de monitoramento (incluindo os de trânsito), que já eram
fortes, passaram a ser soberanos. Como a empresa é global, sua política também é, e,
assim, válida para qualquer país, incluindo, obviamente, o Brasil.
Prepare-se, então, para entrar num mundo de segurança pouco conhecido no Brasil:
o mundo da Shell Brasil e da Raízen, esta criada em 2011 pela Shell e pela Cosan para a
produção e distribuição de álcool no país. Pelo relato a seguir, julgo que ficará mais fácil
para o leitor entender porque falo em muros e pontes nesse mundo da segurança do
trânsito brasileiro. O que você lerá neste capítulo sobre as operações dessas empresas é
o mesmo que pode encontrar na Inglaterra, nos Estados Unidos, no Japão ou na Suécia.
É o chamado padrão global, aplicado com o mesmo rigor e a mesma dedicação, respei-
tando as particularidades e a cultura de cada país. O objetivo global, contudo, é único:
evitar riscos para as pessoas e para o meio ambiente.
Para preparar este relato, visitei a Shell, no Rio de Janeiro, e a Raízen, em São
Paulo. Conversei longamente com gerentes e
consultores das duas empresas, que me
ajudaram a entender o mundo
deles, como foi construído e que
futuro tem.
O que me impressiona nos re-
latos é que os resultados foram
conseguidos dentro do Brasil,
em condições brasileiras, com

Setor privado 163


equipamentos, veículos, motoristas brasileiros, como nós. Você, leitor, pode até dizer:
“Ah, mas eles têm uma multinacional do petróleo por trás!.” É verdade e isso conta bastante,
mas lembre-se que há inúmeras empresas transnacionais, também de grande porte, que
não obtêm os mesmos resultados. A diferença está na atitude, na motivação, na deter-
minação com que cada um se lança na ação e – aí, sim! – com apoio forte da alta direção
consegue realizar o que muitos nem sonham.
Já conhecia a Shell desde 1987, quando começou o Programa Volvo de Segurança no
Trânsito. Na época, tinha interesse em conhecer como a empresa trabalhava a segurança
no transporte rodoviário de combustíveis. Em 1989, a Shell ganhou o Prêmio Volvo como
a Empresa do Ano com seu trabalho Gerenciamento avançado de segurança. Repetiu a faça-
nha em 2001, com seu Programa de segurança no trânsito. Foi parceira na criação do Insti-
tuto Nacional de Segurança no Trânsito no início dos anos 90.
Já com respeito à Raízen, conhecia quase nada, até porque começou a operação há
pouco tempo, embora tivesse grande interesse em conhecê-la, justamente pelo desafio
de operar numa área nada fácil – produção e distribuição de álcool – setor em que a se-
gurança ainda está por se afirmar.
No Brasil, onde atua desde 1913, a Shell emprega 2 mil pessoas e fatura R$ 25 bilhões
(2008). Tem cerca de 4.500 postos de serviço para distribuição de combustíveis, mais de
500 lojas de conveniência, 53 terminais de distribuição e está presente em 54 aeroportos
no negócio de combustíveis de aviação.
No início de 2011, Shell e Cosan criam uma empresa para produzir e distribuir etanol.
Assim nasce a Raízen, uma das cinco maiores empresas do país em faturamento, com
valor de mercado estimado em US$ 12 bilhões e cerca de 40 mil funcionários. A Raízen
produzirá mais de 2,2 bilhões de litros de etanol por ano para atender os mercados in-
terno e externo. Além do etanol, as 23 usinas produzirão 4 milhões de toneladas de açú-
car e têm 900 MW de capacidade instalada de produção de energia elétrica a partir do
bagaço da cana. Como zelar pela segurança desse patrimônio todo?
A seguir leia o que pensam e como agem Shell e Raízen em relação à segurança, se-
gundo o depoimento dos meus entrevistados e de informações de fontes diversas, nota-
damente internet. Os gerentes contatados foram: da Shell, André Augusto Almeida
(Saúde, Segurança e Meio Ambiente), Moises Costa (Segurança Operacional) e o ex-fun-
cionário da Shell Brasil e agora consultor em segurança, Ricardo Shamá. Pela Raízen:
Leandro de Barros Silva (Segurança, Saúde e Meio Ambiente) e o consultor Gilson Fon-
seca, da BSG Consultores Associados, especializada em treinamento de motoristas pro-
fissionais que presta consultoria à Shell e à Raízen.

164 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Zero acidente – a meta
n Entre 2000 e 2008, todas as empresas do Grupo Shell registraram 350 fatalidades
no mundo, ou seja, uma média de 38 mortes/ano. Analisados os motivos, verifi-
cou-se que as fatalidades estavam relacionadas a 12 situações específicas. Isso
gerou a criação das 12 Regras salva vidas, que viraram as regras de ouro para atin-
gir a meta de Goal Zero – zero acidente fatal com pessoas e zero impacto ao meio
ambiente;

n Embora pareça impossível, não é utopia, tanto que há vários exemplos de unidades
Shell pelo mundo inteiro, refinarias, plataformas de exploração e produção que já
chegaram lá. A própria Shell Brasil tem estatísticas de vários milhões de horas de
trabalho sem acidentes fatais;

n As estatísticas dos últimos anos mostram a redução do número de fatalidades na


Shell Brasil entre funcionários e terceirizados, depois de implantadas as 12 Regras
salva vidas, (julho de 2009):
2009 - 20 fatalidades
2010 - 12 fatalidades
2011 - 06 fatalidades;

n As investigações de acidentes são muito criteriosas. Das violações de regras, dois


terços delas estão relacionadas às leis de trânsito;

n Segurança é um valor para a Shell. Outras empresas dizem que segurança é priori-
dade, mas prioridades mudam de tempos em tempos. Por isso, para a Shell, segu-
rança, saúde e meio ambiente são valores, porque valores não mudam. O
compromisso com saúde e segurança é igual no mundo inteiro. A maneira como a
empresa compartilha essa preocupação com seus funcionários é muito forte, mais
visível do que tenho visto em outras empresas;

n Segurança faz parte do negócio como qualquer outro parâmetro. O negócio Shell é
extremamente lucrativo, porém, se os riscos não forem controlados, o negócio deixa
de ser bom por mais que haja ainda uma boa margem de lucro;

n Baseado nisso, há cinco anos foi lançado o Goal Zero, o grande objetivo da compa-
nhia, porque reflete como a empresa vê segurança agregar valor ao negócio. Che-

Setor privado I Shell / Raízen 165


gou-se à conclusão, depois de muitos anos de aperfeiçoamento, estudos e práticas,
que zero acidente é possível e por isso teve coragem de defini-lo como meta;

n Um outro programa – Corações e mentes – foi lançado quando o grupo entendeu que as
coisas só mudam com um trabalho de desenvolvimento e mudança comportamental.
O zero é mudança de comportamento. A empresa trabalha com mudança de compor-
tamento porque atua em mais de 100 países e cada um tem sua própria cultura. Cora-
ções e mentes tem uma relação muito forte com a percepção individual do risco, que
está ligada à cultura, e, assim, trabalha muito em cima do comportamento humano;

n O programa foi desenvolvido pela indústria de exploração e produção de petróleo


na Europa, junto com algumas universidades, há mais de 10 anos. Ele procura levar
os trabalhadores a acreditarem em segurança por si mesmos, tornar as pessoas mais
seguras porque querem, não porque a Shell está dizendo que é importante ou que é
condição de emprego. A partir do momento que o funcionário “compra” a ideia, passa
a participar da segurança dos colegas, intervindo, e aí entram três regras de ouro,
que fazem parte da sustentação do Goal Zero:
• Cumprir – as leis, procedimentos e padrões;
• Intervir – em situações perigosas, que levem a acidentes;
• Respeitar os vizinhos, a comunidade local, portos, aeroportos, plataformas, etc.

n Segurança faz parte do DNA da Shell e de cada funcionário há muito tempo, se-
gundo seus gerentes. Desde 1985, quando lançou o programa Gerenciamento avançado
de segurança, o tema tem evoluído. Para dar ideia da importância do assunto, nos úl-
timos 20 anos, quando o presidente mundial da Shell apresenta o balanço anual das
atividades e resultados do grupo, começa sempre pelo setor de segurança;

n O resultado de segurança da empresa entra numa fórmula que define o bônus de


cada um. A remuneração da Shell é total cash, isto é, fixo mais bônus, em função do
resultado do grupo e do resultado pessoal de cada funcionário;

n O resultado do ano passado foi bom e o bônus deveria ser 1,52 numa escala que vai
a 2. Entretanto, o time de liderança do grupo avaliou que o resultado de segurança,
apesar da melhoria, comparada com anos anteriores, não foi assim tão bom. Cola-
boradores continuaram morrendo (seis mortes), e houve ainda alguns derrames im-
portantes, na Costa da Escócia, que expuseram a marca e impactaram o meio
ambiente, além de um incêndio numa refinaria em Singapura. Por essa razão, o

166 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


bônus caiu para 1,4 e isso é salário que os funcionários estão perdendo. A mensagem
da Shell é a de que segurança realmente é importante;

n Ninguém consegue garantir quando será possível chegar à fatalidade zero, porque
são operações muito complexas, que dependem muito de pessoas, mas também de
outras variantes. O time da segurança, contudo, acha que não está distante;

n No início dos anos 80, quando se observou grande número de acidentes nas suas
operações pelo mundo, a empresa resolveu investir em equipamentos. A engenharia
trabalhava em cada causa para desenvolver respostas para reduzir os acidentes, que
foram caindo até estabilizar numa taxa que, na visão da companhia, ainda era alta;

n No final dos anos 90, começou-se a pensar nas pessoas, no desenvolvimento de perfis
de competência, treinamento, investigação de acidentes. Melhorou mais ainda, mas não
era suficiente. Aí, então, mantendo todo o esforço anterior, decidiu-se que era preciso
atingir e desenvolver a cultura das pessoas, para chegar ao Goal Zero. Esta é a fase atual;

n O modelo Shell de segurança está dentro dos princípios de negócios da companhia.


Trabalha-se para não causar ameaça às pessoas nem impacto ao meio ambiente. In-
sere-se claramente dentro da ética da empresa;

n Segurança é investimento bastante alto porque os padrões de exigência são altos


tanto para as operações de campo ou explorações em alto mar como para os funcio-
nários administrativos;

n Em 2011, por exemplo, foi realizado treinamento de direção defensiva para 140 mo-
toristas de cooperativas de táxi, no Rio, onde fica a sede da empresa. O funcionário
Shell só deve usar táxis que já tenham sido avaliados como seguros pela Shell;

n O mesmo acontece com a companhia aérea que atende o funcionário e passa por au-
ditoria pela Shell Aircraft. Chegando na cidade-destino, o funcionário Shell só aluga
carro dentro dos padrões exigidos pela empresa (carro médio, airbag duplo, freio
ABS, etc.). O motorista do táxi tem que ter recebido treinamento de segurança. O
hotel em que ele vai se hospedar já terá sido avaliado quanto aos padrões de segu-
rança por empresa consultora. Há muitos hotéis pelo Brasil considerados bons, mas
não são aprovados pelos padrões Shell. Tudo isso tem custo;

n As regras valem para qualquer funcionário. Se descumprir algum procedimento,


pode ser advertido. Se descumprir uma Regra salva vidas, pode ser até demitido;

Setor privado I Shell / Raízen 167


n Uma das 12 Regras salva vidas obriga o funcionário a fazer, por escrito, um plano de
viagem (JMP – Journey Management Plan), dependendo da distância que vai percorrer
numa viagem. Há trechos que podem aumentar a duração da viagem, mas são mais
seguros, segundo estudos feitos pelo setor de segurança da Shell. O risco deve ser
tão baixo como razoavelmente praticável. Exemplo: no estado do Rio, a recomenda-
ção é usar a Via Lagos, em vez da BR 101, que o estudo demonstrou ter maior número
de acidentes;

n O funcionário só deve ir de carro se não for possível usar o avião e, aí, sempre por
uma companhia já auditada. Até os horários de voos são incentivados, dentro dos
mais seguros e confortáveis;

n Não existiam ainda (janeiro 2012) normas para funcionários que se deslocam em
seus carros particulares para o trabalho. Neste caso, a empresa sempre faz campa-
nhas que são levadas para dentro de casa, mas é livre-arbítrio;

n Se o funcionário, no seu carro particular, sofrer um acidente e se for constatado que


na hora estava usando o celular, ele sabe que culturalmente vai ser malvisto na em-
presa e que isso pode influenciar em sua avaliação. É um meio de forçá-lo a mudar
a postura;

n Se ele estiver usando o telefone da Shell ao volante, aí ele sabe que está descum-
prindo uma das 12 Regras salva vidas, e a empresa pode interferir. A Shell entende
que é importante trabalhar procedimentos, desenvolver posturas, mas que também
haja procedimentos obrigatórios, mandatórios. Por isso as 12 Regras, que têm caráter
disciplinador;

n Segundo avaliação interna, a cultura de segurança na Shell cobre hoje entre 95% e
100%;

n O problema do trânsito tem a ver com o tripé condutor-equipamento-ambiente ex-


terno. Há casos em que a equipe de segurança avalia como correta a postura do con-
dutor, verifica que o veículo está ok, mas o ambiente externo estava muito agressivo.
Por isso instituiu o Plano de gerenciamento de viagem;

n O que a Shell faz, basicamente, é ter políticas claras, bem definidas e permanentes
na agenda dos líderes, em todos os níveis. Uma vez por ano, há o Dia da segurança,
quando, no mundo inteiro, a Shell realiza eventos de segurança. Nas últimas duas
edições, o tema foi Faça a coisa certa. “Se tiver de parar a produção para evitar aci-

168 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


dente, pare”. Concedeu-se aos funcionários essa autoridade para convencê-los da
importância da segurança;

n Em 2011, a Shell Brasil não registrou acidente fatal. Houve apenas lesões pessoais.
O resultado melhorou;

n Não é fácil achar consultores já preparados no mercado brasileiro para dar o tipo de
treinamento e capacitação profissional no padrão exigido. A Shell pesquisou opções
e desenvolveu consultores para atender suas exigências;

n Assim surgiram a BSG, para a segurança no trânsito, e a DSS, na área de segurança


industrial, consultorias de porte menor, mas com larga experiência na área de disse-
minação da cultura de segurança;

n O treinamento de motoristas de automóveis da Shell chama-se Segurança e atitude


no trânsito (SAT) que, antes, chamava-se Direção defensiva. A linha de treinamento
é para comportamento prevencionista. Reconhece que há situações em que o mo-
torista não pode evitar ações do ambiente externo, mas deve, pelo menos, se pre-
parar para elas;

n O conceito de atitude é importante porque o motorista não dirige apenas na defen-


siva, mas sua atitude (defensiva) pode influenciar a dos outros. O SAT foi criado
para treinar motoristas de veículos de passageiros;

n A Shell compara sua performance de segurança dentro de um grupo de cinco em-


presas do segmento de petróleo: Shell, British Petroleum, Exxon Mobil, Chevron e
ConocoPhillips, o que não impede que, em situações específicas, faça benchmarking
com outras empresas;

n Quando pergunto “para onde caminha o futuro da segurança na Shell?”, a resposta é:


“Não vai terminar nunca, porque segurança é feita para pessoas e na medida em
que essa cultura de segurança se desenvolve, novos funcionários vão entrando, o
que significa mais desafios.” Por isso, o Goal Zero é indispensável;

n Há um princípio na Shell que diz: “Goal Zero é trabalhar todos os dias para não
ter acidentes. Cada um tem que atingir o seu Goal Zero todos os dias. Os líderes
têm que trabalhar para que suas equipes fechem o dia sem acidentes, atingindo o
zero fatalidade, mas no dia seguinte têm que começar tudo de novo. A segurança é
implacável, se houver cochilada, acontece um acidente.”

Setor privado I Shell / Raízen 169


n O incentivo para que todos cheguem ao zero acidente é o seguinte: a Shell tem perto
de 100 mil funcionários e quase 1 milhão de contratados no mundo inteiro. Quantas
dessas 1 milhão de pessoas chegam em casa em segurança no final do dia? Uma par-
cela muito pequena, ínfima, se acidenta. Assim, é possível atingir o Goal Zero, mi-
lhares de pessoas provam isso todos os dias, só dentro da Shell;

n O futuro da segurança da Shell é positivo, mas o desafio para mantê-lo vivo é cons-
tante. A companhia tem provado que o discurso não pode estar dissociado da prá-
tica. O desafio é nunca esquecer de avaliar o risco em cada ato praticado;

n As estatísticas de transporte rodoviário da Shell, nos últimos 10 anos, mostram que


a empresa saiu de alguns acidentes fatais para zero fatalidades. Nos últimos dois
anos não houve fatalidades. Essa conquista se deve à nova abordagem da cultura
de segurança, envolvendo motoristas contratados, já que ela não tem transportadora
própria. Desde o ano passado, o transporte rodoviário de combustíveis está sob a
responsabilidade da Raízen;

n Não é aceitável para a Shell nem para a Raízen serem causa de uma fatalidade ou
ferimento de pessoas, ou mesmo serem a causa de uma incapacidade de alguém ou
ainda de uma atividade que tenha consequências danosas para o meio ambiente.
Isso é um princípio empresarial;

n Desde sempre a Shell tem os princípios empresariais e de saúde, segurança e meio


ambiente estabelecidos em contrato de trabalho, que incluem princípios de ética, có-
digo de conduta, princípios de consequências ligados ao meio ambiente, às pessoas,
aos ativos, à reputação da empresa. E agora, com a Raízen, isso se mantém;

n O lançamento do Goal Zero, há seis anos, envolveu todas as empresas da Shell no


mundo inteiro e os resultados foram muito expressivos. A mesma conduta – de não
ser aceitável um acidente por uma postura indevida – vale para funcionário da com-
panhia como para contratado, porque, afinal, o contratado também leva a marca, os
valores e os conceitos da empresa, além do treinamento.

170 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


As 12 regras de segurança que salvam vidas da Shell

Trabalhar com Realizar testes Verificar o Verificar o


permissão de de gás quando isolamento antes isolamento antes
trabalho quando for exigido do início do do início do
for exigido trabalho e usar trabalho e usar
equipamento equipamento
de proteção de proteção
específico específico

Obter permissão Proteger-se de Não caminhar Não fumar fora


antes de uma queda no sob uma carga das áreas para
suprimir ou trabalho em al- suspensa fumantes
desabilitar um tura
equipamento
crítico de
segurança

Fonte: http://www.shell.com.br

Não estar sob o Ao dirigir, não Usar o cinto de Seguir o plano


efeito de álcool usar o celular segurança de viagem esta-
ou drogas e não exceder belecido
enquanto o limite de
trabalhar ou velocidade
dirigir

Setor privado I Shell / Raízen 171


Raízen
n Como explicado antes, a Raízen é a empresa criada no início de 2011 pela Shell e
Cosan para produção e distribuição de etanol no Brasil. Já nasce como um gigante
do setor no país, com os mesmos desafios de segurança da Shell e já trazia toda po-
lítica de segurança da Esso/Cosan, de quem adquiriu o negócio da distribuição de
combustível no país;

n Sediada em São Paulo, a Raízen fundamenta suas operações de campo nos mesmos
conceitos de segurança da Shell e da Cosan. Embora comungue dos mesmos precei-
tos de segurança da Shell, a Raízen tem uma operação de campo bastante diferente,
mas nem por isso menos exposta a situações de riscos. Por isso as normas de segu-
rança são rígidas para todos os colaboradores;

n Transportadora interessada em trabalhar para a Raízen passa por minuciosa avalia-


ção. Primeiro é feita auditoria, inspeções de equipamentos (caminhões, tipos de car-
rocerias, etc.), verificação se a empresa tem programa de gestão de segurança e de
meio ambiente;

n Se passar por esse primeiro filtro, há um curso de treinamento para motoristas. De-
pois, cada motorista é acompanhado por um monitor, que avalia sua habilidade. Só
então a empresa é cadastrada e passa para a fase de negociação. Há também treina-
mento em nível gerencial para disseminar a cultura de segurança para que, enfim,
possa começar a trabalhar;

n Motorista profissional que trabalha para a Raízen não dirige mais que nove horas
por dia com uma hora de descanso, em três intervalos. Hora extra só pode fazer de
dois em dois dias;

n Evidências de que a política dá bons resultados: está há dois anos sem fatalidades
no transporte rodoviário aqui no Brasil;

n Os caminhões que transportam para a Raízen rodam 140 milhões de km/ano para
atender as áreas de logística, distribuição e trading. A cada dia de operação são 400
mil km, 2.500 motoristas à disposição para aproximadamente 1.700 equipamentos,
todos contratados. A exposição nas estradas é muito grande e por isso é preciso ga-

172 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


rantir que a operação tenha controle muito firme e disciplinado para garantir uma
postura defensiva em relação ao ambiente brasileiro;

n A Raízen mantém uma equipe fixa de motoristas, dedicados à operação exclusiva.


Para começar a trabalhar na empresa, o motorista passa por treinamento para dirigir
caminhão-tanque de produtos inflamáveis, para as operações de carga e descarga,
outros de indução da própria transportadora e ainda recebe uma série de informa-
ções sobre gestão e controle do sistema de gestão e segurança;

n O motorista participa mensalmente da reunião de profissionais, que cada mês tem


um tema específico de segurança. Cada dia que chega para trabalhar na transporta-
dora, participa de um DDS (Diálogo Diário de Segurança). O caminhão dele é dotado
de computador de bordo, que registra velocidade, freada brusca, jornada de trabalho,
condições, paradas, etc.;

n Mensalmente é produzido um relatório de não conformidades. A cada 10 dias, den-


tro do mês, a empresa recebe um relatório do computador de bordo que, primeiro,
é analisado pela transportadora e depois pela Raízen. Aí são analisados os motoristas
que cometem violações e que, então, passam por reciclagem em treinamento e con-
versas com as lideranças nas transportadoras;

n A política de segurança da Raízen é a bíblia da empresa, que norteia todas as ativi-


dades relacionadas à segurança. Ela é calcada no Sistema Integrado de Gestão Ope-
racional (SIGO), composto de nove elementos:

1. Liderança e comprometimento;
2. Avaliação de risco;
3. Conformidade legal;
4. Comportamento de segurança;
5. Padrões e procedimentos operacionais;
6. Resposta de emergência;
7. Comunicação e relatório de acidentes;
8. Contratação de serviços;
9. Avaliação gerencial.

n Há ainda as auditorias invisíveis, para saber como o motorista está dirigindo: são
feitas dentro das operações de carga, descarga e trânsito e nas rotas de maior risco.
Além disso, há também um programa de incentivos para os motoristas e filiais, que

Setor privado I Shell / Raízen 173


é a campanha do Zero Acidente. Ela se divide em duas partes, uma voltada ao mo-
torista e outra ao supervisor da filial em que ele trabalha;

n Na segurança do transporte rodoviário, o maior desafio continua sendo a parte com-


portamental dos motoristas. Conseguir fazer com que acreditem que todos os itens
relacionados com a segurança – comunicados, discutidos com eles – são realmente
para a sua segurança. Que eles têm benefício concreto caso garantam a correção dos
procedimentos estabelecidos;

n Cultura de segurança é levar o motorista a ter atitude segura não porque está sendo
vigiado ou será punido, mas porque vai salvar a sua vida
e de outras pessoas que convivem com ele. Para a Raízen,
quem dá licença para operar é a sociedade. Quanto mais

‘‘
responsável for o motorista perante a sociedade, mais li-
Para a Raízen, quem
cença e autoridade terá para trabalhar;
dá licença para operar é a
sociedade. Quanto mais n Uma boa medida para incrementar a cultura de segu-
responsável for o motorista rança foi a de indicar um agente de mudança em cada
perante a sociedade, mais unidade, em cada transportador, cada terminal ou ne-
licença e autoridade terá gócio da companhia. Foram selecionados alguns fun-
para trabalhar cionários, espalhados no país inteiro, que atuam como
agentes de mudança e que demonstram aderência
maior às questões de segurança;

n Um seminário no Rio de Janeiro, há três anos, para essas 40-50 pessoas, identificou os
multiplicadores da parte comportamental da empresa e discutiu os cinco elementos
que cada um iria fomentar na sua unidade. Hoje, quando a empresa faz uma campanha
de segurança, não premia apenas as equipes que tiveram o melhor resultado, porque
algumas podem ter chegado ao zero acidente por sorte. O que se pretende são sinais
visíveis de que aquele gestor de segurança ou aquele agente de mudança trabalhou;

n Segurança é bom negócio. Há empresas que ficam semanas com os seus terminais e
operações paralisados por questões de segurança, de acidentes. Se um terminal parar
por uma ou duas semanas o prejuízo será muito grande. Hoje segurança é licença
para operar. Se não puder trabalhar com segurança, a empresa prefere não operar;

n Uma grande mudança ocorrida na Shell e incorporada na Raízen foi a percepção de


que a maior parte dos acidentes tem uma causa-raiz ligada a comportamento e não

174 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


a ferramentas. Essa parte de cultura de segurança é nova e muitos têm dificuldades
de tratar isso de forma prática, como obter resultados dessa estratégia;

n Ficou claro que não adianta gastar em equipamentos se a causa dos problemas está
no comportamento. Assim, a grande mudança foi sair da cultura reativa para o que
se chamou de cultura generativa, em que o funcionário não precisa ter ninguém vi-
giando para manter um comportamento seguro, mas saber por si mesmo que é im-
portante tomar a decisão de agir de forma segura por livre vontade;

n Nos últimos dois anos a Shell (e agora Raízen) teve zero fatalidades no transporte
rodoviário, apesar do grande número de veículos de cargas (todos contratados) e
milhões de quilômetros de estradas;

n Não é aceitável para a Shell nem para a Raízen ser a causa de uma fatalidade, ferir
pessoas, ser a causa de uma incapacidade de alguém ou de uma atividade que tenha
consequências danosas para o meio ambiente. Isso é um princípio empresarial;

n Desde sempre a Shell mantém os princípios empresariais de saúde, segurança e meio


ambiente, estabelecidos em contrato de trabalho, que incluem ética, código de con-
duta, princípios de consequências ligados ao meio ambiente, às pessoas, aos ativos,
à reputação da empresa. E agora, com a Raízen, se mantém.

n O lançamento do Goal Zero, há seis anos, permeou a Shell no mundo inteiro. A Raízen
continuou o que fazia a Shell, tanto que sua campanha, quando começou, foi Zero
Acidente;

n No início da operação da Raízen, foi firmado um acordo entre os acionistas para a


definição dos padrões a serem adotados por ela. Tudo começa com os padrões, que
a Shell também aplica nas suas joint ventures. A Raízen segue o mesmo modelo. A
diferença é que está sob outro controle operacional e que responde para um comando
importante no Brasil, por mais que se reporte aos acionistas;

n A empresa entende que já percorreu um bom caminho – os indicadores de segurança


mostram isso. Pelas estatísticas de segurança, pelo profissionalismo dos fornecedores
e contratados, vê-se que já cresceu muito nessa área. O desafio agora é convencer
que segurança não é responsabilidade apenas da equipe de segurança, mas de todos;

n A mensagem é: quem está fazendo uma operação, mesmo que seja no escritório, tem
que saber que uma decisão sua pode impactar uma decisão de segurança lá fora. O

Setor privado I Shell / Raízen 175


desafio é fazer com que a empresa inteira convirja para esse sistema de segurança.
O X da questão é a aplicação, é fazer com que o sistema não vire apenas um manual
engavetado;

n Na área de segurança, quando tudo vai bem não se tem notoriedade, mas quando
algo acontece imediatamente surgem reações. Atualmente, pelo sistema de gestão,
em cada operação da Raízen é obrigatório um plano de emergência, além dos simu-
lados de emergência, que devem produzir conhecimentos;

n Esses planos no transporte de combustível mudaram por três fatores principais: le-
gislação, que mudou bastante nos últimos anos e é mais rigorosa para o exercício
de uma atividade perigosa; a relação de equipamentos, para casos de emergências,
e o profissionalismo das empresas e serviços que atuam na simulação de respostas
de emergência. Os três pontos evoluíram bastante nos últimos 10 anos;

n O setor entende que ainda precisa melhorar com relação a respostas de emergência
que devem ser eficazes no Brasil, com atuação de forma mais abrangente, envol-
vendo governo e instituições por meio de planos de ajuda mútua. Neles, as empresas
se interfaceiam com o governo e outros órgãos;

n Entre as petrolíferas existe esse plano de auxílio mútuo. No Caribe, por exemplo, há
uma empresa de resposta de emergência para mar e rios, que utiliza avião para che-
gar aos locais de emergência;

n No Brasil, os setores de cargas perigosas e de minérios são áreas que têm melhor es-
trutura em relação a planos de emergência, à complementação de planos com ajuda
mútua, uma área de cooperação;

n Quando se fala em comportamento e cultura de segurança, que é a parte mais sub-


jetiva, mas é a que traz mais benefícios, é difícil encontrar no Brasil treinamento de
qualidade superior, profundo, que aborde bem o tema, ou um programa calcado em
experiências, com resultados concretos, que não seja apenas teórico;

n Nas universidades não há cursos relacionados a isso, há algumas cadeiras que tratam
do tema de forma superficial. Há poucos consultores de bom calibre na área. E esse
é um setor que demanda muito, as investigações mostram que os acidentes estão to-
talmente ligados a comportamento de segurança.

176 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


A visão do consultor
Gilson Fonseca, consultor em treinamento de motoristas da Shell e Raízen, sócio da BSG Con-
sultores Associados, do Rio de Janeiro. Trabalhou mais de 20 anos na Esso Brasileira, nas áreas
de segurança, treinamento e transportes. Qualifica de 100 a 200 motoristas mensalmente em
MOPP (Movimentação Operacional de Produtos Perigosos) e responde pelo treinamento dos mo-
toristas que serviam a Shell e agora servem a Raízen em todas as suas operações.

n A demanda por treinamento de motorista profissional está grande porque, atualmente,


se ele quiser alcançar melhor salário tem que ter o MOPP, pois é o mercado que mais
paga, que oferece melhores condições de trabalho e as empresas são sérias. Se não tiver
MOPP e for trabalhar em qualquer transportadora, pode ter problemas em relação à
jornada de trabalho, à legislação... E as grandes empresas têm essa preocupação;

n A BSG criou um modelo próprio de treinamento de motoristas denominado Sistema


BSG de Direção Segura, levando em conta a experiência acumulada de Gilson Fon-
seca – mais de 20 anos na área – e os conhecimentos de outros países. O sistema tem
um modelo que atende às necessidades do Brasil de hoje;

n A experiência tem grande ênfase nas posturas proativas do motorista e o foco é com-
portamental. A ideia não é ensinar o motorista a dirigir, porque isso ele sabe. O que
se pretende é verificar de que forma ele dirige, se não gera risco para a sua vida e
para a condução;

n Além das posturas proativas, o treinamento inclui as políticas da empresa, a fadiga,


o álcool, as drogas e o Código de Trânsito Brasileiro. São oito horas de treinamento,
sendo três de teoria. Depois, três motoristas saem de carro pela cidade e todos ava-
liam todos, por meio de check list que aponta hábitos inadequados. Cada grupo leva
em média duas horas;

n Usa-se a técnica da verbalização: o motorista vai narrando o que está acontecendo e


assim consegue assimilar melhor as posturas, além de possibilitar aos outros melhor
avaliação. Quando voltam à empresa, fazem reunião de feedback, primeiro do que foi
positivo, depois das correções, com uma discussão entre todos. É um treinamento
em que se trabalha muito o comportamento do indivíduo;

n A experiência com a Shell apontou redução de 80% dos acidentes. Hoje todos os mo-

Setor privado I Shell / Raízen 177


toristas das transportadoras que prestam serviços para a Raízen e os funcionários
que utilizam veículos leves são obrigados a ter esse treinamento;

n Trabalho especial foi a Operação Samarco, o gerenciamento de pontos de riscos do tra-


jeto Rio-Anchieta (ES), pela BR 101, na transferência de produtos da Shell para a Sa-
marco. Eram cerca de 100 caminhões com alto nível de acidentes. A Operação
Samarco determinou três pontos de checagem dos motoristas: Rio, Anchieta e outro,
central. Antes de iniciar a viagem, o motorista passava pelo bafômetro, diálogo de
segurança diário, conferência de todos os itens do check list do caminhão, incluindo
controle que checava se o MOPP, os treinamentos e tudo mais estavam em dia. Só
então o motorista era liberado para o trabalho. O mesmo procedimento acontecia
nos outros dois postos de checagem, a cada 700 km. Os problemas sumiram;

n Para ter certeza de que os motoristas estavam tendo comportamento adequado, foi
criado o Spy Driver, o monitoramento invisível: uma equipe em carro descaracteri-
zado, com radares de velocidade, filmadoras, etc., seguia o caminhão por 30 quilô-
metros verificando a postura do motorista, se falava ao celular, se dava carona, se
estava muito colado no carro da frente, se respeitava os limites estabelecidos no tre-
cho – coisas que a telemetria e o computador de bordo não pegam. Com essa opera-
ção, que durou três anos, chegou-se ao Zero Acidente. Depois, a experiência foi
estendida para descarga em postos de combustível;

n Há muitos motoristas tão comprometidos com segurança que até se pode dizer que
têm segurança no seu DNA. Mas ainda há muito por fazer para estender o compro-
metimento a todos. Muitas transportadoras se preocupam com segurança apenas
porque o embarcador exige;

n Segundo Gilson Fonseca, há dois tipos de motoristas no quadro funcional de muitas


empresas: aqueles que obedecem as regras e outros que não. Às vezes, acontece de
o motorista não querer trabalhar para uma grande empresa, mesmo que ganhe
mais, por causa do nível de exigências. Esse não tem segurança no DNA, apenas
cumpre as regras.

178 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Transportadora
Americana
QUANDO PERGUNTO A CARLOS PANZAN – o conhecido diretor da Transportadora
Americana, de Americana, cerca de 130 km de São Paulo – “quanto custa segurança para a
TA?”, a resposta é imediata, clara, sem qualquer hesitação: “Não custa nada. A falta de
segurança é que custa muito pelos prejuízos que provoca.”

A TA é um dos ícones da segurança no transporte rodoviário de cargas no país. Com


mais de 70 anos de existência, hoje, na realidade, é um grupo multimodal (logística, ro-
doviário, aéreo e cabotagem), formado por quatro empresas que, juntas, consolidam um
apreciável volume de conhecimento para manter a TA na liderança do setor. São elas:

n TA Log, empresa de logística que conta com armazéns na região metropolitana de


Campinas e de Recife, além da infraestrutura das filiais da Transportadora Ameri-
cana. Atua em diversos segmentos: farmacêutico, químico, veterinário, cosméticos,
autopeças e eletrônicos.

n TA Express, especializada em encomen-


das expressas e urgentes. Com atuação
desde 2004, integra os transportes aéreo,
rodoviário e marítimo, a logística re-
versa, as embalagens e as condições es-
pecíficas de coleta, distribuição e
acondicionamento.

n Wind Express, pertencente à Holding


TA, conta com toda a sua estrutura e
know how, oferece serviço especializado
no transporte de encomendas expressas
e emergenciais, com divisões de cargas
perecíveis e promocionais. Atua
em diferentes segmentos,

Setor privado I Transportadora Americana 179


principalmente no farmacêutico, no de laboratórios e de outras encomendas que
necessitem de controle de temperatura e cuidados especiais.

n Universidade do Transporte, a primeira universidade corporativa do setor, criada


em 1998 para garantir e intensificar a qualificação dos profissionais envolvidos no
transporte. Alinhada à gestão do conhecimento como fator de sucesso, a Universi-
dade do Transporte atualmente atende não apenas suas centenas de funcionários,
como também as do setor interessado no fortalecimento da cultura empresarial, do
aperfeiçoamento tecnológico e da valorização profissional como ser humano. Como
empresa independente, oferece cursos, seminários e palestras nos seus domínios, na
Universidade do Transporte e in company.

Segurança é claramente uma das maiores preocupações da TA e uma das áreas


que recebe constantes investimentos. A empresa investe 3,5%, dos R$ 250 milhões do
faturamento bruto em tecnologia da informação e telecomunicações, em sistemas e
redes de alta performance de dados e voz, em tempo real, garantindo segurança e
controle de conteúdo. A segurança é um dos setores
mais beneficiados com os melhoramentos sistemáticos.
A TA já ficou mais de 20 anos sem um acidente fatal,

‘‘
marca considerável para as más condições rodoviárias
A TA já ficou mais
brasileiras e considerando-se que em média seus quase
de 20 anos sem um acidente
1.300 caminhões rodam mais de 10 milhões de quilôme-
fatal, marca considerável
tros por ano. Motoristas muito bem treinados (têm uma
para as más condições
universidade dentro de casa), veículos novos – idade
rodoviárias brasileiras e
média da frota é de três anos –, suportados por tecnolo-
considerando-se que em
gia de ponta, o que também equivale a monitoramento
média seus quase 1.300
permanente e detalhado.
caminhões rodam mais de
Com 3.500 funcionários, incluindo as 43 filiais em
10 milhões de quilômetros
praticamente todos os estados da Federação, a TA in-
por ano
veste aproximadamente 75 horas/ano em treinamentos
por colaborador, que também é média bastante alta
comparada com o padrão nacional. Corresponde a pra-
ticamente duas semanas, o que é fora dos padrões das melhores médias brasileiras.
Carlos Panzan me conta que, há tempos, o carro-chefe da empresa era a comerciali-
zação, mas agora a segurança caminha junto, porque é a credibilidade, a integridade das
pessoas e da mercadoria, a participação na sociedade, que está em jogo. “Segurança, que

180 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


começou há vários anos com o meu irmão, Adalberto Panzan, hoje é
algo que temos como um dogma: a qualidade do nosso pessoal, dos
nossos motoristas, das cargas dos nossos clientes e dos nossos
veículos.”
“Há mais de 20 anos a TA tem uma comissão de trân-
sito e, como não existia escola no setor de transportes,
sempre formou seus próprios profissionais e, conforme
seus méritos, eles mesmos vão se promovendo dentro da
empresa. A diretoria incentiva para que alcancem novas cate-
gorias de habilitação – chegamos até a adiantar o valor das des-
pesas. Há vários anos, a empresa adotou, como carga máxima de
trabalho para os motoristas, onze horas entre jornadas, monitorados,
e eles não excedem a jornada prevista no estatuto. Um ponto que a TA
considera muito importante é a medicina do sono, que pode ter custo ele- Panzan
vado, mas necessário.”
Segundo Panzan, a importância da segurança acaba influenciando os colaboradores,
notadamente motoristas, que percebem esse valor da empresa por meio dos processos e
das metas. “Ele entra aqui e passa por todos os procedimentos, integração, conheci-
mento da filosofia, diretrizes e normas, etc. Vai conhecer os pontos de parada, para a
segurança própria e da carga, onde pode e não pode parar, como funciona o monito-
ramento. É todo um trabalho de conscientização que envolve o comercial, a operação
e o setor de rastreamento e segurança”, detalha o diretor.
Quando pergunto se segurança está no DNA da empresa, ele tem um “sem dúvida”
na ponta da língua. “Isso faz parte da qualidade. Somos a primeira empresa a ser cer-
tificada pela ISO 9001. Somos perfeccionistas, muito exigentes nos quesitos qualidade
e ser humano. Não adianta ter um veículo com alta tecnologia e não ter pessoal capa-
citado”, explica Carlos.
Francisco Magri, diretor de operações, afirma que o cliente TA valoriza a segurança
e se apoia nas pesquisas feitas anualmente que mostram que os clientes avaliam a segu-
rança como primordial. “Para nós e para nossos clientes, sim, segurança é negócio”,
reafirma.
Ele conta que busca estar sempre ligado com o que está acontecendo nas áreas de
transportes, tanto no país quanto no exterior. “Durante um tempo achávamos que es-
távamos fazendo poeira para os outros e, na verdade, estávamos comendo poeira sem
perceber. Reagimos, começamos a trabalhar mais o benchmarking, olhar para fora,

Setor privado I Transportadora Americana 181


ver o que o mercado fazia, começamos a buscar pessoas no mercado que realmente
fariam e fizeram a diferença. Isso foi determinante e serviu para oxigenar a empresa”,
relembra Magri.
Um trabalho importante é desempenhado pela Comissão Interna de Trânsito, res-
ponsável pela investigação e análise de acidentes. Carlos Panzan explica que a equipe é
treinada para atender e investigar todos os acidentes e, quando necessário, contratar
uma equipe de peritos. No trabalho de análise são considerados todos os aspectos que
podem contribuir para o acidente, tais como problemas nas rodovias, condições do
tempo, pista escorregadia, etc.
Interesso-me pela opinião dos executivos da TA sobre o papel das empresas de trans-
porte rodoviário para melhorar a segurança, especialmente com relação à acidentalidade.
Silvio Cesar Faria Sanches, gerente de transferência, 20 anos de TA, conta que “o principal
papel da TA é o da educação. Fazer com que o motorista entenda os riscos que corre
durante o seu trabalho se não cumprir as exigências que a empresa faz, tais como o
tempo de descanso, as boas condições de dormitório, o treinamento, o acompanha-
mento dos monitores, a alimentação, o preenchimento do check list do veículo, o en-
volvimento da família para compreender a importância do seu descanso e da
alimentação adequada”.
Francisco Magri completa: “Essa educação é o nosso principal desafio. Quando
chega a avaliação de qualquer ocorrência, a gente verifica que quase sempre houve
negligência em algum desses pontos. Em 2011, tivemos uma fatalidade de um terceiro
pela falta do cinto de segurança.”
Sílvio emenda: “Acho que a questão da acidentalidade passa muito pela respon-
sabilidade de algumas empresas. Hoje há falta de profissionais qualificados no mer-
cado e há empresas que decidem colocar o veículo na estrada e não se comprometem
com questões fundamentais para a segurança, como o tempo de descanso, o treina-
mento do motorista. Algumas empresas não se conscientizaram que isso está em pri-
meiro lugar. Colocam o motorista na estrada mesmo que ele não esteja preparado.
Esse é um problema sério no país, a falta de profissionais, e a falta de qualificação
que seria de responsabilidade das empresas.”
A comissão de trânsito da TA procura levar os motoristas que passaram por momen-
tos complicados para contar a sua experiência durante os treinamentos. Não apenas os
que se acidentaram como aqueles que enfrentaram alguma situação difícil. São informa-
ções importantes para o grupo de profissionais.
O segredo dos bons índices de segurança da TA começa pelo treinamento. É aquela

182 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


história de estar sempre lembrando sobre os pontos essenciais. Outro é a formação in-
terna de motoristas e a promoção: dos carreteiros, 80% a 90% foram promovidos inter-
namente, deixaram de ser ajudantes, passaram a conferentes, motoristas urbanos, depois
truck e chegaram às carretas.
José Luiz da Silva, da área de gestão, credita o sucesso da TA também ao critério
muito rígido de contratação dos agregados. A avaliação do motorista ocorre num pro-
cesso muito seletivo e mesmo os agregados acabam fazendo depois o treinamento da
empresa, para receber a cultura da casa. Além disso, há a participação dos monitores,
que são motoristas experientes, já com muitos anos de empresa, com
vários cursos de formação na TA, Senai, Sest/Senat, CNT, que validam

‘‘
a parte técnica dos novos motoristas. Depois de contratados, eles
ainda ficam sob acompanhamento e avaliação durante um período Para proporcionar
por esses monitores. melhores condições
Para ser motorista da Transportadora Americana, é preciso, antes de trabalho aos
de mais nada, ter experiência para a vaga aberta. Para promoção in- motoristas, o Programa
terna deve ter a habilitação correta, e aí o papel dos monitores, que Medicina do Sono
chegam a ficar dois meses treinando com alguém que quer ser moto- patrocinou adaptações
rista. Até que o monitor o considere apto, ele não sai sozinho. Para no desenho da cadeira
contratação externa, além de ter a CNH correta, passa por entrevistas de motorista, na troca
com psicóloga, depois com o superior da área, teste toxicológico e um das lâmpadas dos faróis
teste com o monitor. Cumpridas essas etapas, entra o processo buro- dos ônibus, iniciativas
crático da contratação. Depois de todas essas fases ele passa a conhe- que buscam proporcionar
cer as rotas como carona de outros motoristas mais experientes. Fica maior conforto aos
cerca de um mês só observando como os motoristas dirigem e conhe- condutores dos ônibus,
cendo as rotas. durante seu trabalho
A empresa chega ao ponto de exigir do motorista a qualificação
para transporte de químicos, o MOPP, muito embora esse não seja o
produto transportado pela TA. As exigências passam não só pela qualificação profissio-
nal como também pela postura pessoal do motorista.
Pelo programa Valendo, a TA financia o motorista interessado em se qualificar, ou
mesmo os que não são motoristas profissionais, como os ajudantes, a retirar a habilitação.
Exemplo, um truckeiro (carteira D) que tenha interesse em se habilitar para a carreta (E).
É um estímulo que a empresa dá para que o motorista realize o sonho, já que o custo
para a mudança gira em torno de R$ 1.200,00. A empresa cobre os custos e o funcionário,
já na nova função, vai reembolsá-la dentro de um acerto prévio.

Setor privado I Transportadora Americana 183


Sobre as principais características/qualidades de um motorista da Transportadora
Americana, Silvio dá as coordenadas: “Na contratação são avaliadas as habilidades na
condução, a aparência, o asseio, já que vai lidar com o nosso público externo, a ambi-
ção de evoluir na empresa, disposição para horários, trabalho noturno, se teve envol-
vimento com acidentes e a conduta, por meio de teste toxicológico e a pesquisa que
a seguradora exige.”
Na TA todos afirmam que, além dos benefícios da tecnologia dos veículos, a se-
gurança melhorou muito graças ao treinamento e ao respeito das regras de descanso
e tempo de direção dos motoristas. “Se observarmos esse tempo de descanso, tira-
mos certas lições até para saber os horários que dão mais sono. Da análise dos
acidentes tiramos e aplicamos muitas lições. Quando passamos o pessoal pela me-
dicina do sono, detectamos o perfil do motorista, que
muitas vezes não é adequado para trabalhar à noite,

‘‘
por exemplo. Outras lições que tiramos foi quanto aos
dormitórios dos motoristas, que antes tinham quartos
Há mais de 15
para três, mas percebemos que, para melhorar a qua-
anos a TA faz teste de
bafômetro, que não era lidade do descanso, deveriam ser para dois. São coi-

obrigado por lei, mas era sas que fomos aprendendo com o tempo e

feito com aquiescência melhorando – e isso tudo por conta da análise dos aci-

deles mesmos, motoristas. dentes”, detalha Panzan.

Todos os motoristas, e até Há mais de 15 anos a TA faz teste de bafômetro, que

funcionários administrativos não era obrigado por lei, mas era feito com aquiescência
quando saem de viagem deles mesmos, motoristas. Todos os motoristas, e até
ou para entrega, fazem o funcionários administrativos quando saem de viagem
teste, assim como o teste ou para entrega, fazem o teste, assim como o teste toxi-
toxicológico cológico.
Qual o futuro da TA? Para onde caminha? Pergunto
a Carlos Panzan, que repete seu predecessor e irmão
Adalberto, que foi o responsável por disseminar a cultura
de segurança, credibilidade, qualidade no serviço. “Nós não queremos ser grandes,
mas eficientes. Hoje atendemos o Sudeste-Sul rodoviário, Centro-Oeste com parceria,
Norte e Nordeste com a logística e todo o país via aérea – temos duas empresas aé-
reas. Precisamos nos renovar para crescer cada vez mais, fazendo bem feito.”
No finzinho da conversa, Carlos revela seu sonho de futuro para a TA: “Gostaríamos
de chegar a uma Fedex, para quem prestamos serviço na região Sul. A Fedex nos en-

184 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


sinou e tem nos ensinado muito. Queremos automatizar a operação e estamos fa-
zendo isso até por questões de redução de custos e confiabilidade. Temos que otimi-
zar a operação para melhorar o retorno, que já foi melhor.”

Setor privado I Transportadora Americana 185


“ Um mundo
diferente não pode
ser construído
por pessoas

indiferentes
(Peter Marshall, líder religioso estadunidense)

O que é sociedade – 1. Sociedade é o conjunto de pessoas que com-


partilham propósitos, preocupações e costumes, e que interagem entre
si constituindo uma comunidade; 2. A origem da palavra sociedade vem
do latim ‘societas’, uma ‘associação amistosa com outros’; 3. ‘Societas’ é
derivado de socius, que significa ’companheiro’, e assim o significado de
sociedade é intimamente relacionado àquilo que é social.1
1
Wikiquote, a coletânea de citações livres.
S
SOCIEDADE
Por que sociedade:
Um livro que pretenda mostrar
progressos na disseminação do saber sobre
segurança no trânsito não pode deixar de
ter um bom espaço dedicado à
SOCIEDADE. Este capítulo relata alguns
casos de disseminação da cultura de
segurança no trânsito em circunstâncias
bastante diversas. Aqui você vai
encontrar boas evidências de que
efetivamente progredimos na busca
da melhoria do trânsito, de que a
sociedade está realmente bem mais
antenada para as questões da violência
e sabe por onde ir.
A sociedade e a
segurança no trânsito
QUANDO COMECEI A ME ENVOLVER COM A SEGURANçA NO TRÂNSITO, em
1986, era facilmente perceptível o nível de desinformação da sociedade sobre o tema.
Quando falo da sociedade, me refiro ao conjunto dela, seus diversos segmentos, governos
(federal, estaduais e municipais), setor privado, entidades, instituições políticas, sociais
e religiosas, setor da educação, enfim, todos.
Na metade dos anos 1980, o trânsito não tinha a conotação neurótica dos dias de
hoje, embora já prenunciasse o que todos poderiam esperar. Acidentes de trânsito só
eram alvo de maior atenção quando envolviam muita gente ou personalidades da cons-
telação social, política ou econômica, aliás, como o são, hoje, também.
Na imprensa, acidente de trânsito era, basicamente, notícia de colunas policiais. Jor-
nais não tinham equipes para cobrir trânsito e, muito menos, especialistas – ou setoristas,
como se chamam hoje em dia os repórteres incumbidos de cobrir alguma área específica
de atividade.
Lembro-me que, percorrendo os setores governamentais ligados à área de transporte
e trânsito, o único órgão que tinha uma campanha anual de segurança no trânsito era o
extinto DNER, hoje DNIT, e que usava toda sua verba orçamentária de um milhão de
dólares, aproximadamente, numa campanha que durava pouco mais de dois meses. Na
avaliação dos seus técnicos, as campanhas davam bons resultados – “mas só durante o
período em que estavam no ar” –, depois os acidentes voltavam a subir e muitas vezes
chegavam a patamares mais altos do que antes das campanhas. Claro, não havia conti-
nuidade e, consequentemente, as pessoas esqueciam as mensagens e os números volta-
vam às rotinas de sempre.
Como nunca tivemos cultura de segurança no Brasil, não era de surpreender que não
encontrássemos programas de segurança no trânsito. Na verdade, nossos governantes sem-
pre manifestavam interesse “no crescimento, no desenvolvimento econômico e social”, mas nunca
foram alertados de que o progresso deveria ser conseguido com segurança. Na minha visão,
isso explica a ausência de propostas explícitas, detalhadas, de segurança no trânsito, não só
como tema das campanhas eleitorais como nos próprios programas de governos.

188 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Se esta observação for verdadeira, deve servir, ao mesmo tempo, de alerta e incentivo
a todos os que se preocupam e batalham pela segurança – para inseri-la no discurso e na
prática dos governos –, começando pelos níveis mais próximos, como o dos vereadores.
Essa preocupação já é notada atualmente em algumas regiões, mas certamente será pre-
ciso ampliá-las.
Boa parte da sociedade brasileira, há algumas décadas, mantinha a crença (crendice?)
de que acidentes e mortes no trânsito eram “vontade de Deus” ou “coisas do destino”, como
se não pudessem ser evitados. Ainda hoje em algumas regiões se ouve ex-
pressões como “o trânsito é assim mesmo – fazer o quê?”, como se o caos por
ele gerado viesse do além e não pudesse ser contido ou atenuado. Feliz-

‘‘
mente, isso se vê cada vez menos. O passar do tempo, o próprio desen-
Boa parte da
volvimento, o alcance dos meios de comunicação e a consequente
sociedade brasileira, há
facilidade de acesso à informação vão se incumbir de – oxalá! – zerar essa
algumas décadas,
visão estrábica ou caolha.
mantinha a crença
Dentro da mesma linha dos muros e pontes de que falo no começo do
(crendice?) de que
livro, aqui também temos exemplos claros de ilhas de excelência de infor-
acidentes e mortes no
mação comunitária sobre segurança no trânsito e dificuldades enormes
trânsito eram “vontade
de entendimento do que significa e como exercer práticas mais eficientes
de Deus” ou “coisas do
e saudáveis. Os casos deste capítulo são evidências de que o país está no
destino”, como se não
caminho certo, ainda que num ritmo menor que o desejado mas, ao
pudessem ser evitados.
menos, a direção parece correta.
Ainda hoje em algumas
Para a redação deste capítulo optei por partir dos movimentos nas-
regiões se ouve expres-
cidos na base da sociedade – como os de Joinville (SC) e Brasília – e se-
sões como “o trânsito é
guir pelos movimentos que começaram por ações pessoais e se tornaram
assim mesmo – fazer o
regionais e nacionais – como os das ONGs Vida Urgente, de Porto Alegre
quê?”, como se o caos
e Criança Segura cuja sede atualmente está em São Paulo. Depois conto
por ele gerado viesse do
quatro histórias de pessoas que fizeram acontecer e deram dimensão es-
além e não pudesse ser
pecial aos seus trabalhos: o mineiro Sebastião Pires de Camargo, de Juiz
contido ou atenuado
de Fora, o baiano José Franque, de Itabuna, hoje vivendo em Vitória da
Conquista, o carioca Fernando Diniz e sua luta pela ONG Trânsito Amigo,
do Rio de Janeiro e o também carioca Rodolfo Rizzotto com seu
estradas.com.br na internet; abordo ainda o crescimento do uso das bicicletas como novo
parceiro na paisagem urbana brasileira e, finalmente, o desenvolvimento de uma ati-
vidade de enorme importância para o setor, a medicina do tráfego, contada na história
da Abramet.

Sociedade I A sociedade e a segurança no trânsito 189


Joinville: a sociedade
disse sim
FOI TUDO MUITO RáPIDO, CONSIDERANDO AS CIRCUNSTÂNCIAS. No início de
junho de 1989, o Programa Volvo de Segurança no Trânsito realiza em Joinville, com
apoio do Grupo Empresarial Tupy, um Simpósio de Segurança no Trânsito para abordar
o alto nível de acidentalidade no trânsito local. Consenso geral: era preciso reagir ime-
diatamente, criar mecanismos de respostas ao problema que assumia proporções cres-
centes.
Pouco mais de um mês depois, dia 21 de julho, e já estava criada a Comissão Comu-
nitária para Humanização do Trânsito de Joinville, maior cidade de Santa Catarina, às
margens da BR 101, no norte do estado. E o mais incrível: um ano de atuação e a Comis-
são já mostrava um resultado raramente encontrado em qualquer parte do país e talvez
do mundo: uma redução de 50% de acidentes fatais, muito superior aos 20% sugeridos
por ocasião do Simpósio Volvo. Dali para diante o programa foi um sucesso.
Foi uma das histórias mais impressionantes que testemunhei nessas duas décadas e
meia de atividades em prol do trânsito. O bom da história é que, embora envolvesse a
prefeitura da cidade, não houve burocracias nem custos anormais para os cofres públicos
e todos saíram ganhando – governo, sociedade, setor privado.
O segredo da história: uma liderança que assumiu o comando e fez acontecer. O lado
positivo da história: mesmo com a mudança de governo, a Comissão continuou seu tra-
balho no mesmo passo e assim continuou por cerca de 10 anos, o que também é uma proeza
num país habituado a não dar continuidade às boas ações iniciadas por outras gestões.
Uma das preocupações do Programa Volvo, no início de atividades em 1987, era buscar
exemplos potenciais que pudessem ser copiados. No caso das cidades, um dos pontos mais
importantes era identificar quais delas teriam maiores chances de aceitar o desafio de se
estruturar para criar e desenvolver programas municipais de segurança no trânsito, capa-
zes de reduzir a violência no seu trânsito local e, assim, servir de modelo para outros mu-
nicípios. Era necessário que a cidade fosse de porte médio e exercesse liderança regional.
Joinville se ajustava bem nesse perfil. Maior centro industrial do estado, cidade-líder
da região norte, tinha na oportunidade 400 mil habitantes (hoje tem mais de 500 mil) e

190 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


problemas de trânsito que se avolumavam e que exigiam reação
orquestrada e consistente.
A primeira manifestação de interesse ocorreu por ocasião do
Simpósio Volvo para discutir um plano de ação capaz de con-
ter a crescente violência no trânsito: o auditório da Funda-
ção Tupy ficou lotado de representantes de todos os
segmentos da sociedade, o que era vital para lançar a ideia.
À frente, o então secretário municipal de serviços públicos, Osni
Piske, com recomendação expressa do prefeito Luiz Gomes. Político
experiente – havia sido deputado estadual e diretor regional da Casan
Osni
(água e saneamento) por duas vezes – Piske tinha visão clara de como ati-
vidades desse tipo se desenvolvem e o que precisa ser feito para ir em frente.
Identificados os problemas, apontados os pontos essenciais de um plano de conten-
ção, o foco da atenção passou a ser, então, a elaboração de um programa municipal de
segurança no trânsito, cuja responsabilidade seria da Comissão Comunitária para a Hu-
manização do Trânsito.
Já ao final do Simpósio Volvo, o secretário convoca membros da comunidade e forma
uma comissão de 25 pessoas que representam segmentos de diversas áreas de atividade,
reafirma o apoio do prefeito, elabora um plano de ação e o programa deslancha num
ritmo acelerado e com disciplina germânica. As reuniões semanais são sempre concorri-
das, marcadas pela disposição de colaborar dos membros voluntários. Nas ações de res-
ponsabilidade da prefeitura, o secretário de serviços públicos, que preside a comissão,
garante a execução e aí entra a Comissão com o que precisar de voluntários para com-
pletar os serviços – tanto de empresas quanto de pessoas.
A imprensa local dá grande cobertura, o maior jornal da cidade abre editoriais e as
emissoras de rádio reservam espaços para discutir as ações. Desse modo, o objetivo de
envolver a comunidade é atingido em cheio: governo, setor privado e sociedade estão
de mãos dadas para enfrentar um problema de peso e com todas as chances de ganhar
a parada. E ganharam. Em um ano os resultados positivos surpreenderam; com dois
anos, se consolidaram, mostrando o caminho certo da grande caminhada.
Na verdade, a Comissão levou a sério os deveres de casa estabelecidos desde o início.
Veja lista parcial de providências que fazia parte do seu plano de ação:

n Criou um grupo executivo, constituído pelo secretário Piske como presidente, três
vice-presidentes (Representante do Clube dos Diretores Lojistas (CDL), comandante
do Batalhão da Polícia Militar e um representante da Associação Comercial e Indus-
trial) e um diretor-secretário (da Escola Técnica Tupy);

Sociedade I Joinville: a sociedade disse sim 191


n Instituiu o Programa paz no trânsito, que se tornou o maior programa municipal de
segurança e educação de trânsito já realizado no estado;

n Estabeleceu como objetivo inicial reduzir em 20% o número de acidentes e mortes


no trânsito e, em três anos, baixar a taxa de acidentalidade a um padrão considerado
razoável comparado com índices internacionais;

n Desenvolveu campanhas publicitárias periódicas sobre os grandes temas do pro-


grama;

n Levantou os pontos críticos, em que mais ocorriam os acidentes, e mobilizou recursos


para equacioná-los;

n Introduziu o tema Educação de trânsito no currículo escolar de 1º. e 2º. graus, por re-
solução do Conselho Municipal de Educação;

n Criou o Programa aluno guia, com cartilhas próprias, e orientação do tráfego feita
pelos próprios alunos devidamente uniformizados em frente às escolas (ação patro-
cinada pela iniciativa privada);

n Ampliou o número de centros habilitados a oferecer cursos de direção defensiva e


direção de motos;

n Criou programas de conscientização para funcionários das empresas com envolvi-


mento da Associação dos Profissionais de Segurança e Saúde Ocupacional de Join-
ville e das Cipas;

n Realizou pelo menos um grande seminário anual sobre segurança no trânsito com o
objetivo de avaliar o desdobramento do programa joinvilense;

n Organizou sistema computadorizado de coleta e análise de dados estatísticos sobre


acidentes de trânsito para apoiar as ações de campo;

n Mobilizou lideranças da cidade para a criação de Varas de Delito de Trânsito na Co-


marca (e conseguiu);

n Aprovou a obrigatoriedade do uso do cinto de segurança no município com a lei


municipal, e bem antes da lei federal;

n Promoveu a cessão de bafômetros para o Batalhão da Polícia Militar de Joinville,


doados pela Prefeitura Municipal para combater o problema de beber e dirigir (oito
anos antes do Código de Trânsito Brasileiro);

192 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Promoveu ampla reformulação do sistema de estacionamento rotativo na área cen-
tral da cidade, com o envolvimento dos demais setores da Prefeitura;
Osni Piske, que era secretário de serviços públicos e assumiu o comando da Comis-
são de Humanização, confessa que ainda se emociona quando vê o resultado do trabalho.
“Em 1987, registramos em Joinville 136 mortos no trânsito; em 1988, foram 139 e, em
1989, já eram 144. Em 1990, o número caiu para 59. E a frota, aumentando.”
“Essa é a maior evidência de que, quando a sociedade quer alguma coisa e se
mobiliza para conseguir, consegue”, complementa Ely Diniz da Silva Filho, um dos bra-
ços direitos de Piske e responsável pela comunicação do programa. “Só a vontade po-
pular era suficiente para empurrar o programa, mas tínhamos a sorte de ter uma
prefeitura com boa vontade e um setor privado decididamente apoiador, o que foi vital
para o sucesso do programa”, complementa.
Roberta Schiessi, presidente da Fundação Instituto de Pesquisa e Planejamento para
o Desenvolvimento Sustentável de Joinville, diz que a cidade aprendeu muito com os
exemplos da Paz no trânsito e que, hoje, todos estão muito mais preocupados com a hu-
manização da cidade, que passa pela humanização do trânsito.
O prefeito Carlito Merss procura equilibrar-se entre a realidade do difícil trânsito
atual de Joinville – com 515 mil habitantes e uma frota de quase 300 mil automóveis – e
o otimismo de torná-lo mais humano: “Sim, realista no sentido de entender e mostrar
que não existem milagres e otimista quanto ao objetivo de criar novos hábitos na po-
pulação. Em algum momento, vamos ter que fazer como os países europeus que res-
tringiram o acesso de veículos às áreas centrais. Nosso esforço será no sentido de
fazer as pessoas pararem de pensar que espaço público é local de usar o carro para
a resolução de suas frustrações. Só o fato de tentar construir essa realidade já vale a
pena. Vamos fiscalizar e isso vai ajudar muito”, conclui.
Em 2010, Joinville registrou 118 mortos no trânsito, caminhando para voltar aos tris-
tes números do final dos anos 80.

Sociedade I Joinville: a sociedade disse sim 193


Brasília:
mudança de atitude
BRASÍLIA ENTRA NA HISTóRIA DA SEGURANçA NO TRÂN-
SITO BRASILEIRO a partir de 1996 com uma revolução feita em
três momentos. Em agosto daquele ano, o Correio Braziliense, o
maior da cidade, inicia a série de reportagens Paz no trânsito
sobre a violência no trânsito local, que atingia níveis elevadís-
simos. No ápice da campanha, o Correio promove a passeata
pela Paz no trânsito, que reúne mais de 20 mil pessoas em favor
de um trânsito mais humano. Essa marcha foi certamente a
maior já organizada em favor do trânsito no Brasil.
Diante da campanha do jornal e principalmente da reação
de apoio da sociedade, o governo do Distrito Federal responde
com uma ação também marcante que viria a ser conhecida
como a Campanha da faixa, que leva os motoristas a respeitarem a
passagem de pedestres e se torna emblemática.
Essa é a história de como uma atitude pode mudar a biografia de uma cidade
e, eventualmente, de um país. E se a cidade é, simplesmente, a capital do país, então dá
cores ainda mais fortes à narrativa que, infelizmente, deve se resumir aqui a uma meia
dúzia de páginas, quando o ideal era que ocupasse um livro inteiro, tamanha é a varie-
dade de abordagens possíveis sobre esse período.
É preciso lembrar alguns tópicos interessantes para enfatizar o trabalho de Brasília:

1º. Nunca até então, neste país, qualquer governo mostrou preocupação com segu-
rança no trânsito; em Brasília não foi diferente;
2º. Brasília historicamente sempre valorizou a velocidade. Lúcio Costa (autor do
projeto do Plano Piloto de Brasília) falava que “é preciso criar vias largas para
que os moradores cheguem rapidamente ao local de trabalho”, que eram os
ministérios, o setor comercial e o setor hoteleiro, mas nunca se falou de segu-
rança;

194 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


3º. Brasília é o berço de grandes pilotos automobilísticos – Nelson Piquet, Roberto
Pupo Moreno, Alex Dias Ribeiro são apenas alguns nomes da constelação gerada
no universo brasiliense –, o que pode indicar o prazer pela velocidade.

Os dois primeiros pontos ajudam a explicar por que segurança nunca foi prioridade
na capital e por que velocidade sempre foi algo perfeitamente aceitável por essa socie-
dade influenciada por culturas regionais de toda ordem – aquelas que vieram com seus
habitantes desde os anos 50/60.
Há várias maneiras de contar a história da Passeata da paz em Brasília. Vi e ouvi ver-
sões de diversos personagens, mas todas têm pontos de convergência que apresento no
primeiro parágrafo deste capítulo.
Começa pela preocupação que os acidentes de trânsito estavam provocando na re-
dação do Correio Braziliense.3 A jornalista Ana Júlia Pinheiro tinha se mudado de Salva-
dor para Brasília há algum tempo e se incomodava muito com o nível de acidentalidade
e de banalização do trânsito.
Como repórter da editoria de Cidades, ela propôs à chefia de redação abordar o tema
numa série de reportagens que o Correio publicava de domingo a quinta-feira de cada semana.
Sua intenção era cobrir de forma diferente os acidentes, dando nomes das vítimas, contando
suas histórias e mostrando a diferença social entre o morto por atropelamento (pobre, baixa
renda, baixa escolaridade) e o morto em colisão (renda maior, perfil social mais elevado).
Já a partir da primeira reportagem as reações começaram a chegar ao Correio, por
todos os meios, principalmente por telefone. Era o sinal de que a linha estava correta e,
assim, havia sinal verde para continuar.
Do sucesso da série de reportagens para a continuação da cobertura sistemática do
trânsito foi um pulo. A editoria de Cidades, que já era a maior do jornal, reforçou a co-
bertura do trânsito com mais repórteres e passou a abordá-lo de forma pouco conven-
cional, até então, na imprensa brasileira.
Sylvio Costa, então editor de Cidades, que tinha recentemente voltado de um mestrado
em comunicação em Londres, onde o trânsito ensina outras formas de comportamento, per-
cebeu que o jornal estava na direção certa porque a sociedade brasiliense dava sinais que era
preciso dar um basta naquela situação que passava de insuportável para insustentável.

3.
Correio Braziliense – com Z – simboliza o início da imprensa escrita no país, quando o primeiro jornal brasileiro,
editado em Londres por Hipólito José da Costa, era trazido de navio para cá. Circulou no Brasil e Portugal entre
1808 e 1822. O título foi resgatado por Assis Chateaubriand, fundador dos Diários Associados, e utilizado com
a grafia original. A operação do jornal coincidiu com a inauguração de Brasília, em 21 de abril de 1960.

Sociedade I Brasília: mudança de atitude 195


“Acho que com a campanha ‘Paz no trânsito’ a sociedade toma para si a respon-
sabilidade de inaugurar uma nova cultura de comportamento de trânsito. É como se
estivesse dizendo ‘esta é uma cidade com pessoas capazes de criar fatos, fazer as
coisas acontecerem; somos cidadãos tão respeitáveis como muitos brasileiros e
vamos mostrar que em alguns aspectos estamos na frente’”, diz.
Para Sylvio, a campanha Paz no trânsito dá a oportunidade de um case daquilo que
os americanos chamam de jornalismo comunitário, participativo, diferente da visão clás-
sica, do jornalismo objetivo, imparcial. “A visão mais aberta e nova tem a característica
da descrição factual, despida de paixões, mas nas questões em que se vê a possibi-
lidade de vincular o veículo a causas importantes para a comunidade, não há nenhum
problema em se jogar de cabeça, fazer campanhas, etc. Acho que a “Paz no trânsito”
foi o grande ‘case’ do Correio nesse campo do jornalismo comunitário. Não me lembro
de ter havido outra no Brasil, era uma causa de bandeira comunitária, sem conotação
política.”
David Duarte Lima, professor da Universidade de Brasília, presidente do Instituto
de Segurança no Trânsito do DF, aceitou a coordenação do Fórum Permanente pela
Paz no Trânsito, na UNB, que teve papel importante no desenvolvimento da mobili-
zação. O Fórum, que reunia dezenas de representantes de governo e entidades de todas
as tendências, teve atuação importante durante cerca de três anos. Dele nasceu e se de-
senvolveu a ideia da Passeata da paz que mexeu com todo o Distrito Federal e até mesmo
com o Brasil.
David aponta três resultados que ficaram vivos na memória: a faixa de pedestres, o
controle de velocidade, que passou a ser uma coisa presente e importante na vida da ci-
dade, e os “pardais”. “O tema trânsito tornou-se assunto sério de jornal, não mais uma
notinha. Hoje a violência no trânsito é uma coisa com a qual todo brasiliense se preo-
cupa”, afirma.
David entende que o legado do movimento pode ser medido pelos números da vio-
lência do trânsito que hoje seriam a metade do que eram. “Há quinze anos tínhamos
650 mortes/ano. Em 2011 foram 430, para uma população que dobrou; não é que seja
bom, mas é menos indecente”, explica. A questão da faixa foi tão forte que no ano se-
guinte, no Departamento de Estatística da UNB, um trabalho de final de curso sobre a
faixa mostrou que um ano depois da implantação houve uma queda de 39% na morta-
lidade dos pedestres.
Os “pardais” de Brasília, que foram motivo de grandes embates, acabaram em lugar
de destaque. David Lima informa que em 2008/2009, o Instituto de Segurança no

196 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Trânsito (IST) fez duas grandes pesquisas com 4.300 motoristas sobre os “pardais”, em
todas as cidades satélites. “Tinha muita gente que não gostava. Para esses, a gente per-
guntava: ‘O senhor concorda com a retirada de todos os pardais da cidade?’ A reação
de todos era que não. ‘Aí vira bagunça, sem ‘pardal’ não dá...’ Ainda em 2008, fizemos
pesquisas qualitativas com alguns grupos de discussão, com pedestres, motoristas,
que tinham sido ou não multados e dividimos em grandes grupos. Era unânime a opi-
nião, mesmo nos grupos que não gostavam dos ‘pardais’, de que não deviam ser reti-
rados.”
Um dos baluartes da mobilização foi o jornalista Alexandre Garcia, da TV Globo de
Brasília, que desde o início mergulhou de cabeça no assunto e praticamente todos os dias
comentava sobre o movimento. “Naquela ocasião, uma Kombi escolar deu uma pe-
quena batida num carro à frente, a porta abriu e um garoto caiu, bateu a cabeça e mor-
reu. Eu fui para o local do acidente, levei um cinto de segurança e fiz o comentário de
que se o menino estivesse com o cinto ainda estaria vivo. Depois desse comentário
choveram telefonemas e cartas elogiando e estimulando para que continuasse a falar
do tema”, lembra.
Depois disso, não parou mais de abordar o assunto: “O público achou que estava
faltando alguém que batesse nessa tecla da segurança, do excesso de velocidade, do
cinto de segurança, da faixa, e eu me identifico bem com isso, pois uso cinto desde
1967, quando nossos carros ainda não tinham”, relembra.
Alexandre acredita que a cultura do uso do cinto de segurança aparentemente veio
para ficar. “Em Brasília todo mundo usa cinto no banco traseiro, o que não acontece
em outras capitais.” Para ele, o cidadão brasiliense parece estar mais politizado para o
Coronel
trânsito que o do restante do país e credita boa dose dessa sensação ao movi- Azevedo
mento do fim dos anos 90.
Outro personagem fundamental da mobilização de Brasília foi o coronel
Renato Azevedo, gaúcho de Porto Alegre que desembarcou em Brasília em
1977 e ingressou na Polícia Militar. Aí aconteceu seu encontro com o trânsito.
Tinha sido chefe do Estado Maior, comandante geral, quando foi indi-
cado para implantar o Batalhão de Trânsito e o Comando do Po-
liciamento de Trânsito de Brasília.
Ele foi o homem da faixa, que convenceu os motoristas de
Brasília a respeitarem a passagem do pedestre na faixa. Conta:
“Eu estava fazendo um mestrado de polícia, em Madri, na Es-
panha, onde me encantei com o respeito à faixa de pedestres

Sociedade I Brasília: mudança de atitude 197


e decidi implantar em Brasília. Logo que voltei, no final de 95, fui convidado a implantar
o Batalhão de Trânsito, aceitei e quis trazer a ideia da faixa. Porém, concluí que ainda
não havia condições de implantar em razão da alta velocidade média dos carros nas
ruas. A ação só foi possível em 1997, quando levei a ideia ao Fórum pela Paz no Trân-
sito que aprovou e foi referendada pelo governador Cristovam Buarque.”
O respaldo do governador foi fundamental, pois havia pressão muito grande para
que não fosse implantada. É bom lembrar que o novo CTB não havia ainda entrado em
vigor, o que significa que não havia nenhuma referência no país. A partir de primeiro de
abril de 97, contudo, os carros começaram espontaneamente a parar na faixa para a pas-
sagem dos pedestres, contra a expectativa de muita gente. E um detalhe importante: tudo
sem propaganda, marketing ou investimento em peças de comunicação.
“O que aconteceu é que desde o começo de janeiro havíamos começado um
grande trabalho de preparação da sociedade para a implantação das faixas. A popu-
lação foi treinada, a Polícia Militar foi para as ruas, acostumando as pessoas como se
comportar a partir de 1º. de abril”, historia Azevedo.
Um detalhe importante que deve servir de lembrete para muitos que desejam realizar
experiências similares: “Antes de convencer a sociedade, convença sua equipe”, enfatiza
o coronel, lembrando que durante vários meses não fez outra coisa na sua corporação.
Depois que deixou o comando do trânsito de Brasília, Azevedo conta que é muito
procurado ainda por cidades brasileiras que querem saber os segredos do sucesso de
Brasília. Ele revela: “Se você andar pelas cidades brasileiras, vai encontrar faixas em
locais estapafúrdios, sem o menor cabimento técnico. Técnicos de trânsito colocam
faixas na certeza de que não serão respeitadas, então não tem problema... Porque se
forem respeitadas vão provocar problemas enormes; faixas em saídas de curvas, na
saída de aclives, em uma rodovia. Nosso problema era que as faixas não seriam ape-
nas um risco no asfalto. Trariam uma mensagem de igualdade no trânsito, respeito,
civilidade, solidariedade para com as pessoas que não têm carro, as crianças, os mais
velhos, etc. Essa é a mensagem da faixa de pedestres. Ela não é uma zebra no meio
do asfalto – a mensagem se traduz em cidadania. Tem muita gente que fala em cida-
dania, mas não age para construí-la em sua cidade ou no país. Em Brasília nós cons-
truímos cidadania no trânsito com o respeito à faixa de pedestres.”
Vou ouvir o Correio Braziliense, afinal, o grande herói desta história. Converso com
a editora-chefe, Ana Dubeux, recifense que adotou Brasília em 1987. Como os demais
funcionários e diretores do jornal, ela também se orgulha da campanha de 1996, princi-
palmente dos resultados e do quanto aproximou mais o jornal da sociedade.

198 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


A editora-chefe diz que, em média, o jornal publica pelo menos quatro matérias es-
peciais, de mais peso, por semana sobre trânsito. Tem uma setorista na editoria de Cida-
des e uma repórter que não é exclusiva do trânsito, mas cobre o Ministério das Cidades,
local em que se situa o comando do trânsito brasileiro. Mostra a importância que o jornal
dá ao tema trânsito.
Ana diz que o Correio é, dos jornais que conhece, o que dá mais destaque ao trânsito
no país. “O trânsito está diariamente no Correio, mas não só como acidente ou como
escândalo; o tom é outro, a intenção é mais educativa”, explica. “Tentamos contar as his-
tórias das pessoas, botar a cara nos números, humanizar mais as matérias”, continua.
Em 2011, o Correio inaugurou o Placar da vida, para sensibilizar as pessoas, mostrando uma
vez por mês na capa do jornal o número de mortos no trânsito e, no final do ano, o total
da temporada. “O placar, resultado de uma série de reportagens feitas em dezembro de
2011, é uma evidência de que a campanha não se esgotou em 1996 e que o jornal segue
com a bandeira”, prossegue.
“Na questão pela paz no trânsito e mais recentemente da Lei Seca” – continua –,
o jornal se posicionou única e exclusivamente pensando na vida, olhando pelo viés
da responsabilidade. Isso fica claro quando, em muitos momentos, há reações da parte
de setores interessados – sindicatos dos bares e restaurantes – e esses setores tive-
ram espaço, as pessoas aparecem para falar, o Correio é um jornal plural... Mas o jornal
se posicionava editorialmente favorável à segurança no trânsito.”
Pergunto aos meus entrevistados jornalistas que lição se pode tirar do envolvimento
do Correio Braziliense no movimento como um todo. Fico com a análise do Sylvio Costa,
que me traça uma visão bem geral sobre o papel da imprensa e dos jornalistas em as-
suntos como esse:
“O papel do jornalista não é só contar as coisas que aconteceram; essa é uma ta-
refa fundamental, relatar os fatos com independência e objetividade de maneira que
cada um forme a sua opinião. Isso é a meta ‘meio’; mas a meta ‘fim’ é contribuir para
que o mundo seja melhor e, às vezes, nós, jornalistas e alguns veículos, perdemos
essa noção; a gente não pode perder a perspectiva de que o nosso objetivo maior é
contribuir para que as coisas melhorem.”
“A imprensa brasileira tem, na parte investigativa e de denúncia, excelente desem-
penho, mas cobre mal a discussão de políticas públicas, a criação de referências, como
o respeito à faixa. O jornal, quando aponta um problema, ao mesmo tempo mostra um
caminho. No campo do trânsito, morriam no Brasil cerca de 50 mil pessoas/ano, hoje
não deve estar muito diferente disso. Se eu estivesse cobrindo hoje a área de Cidades,

Sociedade I Brasília: mudança de atitude 199


uma coisa que me interessaria seria o transporte coletivo, que é uma vergonha no país.
Eu moro a cerca de 15 minutos do trabalho aqui em Brasília. Se houvesse uma condição
mínima de eu vir de ônibus eu viria. É assim em Paris, Nova Iorque, Londres, onde morei.
As grandes metrópoles do mundo não têm este conceito que existe aqui – de que o
pobre é quem anda de ônibus. A pauta, não apenas de segurança no trânsito, mas da
política de transporte, mobilidade urbana, já era para ter entrado como o grande assunto,
ainda mais com eventos como Copa e Olimpíadas.”
Nas minhas andanças, as comunidades ligadas ao trânsito sempre se queixam de
que a mídia cobre muito mal, dá pouca ou nenhuma atenção para o tema. Pergunto aos
meus entrevistados: o que precisa ser feito para ganhar esse espaço nos jornais?
David Lima fecha a conversa com algumas lições a serem tiradas: “A primeira: num
país como o Brasil, sem o envolvimento da sociedade, as coisas podem até funcionar,
mas não funcionam como deveriam. Quando a população está convencida e assume
uma causa como sua fica mais fácil e, por outro lado, fica difícil de reverter, mesmo
que apareçam outras ideias. A segunda lição é que o país tem jeito. Brasília tem gente
do Brasil inteiro, é uma cidade que favorece a velocidade; daqui para as cidades-sa-
télites são distâncias longas. Só que 70% dos empregos estão no plano piloto e 80%
da população mora fora do Plano Piloto. Assim, há uma migração pendular diária, são
verdadeiras viagens. Se aqui, com toda essa diversidade de gente – paraibanos, pau-
listas, gaúchos, goianos, etc. – passaram a respeitar o pedestre, então significa que
os mesmos paraibanos, paulistas, gaúchos, goianos de outros lugares também
podem. Para isso é preciso que o governo participe mais e que tenha programas –
coisas que tem negligenciado. Minha maior experiência como coordenador do Fórum,
também pela diversidade de participação, é que quando há causas inquestionáveis
pode-se colocar Deus e o diabo do mesmo lado. Em nome de uma boa causa. E o
trânsito é essa causa.”
Brasília, que em 2010 tinha uma frota de 1.245.521 veículos, população de 2.570.160
habitantes, registrou 638 mortos no trânsito, segundo dados do Ministério da Saúde.

200 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Vida Urgente – a maior
ONG do trânsito brasileiro
QUANDO COMECEI A ME ENVOLVER COM OS ASSUNTOS DE TRÂNSITO, em 1986,
ficou evidente que a questão do trânsito só teria chances de evoluir e de ter solução se hou-
vesse participação da sociedade, do setor privado e das lideranças das diversas áreas da
vida nacional. Havia me marcado fundo uma frase que o então ministro da justiça, Paulo
Brossard, repetia bastante segundo a qual “o governo pode muito, mas não pode tudo”.
Ora, do jeito que o trânsito era tocado pelo aparelho governamental e pela forma
como a sociedade não enxergava nele um tema importante, muito menos prioritário, es-
tava claro que sem envolvimento de outros atores a coisa dificilmente teria chance de
evoluir. Assim, era essencial incentivar o surgimento de movimentos que pudessem abra-
çar a causa e dar a ela uma atenção compatível com sua importância local. Na época não
havia entidades, ONGs, do setor de trânsito.
Na verdade, embora entidades sem ligações governamentais já existissem desde a
metade dos anos 1800, só tomaram forma mais definida depois da constituição da ONU
ao fim da segunda guerra mundial, em 1945. No Brasil, ONG foi, durante várias décadas,
sinônimo de organizações com suporte internacional para apoiar causas populares ou
de desenvolvimento social. O conceito começa a ficar mais forte a partir dos anos 90,
notadamente com a realização da Eco 92, no Rio de Janeiro.
Foi mais ou menos nessa época que conheci a primeira Associação de Pais e Amigos
de Vítimas de Acidentados de Trânsito que, na verdade, era um pequeno grupo de ati-
vistas no Rio de Janeiro, sem estrutura física ou financeira, mas que procurava fazer ecoar
a mensagem contra a violência do trânsito. Depois, com o desenvolvimento do Programa
Volvo de Segurança no Trânsito, fui conhecendo outras entidades que ainda se chama-
vam de “associação”, desconhecendo o nome ONG.
A primeira ONG de verdade que conheci foi a Fundação Thiago de Moraes Gonzaga,
de Porto Alegre, criada em 13 de maio de 1996 pelo casal Diza e Régis Gonzaga, pais de
Thiago, 18 anos, que morreu num acidente de carro numa madrugada fria do inverno
na capital gaúcha. Como aconteceu em várias situações similares – filho jovem morre
em acidente de trânsito e pais decidem fazer um movimento para chamar a atenção de

Sociedade I Vida Urgente: a maior ONG do trânsito brasileiro 201


outros jovens para os perigos do trânsito –, a morte de Thiago as-
sume grandes proporções, nunca imaginadas pelos próprios pais,
se alastra por todo o estado do Rio Grande do Sul e ganha boa
parte do Brasil.
A mãe de Thiago, Diza, arquiteta em crescimento de car-
reira, decide reagir à intensa dor da perda do filho na flor
da idade e dedica-se a estudar o trânsito tentando entender
porque tantos jovens perdem suas vidas em acidentes de trân-
Diza sito. Aí confirma o que já sabia: os jovens são audazes e impa-
cientes e por isso merecedores de muito mais atenção nas coisas ligadas
ao trânsito. Ao mesmo tempo descobre que o país faz quase nada para evitar essa catás-
trofe e que o sistema trânsito não dispõe de ação organizada para conter a avalanche de
acidentes que dilacera famílias em todos os cantos do país durante o ano todo.
Durante vários meses, Diza vai à luta para saber mais e arquitetar uma ação que cor-
responda aos seus anseios de atacar o tema. Conclui que quer trabalhar com jovens e
que seu esforço deve ser concentrado no sentido de evitar que outros jovens morram no
trânsito como seu filho Thiago. Nascia ali a Vida Urgente, carro-chefe da Fundação
Thiago de Moraes Gonzaga que seria fundada na sequência e que acabaria num sucesso
jamais visto na área e neste país.
A ideia inicial era juntar um grupo tão grande quanto possível de voluntários jovens
para percorrer bares e baladas na madrugada porto-alegrense e tentar convencer outros
jovens a não dirigir se estiverem bebendo e, nestes casos, passar a chave do carro para
quem não bebeu álcool. A expectativa de Diza era de que a mensagem passada por
“iguais”, isto é, de jovem para jovem, teria mais chance de ser aceita. Dito e feito.
A ação começava bem. No começo não eram tantos os voluntários. O crescimento,
no entanto, foi rápido e o movimento ganhou uma musculatura inimaginada. Reunir
um grande grupo de voluntários jovens, dispostos a fazer blitze, enfrentar as madruga-
das geladas de Porto Alegre para uma atividade nunca antes tentada não é exatamente
uma tarefa simples. Os amigos de Thiago se prontificaram a mergulhar de cabeça. Aí
saíram em busca dos outros amigos e aos poucos a rede foi se formando e as atividades
se multiplicando.
Hoje Vida Urgente tem cerca de duas dezenas de ações que se realizam ao longo dos
anos. Em alguns casos são temporais, como a campanha Salva vida urgente na qual os vo-
luntários interagem nas praias do Rio Grande do Sul com os veranistas, sempre com a
mensagem pela vida.

202 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Para desenvolver os programas conta com centenas de voluntários em Porto Alegre
e milhares de outros em cidades do Rio Grande do Sul e mesmo em outros estados. Vida
Urgente tem representantes em pelo menos 20 cidades gaúchas, além de voluntários de-
clarados em dezenas de outros municípios brasileiros. Diza Gonzaga se orgulha de dizer
que Vida Urgente tem seguidores em todos os estados da Federação, gente que de uma
forma ou de outra participou ou tomou conhecimento das suas ações e quis se engajar
mesmo que distante.
Vale a pena dar uma olhada na variedade de ações da Fundação Thiago de Moraes
Gonzaga em 2012:

Madrugada viva
Grupos de jovens voluntários percorrem as principais casas noturnas para conscientizar
sobre os perigos da mistura de álcool e direção.
Vida Urgente no palco
Teatro para conscientizar crianças, jovens e adultos sobre a preservação e a valorização da vida.
Capacitação de voluntários
Curso de formação para desenvolver voluntários e formar multiplicadores.
Moto vida
Direcionado aos motociclistas para humanizar sua relação com o trânsito e a incentivar o uso
dos equipamentos de segurança.
Torcida pela vida
Grupo entra em campos de futebol para conscientizar as torcidas sobre a importância de va-
lorizar a vida dentro e fora dos estádios.
Transportadora da vida
Em parceria com o Sindicato das Empresas de Transporte de Cargas e Logística do RS,
nas empresas de transportes.
Escola urgente
Ações próximas aos colégios com apoio de voluntários e de agentes de trânsito.
Fórum Vida Urgente
Encontro anual de reflexão e debates de estudantes sobre temas ligados à juventude e à
valorização e preservação da vida.
Salva Vida Urgente
Nas praias, voluntários passam aos veranistas mensagem para aproveitar o verão em segurança.

Sociedade I Vida Urgente: a maior ONG do trânsito brasileiro 203


Grupo de apoio voluntário
Psicólogos orientam familiares de jovens mortos no trânsito e promovem troca de experiência
para conviver com a perda.
Coral Vida Urgente
Pais de voluntários se apresentam em congressos, seminários e eventos.
Palestra e eventos
Participação em congressos, debates, fóruns e seminários com foco em educação, cultura,
saúde e mobilização social.
Vida Urgente in concert
Show com a participação de bandas regionais e nacionais, artistas comprometidos com
a conscientização e a segurança no trânsito.
Buzoom
Ônibus especial garante carona segura para casa após festas, baladas e eventos especiais.
Bloco da vida
Durante o carnaval, voluntários vão a bailes e festas alertando foliões para aproveitar o carna-
val com responsabilidade e segurança.
Borboletas pela vida
Logomarca da Vida Urgente impressa no asfalto sinaliza que muitas vidas são perdidas.
Criança Segura no trânsito
Em parceria com a ONG Criança Segura, voluntários estimulam uso correto de equipamentos
de retenção para crianças.
Expo Vida Urgente
Exposições itinerantes em universidades, escolas, feiras, shoppings e eventos sensibilizando
a população e sobre atitudes conscientes.
Blitz
Nas universidades, escolas, praças de pedágio, shows, feiras e festas para lembrar que
a vida é o nosso bem mais precioso.
+ Projetos
Atividades sob medida para passar mensagem da Fundação Thiago de Moraes Gonzaga
e seus parceiros, a favor da valorização da vida.

204 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Esse conjunto de atividades é um exemplo perfeito de disseminação de cultura de se-
gurança no trânsito e uma amostra de como a sociedade pode contribuir para o incremento
dessa cultura. Importante salientar que isso não acontece apenas em Porto Alegre, onde
Vida Urgente tem sua sede, mas em todo o estado do Rio Grande do Sul e parte do país.
Na realidade, entre 2008 e 2011, Vida Urgente levou sua experiência gaúcha para o
Espírito Santo, convidada pelo governo capixaba. Graças a um convênio com o Detran
do estado, Diza Gonzaga e equipe treinaram monitores e voluntários capixabas para rea-
lizar várias das ações desenvolvidas no Rio Grande do Sul. Com a mudança de comando
de governo, o programa foi descontinuado. Houve também um movimento para levar
as ações da Vida Urgente para São Paulo, que durou poucos meses.
Minha leitura pessoal dessas experiências é que movimentos como esses necessitam
de uma liderança carismática, identificada de corpo e alma com a causa local. Nesse
sentido, não há a menor dúvida de que Diza Gonzaga encarna a liderança da Vida Ur-
gente no Rio Grande do Sul. Falante, firme, até contundente na sua mensagem, prepa-
rada para o debate, Diza deu vida e personalidade à sua ONG. Levar o mesmo
movimento a outras partes do Brasil com o mesmo ímpeto e com o mesmo nível de
mobilização só se encontrar uma outra liderança local de porte idêntico, o que, defini-
tivamente é quase impossível.
A marca registrada do movimento Vida Urgente, da Fundação Thiago de Moraes
Gonzaga é a da paixão, personificada por sua líder, Diza Gonzaga. O entusiasmo que se
observa em qualquer atividade desenvolvida pelos voluntários é o mesmo. A garra com
que a equipe se lança à luta impressiona pela determinação dos jovens que demonstram
clareza quanto aos objetivos a serem atingidos e firmeza nas ações preconizadas. Tive
oportunidade de constatar isso pessoalmente.
Hoje em dia, o nome Vida Urgente, ou Fundação Thiago de Moraes Gonzaga ou
Diza Gonzaga, são sinônimos de mobilização de jovens pela vida, contra os perigos do
trânsito. Dificilmente se faz um evento de trânsito no estado sem que não sejam convi-
dados para palestras ou debates.
Já fazem parte do cotidiano da cidade e do estado. Há em Porto Alegre até uma praça
com o nome de Praça da Juventude Thiago Gonzaga, inaugurada no ano 2000. Fica no
bairro Medianeira, próximo ao centro de Porto Alegre, e a denominação foi aprovada
por unanimidade pelos vereadores da capital gaúcha. O artista plástico Hidalgo Adams
se incumbiu de criar a escultura do centro da praça. Ao pé da obra está a seguinte frase:
“Que a alegria da juventude de nossos filhos, com seus sonhos interrompidos, seja
um marco na luta contra a violência e a morte de jovens no trânsito.”

Sociedade I Vida Urgente: a maior ONG do trânsito brasileiro 205


É natural que Thiago Gonzaga tenha virado obra de livros. O primeiro é um depoi-
mento da própria mãe, Diza, à jornalista Dedé Ferlauto, lançado justamente no dia em
que começou a atuação da Vida Urgente. O livro, vendido
a R$ 15,00, está na 15ª edição e o que rende reverte intei-
ramente para as atividades da Fundação. Quando a Fun-

‘‘
dação comemorou 10 anos de atividades foi lançado um
Por todas as
outro livro – Gente vida –, no qual 27 autores gaúchos abor-
atividades, Vida Urgente é,
dam a vida com seus variados nomes, formas, mistérios e
sem dúvida, reconhecida
alegrias.
como a maior ONG brasileira
Por todas as atividades, Vida Urgente é, sem dúvida,
na área de trânsito e um ótimo
reconhecida como a maior ONG brasileira na área de trân-
exemplo a ser seguido neste
sito e um ótimo exemplo a ser seguido neste país tão
país tão pobre de entidades
pobre de entidades voluntárias ligadas ao trânsito.
voluntárias ligadas ao trânsito
É também a mais premiada. Desde sua instituição, em
1996, amealhou dezenas de prêmios locais, regionais, na-
cionais e internacionais. É a entidade que mais longe foi
levando o seu próprio nome e o nome do Brasil. Diza mesma já esteve palestrando numa
dúzia de países contando sempre suas experiências e incentivando colegas de outras na-
ções a fazer o mesmo. Sistematicamente tem algum jovem estrangeiro fazendo estágio
na Vida Urgente, da mesma forma que jovens gaúchos também vão para o exterior para
intercâmbio com outros grupos congêneres.
Com Vida Urgente passando dos 16 anos de atuação e com Diza Gonzaga se apro-
ximando dos 60 anos de idade, é razoável questionar sobre a continuação desse trabalho
tão necessário ao Rio Grande e ao Brasil.
Diza mostra que se preocupa com o tema e que tem discutido o assunto com a serie-
dade que merece. Estudos estão sendo feitos antevendo cenários e contemplando cami-
nhos a seguir.
Ana Maria Dall´Agnese, psicóloga, que atualmente é diretora institucional da Fun-
dação, entende que a instituição precisa efetivamente cuidar bem do seu futuro. “Temos
uma bela entidade, uma excelente motivação de trabalho voluntário, uma boa legião
de seguidores e, assim, precisamos estar atentos ao futuro da Vida Urgente”, me
afirma. Trabalham atualmente na Fundação 25 pessoas, 19 funcionários contratados e 6
prestadores de serviço, alguns como estagiários.
Para Ana, até agora a Fundação tem tido uma vida estável, mantendo-se fiel à sua pai-
xão pela causa e por esse motivo sua atuação voluntária tem sido predominantemente

206 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


amadora. “Contudo”, prossegue, “diante do próprio desenvolvimento da sociedade, neste
cenário de globalização, em que as exigências são maiores, creio que devemos aper-
feiçoar nossa atuação, mantendo sempre a característica que nos marcou, e nos profis-
sionalizando nas áreas que forem necessárias. Hoje estamos a meio caminho”, comenta.
A julgar pelo interesse demonstrado pela equipe de apoio, Vida Urgente tem um fu-
turo garantido em razão da grande necessidade do tipo de trabalho que presta à socie-
dade. Se ouvirmos os membros do Conselho e principalmente do Grupo de Apoio aos
Pais de Vítimas de Trânsito, a comunidade conta muito com as ações de Vida Urgente.
Eu mesmo tive contato de quase duas horas com um grupo de pais e nele pude constatar
a importância da Fundação e a qualidade do trabalho prestado. Os depoimentos ouvidos
são de emocionar qualquer um. Gente que, ao perder o(a) filho(a), perdeu praticamente tudo
e acabou se reencontrando com a vida graças ao trabalho dos psicólogos da Vida Urgente e
o consolo dos demais pais que formam o grupo. É emocionante ver como se apoiam uns nos
outros e o papel da Fundação, na medida em que proporciona os encontros, não apenas ce-
dendo espaço como principalmente coordenando essa aproximação.
Esses próprios pais, por sua vez, acabam se tornando multiplicadores de ações da
Vida Urgente em suas áreas de atuação, o que, obviamente realimenta o processo de dis-
seminação da cultura de trânsito.
Este meu depoimento serve para destacar a importância e o papel que ONGs ligadas
ao trânsito podem ter para ajudar a sociedade brasileira a balizar melhor sua atenção
em relação à violência das nossas ruas e estradas.

Criança Segura –
a serviço de quem precisa
NO BRASIL DESDE 2001, A ONG CRIANçA SEGURA fez nome e consolidou-se como
entidade de grande credibilidade. Faz parte da Safe Kids Worldwide, uma ONG inter-
nacional que atua em 22 países nos cinco continentes. É uma organização não governa-

Sociedade I Criança Segura – a serviço de quem precisa 207


mental, sem fins lucrativos, que trabalha para promover a prevenção de acidentes com
crianças e adolescentes até 14 anos.
Criança Segura tem uma história bonita e perfeitamente alinhada com o objetivo de
disseminar cultura de segurança no trânsito no país. Afinal, atua há 11 anos com pre-
venção de acidentes em criança em geral, com especial visibilidade em sua atuação na
área do trânsito. Além de acidentes de trânsito, trabalha com prevenção de afogamentos,
sufocações, quedas, queimaduras, intoxicações, entre outros.
A Safe Kids Worldwide foi fundada em 1987, nos Estados Unidos, por um brasileiro,
o cirurgião-pediátrico baiano Martin Eichelberger, que atendia crianças e adolescentes
no Children Hospital, em Washington, capital dos Estados Unidos. Lá, ganhou presti-
giosos prêmios, o reconhecimento de instituições de peso, mas continuava insatisfeito
com sua missão.
Durante seus estudos para o doutorado, Martin descobriu que 90% dos acidentes
com crianças poderiam ser evitados e, então, decidiu trabalhar na prevenção. Reuniu
profissionais da saúde pública, comunicadores e começou a fazer coligações. A atuação
não se restringia ao trânsito, mas como essa é a principal causa de mortes, era um foco
do trabalho. Assim começou o National Safe Kids, que logo depois virou Safe Kids
Worldwide e que hoje atua em 22 países, com maior concentração na ásia.
Depois que o projeto deu certo nos Estados Unidos, Martin decidiu trazê-lo para o
país onde nasceu. O Brasil foi escolhido como local para o projeto piloto
de expansão mundial. Com o apoio da Organização Mundial de Saúde,
Martin estudou os dados de vários países do mundo e começou a fazer
contatos. Foram contatados três cirurgiões pediátricos: Miguel Doherty,
de Pernambuco, João Gilberto Maksoud Filho, de São Paulo, e Marcelo
Ribas Alves, do Paraná. Hoje a Safe Kids é entidade consolidada no
mundo, reconhecida como inovadora na prevenção de acidentes
com crianças e adolescentes.
Alessandra Françóia, jornalista curitibana, juntou-se ao pro-
jeto logo no início das atividades brasileiras. Oferecia sua con-
tribuição ao escritório de Curitiba, um dos três que a ONG
Alessandra
mantinha no país no começo das ações. Com a descontinuação dos
escritórios de Curitiba e Recife, Alessandra mudou-se para São Paulo
e assumiu a chefia da operação brasileira como coordenadora nacional.
“Felizmente, depois de 11 anos, sentimos um reconhecimento muito forte no Brasil
pelo que fizemos, mas o mais importante é que nosso trabalho começa a oferecer re-

208 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


sultados tangíveis. Todos os anos, cerca de 4.700 crianças morrem e 125 mil são hos-
pitalizadas vítimas de acidentes no país. Essas lesões ocorrem devido à falta de cul-
tura de prevenção, informação, cuidados no dia a dia, ausência de ambientes
adequados à criança e leis específicas. Aí se encaixa a missão da Criança Segura”,
explica Alessandra.

Os três pilares básicos de atuação da Criança Segura:

Mobilização para a prevenção


Programas educativos, capacitação de colaboradores, sistematização de informações
relacionadas à prevenção e realização de alertas públicos, oficinas presenciais, cursos
a distância e a sistematização de conteúdos.

Comunicação
Disseminação de informações sobre o tema, aprofundando o assunto na opinião pública por
meio de campanhas de massa e assessoria de imprensa. Entre outros produziu o guia:
“Acidentes com crianças: seis passos para a construção de sua notícia”, para uso da imprensa.
Está noTwitter, Facebook, Orkut e YouTube.

Políticas públicas
Monitoramento e articulação tanto no âmbito do Poder Executivo quanto do Legislativo,
incentivando o debate e participando das discussões sobre leis ligadas à criança com o objetivo
de inserir a causa na agenda e orçamento público.

Segundo Alessandra Françóia, a meta da Criança Segura é ambiciosa: reduzir em


25% o número de mortes por acidentes com crianças e adolescentes de 0 a 14 anos até
2015. Não é pouca coisa num país em que segurança não é um valor, muito menos prio-
ridade, em que as políticas públicas estão muito longe do que deveriam ser e em que a
própria sociedade, que deveria ser a maior interessada, não dá a devida atenção.
Talvez seja exatamente isso que desafia Alessandra e sua pequena equipe: abrir
caminhos não antes tentados numa área em que criatividade e determinação são atri-
butos indispensáveis para vencer. Para dar conta do básico da sua missão, conta com
suportes importantes como da Johnson & Johnson, Fedex, Abrapur, F. Biz e Instituto
HSBC Solidariedade.

Sociedade I Criança Segura – a serviço de quem precisa 209


Criança Segura: os desafios
O papel da equipe da Criança Segura é de articulação, de coordenação dos trabalhos
com o público e, de verdade, até de ensinar, treinar as equipes das frentes de ação. Alessandra
lembra do começo de atividades: “Nosso trabalho inicial consistia na coleta de dados, de-
pois promover eventos de mobilização, trabalhar com escolas e trabalhar com a mídia,
assessoria de imprensa, basicamente. De cara conseguimos muitas adesões. A gente
fazia eventos com os Detrans, Diretran, DER, Perkons e até mobilização de universidades,
do curso de psicologia, faculdade de artes, escoteiros, etc. A gente participava dos eventos
deles e eles dos nossos. Também treinamos funcionários dessas instituições para a ques-
tão das cadeirinhas, além de muitos voluntários, que começamos a recrutar para participar
das ações em campo.”
O uso correto das cadeirinhas foi o primeiro grande desafio. A mídia ajudava muito, fa-
zendo matérias, e o que Alessandra percebeu foi uma mudança na maneira como a imprensa
cobria os eventos. No começo divulgava a morte da criança no acidente, depois o discurso
mudou para “previna o acidente”, porque, para Alessandra, só dando a notícia, o veículo
perdia a oportunidade de prestar o serviço. Agora esse tipo de preocupação ajuda na sensi-
bilização da sociedade.
Em onze anos, Criança Segura aprendeu que treinar multiplicadores é o que funciona
muito e com baixo custo. Foram fechados os escritórios de Recife e Curitiba e o orçamento
sofreu mudanças dentro de uma estratégia disseminação dos conhecimentos com menos in-
vestimento. Cursos foram desenvolvidos em vários estados. Alessandra pensa agora em dar
o nome de Criança Segura para as instituições que estão mostrando resultados, desde que
adotem alguns critérios e queiram se candidatar a isso.
“Somos uma referência para a mídia”, afirma a coordenadora nacional, “uma fonte na
área de trânsito ligada à criança, à cadeirinha. Passamos os dias atualizando dados e a
mídia vem atrás disso. A gente percebe que a mídia e os multiplicadores compraram a
ideia, mas o governo ainda não”, lamenta.
Hoje o investimento maior da ONG está nas três áreas, a mobilização – treinando ins-
trutores/multiplicadores –, comunicação e políticas públicas. “Pela primeira vez vamos ter
uma política pública, um programa de prevenção de acidentes com crianças”, afirma a es-
perançosa Alessandra.
Apesar de ter ganho notoriedade no setor e certa visibilidade nacional, Alessandra diz que

210 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


“Criança Segura ainda não é uma instituição totalmente conhecida no Brasil. Somos conhe-
cidos no setor de trânsito e agora também na área de direitos humanos, que é uma parte
que estamos trabalhando muito, o conceito de que o cuidado é um direito humano da criança.
Também trabalhamos a cultura do cuidado, usando a Suécia e o Canadá como modelos”.
A entidade conta com um grupo de nove pessoas trabalhando na instituição e uma ati-
vidade em campo, em São José dos Campos (SP), que é modelo, pois é uma cidade com IDH
alto, com alta arrecadação por conta das indústrias. Além dos nove funcionários, há ainda
mais seis instrutores que aplicam os cursos pelo país, dois deles somente para o curso de
trânsito. Também desenvolve cursos de educação a distância e oficinas presenciais. “Hoje o
maior desafio é fazer o acompanhamento, porque depois do curso, para graduar, receber
o certificado, é necessário o envio de um relatório consistente para nós. É uma forma de
formalizar essa relação”, enfatiza Alessandra.
Entramos numa área que tenho especial curiosidade: educação de trânsito para crianças.
Alessandra explica que a linha adotada pela Criança Segura “é voltada a não responsabilizar
a criança de que ela vai fazer a transformação, porque a criança não é responsável por ela
mesma; quem tem que cuidar dela é o adulto. Nós estamos falando de educação de trânsito
para adultos cuidarem dos seus filhos: que tenham um ambiente seguro, melhorem a es-
trutura de trânsito, etc. A educação de trânsito para nós também é um valor de cidadania”.
Perguntei isso porque percebo muito essa ideia arraigada de que a criança na escola re-
ceberá informações sobre comportamento no trânsito e cobrará dos pais o mesmo compor-
tamento que aprendeu na sala de aula. Alessandra contesta: “É absurda... É certo que a
criança até chama a atenção do adulto, mas a responsabilidade de cuidar é do adulto e
não o contrário. O adulto de 40 anos que prejudica o trânsito vai continuar fazendo isso
por mais 40. A gente tem que mudá-lo agora e é possível mudá-lo. Para nós a criança é
presente, e não futuro, como o discurso recorrente. Ela é presente como um dom e tam-
bém presente no hoje, não como alguém lá no futuro. É um ser em condições especiais
que precisa ser cuidado, que também pode começar a transformar. Nossa mensagem é
para que os adultos comecem a inserir a cultura de prevenção na criança agora, com cui-
dado e não como transferência de responsabilidade”, reafirma.
Alessandra levanta outro ponto importante num trabalho como o da Criança Segura, o
papel da liderança: “É responsabilidade e inspiração. O Martin Eichelberger, da Safe Kids
Worldwide, como líder é a minha inspiração, pela causa que abraçou e como nos passa
isso. Ele me remete sempre ao papel que a gente tem que desempenhar: para a criança
tudo tem que ser divertido, tem que ser legal, bom. Isso é muito sensível e me traz de
volta cada vez que a gente se estressa ou vê dificuldades no caminho.”

Sociedade I Criança Segura – a serviço de quem precisa 211


Em seguida ela aborda outro ponto importante para quem quer começar a fazer fun-
cionar uma entidade sem fins lucrativos: “Tem que ter seriedade e grande comprometi-
mento. Organização e planejamento são fundamentais, porque tudo tem que ficar claro
para todos. Ética é muito importante para uma ONG e isso tem que estar muito bem
colocado: você tem um orçamento, tem que fazer prestação de contas, usar bem o di-
nheiro que não pode ser jogado fora. Tem que pensar rápido se a coisa não está dando
certo e isso deve ser socializado na equipe, todos têm que saber que têm que cuidar
do dinheiro, é uma responsabilidade de todos. Tem que haver pessoas fortes, de visão
social, tem que ser corporativo”, aponta a coordenadora nacional da Criança Segura.
Alessandra é de opinião que as ONGs não têm que fazer a função do governo. Devem
falar que ele é quem tem que fazer. “Sou conselheira do
Conselho Nacional dos Direitos Humanos de Crianças, a
gente pauta o governo o tempo todo”, exemplifica. Outro

‘‘
exemplo: “Trabalhamos desde 2002 numa militância para
O atropelamento, proibir a venda do álcool líquido no Brasil, estamos lidando
que é o campeão entre os com um peixe muito grande e armado. Agora estamos
acidentes de trânsito, não é quase conseguindo, estamos na última votação, nós cha-
tão noticiado, porque é coisa mamos um monte de ONGs, Sociedade Brasileira de Pe-
comum, criança atropelada diatria, Federação das APAEs, Rede Primeira Infância,
é corriqueiro. Já a criança Sociedade Brasileira de Queimados para fazer uma mobi-
afogada no balde é diferente, lização e não perdermos a última votação. Estamos mobi-
tem apelo, sensibiliza; apesar
lizando e sensibilizando os políticos.”
de ser em número muito
Tenho interesse em conhecer um pouco sobre comuni-
menor do que o de crianças
cação, principalmente como a imprensa cobre uma ONG do
afogadas em rios
tipo Criança Segura. Francine Ricci, coordenadora de comu-
nicação, me diz que “acidente com crianças é assunto de
bastante interesse público. Quando você fala em acidente
você oferece um serviço: o atropelamento é perigoso, saiba como prevenir. Isso tem ótima
aceitação na imprensa. Fazendo uma relação com causas ligadas a câncer infantil, esse
assunto choca mais, sensibiliza mais emocionalmente, tem um apelo maior. É como se o
acidente de trânsito fosse um pouco banalizado. Não que a imprensa não dê atenção, mas
o acidente é uma coisa mais corriqueira e a doença não. O atropelamento, que é o cam-
peão entre os acidentes de trânsito, não é tão noticiado, porque é coisa comum, criança
atropelada é corriqueiro. Já a criança afogada no balde é diferente, tem apelo, sensibiliza;
apesar de ser em número muito menor do que o de crianças afogadas em rios”.

212 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Francine acha que “acidentes de trânsito – de forma geral, não só com crianças – têm
recebido cada vez mais o interesse da imprensa. O jovem é uma grande vítima, a OMS
abraçou essa causa; com o lançamento da Década Mundial a imprensa se voltou muito
para esse assunto... Existem movimentos e órgãos mundiais olhando para isso no mundo
inteiro e a imprensa está refletindo essa urgência”.
Francine entende que além de cobrir o trânsito e a segurança, a imprensa está se mos-
trando sensibilizada: “Está evoluindo, embora ainda não tenha chegado ao ideal. Estamos
trabalhando, incentivando que a imprensa fale do assunto. Entretanto, percebo que isso
ainda depende muito de uma ação proativa nossa e, quando tem um gancho, a imprensa
cobre. Acho também que a imprensa reflete o comportamento da sociedade: não tem o
comportamento preventivo, o acidente tem que acontecer primeiro para depois virar notí-
cia”, é a sua avaliação.
Provoco Francine mais um pouco: “Trânsito vende, mas não é uma bandeira. Como
transformá-lo numa bandeira, como motivar a imprensa para isso?”
Francine enfrenta: “Depende também de uma legitimidade social do tema. Se a opinião
pública transformar esse assunto num tema legítimo, importante, relevante, a imprensa
vai refletir. Na realidade, depende de todos os setores. É uma coisa em conjunto. As pro-
pagandas de carro ainda hoje mostram o quanto o carro é veloz, o quanto se chega mais
rápido, que vai conquistar a mulher bonita com aquele carro; anúncios de carro com família
não mostram a criança na cadeirinha, mas solta no banco de trás. Se a sociedade exigir,
os fabricantes de veículos e de equipamentos de segurança vão olhar para isso, o governo
vai ter que se mexer e a imprensa vai refletir, exigir, denunciar e fiscalizar. Um trabalho di-
reto com a imprensa é um caminho sim, sensibilizar, mostrar a importância do tema.”
Criança Segura chegou a produzir um guia para a imprensa, falando de acidentes em
geral, com o objetivo de explicar como tratar notícias envolvendo os acidentes, mostrando a
relevância do assunto, a não banalização, que o acidente não deve ser tratado como uma
coisa comum, corriqueira. O link do guia é: http://www.criancasegura.com.br.
Sobre o futuro da Criança Segura, a coordenadora nacional Alessandra Françoia tem so-
nhos claros e realistas: “É estar em todos os lugares com nossas instituições parceiras, e
aí talvez não sejam só as ONGs de trânsito, mas escolas, prefeituras, etc. A longo prazo
nosso objetivo é captar recursos e investir nessas instituições, com a seleção de projetos
de prevenção de acidentes com crianças; reduzir os acidentes e mortes a índices mínimos,
salvar crianças e mudar o paradigma. Convencer o pai que leva a criança solta de que ele
está fazendo errado e ter como o paradigma o pai que cerca a piscina, que põe o colete
salva-vidas. Mudar a cultura da segurança, o senso comum.”

Sociedade I Criança Segura – a serviço de quem precisa 213


Abramet: cultura de
segurança no trânsito na
medicina de tráfego

QUANDO COMECEI A ME ENVOLVER COM PROGRAMAS DE SEGURANçA NO


TRÂNSITO, em 1986, a Abramet (Associação Brasileira de Medicina de Tráfego) não
havia completado 6 anos de vida. Era uma entidade pequena, com atuação reduzida,
com pequeno número de associados, buscando espaço para se afirmar.
A medicina de tráfego era uma área nova, pouco conhecida no Brasil. Porém, chegara
com fortes credenciais de se tornar não apenas importante, mas crucial dentro da reali-
dade do trânsito brasileiro com seus impressionantes índices de violência.
O termo medicina de tráfego é usado há mais de 50 anos. Já em 1957, nos Estados Uni-
dos, foi criada a Associação Americana para a Medicina Automotiva (American Asso-
ciation for Automotive Medicine – AAAM) que, em 1987, mudou de nome para
Associação para o Avanço da Medicina Automotiva.
Por outro lado, em 1960, em San Remo, Itália, nascia a Associação Internacional para
a Medicina de Acidentes e de Tráfego (International Association for Accident and Traffic
Medicine – IAATM) para congregar especialistas de todo o mundo. Em 2003, o nome da
entidade foi alterado e reduzido para Associação Internacional para a Medicina de Trá-
fego, cortando, coerentemente, a expressão acidentes. (Aliás, “acidentes de trânsito” é um
termo que precisamos substituir urgentemente no Brasil. Mas talvez seja melhor que isso ocorra
quando houver uma grande mudança estrutural no sistema de trânsito brasileiro).
Medicina de tráfego é o ramo da ciência médica que se ocupa do bem-estar físico,
psíquico e social do ser humano ao se deslocar, qualquer que seja o meio de mobili-
dade. Estuda causas dos acidentes de tráfego a fim de preveni-los ou mitigar suas con-
sequências, além de contribuir com subsídios técnicos para a elaboração do
ordenamento legal e para a modificação do comportamento do usuário do sistema de
circulação viária.
Medicina de tráfego abrange, na realidade, quaisquer tipos de deslocamentos – ter-
restre, aquático e aeroespacial –, mas, no Brasil, a Abramet cuida basicamente da área

214 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


de trânsito viário. Atua nas áreas preventiva, curativa, legal, ocupacional, securitária e
medicina do viajante.
As formas de atuação ou exercício da medicina de tráfego são: clínica médica de trá-
fego, perícia médica de tráfego, atendimento pré-hospitalar, assessoria, consultoria, au-
ditoria em medicina de tráfego e ensino e pesquisa em medicina de tráfego.
Nesses 25 anos de atuação, a Abramet deu um salto e tanto. Hoje se apresenta como
uma entidade de prestígio, com uma vasta folha de serviços prestados ao trânsito brasi-
leiro. Sua luta para chegar ao estágio atual tem sido dura e conquistar um lugar ao sol
no complicado cenário do trânsito nacional é uma história de muita dedicação, audácia
e amor a uma causa maior.
No Brasil, a história da medicina de tráfego começa em 1980, com a criação da Abra-
met. Seu primeiro presidente foi o gaúcho Albino Júlio Sciesleski, que havia
sido diretor do Serviço Médico do Detran-SP e sócio-fundador do Centro
de Estudos de Medicina de Tráfego do Detran-SP.
Apesar da sua importância e dos esforços de crescimento, a Abra-
met está representada em apenas 18 estados brasileiros e seu nú-
mero de associados é da ordem de 2 mil. Pelas estimativas da
Abramet, o Brasil tem de 6 mil a 7 mil especialistas, que não
são obrigados a ser associados.
Para explicar melhor o que é e como funciona a me-
dicina de tráfego no Brasil, conversei longamente com
diretores atuais da Abramet, cuja contribuição à enti-
dade e ao trânsito no Brasil são da maior relevância: o
atual presidente, Mauro Ribeiro, e o primeiro vice-presi-
dente, José Montal. Mauro

Sociedade I Abramet: cultura de segurança no trânsito na medicina de tráfego 215


Ação em prol da vida
Mauro Ribeiro, presidente em exercício, me conta que, desde o começo da entidade,
“a ideia sempre foi a mesma – ter algum mecanismo para influenciar posições de po-
líticas públicas voltadas para o trânsito. Ter um mecanismo para controlar fatores de
risco, porque cedo percebeu-se que havia uma mudança de perfil do trauma e da le-
talidade no trânsito. No início, o objetivo era justamente formar essa consciência”.
Uma das dificuldades da Abramet quando começou a trabalhar era que não havia
padrões para servir como referências para suas propostas. Mauro Ribeiro lembra que o
dr. Sérgio Pompéia Ramos de Moura ficou incumbido de estabelecer limites de acuidade
visual para habilitar motoristas. “A primeira boa ideia dele foi fazer consulta a profes-
sores catedráticos de oftalmologia do país sobre quais limites deveriam ser adotados
para aprovar os motoristas nas diversas categorias. Infelizmente, não houve qualquer
retorno, ninguém respondeu. Assim, foi revendo a literatura sobre o tema e usando a
própria intuição e a experiência pessoal do grupo é que foram criados os limites na
época, como, por exemplo, a visão 20/30 em cada olho para habilitar os condutores
profissionais.”
Os exames médicos, na verdade, já existiam, mas o grau de seriedade variava muito
de Detran para Detran. Com o surgimento da Abramet, começam os questionamentos
sobre diversos aspectos ligados à medicina de tráfego, que, aliás, continuam até hoje e,
pelo jeito, não vão parar tão cedo.
“A Abramet se mantém firme na sua missão de produzir conhecimento em vários
temas ligados ao trânsito, como o álcool, o uso de drogas ilícitas e informação sobre o
sono, só para citar alguns. Ao longo desse tempo temos criado limites, diretrizes e orien-
tações. A ideia é sempre a de detectar situações que possam contribuir para a ocorrência
de acidentes e, diante delas, corrigi-las ou minimizar seus efeitos. Nossa intervenção é
como uma ação de saúde pública, deve agir sobre a população”, destaca Mauro Ribeiro.

Pergunto como se desenvolve a especialidade da medicina de tráfego (MT) no Brasil.


Ele diz que “no início foi tudo muito intuitivo. A identificação da mudança do perfil do
tráfego e das fatalidades foi importante no sentido de mostrar que alguma coisa pre-
cisava ser mudada. Surge a necessidade de mudança nos padrões de referência, de
que os procedimentos sejam de saúde pública, preventivos. A saúde pública não atua
sobre um indivíduo, mas sobre a comunidade”.

216 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Continua Mauro Ribeiro:

“Surge então a necessidade de uma abordagem diferenciada e com ela a per-


cepção e o controle de riscos. A abordagem não é, então, conceder uma carta de
motorista, como inicialmente concebido. Passa a ser um processo científico de
identificação de condições acidentógenas que precisam ser controladas. Ganha,
assim, um viés diferente, que não existe em nenhuma área da medi-
cina. A MT trabalha não apenas com o conhecimento das áreas da
medicina, mas com o conhecimento de outras áreas. A medicina pre-

‘‘
ventiva tem essa característica: toda ferramenta que possa contribuir
A medicina de
para o controle de risco passa a ser uma ferramenta da medicina pre-
tráfego é a preservação
ventiva.”
ou recuperação da saúde
Cita exemplos simples e importantes: na mobilidade. Tudo
“Fiscalização não é um ato médico, mas contribui para a redução aquilo que está
de risco. Controlar a velocidade tampouco é um ato médico, mas res- relacionado tanto às
peitar o limite da tolerância ao impacto é um ato médico. Se um indiví- doenças que o trânsito
duo tolera no máximo um impacto de 30 km/h e se um impacto de 50 produz como às doenças
km/h ninguém suporta, tenho que usar todas as ferramentas para que, que podem produzir
nas áreas em que convivem pedestres e veículos, a velocidade seja acidentes no trânsito
mantida na faixa de 30 km/h. Isso passa a ser uma atuação médica são de interesse da MT
complexa que envolve conceitos de todas as áreas para um trabalho
diário. O único jeito é o médico se aprofundar nesse tipo de conheci-
mento e vivência. A medicina de tráfego é a preservação ou recuperação da saúde na
mobilidade. Tudo aquilo que está relacionado tanto às doenças que o trânsito produz
como às doenças que podem produzir acidentes no trânsito são de interesse da MT.”

Conclusão lógica: aumentaram muito as fronteiras do especialista da medicina de


tráfego dos anos 70 para cá...

“É completamente diferente porque no início não havia um campo de atuação.Esse


campo vai sendo percebido conforme o avanço da especialização ou a conscientização
maior da situação de risco e de acidentes. Hoje o campo da MT é imenso. Falamos muito
na atuação do condutor do veículo, mas hoje a MT vai muito além. As distâncias são
cada vez maiores, isso intensifica esse processo de mobilidade. O especialista da MT
não é mais alguém que só atende a acuidade visual do indivíduo. O resgate, a medicina
de viagem, a assessoria, a educação, são áreas de interesse e abrem espaço na MT. A
medicina de viagem é extremamente promissora e deve, num curto espaço de tempo,

Sociedade I Abramet: cultura de segurança no trânsito na medicina de tráfego 217


ganhar maior importância. Tem a ver com imunizações, acidentes, situações inóspitas,
variações climáticas...”
Ribeiro fala também das conquistas da Abramet ao longo dos seus 30 anos.
“O reconhecimento da especialidade é um marco, o processo de elaboração
de diretrizes é outro fator importante de conquista, a exigência do título de espe-
cialista para atuar é outro marco muito importante que vai criar um padrão de con-
duta. Além da Câmara do Contran, temos Câmara no
CFM (Conselho Federal de Medicina) e no CRM (Con-
selho Regional de Medicina) aqui de SP, temos uma

‘‘
Câmara Técnica de Medicina de Tráfego. Temos a re-
Tivemos papel sidência médica, que é referencial nessa fase de es-
pecialização. Também há um consenso com a Unifesp
importante na elaboração do
para a criação da cadeira de MT e de um ambulatório
Código de Trânsito Brasileiro.
de MT na escola. Também vamos trabalhar na parte de
No caso da Lei Seca foi
titulação acadêmica, com trabalhos de mestrado e
uma atuação decisiva, porque
doutorado em MT, para criar a possibilidade de pes-
foi na sede da Abramet
quisa e ensino voltados à área. Entre as conquistas ex-
que decidimos e bancamos
ternas, vencer o velho conceito do ‘exame de vista’ foi
o índice zero de tolerância
a primeira vitória, porque não há ofensa maior para um
e toda a argumentação médico de classe. Era um exame de vista mal condu-
do zero saiu daqui zido, feito em grupos, sem padronização. Tivemos
papel importante na elaboração do Código de Trânsito
Brasileiro. No caso da Lei Seca foi uma atuação deci-
siva, porque foi na sede da Abramet que decidimos e bancamos o índice zero de
tolerância e toda a argumentação do zero saiu daqui.”
Gosto sempre de perguntar sobre o futuro das entidades. Mauro Ribeiro responde
com confiança sobre a Abramet do futuro:
“Creio que com o lançamento de um pé na academia, a sedimentação e universa-
lização da residência, a especialidade vai caminhar com as próprias pernas, sem de-
pender de abnegados como agora. A mobilidade aumenta diariamente e é cada vez
mais importante e presente na vida das pessoas. Surge um espaço fantástico para
esse tipo de trabalho, de atuação de planejamento e acompanhamento de viagens,
pré e pós-viagens, etc. É muito rico esse universo.”

Pergunto a Mauro o que falta para afirmar a MT no país.


“Apoio financeiro e à pesquisa: ressalto a necessidade de suporte acadêmico ao

218 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


desenvolvimento de pesquisa. A indústria automobilística não é muito afeita a discutir
o acidente, ele é um efeito colateral que a indústria não gosta muito de ter visível. Acre-
dito que a cobrança social talvez leve as indústrias a terem um comportamento mais
adequado. O problema não está no carro, mas na interação do ser humano com o carro,
ainda que haja deficiências nas vias ou nos automóveis, cabe ao ser humano suprir essa
deficiência para que não ocorram os acidentes. Temos que concentrar nisso.”

“Outro problema é a falta de consciência política. Nossos políticos não têm cons-
ciência de trânsito. Mesmo com tantas secretarias de trânsito, eles não conseguem
perceber que o trânsito tem um envolvimento diuturno na vida das pessoas. As nossas
autoridades ainda enxergam o trânsito como uma área em que basta dar uma habili-
tação, não conseguem entendê-lo como a mobilidade na segurança. Falta a consciên-
cia de que o trânsito é importante na vida das pessoas em termos de assegurar o
direito fundamental de ir e vir, mas sem ameaçar a saúde.”

Evolução necessária
José Montal, primeiro vice-presidente da Abramet, ex-diretor cien-
tífico, relembra as diferenças entre a Medicina de Tráfego dos anos 70 e
a de hoje.

“No início tinha um papel quase cartorial, o exame de vista para


se tirar a carta de habilitação era uma etapa da burocracia. O can-
didato não se habilitava para dirigir com segurança, mas ‘para
tirar’ a carta. Hoje, o dia em que a mãe souber a importância epi-
demiológica do acidente de trânsito para a segurança do seu
filho e que a principal doença que ameaça a saúde do filho é o
acidente de trânsito, essa lógica muda. Geralmente são as mu-
lheres que mudam essa lógica, assim como fizeram com a vacina
quando souberam que ela salvava a vida do seu filho. Atualmente a
Abramet é um braço da Associação Médica Brasileira, com a missão de
difundir conhecimento, fazer os concursos públicos para títulos de especia- Montal
lista, certificar as atividades científicas, participar da Comissão Nacional de Acre-
ditação dos Médicos, etc.”

Sociedade I Abramet: cultura de segurança no trânsito na medicina de tráfego 219


Neste ponto passa um dado interessante:

“Hoje se calcula que a cada três anos e meio você dobra o conhecimento, mas a
possibilidade de se fossilizar o conhecimento também é muito grande. A especialidade
médica tem a missão de obrigar o médico a estar constantemente atualizado. Só se
consegue créditos à medida que o médico participa de atividades científicas. É preciso
ter certo número de créditos a cada ano e a cada cinco anos isso é checado. Se o mé-
dico não conseguir, perde o direito à especialidade nesse âmbito. A partir disso, pas-
samos a fazer diretrizes médicas, que são criadas a partir da melhor evidência
científica para determinadas perguntas de caráter médico. Vou dar um exemplo: ‘é se-
guro o epilético dirigir?’ A partir da pergunta, vamos atrás de informações, checar
todos os possíveis trabalhos no mundo, classificar por ordem de importância e pro-
duzir a diretriz, respondendo a uma questão desse tipo, por exemplo. A cadeirinha de
proteção da criança, a mesma coisa... São questões dirigidas para o médico, para que
possa passar orientação para os seus clientes.”

Questiono sobre outras diferenças, agora no campo do comportamento dos usuários


do trânsito.

“Aí temos questões culturais. O Brasil é um país com um dos melhores índices
de uso do cinto no banco dianteiro e um dos piores no banco traseiro. Foi um vício de
origem: em 1994, quando foi feita a lei, pensamos que para comunicar talvez fosse
melhor exigir apenas no banco da frente, até porque a taxa de ocupação do veículo
era de 1,3 pessoas por veículo, o que significa o motorista e o passageiro. O problema
é que isso se tornou uma verdade e hoje para fazer as pessoas usarem o cinto traseiro
é outro desafio de comunicação. Na Europa você não precisa que a lei obrigue, é uma
exigência da sociedade. Quanto ao uso da cadeirinha, é a mesma coisa: o cidadão
quer proteger o seu filho. O ABS por lá não é uma determinação legal, mas uma exi-
gência do mercado, o consumidor quer um carro mais seguro e leva isso a sério. O
uso de cinto já está incorporado na cultura.”

Volto ao tema da disseminação de cultura de segurança no trânsito, ao papel que


uma entidade tem ao deixar a função burocrática ‘médico de vista’ e passar a cuidar de
medicina de tráfego de forma especializada, contribuindo para o desenvolvimento do
saber na área.

“Talvez a grande contribuição da entidade seja exatamente inserir a saúde como


fator importante no contexto do transporte. Antes da Abramet, o médico entrava em
cena como o cuidador do acidentado, não existia uma preocupação com a prevenção.

220 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


O grande lance da medicina de tráfego foi inverter esse processo: o médico tem um
papel a desempenhar antes do dirigir, no momento que antecede a condução do veí-
culo. Quando se caracteriza que o homem é o grande gerador de aci-
dentes é possível tomar medidas preventivas.”

‘‘
Peço para citar algumas contribuições científicas que a Abramet tenha
Quando o Detran
conseguido ou esteja a ponto de produzir e introduzir no cenário de trân-
sito nacional.
credencia um médico
para a habilitação do
“Nosso esforço é fazer com que essas regulações, do ponto de vista exame, sempre atende à
legal, automatizem a inserção do conhecimento científico produzido nos legislação federal que
momentos de caracterização de aptidão para a condução. Se produzi- exige um especialista em
mos uma diretriz médica baseada nesses princípios científicos, auto- medicina de tráfego e ele
maticamente seria uma obrigação legal do médico pesquisar por não é obrigado a se filiar
ocasião do exame de habilitação, físico e mental. Algumas já consegui- à entidade. Se
mos introduzir, como a do diabético, da apneia do sono, a fadiga que compararmos com
produz acidentes. São bandeiras da Abramet e algumas estão na legis-
especialidades mais
lação, o médico tem que pesquisar isso. Outra seria com relação ao con-
representativas, como
dutor com deficiência auditiva. Um grande drama para caracterizar isso
cardiologia, pneumologia,
é o uso da tecnologia, num país do tamanho do Brasil onde é muito di-
anestesia, que fazem
fícil aplicar testes mais sofisticados para caracterizar o problema. Então
parte da existência
uma das missões que assumimos foi procurar o mecanismo de maior
histórica da medicina,
possibilidade de universalização para caracterizar o índice de audição
de cada pessoa. Hoje há o teste oral, que se faz rotineiramente no con-
não estamos mal em
sultório e que verifica a capacidade de o indivíduo ouvir certas palavras número de especialistas,
produzidas a uma determinada distância num tom normal de voz. A cor- mas precisamos
relação com a evidência científica é muito grande. Pode-se fazer esses melhorar em número
testes em qualquer consultório no mundo, que são validados cientifica- de associados
mente. Correspondem à audiometria, a emissão autoacústica, testes
mais sofisticados de avaliação da audição. A partir deles pode-se de-
clarar se uma pessoa está apta ou não para dirigir certos veículos, ou profissional-
mente, etc.”

Pergunto a Montal onde estão os 2 mil associados da Abramet, pelo Brasil.

“A maioria, uns 40%, está em São Paulo. Em alguns estados estamos subrepre-
sentados em número de associados como no Rio, Paraná, Rio Grande do Norte. Mas
em Minas são muitos, é um estado muito ativo. Amazonas, Sergipe, Piauí, Ceará, Per-

Sociedade I Abramet: cultura de segurança no trânsito na medicina de tráfego 221


nambuco também têm representações interessantes. A Bahia tem tentado colocar
esses conhecimentos da medicina de tráfego no contexto da sociedade e de grandes
empresas como uma estratégia de custo logístico, mas ainda não estamos satisfeitos,
deveria haver mais possibilidades de atuação.”

A pergunta, então, é como fica a situação nos estados em que a Abramet não está re-
presentada ou não possui forte representação.

“Quem faz o exame de habilitação, por determinação legal, deve ser um especia-
lista em medicina de tráfego. E aí que se explica a diferença entre os 2 mil associados
da Abramet para os 7 mil especialistas na área. Quando o Detran credencia um médico
para a habilitação do exame, sempre atende à legislação federal que exige um espe-
cialista em medicina de tráfego mas ele não é obrigado
a se filiar à entidade. Se compararmos com especialida-
des mais representativas, como cardiologia, pneumolo-

‘‘
gia, anestesia, que fazem parte da existência histórica da
O futuro da medicina, não estamos mal em número de especialistas,
mas precisamos melhorar em número de associados.”
Abramet dependerá da nossa
competência em inovar, Sobre o futuro da medicina do tráfego no Brasil, ino-
encontrar novos mecanismos vação e comunicação são palavras-chave na visão de José
de colocação de conhecimento Montal.
à disposição da sociedade, “Como estratégia de afirmação e sobrevivência, é
bem como do processo preciso inovar. Como tornar esse conteúdo produzido,
contínuo de produção, absor- esse conhecimento que temos hoje a serviço da socie-
ção, maturação e transmissão dade? Só o âmbito da caracterização da habilitação
desse conhecimento. não seria suficiente. O que imaginamos é identificar
Continuamos trabalhando possíveis parceiros, que tenham propósitos confluen-
tes, naturais. Dentro do Estado é fácil perceber essa
possibilidade, a exemplo da Lei Seca, quando na hora
de produzir a norma para regular o padrão álcool-dire-
ção a Abramet desempenhou papel relevante. Do mesmo modo, no Ministério da
saúde, com a questão epidemiológica relevante e na qual temos muito conteúdo
produzido que pode ser muito útil nas estratégias sanitárias. Do mesmo modo o
Ministério das Cidades, que regula questões do trânsito, por meio do Contran, De-
natran... O desafio é passar tudo aos parceiros na sociedade, é de comunicação,
pois temos o conhecimento e o desafio é transmiti-lo de forma eficaz e passar re-
torno à sociedade.”

222 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


“O maior fator gerador de acronotanasia [morte fora de hora] hoje é o trânsito. Quando
se mata um jovem ou uma criança há uma alteração de mensuração do IDH de uma ma-
neira absurda. O maior índice desse tipo de morte de crianças entre 5 e 14 anos é no trân-
sito. A expectativa de vida saudável foi modificada brutalmente. Acredito que se o gestor
público conseguisse entender isso claramente, consideraria o acidente de trânsito como
algo prioritário na administração de questões sanitárias e de saúde pública. Vejo um futuro
promissor se conseguirmos implantar essa ideia. O futuro da Abramet dependerá da
nossa competência em inovar, encontrar novos mecanismos de colocação de conheci-
mento à disposição da sociedade, bem como do processo contínuo de produção, absor-
ção, maturação e transmissão desse conhecimento. Continuamos trabalhando.”

Observo que, embora se note a mudança no perfil da Abramet dos anos 70 para hoje,
há novos campos de atuação em que ela pode se inserir, atendendo outros modais de
transporte. Montal acha que isso “vai ser inexorável, não há como fugir dessas possi-
bilidades, de ampliação de áreas de atuação. Mais: a sociedade vai perceber a neces-
sidade disso, da mobilidade sustentável. Na logística, por exemplo, se procura o
melhor e mais econômico mecanismo para levar uma coisa de um lugar a outro. Como
não levar em conta o ser humano que faz esse processo? A gente precisa desse co-
nhecimento para administrar o processo. E isso em qualquer contexto. Aí o grande de-
safio será o de formar especialistas nessas áreas, com conhecimento científico e
traduzindo para a linguagem leiga. Uma questão transcendental seria nossa capaci-
dade de dialogar com outras esferas, como antropologia, direito, engenharia... Como
não conversar com a engenharia sobre a cadeirinha para crianças ou o cinto de segu-
rança, que é uma conjunção bonita entre a medicina e a engenharia? Há várias possi-
bilidades de diálogos, constantes, perenes, deixando as vaidades de lado para que se
possa avançar... Do mesmo modo a sociologia: a mobilidade é inerente à preservação
da espécie, e aí a mobilidade é uma estratégia de sobrevivência no mundo”.

Pergunto a Montal como vê a medicina de tráfego no Brasil quando acabar essa Década.

“Muitos já disseram que este é o milênio em que a patologia de maior prevalência


será o trauma. Nesse sentido, mesmo que não façamos nada, vai ficar muito evidente
que até como efeito colateral do avanço da ciência de maneira geral, da saúde, na pre-
venção de doenças tradicionais, vamos perceber que continua morrendo gente fora
de hora por causa dos acidentes de trânsito. Então essa é a patologia do século 21.
Contudo, temos percebido certa leniência brasileira em relação a assumir a Década.
Estamos no final de 2012 e não vemos ações muito efetivas, apenas esquizofrênicas,
isoladas e isso nos preocupa muito.”

Sociedade I Abramet: cultura de segurança no trânsito na medicina de tráfego 223


Gente que faz –
histórias de quem não
esperou para fazer
COMO EM TODAS AS áREAS DE ATIVIDADES, também em segurança no trânsito
temos as pessoas que se destacam por suas atitudes. Gente que enfrentou algum tipo
de dificuldade ou de oportunidade de fazer uma ação importante pelo trânsito e não
deixou para mais tarde. Este é um dos capítulos que me dá mais prazer em escrever
porque se trata de iniciativas individuais para ajudar segmentos da sociedade neste
setor tão pouco priorizado.
O melhor disso é que são histórias bem diferentes, que se passam em ambientes
distintos, com diferentes graus de dificuldades e senso de oportunidade. Como ponto
de convergência, todas vão desembocar numa maior conscientização sobre segurança
no trânsito ou, com o título desta obra sugere, numa efetiva disseminação de cultura
de segurança.
Uso a ordem alfabética para abordá-las. Começo, assim, por Fernando Diniz, do Rio
de Janeiro, que criou uma ONG – Trânsito Amigo –, após ter perdido um filho num aci-
dente de trânsito em 2003. Depois falo de José Franque, baiano de Itabuna que, depois
de ver ignorados seus alertas sobre curvas perigosas na rota de ônibus Itabuna-Salvador,
pegou uma máquina fotográfica e foi ele mesmo fotografá-las para poder ajudar seus
colegas a evitar os perigos das estradas. O terceiro da lista é o também carioca Rodolfo
Rizzotto e seu incansável site www.estradas.com.br em que, além de falar muito de es-
tradas, é intransigente na defesa da segurança. O último personagem é Sebastião Pires
de Camargo, de Juiz de Fora, Minas Gerais, que deixou a condição de zeloso motorista
de ônibus para se tornar um dos maiores instrutores de motoristas profissionais do país.

224 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Fernando Diniz –
Do luto, uma luta
Fernando Diniz, 65 anos, entrou para a frente dos defensores
da segurança no trânsito da maneira mais dolorosa possível: numa
noite quente de março do Rio de Janeiro, em 2003, ele se preocu-
pava que seu filho Fabrício, 20 anos, não havia retornado como
previsto de uma visita a um shopping não distante de casa, e re-
solveu ligar para o seu celular. Atendeu um agente de trânsito di-
zendo que Fabrício tinha sido vítima de um acidente de trânsito e
que ele, Fernando, deveria ir imediatamente ao local. O agente, obvia-
mente, não quis dizer de cara a Fernando que seu filho estava morto, vítima Diniz
de uma batida violenta do carro em que estava, no banco de trás – sem cinto de segurança.
Passados os intermináveis primeiros dias, ainda atordoado e tentando entender o
que tinha lhe acontecido, Fernando decide fazer do luto uma luta e não se entrega. Reúne
o que lhe sobrava de forças, procura ombros e amigos e cria o movimento Prosseguir é
preciso, que em pouco tempo daria lugar à ONG Trânsito Amigo – Associação de Paren-
tes, Amigos e Vítimas de Trânsito.
A rede vai se formando paulatinamente na medida em que a Trânsito Amigo vai ga-
nhando visibilidade. Fernando, engenheiro e consultor da Petrobras no Rio de Janeiro,
vai contatando e sendo contatado por outros pais e parentes de vítimas de trânsito e em
pouco tempo sua casa já não comporta mais o número de interessados em se juntar à
ONG. O movimento vai em frente.
A Trânsito Amigo busca fazer ações propositivas com parlamentares para cobrar apli-
cação de leis mais severas que minimizem os efeitos da violência do trânsito e, principal-
mente, que acabem com a impunidade. Entre outras coisas, acabar com as penalidades
em que o culpado de crimes de trânsito seja punido com a doação de cestas básicas.
A ONG luta também para que os causadores de acidentes de trânsito com vítimas
fatais não sejam acusados de homicídio culposo (aquele em que não houve intenção de
matar), mas de homicídio doloso, que é o caso do motorista responsável pela morte do
seu filho naquela noite de março de 2003. Até hoje ele está evadido da justiça brasileira,
aparentemente vivendo no exterior.

Sociedade I Gente que faz – histórias de quem não esperou para fazer 225
“Hoje divido meu tempo na engenharia e na busca por ações propositivas e lu-
tando, sempre militando nessa área por um trânsito mais justo. Sempre faço palestras
em empresas e escolas, participo de congressos no Brasil e no exterior”, me conta
Diniz. E continua: “A gente perde o eixo, perde o referencial. Não existe o porto seguro,
a luz no fim do túnel. Essas coisas são totalmente invisíveis àqueles que perdem um
filho.”
A proposta de ação da ONG era a trazer alguma contribuição, mudar alguma coisa
dentro desse panorama do trânsito tão carente de fiscalização e punições.
“A gente percebe que é uma dificuldade muito grande. Todas as ações são muito
lentas e você depende de revisões de código, leis de trânsito, código penal. As coisas
se arrastam, são muito morosas. A gente não pode absolutamente desistir”, afirma
Fernando Diniz. Por esse motivo, participou ativamente das ações desde a época do iní-
cio da lei 11.705, a Lei Seca, que sempre preferiu chamar
de Lei da Vida. Três anos depois do acidente do Fabrício,
ele apresentou ao deputado Hugo Leal um anteprojeto de

‘‘
lei de tolerância zero com relação ao álcool.
Diria que a impunidade
Conta também que, com parceiros cariocas, a Trânsito
desperta no ser humano a
Amigo tentou encontrar um lugar público em que pudesse
iniciativa de colocar em prática
erguer um memorial às vítimas de trânsito como o cons-
coisas absurdas, sem medir
truído em Curitiba no Parque Barigui. Essa luta começou em
consequências. No trânsito
fevereiro de 2011 e se estendeu pelo ano inteiro, com chefes
isso é uma constante. A pessoa
de gabinete, prefeito, secretário municipal e, ao final do ano,
tem que entender que aquilo
não conseguiu superar a burocracia e definir o local.
que acha que pode fazer bem
Fernando conta que a Trânsito Amigo já deu algumas
para ela, pode causar mal
contribuições valiosas para o setor: “Trouxe a celebração
a outros. Deve pensar na
do Dia Mundial em Memória das Vítimas de Trânsito ao
coletividade, sempre
Brasil, instituído pela OMS em 2004. Em 2009, em de-
corrência daquele gravíssimo acidente de trânsito envol-
vendo o deputado Carli Filho, nós fizemos o Dia Mundial
em Curitiba, em conjunto com a família Yared. Em 2010, fizemos um trabalho itine-
rante, em Florianópolis, e ano passado voltamos a fazer no Rio de Janeiro.”
A impunidade é algo que incomoda muito a esse carioca de fala tranquila, sempre
atento ao que acontece no cenário brasileiro. “Diria que a impunidade desperta no ser
humano a iniciativa de colocar em prática coisas absurdas, sem medir consequências.
No trânsito isso é uma constante. A pessoa tem que entender que aquilo que acha

226 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


que pode fazer bem para ela, pode causar mal a outros. Deve pensar na coletividade,
sempre”, é seu conselho.
Quero entender as dificuldades de montar e manter hoje uma ONG voltada à segu-
rança no trânsito. “A dificuldade não é só montar uma ONG ligada ao trânsito, mas
qualquer coisa que fale em ONG no Brasi já se pensa em desvio de dinheiro e isso,
obviamente, é cruel.” A Trânsito Amigo não tem parceiros mantenedores, apenas alguns
apoiadores. Para ele, não é preciso ter uma ONG de grande vulto, com muita expressão,
com recursos monstros. “Uma pequena ONG pode agir dentro da sua comunidade, não
importa qual seja sua crença, onde quer que possa juntar pessoas, vítimas ou não,
buscar voluntários e conscientizar sobre a necessidade de multiplicar esse espírito
de solidariedade; já é uma grande coisa”, continua.
E assim Fernando Diniz continua sua peregrinação, sua doutrinação pela causa do
Trânsito Amigo, reunindo paulatinamente maior número de pais ou parentes de vítimas
do trânsito para pressionar as autoridades deste país a fazer mais pelo trânsito. Sabe que
muito do que fala fica na escuridão da noite, mas há sempre um resíduo que fica. É isso
que o incentiva a continuar. Afinal, conforme seu lema, “Prosseguir é preciso”.

José Franque – José Franque

Vida nas curvas da morte


José Franque Ferreira Dantas, baiano de Itabuna, é um brasi-
leiro como qualquer outro. Como muitos brasileiros, começou cedo
a ganhar a vida, ajudando no sustento da casa. Filho de pai
sapateiro, com as dificuldades financeiras para manter a
família de quatro filhos, decidiu criar frango para ven-
der. Nessa época, Franque estudava no Colégio
Lucia Oliveira e já começava a ajudar o pai.
Quando voltava da escola para casa, tinha de atra-
vessar a BR 101 e via sempre os ônibus da Viação águia
Branca que faziam rotas entre o Espírito Santo e a Bahia. Achava

Sociedade I Gente que faz – histórias de quem não esperou para fazer 227
bonitos aqueles ônibus e ali começava a fazer planos de, um dia, trabalhar na área.
Aos 13 anos comprou um Fusca velho para entregar galinhas na feira. Da meia noite
de sexta até 5 horas da manhã de sábado matavam 120 galinhas e Franque levava para
vender na feira. Às vezes vendia tão rápido que voltava correndo para buscar mais. O
lucro era aplicado no overnight (aplicação financeira feita no open-market, na época, em
um dia para ser resgatado no dia seguinte).
Em 1991, aos 18 anos, começou a realizar seu sonho de trabalhar com ônibus, sendo
admitido como cobrador na filial da Viação águia Branca em Itabuna. Depois de dois
anos, passou a motorista manobreiro, depois motorista, o mais jovem da empresa, e aos
24 anos já trabalhava como motorista instrutor. Deixou a águia Branca em 2007, como
coordenador de tráfego. Em 2009, estava na Auto Viação Camurujipe, tradicional em-
presa baiana com 50 anos. Em 2010, foi promovido a gerente de núcleo da filial de Vitória
da Conquista, onde coordena as atividades de quase 200 pessoas entre motoristas, co-
bradores, mecânicos, vendas, serviços gerais, etc.
No meio dessa história, um fato que iria alterar a trajetória profissional de Franque:
em 2004, já como motorista instrutor da águia Branca em Itabuna, ele ganha o Prêmio
Volvo de Segurança no Trânsito, que lhe dá visibilidade e reforça sua condição funcional
na empresa. De quebra, o Prêmio solidifica ainda mais seus laços com a segurança no
trânsito, tema que já fazia parte do seu cotidiano em razão da nova função. Essa é a his-
tória que quero contar a você, leitor.
Como instrutor de motoristas, Franque tem obrigação de conhecer bem as estradas
por onde circulam os ônibus da águia Branca. Em suas viagens de inspeção, usando o
ônibus-escola da águia Branca, se dá conta de que a BR 101 na Bahia, notadamente no si-
nuoso trecho compreendido entre os km 322 e 663, entre Itabuna e Salvador, era um belo
convite a acidentes em razão da inexistência de sinalização horizontal e vertical e das con-
dições topográficas da região. Os preceitos da direção defensiva recomendam ao condutor
que, ao trafegar em curvas, deve reduzir a velocidade para chegar nelas com velocidade
e marcha compatíveis. Muitos condutores, porém, desconhecem ou não cumprem essas
orientações. A sinalização consegue amenizar esse risco, pois adverte o condutor sobre
os riscos à frente e chama sua atenção para reduzir a velocidade e aumentar a cautela.
Como a sinalização na região era mais que precária, Franque procura a 10ª Delegacia
da Polícia Rodoviária Federal, em Itabuna, para solicitar levantamento estatístico dos
acidentes ocorridos no trecho. Descobriu que 15 das 250 curvas do trecho respondiam
por 34% dos acidentes em toda a área de atuação da 10ª Delegacia da PRF.
Estudou cada uma delas e resolveu pedir providências às autoridades para a devida

228 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


sinalização do trecho abandonado. Valeu-se do Capítulo 5º, artigo 72, do Código de Trân-
sito Brasileiro que diz que “Todo o cidadão ou entidade civil tem o direito de solicitar,
por escrito, aos órgãos ou entidades do SNT (Sistema Nacional de Trânsito), sinaliza-
ção, fiscalização e implantação de equipamentos de segurança, bem como sugerir al-
terações em normas, legislação e outros assuntos pertinentes a este código”.
Assim, foi a campo e registrou em fotos a total falta de sinalização das curvas e en-
tregou cópias aos responsáveis pela conservação e manutenção da rodovia na região, so-
licitando, como cidadão, que fosse feita a devida sinalização do local.
Isso redundou num plano de ação para sinalizar as 15 curvas responsáveis por 34%
dos acidentes na área de atuação da 10ª delegacia da PRF. O trabalho foi coordenado pelo
supervisor de operações da PRF da região, que precisou fazer uma campanha de capta-
ção de recursos nas prefeituras e empresas privadas no sentido de instalar
as placas de sinalização nas 15 curvas.

‘‘
Franque afirma que com seu projeto Vida nas curvas houve uma redu-
ção do número de mortos, no primeiro ano, da ordem de 7%. Em 2004, Não se mede
com sua conquista do Prêmio Volvo, houve uma repercussão muito a maturidade de um
grande na região, que chamou a atenção para o problema. Em 2005, saiu homem pela idade, mas
a recuperação naquele trecho da rodovia e a sinalização foi redesenhada, por suas atitudes.
o que melhorou muito. Um exemplo: na curva de Cassemiro, entre os mu- Às vezes a gente vê
nicípios de Buerarema e São José da Vitória, não passava uma semana gente mais jovem
sem acidentes. A inclinação da rodovia naquele trecho jogava o motorista dirigindo de forma
para o centro da pista e não para o acostamento. Isso foi corrigido. Atual- exemplar e os grisalhos
mente o sul da Bahia nesse trecho está com o asfalto em boas condições, agindo de forma
bem sinalizado. irresponsável
Franque tem consciência também de que ainda há muito que cami-
nhar até chegar num bom padrão de segurança rodoviária. Percebe que
empresas melhoraram nos seus procedimentos de segurança, porém, num percentual
pequeno. Constata também que muitos motoristas apresentam significativos sinais de
melhora em habilidade, segurança, comportamento e, do mesmo modo, há um mundo
de outros que ainda não chegaram lá e – pior – não conseguem entender o alcance de
um comportamento seguro.
E aí me dá uma sentença clara e definitiva: “Não se mede a maturidade de um
homem pela idade, mas por suas atitudes. Às vezes a gente vê gente mais jovem
dirigindo de forma exemplar e os grisalhos agindo de forma irresponsável.” Por isso,
acredita que a chegada da câmera de vídeo instalada no ônibus, gravando toda a sua

Sociedade I Gente que faz – histórias de quem não esperou para fazer 229
trajetória na estrada (“fiscalizando o motorista”) pode ser de uma ajuda muito grande
para a segurança dos passageiros e do próprio profissional do volante, pois as imagens
podem ajudá-lo caso seja acusado de algum ato inseguro que não tenha cometido.
“No primeiro momento em que se implanta a câmera é um Deus nos acuda... Vem
sindicato dizer que não pode, que é invasão de privacidade, etc. Só que o ônibus é um
veículo público, por concessão, não é privativo. O motorista, contudo, deve entender
que a câmera é para ajudá-lo, até para isentá-lo de alguma culpa ou para mostrar que
fez algo errado e na hora não se deu conta”, defende Franque.
Ele acha, todavia, que as empresas precisam ir muito além das câmeras. Treinamento,
capacitação, recapacitação – quanto mais, melhor, tanto para a empresa como para os
passageiros e, claro, para o motorista. Programas específicos sobre uso de drogas, cui-
dados com a saúde, monitorar com rigor as horas de descanso dos motoristas (muitos
deles não se dão conta dos benefícios).
Em novembro de 2002, quando Franque concluiu o trabalho de mapeamento e de
identificação das curvas com maior índice de acidentes na região, sabia que estava pres-
tando um importante serviço à comunidade, pois a sinalização de trânsito é algo essen-
cial na prevenção de acidentes. “É preciso que mais pessoas exerçam seu direito de
cidadão, sobretudo para a preservação da vida humana”, conclui.

Rodolfo Rizzotto –
A briga pela segurança
Quem encontra Rodolfo Rizzotto, num primeiro contato, não diria que ali está um
brasileiro inconformado com uma série de situações da vida pública nacional. Formado
em economia e direito, tornou-se mestre em planejamento turístico na Itália. Na volta,
junto com o pai, montou uma rede de serviços de informações em aeroportos com pro-
dução de guias, mapas, etc.
Ficou 16 anos nessa área à qual, mais tarde, agregou trabalhos com hotelaria. Não
significa que foram anos dourados, no fantasioso mundo do turismo. Pelo contrário.
Nunca aceitou a maneira de trabalhar de funcionários públicos com quem batia de frente,
o que o impediu de expandir o negócio para outros aeroportos.

230 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Como atuava no setor, começou a escrever estudos para uma pu-
blicação da revista inglesa The Economist sobre indústria viária. Os
editores queriam entender o perfil dos sul-americanos que viajavam
pelo mundo. “Quando comecei os estudos, percebi um movimento
muito grande desses viajantes nas estradas, especialmente pegando
o caso brasileiro. Aí fui analisar os argentinos vindos ao Brasil e os
brasileiros fazendo o caminho inverso e fiquei surpreso ao checar
dados dos anuários do extinto DNER. Como tinha conhecimento
do movimento de todos os aeroportos do país, comparei os dois
dados e vi que o movimento dos aeroportos era pequeno perto
do que acontecia nas estradas.”
Pela avaliação de Rodolfo, 90% das viagens no Brasil eram por
via rodoviária e pouco mais de 60% do transporte de carga também.
E ainda confirmou que praticamente todos os que usam o transporte aéreo Rodolfo

usam também o rodoviário. Decidiu então, com seu pai e sócio, montar um serviço de
informações também nas estradas e estudar melhor este mercado: qual o perfil do pú-
blico, o gasto médio per capita, pontos com boas estruturas de apoio nas rodovias que,
na época, ainda não eram tantos quanto hoje.
Em 1990/91, foi montado o primeiro serviço de informações em rodovias do país,
na Via Dutra, e o resultado foi surpreendente. “Nunca vi nada do gênero no mundo.
Montamos dois estandes 24 horas na Rio-São Paulo, com 25 pessoas prestando in-
formações sobre as estradas e que vendiam um mapa específico da Dutra produzido
por nós. Tínhamos acordo com alguns hotéis, que passavam informação diariamente
sobre a disponibilidade de vagas para aquele dia que passávamos para o viajante.” Na
mesma medida em que mostrava o sucesso de uma ação, mostrava também o quanto
nossas estradas eram desprovidas de bons serviços. Rodolfo lembra que em algumas pa-
radas havia mais movimento que alguns aeroportos do país. Em feriados percebia-se um
público muito qualificado. Em 1993, começou a distribuir um informativo com dicas
sobre a estrada, que em pouco tempo chegava a 200 mil exemplares mensais.
E aí começa o namoro com a segurança no trânsito e surge uma espécie de Ralph
Nader3 brasileiro. Rodolfo se dá conta do número de acidentes, conversa muito com os

3.
Ralph Nader, advogado e ativista político norte-americano, famoso por sua luta na proteção do consumidor, ga-
nhou notoriedade por suas vitórias nos tribunais sobre a indústria automobilística dos Estados Unidos quanto à
segurança dos seus veículos. Seu livro Inseguro a qualquer velocidade, escrito em 1965, tornou-se um ícone da
segurança no trânsito no mundo.

Sociedade I Gente que faz – histórias de quem não esperou para fazer 231
motoristas de passeio e caminhoneiros e constata que muitos tinham boas ideias de como
reduzi-los. Como não pretendia dar sugestões porque ainda não conhecia tão bem o as-
sunto, procurou o Programa Pare, do Ministério dos Transportes, para dicas de segu-
rança. Aí decide fazer uma campanha com a publicação para tentar atrair anunciantes e
cria um concurso para premiar ideias simples dos usuários sobre como reduzir os aci-
dentes. O sucesso também foi imediato: “Vieram mais de duas mil sugestões; havia es-
tudos de universitários, sugestão de caminhoneiro escrita em papel de padaria, etc.”,
relembra Rodolfo. Uma coisa puxa a outra, e ele se vê diante de outro dilema: “O que
fazer com tantas sugestões”?” Não poderia simplesmente jogar no lixo!”. E então re-
solve criar um movimento com o mesmo nome do concurso, SOS Estradas, para divulgar
sugestões de pessoas de qualquer perfil, que pudessem continuar contribuindo para me-
lhorar as condições de segurança e trafegabilidade nas estradas.
Se antes, no turismo, se incomodava com abusos e corrupção de funcionários públicos,
a partir do momento em que se envolve com trânsito, Rodolfo passa a dar vazão a outro
tipo de inconformismo, desta vez com a maneira como muitas coisas são feitas nas áreas
de trânsito e como são desprezadas simples e boas ideias, de baixo custo, e que tanto po-
deriam ajudar a melhorar o trânsito deste país. Aí passou, então, a ter à disposição um
bom veículo de comunicação: o site www.estradas.com.br, em que poderia fazer seus co-
mentários e denunciar o que não lhe parecesse correto. E não são poucas coisas.
O primeiro tema que lhe chamou a atenção foi o recall do setor automobilístico (re-
convocação dos proprietários de veículos para correção/substituição de alguma peça ou
acessório que possa apresentar risco à segurança).
Conta: “Por acaso percebi que o recall era importante para a segurança. As em-
presas informavam o problema, mas a divulgação era precária, com explicação com-
plicada. Pensava naqueles que haviam comprado um carro usado e não tiveram
acesso à informação.” Resolveu investigar o assunto. Entrou em contato com várias
montadoras e pediu a relação dos veículos que tinham sido reconvocados para algum
ajuste, pois pretendia fazer a divulgação, de graça, no seu site. Retorno baixíssimo. Foi
mais a fundo em suas buscas e encontrou muita coisa que merecia ser explicada melhor.
Foi quando decidiu escrever o livro Recall - 4 milhões de carros com defeito de fábrica,
publicado em 2003 pela RDE Empreendimentos Publicitários, no qual procurou radio-
grafar a anatomia do recall, um assunto que mesmo hoje passa distante de muitos brasi-
leiros que não se importam com esse tipo de informação. No livro conta casos graves
ocorridos no Brasil que deveriam levar as pessoas a se preocupar muito mais com o tema.
No seu estilo inconformista, investigou todos os recalls que haviam ocorrido no país até

232 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


aquele ano, fez um levantamento que divulga até hoje no seu site, que é a maior fonte
de informações de recall do país.
“Decidi escrever o livro como um primeiro projeto do ‘SOS Estradas’, dando uma
contribuição, fazendo algo útil e prestando a informação sobre o recall. O livro listava
os carros convocados, número do chassi, motivo da convocação, quantos tinham sido
convocados e fazia algumas propostas, uma que passou a ser adotada
a partir do ano passado, que era de que, a exemplo do que ocorre na

‘‘
Europa, no momento do licenciamento, o carro convocado para um re-
call que não tivesse comparecido à convocação não poderia licenciar. No segmento
Só que o problema é que muitos Detrans não tinham essa informação.” de pesados algo que
Na época denunciou, por omissão, o setor de defesa do consumidor, muito me preocupa
e na mesma acusação arrolou o Denatran que, afinal, deveria se envolver é que o caminhoneiro
com o assunto. Hoje há uma divulgação muito maior da imprensa com não toma ciência
relação a isso, os órgãos estão sendo pressionados e em função disso estão do “recall” e as
acompanhando mais. concessionárias são
Rodolfo informa que partir de 2010 começou a funcionar um sistema muito distantes.
segundo o qual cada vez que for feito um recall a informação deverá ser Há ainda muita coisa
anotada no registro oficial do veículo nos órgãos de trânsito, tornando-se para corrigir nisso
uma garantia para quem compra carro usado ou mesmo na hora do li-
cenciamento anual do veículo. “No segmento de pesados algo que muito
me preocupa é que o caminhoneiro não toma ciência do ‘recall’ e as concessionárias
são muito distantes. Há ainda muita coisa para corrigir”.
Da mesma forma, Rizzotto não se conforma com muitos acidentes envolvendo ôni-
bus de média e longa distâncias e caminhões. Sempre com base em suas investigações,
ele está certo de que grande parte desses acidentes ocorre devido ao estado de fadiga do
motorista, provocado pelas longas horas de direção, sem descanso.
Na oportunidade, chamou a atenção o grande número de acidentes de ônibus e cami-
nhões sem envolvimento de outro veículo. No caso dos ônibus apurou que mais de 50%
dos acidentes ocorriam sem colisão com outro veículo. O ônibus saía da pista, batia no
poste, ou inexplicavelmente invadia a outra faixa e colidia de frente com outro veículo e
até colisão traseira com caminhões. “Percebi que havia vários estudos sobre o cansaço.
As pessoas falam muito do uso do álcool, mas são poucos os motoristas profissionais
flagrados pelo bafômetro. É mais comum pegá-los usando rebite, drogas, para ficarem
acordados”, continua.
Segundo Rodolfo, os profissionais do volante geralmente tomam a sua cerveja à

Sociedade I Gente que faz – histórias de quem não esperou para fazer 233
noite, no jantar, quando já estão parados. E depois da Lei Seca começou a observar que
até isso mudou. “Uma vez fotografei um restaurante de caminhoneiros em que não
havia um copo de cerveja sequer sobre as mesas, só sucos e refrigerantes”, teste-
munha.
Rodolfo abre um parêntese para afirmar que o problema do cansaço afeta também
motoristas de automóveis. “É o caso dos que trabalham o dia inteiro, muitas vezes estu-
dam à noite e cochilam na direção de volta pra casa. Ou ainda quando tem feriado, saem
de uma jornada pesada de trabalho, chegam em casa, carregam o carro, pegam a família
e vão para a estrada.” Médicos que cuidam do sono recomendam que a cada 200 quilô-
metros os motoristas devem parar por 20 minutos.
Em 2011, Rodolfo Rizzotto lança-se em nova aventura, escrevendo o livro Acidentes
não acontecem, com o apoio da Escola Nacional de Seguros e da Seguradora Líder
(DPVAT). Em tom enfático, destaca que os acidentes de trânsito não são acontecimentos
casuais, fortuitos e, sim, previsíveis, podendo ser evitados, principalmente com ações
do poder público e mobilização da sociedade.
Rizzotto aborda vários temas polêmicos da área como inspeção veicular, recall, condições
das estradas, omissão da legislação brasileira, etc. Ele dá dicas de como combater o cansaço
ao volante e faz uma análise sobre a pressão dos comerciantes e clientes aos motoboys para
que as entregas sejam feitas em tempo recorde, aumentando, assim, os acidentes.
No caso dos motoristas de ônibus e caminhões, Rodolfo diz que a jornada de traba-
lho do caminhoneiro é de 80/90 horas por semana. “Eles dormem nas cabines, que, em
muitos casos, não possuem cama decente, ou seja, não conseguem descansar ade-
quadamente.” Um capítulo do seu livro é dedicado ao que chama “Escravidão sobre rodas”,
no qual disseca a saga (ou a ruína?) do caminhoneiro. Chegou a fazer campanhas com
folhetos e mobilização de profissionais da área.
Agora em 2012, depois de ver aprovada lei que regulamenta as horas de direção dos
motoristas de caminhão, Rodolfo acha que está vivenciando a “abolição da escravatura”,
pelo que representa em termos de evolução para a melhoria da condição profissional
dessa comunidade. Reconhece que vários pontos importantes acabaram não sendo con-
templados na nova lei, mas não tem dúvidas sobre os benefícios para a categoria. “Como
sempre, há os não satisfeitos e há os interessados em aproveitar para subverter a
ordem e induzir parte da categoria a defender interesses que não seus”, afirma ao jus-
tificar por que depois da publicação da lei houve manifestações de caminhoneiros em
várias partes do país.
Depois de vinte anos de estrada, literalmente, Rodolfo aponta suas conclusões: “Uma

234 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


coisa fundamental é que uma andorinha só, sim, faz verão. Consegui muita coisa com
o trabalho do livro do Recall, com outras coisas que faço e o que outras pessoas tam-
bém fazem. Eu acredito muito que você pode mudar, mesmo sozinho. Outra coisa fun-
damental: ideias simples resolvem grande parte do problema. Não precisamos de
legislação nova, precisamos aplicar com máximo rigor as existentes. Eu acredito em
soluções simples”, exemplifica.
Ele acredita que o trânsito brasileiro tem jeito e que é preciso persistir, mobilizar,
pressionar governo, lideranças e sociedade como um todo. Vê com bons olhos a entrada
do Ministério Público Federal e alguns estaduais e ainda com mais esperanças o prota-
gonismo desempenhado pela imprensa seja na cobertura do que está acontecendo ou na
cobrança do que deveria acontecer.
Enfim, a segurança no trânsito brasileiro precisa de personagens assim, inquietos,
inconformados e ao mesmo tempo atentos e perspicazes, capazes de mostrar não apenas
os problemas, mas, principalmente, as soluções.

Sebastião Pires de Sebastião

Camargo – dedicação e
recompensa
Usando o critério de ordem alfabética para contar as
histórias deste livro, quis a coincidência que a última
delas seja a do Sebastião Pires de Camargo, mineiro
de Juiz de Fora, 67 anos, muito bem vividos. Quis o
destino que o autor deste livro tivesse papel impor-
tante na história desse profissional do volante. Desde
já deixo claro que o mérito da empreitada e do sucesso
foi todo dele. Por isso gosto de contá-la e vou fazê-lo do
meu jeito.

Sociedade I Gente que faz – histórias de quem não esperou para fazer 235
Durante 31 anos Sebastião foi motorista dos ônibus da Empresa Unida Mansur e
Filhos Ltda., em Ubá (MG), fazendo a linha Visconde do Rio Branco-Rio de Janeiro e
algumas linhas de turismo para Argentina e Paraguai. Nesse período, jamais foi mul-
tado e jamais se envolveu em qualquer acidente. Seus colegas diziam que era por
conta do comportamento mais seguro, “medroso”, segundo ele mesmo. Tinha medo
de curvas, de chuva, sempre teve muita cautela nas estradas.
Quando soube do lançamento do Prêmio Volvo de Segurança no Trânsito, na se-
gunda metade dos anos 1980, começou a participar com ideias para baixar a violência
nas estradas. Ganhou cinco prêmios, no total, sendo dois nacionais e três regionais. Com
eles, ganhou também notabilidade. Com o último Prêmio, acertou sua vida, a da família,
e de boa parte de juiz-foranos além de ter ajudado muito a segurança no trânsito. Nessa
época, já era motorista instrutor na Unida e sempre teve segurança como um valor.
Em 1993, quando ganhou o Prêmio Volvo pela segunda vez, Sebastião teria direito
a um troféu, a R$ 3.000,00 e a uma viagem à Suécia por 10 dias. Há algum tempo sonhava
em mudar de vida, ter o seu próprio negócio e estava há 11 meses de se aposentar. O
Prêmio lhe trouxe a boa ideia.
Um dia de julho, antes das 9 da manhã, toca o meu telefone na Volvo. Eu era gerente
de comunicação e responsável pelo Programa de Segurança no Trânsito. Era o Sebastião
com uma proposta tão interessante quanto tentadora. “Já estive na Suécia uma vez. Em
lugar de eu ir lá novamente, a Volvo não poderia me dar o dinheiro que corresponderia
aos meus custos de avião, hotel, comida, etc. e, junto com os três mil reis de prêmio, eu
compro equipamentos e monto aqui em Juiz de Fora um curso de Direção Defensiva
para Motoristas Profissionais?”, me pergunta.
Eu não tive dúvidas e na hora “fechei” com ele: “Está aceita a proposta”, disse, com a
certeza de que aquilo estava rigorosamente dentro dos objetivos do Prêmio Volvo, que
é ajudar a sociedade a diminuir a violência no trânsito. Um motorista que dirige há mais
de 30 anos, sem nunca se envolver em acidentes, sequer ter levado uma multa, que já
atua como instrutor de outros motoristas e que se propõe a usar o dinheiro do Prêmio
para montar o seu próprio curso de segurança no trânsito é algo muito raro e, conse-
quentemente, uma oportunidade que não pode ser desperdiçada.
Meio ano depois, já em 1994, Sebastião inaugura o Serviço de Assistência Educacio-
nal a Profissionais Ltda. (SAEP), em Juiz de Fora, que vai se especializar em treinamento
de motoristas de ônibus e de caminhões e, assim, contribuir de forma significativa para
disseminar cultura de segurança no trânsito pelo país.
Juiz de Fora é a quarta maior cidade de Minas Gerais com população superando os

236 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


500 mil habitantes. Fica na Zona da Mata, a 280 km a sudoeste de Belo Horizonte, no ca-
minho do Rio de Janeiro. Já foi a segunda mais importante cidade do estado, conhecida
como a “Manchester Mineira”, quando o café era um dos alicerces da sua economia. Con-
tinua sendo, contudo, a “capital” da Zona da Mata, que tem 142 municípios e população
superior a 2 milhões de habitantes.
Com o dinheiro do Prêmio Volvo, Sebastião negocia sua saída da empresa, compra
TV, videocassete, retroprojetor e uma garrafa de café de 5 litros para servir
aos motoristas nos seus cursos de direção defensiva. Conseguiu, em per-
muta, uma boa sala de treinamento com o presidente da Associação Co-
mercial de Juiz de Fora, ele próprio dono de empresa de transporte
urbano, para treinar cerca de 90 motoristas. O curso da SAEP começou
em 1994, com o nome de Segurança no trânsito. Depois de um ano, Sebas-
tião já era conhecido na cidade como alguém que corria atrás de segu-
rança. A imprensa deu boa cobertura.
Bom negociante, atento às oportunidades, faz uma nova permuta,
desta vez com a Treviso, concessionária Volvo em Juiz de Fora: em qual-
‘‘ O primeiro
curso dentro da nova
estratégia foi com a
Transuíbe, com sede
em Barroso, para
56 motoristas de
caminhão. O proprie-
quer lugar onde ela vendesse um caminhão Volvo, ele daria treinamento
tário prometeu
de graça para o motorista. Se a empresa quisesse treinar mais motoristas,
que só ia assistir parte
Sebastião fazia o acerto por meio de sua SAEP.
do curso porque
Sua estratégia era fazer com que o gerente ou o proprietário da empresa
estava com dor de
assistissem todo o treinamento ou parte dele para que passassem a ter in- dente, mas acabou
teresse em estender o treinamento aos demais motoristas. O primeiro curso ficando até o final
dentro da nova estratégia foi com a Transuíbe, com sede em Barroso, para e fechando contrato
56 motoristas de caminhão. O proprietário prometeu que só ia assistir parte
do curso porque estava com dor de dente, mas acabou ficando até o final e
fechando contrato. Depois foi convidado para dar uma palestra gratuita
para a antiga Força e Luz Cataguazes, atual Energisa Minas Gerais, a qual se orgulha de
ter como cliente dos mais fiéis até hoje.
E assim a coisa evoluiu. Teve que montar uma sala de treinamento com dois andares,
porque tinha muito motorista desempregado e a demanda aumentou muito. Com a di-
vulgação de haver recebido o Prêmio Volvo, as empresas passaram a se conscientizar
sobre treinamento de motoristas, o que não acontecia até então.
Na época, os motoristas de ônibus ainda recebiam treinamento, mas para cami-
nhoneiro pouco ou quase nada se oferecia como treinamento. Como o negócio evo-
luiu, montou o curso Comportamento seguro no trânsito, uma direção defensiva “mais

Sociedade I Gente que faz – histórias de quem não esperou para fazer 237
técnica”, diferente do que era ministrado desde 1968 por muitas empresas.
Em 2001, a SAEP estava no auge, já tinha se consolidado na praça e tinha quatro veí-
culos na frota quando, aproveitando uma Lei do Contran, descobriu que poderia unir a
empresa ao serviço de autoescola, e mudou a razão social para Autoescola SAEP.
Foi aí que levou seus filhos para trabalhar com ele.
Atualmente tem uma boa equipe de instrutores de direção
defensiva, condução econômica, etc. Até 2007 ministrava

‘‘
cursos de MOPP, transporte coletivo de passageiros, veí-
A tecnologia já deu culos de emergência e transporte escolar, entretanto, uma
grande contribuição para a resolução do Denatran, em 2007, proibiu autoescolas de
segurança. Falta ainda oferecer os cursos MOPP autorizando somente o
educação aos motoristas. Sest/Senat a ministrá-los.
Falta disseminar na cabeça A SAEP soma em seu portfólio centenas de empresas
das pessoas o compromisso clientes em todo o país, notadamente em São Paulo, Minas
com a segurança, com o Gerais e Rio de Janeiro. Algumas de grande porte, como o
comportamento seguro. Grupo Cometa, Expresso Figueiredo, Caterpillar, Unidas
A gente sabe que, com o Mansur, a Baker do Brasil, etc. Tem também concessioná-
treinamento, podemos
rias de rodovia, como a Nova Dutra.
mudar a cabeça de muitos,
Na área de treinamento em Juiz de Fora, a SAEP só
mas não vamos convencer
perde, em tamanho e número de alunos, para o Sest/Senat.
a todos. De 30 motoristas
Hoje a empresa tem uma frota de 22 veículos, 28 funcioná-
treinados, uns 12 saem com
rios diretos e 4 indiretos, inclusive médico e psicóloga.
a cabeça mudada
Mantém média de 120 alunos direto, em cursos que duram
4 meses.
A autoescola representa cerca de 60% do faturamento
da empresa. Outra boa fonte de renda vem das palestras nas Sipats das empresas. “Temos
10 palestras diferentes sobre segurança no trabalho e no trânsito especialmente para
Sipats”, informa.
Sebastião tem justo orgulho em informar que, contando treinamento de motoristas
em direção defensiva e direção econômica, o número de alunos que já passaram pela
SAEP chega a uns 12 mil profissionais. Na autoescola, em 10 anos, estima em cerca de
3.000 aprovados pelo Detran-MG no curso de habilitação de motoristas. Outro passo im-
portante no âmbito da autoescola foi a aquisição de um carro automático, com nove
adaptações, para portadores de necessidades especiais, atingindo um público que tinha
vontade de dirigir e não tinha como obter a habilitação.

238 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Apesar de ver evolução bastante grande na segurança do trânsito brasileiro ao longo
dos tempos, Sebastião vê como muito importante a tarefa de continuar a disseminar mais
e melhor a cultura de segurança no país. “A tecnologia já deu grande contribuição para
a segurança. Falta ainda educação aos motoristas. Falta disseminar na cabeça das
pessoas o compromisso com a segurança, com o comportamento seguro. A gente
sabe que, com o treinamento, podemos mudar a cabeça de muitos, mas não vamos
convencer a todos. De 30 motoristas treinados, uns 12 saem com a cabeça mudada”,
em sua estimativa.
Acha que o motorista profissional melhorou bastante, especialmente os de ônibus.
“Para os de caminhões ainda estamos devendo, inclusive os de transportadoras. Esses
motoristas estão dirigindo há muito tempo; o arrebite, a droga, a cocaína estão no
meio dos caminhoneiros. Os empresários do transporte podem contribuir muito, coi-
bindo abusos, controlando melhor.”
Claro que sobram críticas ao governo também pela inoperância, pela falta de vontade
política e pela falta de prioridade a um tema de tamanha relevância. Acha que o sistema
de trânsito precisa ser modernizado, reestruturado completamente para poder dar conta
do recado de gerenciar uma frota de cerca de 70 milhões de veículos e outro tanto de
motoristas habilitados.
Acredita que tudo começa na educação e cita até um provérbio de Salomão, 740 anos
A.C.: “Educa a criança no caminho que ela deve andar. Quando crescer, ela não des-
viará dele.” Enquanto não temos funcionando uma boa educação de trânsito, devemos
insistir em incentivar o debate sobre trânsito, que é uma forma de educar os diversos
segmentos da população.
Ele sonha com um modelo de programa para empresas que poderia ajudar muito a
melhorar o nosso trânsito: “Em primeiro lugar formar em cada empresa (de transporte)
um instrutor de segurança, capacitado para mudar o comportamento dos motoristas,
que saiba usar a emoção para essa mudança. Os cursos de direção defensiva que os
caras fazem todo mês não funcionam mais. Posso citar o histórico da Expresso Fi-
gueiredo, aqui de Minas, que tinha muitos acidentes, todo mês tombava caminhão.
Hoje não tomba mais, porque mudou o comportamento dos motoristas.”
“Em segundo”, sugere, “reciclagem dos motoristas a cada seis meses, de forma
sistemática. Saber dirigir eles sabem, mas não têm muita noção de segurança. Nossa
experiência nesses vinte anos tem nos ensinado isso”.
Outro ponto essencial para Sebastião: “Conscientizar os empresários de que eles
ganham mais se derem melhor qualidade de vida para os motoristas, como tempo,

Sociedade I Gente que faz – histórias de quem não esperou para fazer 239
alimentação adequada, descanso, horas de sono. Eles têm que pesar quanto custam
os acidentes com seus caminhões, sem falar na responsabilidade civil e criminal, in-
denização para as vítimas, etc.”
Quero saber do Sebastião qual é o segredo do sucesso de um bom instrutor de trei-
namento de motoristas profissionais. Ele não perde tempo na resposta: “Trabalhar com
a emoção, porque só se convence através dela.” Não disse – e talvez nem precisasse –
mas é também preciso falar a língua deles, num vocabulário que eles entendam, procu-
rando estar muito bem identificado com o terreno de operações em que eles atuam, além
de reconhecer os problemas deles e provocar boas discussões de como enfrentar os de-
safios. “Aprendi com o meu pai, quando era motorista, que enquanto a gente é empre-
gado tem que ter olho de dono.”
Para mim, que conheci Sebastião um motorista instrutor que trocou uma viagem à
Suécia para montar um curso de direção defensiva para motoristas de ônibus e cami-
nhões, foi uma alegria muito grande ver o empresário Sebastião Pires de Camargo, dono
de uma bem-sucedida autoescola em Juiz de Fora, dando palestras e cursos pelo Brasil
e ajudando na disseminação da cultura de segurança de trânsito. Uma recompensa à al-
tura para quem teve uma dedicação fora do comum.
Ele admite que passou por mudanças radicais tanto no campo pessoal, familiar, como
no profissional. Precisava pensar como empresário, sem abandonar sua missão de me-
lhorar a segurança. Tinha que buscar um novo ponto de equilíbrio nos negócios, o que
acabou conseguindo com ajuda dos filhos e de uma equipe batalhadora.
Chegando perto dos 70 anos de idade, Sebastião não dá sinais de que esteja disposto
a parar de trabalhar. “A segurança no trânsito deu sentido a essas últimas décadas da
minha vida. Foram anos de luta e de muita felicidade. Minha família está bem estrutu-
rada, cada filho tem sua casa, seu carro, seu salário decente, o mesmo que acontece
comigo, graças à segurança. Assim, quero continuar me dedicando mais um pouco
para ajudar mais gente a se sentir mais seguro no trânsito”, assegura. “E isso é uma
recompensa”, enfatiza.

240 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


Conclusão
Se foi fácil encontrar
a bússola, por que é difícil
achar o caminho?
O leitor já percebeu o sentido da pergunta: como explicar que, sendo um assunto
sobre o qual parece não haver dúvidas, por que o país não cuida melhor do seu trânsito
e não dá a devida importância para a segurança no trânsito?

Sabemos o quanto o Brasil perde todos os anos por causa das centenas de milhares
de acidentes de trânsito: mais de 40 mil mortos, mais de 500.000 feridos graves, mais de
30 bilhões de reais em custos, leitos hospitalares lotados de acidentados, baixa estima da
população, além de saúde prejudicada pelo estresse provocado pelo trânsito. E por aí vai.

Da mesma forma, sabemos que trânsito melhor significa um cartão postal mais con-
vidativo para todos (cidades/estados/país), que melhora a autoestima da sociedade,
que baixa os custos inaceitáveis que todos ajudamos a pagar e que consequentemente
faz sobrar mais recursos para investir em outras áreas de grande prioridade.

Sabemos ainda que se melhorar a qualidade do ensino no país, melhora também o com-
portamento do brasileiro no trânsito, o que traz benefícios em todos os pontos citados.

Sabemos também que os países que obtiveram bons resultados na busca de um trân-
sito melhor apostaram fortemente na visão sistêmica do trânsito, notadamente no binô-
mio educação-fiscalização, sobretudo os europeus, norte-americanos e alguns asiáticos.
Além de tudo, outro ponto importante: todos os países que melhoraram consideravel-
mente seus sistemas de trânsito foram bem-sucedidos porque deram absoluta prioridade
a eles.

Resumo da ópera: sabemos qual é o problema, sabemos quais são as soluções, assim
como temos clareza absoluta do que precisamos fazer para tirar o trânsito brasileiro do
caos em que se encontra. Por isso a intrigante pergunta no título desta conclusão.

Se você acompanhou os casos abordados neste livro, percebeu claramente que, sim,
temos bolsões de atraso, de falta de conhecimento, de comportamento inseguro que expli-
cam a dimensão do problema trânsito. Por outro lado, sentiu também com grande nitidez
que temos áreas extremamente bem desenvolvidas que podem ser comparadas ao que
existe de melhor no mundo.

Por isso usei a expressão “muros e pontes” na apresentação no começo deste livro
procurando explicar que ao mesmo tempo coexistem ilhas de conhecimento avançado

242 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


com outras bem atrasadas em relação ao trânsito. Embora aqueles que detêm conheci-
mento não se neguem a compartilhá-lo com quem tenha interesse, a sensação que tenho
é que parecem estar cercados por muros de difícil transposição e os que necessitam de
informação não conseguem ultrapassar as pontes para o lado desenvolvido pois, como
nos tempos medievais, elas parecem estar levantadas, não permitindo o acesso.

Seria desejável uma aproximação desses dois extremos, diminuindo a distância que
os separa. Para que isso aconteça, falta uma ação do governo ou de outra instituição que
facilite a disponibilização de informações para os mais necessitados. Só pela melhor dis-
tribuição do saber é que vamos conseguir melhorar o trânsito porque significará com-
portamento adequado.

Temos um grande número de empresas transnacionais com excelentes programas


de segurança para suas frotas, funcionários, clientes, fornecedores, etc. Ao mesmo tempo,
temos empresas brasileiras muito bem estruturadas nesse campo e que também podem
servir como referência para tantas outras que precisam. O que parece evidente neste qua-
dro, é que, se quem tem informações se prontifica a passá-las, deve haver falta de inte-
resse de quem precisa se informar melhor.

Uma melhora significativa na cultura de segurança no trânsito no Brasil teria efeito


em, rigorosamente, todos os setores da vida nacional: um trânsito melhor, fluindo com
mais naturalidade tanto nas cidades como nas estradas representa, antes de tudo, mais
segurança e menos acidentes. Ao mesmo tempo, representa enorme economia de recur-
sos que pode afetar positivamente até mesmo os preços de produtos. Com um trânsito
melhor a sociedade pode se orgulhar dele e, assim, contribuir cada vez mais para seu
contínuo aperfeiçoamento.

É importante salientar que um trânsito mais ordeiro e menos violento serve como
um belo cartão-postal, o que contribuiria significativamente para melhorar a imagem
das nossas cidades e do nosso país. Afinal, é assim que vemos os outros países e suas
cidades.

Existem vários estudos e propostas sobre como enfrentar a questão do trânsito bra-
sileiro e todos eles concordam em alguns pontos essenciais: é preciso reestruturar com-
pletamente o atual Sistema Nacional de Trânsito, substituindo-o por outro mais atual,

Conclusão I Se foi fácil encontrar a bússola, por que é difícil achar o caminho? 243
mais condizente com a importância do trânsito e do país no contexto internacional.

Nos trabalhos em que fui convidado a opinar, deixei claro que nenhum dos pilares
do atual Sistema Nacional de Trânsito (Contran, Denatran, Detrans, Cetrans, Ciretrans)
tem papel relevante no combate à violência do trânsito como se deve esperar. Quando
muito, e ainda assim de forma precária, se ocupam da legislação e procedimentos buro-
cráticos, mas de prático pouco ou nada fazem pela segurança no trânsito cuja trajetória
histórica está marcada pelo sangue de centenas de milhares de brasileiros que morreram
dentro do sistema falho do nosso trânsito.

Segundo o sociólogo Júlio Jacobo Waiselfisz, que desenvolve estudos sobre o Mapa
da Violência no Brasil, entre 1996 e 2010 mais de 500.000 pessoas morreram em acidentes
de trânsito. Se valer a regra que, para cada fatalidade, correspondem de 10 a 15 feridos
graves, significa dizer que teríamos aí entre 5 milhões e 7,5 milhões de outros sequelados.
Não é apenas assustador, é sobretudo um número inaceitável para o qual tanto governo
como a sociedade terão de dedicar mais atenção.

Custa a acreditar que o Brasil tenha conseguido galgar posições de liderança no ce-
nário econômico mundial a ponto de já ser a sexta economia global, que tenha acompa-
nhado o progresso tecnológico e a globalização em várias áreas e que tenha ficado tão
para trás na área do trânsito.

Embora a conquista de melhorar o trânsito signifique investimentos, posso garantir


que dinheiro não será problema. Dentro e fora do país há muitos recursos. Faltam olhos
atentos para aproveitar as oportunidades. Em agosto de 2012, participei de um semi-
nário do Banco Interamericano de Desenvolvimento em São Paulo no qual o presidente
do BID, em pessoa, veio dizer que estava disposto a apoiar projetos ligados à Década
Mundial de Ações de Trânsito, que vai até 2020. Pois bem: o governo federal foi repre-
sentado pela chefe da área de educação de trânsito do Denatran, isto é, algo como ter-
ceiro/quarto escalão (nada contra a Maria Cristina Hoffmann que, afinal, cumpriu bem seu
papel, mas serve para mostrar o grau de “prioridade” que o governo tem para com a segurança
no trânsito).

Sei que o assunto trânsito tem frequentado conversas em gabinetes importantes em


Brasília, mas até o final de agosto de 2012 não consegui identificar qualquer sinal de que
isso possa representar alguma mudança firme no quadro atual do trânsito brasileiro.

De concreto, até onde consigo acompanhar, alguns ministérios, principalmente o da


Saúde e o das Cidades têm desenvolvido ações de trânsito relacionados com a Década,

244 Cultura de Segurança no Trânsito I Casos brasileiros


mas muito aquém do que se poderia esperar de um país que tem um dos maiores índices
de fatalidades no trânsito do mundo.

A falta de ação governamental mais firme é marca dos primeiros anos da Década,
mas a sociedade civil, apesar da forma não coordenada, procurou fazer alguma coisa.
As maiores ONGs do setor no Brasil – Vida Urgente e Criança Segura – têm estado bem
ativas em relação à Década. Empresas têm feito seus deveres de casa, várias delas inter-
namente, mas de qualquer forma de grande valor. Algumas entidades, da mesma forma,
se preocupam com o tema e o tem levado em seus trabalhos cotidianos.

O que me alegra ver é que apesar da baixa velocidade da ação governamental, a se-
gurança no trânsito continua na pauta de boa parte da sociedade, das empresas e mesmo
de alguns órgãos governamentais. Melhor ainda, tem bastante gente ajudando a disse-
minar a cultura da segurança no trânsito, condição sine qua non para chegar a um novo
patamar de comportamento dentro de alguns anos.

Se queremos ser a nação desenvolvida que os outros já veem, é indispensável me-


lhorar tanto o trânsito quanto a segurança. Para isso devemos priorizar o trânsito como
um todo, atentando para que a soma das partes resulte num todo e em benefício de todos.

Conclusão I Se foi fácil encontrar a bússola, por que é difícil achar o caminho? 245
Referências

COOPER, D. Traffic Culture – Model for Understanging and Quantifying Safety Culture.
American Society of Safety Engineers, Des Plaines, EUA, 2002.
COOPER D. Improving Safety Culture: A Practical Guide. John Wiley Sons, 1997.
(Download: http://www.behavioural-safety.com/articles/Improving_safety_cul-
ture_a_practical_guide.pdf).
HOWARD, E. (coord.) Towards zero – Ambitious Road Safety Targets and the Safe Sys-
tem Approach. OCDE, Paris, França, 2008.
KISSINGER, J. P. P. (coord.). Improving Traffic Safety Culture in the USA – The Journey
Forward. AAA Safety Foundation, Washington, DC, 2007.
MOCKUS, A.; MURRAÍN, H.; VILLA M. (coords.). Antípodas de la violência – Desafios
de cultura ciudadana para la crisis de (in)seguridad en America Latina. Fondo de
Cultura Económica, Bogotá, Colômbia, 2012.
Prêmio Volvo de Segurança no Trânsito – Trabalhos inscritos – 1987-2010.
SIGÞóRSSON, H.; EINARSSON, S. Traffic Culture – Human Factors & Traffic Safety.
In: Working On Safety Congress, 2010, Röros, Noruega.
WARD, N. J. et al. Toward Zero Deaths: A National Strategy on Highway Safety - White
paper on traffic safety culture. Western Transportation Institute, Bozeman, EUA, 2010.

Referências 247
SK Editora Ltda.
Rua Pedro Brudzinski, 49 l São Lourenço l 82210-020 l Curitiba, PR

1ª Edição / 5.500 exemplares

Livro impresso em papel Pólen Rustic 90g


Texto: Palatino/Volvo sans medium
Títulos: Academy Engraved LET/Volvo sanslight/medium

Anda mungkin juga menyukai