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TEORIA DA CULTURA

Prof. Aldo Bizzocchi

1. O que é cultura?
Dentre as muitas definições de cultura, podemos citar as seguintes:

• Cultura é tudo o que, tanto no homem quanto no meio, não é produto exclusivo da
natureza. Esta é a chamada definição antropológica de cultura e remete à famosa
oposição natureza x cultura.
• Cultura é tudo o que o homem cria ou transforma, tudo o que ele acrescenta à
natureza com seu trabalho transformador. Esta definição é uma decorrência da
anterior.
• Cultura é um complexo de padrões de comportamento, crenças, instituições e
outros valores espirituais e materiais transmitidos coletivamente e característicos de
uma sociedade ou de um grupo humano. Quando se fala em cultura brasileira,
cultura empresarial ou cultura pop, é essa concepção que se tem em mente.

Embora haja rudimentos de cultura em outras espécies animais, nenhuma apresenta


a complexidade encontrada no Homo sapiens. A cultura, o pensamento simbólico e a
linguagem articulada são os traços diferenciais e definidores da espécie humana.
O principal veículo de transmissão da cultura é a comunicação verbal, que só é possível
graças à existência da linguagem articulada (isto é, a língua que falamos, dotada de
léxico e gramática).1

2. Como surgiu a cultura?


O primeiro hominídeo a apresentar traços de cultura foi o Australopithecus
africanus, há cerca de 3 milhões de anos, ao lascar pedras para produzir instrumentos
cortantes. Por volta dessa época, houve uma grande seca na África, que obrigou os
hominídeos a descer das árvores em busca de alimento.
Com a escassez de vegetais e a habilidade em fabricar armas cortantes, o
Australopithecus passou a caçar e se alimentar da carne de grandes mamíferos. Isso
acarretou o desenvolvimento do cérebro e, consequentemente, o aumento da
inteligência, iniciando um círculo virtuoso: quanto mais ele caçava e se alimentava de
carne, mais seu cérebro crescia e, portanto, mais inteligente ele ficava. Mais inteligência
permitia a confecção de melhores armas, o que aumentava ainda mais a produtividade
da caça, e assim o ciclo recomeçava.
Há cerca de 200 mil anos, surge na África o homem anatomicamente moderno, ou
Homo sapiens. Cerca de 100 mil anos mais tarde, nossa espécie chega ao Oriente Médio

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Costuma-se falar na linguagem dos animais, mas, na verdade, o eles têm é uma protolinguagem e não
uma linguagem verdadeira. Isso porque a comunicação dos animais tem um “vocabulário” básico, mas
não tem uma gramática, que permitisse combinar vocábulos para formar enunciados e pensamentos mais
complexos.

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e à Europa, onde encontra o Homo neanderthalensis, ou homem de neandertal, outra
espécie humana, igualmente descendente do Homo erectus.
Por volta de 40 mil anos atrás, o Homo sapiens suplanta os neandertais e passa a
dominar sozinho a Eurásia ocidental. A razão mais provável dessa supremacia – e,
portanto, da extinção dos neandertais – é o surgimento do pensamento simbólico e,
consequentemente, de sua expressão por meio da linguagem, tanto verbal quanto não
verbal.
Finalmente, há aproximadamente 15.000 anos surge a civilização, cujas primeiras
manifestações são as pinturas rupestres das grutas de Lascaux e Niaux (França),
Altamira (Espanha), bem como esculturas em osso, como a Vênus de Brassempouy.
Por que os primeiros registros do pensamento simbólico e primeiras manifestações
da civilização foram justamente obras de arte? Acredita-se que tais representações
tivessem propósito místico-religioso ou supersticioso. Mas como surgiram a arte, a
crença no sobrenatural, os rituais?
Para compreender isso, vamos lançar mão da teoria de Abraham Maslow das
necessidades básicas, que se resume na chamada pirâmide de Maslow.

Moralidade,
criatividade,
espontaneidade, solução
de problemas, ausência
Realização pessoal de preconceito,
aceitação dos fatos

Estima Autoestima, confiança, conquista, respeito


dos outros e aos outros

Amor/relacionamento Amizade, família, intimidade sexual

Segurança Segurança do corpo, do emprego, de recursos, da moralidade,


da família, da saúde, da propriedade
Fisiologia Respiração, comida, água, sexo, sono, homeostase, excreção

Segundo esse psicólogo americano, o ser humano tem uma série de necessidades,
que são de várias ordens ou níveis, e só se ocupa em satisfazer necessidades do nível
seguinte quando as do nível anterior já estiverem satisfeitas. Assim, o primeiro tipo de
necessidade que devemos satisfazer é o fisiológico, isto é, garantir o funcionamento do
nosso organismo. A seguir, precisamos assegurar a nossa sobrevivência física e nossa
saúde corporal e mental. Só então vamos buscar amor, acolhimento, amizades, vida
social, realização profissional, lazer, e assim por diante.
Todas as ferramentas, da machadinha de pedra lascada ao computador, foram
criadas para atender aos dois níveis mais baixos de necessidades, isto é, foram criadas
para aliviar a “dor” em seu sentido mais amplo, vale dizer, para resolver problemas
práticos da nossa vida.
Mas depois que essas necessidades estavam atendidas, muitas ferramentas se
tornaram brinquedos. Por exemplo, o arco-e-flecha criado para caçar passou a ser usado

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para praticar tiro ao alvo como treinamento ou mero lazer. A pesca, além de
proporcionar comida, tornou-se um passatempo. Pela mesma razão, crianças lutam de
brincadeira para medir forças, assim como chutar um coco pode ter sido a gênese
remota do futebol, e o som que se faz ao golpear o tronco oco das árvores pode ter dado
origem à música.
Celebrar uma caçada memorável, homenagear os melhores caçadores, preservar a
memória para além da morte, fixar a imagem da caçada para fins rituais podem ter sido
os prováveis motivos para a criação das pinturas rupestres. Com o tempo, criaram-se
lendas a respeito de façanhas ancestrais que deram origem à mitologia e à literatura.
Portanto, as matrizes da cultura são o mito, o sonho, o jogo e o ritual. Dessas matrizes
nascem a história, a literatura, a arte, a filosofia, a ciência, o esporte, a crença no
sobrenatural e, consequentemente, a religião.
A pintura e a escultura marcam o surgimento da arte. Já a narração da história de
geração a geração dá origem ao mito. Como essa narrativa era oral, era mais fácil
memorizar a história se ela fosse em versos, o que faz nascer a literatura e a poesia.
Assim, a cultura nasce para satisfazer necessidades básicas, ou seja, sair da dor e ir
para um estado de segurança. Mas quando já se está em segurança, busca-se fugir do
tédio brincando, isto é, encontrando propósitos lúdicos nas coisas práticas.
Ao estudar a importância do jogo na cultura, Johan Huizinga, no livro Homo
ludens, define:

O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de
tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado
de um fim em si mesmo (grifo meu), acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma
consciência de ser diferente da “vida quotidiana”.

Para esse autor, a faculdade do raciocínio é o que nos confere a dimensão Homo
sapiens, a fabricação de objetos nos dá a dimensão Homo faber, mas é o jogo, a
brincadeira, que nos torna Homo ludens.
Edgar Morin também fala em Homo demens como a contrapartida fundamental do
Homo sapiens, o seu outro que brinca, raciocina por absurdo, divaga, sonha e delira.
Em resumo, o homem não é o único animal a utilizar ferramentas (há pássaros e
primatas que fabricam suas próprias ferramentas para buscar comida) nem a transmitir
conhecimento aos seus semelhantes, mas talvez o único a fazê-lo pela linguagem.
Tampouco é o único animal que brinca, mas o único que brinca para o deleite dos
outros.

O que se passa é que a civilização vai gradualmente fazendo surgir uma certa divisão entre dois
modos da vida espiritual, aos quais chamamos “jogo” e “seriedade”, e que originariamente
constituía um meio espiritual contínuo, do qual surgiu a própria civilização. (J. Huizinga, Homo
ludens)

As oposições entre o infantil e o adulto e entre a brincadeira e a seriedade são


artifícios e estratégias subjacentes a toda organização social e possuem raízes e

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motivações profundas na história cultural do ser humano. Daí que o latim intertenere
(literalmente, “ter entre”) deu o português entretenimento.

3. A evolução do conceito de cultura


Nossa concepção moderna de cultura remonta à Grécia antiga, mais
especificamente à Atenas do século V a.C. Como sabemos, essa cidade era uma pólis,
ou cidade-estado, governada por um regime chamado democracia. Mas a democracia
ateniense era diferente da nossa, pois as decisões sobre a cidade eram tomadas em
assembléia diretamente pelos cidadãos. Era, portanto, uma democracia direta e não
representativa (o que não impediu o surgimento dos políticos e da demagogia). Mas
Atenas tinha apenas 8 mil cidadãos, isto é, homens livres, eleitores e elegíveis, os
únicos com direito a exercer o poder. Havia também 48 mil não cidadãos (escravos,
mulheres, crianças e estrangeiros, inclusive gregos de outras cidades), que não podiam
participar das decisões políticas.
Apesar desse modelo político altamente excludente, havia uma preocupação em
preparar os cidadãos para o exercício do poder. Essa preparação, ou educação,
chamava-se paideía, e era a formação integral – física, intelectual, moral e espiritual –
do cidadão, ou polítes. Aos não cidadãos restava a banausía, quer dizer, o trabalho
braçal.
A paideía baseava-se naquilo que os gregos chamavam de skholé (“distração”), que
originou a palavra escola e incluía o estudo, a divagação filosófica, a contemplação
religiosa, o esporte e o lazer. Ou seja, a paideía dotava o cidadão de um refinamento de
espírito próprio de quem não precisa trabalhar, pois tem quem trabalhe por ele.
Já a palavra cultura veio do latim e significava cultivo, cuidado com o campo ou o
gado. Esse sentido de cultivo da terra permanece nas línguas românicas até o fim da
Idade Média.
No século XVI, surge um sentido metafórico de cultura que seria fundamental para
os filósofos iluministas do século XVIII e repercute até hoje: a cultura como formação e
educação do espírito.
Em 1755, Jean-Jacques Rousseau publica o livro Discurso sobre a origem e o
fundamento da desigualdade entre os homens, em que trata a cultura, no sentido de
civilização, como o grande fator de corrupção do ser humano e lança a teoria do bom
selvagem (“O homem nasce bom; a civilização é que o corrompeu.”).
A edição de 1798 do Dicionário da Academia Francesa reforça essa noção de
cultura por oposição à natureza. Para os filósofos iluministas, cultura é a soma dos
conhecimentos acumulados e transmitidos pela humanidade ao longo da história, nas
ciências, nas letras e nas artes.
Por influência francesa, também no século XVIII aparece em alemão o termo
Kultur com o mesmo sentido metafórico, em que a inicial maiúscula denotava um status
elevado, de modelo a ser seguido por todas as sociedades.
A partir de então, kultur (com minúscula) passa a ser qualquer aptidão aprendida,
qualquer coisa que distinga o homem da natureza, enquanto Kultur (com maiúscula) é o
refinamento espiritual que inclui as artes e as ciências.

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4. As duas formas de cultura
Segundo o filósofo grego Epicuro, as ações humanas são movidas por dois
princípios básicos: a fuga da dor (ações movidas pelo dever, ou seja, pela necessidade
ou obrigação) e a busca do prazer (ações movidas pelo querer, pelo desejo ou gosto).
Epicuro preconiza a busca dos prazeres simples e a fuga dos prazeres requintados e
inatingíveis.
Para tornar mais claro o papel da oposição entre a dor e o prazer na constituição da
cultura, leia primeiramente os textos A caixa de brinquedos, de Rubem Alves, e Cultura
e sociedade no Brasil, de Renato Janine Ribeiro, disponíveis no Apêndice desta
apostila.
Feitas essas leituras, fica a pergunta: o que é, então, cultura? Há, em primeiro lugar,
a cultura em seu sentido etimológico, isto é, o cultivo da natureza, a agricultura, a
pecuária, a cultura de soja ou de bactérias. Em segundo lugar, há o cultivo do homem,
que se divide numa cultura em sentido amplo (antropológico), a qual inclui tudo o que
não pertence ao domínio exclusivo da natureza, e numa cultura num sentido estrito
(tradicional), que pode ser o cultivo do corpo (o esporte) e o cultivo do espírito (o
conhecimento gratuito, a sensibilidade estética).
Para compreender a distinção entre as duas formas de cultura do homem – em
sentido amplo (cultura lato sensu) e em sentido estrito (cultura stricto sensu) –, leia a
Introdução e os capítulos de 1 a 6 da nossa bibliografia básica.
Pode-se dizer que a cultura lato sensu é o conjunto:

• de tudo que o homem cria ou transforma;


• de tudo que ele acrescenta à natureza;
• de tudo que, no próprio homem, não é produto exclusivo do instinto biológico;
• de tudo que não é inato, mas aprendido e transmitido por meio da linguagem;
• dos objetos e práticas que caracterizam uma determinada comunidade humana.

Já a cultura stricto sensu deve ser entendida como o conjunto das atividades:

• voltadas ao espírito, ao lazer, ao enriquecimento pessoal (físico, intelectual ou


espiritual) do ser humano;
• que são praticadas como um fim em si e não como um meio para atingir outros fins;
• motivadas pela busca do prazer e não pela necessidade de resolver problemas.

Sistematizando esta última forma de cultura num quadro, temos:

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ATIVIDADES EXEMPLOS
Discursos Literatura, música, cinema, teatro, artes plásticas,
Veiculação pública e sem artísticos moda, HQ, performances, etc.
fins utilitários dos discursos
do fazer sentir Discursos
Futebol, automobilismo, natação, tênis, etc.
esportivos
Discursos de
Livros, palestras, exposições e documentários de
divulgação
Veiculação pública e sem popularização científica
científica
fins utilitários dos discursos
do fazer pensar Livros e palestras de filosofia, estética ou crítica,
Discursos
biografias, exposições temáticas, documentários,
humanísticos
divulgação de mitologia e sistemas místicos

5. Relações entre cultura, conhecimento e educação


Muitos confundem cultura com conhecimento. Afinal, uma pessoa culta é aquela
que acumulou bastante conhecimento. Mas a verdade é que nem toda cultura é
conhecimento. Por exemplo, uma canção de amor ou uma pintura abstrata são
inegavelmente formas de cultura, tanto no sentido lato quanto no estrito. No entanto,
que conhecimento, que informações sobre o mundo elas proporcionam?
Por outro lado, nem todo conhecimento é cultura. Um manual de informática
fornece conhecimento, mas não se pode dizer que seja uma obra cultural em sentido
estrito, nem que uma pessoa com grande conhecimento em informática seja uma pessoa
culta.
O papel da educação é, sem dúvida, transmitir conhecimento. Mas o conhecimento
transmitido pela educação é sobretudo um saber prático para formar cidadãos e
profissionais (mão de obra), isto é, para garantir a sobrevivência dos indivíduos na
sociedade.
Já o conhecimento transmitido pela cultura, quando existe, é um saber gratuito,
desinteressado, em geral não aplicável à vida cotidiana (ninguém assiste a uma peça de
teatro visando a adquirir competências para empregá-las em seu trabalho). Portanto, a
cultura não forma cidadãos, pois dirige-se a cidadãos já formados. Se um professor faz
seus alunos lerem romances ou irem a exposições de arte ou de ciência, o objetivo aí
não é cultural e sim educativo: o que o professor deseja é formar cidadãos capazes de
fruir a cultura, de pensar, de apreciar o belo, enfim, de ter senso crítico, e não apenas
mão de obra dócil e robotizada para o mercado de trabalho. Em resumo, escritores,
poetas, dramaturgos, pintores, escultores, músicos, filósofos, cientistas, pensadores, não
criam seus discursos para serem usados em sala de aula (embora possam sê-lo), mas
para serem fruídos pelos membros da sociedade.

6. Características da cultura stricto sensu


Uma explicação mais detalhada do que vem a ser a cultura em sentido estrito se
encontra no capítulo 6 da bibliografia básica. No entanto, podemos resumir assim suas
características:

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• todas as práticas culturais são discursos, isto é, atos de comunicação e bens
simbólicos;
• são atividades públicas, dirigidas à sociedade como um todo, e de livre acesso a
qualquer cidadão;
• são atividades não utilitárias;
• são um fim em si mesmas e não um meio para atingir outros fins;
• servem fundamentalmente para proporcionar prazer, no sentido mais geral da
palavra;
• diferem do simples divertimento porque exigem um talento inato e o domínio de
uma técnica específica, adquirida pelo aprendizado.

Resumindo, a cultura é o conjunto das atividades que Rubem Alves chama de


“brinquedos”, por oposição às “ferramentas” (atividades utilitárias), e que são dirigidas
a um público irrestrito por alguém que tem especial aptidão para praticá-las. Essa
definição engloba perfeitamente tudo aquilo que intuitivamente concebemos como
produtos culturais: romances, contos, poemas, livros de divulgação científica, ensaios
filosóficos, estéticos e críticos, livros-reportagem, biografias, memórias, crônicas,
exposições de arte ou de ciência, exposições temáticas (por exemplo, sobre um
movimento musical), shows de música ou dança, peças teatrais, seções de cinema,
espetáculos circenses, palestras de popularização científica ou filosófica, obras
arquitetônicas de valor artístico, obras paisagísticas, performances, intervenções
urbanas, grafittis (não confundir com pichação), CDs e DVDs de música, DVDs de
cinema, álbuns de artes plásticas, histórias em quadrinhos, competições esportivas,
palestras de conteúdo humanístico (por exemplo, um escritor falando sobre sua obra,
um religioso ou estudioso da religião explicando publicamente uma doutrina – não
confundir com pregação religiosa!), documentários de TV sobre temas científicos,
artísticos, filosóficos ou humanísticos, o folclore, o Carnaval, as festas populares e
religiosas, e assim por diante.
Decorre dessa definição o fato, surpreendente para muitos, de que muitas
manifestações artísticas tidas como vulgares, popularescas ou “brega”, como o rap, o
axé, a pornochanchada, a telenovela e outras pertencem à cultura tanto quanto as formas
mais elevadas de arte. Isso por que estamos partindo de um conceito objetivo de cultura,
calcado em juízos de fato e não em juízos de valor, que, aliás, não têm nenhuma
relevância científica. A crença de que Beethoven é cultura, mas Ivete Sangalo não,
resulta de uma visão subjetiva e preconceituosa de quem se coloca acima do bem e do
mal, elevando a sua opinião pessoal ao status de verdade suprema. A preferência por
este ou aquele artista é uma mera questão de gosto e não uma constatação científica.
Mas, se todas as manifestações elencadas mais acima fazem parte da cultura, por
outro lado, um livro ou palestra sobre prevenção de doenças pode ter conteúdo
científico, mas não é cultura. Alguém que escreva poemas ou pinte quadros e nunca os
exponha ou publique não está fazendo cultura; alguém que cante em festas de
aniversário mas nunca tenha se apresentado numa casa de shows ou gravado um disco
também não produz cultura. Fica claro, então, que a cultura, além de ser discursiva, tem
de ser pública e distrativa. Além disso, ela exige talento e técnica para ser feita: é o que
a distingue do puro entretenimento, como certos reality shows e gincanas de TV, que
são discursivos, públicos e distrativos, mas não exigem dos participantes nenhum
talento inato ou uma técnica que tenha exigido anos de aprendizado e aperfeiçoamento.

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Ao mesmo tempo, muitas atividades utilitárias, como a medicina e o direito,
exigem talento e técnica, mas ou não são discursivas, ou não são públicas, ou não são
distrativas, portanto não fazem parte da cultura stricto sensu – embora façam
legitimamente parte da cultura lato sensu.

7. A função pragmática e a função hedônica


Uma explicação pormenorizada das funções pragmática e hedônica se encontra nos
capítulos 3 (p. 34) e 9 (p. 92) da bibliografia básica. Sua leitura é muito importante para
a compreensão deste tópico, que é a espinha dorsal de todo o módulo. Vamos aqui fazer
apenas um breve resumo.
A função pragmática ou utilitária (que, seguindo a feliz denominação de Rubem
Alves, podemos chamar de função-ferramenta) consiste em fazer não ter dor, isto é,
solucionar problemas, facilitar a vida.
Já a função hedônica ou distrativa (vamos chamá-la de função-brinquedo) tem o
objetivo de fazer ter prazer, ou seja, divertir, entreter, emocionar.

A função pragmática se divide em sete tipos, a saber:

1. Função vital (fazer poder ser = possibilitar a vida): manutenção, preservação e


restauração da vida e da saúde; proteção contra ameaças à vida e à integridade
física, garantia da sobrevivência, alívio da dor física, proteção, segurança: alimento,
medicina, remédios, polícia, forças armadas, etc. Exemplos de discurso verbal
dotado desta função são as interjeições “Cuidado!” e “Socorro!” e as garrafas de
náufrago.

2. Função motivacional (fazer querer ser = motivar, apoiar): alívio das tensões e da
dor emocional; amparo, aconchego, motivação: psicoterapias, aconselhamento,
palestras motivacionais, livros de autoajuda, calendários da Seicho-No-Iê, etc.

3. Função instrumental (fazer poder fazer = facilitar): facilitação ou viabilização de


tarefas, redução do esforço, aumento do conforto e da produtividade: tecnologia,
máquinas, eletrodomésticos, indústria, veículos, meios de comunicação, utensílios,
móveis, serviços em geral, etc. (Obs.: até os instrumentos musicais e brinquedos
entram nessa categoria, pois eles são meios, instrumentos, e não fins.)
É difícil encontrar textos com função estritamente instrumental.

4. Função normativa (fazer dever [não] fazer = disciplinar): estabelecimento de regras


para a execução das atividades humanas a fim de preservar direitos e manter a
ordem: leis, normas de conduta, ética, moral, regulamentos, estatutos, contratos,
regras esportivas, etc.

5. Função instrutiva (fazer saber fazer = ensinar, instruir): transmissão de


competências para a vida social, a realização de tarefas e a sobrevivência:
educação, manuais de instruções, receitas culinárias, consultoria, etc. (Obs.: até o
ensino de práticas hedônicas, como tocar piano, entra nessa função.)

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Os exemplos mais acabados desta função são os livros didáticos e os manuais de
instruções, mas até o Kama Sutra tem função instrutiva.

6. Função informativa (fazer saber para fazer poder = informar, alertar): transmissão
de informações para a prevenção da dor e a realização das demais funções:
jornalismo informativo, informes de utilidade pública, informações úteis, placas
informativas e de sinalização, etc.

7. Função persuasiva (fazer querer [não] fazer = induzir): indução à ação ou à tomada
de posição; formação de opinião: política, publicidade, análise econômica,
conselhos, jornalismo opinativo, literatura panfletária ou engajada, etc. (Obs.: esta
função pode ser pragmática para o receptor ou para o próprio emissor, como na
publicidade.)

A função hedônica se divide em quatro tipos: estética (ou poética), lúdica (ou
dramática), epistêmica (ou noética) e mística (ou mágica). Esta última é a única que não
pode ser produzida diretamente pelo discurso, pois corresponde ao prazer do transe
místico, do estado de graça. Muitos místicos atingem esse estado, chamado de epifania,
nirvana, estado totalizante, consciência expandida e muitas outras denominações, por
meio de jejuns, meditação, ingestão de alucinógenos e mesmo por estímulos sensoriais
muito fortes (luzes intensas piscando, som repetitivo e muito alto, etc.). É possível
vivenciar esse estado de transe num culto religioso ou num show de rock, mas em todos
os casos os estímulos provêm de uma das outras três funções hedônicas.
Vejamos então as funções estética, lúdica e epistêmica.

1. Função estética (causar prazer por meio de sensações): na função estética, os


estímulos são sensoriais e produzem o prazer dos sentidos. Seu critério de validação
é a oposição belo x feio: o que causa o prazer são estímulos visuais, auditivos,
táteis, olfativos e/ou gustativos prazerosos. Portanto, o discurso dotado dessa
função busca a beleza e proporciona prazer pela exibição do belo.
Os discursos, tanto verbais quanto não verbais, cuja função principal é a estética
costumam ser “descritivos”, como um poema lírico que descreve estados de alma
ou uma pintura que retrata uma paisagem, um ambiente, uma pessoa ou uma cena.

2. Função lúdica (causar prazer por meio de sentimentos): esta função parte da
existência de um conflito que se desenrola no tempo e pode ter vários desfechos. A
luta do bem contra o mal (por exemplo, polícia x bandido), uma história de amor
(mocinho tentando conquistar a mocinha), uma disputa judicial (enredos como o de
Kramer vs. Kramer, de Avery Corman, ou QB VII, de Leon Uris) ou uma disputa
esportiva (uma partida de futebol, uma prova de Fórmula Um). Em todos esses
casos, há a busca de solução de um conflito fictício, e o prazer do receptor do
discurso (leitor, espectador) está na expectativa em relação ao desfecho, que se
intensifica na medida em que ele se identifica com um dos sujeitos do conflito, isto
é, “torce” por um dos personagens (ou por um dos pilotos, ou pelo seu time de
devoção). Portanto, o discurso lúdico desperta sentimentos de amor e ódio, e
produz um prazer sentimental, ou prazer do coração. Seu critério de validação é a
oposição ganhar x perder.

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O discurso lúdico, verbal ou não verbal, é “narrativo”, pois sempre conta uma
história formada de lances apresentados em ordem cronológica (as cenas sucessivas
de uma peça, as jogadas de uma partida, etc.), que narra a busca da conquista do
objeto de valor (o ser amado, o poder, a vitória, e assim por diante).
A base do prazer lúdico está no efeito surpresa, na expectativa, no desfecho
inesperado, seja de um filme, de uma corrida ou de uma anedota. É o ludus, ou
jogo, de que fala Johan Huizinga.

3. Função epistêmica (causar prazer por meio de pensamentos): a função epistêmica é


a que faz saber e faz pensar. Baseia-se no princípio da satisfação da curiosidade e
representa o prazer da mente. É o discurso da busca do conhecimento, ou busca da
verdade, que pode se dar por meio da investigação (científica, jornalística) e da
reflexão. Seu critério de validação é, portanto, a oposição verdadeiro x falso.
O prazer epistêmico provém da revelação daquilo que desejamos saber, quer seja a
origem do universo, a biografia de uma personalidade ou os mexericos e fofocas
sobre a vida íntima das celebridades do show business. Está em geral ligado a
discursos “dissertativos”, como ensaios, crônicas, palestras de divulgação científica,
etc.
Todo discurso epistêmico é em parte informativo (fazer saber para dar prazer), em
parte persuasivo (fazer crer para dar prazer). Por exemplo, livros sobre a teoria da
evolução, como A origem das espécies, de Charles Darwin, ou O maior espetáculo
da Terra, de Richard Dawkins, apresentam fatos e, ao mesmo tempo, procuram
usá-los como argumentos em favor de uma tese. Alguns (por exemplo, biografias,
livros-reportagem) são predominantemente informativos, enquanto outros (ensaios
filosóficos e científicos) são predominantemente persuasivos. Em todo caso, é bom
não confundir a informação e a persuasão na função epistêmica com as funções
pragmáticas persuasiva e informativa, pois a função epistêmica não pretende ser útil
e sim agradável.
O discurso epistêmico persuasivo (sustentação de uma tese) corresponde à instância
artística da autoria, ao passo que o informativo corresponde à instância da
interpretação.

As quatro funções hedônicas podem também ser relacionadas aos quatro processos
cognitivos da mente humana (sensação, intuição, razão e emoção), descritos pelo
psicanalista suíço Carl Gustav Jung.
A cultura é uma forma – ou melhor, um conjunto de formas – de entender o mundo.
Enquanto as atividades utilitárias agem sobre a realidade, a cultura a contempla para
tentar entendê-la e não necessariamente para mudá-la. (Quem quer fazer uma revolução
deve escrever um manifesto, não um romance ou um ensaio.) Desse modo, a cultura
fornece subsídios para que outras práticas mudem o mundo, enquanto ela só pretende
mostrar a realidade tal qual ela é – ou poderia ser.
O capítulo 8 de nossa bibliografia básica explica detalhadamente essa relação entre
os quatro processos cognitivos, os quatro grandes sistemas de explicação do mundo (a
arte, a ciência, a filosofia e a religião) e os quatro tipos básicos de prazer (estético,
lúdico, epistêmico e místico), que, por sua vez, remetem aos quatro modos de percepção
da realidade – os quatro “olhos” – definidos por São Boaventura: o olho da carne, o
olho do coração, o olho da mente e o olho do espírito.

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Assim, as sensações visuais, auditivas, táteis, olfativas e gustativas, bem como a
sugestão dessas sensações produzida pela palavra num texto descritivo, proporcionam
um prazer que, por ser sensorial, é fundamentalmente orgânico (e daí poder-se dizer que
é carnal e sensual). Portanto, a função estética produz o prazer da carne.
A função lúdica propõe um conflito entre sujeitos em busca de um mesmo objeto de
valor. Essa disputa desperta emoções de amor e ódio, bem como uma expectativa
constante em relação aos próximos passos da narrativa. (É por isso que as telenovelas se
dividem em capítulos, que sempre terminam no clímax dramático, deixando a resolução
para o capítulo seguinte.) É o que se chama tecnicamente de estrutura polêmica do
discurso. Diante da identificação positiva ou negativa do público em relação a cada um
dos sujeitos em jogo e também de sua permanente expectativa pelo desfecho é que se
pode dizer que a função lúdica se dirige ao coração. É por isso que o torcedor se refere
ao seu time como “o time do coração” (e não do corpo, da cabeça, do espírito).
É interessante notar que, enquanto uma canção costuma provocar prazer estético,
muitos cantores (especialmente os pop stars) provocam no público um prazer lúdico:
muitos fãs se apaixonam por seus ídolos.
A função epistêmica causa prazer por meio da informação – e também da reflexão.
Por isso, ela faz saber e não raro faz pensar. O prazer de saber se aplica tanto à leitura
de um livro de ciência quanto à de uma revista de fofocas. Portanto, não se deve
entender o saber como erudição, mas simplesmente como informação. Em ambos os
casos, o processo cognitivo ativado é o pensamento, por isso se diz que o prazer
epistêmico é o prazer da mente.
Por fim, o prazer do transe místico, do estado de graça, aquela epifania vivenciada
por Santa Teresa de Ávila ou pelos iogues e monges é o prazer do espírito. Como foi
dito anteriormente, é o único tipo de prazer que não pode ser induzido diretamente pelo
discurso, sendo sempre um corolário de algum dos outros tipos de prazer.

Sistematizando as funções hedônicas, teremos o seguinte quadro:

TIPO DE PROCESSO OPOSIÇÃO OBJETO DE


FUNÇÃO TIPO DE PRAZER
ESTÍMULO COGNITIVO FUNDADORA BUSCA

ESTÉTICA Sensações Sensação da carne belo x feio Beleza


ganhar x
LÚDICA Sentimentos Emoção do coração Vitória
perder
verdadeiro x
EPISTÊMICA Pensamentos Razão da mente Verdade
falso
indivíduo x
MÍSTICA Sensações Intuição do espírito Plenitude
Todo

Por exemplo, na telenovela Caminho das Índias, da Rede Globo de Televisão,


pudemos encontrar as seguintes funções:
• Função estética na trilha sonora, nas danças, nos figurinos, nos cenários, nas
paisagens do Rio de Janeiro, da Índia e de Dubai, e na beleza das atrizes.
• Função lúdica na trama da novela e seus vários conflitos.

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• Função epistêmica na divulgação da cultura indiana e também na crítica implícita
aos valores culturais hindus, mostrados como retrógrados sob o nosso ponto de
vista ocidental.
• Função informativa nos esclarecimentos sobre a esquizofrenia e outras doenças
mentais.
• Função motivacional no encorajamento a quem sofre de doenças mentais.
• Função pragmática persuasiva no merchandising do Banco Itaú e da Natura,
discretamente inseridos em alguns capítulos da novela.

Se colocarmos numa tabela o conjunto de todos os objetos da nossa realidade e de


todas as atividades humanas, teremos a seguinte situação:

Ciências
Fazer pensar
Atividades hedônicas Humanidades
Cultura stricto sensu públicas que exigem
aptidão e aprendizado Artes
Fazer sentir
Esportes
Cultura
lato Entretenimento não Atividades hedônicas, públicas ou não, que não exigem aptidão
sensu cultural nem aprendizado: cantar no chuveiro, reality show, etc.
Atividades pragmáticas que exigem aptidão e aprendizado, desde
Atividades técnicas
as braçais até as universitárias: medicina, carpintaria, etc.
Atividades pragmáticas que não exigem aptidão nem aprendizado
Atividades corriqueiras
especial: escrever, dirigir, almoçar, conversar, tomar banho, etc.
Natureza Tudo o que não é criação humana

Focando agora exclusivamente as atividades distrativas (como se déssemos um


close nas primeiras linhas da tabela anterior), teremos:

Ciências: livros, artigos, palestras, documentários e exposições de


divulgação científica
Fazer
pensar Humanidades: ensaios filosóficos, estéticos ou críticos, livros
jornalísticos, biografias, exposições jornalísticas, palestras literárias,
Cultura stricto sobre religião ou mitologia, etc.
sensu
Artes: literatura de ficção, HQs, exposições de artes plásticas, CDs,
Fazer DVDs e shows de música, espetáculos de dança, ópera, performances,
sentir dramaturgia (cinema, teatro, TV), etc.
Esportes: exibição pública de competições esportivas
Gincanas, programas de auditório, concursos de beleza, jogos de azar,
Entretenimento não
passatempos, brigas ou corridas de animais, revistas de variedades, colecionismo,
cultural
turismo, recreação, etc.

Observe em quais categorias da tabela acima os textos distrativos se encaixam.

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8. Resumindo
Cultura, em sentido amplo, é tudo o que é aprendido. Costuma-se dizer que é ela o
que nos torna humanos, pois é o que nos distingue do restante da natureza. Na verdade,
a técnica (que podemos identificar à tecnologia) nos permitiu dominar a natureza. E os
animais, hoje já se sabe, também possuem técnica e a transmitem a seus semelhantes
por ensinamento. O uso da inteligência para sobreviver não é, pois, exclusividade
humana. Mas só o homem foi capaz de utilizar a inteligência para brincar. Portanto, o
que nos torna realmente humanos não é a cultura lato sensu, mas a cultura stricto sensu:
aquilo que não serve para nada é o que torna nossa vida realmente bela.
Portanto, a cultura em sentido estrito é a veiculação pública, sem fins utilitários, de
discursos elaborados com talento e técnica para fazer pensar e/ou fazer sentir.

Exercício

Analise os textos a seguir e classifique-os nas categorias ficcional, não ficcional,


distrativo, utilitário, cultural ou não cultural. Determine também que tipos de função
hedônica e/ou pragmática ocorrem. Caso haja mais de uma, tente colocá-las em ordem
decrescente de importância. Lembre-se de que uma delas é a principal e as demais são
secundárias e que nem todo texto possui todas as funções.

A CAIXA DE BRINQUEDOS
Rubem Alves

A idéia de que o corpo carrega duas caixas – uma caixa de ferramentas, na mão
direita, e uma caixa de brinquedos, na mão esquerda – apareceu enquanto eu me
dedicava a mastigar, ruminar e digerir santo Agostinho.
Como você deve saber, eu leio antropofagicamente. Porque os livros são feitos com
a carne e o sangue daqueles que os escrevem. Dos livros, pode-se dizer o que os
sacerdotes dizem da eucaristia: “Isso é o meu corpo; isso é a minha carne”.
Santo Agostinho não disse como eu digo. O que digo é o que ele disse depois de
passado pelos meus processos digestivos. A diferença é que ele disse na grave
linguagem dos teólogos e filósofos. E eu digo a mesma coisa na leve linguagem dos
bufões e do riso.
Pois santo Agostinho, resumindo o seu pensamento, disse que todas as coisas que
existem se dividem em duas ordens distintas. A ordem do “uti” (ele escrevia em latim) e
a ordem do “frui”. “Uti” significa o que é útil, utilizável, utensílio. Usar uma coisa é
utilizá-la para obter uma outra coisa. “Frui” significa fruir, usufruir, desfrutar, amar uma
coisa por causa dela mesma.
A ordem do “uti” é o lugar do poder. Todos os utensílios, ferramentas, são
inventados para aumentar o poder do corpo. A ordem do “frui” é a ordem do amor —
coisas que não são utilizadas, que não são ferramentas, que não servem para nada. Elas
não são úteis; são inúteis. Porque não são para serem usadas, mas para serem gozadas.
Aí você me pergunta: quem seria tolo de gastar tempo com coisas que não servem para
nada? Aquilo que não tem utilidade é jogado no lixo: lâmpada queimada, tubo de pasta
dental vazio, caneta sem tinta…

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Faz tempo, preguei uma peça num grupo de cidadãos da terceira idade. Velhos
aposentados. “Inúteis” – comecei a minha fala solenemente. “Então os senhores e as
senhoras finalmente chegaram à idade em que são totalmente inúteis…” Foi um
pandemônio. Ficaram bravos, me interromperam e trataram de apresentar as provas de
que ainda eram úteis. Da sua utilidade dependia o sentido de suas vidas.
Minha provocação dera o resultado esperado. Comecei, mansamente, a argumentar.
“Então vocês encontram sentido para suas vidas na sua utilidade. Vocês são
ferramentas. Não serão jogados no lixo. Vassouras, mesmo velhas, são úteis. Uma
música do Tom Jobim é inútil. Não há o que fazer com ela. Os senhores e as senhoras
estão me dizendo que se parecem mais com as vassouras que com a música do Tom…
Papel higiênico é muito útil. Não é preciso explicar. Mas um poema da Cecília Meireles
é inútil. Não é ferramenta. Não há o que fazer com ele. Os senhores e as senhoras estão
me dizendo que preferem a companhia do papel higiênico à do poema da Cecília…” E
assim fui acrescentando exemplos. De repente os seus rostos se modificaram e
compreenderam… A vida não se justifica pela utilidade, mas pelo prazer e pela alegria
– moradores da ordem da fruição. Por isso Oswald de Andrade, no “Manifesto
Antropofágico”, repetiu várias vezes: “A alegria é a prova dos nove, a alegria é a prova
dos nove…”.
E foi precisamente isso o que disse santo Agostinho. As coisas da caixa de
ferramentas, do poder, são meios de vida, necessários para a sobrevivência (saúde é uma
das coisas que moram na caixa de ferramentas. Saúde é poder. Mas há muitas pessoas
que gozam de perfeita saúde física e, a despeito disso, se matam de tédio). As
ferramentas não nos dão razões para viver; são chaves para a caixa dos brinquedos.
Santo Agostinho não usou a palavra “brinquedo”. Sou eu quem a usa porque não
encontro outra mais apropriada. Armar quebra-cabeças, empinar pipa, rodar pião, jogar
xadrez ou bilboquê, jogar sinuca, dançar, ler um conto, ver caleidoscópio: tudo isso não
leva a nada. Essas coisas não existem para levar a coisa alguma. Quem está brincando já
chegou. Comparem a intensidade das crianças ao brincar com o seu sofrimento ao fazer
fichas de leitura! Afinal de contas, para que servem as fichas de leitura? São úteis? Dão
prazer? Livros podem ser brinquedos? O inglês e o alemão têm uma felicidade que não
temos. Têm uma única palavra para se referir ao brinquedo e à arte. No inglês, “play”.
No alemão, “spielen”. Arte e brinquedo são a mesma coisa: atividades inúteis que dão
prazer e alegria. Poesia, música, pintura, escultura, dança, teatro, culinária: são
brincadeiras que inventamos para que o corpo encontre a felicidade, ainda que em
breves momentos de distração, como diria Guimarães Rosa.
Esse é o resumo da minha filosofia da educação. Resta perguntar: os saberes que se
ensinam em nossas escolas são ferramentas? Tornam os alunos mais competentes para
executar as tarefas práticas do cotidiano? E eles, alunos, aprendem a ver os objetos do
mundo como se fossem brinquedos? Têm mais alegria? Infelizmente, não há avaliações
de múltipla escolha para medir alegria…

CULTURA E SOCIEDADE NO BRASIL


Renato Janine Ribeiro

A questão mais complicada – e fundamental – está


em definir os princípios: como entendemos a
construção humana do humano.

Mais do que respostas, procurarei aqui, tratando de cultura e de Brasil, localizar


questões. Procuraremos pensar um pouco a idéia de cultura e, depois, o papel que ela

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pode cumprir numa sociedade como a brasileira, em meio a cujos problemas a
desigualdade social ocupa posição relevante. […]
Começarei por uma distinção quase canônica, mas à qual convém retomar, entre
dois conceitos de cultura. Um – mais tradicional – se refere à cultura elaborada, que
seriam as belas artes, a cultura dita de elite, a que merece mais louvor e destaque. Não
penso, porém, que hoje se possa dizer que a cultura que se discute nos suplementos
culturais – os “segundos cadernos” dos jornais – seja propriamente de elite. Ela se
tornou em larga medida uma cultura voltada à massa. Aliás, o século que está perto de
se encerrar começou com a primeira grande arte maciçamente industrial, que está aqui
representada por Carlos Reichenbach – o cinema – e mais recentemente veio ter na TV
e em outras produções. Por isso, a distinção que ainda presenciamos, entre a cultura de
elite e um conceito mais popular de cultura, já não me parece muito pertinente em nosso
tempo.
É curioso caracterizar os cadernos de cultura pelo segundo número, pela segunda
letra. Isso, ou o nome “Ilustrada”, do caderno da “Folha de S. Paulo”, parece sempre
indicar a cultura como uma coisa menor – segunda, secundária. Teríamos a parte séria
dos jornais e depois a parte mais divertida, distraída, que não tem uma pauta
determinada ou óbvia. A pauta da primeira página supõe-se que sejam as grandes
notícias do momento; espera-se ou acredita-se que entre os jornais haja uma certa
coincidência do que noticiarão na primeira página: que o ditador do Zaire fugiu, que a
Vale do Rio Doce foi vendida. Esses fatos, é mais ou menos consensual, terem ocorrido,
embora hoje os jornais noticiem coisas inteiramente diferentes sobre o que aconteceu
com a Vale.
Assim, a primeira página segundo a “Folha” é uma coisa e segundo o “Estado de S.
Paulo” pode receber tratamento distinto, mas expõem pelo menos as mesmas notícias ou
temas principais. É interessante, contudo, que nos dois jornais a parte cultural seja posta
como um excesso, como um a mais, quase irrelevante — até porque essa necessidade
que caracteriza a primeira página, essa idéia de que ela é pautada e agendada com base
na realidade, nas prioridades do mundo, contrasta com a arbitrariedade, pelo menos
relativa, dos cadernos culturais, que podem em mais ampla medida tratar do assunto A
ou B. Todavia, é bastante contestável inferir disso que a cultura seja esse excesso ou, o
que no caso dá na mesma, esse déficit em importância relativamente ao que é prioritário
e essencial na sociedade. Apenas observo que ela é apresentada assim. A longo prazo, é
muito contestável o efeito de seriedade que a parte de economia possa ter, essa que é a
parte séria por excelência, a suposta infra-estrutura da sociedade,
Pode ser, porém, que valha a pena insistir no contraste entre o sério e o não-sério.
Faz parte da cultura que ela seja sobretudo alvo de um prazer, e de algo que extrapola a
seriedade. O que vai além da necessidade é associado, tradicional e filosoficamente, à
liberdade. A cultura é, pois, do mundo da liberdade, ao passo que a economia e a
política tratadas nos jornais pertencem ao mundo da necessidade. (Necessidade, aqui,
pode dizer-se em dois sentidos, o do inglês need, carência, e o de necessity, uma
necessidade imperiosa, a lógica mesma das coisas ou dos processos). Ter fome é
carência, mas comer com prazer não é – é algo a mais, um excesso. A arte, e a cultura
em geral, ficam do lado desse excesso, desse gozo. E é bom lembrar que palavras que
em outras línguas definem a relação com a arte, como o inglês to enjoy e o francês jouir
em português são traduzidas, vezes sem conta, pelo anódino “fruir” – quando seria
muito mais interessante compreendê-los como “gozar”. O termo fruição veio conotar,
em português, uma distância entre o sujeito e o objeto: fruo de um quadro ou de um
filme mais ou menos afastado dele, sem me envolver, sem me perder. Já o gozo tem a
conotação, não só de um prazer intenso, exaltado, como o do orgasmo, ao qual se

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associa, mas também e sobretudo de uma perda de si, de uma entrega, de uma ruptura
dos afastamentos sujeito/objeto.
Estes são os aspectos que a meu ver merecem realce num primeiro conceito de
cultura. Contudo, em contraponto a este, desenvolve-se, há certo tempo, a idéia de um
segundo conceito: a idéia antropológica de cultura. Esta passa por alguns pontos
básicos: primeiro, a compreensão de que o ser humano não tem uma natureza que o
define – ou, em linguagem de hoje, um código genético que resuma a sua
complexidade. Porque não somos apenas nossos genes, somos fruto de toda uma
construção. Talvez uma das idéias-chave de nosso tempo, mas nem por isso consensual,
seja esta: o ser humano é uma criação do próprio ser humano. Ele não tem uma
determinação tão precisa quanto os animais, para quem o instinto é muito forte e que,
por isso, o seguem de forma sistemática, sendo capazes, entre outras coisas, de perceber
o perigo melhor que nós.
Se não tivéssemos sido educados na infância – bem ou mal, pouco importa –, não
teríamos sobrevivido, não estaríamos aqui. Somos uma construção humana. Essa idéia,
que se desenvolve desde o século XVII e XVIII – segundo a qual o homem não está
previamente determinado por completo – volta hoje à cena, já que os avanços do Projeto
Genoma, que é a grande aposta científica deste fim de século, no sentido de decifrar
todo o mapa genético humano, fazem ressurgir a pergunta sobre o que é adquirido pela
educação e pela cultura e o que já está marcado pela cultura, pelos genes, pelo
patrimônio – isto é, literalmente, pelo que nos chega de nossos pais. Essa questão é das
mais interessantes, até porque contesta o alcance da cultura e exige de nós que o
compreendamos melhor, mostrando que papel ele cumpre nessa constante, infindável
invenção humana do humano.
É interessante que um dos precursores desta idéia mais abrangente de cultura – a de
que a cultura não é apenas a produção artística mais consagrada ou grifada, mas
qualquer coisa que o ser humano faz, na medida em que escapa à determinação da
natureza – tenha sido o filósofo Rousseau, no século XVIII. Por que será isso
interessante? Porque Rousseau começa por uma crítica bastante severa ao que seriam as
artes e os saberes de elite, em seu “Discurso sobre as ciências e as artes”, com o qual,
em 1750, estréia triunfalmente na república das letras. Nesta e em outras obras ele
também manifesta a convicção de que o povo simples, por estar perto da natureza, tem
qualidade superior aos grandes deste mundo. Isso levará mais tarde, ao longo do século
seguinte, a toda uma série de exaltações, a maior parte delas de teor romântico: ao papel
da mulher em face do homem, ao da criança em face do adulto, ao da bruxa – e penso
no belíssimo livro do historiador francês do século XIX, Michelet, “A Feiticeira” – em
face do saber racional, do velho em face… Em suma, todos os que seriam marginais,
dissidentes, teriam – por isso mesmo – a qualidade distintiva de estar mais perto de uma
produção original, mais pura, sem os defeitos da cultura de elite.
Ora, outra tese de Rousseau, e que tem bastante a ver com nossa discussão, é a
necessidade de reforçar as diferenças. Para ele, o grande perigo é o que poderíamos
chamar o “mau cosmopolitismo”, que se expressa por exemplo no fato de todas as
grandes capitais se assemelharem. A proposta de reforçar as diferenças leva a uma
discussão das mais pertinentes, sobre o papel das identidades: o que é a cultura, na
preservação ou não de identidades nacionais, regionais ou de qualquer outro grupo?
Num momento de mundialização das relações culturais, em que passamos a incluir no
campo da cultura elementos e questões que tradicionalmente não pertenciam a ela, e em
que a presença da cultura de massas norte-americana é muito forte, como pensar as
diferenças e seu reforço?

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O conceito de identidade nacional foi muito criticado no Brasil, especialmente por
Dante Moreira Leite, em seu importante livro “O caráter nacional brasileiro”, e houve
boas razões para isso, antes de mais nada políticas. A expressão “identidade nacional”
geralmente remetia a uma espécie de diferença natural que teríamos em face de outros
povos – e não é à toa que o Brasil confere tanta importância à sua natureza na imagem
que tem e que divulga de si. Seja para divulgar nosso turismo, seja, paradoxalmente,
para difundir nossa cultura, o elemento natural é ressaltado. Vejam os posters do Brasil
no exterior: ou são imagens da natureza ou são de corpos femininos no carnaval – isto é,
também de uma natureza, também de algo que se oferece. Tive a experiência de receber
postais do que amigos europeus consideram belo em seus países – palácios, museus,
castelos –, enquanto os que eu podia encontrar para lhes enviar eram de paisagens ou,
eventualmente, de índios, a seu modo também parte da natureza.
Justamente por termos uma imagem assim centrada na natureza, muito do que se
pensou sobre identidade no Brasil o foi no sentido de algo mais permanente do que
aquilo que é construído pelo homem. Ora, nas gerações mais recentes se evidenciou
como a identidade de cada um é uma conquista, é demorada e é plural. Até algumas
décadas atrás, as identidades sociais eram bastante consolidadas, o papel do homem e o
da mulher, do rico e do pobre, do jovem e do velho pareciam previamente definidos.
Hoje, porém, isso mudou. Somente pessoas que têm militância muito radical num grupo
se definem por uma coisa só – por exemplo, por seu sexo, cor, religião. Cada um de nós
tem uma opção sexual, uma cor, uma educação, convicções políticas – e o bom é que
justamente essas coisas possam contradizer-se entre si. É difícil, mas é positivo que
minhas convicções políticas, por exemplo, entrem em conflito com os valores em que
fui educado: é essa dissonância que me obriga a escolher, a pensar, a não me limitar a
seguir tal ou qual modelo.
Nisso está a importância de se contestar a idéia de identidade como um dado, como
um rótulo que nos domina. Foi este um dos ganhos mais preciosos das últimas gerações.
E ele levou a uma contestação bastante séria das idéias de identidade nacional – até
porque essa idéia acompanha um fechamento ao exterior, uma celebração de coisas que
supostamente deveriam perpetuar-se, como por exemplo o folclore que deveria ser
recuperado, expurgado de todo acréscimo e conservado sempre igual: uma busca da
pureza, totalmente descabida, porque o próprio da cultura e da invenção é serem
impuros, é serem mesclados, é receberem as coisas pelas vias e caminhos mais
diferentes e mais perversos mesmo.
Não é por acaso, pois, que as idéias de identidade nacional, de caráter brasileiro têm
sentido fortemente conservador. Falou-se tanto, por exemplo, na natureza pacata do
brasileiro, em seu caráter “cordial” – por sinal, aqui houve um célebre equívoco, porque
Sérgio Buarque de Holanda, ao definir o brasileiro como homem cordial somente quis
enfatizar a importância do coração, em contraste com a razão, na nossa psique, valendo
isso para a amizade como para a guerra. Foram intérpretes afoitos que transformaram
esse termo numa celebração da hospitalidade, recolhendo da idéia só o aspecto,
digamos, positivo, e fechando os olhos ao que nela havia de conflituoso.
É justamente essa exclusão dos conflitos que usualmente perpassa o tema da
identidade nacional. Esta passa por estável, portadora de uma harmonia social. Os
cidadãos comungam numa mesma psique, a qual cada um porta em microcosmo. Daí
que toda divergência somente possa ser pensada enquanto traição, enquanto
exterioridade a essa communitas de gente boa. Igualmente, todo problema resulta de
uma indevida interferência externa, que pode até ser expressa de boa fé, mas nem por
isso deixa de ser ilegítima. Tópicas como a dos “maus brasileiros”, de que o regime
militar abusou, somente são possíveis porque haveria os bons brasileiros, que em última

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análise são os brasileiros, os verdadeiros, e ponto final. Brasileiros são bons porque se
amoldam à sua natureza. Serão maus quando deixarem de seguir seu modo de ser. Daí à
xenofobia e a todos os males em que a metade do século foi pródiga, é só um passo.
Mas, com tudo isto, é fato que de uns anos para cá voltou a haver uma discussão
sobre identidade nacional, sobre cultura, cultura nacional etc., por vezes travada em tom
ensaístico. Isso, que parecia ter saído de moda, aparece por exemplo nas crônicas de
Luís Fernando Veríssimo, que constantemente discutem o que somos. A pergunta é
interessante. No começo deste ano de 1997, organizei uma serie de conferências no
Centro Universitário Maria Antônia, que pertence à USP, sobre a palavra democrática.
Duas belas palestras – de José Miguel Wisnik e de Jurandir Freire Costa – tocaram na
questão da identidade. Wisnik lê, num conto de Guimarães Rosa – “O famigerado” –,
que como “Grande Sertão: Veredas” é construído no confronto do jagunço com o
letrado, uma refinada discussão sobre o Brasil, e comenta que essa discussão cada vez
mais ocorre no formato literário do que no formato habitual das ciências sociais. A
questão brasileira parece estar sendo trabalhada particularmente bem pela literatura e
por suas formas.

***

Cabe então discutir o papel da identidade e da defesa de uma cultura nacional.


Devemos nos perguntar dentro de que limites estas questões têm cabimento. Embora
considerando que essa identidade é lábil, construída, em mutação, e que a impureza nela
é altamente positiva, inclusive e especialmente a que vem de fora, penso que nossos
governos foram longe demais na recusa a discutir procedimentos de defesa e
valorização do que aqui se cria. Adotamos mais a postura americana, pelo menos a de
liberação do mercado, do que a francesa, de regulação do mesmo. Na França, há uma
regulamentação muito clara de certas práticas. Por exemplo, a TV, mesmo paga, quando
transmite filmes, não pode interrompê-los mais do que uma vez para propaganda
comercial. Quando foram abertos canais privados de TV, estes foram concedidos
mediante concorrências, que levaram em conta regras gerais fixadas. Ganharam aqueles
grupos que fizeram as melhores propostas. Quando um desses grupos – Hachette –
tentou aumentar o número de minutos por hora de propaganda comercial, a resposta foi
muito clara: vocês assumiram um compromisso, cumpram-no. Não o fazendo, a
Hachette teve que entregar o canal para outro grupo.
Ora, esse é o tipo de questão que no Brasil não se coloca: ao contrário, fala-se em
desregulamentação crescente na área. Veja-se o caso do filme colorizado: na França ele
não passou tranqüilamente. E o simples fato de haver discussões amplas, de ocorrer a
exibição sucessiva da mesma película colorizada e em preto e branco, a ela se seguindo
um debate, já é significativo, mostrando, pelo menos, que a cultura pode e deve ser alvo
do escrutínio público.
Também há, na TV francesa, reserva de mercado para filmes europeus. Como os
americanos têm na exportação de entretenimento um dos itens mais rentáveis de sua
balança, evidentemente eles querem quebrar as barreiras nisso – embora, por outro lado,
não queiram reconhecer ao consumidor o direito de só comprar o produto que deseje, já
que para adquirir um filme ou o que quer que seja geralmente é preciso levar um pacote
de outras obras de menor qualidade ou apelo… De qualquer forma, a França foi muito
clara no sentido de não escancarar suas fronteiras e de exigir um tempo mínimo para o
cinema francês e/ou europeu na sua TV.
Essas questões são interessantes, e menos discutidas do que se merece entre nós.
Sem dúvida não se trata de simplesmente repetir medidas adotadas na França, onde, por

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exemplo, a produção de cinema é bem maior que a nossa. Além disso, estamos tratando
de idéias de identidade muito diferentes, conforme o país.
A França tem um senso de identidade extremamente agudo se comparado com
outros países. Sua identidade está alicerçada antes de mais nada na língua. Não temos
isso. Nossa própria língua tem um nome que não se refere a nosso país, mas a outro. Em
que medida somos nós os donos deste idioma? Esse outro país considera que a língua é
deles e o sotaque é nosso, embora sejamos mais numerosos do que eles. Por isso
mesmo, a idéia do falar correto é muito complicada para nós. O que significa o
pronome átono, por exemplo? Há uma série de regras de colocação e eu, por exemplo,
me choco com a má colocação do pronome átono, quando, por exemplo, se começa uma
frase escrita com me ou te. No entanto, no Brasil, esse pronome não é átono mas tônico
– e por isso toda a razão que há em Portugal para se priorizar a escrita de dá-me, pega-
me, para nós não existe. Entre nós, o pronome oblíquo é uma palavra separada das
outras, com tanto direito a ser pronunciada em separado quanto qualquer outra. Na
gramática lusitana, o pronome oblíquo é átono justamente porque não tem tom próprio e
precisa ser agregado a um verbo. Para nós não é o caso. E no entanto, repito, choca-me
ler (mais que ouvir) uma frase começada por esse pronome: um exemplo, entre outros
mil possíveis, da dificuldade de nos sentirmos donos de nossa língua.
Onde, então, está a identidade? Na língua certamente não é. A França inclui, em sua
idéia de identidade – tão voltada para a cultura –, até mesmo a cozinha. Onde está este
senso de identidade para nós? Esta só pode ser muito perturbada. Mas isto é uma grande
vantagem nossa, longe de ser uma desvantagem. O problema da reflexão sobre a
identidade, que procurava encontrá-la e conseguir uma boa âncora para nós, traz o risco
de que ela seja muito pesada e nos arraste para o fundo das águas: porque consiste em
tentar criar à força aquilo que não existe. O último exemplo de tentativas de construir
uma identidade assim a frio foi o plebiscito monárquico, quando se falava do rei como
alguém que daria uma identidade ao Estado, acima do governo. Isso funciona na
Inglaterra, mas fazê-lo de maneira planejada é fantasioso. É preciso, pelo menos,
comparar as idéias de identidade nacional que vigoram nos diferentes países, a fim de
entender o que é nossa ausência ou dificuldade com ela – o que reputo uma vantagem.
Os Estados Unidos, por exemplo, sequer têm língua oficial (por isso, tantos
documentos administrativos podem ser redigidos em espanhol) e dão pouquíssima
importância à língua como fator de unidade, já que lhes basta o primado do capital. Mas
isso não lhes trará dois problemas? Primeiro, uma desconsideração das coisas culturais,
que têm muitas vezes na língua sua ponta de lança, segundo, uma dificuldade enorme de
contrapor, ao peso do capital, uma política discutida de público, que limite por
considerações sociais o poder do dinheiro. Não são, seguramente, um modelo a seguir.
[…]

A DESCOBERTA DO AMOR
Fernando Brant

Meu amigo está inconsolável, um trapo, um bagaço. Carrega nas costas todo o peso
do mundo. Não consegue entender o terremoto de emoções que entrou sem avisar em
sua vida. Ele sempre esteve ali, sozinho, senhor de seu território, se abanando satisfeito
na rotina do tempo e do espaço. Nada a perturbar-lhe a tranqüilidade, o sono e as
posses. Em seu pensamento as coisas seriam simples repetições do que ele já conhece e
aceita. Surpresas às vezes aconteciam, mas nada que viesse incomodar tão seriamente a
rotina. Comer, beber, dormir e brincar eram sua única filosofia existencial.

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O que uma fêmea não faz na história de um macho? Todo o poderio do gênero que
já se chamou sexo forte se esvai diante da visão da beleza e da sedução da parceira. Ah,
como sofrem os homens, como sofremos todos nós, pequenos joguetes diante do
verdadeiro poder, o poder do carinho e da ternura delas. Ó meu Deus, quem foi que
abriu o portão da casa de meu amigo e deixou entrar aquela criatura antes não
imaginada, aquele ser tão semelhante mas diferente, aquele embriagador, sutil e
malicioso corpo a rodopiar em volta dele? Aquele andar deslizante, aquela elegância e
aquele cheiro magnífico que ele nunca experimentara?
Foram cinco dias que revolucionaram seu universo. O que era aquilo que ele nunca
soubera nem sonhara? Meu Deus, Deus existe, deve ter cogitado ele, se ele for de
cogitar.
Mas chegou uma hora, tão subitamente quanto subitamente ela surgiu, que o
mesmo portão se abriu e ela, que um dia entrara, agora saía. O espanto do começo da
aventura tornou-se minúsculo em relação ao que ele sentiu nesse momento. Ele já não
era o mesmo, já conhecia o fruto da ciência, aquele que constrói e arruína as cidades e
os impérios. Aquele que faz os homens mais felizes e mais responsáveis. O sol de
inverno se punha por trás de nuvens avermelhadas e ele se postou diante daquele portão
e ficou olhando para lá, sem entender nada, mas esperando alguma espécie de bênção ou
milagre.
Meu amigo uiva de tristeza na noite fria. O som que sai do interior de sua alma
comove o mais insensível dos humanos. A manhã e o sol chegam e ele continua
debulhando aos berros sua incompreensão, sua melancolia, sua indignação. Se era para
me tirar, por que me dar? Se era para sofrer, por que conhecer? Eu me aproximo dele e
acaricio seu corpo triste com minhas mãos e meus pés.
Ele sente um alívio, eu sinto em sua atitude, em sua respiração. É apenas um
consolo para ele que conheceu a suavidade da Melanie, a Mel que adoçou cinco de seus
dias e se foi. Meu cachorro não sabe que o tempo cura as feridas e que um dia, talvez,
ela volte.

A CIÊNCIA CONTRA O RACISMO


Fernando Brant

“Com a razão nunca entendi / Com o coração menos então / O preconceito não /
Sou incapaz de discriminação / Seja de cor ou seja sexual / Seja de idéia ou seja
nacional ao preconceito eu digo não.” Estes são os versos iniciais da canção
Preconceito, que fiz em parceria com Robertinho Brant e está no disco Lugares. Eles
revelam minha incompreensão absoluta com o fato de pessoas se julgarem melhores do
que outras pelo simples fato de terem cor de pele diferente, serem de sexo diferente,
terem nascido em local diverso, possuírem mais bens materiais e assim por diante.
Minha intuição e meus parcos conhecimentos sempre me indicaram que os traços
físicos do ser humano são determinados pelas condições do lugar em que se vive: assim,
a pele tornou-se mais escura nas pessoas que vivem nos territórios plenos de sol e mais
clara naquelas que moram em terras frias e com pouca luz solar; assim, o nariz avança
nos lugares em que o ar é rarefeito e as orelhas crescem quando chega nos idosos a
dificuldade de escutar. O processo é lento, secular, mas óbvio. Sempre considerei que a
pele é somente um verniz que encobre nossos corpos de iguais. Quando a ciência
demonstrou, com descobrimentos arqueológicos, que os primeiros homens vieram da
África, que somos todos africanos, fiz minha festa interior. A inteligência humana
comprovava a ignorância e imbecilidade de todas as teorias racistas. Enterravam-se as

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idéias e práticas nazistas e fascistas. Desmascaravam-se todas essas pessoas ditas
civilizadas e que vivem em nosso meio, aqui no Brasil e no mundo, que tratam com
desprezo, em seu cotidiano, os que têm pele mais escura. A ciência existe exatamente
para trazer conhecimento e espantar a ignorância. Foi assim quando Charles Darwin nos
revelou a Teoria da Evolução, quando Galileu afirmou que a Terra é que girava em
torno do Sol, e não o contrário.
Agora a genética vem reforçar o que Darwin descobriu no século passado e os
estudos arqueológicos indicaram há poucos anos. O conceito de raça não tem base
genética. Negros, brancos, índios e asiáticos – todos os humanos, diz a ciência – têm
99,99% de genes iguais. A cultura e o meio ambiente é que são responsáveis pelas
diferenças entre nós. Svante Pääbo, cientista alemão, revela que os negros somam um
número de mutações genéticas superior ao encontrado em todos os habitantes do mundo
juntos. A razão é que a África foi o berço da humanidade.
E arremata, para desespero de todos os racistas do mundo: “No fundo todos somos
africanos; todos já residimos na África.”
Apenas 0,01% separa a informação genética de Maria – loura, branca, olhos azuis –
da que forma João – preto, cabelos pretos e olhos puxados. De posse desses dados
científicos, saio pelas ruas para abraçar meus semelhantes.

QUANTO NÓS MERECEMOS?


Lya Luft

O ser humano é um animal que deu errado em várias coisas. A maioria das pessoas
que conheço, se fizesse uma terapia, ainda que breve, haveria de viver melhor. Os
problemas podiam continuar ali, mas elas aprenderiam a lidar com eles.
Sem querer fazer uma interpretação barata ou subir além do chinelo: como qualquer
pessoa que tenha lido Freud e companhia, não raro penso nas rasteiras que o
inconsciente nos passa e em quanto nos atrapalhamos por achar que merecemos pouco.
Pessoalmente, acho que merecemos muito: nascemos para ser bem mais felizes do
que somos, mas nossa cultura, nossa sociedade, nossa família não nos contaram essa
história direito. Fomos onerados com contos de ogros sobre culpa, dívida, deveres e…
mais culpa.
Um psicanalista me disse um dia:
– Minha profissão ajuda as pessoas a manter a cabeça à tona d’água. Milagres
ninguém faz.
Nessa tona das águas da vida, por cima da qual nossa cabeça espia – se não
naufragamos de vez –, somos assediados por pensamentos nem sempre muito
inteligentes ou positivos sobre nós mesmos.
As armadilhas do inconsciente, que é onde nosso pé derrapa, talvez nos façam
vislumbrar nessa fenda obscura um letreiro que diz: “Eu não mereço ser feliz. Quem sou
eu para estar bem, ter saúde, ter alguma segurança e alegria? Não mereço uma boa
família, afetos razoavelmente seguros, felicidade em meio aos dissabores”. Nada disso.
Não nos ensinaram que “Deus faz sofrer a quem ama”?
Portanto, se algo começa a ir muito bem, possivelmente daremos um jeito de que
desmorone – a não ser que tenhamos aprendido a nos valorizar.
Vivemos o efeito de muita raiva acumulada, muito mal-entendido nunca explicado,
mágoas infantis, obrigações excessivas e imaginárias. Somos ofuscados pelo danoso
mito da mãe santa e da esposa imaculada e do homem poderoso, pela miragem dos
filhos mais que perfeitos, do patrão infalível e do governo sempre confiável. Sofremos

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sob o peso de quanto “devemos” a todas essas entidades inventadas, pois, afinal, por
trás delas existe apenas gente, tão frágil quanto nós.
Esses fantasmas nos questionam, mãos na cintura, sobrancelhas iradas:
– Ué, você está quase se livrando das drogas, está quase conquistando a pessoa
amada, está quase equilibrando sua relação com a família, está quase obtendo sucesso,
vive com alguma tranqüilidade financeira… será que você merece? Veja lá!
Ouvindo isso, assustados réus, num ato nada falho tiramos o tapete de nós mesmos
e damos um jeito de nos boicotar – coisa que aliás fazemos demais nesta curta vida.
Escolhemos a droga em lugar da lucidez e da saúde; nos fechamos para os afetos em
lugar de lhes abrir espaço; corremos atarantados em busca de mais dinheiro do que
precisaríamos; se vamos bem em uma atividade, ficamos inquietos e queremos trocar;
se uma relação floresce, viramos críticos mordazes ou traímos o outro, dando um jeito
de podar carinho, confiança ou sensualidade.
Se a gente pudesse mudar um pouco essa perspectiva, e não encarar drogas, bebida
em excesso, mentira, egoísmo e isolamento como “proibidos”, mas como uma opção
burra e destrutiva, quem sabe poderíamos escolher coisas que nos favorecessem. E não
passar uma vida inteira afastando o que poderia nos dar alegria, prazer, conforto ou
serenidade.
No conflitado e obscuro território do inconsciente, que o velho sábio Freud nos
ensinaria a arejar e iluminar, ainda nos consideramos maus meninos e meninas, crianças
malcomportadas que merecem castigo, privação, desperdício de vida. Bom, isso
também somos nós: estranho animal que nasceu precisando urgente de conserto.
Alguém sabe o endereço de uma oficina boa, barata, perto de casa – ah, e que não
lide com notas frias?

APESAR DE VOCÊ
Chico Buarque

Amanhã vai ser outro dia


Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão, não.
A minha gente hoje anda
Falando de lado e olhando pro chão
Viu?
Você que inventou esse Estado
Inventou de inventar
Toda escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar o perdão
Apesar de você
amanhã há de ser outro dia
Eu pergunto a você onde vai se esconder
Da enorme euforia?
Como vai proibir
Quando o galo insistir em cantar?
Água nova brotando
E a gente se amando sem parar
Quando chegar o momento

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Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros. Juro!
Todo esse amor reprimido,
Esse grito contido,
Esse samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora tenha a fineza
de “desinventar”
Você vai pagar, e é dobrado,
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar
Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia.
Ainda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
E esse dia há de vir
antes do que você pensa
Apesar de você
Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear, de repente,
Impunemente?
Como vai abafar
Nosso coro a cantar,
Na sua frente.
Apesar de você
Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia.
Você vai se dar mal, etc. e tal,
La, laiá, la laiá, la laiá??

LUZ DO SOL
Caetano Veloso

Luz do sol
Que a folha traga e traduz
Em verde novo
Em folha, em graça
Em vida, em força, em luz…
Céu azul

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Que vem até
Onde os pés
Tocam a terra
E a terra inspira
E exala seus azuis…
Reza, reza o rio
Córrego pro rio
Rio pro mar
Reza a correnteza
Roça a beira
Doura a areia…
Marcha um homem
Sobre o chão
Leva no coração
Uma ferida acesa
Dono do sim e do não
Diante da visão
Da infinita beleza…
Finda por ferir com a mão
Essa delicadeza
A coisa mais querida
A glória da vida…
Luz do sol
Que a folha traga e traduz
Em verde novo
Em folha, em graça
Em vida, em força, em luz…

ADERBAL, O PEIXINHO DOURADO


Roberto Belli

Aderbal era um peixinho dourado


Muito ligeiro e danado.
Vivia numa parte do mar
Colorida de coral.
Onde, ali perto, um navio
Afundou num temporal.
O pai de Aderbal disse para
Ele não ir ao navio.
Mas para o peixinho dourado
Este era um desafio.
E para pregar um susto
Em seu amiguinho
Levou-o lá e disse que um
Tubarão era um vizinho.
O pai de Aderbal pôs-se a ralhar.
– Menino, você tem que se comportar!
E Aderbal não gostou de
Levar sermão,

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Diante dos outros peixinhos,
Então… que humilhação!
Mas aquele peixinho dourado
Era mesmo incorrigível,
Voltou ao navio em atitude
Nada compreensível…
Mas fugiu tão rápido quanto
Podiam suas nadadeiras!
Havia um tubarão oculto
Atrás de horríveis caveiras!
Teve sorte ao chegar a salvo
Na sua casa no coral,
E viu que um peixinho dourado
Não podia ser maioral.
Então, Aderbal aprendeu uma
Grande lição: deveria sempre
Ouvir seus pais com muita atenção!

TRECHO DE OS LUGARES DO MEIO


Rory Stewart

Observei os dois homens que entravam no saguão do Hotel Mowafaq. A maioria


dos afegãos parece deslizar pelo centro da escadaria do saguão arrastando as túnicas
atrás de si como mantos venezianos. Aqueles homens, no entanto, vestiam paletós de
estilo ocidental, caminhavam discretamente e se mantinham junto ao corrimão. Senti
uma mão em meu ombro. Era o gerente do hotel.
– Siga-os – disse ele. O gerente nunca tinha falado comigo antes.
– Desculpe, mas não vou fazer isso – respondi. – Estou ocupado.
– Siga-os agora. São do governo.
Ele me levou a uma sala em outro andar, cuja existência eu desconhecia, e mandou-
me tirar os sapatos e entrar sozinho, calçado com as meias. Os dois homens estavam
sentados em um volumoso sofá de madeira negra, ao lado de uma escarradeira de
alumínio. Ainda tinham os sapatos nos pés. Sorri. Eles, não. Com as cortinas de renda
cerradas e a ausência de eletricidade na cidade, a sala estava escura.
– Chi kar mikonid? – Que está fazendo?, perguntou o que vestia terno escuro e
camisa iraniana sem colarinho. Eu esperava que ele se levantasse normalmente e
apertasse minha mão, desejando-me paz, mas o homem ficou sentado.
– Salaam aleikun – A paz esteja contigo, disse eu, sentando-me.
– Waleikun a-salaam. Chi kar mikonid? – repetiu ele, em voz baixa, recostando-se
e passando a mão gorducha e manicurada pelo braço de veludilho roxo do sofá. Os
cabelos fartos e o cavanhaque eram bem aparados. Senti-me acanhado por ter feito a
barba pela última vez oito semanas antes.
– Já expliquei muitas vezes o que estou fazendo a Sua Excelência, Yuzufi, do
Ministério do Exterior – respondi. – Tenho de encontrar-me com ele novamente agora.
Estou atrasado.
Uma veia pulsava fortemente em meu pescoço. Eu sabia que era visível. Tratei de
respirar pausadamente. Nenhum de nós falou. Deixei passar algum tempo e olhei em
outra direção. O mais magro dos dois puxou um rádio novo e pequeno, disse alguma
coisa ao microfone e ajeitou a jaqueta engomada por sobre a camisa tradicional. Não

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precisei ver o coldre a tiracolo. Já imaginara que deviam ser membros do Serviço
Secreto. Não davam importância ao que eu dizia nem ao que pensava deles. Já tinham
observado gente por meio de câmeras escondidas em quartos de dormir, salas de tortura
e lugares de execução. Sabiam que eu podia ser subjugado, qualquer que fosse a forma
com que me apresentasse. Mas por que tinham resolvido interrogar-me? No silêncio que
se seguiu ouvi um carro dando marcha a ré no pátio e depois as primeiras notas do
chamado para a prece.
– Vamos – disse o homem do terno escuro. Mandou que eu caminhasse na frente.
Nas escadas, passei por um garçom com quem tinha falado antes. Ele se afastou. Fui
levado a um pequeno carro japonês estacionado no pátio de terra. Tinha sido pintado e
lavado recentemente. Mandaram que eu me sentasse na parte de trás. Não havia nada
nos compartimentos internos das portas e no chão. O carro parecia ter acabado de sair
da fábrica. Sem nada dizer, entramos na avenida principal.
Isso foi em janeiro de 2002. A coalizão liderada pelos Estados Unidos estava
terminando o bombardeio do complexo de Tora-Bora; Osama bin Laden e o mulá
Mohammed Omar tinham escapado; começavam as operações em Gardez. O novo
governo que substituíra o Talibã existia havia duas semanas. As leis que proibiam a
televisão e a educação das mulheres tinham sido abolidas, prisioneiros políticos foram
soltos e refugiados voltavam a seus lares; algumas mulheres saíam à rua sem véu.
Militares dos Estados Unidos e das Nações Unidas administravam a infra-estrutura
básica e as remessas de alimentos. Não havia uma guarda na fronteira, e eu entrei no
país sem visto. Eu mal notava a existência de um governo no Afeganistão, mas
aparentemente aqueles homens estavam em posição de autoridade.
Quando o carro entrou no Ministério do Exterior, os guardas no portão bateram
continência e abriram passagem. Ao subir as escadas, dei-me conta de que me
movimentava com rapidez pouco natural e que os homens tinham notado. Sem bater,
um secretário nos introduziu na sala do Sr. Yuzufi. Este nos fitou durante um momento,
de detrás de sua escrivaninha. Depois levantou-se, ajeitou o largo paletó de riscas e com
um gesto colocou os homens na posição mais nobre da sala. Eles caminharam
vagarosamente pelo chão forrado de linóleo, olhando a mobília que Yuzufi conseguira
juntar desde que herdara um escritório vazio: a escrivaninha deteriorada, quatro
arquivos desiguais em tons diferentes de verde-oliva e o aquecedor, que enchia a sala
com um forte cheiro de gasolina.
Eu conhecia Yuzufi havia uma semana, o que correspondia à metade de sua carreira
no Ministério do Exterior. Na quinzena anterior, ele estava no Paquistão. Na véspera,
ele me oferecera chá e um doce cozido, dizendo que admirava minha viagem; riu ao ver
uma foto de meu pai vestido com um kilt e falou de poesia persa. Agora não me
cumprimentou, mas em vez disso sentou-se numa cadeira diante de mim, perguntando:
– Que aconteceu?
Antes que eu pudesse responder, o homem da barbicha adiantou-se.
– O que é que esse estrangeiro está fazendo aqui?
– Esses homens são do Serviço de Segurança — disse Yuzufi.
Assenti com a cabeça. Notei que Yuzufi tinha entrelaçado as mãos e que, tal como
as minhas, elas tremiam ligeiramente.
– Vou traduzir para ter certeza de que o senhor compreende as perguntas deles –
continuou Yuzufi. – Diga a eles quais são suas intenções, exatamente como disse a
mim.
Olhei nos olhos o homem à minha esquerda.
– Pretendo atravessar o Afeganistão a pé. De Herat a Cabul. Caminhando. – Minha
respiração ofegante não me deixava completar as frases. Fiquei surpreso ao ver que não

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me interrompiam. – Estou seguindo os passos de Babur, o primeiro imperador da Índia
mongol. Quero ficar afastado das estradas. Os jornalistas, os funcionários humanitários
e os turistas em geral viajam de carro, mas eu…
– Não há turistas – disse o homem do paletó engomado, que ainda não tinha falado.
– O senhor é o primeiro turista no Afeganistão. Estamos no meio do inverno; nos passos
mais elevados há três metros de neve e lobos, e está havendo uma guerra. O senhor vai
morrer, posso garantir. Quer morrer?
– Muito obrigado pelo conselho. Tomei nota desses três pontos. – Pelo tom de voz
dele inferi que os conselhos eram uma ordem. – Mas falei com o Gabinete — prossegui,
dando nova qualidade a uma rápida reunião com um jovem secretário do ministro do
Bem-Estar Social. — Preciso fazer essa viagem.
– Faça-a daqui a um ano – disse o homem do terno escuro.
Ele recebera de Yuzufi os registros meio maltratados de minha caminhada pelo sul
da Ásia e os examinava: o recorte de um jornal do Nepal ocidental, que dizia “O Sr.
Stewart é um peregrino pela paz”; uma carta do Conservador, Segundo Distrito,
Departamento de Florestas de Himachal Pradesh, na Índia: “O Sr. Stewart, escocês, se
interessa pelo meio ambiente”; e as de um funcionário distrital na região do Punjab, de
um secretário do Interior num estado do Himalaia e de um Engenheiro Chefe do
Departamento de Irrigação do Paquistão que solicitava a “todos os Engenheiros
Executivos (XEN) do baixo Bari Doab que ajudem o Sr. Stewart, que empreenderá
uma viagem a pé a fim de pesquisar a história do sistema de canais”.
– Já expliquei isso – acrescentei – a Sua Excelência o filho do Emir, ministro do
Bem-Estar Social, na ocasião em que ele também me deu uma carta de apresentação.

TRECHO DE TRAVESSIA
Maria Dolores

Bituca se aproximou muito de Bebeto, então com dezessete anos, e, por


conseqüência, de sua namorada, uma garota chamada Paula. Os dois moravam em Três
Pontas, e quando o amigo famoso aparecia na cidade, formavam um trio inseparável,
indo juntos a todas as farras, visitas, passeios, cafés, noitadas. Em uma dessas ocasiões,
enquanto esperavam Paula tomar banho para darem uma volta, Bituca pegou o violão e
começou a tocar. Para poder ouvir melhor, Bebeto desligou o aparelho de som e sentou-
se ao lado do amigo.
– Que música é essa?
– Tô fazendo agora. Não sei direito o que vai ser.
Passados alguns meses, os dois se encontraram de novo, em Belo Horizonte, para
onde Bebeto havia se mudado.
– E aí, Bituca, e aquela música que cê fez lá em Três Pontas, na casa da Paula?
– Poxa, bicho, não me lembro mais dela.
– Eu lembro, era mais ou menos assim… – e cantou um trecho.
– Bituca pegou o violão e foi acompanhando, lembrando cada frase, acorde, até ter
a música inteira. Ao voltar para o Rio, foi à casa de Caetano Veloso. Costumava ir lá
visitar o amigo, onde havia sempre alguns outros músicos ou amigos de Caetano. Então,
iam para a sala de som e ficavam ouvindo discos, tocando um pouco. Foi ali que Bituca
contou que estava muito triste porque um casal de amigos seus havia se separado.
Estava triste porque gostava muito dos dois e do fato de serem um casal. Mostrou então
a música que havia feito lá em Três Pontas, na casa da Paula. Caetano ouviu, mas não
guardou muito bem a melodia. Poucos dias depois; Bituca o chamou em seu

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apartamento para lhe mostrar a música e Caetano colocou a letra. Fecharam-se no
quarto, pois havia muita gente no apartamento, Bituca tocou e Caetano fez a letra, ali na
hora, começando “Ê vida, vida, que amor brincadeira, à vera/ eles se amaram de
qualquer maneira, à vera/ qualquer maneira de amor vale a pena/ qualquer maneira de
amor vale amar…”.
Então foi ao apartamento de Bituca para mostrar o que havia feito, mas a casa
estava lotada, cheia de afilhados, primos, conhecidos. Para poderem conversar melhor,
os dois se trancaram no quarto, sentaram-se no chão, esqueceram-se do mundo
barulhento do outro lado da porta e começaram a pôr as palavras na melodia, Era como
se tivessem sido feitas ao mesmo tempo, tão perfeito era o encaixe. Emocionados,
deram-se as mãos e selaram a amizade com aquela primeira parceria. Bituca pôs-lhe o
devido nome: “Paula e Bebeto”. Mas os dois só saberiam da homenagem quando a
música estivesse para ser gravada.
Bituca começou a pensar no novo disco, programado para ser lançado no fim
daquele ano de 1975, segundo o cronograma da Odeon. Tinha novas composições.
Além de “Paula e Bebeto”, havia outras, feitas com seus três parceiros fiéis. “Fé cega,
faca amolada” e “Trastevere”, com Ronaldo, “Idolatrada” e “Saudades dos aviões da
Panair”, com letras de Fernando, e “Gran Circo”, com Márcio. Pensava em regravar
uma ou duas composições suas na nova versão e escolher alguma coisa de outros
autores. Para isso, precisava pensar no disco. Gostava de ver o trabalho como um
projeto, um todo, e não uma simples compilação de músicas. Precisava ter uma unidade,
algo que representasse a alma daquilo tudo. Estava assim, entre dúvidas e decisões,
quando foi se apresentar em Belo Horizonte.
Sempre que possível, preferia trocar as mordomias do hotel pelo aconchego da casa
de amigos. O aconchego, naquela ocasião, veio da casa de Kéller, ou melhor, dos pais
dele, Lenice e Cipriano. Bituca estava sentado na cozinha, organizando o repertório para
o show daquela noite, entre os cafezinhos acompanhados de coalhada e melado,
preparados com esmero por Lenice, quando um dos irmãos mais novos de Kéller,
Rúbio, sentou-se ao seu lado e começou a palpitar. Espiou a lista de músicas ainda no
princípio, analisou com meticulosidade e sugeriu trocar algumas, aquela outra, mais
aquela e, quem sabe, aquele sucesso tão conhecido de todos? Achando graça e gostando
das sugestões, Bituca deu corda. Deixou Rúbio completar o repertório e ficou ouvindo
várias outras idéias que pipocavam da cabeça daquele menino de doze anos.
– Quando é que você vai fazer um disco novo?
– Por agora.
– Por que não põe o nome de Minas? “Mi” de Milton e “nas” de Nascimento!
Como não tinha pensado nisso antes? Talvez porque o momento fosse aquele. Isso,
Minas, este seria o nome e a aura do trabalho; era o que queria fazer, só não havia
descoberto até aquele dia. Sendo fiel ao título, Bituca mais uma vez convidou a patota
de Beagá para participar. Das Gerais, além dos músicos, carregou para os estúdios da
Odeon os três irmãos mais novos de Wagner Tiso: Isaurinha, André Luiz e Marco
Valério, além de Rúbio e o primo Alexandre, para compor um coral infantil. Foram
também Bebeto e outro primo, Chico Frã. Parecia um absurdo, para que toda aquela
gente ocupando os corredores dos estúdios? Fariam o coro, esclareceu Bituca. “O coro,
como assim? Nem eram músicos!”, quis saber o pessoal da gravadora. O fato de não
serem músicos não fazia a menor diferença para ele; quer dizer, fazia sim, queria vozes
cruas, em seu estado bruto, sem as amarras da prática e da profissão. O coro era
fundamental e pronto. O resultado ele garantia. E assim foi.
Durante semanas, a sede da Odeon ficou abarrotada de gente. Somaram-se à
mineirada e aos velhos companheiros de estrada Fafá de Belém, Joyce, Nana Caymmi,

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MPB-4, Golden Boys e Lizzie Bravo, adulada por todos por ter sido a única brasileira a
gravar um backing vocal junto com os Beatles, em 1969, nos estúdios da EMI, na
Abbey Road, em Londres. Havia ainda os integrantes da orquestra, contratados para
gravar as cordas e os sopros, formada por dez violas, nove violoncelos, doze violinos,
quatro trompas, uma tuba e uma harpa. Nos sopros estavam também Danilo Caymmi,
Paulo Guimarães, Paulo Jobim, Mauro Senise e Raul Mascarenhas, que gravaram as
flautas.
Outra presença especial foi a do pianista Tenório Jr., tocando órgão e percussão, em
um dos seus últimos registros no Brasil. No dia 18 de março do ano seguinte, 1976, ele
desapareceria em Buenos Aires, aonde fora se apresentar. A Argentina, como boa parte
dos países vizinhos, estava sob uma ditadura, e anos depois descobririam que seu
sumiço havia sido uma ação da repressão argentina, com conhecimento do governo
brasileiro, Mas isso ainda era futuro. Por enquanto, reinavam a alegria e a confusão no
prédio da Odeon, em Botafogo. Tantos músicos, mais a equipe de produção, amigos,
convidados – como observou com propriedade Chico Buarque, um dos que foram
apenas acompanhar –, faziam aquilo virar uma farra.
– As gravações do Bituca eram uma festa! – ele recordou.

A ABDUÇÃO EM AQBAR
Umberto Eco

1. Se nos atemos aos escritos dos teóricos do romance policial (por exemplo, às
regras ditadas por S. S. van Dine) os Seis problemas para don Isidro Parodi, de Borges
e Casares, parecem totalmente “heréticos”. Foi dito que constituem uma paródia de
Chesterton, o qual, por sua vez, fazia uma paródia do gênero policial clássico, de Põe
em diante. Recentemente o Ouvroir de Littérature Potentielle, de Paris, redigiu uma
matriz das situações policiais já excogitadas (o assassino é o mordomo, o assassino é o
narrador, o assassino é o policial, etc.) e descobriu que ainda não foi escrito um livro no
qual o assassino seja o leitor. Pergunto-me se isso (fazer o leitor descobrir que o
culpado é ele, ou melhor, somos nós) não é a solução que todo grande livro realiza,
desde Édipo Rei até os contos de Borges. Mas é certo que Borges e Casares, em 1942,
haviam individuado um lugar vago na tábua de Mendeleiev das situações policiais: o
detetive é um prisioneiro. Ao invés da solução externa de um delito cometido num
quarto fechado, eis, saída de um quarto fechado, a solução de uma série de delitos
cometidos fora.
O ideal de um detetive que resolve o caso na própria mente, com base em poucos
dados fornecidos por alguém, está sempre presente na tradição policial: pense-se em
Nero Wolfe, de Rex Stout, a quem Archie Goodwin traz notícias, mas que nunca sai de
casa, deslocando-se com lentidão do seu escritório até a estufa das orquídeas. Mas um
detetive como Isidro Parodi, que não pode sair da própria cela, e a quem as notícias são
sempre trazidas por imbecis incapazes de compreender a seqüência dos acontecimentos
a que assistiram, é sem dúvida o resultado de um notável tour de force narrativo.
[…]

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INTRODUÇÃO DE ERAM OS DEUSES ASTRONAUTAS?
Erich von Däniken

Para escrever este livro, foi necessário mobilizar uma grande coragem que será
igualmente indispensável para que alguém o leia. As teorias e provas que ele contém
não se ajustam à Arqueologia tradicional, tão laboriosamente desenvolvida e tão
solidamente cimentada. Os especialistas do ramo não o levarão a sério ou o colocarão
na lista negra das obras que melhor seria não mencionar. De sua parte, os leigos
preferirão encaramujar-se em seu mundo familiar quando verificarem que a descoberta
do passado envolve maiores mistérios e requer mais audácia que uma antevisão do
futuro.
Não obstante, uma coisa é certa: há algo de errado no passado longínquo, que dista
de nós milhões e milhões de anos. Esse passado repleto de deuses desconhecidos, que
visitaram a Terra primitiva em espaçonaves por eles tripuladas…
Incríveis realizações técnicas se concretizaram em tempos antiqüíssimos, cujo
patrimônio tecnológico, imensamente rico e variado, só parcialmente se redescobriu até
agora.
Há algo errado em nossa Arqueologia! Porque estamos encontrando acumuladores
elétricos que datam de muitos milhares de anos. Porque nos defrontamos com seres
estranhos, que usam trajes espaciais com fechos de platina. Porque achamos números
com quinze casas e nenhum computador os colocou ali. Mas de que maneira aqueles
homens primitivos puderam adquirir a capacidade de criar tantas coisas inacreditáveis?
Há algo errado também no campo da religião. Em regra, todas elas prometem ajuda
e salvação à humanidade. Os deuses primitivos fizeram igualmente as mesmas
promessas. Por que não as cumpriram? Por que usaram armas avançadíssimas para
combater atrasadíssimos povos? E por que planejaram seu aniquilamento?
Familiarizem-se com a perspectiva de que nosso mundo de idéias, forjado e
desenvolvido durante milênios, está para desmoronar. Poucos anos de acurada pesquisa
foram suficientes para arrasar os redutos mentais em que tranqüilamente vivíamos.
Conhecimentos até há pouco escondidos em bibliotecas e arquivos de sociedades
secretas estão sendo agora revelados. A era das conquistas espaciais já não comporta
segredos. As incursões no espaço, que visam a descoberta de outros corpos celestes,
também nos levam ao passado longínquo. Deuses e sacerdotes, reis e heróis emergem
de trevas abissais… Podemos intimá-los a desvendarem seus segredos, pois temos
meios de tudo descobrir sobre nosso passado, sem quaisquer hiatos, se a isso realmente
nos dispusermos.
Modernos laboratórios devem tomar a seu cargo toda pesquisa de natureza
arqueológica. Os arqueólogos devem examinar com aparelhos hipersensíveis de
medição as áreas em que se desenvolveram civilizações há muito tempo extintas.
Sacerdotes, que buscam a verdade, têm de voltar, uma vez mais, a duvidar de tudo
quanto está firmemente estabelecido.
Os deuses do nebuloso passado deixaram inumeráveis pistas que só hoje podemos
decifrar e interpretar, pela primeira vez, porque o problema das viagens interplanetárias,
tão característico de nossa época, já não era problema, mas realidade rotineira, para
homens que viveram há milhares de anos. Pois eu afirmo que nossos antepassados
receberam visitas do espaço sideral na mais recuada Antigüidade embora não me seja
ainda possível determinar a identidade dessas inteligências extraterrenas, ou o ponto
exato de sua origem no Universo. Não obstante, proclamo que aqueles “estranhos”
aniquilaram parte da humanidade existente na época e produziram um novo, senão o
primeiro, Homo sapiens.

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Esta afirmativa é revolucionária. Abala até os alicerces um arcabouço mental que
parecia tão solidamente construído. Meu objetivo é tentar fornecer provas de sua
veracidade.

COMO NASCEM OS SOTAQUES?


Aldo Bizzocchi

A habilidade de reproduzir sons estrangeiros varia de pessoa a pessoa conforme certas


aptidões inatas

Você já deve ter notado que o aspecto mais difícil de aprender numa língua
estrangeira é também o mais perceptível de todos: a sua pronúncia. Um estrangeiro que
viva há muitos anos no Brasil pode falar português fluentemente, exibir uma correção
gramatical de dar inveja aos brasileiros mais cultos e, mesmo assim, conservar, ainda
que levemente, uma pronúncia que denuncia sua origem: é o famoso sotaque.
Mas por que é tão difícil perder o acento nativo quando se fala outro idioma? Por
que é mais fácil dominar o léxico e a gramática de uma língua do que sua fonética?
Segundo as teorias científicas mais recentes, a aptidão para a linguagem é inata. A
criança nasce com seu repertório linguístico “zerado” em termos de vocabulário, sintaxe
e pronúncia, mas traz do berço módulos cerebrais que lhe permitem preencher esses
vazios. Portanto, todos nós temos uma “língua do pensamento” que já vem pré-instalada
“de fábrica”, como o sistema operacional dos computadores. Depois, com o
aprendizado, vamos instalando outros softwares e gravando novos arquivos na mente.

Imitação

Com a pronúncia não é diferente. Graças aos chamados neurônios-espelho, a


criança é capaz de imitar com progressiva precisão os sons vocais emitidos pelos
adultos à sua volta. Isso significa que ela sabe em que posição e lugar deve manter a
língua para realizar um determinado som apenas observando os adultos, sem que
ninguém precise lhe explicar – nem seria possível, obviamente. Além disso, a criança
que aprende a falar é capaz de reconhecer e distinguir nuances mínimas dos sons, a
ponto de perceber quais variações são funcionais para a distinção do significado e quais
não. Ou seja, crianças em fase pré-linguística são foneticistas natas.
O problema é que, depois que aprendemos nossa primeira língua, as oposições
funcionais entre os sons ficam cristalizadas em nossa mente, talvez até para evitar que
as confundamos ao falar, mas isso com frequência nos causa embaraço quando temos de
aprender novas oposições, o que ocorre quando estamos adquirindo um novo idioma.
Por isso, tendemos a substituir, consciente ou inconscientemente, um som estranho por
outro mais familiar, isto é, um som estrangeiro por um nativo. Isso é ainda mais
frequente quando estão em jogo duas línguas próximas, como o português e o espanhol.
Antes de tudo, quando aprendemos nossa primeira língua, ou língua materna,
estamos ao mesmo tempo aprendendo a nos relacionar com o mundo. Nossa língua é
nossa realidade, é por meio dela que pensamos e conhecemos a vida ao nosso redor. Já,
quando aprendemos uma segunda língua, em geral o fazemos por razões culturais ou
profissionais. Mesmo que disso dependa nossa sobrevivência num país estrangeiro,
somos capazes de viver e pensar ainda que não dominemos completamente esse novo
instrumento de comunicação.

31
Bilinguismo

É por isso que crianças que aprendem dois idiomas simultaneamente na mais tenra
infância tornam-se perfeitamente bilíngues, sendo capazes de falar fluentemente, sem
sotaques ou interferências de qualquer tipo, ambas as línguas e, mais ainda, capazes de
pensar em qualquer uma delas.
Mas o fato é que uma língua é um conjunto de hábitos arraigados. No caso do
vocabulário e da gramática, trata-se de hábitos mentais, mas em relação à fonética esses
hábitos são essencialmente articulatórios, portanto dependentes de uma habilidade
motora. Ora, é mais fácil treinar neurônios do que músculos, o que explica por que é
mais fácil aprender novas palavras ou construções do que novas maneiras de posicionar
ao mesmo tempo a língua, os lábios e os dentes.
Some-se a isso o fato de que uma nova palavra é uma unidade de sentido, mas, ao
mesmo tempo, uma pluralidade de sons. Se tenho de pronunciar rapidamente uma ou
mais palavras estrangeiras, como numa frase, tenho de pensar na posição dos meus
órgãos fonadores para cada um dos fonemas que se sucedem. E tenho de fazer isso a
uma grande velocidade. O processamento simultâneo de todas essas informações requer
uma coordenação motora extrema. É como aprender a tocar violão: levamos um tempo
enorme para conseguir posicionar todos os dedos nas cordas certas e assim fazer um
acorde; no entanto, mal conseguimos isso, já temos de passar para o acorde seguinte no
ritmo da música. Esse processo só se torna eficiente com o treino e a automatização dos
movimentos, até o ponto de fazermos isso mecanicamente, sem pensar.
Por sinal, a fonética é a parte mais mecânica e menos criativa da língua, a que exige
menos esforço mental. Enquanto as regras sintáticas se contam às centenas, e as
palavras, aos milhares, os sons fonéticos raramente passam de 40. Por ser mecânica e
pouco criativa, a fonética sempre fica em segundo plano quando se trata de falar uma
língua estrangeira. Estamos mais preocupados em nos fazer entender do que em
pronunciar os sons estrangeiros com perfeição, o que parece ter importância mais
estética do que funcional.
Essa dificuldade de incorporar hábitos articulatórios estranhos aos nossos não afeta
apenas a capacidade de falar línguas estrangeiras, mas até os acentos regionais de uma
mesma língua são difíceis de imitar. É por isso que os atores de televisão geralmente
produzem um sotaque caipira ou nordestino caricato e pouco convincente nas novelas.

Inteligência

Além disso, a habilidade de reproduzir sons estrangeiros varia de pessoa a pessoa


conforme certas aptidões inatas. Por isso se diz que determinado indivíduo tem melhor
ou pior “ouvido” para línguas. Assim como há um “ouvido” musical (na verdade, a
chamada inteligência musical de que fala Howard Gardner), que faz algumas pessoas
serem mais afinadas do que outras, há uma espécie de inteligência fonética, parte da
mais geral inteligência linguística. Por essa razão, embora qualquer um seja capaz de
aprender novos idiomas, uns aprendem com mais facilidade do que outros, e alguns são
capazes de passar a vida inteira num país estrangeiro e, ainda assim, conservar seu
sotaque nativo.
Chega a ser hilário – embora aconteça com frequência – o fato de algumas pessoas
nunca conseguirem pronunciar perfeitamente a língua de adoção e ainda acabarem
falando com sotaque a própria língua nativa, numa espécie de meio-termo entre as duas,
o que lembra aquela anedota em que o cidadão foi morar fora, não só não aprendeu a
nova língua como ainda esqueceu a antiga. Conclusão: voltou para casa mudo.

32
O SENTIDO LINGUÍSTICO DA VIDA
Aldo Bizzocchi

A ideia de que nossa vida não é mero produto do acaso pode não encontrar
sustentação nos estudos da linguagem

Muitos livros, como As Quatro Faces do Universo, de Robert M. Kleinman,


discutem o sentido da existência (e, particularmente, da existência humana), procurando
provar, se é que isso é possível, que a nossa vida tem um propósito. Em muitos casos –
este é um deles –, criticam a ciência, acusando-a de limitada, de reduzir a realidade à
pura matéria, não dando conta da dimensão “espiritual” da existência. (Será que esses
livros dão conta dessa dimensão?)
A ideia de que nossa vida não é mero produto do acaso ou do determinismo físico,
que somos mais do que um amontoado de células organizadas pela seleção natural e que
temos uma missão a cumprir é inegavelmente reconfortante, ainda que não tenhamos
nenhuma garantia de que seja verdade. (Aliás, todas as evidências científicas, que tais
livros questionam, apontam em sentido contrário.)
O fato é que vários pensadores, tanto místicos quanto racionalistas, vêm ao longo
do tempo buscando uma resposta a essa questão. Para eles, sentido não é apenas
propósito, mas direção, isto é, para onde vamos.
Não vou tratar aqui dos aspectos ontológicos do problema, que não teriam nada a
ver com um artigo sobre linguagem, mas quero exatamente mostrar o que há de
“linguístico” nessa questão.

Sentido

O emprego da palavra “sentido” para denominar o propósito da existência não é


gratuito: afinal, encontrar sentido em algo é descobrir o seu significado, é relacioná-lo a
alguma experiência anterior, a alguma vivência que temos armazenada na memória, tal
qual uma palavra, símbolo ou gesto evocam na mente uma imagem, concreta ou
abstrata, de algo que conhecemos. O propósito dos signos é justamente significar,
representar, ou seja, evocar algo à consciência. Portanto, encontrar sentido na vida, no
trabalho ou num relacionamento é compreender o que tudo isso significa para nós, a que
sentimentos ou vivências está ligado.
Para o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, que se dedicou à relação entre o
pensamento e a linguagem, o significado não existe em si, é arbitrário e estabelecido
pelo homem. Isso tem uma série de implicações importantes. Em primeiro lugar, remete
à ideia, também presente nas ciências da linguagem, de que não vivemos num mundo
“real”, mas no mundo artificialmente criado pela nossa própria língua.
Em segundo lugar, sugere que muitos dos nossos conflitos existenciais e
ideológicos – Deus existe? Por que há o Ser em vez do Nada? E o que é o Nada? O
tempo flui ou somos nós que nos deslocamos nele? Mas, afinal, o que é o tempo? O que
não pode ser pensado pode existir? Por que estamos aqui? Qual o sentido da vida? –
dependem basicamente do significado (arbitrário e culturalmente estabelecido) que
atribuímos às palavras “Deus”, “tempo”, “ser”, “nada”…
Mais ainda, dependem da própria existência dessas palavras, o que indica,
sobretudo no caso de conceitos abstratos, que, inversamente ao que acontece com
objetos concretos, é a palavra que institui a “coisa”.

33
Os quasares já existiam antes de tomarmos conhecimento deles, isto é, de criarmos
a palavra que os designa. Mas será que “propósito”, “sentido”, “missão”, “consciência”,
“infinito”, “eternidade” existem objetivamente na natureza ou somos nós que, com
nossas palavras, criamos esses objetos?

Origens

Segundo consta, nós, humanos, somos as únicas criaturas do planeta a fazer


perguntas ontológicas, vale dizer, a questionar a nossa própria existência. E isso se dá
exatamente porque somos a única espécie dotada de linguagem. (Observe que falo em
“linguagem” e não em “comunicação”, pois esta todas as espécies superiores possuem.)
Em outras palavras, é a linguagem que permite a consciência.
Há três grandes mistérios a torturar o intelecto humano: a origem do Universo (e,
portanto, de tudo o que existe), a origem da vida e a origem da consciência (isto é, de
uma forma de vida que sabe que está viva e que o Universo ao redor existe). Mas este
último mistério se prende a um quarto e bem menos explorado: a origem da linguagem.
Quatro condições são necessárias à existência da consciência. Em primeiro lugar,
vida: seres inanimados não têm consciência (embora alguns filósofos New Age afirmem
que sim). Em segundo lugar, atividade mental: amebas são vivas mas não conscientes.
Em terceiro, memória: só posso compreender que um pássaro em voo está em
movimento porque me lembro de que, um instante atrás, ele estava em outro lugar do
céu; só posso saber que estou vivo e quem sou porque me lembro do meu passado. Se
eu não tivesse memória, cada instante da minha existência seria como o primeiro, e eu
viveria um eterno “nascimento”. Enfim, a consciência está ligada à sensação, não
importa se real ou ilusória, da passagem do tempo.

Abstrações

Finalmente, a quarta condição para a consciência é a linguagem. Animais


superiores, como cães e chimpanzés, são vivos, inteligentes, dotados de memória e, no
entanto, não parecem ter consciência de si mesmos além de suas sensações, sentimentos
e pulsões de satisfazer necessidades fisiológicas.
Eles amam, sentem medo, fome, libido, procuram por comida ou afeto, mas nunca
se fazem perguntas ontológicas. E não porque não tenham palavras (muitos animais
domésticos compreendem palavras humanas e as relacionam a objetos ou ações), nem
porque não tenham conceitos (eles os têm, pois reconhecem padrões familiares, como a
casa, a comida, o rosto ou o cheiro do dono), mas porque não têm como associar
conceitos para formar enunciados e sobretudo porque não têm conceitos abstratos.
Somente a linguagem humana realiza abstrações, ou seja, cria um mundo “que não
existe” a partir do que existe. Por isso, o maior impasse da filosofia não é descobrir se a
realidade que vemos está aí ou não (é bem provável que sim, ainda que não seja
exatamente como a vemos). É saber se a realidade que só vemos em nossa mente existe
fora dela. Enfim, nossa vida tem algum sentido ou somos nós que damos sentido a ela?

34
A IMAGINAÇÃO PRÉ-SOCRÁTICA
Marcelo Gleiser

O grande filósofo grego Aristóteles disse, inspirado por seu mestre Platão, que
certas idéias tendem a reaparecer de tempos cm tempos, que estamos fadados a
redescobri-las, vítimas de seu irresistível poder de sedução intelectual. O escritor
argentino Jorge Luis Borges, em seu conto “O imortal”, explora justamente esse tema, o
da criação do novo a partir da memória do velho. Criação passa a ser re-criação;
descoberta, re-descoberta.
É como se a mente fosse um grande baú cheio de brinquedos c nossa criatividade
uma criança que, deslumbrada com tantos brinquedos, escolhe um para brincar. Logo,
logo a criança se cansa e joga o brinquedo de volta no baú, onde ele repousará
passivamente até ser redescoberto por outra criança no futuro. Aos olhos de cada nova
criança, o mesmo brinquedo é sempre uma grande novidade.
Claro, às vezes algo de realmente original e inédito aparece no panorama das idéias
e, como um novo brinquedo no baú, imediatamente se transforma em foco de grande
atenção. Aos poucos, a novidade vai perdendo seu lustre e o brinquedo é posto de lado,
pronto para ser redescoberto mais adiante. Levando essa analogia um pouco mais além,
se nossa mente é como um baú, ela é um baú cheio de brinquedos que pode sempre
crescer para acomodar mais brinquedos. Mas, como sabemos, alguns brinquedos, mesmo
que velhos, serão sempre nossos favoritos.
Quando nos perguntamos de onde vieram as primeiras idéias filosóficas, as
sementes do pensamento moderno ocidental, não temos a menor dúvida quanto à
resposta: da Grécia antiga, em particular do período entre os séculos VI e IV a. C. O
início dessa aventura intelectual é marcado pelo aparecimento dos filósofos pré-
socráticos, que acreditamos terem sido os primeiros a tentar responder a questões
sobre a Natureza usando a razão, e não a mitologia ou a religião.
Esse apetite pelo saber racional, motivado pelo mesmo senso de mistério que
inspira o pensamento religioso, está na raiz de toda a ciência. Às vezes ele é chamado de
“encantamento iônico”, celebrando os primeiros filósofos pré-socráticos, que habitaram a
Iônia, uma província grega na costa oeste da Turquia atual. Segundo Aristóteles, o
primeiro deles foi Tales, que postulou, em uma visão profundamente orgânica da
Natureza, que a substância fundamental do cosmo é a água. Essa idéia marca o início da
busca por uma estrutura material unificada na Natureza, algo que motiva o trabalho de
cientistas em várias áreas distintas, da física de partículas elementares à biologia
molecular e à genética.
Para Tales e seus discípulos, a Natureza é uma entidade dinâmica, em constante
transformação, renovando-se indefinidamente em novas formas e criações. Essa visão
foi criticada por uma outra escola pré-socrática, a escola fundada por Parmênides, que
acreditava exatamente no oposto: o que é essencial não pode se transformar. O que “É”
simplesmente é. Podemos detectar aqui o germe da idéia de uma entidade eterna,
transcendente, além das transformações naturais, que são necessariamente menos
fundamentais. O debate entre o eterno e o novo, o “ser” e o “vir a ser”, já havia
começado então, há 2500 anos. Ou, quem sabe, até antes disso. Esse tema é um de
nossos brinquedos preferidos.
A esse debate podemos juntar a tradição pitagórica, que unia de forma mística o
estudo da Natureza por meio da razão e da espiritualidade. Para os pitagóricos, sem
dúvida embriagados pelo encantamento iônico, os números eram mais do que
números, suas frações e proporções uma espécie de alfabeto simbólico da Razão
Universal; ao estudar a Natureza através dos números, o filósofo se aproximava dessa

35
razão, estabelecendo uma ponte entre o humano e o divino. Hoje, pouco resta de
concreto dessas antigas tradições intelectuais. Mesmo se os vários detalhes foram
apagados pelo tempo, sua essência continua a nos inspirar, brilhando sempre um pouco
mais do que os outros brinquedos no vasto baú da criatividade humana.

EXCERTOS DE BALÃO CATIVO


Pedro Nava

Minha Mãe que o diga e minha irmã Ana, a quem ela criou e começou a pajear
desde nossa chegada a Juiz de Fora. Dela e da Rosa eu me lembro como de irmãs mais
velhas e as duas habitam, incorruptíveis, o melhor de minha lembrança. Tal era minha
parcialidade por elas que um dos motivos por que aborreço a memória de minha avó
materna é a lembrança nunca apagada de tê-la visto espancando a Deolinda e
esfregando suas costas aleijadas com sua vara de marmelo. Porque a Sinhá da Rua
Direita, 179, não tomara conhecimento do 13 de Maio e chegava a ratamba não só nas
suas crias como nas empregadas assalariadas. […] Imagine-se agora o que deveria ter
sido, para os escravos, aquele Coronel Marcelino de Brito Pereira de Andrade de quem
as duas reprovavam as crueldades, inclusive o caso do negro jogado dentro do funil da
moenda e morrendo engastalhado, afogando devagar no jorro, os pés aflitos aparecendo
no buraco, batendo e depois pendendo inertes na espadana que martelava a roda do
engenho.
[…]
Porque minha avó exigia que elas trabalhassem cantando – o que era maneira de
fiscalizá-las pela inflexão da música, de impedir conjuração de preto e de juntar esse útil
ao agradável das vozes solfejando. Ora era uma modinha inteira que vinha da memória
e da garganta de ouro da Rosa, fazendo desferir em trenos, palavras mais lindas, meu
Deus! como batel, virginal, quimera, vergel, albente, alaúde, bardo, debalde, eviterna,
brisa, langor.
[…]
Perseguir o próprio caminho, descobrir a sua forma de fazer literatura, explorando
as potencialidades da língua e da própria cultura, este sempre foi o caminho do escritor
brasileiro: consciente da condição de colonizado, quis voltar às origens, vasculhar a
memória nacional e redescobrir, num espaço novo, o da escrita, o que poderia constituir
sua identidade.
[…]
De tardinha, logo depois do jantar, sol ainda de fora, as negrinhas punham cadeiras
no passeio, minha avó se repimpava no seu trono de balanço e ali mesmo recebia outras
visitas que sentavam um instante, bebiam água, tomavam café, aceitavam um docinho e
seguiam seu itinerário.
[…]
A essa viagem de tio Salles a Juiz de Fora prendem-se dois fatos da minha
lembrança. Primeiro um retrato que tiramos, eu e meus irmãos, num fotógrafo da Rua
Halfeld onde fomos levados por ele. É uma triste fotografia em que eu e o José
aparecemos de luto, ao lado dos menores, a quem a idade não consentia o preto.
[…]
Não morri jamais de amor por minha avó. Mas sei quando ela coça dentro do meu
corpo e quando nele pesa. Pedra. E agradeço o que dela me veio da ancestralidade que
tanto prezo. Por ela é que subo os troncos de mineiro, de paulista, de ilhéu, lusíada e
galego que misturo aos outros sangues cristãos e latinos que me chegaram do setentrião.

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Ela estava morrendo e eu sentia confusamente que cada um de nós morria um pouco
daquela morte da filha do Luís da Cunha. Ali estava se rompendo um elo e começavam
as separações.
[…]
O que interessa é que veio o leilão. Vi a casa invadida, uma multidão dentro de
nossa mais absoluta intimidade – como porcos pisando na vida da gente. Os gritos do
leiloeiro, o quem dá mais? quem dá mais? minha bicicleta arrematada, eu a pé, as
marteladas, os turíbulos espalhados, os cibórios dispersados, a ara quebrada, os altares
derrubados e a Inhá Luísa morrendo outra vez, outra vez, outra vez – a cada lance que
demolia o Templo… Nossa mudança para Belo Horizonte ficou marcada para o dia 25
de dezembro de 1913. Natal. Uma família acabava na Rua Direita. Uma família
recomeçava em Belo Horizonte. Natal.

TRECHO DE TUDO O QUE A GRANDE MENTE CAPTA


Rosana Hermann e Isaac Efraim

Todo autor fica curioso em saber quem são as pessoas que estão lendo seu livro.
Seria ótimo saber quem você é!
Pensamos até em colocar uma ficha, junto com cada exemplar do livro, pra que os
leitores pudessem se apresentar.
Vamos lá, então.
Apresente-se.
Ninguém vai saber se você está entrando na brincadeira ou não, portanto, não
precisa ter vergonha de participar.
A grande vantagem de ler um livro é que além de você poder abri-lo e fechá-lo à
hora em que bem entender, a leitura permite uma privacidade e um controle da situação
que nenhum outro meio permite.
Aceite o convite pra brincar e apresente-se. Dê a si mesmo alguns minutos entre
este parágrafo e o próximo e fale de você.
Vamos lá..
(Espaço reservado para a apresentação do leitor.)

Agora, vamos ver que coisas você disse sobre você.


Você deve ter dito, por exemplo, o seu nome.
Deve ter dito também o que você faz na vida, onde trabalha, qual sua profissão, se
estuda, que curso faz.
Provavelmente, como todos nós fazemos, ao falar de si, você deve ter dito algumas
coisas que tem, como irmãos, marido, mulher, filhos, amigos, propriedades.
Talvez você também tenha incluído alguns dados específicos sobre seu corpo, como
estatura e peso, se você estiver de bem com esses números, claro! A cor dos olhos e dos
cabelos também costuma aparecer nas apresentações.
Se você gosta de apresentações mais longas, pode ter incluído algum hobby ou
esporte que pratica, mencionado títulos que eventualmente você tenha.
Enfim, ao falar de si, a pessoa diz o que faz ou já fez e as coisas que possui.
Essas devem ser, portanto, as coisas mais importantes que qualquer pessoa associa
a si mesma, já que definem a sua própria apresentação.

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Curiosamente, excetuando-se os dados físicos, todas as coisas que a pessoa faz ou
tem são passíveis de perda. Pode-se perder a casa, o emprego, o irmão, o namorado.
Pode-se perder o título, a possibilidade de praticar o hobby, a casa na praia.
Em resumo, se a identidade de uma pessoa está ligada a coisas que ela faz ou possui
e essas coisas podem ser perdidas, este alguém vive sob o constante risco de perder
totalmente a sua própria identidade!
Viver, para esta pessoa, é um constante risco de perda!
Isto pode parecer uma brincadeira de lógica, um exercício teórico, mas não é o que
a realidade tem mostrado.
O famoso crack da Bolsa de Nova York, em 1929, é um dos exemplos mais
marcantes desse fato. Da noite para o dia, gente que tinha uma vida financeira estável,
posição invejável, perdeu todos os bens. E foi chocante o número de suicídios que esse
fato gerou.
Imagine um banqueiro poderoso, famoso, milionário, que perde todos os bens, do
dia pra noite. Se ele embasou sua identidade, seu eu, nessas posses e todas as posses se
foram, o eu deixou de existir. O suicídio é a concretização no plano real de algo que já
aconteceu interiormente. Esse homem já não existe mais sem seus bens.
Associar a existência à propriedade ou retenção de posses é viver sob a constante
ameaça de deixar de existir ainda em vida…
Só que, obviamente, as pessoas não têm consciência disso. O mundo seria um
sanatório geral, cheio de gente com medo de perder o que tem.
Existe um mecanismo que faz com que se esqueça essa constante ameaça de perder
o que se tem e esse mecanismo é exatamente o adormecimento.
Vamos falar de um exemplo mais claro.
Lúcio é um homem apaixonado por sua mulher, Ana. Ana é sua razão de viver. Ana
é tudo pra ele, como ele mesmo costuma dizer.
Mas há algum tempo Ana já não ama Lúcio.
Ele não quer acreditar nisso.
Ele não quer encarar esse fato.
Porque assumir conscientemente que Ana não o ama mais seria perder tudo o que
ele tem. O casamento, os filhos, a casa, o amor, a paixão, tudo. Seria perder a sua
própria identidade.
O que ele faz, então, inconscientemente? Ele repete:
“Ana me ama”.
“Veja como Ana fez um jantar supergostoso pra mim… É porque ela ainda me
ama”.
“Outro dia, Ana ficou com ciúmes de mim, sinal que ela me ama”.
“Eu sei que Ana saiu com alguns amigos, outro dia. Ela disse que foi legal, que
muita gente perguntou por mim. Ela se lembrou de mim, porque ela ainda me ama”…
E Lúcio repete a si mesmo, Ana me ama…
Ana ainda me ama…
Repete… como numa ladainha…
Repete… como num acalanto…
Repete… como numa canção de ninar…
Repete… como um mantra…
Repete… hipnoticamente…
Repete… monotonicamente…
Repete… porque a repetição nos faz adormecer….
Não é à toa que a sabedoria popular recomenda contar carneirinhos pra adormecer.

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É a repetição… um carneirinho pulando cerca… dois carneirinhos pulando cerca…
três carneirinhos pulando cerca, que nos faz adormecer.
E sem perder a oportunidade pra fazer piada, o que acontece de verdade é que,
enquanto Lúcio conta carneiros pra adormecer, Ana é quem está pulando a cerca…
A repetição é a forma mais simples de se aplicar anestesia geral. A mulher que só
reclama, reclama, reclama, também está se anestesiando.
A reclamação repetida é chamada de ladainha, porque ladainha é aquela reza
repetida que praticamente nos leva ao transe.
O transe, em todos os ritos e religiões, baseia-se em repetições de sons, gestos,
danças, movimentos.
O transe também é um adormecimento.
E o adormecimento é um mecanismo geral, de todas as pessoas, incluindo eu e
você.
Em última instância, nem Lúcio, nem você, nem eu, ninguém quer sofrer.
E uma das melhores maneiras de não sofrer é anestesiar-se. Anestesia quer dizer
exatamente não sentir.
Podemos até lembrar outro dito popular:
O que os olhos não vêem o coração não sente…
Assim, quando não queremos magoar nosso coração… tudo o que temos a fazer é
não ver.
E qual é a única coisa que se deve fazer para não ver?
Acertou! É fechar os olhos.
E fechar os olhos é o primeiro passo pra adormecer.

SENTENÇA JUDICIAL
Ronaldo Tovani

O Juiz Ronaldo Tovani, 31 anos, substituto da Comarca de Varginha, ex-promotor de


justiça, concedeu liberdade provisória a Alceu da Costa (vulgo “Rolinha”), preso em
flagrante por ter furtado duas galinhas e ter perguntado ao delegado: “desde quando
furto é crime neste Brasil de bandidos?” O magistrado lavrou então sua sentença em
versos. Na íntegra, abaixo, a “sábia” decisão:

No dia cinco de outubro


Do ano ainda fluente
Em Carmo da Cachoeira
Terra de boa gente
Ocorreu um fato inédito
Que me deixou descontente.

O jovem Alceu da Costa


Conhecido por “Rolinha”
Aproveitando a madrugada
Resolveu sair da linha
Subtraindo de outrem
Suas saborosas galinhas.

39
Apanhando um saco plástico
Que ali mesmo encontrou
O agente muito esperto
Escondeu o que furtou
Deixando o local do crime
Da maneira como entrou.

O senhor Gabriel Osório


Homem de muito tato
Notando que havia sido
A vítima do grave ato
Procurou a autoridade
Para relatar-lhe o fato.

Ante a notícia do crime


A polícia diligente
Tomou as dores de Osório
E formou seu contingente
Um cabo e dois soldados
E quem sabe até um tenente.

Assim é que o aparato


Da Polícia Militar
Atendendo a ordem expressa
Do Delegado titular
Não pensou em outra coisa
Senão em capturar.

E depois de algum trabalho


O larápio foi encontrado
Num bar foi capturado
Não esboçou reação
Sendo conduzido então
À frente do Delegado.

Perguntado pelo furto


Que havia cometido
Respondeu Alceu da Costa
Bastante extrovertido
Desde quando furto é crime
Neste Brasil de bandidos?

Ante tão forte argumento


Calou-se o delegado
Mas por dever do seu cargo
O flagrante foi lavrado
Recolhendo à cadeia
Aquele pobre coitado.

40
E hoje passado um mês
De ocorrida a prisão
Chega-me às mãos o inquérito
Que me parte o coração
Solto ou deixo preso
Esse mísero ladrão?

Soltá-lo é decisão
Que a nossa lei refuta
Pois todos sabem que a lei
É pra pobre, preto e puta...
Por isso peço a Deus
Que norteie minha conduta.

É muito justa a lição


Do pai destas Alterosas.
Não deve ficar na prisão
Quem furtou duas penosas,
Se lá também não estão presos
Pessoas bem mais charmosas.

Afinal não é tão grave


Aquilo que Alceu fez
Pois nunca foi do governo
Nem seqüestrou o Martinez
E muito menos do gás
Participou alguma vez.

Desta forma é que concedo


A esse homem da simplória
Com base no CPP
Liberdade provisória
Para que volte para casa
E passe a viver na glória.

Se virar homem honesto


E sair dessa sua trilha
Permaneça em Cachoeira
Ao lado de sua família
Devendo, se ao contrário,
Mudar-se para Brasília!!!

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