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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM IMAGEM E SOM

Pablo Francisco Menten Mendoza

Fronteira entre Música e Ruído nas trilhas musicais de Lívio Tragtenberg:


A música em Latitude Zero, Contra Todos e Filmefobia

São Carlos, agosto de 2018


Pablo Francisco Menten Mendoza

Fronteira entre Música e Ruído nas trilhas musicais de Lívio Tragtenberg:


A música em Latitude Zero, Contra Todos e Filmefobia

Relatório apresentado para exame de


qualificação ao Programa de Pós-
Graduação em Imagem e Som da
Universidade Federal de São Carlos,
na linha Narrativa Audiovisual.
Orientadora: Profª. Drª. Suzana Reck
Miranda

São Carlos, agosto de 2018.


SUMÁRIO

I.DADOS PESSOAIS..................................................................................................................................5
II.RELATÓRIO DE ATIVIDADES.................................................................................................................6
1.HISTÓRICO ESCOLAR........................................................................................................................6
2.DISCIPLINAS CURSADAS...................................................................................................................8
Cinema e Música: História, Estética e Teoria..................................................................................8
Estratégias Narrativas do Melodrama no Cinema..............................................................................8
Tópicos em Indústria do Audiovisual..............................................................................................8
História de Teoria dos Gêneros Audiovisuais..................................................................................8
PESCD - Introdução ao Som............................................................................................................9
Grupo de Estudos em sobre História e Teoria das Mídias Audiovisuais (Cinemídia)......................9
3.ATIVIDADES DESENVOLVIDAS JUNTO AO PROGRAMA..................................................................10
3.1.Participação em Grupo de Pesquisa.......................................................................................10
3.2.Organização de Eventos..........................................................................................................10
3.3.Participação em Eventos.........................................................................................................10
3.4.Próximos Eventos...................................................................................................................11
III. PESQUISA.........................................................................................................................................12
4.PROJETO DE PESQUISA INICIAL......................................................................................................12
4.1.Resumo...................................................................................................................................12
4.2.Introdução, Justificativa e Síntese do Referencial Teórico......................................................13
4.2.1.Introdução.......................................................................................................................13
4.2.2.Justificativa......................................................................................................................14
4.2.3.Síntese do Referencial Teórico. .......................................................................................14
4.3.Objetivos.................................................................................................................................16
4.3.1.Objetivo Principal............................................................................................................16
4.3.2.Objetivo Secundário........................................................................................................16
4.4.Plano de Trabalho e Cronograma de Execução.......................................................................16
4.5.Metodologia...........................................................................................................................18
4.6.Bibliografia..............................................................................................................................19
5.ESTRUTURA DO TRABALHO E CAPÍTULOS DESENVOLVIDOS..........................................................21
5.1.Resumo...................................................................................................................................21
5.2.Introdução..............................................................................................................................22
5.3.O Compositor e as Vanguardas...............................................................................................28
5.4. Capítulo 1 - LATITUDE ZERO: Entre Código e Subversão........................................................35
5.4.1.O Filme.............................................................................................................................35
5.4.2.A Música: ........................................................................................................................38
5.4.3.Música, Imagem e possíveis articulações sígnicas...........................................................45
5.5.Capítulo 2 (apontamentos iniciais).........................................................................................53
5.5.1.O Filme ............................................................................................................................53
5.5.2.Música.............................................................................................................................54
5.5.3.Música e Filme ................................................................................................................55
5.6.Capítulo 3 (apontamentos).....................................................................................................58
5.6.1.Filmefobia .......................................................................................................................58
5.6.2.Variações sobre o tema Ruído.........................................................................................60
5.6.3.O Gabinete do Dr. Estranho - O horror e o mundo lá fora...............................................63
5.6.4.Fator Realidade ...............................................................................................................64
5.6.5.Identificação e Ressonância.............................................................................................65
5.6.6.Horror..............................................................................................................................67
5.7.Referências Bibliográficas.......................................................................................................69
5

I. DADOS PESSOAIS

Nome: Pablo Francisco Menten Mendoza


(Bolsista Capes)

Endereço Residencial: Rua da Biotecnologia, n. 219,


Parque do Espraiado- São Carlos
Cep: 13566-452

Orientadora: Profª. Drª. Suzana Reck Miranda

.
6

II. RELATÓRIO DE ATIVIDADES

1. HISTÓRICO ESCOLAR
7
8

2. DISCIPLINAS CURSADAS

Cinema e Música: História, Estética e Teoria.


Ministrado pela professora Suzana Reck Miranda, o curso propõe o estudo do uso
da trilha musical desde o primeiro cinema, passando pelas convenções da narrativa
clássica, bem como pelas diferentes propostas estéticas do cinema moderno e
contemporâneo. Em paralelo, a disciplina introduziu o campo teórico específico para
o estudo da música no cinema, seus principais autores e correntes analíticas. Essa
disciplina foi de fundamental importância para o trabalho, pois forneceu material
teórico e conceitos de análise para o desenvolvimento da pesquisa.

Estratégias Narrativas do Melodrama no Cinema


O curso ministrado pela professora Flávia Cesarino objetiva aproximar-se do
melodrama no cinema, abordando diversos períodos e movimentos. Foram
realizadas leituras teóricas e um rico debate coletivo em que foi valorizada a reflexão
individual dos discentes. Foi importante para a pesquisa, pois um dos filmes
discutidos é estruturado em alguns elementos do gênero.

Tópicos em Indústria do Audiovisual


A disciplina Tópicos em Indústria do Audiovisual, ministrada pelos professores Arthur
Autran e Alessandro Gamo, trouxe importantes dados e reflexões sobre as indústrias
cinematográficas do Brasil, Argentina e Chile, desde sua formação até a década de
1970. A disciplina foi importante para conhecer a história e as tentativas de
industrialização do cinema brasileiro, contexto em que o compositor estudado se
insere.

História de Teoria dos Gêneros Audiovisuais


A disciplina de História e Teoria dos Gêneros Audiovisuais, ministrada pelo professor
Samuel de Paiva, abordou a formação dos gêneros cinematográficos e as questões
que envolvem o tema. A abordagem sobre fronteiras entre gêneros e mídias foi de
grande importância para a pesquisa. Boa parte da teoria foi discutida levando em
conta os objetos de estudo dos mestrandos.
9

PESCD - Introdução ao Som


O estágio na disciplina Introdução ao Som foi realizado no segundo semestre de
2017 com turma do segundo ano da Imagem e Som. Antes de cada aula as
professoras e estagiários se reuniam para conversar sobre as aulas e atividades.
Apesar das paralisações que houveram no semestre, todo o conteúdo foi
apresentado e as atividades foram realizadas. O que foi mais interessante na minha
participação foi quando minha colega de estágio e eu discutimos com a turma,
através de um exercício de escuta proposta pelas professoras, qualidades dos sons
à nossa volta.

Grupo de Estudos em sobre História e Teoria das Mídias Audiovisuais


(Cinemídia)
O Grupo de Estudos Cinemídia realiza encontros mensais para discussão de textos
acerca da Intermidialidade. Entre os textos que foram estudados estão,
“Transescritura e midiática narrativa: questões de intermidialidade” de André
Gaudreault e Philippe Marion e “From Impurity to Historicity", de Philip Rosen.
Também foram discutidos os vários aspectos do projeto em andamento com a
University of Reading, “Towards an Intermedial History of Brazilian Cinema:
Exploring Intermediality as a Historiographic Method”.
10

3. ATIVIDADES DESENVOLVIDAS JUNTO AO PROGRAMA

3.1. Participação em Grupo de Pesquisa

Membro do Grupo de Estudos sobre História e Teoria das Mídias Audiovisuais


(Cinemídia) desde o início de 2016. São debatidos textos acerca do tema da
Intermidialidade e também são discutidas as pesquisas realizadas pelos integrantes.
O grupo é composto por docentes do PPGIS, pesquisadores associados, estudantes
do mestrado e da graduação em Imagem e Som.

Nos encontros são feitos informes e encaminhamentos gerais a respeito do grupo e


suas atividades e também são discutidos textos ou a pesquisa realizada por um
integrante, que é acompanhado por um ou mais debatedores e seguido por
discussão aberta a todos os presentes.

3.2. Organização de Eventos

VI Colóquio de Imagem e Som


Participação da equipe de organização do VI Colóquio de Imagem e Som, realizado
em outubro de 2017.

3.3. Participação em Eventos

VI Colóquio de Imagem e Som


Participação no VI Colóquio de Imagem e Som apresentando o trabalho Fronteira
entre Música e Ruído na Obra de Livio Tragtenberg

III JISMA
Participação na III JISMA - Jornada Interdisciplinar de Cinema e Música com o
Trabalho Sons Estranhos. Fronteira entre ruído e música na obra de Livio
Tragtenberg.
11

3.4. Próximos Eventos

XXII Encontro da Socine


Será apresentado o trabalho A música de Livio Tragtenberg em Latitude Zero no
XXII Encontro da Socine em outubro de 2018
12

III. PESQUISA

4. PROJETO DE PESQUISA INICIAL

4.1. Resumo

O trabalho pretende estudar as trilhas musicais de Lívio Tragtenberg, um


relevante compositor do cinema brasileiro contemporâneo, parceiro de diretores
importantes como Júlio Bressane e Tata Amaral. Através do contato com sua obra,
pode-se notar influência de conceitos musicais de vanguarda, tanto por
semelhanças sonoras quanto pelas propostas desafiadoras.
Para entender como se dá o diálogo entre estas propostas e a narrativa
audiovisual, elegemos como objeto Latitude Zero (2000) de Toni Venturi, Contra
Todos (2003), de Roberto Moreira e Filmefobia (2009) de Kiko Goifman. A escolha
dos filmes se dá pela proposta artística de cada um, que reflete diretamente na
maneira como Tragtenberg concebeu a música.

Palavras-chave: trilha sonora, composição, cinema, vanguarda, Livio Tragtenberg.


13

4.2. Introdução, Justificativa e Síntese do Referencial Teórico.

4.2.1. Introdução

O Trabalho consiste em observar as fronteiras entre música e ruído nas trilhas


musicais de Livio Tragtenberg, bem como entender como se dá o diálogo entre suas
concepções estéticas com abordagens consideradas “vanguardistas”. Para isso
foram escolhidos como objeto de estudo três filmes, Latitude Zero (2000), Contra
Todos (2003) e Filmefobia (2000). por conta das propostas artísticas distintas.
Acreditamos que as diferentes propostas apresentadas nesses três exemplos
impactam de forma singular na criação sonora do compositor demandando
diferentes estratégias, mas sem, no entanto, distanciá-lo de pressupostos que
permeiam sua obra.
O Capítulo 1 será dedicado será dedicado ao trabalho de Livio para Latitude
Zero (2000). O filme do diretor Toni Venturi dialoga, em certa medida, com
determinadas propostas utópicas do cinema novo e explora paisagens de um
garimpo abandonado no centro do país. A música do filme apresenta uma proposta
arrojada, combinando elementos do blues e da música nordestina executada em
instrumentos de corda e clarone.
No capítulo 2 analisaremos a música de Contra Todos (2003), filme que
apresenta uma proposta estética mais “realista” e com múltiplos pontos de vista. O
diretor Roberto Moreira conta a história de uma família da periferia de São Paulo que
convive com a violência. Na música predominam sonoridades eletrônicas com
significados abertos, que segundo o próprio compositor, contribuem para preservar o
mistério presente na narrativa.
Já no capítulo 3 nos dedicaremos ao Filmefobia(2009), filme que conta com a
intrigante atuação de Jean Claude Bernardet. Assistimos fóbicos enfrentando seus
medos e não sabemos se é “realidade” ou ficção. Nesse filme Livio Tragtenberg é
visto cena utilizando o som para “despertar” fobias e também captando e
manipulando sons oriundos das reações dos fóbicos.
14

4.2.2. Justificativa

Nas últimas décadas houve um crescimento significativo nos estudos sobre a


relação da música com outras artes, fato que pode ser constatado se observarmos a
produção acadêmica produzida sobre esse tema, tanto em língua estrangeira,
quanto em português. Especialmente sobre a relação da música com o cinema há
um corpus teórico significativo, especialmente em língua inglesa 1. No entanto, as
discussões ainda estão muito voltadas para as obras de compositores do cinema
industrial norte-americano ou de obras de referência do cinema mundial.
Pensamos que é de fundamental importância contribuir para o avanço das
discussões no Brasil, nos últimos quinze anos algumas teses e dissertações sobre a
música no cinema brasileiro tem sido produzidas, mas ainda há muito a ser
pesquisado, sobretudo temas que se aprofundem nas estratégias de compositores
brasileiros contemporâneos, bem como na relação entre suas músicas os demais
elementos dos filmes.
Tragtenberg, além de compositor, costuma refletir sobre sobre a criação
musiclal conectada com outras artes, conforme podemos perceber no seu livro
Música de Cena (2008), isso possibilita ao estudarmos as sonoridades por ele
propostas para os filmes analisados, estabelecer um diálogo com a concepção
criativa que permeia seu pensamento estético. Fato que poderá contribuir com
nossas análises.

4.2.3. Síntese do Referencial Teórico.

Para o embasamento do trabalho, será fundamental buscarmos informações


sobre os filmes que estudaremos. Por exemplo, em Utopia do cinema brasileiro
(2006), de Lúcia Nagib, podemos encontrar considerações importantes sobre
Latitude Zero, um dos filmes que analisaremos. O livro Alegoria do

1 Um breve panorama pode ser encontrado em: MIRANDA, Suzana Reck. O Legado de Gorbman e
seus críticos para os Estudos da Música no Cinema in: Contracampo. Niterói, nº. 23, dezembro de
2011, p. 161-171.
15

subdesenvolvimento (1993), de Ismail Xavier, também nos dará embasamento sobre


importantes questões do cinema brasileiro.
Além desses autores, levantaremos outros livros, artigos e pesquisas de
estudiosos brasileiros sobre os filmes escolhidos, na tentativa de localizá-los,
mesmo que de forma breve, na produção do cinema brasileiro recente.
Especificamente sobre o uso de estéticas musicais vanguardistas no cinema
brasileiro, a nossa principal referência é O livro A música no cinema brasileiro: os
inovadores anos sessenta (2009), de Irineu Guerrini.
Para contextualizar a música de vanguarda do século XX, serão utilizados
como base, entre outros textos, os livros História Universal da Música (2001),
volume um e dois, de Roland de Candé. Estes dois livros abordam de uma maneira
detalhada a música dos principais compositores da música ocidental “acadêmica”,
bem como pressupostos estéticos vigentes em cada período. No volume dois, há um
amplo material a respeito da música do século XX, período em que se situam
compositores que são referências importantes para Tragtenberg, como John Cage e
Karlheinz Stockhausen.
Por conta da proximidade entre a obra do autor com trabalhos de arte sonora
utilizaremos os textos dos pesquisadores Lilian Campesato, Fernando Iazzeta entre
outros, que versam sobre temas como arte sonora, limite música-ruído, estetização
do ruído na música, entre outros.
Também serão utilizadas as discussões conceituais presentes em Afinação do
Mundo (2001) de Murray Schafer, Noise (1977) de Jacques Attali e Condição de
Escuta (2006) de Giuliano Obici.
Como o tema da pesquisa é a investigação das trilhas musicais de Livio
Tragtenberg no cinema, é de fundamental importância investigar a relação da
música com os demais elementos que compõem o filme. Claudia Gorbman é uma
importante teórica que discute no livro Unheard Melodies: Narrative Film Music
(1987) questões como “o que a música faz no filme?” e “como faz?”.
Outro livro importante é Audio-Vision: Sound on Screen (1994), do compositor
e teórico francês Michel Chion, que discute as relações entre som e imagem. Chion
é um compositor experimental, e por isso podemos encontrar uma proximidade com
a linguagem de Livio Tragtenberg. Também utilizaremos o livro de Anahid
Kassabian Hearing Film: Tracking Identifications in Contemporary Hollywood Film
Music (2001) e seu texto The Sound of New Film Form para pensar as múltiplas
16

camadas de significação da relação música/cinema. A autora demonstra, por


exemplo que a música de cinema pode ter e também como a fronteira entre música
e ruído se dá no cinema industrial norte-americano.

4.3. Objetivos

4.3.1. Objetivo Principal

Colaborar com o cenário dos estudos do uso da música no cinema brasileiro a


partir de um recorte específico e pouco estudado: estéticas musicais vanguardistas
nas trilhas de filmes brasileiros contemporâneos.

4.3.2. Objetivo Secundário

- Destacar a obra de Livio Tragtenberg para o cinema, compositor brasileiro


relevante no cenário musical de vanguarda e que tem criado trilhas musicais para
filmes brasileiros com regularidade.
- Refletir sobre os desafios inerentes ao universo fronteiriço entre música e
ruído, sobretudo em relação à narrativa fílmica.

4.4. Plano de Trabalho e Cronograma de Execução

Através do referencial sobre cinema brasileiro, buscaremos compreender


características gerais e específicas dos filmes que serão analisados. Em Latitude
Zero, por exemplo, análise estabelecerá conexões com as ideias de Lúcia Nagib,
importante pesquisadora que se dedica, entre outros assuntos, à retomada do
cinema brasileiro. Devido aos elementos melodramáticos presentes no filme também
haverá um diálogo com autores como Peter Brooks, um dos principais teóricos sobre
o estilo.
Como nesse filme Tragtenberg utiliza elementos do blues e de elementos
musicais da região nordeste, também utilizaremos referências que nos tragam
informação sobre esses estilos, como o livro Blues da Lama a Fama (1999), de
Roberto Muggiati e Isso não é um Violino - Usos e Sentidos Contemporâneos da
Rabeca no Nordeste (2016), de Roderick Santos.
17

No campo da teoria de música para cinema utilizaremos autores variados:


Claudia Gorbman, Kathryn Kalinak, David Newmeyer, Anahid Kassabian, entre
outros.
Na análise Contra Todos, pretendemos nos debruçar sobre referências que
discutam algumas influências assumidas pelo diretor Roberto Moreira tanto do
cinema brasileiro quanto do cinema mundial. No livro Alegorias do
Subdesenvolvimento (1993), de Ismail Xavier, encontramos detalhes analíticos
sobre alguns filmes brasileiros que Moreira assume como influência como, por
exemplo, O anjo Nasceu, de Júlio Bressane. Para estudarmos a relação da música
com a narrativa, utilizaremos o texto de Anahid Kassabian The Sound of New Film
Form para discutirmos sonoridades ruidosas na música de cinema.
Já para análise de Filmefobia, utilizaremos referências sobre o gênero horror
como, por exemplo o texto The Children of the Light, de Bruce Kawin do livro Film
Genre Reader IV (2012). Para os estudos elementos documentais do filme, textos
como Filme documentário, uma leitura documentarizante, de Roger Odin, serão
acessados.
Como nesse filme Livio também aparece como um performer de arte sonora,
utilizaremos estudos de Lilian Campesato, Fernando Iazetta entre outros.
Os livros Noise, de Jacques Attali, Afinação do Mundo, de Murray Schafer e
Condição de Escuta, de Giuliano Obici também constituem importantes fontes para a
pesquisa como um todo, pois discutem a fronteira entre música e ruído por meio de
diferentes pontos de vista.
18

Meses
1/ 3/ 5/ 7/ 9/ 11/ 13/ 15 / 17/ 19/ 21/ 23/
2 4 6 8 10 12 14 16 18 20 22 24
Integralizaçã
o dos X X X X X X
créditos
Revisão
X X X
Bibliográfica
Encontros
com o X X X X X X X X X X X X
orientador
Participação
em grupos X X X X X X
de estudo
Entrevistas e
X
Transcrições
Trabalhos
em X
Congressos
Publicação
de Artigo X
Científico
Análise de
X
Dados
Exame de
X
Qualificação
Redação
X X
Final
Defesa de
Dissertação X
Depósito da
X
Dissertação

4.5. Metodologia

A pesquisa em um primeiro momento consistirá um aprofundamento da


bibliografia essencial, que envolve leituras sobre as vanguardas musicais, o uso de
estratégias composicionais vanguardistas em trilhas cinematográficas brasileiras e a
obra do compositor Livio Tragtenberg.
Também durante essa primeira etapa, nos aprofundaremos em bibliografias que
envolvem a fronteira entre música e ruído, e também a relação música e imagem.
19

Depois dessas leituras e fichamentos iniciais, nos aprofundaremos e leituras


sobre aspectos do cinema brasileiro contemporâneo, com especial atenção para
estudos e análises já empreendidas sobre os três filmes que formam o objeto da
pesquisa. Em seguida nos debruçaremos nas análises fílmicas, apostando que uma
decupagem detalhada nos revelará fatores importantes para sustentar a
argumentação sobre como os elementos musicais interagem com particularidades
de cada filme.
Nossa hipótese é a de que os três filmes escolhidos, além de nos permitirem
observar as possíveis fronteiras entre música e ruído a partir de diferentes
perspectivas, nos apontam uma certa organicidade no modo como Livio equaciona o
agenciamento entre o seu estilo marcante e as singularidades que cada narrativa
contempla.
20

4.6. Bibliografia
ATTALI, Jacques. Noise The Political Economy of Music. University of Minessota,
1985

BROOKS, Peter. The Melodramatic Imagination: Balzac, Henry James, Melodrama,


and the Mode of Excess. New Haven, Yale University Press, 1976.

CANDÉ, Roland de. História universal da música. 2. ed. Trad. Eduardo Brandão.
São Paulo: Martins Fontes, 2001. v. 1 e v.2
CHION, Michel. Audio-Vision – sound on screen. Trad. e ed. ingl. Claudia Gorbman.
New York: Columbia Univ. Press, 1994.
GORBMAN, Cláudia. Unheard Melodies : Narrative Film Music.1. ed. Bloomington:
Indiana University Press, 1987.
KALINAK, Kathryn. Settling the Score: Music and Classical Hollywood film music.
Madison: University of Wisconsin Press, 1992

KASSABIAN, Anahid. The Sound of the new film form. In: INGLIS, Ian (Ed.). Popular
Music and Films. London: Wallflower Press, 2003.

KASSABIAN, Anahid. “How Music Works in Film”. IN INGLIS, Ian (Ed.). Popular
Music in Films. London: Wallflower Press, 2003.

KAWIN, Bruce. The Children of the Light. in: Film genre reader IV (Ed.) GRANT
Barry. Austyn University of Texas Press, 20012.

GUERRINI JUNIOR, Irineu. A música no cinema brasileiro: os inovadores anos


sessenta.1. ed. São Paulo: Terceira Margem, 2009. v.1.
NAGIB, Lúcia. A utopia do cinema brasileiro: matrizes nostalgias, distopias. São
Paulo Cosac Naify, 2006.

OBICI, Giuliano. Condição de Escuta. 1ed. São Paulo: 7 Letras 2008.

SCHAFER, Raymond Murray. A afinação do mundo. Uma exploração pioneira pela


história passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso
ambiente: a paisagem sonora. 2. ed. Trad. Marisa Trench de O. Fonterrada.
São Paulo: Editora UNESP, 2001.
SMITH, Jeff. The Sound of Commerce: Marketing popular film music. New York
TRAGTENBERG, Livio. Música de Cena: dramaturgia sonora. 1. ed. São Paulo:
Perspectiva, 2008.
21

XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo,


cinema marginal. São Paulo: Brasiliense, 1993.
22

5. ESTRUTURA DO TRABALHO E CAPÍTULOS DESENVOLVIDOS

5.1. Resumo

O trabalho tem como objetivo estudar a obra de Lívio Tragtenberg, compositor


de inegável importância para o cinema brasileiro contemporâneo. Autor de músicas
para filmes com estéticas particulares e desafiadoras, ao longo de sua carreira
estabeleceu parcerias com diretores como Julio Bressane e Tata Amaral. Igualmente
desafiador são os caminhos musicais/sonoros propostos por ele em cada obra,
provavelmente devido a sua profunda relação com a música de vanguarda.
A dissertação propõe investigar como Lívio Tragtenberg articula o conjunto de
ideias e sonoridades vanguardistas com a linguagem cinematográfica. Para tanto, o
objeto de estudo compreende três filmes: Latitude Zero (2000), de Toni Venturi;
Contra Todos (2003), de Roberto Moreira e Filmefobia, de Kiko Goifman (2009). As
referidas obras foram escolhidas pois contemplam diferentes propostas de
linguagem que implicaram diretamente na abordagem utilizada pelo compositor,
conforme pretende-se demonstrar.
23

5.2. Introdução

Livio Tragtenberg iniciou sua carreira como compositor nos anos 80, com seu
primeiro disco Ritual (1980). Autodidata, costuma dizer que não teve formação, mas
informação. Começou com o saxofone, mas toca diversos instrumentos, e grande
parte de sua produção musical exerce diálogo com outras mídias.
Teve intenso contato com os poetas concretistas Haroldo de Campos e Augusto
de Campo e eles o apresentaram para o diretor Júlio Bressane, sendo a sua “porta
de entrada” para o cinema. Livio compôs trilha musical para três filmes do diretor: Os
Sermões- A História de Antônio Vieira (1989), O Mandarim (1995) e Miramar (1997).
Em Sermões, primeiro filme desta parceria, Livio criou músicas que dialogam com o
estilo barroco, pois Bressane, que também assina a trilha sonora (Livio assina a
“música original”), usou algumas obras de compositores desse período.
O Mandarim também merece atenção: o filme conta, de maneira peculiar, a
história do samba e algumas figuras da MPB como Caetano Veloso e Gilberto Gil
atuam nele. Segundo o compositor, para dialogar com o violão, que é bastante
presente no filme, ele utilizou instrumentos de cordas pinçadas (lira e harpa árabe),
explorando os instrumentos de maneira abstrata. Sonoridade similar é por ele
utilizada na música do espetáculo de dança Othello (1995).
Othello, aliás, é resultado de uma longa parceria do compositor com o
coreógrafo alemão Johann Kresnik - que também resultou nos espetáculos Pasolini
Testament des Korpes (1997), Die Trummer des Gewissens (2002), Eine Hundert
Eisemkeit (2004), entre outros.
Na verdade, antes de iniciar suas experiências no cinema Lívio também
compôs para vários espetáculos teatrais, atividade que ele exerce até hoje. Dentre
eles, os mais importantes foram Hamlet (1984) e Os Espectros (1985). Em Hamlet,
Livio aplicou um pensamento composicional que consiste em utilizar um estilo
reconhecível pelo público para depois alterá-lo, conforme explica no seu livro Música
de Cena(2008, pg.33), abordagem essas que discutiremos posteriormente.
Já em Os Espectros, de Ibsen, Tragtenberg escolheu instrumentos
orquestrais de cordas para dialogar com o cenário de madeira e com ambiente
aristocrático presente na peça e no texto. Ele relata, no mesmo livro, que seu ponto
de partida foram as ideias opostas aristocracia/decadência,
formalidade/emotividade, sociedade/indivíduo (TRAGTENBERG, 2008, pg.47)
24

Também dentro da área teatral, Tragtenberg compôs para a peça O Anjo


Negro (1993) de Nelson Rodrigues, utilizando células rítmicas de samba tocadas em
um piano preparado, técnica esta que consiste em disponibilizar objetos de materiais
diversos nas cordas do instrumento. A abordagem musical aqui revela uma
importante influência do norte-americano John Cage, criador dessa técnica e um dos
principais nomes da música do século XX. Por outro lado, a exploração do piano
preparado em combinação com um ritmo brasileiro é um interessante exemplo de
como suas composições são híbridas e inovadoras.
A relação com a poesia também faz parte dos diálogos intermidiáticos nos
quais Tragtenberg se insere. A obra Máscaras para Pound (1984), por ele chamada
de ópera multimídia para orquestra de câmara e solistas, foi inspirada em obras do
Poeta norte-americano Erza Pound. Também compôs duas óperas baseadas em
obras do poeta maranhense Joaquim de Sounsândrade: O Inferno de Wall Street
(1987) e Taturema (1991).
Retomando o cinema, a parceria de Tragtenberg com o também músico
Wilson Sukorski merece atenção. Juntos, criaram a música para os filmes Um Céu
de Estrelas (1996) e Através da Janela (2000), ambos de Tata Amaral, e se
apresentaram sonorizando ao vivo São Paulo Sinfonia da Metrópole (1929), filme de
Rodolfo Lustig e Adalberto Kemeny que relata a vida na capital paulista. Outro
interessante trabalho de trilha musical da dupla de compositores está em São
Paulo Sinfonia e Cacofonia (1994), filme de Jean Claude Bernardet construído a
partir de trechos de vários filmes que se passam em São Paulo como Anjos da Noite
(1987), do diretor Wilson Barros e Cidade Oculta (1986), de Chico Botelho.
Em Um Céu de Estrelas, Sukorski comenta que Jean Claude Bernardet, que
os convidou para compor para o filme, pediu para que não fossem criadas “músicas”
(levando em conta o senso comum). Portanto, a dupla usou instrumentos de
2

percussão (naturais e processados) e sons “ruidísticos” de instrumentos de sopro,


que se misturam ao detalhado desenho de som de Eduardo Santos Mendes.
Segundo Tragtenberg, a música vem como uma resposta “muscular” ao que a

Entrevista de Livio Tragtenberg no programa Sala de Cinema da TV Sesc


25

imagem mostra. Nos créditos finais esses sons se agregam e formam um ritmo, algo
mais próximo do que pode ser entendido por “música”. Uma abordagem similar é
utilizada pelo Tragtenberg em Contra Todos (2003) de Roberto Moreira, um dos
filmes que analisaremos nesta dissertação.
Já para Brava Gente Brasileira (2000), filme de Lúcia Murat que retrata a
relação entre indígenas e europeus no Brasil em 1778, Tragtenberg optou pelo uso
de sonoridades orquestrais. Opção semelhante também foi utilizada em Latitude
Zero (2000), de Toni Venturi, outro dos três filmes que compõem o objeto dessa
pesquisa.
Na música de Brava Gente, os elementos harmônicos chamam a atenção. Na
primeira cena - em que vemos a aldeia dos índios guaicurus - soam vozes femininas
dentro de um contexto diatônico. Após o ataque que a tribo sofre, as vozes
femininas retornam, porém o contexto harmônico situa-se dentro de uma escala
diminuta, cujo resultado sonoro é mais denso. A escala diminuta também é ouvida,
desta vez nos instrumentos orquestrais, na cena em que os europeus falam das
minas. Entretanto, as idéias harmônicas mais inusitadas foram empregadas na
música por ele denominada “um índio”, na qual há uma instabilidade harmônica que
propositalmente confunde o ouvinte transitando por acordes menores que não
pertencem ao mesmo campo harmônico. Esta música está associada às cenas nas
quais ocorrem encontros entre brancos e índios, o que sugere o seu vínculo com o
estranhamento entre os dois povos, bem como à atitude violenta dos europeus.
Ainda neste filme pode-se ouvir curiosas composições baseadas em intervalo de
quarta, quando os índios preparam o contra-ataque, por exemplo. Vale ressaltar
que esta trilha sonora foi premiada no festival de Brasília de 2001.
Tragtenberg também compôs para vários documentários como, por exemplo,
500 Almas (2002), de Joel Pizzini e O Outro Lado do Rio (2004), de Lucas
Bambozzi. 500 Almas retrata os remanescentes da tribo Guapó na região de
Corumbá, no Mato Grosso do Sul. A música, composta para orquestra sinfônica,
possui variações sobre Música Aquática de G. F. Handel, e também utiliza
instrumentos indígenas como a viola de cocho. Em O outro Lado do Rio, cujo tema
é a região de fronteira entre o Brasil e a Guiana Francesa, Livio assina o desenho
som novamente junto com Wilson Sukorski. Há alguns sons de percussão e sons
processados, mas a maior parte do que ouvimos foi criada a partir de sons gravados
nos locais das filmagens. Vemos imagens do rio enquanto ouvimos canções
26

populares reproduzidas por alto-falantes, que transmitem a programação de rádio


local pelas ruas da cidade.
Além do trabalho prático como compositor, Livio também foi professor 3 e
publicou livros à respeito de música. São eles: Artigos Musicais (1991), Contraponto-
Uma Arte de Compor (1994), Música de Cena (2008), e O ofício do compositor hoje
(2011). Em Artigos musicais, uma coletânea de textos de sua autoria, é possível
notar a proximidade estética que Tragtenberg tem com os compositores de
vanguarda, como com o já citado John Cage e também outros como Olivier
Messiaen, Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen. Escreve também sobre seu
posicionamento a respeito das políticas culturais bem como seu entusiasmo e
ressalvas a respeito do uso da tecnologia digital no fazer musical. Já Contraponto
tem um caráter mais didático e nele Tragtenberg propõe exercícios para o
desenvolvimento da técnica composicional em questão.
Música de Cena é o livro que mais interessa a esta pesquisa pois nele,
através de suas experiências, Livio discorre diversas questões e particularidades
sobre o ato de compor para narrativas encenadas. O Ofício do Compositor Hoje,
livro mais recente, é uma coletânea por ele organizada, na qual diferentes
compositores discorrem sobre inúmeras questões que envolvem a criação musical
contemporânea. Nele, há discussões que perpassam a música de concerto, a
luthieria como parte da composição, visões sobre o papel da academia no fazer
musical e o mercado.
Nos anos de 2007, 2008 e 2009 Lívio foi coordenador musical da Jornada
Brasileira de Cinema Silencioso, na Cinemateca Brasileira, para a qual foram
selecionados músicos para sonorizar filmes do período em questão. Além de
coordenar o evento, o compositor participou como artista. A apresentação que teve
maior repercussão aconteceu na edição de 2008, quando ele dirigiu a Orquestra de
Sanfoneiros Cegos, que tocavam seguindo suas instruções através de retorno de
ponto durante a exibição do filme Aitaré da Praia (1925), de Gentil Roiz.

Tragtenberg foi professor no Instituto de Artes na Unicamp entre 1990 e 1998. Também ministrou
cursos na PUC em 2004 e 2005, no Departamento de Multimeios. Além dessas experiências dentro
da academia Tragtenberg ministra muitos cursos livres sobre criação musical.
27

Outro trabalho importante foi a criação da Orquestra de Músicos das Ruas,


composta por músicos que tocam nas vias públicas da cidade de São Paulo (como
os repentistas Peneira e Sonhador) e também por instrumentistas pertencentes a
tradições culturais específicas (como a professora de koto 4, Reiko Nagasi). O
resultado desse intenso diálogo pode ser ouvido no CD Neurópolis.5
Na performance Pessoas Sonoras (2006) Tragtenberg utiliza vídeos no qual
aparecem alguns membros da orquestra. Se trata de uma apresentação do músico
em que ele toca diversos instrumentos, dialogando com registros audiovisuais que
são vistos e ouvidos pelo público. Durante a performance, Tragtenberg cria novas
camadas de significado para o conteúdo apresentado.
Também em diálogo com outros músicos, em 2005 Tragtenberg se uniu à
Corporação Musical Operária da Lapa para uma apresentação no Festival de Música
Eletrônica 4 Hype que ocorreu no Sesc Pompéia, em São Paulo. Para este trabalho,
denominado ReinCorporação Musical, o compositor criou batidas eletrônicas que
interagiram com o repertório do grupo.
É curiosos como vários desses trabalhos retratam uma característica forte e
que irá percorrer a Livio: a obra musical já não é mais concebida de maneira
“fechada” e sim promove encontros de informações sonoras de várias ordens,
explorando os significados resultantes desses encontros.
Na área da performance, na Vigésima-Nona Bienal de Artes de São Paulo
(2010) Tragtenberg estreou a obra O Gabinete de Dr. Estranho. Nessa performance
o compositor fica preso em uma jaula com um home-studio, lembrando um
personagem dos filmes clássicos de horror. Placas com avisos estimulavam os
visitantes a alimentarem o Dr. estranho com sons e a partir desses sons o artista

Instrumento de cordas de origem japonesa que lembra a cítara.

Em 1996 0 grupo gravou o CD pelo selo Sesc.


28

realizava composições. Depois da bienal, o Gabinete circulou por cidades do interior


paulista através do Circuito Sesc de Artes.
Essa performance se assemelha em alguns aspectos a atuação de Lívio em
Filmefobia (2009), de Kiko Goifman. O filme, que também analisaremos nesta
dissertação, é constituído por situações em que pessoas são colocadas em
confronto com suas fobias. O compositor aparece em cena gravando e processando
sons.
Em 2016 Tragtenberg iniciou uma parceria com o cantor e compositor
Rogério Skylab. Juntos, os artistas lançaram os discos Skylab & Tragtenberg vol 1, 2
e 3. Nos arranjos há recursos pouco comuns em canções populares, como
sobreposição de diferentes fórmulas de compasso e idéias harmônicas conflitantes.

A obra de Lívio Tragtenberg é, de fato, muito extensa. São quase quarenta


anos produzindo e boa parte desse material foi criado para espetáculos ao vivo, fato
que dificulta um pouco a pesquisa já que não houve registro. No entanto, em seu
site (https://www.liviotragtenberg.com) é possível obter algumas informações e
também ouvir alguns de seus discos e trilhas musicais. Sua obra o traduz como um
artista avesso a rótulos e a modismos. No que diz respeito à criação de música para
o cinema, ele é um crítico ferrenho ao uso de estratégias redundantes, vinculadas a
procedimentos mais voltados ao entretenimento e, mesmo sem termos abordado
toda a extensão de sua obra nesta breve apresentação, esperamos que tenha sido
suficiente para fornecer um panorama sobre sua carreira e os possíveis
caminhos/conceitos que o movem como artista.

5.3. O Compositor e as Vanguardas

Grande parte da sua obra, como já dito, é associada a outras mídias e formas de
expressão artística, perpassando montagens teatrais, dança, poesia concreta e
criações multimídia. Tanto em sua obra artística quanto em seus livros há uma
aproximação estética e conceitual com compositores considerados de “vanguarda”
como Karlheinz Stockhausen e John Cage. Também encontramos em textos e
entrevistas, elogios aos músicos Rogério Duprat e Gilberto Mendes, representantes
dessas ideias no Brasil. Uma questão importante para essa pesquisa é colocar em
discussão o diálogo da obra de Livio com o conjunto de caminhos, ideias e
29

possibilidades associadas à música de vanguarda. Esse termo vincula-se a


experimentações de várias ordens, que podem passar pela elaboração de novas
sintaxes musicais até organizações aleatórias do material sonoro. Para além de
sonoridades e de processos específicos, a ideia de vanguarda parece estar
associada à postura artística do compositor. Nas palavras de Jorge Antunes: “Enfim,
vanguarda se refere à ação ou à atitude que se está à frente, de peito aberto,
enfrentando o inimigo que, em artes, é personificado pelo conservadorismo.”
(ANTUNES, 2013, pg.115).
As propostas estéticas vanguardistas passaram a ser ouvidas na música
ocidental a partir do fim do século XIX e começo do século XX, período no qual inicia
a música considerada moderna. Segundo Paul Griffiths (1987, pg.8), o ponto zero da
música moderna seria a peça Prélude à l’Après-Midi d’un Faune (1894), de Claude
Debussy, por sua orquestração, harmonia e seus momentos de tonalidade ambígua.
Segundo o autor, a ideia de modernismo em música implica em direções nas quais o
modo maior e menor, predominantes até então, já não seriam as únicas
possibilidades. Pode-se pensar que através dessa abertura surgiram caminhos para
a busca de sonoridades distintas que culminaram em correntes como o atonalismo,
o dodecafonismo proposto por Schoenberg 6 e também na inclusão de sons
considerados “não musicais”, ideia esta que apontou caminhos para música
concreta7 de Pierre Schaeffer. Essas são algumas das propostas, entre outras, que
geraram grande discussão ao embaralhar a fronteira entre música e possíveis
barulhos”.

Método de composição com as doze notas da escala cromática em que é abandonado a noção de consonância
e dissonância, bem como é deixada de lado a ideia de hierarquia entre essas notas.

Método de composição que utiliza como base sons “concretos” cotidianos, que são organizados pelo
compositor.
30

Aliás, essa fronteira não está associada só à música de concerto. Gêneros


populares como o blues, que tem na sua matriz o encontro de elementos do
continente africano e de elementos da música europeia, também levantaram
questionamentos. No Livro Blues-Da lama a Fama, de Roberto Muggiati,
encontramos a seguinte informação:
Alguns chamaram as blue notes - chocantes para ouvidos não-
iniciados - de notas "rebeldes". Muitas vezes, no jargão dos músicos,
elas eram dirty notes, "notas sujas". Comentou o chefe de orquestra
Rudy Vallee, ídolo da classe média americana, em 1930: "Tenho
tocado uma certa nota meio bárbara no meu saxofone e observado o
seu efeito sobre as platéias, a agitação dos pés e das pernas
jovens." (MUGGIATI,1999, pg.13)

Através desse trecho, podemos perceber como fatores sociais estão ligados a
essa discussão: os elementos musicais que em certa medida se distanciam das
sonoridades às quais os ouvidos estavam mais habituados são associados a termos
pejorativos. Por outro lado, podemos perceber como as sonoridades apontadas
exercem significativo efeito sobre os ouvintes.
Esta característica, de certo modo, é um dos elementos que motivou essa
pesquisa, pois nosso interesse reside em investigar de que modo estas sonoridades-
ditas vanguardistas-presentes tanto na música de concerto quanto em certos estilos
da música popular podem operar em outros contextos que não necessariamente
sejam partidários das mesmas aspirações como, por exemplo o cinema-uma
linguagem que, em princípio, está no centro da cultura massiva. Lógico que os três
filmes que essa dissertação se debruça não partilham de uma lógica industrial ou de
puro entretenimento. Ao contrário, são obras que pleiteiam diálogos com estéticas
artísticas de modo mais ou menos radical, conforme veremos. No entanto, muitos
filmes brasileiros que se propuseram a experimentar a linguagem fílmica de modo
inventivo, utilizaram trilhas musicais com sonoridades mais tonais e/ou pouco
experimentais. E, sendo o cinema uma arte multidisciplinar parece-nos pertinente
pensar em como se dá esse tipo de relação.
Essa discussão encontra pontos de convergência com ideias de Jacques
Attali, em seu livro Noise. Embora não seja um livro sobre cinema, a abordagem do
autor avança o debate para relações econômicas, sociais e disputas de poder que
envolvem a música e a fronteira entre esse elemento “estranho” que, aos poucos vai
31

se incorpora à linguagem, denominado por ele como noise ou ruído, levando em


conta o caráter transitório e relativo da fronteira em questão.
Para complementar as bases desta pesquisa, também estabeleceremos um
diálogo com o canadense Murray Schafer. No seu livro Afinação do Mundo, além de
chamar a atenção para o universo de sons à nossa volta, Schafer coloca algumas
definições sobre o termo ruído; “sons não musicais”, “distúrbio em qualquer sinal de
informação”, “som indesejado” ou “som muito forte”. Definições estas que nos
ajudarão a perceber a complexidade de relações que envolvem o termo. O livro de
Schafer, inclusive, é um dos pontos de partida para as instigantes discussões
levantadas por Giuliano Obici em seu livro Condição de Escuta, em que o autor
pergunta “para quê afinar o mundo?” Obici defende o potencial criativo de elementos
considerados ruidosos, além de propor um intenso debate envolvendo mídias e
territórios sonoros.
Através do livro Música de Cena, do próprio Livio Tragtenberg, que tem como
objetivo apontar caminhos e abordagens para a criação musical em contextos
plurimidiáticos, nos aprofundaremos em seus processos composicionais.
Por meio de exemplos práticos e ideias conceituais o compositor discorre sobre
caminhos que em muitos dos casos apontam para a fronteira que nos é interessante
(música-ruído):
Essa diversidade na abordagem do fenômeno sonoro faz desse
ser híbrido um escutador por excelência. Capaz de combinar um
solo be-bópico de saxofone como o coaxar mole de um sapo
rouco soando numa catedral gótica. Tudo isso aponta para um
homo estheticus, que mais que um inventor, é um coordenador de
signos de universos e possibilidades; um combinador que recicla e
requalifica informações sensíveis.(TRAGTENBERG, 2008,
pag.171)

As palavras de Tragtenberg tentam dar conta da complexidade de ligações


que permeiam o ato de compor música para narrativas, e também apontam para um
certo tipo de criação musical que engloba elementos sonoros que, em um ponto de
vista mais tradicional, podem ser considerados não-musicais.
Alguns dados bem como análises dessas sonoridades na história do cinema
brasileiro, podem ser encontrada no livro A música no Cinema Brasileiro-Os
Inovadores Anos Sessenta, de Irineu Guerrini Jr. Em alguns filmes dessa década a
música se encontra numa situação fronteiriça que nos é interessante. Também no
livro Alegorias do Subdesenvolvimento, de Ismail Xavier, há exemplos nesse
32

sentido, bem como em artigos e livros de Lúcia Nagib, em especial sobre os que
versam sobre a retomada do cinema brasileiro.
Guerrini nos lembra que durante os anos 60 a atenção de muitos
compositores brasileiros se voltou para as novas ideias musicais vindas da Europa e
dos Estados Unidos. Alguns desses conceitos já haviam se difundido através do
movimento Música Viva, fundado pelo alemão Hans Joachim Koellreutter em 1939
(Guerrini, 2009,pg.59), que tinha como objetivo divulgar o dodecafonismo. No
entanto os anseios criativos em terras brasileiras seguiram por caminhos mais
variados.
Um fato importante no que diz respeito à incorporação dessas estratégias de
composição à música brasileira e, por consequência, na música do cinema
brasileiro, foi o manifesto Música Nova, que buscava subverter as formas vigentes
de se fazer música. Assinaram o manifesto Júlio Medaglia, Rogério Duprat, Damiano
Cozzella Gilberto Mendes e Willy Corrêa. Rogério Duprat na sua trajetória passou
pelo dodecafonismo e serialismo e, assim como Tragtenberg, esteve em contato
com Décio Pignatari e Augusto de Campos. Dentre outros importantes trabalhos
como compositor e arranjador, Duprat criou música para filmes do diretor Walter
Hugo Khouri como a Ilha (1963) e Noite Vazia (1964). Neste último o compositor
incorporou o atonalismo, proposta esta que, por sua vez, contribui para o clima de
angústia e solidão que paira sobre a narrativa. Há também um uso de manipulação
de fita magnética, recurso considerado um importante marco no que se refere a
exploração sonora de processamentos, conforme a detalhada análise de Guerrini
demonstra. Além de Duprat, nesse período há filmes com música de outros
integrantes do movimento Música Nova como Damiano Cozzella e Júlio Medaglia.
Entre as propostas do grupo estava a ideia de pensar a música dentro de um
contexto de consumo.(GUERRINI, 2009 pg.60).
Cozzella compôs para o filme o Cangaceiro Sanguinário (1969) dirigido por
Osvaldo Oliveira, e utilizou berimbau, órgão hammond, guitarra elétrica e
processamentos sonoros, combinando elementos eletrônicos e regionais com
elementos da cultura pop.
Medaglia compôs para Agnaldo: Perigo à Vista (1969) dirigido por Reynaldo
Paes Barros que tem como protagonista o cantor da Jovem Guarda Agnaldo Rayol,
ampliando a relação entre compositores considerados eruditos e a indústria do
entretenimento. É importante ressaltar que tanto Duprat como Medaglia fizeram
33

arranjos para o tropicalismo, movimento que entre outras coisas se assemelha ao


modernismo brasileiro da semana de 1922 por sua proposta “antropofágica”,
mantendo a relação entre procedimentos modernos e cultura de massa.
A música do compositor Guilherme Vaz, bem como os filmes em que ela se
insere também merecem atenção como exemplos de experimentações sonoras no
cinema. Um Anjo Nasceu (1969) de Júlio Bressane, filme centrado em Santamaria e
Urtiga, dois bandidos em fuga que, nessa trajetória, cometem outros crimes. Ismail
Xavier fala sobre o constante efeito de disjunção resultante do diálogo entre música
e imagem nesse filme (Xavier,1993 pg. 321). Na cena em que Santamaria está
ferido, após Urtiga fazer o curativo, há um plano sequência com movimento lento,
em que a câmera passa pelo chão de terra, pela fogueira apagada, por Urtiga
abaixado e introspectivo, e também por um riacho. O que vemos na imagem é um
momento de calmaria entre as ações dos personagens. No entanto, a música
caótica traz informações de outra natureza. Também se pode ouvir a música de
Guilherme Vaz em alguns filmes de Nelson Pereira dos Santos. Em Fome de Amor o
compositor utilizou sons de objetos, o atonalismo e ideias retiradas do pontilhismo,
como observa Guerrini (Guerrini, 2009, pg 158).
A parceria entre Nelson Pereira dos Santos e Guilherme Vaz novamente
ocorre em Um Azyllo Muito Louco (1970), filme inspirado no livro O Alienista de
Machado de Assis. Escutamos a música vanguardista de Vaz em contato com uma
narrativa que se passa no século XIX.
Outros filmes importantes também se valeram de propostas musicais
desafiadoras, como O Dragão da Maldade Contra o Santo de Guerreiro (1969), de
Glauber Rocha. Na abertura ouvimos sons processados e irreconhecíveis na música
de Marlos Nobre, que dialoga com o filme no sentido de apontar para novas
possibilidades estéticas.
Livio Tragtenberg, embora tenha começado a compor para o cinema nos
anos 80, criou a música de importantes filmes no contexto da retomada8. Ele é
provavelmente o principal representante de ideias vanguardistas nesse período, fato
8

Após o governo Collor ter promovido o desmonte da Embrafilme e ter rebaixado o Ministério da Cultura ao
patamar de secretaria, houve um aumento significativo no número de produções cinematográficas no país por
meio da reorganização dos setores vinculados ao audiovisual e também através de leis de incentivo.
34

que fica claro não só pelas suas abordagens sonoras, mas também por uma série
de artigos e textos nos quais ele discute a música de John Cage, Stockhausen, entre
outros.
A retomada costuma ser entendida como um momento no qual as tecnologias
digitais tornaram mais simples e todo o processo de criação e produção de música
para o cinema tornou-se mais barato. Os compositores em geral puderam, em
muitos casos, realizar grande parte das etapas que envolvem a produção da trilha
musical de modo mais rápido e econômico. Tragtenberg lança mão dessas
ferramentas, com um pensamento, mas voltado para as criações “timbrísticas”
viabilizadas pelas plataformas digitais, enquanto boa parte dos compositores desse
período se encantou com a ideia de possuir uma “orquestra” dentro do computador.
Lúcia Nagib diz que o trabalho de Tragtenberg está entre a “sinfonia” e a
“cacofonia” (Nagib,200,pg.84). De fato, basta ouvirmos algumas de suas
composições para notarmos de imediato que não estamos diante de um trabalho
que propõe uma escuta fácil e confortável. Ao contrário, há geralmente algo de
desafiador, de vertiginoso, qualidades estas que se aproximam da maneira como
Giuliano Obici discorre sobre elementos ruidosos:
Quando se está vulnerável ao mundo sonoro como campo de
força e se é afetado pelo exercício do sensível, que mobiliza e
transforma em sensações uma parte da sua textura sensível, que
nos constitui, tem lugar a necessidade de tornar-se outro, num
exercício que não pára de colocar em crise todas as nossas
referências. Essa crise do campo sonoro contemporâneo que nos
coloca num estado de mal-estar é que nos obriga a criar e pensar.
Esse estado de abalos e crises configura o caos. (OBICI, 2006,
pg.46)

Podemos considerar a ideia de cacofonia colocada por Nagib como algo


próximo a “crise de referências” e ao caos colocado por Obici-pensando em como
podemos ser afetados pelos jogos sonoros articulados por Tragtenberg.
Conforme veremos detalhadamente no primeiro capítulo, em Latitude Zero
(2000), filme de Toni Venturi 9, há estilos musicais reconhecíveis, porém
retrabalhados por Tragtenberg. Ouvimos instrumentos musicais que em certa
medida tem alguma ligação com a tradição orquestral de música para cinema,
porém utilizados de uma maneira bem particular, suscetível a uma série de
35

associações. Neste filme, conforme levantaremos, os ruídos funcionam como


elementos “estranhos” em um código musical reconhecível.
Já em Contra-Todos, filme de Roberto Moreira, que prioriza uma estética
realista, percebe-se que a abordagem musical empregada por Tragtenberg é bem
diferente. Escutamos na música sons abstratos pouco reconhecíveis, abordagem
que por sua vez estabelece uma interessante relação com o filme, em que as
sonoridades ajudam a conduzir a trama de modo a preservar o mistério presente na
narrativa. É esta análise que será o tema do capítulo 2.
Por último, no capítulo 3, nossa reflexão centra-se em Filmefobia, de Kiko
Goifman, filme que desafia a fronteira entre realidade e ficção. Na tela há fóbicos
reais e atores enfrentando suas “fobias”. O compositor é visto em cena, às vezes
captando o som direto, às vezes como um performer, que cria diferentes
perspectivas sonoras. Assim como o filme, a música e/ou os sons propõem um
engajamento de ordem sensorial.
Conforme tentaremos demonstrar, enquanto que Latitude Zero apresenta
alegorias da situação do país e do próprio cinema, Filmefobia apresenta elementos
que nos induzem a perceber os eventos apresentados como fatos reais. Levando
em conta a complexa (e discutível) oposição entre realidade e ficção, podemos
considerar Contra Todos como intermediário entre os outros dois filmes, conforme
tentaremos demonstrar. Em suma: em Latitude Zero a música é criada para
instrumentos musicais tradicionais, enquanto que em Contra Todos ouvimos uma
música abstrata em que não reconhecemos claramente a fonte sonora. Finalmente,
em Filmefobia, o desenho de som exerce uma função quase musical por agregar
camadas múltiplas de significado. Com essa características no horizonte, nossa
reflexão tentará Também discutir como diferentes abordagens de Tragtenberg
colaboram para formas distintas de engajamento da sua música com a narrativa
fílmica.

O filme, embora apresente uma interessante proposta artística tem um teor bastante teatral e narrativa
linear.
36

5.4. Capítulo 1 - LATITUDE ZERO: Entre Código e Subversão

5.4.1. O Filme.

Latitude Zero é centrado em Lena (Débora Duboc), grávida de seu amante, o


oficial Matos. Ela é mantida em um garimpo abandonado gerenciando um bar sem
fregueses. A trama começa com a chegada de Vilela (Claudio Jaborandy),
subordinado de Matos, que após ter cometido um assassinato por acidente, é
enviado para o mesmo lugar para se esconder. A partir daí, os dois começam uma
relação cheia de percalços.
A desesperança que domina os personagens é extravasada em atitudes
ríspidas. Lúcia Nagib chama a atenção para os diálogos que mais parecem
monólogos paralelos (2006, pg.84). Também é evidente a oposição entre os projetos
masculinos e femininos, ideia presente tanto no enredo quanto na referência
histórica que o filme traz. O masculino simboliza o projeto militar fracassado,
enquanto o feminino, uma nova possibilidade (Nagib, 2006, pg.88). Para a autora, a
gravidez de Lena está diretamente ligada a ideia de recomeço, de um marco zero.
Segundo Nagib, Latitude Zero faz parte de um grupo de filmes do período da
retomada que reformulam a ideia de utopia no cinema brasileiro (2006, pg. 61) tanto
por abordar questões relevantes quanto por propor maneiras viáveis de realização 10.
Passando-se em um garimpo abandonado em Poconé, no Mato Grosso, centro do
país, o filme fotografa a paisagem rochosa desse garimpo, e suas texturas e cores
são um bom exemplo da exploração sensível de particularidades geográficas do
país, característica também presente no filme Central do Brasil(1998), de Walter
Salles.
Para Nagib, a intenção de anunciar um “recomeço” na história do cinema
brasileiro e os elementos alegóricos são pontos de convergência entre Latitude Zero
e alguns filmes do cinema novo. A ideia de uma sociedade ainda não fundada
presente no filme também é encontrada em Deus e o Diabo na Terra do Sol, que

10

O filme foi produzido com uma linha de financiamento voltada para filmes de baixo orçamento.
37

Ismail Xavier chama de “narrativa de fundação” (Xavier, 1998 pg. 16/17). A


protagonista Lena precisa romper com resquícios do seu passado (simbolizado
materialmente pelo véu de noiva que ela rasga) para que- a partir daí- possa ter
alguma prosperidade.
Dentre os filmes que são foco desta pesquisa, Latitude Zero é o que
apresenta uma narrativa mais linear. A oposição entre personagens pode ser
percebida como um elemento que configura uma estrutura narrativa um tanto
maniqueísta, fato que o que aproxima do melodrama. Embora o gênero seja
comumente criticado, por apresentar uma visão de mundo um tanto quanto
“simplista” alguns importantes diretores utilizam elemento do melodrama em
trabalhos relevantes e inovadores. Segundo Ismail Xavier:
Um movimento simultâneo, não coordenado, afastou muitos
cineastas e críticos de um modernismo mais incisivo no ataque
ao cinema de gênero e revalorizou o diálogo com os produtos da
indústria como estratégia de sobrevivência de um novo cinema
político, que se queria mais estável na comunicação com o
público, foi de Fassbinder a experiência mais emblemática , de
maior risco e de maior interesse. (2003,pg.87)

Podemos encontrar no filme de Venturi, por exemplo, alguns pontos de


convergência com a obra do diretor alemão Rainer Fassbinder, tanto pela
aproximação com o melodrama quanto com a linguagem teatral. Latitude Zero é
baseado na peça teatral Coisas Ruins da Nossa Cabeça, de Fernando Bonassi, que
também é autor do livro que originou o filme Um Céu de Estrelas (1996) de Tata
Amaral. A relação com o teatro é percebida na atuação (Débora Duboc e Cláudio
Jaborandy são atores de Teatro) e também em alguns enquadramentos.
Encontramos no filme algumas cenas em que a protagonista aparece olhando em
direção à câmera, em um plano geral (algumas dessas cenas serão analisadas
posteriormente). Os planos gerais e o enquadramento fornecem ao espectador um
modo de ver que se assemelha a maneira que a plateia vê um palco italiano durante
um espetáculo. Recursos esses também muito utilizados por Rainer Fassbinder,
diretor pertencente ao movimento do cinema novo alemão. Um exemplo pode ser
visto no filme O medo consome alma (1974), nas cenas que mostram quarto de
Barbara. Nos dois filmes ( de Fassbinder e Venturi os personagens olham em
direção ao “espectador” sugerindo uma sutil quebra da quarta parede.
38

Também não é difícil aproximar Latitude Zero ao que Peter Brooks chama de
melodrama de fuga frustrada, no livro A Imaginação Melodramática 11

(BROOKS,1995, pg,30). Segundo o autor, seria uma variação do melodrama em que


o protagonista se encontra preso e a narrativa se desenvolve através de tentativas
de libertação. Nagib comenta que o objetivo de Lena é se livrar da opressão
masculina (2006 pg. 34).
Apesar dessa semelhança, algumas convenções descritas por Brooks a
respeito das estruturas melodramáticas não são respeitadas, pelo menos não da
maneira mais óbvia. Segundo o autor no melodrama a ordem se re-estabelece a
partir da união do casal (BROOKS, 1995, pg.32). Em Latitude Zero, no entanto, Lena
se liberta a partir da morte do seu parceiro, fato esse que ressalta o potencial
revolucionário da mulher retratada no filme. Acreditamos que estas características
na narrativa fílmica - que dialogam tanto com certos códigos pré-estabelecidos
quanto com possíveis subversões - são fundamentais para a concepção estética
adotada por Tragtenberg na trilha musical,conforme veremos no próximo tópico.

5.4.2. A Música:

Logo no começo do filme, a trilha musical aponta o que estamos considerando


como sua “principal” característica: a exploração de códigos reconhecíveis que a
todo momento se transformam, como se tentassem escapar de uma leitura unívoca.
Vemos imagens do garimpo abandonado, máquinas e outras estruturas em ruína.
Enquanto Lena procura Vilela, escutamos arpeggios em instrumentos de corda
friccionada do acorde F4+ (fig.1). Esse elemento, junto da interpretação levemente
desafinada, nos faz lembrar a sonoridade da rabeca, instrumento de corda muito
utilizado em festas populares da região nordeste - como o Cavalo Marinho - que é
também conhecido como um violino rústico. Podemos ter ideia de sua sonoridade
mais codificada, por exemplo ao ouvirmos a obra do Mestre Salustiano, na qual o
músico executa no instrumento ritmos com andamento rápido como coco e baião.

11

Livro em que a autor discorre sobre as bases do melodrama.


39

Na música de Tragtenberg, no entanto, percebemos um tempo musical bem menos


acelerado.
Figura 1

Poucos segundos depois, quando Lena encontra Vilela no garimpo e tenta


convencê-lo de maneira nada sutil a ir embora, ouvimos nas cordas uma
interessante harmonia. Conforme o filme avança para sua abertura (créditos iniciais),
os acordes, o ritmo e a sonoridade de uma guitarra nos transportam para outro estilo
musical, o blues. Porém, a música apresenta elementos específicos que ao mesmo
tempo a distanciam do gênero. Ou seja, a trilha musical tangencia tanto elementos
do blues quanto da música nordestina, mas ao mesmo tempo, disfarça essa
aproximação.
A “particularidade” da composição de Tragtenberg nos créditos iniciais, se deve
muito aos elementos harmônicos, que exploram os seguintes acordes:
D,G,D,G,F,Fm,Em,D,C,Bb,C,G.
Alguns desses acordes até são encontrados em uma a progressão harmônica
de um blues tradicional de doze compassos. Mas a forma que o compositor os
articula deixa clara a ideia de inserir elementos “intrusos”. Considerando a
tonalidade de ré (D), a sequência harmônica de um blues tradicional seria:
D,G,D,A,G,D,A. Na composição de Tragtenberg, encontramos D e G e alguns
acordes da que servem como passagem (dentro da linguagem tradicional) como, F e
Bb. No entanto, o que chama atenção e de certa forma interrompe o código, é a
sequência F, Fm e Em. A proximidade entre as notas destes acordes e os
pequenos movimentos necessários para a mudança entre eles, sobretudo os
acordes menores concedem ao trecho uma sonoridade específica e ao mesmo
tempo uma certa delicadeza, possibilitando uma percepção diferente do teor
agressivo da cena. Os Três últimos acordes Bb, C, G também sugerem uma
modulação para o tom de G, o que em certa medida pode ser entendido como um
afastamento do estilo de referência, pois não é um evento musical presente no blues
de doze compassos.
40

Por se tratar da abertura do filme, podemos considerar que essa composição


diz muito sobre a identidade música que percorrerá a narrativa, tanto pela linguagem
quanto pela instrumentação.
A relação entre os acordes de função de tônica de quarto grau (D,G), presente
tanto na blues de Tragtenberg como no blues tradicional de doze compassos, habita
a trilha musical do filme através de diferentes abordagens. Na cena em que Lena
senta em frente ao bar e toma chuva ouvimos algo semelhante. Composta por dois
planos, a sequência começa com um plano geral em que vemos a personagem
saindo do bar carregando uma cadeira em direção ao espaço externo enquanto
chove, no próximo plano vemos a personagem em um plano americano no centro da
tela, o que possibilita uma melhor visualização das suas expressões faciais. A
protagonista agora demonstra um pouco de serenidade, ela passou por momentos
de desespero após ter sido roubada por Vilela e dar luz sozinha. Mas seu sorriso
sutil, seu olhar e a música dizem ao espectador que aquele é um momento mais
tranquilo e que aquela solidão talvez não seja tão ruim. A chuva naquela região seca
e árida no decorrer do filme também contribui para a sensação de leveza. Ouvimos
na música os acordes de G e C, ou seja, a relação continua sendo de tônica e de
quarta, mas na tonalidade de G (Sol). Não há, entre os acordes, uma relação de
desarmonia, e a nota de Bb (si bemol) que aparece no fraseado, embora não
pertença à tonalidade na qual a música se apresenta, pode ser entendida como um
elemento do blues. A nota em questão é a terça menor do acorde de G, embora a
harmonia da música esteja em tonalidade maior, faz parte da idiomática do estilo
sobrepor frases com terça menor e acordes maiores. Os instrumentos de cordas que
executam o trecho e a interpretação sugerem aquela proximidade com a rabeca, que
descrevemos antes. Esse pequeno elemento estranho não tira a ideia de
tranquilidade que os acordes maiores proporcionam, mas pode ser percebido como
algo de complexo no estado de espírito da personagem.
Uma interferência mais densa aparece perto do final do filme, quando vemos
Vilela descontrolado, comendo. O trecho também é composto por dois planos.
Começa com Vilela sentado mesa, vemos lena ao fundo, ela se aproxima, mas sai
por conta do choro da criança. Após tratar Lena com agressividade, o personagem é
visto misturando comida com cachaça. A luz (diegética) falha e, além da música,
ouvimos o som do gerador e o choro da criança. No decorrer da cena a energia
elétrica acaba o que parece aumentar a tensão na narrativa. A música começa
41

ainda no primeiro plano, enquanto o personagem come de maneira bruta, com as


mãos. Ouvimos os acordes de G5+ e C5+ e a relação entre eles continua sendo de
tônica e quarta, mas, nesse caso, ambos são tocados com a quinta aumentada. A
luz apaga, vemos só alguns pontos luminosos, a câmera se move, no corte seguinte
vemos o personagem na penumbra em primeiro plano tentando fumar querosene.
Nessa imagem a música para, a sequência segue com o personagem caindo no
chão, vomitando, acompanhado sonoramente pelo choro do bebê que ganha uma
reverberação. Essa mudança harmônica mais estrutural na música contribui para a
ideia de instabilidade do personagem (também presente na falha elétrica e na
câmera na mão) e ao mesmo tempo intensifica a sensação de incômodo que paira
sobre a ação.
Um ponto importante a ser destacado é a possibilidade de encontrarmos
algumas semelhanças entre o blues e música nordestina de rabeca. No blues é
comum a exploração de sons que estão “entre” as notas, através de técnicas como o
bend12 e da utilização do bottleneck13, pensando exclusivamente na guitarra. A
ausência de trastes na rabeca (e também nos instrumentos de corda utilizados na

12

Técnica em que o músico estica as cordas com a mão esquerda durante a performance para conseguir
sonoridades entre as notas pré-estabelecidas pelos trastes do instrumento.

13

Tubo utilizado no dedo da mão esquerda para que o músico possa deslizar entre as notas pré estabelecidas
pelos trastes do instrumento.
42

trilha musical do filme) possibilita glissandos14 entre as notas, que gera efeito um
semelhante.
É provável que os dois estilos tenham uma origem em comum, conforme nos
diz Mugiatti autor do já citado livro Blues-da Lama a Fama:
Alfons M. Dauer, presidente do Departamento Afro-Americano do
Instituto para Pesquisas do Jazz (sim, existe! em Graz, na
Áustria), defende a tese de que o blues norte-americano não se
desenvolveu no Sul dos Estados Unidos, mas surgiu numa data
muito anterior nas savanas da África Ocidental. Ele destaca
elementos textuais e melódicos na música sudanesa muito
similares ao blues norte-americano e únicos na África. Dauer
menciona ainda - segundo o brasilianista da MPB, Claus
Schreiner - "em conexão com a música brasileira, um tipo de
violino que se desenvolveu a partir do rebab árabe e que se
assemelha muito a um violino rústico usado na música do
Nordeste brasileiro chamado rabeca ou rebeca."
(MUGIATTI,1999, pg.11)

O glissando, também pode ser compreendido como elemento fronteiriço entre


música e ruído. Segundo Douglas Khan:
O glissando não era incomum antes do século XX, mas dentro do
modernismo tomou uma ênfase inteiramente nova, tornando-se ao
mesmo tempo o local e o produto de intensa negociação entre
ruído e música. (KHAN, 1999,pg. 83)

Um exemplo dessa sonoridade pode ser conferido na peça Metastasis (1954)


de Iannis Xenakis, em que aproximadamente sessenta instrumentos executam
diferentes glissandos partindo de uma mesma nota.
A música de Latitude Zero foi composta para dois violinos, duas violas, dois
cellos e clarone (além da guitarra que ouvimos na abertura). Tragtenberg utiliza
instrumentos de cordas friccionadas em uma abordagem um tanto quanto rústica,
explorando glissandos e o trinados. O clarone segundo o compositor, é um
instrumento ainda pouco assimilado pelo espectador médio, favorecendo a sua
associação a ideias abstratas.

14

Glissando é uma articulação musical que consiste na passagem de uma nota para outra evidenciando os sons
que estão entre elas.
43

Outra semelhança entre os estilos empregados por Tragtenberg está no uso do


modo grego mixolídio (fig. 2), que apresenta o acorde com terça maior e a sétima
menor. Na música nordestina essa sonoridade aparece geralmente de maneira
melódica, e, no blues de maneira harmônica, na formação dos acordes. O intervalo
resultante dessas notas é o trítono 15, e a partir dele podemos perceber os estilos
(blues e música nordestina) se misturando em alguns trechos da trilha do filme.

Figura 2

A atração sexual das personagens é um elemento importante no filme, Lúcia


Nagib percebe no filme essa aproximação motivada por uma necessidade física
(pg). Na cena de sexo entre os personagens fica evidente, pois existe pouco afeto
entre o casal. A aproximação sexual mais efetiva acontece de forma brusca
enquanto Lena e Vilela assistem na televisão um programa policial violento. Na
música, o trítono se faz presente por conta dos acordes diminutos que predominam,
sonoridade que sugere instabilidade. Na música tonal ocidental, esse intervalo
geralmente aparece nos acordes de quinto grau, chamados de dominantes, que
funcionam como uma espécie de preparação, de ponto ápice, para serem resolvidos
em acordes de função tônica, o primeiro grau. Esta resolução costuma ser
associada à ideia alívio, de repouso. O repouso na “tônica” não existe nos elementos
harmônicos da música pois a sonoridade diminuta é constante. A sensação de
repouso, então vem pelo fim do ato sexual, pelo fim da música e também pelo
término do programa policial. Desta forma podemos levar em consideração que a

15

O trítono (intervalo de quarta aumentada), proibido na música sacra e considerado o diabolus in musica no
século XV, e, posteriormente no século XX, aparece como sonoridade característica do sistema dodecafônico
proposto pelo compositor Arnold Schoenberg. Fica evidente o caráter mutável quando é considerado o uso
desse intervalo dentro do sistema tonal, sistema que se baseia em criar tensões para depois resolvê-las. O
acorde dominante, que é onde a tensão é mais presente, geralmente possui um trítono em sua estrutura, e
essa tensão é gerada para depois ser resolvida em um acorde de função tônica.
44

tensão presente na abordagem musical além de levar em conta a aproximação por


necessidade física, também pode agregar a ideia da união problemática que de fato
ocorre entre os personagens.
Musicalmente ouvimos algo parecido quando Lena se desespera após Vilela
abandoná-la. A sequência começa com o vestido de noiva balançando ao vento,
servindo como cortina, filmando de cima para baixo. Ouvimos ao fundo a canção Os
olhos dela no rádio16. No plano seguinte vemos Lena andando pelo bar, no chão há
pratos quebrados, ela carrega o rádio que toca a canção. O movimento de câmera
da esquerda para a direita cessa quando a personagem está no centro da tela Ela
olha para câmera. Em seguida vemos a personagem se descontrola
emocionalmente enquanto a câmera se desloca para a direita, em direção a sombra
da personagem. A canção cede lugar à música de fundo executada pelo conjunto de
cordas e clarone, música essa em que predomina a escala de tons inteiros. Esta
escala também é capaz de gerar acordes de quinto grau (dominante), ou seja,
também possui o trítonos e, por consequência, também é muito associada à ideia de
instabilidade. Porém, a diferença é que essa escala é formada por sete notas
consecutivas com intervalos de um tom, o que a torna sonoramente peculiar.
Na música de concerto, por exemplo, a escala de tons inteiros foi muito
explorada por compositores do período moderno como podemos ouvir em Voiles
(1909) de Claude Debussy e Jeux d’eau (1902) de Maurice Ravel. Embora o trítono
seja elemento presente nos estilos de referência (de Livio), o blues e a música
nordestina não parecem muito presentes nestas duas cenas. Esse afastamento
mostra como o compositor, apesar de ser basear em estilos reconhecíveis, se
permite uma liberdade criativa em função da narrativa.
Talvez menos impactante que as sonoridades orquestrais, - mas não menos
importante narrativamente - , são os trechos em que é ouvida a viola caipira, nos
momentos em que os personagens se aproximam, como, quando Vilela descreve o
seu crime para Lena, e também quando Lena conta como conheceu Matos. O som
das cordas soltas da viola, juntamente com a atitude dos personagens (que

16

Canção sertaneja da Renê Tiva, interpretada pelo dupla Renê e Ronaldo.


45

abandonam momentaneamente suas posições defensivas), trazem para a narrativa


um momento de conforto, de aproximação.

5.4.3. Música, Imagem e possíveis articulações sígnicas.

A utilização de estilos musicais codificados e de ampla referência em uma trilha


musical possibilita uma série de associações. No livro Música de Cena Tragtenberg
nos explica como pensa a relação entre estilos pré-existentes e uma referência
narrativa.
Segundo o compositor:
O gênero musical como expressão cultural reúne aspectos do
imaginário social, emocional e político de uma sociedade . Reflete
desde valores mais ou menos abstratos desse imaginário até
aspectos bem determinados de seu universo simbólico e utilitário,
inclua-se aí desde seus elementos mais básicos formais (melodia,
harmonia e ritmo), até a instrumentação e a forma de tocar-
relacionam-se a classes sociais , grupos raciais e práticas sociais.
(TRAGTENBERG, 2008, pg 34)

Esse trecho nos dá pistas das possíveis associações que podem ser feitas a
um gênero musical. Também percebemos que, segundo o compositor, essas
associações podem ser acessadas através de uma série de aspectos como por
exemplo, o efeito dramático que possíveis interferências que estilizam e/ou
embaralham um gênero musical podem suscitar:
Ao transitar entre o estilo de referência e sua recriação, a música de
cena busca em seu próprio texto os meios expressivos que
contemplem os diferentes registros presentes na textura da
cena(...)Talvez seja esse um dos procedimentos musicais na música
de cena. A partir dele é possível ter variações sutis de sugestões,
associações e críticas narrativas. (TRAGTENBERG, 2008, pg.33)

A recriação, como Tragtenberg denomina, parece ser uma importante


ferramenta para acrescentar a uma cena informações que talvez o gênero musical
em si não comporte. No livro citado o compositor traz como exemplo a montagem
de Hamlet que contou com suas composições. Tragtenberg usou uma marcha militar
para retratar o aspecto guerreiro e localização social do personagem. Conforme a
música se desenvolve, são ouvidos deslocamento dos acentos rítmicos. E também,
como coloca o compositor, o arranjo da música se torna mais “opaco” (as
sonoridades dos instrumentos se tornam menos discerníveis). Essas interferências
no código reconhecível, a marcha militar, dialogam com o caráter dramático da cena.
46

Não é difícil enxergar nesse procedimento, relação com o que Jacques Attali chama
de código e subversão, nas palavras dele:
A subversão na produção musical opõe uma nova sintaxe à sintaxe
existente,(...) Transições desse tipo têm ocorrido na música desde a
antiguidade e levaram à criação de novos códigos dentro de redes
em mudança. Assim, a transição das escalas grega e medieval para
as escalas temperada e moderna pode ser interpretada como uma
agressão contra o código dominante pelo ruído destinado a se tornar
um novo código dominante. Na verdade, esse processo de agressão
só pode ter sucesso se o código existente já se tornou fraco através
do uso.(ATTALI, 1985, pg. 34).

Embora Attali esteja se propondo a discutir mudanças na linguagem musical


em uma perspectiva histórica, podemos encontrar similaridades com o pensamento
de Tragtenberg bem como na abordagem por ele empregada em Latitude Zero.
Percebermos o compositor transformando um material reconhecível em função de
elementos da narrativa. Não é difícil pensar sob a perspectiva de que se trata de
uma linguagem musical codificada com “interferências” de elementos de certa forma
“ruidosos” em relação à linguagem. Nos distanciamos da perspectiva histórica
proposta por Attali se pensarmos especificamente o potencial expressivo da relação
entre a subversão de um código vigente. Talvez em nossas análises o termo “fraco”
que Attali associa aos elementos reconhecíveis não seja, de fato, o mais adequado,
pois qualquer material sonoro gera significado, ou, nas palavras de Michel Chion,
acrescenta valor (2011,pg.12).
Ao entendermos que os estilos musicais de “referência” representam
elementos culturais, nos aproximamos da caraterística que Claudia Gorbman
denomina de pista narrativa (narrative cueing), ao se referir a uma das funções que
a música exerce no cinema narrativo clássico (Gorbman, 1987, pg. 73). Função essa
que, em muitos casos fornecem ou reforçam informações étnicas e/ou geográficas.
No entanto, o filme que estamos analisando se passa na região central do Brasil, ou
seja, não encontramos relação óbvia entre os estilos de referência e o local.
Diferente dos filmes de narrativa clássica estudados por Gorbman, em Latitude Zero,
devido às características alegóricas e a elementos que dialogam com referências
fora texto fílmico, um outro mecanismo de interpretações dos elementos que
compõe a narrativa está em jogo. Característica que a nosso ver, se estende a
música. Neste sentido, as ideias de Anahid Kassabian nos parecem mais pertinentes
para respaldar as múltiplas interpretações que a música pode empreender para
47

pensar como a música inserida em um filme está sujeita a múltiplas interpretações a


partir das particularidades da audiência (Kassabian, 2001, pg. 57). A autora também
defende a ideia de que música no cinema tem a capacidade de evocar outras
narrativas além da estória contada no filme, chamando esse fenômeno de alusão
(allusion),. (IDEM, pg.50).
A autora primeiramente nos esclarece o que compreende por citação (citation)
que, segundo ela, tem a ver com o uso de canções ou peças musicais pré-
existentes. A letra das canções podem agregar à narrativa fílmica ideias e
informações de várias ordens. A alusão (allusion) segundo ela, seria a utilização de
músicas pré-existentes presente em outras narrativas (como no balé e na ópera, por
exemplo), emprestando para o filme algumas ideias e referências presentes nessa
outra narrativa.
Em Latitude Zero, a maneira que a música age é bem particular. A diferença
fundamental é que Kassabian usa esses conceitos pensando especificamente no
uso de músicas pré-existentes e/ou atributo sígnicos ligados a uma composição
específica. O nosso foco é a música original de Tragtenberg, Neste sentido podemos
pensar que relações semelhantes podem ser feitas a partir dos “elementos
estilísticos” presentes na sua composição e não à clara citação de uma música já
conhecida.
Ou seja, a ligação entre a trilha original de Latitude Zero e elementos fora do
texto fílmico se dá muito por conta desses elementos estilísticos. Entendemos que
esta característica, de certa forma, ocorre de forma mais ampla no filme de Venturi,
tanto na referência ao cinema no cinema novo que Nagib aponta, quanto em relação
aos fatos históricos e geográficos da região onde o filme se passa.
Através dessas observações podemos pensar mais claramente sobre a
seguinte questão: que associações podem ser feitas entre os elementos de
referência utilizados pelo compositor e os demais elementos fílmicos?
No livro A migração no Centro-Oeste Brasileiro no período 1970-96: o
esgotamento de um processo de ocupação de José Marcos Pinto da Cunha,
encontramos informações sobre imigrantes nordestinos que trabalharam atividade
garimpeira (Cunha, 2002, pg.96). Após o esgotamento das minas, houve uma
significativa desocupação do local. A partir daí questões como o deslocamento e o
não-pertencimento se mostram importantes fatores para construção da narrativa.
Nagib fala sobre como esse esvaziamento e está presente no filme:
48

Na paisagem natural monumental, as paredes escavadas da terra


vermelha sugerem as centenas de mãos ávidas que trabalhavam lá
no passado. Agora, eles são os restos do Eldorado já sonhado pelos
primeiros descobridores, as ruínas da Utopia, o paraíso perdido. O
mar que se transformou no sertão. (NAGIB, 2006, pg 84).

Além de chamar a atenção para o trabalho no garimpo, no trecho também


encontramos outras informações que ajudam a guiar nossa busca pelos possíveis
significados dos elementos referentes à música nordestina. Eldorado, utopia, o mar
que virou sertão são termos que remetem à Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra
em Transe de Glauber Rocha. Nagib relaciona Latitude Zero com Deus e o Diabo na
Terra do Sol porque, segundo ela, em Latitude Zero o mar se transformou em
sertão, se referindo ao esgotamento da riqueza do garimpo(“O sertão vai virar mar, o
mar vai virar sertão” são versos da música de Sérgio Ricardo presente no filme de
Glauber Rocha). Também encontramos associação com o ideia de marco zero,
assim como nos filmes de Glauber. Em Latitude Zero a autora vislumbra a ideia
utópica de uma “nova proposta” para produção cinematográfica brasileira, proposta
essa que envolve tanto a viabilidade de produção cinematográfica, como assuntos
relevantes que vão desde os resquícios da ditadura militar a representação da
mulher no cinema. Nagib também aponta a proximidade com o filme Vidas Secas
de Nelson Pereira dos Santos (Nagib 2006, pg.88), devido aos diálogos ríspidos
entre os casais nos dois filmes.
Como já foi dito, para Kassabian, a alusão é um tipo de citação em que a
música empresta ideias de outras narrativas nas quais ela está originalmente
inserida. Também já foi dito que, como estamos estudando a música original do
filme, a ideia de Kassabian não se aplicaria. Porém, quando percebemos a presença
dos elementos da música nordestina, e também através das observações feitas por
Nagib sobre a relação de Latitude Zero com o os filmes do Cinema Novo, podemos
encontrar nesses elementos uma espécie de alusão a outras narrativas. Pensamos
a alusão atrelada às relações que Nagib aponta entre o filme que estamos
analisando e Deus e o Diabo na Terra do Sol e Vidas Secas, que dialogam cada um
à sua maneira com o sertão nordestino. Pode-se estender também essa revisitação
da alusão aos fatos históricos, levando em conta a migração de nordestinos para
trabalhar no garimpo da região central do país.
Em suma, pode-se considerar que os elementos referentes à música
nordestina incorporados por Tragtenberg evoca tanto questões da história do local
49

onde se passa o filme, bem como dialoga com a história do cinema brasileiro e suas
propostas utópicas.
Como exemplo das múltiplas interpretações possíveis da música,
analisaremos uma sequência em que Vilela está no garimpo procurando ouro.
Vemos imagens entrecortadas. Na primeira delas, o personagem escava
paredes rochosas com uma picareta. No plano seguinte ele é visto com uma pá
pegando cascalhos, a câmera o acompanha subindo o barranco. Do alto desse
barranco ele utiliza uma espécie de manivela de poço para suspender os cascalhos,
depois o vemos andando, carregando esse material em baldes sobre o ombro.
Essas imagens evidenciam a grandiosidade, as texturas e as cores do terreno. O
personagem é visto em planos gerais, não vemos claramente suas expressões
faciais, o que que contribui para afastar alguma possível empatia entre ele e o
espectador. Nesses planos gerais as características físicas e até táteis do terreno
ficam evidentes. Podemos considerar de certa maneira que o personagem se torna
parte dessa paisagem.
Na música - composta para violinos, violas, cellos e clarone, ouvimos a
sequência harmônica Dm7, Dm6, Bb/D, Dm. O clarone, de forma imponente, toca as
notas graves assim como a paisagem (também imponente) apresenta
irregularidades através de passagens cromáticas. Os instrumentos de corda
friccionada passam uma ideia de rusticidade através de glissandos e trinados. Como
já foi dito, lembram a rabeca, mas podemos vincular a essa sonoridade narrativas
que envolvem ambientes desérticos, uma vez que em westerns e road movies é
comum timbres musicais dessa natureza (cordas ásperas e arranhadas) estarem
associados a imagens amplas de lugares desérticos e vazios. No filme Tracks
(2013), de John Curran, que conta a história real da travessia pelo deserto
australiano feita por Robyn Davidson encontramos uma abordagem musical similar.
Próximo ao gênero Western, outro filme podemos encontrar tal semelhança musical
é Sangue Negro (2008), de Paul Thomas Anderson. Nos chama atenção o fato de
que, como Tragtenberg , o compositor do filme, Jonny Greenwood, também exerce
diálogo com sonoridades musicais de vanguarda.
As texturas sonoras variadas que a música de Livio apresenta, através das
diferentes articulações, quando associadas às imagens dos paredões rochosos
possibilitam de um certa maneira que essas rochas sejam “ouvidas”, evidenciando
sonoramente as superfícies irregulares e acidentadas.
50

Outro elemento musical que chama a atenção é o arpeggio de Sol mixolídio (fig
3). O elemento mais melódico dessa composição que claramente é uma referência
a música nordestina de rabeca e pode ser entendido como alusão cinema novo e
também sobre o fluxo migratório que já citamos.

Figura 3

Curiosamente esse arpeggio é ouvido no momento em que é visto um tipo de


manivela de poço rusticamente construída. A sincronia entre música e imagem
proporciona certa correspondência. Os materiais que compõe o artefato (madeira e
corda), bem como seu aspecto rústico colaboram para essa conexão.
Pode-se dizer que essa aridez está na música, na paisagem e no estado de
espírito das personagens. Essas “ranhuras” podem ser atreladas ao comportamento
deles. Entendemos que muito da agressividade de Lena é resultado dos abusos
sofridos e encontramos nessa música acidentada essas marcas. No entanto, a
característica rústica da música revela seu lado forte, de uma mulher sobrevivente.
Vilela se mostra um bruto, tanto por suas maneiras, quanto por atitude rude e
abusiva em relação a Lena.
O som grave e imponente do clarone, além de criar correspondência com os
paredões rochosos pode ser vinculado ao caráter opressor do personagem
masculino. Após Lena atirar em Vilela para defender seu filho, vemos seu rosto em
um plano fechado. Após o corte vemos o corpo sem vida de Vilela na frente, e Lena
um pouco mais ao fundo observando. Ouvimos trechos e frases da mesma música
que soou na cena no garimpo, porém o som grave do clarone não está mais lá, só
ouvimos os sons médios e agudos das cordas. Podemos relacionar a ausência de
Viella à ausência desse elemento musical. Também percebemos que agora a
sonoridade é mais leve por conta dessa mudança, leveza que emana não só pela
música mas também pelo fim dos atos violentos do personagem masculino. Ou seja,
essa ausência do clarone parece evidenciar a sensação de alívio experimentada por
Lena.
51

A paisagem árida à beira da estrada e os elementos pertencentes ao blues


estabelecem alguma semelhança com o filme Paris Texas (1984), de Wim Wenders.
Ray Cooder, compositor da música de Paris Texas, é um renomado guitarrista de
blues, e também dialoga com outros gêneros considerados étnicos conforme
mostram o documentário de Wenders Buena Vista Social Club17 e o disco Talking
About Timbuktu18. Embora Cooder tenha suas origens no gênero, em Paris Texas
ele criou uma música que através de elementos externos ao blues estabelece
conexões com a narrativa, assim como a música de Tragtenberg no filme que
estamos estudando.
Os significados atrelados ao blues também podem ser levados em conta. O
próprio termo que dá nome ao estilo musical é uma gíria que significa um estado de
espírito melancólico. Criado por escravos nos estados unidos a partir de elementos
da música do continente africano e europeu, tanto a melancolia como a ideia de não-
pertencimento estão, de uma certa, maneira atreladas ao estilo.
Embora o foco desta pesquisa seja a música autoral de Tragtenberg, é
importante que se lance a atenção sobre o papel das canções pré-existentes na
narrativa. Devido à brutalidade e dificuldade de se expressar dos personagens, as
canções, e especialmente suas letras, colocam “palavras” nas situações (como
Jogo da Paixão, de J. Wilson e Adalberto, e A Princesa e o Plebeu, de Benedito
Silvério).
Estas canções também dizem “algo” sobre o local onde a história se desenrola,
pois a música sertaneja é muito presentes na região do Mato Grosso. Segue um
trecho da música A princesa e o Plebeu que ouvimos no filme.

17

Sobre o grupo de música cubana de mesmo nome

18

Parceria entre Cooder com o guitarrista Malinês Ali Farka Touré


52

Para contar a minha história, no assunto eu vou direto,do meu


castelo de sonho eu mesmo fui arquiteto, nesse castelo de amor
eu caprichei no projeto porque a dama da história, o meu anjo
predileto me trata com simpatia, com carinho e muito afeto. Essa
história de amor que o destino escreveu, mostra a grande
diferença entre ela e eu.
Ouvindo o fonograma original, percebemos que ela foi editada para uma
melhor adequação a narrativa. Entre os dois versos do exemplo existe um trecho
que diz:
Ela é moça estudada, se formou para advogada e eu me formei
para nada, sou semi-analfabeto.

Enquanto ouvimos essa música, vemos Lena e Vilela arrumando o bar. Ela
mexe em seu antigo vestido de noiva enquanto Vilela trabalha e a observa. Vemos
um plano geral em que Vilela pinta a Janela no canto esquerdo da tela, enquanto
Lena mexe no vestido no canto direito. No próximo plano é enquadrado apenas o
personagem masculino. Depois, vemos Lena e, no corte seguinte, vemos Vilela,
que olha para Lena experimentando o véu de noiva. Em seguida vemos Lena
colocando o vestido sobre o corpo. A música continua. Lena começa uma conversa
dizendo que lavou o vestido antes de guardar. A partir daí a letra da canção cede
espaço ao diálogo, que se encerra com Lena rasgando o vestido e com a música de
Tragtenberg. São ouvidas notas em staccato, que de certa maneira opõe a ideia da
canção por sugerir uma quebra brusca, enquanto a canção apontava uma
aproximação entre os personagens.

A partir do que foi descrito neste capítulo, é possível notar que as relações
entre estilo de referência e recriação, código e subversão, sinal e ruído podem
estabelecer um rico jogo de significado para o filme. Curiosamente foram escolhidas
por Tragtenberg sonoridades que já são lidas como culturalmente fronteiriças: o
blues carrega em si elementos africanos e europeus, da mesma maneira que a
rabeca pode ser encarada como um elo musical entre o sertão nordestino e o oriente
médio. As arestas e rusticidades em relação à música ocidental de afinação
temperada fazem com que esses estilos de referência sejam percebidos,
principalmente no contexto desse filme, como ruidosos.
Vemos e ouvimos códigos se atrelando a subversões, se re-significando junto a
narrativa. A partir daí as informações parecem se potencializar. O ruído, como
interferência de linguagem, deixa de ter conotação negativa e ganha significado
53

potente. Como na própria narrativa do filme, uma nova proposta se estabelece a


partir de pontos de ruptura e diálogos com as tradições.

5.5. Capítulo 2 (apontamentos iniciais)

Neste capítulo teremos como foco principal a relação entre a música e os


demais elementos visuais e sonoros em Contra Todos, filme em que, diferente de
Latitude Zero, na música não são ouvidos instrumentos musicais tradicionais e nem
estilos reconhecíveis, mas sonoridades e texturas eletrônicas abstratas. Acreditamos
que esta abordagem traz para o filme uma atmosfera mais sensorial. A música em
certa medida parece estar “incompleta” explorando elementos timbrísticos, rítmicos
de maneira isolada. Tal efeito combina com algumas estratégias adotadas pelo
diretor: o filme foi gravado sem roteiro prévio, nem atores nem diretor sabiam como
ele terminaria. O final foi definido durante a montagem, ou seja, a música de
Tragtenberg é mais uma peça nesse quebra-cabeça.

5.5.1. O Filme

O filme se desenrola a partir do cotidiano de uma família de classe média baixa


que vive na periferia de São Paulo. Na primeira cena essa família é apresentada
almoçando festivamente. Aos poucos descobrimos a violência como elemento
presente na narrativa (sugerida pelo mar de sangue que é mostrado em seguida).
Tal fator é evidenciado quando Theodoro, o chefe da família, perde o controle com o
comportamento de sua filha Soninha. Também é a primeira cena do filme que
ouvimos a música de Tragtenberg, uma nota grave e longa.
Conforme o filme avança, descobrimos que Theodoro é um matador de
aluguel, assim como seu amigo Valdomiro. Os personagens vivem em uma situação
limite. Pode se perceber pelas locações externas e também pelas imagens vistas
supostamente por Soninha no trajeto de ônibus, que se trata de uma região
abandonada pelo estado. De acordo com o diretor Roberto Moreira os personagens
vivem segundo a lei do mais forte.
Os eventos se desenrolam a partir do assassinato de Júlio, amante de Cláudia,
a esposa de Theodoro. Em uma narrativa fragmentada, presenciamos os universos
54

dos personagens: Claudia, Soninha e Teodoro tem vários segredos que não revelam
ao grupo apresentado no início e Valdomiro transita de forma variada entre esses
universos.
O filme flerta com uma estética documental. Roberto Moreira se inspirou nos
trabalhos de alguns diretores renomados que utilizam linguagem semelhante. De
acordo com suas palavras, foram filmadas cenas em um único plano, por influência
de John Cassavetes, e os improvisos entre os atores foram inspirados em filmes de
Jorge Bodansky e Mike Leigh. Moreira também assume influência de Júlio Bressane,
citando os filmes, Matou a Família e Foi ao Cinema e Um Anjo Nasceu, por conta da
violência em primeiro plano. Essas informações estão distribuídas ao longo do artigo
escrito pelo diretor intitulado: Como fiz Contra Todos.
Podemos pensar que o fator violência, - atrelado à estética documental
concedem ao filme uma certa amoralidade. A música abstrata que por vez também
não diz exatamente o que o espectador deve sentir também contribui para isso.

5.5.2. Música

Abordagem musical escolhida por Tragtenberg segue por uma lógica diferente
da usada em Latitude Zero. Na entrevista para o programa Sala de Cinema o
compositor relata que usou as sonoridades mais abstratas possíveis, fugindo
propositalmente das referências que instrumentos musicais convencionais podem
trazer. Para tanto, são utilizadas técnicas da música eletrônica como o
sampleamento e a síntese sonora. Tragtenberg também comenta sobre a utilização
de frequências subgraves para explorar sensações físicas que o som pode causar,
mas ainda mantém as notas musicais fazendo parte do jogo composicional.
Podemos relacionar estas estratégias, com algumas ideias discutidas por
Tragtenberg em seu Livro Música de Cena, como o conceito de paisagem sonora:
A ideia de paisagem sonora comporta um desenrolar de eventos
sonoros mais ou menos homogêneos e com uma constância mais ou
menos estável. Ela cria uma ambientação sonora, sem relação
interna de causalidade assim como quando se observa uma
paisagem através da janela do trem (TRAGTENBERG, 2018,pg.55)

É pertinente pensar em como a ideia de desenvolvimento temático mais


tradicional, que geralmente consiste em explorar variações de um desenho
55

melódico, muito utilizados por compositores de cinema adeptos do uso Leitmotiv,


aqui é substituída por um conceito em que os timbres têm grande importância.
Neste mesmo livro há ainda um outro conceito que também apresenta semelhança
com a abordagem empregada no filme:
O encenador Peter Brook destaca a ideia de incompletude como
fator importante na constituição do elemento presente no jogo cênico.
Ou seja, os elementos presentes na cena-texto, cenografia, figurino,
sons, gestos e imagens se complementam em interações
momentâneas e transitórias. Para a música de cena a idéia de
incompletude também é essencial, pois caso a informação sonora
apresente ao mesmo tempo uma malha complexa de significados,
movimentos e níveis de intensidade dramática relacionados a cena,
estará polarizando de mais a atenção em torno de si e despregando-
se dos demais elementos cênicos (TRAGTENBERG, 2018 pg. 52).

Parece pertinente associar a ideia de incompletude à música de Contra


Todos, pois em alguns momentos são ouvidas texturas sonoras, em outros
sequências percussivas, como se fossem partes isoladas, afastando-se do que é
considerado como “música” pelo senso comum.
Neste sentido, podemos pensar que talvez as lacunas de significado
presentes tanto na música quanto na narrativa além de colaborar para manter os
segredos importantes para o desenvolvimento do filme também contribui para uma
maior atenção do espectador. No artigo Unsetting Melodies: Cognitive Approach to
Incongruent Film Music, de Steven Willemsen e Miklós Kiss encontramos uma
interessante discussão sobre o efeito da falta de correspondência entre música e
imagem, essa ideia será melhor discutida e adequado ao trabalho, mas parece um
caminho interessante enquanto apontamento. Mas a ideia presente que nos chama
a atenção é que a audiência passa a buscar significado por não encontrar uma
correspondência clara entre elementos sonoros e visuais.

5.5.3. Música e Filme

Segundo Roberto Moreira no já citado artigo de sua autoria (2015,pg.28),a


ideia inicial do filme Contra Todos foi explorar a fronteira entre o melodrama e a
tragédia. Como no melodrama, os personagens são vítimas das estratégias de um
vilão, no entanto também carregam suas falhas trágicas. Soninha, Cláudia e
Teodoro são vítimas das armações de Valdomiro, mas também agem conforme suas
56

falhas trágicas, atitude que contribui para a destruição das relações. A música
associa-se às falhas trágica dos personagens.
Na cena em que Teodoro vai atrás do traficante Marcão, por exemplo,
podemos perceber essa relação. Até então vimos Teodoro e Valdomiro trabalhando
juntos, falando sobre planos e parceria. Nessa cena porém ele está trabalhando
sozinho, escutamos uma sonoridade grave eletrônica em que a mudança entre as
notas se dá através de glissandos. Na cena em que Claudia visita seu amante
Lindoval no hospital, enquanto foge de Teodoro, vemos um plano fechado nos olhos
dela. A música nessa cena apresenta sonoridade similar. No entanto, pensamos que
a ideia musical discutida estabelece significado por conta da associação com as
imagens e a narrativa. pois se mostra difícil associar ideias pré-estabelecidas a
essas sonoridades (a análise da cena será desenvolvida em etapas futuras do
trabalho).
Podemos relacionar esse sentido mais aberto a idéia de ruído de Jacques
Attali :
Mas o ruído realmente cria um significado: primeiro, porque a
interrupção de uma mensagem significa a interdição do significado
transmitido, significa censura e raridade; e em segundo lugar, porque
a própria ausência de significado no ruído puro ou na repetição sem
sentido de uma mensagem, ao desencadear as sensações auditivas,
liberta a imaginação do ouvinte. A ausência de significado é, neste
caso, a presença de todos os significados, ambiguidade absoluta,
uma construção fora do significado. A presença de ruído faz sentido.
Possibilita a criação de uma nova ordem em outro nível de
organização, de um novo código em outra rede. (ATTALI,pg. 33)

Podemos em um primeiro momento considerar que a música de Tragtenberg


propõe uma postura mais ativa do espectador em relação às situações vistas na
tela. A identificação, o engajamento mais vinculado ao cinema clássico, aqui cede
espaço à ressonância, ideia que será discutida mais a fundo no capítulo seguinte, já
que em Filmefobia esse tipo de afeto é presente de maneira mais radical.
A relação entre a linearidade narrativa e o tipo de desenvolvimento musical
também é um fator importante para a nossa análise. Anahid Kassabian em seu texto
The Sound of the new film form relaciona estruturas musicais que não seguem a
lógica do desenvolvimento temático (segundo ela, comum na música de concerto) e
se estruturam em camadas de timbres a repetições, a filmes em que a linearidade
temporal na narrativa não é rígida, filmes em que a narrativa possibilita
deslocamentos de espaço e tempo impossíveis no mundo real. Consideramos em
57

certa medida que as características musicais discutidas pela autora também estão
presentes na música de Tragtenberg em Contra Todos. Também percebemos que o
fato da linearidade temporal no filme que estamos estudando não ser absoluta,
contribui, assim como a música para que o mistério seja preservado até o final. Os
feitos de Valdomiro o vilão, só são mostrados no fim do filme - e partir daí
entendemos o seu lugar na trama.
A ideia de Incompletude (discutida anteriormente) presente na música
estabelece um diálogo com as lacunas e com as quebras da linearidade narrativa. O
tipo de abordagem que o compositor utilizou contribui para que a vilania de
Valdomiro fique oculta até o final. Só ouvimos uma música com elementos
harmônicos e rítmicos quando são vistas as cenas que revelam as ações de
Valdomiro, podemos considerar que as lacunas se completam tanto na música
quanto na narrativa.
Utilizar um estilo musical de referência e, a partir daí, recriar algo com um novo
significado não está só presente em Latitude Zero. Apesar da proposta abstrata e
timbrística da música de Tragtenberg em Contra Todos podemos atrelar a ideia de
estilo de referência e recriação às músicas que ouvimos nas cenas finais do filme.
Durante o casamento de Valdomiro com Terezinha, a comunidade evangélica entoa
um canto religioso, chamado Vaso Novo (fig.4).

Figura 4

Quando surgem os créditos, a mesma melodia é apresentada em arranjo


instrumental que se aproxima ao punk rock com elementos eletrônicos, como se a
primeira ideia fosse retomada mas com outro sentido, acrescentando, nesse caso,
um conteúdo irônico e crítico.
58

O trecho da letra que é cantado também entra no jogo de significados:


Eu quero ser senhor amado como o barro nas mãos do oleiro,
quebra minha vida e faça de novo, eu quero ser um vaso novo.

A ironia está presente tanto na música quanto na imagem pois vemos o


matador de aluguel Valdomiro, agora pertencente à comunidade evangélica, após
ter planejado contra seus antigos amigos.

5.6. Capítulo 3 (apontamentos)

5.6.1. Filmefobia

Este capítulo investigará as concepções estéticas que permeiam a criação


sonora/musical de Livio Tragtenberg para Filmefobia (2008) de Kiko Goifman.
Lançado em 2008, esse filme explora o limiar entre realidade e ficção. Neste mesmo
ano ganhou prêmio de melhor filme no festival de Brasília e suscitou certa polêmica
justamente por parecer um documentário. Outras obras do diretor também transitam
na fronteira entre o ficcional e o documental. Antes de Filmefobia, Goifman havia
realizado 33 (2002), um documentário sobre sua tentativa de encontrar sua mãe
biológica. O diretor, então com 33 anos, durante 33 dias empreendeu tal busca a
partir de “dicas” fornecidas por detetives. A narrativa, embora documental, explora
elementos estéticos típicos do cinema Noir.
Filmefobia, ao contrário, é um filme ficcional que flerta com uma linguagem
documental principalmente ao sugerir que os fatos vistos na tela são reais. A história
gira em torno de Jean Claude (Jean Claude Bernardet), um documentarista que
deseja explorar os limites psicológicos de pessoas fóbicas ao colocá-las diante de
suas fobias. Esse personagem “conduz” os experimentos como se fosse o diretor
do filme, discute a importância dos experimentos e faz relações com sua experiência
de vida.
Goifman em entrevista para o site revista tópico (disponível em
www.revistatropico.com.br/tropico/html/textos/3055,1.shl), revela algumas
estratégias utilizadas para que o filme fosse percebido como um documentário: entre
as pessoas que se candidataram para os “experimentos” do filme, alguns são
fóbicos reais outros são atores. O próprio diretor aparece como um dos fóbicos. Mas
em nenhum momento o espectador tem informação sobre essa distinção. Nesta
59

mesma entrevista, Goifman afirma que nem ele, nem Bernardet e nem o roteirista
Hilton Lacerda concordam com a frase central do filme: “Só um fóbico diante de sua
fobia é uma imagem do real”. Trata-se apenas de mais um fator que impulsiona a
construção ficcional do filme.
Lívio Tragtenberg também aparece no filme como o técnico de som do suposto
experimento em construção. O som gravado em “cena” ganha novos significado
através da manipulação que o compositor emprega. Em entrevista citada
anteriormente, Tragtenberg afirma que no Filmefobia “o que acontecia era:
improvisação, confusão entre o que você era e o que você não era, e o som como
narrativa”
Para melhor contextualizar as estratégias que aproximam Filmefobia de uma
perspectiva documental, recorremos às premissas que Roger Odin elenca no texto
Filme documentário, Leitura documentarizante (2012 )19:
- O leitor constrói um enunciador pressuposto real (através de indicações
presentes no filme);
- Aparição na tela daquele que sabe (no caso de Filmefobia, o personagem de
Bernardet desempenha esse papel);
- Comentário tipo explicativo (a equipe discute sobre as razões e a relevância
dos experimentos);
- Timbre específico do som direto, ruído (Livio Tragtenberg cria em muitas
cenas, a partir do som direto).

É curioso ainda que Jean Claude Bernardet seja o ator que desempenha o
papel “daquele que sabe”, uma vez que ele é um importante ensaísta e estudioso do
cinema brasileiro, além de diretor. São de sua autoria importantes livros como
Historiografia clássica do cinema brasileiro: metodologia e pedagogia (1995) e
Cineastas e imagens do povo (1985).
Além de usar alguns elementos documentais, o filme também explora algumas
estratégias do cinema de horror. E dentro desta perspectiva é importante ressaltar

19

ODIN Roger. “Filme documentário, uma leitura documentarizante”. Significação n.37, 2012.
60

que a atuação de Livio Tragtenberg tem semelhança com a sua performance em O


Gabinete do Dr. Estranho (obra essa que estudaremos em detalhes posteriormente).
Em ambos há a presença do compositor na obra, a utilização de sons não-musicais
e diálogo com o gênero horror.

5.6.2. Variações sobre o tema Ruído

Para que se avance a discussão, parece-nos importante refletir sobre o termo


“ruído” que, como foi discutido anteriormente, está sujeito a relações de poder e a
conceitos estéticos, ao mesmo tempo em que instiga compositores a explorar
possibilidades em direções desafiadoras. O pesquisador e compositor canadense
Murray Schafer, no seu livro A afinação do Mundo propõe algumas definições sobre
o termo: “[...] som indesejado, som não-musical, distúrbio em qualquer sistema de
informação e qualquer som forte [...].” (SCHAFER, 1977).
No entanto, embora Schafer proponha uma escuta mais consciente dos sons à
nossa volta, no decorrer do livro o compositor defende uma paisagem sonora ideal
repleta de sons naturais, livre dos sons urbanos, de máquinas, carros e sirenes,
classificando-os como poluição sonora.
Com um olhar crítico sobre esse posicionamento, porém sem negar a
importância de A afinação do mundo, Giuliano Obici no seu livro Condição de Escuta
nos dá material para o debate. Schafer percebe o ruído de maneira negativa, como
algo que deve ser banido. Obici tem um posicionamento diferente, e nos chama a
atenção para as inúmeras possibilidades criativas que cercam aquilo que é
considerado ruído por Schafer:
Essa noção do ruído parece ser um pouco equivocada, embora
extremamente difundida no senso comum. Pensemos ele como
potência de criação, como ponto de instabilidade que possibilita
transformações e inventividades. Foi assim com a história da música
ocidental, que ampliou os horizontes dos ouvidos explorando
sonoridades estranhas, consideradas ruídos pelos padrões e tratados
estéticos musicais. (OBICI, 2008).

Essa potência criativa se expande ainda mais quando pensamos a música em


contato com outras narrativas. No entanto, quando se pensa a relação entre música
e ruído dentro da narrativa cinematográfica, pode-se cair na armadilha de entender
que a discussão fique restrita à relação entre música e desenho de som, porém
61

nosso objetivo neste capítulo é compreender o que a acontece no espaço entre um


e outro, onde as duas coisas se fundem.
Outra interessante ideia que aparece no trabalho de Obici é a questão “Para
quê afinar o mundo?” fazendo relação direta com o título do livro de Schafer A
Afinação do Mundo:
O termo afinar determina um diapasão, uma forma e uma regra para
organizar os sons e, consequentemente, uma maneira de escutar os
sons no ambiente. Essa postura de M. Schafer sobre os sons surge
em outros momentos, como, por exemplo, quando propõe o exercício
de limpeza dos ouvidos, quando critica as máquinas, o ruído sagrado
e a poluição sonora, entre outras. A terminologia é forte: propor a
limpeza dos ouvidos implica acreditarmos que os ouvidos estão
sujos, e esses termos carregam seu pensamento de uma “aura”
moralista, que divide o mundo sacro, limpo e puro de um mundo
profano, sujo e impuro. Ele encara os sons por um crivo que tende ao
maniqueísmo e a uma visão restrita dos avanços tecnológicos, uma
certa fobia às máquinas. (OBICI, 2008)

Através dessa indagação o autor discute que, ao invés de almejar um mundo


sonoramente menos barulhento, de certa maneira atribuindo uma escuta musical
aos sons à nossa volta e expulsando o ruído (pensado por Schafer como poluição
sonora), é muito mais interessante trazer para o universo musical qualidades
sonoras consideradas não-musicais:
Assim como existem múltiplas fontes sonoras no espaço urbano,
existem múltiplas escutas, não apenas a musical. Escutar a
sonoridade em determinado território como música, assim como
propõe M. Schafer, não seria repetir um padrão de escuta? Ativar um
ouvido musical em todas as situações não seria enfadonho? O que
John Cage e outros compositores propunham quando utilizavam
ruídos, sons de máquinas e das ruas nas composições era destituir
essa relação de escuta na própria música. Difícil exercício, o de
querer enquadrar os sons dentro dos paradigmas modal, tonal, serial,
minimal e musical. Se esses sons têm algo para nos oferecer, é
exatamente o oposto do musical, possibilitando encontrar outros
campos de criação, de escutas. (OBICI, 2008)

A partir dessas considerações podemos pensar como a trilha sonora de


Tragtenberg funciona no filme e como sua abordagem dialoga com os outros
elementos da obra.
Podemos usar como exemplo a cena em que vemos o homem com medo de
pombos: Vimos um alambrado repleto de pombos, escutamos claramente seus
arrulhos e bater de asas, em seguida vemos um contra-regra trazendo o suposto
fóbico vestindo uma espécie de sobretudo repleto de pães, ele leva o homem até
62

esse alambrado, em que vemos, além dos pombos, um banco de praça. A luz é
fraca. O contra-regra abre uma passagem no alambrado e acomoda o homem no
espaço interno e a partir daí os pombos vão na sua direção. No corte seguinte é
visto um plano fechado no rosto fóbico em que percebemos seu nervosismo. O
compositor grava o áudio da cena de modo que ela seja ouvida pela perspectiva dos
próprios pombos20, Neste sentido, o som direto que corriqueiramente traz a ideia de
ambientação aqui adquire um novo significado. Em seu livro Música de cena (2008),
o compositor explica um pouco sobre esse tipo de abordagem:
O Conceito de ponto de escuta é semelhante ao ponto de vista. A
escolha de um ou mais pontos de escuta entre um sempre constante
leque de opções - possibilita o estabelecimento de diferentes leitura
espaciais e sonoras para uma mesma cena (TRAGTENBERG,
2008).

O compositor transita entre o que ele mesmo chama de naturalismo e


simbolismo sonoro21, sendo que o uso naturalista do som seria sua utilização sem
manipulação. A carga de simbolismo, ou seja, outras camadas de significado, surge
a partir de alterações, das manipulações estipuladas por ele.
São vistos em cena microfones, câmera, a equipe e todo o aparato
necessário para a filmagem. Também vemos a equipe trabalhando em função dos
experimentos e discutindo as várias questões que envolvem a realização das
gravações. Essas cenas lembram um pouco Crônica de um Verão (1961), de Jean
Rouch e Edgar Morin, que Goifman assume como referência 22.
Os experimentos vistos na tela são praticamente performances multimídia,
atores e não atores expondo seus corpos e sua vulnerabilidade aos seus medos,
estimulados por informações visuais táteis e sonoras. As reações são de certa
20

A compositor fala sobre sua obra no cinema em entrevista para a TV Sesc

21

Informação Presente no livro Música de Cena.


63

maneira imprevisíveis, dialogando em certa medida com os Happenings do grupo


Fluxus23 e com a linguagem da performance em geral, que como as cenas, também
leva em conta o fator risco.
O filme segue nebuloso até o final. Vemos os depoimentos da equipe a
respeito da não-realização do filme, falando de como o projeto não se concluiu,
embora assistimos a um filme acabado, circulando em um suporte midiático, fato
que dá continuidade à constante pergunta se o que estamos vendo e ouvindo é real
ou não.

5.6.3. O Gabinete do Dr. Estranho - O horror e o mundo lá fora

Uma jaula com placas e avisos pedindo para alimentar o Dr. Estranho com
sons. Dentro da jaula, vê-se o equipamento de áudio e cadernos de anotações, um
laboratório que nos lembra o filme expressionista O Gabinete do Dr. Caligari ou Dr.
Frankenstein, porém as partes que serão agrupadas para se tornarem outra coisa
não são humanas como na obra literária da escritora britânica Mary Shelley, mas
fragmentos sonoros. Esses fragmentos são fornecidos ao “cientista” pelo público
tanto no próprio local, quanto via internet.
A performance/instalação de Livio Tragtenberg estreou na 29ª Bienal de Artes
de São Paulo. Entre o compositor e público havia um microfone em que as pessoas
poderiam gravar qualquer som. O compositor é visto transformando esse som
através de software e convidando o público a interagir com a obra e também
perceber as potencialidades dos sons cotidianos. É pertinente relacionar o Gabinete

22

Em entrevista para o site Revista Tópico

23

Movimento artístico informalmente organizado por George Maciunas na década 1970 através revista de
mesmo nome. Tinha como objetivo mesclar diferentes linguagens artísticas.
64

do Dr. Estranho com A Fonte de Marcel Duchamp, obra em que o artista colocou um
urinol no Salão dos Artistas Independentes de Nova York, resignificando um objeto
do cotidiano, da mesma maneira que o Dr. Estranho ressignifica sons cotidianos.
A inclusão do mundo real para dentro da obra de arte vai mais além. O Gabinete do
Dr. Estranho circulou por cidades do interior paulista integrando a programação do
Circuito Sesc de Artes. Na sua estreia, a performance/instalação aconteceu dentro
do Pavilhão Ciccillo Matarazzo, espaço onde tradicionalmente ocorre a Bienal de
Artes. Os frequentadores do evento já estão habituados a exposições e obras que
propõem diferentes relações entre o público e o artista. No circuito, porém,
aconteceu algo diferente. A jaula do Dr. Estranho passou por cidades como Olímpia,
Monte Alto, Novo Horizonte, dentre outras. Podemos ver em gravações de vídeo
disponíveis no youtube, situações em que crianças percebem a obra como um
grande brinquedo, um senhor embriagado dando seus depoimentos para o Dr.
Estranho ou um cachorro assustado com as sonoridades propostas pelo compositor.
Situações em que acontece a interação com elementos do mundo real em estado
bruto, fora da galeria de arte.

5.6.4. Fator Realidade


(termo provisório que será revisto e trabalhado de maneira mais embasada
futuramente).

Em uma visão geral, pode-se entender que da mesma maneira que há um


desejo desafiador no Gabinete em unir o “musical” e o “não musical”, em Filmefobia
percebe-se que o desafio está em deixar a fronteira entre e o documental e a ficção
nebulosa. A partir daí, é visível o quanto o “fator realidade” exerce grande poder,
tanto sobre artistas quanto sobre o público.
O aprisionamento do real não só como imagem (pois esse já se mostrava
possível na fotografia) mas também em desenvolvimento temporal é um fator que
gerou grande interesse pelo cinema em sua origem.
André Bazin, ensaísta francês e seu texto O Mito do Cinema Total (1993),
coloca sua visão a respeito:
[...] É o mito do realismo integral, de uma recriação do mundo à sua
imagem, uma imagem sobre qual não pesaria a hipoteca da
interpretação do artista nem a irreversibilidade do tempo.[...]
(BAZIN,1993).
65

Em Filmefobia encontramos diálogo com esse mito quando percebemos os


fatos filmados como “reais”. Quando Bernardet diz “Só um fóbico diante de sua fobia
é uma imagem do real”, o espectador entra na busca por essa imagem.
A abordagem sonora de Tragtenberg também dialoga com o “real” quando ele
usa sons considerados “não-musicais” porém referencializados, empregando a ideia
de ponto de escuta que compositor relata em seu livro.
Outra questão que motiva a pesquisa é a música como gatilho afetivo em
Filmefobia. Da mesma maneira que o desenvolvimento do filme se distancia das
formas mais conhecidas de narrativa, a música também propõe diferentes maneiras
de engajamento.

5.6.5. Identificação e Ressonância

Durante o período do cinema silencioso houve uma intensa campanha para a


padronização dos acompanhamentos musicais nas apresentações cinematográficas.
A padronização do estilo narrativo do cinema esteve diretamente ligada ao controle
da recepção24, vinculado a um conjunto de regras que constituiu o que
posteriormente passou a ser chamado de narrativa clássica. Em outras palavras,
houve uma série de medidas na tentativa de controlar a maneira que o espectador
recebe o filme. No campo da música passaram a ser publicados manuais com
sugestões de acompanhamento, utilizando música preexistente do repertório
romântico ou composições originais esteticamente parecidas com as músicas
sugeridas. A música, geralmente, em narrativas mais lineares, busca traçar uma
relação com espectador denominada identificação, ou seja, a ideia é colocar o
espectador no drama do personagem, compartilhando sentimentos e valores morais.
Em uma obra cinematográfica como Filmefobia, que se afasta radicalmente desse
tipo de estratégia narrativa, como se dá essa afetação?

24

Informação presente no texto de Rick Altman Nascimento da Recepção Clássica.


66

Mariana Baltar no artigo Por um cinema de atrações contemporâneo 25,


discorre sobre o efeito de ressonância em oposição à identificação. O conceito está
ligado ao regime de atrações que permeia o primeiro cinema, ao efeito do corpo da
tela sobre o corpo do espectador, gerando um engajamento de ordem sensorial.
Embora o termo venho da autora Suzana Passeon em estudos sobre pornografia,
Baltar aponta como esse afeto permeia o cinema de um modo geral.
Segundo Baltar, esse engajamento funciona de maneira semelhante aos
momentos de espanto do melodrama, propondo um envolvimento em que o
espectador abandona a racionalidade. Em Filmefobia, esse tipo de estímulo é
bastante presente, principalmente nas cenas em que os fóbicos têm seu medo
despertado. A música/som tem papel importante nesse jogo, estimulando as reações
no filme e expandindo esse efeito em direção ao espectador.
A criação sonora estabelece diferentes leituras para as diferentes fobias, um
bom exemplo é a cena em que é mostrada a mulher que tem fobia de penetração
sexual (representada pela atriz Laís Marques). Ela fica nua pendurada com as mãos
e pés amarrados, rodeadas por carrinhos de brinquedo cada um com um falo de
borracha indo a sua direção. Os carrinhos tocam alguma canção pop (de difícil
identificação, pois são sobrepostas e fora de sincronia, mas é provável que seja
Girls Just Want To Have Fun, da cantora Cyndi Lauper). Tanto a música quanto sua
fonte sonora (alto-falantes de com baixa qualidade), concede à cena um novo fator.
A canção é ouvida de maneira confusa e, ao entrar em contato com os gritos de
desespero da atriz, adiciona “requintes de perversão”, usando as próprias palavras
do compositor na já mencionada entrevista para o programa Sala de Cinema. Como
a música não se altera com a reação da personagem, podemos classificar como
música anempática, segundo o compositor e pesquisador francês Michel Chion no
livro Audiovision. Para Chion, este tipo de relação entre música e cena expressa
indiferença em relação ao sofrimento que é visto na tela.

25

BALTAR, Mariana. Por um cinema de atrações contemporâneo. In: Encontro Anual da Compós, 25. 2016,
Goiânia, GO. Anais... Goiânia, GO: Universidade Federal de Goiás, 2016.
67

Medo e perversão são elementos presentes no gênero horror, gênero esse


que ajuda a construir o universo nebuloso do filme. O diálogo entre o gênero e a
ideia de sons reais ressignificados também estão presentes na
instalação/performance O Gabinete do Dr. Estranho.

5.6.6. Horror

É possível identificar que tanto Filmefobia quanto a performance O Gabinete


do Dr. Estranho possuem relação com o gênero horror, em alguns aspectos essa
relação é bastante direta. Em Filmefobia o próprio nome do filme mostra o medo
como elemento central da obra, bem como os experimentos trazem lembranças de
estórias como Frankenstein ou a Ilha do Dr. Moreau. Zé do Caixão o emblemático
personagem do cinema de horror brasileiro aparece como espécie de consultor. A
fala de Bernardet sobre o seu primeiro contato com cinema também é um fator
relevante, ele associa a sala escura com a sensação de medo e também conta
sobre o pavor que sentiu ao assistir Roma, Cidade Aberta (1945), de Roberto
Rosselini, considerado um marco do neorrealismo italiano.
O nome da performance de Tragtenberg também evoca por sua vez, o Filme O
Gabinete do Dr. Caligari (1920), dirigido por Robert Weine. Como o cinema de
horror, a performance - principalmente fora da galeria de arte, tende a ser percebida
como um espetáculo. Um homem preso na jaula chama a atenção não por despertar
compaixão, mas sim, curiosidade. Em Filmefobia, a ideia do espetáculo a partir do
pânico é bastante presente e os realizadores se mostram frustrados diante de
participantes que não expõe sua fobia de modo imagético.
O diálogo com o horror também acontece no filme devido ao confronto
psicológico. Segundo Bruce F. Kawain 26, o medo no filme de terror geralmente
funciona como espelhos que devem ser confrontados, sendo que esse confronto é
importante para a saúde mental do protagonista, um obstáculo a ser superado.

26

Informação presente no artigo The Children of the Light.


68

Vemos em Filmefobia os participantes enfrentando seus medos, as reações são


diversas, mas o confronto parece ser uma constante nos experimentos.
Podemos pensar também a fronteira midiática existente entre as duas obras.
Segundo Irina Rajewski (2012) no artigo A fronteira em discussão: O status
problemático das fronteiras midiáticas no debate contemporâneo sobre
intermidialidade, os gêneros literários têm seus limites demarcados por convenções,
enquanto que as mídias possuem barreiras materiais. Se considerarmos horror
como gênero cinematográfico, ele só se realiza plenamente em Filmefobia, porém se
pensarmos o horror como um gênero literário (tanto Frankestein quanto A Ilha do Dr.
Moreau são originalmente obras literárias de grande sucesso no cinema), podemos
pensar que O Gabinete do Dr. Estranho é uma instalação/performance que, assim
como o cinema, assume um gênero literário. Talvez para o público que não conheça
o artista, ou não tenham nenhuma proximidade com arte sonora, o gabinete seja
percebido como algo próximo a uma atração de parque de diversões.
Além do diálogo com gênero, as duas obras se assemelham em outros pontos:
o compositor de corpo presente, a utilização de sons cotidianos e o fator
improvisação. Por mais que as obras estejam em diferentes suportes midiáticos,
elas convergem nesses pontos. O fator improvisação que na performance remete
aos Happenings do grupo Fluxus e John Cage, no filme, contribui para que a reação
dos fóbicos seja percebida como “real”. Também fica evidente como o suporte
midiático influencia sobre a relação que o público estabelece com a obra. No
Gabinete, artista, obra e público não se dissociam, e a obra só acontece enquanto o
artista está presente. Já no filme, embora seja possível ver compositor agindo, sua
atuação está registrada no suporte midiático do vídeo.
A utilização de sons “não-musicais” assume propostas específicas em cada
obra. Como já foi discutido, em Filmefobia a criação sonora dialoga com a proposta
documentarizante que permeia o filme, colabora com o efeito de ressonância e
adiciona camadas de significado durante as performances. É uma importante
ferramenta no jogo entre o documental e a ficção que acontece ali.
No Gabinete, o uso da matéria prima sonora desperta curiosidade se
pensarmos em um personagem que transforma qualquer som em “música”. Tanto
dentro da galeria de arte quanto fora, o som “não-musical” assume um novo
discurso, porém fora do espaço de exposição, longe dos olhares e ouvidos
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habituados, a obra se converte em atração, em uma curiosidade, tanto visual como


sonora.
Tanto o filme quanto a performance propõem uma escuta em que os sons
considerados não musicais adquirem uma carga de significado que talvez sons
musicais não dessem conta. Em Filmefobia, a divisão entre desenho de som e
música se torna obsoleta, assim como a fronteira entre documentário e ficção. O Dr.
Estranho por sua vez, dissolve fronteira entre o artístico e o comum. Os ruídos
adentram a obra e a obra torna-se ruído em meio ao cotidiano da cidade.

5.7. Referências Bibliográficas

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