Título : INABILITAÇÃO VICIADA POR INSUFICIÊNCIA DE MOTIVAÇÃO E POR INTERPRETAÇÃO AMPLIATIVA DE EXIGÊNCIA
DO EDITAL
Autor : Carlos Ari Sundfeld
DOUTRINA - 232/253/MAR/2015
Professor Fundador da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas. Doutor e Mestre
pela Faculdade de Direito da PUC/SP. Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP).
CONSULTA
Trata-se de consulta sobre decisão proferida por comissão especial de licitação que inabilitou o
consórcio privado consulente em concorrência internacional aberta por agência reguladora estadual
visando à celebração de contrato de concessão patrocinada para a prestação dos serviços públicos de
operação e manutenção de rodovia. De acordo com a decisão da comissão de licitação, o consulente
foi inabilitado da concorrência porque “não comprovou a realização de obra de arte especial em
balanços sucessivos com área de, no mínimo, 4.000 m²”.
A decisão não fez qualquer referência a esse documento. Limitou-se a afirmar, sem maiores
especificações, que o consórcio não teria comprovado a realização da obra, nos termos do item próprio
do edital. Nada mais.
A dúvida da consulta diz respeito à licitude desse ato administrativo. O presente parecer,
elaborado com a colaboração da professora Vera Monteiro, após o exame do edital, do documento
apresentado para atender à exigência do edital, do teor da decisão da comissão e de laudo técnico a
respeito do assunto, deve responder, portanto, a esta questão: é lícita a decisão de inabilitação? O
objetivo do consulente é anexar o parecer ao recurso administrativo que está apresentando na
presente data contra o ato de inabilitação.
O edital em questão é relativo a um contrato de concessão com objeto complexo. Nele, estão
reunidos a execução de obras e serviços de engenharia, além do fornecimento de equipamentos
necessários à operação e manutenção de rodovia estadual pelo prazo 30 anos. Diante desse objeto,
era justificável que o instrumento convocatório fizesse exigências quanto à aptidão dos interessados. E
assim foi feito.
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devidamente certificado(s) pelo Conselho que regularmente o exercício da respectiva profissão
atestando o seguinte quanto a cada uma das Fases de Serviço: (...).
A específica experiência que não teria sido comprovada pelo consulente foi descrita no item “c”,
(ii):
(ii) execução de obra de arte especial em balanços sucessivos com vão maior ou igual a 85 m (oitenta
e cinco metros) com, no mínimo, 4.000 m² (quatro mil metros quadrados);
Mas o consulente havia juntado atestado em que comprovava a realização anterior de: (a) obra de
arte; (b) com balanços sucessivos com vão maior do que 85 m; e (c) com mais de 4.000 m² de área
total.
O ato administrativo de inabilitação nada indicou. Nenhuma palavra, nenhum indício, zero,
nenhuma explicação. Nada. Apenas esta afirmação: não cumpriu. Nenhuma, absolutamente nenhuma
análise do documento: silêncio total, como se documento algum tivesse sido apresentado.
Daí esta dúvida: será juridicamente válido o ato administrativo de inabilitação que se limitou a
inabilitar, sem dizer a razão específica, apenas apontando genericamente o item supostamente
descumprido do edital, sem fazer qualquer referência ao documento apresentado?
A resposta é óbvia.
Aliás, há 20 anos tive a oportunidade de dá-la em obra doutrinária sobre a Lei de Licitações, no
tópico em que tratei das pautas a serem, necessariamente, observadas pela comissão julgadora
quando da aplicação concreta dos requisitos de habilitação. Escrevi na ocasião: a comissão “deve
justificar ampla e adequadamente suas decisões, divulgando em exposição de motivos as razões
determinantes da desclassificação dos candidatos”.
Deixei bem clara, então, qual a consequência da falta de motivação: o ato de inabilitação terá um
“vício”. E, como se sabe, atos juridicamente viciados têm de ser anulados, pois não têm valor para o
Direito.
Se, naquela época, o tema não suscitava dúvida, hoje em dia ele é cristalino, pois leis posteriores
o clarificaram.
Disse a Lei de Processo Administrativo Federal (Lei nº 9.784/99), em seu art. 50: “os atos
administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando”
( caput), “afetem direitos ou interesses” (inc. I), devendo a motivação “ser explícita, clara e congruente”
(§ 1º).
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Disse a Lei Paulista de Processo Administrativo (Lei nº 10.177/98): “são inválidos os atos
administrativos (...) nos casos de falta ou insuficiência da motivação” (art. 8º, caput e inc. VI). E mais: “a
motivação indicará as razões que justifiquem a edição do ato, especialmente a regra de competência,
os fundamentos de fato e de direito e a finalidade objetivada” (art. 9º, caput).
O ato administrativo é, portanto, inválido, por evidente insuficiência de motivação. Um vício formal,
certo, mas vício grave. A consequência é simples: o ato deve ser anulado.
Poderia, esse ato, ser agora convalidado pela autoridade, com a correção de seu vício formal? A
Lei Paulista de Processo Administrativo trata do assunto em seu art. 11:
a Administração poderá convalidar seus atos inválidos quando a invalidade decorrer de vício (...) de
ordem formal” (caput), mas desde que o vício “possa ser suprido de modo eficaz” (inc. I), desde que da
convalidação não possa “resultar prejuízo à Administração ou a terceiros” e desde que “não se trate de
ato impugnado (§ 1º).
No caso da consulta, o consulente está impugnando justamente hoje o ato de inabilitação por meio
de recurso administrativo e, portanto, a partir de agora, é impossível convalidá-lo. O recurso terá de ser
provido, anulando-se o ato por vício de motivação, para nova decisão administrativa ser proferida
sobre a habilitação – agora uma decisão devidamente motivada –, devendo ser publicada, abrindo-se
novo prazo para eventuais recursos.
Se isso não for feito, quer dizer, se o consulente não tiver garantido o direito de recorrer
administrativamente com pleno conhecimento dos fatos que a autoridade tiver tomado em
consideração para inabilitá-lo – fatos por enquanto secretos –, a violação do devido processo legal e
do contraditório, e, portanto, ao art. 5º, incs. LIV e LV, da Constituição Federal, será inevitável.
A estipulação desses requisitos, todavia, não vem posta de maneira objetiva e definitiva na Lei. E
seria mesmo impossível à Lei fazê-lo. A legislação apenas estabelece diretrizes gerais, parâmetros
básicos, que devem nortear a Administração no momento de elaborar o edital, quando, aí sim, será
fixado de maneira detalhada aquilo que será preciso demonstrar para comprovar a qualificação técnica
e ser habilitado.
Diante de um objeto de natureza muito simples, é natural que a Administração não imponha
exigências habilitatórias dessa ordem, ou o faça de maneira muito singela. De outro lado, se for
sofisticada a execução, a Administração pode e deve impô-las, exigindo a apresentação de atestados
de execução de obras, serviços ou fornecimentos similares, ou a demonstração de que a licitante
dispõe de um corpo profissional com determinada capacitação mínima.
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O teor da exigência, portanto, depende exclusivamente da escolha do edital. A legislação
brasileira, nesse aspecto, não impõe diretamente um modelo pronto e acabado. A Lei nº 8.666/93, ao
tratar do tema, estipulou apenas limites a serem observados na fixação de exigências de qualificação
técnica (“Art. 30 A documentação relativa à qualificação técnica limitar-se-á (...)”). Não previu o mínimo
a ser exigido; previu apenas o máximo. Tampouco impôs que as exigências fossem feitas em todos os
casos; apenas traçou parâmetros para evitar exigências excessivas.
Em hipótese alguma poderá ser exigido, quando da fase de habilitação, requisito técnico que não
tenha sido previsto de modo expresso e específico no edital da licitação. Quem diz quais os requisitos
de habilitação específicos de cada licitação é o edital respectivo, só ele (Lei nº 8.666/93, art. 40, inc.
VI). Na fase de habilitação, como em tudo o mais no curso do procedimento, o que o edital não tiver
previsto em hipótese alguma poderá ser exigido, pois a licitação tem de ser “processada e julgada em
estrita conformidade” com o princípio da “vinculação ao instrumento convocatório” (Lei nº 8.666/93, art.
3º, caput).
Por serem tão essenciais essas diretrizes, a doutrina e a jurisprudência vêm alertando
seguidamente contra o risco de elas serem comprometidas pelo artifício de inserirem-se no edital
cláusulas abertas ou dúbias e de, depois de conhecidos os interessados, surgirem interpretações com
endereço certo, para favorecer ou prejudicar licitantes.
A verdade é esta: cláusula sobre habilitação em edital de licitação não pode comportar nem exigir
interpretação, muito especialmente uma intepretação restritiva ou extensiva.
Além de dispor sobre as condições de habilitação, indicando os documentos a partir dos quais serão
avaliadas, o edital fixará os critérios a serem empregados pelo órgão julgador na verificação de seu
atendimento.
Ao fazê-lo, deverá atentar para a indispensável objetividade, evitando que a apreciação tenha de
fazer-se por critérios subjetivos, fluidos, flutuantes. À Comissão deve restar, apenas, um trabalho
vinculado, quase mecânico, de confronto direto e imediato da descrição editalícia com o documento
apresentado. (SUNDFELD, 1994, p. 114.)
Pois bem. Li com atenção o edital da licitação objeto da consulta e, no item que agora importa, vi
com clareza a exigência de que o atestado deveria demonstrar a anterior execução de obra de arte
com área mínima de 4.000 m². Li em seguida o documento que o consulente apresentou no certame e
lá está dito, também com clareza, que foi executada obra de arte com mais de 4.000 m² de área.
Diante disso, convenci-me, com tranquilidade e segurança, de que o requisito de habilitação foi
sim atendido.
Longos anos de experiência com as malícias da vida administrativa me fizeram especular: teria a
comissão, mesmo de boa-fé, feito uma interpretação restritiva ou ampliativa da cláusula, para sacar
dela alguma restrição ou exigência que não estava expressa e clara, mas que, à força de algum
esforço de torção mais ou menos habilidoso, alguém poderia considerar como implícita?
Para que se perceba o quão confortável eu me sinto para responder à presente consulta, basta
mencionar que, em trabalho publicado mais recentemente, tive ocasião de lembrar uma dessas
obviedades jurídicas que a ninguém ocorreria refutar. O título do trabalho é expressivo por si e, por
isso, o reproduzo aqui: Interpretação extensiva não pode inabilitar licitante por falta de
documento não exigido expressamente no edital.
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habilitação, ou com sua fixação obscura, contraditória. No edital devem ser arrolados todos os
requisitos de habilitação. A sua fixação clara é condição fundamental para que os interessados
possam se preparar para participar da disputa. (SUNDFELD, 2013, p. 177.)
Diante disso, não tenho qualquer dificuldade em dizê-lo aqui: sejam quais forem os bons
argumentos ou as intenções que tiverem influído na leitura que a comissão de licitação fez da cláusula,
qualquer interpretação restritiva da viabilidade da habilitação do consulente será inaceitável e inválida.
O consórcio acreditou no texto do edital, que indicava como suficiente a demonstração de que uma
obra de arte com ao menos 4.000 m² de área fora executada, e organizou-se para participar, confiando
justamente nesse texto.
Ainda que alguém, da comissão de licitação ou não, possa entender que uma exigência mais dura
seria ainda melhor – não cabe discutir agora se ela se justificaria ou não tecnicamente –, ainda assim
ela não poderia valer no presente certame. Para fazer essa restrição, seria preciso começar de novo,
ter um novo edital, permitir uma nova organização de consórcios, e assim por diante.
Apresentá-la depois é juridicamente impossível, pois isso abriria ensejo ao desvio de poder, como
bem explica Celso Antônio Bandeira de Mello (2006, p. 375), ao falar da invalidade do ato
administrativo desmotivado e da inviabilidade de motivação posterior: “a Administração poderia, ao
depois, ante o risco de invalidação dele, inventar algum motivo, ‘fabricar’ razões lógicas para justificá-lo
e alegar que as tomou em consideração quando da prática do ato”.
Em suma, aceitar motivações posteriores, em situação que envolva avaliações subjetivas, é dar
espaço para o desvio de poder, um vício grave do ato administrativo, “traduzido na busca de uma
finalidade que simplesmente não pode ser buscada” (BANDEIRA DE MELLO, 2006, p. 378). Esse vício
gera a invalidade do ato administrativo (Lei Paulista de Processo Administrativo, art. 8º, inc. V).
O atestado do consulente prova que ele executou obra de arte com área total de 4.000 m² e com
balanços sucessivos em vão de mais de 85 m. Mas o atestado não prova que ele tenha feito obra de
arte em que a parte executada em balanços sucessivos, além de ter vão de mais de 85 m, tinha ela
própria uma área com mais de 4.000 m².
Teria a comissão interpretado o edital no sentido de que ele teria exigido 4.000 m² não de área
total da obra de arte, mas de área executada em balanço? Seria isso?
Justamente o item 13.18 (iii), “c”, (ii) do edital, empregado como fundamento da comissão de
licitação para inabilitar o consulente, não define, em seu próprio corpo, que a área com, no mínimo,
4.000 m² teria de ser a da parte da obra de arte executada em balanços sucessivos. E, para uma
exigência assim ser formulada pelo edital, seria preciso que ela fosse compatível com a dificuldade
técnica exigida na obra objeto da licitação.
O laudo técnico anexado à consulta, elaborado por profissional especializado, capaz de avaliar
tecnicamente a exigência e a comprovação feita pelo consulente, esclareceu o seguinte:
Deve-se frisar que os vãos executados em balanços sucessivos em geral são projetados com vãos
adjacentes para equilíbrio da estrutura. Em relação ao Edital da Concorrência Internacional, um vão de
85 m teria (para uma estrutura simétrica e sem contrapesos) dois vãos adjacentes de
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aproximadamente 42,5 m, perfazendo um comprimento total em balanços sucessivos de 170 m.
Assim, para uma largura de tabuleiro usual de cerca de 12 m esse trecho de obra de arte especial teria
2.040 m² de área. Assim, é completamente equivocado interpretar que a área solicitada no Edital de
4.000 m² pudesse corresponder apenas à área de tabuleiro executado em balanços sucessivos, pois
além de não representar em si um indicativo de maior dificuldade e capacidade técnica, seria uma
medida excessiva diante do vão requerido para a obra, visto que representa aproximadamente duas
vezes a área de uma obra de arte em avanços sucessivos com vão principal de 85 m e dois vãos
adjacentes de equilíbrio.
Diante disso, ainda que o texto da cláusula permitisse outra leitura, mais restritiva, a única
interpretação juridicamente válida seria a que considera suficiente, como atestado apresentado para
comprovar a “execução de obra de arte especial em balanços sucessivos com, no mínimo, 4.000 m²”
(item 13.18, (iii), “c”, (ii) do edital), um atestado indicando uma obra de arte com área total mínima de
4.000 m². Isso porque, como explicado pela avaliação técnica, a exigência de 4.000 m² de área em
balanços sucessivos seria tecnicamente injustificável – e, portanto, excessiva.
Ora, a Lei nº 8.666/93 diz que as condições de habilitação na licitação não podem ser tais que
“comprometam, restrinjam (...) o seu caráter competitivo”, muito especialmente quando levem em
consideração “circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato” (art. 3º, §
1º, inc. I).
Acresce que a licitação em causa não é para um contrato de empreitada de obras. O contrato é de
parceria público-privada, especificamente uma concessão patrocinada, a qual, no dizer da Lei
específica, não pode ter como “objeto único (...) a execução de obra pública” (Lei nº 11.079/04 – Lei
Federal de Parceiras Público-Privadas, art. 2º, § 4º, inc. III).
Assim, nas licitações para contratos de parceria público-privada, como no caso, não faria sentido
preferir interpretações que ampliassem as exigências de demonstração de capacidade técnica para
obras, e, com isso, reduzissem a competição, pois a natureza desses contratos sugere justamente o
inverso.
CONCLUSÃO
Diante do exposto, concluo ser inválido, por falta de motivação, o ato administrativo que inabilitou
o consulente, um licitante que atendeu à exigência constante do edital, sendo juridicamente inviável
qualquer interpretação que redunde em exigência de demonstração de capacidade técnica mais ampla
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do que aquela comprovada por meio do atestado apresentado.
Por muitas razões, inclusive por se tratar de licitação de parceria público-privada, é inviável adotar,
no caso, uma interpretação que amplie artificialmente, para além das formuladas de modo expresso e
claro pelo edital, as exigências de capacidade técnica para execução de obras, pois isso reduziria
indevidamente a competição na licitação.
REFERÊNCIAS
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Malheiros,
2006.
SUNDFELD, Carlos Ari. Licitação, Processo Administrativo, Propriedade, volume III da coleção
Pareceres. São Paulo: Thomson Reuters – Revista dos Tribunais, 2013.
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