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Revista

de
Informação
Legislativa
Brasília • ano 45 • nº 180
Outubro/dezembro – 2008

Subsecretaria de Edições Técnicas do Senado Federal


Revista
de
Informação
Legislativa
Fundadores
Senador Auro Moura Andrade
Presidente do Senado Federal – 1961-1967
Isaac Brown
Secretário-Geral da Presidência – 1946-1967
Leyla Castello Branco Rangel
Diretora – 1964-1988

Issn 0034-835x
Publicação trimestral da
Subsecretaria de Edições Técnicas
Senado Federal, Via N-2, Unidade de Apoio III, Praça dos Três Poderes
CEP: 70.165-900 – Brasília, DF. Telefones: (61) 3303-3575, -3576 e -3579
Fax: (61) 3303-4258. E-Mail: livros@senado.gov.br

Diretora: Anna Maria de Lucena Rodrigues

Revisão de Originais: Angelina Almeida Silva, Cláudia Moema de Medeiros Lemos


Revisão de Referências: Marjorie Fernandes Gonçalves
Revisão de Provas: Bárbara de Almeida Bezerra, Marise de Faria Fiuza,
Paulo Henrique dos Santos e Maria José de Lima Franco
Editoração Eletrônica: Rejane Campos Lima
Capa: Josias Wanzeller
Impressão: Secretaria Especial de Editoração e Publicações

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Revista de Informação Legislativa / Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas.


- - Ano 1, n. 1 ( mar. 1964 ) – . - - Brasília: Senado Federal, Subsecretaria
de Edições Técnicas, 1964– .
v.
Trimestral.
Ano 1-3, nº 1-10, publ. pelo Serviço de Informação Legislativa; ano 3-9, nº
11-33, publ. pela Diretoria de Informação Legislativa; ano 9- , nº 34- , publ. pela
Subsecretaria de Edições Técnicas.
1. Direito — Periódico. I. Brasil. Congresso. Senado Federal, Subsecretaria
de Edi­ções Técnicas.
CDD 340.05
CDU 34(05)
“Uma tradição que se foi (Palácio Monroe)”, de José Ferreira, obra de
1974, é uma pintura em óleo sobre tela de 0,95m x 0,75m.
Revista
de
Informação
Legislativa
Brasília · ano 45 · nº 180 · outubro/dezembro · 2008

José Levi Mello do Amaral Júnior Análise do fundamento jurídico do emprego das Forças
Armadas na garantia da lei e da ordem 7
Vladimir da Rocha França Limites constitucionais do decreto regulamentar na
criação e extinção de órgãos e cargos públicos no
âmbito do Estado do Rio Grande do Norte 17
Túlio Lima Vianna Crítica da razão comunicativa. O direito entre o
consenso e o conflito 31
Eduardo Biacchi Gomes Direitos Fundamentais. A questão dos pneumáticos no
Mercosul 47
Cleber Francisco Alves A influência do pensamento liberal de Benjamin
Constant na formação do Estado Imperial Brasileiro 65
Aziz Tuffi Saliba Nacionalidade brasileira e Direito Internacional. Um
breve comentário sobre a Emenda Constitucional no
54/2007 77
Dilvanir José da Costa Filiação jurídica, biológica e socioafetiva 83
Mônica Sette Lopes Juristas e jornalistas. Impressões e julgamentos 101
Paulo José Leite Farias A dimensão econômica do meio ambiente. A riqueza
dos recursos naturais como direito do homem presente e
futuro 115
Weliton Carvalho Direito Comparado. Método ou ciência? 139
José Pedro Luchi Democracia, exigências normativas e possibilidades
empíricas 147
Cláudio Araújo Reis e Luiz Eduardo Administrando conflitos de interesses. Esforços recentes
Abreu no Brasil 161
Aroldo Plínio Gonçalves e Ricardo Cerceamento de defesa no indeferimento de prova
Adriano Massara Brasileiro pericial. Violação de direito fundamental da parte e
lesão da ordem jurídica constituída 175
Lilia Maia de Morais Sales e Tráfico de seres humanos. Algumas diferenciações 179
Emanuela Cardoso Onofre de Alencar
Jorge Barrientos-Parra e Elaine O direito à intimidade na sociedade técnica. Rumo a
Cristina Vilela Borges Melo uma política pública em matéria de tratamento de dados
pessoais 197
João Baptista Herkenhoff e Garantias processuais dos direitos humanos no sistema
Antonio Côrtes da Paixão jurídico brasileiro 215
Marco Aurélio Gumieri Valério Biodiesel. Combustível para o desenvolvimento social
243
Maria Inês Gandolfo Conceição e A relação adolescente–drogas e as perspectivas da nova
Maria Cláudia Santos de Oliveira legislação sobre drogas 253
Alexandre Marques da Silva Os valores em Miguel Reale 263
Martins
Ricarlos Almagro Vitoriano Cunha Hermenêutica jurídica em Kelsen. Apontamentos
críticos 279
Ana Carolina Brochado Teixeira e Autoridade parental, incapacidade e melhor interesse da
Luciana Dadalto Penalva criança. Uma reflexão sobre o caso Ashely 293
Fabrício Bertini Pasquot Polido O desenvolvimento do novo regionalismo asiático no
direito de integração. Notas sobre a ASEAN e APEC
305
Maria Cláudia Bucchianeri Liberdade religiosa, separação Estado–Igreja e o limite
Pinheiro da influência dos movimentos religiosos na adoção de
políticas públicas. Aborto, contraceptivos, células-tronco
e casamento homossexual 347
Paulo Sávio Peixoto Maia O Supremo Tribunal Federal como “tribunal político”.
Observações acerca de um lugar comum do direito
constitucional 375

Os conceitos emitidos em artigos de colaboração são de responsabilidade de seus autores.


Análise do fundamento jurídico do
emprego das Forças Armadas na garantia
da lei e da ordem

José Levi Mello do Amaral Júnior

Sumário
Explicação preliminar; 1. Destinação cons-
titucional das Forças Armadas; 2. Emprego das
Forças Armadas na garantia da lei e da ordem;
3. Papel subsidiário das Forças Armadas na
garantia da lei e da ordem; 4. Gradação do
princípio da subsidiariedade; 5. Procedimento
de emprego das Forças Armadas na garantia da
lei e da ordem; 6. Abate de aeronaves hostis; 7.
Conclusão: papel atual das Forças Armadas.

Explicação preliminar
O objetivo do presente estudo é analisar
o fundamento jurídico do emprego das For-
ças Armadas na garantia da lei e da ordem,
tal como previsto pela Constituição e res-
pectiva legislação regulamentar. Sintetiza
estudos que o autor levou a efeito para cola-
borar com a Assessoria Militar do Gabinete
de Segurança Institucional da Presidência
da República entre 2000 e 2003.
O trabalho busca demonstrar que o
emprego das Forças Armadas na garantia
da lei e da ordem não é extraordinário,
mas, sim, ordinário, conquanto orientado
pelo princípio da subsidiariedade. Disso
decorrem importantes conseqüências para
José Levi Mello do Amaral Júnior é professor a compreensão jurídica da matéria, o que
de Direito Constitucional na Faculdade de Direi-
será objeto desta exposição.
to do Largo de São Francisco, da Universidade
de São Paulo. Doutor em Direito do Estado pela Por outro lado, não se deseja, aqui, fazer
mesma Universidade. Procurador da Fazenda a apologia do emprego ou não das Forças
Nacional, cedido à Casa Civil do Governo do Armadas na garantia da lei e da ordem.
Estado de São Paulo. O que se pretende nesta sede é – insista-

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 7


se – examinar o fundamento jurídico do excepcionais para debelar a ameaça. O em-
eventual emprego das Forças Armadas na prego desses recursos em casos tais enseja,
garantia da lei e da ordem. mais cedo ou mais tarde, a decretação: (1)
de intervenção federal5; (2) de estado de
1. Destinação constitucional defesa6; ou (3) de estado de sítio7. Ademais,
das Forças Armadas a depender da gravidade da situação, pode
ocorrer, ainda, declaração de guerra ou, ao
Compete privativamente ao Presidente menos, de mobilização nacional8.
da República exercer o comando supremo Conforme essa caracterização, as duas
das Forças Armadas, segundo dispõe o primeiras destinações das Forças Armadas
inciso XIII do art. 84 da Constituição1. implicam emprego delas em situações ex-
Do ponto de vista constitucional2, as traordinárias.
Forças Armadas são constituídas pela Porém, nenhum desses dois casos extre-
Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica mos é o objeto desta exposição. Ela se con-
e destinam-se: (1) à defesa da Pátria; (2) à centra na terceira destinação constitucional
garantia dos poderes constitucionais; e, por das Forças Armadas – garantia da lei e da
iniciativa de qualquer destes, (3) à garantia ordem – que não se dá, necessariamente,
da lei e da ordem. sob circunstâncias extraordinárias. Isso
As duas primeiras destinações constitu-
porque, em regra, não requer decretação
cionais das Forças Armadas refletem a mis-
de intervenção federal, de estado de defesa
são elementar delas, qual seja, a proteção do
ou de sítio. Configura, assim, um empre-
próprio Estado e dos respectivos poderes
go típico (porque a própria Constituição
constitucionais, FERREIRA FILHO, 2005,
também o prevê) e ordinário das Forças
p. 239, (isto é, dos órgãos que comungam
Armadas, conquanto submetido ao critério
da soberania do Estado), proteção essa
da subsidiariedade.
levada a efeito contra ameaças externas ou
internas (ou, como dizia o Direito constitu-
cional brasileiro pretérito, “grave comoção 2. Emprego das Forças Armadas na
intestina”3). garantia da lei e da ordem
Nas circunstâncias em causa – ameaças
A teor do art. 144 da Constituição, a se-
externas ou internas contra o Estado ou
gurança pública – cujo fim é “a preservação
contra os respectivos poderes constitucio-
da ordem pública e da incolumidade das
nais –, pode e deve ser posto em prática um
pessoas e do patrimônio” – é exercida pela
regime jurídico excepcional “da defesa do
Polícia Federal, pela Polícia Rodoviária
Estado e das instituições democráticas”4,
Federal, pela Polícia Ferroviária Federal,
ou seja, um estado em que a própria Cons-
pelas Polícias Civis estaduais, pelas Polícias
tituição permite o emprego de recursos
Militares e Corpos de Bombeiros Militares
1
A subordinação das Forças Armadas ao Poder estaduais.
Executivo é uma lição antiga, decorrente da natureza Porém, nesta seara – ou seja, na garantia
das coisas. Veja-se, por exemplo, a explicação de da lei e da ordem –, as Forças Armadas
Montesquieu (1995, p. 124): “O exército, uma vez
também podem atuar. É o que decorre do
estabelecido, não deve depender, imediatamente, do
corpo legislativo, mas do poder executivo; e isso pela
natureza da coisa; seu feito consiste mais na ação do 5
Incisos I a V do art. 34 da Constituição.
que na deliberação.” 6
Art. 136 da Constituição.
2
Caput do art. 142 da Constituição. 7
 Art. 137 da Constituição.
3
 Constituição de 1891, art. 48, no 15. No mesmo 8
Inciso XIX do art. 84 da Constituição. A mobili-
sentido, por exemplo: Constituição de 1946, art. 206, zação nacional é regulamentada pela Lei no 11.631, de
inciso I; Constituição de 1988, art. 137, inciso I. 27 de dezembro de 2007, cujo art. 2o, inciso I, restringe
4
Título V da Constituição. sua execução a caso de agressão estrangeira.

8 Revista de Informação Legislativa


art. 142, caput, in fine, da Constituição9. O Aí estão os princípios fundamentais que
critério e a disciplina do emprego das For- norteiam o emprego das Forças Armadas
ças Armadas na garantia da lei e da ordem na garantia da lei e da ordem:
é dado pela Lei Complementar no 97, de 9 (1) a bem da autonomia federativa,
de julho de 199910. como pressuposto elementar do em-
Assim, a atuação das Forças Armadas, prego das Forças Armadas na garan-
na garantia da lei e da ordem, por solici- tia da lei e da ordem, o esgotamento
tação de qualquer um dos poderes cons- há de ser formalmente reconhecido
titucionais – solicitação essa que sempre pelo Chefe do Poder Executivo da
será submetida ao juízo do Presidente da respectiva esfera federada a que se
República11 –, poderá dar-se a partir do vincula o órgão ou instrumento “es-
esgotamento dos órgãos ou instrumentos gotado”, vale afirmar: (a) o Presidente
destinados à preservação da segurança da República, relativamente à Polícia
pública, relacionados no art. 144 da Cons- Federal, à Polícia Rodoviária Federal
tituição12. e à Polícia Ferroviária Federal; e (b)
Importa, portanto, saber quando se os Governadores dos Estados, relati-
configura o esgotamento. A própria Lei vamente às Polícias Civis estaduais,
Complementar no 97, de 1999, o explica em às Polícias Militares e aos Corpos de
seu art. 15, § 3o: Bombeiros Militares estaduais;
“Consideram-se esgotados os ins- (2) as Forças Armadas atuam, in casu,
trumentos relacionados no art. 144 subsidiariamente, ou seja, somente
da Constituição Federal quando, após “esgotados” os órgãos ou ins-
em determinado momento, forem trumentos destinados à preservação
eles formalmente reconhecidos pelo da segurança pública, relacionados
respectivo Chefe do Poder Executivo no art. 144 da Constituição;
Federal ou Estadual como indisponí- (3) o esgotamento se configura quan-
veis, inexistentes ou insuficientes ao do os órgãos ou instrumentos relacio-
desempenho regular de sua missão nados no art. 144 da Constituição são
constitucional.”13 (ou se tornam) inexistentes, indispo-
níveis ou insuficientes.
9
 “Este preceito autoriza claramente que as Forças
Armadas sejam empregadas no âmbito interno, não
só para garantir os poderes constitucionais quando 3. Papel subsidiário das Forças Armadas
ameaçados, como também para restabelecer a ordem, na garantia da lei e da ordem
ainda quando não houver ameaça para os poderes
constituídos. Permite, portanto, que as Forças Arma- O princípio da subsidiariedade pode
das sejam utilizadas em missão de polícia, se necessá-
ser tido como inerente às relações demo-
rio.” (FERREIRA FILHO, 1990-1994, p. 78).
10
 O art. 144 da Constituição se refere à Polícia Fe- cráticas. Dele decorre que um ente “maior”
deral, à Polícia Rodoviária Federal, à Polícia Ferroviária somente interfere nas coisas de um ente
Federal, às Polícias Civis estaduais, às Polícias Militares “menor” se e quando esse não consegue
e aos Corpos de Bombeiros Militares estaduais como desempenhar uma dada tarefa sua.
“órgãos”. Por sua vez, o § 2o do art. 15 da Lei Comple-
mentar no 97, de 1999, a eles se refere como “instrumen- É interessante observar que a Constitui-
tos”. Nesta exposição, utilizar-se-á, preferencialmente, ção segue essa lógica em diversos aspectos,
a fórmula genérica “órgãos ou instrumentos destinados mormente no que toca à organização fede-
à preservação da segurança pública”. rativa. Isso é bastante claro, por exemplo,
11
§ 1o do art. 15 da Lei Complementar no 97, de
1999. na organização da educação14.
12
 § 2o do art. 15 da Lei Complementar no 97, de Em matéria de segurança pública, o
1999. princípio da subsidiariedade exerce influxo
13
§ 3o acrescentado pela Lei Complementar no 117,
de 2 de setembro de 2004. 14
§§ do art. 211 da Constituição.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 9


duplo: (a) um primeiro, inerente ao papel pública, ou não mobilizá-los em quanti-
último das Forças Armadas relativamente dade suficiente para produzir os efeitos
aos demais órgãos ou instrumentos desti- necessários para debelar a ameaça à lei e
nados à preservação da segurança pública; à ordem a que se deva fazer frente. Nestas
(b) um segundo, inerente às relações fede- circunstâncias, o pronto emprego das For-
rativas entre os entes federados, marcadas ças Armadas fica desde logo autorizado,
que são pela autonomia de cada ente. conforme já deixou assente o Supremo
Primeiro, as Forças Armadas – na ga- Tribunal Federal16.
rantia da lei e da ordem – somente podem
atuar se e quando esgotados os órgãos ou 4. Gradação do princípio da
instrumentos destinados à preservação da subsidiariedade
segurança pública15. Isso se dá inclusive no
plano federal: o Presidente da República Há evidente gradação entre os critérios
somente pode determinar o emprego das da subsidiariedade aplicáveis à espécie:
Forças Armadas na garantia da lei e da or- inexistência, indisponibilidade e insufici-
dem, em seara própria às Polícias Federal, ência.
Rodoviária Federal ou Ferroviária Federal, São inexistentes os órgãos ou instru-
se e quando esgotada uma das três polícias mentos de preservação da segurança
federais (e, claro, desde que reconheça o pública quando, simplesmente, eles são
esgotamento). ausentes ou não existem em um determina-
Segundo, a bem da autonomia federa- do momento e em uma determinada região
tiva, o esgotamento dos órgãos ou instru- do território nacional. Exemplo evidente é
mentos estaduais destinados à preservação a fronteira brasileira na Região Norte, em
da segurança pública há de ser reconhecido que a presença do Estado brasileiro se dá,
pelo respectivo Governador de Estado que, basicamente, por meio de unidades milita-
a seguir, solicitará o emprego das Forças res de fronteira17.
Armadas ao Presidente da República. Indisponível é a qualidade do que exis-
Somente assim poderá o Presidente da te, mas com que não se pode contar. São
República decidir sobre o emprego ou não indisponíveis os órgãos ou instrumentos
das Forças Armadas. de preservação da segurança pública em
Em caso extremo, de falência dos órgãos um determinado momento e em uma
ou instrumentos estaduais destinados à 16
Brasil (2000), de que se extrai o seguinte excerto:
preservação da segurança pública – falên- “(...) O emprego das Forças Armadas ‘... é da respon-
cia essa não reconhecida pelo respectivo sabilidade do Presidente da República’ (LC 97/99, art.
Governador de Estado –, ter-se-á, então, 15). Quando a questão disser com a ‘garantia da lei e
da ordem’, o emprego das Forças Armadas dar-se-á
caso de intervenção federal, com eventual ‘... após esgotados os instrumentos ... relacionados no
emprego das Forças Armadas, inclusive na art. 144 da Constituição Federal’ (LC 97/99, art. 15, §
garantia da lei e da ordem. 2o). A Lei Complementar se refere aos órgãos de se-
gurança pública (Polícias Federal, Rodoviária Federal,
Ademais, não se pode desprezar a hipó- Ferroviária Federal, Civil Estadual, Militar Estadual e
tese de o Governador do Estado não deter- Corpo de Bombeiros). Ter-se-á como esgotados esses
minar a ação dos órgãos ou instrumentos instrumentos, tanto quando a autoridade não deter-
destinados à preservação da segurança minar a sua utilização, como quando a sua utilização
não tiver produzido efeitos. (...)”.
17
Com efeito, a Lei Complementar no 97, de 1999,
 “Só subsidiária e eventualmente lhes incumbe
15
em seu art. 17-A, inciso IV, acrescentado pela Lei Com-
a defesa da lei e da ordem, porque essa defesa é da plementar no 117, de 2004, dispõe que “cabe ao Exército
competência primária das forças de segurança pública, atuar, por meio de ações preventivas e repressivas, na
que compreendem a polícia federal e as polícias civil faixa de fronteira terrestre, contra delitos transfrontei-
e militar dos Estados e do Distrito Federal.” (SILVA, riços e ambientais, isoladamente ou em coordenação
2002, p. 748, grifo do autor). com outros órgãos do Poder Executivo”.

10 Revista de Informação Legislativa


determinada região do território nacional Enfim, as Forças Armadas possuem,
quando, por exemplo, eles existem, porém, por sua própria natureza, poder de polícia.
encontram-se em estado de greve. Esse es- Ora, dado que os órgãos ou instrumentos
tado de coisas já se deu na história brasileira a que se refere o art. 144 da Constituição
recente. Algumas polícias militares esta- possuem poder de polícia e são “forças au-
duais decretaram greve, mas a segurança xiliares e reserva do Exército”18, é evidente
pública foi garantida – legalmente – com o que o Exército, em particular, e as Forças
emprego das Forças Armadas. Armadas, em geral, também possuem igual
Insuficiente é a qualidade do que existe poder de polícia19.
e está disponível, mas sem capacidade de
desempenhar a contento – suficientemente 5. Procedimento de emprego das Forças
– a sua finalidade. Há, aqui, um juízo de
Armadas na garantia da lei e da ordem
valor quantitativo e qualitativo (e, portanto,
de oportunidade e conveniência). Nos dois O primeiro passo é o reconhecimento
primeiros casos (inexistência e indisponibi- do esgotamento pelo Chefe do Poder
lidade), o juízo é meramente quantitativo. Executivo da respectiva esfera federada
Neste terceiro caso, não: o juízo também é a que se vincula o órgão ou instrumento
qualitativo, porque é preciso determinar “esgotado”20.
a medida e a qualidade da insuficiência, A seguir, o Chefe do Poder Executivo
vale afirmar, a partir de que nível e de que interessado solicita, formalmente, ao Presi-
tipo de insuficiência se tem o esgotamento. dente da República, o emprego das Forças
Esse juízo é privativo do Chefe do Poder Armadas na garantia da lei e da ordem.
Executivo da respectiva esfera federada Então, o Presidente da República de-
a que se vincula o órgão ou instrumento cidirá sobre o emprego ou não das Forças
“esgotado”. São insuficientes os órgãos ou Armadas21.
instrumentos de preservação da segurança Em havendo decisão do Presidente da
pública em um determinado momento e República no sentido de empregar as Forças
em uma determinada região do território Armadas, ele encaminhará mensagem ao
nacional quando eles existem e estão dis- Ministro de Estado da Defesa para ativar
poníveis, porém não se mostram capazes os órgãos operacionais daquelas22, “que
de preservar – a contento – a segurança desenvolverão, de forma episódica, em
pública. É o que se dá, por exemplo (ao área previamente estabelecida e por tempo
menos teoricamente), em áreas urbanas
com “bolsões” conflagrados, isto é, com 18
 § 6o do art. 144 da Constituição.
porções territoriais em que os órgãos ou 19
Portanto, é meramente declaratório o art. 6o da
instrumentos de preservação da segurança Lei no 10.683, de 28 de maio de 2003, quando assegura
poder de polícia ao Gabinete de Segurança Institucio-
pública não se fazem efetivos. nal da Presidência da República na “segurança pessoal
Nesse contexto, o emprego subsidiário e do Chefe de Estado, do Vice-Presidente da República
episódico das Forças Armadas na garantia e respectivos familiares, dos titulares dos órgãos
da lei e da ordem – em caso de esgotamento essenciais da Presidência da República, e de outras
dos órgãos ou instrumentos de preservação autoridades ou personalidades quando determinado
pelo Presidente da República, bem como pela segu-
da segurança pública – não caracteriza um rança dos palácios presidenciais e das residências do
emprego excepcional delas. Isso porque Presidente e Vice-Presidente da República”.
não requer decretação de intervenção fede- 20
§ 3o do art. 15 da Lei Complementar no 97, de 1999,
ral, de estado de defesa ou de sítio, muito acrescentado pela Lei Complementar no 117, de 2004.
21
Inciso XIII do art. 84 da Constituição combi-
menos declaração de guerra. Ao contrário, nado com o art. 15, § 1o, da Lei Complementar no 97,
trata-se de emprego ordinário, conquanto de 1999.
esteja condicionado ao princípio da subsi- 22
Caput do art. 15 da Lei Complementar no 97,
diariedade. de 1999.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 11


limitado, as ações de caráter preventivo e Enfim, vale destacar que o emprego das
repressivo necessárias para assegurar o Forças Armadas também pode-se dar em
resultado das operações na garantia da lei atendimento de solicitação de qualquer um
e da ordem”23. dos poderes constitucionais, federais e esta-
Se acaso houver meios disponíveis – duais (na garantia desses), hipótese em que
conquanto insuficientes – da respectiva a solicitação deve ser feita por intermédio
polícia cujo esgotamento foi reconhecido, o dos Presidentes do Supremo Tribunal Fe-
emprego das Forças Armadas pressupõe a deral, do Senado Federal ou da Câmara dos
transferência “do controle operacional dos Deputados28. Aqui, o emprego pode ocorrer
órgãos de segurança pública necessários independentemente da declaração de esgo-
ao desenvolvimento das ações para a au- tamento das forças policiais estaduais por
toridade encarregada das operações” (em parte do Governador do Estado. É o que se
regra, um militar das Forças Armadas), que dá, por exemplo, no âmbito eleitoral29. No
deverá constituir um centro de coordenação limite, poderá haver, inclusive, decretação
de operações24. Essa determinação legal de intervenção federal.
é natural e coerente com a natureza das
polícias militares e corpos de bombeiros
militares estaduais: são “forças auxiliares 6. Abate de aeronaves hostis
e reserva do Exército”25. Hipótese de emprego das Forças Arma-
A legislação esclarece o que seja controle das que merece menção e análise específi-
operacional: “poder conferido à autoridade cas é a do abate de aeronaves hostis.
encarregada das operações, para atribuir e Tem-se, aqui, hipótese de defesa da
coordenar missões ou tarefas específicas Pátria em tempo de paz. Portanto, não se
a serem desempenhadas por efetivos dos trata, stricto sensu, de emprego das Forças
órgãos de segurança pública, obedecidas Armadas na garantia da lei e da ordem,
as suas competências constitucionais ou mas, sim, de emprego delas na sua missão
legais”26. primeira, a defesa da Pátria30, ainda que a
Importa anotar que o emprego das For-
hipótese tenha influxo salutar à garantia da
ças Armadas na garantia da lei e da ordem é
atividade militar para o fim de aplicação do
2004, combinado com o art. 9o, inciso II, alínea “c”,
Código Penal Militar em tempo de paz re- do Decreto-Lei no 1.001, de 21 de outubro de 1969 –
lativamente aos crimes militares praticados Código Penal Militar.
“por militar em serviço ou atuando em razão 28
§ 1o, in fine, do art. 15 da Lei Complementar no
da função, em comissão de natureza militar, 97, de 1999.
29
Inciso XIV do art. 23 da Lei no 4.737, de 15 de
ou em formatura, ainda que fora do lugar julho de 1965 – Código Eleitoral. Neste sentido é o
sujeito à administração militar contra militar entendimento do Supremo Tribunal Federal: “(...) A
da reserva, ou reformado, ou civil”27. decisão sobre o emprego das Forças Armadas, em
qualquer ponto do território nacional, é da competên-
23
§ 4o art. 15 da Lei Complementar no 97, de 1999, cia do Presidente da República, como seu comandante
acrescentado pela Lei Complementar no 117, de 2004, supremo (CF, art. 84, XIII). Tal decisão não se submete
combinado com o caput do art. 5o do Decreto no 3.897, ao juízo de outras autoridades, inclusive as dos Esta-
de 24 de agosto de 2001. dos Federados. Aliás, é o que se passa na Justiça Elei-
24
§ 5o do art. 15 da Lei Complementar no 97, de toral. É da competência do Tribunal Superior Eleitoral
1999, acrescentado pela Lei Complementar no 117, de ‘requisitar força federal necessária ao cumprimento
2004, combinado com o caput do art. 4o do Decreto no da lei, de suas próprias decisões ou das decisões dos
3.897, de 2001. tribunais Regionais que o solicitarem, e para garantir
25
§ 6o do art. 144 da Constituição. a votação e a apuração’ (Código Eleitoral, art. 23, XIV).
26
§ 6o do art. 15 da Lei Complementar no 97, de 1999, A decisão sobre a requisição compete ao TSE, sem
acrescentado pela Lei Complementar no 117, de 2004. consulta necessária às autoridades estaduais. É esse
27
 § 7o do art. 15 da Lei Complementar no 97, de o modelo brasileiro.” (BRASIL, 2000).
1999, acrescentado pela Lei Complementar no 117, de 30
Caput do art. 142 da Constituição.

12 Revista de Informação Legislativa


lei e da ordem, mormente no que toca à re- 13 de junho de 2005, informava que, desde
pressão do tráfico ilícito de entorpecentes. a regulamentação do tiro de abate, a Força
O tiro de abate foi permitido pela Lei no Aérea Brasileira não precisou disparar nem
9.614, de 5 de março de 1998, que incluiu a sequer tiro de aviso. Ao que consta, o tráfico
hipótese de destruição de aeronave hostil ilícito de entorpecentes passou a contornar
no Código Brasileiro de Aeronáutica: o espaço aéreo nacional.
“Esgotados os meios coercitivos Enfim, ações militares para a defesa da
legalmente previstos, a aeronave Pátria não se dão somente após a declara-
será classificada como hostil, ficando ção de guerra. A defesa da Pátria pode e
sujeita à medida de destruição, nos deve-se dar de pronto contra ações hostis
casos dos incisos do caput deste arti- iminentes ou atuais, sejam elas perpetradas
go e após autorização do Presidente por outros Estados ou por organizações
da República ou autoridade por ele criminosas. Entre elas está o tiro de abate,
delegada.”31 haja ou não iminência de guerra. O impor-
A sua regulamentação veio após seis tante, in casu, é permitir que a Pátria possa
anos de longa e bem conduzida negociação resguardar – a si e aos seus – com efetivi-
no plano diplomático, para que o país não dade. Daí a legitimidade constitucional do
sofresse nenhum tipo de embargo ou restri- tiro de abate.
ção eventualmente decorrente de uma má
compreensão da medida por parte de per-
7. Conclusão: papel atual
sonagens da comunidade internacional32.
Não há nenhuma inconstitucionalidade
das Forças Armadas
na medida. Não configura uma pena de Seguindo a tendência natural das
morte. Configura, isso, sim, reação própria democracias contemporâneas, as Forças
à defesa da Pátria, ameaçada pela invasão Armadas brasileiras exercem papel es-
do respectivo espaço aéreo. Ademais, o sencialmente de defesa. Portanto, importa
tiro de abate é a última medida após longo dotá-las de meios dissuasórios mínimos. É
e exaustivo rol de medidas coercitivas de a esse propósito que o Governo brasileiro
averiguação (tentativa de contato33), inter- de há muito cogita a compra de caças de
venção (modificação de rota e pouso coer- interceptação, a construção de submarino
citivos34) e persuasão (tiro de aviso, com com propulsão nuclear, etc.
munição traçante35). Dá-se como última e Porém, além da defesa da Pátria, às
excepcional medida – cercada de diversas Forças Armadas também cabe a defesa da
cautelas 36 – como reação contra quem, própria ordem democrática (“garantia dos
deliberadamente, se coloca à margem do poderes constitucionais”) e a garantia da
Direito brasileiro. lei e da ordem.
A conseqüência prática mais importante Assim, o emprego subsidiário e episó-
da regulamentação do tiro de abate é o seu dico das Forças Armadas na garantia da lei
efeito dissuasório. Reportagem de título e da ordem em caso de esgotamento dos
“Sistema identifica tráfego aéreo desco- órgãos ou instrumentos de preservação da
nhecido”, da Folha de São Paulo, do dia segurança pública possui, como visto, sóli-
do e explícito fundamento constitucional.
31
§ 2o do art. 303 da Lei no 7.565, de 19 de dezembro
de 1986 – Código Brasileiro de Aeronáutica, acrescen-
Não se trata de um uso excepcional. Não re-
tado pela Lei no 9.614, de 1998. quer decretação de intervenção federal, de
32
Decreto no 5.144, de 16 de julho de 2004. estado de defesa ou de sítio, muito menos
33
§ 1o do art. 3o do Decreto no 5.144, de 2004. declaração de guerra. Ao contrário, trata-
34
 § 2o do art. 3o do Decreto no 5.144, de 2004.
35
 § 3o do art. 3o do Decreto no 5.144, de 2004.
se de emprego ordinário, conquanto esteja
36
 Art. 6o do Decreto no 5.144, de 2004. condicionado ao princípio da subsidiarie-

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 13


dade. As Forças Armadas possuem, por sua relegado ao estado de exceção, ao estado de
própria natureza, poder de polícia. natureza, e não goza da proteção do Direi-
Não se diga que as Forças Armadas to38. Portanto, o estado de exceção – em um
não são aptas ao policiamento ordinário Estado Democrático de Direito – deve ser
e ostensivo. Isso porque é a própria Cons- exatamente isso: uma exceção. Os espaços
tituição que confia às Forças Armadas – não alcançados pelo Direito devem ser
ainda que subsidiariamente – a garantia muito poucos, raros. Não se deve banalizar
da lei e da ordem. Assim, elas também o estado de exceção, sob pena de tudo se
devem estar preparadas para essa missão tornar possível (AGAMBEN, 2004, p. 44).
que a Constituição lhes confia. De fato, o Do contrário, pode-se resvalar num estado
Exército Brasileiro, por exemplo, mantém de exceção permanente39.
toda uma Brigada dotada de adestramento Por outro lado, o emprego subsidiário e
e equipamentos específicos à garantia da lei episódico das Forças Armadas, no Direito
e da ordem (11a Brigada de Infantaria Leve constitucional brasileiro, não se situa no
– Garantia da Lei e da Ordem, sediada em âmbito da exceção, mas, sim, no âmbito
Campinas-SP37). Ademais, as Forças Arma- da normalidade (e para manter a norma-
das brasileiras conduzem, com reconhecido lidade).
sucesso, missões de paz no exterior que, não Robert Dahl (2001, p. 165) menciona
raro, implicam ações típicas de garantia da como condição para o desenvolvimento do
lei e da ordem. É o caso, por exemplo, da regime democrático que “as forças militares
Missão das Nações Unidas para Estabiliza- e a Polícia estejam sob pleno controle de
ção no Haiti – MINUSTAH. funcionários democraticamente eleitos”.
Excepcional é o emprego das Forças Ar- Para debelar qualquer risco à democracia,
madas na defesa da Pátria e na garantia dos a Costa Rica, em 1950, deu um exemplo
poderes constitucionais, mormente quando extremo: aboliu os militares (DAHL, 2001,
se dê em função de intervenção federal, de p. 165). Porém, essa não parece ser uma so-
estado de defesa ou de sítio (ainda que não lução boa para a grande maioria dos países.
necessariamente, como no caso do abate de Veja-se, por exemplo, o caso do Haiti, que
aeronaves). também abriu mão de suas Forças Arma-
Giorgio Agamben (2004, p. 23), partindo das. No entanto, em 2004, o Presidente Jean
de Thomas Hobbes e Carl Schmitt, sustenta Bertrand Aristide ficou indefeso quando foi
que “soberano” é aquele que está, ao mes- cercado por milícias armadas. Daí o acerto
mo tempo, dentro e fora do ordenamento da lição dos “homens sábios”, lembrada por
jurídico, é aquele que decide sobre o estado Maquiavel (1997, p. 92): nada é tão fraco
de exceção (AGAMBEN, 2004, p. 19), isto quanto a fama do poder não apoiado nos
é, a situação em que a norma se aplica próprios exércitos.
desaplicando-se, retirando-se da exceção Vocacionadas, sobretudo, à defesa, as
(AGAMBEN, 2004, p. 25). É o soberano Forças Armadas devem zelar pela defesa da
quem define as situações e sujeitos que Pátria e das instituições democráticas, bem
ficam dentro ou fora do ordenamento. As assim pela garantia da lei e da ordem, sem-
situações e os sujeitos postos de fora do pre que, para tanto, não bastem os órgãos
ordenamento ficam ao abandono da lei
(AGAMBEN, 2004, p. 36). Nesse sentido, o
38
A argumentação é extrema. Tanto é assim que
Agamben (2004, p. 79-81) prossegue explicando que
estado de natureza hobbesiano sobrevive aquele que está fora do ordenamento vive, por isso,
na pessoa do soberano (AGAMBEN, 2004, uma “vida nua”, passível, inclusive, no limite, de
p. 41). Fora do ordenamento, o sujeito fica morte, mas sem que isso configure homicídio.
39
Bruce Ackerman (2004, p. 1045) registra que o
37
Cf. art. 1o do Decreto no 5.261, de 3 de novembro Estado de Israel, desde a sua criação, vive sob perma-
de 2004. nente estado de emergência.

14 Revista de Informação Legislativa


ou instrumentos destinados à preservação AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e
da segurança pública. Porém, porque são a a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2004.
última reserva de força do Estado, devem BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de
ser manejadas para ganhar. Não podem ser Segurança no 23.766/DF. Relator: Ministro Nelson
desmoralizadas. Logo, o emprego das For- Jobim. Brasília, 18 de setembro de 2000. Diário da
Justiça, Brasília, 21 set. 2000.
ças Armadas na garantia da lei e da ordem
deve ser decidido com extrema prudência, DAHL, Robert. Sobre a democracia. Brasília: UnB,
2001.
para que não haja banalização do recurso e,
em especial, para que não seja preciso – em FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários
momento imediatamente subseqüente – à constituição brasileira de 1988. São Paulo: Saraiva,
1990-1994. 3 v.
recorrer a mecanismo excepcional, como a
intervenção federal, o estado de defesa ou ______ . Curso de direito constitucional. 31. ed. São Paulo:
o estado de sítio. Saraiva, 2005.
MACHIAVELLI, Nicollò. O príncipe. 2a ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1997.

Referências MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat. O espíri-


to das leis. Tradução de Fernando Henrique Cardoso e
ACKERMAN, Bruce. The emergency constitution. Leôncio Martins Rodrigues. Brasília: UnB, 1995.
The Yale Law Journal, New Harven, v. 113, n. 8, p. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional
1029-1091, 1 jun. 2004. positivo. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

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Limites constitucionais do decreto
regulamentar na criação e extinção de
órgãos e cargos públicos no âmbito do
Estado do Rio Grande do Norte

Vladimir da Rocha França

Sumário
1. Introdução. 2. Previsão da competência
regulamentar na Constituição Federal de 1988
e na Constituição do Estado do Rio Grande do
Norte de 1989. 3. Criação e extinção de órgãos
públicos. 4. A criação e a extinção de cargo pú-
blico. 5. Conclusão.

1. Introdução
Na implantação ou mudança de modelos
para a gestão pública estadual, é freqüente
a demanda pela criação e extinção de ór-
gãos e cargos de provimento em comissão
no âmbito da Administração. Por diversas
razões, os compromissos partidários e as
reivindicações legítimas dos grupos que
partilham o poder político esbarram nos
limites jurídicos impostos pelo sistema do
direito positivo.
Como nem sempre o regime constitu-
cional do processo legislativo é compatível
com a celeridade que se deseja impor nesse
escopo organizacional, o Governador do
Estado pode-se sentir tentado a dispor
sobre a matéria mediante a expedição de
decretos. No caso do Estado do Rio Gran-
de do Norte, isso não encontraria maiores
Vladimir da Rocha França é mestre em
obstáculos em razão do disposto no art. 11
Direito Público pela Universidade Federal de
Pernambuco. Doutor em Direito Administrativo
da Lei Complementar Norte-rio-grandense
pela Pontifícia Universidade Católica de São no 163, de 5.2.1999.
Paulo. Professor Adjunto do Departamento de Nesse dispositivo, reconhece-se a com-
Direito Público pela Universidade Federal do petência do Governador do Estado para re-
Rio Grande do Norte. gulamentar a estrutura e o funcionamento

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 17


de cada uma das unidades da administração Os decretos são os veículos previstos
direta, das autarquias e fundações públicas pelo direito positivo para as manifesta-
por meio de decreto.1 Todavia, nenhum ções do Chefe do Poder Executivo (Cf. DI
preceito legal deve ser compreendido com PIETRO, 2002, p. 222). Podem introduzir
desprezo às demais normas que compõem normas individuais (como um decreto de
o ordenamento jurídico vigente. desapropriação) ou normas gerais (quando
O objetivo do presente ensaio é justa- dão forma aos regulamentos) no ordena-
mente aferir que limites devem ser obser- mento jurídico.
vados pelo Governador do Estado no uso Os regulamentos são atos jurídicos
de decretos para a criação e extinção de expedidos pelo Chefe do Executivo que
órgãos públicos e de cargos de provimento inserem, no sistema do direito positivo,
em comissão, à luz da Constituição Federal normas gerais que têm por finalidade
de 1988 e da Constituição do Estado do Rio a complementação da lei ou da própria
Grande do Norte de 1989. Constituição, quando exigido o desenvol-
vimento de atividade administrativa (Cf.
2. Previsão da competência ATALIBA, 1998, p. 135).
regulamentar na Constituição Federal Como se sabe, cada Estado Federado
de 1988 e na Constituição do Estado tem os poderes de auto-organização e de
autolegislação, sendo-lhes conferido o
do Rio Grande do Norte de 1989
direito de se reger por sua Constituição e
A Administração Brasileira, por injun- pelas leis que editar na esfera de sua com-
ção do princípio da legalidade administrati- petência, respeitados os preceitos da Cons-
va, encontra-se subordinada à lei. Enquanto tituição Federal (Cf. CLÈVE, 1993, p. 56-83;
o particular pode realizar tudo o que lei não HORTA, 2003, p. 361-448; SILVA, 2002, p.
proíbe, a Administração somente tem legiti- 589-598)2. Na ordenação dos poderes do
midade para agir quando a lei lhe autoriza, Estado Federado na respectiva Constitui-
conforme da lição clássica de Hely Lopes ção, é preciso que se observe o modelo de
Meirelles (2001, p. 82-83). Poder Executivo previsto na Constituição
O princípio da legalidade administrati- Federal para a União (Cf. SILVA, 2002, p.
va constitui um dos alicerces fundamentais 609, 624-625).
do regime jurídico-administrativo. Não há No Estado do Rio Grande do Norte,
como se conceber um Estado de Direito a competência privativa do Governador
sem essa noção crucial. Entretanto, além do Estado para expedir decretos e regu-
de garantia do cidadão contra eventuais lamentos para a fiel execução da lei tem
arbítrios do Estado, a legalidade serve arrimo no art. 64, inciso V, da Constituição
como instrumento que viabiliza a ação da Estadual3.
Administração na concretização do inte- Para a compreensão do sentido e do
resse público. alcance do regulamento, perante o ordena-
Não obstante, a expedição de normas mento jurídico brasileiro, é imprescindível
gerais não é atributo exclusivo do legisla- entender a sua relação com a legalidade e
dor. Entre os instrumentos introdutores de com a teoria da “separação dos poderes”.
normas gerais no ordenamento jurídico, O direito positivo brasileiro consagrou,
há os decretos. como próprio de qualquer ordenamento ju-
1
“Art. 11. O Governador do Estado regulamen- 2
Vide art. 28 da Constituição Federal.
tará, por decreto, a estrutura e o funcionamento de 3
“Art. 64. Compete privativamente ao Governa-
cada uma das unidades da Administração Direta, dor do Estado: (...) V – sancionar, promulgar e fazer
Autárquica e Fundacional, indicadas neste Título e publicar as leis, bem como expedir decretos e regula-
constante do Anexo I, parte integrante desta Lei”. mentos para sua fiel execução”.

18 Revista de Informação Legislativa


rídico de base republicana e democrática, o A função administrativa compreende a
princípio da separação funcional do poder. expedição de normas complementares à lei,
No art. 2o, da Constituição Estadual, temos expedidas por quem esteja numa posição
o seguinte enunciado: de autoridade e supremacia e sujeitas ao
“Art. 2 o São Poderes do Estado, controle jurisdicional, com a finalidade de
independentes e harmônicos entre concretizar o interesse público. A ativida-
si, o Legislativo, o Executivo e o de administrativa, como toda a atividade
Judiciário”. estatal, encontra-se subordinada ao orde-
Nos dias atuais, não há rigor na expres- namento jurídico como um todo. Daí a
são “separação dos poderes”, haja vista a existência de acertada opinião doutrinária
divisão de trabalho que os ordenamentos que prefere denominar juridicidade ad-
jurídicos modernos adotam para as fun- ministrativa essa necessária sujeição entre
ções jurídicas do Estado, identificando no a Administração e o direito positivo (Cf.
povo a legitimidade do poder do Estado4. FRANÇA, 2000, p. 52-68).
É evidente que, consoante a dogmática Outra característica própria da função
jurídica, o perfil do princípio da separação administrativa é o princípio da hierarquia,
funcional do poder será delineado pelo inexistente nas demais funções do Estado.
direito positivo. Todavia, conforme o perfil constitu-
Tal delineamento é identificado me- cional da legalidade no direito positivo
diante a compreensão do regime jurídico brasileiro, a atividade administrativa é
que orienta a estática e a dinâmica de cada uma atividade infralegal, que se encontra
função estatal. As funções do Estado, no especialmente subordinada à lei. Lei, aqui e
direito positivo brasileiro, são essencial- no texto constitucional, deve ser entendida
mente três: a função legislativa, a função como o veículo introdutor empregado pelo
administrativa e a função jurisdicional. Poder Legislativo para a exercer sua função
A função legislativa corresponde à ativi- típica, qual seja: a função legislativa.
dade de expedição de normas jurídicas que Sobre o assunto, calha transcrever o
inovam originariamente o direito positivo, seguinte ensinamento de Celso Antônio
uma vez que goza de fundamento direto Bandeira de Mello (2002, p. 311, grifo do
na Constituição. Esses preceitos jurídicos autor):
devem-se subordinar às normas constitu- “(...) é livre de qualquer dúvida ou
cionais e somente podem ser validamente entredúvida que, entre nós, por
expedidos segundo os imperativos regentes força dos arts. 5o, II, 84, IV, e 37 da
do processo legislativo. Constituição, só por lei se regula liber-
No art. 5o, inciso II, da Constituição dade e propriedade; só por lei se impõem
Federal, enuncia-se que ninguém será obrigações de fazer ou não fazer. Vale
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma dizer: restrição alguma à liberdade ou à
coisa senão em virtude de lei. E, nos termos propriedade pode ser imposta se não es-
do art. 37, caput, da Constituição Federal, e tiver previamente delineada, configurada
do art. 26, caput, da Constituição Estadual5, e estabelecida em alguma lei, e só para
a Administração se encontra subordinada cumprir dispositivos legais é que o
ao princípio da legalidade. Executivo pode expedir decretos e
regulamentos.
4
Ver art. 1o, parágrafo único, da Constituição Este último traço é que faz do regu-
Federal. lamento, além de regra de menor
5
“Art. 26. A administração pública direta, indireta
e fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado e
força jurídica que a lei, norma de-
dos Municípios, obedecerá aos princípios da legalida- pendente dela, pois forçosamente a
de, impessoalidade, moralidade e publicidade (...)”. pressupõe, sem o quê nada poderia

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 19


dispor. No Direito pátrio, sem a lei do que está incluído nas matérias de
não haveria espaço jurídico para o reserva de lei, há de ser colhida no
regulamento”. texto constitucional; quanto a tais
A Constituição Estadual, em seu art. 64, matérias não cabem regulamentos.
inciso VII, confere ao Chefe do Poder Exe- Inconcebível a admissão de que o
cutivo a competência para expedir normas texto constitucional tivesse disposi-
gerais para disciplinar a organização e o ção despicienda – verba cum effectu
funcionamento da Administração Estadual, sunt accipienda”.
na forma da lei6. Entretanto, Geraldo Ataliba (1998)
Diante do enunciado do art. 5o, inciso II, apresenta um temperamento que deve ser
da Lei Maior, há duas situações que devem observado na questão. Os regulamentos
ser levadas em consideração: a vinculação existem justamente para dar concreção
da Administração às definições da lei; e a às leis administrativas, ou seja, àqueles
vinculação da Administração às definições diplomas legais que demandam a ação ad-
fixadas em virtude da lei (GRAU, 1996, ministrativa para a materialização de suas
p. 183). No primeiro caso, esclarece Eros finalidades. Cabe ao regulamento estabele-
Roberto Grau (1996, p. 183), está-se diante cer que órgãos, em que condições e quais
da reserva da lei; no segundo, da reserva os instrumentos que deverão ser utilizados
da “norma”, entendida esta como preceito pela Administração na concretização da lei
abstrato e geral. (ATALIBA, 1998, p. 139).
Não há necessariamente ofensa ao prin- Explica ainda Geraldo Ataliba (1998, p.
cípio da legalidade quando a lei confere 140) que a responsabilidade última pela fiel
ao Poder Executivo a competência para observância das leis administrativas é do
expedir normas gerais, como bem esclarece Chefe do Poder Executivo e, portanto, as
Eros Roberto Grau (1996, p. 184): responsabilidades dos servidores públicos
“Voltando ao art. 5o, II, do texto cons- a ele subordinados se coordenam com a
titucional, verificamos que, nele, o responsabilidade daquele.
princípio da legalidade é tomado em Tal consideração encontra eco no siste-
termos relativos, o que induz a con- ma constitucional em vigor. Afinal, cabe
clusão de que o devido acatamento lhe ao Governador do Estado “exercer, com
estará sendo conferido quando – ma- auxílio dos Secretários de Estado, a dire-
nifesta, explícita ou implicitamente, ção superior da administração estadual”7,
atribuição para tanto – ato normativo devendo responder pelos crimes de res-
não legislativo, porém regulamentar ponsabilidade que praticar na forma da
(ou regimental), definir obrigação de legislação pertinente8.
fazer ou de não fazer alguma coisa Como bem assevera Geraldo Ataliba
imposta a seus destinatários”. (1998, p. 140):
Lembra ainda Eros Roberto Grau (1996, “(...) o regulamento pode ser inova-
p. 184) que: dor; pode criar deveres e obrigações
“(...) se há um princípio de reserva da para os subordinados ao editor (fun-
lei – ou seja, se há matérias que só po- cionários, servidores, agentes públi-
dem ser tratadas pela lei –, evidente cos) ou para os órgãos sujeitos à sua
que as excluídas podem ser tratadas
em regulamentos; quanto à definição 7
Vide art. 64, inciso III, da Constituição Esta-
dual.
6
“Art. 64. Compete privativamente ao Governa- 8
Vide o art. 65, caput, da Constituição Estadual:
dor do Estado: (...) VII – dispor sobre a organização e “Art. 65. São crimes de responsabilidade do Governa-
funcionamento da administração estadual, na forma dor os definidos em lei federal, que estabelece normas
da lei”. de processo e julgamento”.

20 Revista de Informação Legislativa


tutela (autarquias, fundações, socie- plinarem diretamente a liberdade e a pro-
dades de economia mista, empresas priedade dos mesmos. Impõe o princípio
públicas e até concessionárias), desde da legalidade que toda e qualquer restrição
que esses deveres e obrigações sejam à liberdade e à propriedade do cidadão
instrumentos do fiel cumprimento somente tem legitimidade se instituída e
das leis. regulada por lei.
(...) o administrado investido num di- Celso Antônio Bandeira de Mello (2002,
reito por uma lei, ao dirigir-se a uma p. 317) explica que o regulamento não pode
repartição, somente poderá tratar, inserir, no sistema do direito positivo,
no horário fixado por regulamento, qualquer direito ou dever desprovido de
com o órgão também nele previsto, previsão em lei:
na pessoa dos servidores escalados, “Há inovação proibida sempre que
usando os formulários regularmente seja impossível afirmar-se que aquele
prescritos. Na medida em que os específico direito, dever, obrigação,
agentes públicos – pela subordinação limitação ou restrição já estavam
hierárquica –são constrangidos por estatuídos e identificados na lei re-
essas regras o terceiro que com eles gulamentada. Ou reversamente: há
trate a elas se deve conformar”. inovação proibida quando se possa
Diante dos preceitos constitucionais afirmar que aquele específico direito,
expostos, visualizam-se três espécies de dever, obrigação, limitação ou res-
regulamento no direito positivo pátrio: os trição incidentes sobre alguém não
(i) regulamentos de execução, os (ii) regula- estavam já estatuídos e identificados
mentos autorizados e os (iii) regulamentos na lei regulamentada. A identificação
autônomos. O regulamento de execução e não necessita ser absoluta, mas deve
o regulamento autorizado se apresentam ser suficiente para que se reconheçam
sob a forma de decreto regulamentar; os as condições básicas de sua existência
regulamentos autônomos, sob a forma de em vista de seus pressupostos, esta-
decreto autônomo. belecidos na lei e nas finalidades que
Os regulamentos de execução são aque- ela protege”.
les que se limitam a viabilizar a aplicação O ensinamento de Celso Antônio Ban-
de normas veiculadas pela lei, que exigem deira de Mello tem plena aplicabilidade,
a atuação da Administração. Procuram desde que se trate de relação de supremacia
conferir uma melhor densidade à aplicação geral da Administração. Realmente, have-
da lei no âmbito administrativo. ria uma delegação legislativa disfarçada
Mediante os regulamentos de execução se a lei autorizasse ao Chefe do Poder
há: (i) o estabelecimento de aspectos proce- Executivo a expedição de regulamentos
dimentais relevantes para a implementação instituidores de restrições ou benefícios à
dos mandamentos legais; (ii) a disciplina do liberdade e à propriedade do administrado.
exercício das competências discricionárias Sem sombra de dúvida, uma séria violação
que a lei reconhece à Administração; e (iii) à juridicidade.
a outorga de uma maior densidade aos Entretanto, tal postura não se pode
termos jurídicos fluidos empregados no estender a todas as relações jurídicas man-
texto legal. tidas pela Administração.
Essa espécie de regulamentos destina- Os regulamentos autorizados decorrem
se à regulação das relações de supremacia da atribuição legal expressa ou implícita de
geral da Administração. São vínculos competência para expedir normas gerais
jurídico-administrativos que envolvem a que envolvam relações de supremacia es-
generalidade dos administrados, por disci- pecial da Administração.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 21


As relações de supremacia especial da Ademais, os regulamentos autorizados
Administração são vínculos específicos en- mantêm uma relação de dependência com
tre o Estado e determinados administrados. a lei e a ela se encontram subordinados. E,
São vínculos que não envolvem a generali- de modo algum, apresentam uma quebra
dade dos administrados, seja porque esco- da juridicidade administrativa.
lheram o regime de sujeição especial, seja Os regulamentos autônomos obtêm fun-
porque se exige uma regulação interna mais damento direto na norma constitucional.
detalhada. Elas demandam prerrogativas Em vez da lei, existem para complementar
especiais para a Administração, tais como a própria Lei Maior. São vias lícitas, in-
a de instituir direitos e deveres para aqueles clusive, para instituir direitos e deveres,
que estejam envolvidos numa relação de quando evidentemente admitidos pelo
sujeição especial. São exemplos clássicos: ordenamento jurídico em vigor.
os servidores públicos; os contratados pela O regulamento autônomo não é da
Administração sob o regime dos contratos tradição do direito positivo pátrio. Porém,
administrativos; os matriculados em insti- a sua inserção no ordenamento jurídico é
tuições públicas de ensino; os internados bastante recente.
em hospitais públicos, entre outros. O direito positivo vigente somente
Como bem afirma Celso Antônio Bandei- admite o regulamento autônomo em uma
ra de Mello (2002, p. 701-702), essas intera- única situação: aquela prevista no art. 84,
ções demandam uma disciplina interna, que inciso VI, “a”, da Lei Maior (com a redação
impõe a necessidade da instituição de res- que lhe conferiu a Emenda Constitucional
trições e benefícios aos administrados para no 32, de 11.9.2001) (DI PIETRO, 2002, p.
viabilizar o bom desenvolvimento das ativi- 89)9. A Administração Federal tem, por
dades delas decorrentes. E adverte ainda que conseguinte, a competência para expedir
é impossível, impróprio e inadequado que a regulamentos sobre a sua organização e
lei seja considerada o único instrumento para funcionamento, desde que não impliquem
regular as relações de sujeição especial, sob aumento de despesa nem a criação ou ex-
pena de se criarem disposições legislativas tinção de órgãos públicos.
excessivamente minuciosas ou de se para- A Constituição Estadual não admitiu
lisar atividades administrativas essenciais os regulamentos autônomos. Eles somente
diante da ausência da norma legal. seriam juridicamente viáveis se houvesse
No que diz respeito ao regulamento emenda constitucional que os instituísse.
incidente sobre as relações de supremacia Depois desse breve panorama sobre a
especial, é imprescindível que haja previsão competência regulamentar, procurar-se-á
expressa de sua admissibilidade na lei. Bem desvendar melhor a questão que se propôs
como de que seja expedido na medida do elucidar no presente ensaio.
que for razoável e proporcional ao interesse
público que justifica a existência do vínculo 3. Criação e extinção de órgãos públicos
de sujeição especial. Também parece claro
Guiando-se pela definição jurídico-posi-
que esse regulamento deverá restringir-
tiva posta no art. 1o, § 2o, da Lei Federal no
se ao âmbito da relação de supremacia
9.784/1999, os órgãos públicos compreen-
especial, sendo vedado ao Chefe do Poder
dem as unidades de atuação que integram
Executivo empregar tal ato para atingir
a liberdade e a propriedade de terceiros. 9
Esclarece ainda Di Pietro (2002, p. 89) que a
E, por fim, é inadmissível que o regula- hipótese prevista no art. 84, inciso VI, alínea “b”,
não compreende regulamento, haja vista se tratar ato
mento autorizado afronte norma legal ou de efeito concreto e individual. Pela persistência da
constitucional, ou que prevaleça diante da vedação aos regulamentos autônomos, ver José dos
superveniência destes comandos. Santos Carvalho Filho (2002, p. 44-46).

22 Revista de Informação Legislativa


a estrutura da Administração Direta e da dependentes; (ii) órgãos autônomos; (iii)
estrutura da Administração Indireta. São órgãos superiores; e, (iv) órgãos subalternos
compostos de atribuições do Estado que (Cf. MEIRELLES, 2001, p. 65-9).
devem ser exercidas pelos agentes que o Os órgãos independentes são aqueles
integram, dentro de uma pessoa jurídica. previstos diretamente pela Constituição
Os órgãos públicos são desprovidos de e que representam os três Poderes do
personalidade jurídica (Cf. MELLO, 2002, Estado. Não se submetem à subordinação
p. 122; DI PIETRO, 2002, p. 426). Na verda- hierárquica ou funcional e têm como titu-
de, são simples repartições de competências lares os agentes políticos. A Assembléia
na intimidade da pessoa jurídica estatal. Legislativa é um bom exemplo de órgão
Consoante a precisa lição de Celso Antônio independente.
Bandeira de Mello (2002, p. 122): Os órgãos autônomos localizam-se
“Então, para que tais atribuições se na cúpula da Administração, estando
concretizem e ingressem no mundo diretamente subordinados aos órgãos
natural é necessário o concurso de independentes. Esses órgãos dispõem de
seres físicos, prepostos à condição autonomias administrativa, financeira e
de agentes. O querer e o agir des- técnica e participam das decisões de Go-
tes sujeitos é que são, pelo Direito, verno. As Secretarias de Estado são órgãos
diretamente imputados ao Estado autônomos.
(manifestando-se por seus órgãos), de Os órgãos superiores são órgãos de
tal sorte que, enquanto atuam nesta direção, controle e comando, mas que se
qualidade de agentes, seu querer e encontram subordinados e sob o controle
seu agir são recebidos como o querer de uma chefia, carecendo de autonomia
e o agir dos órgãos componentes do administrativa e financeira. Como exemplo,
Estado; logo, do próprio Estado. Em o Gabinete do Secretário de Estado.
suma, a vontade e ação do Estado E, por fim, os órgãos subalternos estão
(manifestada por seus órgãos, repita- subordinados aos órgãos superiores e se li-
se) são constituídas na e pela vontade mitam a funções de execução. As unidades
e ação dos agentes; ou seja: o Estado e instrumentais de planejamento e finanças
órgãos que o compõem se exprimem são exemplos precisos desses entes.
através dos agentes, na medida em O art. 46, §1o, inciso II, alínea “c”, da
que ditas pessoas físicas atuam nesta Constituição Estadual, estabelece que é de
posição como veículos da expressão iniciativa do Governador do Estado a lei
do Estado”. que disponha sobre a criação, estruturação
E como bem leciona Maria Sylvia Za- e atribuições das Secretarias, Polícia Militar,
nella Di Pietro (2002, p. 427): Polícia Civil e órgãos da administração
“A existência de órgãos públicos, com pública10.
estrutura e atribuições definidas em No art. 37, inciso XV, da Constituição
lei, corresponde a uma necessidade Estadual, prescreve-se que cabe à Assem-
de se distribuir racionalmente as inú-
meras e complexas atribuições que 10
“Art. 46. A iniciativa das leis complementares
e ordinárias cabe a qualquer Deputado ou Comissão
incumbem ao Estado nos dias de hoje. da Assembléia Legislativa, ao Governador do Estado,
A existência de uma organização e de ao Tribunal de Justiça e de Contas, ao Procurador
uma distribuição de competências Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos
são atualmente inseparáveis da idéia previstos nesta Constituição. § 1o São de iniciativa do
Governador do Estado as leis que: (...) II – disponham
de pessoas jurídicas estatais”. sobre: (...) c) criação, estruturação e atribuições das
Quanto à posição no Estado, os órgãos Secretarias, Polícia Militar, Polícia Civil e órgãos da
públicos se classificam em: (i) órgãos in- administração pública”.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 23


bléia Legislativa, com a sanção do Chefe que orientam a ação dos órgãos e agentes
do Poder Executivo, dispor sobre a criação, públicos. O agente hierarquicamente su-
estruturação e atribuições das Secretarias perior encontra-se investido dos seguintes
de Estado, Procuradorias Gerais, Defenso- poderes: (i) o poder de comando, que lhe
ria Pública, Polícia Militar, Polícia Civil e autoriza expedir normas gerais ou indivi-
órgãos da administração pública11. duais para os subalternos no interesse da
Em seu art. 48, parágrafo único, inciso I, ação administrativa; (ii) o poder de fisca-
a Constituição Estadual impõe que depen- lização das atividades dos subordinados;
de de lei complementar a organização do (iii) o poder de revisão, abrangendo as
Poder Executivo12. competências de invalidação e de revoga-
No art. 67 da Constituição Estadual, ção; (iv) o poder disciplinar sobre a conduta
determina-se peremptoriamente que a lei dos subordinados; (v) o poder de resolver
deve dispor sobre a criação, estruturação e conflitos de competência entre os subordi-
atribuições das Secretarias13. nados; (vi) o poder de delegar ou avocar
E, no art. 64, inciso VII, a Constituição competências nos termos da lei.
Estadual confere ao Governador do Estado A palavra “órgãos”, nos dispositivos
dispor sobre a organização e funcionamen- constitucionais citados, abrange apenas os
to da administração estadual, na forma da órgãos autônomos da Administração que
lei, como já foi visto. gozam, ao lado dos órgãos independentes,
Numa interpretação literal, o direito de individualidade própria (Cf. DI PIETRO,
positivo pátrio aparentemente colocaria, 2002, p. 195)14. Em outras palavras, a criação
sob a reserva da lei, a criação e extinção de e a extinção desses órgãos públicos é maté-
todo e qualquer órgão da administração ria subordinada à reserva da lei.
estadual. Todavia, tal posicionamento Inclusive, somente a lei complementar
fere os princípios que regem a atividade é veículo legítimo para criar e conferir
administrativa. atribuições aos órgãos autônomos da Ad-
Entre as técnicas jurídico-administra- ministração direta, nos termos do art. 48,
tivas previstas no ordenamento jurídico parágrafo único, inciso I, e do art. 67 da
brasileiro, há a desconcentração. Mediante Constituição Estadual15. As autonomias
a desconcentração, as pessoas jurídicas es- administrativa, financeira e técnica de que
tatais fazem uma redistribuição de compe- gozam precisam ser predeterminadas pela
tências administrativas em sua intimidade, lei, até por exigência da responsabilidade
estando relacionada à hierarquia (MELLO, fiscal.
2002, p. 132; DI PIETRO, 2002, p. 349). Todavia, esses órgãos administrativos
A hierarquia constitui um complexo de podem sofrer, sem maiores riscos para a
relações de coordenação e subordinação liberdade e a propriedade do administra-
do, um processo de desconcentração, se
11
“Art. 37. Cabe à Assembléia Legislativa, com a lei complementar assim autorizar. Em
a sanção do Governador do Estado, não exigida esta outras palavras, a lei complementar — a
para o especificado no art. 35, dispor sobre todas as
que se faz referência no art. 48, parágrafo
matérias de competência do Estado, especialmente
sobre: (...) XV – criação, estruturação e atribuições das único, inciso I, e no art. 67 da Constituição
Secretarias de Estado, Procuradorias Gerais, Defenso- Estadual — pode remeter para regulamento
ria Pública, Polícia Militar, Polícia Civil e órgãos da
Administração Pública;” 14
O que não significa reconhecer-lhes personali-
12
“Art. 48. (...) Parágrafo único: Além daquelas dade jurídica, alerte-se.
previstas na Constituição Federal e nesta Constituição, 15
Como também para a sua extinção, por questão
dependem de lei complementar as seguintes matérias: de simetria. Se há exigência de lei complementar para
(...) I – organização do Poder Executivo”. criar o órgão, e não havendo qualquer dispositivo
13
“Art. 67. A lei dispõe sobre a criação, estrutura- constitucional expresso em contrário, deve-se presu-
ção e atribuições das secretarias”. mir que a mesma via é exigida para a sua extinção.

24 Revista de Informação Legislativa


a estruturação das Secretarias sem haver ser observado que, apesar da sua criação
quebra à juridicidade administrativa. Veja- e extinção estar subordinada à reserva da
se ensinamento de Maria Sylvia Zanella Di lei17, a sua organização e funcionamento
Pietro (2002, p. 196), ao se referir aos órgãos podem ser realizados mediante decreto
que detêm individualidade própria, após regulamentar. Explica Hely Lopes Meirelles
comentar os enunciados do art. 61, §1o, (2001, p. 327, grifo do autor):
inciso II, e do art. 84, inciso VI, ambos da “(...) a instituição das autarquias, ou
Constituição Federal: seja, sua criação, faz-se por lei espe-
“Embora a competência do Poder cífica (art. 37, XIX), mas a organização
Executivo tenha sido reduzida a se opera por decreto, que aprova o
quase nada, em decorrência dos já regulamento ou estatuto da entidade,
citados dispositivos constitucionais, e daí por diante sua implantação se
isso não impede que se faça, interna- completa por atos da diretoria, na
mente, subdivisão dos órgãos criados forma regulamentar ou estatutária,
e estruturados por lei, como também independentemente de quaisquer
não impede a criação de órgãos como registros públicos” (Cf. GASPARINI,
comissões, conselhos e grupos de 2002, p. 283-284).
trabalho”. E, para corroborar, merece transcrição
O regulamento expedido para realizar mais um ensinamento de Celso Antônio
tal desconcentração tem natureza autoriza- Bandeira de Mello (1979, p. 66-67):
da. Afinal, permite-se que o Governador do “Só por lei se criam autarquias.
Estado possa dispor sobre a organização e Com efeito, por se tratar de um
funcionamento da Administração estadual, desdobramento do próprio Estado,
desde que na forma da lei. E, sem dúvida, de uma fragmentação de seu corpo
essa matéria se insere dentro da supremacia administrativo e, simultaneamente,
especial da Administração. da ereção de um novo sujeito de ‘di-
E, se a desconcentração sob análise é reitos e deveres públicos’, nenhum
viável, por simetria, a concentração de ato inferior poderia instaurá-la. Uma
atribuições na intimidade dos órgãos au- vez que a organização do Estado é
tônomos também o será. decidida em nível constitucional ou
O regulamento autorizado, contudo, não legal, não seria admissível que ato
pode validamente inserir, no ordenamento menor pudesse alterar um esquema
jurídico, dispositivo que vá de encontro aos formulado no plano legal.
preceitos constitucionais e legais. Se a lei Ocorre que, freqüentemente, para dar
define as competências do órgão autônomo, cumprimento ao mandamento da lei,
o regulamento, ainda que autorizado, tem o Executivo expede decreto instituin-
que se limitar a desdobrar tais atribuições do a autarquia. No caso, tal ato não
e respeitar aquelas que foram conferidas a significa criação, mas determinação
outros órgãos. Embora esse regulamento administrativa de afetar os meios
tenha fundamento direto na lei, esta deve necessários ao efetivo funcionamento
naturalmente prevalecer. de um ser que juridicamente ganhou
No caso das pessoas administrativas — existência com a lei criadora.
autarquias e fundações públicas16 —, deve Assim, como só por lei se criam,
só por lei se extinguem entidades
16
As fundações públicas se encontram subordi-
nadas ao mesmo regime jurídico das autarquias, com 17
Vide o art. 26, inciso XIX, da Constituição Es-
algumas peculiaridades (art. 5o, inciso II, e § 3o, do tadual: “Art. 26. (...) XIX – somente por lei específica
Decreto-lei no 200, de 25.2.1967) (Cf. MELLO, 2002, pode ser criada empresa pública, sociedade de econo-
p. 160-164). mia mista, autarquia e fundação pública”.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 25


autárquicas. A razão é óbvia: o que Assim, caso uma Secretaria de Estado
no plano legal foi construído só no tenha sido criada por lei complementar
mesmo nível pode ser destruído. Se o sem que esta lhe confira qualquer poder,
Executivo, por decreto, as extinguis- fica vedada a expedição de decreto regula-
se – ou lhes modificasse a natureza mentar para fazê-lo a fim de convalidá-la.
– estaria simplesmente violando a A lei complementar, por sua vez, será o
lei em que se originaram. O decreto instrumento hábil para regularizá-la.
é ato subalterno à lei e da alçada de
um Poder cuja missão é cumprir a lei,
obedecer aos mandamentos do Poder 4. A criação e a extinção de cargo público
Legislativo”. Os cargos públicos, nas palavras de
Há um último aspecto a ser enfrentado. Celso Antônio Bandeira de Mello (2002, p.
O art. 51 da Constituição Estadual, que 226-227, grifo do autor),
dispõe sobre as leis delegadas, prescreve “(...) são as mais simples e indivisíveis
em seu § 1o que não pode ser objeto de unidades de competência a serem
“delegação” matéria reservada à lei com- expressadas por um agente, previstas
plementar18. Como já se viu, a Constituição em número certo, com denominação
Estadual — art. 48, parágrafo único, inciso I própria, retribuídas por pessoas jurí-
— coloca sob a reserva da lei complementar dicas de Direito Público e criadas por
a organização do Poder Executivo. lei, salvo quando concernentes aos
O que se veda é a previsão legal de regu- serviços auxiliares do Legislativo,
lamento que crie, modifique ou extinga um caso em que se criam por resolução,
órgão autônomo, bem como que estabeleça da Câmara ou do Senado, conforme
ou amplie o respectivo rol de atribuições. se trate de serviços de uma ou de
A desconcentração realizada na intimidade outra destas Casas”.
dessa espécie de órgão, desde que obedeci- No art. 2o, inciso II e § 1o, da Lei Com-
dos os pertinentes limites constitucionais e plementar Estadual no 122, de 30.6.1994,
legais, não atenta contra a liberdade e pro- têm-se os seguintes enunciados:
priedade do cidadão nem atinge o disposto “Art. 2o Para os fins desta Lei:
no art. 51, § 1o, da Constituição Estadual. (...)
Entretanto, isso não significa conferir II – cargo público é o conjunto de
uma prerrogativa arbitrária para o Chefe do atribuições e responsabilidades, sob
Poder Executivo. Os decretos regulamenta- denominação própria, previstas na
res não podem ser validamente emprega- estrutura organizacional e a serem
dos para suprir, direta ou indiretamente, exercidas por um servidor.
lacunas indevidamente deixadas na lei. (...)
Noutro giro: os decretos regulamentares § 1o Os cargos públicos, criados por
não convalidam situações jurídicas ilegais Lei e acessíveis a todos os brasileiros,
em virtude da omissão legislativa. Ou, caso são retribuídos mediante vencimen-
se prefira: somente a lei complementar tem to, pago pelos cofres públicos, e se
o condão de sanear um órgão inválido, em classificam em:
prol do princípio da obrigatoriedade do (...)
desempenho da atividade administrativa c) de provimento efetivo, quando
e da continuidade do serviço público. comportam a aquisição de estabilida-
de pelos respectivos titulares;
18
“Art. 51. (...) § 1o Não podem ser objeto de dele-
d) de provimento em comissão,
gação os atos de competência exclusiva da Assembléia
Legislativa, matéria reservada a lei complementar quando declarados em lei de livre
(...)”. nomeação e exoneração, respeitadas

26 Revista de Informação Legislativa


as limitações da Constituição nos carreiras, no âmbito da administração
casos que especifica”. direta, autárquica e fundacional, sem
E, no art. 3o do mesmo diploma legal, prévia e hábil dotação orçamentária e sem
encontra-se: autorização específica na lei de diretrizes
“Art. 3o. São vedados: orçamentárias.
I – a prestação de serviço gratuito, Diante da doutrina e legislação citadas,
salvo quando declarado relevante e identificam-se os seguintes elementos
nos casos previstos em lei; para a criação de cargo público: (i) uma
II – o desvio do servidor para o denominação própria; (ii) a estipulação de
exercício de atribuições diversas das um rol de competências; (iii) previsão de
inerentes ao seu cargo efetivo, sob sua quantidade; (iv) o estabelecimento de
pena de nulidade do ato e respon- remuneração para o seu eventual titular; e,
sabilidade administrativa e civil da (v) a fixação do modo de seu provimento
autoridade que o autorizar”. (Cf. GASPARINI, 2002, p. 235). Portanto,
Ao se voltar para o texto constitucional, emanda-se lei para a sua válida criação no
no art. 46, §1o, inciso II, “a”, vê-se a inicia- campo da Administração.
tiva privativa do Governador do Estado Para enfrentar a questão proposta, é
para as leis que disponham sobre a criação preciso antes delinear duas situações jurí-
de cargos, funções ou empregos públicos dicas: (i) a que envolve os cargos públicos
na Administração Direta e Autárquica ou de provimento efetivo; e, (ii) a que abran-
aumento de sua remuneração19. ge os cargos públicos de provimento em
O seu art. 37, inciso VI, determina que comissão.
cabe à Assembléia Legislativa, com a san- Os cargos públicos de provimento efeti-
ção do Governador do Estado, dispor sobre vo demandam concurso público para o seu
a criação e extinção de cargos, empregos e preenchimento e ensejam, para o seu titular,
funções públicas e a fixação dos respectivos o direito à estabilidade, após três anos de
vencimentos, salários e vantagens20. efetivo exercício e aprovação em processo
E, no art. 48, parágrafo único, inciso I, de avaliação especial de desempenho, como
exige-se lei complementar para se definir determinam o art. 37, inciso II, e o art. 41,
originariamente as competências a serem caput e §4o, ambos da Constituição Federal.
exercidas pelo Poder Executivo. Estável o seu titular, este somente poderá
No art. 169, § 1o, da Constituição Fede- ser desligado do serviço público nas hipó-
ral, proíbe-se a criação de cargo, emprego teses que compõem o rol do art. 41, §1o, da
ou função, bem como a estruturação de Lei Maior.
A criação de cargo público de provi-
19
“Art. 46. A iniciativa das leis complementares
e ordinárias cabe a qualquer Deputado ou Comissão mento efetivo, diante dessas exigências
da Assembléia Legislativa, ao Governador do Estado, constitucionais, fica submetida à reserva
ao Tribunal de Justiça e de Contas, ao Procurador da lei complementar, por força do art. 48,
Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos
previstos nesta Constituição. § 1o São de iniciativa do
parágrafo único, inciso I, da Constituição
Governador do Estado as leis que: (...) II – disponham Estadual. Como a criação de cargo público
sobre: a) criação de cargos, funções ou empregos implica a definição de competências para
públicos na administração direta e autárquica, ou o seu eventual titular, há clara pertinência
aumentem a sua remuneração”.
20
“Art. 37. Cabe à Assembléia Legislativa, com entre essa matéria e a organização do Poder
a sanção do Governador do Estado, não exigida esta Executivo. Recorde-se que o cargo público,
para o especificado no art. 35, dispor sobre todas as ao lado do órgão público, representa uma
matérias de competência do Estado, especialmente
unidade de competência.
sobre: (...) VI – criação, transformação e extinção de
cargos, empregos e funções públicas e fixação dos Portanto, a lei complementar deve
respectivos vencimentos, salários e vantagens”. integralmente fixar todos os elementos es-

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 27


senciais para a sua criação. Se a lei comple- exercer atribuições que sejam estranhas ao
mentar silencia sobre qualquer um desses rol de competências que a lei lhe atribuiu.
elementos, fica prejudicada tal instituição. Se omissa a lei nesse aspecto, repita-se, o
Raciocínio contrário ensejaria a admissão cargo efetivo não existe de modo válido.
de uma previsão implícita de regulamento Os cargos públicos de provimento em
delegado em matéria sujeita à reserva da lei comissão estão submetidos às mesmas
complementar. regras.
E, se a criação de cargo público de provi- A lei não deve remeter, expressa ou
mento efetivo demanda lei complementar, implicitamente, para a competência re-
por simetria é exigido o mesmo instrumen- gulamentar da Administração, a fixação
to para a sua transformação ou extinção. das atribuições do cargo comissionado,
O que significa dizer, também, que ape- ainda que de livre nomeação e exoneração
nas regulamentos de execução são válidos da autoridade competente. O titular de
para a disciplina da matéria. A expedição cargo de provimento em comissão pode
de regulamentos que instituam, modifi- ser validamente designado para dirigir
quem ou extingam o elenco de atribuições órgãos superiores e subalternos que forem
do cargo público de provimento efetivo estruturados mediante regulamentos au-
representa um abuso de poder. torizados, se a lei (única e exclusivamente)
Há um vínculo entre o concurso público assim determinar.
e o cargo ao qual se destina. Prescreve a Lei Sobre o assunto, leciona Diógenes Gas-
Maior, em seu art. 37, inciso II, que aquele parini (2006, p. 268-269):
deve ser realizado segundo a natureza e a “(...) Os cargos de provimento em
complexidade deste. comissão são próprios para direção,
Na lição de Cármen Lúcia Antunes comando ou chefia de certos órgãos,
Rocha (1999, p. 233): para os quais se necessita de um
“Com o início do exercício nascem agente que, sobre ser de confiança da
para o servidor todos os direitos que autoridade nomeante, se disponha a
a lei lhe assegura nessa condição, seguir a sua orientação, ajudando-a a
inclusive o de desempenhar as fun- promover a direção superior da Ad-
ções inerentes ao cargo para o qual ministração. Também destinam-se ao
foi nomeado, cumprindo-se o quanto assessoramento (art. 37, V, da CF)”.
posto legalmente. Nomeado para É certo que os cargos de provimento
determinado cargo e nele investido, em comissão abrangem funções de dire-
há de exercer o servidor, a partir de ção, chefia e assessoramento. Todavia, a
então, as funções a ele inerentes e a lei deve expressamente delinear, ainda
nenhum outro”. que em termos genéricos, as atribuições
O poder hierárquico não afasta a reserva a serem exercidas pelo titular do cargo
da lei complementar na criação de cargo comissionado.
público de provimento efetivo, devendo Ainda que os titulares de cargo comissio-
ser exercido dentro dos limites constitucio- nado tenham um maior compromisso com
nais e legais. Entendimento contrário seria as diretrizes políticas e governamentais de
admitir um desvio de função, quebrando o quem tem a competência para nomeá-los,
princípio do concurso público e a própria isso não serve para justificar regulamentos
legalidade estrita. Ilícito que, aliás, encon- que determinem as respectivas atribuições
tra-se bem definido no art. 3o, inciso II, da nas omissões da lei.
Lei Complementar Estadual no 122/1994. É evidente que esses regulamentos
Em outras palavras, não é válida a de- devem observar as normas constitucio-
signação de titular de cargo efetivo para nais e legais que fixam as atribuições e

28 Revista de Informação Legislativa


responsabilidades desses cargos21. Assim, dinâmica do serviço público, e não, o fim de
tal regulamento não tem legitimidade para convalidar situações jurídicas ilegais.
estabelecer os demais elementos (denomi- Como se sabe, o desvio de poder cons-
nação própria, estipêndio, quantidade de titui um ilícito que compreende o uso da
unidades e modo de provimento), pois competência para atingir finalidade diversa
entendemo-los inteiramente afastados da da que justificou a sua outorga para a au-
discricionariedade administrativa: os car- toridade administrativa. A lição clássica de
gos de provimento em comissão devem Caio Tácito (1997, p. 52) é imprescindível
existir de modo excepcional na Administra- para o deslinde da questão:
ção, em respeito ao princípio do concurso “Não basta, porém, que a autoridade
público. Também haverá abuso do poder seja competente, o objeto lícito e os
regulamentar se os titulares de cargos co- motivos adequados. A regra de com-
missionados forem designados para exercer petência não é um cheque em branco
funções legalmente conferidas a servidores concedido ao administrador. A ad-
titulares de cargo efetivo ou empregados. ministração serve, necessariamente,
Portanto, verifica-se que a criação e a ex- interesses públicos caracterizados.
tinção de cargo de provimento em comissão Não é lícito à autoridade servir-se
deve ser igualmente efetivada mediante lei de suas atribuições para satisfazer
complementar. interesses pessoais, sectários ou po-
Tal como na hipótese dos órgãos públi- lítico-partidários, ou mesmo a outro
cos, os decretos regulamentares não podem interesse público estranho à sua com-
ser validamente empregados para sanear petência. A norma de direito atende
cargos públicos irregularmente criados. a fins específicos que estão expressos
Havendo omissão da lei instituidora do ou implícitos em seu enunciado. A
cargo, fica vedada a expedição de infralegal finalidade é, portanto, outra condição
para restaurar a legalidade. obrigatória de legalidade nos atos
É certo que o Chefe do Poder Executi- administrativos”.
vo tem a competência regulamentar para Nesse diapasão, a expedição de decreto
desconcentrar a intimidade dos órgãos pú- que suprisse indevidamente as lacunas dei-
blicos autônomos. Se essa desconcentração xadas pela lei na criação de cargos comis-
for realizada com a finalidade de distribuir sionados configuraria desvio de poder no
competências entre cargos de provimento exercício de sua competência regulamentar,
em comissão, quando a lei silencia quanto à ao ter por meta a convalidação de cargos
fixação dessas atribuições, estar-se-á diante públicos inválidos por via infralegal.
de um desvio de poder. Afinal, a descon- Como dito, somente a lei complementar
centração administrativa tem por escopo estadual pode ser empregada para restau-
assegurar uma prestação mais eficiente e rar a legalidade diante de cargos públicos
inválidos no âmbito da Administração
21
Como o art. 66, parágrafo único da Constituição
Estadual, por exemplo: “Art. 66. (...) Parágrafo único.
Norte-rio-grandense. Aliás, os princípios
Compete ao Secretário de Estado, além de outras da obrigatoriedade do desempenho da ati-
atribuições estabelecidas nesta Constituição e na lei: vidade administrativa e da continuidade do
I – exercer a orientação, coordenação e supervisão dos serviço público demandam urgentemente a
órgãos e entidades da administração estadual e refe-
rendar os atos e decretos assinados pelo Governador regularização de toda a falha estrutura de
do Estado, na área de sua competência; II – expedir cargos públicos que a gestão que assume
instruções para execução das leis, decretos e regula- herda da gestão pretérita.
mentos; III – apresentar ao Governador do Estado
Entendimento contrário, inclusive, não
relatório anual de sua gestão na Secretaria; IV – pra-
ticar os atos pertinentes às atribuições que lhe forem é privilegiar a continuidade e a estabilidade
outorgadas pelo Governador do Estado”. das atividades desempenhadas pela Admi-

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 29


nistração Estadual. Significa, na realidade, ______ . Constituição do Estado do Rio Grande do Norte.
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gov.br/legislacao/constituicao_estadual/constituica-
inválidas e tornar vulneráveis os atos emiti- oestadual.pdf>. Acesso em: 11 set. 2007.
dos pelos titulares de cargos inválidos a uma
______ . Rio Grande do Norte. Lei Complementar no 122,
eficiente contestação judicial, nos termos do
de 30.6.1994: dispõe sobre o regime jurídico único dos
art. 2o, alínea “a”, e parágrafo único, alínea servidores públicos civis do Estado e das autarquias
“a”, da Lei Federal n. 4.717, de 29.6.1965. e fundações públicas estaduais, institui o respectivo
estatuto e dá outras providências. Natal: [s. n.], 1994.
Disponível em: <http://www.al.rn.gov.br/legisla-
5. Conclusão cao/leiscomplementares/anterior1995/lc122.pdf>.
Diante do exposto, chega-se às seguintes Acesso em: 11 set. 2007.
conclusões: ______ . Rio Grande do Norte. Lei Complementar no 163, de
(i) no ordenamento jurídico do Estado 5.3.1999: dispõe sobre a organização do poder executivo
do Estado Rio Grande do Norte e dá outras providên-
do Rio Grande do Norte, são válidos os
cias. Natal: [s. n.], 1999. Disponível em: <http://www.
decretos, autorizados por lei complementar al.rn.gov.br/legislacao/leiscomplementares/1999/
estadual, que regulamentem a estrutura e o lc163.pdf>. Acesso em: 11 set. 2007.
funcionamento das unidades da Adminis- CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de
tração Direta, criando órgãos que vão com- direito administrativo. 9a ed. Rio de Janeiro: Lúmen
por a intimidade das Secretarias e órgãos Júris, 2002.
de regime especial, desde que respeitadas CLÈVE, Clémerson Merlin. Temas de direito constitucio-
as respectivas atribuições constitucionais nal e de teoria do direito. São Paulo: Acadêmica, 1993.
e legais;
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administra-
(ii) são válidos os decretos, se previstos tivo. 14a ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
em lei complementar, que regulamentem a
FRANÇA, Vladimir da Rocha. Invalidação judicial da
estrutura e o funcionamento das autarquias discricionariedade administrativa no regime jurídico-admi-
e fundações públicas, observados os precei- nistrativo brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
tos constitucionais e legais que as regem;
GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 7a ed.
(iii) é proibida a extinção de autarquia São Paulo: Saraiva, 2002.
ou de fundação pública por decreto;
______ . Direito administrativo. 11a ed. São Paulo:
(iv) a criação e a extinção de cargos pú-
Saraiva, 2006.
blicos somente podem ser legitimamente
realizadas por lei complementar; GRAU, Eros Roberto. Direito posto e direito pressuposto.
São Paulo: Malheiros, 1996.
(v) constitui desvio de poder o uso da
competência regulamentar para convalidar HORTA, Raul Machado. Direito constitucional. 4a ed.
órgãos ou cargos ilegalmente criados; Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
(vi) Somente a lei complementar estadu- MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasi-
al representa um instrumento hábil para a leiro. 26a ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
convalidação de órgãos e cargos públicos MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Prestação de ser-
irregularmente criados. viços públicos e administração indireta. 2a ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1979.
______ . Curso de direito administrativo. 14a ed. São
Paulo: Malheiros, 2002.
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ATALIBA, Geraldo. República e constituição. 2a ed. São nais dos servidores públicos. São Paulo: Saraiva, 1999.
Paulo: Malheiros, 1998. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional
positivo. 21a ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
BRASIL. Constituição Federal: coletânea de legislação
administrativa. 7a ed. São Paulo: Revista dos Tribu- TÁCITO, Caio. Temas de direito público. Rio de Janeiro:
nais, 2007. Renovar, 1997. 1 v.

30 Revista de Informação Legislativa


Crítica da razão comunicativa
O direito entre o consenso e o conflito

Túlio Lima Vianna

Sumário
1. Razão. 2. Crise da razão. 3. Giro lingüísti-
co. 4. Ação comunicativa. 5. Dominação comu-
nicativa. 6. Direito. 7. À guisa de conclusão.

1. Razão
A razão humana como elemento dis-
tintivo entre o ser humano e os demais
animais é certamente um dos pressupostos
mais importantes da filosofia. É a razão que
orienta adequadamente as ações humanas
e possibilita ao ser humano a aquisição de
conhecimento.
Por vários séculos, a razão filosófica
foi concebida a partir de um paradigma
representacionalista, no qual um sujeito
do conhecimento criava representações
mentais de seu objeto de estudo.
A filosofia antiga e medieval tinha como
objetos primordiais a busca da essência das
coisas e a descrição de relações de causa
e efeito. A razão era um instrumento de
descrição da realidade.
Descartes (1996) foi o primeiro filósofo
moderno a questionar os limites da razão
humana.
“Assim, porque os nossos sentidos às
vezes nos enganam, quis supor que
Túlio Lima Vianna é Professor Adjunto da
PUC Minas. Doutor em Direito pela Universi- não havia coisa alguma que fosse tal
dade Federal do Paraná (UFPR) e Mestre em como eles nos levam a imaginar. E
Direito pela Universidade Federal de Minas porque há homens que se enganam
Gerais (UFMG). ao raciocinar, mesmo sobre os mais

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 31


simples temas de geometria, e neles gura, dimensões e grandeza) e no tempo.
cometem paralogismos, julgando Espaço e tempo são formas apriorísticas da
que eu era tão sujeito ao erro quanto sensibilidade que existem em nossa razão
qualquer outro, rejeitei como falsas antes da experiência e sem experiência.
todas as razões que antes tomara A estrutura do entendimento organiza
como demonstrações. E, finalmente, as percepções (conteúdos empíricos) por
considerando que todos os pensa- meio de elementos apriorísticos chamados
mentos que temos quando acordados categorias.
também nos podem ocorrer quando “As categorias organizam os dados
dormimos, sem que nenhum seja da experiência segundo a qualidade,
então verdadeiro, resolvi fingir que a quantidade, a causalidade, a finali-
todas as coisas que haviam entra- dade, a verdade, a falsidade, a univer-
do em meu espírito não eram mais salidade, a particularidade. Assim,
verdadeiras que as ilusões de meus longe de a causalidade, a qualidade
sonhos. Mas logo depois atentei que, e a quantidade serem resultados de
enquanto queria pensar assim que hábitos psicológicos associativos, elas
tudo era falso, era necessariamente são os instrumentos racionais com
preciso que eu, que o pensava, fosse os quais o sujeito do conhecimento
alguma coisa. E, notando que esta organiza a realidade e a conhece. As
verdade – penso, logo existo – era tão categorias, estruturas vazias, são as
firme e tão certa que todas as mais ex- mesmas em toda época e em todo
travagantes suposições dos cépticos lugar, para todos os seres racionais.”
não eram capazes de a abalar, julguei (CHAUI, 2000, p. 79).
que podia admiti-la sem escrúpulo A estrutura da razão propriamente dita,
como o primeiro princípio da filosofia por fim, tem a função de regular e controlar
que buscava.” (DESCARTES, 1996, a sensibilidade e o entendimento.
p. 37-38). Vê-se, pois, que para Kant (apud
Ao se indagar sobre as possibilidades CHAUI, 2000) a razão jamais conhecerá a
de certeza da razão humana, Descartes realidade como ela é em si mesma, mas,
deslocou a dúvida filosófica do objeto para sim, o conteúdo empírico que recebeu as
o próprio sujeito do conhecimento. O cogito, formas e as categorias do sujeito do co-
ergo sum [penso, logo existo] é o fundamen- nhecimento. A razão kantiana é, pois, uma
to de uma nova filosofia que questiona razão subjetiva.
não somente a essência das coisas, mas “Kant afirma que a realidade que
principalmente as possibilidades de a razão conhecemos filosoficamente e cienti-
humana conhecer tais coisas. ficamente não é a realidade em si das
Kant afirmou a impossibilidade do su- coisas, mas a realidade tal como é es-
jeito de conhecer a essência das coisas. Para truturada por nossa razão, tal como é
ele a estrutura da razão é inata e, portanto, organizada, explicada e interpretada
não é influenciada pela experiência, mas pelas estruturas a priori do sujeito do
os conteúdos conhecidos e pensados pela conhecimento. A realidade são nossas
razão são obtidos pela experiência. idéias verdadeiras e o kantismo é um
Assim, para Kant a razão é constituída idealismo.” (CHAUI, 2000, p. 104).
por três estruturas: a estrutura da percep- Kant chamou essa realidade que conhe-
ção sensorial, a estrutura do entendimento cemos filosoficamente e cientificamente de
e a estrutura da razão propriamente dita. fenômeno e a realidade em si das coisas de
A estrutura da percepção sensorial nos númeno. Ao negar a possibilidade de a razão
permite perceber as coisas no espaço (fi- humana conhecer o númeno (que só seria

32 Revista de Informação Legislativa


acessível por um hipotético pensamento possas querer que se torne uma lei
puro), Kant colocou em xeque a metafísica universal. Em outras palavras, o ato
clássica que pretendia descrever a essência moral é aquele que se realiza como
dos entes. Eis aqui o giro do pensamento acordo entre a vontade e as leis
kantiano: a filosofia deixa de ocupar-se universais que ela dá a si mesma.”
prioritariamente em definir “o que é a rea- (CHAUI, 2000, p. 346).
lidade?” e passa a dedicar-se ao estudo de O imperativo categórico é o fundamento
“como podemos conhecer a realidade?”. da razão prática kantiana e enuncia não
O centro da dúvida filosófica deixa de ser um conteúdo particular de uma ação, mas
a realidade objetiva (o objeto do conheci- a forma geral das ações morais. É uma nor-
mento) e passa a ser a razão (o sujeito do ma válida para um sujeito transcendental,
conhecimento). independentemente das circunstâncias de
A razão, como objeto central da filosofia tempo e lugar.
kantiana, passa a ser estudada então sob Hegel afastou a idéia de uma razão
dois aspectos: razão pura (teórica) e razão prática transcendente e postulou uma razão
prática. dialética fruto de um processo histórico no
“A diferença entre razão teórica e prá- qual teses são opostas a antíteses, origi-
tica encontra-se em seus objetos. A ra- nando sínteses. Para Hegel (apud CHAUI,
zão teórica ou especulativa tem como 2000), além da vontade individual subjetiva
matéria ou conteúdo a realidade (a razão prática kantiana), há ainda uma
exterior a nós, um sistema de objetos vontade objetiva, inscrita nas instituições
que opera segundo leis necessárias ou na cultura. A vida ética seria então a
de causa e efeito, independentes de síntese entre a vontade subjetiva individual
nossa invenção; a razão prática não e a vontade objetiva cultural.
contempla uma causalidade exter- “O imperativo categórico não poderá
na necessária, mas cria sua própria ser uma forma universal desprovida
realidade, na qual se exerce. Essa de conteúdo determinado, como afir-
diferença decorre da distinção entre ma Kant, mas terá, em cada época, em
necessidade e finalidade/liberdade.” cada sociedade e para cada cultura,
(CHAUI, 2000, p. 345). conteúdos determinados, válidos
Enquanto a razão pura ocupa-se da des- apenas para aquela formação históri-
crição da natureza em suas relações de cau- ca e cultural. Assim cada sociedade,
sa e efeito (Física, Química, Biologia, etc.), em cada época de sua História, define
a razão prática não se ocupa de uma mera os valores positivos e negativos, os
descrição de relações de causa e efeito, mas atos permitidos e proibidos para seus
da criação de normas de comportamento. membros, o conteúdo dos deveres e
Kant indaga-se sobre qual seria a lei mo- do imperativo moral. Ser ético e livre
ral que deveria reger a vida em sociedade será, portanto, pôr-se de acordo com
e chega à conclusão de que o dever é uma as regras morais de nossa sociedade.”
forma que deve valer para toda e qualquer (CHAUI, 2000, p. 347-348).
ação moral. Para ele essa forma não seria No idealismo espiritualista hegeliano,
meramente indicativa, mas imperativa, a História é movida pela força da Idéia, do
pois ordena incondicionalmente. Kant Espírito, da Consciência. Marx, opondo-se a
(apud CHAUI, 2000) denominou esse dever esse idealismo, procura construir uma dia-
imperativo categórico. lética materialista que exprima as relações
“O imperativo categórico exprime-se sociais de produção econômica.
numa fórmula geral: age em confor- “A produção das idéias, das repre-
midade apenas com a máxima que sentações e da consciência está, a

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 33


princípio, direta e intimamente ligada mem é produto de seu tempo e a filosofia
à atividade material e ao comércio não é mero instrumento de descrição da
material dos homens; ela é a lingua- realidade, mas de criação de uma nova
gem da vida real. As representações, realidade.
o pensamento, o comércio intelectual “Os seres humanos, escrevem Marx
dos homens aparecem aqui ainda e Engels, distinguem-se dos animais
como a emanação direta de seu não porque sejam dotados de cons-
comportamento material. O mesmo ciência – animais racionais –, nem
acontece com a produção intelectual porque sejam naturalmente sociáveis
tal como se apresenta na linguagem e políticos – animais políticos –, mas
da política, na das leis, da moral, da porque são capazes de produzir as
religião, da metafísica etc. de todo o condições de sua existência material
povo. São os homens que produzem e intelectual. Os seres humanos são
suas representações, suas idéias etc., produtores: são o que produzem e
mas os homens reais, atuantes, tais são como produzem. A produção
como são condicionados por um das condições materiais e intelectu-
determinado desenvolvimento de ais da existência não são escolhidas
suas forças produtivas e das relações livremente pelos seres humanos, mas
que a elas correspondem, inclusive as estão dadas objetivamente, indepen-
mais amplas formas que estas podem dentemente de nossa vontade. Eis por
tomar. A consciência nunca pode ser que Marx diz que os homens fazem
mais que o ser consciente; e o ser dos sua própria História, mas não a fazem
homens é o seu processo de vida real.” em condições escolhidas por eles. São
(MARX, ENGELS, 1998, p. 18-19). historicamente determinados pelas
O materialismo histórico inverte a teoria condições em que produzem suas
hegeliana de que a consciência determina vidas.” (CHAUI, 2000, p. 412).
o ser social do homem: é o ser social do Marx (2003) afasta a razão da posição
homem que determina a sua consciência central da filosofia e a substitui por uma
(ABBAGNANO, 2000, p. 652). A razão nova categoria: o trabalho. O homem, com
humana é condicionada pelas relações sua razão, não cria meras representações
econômicas, sendo, portanto, produto da da realidade, mas produz sua própria rea-
luta de classes. lidade com seu trabalho.
“A História não é um progresso “Pressupomos o trabalho sob forma
linear e contínuo, uma seqüência de exclusivamente humana. Uma ara-
causas e efeitos, mas um processo de nha executa operações semelhantes
transformações sociais determinadas às do tecelão, e a abelha supera mais
pelas contradições entre os meios de de um arquiteto ao construir sua
produção (a forma da propriedade) e colméia. Mas o que distingue o pior
as forças produtivas (o trabalho, seus arquiteto da melhor abelha é que ele
instrumentos, as técnicas). A luta de figura na mente sua construção antes
classes exprime tais contradições e é de transformá-la em realidade. No
o motor da História. Por afirmar que fim do processo do trabalho, aparece
o processo histórico é movido por um resultado que já existia antes ide-
contradições sociais, o materialismo almente na imaginação do trabalha-
histórico é dialético.” (CHAUI, 2000, dor.” (MARX, 2003, p. 211-212).
p. 415). A cooperação social de diversos indiví-
Marx (2003) rompe com uma filosofia duos com as mesmas finalidades de pro-
meramente descritiva da realidade. O ho- dução caracteriza o trabalho socialmente

34 Revista de Informação Legislativa


organizado, que é a forma específica pela acharia que basta apontar essa origem
qual os homens, de forma diversa dos ani- e esse nebuloso manto de ilusão para
mais, reproduzem suas vidas. O produto destruir o mundo tido por essencial,
desse trabalho social é repartido por meio a chamada ‘realidade’? Somente en-
de regras de distribuição, que variam de quanto criadores podemos destruir!
acordo com o tempo e o espaço, como, por – Mas não esqueçamos também isto:
exemplo, os modos de produção escravo- basta criar novos nomes, avaliações e
crata, feudal e capitalista. A essência huma- probabilidades para, a longo prazo,
na não seria então algo abstrato, imanente criar novas ‘coisas’.” (NIETZSCHE,
ao indivíduo, mas um conjunto de relações 2001, p. 96).
sociais (HABERMAS, 1990a, p. 113-114). A verdade, segundo Nietzsche (1992,
2001), não é uma simples relação de con-
formidade de um enunciado com os fatos
2. Crise da razão
ou a realidade. A verdade é criada pelo ser
A longa tradição filosófica desde os humano, a partir de uma ciência reducio-
antigos gregos, passando por Descartes, nista, que se revela útil aos interesses de
Kant, Hegel e Marx, concebeu a razão como indivíduos, grupos ou, eventualmente, da
uma faculdade caracterizada pelo poder de humanidade. É o ser humano que define o
discernimento entre o verdadeiro e o falso, que será considerado verdadeiro ou falso.
ou o bem e o mal. A soberba da ciência e da De forma análoga, também a moral é
ética racionalista encontrou em Nietzsche uma criação humana e não uma descoberta
o seu mais implacável crítico. da razão. Nietszche (1992, 2001) considera
Nietzsche (2001) questionou a razão que a moral racionalista foi inventada pelos
científica como instrumento infalível de fracos para controlar e dominar os fortes,
determinação do que é verdadeiro ou falso. reprimindo-lhes seus desejos e seus instin-
A razão científica não seria um instrumento tos naturais e transformando-os em vício,
de identificação da verdade, mas de criação falta e culpa. (CHAUI, 2000, p. 352-353)
da verdade. “Não existem fenômenos morais,
“Somente enquanto criadores! – Eis apenas uma interpretação moral dos
algo que me exigiu e sempre continua fenômenos...” (NIETZSCHE, 1992,
a exigir um grande esforço: compre- p. 73).
ender que importa muito mais como O pensamento de Nietszche foi retoma-
as coisas se chamam do que aquilo do no século XX por Foucault, que o tomou
que são. A reputação, o nome e a apa- como marco teórico de sua genealogia do
rência, o peso e a medida habituais de poder. Tal como Marx, Foucault é uma das
uma coisa, o modo como é vista – qua- grandes referências do pensamento político
se sempre uma arbitrariedade e um de esquerda, mas suas bases epistemoló-
erro em sua origem, jogados sobre as gicas são bem distintas do materialismo
coisas como uma roupagem totalmen- histórico.
te estranha à sua natureza e mesmo Marx criticou Hegel e o idealismo ale-
à sua pele –, mediante crença que as mão, mas fundou seu pensamento na razão
pessoas neles tiveram, incrementada dialética e na confiança de que o homem
de geração em geração, gradualmente poderia se emancipar por meio do trabalho
e enraizaram e encravaram na coisa, e da luta de classes. O grande obstáculo a
por assim dizer, tornando-se o seu ser superado, na filosofia marxista, é o po-
próprio corpo: a aparência inicial ter- der econômico que uma classe dominante
mina quase sempre por tornar-se es- exerce sobre uma classe dominada. Esse po-
sência e atua como essência! Que tolo der é materializado pelo Estado burguês.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 35


Foucault, em contrapartida, renunciou à sociedade sem classes. A ideologia seria
à crença em uma razão emancipatória. A uma falsa percepção dos observadores que
criação do conhecimento humano, segundo dificultaria a visão dessa realidade. Fou-
ele, está sujeita inevitavelmente à influên- cault não crê nessa razão emancipatória,
cia de micropoderes em sua formação, e a mas em diversas racionalidades tomadas
ciência e a moral são frutos dessas relações segundo interesses políticos. Não há uma
de saber – poder. Foucault reconhece a realidade a ser contraposta a uma ideolo-
extrema relevância do poder econômico, gia. Todo pensamento é ideológico; toda
mas ao lado dele nota a existência de mi- verdade é política. Ambos, no entanto, têm
cropoderes em todas as relações sociais, nas como centro de suas pesquisas as relações
quais há sempre elementos de dominação de poder: o macropoder econômico em
e resistência: homem – mulher, pai – filho, Marx e os micropoderes em Foucault. É o
nacional – estrangeiro, branco – negro, etc. estudo crítico dessas relações de poder e
Ainda que houvesse a completa superação dominação que os mantém fundamental-
das desigualdades sociais, persistiriam mente unidos, não obstante seus diferentes
esses micropoderes inerentes às relações paradigmas epistemológicos comuns a suas
humanas. respectivas épocas.
Marx sustenta a existência de uma razão
emancipatória, tanto que opõe à verdade
3. Giro lingüístico
uma noção pejorativa de ideologia. Para
Foucault (2003a), toda verdade é invenção Herdeiro da tradição filosófica hege-
do ser humano e, portanto, ideológica. liana, Habermas considera as filosofias de
“As condições políticas, econômicas Nietzsche e Foucault niilistas, mas reco-
de existência não são um véu ou um nhece a impossibilidade de fundamentar a
obstáculo para o sujeito do conheci- defesa da razão humana em um paradigma
mento, mas aquilo através do que se representacionalista sujeito-objeto.
formam os sujeitos de conhecimento Propõe então uma “reconstrução do
e, por conseguinte, as relações de materialismo histórico”, com novas bases
verdade. Só pode haver certos tipos epistemológicas, que substituiria o paradig-
de sujeito de conhecimento, certas ma do sujeito – objeto pelo paradigma do
ordens de verdade, certos domí- sujeito – sujeito. A realidade seria concebi-
nios de saber a partir de condições da, então, como uma construção intersub-
políticas que são o solo em que se jetiva de uma razão comunicativa. O “giro
formam o sujeito, os domínios de lingüístico” (linguistic turn) da filosofia
saber e as relações com a verdade. Só habermasiana substitui a centralidade do
se desembaraçando destes grandes “trabalho” da teoria marxista por um novo
temas do sujeito de conhecimento, ao fundamento: a “linguagem”.
mesmo tempo originário e absoluto, Habermas (1990a) afirma que o trabalho
utilizando eventualmente o modelo social é anterior ao surgimento da espécie
nietzscheano, poderemos fazer uma humana, buscando assim desconstruir o
história da verdade.” (FOUCAULT, materialismo histórico e fundamentar an-
2003a, p. 27). tropologicamente sua teoria.
As diferenças epistemológicas entre as “Não só os homens, mas já os ho-
filosofias de Marx e Foucault, no entanto, mínidas se distinguem dos macacos
longe de conduzi-los a pensamentos an- antropóides pelo fato de se orienta-
tagônicos, apresentam-se como comple- rem para a reprodução através do
mentares. Marx acredita em uma razão trabalho social e de construírem uma
histórica que conduzirá inevitavelmente economia. Os homínidas adultos for-

36 Revista de Informação Legislativa


mam hordas dedicadas à caça que: a) homo sapiens, somente quando a eco-
dispõem de armas e de instrumentos nomia de caça é complementada por
(técnica); b) cooperam segundo uma uma estrutura social familiar. Esse
certa divisão do trabalho (organi- processo durou muitos milhões de
zação cooperativa); e c) repartem anos; ele equivale a uma substitui-
a presa no interior da coletividade ção, de nenhum modo insignificante,
(regras de distribuição). A fabricação do sistema animal de status – que
de meios de produção e a organização já entre os macacos antropóides se
social – tanto do trabalho quanto da funda em interações mediatizadas
distribuição dos produtos do traba- simbolicamente (no sentido de G. H.
lho – satisfazem as condições de uma Mead) – por um sistema de normas
forma econômica de reprodução da sociais que pressupõe a linguagem.”
vida.” (HABERMAS, 1990a, p. 115). (HABERMAS, 1990a, p. 116-117).
A divisão social do trabalho pressu- A linguagem permite a formação de
põe uma mínima comunicação entre os consensos quanto aos “papéis sociais” que
trabalhadores, seja por gestos ou sinais cada indivíduo representa na sociedade.
de advertência. Habermas chama esses É com base nesse reconhecimento inter-
primitivos métodos de comunicação de subjetivo que surge a estrutura familiar
“protolinguagem”, mas não a diferencia que será a base da estruturação de normas
expressamente da linguagem. de comportamento. É a moralização dos
Habermas procura visivelmente privile- motivos de ação.
giar a categoria da linguagem em detrimen- O surgimento da linguagem permite a
to do trabalho, mas não consegue explicar consolidação de normas sociais de compor-
convincentemente porque os homínidas, tamento. O poder que antes era exercido
que não são suficientemente “evoluídos” pelo respeito imposto pela possibilidade de
para se expressarem por uma linguagem sanção passa a ser exercido por um status
propriamente dita, já realizam trabalho e adquirido pelo indivíduo na sociedade por
não um mero “prototrabalho”. meio do consenso.
Habermas (1990a) admite, no entanto, Os pressupostos antropológicos de Ha-
que trabalho e linguagem são anteriores ao bermas, no entanto, não passam de supo-
surgimento da espécie humana. sições impossíveis de serem comprovadas
“Podemos assumir que somente nas no estágio atual da ciência.
estruturas de trabalho e linguagem “O que se sabe sobre os homínidas,
complementaram-se os desenvol- ou os Australopithecus, são conclu-
vimentos que levaram à forma de sões referentes tão-somente àqueles
reprodução da vida especificamente dos registros fósseis, que revelam
humana e, com isso, à condição que pouca coisa acerca do comportamen-
serve como ponto de partida da evo- to e quase nada sobre a vida gregária
lução social. Trabalho e linguagem destas criaturas – para saber sobre
são anteriores ao homem e à socieda- essas coisas, seria necessário haver
de.” (HABERMAS, 1990a, p. 118). registros arqueológicos; e estes não
Ainda que ambas as categorias sejam existem. De acordo com o paleoan-
anteriores ao aparecimento do Homo sa- tropólogo Richard Leakey, o início
piens, Habermas (1990a) postula a lingua- do registro arqueológico só passa
gem como o pressuposto do surgimento da a ocorrer, na história evolutiva, há
nossa espécie. uns 2,5 milhões de anos, período
“Podemos falar de reprodução da que coincide com o surgimento do
vida humana, a que se chegou o gênero Homo: anterior a isso, não há

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 37


registro arqueológico; portanto, não haja um mínimo consenso sobre o signi-
é possível conjecturar qualquer idéia ficado da palavra “fogo” para que a frase
sobre aspectos comportamentais e seja inteligível e possa despertar reações.
sociais das criaturas pré-humanas.” Ainda que essa frase possa ter a finalida-
(BONFIM, 2002, p. 14). de de alertar quanto à existência de um
A tentativa de Habermas de fundamen- incêndio e conseqüentemente à vontade
tar antropologicamente sua teoria da ação de que todos fujam do recinto, para que
comunicativa baseia-se em conjecturas. A essa finalidade última seja alcançada, é im-
ciência pode até ser capaz de responder à prescindível que os interlocutores entrem
clássica indagação: “quem nasceu primeiro: em um consenso quanto ao significado do
o ovo ou a galinha?”, mas, em seu atual enunciado “fogo”.
estágio, não pode solucionar a dúvida ha- Haveria assim uma finalidade de con-
bermasiana: “quem integrou os homens em senso inerente a todo discurso. Habermas
sociedade: o trabalho ou a linguagem?”. (1990b) postula então que, em determi-
Diante desse impasse científico, Ha- nadas circunstâncias, poder-se-ia cogitar
bermas postula que o pressuposto da in- em um discurso cuja única finalidade dos
tegração social humana não é o trabalho, interlocutores seria a busca desse enten-
mas a linguagem e a partir daí procura dimento.
fundamentar filosoficamente sua teoria, “Como todo agir, também o agir co-
até então impossível de ser coerentemente municativo é uma atividade que visa
fundada em bases antropológicas. um fim. Porém, aqui se interrompe a
teleologia dos planos individuais de
ação e das operações realizadoras,
4. Ação comunicativa
através do mecanismo de entendi-
A ação humana é um ato de vontade. mento, que é o coordenador da ação.
Não de uma vontade passiva (um desejo), O ‘engate’ comunicativo através
mas de uma vontade ativa (um querer). O de atos ilocucionários realizados
desejo de ganhar na loteria só se torna um sem nenhuma reserva submete as
querer com a ação de apostar. As ações são orientações e o desenrolar das ações
expressões da vontade humana. – talhadas inicialmente de modo
Toda vontade humana é voltada a um egocêntrico, conforme o respectivo
fim. Não se pode conceber uma vontade ator – às limitações estruturais de
sem finalidade. Quem tem vontade tem uma linguagem compartilhada in-
vontade de algo e esse algo é a finalidade da tersubjetivamente”. (HABERMAS,
ação humana. Por ser impossível cogitar em 1990b, p. 130).
uma ação sem vontade e em uma vontade A ação comunicativa tem como única
sem finalidade, conclui-se que toda ação finalidade alcançar um consenso entre os
humana visa sempre a uma finalidade. interlocutores. Quando uma mãe aponta
(ZAFFARONI, 2002, p. 414). para si própria e fala com seu filho recém-
Habermas distingue, com base nas nascido “mamãe”, sua única finalidade é
finalidades das ações, duas categorias alcançar um consenso com o bebê de que a
fundamentais: a ação comunicativa e a ação palavra “mamãe” doravante será utilizada
estratégica. para referências a ela.
A base dessa dicotomia é a idéia de que Para que se possa cogitar em uma ação
a finalidade primária de toda comunicação comunicativa, é necessário que as ações
é alcançar um consenso entre os interlocu- satisfaçam a condições de entendimento
tores sobre o significado do que é dito. Se e cooperação próprias dessa modalidade
alguém grita “fogo!”, é fundamental que de ação:

38 Revista de Informação Legislativa


“a) os atores participantes compor- jetivo; a finalidade da ação estratégica é o
tam-se cooperativamente e tentam exercício de um poder.
colocar seus planos (no horizonte de Com base nesses conceitos, Habermas
um mundo da vida compartilhado) relaciona a categoria “trabalho” às ações
em sintonia uns com os outros na estratégicas e a “linguagem” às ações co-
base de interpretações comuns da municativas.
situação; O trabalho é sempre uma ação de um su-
b) os atores envolvidos estão dispos- jeito sobre um objeto e, como tal, um mero
tos a atingir os objetivos mediatos exercício de poder. A fala (linguagem), por
da definição comum da situação e outro lado, pode-se comportar de duas
da coordenação da ação assumindo formas: 1) como ação estratégica, quando
os papéis de falantes e ouvintes em um dos sujeitos toma seu interlocutor como
processos de entendimento, portanto, mero objeto e procura exercer um poder em
pelo caminho da busca sincera ou relação a ele; 2) como ação comunicativa,
sem reservas de fins ilocucionários.” quando os interlocutores se reconhecem
(HABERMAS, 1990b, p. 129). como sujeito e buscam o consenso.
A cooperação com a finalidade de se Ainda que Habermas admita que as
alcançar o entendimento mútuo é inerente ações de fala estratégicas são muito mais
à ação comunicativa. Descarta-se, assim, freqüentes que as ações de fala comunica-
a possibilidade de que algum dos agentes tivas, não descarta a existência destas no
tenha fins egoísticos, o que caracteriza a mundo fático, pois toda ação estratégica
segunda categoria de ação descrita por pressupõe um entendimento mútuo. Para
Habermas (1990b): a ação estratégica. que as pessoas se apavorem com o grito
“O agir comunicativo distingue-se, de “fogo!”, necessário é que inicialmente
pois, do estratégico, uma vez que a haja um consenso sobre a palavra fogo.
coordenação bem sucedida da ação É esse consenso, inerente à linguagem e,
não está apoiada na racionalidade conseqüentemente, às ações humanas,
teleológica dos planos individuais que fundamenta toda a Teoria da Ação
de ação, mas na força racionalmente Comunicativa.
motivadora de atos de entendimento,
portanto, numa racionalidade que se
5. Dominação comunicativa
manifesta nas condições requeridas
para um acordo obtido comunica- Habermas pressupõe uma ação comuni-
tivamente.” (HABERMAS, 1990b, cativa asséptica, pela qual não se exerce po-
p. 72). der sobre o interlocutor, mas tão-somente
A ação estratégica tem como finali- busca-se o entendimento.
dade não o consenso, mas fins egoísticos A linguagem, porém, é um instrumento
do agente. Se ao gritar “fogo!” o agente de exercício de poder. As relações huma-
pretende tão-somente provocar um susto nas se dão através da linguagem e, como
nas pessoas, para se deleitar com o pânico bem demonstrou Foucault, o exercício de
alheio, não há falar em ação comunicativa, micropoderes é inerente a toda relação
mas em ação estratégica. humana.
Se, na ação comunicativa, o discurso “Nas relações humanas, quaisquer
é um instrumento na busca de um enten- que sejam elas – quer se trate de
dimento, na ação estratégica, o discurso é comunicar verbalmente, como o fa-
tomado como instrumento de exercício de zemos agora, ou se trate de relações
um poder sobre outrem. A finalidade da amorosas, institucionais ou econômi-
ação comunicativa é o consenso intersub- cas –, o poder está sempre presente:

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 39


quero dizer, a relação em que cada mesmo processo, já que as palavras
um procura dirigir a conduta do que são obrigadas a usar não são suas
outro. São, portanto, relações que e não correspondem necessariamente
se podem encontrar em diferentes às suas demandas específicas: seus
níveis, sob diferentes formas; essas desejos são moldados na fôrma da
relações de poder são móveis, ou língua ou línguas que aprendem.”
seja, podem se modificar, não são (FINK, 1998, p. 22).
dadas de uma vez por todas. O fato, Por mais altruística que seja a finalidade
por exemplo, de eu ser mais velho e da mãe em ensinar a criança uma língua,
de que no início os senhores tenham essas lições trazem consigo inevitavelmente
ficado intimidados pode se inverter o exercício de um poder sobre a criança.
durante a conversa, e serei eu quem Ainda que o exercício desse poder não seja
poderá ficar intimidado diante de uma finalidade consciente da ação da mãe,
alguém, precisamente por ser ele é inerente à relação com a criança.
mais jovem. Essas relações de poder Frise-se que não se trata aqui de valorar
são, portanto, móveis, reversíveis o exercício desse poder como algo bom ou
e instáveis.” (FOUCAULT, 2004, p. mau, por si mesmo, mas simplesmente
276-277). de demonstrar que, mesmo nas ações co-
Qual ação poderia ter finalidade menos municativas, há o exercício de um poder
egoística do que a mãe que aponta para si muitas vezes inconsciente que leva o agente
própria e diz ao bebê: “mamãe”? Qual ação a alcançar finalidades não expressamente
poderia ser mais voltada ao entendimento? previstas.
Não seria esse um exemplo ideal de coope- “A idéia de que poderia haver um
ração na busca de um consenso? tal estado de comunicação no qual
Não é difícil, no entanto, perceber que, os jogos de verdade poderiam circu-
mesmo em uma ação comunicativa como lar sem obstáculos, sem restrições e
essa, surge uma inevitável relação de poder sem efeitos coercitivos me parece da
entre a mãe e o filho. O entendimento é ordem da utopia. Trata-se precisa-
sempre a imposição de uma verdade sobre mente de não ver que as relações de
outra; é sempre o exercício de um poder. poder não são alguma coisa má em si
“Uma criança nasce, então, num mesmas, das quais seria necessário se
lugar preestabelecido dentro do uni- libertar; acredito que não pode haver
verso lingüístico dos pais, um espaço sociedade sem relações de poder, se
muitas vezes preparado muitos me- elas forem entendidas como estraté-
ses, se não anos, antes que ela veja a gias através das quais os indivíduos
luz do dia. E a maioria das crianças é tentam conduzir, determinar a con-
obrigada a aprender a língua falada duta dos outros.” (FOUCAULT, 2004,
pelos pais, o que significa dizer que, a p. 284).
fim de expressar seus desejos, elas são A “Teoria da Ação Comunicativa”
virtualmente obrigadas a irem além desconsidera a característica da linguagem
do estágio do choro – um estágio no como instrumento de exercício do poder. A
qual os pais são forçados a adivinhar linguagem não é mero meio de expressão
o que seus filhos desejam ou preci- de idéias, mas de imposição de idéias.
sam – e tentar dizer o que querem “Embora considerada, em geral,
em palavras, isto é, de uma forma inócua e puramente utilitária por
que seja compreensível aos principais natureza, a linguagem traz com ela
responsáveis por elas. No entanto, uma forma fundamental de aliena-
seus desejos são moldados naquele ção que é um aspecto essencial da

40 Revista de Informação Legislativa


aprendizagem da língua materna do comunicação contrafactualmente
indivíduo. A própria expressão que possível” de Habermas.” (MÉSZÁ-
usamos para falar a respeito dela – ROS, 2004, p. 90).
‘linguagem materna’ – é indicativa do Habermas constrói todo seu arcabouço
fato de que é a língua de algum Outro teórico com base em hipóteses contrafac-
antes, a língua do Outro materno, tuais e a partir delas procura demonstrar
isto é, a linguagem da mãeOutro, [no inferências práticas. Pretende uma recons-
original, ‘mOther’. O autor joga com trução do “materialismo histórico”, mas
as palavras mãe e Outro, ‘mother’ e parte de uma base idealista. Acaba, assim,
‘Other’] e ao falar da experiência da por aproximar seu pensamento dos teóricos
infância, Lacan, muitas vezes, como do contratualismo, fundamentando mais
que iguala o Outro à mãe.” (FINK, uma vez o poder político em um consenso
1998, p. 23-24). hipotético e anistórico da espécie humana.
Ao descartar esse aspecto da linguagem
descoberto por Lacan, Habermas cria uma
6. Direito
teoria asséptica do discurso, só aplicável
a uma sociedade formada por indivíduos As posições de Habermas e Foucault
absolutamente iguais, em que não haveria em relação ao Direito se contrapõem.
relações de poder. Habermas postula o Direito como um ins-
“Na verdade, a ‘ação comunicativa trumento cujo télos é o consenso. Foucault,
pura’ de Habermas é pura ficção. É por outro lado, concebe o Direito como uma
uma noção cercada por uma varie- maneira regulamentada de fazer a guerra.
dade de válvulas de escape, como O uso da linguagem pressupõe uma re-
as de ‘fala possível’, em vez de fala lação entre indivíduos. Como não há indiví-
realmente ouvida ou produzida; duos exatamente iguais, dessas diferenças
‘nós procedemos contrafactualmen- surgem inevitavelmente relações de poder
te como se assim fosse’, em tal ‘fala que são exercidas ora conscientemente, ora
possível’; ‘falantes competentes’ (ou inconscientemente. O consenso visado por
seja, os falantes que amavelmente se ações comunicativas não passa da impo-
conformam às suposições definidoras sição de uma verdade em detrimento de
de Habermas), em contraposição aos outras. A palavra é a arma da modernidade
verdadeiros falantes; e ‘a cláusula de e o discurso é um campo de batalha.
idealização: se a discussão pudesse “Se o poder é mesmo, em si, emprego
ser conduzida de modo suficiente- e manifestação de uma relação de
mente aberto e se prolongasse o bas- força, em vez de analisá-lo em termos
tante’, etc., etc. E não se torna menos de cessão, contrato, alienação, em vez
fictícia por ser chamada, como o faz mesmo de analisá-lo em termos fun-
Habermas, de ‘ficção inevitável’. E cionais de recondução das relações
ainda menos porque os poderosos no de produção, não se deve analisá-lo
mundo histórico real (que está longe antes e acima de tudo em termos de
de ser ‘simetricamente’ estruturado combate, de enfrentamento ou de
e orientado para o ‘reconhecimento guerra? Teríamos, pois, diante da
recíproco’), que têm à sua disposição primeira hipótese – que é: o meca-
grandes riquezas e também as armas nismo do poder é, fundamental e
de ‘reserva atômica’, não têm nenhu- essencialmente, a repressão –, uma
ma dificuldade em evitar e ignorar segunda hipótese que seria: o poder
todas as implicações emancipatórias é a guerra, é a guerra continuada
‘possíveis’ da comunidade ideal de por outros meios. E, neste momento,

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 41


inverteríamos a proposição de Clau- der conservasse sua legitimidade. O
sewitz e diríamos que a política é a papel essencial da teoria do direito,
guerra continuada por outros meios.” desde a Idade Média, é o de fixar a
(FOUCAULT, 1999, p. 23). legitimidade do poder: o problema
A política, o Direito e o Estado são ins- maior, central, em torno do qual se
trumentos de legitimação do poder que têm organiza toda a teoria do direito é o
por finalidade substituir a guerra por uma problema da soberania. Dizer que o
paz social. As lutas políticas na sociedade problema da soberania é o problema
são manifestações desse desequilíbrio de central do direito nas sociedades
forças manifestado na guerra. O Direito ocidentais significa que o discurso
não é instrumento de resolução de conflito e e a técnica do direito tiveram essen-
de consagração de consenso, mas um meio cialmente como função dissolver, no
diferente de se praticar a guerra. interior do poder, o fato da domina-
“O [antigo] Direito Germânico não ção, para fazer que aparecessem no
opõe a guerra à justiça, não identifica lugar dessa dominação, que se queria
justiça e paz. Mas, ao contrário, supõe reduzir ou mascarar, duas coisas:
que o direito não seja diferente de de um lado, os direitos legítimos da
uma forma singular e regulamentada soberania, do outro, a obrigação legal
de conduzir uma guerra entre os indi- da obediência. O sistema do direito é
víduos e de encadear os atos de vin- inteiramente centrado no rei, o que
gança. O direito é, pois, uma maneira quer dizer que é, em última análise,
regulamentada de fazer a guerra.” a evicção do fato da dominação e de
(FOUCAULT, 2003a, p. 56-57). suas conseqüências.” (FOUCAULT,
A Teoria da Ação Comunicativa ostenta 1999, p. 30-31).
seu caráter conservador ao velar o caráter A concepção de Direito como instru-
belicoso do Direito. Sob a ideologia da bus- mento de consenso só se justificaria em
ca do consenso, legitima-se o poder político sociedades de indivíduos absolutamente
e o Estado como instrumento de dominação iguais, nas quais as relações humanas não
e de manutenção do status quo. fossem inevitavelmente marcadas por re-
“Que os juristas tenham sido os lações de poder.
servidores do rei ou tenham sido “Habermas precisa negligenciar o
seus adversários, de qualquer modo fato desconcertante de que as sólidas
sempre se trata do poder régio nesses relações de poder socioeconômicas e
grandes edifícios do pensamento e políticas no interior das quais ocor-
do saber jurídicos. E, do poder régio, reria seu ‘diálogo’ idealizado, nas
trata-se de duas maneiras: seja para sociedades de classe, ridicularizam
mostrar em que armadura jurídica todas as pretensões de considerar
o poder real se investia, como o esta modalidade de comunicação
monarca era efetivamente o corpo tão fortemente condicionada como
vivo da soberania, como seu poder, um genuíno diálogo. Tendo em
mesmo absoluto, era exatamente vista que as respectivas margens
adequado a um direito fundamen- de ação dos membros das classes
tal; seja, ao contrário, para mostrar que participam desse modelo – in-
como se devia limitar esse poder do cluindo as margens de sua ‘ação
soberano, a quais regras de direito comunicativa’ – são estruturalmente
ele devia submeter-se, segundo e no preconcebidas em favor da ordem
interior de que limites ele deveria dominante, o resultado provável dos
exercer seu poder para que esse po- intercâmbios comunicativos de todos

42 Revista de Informação Legislativa


os indivíduos não pode estar sujeito social e mantém-se ancorado em uma hipo-
ao mesmo modelo e reduzido a um tética possibilidade de diálogo e consenso
denominador comum apriorístico.” entre opressores e oprimidos.
(MÉSZÁROS, 2004, p. 83). “Naturalmente, os ‘agentes eman-
No atual cenário político mundial, uma cipatórios’ engajados na produção
teoria que desconsidere essas relações de de tal ‘consenso verdadeiro’ só
poder e dominação equivale a uma teoria poderiam ser da elite privilegiada
de legitimação do status quo, da dominação – os vários experts e autonomeados
e das desigualdades sociais. Nas socieda- especialistas em comunicação – que
des reais, nas quais há marcantes relações continuaria ‘por tempo suficiente’
de poder condicionadas às diferenças de seu discurso ideal (enquanto outros
classe, gênero, raça, orientação sexual, estariam trabalhando por tempo tam-
etc., o consenso imposto pela linguagem bém suficiente para seu benefício), de
jurídica é a paz imposta pelos vencedores modo a conhecer e transcender (isto
aos vencidos: a sujeição, a subserviência, a é, dissolver e ‘explicar satisfatoria-
escravidão. mente’, no espírito da filosofia lin-
güística) as diferenças identificadas.”
(MÉSZÁROS, 2004, p. 194).
7. À guisa de conclusão
A filosofia pós-moderna, por outro lado,
O questionamento filosófico da razão insiste na crítica da razão e, nesse contexto,
tornou-se o marco divisório de duas corren- o pensamento de Foucault consagra-se
tes epistemológicas deste início de século: como marco teórico de pensadores pre-
os modernos e pós-modernos. ocupados com as relações de poder na
A marca da modernidade é a crença sociedade contemporânea.
em uma razão iluminista, emancipadora Foucault vê no Direito não um meio
da espécie humana. Habermas arvorou-se capaz de alcançar uma paz consensual, mas
de paladino da modernidade e, como tal, um instrumento de disciplina da guerra, de
atém-se à defesa da razão. gestão de conflitos.
“Ao investigar o fundamento da “O problema não é, portanto, tentar
autoridade do direito no conteúdo dissolvê-las [as relações de poder] na
ilocucionário da comunicação, Ha- utopia de uma comunicação perfeita-
bermas tenta construir uma teoria mente transparente, mas se imporem
racional de fundamentação do direito regras de direito, técnicas de gestão
e afastar a idéia segundo a qual o e também a moral, o ethos, a prática
direito seria, pura e simplesmente, de si, que permitirão, nesses jogos de
uma forma de agir estratégico” (GA- poder, jogar com o mínimo possível
LUPPO, 2002, p. 114). de dominação.” (FOUCAULT, 2004,
Em sua ânsia de legitimar racionalmente p. 284).
o Direito, Habermas constrói uma teoria O antagonismo dos pensamentos de Ha-
transcendental do Estado, relegando a bermas e Foucault, que marcou a filosofia
segundo plano o difícil problema da do- nesta virada de século, é próprio de um
minação – subordinação. tempo de incertezas que não se reconhece
Habermas propõe a “reconstrução do como moderno ou pós-moderno.
materialismo histórico” com base em novos Mais do que uma simples controvérsia
pressupostos epistemológicos, mas, na prá- epistemológica, há entre esses dois filósofos
tica, a teoria da ação comunicativa consagra uma divergência política. O pensamento
um pensamento conservador que nega os consensualista de Habermas, distante da
propósitos marxistas de transformação realidade fática da maioria da população

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 43


mundial, acaba por legitimar o poder polí- nela. Só interessa àqueles que não querem
tico dos setores hegemônicos da sociedade, abrir a lata. Aos que interessam abrir a lata
sob o argumento de um consenso tácito da – aos que têm fome –, a ação comunicativa
espécie humana. Por outro lado, a filosofia não passa de ideologia.
conflitivista de Foucault consolida-se como
a base filosófica para uma resistência efeti-
va à dominação não só econômica, mas cul- Referências
tural e política, que mantém a esmagadora
maioria da população mundial subjugada ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 4 ed.
São Paulo: M. Fontes, 2000.
aos caprichos de uma elite privilegiada de
bem-aventurados capazes de imporem aos ARAÚJO, Inês Lacerda. Foucault e a crítica do sujeito.
demais a sua visão de consenso. Curitiba: UFPR, 2001.
Habermas não reconstruiu o materialis- BONFIM, Antonio Carlos Ferreira. Habermas: tra-
mo histórico; ele o demoliu e em seu lugar balho, linguagem e forma de vida humana. In: REU-
NIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE
ergueu sua antítese: uma teoria idealista do
PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Direito que o legitima mesmo diante das (ANPED), 25, 2002, Belo Horizonte. Anais... Belo Ho-
mais visíveis contradições sociais com base rizonte: ANPED, 2002. Disponível em: <http://www.
em uma ideal competência comunicativa ppgte.cefetpr.br/gtteanped/trabalhos/antoniocarlos-
da espécie humana. A ação comunicativa bonfimt09.rtf>. Acesso em: 17 jan. 2005.
habermasiana é uma ficção que encobre as CÁRCOVA, Carlos Maria. A opacidade do direito.
onipresentes relações de poder facilmente São Paulo: LTR, 1998.
perceptíveis a quem quer que se dê ao tra- CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. 12 ed. São
balho de estudar a sociedade como ela é e Paulo: Ática, 2000.
não como deveria ser. DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo:
Parafraseando a famosa anedota de Paul M. Fontes, 1996.
Samuelson ([200-?]), as posturas epistemo-
FINK, Bruce. O sujeito lacaniano: entre a linguagem
lógicas de Foucault e Habermas podem ser e o gozo. Rio de Janeiro: J. Zahar 1998.
assim provocativamente sintetizadas: Fou-
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas.
cault e Habermas foram abandonados em 3 ed. Rio de Janeiro: NAU, 2003a.
uma ilha deserta. Famintos, só havia sopas
enlatadas como alimento, mas não dispu- ______. Em defesa da sociedade. São Paulo: M. Fon-
tes, 1999.
nham de um abridor de latas. Foucault
pensou em tentar abri-las com uma pedra, ______. Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Foren-
se Universitária, 2003b. (Ditos e escritos; IV).
mas Habermas sugeriu: “Vamos imaginar
que tivéssemos um abridor de latas!”. ______. Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro:
A ação comunicativa é o abridor de latas Forense Universitária, 2004. (Ditos e escritos; V).
imaginário de Habermas. Como toda teo- GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença:
ria, é uma invenção humana que se presta estado democrático de direito a partir do pensamento
a determinado fim. Não é verdadeira ou de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.
falsa em essência, mas cumpre um papel HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação no capi-
político na sociedade em que é colocada. talismo tardio. 2 ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2002.
A questão não é “como abrir a lata?”, pois
é evidente que não se pode abrir uma lata ______. Direito e democracia: entre faticidade e valida-
com uma abstração. A questão crucial é “a de. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997a. 1 v.
quem interessa abrir a lata?”. ______. Direito e democracia: entre faticidade e valida-
O abridor imaginário de latas só adia de. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997b. 2 v.
a fome. É uma teoria que mantém o status ______. O discurso filosófico da modernidade: doze
quo – a lata fechada – enquanto se acredita lições. São Paulo: M. Fontes, 2000.

44 Revista de Informação Legislativa


______. Para a reconstrução do materialismo histórico. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência. São
2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1990a. Paulo: Companhia das Letras, 2001.
______. Pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro: ______ . Além do bem e do mal: prelúdio a uma fi-
Tempo Brasileiro, 1990b. losofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras,
1992.
LESSA, Sérgio. Mundo dos homens: trabalho e ser
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Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 45


Direitos Fundamentais
A questão dos pneumáticos no Mercosul

Eduardo Biacchi Gomes

Sumário
1. Introdução. 2. Proteção ao meio ambiente
enquanto direito fundamental nos Estados-par-
tes do Mercosul. 3. A questão dos pneumáticos
na OMC. 4. Considerações finais. Anexo.

1. Introdução
Na década de 90, principalmente com
a criação da Organização Mundial do
Comércio (OMC), em 1995, com o final da
Rodada Uruguai, o comércio internacional
se intensificou em grandes proporções,
notadamente em virtude da queda das
fronteiras e do avanço tecnológico.
O novo marco jurídico internacional,
criado por meio da OMC, tem por finali-
dade regulamentar as relações comerciais
no plano internacional (multilateralismo
econômico), no qual todos os países-mem-
bros negociam com todos em condições de
igualdade.
Trata-se do princípio basilar do comér-
cio internacional (a Cláusula da Nação
Mais Favorecida)1, no qual toda e qualquer
1
ARTIGO I GATT/94: Trato general de la nación
Eduardo Biacchi Gomes é Pós-Doutorado más favorecida
em Cultura Contemporânea pela Universi- 1. Con respecto a los derechos de aduana y cargas
dade Federal do Rio de Janeiro. Doutor em de cualquier clase impuestos a las importaciones o a las
exportaciones, o en relación con ellas, o que graven las
Direito pela Universidade Federal do Paraná.
transferencias internacionales de fondos efectuadas en
Professor de Direito Internacional e Direito concepto de pago de importaciones o exportaciones, con
de Integração da UniBrasil (Graduação e Pós- respecto a los métodos de exacción de tales derechos y
Graduação, Especialização e Mestrado), PUC/ cargas, con respecto a todos los reglamentos y formali-
PR e FACINTER. dades relativos a las importaciones y exportaciones, y

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 47


vantagem concedida para um país-membro perfeita3, as vantagens concedidas entre os
da OMC deverá ser estendida aos demais, seus Estados-partes não são estendidas aos
configurando a regra principal dessa Orga- demais países-membros da OMC, isto é, os
nização Internacional. países dessa Organização Internacional,
Transparência e igualdade também são tendo em vista a aplicação do Princípio da
princípios do comércio internacional. Exceção à Cláusula da Nação Mais Favo-
A aplicação dos referidos princípios recida, não podem exigir um tratamento
pode ser assim sintetizada: recíproco e isonômico em relação aos
“Com a aplicação do princípio da benefícios concedidos no contexto desse
transparência, procura-se eliminar bloco econômico.
qualquer prática comercial que venha Nesta seara, têm-se as políticas comer-
a distorcer o comércio internacional. ciais adotadas pelo multilateralismo econô-
Ela leva em consideração a neces- mico (OMC) e pelo regionalismo econômico
sidade de os países negociarem as (blocos regionais). Ditas políticas, represen-
políticas comerciais sempre de forma tadas pelos princípios acima mencionados,
clara, transparente e de boa-fé. não se excluem, mas se complementam,
(...) pois a Exceção à Cláusula da Nação Mais
Finalmente, pela aplicação do princí- Favorecida está compreendida dentro do
pio da igualdade, as negociações entre próprio regramento jurídico da OMC,
os países devem ocorrer em condições sendo uma exceção à regra geral, que está
de equidade, ou seja, sem privilégios. contemplada no artigo I do GATT/94.
(...)” (GOMES, 2007, p. 148-149) Não obstante a OMC pregue o livre co-
Excetuando-se o princípio da Cláusula mércio, existe a possibilidade de os Países-
da Nação Mais Favorecida, o artigo XXIV membros adotarem barreiras não tarifárias
da OMC2 estabelece o Princípio da Exceção com a finalidade de, em determinadas
à Cláusula da Nação Mais Favorecida, por circunstâncias, proibir a entrada de pro-
dutos em seus mercados, principalmente
meio do qual os respectivos países-membros
quando essas mercadorias forem nocivas
podem associar-se em uniões tarifárias, de
ao interesse público, por exemplo, ao meio
forma a que haja a concessão recíproca de
ambiente.4
vantagens, sem que essas sejam estendidas
Mencione-se que, dentro da integração
aos demais Estados integrantes da OMC.
sul-americana, o Mercosul é classificado
Trata-se de uma política comercial
como um processo de natureza sub-regio-
diferenciada, que fundamenta a criação
nal, celebrado dentro da ALADI (Asso-
dos blocos econômicos e busca uma maior
ciação Latino-Americana da Integração),
inserção na economia globalizada, como é
artigo 7o do Tratado de Montevidéu.
o caso do Mercado Comum do Sul (Merco-
O disposto no artigo 50 do Tratado de
sul), criado em 26 de março de 1991. Montevidéu, igualmente, assegura a facul-
No Mercosul, enquanto bloco econô- dade de os países-membros estabelecerem
mico em regime de União Aduaneira Im- barreiras não tarifárias quando as mercado-
rias importadas de outros mercados sejam
con respecto a todas las cuestiones a que se refieren los
párrafos 2 y 4 del artículo III, cual­quier ventaja, favor, nocivas ao interesse público.5 Há que se
privilegio o inmunidad concedido por una parte contra-
tante a un producto originario de otro país o destinado
3
Tendo em vista a existência da lista de exceção e
a él, será concedido inmediata e incondicionalmente a do regime de adequação, no que diz respeito à TEC,
todo producto similar originario de los territorios de to- Tarifa Externa Comum.
das las demás partes contratantes o a ellos destinado.
4
Vide anexo, Artigo XX, GATT/94.
2
Vide anexo, Artigo XXIV, GATT/94: Exceção à 5
Artículo 50. Ninguna disposición del presente
Cláusula da Nação Mais Favorecida. Tratado será interpretada como impedimento para la

48 Revista de Informação Legislativa


destacar, consoante reconhecido em outras entender o referido valor como uma norma
oportunidades, que o Sistema de Solução de ordem constitucional, que é elevada à
de Controvérsias do Mercosul não reconhe- categoria dos direitos fundamentais, tendo
ceu a aplicação do referido dispositivo no em vista a existência de vários tratados e
âmbito do bloco econômico, tendo em vista acordos internacionais que asseguram dita
a falta de norma específica (a constante do proteção sob a ótica dos direitos humanos,
Tratado de Montevidéu aplica-se somente no plano internacional.
para ele), conforme será visto adiante. Como o Brasil é signatário dos principais
Se, por um lado, o comércio internacio- tratados sobre o tema6, conseqüentemente,
nal privilegia o livre trânsito de mercado- no plano interno, por força do § 2o, artigo
rias, esse mesmo regramento, como visto 5o, da Constituição da República Federati-
acima, estabelece determinadas restrições va do Brasil, possui grau de hierarquia de
quando as mercadorias são nocivas e vio- direitos fundamentais, conforme será visto
lam o interesse nacional de um Estado. adiante, o mesmo ocorrendo nos demais
Exemplo claro e atual dessa polêmica Estados-partes do Mercosul.
diz respeito à questão dos pneumáticos Assim, o presente artigo tem por finali-
(usados e remoldados), exportados pelo dade abordar a proteção ao meio ambiente,
Uruguai para a Argentina e para o Brasil. enquanto norma de direitos fundamentais,
Em duas oportunidades distintas, conforme utilizando-se como estudo de caso a ques-
será visto adiante, ambos os países foram tão dos pneumáticos.
obrigados a alterar as suas legislações, de
forma a receberem, em seus mercados, os
2. Proteção ao meio ambiente
pneus usados e remoldados provenientes
do Uruguai, não obstante todo o passivo enquanto direito fundamental nos
ambiental que dito material produz. Estados-partes do Mercosul
A Comunidade Européia, no tocante à O direito dos cidadãos a um meio
OMC, entendendo estar sendo discrimina- ambiente ecologicamente equilibrado é
da multilateralmente, acionou a República resguardado em várias convenções inter-
Federativa do Brasil, por meio do Órgão nacionais. A matéria começou a ganhar
de Solução de Controvérsias, a fim de que destaque no plano internacional a partir
fosse alterada a nossa legislação para que da ECO/92, tendo em vista a celebração
passássemos a receber os pneus usados e de vários atos internacionais7, que possuem
remoldados. como finalidade proteger o meio ambiente,
A principal argumentação brasileira, preservando-o para as futuras gerações.
como mencionado acima, diz respeito à A Convenção-Quadro das Nações
violação ao meio-ambiente, pois há que se Unidas sobre Mudanças Climáticas, 1992,
afirma, em seu preâmbulo, essa preo-
adopción y el cumplimiento de medidas destinadas a
la: a) Protección de la moralidad pública; b) Aplicación
cupação ao asseverar que as mudanças
de leyes y reglamentos de seguridad; c) Regulación de climáticas, que ocorrem em nível global,
las importaciones o exportaciones de armas, municio-
nes y otros materiales de guerra y, en circunstancias 6
Declaração da Conferência das Nações Unidas
excepcionales, de todos los demás artículos militares; sobre o Meio Ambiente Humano, Estocolmo, 1972,
d) Protección de la vida y salud de las personas, los Convenção de Viena sobre Proteção da Camada de
animales y los vegetales; e) Importación y exportación Ozônio, 1985, Convenção-quadro das Nações Unidas
de oro y plata metálicos; f) Protección del patrimonio sobre Mudança do Clima, 1992; Convenção sobre
nacional de valor artístico, histórico o arqueológico; Diversidade Biológica, 1992, Declaração do Rio de Ja-
y g) Exportación, utilización y consumo de materia- neiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992),
les nucleares, productos radiactivos o cualquier otro Protocolo de Quioto à Convenção-quadro das Nações
material utilizable en el desarrollo o aprovechamiento Unidas sobre Mudança do Clima, 1997.
de la energía nuclear. 7
Vide nota de rodapé de no 5.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 49


requerem uma maior cooperação de todos internacionais pelos seguintes prin-
os Estados, bem como a própria soberania cípios:
dos Estados em explorar tais recursos, (...)
mas preservando-os, isto é, desde que não II – prevalência dos direitos huma-
causem danos ao meio ambiente e, final- nos;”
mente, reconhecendo que todos os países, Os §§ 2o e 3o, artigo 5o, da Constituição
e principalmente os em desenvolvimento, Federal asseguram aos tratados de direitos
devem ter acesso aos recursos naturais para humanos o grau de hierarquia constitu-
que possam se desenvolver, elevando tais cional:
direitos ao patamar de direitos humanos. Ҥ 2o Os direitos e garantias expres-
Vale lembrar que o direito ao desenvol- sos nesta Constituição não excluem
vimento é um direito fundamental a todo outros decorrentes do regime e dos
cidadão, a fim de que possa ter condições princípios por ela adotados, ou dos
dignas de vida. Assim, para que referido tratados internacionais em que a
Direito seja observado, os Estados deverão República Federativa do Brasil seja
ter acesso a todas as formas e possibilidades parte.
de desenvolvimento, inclusive no comércio § 3o Os tratados e convenções inter-
internacional. nacionais sobre direitos humanos que
A proteção ao meio ambiente e a sua ex- forem aprovados, em cada Casa do
ploração, mediante o exercício da atividade Congresso Nacional, em dois turnos,
econômica equilibrada, é instrumento im- por três quintos dos votos dos respec-
portante ao Estado, para que possa atingir tivos membros, serão equivalentes às
o seu desenvolvimento e, ao mesmo tempo, emendas constitucionais.”
preservar o meio ambiente para futuras Muito embora o entendimento doutri-
gerações. nário de que, segundo o disposto no § 2o,
Os Estados-partes do Mercosul, cons- artigo 5o, da Constituição Federal, todos os
cientes da relevância do tema e preocu- tratados decorrentes de direitos humanos
pados com a proteção ao meio ambiente, tenham grau de hierarquia constitucional,
adotam, em suas constituições, normas tendo em vista a aplicação do princípio da
com a finalidade de proteger os direitos máxima efetividade da norma de proteção
fundamentais e o próprio meio ambiente. aos direitos humanos, até agora esse não
Vale destacar, conforme mencionado ante- é o entendimento adotado pelas Cortes
riormente, que neste tópico a proteção ao Superiores.
meio ambiente é elevada à norma de caráter Como forma de tentar dirimir a con-
de direitos fundamentais, tendo em vista trovérsia à Emenda Constitucional 45/04,
a ratificação, por parte dos Estados, dos inseriu-se a redação do § 3o no artigo 5o da
principais atos internacionais sobre o tema Constituição, de forma a estabelecer que
e considerando-se, ademais, que todos os somente os tratados, decorrentes de direitos
povos têm o direito ao desenvolvimento e humanos, que venham a ser aprovados por
à proteção e preservação do meio ambiente 3/5 e em dois turnos em cada uma das Ca-
para as futuras gerações.8 sas do Congresso é que passam a ter força
A República Federativa do Brasil estabe- de emenda constitucional.
lece no artigo 4o da Constituição os princí- Assim, em tese, os tratados celebrados
pios que a República deverá observar: anteriormente não possuem grau de hierar-
“Art. 4 o A República Federativa quia constitucional, e os que venham a ser
do Brasil rege-se nas suas relações celebrados posteriormente somente terão a
8
Para alguns doutrinadores, esse Direito Funda- referida hierarquia desde que observem os
mental é chamado de Quarta Geração. procedimentos estabelecidos naquele § 3o.

50 Revista de Informação Legislativa


Visando eliminar qualquer controvérsia conscientização pública para a pre-
e defendendo a noção da máxima efetivida- servação do meio ambiente;
de da norma protetiva de direitos humanos, VII – proteger a fauna e a flora, ve-
entende-se que a melhor opção é a disposta dadas, na forma da lei, as práticas
anteriormente em nossa Constituição, que coloquem em risco sua função
aquela disposta no § 2o do artigo 5o. ecológica, provoquem a extinção de
Relativamente ao meio ambiente, a espécies ou submetam os animais a
Constituição brasileira assim prevê: crueldade.”
“Art. 225. Todos têm direito ao meio Interessante observar que o próprio
ambiente ecologicamente equilibra- Supremo Tribunal Federal reconhece a pro-
do, bem de uso comum do povo e teção ao meio ambiente como um direito
essencial à sadia qualidade de vida, fundamental ao cidadão:
impondo-se ao Poder Público e à “O direito  à integridade do meio
coletividade o dever de defendê-lo e ambiente — típico direito de terceira
preservá-lo para as presentes e futu- geração — constitui prerrogativa jurí-
ras gerações. dica de titularidade coletiva, refletin-
§ 1o Para assegurar a efetividade desse do, dentro do processo de afirmação
direito, incumbe ao Poder Público: dos direitos humanos, a expressão
I – preservar e restaurar os proces- significativa de um poder atribuído,
sos ecológicos essenciais e prover não ao indivíduo identificado em
o manejo ecológico das espécies e sua singularidade, mas, num sentido
ecossistemas; verdadeiramente mais abrangente, à
II – preservar a diversidade e a inte- própria coletividade social. Enquanto
gridade do patrimônio genético do os direitos de primeira geração (direi-
País e fiscalizar as entidades dedi- tos civis e políticos) – que compreen-
cadas à pesquisa e manipulação de dem as liberdades clássicas, negativas
material genético; ou formais – realçam o princípio da
III – definir, em todas as unidades da liberdade e os direitos de segunda
Federação, espaços territoriais e seus geração (direitos econômicos, so-
componentes a serem especialmente ciais e culturais) – que se identificam
protegidos, sendo a alteração e a su- com as liberdades positivas, reais
pressão permitidas somente através ou concretas – acentuam o princípio
de lei, vedada qualquer utilização que da igualdade, os direitos de terceira
comprometa a integridade dos atri- geração, que materializam poderes
butos que justifiquem sua proteção; de titularidade coletiva atribuídos
IV – exigir, na forma da lei, para genericamente a todas as formações
instalação de obra ou atividade po- sociais, consagram o princípio da
tencialmente causadora de significa- solidariedade e constituem um mo-
tiva degradação do meio ambiente, mento importante no processo de
estudo prévio de impacto ambiental, desenvolvimento, expansão e reco-
a que se dará publicidade; nhecimento dos direitos humanos,
V – controlar a produção, a comer- caracterizados, enquanto valores fun-
cialização e o emprego de técnicas, damentais indisponíveis, pela nota
métodos e substâncias que compor- de uma essencial inexauribilidade.”
tem risco para a vida, a qualidade de (BRASIL, 1995a;1995b)
vida e o meio ambiente; “A questão do desenvolvimento
VI – promover a educação ambien- nacional (CF, art. 3o, II) e a necessi-
tal em todos os níveis de ensino e a dade de preservação da integridade

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 51


do meio ambiente (CF, art. 225): O Corresponde a la Nación dictar las
princípio do desenvolvimento sus- normas que contengan los presu-
tentável como fator de obtenção do puestos mínimos de protección, y
justo equilíbrio entre as exigências da a las provincias, las necesarias para
economia e as da ecologia. O princí- complementarlas, sin que aquellas
pio do desenvolvimento sustentável, alteren las jurisdicciones locales.
além de impregnado de caráter emi- Se prohibe el ingreso al territorio
nentemente constitucional, encontra nacional de residuos actual o po-
suporte legitimador em compromis- tencialmente peligrosos, y de los
sos internacionais assumidos pelo radiactivos.
Estado brasileiro e representa fator Artículo 42. Los consumidores y
de obtenção do justo equilíbrio entre usuarios de bienes y servicios tienen
as exigências da economia e as da derecho, en la relación de consumo, a
ecologia, subordinada, no entanto, a la protección de su salud, seguridad e
invocação desse postulado, quando intereses económicos; a una informa-
ocorrente situação de conflito entre ción adecuada y veraz; a la libertad
valores constitucionais relevantes, a de elección y a condiciones de trato
uma condição inafastável, cuja obser- equitativo y digno.
vância não comprometa nem esvazie Las autoridades proveerán a la pro-
o conteúdo essencial de um dos mais tección de esos derechos, a la educa-
significativos direitos fundamentais: ción para el consumo, a la defensa de
o direito à preservação do meio am- la competencia contra toda forma de
biente, que traduz bem de uso comum distorsión de los mercados, al control
da generalidade das pessoas, a ser de los monopolios naturales y legales,
resguardado em favor das presentes e al de la calidad y eficiencia de los
futuras gerações.” (BRASIL, 2006) servicios públicos, y a la constitución
A Constituição da República da Argen- de asociaciones de consumidores y
tina, por sua vez, adota o mesmo posicio- de usuarios.
namento ao proteger, constitucionalmente, La legislación establecerá procedi-
o meio ambiente: mientos eficaces para la prevención
“Artículo 41. Todos los habitantes go- y solución de conflictos, y los marcos
zan del derecho a un ambiente sano, regulatorios de los servicios públicos
equilibrado, apto para el desarrollo de competencia nacional, previendo
humano y para que las actividades la necesaria participación de las aso-
productivas satisfagan las necesida- ciaciones de consumidores y usuarios
des presentes sin comprometer las y de las provincias interesadas, en los
de las generaciones futuras; y tienen organismos de control.
el deber de preservarlo. El daño am- Artículo 43. Toda persona puede in-
biental generará prioritáriamente la terponer acción expedita y rápida de
obligación de recomponer, según lo amparo, siempre que no exista otro
establezca la ley. medio judicial más idóneo, contra
Las autoridades proveerán a la pro- todo acto u omisión de autoridades
tección de este derecho, a la utilizaci- públicas o de particulares, que en
ón racional de los recursos naturales, forma actual o inminente lesione,
a la preservación del patrimonio restrinja, altere o amenace, con ar-
natural y cultural y de la diversidad bitrariedad o ilegalidad manifiesta,
biológica, y a la información y edu- derechos y garantías reconocidos
cación ambientales. por esta Constitución, un tratado

52 Revista de Informação Legislativa


o una ley. En el caso, el juez podrá 22. Aprobar o desechar tratados
declarar la inconstitucionalidad de concluidos con las demás naciones
la norma en que se funde el acto u y con las organizaciones internacio-
omisión lesiva. nales y los concordatos con la Santa
Podrán interponer esta acción contra Sede. Los tratados y concordatos
cualquier forma de discriminación y tienen jerarquía superior a las leyes.
en lo relativo a los derechos que pro- La Declaración Americana de los
tegen al ambiente, a la competencia, Derechos y Deberes del Hombre; la
al usuario y al consumidor, así como Declaración Universal de Derechos
a los derechos de incidencia colectiva Humanos; la Convención Americana
en general, el afectado, el defensor del sobre Derechos Humanos; el Pacto
pueblo y las asociaciones que propen- Internacional de Derechos Económi-
dan a esos fines, registradas conforme cos, Sociales y Culturales; el Pacto
a la ley, la que determinará los requi- Internacional de Derechos Civiles y
sitos y formas de su organización. Políticos y su Protocolo Facultativo;
Toda persona podrá interponer esta la Convención sobre la Prevención y
acción para tomar conocimiento de la Sanción del Delito de Genocidio;
los datos a ella referidos y de su fi- la Convención Internacional sobre la
nalidad, que consten en registros o Eliminación de todas las Formas de
bancos de datos públicos, o los priva- Discriminacion Racial; la Convenci-
dos destinados a proveer informes, y ón sobre la Eliminación de todas las
en caso de falsedad o discriminación, Formas de Discriminacion contra la
para exigir la supresión, rectificación, Mujer; la Convención contra la Tor-
confidencialidad o actualización de tura y otros Tratos o Penas Crueles,
aquéllos. No podrá afectarse el se- Inhumanos o Degradantes; la Con-
creto de las fuentes de información vención sobre los Derechos del Niño:
periodística. en las condiciones de su vigencia,
Cuando el derecho lesionado, res- tienen jerarquía constitucional, no
tringido, alterado o amenazado derogan artículo alguno de la primera
fuera la libertad física, o en caso de parte de esta Constitución y deben
agravamiento ilegítimo en la forma entenderse complementarios de los
o condiciones de detención, o en el derechos y garantías por ella recono-
de desaparición forzada de personas, cidos. Solo podrán ser denunciados,
la acción de hábeas corpus podrá ser en su caso, por el Poder Ejecutivo
interpuesta por el afectado o por cual- nacional, previa aprobación de las
quiera en su favor y el juez resolverá dos terceras partes de la totalidad
de inmediato, aun durante la vigencia de los miembros de cada Cámara.
del estado de sitio.” Los demás tratados y convenciones
Já o artigo 75.22 da Constituição argen- sobre derechos humanos, luego de
tina eleva ao grau de hierarquia constitu- ser aprobados por el Congreso, re-
cional determinados tratados de direitos querirán del voto de las dos terceras
humanos, ao prever um rol taxativo de atos partes de la totalidad de los miem-
internacionais, dispondo que os mesmos bros de cada Cámara para gozar de
complementam as normas, decorrentes la jerarquía constitucional.”
dos direitos fundamentais, estabelecidas Quanto aos demais tratados de direitos
naquela Constituição. humanos e, por exemplo, os relativos ao
“Artículo 75. Corresponde al Con- meio ambiente, estabeleceu a Constituição
greso: a necessidade de aprovação mediante voto

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 53


de 3/5 da totalidade dos membros de cada como su conciliación con el desarrollo
Câmara. Portanto, a exemplo da Constitui- humano integral. Estos propósitos
ção brasileira, a Constituição da Argentina orientarán la legislación y la política
estabeleceu um tratamento diferenciado gubernamental pertinente.
para os tratados já ratificados, referentes Artículo 8 – DE LA PROTECCIÓN
ao meio ambiente e, fazendo-se uma inter- AMBIENTAL
pretação normativa, esses tratados não pos- Las actividades susceptibles de
suem grau de hierarquia constitucional. producir alteración ambiental serán
A Constituição da República Oriental reguladas por la ley. Asimismo, ésta
do Uruguai, no seu particular, não possui podrá restringir o prohibir aquellas
qualquer posicionamento constitucional que califique peligrosas.
relativamente ao grau de hierarquia entre Se prohibe la fabricación, el montaje,
tratado de direitos humanos e a Constitui- la importación, la comercialización, la
ção; possuem, portanto, grau de hierarquia posesión o el uso de armas nucleares,
infraconstitucional. Destaque-se que o or- químicas y biológicas, así como la in-
denamento constitucional uruguaio estabe- troducción al país de residuos tóxicos.
lece como direito fundamental o acesso ao La ley podrá extender ésta prohibición
saneamento básico e à água tratada, como a otros elementos peligrosos; asimis-
forma de manter a qualidade de vida dos mo, regulará el tráfico de recursos
cidadãos, uma vez que a água é um elemen- genéticos y de su tecnología, precau-
to essencial para a vida humana. telando los intereses nacionales.
No que diz respeito à proteção ao meio El delito ecológico será definido y
ambiente, assim estabelece a Constituição sancionado por la ley. Todo daño al
uruguaia: ambiente importará la obligación de
“Artículo 6 – DE LA CALIDAD DE recomponer e indemnizar.
VIDA Artículo 47 – La protección del medio
La calidad de vida será promovida ambiente es de interés general. Las
por el Estado mediante planes y personas deberán abstenerse de cual-
políticas que reconozcan factores quier acto que cause depredación,
condicionantes, tales como la extrema destrucción o contaminación graves
pobreza y los impedimentos de la al medio ambiente. La ley reglamen-
discapacidad o de la edad. tará esta disposición y podrá prever
El Estado también fomentará la inves- sanciones para los transgresores.
tigación sobre los factores de pobla- El agua es un recurso natural esencial
ción y sus vínculos con el desarrollo para la vida.
económico social, con la preservación El acceso al agua potable y el acceso
del ambiente y con la calidad de vida al saneamiento, constituyen derechos
de los habitantes. humanos fundamentales.”
SECCIÓN II. DEL AMBIENTE A Constituição da República do Pa-
Artículo 7 – DEL DERECHO A UN raguai, por seu turno, assegura, em sua
AMBIENTE SALUDABLE Constituição, o Direito a todos os cidadãos
Toda persona tiene derecho a habitar de conviverem em um ambiente saudável
en un ambiente saludable y ecológi- e equilibrado e prevê sanções para as ativi-
camente equilibrado. dades que tenham por finalidade degradar
Constituyen objetivos prioritarios o meio ambiente.
de interés social la preservación, la No que diz respeito aos tratados de
conservación, la recomposición y Direitos Humanos, tais normas possuem
el mejoramiento del ambiente, así grau de hierarquia superior à lei.

54 Revista de Informação Legislativa


Portanto, a Constituição paraguaia não quía, sancionadas en consecuencia,
possui maior preocupação em relação à integran el derecho positivo nacional
proteção do meio ambiente, tanto é que, en el orden de prelación enunciado.
no Capítulo específico sobre o tema, não Quienquiera que intente cambiar
assegura maiores garantias aos cidadãos. dicho orden, al margen de los proce-
“Artículo 7 – DEL DERECHO A UN dimientos previstos en esta Consti-
AMBIENTE SALUDABLE tución, incurrirá en los delitos que se
Toda persona tiene derecho a habitar tipificarán y penarán en la ley.
en un ambiente saludable y ecológi- Esta Constitución no perderá su
camente equilibrado. vigencia ni dejará de observarse por
Constituyen objetivos prioritarios actos de fuerza o fuera derogada por
de interés social la preservación, la cualquier otro medio distinto del que
conservación, la recomposición y ella dispone.
el mejoramiento del ambiente, así Carecen de validez todas las disposi-
como su conciliación con el desarrollo ciones o actos de autoridad opuestos a
humano integral. Estos propósitos lo establecido en esta Constitución.
orientarán la legislación y la política Artículo 141 – DE LOS TRATADOS
gubernamental pertinente. INTERNACIONALES
Artículo 8 – DE LA PROTECCIÓN Los tratados internacionales valida-
AMBIENTAL mente celebrados, aprobados por ley
Las actividades susceptibles de del Congreso, y cuyos instrumentos
producir alteración ambiental serán de ratificación fueran canjeados o de-
reguladas por la ley. Asimismo, ésta positados, forman parte del ordena-
podrá restringir o prohibir aquellas miento legal interno con la jerarquía
que califique peligrosas. que determina el Artículo 137.
Se prohibe la fabricación, el montaje, Artículo 142 – DE LA DENUNCIA
la importación, la comercialización, DE LOS TRATADOS
la posesión o el uso de armas nucle- Los tratados internacionales relativos
ares, químicas y biológicas, así como a los derechos humanos no podrán
la introducción al país de residuos ser denunciados sino por los procedi-
tóxicos. La ley podrá extender ésta mientos que rigen para la enmienda
prohibición a otros elementos peli- de esta Constitución.”
grosos; asimismo, regulará el tráfico Finalmente, a Constituição da Repú-
de recursos genéticos y de su tecno- blica Bolivariana da Venezuela assegura a
logía, precautelando los intereses construção de um Estado Democrático de
nacionales. Direito, o qual deve observar o bem-estar
El delito ecológico será definido y social e o meio ambiente. A sociedade é
sancionado por la ley. Todo daño al construída com a observância dos tratados
ambiente importará la obligación de de direitos humanos, que possuem grau de
recomponer e indemnizar. hierarquia constitucional e são complemen-
Artículo 137 – DE LA SUPREMACIA tar às normas de direitos fundamentais,
DE LA CONSTITUCION estabelecidos naquela Constituição.
La ley suprema de la República es No que diz respeito à proteção ao meio
la Constitución. Esta, los tratados, ambiente, a Constituição venezuelana
convenios y acuerdos internaciona- estabelece, de forma taxativa, que todos
les aprobados y ratificados, las leyes os cidadãos possuem o dever de manter,
dictadas por el Congreso y otras dis- agora e para as futuras gerações, um meio
posiciones jurídicas de inferior jerar- ambiente ecologicamente equilibrado e,

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 55


para tanto, o Estado deverá atuar com a esta Constitución y en las leyes de la
finalidade de buscar o seu desenvolvimento República, y son de aplicación inme-
sustentável. diata y directa por los tribunales y
“Artículo 3. El Estado tiene como demás órganos del Poder Público.
fines esenciales la defensa y el desar- Artículo 127. Es un derecho y un
rollo de la persona y el respeto a su deber de cada generación proteger y
dignidad, el ejercicio democrático de mantener el ambiente en beneficio de
la voluntad popular, la construcción sí misma y del mundo futuro. Toda
de una sociedad justa y amante de la persona tiene derecho individual y
paz, la promoción de la prosperidad colectivamente a disfrutar de una
y bienestar del pueblo y la garantía vida y de un ambiente seguro, sano y
del cumplimiento de los principios, ecológicamente equilibrado. El Esta-
derechos y deberes reconocidos y do protegerá el ambiente, la diversi-
consagrados en esta Constitución. dad biológica, los recursos genéticos,
La educación y el trabajo son los pro- los procesos ecológicos, los parques
cesos fundamentales para alcanzar nacionales y monumentos naturales
dichos fines. y demás áreas de especial importan-
Artículo 19. El Estado garantizará a cia ecológica. El genoma de los seres
toda persona, conforme al principio vivos no podrá ser patentado, y la ley
de progresividad y sin discrimi- que se refiera a los principios bioéti-
nación alguna, el goce y ejercicio cos regulará la materia.
irrenunciable, indivisible e interde- Es una obligación fundamental del
pendiente de los derechos humanos. Estado, con la activa participación de
Su respeto y garantía son obligatorios la sociedad, garantizar que la pobla-
para los órganos del Poder Público ción se desenvuelva en un ambiente
de conformidad con esta Constituci- libre de contaminación, en donde el
ón, con los tratados sobre derechos aire, el agua, los suelos, las costas, el
humanos suscritos y ratificados por clima, la capa de ozono, las especies
la República y con las leyes que los vivas, sean especialmente protegidos,
desarrollen. de conformidad con la ley.
Artículo 22. La enunciación de los de- Artículo 128. El Estado desarrollará
rechos y garantías contenidos en esta una política de ordenación del terri-
Constitución y en los instrumentos torio atendiendo a las realidades eco-
internacionales sobre derechos huma- lógicas, geográficas, poblacionales,
nos no debe entenderse como negaci- sociales, culturales, económicas, polí-
ón de otros que, siendo inherentes a ticas, de acuerdo con las premisas del
la persona, no figuren expresamente desarrollo sustentable, que incluya la
en ellos. La falta de ley reglamentaria información, consulta y participación
de estos derechos no menoscaba el ciudadana. Una ley orgánica desar-
ejercicio de los mismos. rollará los principios y criterios para
Artículo 23. Los tratados, pactos y este ordenamiento.
convenciones relativos a derechos Artículo 129. Todas las actividades
humanos, suscritos y ratificados por susceptibles de generar daños a los
Venezuela, tienen jerarquía cons- ecosistemas deben ser previamente
titucional y prevalecen en el orden acompañadas de estudios de im-
interno, en la medida en que conten- pacto ambiental y socio cultural. El
gan normas sobre su goce y ejercicio Estado impedirá la entrada al país
más favorables a las establecidas por de desechos tóxicos y peligrosos, así

56 Revista de Informação Legislativa


como la fabricación y uso de armas Com base na aplicação do Princípio da
nucleares, químicas y biológicas. Una Cláusula da Nação Mais Favorecida e da
ley especial regulará el uso, manejo, Reciprocidade, o bloco econômico euro-
transporte y almacenamiento de las peu solicitou que o OSC declarasse ilegais
sustancias tóxicas y peligrosas. as normativas brasileiras que proíbem
En los contratos que la República o ingresso desses produtos no mercado
celebre con personas naturales o brasileiro.
jurídicas, nacionales o extranjeras, O Relatório da controvérsia foi publica-
o en los permisos que se otorguen, do em 12 de junho do ano de 2007 e o objeto
que afecten los recursos naturales, se da controvérsia teve por finalidade questio-
considerará incluida aun cuando no nar a proibição, interposta pelo Brasil, dos
estuviera expresa, la obligación de pneus usados, remoldados e recauchutados
conservar el equilibrio ecológico, de oriundos do mercado europeu, tendo em
permitir el acceso a la tecnología y la vista a existência, desde o ano de 1991, de
transferencia de la misma en condi- legislação10 que proíbe o ingresso dos refe-
ciones mutuamente convenidas y de ridos produtos no mercado brasileiro11.
restablecer el ambiente a su estado Em sua defesa, a República Federativa
natural si éste resultara alterado, en do Brasil invocou a aplicação do artigo
los términos que fije la ley.” XX, alínea b, do GATT/94, para justificar
Uma vez examinados os ordenamentos a inexistência de discriminação arbitrária
constitucionais dos Estados-Partes do Mer- ou injustificável, ao aduzir que os pneus
cosul, passa-se a estudar as hipóteses em remoldados acarretam danos ao meio
que as barreiras não tarifárias são lícitas, ambiente.
tanto no contexto da OMC como no da Relativamente à entrada dos bens oriun-
Comunidade Européia e do Mercosul. dos do Uruguai, alegou que a exceção,
adotada pela legislação brasileira, teve
3. A questão dos pneumáticos na OMC como fundamentação a decisão emanada
pelo Órgão de Solução de Controvérsias
Por meio dos precedentes emanados do Mercosul e que, portanto, não haveria
pelo sistema de Solução de Controvérsias qualquer violação aos princípios do comér-
do Mercosul, tanto a República Federativa cio internacional.
do Brasil como a República da Argentina
foram obrigadas a adequar as suas legis- 10
Portaria no 14 de 17.11.2004 (Secretaria do Co-
lações, de forma a aceitar a importação mércio Exterior); Portaria no 8 de 13.5.91 (DECEX),
dos pneumáticos remoldados oriundos da Portarias no 18 de 19.7.92 (DECEX), Portaria no 138-N
de 22.12.92 (IBAMA), Portaria n o 370 de 28.11.94
República Oriental do Uruguai9. (MICT), Portaria Interministerial no 3 de 12.9.1995
A Comunidade Européia sentiu-se do Ministério da Indústria, Comércio e Turismo
prejudicada com a falta de isonomia no e do Ministério da Economia, Resolução n o 23 de
caso em questão, visto que, com o Laudo 12.12.1996 (CONAMA), Resolução no 235 de 7.1.1998
(CONAMA), Decreto Presidencial 3.919 de 14.9.2001,
Arbitral 6, que envolveu o Uruguai e o que estabelece multa no valor de R$ 400,00 para cada
Brasil, fomos obrigados a aceitar os pneu- unidade de pneu importado ou comercializado, arma-
máticos remoldados oriundos do Uruguai, zenado ou conservado, medida adotada pelo estado
ao passo que as proibições, referentes aos do Rio Grande do Sul, Lei estadual de no 12.114/2004,
que proíbe a comercialização de pneus usados, bem
bens oriundos do mercado europeu, foram como a exceção, regulamentada por meio da Portaria
mantidas, e se acionou o Órgão de Solução no 14 de 17.11.2004, que permite a importação de pneus
de Controvérsias (OSC) da OMC. usados oriundos dos Países do Mercosul.
11
Não obstante a existência da referida legislação,
9
Laudo Arbitral 6 do sistema do Protocolo de Bra- mediante a concessão de medidas liminares, inúmeros
sília e Laudo 1 do Sistema do Protocolo de Olivos. pneus ingressaram no mercado brasileiro.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 57


A República Federativa do Brasil pro- Poder Judiciário, que permitem a entrada
cura defender a relação entre os artigos XX desses produtos no mercado brasileiro.
e XXIV do GATT/94, ao defender que o O Grupo Especial concluiu ter o Brasil
Princípio da Exceção à Cláusula da Nação demonstrado que as medidas adotadas
Mais Favorecida poderia estar, implicita- podem contribuir para o combate das
mente, inserido entre as exceções do artigo doenças acima mencionadas e proteger o
XX, no sentido de justificar a imposição de meio ambiente; entretanto, não se justifi-
uma barreira não tarifária. ca a proibição de importação dos pneus,
Quanto à proteção ao meio ambiente, a posto que o risco pode ser menor quando
justificativa da referida alegação se dá com os pneus são devidamente armazenados e
base na alínea b do artigo XX do GATT/94, acondicionados.
tendo em vista que a entrada de grande Concluiu, também, que, devido às
quantidade de pneus remoldados, oriundos importações autorizadas pelo Poder Judi-
do mercado europeu, poderia acarretar ciário, a proibição imposta por lei é incon-
danos à saúde das pessoas, dos vegetais e gruente com o contexto atual, uma vez que
dos animais. a legislação é ineficaz e, portanto, trata-se
Incontroverso, no Relatório, que grande de uma medida injustificada e uma restri-
existência de depósitos de pneus pode ser ção encoberta ao comércio internacional,
um risco para a proliferação do foco de o que se caracteriza como uma verdadeira
dengue, doença tropical, sendo um dos discriminação.
principais problemas de saúde pública Objetivamente, o OSC entendeu que o
internacional, segundo a própria Organi- Brasil agiu de maneira incompatível com
zação Mundial da Saúde (OMS)12. as regras e os princípios do comércio inter-
O Relatório constatou, portanto, que a nacional ao proibir o ingresso dos referidos
existência de depósitos de pneus, os quais pneus, violando o disposto no parágrafo
não são destinados corretamente, pode ser 1o, artigo XI, do GATT/9413, ao estabelecer
uma grande ameaça para a saúde pública. outras exigências, no que diz respeito aos
A seguir, o Grupo Especial passa a direitos de aduana, como, por exemplo, a
examinar se a medida adotada pelo Brasil necessidade de obtenção de licença de im-
justifica-se de acordo com o disposto no portação dos produtos oriundos de outro
artigo XX, alínea b, do GATT/94. país-membro, além da própria imposição
Como forma de demonstrar a inaplicabi- de multas. Ademais, as referidas medidas,
lidade do referido dispositivo do GATT/94, adotadas pelo governo brasileiro, não estão
a Comunidade Européia alega que o Brasil justificadas pelo artigo XX do GATT/94.
poderia adotar programas ecológicos com Por outro lado, a Resolução 23/1996
a finalidade de dar a destinação correta aos do CONAMA não é incompatível com o
pneus usados, como, por exemplo, recolhê- parágrafo 1o, artigo XI, do GATT/94.
los ou utilizá-los para a fabricação de asfalto O OSC entendeu ser lícita a importação,
de borracha. por parte do Brasil, em relação aos pneumá-
Comprovou, ainda, que a República ticos oriundos do Mercosul, tendo em vista
Federativa do Brasil não adotou as medidas que as importações foram determinadas
com a finalidade de impedir a entrada de pelo Tribunal Arbitral do bloco econômi-
elevado número de pneus remoldados em co, fazendo-se referência ao regionalismo
território brasileiro, tendo em vista a con- 13
Article XI: Payments and Transfers 1. Except
cessão de inúmeras liminares, por parte do under the circumstances envisaged in Article XII, a
Member shall not apply restrictions on international
12
Além da ameaça de outras doenças tropicais, transfers and payments for current transactions rela-
como a febre amarela e o paludismo (malária). ting to its specific commitments.

58 Revista de Informação Legislativa


econômico, uma vez que o Relatório con- en forma que constituya un medio de
cluiu pela existência de uma discriminação discriminación arbitrario o injustifi-
justificada. cable entre los países en que preva-
Como condição essencial para que o lezcan las mismas condiciones, o una
Brasil possa proibir o ingresso dos remol- restricción encubierta al comercio
dados, deverá tornar efetiva as medidas, no internacional, ninguna disposición
sentido de proibir a importação dos pneus del presente Acuerdo será interpreta-
usados que ingressam no mercado brasi- da en el sentido de impedir que toda
leiro mediante a concessão de liminares. parte contratante adopte o aplique
Assim, torna-se necessário que o governo las medidas:
adote legislação, visando a regulamentar a b) necesarias para proteger la salud y
proibição dos referidos pneus, bem como la vida de las personas y de los anima-
buscar um entendimento político perante o les o para preservar los vegetales;”
Supremo Tribunal Federal, instância juris- A proteção ao meio ambiente, enquanto
dicional máxima, a fim de que se evidencie valor tutelado, tanto no plano internacional,
um entendimento,  para que não sejam por meio dos tratados (neste ponto entendi-
deferidas as liminares que possibilitam o dos como tratados de Direitos Humanos),
ingresso dos referidos bens no mercado como no plano constitucional, mediante os
brasileiro. dispositivos expressos nos referidos ins-
trumentos (neste ponto entendidos como
4. Considerações finais normas de Direitos Fundamentais), sem
dúvida merece um tratamento diferenciado
As barreiras não-tarifárias são medidas
adotadas pelo Estado, sob a justificativa da no cenário do comércio internacional, pois
existência de interesse público e que têm qualquer dano causado a ele afeta toda a
por finalidade restringir o ingresso das humanidade.
mercadorias em território nacional. A pro- O Tratado de Montevidéu de 1980,
teção ao interesse público é conceito volátil, artigo 50, também contempla dispositivo
uma vez que não existem parâmetros para semelhante, especialmente em relação à
defini-lo com precisão. adoção de barreiras não-tarifárias, com a
A imprecisão deve-se ao motivo de que, finalidade de proteger o meio ambiente:
muitas vezes, as barreiras não-tarifárias são “Ninguna disposición del presente
utilizadas de forma abusiva, com a finalida- Tratado será interpretada como impe-
de de desvirtuar o comércio internacional. dimento para la adopción el cumpli-
Aqui cabe a distinção entre barreiras tari- miento de medidas destinadas a la:
fárias lícitas, aquelas inseridas no artigo XX (…)
do Acordo GATT/94, e as ilícitas, aquelas d) Protección de la vida y salud de
que, em princípio, estão inseridas nas las personas, los animales y los ve-
justificativas do artigo da referida norma getales;”
internacional, mas que têm por finalidade Portanto, o interesse público, no sen-
causar obstáculos ao livre comércio. tido de adotar barreiras não-tarifárias em
A alínea b, artigo XX, do Acordo relação aos produtos que causem danos ao
GATT/94, em relação à aplicação de bar- meio ambiente, é mais do que justificado.
reiras não-tarifárias, referente aos produtos A questão está em indagar quando o refe-
que possam causar danos ao meio ambien- rido interesse público é utilizado como uma
te, assim estabelece: justificativa com a finalidade de desvirtuar
“Excepciones generales o livre comércio.
A reserva de que no se apliquen las Verifica-se, finalmente, que comércio
medidas enumeradas a continuación internacional, proteção ao meio ambiente

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 59


e direitos fundamentais caminham juntos, b) las ventajas concedidas al comercio
tendo em vista que um comércio equilibra- con el Territorio Libre de Trieste por países
do somente é possível se o meio ambiente limítrofes de este Territorio, a condición
for protegido, sendo que o referido valor de que tales ventajas no sean incompati-
é protegido, como mencionado acima, no bles con las disposiciones de los tratados
plano constitucional, se for equiparado no de paz resultantes de la segunda guerra
âmbito dos direitos fundamentais. mundial.
4. Las partes contratantes reconocen
Anexo la conveniencia de aumentar la libertad
del comercio, desarrollando, mediante
acuerdos libremente concertados, una in-
ARTIGO XXIV GATT/94: Exceção à
tegración mayor de las economías de los
Cláusula da Nação Mais Favorecida
países que participen en tales acuerdos. Re-
1. Las disposiciones del presente Acuer- conocen también que el establecimiento de
do se aplicarán a los territorios aduaneros una unión aduanera o de una zona de libre
metropolitanos de las partes contratantes, comercio debe tener por objeto facilitar el
así como a cualquier otro territorio adua- comercio entre los territorios constitutivos
nero con respecto al cual se haya aceptado y no erigir obstáculos al de otras partes
el presente Acuerdo de conformidad con contratantes con estos territorios.
el artículo XXVI o se aplique en virtud del 5. Por consiguiente, las disposiciones
artículo XXXIII o de conformidad con el del presente Acuerdo no impedirán, entre
Protocolo de aplicación provisional. Cada los territorios de las partes contratantes, el
uno de dichos territorios aduaneros será establecimiento de una unión aduanera ni
considerado como si fuera parte contra- el de una zona de libre comercio, así como
tante, exclusivamente a los efectos de la tampoco la adopción de un acuerdo provi-
aplicación territorial del presente Acuerdo, sional necesario para el establecimiento de
a reserva de que las disposiciones de este una unión aduanera o de una zona de libre
párrafo no se interpreten en el sentido de comercio, a condición de que:
que crean derechos ni obligaciones entre a) en el caso de una unión aduanera
dos o más territorios aduaneros respecto o de un acuerdo provisional tendiente al
de los cuales haya sido aceptado el presente establecimiento de una unión aduanera,
Acuerdo de conformidad con el artículo los derechos de aduana que se apliquen
XXVI o se aplique en virtud del artículo en el momento en que se establezca dicha
XXXIII o de conformidad con el Protocolo unión o en que se concierte el acuerdo pro-
de aplicación provisional por una sola parte visional no sean en conjunto, con respecto
contratante. al comercio con las partes contratantes que
2. A los efectos del presente Acuerdo, no formen parte de tal unión o acuerdo,
se entenderá por territorio aduanero todo de una incidencia general más elevada, ni
territorio que aplique un arancel distinto u las demás reglamentaciones comerciales
otras reglamentaciones comerciales distin- resulten más rigurosas que los derechos
tas a una parte substancial de su comercio y reglamentaciones comerciales vigentes
con los demás territorios. en los territorios constitutivos de la unión
3. Las disposiciones del presente Acuer- antes del establecimiento de ésta o de la
do no deberán interpretarse en el sentido celebración del acuerdo provisional, según
de obstaculizar: sea el caso;
a) las ventajas concedidas por una parte b) en el caso de una zona de libre comer-
contratante a países limítrofes con el fin de cio o de un acuerdo provisional tendiente al
facilitar el tráfico fronterizo; establecimiento de una zona de libre comer-

60 Revista de Informação Legislativa


cio, los derechos de aduana mantenidos en las informaciones puestas a su disposición
cada territorio constitutivo y aplicables al de conformidad con el apartado a) de este
comercio de las partes contratantes que no párrafo, las PARTES CONTRATANTES lle-
formen parte de tal territorio o acuerdo, en gan a la conclusión de que dicho acuerdo no
el momento en que se establezca la zona o ofrece probabilidades de dar por resultado
en que se concierte el acuerdo provisional, el establecimiento de una unión aduanera
no sean más elevados, ni las demás regla- o de una zona de libre comercio en el plazo
mentaciones comerciales más rigurosas que previsto por las partes del acuerdo, o con-
los derechos y reglamentaciones comercia- sideran que este plazo no es razonable, las
les vigentes en los territorios constitutivos PARTES CONTRATANTES formularán
de la zona antes del establecimiento de ésta sus recomendaciones a las partes en el
o de la celebración del acuerdo provisional, citado acuerdo. Estas no lo mantendrán o
según sea el caso; y no lo pondrán en vigor, según sea el caso,
c) todo acuerdo provisional a que se si no están dispuestas a modificarlo de con-
refieren los apartados a) y b) anteriores formidad con tales recomendaciones.
comprenda un plan y un programa para c) Toda modificación substancial del
el establecimiento, en un plazo razonable, plan o del programa a que se refiere el apar-
de la unión aduanera o de la zona de libre tado c) del párrafo 5, deberá ser comuni-
comercio. cada a las PARTES CONTRATANTES, las
6. Si, al cumplir las condiciones estipu- cuales podrán solicitar de las partes contra-
ladas en el apartado a) del párrafo 5, una tantes interesadas que inicien consultas con
parte contratante tiene el propósito de au- ellas, si la modificación parece que puede
mentar un derecho de manera incompatible comprometer o diferir indebidamente el
con las disposiciones del artículo II, será establecimiento de la unión aduanera o de
aplicable el procedimiento establecido en la zona de libre comercio.
el artículo XXVIII. Al determinar el ajuste 8. A los efectos de aplicación del pre-
compensatorio, se tendrá debidamente en sente Acuerdo,
cuenta la compensación que resulte ya de a) se entenderá por unión aduanera,
las reducciones efectuadas en el derecho la substitución de dos o más territorios
correspondiente de los demás territorios aduaneros por un solo territorio aduanero,
constitutivos de la unión. de manera:
7. a) Toda parte contratante que decida i) que los derechos de aduana y las
formar parte de una unión aduanera o de demás reglamentaciones comerciales res-
una zona de libre comercio, o participar en trictivas (excepto, en la medida en que sea
un acuerdo provisional tendiente a la for- necesario, las restricciones autorizadas en
mación de tal unión aduanera o de tal zona virtud de los artículos XI, XII, XIII, XIV,
de libre comercio, lo notificará sin demora XV y XX) sean eliminados con respecto a
a las PARTES CONTRATANTES, facilitán- lo esencial de los intercambios comercia-
doles, en lo que concierne a la unión o zona les entre los territorios constitutivos de la
en proyecto, todas las informaciones que les unión o, al menos, en lo que concierne a lo
permitan someter a las partes contratantes esencial de los intercambios comerciales
los informes y formular las recomendacio- de los productos originarios de dichos
nes que estimen pertinentes. territorios; y
b) Si, después de haber estudiado el ii) que, a reserva de las disposiciones
plan y el programa comprendidos en un del párrafo 9, cada uno de los miembros
acuerdo provisional a que se refiere el de la unión aplique al comercio con los
párrafo 5, en consulta con las partes en tal territorios que no estén comprendidos en
acuerdo y teniendo debidamente en cuenta ella derechos de aduana y demás reglamen-

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 61


taciones del comercio que, en substancia, f) impuestas para proteger los tesoros
sean idénticos; nacionales de valor artístico, histórico o
b) se entenderá por zona de libre co- arqueológico;
mercio, un grupo de dos o más territorios g) relativas a la conservación de los
aduaneros entre los cuales se eliminen los recursos naturales agotables, a condición
derechos de aduana y las demás reglamen- de que tales medidas se apliquen conjun-
taciones comerciales restrictivas (excepto, tamente con restricciones a la producción
en la medida en que sea necesario, las o al consumo nacionales;
restricciones autorizadas en virtud de los h) adoptadas en cumplimiento de obli-
artículos XI, XII, XIII, XIV, XV y XX) con gaciones contraídas en virtud de un acuer-
respecto a lo esencial de los intercambios do intergubernamental sobre un producto
comerciales de los productos originarios de básico que se ajuste a los criterios sometidos
los territorios constitutivos de dicha zona a las PARTES CONTRATANTES y no
de libre comercio. desaprobados por ellas o de un acuerdo
sometido a las PARTES CONTRATANTES
y no desaprobado por éstas;
Artigo XX, GATT/94:
i) que impliquen restricciones impuestas
Excepciones generales
a la exportación de materias primas nacio-
A reserva de que no se apliquen las me- nales, que sean necesarias para asegurar a
didas enumeradas a continuación en forma una industria nacional de transformación
que constituya un medio de discriminación el suministro de las cantidades indispen-
arbitrario o injustificable entre los países en sables de dichas materias primas durante
que prevalezcan las mismas condiciones, o los períodos en que el precio nacional sea
una restricción encubierta al comercio inter- mantenido a un nivel inferior al del precio
nacional, ninguna disposición del presente mundial en ejecución de un plan guberna-
Acuerdo será interpretada en el sentido de mental de estabilización, a reserva de que
impedir que toda parte contratante adopte dichas restricciones no tengan como conse-
o aplique las medidas:
cuencia aumentar las exportaciones de esa
a) necesarias para proteger la moral
industria nacional o reforzar la protección
pública;
concedida a la misma y de que no vayan
b) necesarias para proteger la salud y
en contra de las disposiciones del presente
la vida de las personas y de los animales o
Acuerdo relativas a la no discriminación;
para preservar los vegetales;
j) esenciales para la adquisición o re-
c) relativas a la importación o a la ex-
portación de oro o plata; parto de productos de los que haya una
d) necesarias para lograr la observancia penuria general o local; sin embargo, di-
de las leyes y de los reglamentos que no chas medidas deberán ser compatibles con
sean incompatibles con las disposiciones el principio según el cual todas las partes
del presente Acuerdo, tales como las leyes contratantes tienen derecho a una parte
y reglamentos relativos a la aplicación de equitativa del abastecimiento internacional
las medidas aduaneras, al mantenimiento de estos productos, y las medidas que sean
en vigor de los monopolios administrados incompatibles con las demás disposiciones
de conformidad con el párrafo 4 del artículo del presente Acuerdo serán suprimidas
II y con el artículo XVII, a la protección de tan pronto como desaparezcan las cir-
patentes, marcas de fábrica y derechos de cunstancias que las hayan motivado. Las
autor y de reproducción, y a la prevención PARTES CONTRATANTES examinarán,
de prácticas que puedan inducir a error; lo más tarde el 30 de junio de 1960, si es
e) relativas a los artículos fabricados en necesario mantener la disposición de este
las prisiones; apartado.

62 Revista de Informação Legislativa


Referências ______. ______. Mandado de Segurança n. 22.164/SP.
Relator: Min. Celso de Mello. São Paulo, 30 out. 1995.
GOMES, Eduardo Biacchi. Comércio internacional e Diário da Justiça, Brasília, 17 nov. 1995a. Disponível em:
comunidades sul-americana de nações: o projeto democrá- <www.stf.gov.br>. Acesso em: 16 jul. 2007.
tico da integração. Porto Alegre: S. Fabris, 2007. ______. ______. Recurso Extraordinário n. 134.297/SP.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direita de Relator: Min. Celso de Mello. São Paulo, 13 jun. 1995.
inconstitucionalidade n. 3.540/DF. Relator: Min. Celso Diário da Justiça, Brasília, 22 set. 1995b. Disponível em:
de Mello. Brasilia, 1 set. 2005. Diário da Justiça, Brasília, <www.stf.gov.br>. Acesso em: 16 jul. 2007.
3 fev. 2006. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso
em: 16 jul. 2007.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 63


A influência do pensamento liberal de
Benjamin Constant na formação do Estado
Imperial Brasileiro

Cleber Francisco Alves

Sumário
1. Introdução. 2. As conquistas do pensa-
mento político liberal. 3. Retrospectiva histórica
da formação do Estado Imperial Brasileiro. 4.
Influência do pensamento de Benjamin Constant
no constitucionalismo do Brasil Império. 4.1. A
criação do poder moderador. 4.2. Outras ques-
tões constitucionais que revelam influência das
idéias de Benjamin Constant. 5. Conclusão.

1. Introdução
Os acontecimentos que marcaram a his-
tória da França, e de toda a humanidade, no
final do século XVIII suscitaram inúmeras
reflexões e debates acerca dos caminhos
concretos em que se deveriam lançar as
políticas para contornar os antagonismos e
mazelas que atemorizavam a sociedade da
época. As vicissitudes do Antigo Regime,
ainda não completamente exorcizadas, e o
ímpeto dos revolucionários, que, invocan-
do uma investidura e representatividade de
soberania popular ilimitada, cometeram as
mais abomináveis atrocidades e violências,
assustavam os espíritos mais equilibra-
Cleber Francisco Alves é Doutor em Direito dos que aspiravam a construção de uma
Constitucional pela Pontifícia Universidade sociedade política harmônica e pacífica,
Católica – RJ. Graduado em Direito pela Univer-
em que se pudesse realmente alcançar o
sidade Católica de Petrópolis. Professor do Pro-
grama de Pós-Graduação em Direito (Mestrado
bem-comum.
e Doutorado) da Universidade Gama Filho e da Nesse contexto, destaca-se o pensamento
graduação em Direito na Universidade Católica de Benjamin Constant, célebre autor liberal
de Petrópolis. Defensor Público do Estado do suíço-francês que pretendeu conciliar o an-
Rio de Janeiro. seio de expansão das esferas de liberdades
Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 65
individuais sem perder de vista os valores ção jurídica da organização estatal do Brasil
provenientes da tradição cultural e política recém-emancipado de Portugal.
que assegurariam a necessária estabilidade
do Estado e do Poder Político. Exatamente
2. As conquistas do pensamento
por isso, foi muito incompreendido pelos
que estudaram sua obra1. político liberal
Neste trabalho, pretendemos desen- As idéias liberais modernas têm suas
volver algumas reflexões, sem pretensão raízes nas guerras religiosas ocorridas na
de ineditismo, com o objetivo de resgatar Europa do século XVII, em que se procla-
a influência exercida pelo pensamento de mava o direito de liberdade religiosa, tendo
Benjamin Constant na formação do Estado sido acolhidas especialmente na Inglaterra,
Imperial Brasileiro, no início do século XIX. para fundamentar as pretensões de maior
Após tecer considerações visando recordar liberdade econômica, e limitação do Poder
as conquistas do pensamento político libe- Real, sobretudo no que se refere aos direitos
ral, seguiremos contextualizando historica- de propriedade e à tributação, bandeiras es-
mente os acontecimentos desse período na sas empunhadas pela burguesia mercantil
realidade brasileira e, por fim, traçaremos e industrial ascendente.
um paralelo entre as instituições políticas A contribuição teórica do inglês John Lo-
implantadas pela Constituição do Império cke, em especial no seu “Segundo Tratado
do Brasil e sua correlação com as propostas sobre o Governo” (1690), e, posteriormente,
teorizadas por Benjamin Constant. do Barão de Montesquieu, com seu célebre
Em suma, ainda que de forma perfunc- “Do Espírito das Leis”, fizeram solidificar
tória, poderemos perceber a significativa na Inglaterra essa ideologia política, com
contribuição haurida pelo Direito Consti- reflexos para toda a Europa, abalando os
tucional Brasileiro proveniente da obra de regimes monárquicos absolutistas que
Constant, que tornou o Estatuto Político do vigoravam na maioria dos países do Velho
Brasil Imperial como verdadeira referência Mundo. Locke inspirou-se no pensamento
no concerto geral das Constituições da pri- de Thomas Hobbes, ao fundamentar seu
meira metade do século XIX. A instituição pensamento político, partindo da distinção
do Poder Moderador, o caráter híbrido de do estágio primitivo de natureza, pré-
rigidez e flexibilidade, a questão da respon- estatal, quando os homens essencialmente
sabilidade dos ministros, entre outras, são iguais e livres resolvem firmar um pacto
características peculiares da Constituição social, constituindo o Estado, no intuito de
de 1824, que refletem toda essa contribuição melhor resguardarem seus interesses e sua
teórica de Benjamin Constant na positiva- segurança. Porém, entendia, diversamente
de Hobbes, que esse poder estatal soberano
1
A respeito dessa incompreensão do pensamento não era ilimitado, mas estava submetido
político benjaminiano, o Prof. José Ribas Vieira (1989,
p. 49) procura resgatar seu verdadeiro posicionamen- aos postulados do direito natural, que
to, quando ensina que: “ao contrário de imaginar um poderia ser racionalmente conhecido pelo
autor muito vinculado aos interesses políticos do homem.
momento, há um outro quadro mais nítido de pen- O liberalismo lockeano tem um cunho
samento de Constant. Apesar de suas insconstâncias
de posição política, esse estudioso francês esteve eminentemente individualista, sendo que a
intimamente ligado à crítica a todas as formas de ma- propriedade é o instrumento fundamental
tizes de despotismo, desde o denominado período do de defesa das liberdades individuais. O
terror revolucionário francês (1793/94), passando pelo Poder Político, assim, ficava concentrado
militarismo napoleônico e ao retrocesso conservador
da Restauração. Para ele, era fundamental diante dos nas mãos dos proprietários, mantendo-se,
governos despóticos preservar o que era mais caro ao destarte, uma dimensão aristocrática na
indivíduo: a liberdade.” estrutura orgânico-política da sociedade.

66 Revista de Informação Legislativa


Mais adiante, já na segunda metade pensamento político liberal podem ser
do século XVIII, e sob a nítida influência enumeradas como sendo: a proclamação
desses pensadores do século anterior, dos direitos e garantias individuais em face
surgem as obras dos iluministas franceses, do poder estatal, a separação e limitação
com destaque para Jean Jacques Rousseau, dos Poderes do Estado, a representação
que consagra definitivamente a teoria do da vontade popular na elaboração das leis
contrato social, estabelecendo a doutrina e fixação dos tributos e o Constituciona-
da soberania absoluta do corpo político lismo.
resultante desse pacto social, soberania essa
que se manifesta na chamada “vontade ge- 3. Retrospectiva histórica da formação
ral”. Aqui percebe-se a introdução de uma
do Estado Imperial Brasileiro
dimensão democrática, visto que o con-
texto histórico e social da França no século Os ideais liberais chegaram ao Brasil
XVIII era de uma sociedade extremamente no século XVIII, dando origem a diversos
aristocrática, marcada por privilégios e movimentos emancipacionistas que ten-
distorções no exercício do poder político diam expressamente para a formação de
que destoavam da realidade alcançada na um Estado nacional inspirado na experi-
vizinha Inglaterra. ência republicana estadunidense. Assim
Paralelamente, o processo de emancipa- foi a Inconfidência Mineira, cujos líderes
ção das colônias inglesas na América, situ- receberam grande influência dos patriarcas
ando-se num contexto social e histórico bas- de Filadélfia, sendo que, nesse período,
tante distinto daquele experimentado nas a luta pela Independência confundia-se
sociedades européias, mas sem se afastar­ com uma mentalidade antimonárquica.
das influências teóricas dos pensadores Entretanto, a transferência da Família Real
ingleses e franceses, trouxe uma importante Portuguesa para o Brasil, em 1808, alterou
contribuição prática, que, ao final, tornou- profundamente o curso da história. Os
se característica intrínseca do liberalismo movimentos separatistas praticamente
político. Trata-se da adoção de Constituição se dissiparam enquanto o Rio de Janeiro
escrita, como estatuto político fundamental permaneceu como sede da Monarquia lusa.
e inaugural de uma nova modalidade de Com a elevação formal do Brasil ao status
Estado, que se convencionou chamar de de Reino Unido ao de Portugal, em 1815,
Estado Moderno. Tem-se aí o fenômeno um significativo passo foi dado na direção
político denominado “Constitucionalismo”, da emancipação política da antiga colônia,
que se alastrou por toda a Europa e chegou que teria caráter irreversível. O Brasil já
à América Latina, onde se deflagrava, nesse ganhara uma efetiva infra­estrutura admi-
período, o processo de separação política nistrativa, desde a transferência da Corte
das metrópoles européias. metropolitana para cá, e a expectativa dos
De se notar, outrossim, que o libera- brasileiros era a de que o Rei não mais retor-
lismo que chegou à América Latina, e, nasse a Portugal, governando daqui todo
portanto, ao Brasil, assumiu contornos o seu Reino. Todavia, Dom João VI viu-se
distintos daquele vigente na Europa, posto na contingência de retornar a Lisboa, para
que aqui se pretendia, acima do propósito acompanhar mais de perto a elaboração da
de alcançar as liberdades individuais e eli- Constituição que vinha sendo reclamada
minar os entraves da Monarquia absoluta, pelo povo português. E aqui deixou, como
viabilizar a própria fundação da persona- Príncipe Regente, seu filho Dom Pedro de
lidade nacional. Alcântara, preparando, destarte, a futura
Concluindo, podemos afirmar, em sín- separação do Brasil de Portugal, que acabou
tese, que as grandes contribuições desse por se consumar em 1822. Dom Pedro era

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 67


adepto das idéias do constitucionalismo mos capazes, aquela liberdade que
liberal e, tão logo foi aclamado Imperador, faz a felicidade do Estado e não a
comprometeu-se a convocar uma As- liberdade que dura momentos e que
sembléia Constituinte. Todos esses fatos é sempre a causa e fim de terríveis
explicam, pois, a peculiar característica da desordens. Que quadro nos apre-
formação do Estado Brasileiro sob a forma senta a desgraçada América! Há
monárquica, diferentemente dos demais 14 anos que se dilaceram os povos
países latino-americanos. que, tendo saído de um governo
Com efeito, as elites brasileiras do início monárquico, pretendem estabelecer
do século XIX, mesmo aqueles que tiveram uma licenciosa liberdade e, depois
oportunidade de se aprofundar no estudo de terem nadado em sangue, não são
dos mais destacados pensadores políticos mais do que vítimas da desordem,
daquela época, refutavam o modelo liberal da pobreza e da miséria. Que temos
rousseauniano francês, assim como os ideais visto na Europa, todas as vezes que
republicanos da América do Norte, pois homens alucinados por princípios
consideravam que o regime monárquico metafísicos e sem conhecimento da
era realmente fundamental para assegurar o natureza humana quiseram criar
futuro da nação recém-emancipada de Por- poderes impossíveis de sustentar?
tugal. Preferiam filiar-se ao modelo liberal Vimos os horrores da França; as suas
inglês, inspirando-se também na experiência Constituições apenas feitas e logo
continental pós-napoleônica, quando as pro- destruídas, e por fim Bourbon, que
postas teóricas de Benjamin Constant alcan- os franceses tinham execrado, trazer-
çaram significativo destaque na tentativa da lhes a paz e a concórdia...”
sociedade francesa de superar os fracassos e Pode-se concluir, portanto, que a opção
mazelas na esfera político­-institucional que pela monarquia constitucional representa-
tanto afligiam seu povo, nos anos iniciais tiva, como forma de governo adotada pelo
Brasil, traduziu uma opção pela estabili-
que se seguiram à Revolução Francesa.
dade e unidade do novo país, ideais que
Aliás, o grande temor era exatamente
foram a tônica fundamental do pensamento
o de que nos assemelhássemos às colônias
de Benjamin Constant.
hispano-americanas, que se fragmenta-
É importante assinalar a preocupação
ram ao alcançarem sua independência
marcante desses primeiros momentos do
da Espanha, mergulhando em sangrentas
Brasil Independente no sentido de dotar
lutas intestinas que retardaram em muito
o país de uma Constituição. O Imperador
o processo de pacificação e unificação
Dom Pedro I tinha verdadeira obsessão
nacional, necessário para a consolidação pela constitucionalização do Império,
de sua autonomia. A propósito, o discurso revelando-se partidário das idéias liberais
proferido por José Bonifácio (Apud MELO que dominavam a Europa nessa época3.
FRANCO, 1957, p. 231-323) em Sessão da
Assembléia Constituinte de 1823, no dia 5 Política” (no 2), sob o título “Da liberdade dos antigos
de maio, explicita tal pensamento. Eis o que comparada à dos modernos”.
disse o “Patriarca da Independência”: 3
Esse propósito fica patente no discurso do Impe-
rador, na abertura da Assembléia Constituinte, em 3
“Queremos uma Constituição que de maio de 1823, em cujas palavras se nota claramente
nos dê aquela liberdade2 de que so- a influência desse pensamento liberal europeu, verbis:
“Ratifico hoje mui solenemente perante vós esta
2
A respeito dessa noção de liberdade aspirada promessa e espero que me ajudeis a desempenhá-la,
por José Bonifácio, é também inequívoca a influência fazendo uma Constituição sábia, justa, adequada e
de Benjamin Constant, que tratou dessa matéria no executável, ditada pela razão e não pelo capricho,
célebre discurso proferido no Ateneu Real de Paris, que tenha em vista tão-somente a felicidade geral,
em 1818, cujo texto está publicado na Revista “Filosofia que nunca pode ser grande, sem que esta Constituição

68 Revista de Informação Legislativa


Contudo, seu temperamento arrebatado órgão local de controle do Poder Executivo
e voluntarioso, e os preconceitos de sua e ainda atos oficiais mais triviais, como a
formação dinástica absolutista faziam la- denominação de logradouros públicos6.
tentes em sua personalidade alguns traços Mas seus vestígios absolutistas também se
antiliberais que afloravam muito freqüen- fizeram presentes nas diversas proclama-
temente. Isso preocupava as lideranças ções dirigidas à Assembléia Constituinte,
políticas nacionais, tendo causado inúme- quando condicionava a aceitação da Carta
ros conflitos, que somente cessaram com a Política a que fosse considerada digna
Abdicação ao Trono, ocorrida em 1831. de si. Essa postura do Imperador gerou
Inúmeras iniciativas e atos governamen- descontentamento entre os Constituintes,
tais de Dom Pedro, ainda como Príncipe acirrando as animosidades, que acabaram
Regente, ressaltaram a dimensão liberal por desaguar na dissolução da Assembléia,
de sua personalidade. No seu “Curso de acontecimento esse que representou inequí-
Direito Constitucional Brasileiro”, o Prof. voco retrocesso na fase de consolidação do
Afonso Arinos de Melo Franco (1960) Estado liberal brasileiro.
menciona vários fatos que confirmam essa Imediatamente após dissolvida a Cons-
assertiva, como, por exemplo, os Decretos tituinte, e a fim de evitar um agravamento
que fixavam garantias à liberdade pessoal4, da crise, e, ainda, no intuito de dar tes-
à propriedade privada5, o que criava um temunho de sua postura constitucional,
Dom Pedro criou um Conselho de Estado
tenha bases sólidas, bases que a sabedoria dos séculos – composto de dez membros entre os quais
tenha mostrado que são as verdadeiras para darem
uma justa liberdade aos povos... uma Constituição
sete haviam sido constituintes – e conferiu
em que os três poderes sejam bem divididos, de a esse órgão a atribuição de elaborar o pro-
forma que não possam arrogar direitos que lhes não jeto da futura Constituição. Desse grupo,
compitam, mas que sejam de tal modo organizados destacavam-se Maciel da Costa (Marquês
e harmonizados que lhes torne impossível, ainda
pelo decurso do tempo, fazerem­-se inimigos, e cada
de Queluz), que tinha sido o Presidente da
vez mais concorram de mãos dadas para a felicidade Assembléia dissolvida, e a figura de Car-
geral do Estado. Afinal, uma Constituição que, pondo neiro de Campos (Marquês de Caravelas),
barreiras inacessíveis ao despotismo, quer real, quer jurista de escol, a quem coube a tarefa de
aristocrático, quer democrático, afugente a anarquia e
plante a árvore daquela liberdade a cuja sombra deva
redigir o texto constitucional. O Projeto
crescer a união, a tranqüilidade e independência deste elaborado pelo Conselho de Estado, que
Império, que será o sombro do mundo novo e velho”. mantinha em muito as contribuições do
Não há como negar, nesse contexto, a expressiva in-
fluência das idéias de Benjamin Constant. pretexto de necessidades do Estado e Real Fazenda,
4
Assim dispunha o Decreto datado de 23 de efeitos particulares, contra a vontade destes e muitas
maio de 1821: “nenhuma pessoa livre no Brasil pode vezes se locupletarem aqueles que mandam violenta-
jamais ser presa sem ordem, por escrito, do juiz ou mente tomar... determino que, da data deste em diante,
magistrado criminal”, salvo caso de “flagrante delito”, a ninguém possa tomar-se, contra sua vontade, coisa
e que nenhum juiz poderia expedir tal ordem “sem alguma de que for possuidor ou proprietário... sem
preceder a culpa formada pela inquirição sumária de que primeiro, de comum acordo, se ajuste o preço que
três testemunhas” (MELO FRANCO, 1960, p. 37). lhe deve pela Real Fazenda ser pago no momento da
5
A propriedade era, na época, “o símbolo da liber- entrega” (MELO FRANCO, 1960, p. 36).
dade individual, porque representava um limite sério 6
Dom Pedro, em 2 de março de 1821, alterou a
ao arbítrio da Monarquia Absoluta”. Daí a significação denominação do largo do Rocio, no Rio de Janeiro,
importantíssima do Decreto datado de 21 de maio determinando que passasse a se chamar “Praça da
de 1821, em que o Príncipe Regente deixa clara essa Constituição”. Em visita a Minas Gerais, exige que lhe
perspectiva liberal, vedando que o Estado se apode- reconheçam a autoridade de ‘regente constitucional’,
rasse arbitrariamente da propriedade do súdito, verbis: sendo que, ao entrar na capital mineira, expede uma
“sendo uma das principais bases do pacto social entre proclamação que diz ao povo: “Sois livres. Sois cons-
os homens a segurança de seus bens; e constando-me titucionais. Uni-vos comigo e marchareis constitucio-
que, com horrenda infração do sagrado direito de nalmente...”. Outros exemplos podem ser recolhidos
propriedade se cometem os atentados de tomar-se, a na obra citada do Prof. Melo Franco.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 69


Projeto anterior da Assembléia Constituin- Esse modelo revelava-se sobremaneira
te, foi submetido ao Parecer das Câmaras conveniente para a realidade brasileira,
Municipais, que se manifestaram, em sua em que, como visto acima, a presença da
maioria, favoravelmente à imediata adoção Família Real Portuguesa evitou que os
desse texto, o que foi feito pelo Imperador movimentos emancipacionistas nacionais
em 25 de março de 1824. Estava, pois, juri- partissem para alternativas mais radicais
dicamente consolidado o Estado Brasileiro, de ruptura com o passado monárquico da
com uma Constituição que, apesar do vício metrópole, proporcionando uma gradual e
de origem, revelava-se bastante avançada orgânica construção do Estado sobre bases
para os padrões da época, cuja importância já assentadas pela Monarquia Lusa.
fica patente pelo fato de ter sido o Estatu- Daí que a influência teórica de Benja-
to Político que permaneceu vigendo por min Constant tornou-se muito importante,
maior tempo na história constitucional do posto que seu pensamento correspondia
país até a presente data. perfeitamente à realidade histórica que se
processava no Brasil. Com efeito, como nos
lembra Afonso Arinos, o prestígio intelec-
4. Influência do pensamento
tual de Constant entre os membros da As-
de Benjamin Constant no sembléia Constituinte de 1823 se manifesta
constitucionalismo do Brasil Império em diversas páginas dos “Anais” daquelas
O Pensamento de Benjamin Constant reuniões e também em outros documentos,
situa-se numa perspectiva de crítica aos valendo citar a declaração do deputado
excessos da Revolução Francesa, espe- Cruz Gouveia ao divergir do Projeto ela-
cialmente ao período do Terror. Mas borado por Antônio Carlos de Andrada e
nem por isso admite ele que se dispense Silva, quando afirma: “Eu sigo a opinião
a contribuição das propostas reformistas do célebre Benjamin Constant, publicista
de 1789, na direção da construção de uma muito elogiado pelos mais ilustres deputa-
nova sociedade. Partindo de um método dos desta Assembléia” (MELO FRANCO,
comparativo, espelhando-se especialmente 1960, p. 57). Essa passagem, por si só, é
nas instituições inglesas e na experiência suficiente para revelar a importância do
e tradição da França pré-revolucionária, pensamento constantino nesses primeiros
Constant assume uma postura que se afasta atos de formulação jurídico-constitucional
dos postulados racionalistas e iluministas do Estado Imperial Brasileiro.
de seus predecessores, adotando uma pers- Mas, passemos desde logo ao cerne
pectiva historicista e experimentalista na desta exposição, em que procuraremos
formulação de seus princípios políticos. destacar concretamente os pontos de mais
Procura, assim, conciliar as conquis- expressiva co-relação entre as propostas te-
tas revolucionárias ligadas às liberdades óricas de Benjamin Constant e os institutos
individuais, e à afirmação da cidadania e jurídico-­políticos da Constituição Brasileira
da representação política na formação dos de 1824.
governos, sem contudo dispensar o modelo
4.1. A criação do Poder Moderador
monárquico, num processo de acomodação
das instituições políticas e sociais que a A contribuição mais relevante do pen-
história havia colocado em rivalidade. Fica samento de Benjamin Constant para as
patente a influência da experiência inglesa, instituições políticas do Brasil Império foi
em que a evolução das instituições políticas a idéia de previsão constitucional de um
ocorreu de forma muito menos abrupta Poder Moderador, que na dicção do autor
comparativamente à situação vivenciada francês era chamado de Poder Real. Ali-
na França. ás, como alerta Afonso Arinos, o próprio
70 Revista de Informação Legislativa
Constant reconhece que a originalidade da Políticos Constitucionais” (título adotado
propositura desse instituto não lhe perten- na edição vernácula editada pela Ed. Liber
cia; ele se inspirara nos escritos de Clermont Juris, do Rio de Janeiro, em 1989), com os
Tannerre, deputado aos Estados-Gerais, ensinamentos de Benjamin Constant (1989)
que fora morto no período revolucionário sobre o Poder Real, para depois confrontar
francês (MELO FRANCO, 1960, p. 56). com os dispositivos constantes da Carta
O Poder Moderador traduziu-se em im- Política do Império. Senão, vejamos:
portante inovação que se veio acrescentar à “ O poder real (refiro-me ao do chefe
clássica tripartição dos poderes como fora de Estado, qualquer que seja seu títu-
proposta por Montesquieu, tendo decor- lo) é poder neutro e o dos ministros
rido da observação do funcionamento da é um poder ativo. (...) O poder real
monarquia parlamentar inglesa. Igualmen- precisa estar situado acima dos fatos,
te, há quem afirme que esse Poder Real ou e que, sob certo aspecto, seja neutro, a
Moderador tenha recebido inspiração tam- fim de que sua ação se estenda a todos
bém do modelo norte-americano, no que os pontos que se necessite e o faça com
se refere ao papel exercido pela Suprema um critério preservador, reparador,
Corte do Estados Unidos, especialmente não hostil. A monarquia constitucio-
quando Benjamin Constant ensina que esse nal tem esse poder neutro na pessoa
poder seria uma espécie de Poder Judiciário do Chefe do Estado. O verdadeiro
entre os demais Poderes. Mais uma vez, fica interesse deste poder é evitar que um
explícito o cunho historicista e experimen- dos poderes destrua o outro, e permitir
talista das doutrinas de Constant, que, a que todos se apóiem, compreendam-
partir da análise das instituições já existen- se e que atinem comumente”.
tes, teorizava os princípios constitucionais “O caráter neutro e puramente pre-
objeto de sua obra política. servador do poder real é indiscutí-
Vale notar que esse Poder Moderador vel. Comparando o poder real e o
ou Real proposto por Constant, apesar de ministerial, é evidente que somente
já ter-se revelado presente na prática consti- o segundo é ativo, já que, se não
tucional inglesa e nas entrelinhas da Cons- quisesse fazer o primeiro, não encon-
tituição francesa de 1814, não chegara a ser traria nenhum meio de obrigá-lo, mas
previsto expressamente em nenhuma outra também nenhuma possibilidade de
Constituição escrita anterior. Na Inglaterra, atuar sem ele”.
isso sequer era cogitado, em razão de sua “Essa posição do poder real só tem
Constituição de caráter consuetudinário. vantagens e nunca inconvenientes,
Na França, essa doutrina foi implicitamente porque, do mesmo modo que o Rei
adotada, na medida em que a Constitui- da Inglaterra encontraria na negativa
ção estabeleceu as responsabilidades dos de seu governo um obstáculo intrans-
ministros, afirmando a inviolabilidade do ponível para propor leis contrárias ao
monarca; daí concluiu Benjamin Constant espírito do século e à liberdade reli-
que o poder ministerial, ainda que emanas- giosa, a oposição ministerial, da mes-
se do poder real, tinha, não obstante, uma ma forma, seria impotente se quisesse
existência verdadeiramente independente. impedir o poder real de propor leis
Portanto, coube à Constituição Brasileira de acordo com o espírito do século e
de 1824 a iniciativa pioneira de implantar favoráveis à liberdade religiosa. Ao
expressamente essa inovação haurida no rei lhe bastaria trocar de ministros;
pensamento Benjaminiano. mas ninguém se apresentaria para
Trazemos à colação, neste momento, desafiar a opinião e enfrentar aberta-
algumas passagens da obra “Princípios mente as ‘luzes’, apareceriam muitos

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 71


para tomar as medidas populares do os ministros se desincumbem
que a nação subscrevesse com sua dignamente da missão que lhes foi
aprovação e concordância”. confiada; compete-lhes, enfim, a
(...) distribuição de graças, favores, re-
“Muitas coisas que admiramos e que compensas, a prerrogativa de pagar
nos pareciam significativas em ou- com um olhar ou com uma palavra
tras épocas são agora inadmissíveis. os serviços prestados ao Estado, prer-
Representemos os Reis da França rogativa essa que dá à monarquia um
fazendo justiça ao pé de uma colina. tesouro inesgotável, de tal forma que
Emocionar-nos-á esse espetáculo e re- faz de cada vaidoso um servidor e de
verenciaremos esse exercício augusto cada ambicioso um devedor”7.
e simples de uma autoridade paterna. Para deixar patente a influência do pen-
Mas, hoje, o que nos pareceria um ju- samento de Constant na gênese jurídico-
ízo celebrado por um rei sem a ajuda política de nossas instituições imperiais,
dos tribunais? A violação de todos os basta confrontar esses trechos acima
princípios, a confusão de todos os po- transcritos com o teor dos Arts. 99, 101, 132
deres, a destruição da independência e 135, da Constituição de 1824, que assim
judicial tão energicamente desejada dispunham:
por todas as classes. Não se faz uma “Art. 99. A pessoa do Imperador é in-
monarquia constitucional com recor- violável e sagrada: ele não está sujeito
dações e poesia”. a responsabilidade alguma.
“Numa Constituição livre, ficam para (...)
os monarcas nobres, formosas e su- Art. 101. 0 Imperador exerce o poder
blimes prerrogativas. Compete-lhes moderador:
o direito de conceder graça, direito 1o Nomeando os senadores na forma
de uma natureza quase divina, que do Art. 43.
repara os erros da justiça humana ou 2o Convocando a assembléia geral
seus rigores demasiado inflexíveis, extraordinária nos intervalos das
que também são erros; compete-lhes sessões, quando assim o pede o bem
o direito de investidura, elevando do Império.
cidadãos distintos e de ilustração 3o Sancionando os decretos e resolu-
duradoura à magistratura hereditá- ções da assembléia geral, para que
ria que reúne o brilho do passado e tenham força de lei.
a solenidade das mais altas funções 4o Aprovando e suspendendo interi-
políticas; compete-lhes o direito de namente as resoluções dos conselhos
criar os órgãos legislativos e de as- provinciais.
segurar o gozo da ordem pública e a 5o Prorrogando ou adiando a assem-
segurança; compete-lhes o direito de bléia geral e dissolvendo a Câmara
criar os órgãos legislativos e de asse- dos Deputados, nos casos em que o
gurar à sociedade o gozo da ordem exigir a salvação do Estado; convo-
pública e a inocência da segurança; cando imediatamente outra que a
compete-lhes o direito de dissolver substitua.
as assembléias representativas e pre- 6o Nomeando e demitindo livremente
servar, assim, a nação dos desvios de os ministros de Estado.
seus mandatários, convocando novas 7o Suspendendo os magistrados nos
eleições; compete-lhes a nomeação casos do Art. 154.
dos ministros, o que proporciona ao
monarca a gratidão nacional quan- 7
Trechos extraídos do capítulo 2.

72 Revista de Informação Legislativa


8o Perdoando ou moderando as penas uma Constituição, nem toda matéria devia
impostas aos réus condenados por ser considerada juridicamente constitucio-
sentença. nal. Daí se seguia, logicamente, que certos
9 o Concedendo anistia em caso capítulos ou artigos da Constituição exi-
urgente, e que assim aconselhem a giam cautelas especiais para sua reforma,
humanidade e o bem do Estado. enquanto outros não (MELLO FRANCO,
(...) 1960, p. 105). Assim dispunha o Art. 178
Art. 132. Os ministros de Estado refe- da Constituição Imperial de 1824:
rendarão ou assinarão todos os atos “Só é constitucional o que diz respeito
do poder Executivo, sem o qual não aos limites e atribuições específicas
poderão ter execução. dos poderes políticos, e aos direitos
(...) políticos e individuais dos cidadãos;
Art. 135. Não salva aos ministros de tudo o que não é constitucional pode
responsabilidade, a ordem do Impe- ser alterado, sem as formalidades refe-
rador, vocal ou por escrito.” ridas, pelas legislaturas ordinárias.”
Enfim, utilizou-se textualmente no Art. Também a questão do voto censitário,
98 da Constituição de 1824 uma expressão introduzida na Constituição Imperial,
que era tradução literal daquela adotada guarda certa coerência com o pensamento
por Benjamin Constant para definir o Po- de Benjamin Constant, na medida em que
der Real: “O Poder Moderador é a chave esse pensador entendia que a propriedade
de toda organização política...”, que cor- era condição para o exercício dos direitos
responde, na expressão em francês, a: “la políticos. É o que se vê na sua obra, sob co-
clef de toute orgarnisation politique” mentário, quando diz que: “nas sociedades
(MELLO FRANCO, 1960, p.56). atuais, o nascimento no país e a maturidade
A temática da extensão e dos limites do não bastam para o exercício dos direitos de
Poder Moderador foi a principal questão cidadania. Aqueles a quem a indigência
jurídico-constitucional debatida durante mantém numa eterna dependência e con-
todo o período monárquico, sendo célebres dena a trabalhos diários não têm maior in-
os posicionamentos antagônicos de dois formação que as crianças sobre os assuntos
eminentes juristas que externaram seu pen- públicos, nem têm maior interesse do que
samento em obras que se tornaram clássicas os estrangeiros na prosperidade nacional,
no Direito Constitucional pátrio.8 cujos elementos não conhecem e de cujos
benefícios só participam indiretamente”.
(...) “Somente a propriedade assegura o
4.2. Outras questões constitucionais ócio necessário à capacitação do homem
que revelam influência das idéias de para o exercício dos direitos políticos”
Benjamin Constant (CONSTANT, 1989, cap. 6).
Uma outra característica marcante da Também parece-nos possível traçar um
Constituição do Império, também resul- paralelo de sintonia entre o pensamento
tante de expressiva influência de Benjamin de Benjamin Constant (1989, cap. 12) e
Constant, foi sua natureza semi-rígida. a questão da atribuição de uma esfera
Esse pensador entendia que, no texto de de poder no âmbito local, que o consti-
tucionalista suíço-francês considerava
8
Trata-se das seguintes obras, que são conside- essencial, valendo transcrever a seguinte
radas clássicas no pensamento político-jurídico do lição: “Os municípios, por sua vez, têm
Brasil Imperial: GOIS E VASCONCELOS, Zacarias de.
Da Natureza e dos Limites do Poder Moderador (1862) e
interesses que somente os afetam e outros
PIMENTA BUENO (Marquês de São Vicente), Direito que poderão ser comuns a um distrito. Os
Público Brasileiro (1857). primeiros serão de competência puramente

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 73


municipal; os segundos, da competência quadas para a problemática enfrentada no
distrital e assim sucessivamente, até che- período pós-revolucionário. Alguém que
gar aos interesses gerais, comuns a cada compreendeu profundamente o valor da
um dos indivíduos que formam o milhão liberdade e que percebeu a necessidade de
de pessoas que integram a população”.9 trilhar caminhos menos tormentosos de
Aqui cabe reportarmos, ainda uma vez, à modo a assegurar um mínimo de convivên-
Constituição Imperial, quando confirma a cia pacífica entre os membros da sociedade
autonomia das Câmaras Municipais, nos política.
arts. 167-169, e quando garante “o direito” Talvez tenha sido exatamente essa capa-
de intervir todo o cidadão nos negócios de cidade de compreender o mundo e escapar
sua Província, e que são imediatamente de uma perspectiva meramente romântica
relativos a seus interesses peculiares” (Art. e idealista para buscar a concretização dos
71). Esses dispositivos, ao lado da divisão anseios que se revelavam efetivamente
do território em Províncias “na forma em possíveis e realizáveis no contexto histórico
que atualmente se acha, as quais poderão em que vivia que fizeram de Benjamin Con-
ser subdivididas, como pedir o bem do tant um pensador tão admirado cá entre
Estado” (Art. 2o), se bem interpretados, nós, chegando mesmo a ter suas doutrinas
poderiam ter-se tornado a senda de um transportadas do campo das idéias para a
federalismo orgânico que teria feito muito vida real, na construção e positivação jurí-
bem ao futuro da nação. Porém, se muitas dica das normas fundamentais da Império
das instituições concebidas pela Constitui- recém-fundado neste vasto Continente
ção Imperial lograram contínuo aperfeiçoa- Americano.
mento e adequação às mudanças ocorridas
na realidade política, social e econômica
do século XIX, tal êxito não foi alcançado
Referências
quanto a esse desejado federalismo, o que
representou importante fator na decadência BARRETO, Vicente. Primórdios do liberalismo e o li-
do regime monárquico. beralismo e representação política: o período imperial.
In: Curso de introdução ao pensamento político brasileiro.
Unidades 1 e 2. Brasília: Editora UnB, 1982.
5. Conclusão
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. São Paulo:
A partir do enfoque específico da rea- Brasiliense, 1995.
lidade histórica brasileira, cremos ter sido BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História
possível, com este trabalho, apontar algu- constitucional do Brasil. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra,
mas contribuições do liberalismo europeu 1991.
para a consolidação do Estado Nacional CONSTANT de Rebecque, Henri Benjamin. Princípios
Brasileiro, especialmente no que se refere políticos constitucionais. Organizado por Aurélio Wan-
às influências provenientes do pensamento der Bastos. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1989.
de Benjamin Canstant. LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. n.18. São
Esse autor, que já foi estigmatizado por Paulo: Abril, 1973. Coleção Os Pensadores.
muitos estudiosos da ciência política, deve
MELO FRANCO, Afonso Arinos de. Estudos de direito
ser resgatado na sua verdadeira perspectiva constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1957.
de um homem marcado pelas contradições
______. Curso de direito constitucional brasileiro. v.2. Rio
de seu tempo, que soube dar respostas ade-
de Janeiro: Forense, 1960.

De se notar que o Distrito, na França, corresponde


9 PAIM, Antônio. A discussão do poder moderador
a uma fração territorial que abrange vários municípios, no segundo império. In: Curso de introdução ao pensa-
diferentemente do Brasil, em que os Distritos são mento político brasileiro. Unidades 3 e 4. Brasília: Ed.
subdivisões dos municípios. UnB, 1982.

74 Revista de Informação Legislativa


VIEIRA, José Ribas. Introdução. In: CONSTANT, GOES E VASCONCELLOS, Zacarias de. Da natureza
Benjamin. Princípios políticos constitucionais. Tradu- e limites do poder moderador. Brasília: Senado Federal,
ção de Maria do Céu Carvalho. Rio de Janeiro: Liber 1978.
Juris, 1989.

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Nacionalidade brasileira e Direito
Internacional
Um breve comentário sobre a Emenda Constitucional
no 54/2007

Aziz Tuffi Saliba

Sumário
1. A Nacionalidade em Direito Internacional.
2. Nacionalidade no Brasil. 3. Considerações
finais.

Com a Emenda Constitucional no 54,


chegamos à terceira redação do artigo que
trata da atribuição de nacionalidade a fi-
lhos de brasileiros nascidos no exterior – o
artigo 12, I, “c”, da Constituição Federal de
1988 (CF/88, BRASIL, 2007)1. Neste sucinto
comentário, buscaremos analisar as modi-
ficações promovidas pela referida emenda,
à luz do Direito Internacional.

1. A nacionalidade em
Direito Internacional
Em célebre voto na Suprema Corte
Americana, o ministro Earl Warren afirmou
1
A Emenda Constitucional no 54, de 20 de setembro
de 2007, promoveu a alteração da alínea “c” do inciso
I do art. 12 da Constituição Federal e acrescentou o art.
95 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
(ADCT). A nova redação do art. 12, I, “c”, assevera
serem brasileiros natos: “os nascidos no estrangeiro
de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que sejam
registrados em repartição brasileira competente ou venham
a residir na República Federativa do Brasil e optem,
em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela
nacionalidade brasileira;” (grifo nosso). Já o artigo 95 do
ADCT estabelece: “Os nascidos no estrangeiro entre 7 de
junho de 1994 e a data da promulgação desta Emenda
Aziz Tuffi Saliba é Doutor em Direito pela
Constitucional, filhos de pai brasileiro ou mãe brasileira,
UFMG. Mestre em Direito pela University of poderão ser registrados em repartição diplomática ou
Arizona, Estados Unidos. Professor da Univer- consular brasileira competente ou em ofício de registro,
sidade de Itaúna, MG. se vierem a residir na República Federativa do Brasil”.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 77


que a nacionalidade constitui “o direito também, base para exercício de jurisdição
humano básico, pois é o direito a ter di- cível ou penal.4
reitos” (SUPREMA..., 1958)2. Um exame A outorga de nacionalidade originária
perfunctório já é suficiente para revelar a (natos) se dá, em regra, pelo nascimento
importância prática da nacionalidade para no território do Estado (jus solis) ou pela
o Direito Internacional e para o próprio descendência de nacionais (jus sanguinis),
indivíduo. Um primeiro exemplo disso é enquanto a concessão de nacionalidade
a proteção diplomática, instituto descrito derivada (naturalização) pode ocorrer em
pela Corte Internacional de Justiça (CIJ) razão de uma miríade de fatores (matrimô-
como a situação “na qual o Estado adota nio, trabalho, residência, etc.) (BROWNLIE,
uma causa de um nacional seu, cujos di- 1998, p. 391).
reitos se alega que foram desconhecidos Embora a atribuição de nacionalidade
por outro Estado em violação do Direito tenha consideráveis desdobramentos no
Internacional” (CORTE..., 1959)3. Normas plano externo, para doutrina jusinterna-
(em sua maioria, costumeiras) atinentes cionalista clássica, a decisão de quem seria
à guerra e neutralidade acarretam para um nacional seria exclusivamente do Esta-
o Estado o dever de prevenir ou punir, do, como se infere de célebre assertiva de
diante de atos ou omissões de seus nacionais Oppenheim (1905, p. 382): “Não é o Direito
(BROWNLIE, 1963, p. 290). Não se deporta Internacional e sim o direito interno que
ou expulsa e, em regra, também não se ex- determina quem deve e quem não deve ser
tradita um nacional, enquanto os não nacio- considerado um nacional”5. Também o Tri-
nais (termo que aqui utilizaremos para nos bunal Permanente de Justiça Internacional
referir a estrangeiros e apátridas) podem (1923, p. 19) afirmou ser “verdade que um
ser deportados, expulsos e extraditados; Estado soberano tem o direito de decidir
além disso, o Estado tem o dever de acolher quais pessoas devem ser consideradas seus
os seus respectivos nacionais (BROWNLIE, nacionais”6. Entretanto, no caso Nottebo-
1963, p. 290). A nacionalidade pode ser, hm, a Corte Internacional de Justiça trouxe
a lume o que constitui a mais contundente
2
O texto completo e original é “[…] is man’s basic limitação ao poder de conferir nacionalida-
right for it is nothing less than the right to have rights.
Remove this priceless possession and there remains a
de – o princípio da efetividade.
stateless person, disgraced and degraded in the eyes Friedrich Nottebohm nasceu em Ham-
of his countrymen. He has no lawful claim to protec- burgo, Alemanha, em 16 de setembro de
tion from any nation, and no nation may assert rights 1881. Em 1905, Nottebohm se mudou para
on his behalf. His very existence is at the sufferance
of the state within whose borders he happens to be.
a Guatemala, onde estabeleceu residência
In this country the expatriate would presumably e o centro de suas atividades empresariais.
enjoy, at most, only the limited rights and privileges Em 1939, um mês depois da invasão da Po-
of aliens, and like the alien he might even be subject lônia pela Alemanha, Nottebohm requereu
to deportation and thereby deprived of the right to
assert any rights”.
e obteve a nacionalidade lichtensteinense
3
O texto em inglês é “[…] in which a State has (CORTE..., 1955, p. 13). Em 1943, autori-
adopted the cause of its national whose rights are dades policiais guatemaltecas prenderam
claimed to have been disregarded in another State Nottebohm e extraditaram-no para os Es-
in violation of international law”. Registra-se que o
predecessor da CIJ – o Tribunal Permanente de Justiça 4
Nesse sentido, ver o artigo 7o do Código Penal
Internacional – já havia observado, no caso Mavromma- brasileiro.
tis, ser a proteção diplomática “um princípio elementar 5
O texto original é: “It is not for International Law,
de Direito Internacional aquele que autoriza o Estado a but for Municipal Law, to determine who is and who
proteger seus nacionais lesados por atos contrários ao is not to be considered a subject”.
Direito Internacional cometidos por um outro Estado, 6
O texto original é: “It is true that a sovereign State
contra os quais eles não puderam obter reparação has the right to decide what persons shall be regarded
pelas vias ordinárias” (TRIBUNAL..., 1924, p. 12). as its nationals […]”.

78 Revista de Informação Legislativa


tados Unidos, onde permaneceu preso até A Corte concluiu que os fatos eviden-
1946, como “inimigo estrangeiro”. Ao ser ciavam “a ausência de um laço de ligação
libertado, tentou retornar para a Guatema- entre Nottebohm e o Liechtenstein e, por
la. Todavia, o governo guatemalteca, que já outro lado, a existência de uma conexão
havia expropriado os bens de Nottebohm, longa e íntima entre ele e a Guatemala”.
impediu sua entrada. Nottebohm se dirigiu, Faltava, na concepção da Corte, “o requisito
então, para Lichtenstein, onde passou a da genuidade necessária para que um ato
residir. Em dezembro de 1951, o governo de tal importância pudesse ser respeitado
lichtensteinense propôs ação contra a Gua- por um Estado na posição da Guatemala”.
temala em Haia, na qual requereu à Corte Conseqüentemente, a Guatemala não teria
Internacional de Justiça (1955, p. 6) que “qualquer obrigação de reconhecer uma
declarasse que: “O governo da Guatemala, nacionalidade que foi conferida nestas
ao prender, deter, expulsar e recusar-se a circunstâncias” e, conseqüentemente, Lie-
readmitir a entrada do Sr. Nottebohm, bem chtenstein não teria o direito de proteger
como ao apreender e reter os bens deste, Nottebohm.
sem ressarci-lo, violou suas obrigações sob
o Direito Internacional e, conseqüentemen-
2. Nacionalidade no Brasil
te, deve pagar indenização”7.
No caso Nottebohm, a nacionalidade No Brasil, os princípios normatizadores
foi conceituada como “um laço jurídico da concessão de nacionalidade, desde a
que tem como fundamento um fato social época do império, estão estabelecidos no
de ligação, uma solidariedade efetiva de texto constitucional (POSENATO, 2002, p.
existência, interesses e sentimentos, junta- 211-245; BERNARDES, 1996). A aquisição
mente com direitos e deveres recíprocos” pelo nascimento em solo brasileiro sempre
(CORTE..., 1955, p. 23). foi a regra, enquanto o jus sanguinis era a
Na visão da Corte, para ser aceita por exceção.
outros Estados, a nacionalidade deve ser Num histórico sem grandes sobressal-
efetiva e real, o que se verifica a partir de tos, uma das precípuas inovações foi o arti-
fatores distintos, cuja importância pode go 140 da Constituição de 1967, que vigorou
variar em cada caso: “residência habitual por apenas dois anos e foi então modificado
do indivíduo, seu centro de interesses, seus pela emenda constitucional 1/69, e que
laços familiares, sua participação na vida permitia que o filho de brasileiro nascido
pública, afeição demonstrada pelo indiví- no exterior fosse considerado nacional pelo
duo a um Estado e inculcada aos seus filhos, mero registro em consulado brasileiro.
etc.” (CORTE..., 1955, p. 22). Assim, a CIJ Essa possibilidade também foi contem-
formulou a seguinte indagação: “À época plada na primeira redação do artigo 12, I,
da sua naturalização, estava Nottebohm “c” da CF/88, que dispunha serem brasi-
mais intimamente ligado pela sua história, leiros natos “os nascidos no estrangeiro, de
estabelecimento, interesses, atividades, la- pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que
ços familiares e intenções quanto ao futuro sejam registrados em repartição brasileira
próximo, a Liechtenstein do que a qualquer competente, ou venham a residir na Repú-
outro Estado?”. blica Federativa do Brasil antes da maiori-
dade e, alcançada esta, optem em qualquer
7
O texto original é: “The government of Guate- tempo pela nacionalidade brasileira”.
mala in arresting, detaining, expelling, and refusing to A aceitação do registro no exterior como
re-admit Mr. Nottebohm and in seizing his property
without compensation acted in breach of their obliga-
suficiente para obtenção de nacionalidade
tions under international law and consequently in a foi objeto de crítica de doutrinadores de
manner requiring the payment of reparation”. escol, como Barroso (1987, p. 47), que pon-

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 79


derou: “Com efeito, parece insustentável O problema da apatrídia foi, dessa forma,
que uma providência tão anódina como postergado para 2012, quando se tornariam
um registro burocrático pudesse projetar- maiores esses filhos de brasileiros nascidos
se tão agudamente na esfera jurídica de após a mudança do artigo 12, I, “c”.
um indivíduo a ponto de vinculá-lo a um Antes, porém, um pequeno mas vi-
Estado diverso daquele de seu nascimento. goroso grupo de pressão se mobilizou
Relembre-se que o critério adotado no Bra- e conseguiu fazer com que o Congresso
sil é o do ius solis que, só em via de exceção, modificasse novamente o texto constitu-
é atenuado pelo ius sanguinis”. cional. Essa alteração – consubstanciada
Também a incongruidade de critérios na emenda constitucional no 54 – combi-
era repudiada pela doutrina. Nesse sentido, nou o que havia de mais favorável nos
indagava Dolinger (2000, p. 47): “Por que textos anteriores. Além de novamente se
[...] o registro realizado no exterior é sufi- permitir a concessão de nacionalidade por
ciente para caracterizar o status de brasileiro meio do registro em “repartição brasileira
nato, enquanto a residência no país, acres- competente”, manteve-se a possibilidade
cida de registro, não é suficiente e pede a de outorga de nacionalidade “a qualquer
opção pela nacionalidade brasileira?”. tempo”, sem a exigência que constou da
De fato, havia certa disparidade nas primeira redação de “residência no Brasil
exigências contidas na mesma alínea antes da maioridade”.
constitucional. Na primeira hipótese, para Pode parecer contraditória a exigência
que adquirisse a nacionalidade, bastava o de que a opção seja feita depois da maiori-
registro em “repartição brasileira compe- dade com a expressão “a qualquer tempo”.
tente”; no segundo caso, seria necessário Trata-se, na verdade, de incorporação à
que o indivíduo viesse residir, fizesse um norma de posicionamento que já estava
“registro provisório” e se submetesse a consolidado na jurisprudência do Supremo
um procedimento judicial perante a justiça Tribunal Federal (STF): a aquisição de na-
federal (BRASIL, 1988, Art. 109, X). cionalidade é uma decisão personalíssima,
Em revisão constitucional efetuada em que não poderia dar-se por meio da assis-
1994, o legislador constituinte suprimiu a tência ou da representação, mas apenas
possibilidade de aquisição da nacionalida- depois de alcançada a maioridade.9
de brasileira pelo simples registro perante Tal exigência leva a uma indagação:
autoridade diplomática ou consular (BRA- não é uma incoerência que se possa fazer o
SIL, 1994)8. Para cerca de 200 mil filhos de registro de um menor e assim atribuir-lhe
brasileiros que nasceram em países cujo a nacionalidade brasileira, mas que não se
único critério para atribuição originária de possa fazer a opção, por meio de assistência
nacionalidade é o jus sanguinis (GALVÃO, ou representação, perante juiz federal, para
2007, p. C1), como é o caso da Suíça ou do se obter o mesmo resultado?
Japão, isso significaria a apatrídia.
Isso só não ocorreu porque o Executivo
9
Nesse sentido, ver, por exemplo, Supremo Tribu-
nal Federal. Recurso extraordinário no 418.096-1/RS,
e, posteriormente, o Judiciário, considera- no qual se afirma: “A opção pode ser feita a qualquer
ram que tais indivíduos seriam brasileiros tempo, desde que venha o filho de pai brasileiro ou de
até a maioridade; a partir de então, sua con- mãe brasileira, nascido no estrangeiro, a residir no Bra-
sil. Essa opção somente pode ser manifestada depois de
dição de brasileiro nato ficaria suspensa, até alcançada a maioridade. É que a opção, por decorrer da
que se fizesse a opção (JOBIM, 1994, p. 36). vontade, tem caráter personalíssimo. Exige-se, então,
que o optante tenha capacidade plena para manifes-
8
Obviamente, nos termos do art. 12, I, “b”, da tar a sua vontade, capacidade que se adquire com a
CF/88, tal exigência não se aplicava e nem se aplica aos maioridade” (SUPREMO..., 2007). Ver ainda Recurso
filhos de brasileiros que estejam no exterior a serviço extraordinário no 415.957/RS (2005). Essas decisões
da República Federativa do Brasil. estão disponíveis em: <http://www.stf.org.br>.

80 Revista de Informação Legislativa


A Emenda Constitucional no 54 não adoção do critério de jus sanguinis (e ape-
repetiu, simplesmente, o problema que se nas dele), para aquisição de nacionalidade,
observou na primeira redação da CF/88, de perfeitamente compatível com o Direito
dar ao registro no exterior um valor maior Internacional (BROWNLIE, 1963, p. 302-
do que ao mesmo ato no Brasil; agravou- 303). A adoção de jus solis em países que,
lhe, ao adicionar mais uma imposição. na atualidade, não o fazem perpassaria por
O último ponto que analisaremos é a uma (improvável) superação de tradições,
adequação do critério de atribuição de nacionalismo e até xenofobia.
nacionalidade aos filhos de brasileiros pelo Nesse contexto, a solução adotada pelo
simples registro em repartição consular. Se- legislador brasileiro é a que melhor garanti-
ria tal solução a mais apropriada ou a mais rá o “direito à nacionalidade” estabelecido
conveniente? Estaríamos, aqui também, nos no artigo 1510 da Declaração Universal de
distanciando do princípio da efetividade? Direitos Humanos, para considerável nú-
Iniciaremos a resposta pela segunda mero de filhos de emigrantes brasileiros.
indagação, com a descrição de uma situação
hipotética: João, filho de brasileiros, nascido 3. Considerações finais
na Suíça, onde foi registrado em repartição
consular, casa-se com Maria, que se encon- Em suma, a Emenda Constitucional no
tra em idêntica situação. João e Maria nunca 54 trouxe um ponto positivo e outro nega-
vieram ao Brasil; não falam português; tivo. Esperamos que uma quarta redação
vivem e trabalham na Suíça. Parafraseando do artigo 12 da CF/88 extirpe a exigência
a Corte no caso Nottebohm, poderíamos de opção, tornando o registro no Brasil tão
perguntar: estaria João (ou Maria) mais valioso quanto o registro, no exterior, em
intimamente ligado, pela sua história, es- “repartição brasileira competente”.
tabelecimento, interesses, atividades, laços
familiares e intenções quanto ao futuro
próximo, ao Brasil do que a qualquer outro Referências
Estado? Deve-se considerar ainda que, se
Maria e João continuarem a residir na Suíça BARROSO, Luis Roberto. Duas questões controverti-
e ali tiverem filhos, eles terão também de das sobre o direito brasileiro da nacionalidade. In: DO-
LINGER, Jacob (Org.). A nova constituição e o direito
obter a nacionalidade brasileira, para não internacional. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1987.
serem apátridas. Estarão os filhos de João e
Maria, em princípio, mais ligados ao Brasil BERNARDES, Wilba Lúcia Maia. A nacionalidade.
Belo Horizonte: Del Rey, 1996.
do que a qualquer outro Estado?
A resposta negativa implica o reco- BRASIL. Constituição (1988). Constituição da Repú-
blica Federativa do Brasil de 1988. Art. 109, X. Brasília:
nhecimento de que a saída adotada pelo
Senado, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.
legislador brasileiro preconizou o forma- gov.br/ccivil_03/ Constituicao/Constitui%C3%A7ao.
lismo em detrimento da efetividade. Uma htm>. Acesso em: 18 mar. 2008.
solução que privilegiasse a efetividade não
______. Constituição (1988). Emenda Constitucional
dependeria do Brasil, mas sim de alterações no 3, de 7 de junho de 1994. Altera a alínea “c” do
legislativas em alguns poucos Estados que inciso I, a alínea “b” do inciso II, o § 1o e o inciso II
adotam apenas jus sanguinis, de forma que do § 4o do art. 12 da Constituição Federal. Brasília,
se contemplasse, ainda que apenas em 1994. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/ Constituicao/Emendas/ECR/ecr3.htm>.
caráter excepcional, a aquisição de nacio-
Acesso em: 16 mar. 2008.
nalidade através do jus solis.
O problema é que o que seria a solução 10
Dispõe o artigo 15(1) da Declaração Universal
mais lógica e coerente não é factível. A dos Direitos Humanos (Resolução no 217 da AGONU):
doutrina jusinternacionalista considera a “Toda pessoa tem direito a uma nacionalidade”.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 81


______. Constituição (1988). Emenda Constitucional OPPENHEIM, Lassa. International law: a treatise.
no 54, de 20 de setembro de 2007. Dá nova redação à (Peace, v. I). Londres: Longmans, Green and Co,
alínea c do inciso I do art. 12 da Constituição Federal 1905.
e acrescenta art. 95 ao Ato das Disposições Constitu-
POSENATO, Naiara. A evolução histórico-constitucio-
cionais Transitórias, assegurando o registro nos consu-
nal da nacionalidade no Brasil. In: DAL RI JÚNIOR,
lados de brasileiros nascidos no estrangeiro. Brasília,
Arno; OLIVEIRA, Odete Maria de (Org.). Cidadania
2007. Disponível em: <http://www.planalto.gov. br/
e nacionalidade: efeitos e perspectivas nacionais,
ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc54.htm>.
regionais, globais. Ijuí: Unijuí, 2002.
Acesso em: 16 mar. 2008.
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______. Recurso extraordinário no 418.096-1/RS. Bra-
______. Nottebohm case: (second phase). Haia: I.C.J. sília, 2007. Disponível em: <http://www.stf.org.br>.
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JOBIM, Nelson. Relatoria da revisão constitucional.
Brasília: Senado Federal, 1994. t. 1.

82 Revista de Informação Legislativa


Filiação jurídica, biológica e socioafetiva

Dilvanir José da Costa

Sumário
1. O Supremo Tribunal Federal. 2. Os tri-
bunais estaduais. 3. O Superior Tribunal de
Justiça na primeira década de sua existência.
4. Evolução do STJ e suas influências. 5. O
respeito ao direito adquirido e ao ato jurídico
perfeito. 6. A nova era da socioafetividade: A)
Introdução; B) Doutrina; C) Jurisprudência:
I – Tribunais estaduais; II – Consagração pelo
STJ. 7. Conclusões: A) Filiação jurídica e filiação
biológica; B) Filiação socioafetiva.

1. O Supremo Tribunal Federal


Na época que precedeu à criação do
Superior Tribunal de Justiça, o Supremo
Tribunal Federal, no exercício da competên-
cia para julgamento de matéria infraconsti-
tucional, proferiu reiteradas decisões reco-
nhecendo a decadência do direito exclusivo
do marido de contestar a paternidade do
filho de sua mulher. Reconheceu o caráter
exclusivo do marido e a decadência desse
direito em curtíssimo prazo, nos termos dos
artigos 344 e 178, §§ 3o e 4o, do Código Civil
de 1916. Tudo em homenagem ao instituto
do casamento civil e em defesa da honra da
mulher casada, que não poderia sofrer tal
constrangimento senão por iniciativa do
próprio marido. A única abertura admitida
pela Suprema Corte à tese da decadência foi
a ocorrência de separação de fato do casal,
Dilvanir José da Costa é Professor e doutor durante o tempo em que tornasse notória
em Direito Civil (UFMG). a impossibilidade de o filho ser do marido.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 83


O STF consagrou, pois, a prevalência da típica do pai que se insurge contra a
filiação jurídica, legítima ou presumida, na paternidade que lhe é atribuída. A
esteira do Código Civil referido. ação foi proposta em agosto de 1973,
Eis alguns exemplares desses julgados, enquanto a filha cuja paternidade
nas décadas de 1950 a 1980: é contestada nasceu em 1946. Caso
“Deixa de ser investigável pelo filho típico de decadência, que tem por
a paternidade ainda em frente ao DL fim limitar no tempo o exercício de
4.737, conforme decidiu este Tribunal um direito, diante de um interesse
em vários arestos. A presunção pater superior. Não conheço do recurso.”
est cessa se o marido lograr êxito na (RE 88.370-3, 2 a T., unânime, em
negatória de paternidade, nos ter- 23.04.79. RT 527/244).
mos dos artigos 344, 345 e 178, §§ 3o “O Sr. Min. Moreira Alves: Pelo Códi-
e 4o, do CCB. O artigo 1o da Lei 883 go Civil, nem o pai, se deixar escoar o
não revogou o Código e não podia prazo de decadência, poderá contes-
contrariar a sistemática consagrada, tar a paternidade. O STF tem admiti-
dadas as concepções em torno do do tal tese, quando fica demonstrado
conceito legal de família. A presunção que houve separação absoluta de
é homenagem constitucional à consti- fato durante todo o período que vai
tuição do casamento (Josserand)” (RE da concepção ao nascimento.” (RE
36.814, de 8.05.55, 1a Turma). 80.805-PR, RTJ 78/534).
“Muitas vezes sentenciou o STF “O STF tem admitido a investigação,
que continua em vigor o artigo 344 quando o pai presumido, embora sem
do Código Civil (só o marido pode propor a ação específica, repudia a
contestar a legitimidade do filho de paternidade por forma inequívoca;
sua mulher)” (Repert. Jurispr. CC, e, ainda, quando a concepção teve
Max Limonad, 2a Turma, 27.06.58, lugar durante a efetiva separação do
art. 344). casal.” (RE 80.751-RJ, 1a T. 2.12.75,
“O artigo 6o da Lei 883 dispôs: ‘Esta RTJ 80/565).
lei não altera os Caps. II, III e IV do “A jurisprudência se consolidou neste
Livro I, parte especial, do CC (337 a STF, no sentido de que, em casos ex-
367), salvo o art. 358’. Logo, não al- cepcionais, é de admitir investigação
terou o artigo 344. Jamais se pensou de paternidade de filho de concubina
em tamanho abalo à instituição da que, conquanto casada, estava sepa-
família e que a honra das mulheres rada de fato do marido havia muitos
casadas ficasse exposta ao aventurei- anos.” (RE 46.135, 51.269, 55.696, Agr.
rismo e ganância dos inescrupulosos, 29.411, AR 608).
empenhados em arrebanhar uma
herança polpuda. A família legítima
2. Os tribunais estaduais
é o centro ético da sociedade (Caio
Mário, com remissão à doutrina de No mesmo período e até posteriormente,
grandes civilistas). A tese da impres- os tribunais estaduais decidiram conforme
critibilidade da ação de contestação os ditames do STF, resguardando os interes-
de paternidade vigorou no tempo ses superiores do casamento civil, da família
de Lafayete, porque não tínhamos legítima e da mulher casada. Preservaram o
lei a respeito; não após o CC (art. 178, que consideraram os fundamentos éticos do
§ 3o). Não se confunde a ação de in- artigo 344 do Código Civil até mesmo contra
vestigação de paternidade, realmente a verdade biológica, nos primeiros tempos
imprescritível, com a ação negatória, desta. Vejamos essa jurisprudência:

84 Revista de Informação Legislativa


TJSP: maioridade ou emancipação. Art. 348
“Na espécie, a lei ordinária está em do CC c/c o art. 362 do mesmo diplo-
inteira consonância com a regra ma. Prescrição ocorrente. Carência da
constitucional, que coloca a família ação investigatória. Processo extinto.
constituída pelo casamento sob a Recurso provido para esse fim.” (AI
proteção dos Poderes Públicos (art. 90.051-1, 3a C., rel. des. Toledo César,
167, CF). Como observa Clóvis, RJ 141/180).
contestar a legitimidade do filho TJMG:
envolve a acusação de adultério por “Sendo induvidosa a separação de
parte da mulher, e não permite a ética fato dos cônjuges à época da con-
jurídica que alguém atire essa nódoa cepção, viável a ação investigatória
à honra da mulher casada, senão o de paternidade a matre.” (1a CC, Ap.
seu próprio consorte.” (CCRR., Rec. 42.735, 16.02.76, RF 258/275)
Revista 143.816, RJCC, Max Limonad, “Investigação de paternidade – Filia-
n. 1583). ção adulterina a matre – Precedentes
“Mulher separada do marido por jurisprudenciais – Hermenêutica –
muitos anos. Filhos havidos em Deve-se admitir a investigação da
concubinato com outro homem. Si- paternidade mesmo em se tratando
tuações que conduzem à convicção de mulher casada, com dispensa de
de que os filhos nascidos da mulher prévia ação negatória de paternidade,
separada não são evidentemente do desde que o pai presumido tenha
marido.” (4 a CC, Ap. 197.795, RT repudiado de forma inequívoca a
436/87). paternidade, ou quando o esteja
“Negatória de paternidade. Ilegiti- efetivamente separado. Ao julga-
midade ad causam. Ação privativa dor incumbe dar à lei interpretação
do marido. Hipótese em que este valorativa e construtiva, ajustada à
não contestou a legitimidade do filho multifária realidade da vida.” (Ap.
em vida. Carência decretada. É ato 68.829, rel. des. Sálvio Figueiredo,
privativo do marido a contestação RJM 31/87).
da legitimidade do filho em vida. “Negatória de paternidade. Coabi-
Aplicação do art. 344 e inteligência tação do casal à época da concepção.
do art. 348 do CC. É ato privativo do Presunção da paternidade do marido.
marido a contestação da legitimidade Adultério da mulher. Não elisão. O
dos filhos havidos por sua mulher.” adultério da mulher não elide a pre-
(4a C., Ap. 101.166-1, 25.08.88, RT sunção da paternidade se, à época
637/63). da concepção do filho, o casal vivia
“Ilegitimidade de parte. Investigação sob o mesmo teto.” (Ap. 37.703-6, 3a
de paternidade. Contestação de filia- CC, rel. des. Lúcio Urbano, 30.03.95,
ção legítima por quem não é marido. JM 134/153).
Inadmissibilidade. Aplicação do art. “Paternidade – Desconstituição de re-
344 do CC.” (5a C., Ap. 177.512-1, gistro civil. Impossibilidade jurídica
22.10.92, RTJESP 140/66). do pedido. A legitimidade do filho
“Ação de investigação de paternidade havido na constância do casamento
– Filho legítimo de outro casal. Reco- torna-se incontestável, ainda que não
nhecimento de outra filiação paterna, o seja na realidade, se à época do casa-
baseada em nulidade de registro civil. mento o marido tinha conhecimento
Necessidade de prévia impugnação do estado de gravidez da mulher e
desse registro até quatro anos após a se, pessoalmente, assistiu à lavratura

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 85


do termo de nascimento da criança, O Superior Tribunal de Justiça já em
pois o contrário significaria revogar três oportunidades manifestou-se,
a declaração de paternidade efetuada através das duas Turmas da egrégia
quando do nascimento e lavratura do Segunda Seção, a respeito da prescri-
respectivo termo. A paternidade ju- tibilidade da ação de impugnação de
rídica é imposta independentemente reconhecimento de filho menor, sem-
da biológica, não importando, para o pre exigindo a propositura da ação
direito, se o marido é o responsável no prazo de quatro anos, a contar da
pela geração do filho, desprezando- maioridade do perfilhado:
se a verdade real para que se atenda “A ação para impugnar o reconheci-
à necessidade de estabilização da mento filial é prescritível, ex vi do dis-
sociedade e à segurança das relações posto nos artigos 178, § 9o, inciso IV,
jurídicas.” (AI 22.172-1, rel. des. Bady e 362 do Código Civil, exceção legal
Curi, 13.08.91, JM 115/119). ao princípio da imprescritibilidade
TJRJ: das ações pertinentes ao estado das
“A verdade legal, informada por pessoas” (REsp no 1.380/RJ, 3a T., Rel.
superiores propósitos de proteção à Min. Gueiros Leite, j. em 6.03.90).
família, sobrepõe-se à verdade real. O “A norma do artigo 178, § 9o, VI, do
fundamento ético do art. 344 do CC.” Código Civil implicou exceção ao
(1o Gr. CC, Embargos Infrings, na Ap. princípio da imprescritibilidade das
1.658, RT 509/239). ações relativas ao estado das pesso-
as.” (REsp n. 19.244/PR, 4a T., Rel.
3. O Superior Tribunal de Justiça na Min. Athos Carneiro, j. em 3.03.93).
“O reconhecimento voluntário da
primeira década de sua existência
paternidade, realizado quando ainda
Sobreveio o Superior Tribunal de Justi- menor o perfilhado, somente pode
ça, com a competência soberana infracons- ser por este impugnado dentro de
titucional, como Tribunal da Federação. quatro anos que se seguirem à sua
Para comemorar sua primeira década de maioridade ou emancipação. Mesmo
existência (1989/1999), essa Corte Superior a impugnação fundada na inveraci-
publicou uma seleção de julgados sob o dade da declaração do perfilhante
título “10 anos a serviço da Justiça”, v. IV, (falso ideológico) se sujeita ao referi-
Jurisprudência, com referência a quatro do prazo decadencial, cujo transcurso
decisões sobre filiação e investigação de in albis – sem manifestação de insur-
paternidade. No acórdão publicado nessa gência de qualquer espécie – conduz
seleção, às fls. 234/244 do v. IV, no REsp à inviabilidade de desconstituição
83.685/MG, constam as seguintes partes do ato de reconhecimento, tornando
que mais interessam ao tema em debate: definitiva a relação de parentesco
“Ementa: No regime anterior à Cons- entre reconhecente e reconhecido. A
tituição de 1988 e à Lei no 8.069/90, o investigatória de paternidade, em tais
filho que não impugnasse, no prazo circunstâncias, proposta quando já
de quatro anos, o reconhecimento da expirado o quadriênio legal, é de ser
paternidade – legitimado que fora havida por inadmissível, cumprindo
quando do casamento de sua mãe ao juiz declarar o autor carecedor da
– não poderia promover ação de in- ação por impossibilidade jurídica do
vestigação de paternidade contra ou- pedido.” (REsp n. 38.856/RS, 4a T.,
trem. Precedentes do STJ. Voto: o Sr. Rel. Min. Sálvio de Figueiredo, j. em
Min. Ruy Rosado de Aguiar (Relator): 21.06.94).

86 Revista de Informação Legislativa


A ementa do acórdão supra fala em tendo em vista o contexto legal em
regime anterior à Constituição de 1988 e à que inseridas e considerando os valo-
Lei 8.069/90 (ECA). Quid juris, se se consi- res tidos como válidos em determina-
dera que o art. 362 do Código de 1916 veio do momento histórico. Não há como
a ser repetido, literalmente, pelo art. 1614 interpretar uma disposição, ignoran-
do Código de 2002? do as profundas modificações por
No mesmo ano de 1997, o STJ reconhe- que passou a sociedade, desprezando
ceu outro tipo de decadência do direito de os avanços da ciência e deixando de
contestar a paternidade, nestes termos: ter em conta as alterações de outras
“Ementa: Ação negatória de paterni- normas, pertinentes aos mesmos ins-
dade cumulada com cancelamento de titutos jurídicos. Nos tempos atuais,
registro civil – prazo de decadência. não se justifica que a contestação da
I – Prescreve em dois meses, contados paternidade, pelo marido, dos filhos
do nascimento, se era presente o ma- nascidos de sua mulher, restrinja-se
rido, a ação para este contestar a legi- às hipóteses do artigo 340 do Código
timidade do filho de sua mulher (art. Civil, quando a ciência fornece méto-
178, § 3o, do Código Civil). Consoante dos notavelmente seguros para verifi-
a melhor doutrina, se o marido, antes car a existência do vínculo de filiação.
de se casar, tinha ciência da gravidez Decadência. Código Civil, artigo 178,
da mulher e, apesar disso, contraiu § 3o. Admitindo-se a contestação da
casamento, o seu ato deve ser inter- paternidade, ainda quando o marido
pretado como uma tácita confissão de coabite com a mulher, o prazo de de-
que o filho é seu e, portanto, legítimo cadência haverá de ter, como termo
para todos os efeitos. II – Recurso inicial, a data em que disponha ele de
não conhecido. Acórdão: Por una- elementos seguros para supor não ser
nimidade, não conhecer do Recurso o pai de filho de sua esposa.”
Especial.” (REsp 89606/SP, 3a T., Rel. Em 2002, no REsp 139.590, a mesma
Min. Waldemar Zveiter, j. 14.04.97 e Corte Superior decidiu que o marido pode
publ. DJ 09.06.97 p. 25534). propor a ação negatória de paternidade
A ação referida só veio a ser considerada ainda que ultrapassado o prazo do art. 178,
imprescritível pelo artigo 1601 do novo Có- § 3o, do CC se, realizado o exame de DNA,
digo Civil, em 2002, com críticas gerais. a inexistência do vínculo genético restou
comprovada.
Ainda em 2002, no REsp 435.868, sendo
4. Evolução do STJ e suas influências
relatora a Min. Nancy Andrighi, a mesma
Em 1998, no REsp 140579, o STJ evoluiu Corte proclamou, com suporte em pre-
para admitir a ação declaratória de ine- cedentes, ser “imprescritível o direito ao
xistência de filiação legítima (subterfúgio reconhecimento do estado filial exercido
encontrado para acolher a negatória de pa- com fundamento em falsidade do registro”.
ternidade por via inversa), por comprovada Acrescentou, em seu voto, que: “antes da
falsidade ideológica, por meio do DNA. A promulgação do Estatuto da Criança e do
presunção de filiação legítima seria relativa. Adolescente, entretanto, vigorava em nosso
Em 1999, no REsp 194.866/RS, a egrégia ordenamento jurídico exceção à regra da
3a Turma, sob o relatório e voto condutor imprescritibilidade desse direito, positivada
do Min. Eduardo Ribeiro, proferiu decisão nos arts. 178, § 9o, VI, e 362 do CC”. Res-
unânime com a seguinte ementa: salva, porém, com suporte em precedentes,
“Paternidade. Contestação. As nor- que os textos se aplicam tão-somente ao
mas jurídicas hão de ser entendidas filho natural, no exercício de seu direito à

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 87


impugnação por mero ato de vontade. Não 5. O respeito ao direito adquirido
alcança as ações intentadas pelo filho legí- e o ato jurídico perfeito
timo ou natural com fulcro na falsidade do
registro. Não obstante a evolução legal e juris-
No mesmo sentido foi a decisão profe- prudencial ocorridas no âmbito da filiação
rida no REsp 440.119, relator o Min. Castro e seus efeitos, não podem passar desper-
Filho. cebidas as conseqüências do conflito de
Também em 2002, no REsp 440.394, leis no tempo. O efeito imediato das leis
houve decisão afastando a decadência, não se confunde com a retroatividade das
com duas novidades que merecem registro: mesmas. As leis novas não podem regular
a) tratava-se de ação negatória movida o passado. Devem respeitar as situações
pelo companheiro em união estável; b) a jurídicas constituídas e estabilizadas sob
negatória somente foi acolhida diante da o império das leis vigentes ao tempo de
inexistência de pressupostos que justifi- sua constituição, sob pena de ofensa ao
cassem a preservação dos laços afetivos. artigo 5o, inciso XXXVI, da Constituição
Foi a socioafetividade aflorando na juris- federal e ao artigo 6o e parágrafos da LICC.
prudência do STJ, como caráter essencial Os direitos decaídos não podem renascer
da filiação. como cadáveres ressuscitados. A propósito,
As decisões posteriores seguiram a decidiu o TJSP:
mesma trilha: em 2003, no REsp.139.118 e “Direito adquirido, decorrente de ato
no REsp 208.788; em 2005, no REsp 485.511; jurídico praticado sob lei anterior –
em 2006, no REsp 765.479; e em 2007, no Irretroatividade da lei nova. O ato
REsp 878.954 – nos quais se liberou a ne- de registro de nascimento datava de
gatória, a contestatória ou a investigatória 1934, quando a ninguém era lícito
de paternidade por vício do consentimento vindicar estado contrário ao resultan-
ou falsidade ideológica, sob as influências te do registro. E, posteriormente, com
progressivas das separações de fato do ca- a alteração do texto do art. 348 CC,
sal, das comprovações pelo exame de DNA, não se reabria o ensejo de fazê-lo aos
dos princípios da dignidade e da igualdade já registrados, que gozavam, nesse
consagrados pela Constituição cidadã de tempo, da posse de estado de filho,
1988 e do Estatuto da Criança e do Adoles- como observa o Des. Prado Fraga, em
cente (Lei 8.069/90, art. 27), que passou a acórdão do egr. 2o Grupo de Câmaras
considerar o reconhecimento do estado de Civis deste Tribunal (RT 205/146),
filiação direito imprescritível, podendo ser tendo em conta o direito adquirido,
exercitado sem qualquer restrição. Final- resguardado pelo dispositivo ante-
mente, o art. 1.601 do novo Código Civil rior. Não seria admissível alterá-lo
considerou imprescritível a ação do marido por lei subseqüente, “sem que haja
para contestar a paternidade dos filhos retroatividade” (ROUBIER, Les con-
nascidos de sua mulher, de forma ampla flits des lois, v 1o, p. 453)” (Ac. da 3a CC
e sem ressalva, pondo em conflito, tantas TJSP, Ap. 79.058, RT 262/268).
vezes, filhos biológicos e socioafetivos e
gerando debates, até nas novelas, sobre a 6. A nova era da socioafetividade
filiação real, diante das circunstâncias da
A) Introdução
vida familiar. O novo texto fez renascer a
polêmica, na doutrina e na jurisprudência, A filiação passou por três fases ou eta-
sobre o caráter essencial da filiação, que pas: filiação jurídica, legal ou presumida
resulta da convivência e dos laços afetivos do Código Civil de 1916; filiação biológica,
e sentimentais impostergáveis. científica ou instrumental decorrente da

88 Revista de Informação Legislativa


evolução tecnológica; e filiação socioafetiva, conhecimento de sua real história, de
cultural e finalística moderna. Esta última ter acesso à sua verdade biológica que
é que abriga a verdade real ou psico-sócio- lhe foi usurpada, desde o nascimento
afetiva. Filiação sem cultivo, convivência até a idade madura.”
e assistência, sem afeto e amor é como E ainda lançou uma regra de hermenêu-
casamento formal ou registral sem união tica:
estável. A afetividade é tão substancial à “Nas questões em que presente a dis-
filiação que a adoção ou filiação civil tem sociação entre os vínculos familiares
nela seu fundamento, suporte e objetivo. biológico e sócio-afetivo, nas quais
Pode ocorrer, eventualmente, que a seja o Poder Judiciário chamado a
filiação biológica identifique uma criança se posicionar, deve o julgador, ao
arrebatada criminosamente de seus pais, decidir, atentar de forma acurada
inclusive na maternidade, causando-lhes para as peculiaridades do processo,
sofrimento e angústia, como no rumoroso cujos desdobramentos devem pautar
“caso Pedrinho”, em que o próprio filho, já as decisões.”
adolescente, reconheceu o ato insano de sua (REsp 833712/RS, ac. un. da 3 a
mãe registral (condenada pelo seqüestro) T., Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ
e optou pela paternidade biológica, com a 04.06.2007).
cobertura legal. Não menor é o choque e a dor moral
Pode ocorrer, ainda, como na hipótese dos pais e irmãos afetivos que, após longa
julgada pelo STJ em 17.05.2007, no REsp convivência com um “filho e irmão”, este,
833.712/RS, em que “o investigado, de tra- sem ter sido vítima de ato ilícito como o de
dicional família da região, manteve relações Pedrinho, ou de orgulho e usurpação como
sexuais com a investigada, que trabalhava na novela e no precedente supra, arrisque-
para os pais dele, do que resultou a gravi- se na aventura de procurar outro pai fora
dez e o nascimento do investigante. Para do lar, discriminando e repudiando seus
evitar boatos a respeito do ocorrido, foi a pais e irmãos, com desprezo do afeto e da
investigada obrigada a afastar-se da família gratidão e somente por ambição de herança,
do investigado, sendo levada a entregar a desde que já nem careça de alimentos.
criança para o casal que a acolheu e a re-
gistrou como se filha fosse”. E prossegue o B) Doutrina
julgado: “O vínculo sócioafetivo deve advir A filiação socioafetiva ou desbiologi-
de ato voluntário dos pais que registraram zação da paternidade tem por defensores
a criança. Na espécie houve um ‘arranjo’ eminentes juristas e filósofos do direito,
ao ser a investigante enviada aos pais como se pode conferir.
registrais, para que não fosse maculada Rosana Fachin (2002, p. 63), desembar-
a imagem de ‘bom moço’ do investigado, gadora e doutora em Direito de Família no
pertencente a família de relevo na socieda- Paraná, adverte:
de local, tendo sido a mãe acuada e obriga- “A paternidade dos laudos. Inicialmente
da a entregar a filha.” O caso é semelhante ressalto a importância da engenharia
à famosa novela “o direito de nascer”, que genética no auxílio das investigações
emocionou a todos nós e provocou reação de paternidade por meio do exame de
generalizada. E concluiu o colendo STJ: DNA. Sem embargo dessa importan-
“Dessa forma, conquanto tenha a te contribuição, é preciso equilibrar a
investigante sido acolhida em lar verdade sócio-afetiva com a verdade
“adotivo” e usufruído de uma relação de sangue, pois o filho é mais que
socioafetiva, nada lhe retira o direito, um descendente genético, devendo
em havendo sua insurgência ao tomar revelar uma relação construída no

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 89


afeto cotidiano. Em determinados trata capaz de compreender a gama
casos, a verdade biológica deve dar de situações humanas que se vertem
lugar à verdade do coração; na cons- em demandas sobre a paternidade
trução de uma nova família, deve-se e litígios concernentes aos filhos na
procurar equilibrar estas duas ver- separação e no divórcio. O Direito ad-
tentes: a relação biológica e a relação ministra possibilidades num campo
sócio-afetiva.” recheado de complexidade.”
Paulo Luiz Netto Lobo (2002, p. 245-253), E prossegue:
da Universidade de São Paulo, pontifica: “A aplicação do art. 1.604 sofre cor-
“Projetou-se, no campo jurídico-consti- reta adequação jurisprudencial, do
tucional, a afirmação da natureza da família que se toma como exemplo o seguinte
como grupo social fundado essencialmente pronunciamento: ‘Se a autora e seu
nos laços de afetividade (...) A filiação bioló- companheiro resolveram criar a ré
gica era nitidamente recortada entre filhos como filha, desde alguns meses de
legítimos e ilegítimos, a demonstrar que a nascida, e o varão a registrou, depois
origem genética nunca foi, rigorosamente, de 12 anos, atribuindo a paternidade
a essência das relações familiares (...) A a si mesmo e a maternidade à autora,
igualdade entre filhos biológicos e adoti- no tipo de procedimento conhecido
vos implodiu o fundamento da filiação na como adoção à brasileira, não é admis-
origem genética (...) O que há de comum sível que, passados mais de 50 anos,
nessa concepção plural de família e filiação venha a autora propor esta ação de
é a relação entre eles fundada no afeto (...) anulação do ato ao argumento de
O princípio da afetividade especializa, no que não anuiu com o mesmo, tanto
campo das relações familiares, o macro- que o desconhecia. Se a declaração
princípio da dignidade da pessoa humana foi, como se alega, inverídica em
(art. 1o, III, da CF) (...) O princípio jurídico relação ao fato da geração, não o foi
da afetividade faz despontar a igualdade quanto à manifestação da vontade
entre irmãos biológicos e adotivos e o res- de criar com a pessoa registrada
peito a seus direitos fundamentais, além um vínculo de parentesco, que é, no
do forte sentimento de solidariedade recí- caso, o parentesco civil de fato, cuja
proca, que não pode ser perturbada pelo natureza nem mesmo a inobservância
prevalecimento de interesses patrimoniais. dos ritos legais poderia descaracte-
É o salto à frente da pessoa humana nas rizar.’ (TJRJ – 14a C. Cív. – Rel. Des.
relações familiares.” Mauro Fonseca Pinto Nogueira). Eis
Luiz Edson Fachin (2004, p. 74), pro- aí exemplar correto e elogiável dessa
fessor titular de Direito Civil da UFPr, em nova direção”,
seus “Comentários ao novo Código Civil”, comenta o professor, na página 95 de seu
com a autoridade e experiência de civilista, livro citado. E nós acrescentamos que, no
proclama: caso, não houve crime de seqüestro de
“... como bem se reconhece, a paterni- criança, nem “arranjo” para “preservar
dade, mais do que ato de procriação, é a honra” de um filho que engravidou a
fato cultural. A procura pelo vínculo empregada. O registro foi ato voluntário,
biológico é um meio de melhor al- sem prejuízo para qualquer das partes ou
cançar a dignidade humana do filho, de terceiro. Antes beneficiou a todos.
uma vez que não existam vínculos E completa o douto professor Fachin
socioafetivos suficientes para superar (2004, p. 97):
o dado genético em razão do amor. “A paternidade deve, portanto, ser
Não há, a rigor, fórmula geral e abs- vista como algo que é construído,

90 Revista de Informação Legislativa


como a relação que se estabelece por ele por meio do afeto. Em outras
entre dois seres humanos que aos palavras, a filiação não é um dado ou
poucos vão-se conhecendo, criando um determinismo biológico, ainda
liames de identidade, admiração e que seja da natureza do homem o
reconhecimento. É este, pois, o vín- ato de procriar. Em geral, a filiação e
culo que deve ser prestigiado para a paternidade sociais ou afetivas de-
se estabelecer a verdadeira paterni- rivam de uma ligação genética, mas
dade (Juíza da 1a Vara de Família de esta não é suficiente para a formação
Petrópolis)”. e afirmação do vínculo; é preciso
E que reconhecimento é esse, de uma filha muito mais. É necessário construir o
adotada que procura outro pai, depois de elo, cultural e afetivo, de forma per-
conviver com um por meio século! Deve ter manente, convivendo e tornando-se,
sido à procura de herança de pais biológi- cada qual, responsável pelo cultivo
cos, como se fora um prêmio de loteria... dos sentimentos, dia após dia.
Poderíamos prolongar nas citações. Tais reflexões demonstram que se
Mas vamos encerrar com Maria Christina vive hoje, no Direito de Família con-
de Almeida (2002), professora e autora de temporâneo, um momento em que
Direito Civil no Paraná, em duas eloqüentes há duas vozes soando alto: a voz do
passagens de sua publicação: sangue (DNA) e a voz do coração
“A Constituição Federal de 1988 foi, (AFETO). Isto demonstra a existência
efetivamente, um divisor de águas de vários modelos de paternidade,
no que concerne aos valores da fa- não significando, contudo, a admis-
mília contemporânea brasileira. A são de mais de um modelo deste elo
iniciar pelo art. 1o, III, que traduz o a exclusão de que a paternidade não
princípio da dignidade da pessoa seja, antes de tudo, biológica.
humana como fundamento do Estado No entanto, o elo entre pais e filhos é,
Democrático de Direito, somado ao principalmente, socioafetivo, moldado
art. 3o, I, do mesmo diploma legal, pelos laços de amor e solidariedade,
que consagra o princípio da solidarie- cujo significado é muito mais profun-
dade, parte-se rumo ao fenômeno da do do que o elo biológico.
repersonalização das relações entre Disso resulta que, neste terceiro
pais e filhos, deixando para trás o ran- Milênio, quando a família assume
ço da patrimonialização que sempre o perfil de núcleo de afetividade e
os ligou para dar espaço a uma nova realização pessoal de todos os seus
ordem axiológica, a um novo sujeito membros, paralelamente à paternida-
de direito nas relações familiares e, de biológica sem afeto, a posição de
até mesmo, a uma nova face da pa- pai é assumida mesmo na ausência
ternidade: o vínculo socioafetivo que de filhos biológicos.”
une pais e filhos, independentemente A doutrina aponta três requisitos da
de vínculos biológicos.” paternidade socioafetiva: o nome, o trato
E conclui: e a fama. O filho que usa o nome do seu
“É fato que o elo biológico entre pais pai socioafetivo por longo tempo já tem
e filhos não é suficiente para cons- no seu registro a marca da sua identidade
truir uma verdadeira relação afetiva familiar. O tratamento recíproco entre pai
paterno-filial. Basta verificar nas e filho socioafetivos, dando e recebendo
demandas de paternidade que, mui- afeto, assistência, convivência prolongada
tas vezes, o filho conhece seu pai por e exclusiva, com transmissão de valores,
meio do DNA, mas não é reconhecido constitui a exteriorização dessa paterni-

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dade real e efetiva. E a fama consiste na (Apel. 70012504874, 8a CC, rel. Rui
aparência e notoriedade desse estado de Portanova, j. em 20.10.2005).
filiação-paternidade perante os familiares, “Sendo a filiação um estado social,
amigos, vizinhos e a comunidade. comprovado estado de filho afeti-
vo, não se justifica a anulação de
C) Jurisprudência registro de nascimento por nele não
I – Tribunais estaduais constar o nome do pai biológico.
TJRS Reconhecimento da paternidade
“A verdade biológica não se sobrepõe que se deu de forma regular, livre e
à relação paterno-filial havida por consciente, mostrando-se a revogação
28 anos, entre o investigante e seu juridicamente impossível.” (Apel.
pai registral. A paternidade deve ser 70012613139, 7a CC, rel. Maria Bere-
vista como um ato de amor e desa- nice Dias, j. em 16.11.2005).
pego material, e não simplesmente “EMENTA: NEGATÓRIA DE PA-
como um fato biológico. Reconhe- TERNIDADE. ANULAÇÃO DE RE-
cimento da filiação socioafetiva.” GISTRO. CARACTERIZAÇÃO DA
(Apel. 70008792087, 8a CC, rel. Ca- FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA. PEDI-
tarina Rita Kriegear Martins, j. em DO JURIDICAMENTE IMPOSSÍVEL.
23/09/2004). Entre a data do nascimento da criança
“Se a parte já contava mais de trinta e o ajuizamento da ação, transcorre-
anos de idade ao ajuizar a ação e ram mais de onze anos. Narrativa da
sempre soube da inexistência do lia- petição inicial demonstra a existência
me biológico com os pais registrais, de relação parental. Sendo a filiação
mas manteve com eles e com o irmão um estado social, comprovada a pos-
proveniente dessa relação estreito se do estado de filho, não se justifica
liame social e afetivo, descabe buscar a anulação de registro de nascimen-
a desconstituição do vínculo, tendo to. Reconhecimento da paternidade
ocorrido de forma indelével a deca- que se deu de forma regular, livre e
dência do seu direito. Inteligência consciente, mostrando-se a revogação
do art. 362 do Código Civil de 1916.” juridicamente impossível.” (Apel.
(Apel. 70011110327, 7a CC, rel. Sérgio 70012665444, 7a CC, rel. Maria Bere-
Fernando de Vasconcelos Chaves, j. nice Dias, j. em 14/12/2005).
em 04.05.2005). “EMENTA. AGRAVO DE INS-
“Caso em que, ao registrarem a inves- TRUMENTO. AÇÃO DE INVESTI-
tigante, os pais registrais fizeram uma GAÇÃO DE PATERNIDADE. PAI
‘adoção à brasileira’. Ao depois, os REGISTRAL. PRELIMINAR DE
pais registrais foram os pais socioafe- EXTINÇÃO DO PROCESSO ACO-
tivos da investigante. Verdade socio- LHIDA. HIPÓTESE DE DECADÊN-
afetiva que prevalece sobre a verdade CIA. É de ser acolhida a preliminar
genética.” (Apel. 70010973402, 8a CC, de extinção do processo em face da
rel. Rui Portanova, j. em 04.08.2005). decadência. Decaiu o requerente do
“Não restou demonstrada a ale- direito que possuía de impugnar
gação de erro substancial no mo- a paternidade registral e ver reco-
mento em que a paternidade foi nhecida a paternidade biológica em
registrada. Ademais, com o tempo, 28.03.1988, quatro anos após atingir a
restou configurada a paternidade maioridade. Assim, o ajuizamento da
socioafetiva, que prevalece mesmo ação vinte anos depois de decorrido
na ausência de vínculo biológico.” o prazo legal previsto para impugnar

92 Revista de Informação Legislativa


a paternidade registral não pode ser ao pai biológico, que, mesmo ciente
admitido.” (Agravo de Instrumento do vínculo genético, já manifestou
70015624828, 7a CC, rel. Ricardo Rau- que não a quer como filha, tampou-
pp Ruschel, j. em 06/09/2006). co desejando assumir as obrigações
“EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. IN- inerentes à paternidade.” (Apel.
VESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. 70016894719, 7a CC, rel. Luiz Felipe
PAI REGISTRAL QUE É MARIDO Brasil Santos, j. em 29/11/2006).
DA MÃE. PRESUNÇÃO DE PATER- “EMENTA. PEDIDOS DE DES-
NIDADE. Cuida-se de parentalidade CONSTITUIÇÃO DA RELAÇÃO DE
ficta, estabelecida a partir da presun- FILIAÇÃO CUMULATIVAMENTE
ção de paternidade do marido da mãe COM INVESTIGAÇÃO DE PA-
(pater is est), hipótese prevista no art. TERNIDADE. OPOSIÇÃO DO PAI
1.597 do CCB. 2. Não há falar em erro REGISTRAL. VÍNCULO SOCIOA-
como vício de consentimento se a re- FETIVO. 1. Cabe apenas ao marido o
lação de parentesco se forja por força direito de contestar a paternidade dos
de imperativo legal e ao longo de 25 filhos nascidos de sua mulher. Inteli-
anos houve a convivência da autora gência do art. 1601 do CCB. 2. O filho
com o pai registral, encontrando-se o maior pode impugnar o reconheci-
marido e mulher ainda casados. No mento da sua filiação apenas dentro
caso concreto, coincidem a filiação de quatro anos que se seguirem à
noticiada no registro civil e aquela maioridade civil, sendo totalmente
que se firmou na posse do estado de descabida a ação se proposta quando
filho.” o filho já contava 38 anos, é casado e
(Apel. 70015797301, 7a CC, rel. Luiz Fe- inclusive já possui filho. Art. 1.614,
lipe Brasil Santos, j. em 13.09.2006). CCB. 3. A anulação do registro, para
“EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. IN- ser admitida, deve ser sobejamente
VESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE demonstrada como decorrente de
CUMULADA COM ANULAÇÃO vício do ato jurídico, ou seja, coação,
DE REGISTRO. PREPONDERÂN- erro, dolo, simulação ou fraude, o
CIA DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA que não se verifica quando se trata
ESTABELECIDA ENTRE A MENOR de uma declaração de paternidade
E O PAI REGISTRAL. 1. A moderna feita pelo marido da mãe em relação
noção de família, fundada no afeto, a filho que foi concebido e nasceu na
não admite a preponderância ab- constância do casamento. 4. Mesmo
soluta da verdade biológica sobre que esteja ausente o liame biológico,
a situação socioafetiva consolidada pelo fato de a mãe do autor ter sido
entre a investigante e o pai registral, infiel ao pai registral, induzindo-o
o único que ela conhece e que muito a a erro, descabe desconstituir a rela-
ama, que tem a sua guarda e é respon- ção jurídica de paternidade quando
sável exclusivo por todos os cuidados resta incontroversa a existência da
dispensados à menina desde os oito filiação socioafetiva e o pai registral
meses de vida. 2. Não há nenhuma (e socioafetivo) não concorda com
vantagem em alterar o registro civil a desconstituição do registro civil.”
da menor para desconstituir a filiação (Apel. 70018883215, 7a CC, rel. Sérgio
socioafetiva, tirando dela um pai que, Fernando de Vasconcelos Chaves, j.
mesmo sabendo não possuir vínculo em 27/06/2007).
biológico, segue lhe amando, cui- “EMENTA: INVESTIGAÇÃO DE
dando e protegendo, para atribuí-la PATERNIDADE. DESCABIMENTO.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 93


FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA CON- vantagem econômica, resultante da
SOLIDADA. 1. Embora a lei aponte herança. Para a autora, parece claro
o prazo decadencial no quadriênio, que, se o seu pai biológico de nada
existe maciça orientação jurispruden- valeu enquanto vivo, talvez lhe sirva
cial afastando tal limitação temporal, depois de morto, nem que, para isso,
motivo pelo qual, tendo sido enfren- precise desconsiderar a figura daque-
tado o mérito, cabia a extinção do le que foi sempre o seu verdadeiro
processo com julgamento do mérito, pai, que lhe deu o amparo material e
superando-se a prefacial. 2. Mostra-se moral, bem como o suporte afetivo ao
flagrantemente descabida a investigação longo de mais de cinqüenta anos... Se,
de paternidade com o propósito manifesto enfim, são esses os valores cultuados
de obter herança do pai biológico, quan- pela autora, não podem ser os valores
do resta consolidada a relação jurídica que a sociedade e o Estado devem
de paternidade socioafetiva com o pai tutelar.” (Apel. 70018890285, 7a CC,
registral há mais de 50 anos e que ainda rel. Sérgio Fernando de Vasconcellos
persiste.”(destaque nosso). Chaves, j. em 07/11/2007).
“VOTOS: DES. SÉRGIO FERNAN- TJMG
DO DE VASCONCELOS CHAVES “Talvez mais importante do que es-
(Relator): clarecer a verdade biológica da pater-
“... Assim, o efetivo exercício da posse nidade seja manter a legitimidade da
de estado de filho resulta, primeiro, pessoa que exerce a função social de
da declaração de paternidade e, pai.” (Apel. Cível 1.0512.’04.023554-
segundo, do exercício dessa pater- 5/001, ac. un. da 7a CC, de 06.03.2007,
nidade, o que conduz à indelével rel. Heloisa Combat, com suporte no
confirmação desse estado de família, REsp 440394, j. em 25.11.2002, rel.
que, como estado de família, tende à Min. Ruy Rosado de Aguiar).
estabilidade e à universalidade. Ou “Ementa: Ação de investigação de
seja, a relação parental estabelecida paternidade – Exame de DNA – Pa-
entre a autora e Vivaldino, que per- ternidade socioafetiva. Apesar do
dura há cinqüenta anos, e se estendeu resultado do exame de DNA, deve ser
aos próprios descendentes da autora, mantido o assento de paternidade no
deve-se perpetuar. É preciso ter em registro de nascimento, tendo em vista
mira que a família é protegida de o caráter socioafetivo da relação que
forma especial pelo Estado por ser a perdurou por aproximadamente vin-
própria base da sociedade, cuidando te anos, como se pai e filha fossem.”
o Estado para que, dentro dela, as (Ac. un. na Apel 1.0105.02.060668-
pessoas se mantenham protegidas 4/001, j. em 26.04.07, rel. Teresa
na sua dignidade, recebendo as pri- Cristina da Cunha Peixoto).
meiras e mais importantes noções
de vida social e também os preceitos II – Consagração pelo STJ
morais que devem nortear as suas RECURSO ESPECIAL No 878.941 – DF
vidas. E admitir, nesse contexto, a RELATORA: MINISTRA NANCY
investigação de paternidade preten- ANDRIGHI
dida implica valorizar mais do que o “EMENTA: “RECONHECIMENTO
fato social, mais do que a afetivida- DE FILIAÇÃO. AÇÃO DECLARA-
de, o tênue liame biológico, que de TÓRIA DE NULIDADE. INEXIS-
nada valeu durante toda a vida, para TÊNCIA DE RELAÇÃO SANGÜÍ-
se justificar na troca de uma mera NEA ENTRE AS PARTES. IRRELE-
94 Revista de Informação Legislativa
VÂNCIA DIANTE DO VÍNCULO lidade que se impõe e o direito não
SÓCIO-AFETIVO. deve deixar de lhe atribuir efeitos.
– Merece reforma... “É importante observar que o pró-
– O reconhecimento de paternidade prio ordenamento reconhece, em
é válido se reflete a existência dura- algumas hipóteses, a existência de
doura do vínculo sócio-afetivo entre vínculo jurídico de filiação mesmo
pais e filhos. A ausência do vínculo quando ausentes quaisquer laços bio-
biológico é fato que por si só não lógicos ou sangüíneos. Tome-se, por
revela a falsidade da declaração de exemplo, a hipótese do art. 1.597, V,
vontade consubstanciada no ato do CC/2002. Foi estabelecido ali que se
reconhecimento. A relação sócio- presumem concebidos na constância
afetiva é fato que não pode ser, e do casamento os filhos havidos por
não é, desconhecido pelo Direito. inseminação artificial heteróloga,
Inexistência de nulidade do assento desde que tal fato tenha contado com
lançado em registro civil. a expressa anuência do marido...
– O STJ vem dando prioridade ao cri- “A doutrina de Luiz Edson Fachin
tério biológico para o reconhecimento (1992, p. 169) com muita acuidade
da filiação naquelas circunstâncias observa, nesse sentido, que ‘a verda-
em que há dissenso familiar, onde a deira paternidade pode também não
relação sócio-afetiva desapareceu ou se explicar apenas na autoria genética
nunca existiu. Não se pode impor os da descendência. Pai também é aque-
deveres de cuidado, de carinho e de le que se revela no comportamento
sustento a alguém que, não sendo o cotidiano, de forma sólida e duradou-
pai biológico, também não deseja ser ra, capaz de estreitar os laços de pa-
pai sócio-afetivo. A contrario sensu, ternidade numa relação psico-afetiva,
se o afeto persiste de forma que pais aquele, enfim, que, além de poder
e filhos constroem uma relação de lhe emprestar seu nome de família,
mútuo auxílio, respeito e amparo, é trata-o verdadeiramente como seu
acertado desconsiderar o vínculo me- filho perante o ambiente social’.
ramente sanguíneo para reconhecer a “Onde há dissociação entre as verda-
existência de filiação jurídica. Recur- des biológica e sócio-afetiva, o direito
so conhecido e provido.” (Acórdão haverá de optar por uma ou outra.
unânime da 3a Turma, por decisão Como visto, o STJ vem dando prio-
de 21/08/2007). ridade ao critério biológico naquelas
DO VOTO DA MINISTRA NANCY circunstâncias em que a paternidade
ANDRIGHI (Relatora): sócio-afetiva desapareceu ou nunca
“... Buscando amparo em jurispru- existiu. Não se pode impor os de-
dência dissonante, a recorrente veres de cuidado, de carinho e de
pretende que a relação sócio-afetiva sustento a alguém que, não sendo o
mantida com aquele que acreditava pai biológico, também não deseja ser
ser seu pai, ou, em outras palavras, pai sócio-afetivo. A contrario sensu,
a posse do estado de filha produza se o afeto persiste de forma que pais
efeitos jurídicos. e filhos constroem uma relação de
“... Assim como ocorreu na hipótese mútuo auxílio, respeito e amparo, é
sub judice, a paternidade sócio-afetiva acertado desconsiderar o vínculo me-
pode estar, hoje, presente em milha- ramente sangüíneo, para reconhecer
res de lares brasileiros. O julgador a existência de filiação jurídica. Essa,
não pode fechar os olhos a esta rea- me parece, foi a conclusão a que che-

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 95


gou o Min. Ruy Rosado de Aguiar, convívio entre o declarante e a decla-
ao relatar o REsp 440.394/RS, 4a T, rada. Tanto que, à falta de qualquer
DJ 10.02.2003: impedimento, poderia tê-la adotado.
‘Talvez mais importante do que Com essas considerações, acompa-
esclarecer a verdade biológica da pa- nho integralmente o voto-condutor
ternidade seja manter a legitimidade e, para os fins nele consignados, dou
da pessoa que exerce a função social provimento ao recurso especial.”
de pai...’ (REsp 878941/DF, 3 a T., rel. Min
“Não se pode olvidar que a relação Nancy Andrighi, j. em 21.08.2007).
construída ao longo dos anos entre Os Srs. Ministros Castro Filho, Humberto
pais e filhos permanece na psique Gomes de Barros, Ari Pargendler e Carlos
individual, perpetuando valores Alberto Menezes Direito votaram com a
compartilhados por aquele núcleo Relatora.
familiar. Na esfera social, são os RECURSO ESPECIAL No 234.833-MG
amores, dissabores e experiências RELATOR: MIN. HÉLIO QUAGLIA
diariamente compartilhados que BARBOSA
constroem a família e a filiação. Na fa- “EMENTA: RECURSO ESPECIAL.
mília sócio-afetiva, o homem realiza- RECONHECIMENTO DE PATER-
se com dignidade e plenamente. NIDADE. CANCELAMENTO PELO
“Por isso, se a existência da filiação PRÓPRIO DECLARANTE. FALSI-
sócio-afetiva é trazida ao mundo DADE IDEOLÓGICA. IMPOSSIBILI-
jurídico por declaração de vontades, DADE. ASSUNÇÃO DA DEMANDA
cumpre ao julgador reconhecer vali- PELO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTA-
dade e eficácia nesse ato. Tomar como DUAL. DEFESA DA ORDEM JURÍ-
falsa a declaração de paternidade que DICA OBJETIVA. ATUAÇÃO QUE,
não coincide com testes biológicos, IN CASU, NÃO TEM O CONDÃO
sem maiores ponderações, é ver a DE CONFERIR LEGITIMIDADE
realidade sob o prisma estritamente À PRETENSÃO. RECURSO NÃO
tecnicista, voltando-se as costas ao CONHECIDO.
que interessa de fato para que as 1...
pessoas existam dignamente... 2...
“O reconhecimento da filiação sócio- 3. Se o reconhecimento da paternidade
afetiva pressupõe a ausência de não constitui o verdadeiro status famí-
vínculo biológico entre as partes que liae, na medida em que o declarante, ao
constroem uma relação familiar e se fazê-lo, simplesmente lhe reconhece a
reconhecem como pais e filhos. Nes- existência, não se poderia admitir sua
se sentido, os efeitos da decisão que desconstituição por declaração singular
reconhece a ausência de paternidade do pai registral. Ao assumir o MP sua
biológica não jogam uma pá de cal função precípua de guardião da lega-
sobre a questão da filiação sócio- lidade, essa atuação não poderia vir a
afetiva.” beneficiar, ao fim e ao cabo, justamente
CONCLUSÃO DO VOTO-VISTA DO aquele a quem essa mesma ordem jurí-
MINISTRO CASTRO FILHO: dica proíbe romper, de forma unilateral,
“De fato, o estado de filiação reco- o vínculo construído ao longo de vários
nhecido merece prevalecer no caso anos de convivência, máxime por se tra-
concreto, uma vez que a relação como tar de mera ‘questão de conveniência’ do
se de paternidade fosse existiu e se pai registral, como anotado na sentença
consolidou durante os vários anos de primeva.

96 Revista de Informação Legislativa


4. ‘O estado de filiação não está neces- pais e filhos. Para isso, há necessidade
sariamente ligado à origem biológica e de se renunciar a uma situação até
pode, portanto, assumir feições origina- então considerada como necessária
das de qualquer outra relação que não em prol da propalada “segurança
exclusivamente genética. Em outras jurídica” e da estabilidade das rela-
palavras, o estado de filiação é gênero do ções pessoais, consubstanciadas na
qual são espécies a filiação biológica e a certeza (ainda que não condizente
não biológica (...) Na realidade da vida, o com a realidade, por mais paradoxal
estado de filiação de cada pessoa é único que possa parecer) resultante do
e de natureza socioafetiva, desenvolvido vínculo genético que conduz à afir-
na convivência familiar, ainda que derive mação da existência da filiação e da
biologicamente dos pais, na maioria dos paternidade.
casos’. Esse desenvolvimento vem também
CONCLUSÕES DO VOTO DO RELA- sendo experimentado pelo incre-
TOR: mento do estudo dos direitos da
“4. Por fim, ainda que os argumen- personalidade, propiciando a revisão
tos até aqui apresentados digam, do próprio Direito de Família, por
tão-somente, com a validade, ou tanto tempo relegado à condição de
não, do ato de reconhecimento de subdireito, agora voltado à tutela de
paternidade, não se desconhece, por cada pessoa humana que de mais
óbvio, a precedência dos princípios seu, como atributos inatos e ineren-
constitucionais da personalidade e tes, alcançando-se o que Pontes de
da dignidade da pessoa humana, Miranda (1971, p. 6) denominou ‘um
além da proteção conferida, pela dos cimos da dimensão jurídica’.
Carta Maior da República, à família, São dois universos distintos, pois o
à criança e ao adolescente, especial- Direito de Família volta-se aos direi-
mente no que tange às questões liga- tos e deveres das pessoas, hauridos
das à identidade afetiva entre pais e do grupo familiar, e aos direitos da
filhos, mesmo que não originada de personalidade aos que dizem com a
descendência biológica. pessoa em si, sem relação originária
“Apenas para ilustrar o atual estádio com qualquer outra pessoa ou com
da doutrina nacional, traz-se a lume grupo. A origem genética da pessoa,
o magistério de Mauro Nicolau Jú- tendo perdido seu papel legitimador
nior, que, em monografia voltada ao da filiação, máxime na Constituição,
estudo do direito ao reconhecimento migrou para os direitos da personali-
da paternidade em confronto com o dade, com finalidades distintas.
instituto processual da coisa julgada, O estado de filiação não está necessaria-
revela as profundas modificações, mente ligado à origem biológica e pode,
pelas quais vem passando a Ciência portanto, assumir feições originadas de
Jurídica, em face de novos paradig- qualquer outra relação que não exclusi-
mas; in ipsis verbis:” vamente genética. Em outras palavras, o
“Numa sensível progressão, vem o estado de filiação é gênero do qual são es-
Direito, um tanto a reboque de outras pécies a filiação biológica e a não biológica
ciências que lhe são afins, como a So- (...) Daí é de se repetir o entendimento
ciologia e a Psicologia, resgatar o va- que toma corpo nos tribunais brasileiros
lor da relação afetiva entre as pessoas de se confundir estado de filiação com
– e, no que interessa a esta pesquisa, origem biológica, em grande medida em
de pessoas que se caracterizem como virtude do fascínio exercido pelos avan-

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 97


ços científicos em torno do DNA. Não Em função dessa variedade de relações
há qualquer fundamento jurídico para de filiação, os problemas e conflitos daí
tal desvio hermenêutico restritivo, pois resultantes foram variados e complexos:
a Constituição estabelece exatamente o a) o reconhecimento voluntário e litigioso
contrário, abrigando generosamente o de filiação, suas restrições e conseqüências;
estado de filiação de qualquer natureza, b) as contestações de paternidade, suas
sem primazia de um sobre outro, sem que causas, requisitos e efeitos; c) as adoções
com isso se pretenda minimizar ou retirar formais, informais ou registrais apenas.
o enorme avanço que representou, para A evolução científica abriu duas verten-
o Direito de Família, a possibilidade de tes novas na filiação. Por um lado, ampliou
se perquirir, com relativa certeza, sobre as fontes da filiação e da própria vida
vínculos genéticos e biológicos, mas, de humana, por meio da fecundação artificial
qualquer forma, sem que também possa homóloga e heteróloga, inclusive a criação
ser elevado o exame de DNA ao status de de embriões humanos in vitro nos labora-
determinante ou mesmo preponderante tórios, com aproveitamento imediato ou
no estabelecimento e reconhecimento futuro, gerando grave polêmica filosófico-
da própria existência de tais relaciona- religiosa sobre a sua natureza, dignidade e
mentos. Na realidade da vida, o estado proteção. A outra vertente foi a descoberta
de filiação de cada pessoa é único e de do DNA ou do código genético dos filhos,
natureza socioafetiva, desenvolvido na possibilitando o acesso à identidade cien-
convivência familiar, ainda que derive tífica de seus pais.
biologicamente dos pais, na maioria dos Evoluímos da filiação jurídica ou presu-
casos” (in Paternidade e Coisa Jul- mida para a filiação biológica ou comprova-
gada. Limites e Possibilidade à Luz da. O conflito entre ambas tem gerado mui-
dos Direitos Fundamentais e dos tas disputas nas famílias e nos tribunais. O
Princípios Constitucionais. Curitiba: Código Civil de 1916, em defesa da honra
Juruá Editora, 2006, págs 118/119.)” e da paz familiar, consagrou a presunção
(grifos do Relator) absoluta de filiação legítima do filho conce-
(REsp 234833/MG, 4a Turma, deci- bido na constância do casamento (art. 338),
são unânime de 25/09/2007. Os Srs. atribuindo ao marido, privativamente, o
Ministros Massami Uyeda, Fernando direito de contestar essa legitimidade (art.
Gonçalves e Aldir Passarinho Junior 344), no prazo decadencial de 2 a 3 meses,
votaram com o Relator). contados do nascimento (art. 178, §§ 3o e
4o). O STF sempre reconheceu a decadência
7. Conclusões desse direito, se não exercido pelo pai no
prazo fatal. O STJ, nos primeiros 10 anos de
A) Filiação jurídica e filiação biológica
sua existência, confirmou essa interpretação
Pelo Código Civil de 1916, os filhos eram e só foi admitindo, gradativamente, o cará-
legítimos (havidos sob o casamento civil ter relativo da presunção de filiação legíti-
e dentro dos prazos estabelecidos), legiti- ma diante de novos fatos e circunstâncias
mados (resultantes do casamento dos pais, familiares, sociais, legais e até constitucio-
após concebidos ou nascidos), ilegítimos nais, como foram: a) as separações de fato
(havidos fora do casamento), simplesmen- de casais e as novas uniões daí resultantes,
te naturais (havidos de pais solteiros ou gerando filhos notoriamente não legítimos
equiparados), adulterinos (resultantes de do casamento civil apenas formal; b) a
adultério de um dos pais ou de ambos) e igualdade dos filhos de qualquer condição,
adotivos (filiação civil, não consangüínea proclamada pela Constituição de 1988 (art.
ou socioafetiva). 227, § 6o); c) a nova legislação que liberou a

98 Revista de Informação Legislativa


ação investigatória de paternidade, com ca- A doutrina, a jurisprudência e a própria
ráter imprescritível (ECA, 1990, art. 27); d) legislação posterior ao código facilitaram
o próprio Código Civil de 2002, que, numa as ações negatórias da paternidade pre-
mudança de 180 graus, veio permitir ao ma- sumida e ensejaram as investigações de
rido contestar a paternidade dos filhos de paternidade, diante de evidências de erros
sua mulher, em qualquer tempo (art. 1601). e falsidades ideológicas de registros civis e
Deve ser ressalvada, contudo, a tese do ato de provas evidentes de outras identidades
jurídico perfeito ou consumado, decorrente biológicas. A evolução científica descobriu
dos filhos nascidos e não contestados na o código genético e trouxe a certeza da
plena vigência do Código de 1916, sem a filiação biológica.
presença de qualquer das circunstâncias Mas a identidade real, embora parta do
supra, a qual tem suporte no artigo 6o, § 1o, código genético e da filiação jurídica, não
da Lei de Introdução e no artigo 5o, inciso se resume nesses dois aspectos. Predomina
XXXVI, da Constituição, com vários pre- hoje a identidade cultural ou socioafetiva,
cedentes judiciais. Mas, sobretudo, devem como componente maior da identidade real
ser destacados, em matéria de negatória das pessoas, que não são objetos, mas seres
e investigatória de paternidade, os novos humanos dotados de razão, vontade livre,
recursos do DNA ou prova genética de sentimento, personalidade e dignidade. A
filiação, quando disponíveis. Apesar de sua identidade é fruto da convivência pessoal,
extraordinária valia na pesquisa da verdade familiar e social, desde que não contrarie,
científica da filiação, o DNA não tem valor de forma criminosa ou fraudulenta, a
absoluto e decisivo em todas as circuns- identidade jurídica nem a biológica, frus-
tâncias, na determinação da verdade real e trando legítimos sentimentos, anseios e
cultural da filiação, diante de determinadas esperanças. Bem por isso é que a identidade
circunstâncias e dos novos rumos e valores biológica ou genética deixou de constituir
emergentes da filiação socioafetiva na vida panacéia para se tornar instrumento valioso
moderna. É a nova virada da doutrina e na pesquisa da identidade real da pessoa,
da jurisprudência, inclusive do Superior como fator de realização e não de desagre-
Tribunal de Justiça. Como disse o filósofo: gação da família.
“a verdade depende do homem e de sua O exemplo maior de predomínio da
circunstância.” (Ortega y Gasset). filiação socioafetiva está na adoção, forma
de filiação jurídica, civil, artificial, não bio-
B) Filiação socioafetiva lógica, produzida, cultivada, construída,
A filiação compreende as espécies ju- valorizada pelos laços de convivência e
rídica, biológica e socioafetiva, cada qual afetividade.
com o seu conceito e efeitos, em função A tendência hoje dos tribunais, com
de variadas circunstâncias que irão ditar o apoio da doutrina, é supervalorizar a
predomínio de uma sobre as outras. filiação socioafetiva, a ponto de fazê-la
O Código Civil de 1916 valorizava a predominar no conflito com a biológica.
filiação jurídica ou presumida, que com- Exemplo clássico de prevalência da bioló-
preendia a legítima e a legitimada, com gica é a filiação resultante de crime ou de
presunção absoluta de paternidade do fraude, sobretudo o seqüestro de criança
marido que não a contestasse logo após o em maternidade e o seu registro por es-
nascimento do filho; havia ainda a ilegítima tranho; ou ainda o produto de concepção
ou reconhecida por uma das formas legais indesejada no seio de família orgulhosa,
(voluntária ou litigiosa); e a adotiva ou civil que doa a criança como objeto, para evitar
ou não biológica, criadora de um vínculo escândalo envolvendo o filho ou a filha
cultural e socioafetivo. geradores, como na novela famosa e em

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 99


caso recente julgado pelo STJ (REsp 833712- compartilhados que constroem a família e
RS, de 17.05.07), em que se recomendou a filiação. Na família socioafetiva, o homem
ao julgador, em caso de conflito entre os realiza-se com dignidade e plenamente.”
vínculos biológico e socioafetivo, “atentar, (REsp 878941-DF, j. em 21.08.2007).
de forma acurada, para as peculiaridades Como na frase lapidar e tantas vezes
do processo, cujos desdobramentos devem repetida de Saint Exupéry no imortal “O pe-
pautar as decisões”. O mesmo STJ assim queno príncipe”: “Tu te tornas eternamente
julgou mais recentemente: “Como ocor- responsável por aquilo que cativas.”
reu na hipótese sub judice, a paternidade
socioafetiva pode estar, hoje, presente em
milhares de lares brasileiros. O julgador Referências
não pode fechar os olhos a esta realidade
que se impõe e o direito não deve deixar de ALMEIDA, Maria Cristina de. Paternidade biológica,
lhe atribuir efeitos;” “... se o afeto persiste socioafetiva, investigação de paternidade e DNA.
In: CONGRESSO BRASILEIRO DE DIREITO DE
de forma que pais e filhos constroem uma FAMILIA, 3., 2002, Belém. Anais... Belo Horizonte:
relação de mútuo auxílio, respeito e am- IBDFAM, 2002.
paro, é acertado desconsiderar o vínculo
FACHIN, Luiz Edson. Comentários ao novo código civil.
meramente sangüíneo, para reconhecer a v. 18. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
existência de filiação jurídica. Essa foi a
conclusão a que chegou o Min. Ruy Rosado ______. Estabelecimento da filiação e paternidade presu-
mida. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1992.
de Aguiar, ao relatar o REsp 440394-RS,
4a T, 10.02.2003: “Talvez mais importante FACHIN, Rosana. Em busca da família no novo milê-
nio. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE DIREITO DE
do que esclarecer a verdade biológica da
FAMILIA, 3., 2002, Belém. Anais... Belo Horizonte:
paternidade seja manter a legitimidade da IBDFAM, 2002.
pessoa que exerce a função social de pai.”
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio jurídico da afe-
E conclui a Min. Nancy Andrighi: “Não se
tividade na filiação. In: CONGRESSO BRASILEIRO
pode olvidar que a relação construída ao DE DIREITO DE FAMILIA, 2. Fortaleza. Anais... Belo
longo dos anos, entre pais e filhos, perma- Horizonte: IBDFAM, 2000.
nece na psique individual, perpetuando
NICOLAU JÚNIOR, Mauro. Paternidade e coisa julgada:
valores compartilhados por aquele núcleo limites e possibilidade à luz dos direitos fundamen-
familiar. Na esfera social, são os amores, tais e dos princípios constitucionais. Curitiba: Juruá,
dissabores e experiências diariamente 2006.

100 Revista de Informação Legislativa


Juristas e jornalistas
Impressões e julgamentos

Mônica Sette Lopes

“Vou tratar (...) do imenso romance do direito


que se escreve ao longo dos séculos, que se
enriquece dia a dia até constituir o texto mais
extravagante, mais alucinante, mais fabuloso
que há, com seus episódios formidáveis, com
seus golpes teatrais, com seus retornos impre-
visíveis. Romance-folhetim se ele o foi alguma
vez, romance interminável que acompanha
todas as mutações, todas as utopias, todos os
fantasmas, todos os sonhos”.
(EDELMAN, 2007, p. 159)
O trecho acima está no início de um
capítulo que se chama A fábrica da realidade
(La fabrique de la réalité). É parte do não
menos intrigante livro intitulado Quando
os juristas inventam o real (Quand les juristes
inventent le réel: la fabulation juridique). Ilus-
tra um movimento, em relação ao direito,
e, por isso, está na porta de entrada deste
texto cujo objetivo é fazer um curto vôo por
um cenário da titubeante contemporanei-
dade: aquele em que interagem o direito
e o jornalismo. Para transpor esse espaço,
é preciso vivenciar o grande romance que
acompanha mutações, utopias, sonhos e
fantasmas. Um romance-folhetim, cotidia-
no, interminável.
No mundo em que medos e dúvidas
são plausíveis, pode-se começar com
uma pergunta: se hoje a plena informação
Mônica Sette Lopes é juíza da 12 a Vara
do Trabalho de Belo Horizonte, professora preside as relações humanas, será que os
dos cursos de graduação e pós-graduação da meios de comunicação de massa têm re-
Faculdade de Direito da UFMG e Doutora em levância ou interferem quando se trata de
filosofia do direito. compreender ou de explicar os fenômenos
Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 101
jurídicos? Como se dá a intercomunicação “Na verdade o conceito de infor-
entre esses dois subsistemas sociais que têm mação não é, de modo nenhum,
linguagem própria e que se apropriam da abarcado por uma compreensão
abertura cognitiva em relação ao sistema bem elaborada do conhecimento. O
social total1? significado de “informação” é toma-
A questão central circunscreve-se à do num sentido muito mais amplo e
notícia, assim entendida a informação refere-se também a procedimentos
veiculada pelos meios de comunicação de mecânicos. O som de uma buzina, a
massa. Mas refere-se, muito especialmente, mensagem automática da próxima
a uma parte dela, que é o momento em que estação do metrô, a campainha de
o direito impulsiona o noticiário. um despertador, o panorama do
A produção dos argumentos, versados noticiário na TV, o alto-falante do
na notícia, não é uma operação milagrosa supermercado, as oscilações da Bolsa,
ou automática. Eles são amoldados por a previsão do tempo... tudo isso são
pessoas que interpretam a realidade e que informações, e poderíamos continuar
são atingidas por ela em campos aleatórios, a lista infinitamente.”
que vão desde o conhecimento conceitual A informação, portanto, é também o
e/ou operacional do direito (que podem som jogado para o ouvinte-leitor com o
ter ou não) até o interesse e a ideologia. O imediatismo que não permite a reflexão.
que conforma o texto certamente abrange Desse intérprete não se espera mais do
uma obviedade: o pensamento humano que a conduta passiva do recebimento da
já foi claramente atingido pela certeza do mensagem. Está a seu critério transfor-
condicionamento do intérprete dissecada mar a informação em conhecimento ou
pela hermenêutica do século XX. amontoá-la no rol de elementos esparsos
Um outdoor com propaganda de jornal que acumula no tempo. Ele posta-se diante
popular, vendido nos sinais de trânsito a da televisão ou do jornal-revista e recebe
R$0,25, pode dar o tom do problema: “No-
o que eles têm a oferecer sem o estímulo
tícia todo mundo pode dar. Informação
para se aprofundar. O efeito inicialmente
mesmo, só no Aqui”. O jornal, que veicula
suscitado pela oferta dos dados satisfaz e
a notícia ligeira, assume, como um valor
leva a uma reprodução automatizante, que
seu, a qualidade da informação.
se espalha pelas ruas.
Há um escalonamento entre a notícia, a
A difusão da notícia faz com que os
informação e o conhecimento. Pretende-se
valores considerados não sejam neces-
que a informação contenha uma análise
sariamente aqueles que possam levar ao
menos superficial do que a enunciação
da notícia, que é mero relato dos fatos2. conhecimento. Como dados da realidade
Na informação, haveria uma participação do mundo da informação, estão, ainda, a
ou adesão mais completa do destinatário urgência e a transformação da mensagem
aos desdobramentos da mensagem, a um em produto. Por isso, o canal emissor dis-
caráter mais analítico. Mas ela não pode se persa-se por esferas de descontrole. Se, por
confundir com conhecimento. Robert Kurz um lado, há uma presunção ou uma ideolo-
(2002, p. 12) cuidou do tema em artigo gia em torno da participação formadora da
publicado na Folha de São Paulo: mídia, por outro, não se pode desprezar a
pressão exercida por seus destinatários na
1
Na raiz dessas colocações está, como se percebe, demanda de determinada pauta. Isso se
uma parcela da tônica luhmanniana. Cf. LUHMANN, acentua, hoje, pela possibilidade direta do
1996.
2
Sob o prisma da historicidade e sobre as várias eta-
acesso e da emissão da informação-notícia
pas da seleção de notícias, cf. KUNCZIK, 2002, p. 219- pela Internet. Qualquer um pode se trans-
275 (o capítulo intitula-se A produção de notícias). formar num repórter pela facilidade que

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a tecnologia oferece, para a construção da liberdade de pensamento e ação como bases
imagem pela fotografia e filmagem inclusi- da ética. Por isso, há uma meta-avaliação
ve com celulares de fácil aquisição. possível e necessária de sua obra.
Formar opinião, desde a raiz grega, A propaganda nazista ou a informação
não significa formar saber. Intérprete de divulgada pela imprensa nazista coincidem
intérpretes, o público destinatário recebe precisamente com as idéias enunciadas na
os dados com o aporte de seus juízos e seqüência do texto acima referido:
pré-juízos a partir de uma intervenção, “Aos arcana imperii pertecem, portan-
cujos desdobramentos não são inteira- to, os distintos métodos empregados
mente mensurados. Há um deslocamento nas distintas formas de Estado (mo-
de ordem estética: qual é a notícia que as narquia, aristocracia, democracia)
pessoas querem ouvir? Qual é a notícia que para manter tranqüilo o povo; por
vai vender jornal ou aumentar a audiência exemplo, na monarquia e na aristo-
dos programas vespertinos e dos noticiários cracia, uma certa participação nas
da noite? instituições políticas, mas particular-
A história não é nova. O polêmico Carl mente uma liberdade de expressão
Schmitt refere-se a ela ao comentar um livro verbal e a liberdade de imprensa, que
de Arnold Clapmar de 1605 (De Arcanis permitam uma participação ruidosa,
rerumpublicarum). Ele está tratando dos mas politicamente insignificante nos
arcana que fazem parte dos processos da acontecimentos estatais, além de uma
ditadura (“no sentido de uma espécie de visão inteligente da vaidade humana
ordenamento que não depende, por princí- etc.” (SCHMITT, 1999, p. 46)
pio, do assentimento e da compreensão do Não há nada de mais importante no
destinatário e nem espera seu consentimen- exercício democrático do que a participa-
to”) (SCHMITT, 1999, p. 43). Os arcana são ção crítica, a impugnação construtiva das
certos “ardis, inclusive a astúcia e a fraude, decisões, a manifestação do pensamento
para alcançar seu fim. Mas no Estado são
individual ou do grupo em relação aos vá-
sempre necessárias certas manifestações
rios temas que se colocam para a discussão
que suscitem a aparência de liberdade para
pelas comunidades ou em qualquer escala
tranqüilizar o povo, isto é simulacra, insti-
do espaço público. Para isso, a liberdade
tuições decorativas”. (Idem, p. 46)
de imprensa é veículo essencial, porque
A leitura de Carl Schmitt é sempre ator-
ela pode difundir conhecimento e instau-
doante. Não há como menosprezar o fato de
rar bases sólidas para o processo dialógico
ele haver escrito O führer protege o direito3,
da formulação de conceitos e de projeções
em 1934, depois de uma fala de Göhring
concretas da diversidade nas práticas pú-
exigindo a adesão dos teóricos do direito
aos atos de Hitler. A impressão que fica do blicas.
exame de seus textos, que partem de uma Quando o Supremo Tribunal Federal
pesquisa documental profunda, é de que abre o caminho para a manifestação direta
ele constitui um exemplo dos riscos que se dos vários setores da sociedade4 em relação
corre. Ele é alguém em quem se pode perce- a temas que comporiam os chamados hard
ber toda a tragicidade das opções cotidianas cases, possibilitando a defesa de pontos de
(a potencialidade de ser ditador), como ele vista antagônicos, inaugura-se um lugar
mesmo anunciava em suas obras. Quando para a participação ampliada da sociedade
se assume uma assimilação acrítica do au- no processo das decisões de alcance mais
toritarismo, é difícil recuperar a essência da geral. Essa é sem dúvida uma etapa (nova)
que merece o acompanhamento dos meios
3
(SCHMITT apud MACEDO JÚNIOR, 2001, p.
219 e ss.). 4
Notadamente pela figura do amicus curiae.

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de comunicação até para desvendar como encontram-se as partes ou os interessados
se chega à decisão judicial na especificidade diretos numa certa causa e, concomitante-
do conflito. mente, toda a sociedade, como receptora
Não se trata, portanto, de rechaçar ou potencial da mensagem sobre o que é o
de limitar a liberdade de expressão, mas direito. Como pano de fundo, está o conflito
exatamente de possibilitar o seu exercício e sua iminência, que são dados inerentes à
como essência mesmo da liberdade. No que humanidade.
concerne ao direito, deve-se, portanto, bus- O conflito é matéria-prima essencial
car os meios de acesso a cada detalhe que para o trabalho jornalístico. É fonte de
compõe a sua matéria prima, como um fazer emoção. Atrai o imaginário coletivo. Sus-
complexo, e não apenas tramar uma imagem cita reação dos que querem construir uma
parcial dele. Isso significa a consciência da sociedade mais pacífica e dos que não se
responsabilidade de possibilitar às pessoas preocupam com isso.
mais do que a participação ruidosa e politica- Talvez o caminho adequado recolha-se
mente insignificante. na idéia fundante de justiça como um fazer
O alerta vem em várias passagens das que não é de alguns, mas de todos. Pode-se
obras de autores importantes do século tomar a linha básica da justiça como uma
XX, e entre eles está Umberto Eco (1998, virtude que se realiza na ação cotidiana de
p. 86): cada pessoa em relação a todas as outras6
“A informação difunde-se por inume- (ARISTÓTELES, 2002, p. 53-54). Ela não
ráveis canais autônomos, o sistema é se exaure; exige cotidianidade e não está a
acéfalo e incontrolável, cada um pode cargo exclusivamente do Estado.
discutir com os outros, e não reage Há uma palavra que une especialmente
apenas emotivamente à sondagem as atividades de juristas e de jornalistas.
em tempo real, mas mastiga as men- Está no Houaiss, dividida em duas versões.
sagens aprofundadas, que vai desco- Na versão de no 1, a palavra lide indica
brindo aos poucos, tecendo relações luta, combate, mas tem acepção jurídica de
e discussões mais elevadas do que “pleito judicial pelo qual uma das partes
tem sido a dialética parlamentar ou a faz um pedido e a outra resiste; pendência,
vetusta polêmica jornalística”. litígio”, do latim litis. Na versão de no 2, ela
É aqui que se inicia uma tentativa de indica “linha ou parágrafo que apresenta os
resposta às questões trazidas na abertura principais tópicos da matéria desenvolvida
deste trabalho. no texto jornalístico; cabeça” e tem raiz eti-
A obra dos juristas5 pode destinar-se mológica no inglês com lead. As origens são
à apreensão interna de dados instrumen- diversas, mas elas se encontram na grafia
tais do direito, criando um subsistema e na fonética em português como conflitos
fechado aos leigos. Tem esse caráter registrados, condensados em palavras,
funcional. Há, todavia, uma demanda de anunciados em versão reduzida e direta.
que a comunicação atinja um auditório Na sociedade da ampla informação,
mais abrangente, principalmente no que juízes julgam, mas os veículos de imprensa
concerne às decisões e às manifestações também conduzem sessões de julgamen-
que interferem nos limites de conduta que to, na informalidade com que submetem
lhes são compulsoriamente exigidos. Nele os conflitos à visão da opinião pública.
Portanto, jornalistas, apresentadores de
5
O termo é usado em uma versão abrangente que
alcança todos aqueles que têm habilitação formal para
expressar argumentos em torno do direito de forma es- 6
Um retorno a Aristóteles pode dar a medida
crita ou oral (bacharéis em direito, juízes, advogados, exata disso, especialmente no Livro I, em que explica
promotores, procuradores, professores, teóricos). o sentido ativo das virtudes na cidade.

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rádio e televisão também fazem justiça. a publicidade, em versão escrita, é um
Ou injustiça. dado inerente na expressão jurídica. Isso
Em uma obra em torno das várias significa que ela pode ser vista, pesquisada
formas de narrativa pelo direito (a das e analisada em toda a sua extensão. É a lei,
decisões, a das teorias etc.), Alejandro são as decisões, os processos, a teoria. Não
Nieto (2002, p. 288) ressalta o cuidado que há, porém, como escalonar e esquematizar
devem ter os juristas com o modo como todas essas manifestações. Elas caracteri-
se expressam, dada a relevância que têm zam-se pela variedade e pelo casuísmo,
para transmitir conhecimento. E aponta os versados caótica e simultaneamente com
desvios a evitar: uma tendência à exaustiva repetição. Tor-
“Hoje segue sendo importante, desde nar pública a coisa jurídica é diferente, no
logo, a fanatização dos cidadãos para entanto, de fazer publicidade dela. Se a pa-
que suportem a guerra exterior ou o lavra publicidade entra para o direito como
despotismo interno; mas talvez seja um princípio7, com lastro inafastável na
ainda mais importante fazê-los recep- prática democrática, não pode afastar-se de
tivos aos interesses dos vendedores, sua conotação para a sociedade de consu-
já que o mercado depende tanto da mo. Aqueles que constroem os fenômenos
qualidade e do preço da produção do direito estão geralmente conscientes da
como das práticas de marketing, e aqui importância da publicidade de seus atos, mas
se chegou a extremos inauditos que não se preocupam ou controlam quaisquer
os clientes nem sequer suspeitam”. das técnicas de publicidade, ou seja, aquelas
Quando a justiça transforma-se em um que criam uma linguagem às vezes artifi-
objeto ou bem de consumo, é preciso um cial para a difusão – venda da informação
exercício dialético de confronto para di- e para a busca de um maior número de
mensionar e enfrentar a ameaça de ela se consumidores ou de adeptos num espaço
submeter integralmente às práticas de ma- que não pode ficar vazio. O tempo no jor-
rketing. Não há como depurar as questões nal e na televisão deve ser integralmente
de direito e mantê-las incólumes à força das preenchido, sem a possibilidade da pausa
intempéries de uma sociedade que é insa- silenciosa ou do papel em branco.
ciável quanto às novidades – cada conflito Pode-se indagar se o direito deve
constitui um manancial delas. Não há como ceder a essa pressão de ser como tudo o
apontar exclusivamente o lado monótono mais. Pode-se perquirir que usos o direito
da técnica e dos conceitos como sendo o pode fazer desses recursos da sociedade
ponto essencial da atuação funcional do em que se vende qualquer coisa. O fato é
direito. Isso toma corpo na interação con- que a necessidade de se comunicar com o
creta da norma com as expectativas sociais público e de fazê-lo prestar atenção numa
construídas para a dinâmica operacional do mensagem que é a da lei e a da decisão
direito. Juízes, advogados, promotores e judicial tende a não lograr êxito quando
procuradores passam para a linha de frente se mantêm os métodos professorais e her-
da visibilidade e a técnica jurídica mistura- méticos de formulação do texto jurídico.
se a uma outra técnica em que a imagem, A sua linguagem opera não apenas com
formada a partir de uma representação que os termos que funcionalmente denotam
é instrumentalizada, tem uma importância os conceitos, mas também como uma
fundamental. construção de sinônimos sem lastro com a
Ainda que não se possa desprezar, do técnica. Por que chamar o mandado de segu-
ponto de vista problemático da ciência do rança de writ of mandamus, por exemplo, se
direito, que haja uma faixa de argumenta- 7
Cf., mesmo que ligeiramente, o caput do art. 37
ção oral que atua na formulação normativa, da Constituição.

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ele guarda apenas remota similitude com em assimilar aspectos básicos e em evitar
o instituto formado no direito inglês e se o contingenciamento da teoria como um
esse fato, importante para o conhecimento esconderijo para a face mais ríspida do
acadêmico do direito, não tem sentido ou problema.
utilidade na sua versão contemporânea A presunção de que as leis sejam conhe-
mais imediata? Esse é um dos pontos de cidas por todos faz dos meios de comunica-
estrangulamento da comunicação quando ção de massa fontes imprescindíveis para
estão em pauta a natureza e a dinâmica emissão de uma pedagogia do direito. Mas
das soluções jurídicas como matéria para não se pode ser ingênuo e imaginar que
tratamento jornalístico. essa possa ser feita espontânea, isolada ou
O dilema talvez esteja no que se pode acriticamente.
chamar de acúmulo de palavras: Ricoeur (1995, p. 200) situa a opinião
“A narrativa jurisprudencial é sem pública como fonte amplificadora e porta-
dúvida a mais antiga encruzilhada voz de um desejo de vingança. Por isso,
onde se acumula a palavra (antes da segundo ele, a publicidade dada pelos
historiografia, da sociologia): elabora- veículos de mídia aos processos de apli-
se o processo verbal, o testemunho, cação da sanção deveria essencialmente
os gestos registrados pelos homens constituir uma “educação para a eqüidade,
da lei, o saber comum validado por na medida em que disciplinaria o desejo de
um saber formal (régime d´expertise), vingança”. A primeira lição de tal processo
uma microhistória que exige uma educativo seria a indignação. Ela leva à
organização coerente e que compara formulação de técnicas para a valorização
os eventos específicos com a arquite- dos padrões de comportamento fixados nas
tura dos conceitos jurídicos”. (LAÉ, leis e pela adesão espontânea dos destina-
2001, p. 21) tários, independentemente da imposição
Os processos de visibilidade das pala- da sanção como um vetor artificial para
vras, no caso do direito, escapam do seu es- seu cumprimento. Ela pode tornar mais
trito universo tecnicizado e são absorvidos participativas as discussões públicas das
pelas partes interessadas em cada processo, novas regulamentações e das reformas
mas também por modelos de exposição e legislativas, desde que se esclareçam os
de seleção como os que armam a realida- embaraços que a experiência concreta do
de reluzente dos veículos de mídia. Não direito traz.
havendo, portanto, como se libertar dessa Tome-se, ainda que rapidamente, por-
difusão por um canal incontrolável, por um que este é feixe de múltiplas coordenadas,
lado, e sendo esse um veículo essencial para a execução da sanção (execução forçada). Não
a dispersão da informação (e, forçosamente, basta lavrar nas manchetes o problema da
do conhecimento) na sociedade contempo- impunidade como se ele fosse um espírito
rânea, carece enfrentar os obstáculos. abstrato que se resolve pela simples elo-
Há uma vasta linha de apropriação te- cução, um dogma de fé que se exaure em
órica no enfoque desses temas a socorrer o si. Punir não é um ato, mas um processo e
pesquisador ou o intérprete. Ela pode tocar as dificuldades dele vão desde os limites
o Adorno da Indústria Cultural, a capilari- da apuração (que incluem a má qualidade
dade da análise do poder das instituições da gestão judicial e a forma como as lides
com Foucault, a interação dos subsistemas são postas) até fatores operacionais que
sociais com Luhmann, já referido, os riscos envolvem a construção, a manutenção e
da ação comunicativa e da formulação o controle de sistemas prisionais (que são
do consenso com Habermas. No entanto, figuras relativamente recentes na história
o ponto fulcral pode estar simplesmente do direito no que concerne ao volume dos

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que ali devem ser albergados), transitando cia, pode remeter à idéia da justiça com as
pelo trabalho árduo da transformação da próprias mãos rejeitada pela racionalidade
coisa julgada, que condena a pagamentos, contemporânea.
em efetividade. Nem sempre o dinheiro se O hermetismo da comunicação jurídica
disponibiliza em sua fungibilidade plena. tem uma boa dose de culpa nos desdobra-
É preciso penhorar e alienar judicialmente, mentos desse processo. Na medida em que
com a certeza da incongruência com o valor o conhecimento do direito é apresentado
de avaliação de mercado do bem. como um flanco inacessível aos não ver-
A narrativa, portanto, tem uma função sados e cuja malha problemática não se
educadora, porque pode possibilitar a de- expõe com a necessária clareza, abre-se a
cifração de um quadro mais amplo (e real). perspectiva de se canalizar a frustração
Não é necessário ir aos gregos e recuperar para outra dimensão.
o método platônico que narra o acesso ao O trabalho de jornalistas e de profissio-
conhecimento pelo mito da caverna8. Os nais do direito (juízes, advogados, promo-
homens agrilhoados que vêem na sombra tores, delegados etc.) coincide na filtragem
a realidade só podem olhar para a parede de fatos e na narrativa de uma história
onde as imagens são reproduzidas. A reconstruída com o essencial respeito ao
liberdade daquele que sai e percebe a luz contraditório. É direito das partes, no proces-
é descrita pela ênfase da dor que há em so, que cada decisão expresse uma posição
aprender: o conhecimento dói nos olhos sobre as alegações e as provas contrapostas.
como a primeira luz para aquele que nunca É direito de quem é citado na notícia ter sua
a havia experimentado. versão ouvida e apurada.
Quando se fala do direito e das questões Jornalistas e juízes têm o dever de des-
a ele conexas, não se pode referir apenas cobrir o que aconteceu e de se expressarem
aos lances factuais que cercam o conflito. O com argumentos convincentes. As decisões
modo de ser do próprio direito se introjeta judiciais fazem forçosamente a valoração
na cena vivida e dá a ela uma cobertura das ocorrências sob o prisma da legalida-
conotativa, que transmuda os fatos puros de. Elas são necessariamente motivadas e
para uma versão que é jurídica. Por isso, podem não corresponder à expectativa da
há sempre o risco da frustração quando a opinião pública. O juízo de valor das notí-
notícia o descreva sem a preocupação com o cias pode ser subliminar e se esconder no
dado complexo e real que o converte em fe- jogo de palavras da manchete cujo objetivo
nômeno jurídico. De certa forma, essa nar- principal é, tradicionalmente, atrair a aten-
rativa livre, que busca conquistar o leitor ção do leitor. Se, de um lado, há o excesso
ou o telespectador, num vínculo imediato, de processos e de leis, de outro lado, está a
traz o perigo de retomar a idéia ancestral presunção inverossímil de que jornalistas
da vingança sem qualquer mediação. dominem saberes múltiplos e sintonizados
Porque os problemas da prática efetiva em campos de incisiva complexidade técni-
do direito existem e devem ser analisados ca. A mesma dificuldade acentua-se para os
em sua significação mais ampla, os percal- juízes que são obrigados a decidir sobre os
ços dessa faticidade ultrapassam a vontade fatos mais variados, muitos deles de índole
de quem apresenta a notícia e demandam técnica, com destaque para a especificidade
a verificação do contexto em que ela se dá. terminológica que caracteriza as diversas
A apropriação imediata e absoluta da cena faixas de interesse humano. Um juiz do
conflitual, para a narrativa veloz da notí- trabalho pode imaginar que cavalinho seja
8
Edelman (2007, p. 27-28) reforça a montagem
um cavalo pequeno ou muito querido de
arquitetônica dessa caverna de modo a servir preci- seu dono. Mas ele não compreenderá o que
samente ao fim descritivo a que se destina. esse animal estará fazendo numa transpor-

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tadora que faz carga de mercadoria pesada. tas que não se entrelaçam ordenadamente.
Os dicionários podem não registrar, mas, Contar sua história ou solucioná-lo exigirá
na linguagem de motoristas de caminhão, puxar cada um desses fios9 e desvendá-los
cavalinho é parte da carreta. O exemplo é à vista de sua demanda específica. Assim,
certamente prosaico, mas o objetivo é exa- não há uma imagem única a fixar, mas uma
tamente acentuar a extensão natural ou real imagem fragmentada, que será falseada
do desconhecimento. por qualquer redução que procure fazer
Mas as questões processuais de maior dela uma síntese uniformizadora. Essa
envergadura também se apresentam como complexidade contrapõe-se à necessidade
focos de desacerto no plano do acesso ao de congelar os fatos na sua exposição, de
conteúdo integral do direito. fazer deles uma imagem cuja mensagem se
Pode-se insistir na afirmação de que ele disponibilize sem qualquer dubiedade.
funciona pela instrumentalidade de técni- Essa dificuldade, não por acaso, repro-
cas e de conceitos que operam de forma duz a tônica da versão contemporânea da
problemática. Sabe-se, para apontar uma exposição mais corriqueira da mensagem,
área de fissura, que o sistema recursal, que como acentuam Gebauer e Wurf (2005, p.
visa à garantia da segurança das partes, 493):
constitui, paradoxalmente, uma das fontes “Não é possível deixar de notar a
da morosidade no Poder Judiciário. O que tendência atual de transformar tudo
é feito para possibilitar mais justiça leva a em imagem. O caráter eletrônico das
menos justiça. A lógica do jornalismo não imagens televisivas favorece sua ubi-
admite a dilação temporal. A novidade é ca- qüidade e sua aceleração. As imagens
racterística essencial da notícia vendável. A são mixadas, editadas, trocadas por
tendência, nefasta, será substituir a verdade outras e se referem mimeticamente a
pelo impulso do resultado urgente. A pres- outros. Extraem-se delas elementos
sa, então, sob a aparência de levar a mais para fazer uma nova montagem: as
justiça, pode desabar em menos justiça. imagens fragmentadas fabricadas
Essa é uma das searas de ruptura mais constituem cada vez mais uma nova
interessantes entre os processos de apre- entidade. Imagens diferentes se as-
ciação dos fatos pelos juízes e pelos meios semelham devido a sua forma unidi-
de comunicação de massa. A rapidez com mensional e ao seu caráter eletrônico
que a notícia deve ser veiculada impede a e miniaturizado, apesar da distinção
preocupação com o amadurecimento da de seu conteúdo. Elas participam da
informação e com a solidificação do co- profunda transformação mimética
nhecimento, que exigem tempo. Por isso, dos mundos de imagem de hoje: elas
trabalha-se com a difusão de uma imagem desagregam as coisas e as transpõem
incompleta que se constrói do caso, porque para um mundo de aparência”.
não há como manter o interesse num pro- Quando se montam os fatos, relaciona-
cesso de apreciação que exige tempo. dos a um conflito vivenciado socialmente,
Essa pode ser uma das razões pelas quais faz-se uma escolha deliberada de interpre-
a morosidade é pautada pelos jornalistas tação com vistas a um fim. A fabricação da
com tanta freqüência. Problema ancestral
e endógeno do direito, sua visibilidade 9
Para falar de apenas alguns, podem mencionar-
pela mídia é duplicada pela imposição de se, junto com o sistema recursal, as dificuldades estru-
urgência para a urgência. Quer-se rapidez turais na gestão dos processos, com as características
históricas de cada tribunal, os incidentes normais que
na resposta, na explicação e na solução. E ocorrem nos processos (a testemunha que não pode
sabem os que vivem o problema que a mo- comparecer, o perito que não conseguiu concluir o
rosidade é um tecido de várias teias e pon- laudo), até os percalços variados da execução.

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imagem pode criar uma imitação da reali- com um suporte poderoso que se difunde
dade e daquilo que nela é relevante. por todas as coisas. Eles não podem fazê-la
No pano de fundo, porém, como um com as próprias mãos num sentido direto,
cenário talvez, está-se às voltas com uma porque o direito, formalmente composto,
imagem atávica, que é a da justiça. Trata- acaba impondo amarras que se situam às
se de uma idéia em mobilidade que não se vezes até mesmo no modo como o pedido é
fecha quanto aos fatos que deva alcançar, feito, na literalidade como foi deduzido.
mas que se forma em ciclos, a partir das Há, ainda, a área mais corriqueira ou
demandas por mais justiça, por outra jus- residual, que é a da recuperação do fato
tiça, ou a partir de novas faixas de interesse conflitual que envolve o caso. Para ele,
que passam a ser absorvidos por seus ca- há uma epistemologia própria que atinge
nais ideológicos ou de realização. Por isso, sua versão e que se aplica ao direito e ao
também a justiça tem uma imagem que se jornalismo:
movimenta: “O estatuto epistemológico dos fatos
“A imagem da justiça social muda coincide, então, com uma realidade
tudo ao confrontar a imagem do que existe por si mesma, sem outra
mundo real ou a imagem do que ele mediação humana além do esfor-
não é. Mas ela não apenas limita o seu ço por oferecer dela uma crônica
outro, o mundo real, como também mnemônica, memoriosamente fiel,
é reciprocamente limitada por seus que duplique de modo impecável o
próprios outros: especificamente o vivido. Daí, com efeito, o interesse
que é e o que mais possa vir a ser. É pelo moroso discurso de sentido, de
essa possibilidade que se opõe ao que atestado, denotativo e em grande
é dado na imagem da justiça social, medida deliberadamente autista e
e, portanto, isso, e isso apenas, torna- anônimo”. (CALVO, 1996, p. 70)
se o padrão para medir o progresso Qualquer um que milite nas salas de
em direção à justiça”. (WOLCHER, audiência sabe quão minucioso e cheio de
2004, p. 27) nuances é o processo de colheita da prova
Os jornalistas, em proporção maior do oral. Essa recuperação mnemônica costuma
que os juízes, acabam sendo canais mais ser lenta e de aparência autista pelo caráter
próximos ou imediatos desse desejo de asséptico e indiferente que define a postura
progresso em relação à justiça. Eles podem do juiz. O rito pode dar a impressão de
ouvir muito mais diretamente do que os que ele não se envolve com as perguntas
juristas onde estão as necessidades e de que que faz. Esse recolhimento, essa atenção
modo elas se transformam em conflito, em silenciosa ao detalhe, o necessário cotejo
lesão e, muito especialmente, de que modo dos depoimentos com dados documentais
elas podem se transformar em direitos a que possam definir o sentido dos fatos
serem exigidos. As demandas ambientais não produzem uma imagem suficiente-
são exemplos muito claros disso. Essa idéia mente estimulante para a televisão, por
que se capilariza na contingencialidade é exemplo. Seria preciso um movimento, um
sorvida como uma necessidade fundamen- acabamento cênico que desafiasse a voz e
tal da alma humana em todas as coisas. Há, a palavra, mas que é incompatível com o
portanto, uma imagem da justiça que se aprofundamento na recuperação da cena
constrói num campo da sociedade e que, original do conflito pela testemunha. Na
com a força de um verbo agonal, se espalha maioria das vezes, a revelação bombásti-
nos espaços da ampla visibilidade. ca não vem. A história é capturada com
Os juízes, porém, não lidam com essa lentidão em minúcias sutis e nem sempre
justiça propriamente, em sentido bruto, esclarecedoras de forma isolada. Tudo só

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se resolve pela interpretação do juiz con- reais eram destruídos, detonados. Tudo
densada no texto da sentença. isso, porém, deve ser apurado com sua-
A imitação da cena vivida não tem nor- vidade, com concentração, para afastar a
malmente as cores ou a dinâmica que pode- possibilidade de assustar a prova, de fazê-la
ria atrair e manter a atenção do público. evanescer-se.
A própria forma é tediosa. As perguntas Quem abre os jornais encontra a perple-
propostas ao juiz pelo advogado são repe- xidade em várias das notícias cujo dilema
tidas e as respostas dadas são novamente é definir o que aconteceu. Quando, onde,
repetidas para o digitador. Há um excesso como, para que, por que aconteceu? As
verbal que seria impensável como lingua- conjecturas que se espalham na imprensa
gem televisiva. Um diretor que se encar- nem sempre partem da visibilidade integral
regasse dessas cenas certamente imporia dos dados. E a imaginação pode-se afastar
a pergunta feita diretamente e com uma da verdade, porque os meios de se chegar
entonação que tivesse mais dramaticidade a ela não são dados ou previstos de forma
do que aquela que a técnica exige. taxativa. Variam a cada circunstância. Não
Há muito a se pesquisar sobre a interfe- se pode, por isso, esperar que a narrativa
rência desses processos de transposição de do efetivamente ocorrido se resolva sempre
aparência e de imagem no que concerne às pela confissão.
audiências das CPIs. A pessoa que inquire O desejo de que aquele que cometeu o
a testemunha não pode sobrepor sua perso- ilícito o declare prolifera-se na idéia de jus-
nalidade ou imagem à dela e as perguntas tiça que perpassa as ruas. Não há dúvida de
não podem ser aleatórias. Devem ser o que a confissão é o processo que traz mais
produto de um domínio da prova ou dos alívio à consciência dos que têm que julgar.
indícios até ali construídos e devem condu- Ela torna certos os elementos fáticos. No
zir ao aproveitamento de circunstâncias às entanto, trata-se de prova apenas espora-
vezes minúsculas para um descortino dos dicamente presente. E a exposição dos fatos
fatos. A verdade nem sempre se apresenta tem que se valer de outros métodos, para os
com nitidez e a contradição pode compor quais a visibilidade da mídia é um ângulo
um quadro de indícios em que ela só se problemático, porque normalmente não se
revela se houver tranqüilidade para exer- demonstram por inteiro de forma precisa.
citar o que os realistas americanos chamam Cria-se, então, uma versão de verdade
de hunch, que é um somatório do domínio que é digerida pelo público como sendo
de uma técnica consolidada pela prática absoluta e inquestionável pelo só fato de
do ofício e do palpite que vem da intuição sua exposição. Pode dar-se o julgamento e
voltada para a percepção dos aspectos a condenação imediatos e os princípios do
relevantes. Uma palavra inusitada num contraditório e da ampla defesa transfor-
certo contexto pode constituir uma gíria, mam-se em palavras ocas.
usada para reproduzir uma prática (ilícita) Edelman fala do mundo posterior à foto-
da empresa. Apurou-se, numa certa instru- grafia, em que a imagem parece apropriada
ção, o uso do verbo detonar para sinalizar e dominada para sempre. Vê os percalços
a modificação no sistema dos registros de de um direito que registre o sonho ocidental
ponto eletrônico. A coincidência do uso da “mais incômodo, mais improvável, mas ex-
palavra por todas as testemunhas trazidas travagante”: “fazer do homem a criatura do
pelo empregado e o constrangimento da mundo, o grande demiurgo”. E continua,
testemunha da empresa (que era o geren- referindo-se à história que começa com o
te), associados a outras sutilezas da prova, nascimento da fotografia:
levaram à convicção de que os registros “Nessa história de aparência tão ínfi-
não correspondiam à realidade. Os dados ma, minúscula, joga-se, na realidade,

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com a apropriação do mundo pela e não o iletrado’. Mas não será pra-
técnica, sua subserviência a uma má- ticamente um analfabeto o fotógrafo
quina – a máquina fotográfica – que que não sabe ler as suas próprias
transformará num prolongamento do fotografias? Não se tornará a legenda
sujeito. No fim das contas, a técnica parte essencial da fotografia?”
será subjetivada e o sujeito tecnici- As legendas são interpolações do fato
zado; e é por essa dupla mutação, fotografado como as decisões judiciais
registrada pelo direito, que o homem legendam a perspectiva como os fatos
se transformará, não em senhor da vêm na prova. Não é por outra razão que
natureza, mas de sua representação”. Jerome Frank (1973, p. 22), o controvertido
(EDELMAN, 2007, p. 162-163) juiz e pensador americano, diz que juízes
Annie Leibovitz (apud GUILLOT, 2008, são meras testemunhas do testemunho das
p. 3), conhecida fotógrafa das estrelas, que testemunhas10. Jornalistas também.
“imortalizou todos os que contam no pla- A fotografia e mesmo as expressões
neta, sejam políticos, esportistas, atores, em vídeo trouxeram o hábito da imagem
cantores ou empresários”, fala sobre como o reduzida, congelada, segmentada, editada.
trabalho com a fotografia serviu de consolo O que se vê é um corte escolhido pelo intér-
num momento de sofrimento pessoal: prete, uma forma como ele quer que o mun-
“Sua emoção é visível mas se re- do seja visto. O juiz opera o mesmo corte
compõe rapidamente. Fotografou restritivo quando secciona os fatos na reda-
celebridades demais para se deixar ção da sentença. Em ambas as situações, a
levar pela ilusão das imagens. ‘Você responsabilidade reside em saber ler, em
sabe, são apenas fotos. Fabrico uma saber relatar o que ler e, principalmente,
história. Mas não é a vida’”. em atingir a coincidência entre a imagem
O problema persiste: como descobrir a e a vida. Em não criar uma ilusão.
vida, a verdadeira vida? Como reduzi-la Nos romances policiais, os detetives
a uma imagem? Como não fabricar uma descobrem a verdade silenciosamente11. O
história e instrumentalizar a injustiça? criminoso só reconhece a autoria do crime
O tema já fora posto por Walter Benja- quando confrontado com um quadro de
min (2006, p. 261), a propósito das compara- provas e de indícios tão bem engendra-
ções de fotografias com o local do crime: do que lhe tira o argumento. O detetive,
“É aí que deve entrar a legenda escri- portanto, não pode ser impaciente. Nem o
ta, que inclui a fotografia no âmbito leitor. Não vale olhar o fim do livro antes de
da literalização de todas as condições passar pela história toda, página a página.
de vida, e sem a qual toda a cons- A literatura diz algo sobre a experiência no
trução fotográfica está condenada a processo de produção de prova. Na vida
permanecer no limbo impreciso. (...) real, se o jornalista, o delegado, o promotor
Mas não será cada canto das nossas ou o juiz não têm paciência na detecção dos
cidades um local do crime? Não
será cada um de seus transeuntes 10
“Trial judges and juries, in trying to get at the
um criminoso? E não será função past facts through the witness, are themselves witness
of what goes in the court-rooms”.
do fotógrafo – sucessor de áugures 11
O mesmo acontece nos seriados que cuidam
e arúspices – revelar a culpa nas da investigação de fatos. Aliás, na sua construção
suas fotografias e apontar a dedo os dramática, os paradoxos entre a exibição da mídia e
culpados? ‘O analfabeto do futuro’, a reconstrução do quadro de fato são elementos cons-
tantemente explorados numa interiorização de uma
disse alguém [Baudelaire, no ensaio metalinguagem que digere a linguagem do sistema
O público moderno e a fotografia], ‘será e o devolve em expressão cenográfica, em linha de
aquele que não sabe ler as fotografias, tensão teatralizada.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 111


fatos, pode fazer mais uma vítima: aquele o caminho para o indício, que não basta em
que é acusado injustamente. si, mas abre a visão de linhas de investiga-
Os jornais andam cheios desses riscos ção para pontos mais certeiros que, com
pela necessidade da informação imediata. a exploração de documentos, de perícia e
Os tribunais andam cheios desses riscos mesmo de testemunhas (cuja inquirição já
pela necessidade de compatibilizar rapidez parte de uma composição de vestígio que
com certeza e por uma recalcitrância no facilita a montagem das perguntas), podem
uso de meios eficazes de gestão dos pro- fixar a certeza de forma mais clara.
cessos. Não se pode admitir, porém, que o Não se pode, porém, imaginar que o
imediatismo e a urgência artificiais cubram resultado das escutas corresponda a uma
de medo a vida das pessoas. Ainda que a prova em si, que possa ser isolada do con-
omissão e a inércia não devam prevalecer, texto, até porque o excesso pode desquali-
é preciso a consciência de que os processos ficar o processo e a sua banalização, sem o
para jornalistas e juízes não podem transitar aprofundamento da pesquisa probatória
no jogo fácil da superficialidade. A verdade (que demanda tempo e cautela), pode levar
não é apenas o que alguém disse de outrem. à injustiça e/ou à ineficiência.
Ela implica a análise minuciosa de prova e a A manchete do jornal pode dar uma
prospecção de certeza que, geralmente, não idéia da estatura dos fatos:
se abre com a facilidade desejável. Implica “País já perdeu o controle dos gram-
o relato explícito dos fatos e da técnica que pos judiciais: Mais de 33 mil linhas
circunscreve a aplicação da lei. A análise é são legalmente grampeadas a cada
da minúcia, do detalhe, interpretado em mês”12.
seara de sucessivas correlações. Do ponto de vista do jornalismo e de
Um dos pontos sensíveis nesse processo sua expressão, esses meios de prova podem
na atualidade brasileira diz respeito às escu- ter um interesse a mais. É fácil reproduzir
tas telefônicas. A impressão que se tem é de a conversa telefônica, não só porque ela é
que se estaria diante da prova de máxima mais ligeira como montagem informativa
qualidade, porque a tecnologia permitiria do que uma pesquisa aprofundada de pro-
colher a manifestação da parte em sua es- va, como porque, do ponto de vista do ima-
pontaneidade absoluta. Na fonte. Por isso, a ginário coletivo, ela propicia padrões mais
expressão verbal assim registrada tenderia imediatos para o entendimento: a idéia de
a superar a fragilidade do depoimento, em um reality show e da pesquisa pela presen-
que pode haver preparação. A sensação, ça direta onde os fatos estão acontecendo
portanto, é de que essa prova teria a força constituem atrativos em tempos de sensa-
definidora de um exame de DNA. ção de domínio integral da informação.
Há algo efetivamente em comum entre O perigo é a perda do distanciamento
eles: a existência de um desenvolvimento e, principalmente, a perda da dimensão
tecnológico que permite a invasão do que exata dos fatos.
não se mostra a olho nu. Se o exame de A pesquisa do indício é necessária em
DNA invade a história da genética do sujei- relação àquele que fala, mas é uma exigên-
to, de sua conformação familiar mais remo- cia definitiva quando a conversa versar um
ta, a escuta invade sua intimidade e penetra terceiro. Sobre ele pode não se estar falando
no pensamento exposto sem reserva, na a verdade, apenas para incriminá-lo ou lan-
manifestação coberta da naturalidade da çar dúvida. Aquele que decodifica a escuta
fala cotidiana. telefônica é também o intérprete. Isso torna
No entanto, no exame de DNA, a ciên- assimilável a nota que saiu no jornal. Des-
cia permite a reconstrução do fato em sua
substância e, na escuta telefônica, forma-se 12
O Globo, domingo, dia 13 de julho de 2008, p. 1.

112 Revista de Informação Legislativa


confiados de uma escuta que falava de uma ao outro e da certeza de seu padecimento.
fábrica de biscoitos, policiais se dirigiram Quando os canais formais de construção
ao local certos de que encontrariam uma da sanção não atuam adequadamente,
instalação para refino de cocaína. Encon- tem-se a contribuição do próprio Estado
traram uma fábrica de biscoitos mesmo. para a ruptura de seu papel de mediador.
Nem sempre se conversa com códigos. E A sanção, por isso, passa a ser o foco de
é isso que faz com que o sigilo nas investi- atenção dominante para a interação entre
gações e o necessário confronto com outros o direito e os fatos. E, se ela não funciona
elementos de prova sejam essenciais para a adequadamente, a idéia de vingança re-
aferição dos fatos com a imprescindível se- torna à cena.
gurança. As razões para isso não se situam Ricoeur (Idem, p. 199), ainda uma vez,
no interesse individual dos eventualmente vê nela uma parte de um processo de recu-
envolvidos. Há um interesse público que peração da auto-estima:
abrange a ordem social como um todo, “A punição restabelece a ordem; ela
como integrante da visão do processo no não recupera a vida. Essas observa-
Estado de Direito, cujo objetivo, segundo ções desabusadas convidam a acentu-
Ricouer (1995, p. 195), é estabelecer ar o significado moral da sanção (...).
“uma justa distância entre o conflito A vítima é reconhecida publicamente
que libera a cólera privada e pública como o ofendido ou o humilhado, isto
e a punição infligida pela autoridade é, excluído do regime de reciproci-
judiciária. Enquanto a vingança faz dade por aquele que faz do crime a
curto-circuito entre dois sofrimentos, instauração de uma injusta distância.
aquele a que se submete a vítima (...) Pode-se dizer aqui que algo é
e aquele infligido pelo vingador, o restaurado sob o nome tão diverso
processo se interpõe entre os dois, quanto felicidade, boa reputação, o
instituindo a justa distância a que nos respeito por si próprio e, gostaria de
referimos”. insistir no termo, a auto-estima, ou
A técnica visa, então, a compor e impor seja, a dignidade ligada à qualidade
essa justa distância entre as partes, tomando moral da pessoa humana”.
a si a idéia de vingança. Esse alimpamento A sanção adquiriu, sob a capa protetora
formal, essa assepsia de efeitos não são do processo, a forma da pena, da indeniza-
vistos com naturalidade na exposição pú- ção, da execução forçada. No entanto, a so-
blica do direito. Os meios de comunicação ciedade da plena informação instala a san-
de massa não conseguem, em sua maioria, ção pela exposição. A visibilidade daquele
extrair do detalhamento do processo e de que se acusa implica, no curso do processo
suas irrupções técnicas esse sentido peda- mesmo da acusação, a destruição de toda
gógico em relação à recomposição da paz a dignidade pessoal, pela esgarçamento de
social. sua realidade pessoal e pela banalização
A dificuldade disso é agravada pelo fato de sua imagem. A ausência de dilação
de o processo em si não funcionar como se temporal entre os efeitos da exposição da
desejaria. Questões como a morosidade, imagem de alguém e o esboroamento de
os entraves de uma burocracia assentada e sua posição em relação à intensidade da
incompreensível, o uso de uma linguagem acusação implicam uma imediatidade de
técnica e absolutamente hermética são fato- efeitos que afasta qualquer seletividade
res que contribuem para que haja por trás ou identificação de um processo peculiar
de todas as manifestações da imprensa uma de execução.
parcela desse desejo de vingar, de superar Nada, porém, é simples. Conter os
o conflito a partir do sofrimento imposto meios de comunicação, cercear ou controlar

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 113


a sua tendência à expansão permanente é BENJAMIN, Walter. A modernidade. João Barrento
censurá-los. Estabelecer regras rígidas será Tradução e organização de Lisboa: Assírio & Alvim,
2006.
agregar mais complexidade ao processo,
sendo sabido que qualquer preceito regu- CALVO, José. Derecho y narración: materiales para una
lador tenderá a uma textura de tal modo teoría y crítica narrativística del derecho. Barcelona:
Ariel, 1996.
aberta ou principiológica que suscitará, ele
próprio, a conformação interpretativa. ECO, Umberto. Cinco escritos morais. Tradução de Elia-
na Aguiar (Trad.). 2 ed. Rio de Janeiro: Record, 1998.
A saída talvez esteja na insistência
em abrir os olhos para a possibilidade de EDELMAN, Bernard. Quand les juristes inventent le réel:
conhecer como um processo infinito. Duvi- la fabulation juridique. Paris: Hermann, 2007.
dar, dialogar, criticar, mostrar, expor: com o FRANK, Jerome. Courts on trial: myth and reality in
dedo tocando na ferida, em todas elas. american justice. Princeton University, 1973.
Em vez da representação, o direito deve GEBAUER, Gunter, WULF, Christoph. Mimésis: cul-
buscar ser o que é: na simplicidade dos ture, art, societé. Paris : Les édition du Cerf, 2005.
fundamentos. Isso se aplica aos que o pro- GUILLOT, Claire. São apenas fotos, não a vida. Folha
duzem com o domínio da técnica e àqueles de São Paulo, Caderno Mais! p. 3, 29 jun. 2008.
que fazem dele notícia. Juízes produzem
KUNCZIK, Michael. Conceitos de jornalismo: norte e
decisões. Jornalistas produzem notícia. E sul. Tradução de Rafael Varela Jr. 2 ed. São Paulo:
ambos podem cometer a injustiça se não Edusp, 2002.
têm paciência para fazer as perguntas certas
KURZ, Robert. O estágio final da evolução intelectual
ao passado e procurar a resposta para além moderna será uma macaqueação de nossas mais tri-
da impressão imediata ou da representação viais ações por máquinas? a ignorância da sociedade
pura e simples do ser. E ambos podem se do conhecimento. Tradução de Marcelo Rondinelli. Fo-
transformar em fábricas de realidade, podem lha de São Paulo, Caderno Mais! p. 12-3, 13 jan. 2002.
inventar a realidade na composição do ro- LAÉ, Jean-François. L´ogre du jugement. Paris: Stock,
mance interminável que acompanha todas 2001.
as mutações, todas as utopias, todos os fan- LIPPENS, Ronnie (Org.). Imaginary boundaries of justice:
tasmas, todos os sonhos, todos os conflitos. social and legal Justice across disciplines. Oxford:
Por trás das decisões e das notícias estão as Hart, 2004.
pessoas e somos fundamentalmente iguais LUHMANN, Niklas. Social systems. Tradução de
nas rupturas e nos perigos da vida. Temos John Bednarz Jr. e Dirk Baecker. Stanford University,
que cuidar para que ninguém padeça 1996.
da marca indelével da injustiça. Porque MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a
cometê-la é o pior dos vícios, como anteviu fundamentação do direito. São Paulo: Max Limonad,
Sócrates na ancestralidade do pensamento 2001.
ocidental. NIETO, Alejandro. Balada de la justicia y la ley. Madrid:
Trotta, 2002.
RICOUER, Paul. Le juste 1. Paris: Esprit, 1995.
Referências SCHMITT, Carl. La dictadura desde los comienzos del
pensamiento moderno de la soberanía hasta la lucha de
ARISTÓTELES. Ética a Monarcômaco. Tradução de clases proletaria. Tradução de José Díaz García. Madrid:
Edson Bini. Bauru, SP: EDIPRO, 2002. Alianza, 1999.

114 Revista de Informação Legislativa


A dimensão econômica do meio ambiente
A riqueza dos recursos naturais como direito do homem
presente e futuro

Paulo José Leite Farias

Sumário
1. As dimensões (gerações) dos direitos
fundamentais e o fenômeno econômico. 1.1.
Dimensões dos direitos fundamentais. 1.2.
Direitos fundamentais de terceira dimensão.
2. Correlação entre os sistemas econômicos
e as dimensões de direitos fundamentais.
2.1. O liberalismo e os direitos de primeira
geração. 2.2. O intervencionismo e os direitos
de segunda geração. 2.3. O neoliberalismo, a
globalização e os direitos de terceira geração.
3. O meio ambiente e sua vinculação jurídica
aos sistemas econômicos. 3.1. O princípio da
defesa do meio ambiente como mecanismo
conformador da ordem econômica. 3.2. O
desenvolvimen to sustentável como ética de
desenvolvimento com a harmonização do
econômico e do ecológico. 4. Economia do
meio ambiente: busca da incorporação das
externalidades ambientais. 4.1. Crescimento
econômico e degradação ambiental: propostas
de conciliação. 4.2. Economia ambiental. 5. Uso
de instrumentos econômicos nas políticas am-
bientais: integração do jurídico e do econômico.
5.1. Instrumentos econômicos: introdução. 5.2.
Instrumentos econômicos na forma de incenti-
vos estatais. 5.3. Instrumentos econômicos na
forma de onerações estatais.

“Precisamos cuidar do mundo que não


Paulo José Leite Farias é Promotor de Justiça, veremos”
Mestre em Direito e Estado pela UnB, Doutor em Bertrand Russel
Direito pela UFPE, Pós-Doutor pela Universidade­ “Há boas razões para proteger a Terra. É o
de Boston (EUA). Engenheiro Civil pela UnB. modo mais seguro e correto de prolongar a
Analista de Sistemas pela UCB. Professor de lucratividade”
Direito Ambiental no IDP, IESB e POSEAD. Paul Allaire

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 115


1. As dimensões (gerações) dos direitos Ressaltando o registro histórico na pró-
fundamentais e o fenômeno econômico pria conceituação dos direitos humanos,
Antônio Enrique Perez Luño (1990, p. 48)
1.1. Dimensões dos direitos fundamentais ensina que os direitos humanos são:
“Un conjunto de facultades e institu-
Conforme assinala Ingo Sarlet (2001, p. ciones que, en cada momento histórico,
48), desde que ocorreu a positivação dos concretan las exigencias de la dignidad, la
direitos humanos nas Constituições, estes liberdad y la igualdad humanas, las cua-
passaram por diversas transformações, les deben ser reconocidas positivamente
tanto no que se refere ao conteúdo, quanto por los ordenamientos jurídicos a nivel
no que concerne à sua titularidade, eficácia nacional e internacional.”
e efetivação.1 No mesmo diapasão, Bobbio (1992, p. 5)
Assim, os direitos fundamentais estão defende que os direitos fundamentais são
marcados por autêntico devir, não obstante direitos históricos, ao afirmar que:
se vinculem a núcleo unificador de proteção “Do ponto de vista teórico, sempre
da dignidade da pessoa humana. defendi – e continuo a defender,
A classificação dos direitos fundamen- fortalecido por novos argumentos –
tais, no âmbito da doutrina nacional, retrata que os direitos do homem, por mais
a noção de existência das novas facetas da fundamentais que sejam, são direitos
dignidade da pessoa humana, que preocu- históricos, ou seja, nascidos em certas
pa renomados autores, na busca de uma circunstâncias, caracterizadas por
classificação dos direitos fundamentais. lutas em defesa de novas liberdades
Assim, José Luiz Quadros de Magalhães contra velhos poderes, e nascidos de
(1992, p. 20-21) classifica os direitos funda- modo gradual, não todos de uma vez
mentais em: direitos individuais, sociais, e nem de uma vez por todas.”
econômicos e políticos. Segundo Jellinek, pelo fato de ser mem-
No contexto doutrinário relativo à bro do Estado, o indivíduo trava, ao longo
classificação dos direitos fundamentais, do tempo, com este, pluralidade de relações
destaca-se a teoria dos quatro status de denominadas “status”, razão pela qual
Georg Jellinek. Essa teoria, para Robert a teoria de Jellinek é, também, chamada
Alexy (1993, p. 261) constitui-se em “el “Teoria dos Quatro Status”.
ejemplo más grandioso de una teorización A primeira relação em que se encontra
analítica en el ámbito de los derechos fun- o indivíduo é a de subordinação ao Estado.
damentales”. Essa é a esfera dos deveres individuais e
Ademais, conforme anota Jorge Miran- corresponde ao status passivo.
da (1991, p. 85), a classificação de Jellinek A segunda relação, o status negativus,
corresponde aproximadamente ao processo corresponde à esfera de liberdade na qual
histórico de afirmação da pessoa humana e de os interesses essencialmente individuais
seus direitos. encontram sua satisfação. É, pois, esfera de
liberdade individual, cujas ações são livres
1
“Desde o seu reconhecimento nas primeiras porque não estão ordenadas ou proibidas,
Constituições, os direitos fundamentais passaram por
diversas transformações, tanto no que diz com o seu
vale dizer: tanto sua omissão como sua
conteúdo, quanto no que concerne à sua titularidade, realização estão permitidas (ALEXY, 1993,
eficácia e efetivação. Costuma-se, neste contexto mar- p. 251).
cado pela autêntica mutação histórica experimentada A terceira relação resulta do fato de que
pelos direitos fundamentais, falar da existência de
três gerações de direitos, havendo, inclusive, quem
a atividade estatal é realizada no interesse
defenda a existência de uma quarta geração”. (SAR- dos cidadãos, status positivus. E, para o
LET, 2001, p. 48). cumprimento de suas tarefas, o Estado

116 Revista de Informação Legislativa


tem obrigação de exercer determinadas linear dos direitos civis do século XVIII
tarefas. No dizer de Paulo Bonavides (1996, (direitos de primeira geração, direitos de
p. 518), “dominam o século XX do mesmo liberdade), em um primeiro momento; aos
modo como os direitos da primeira geração direitos políticos do século XIX, em um
dominaram o século passado (...) Nasceram segundo momento; aos direitos sociais
abraçados ao princípio da igualdade, do (direitos de segunda geração) no século XX,
qual não se podem separar, pois fazê-lo em um terceiro momento (MARSHALL,
equivaleria a desmembrá-los da razão de 1967, p. 75).
ser que os ampara e estimula”.
A quarta e última relação decorre da 1.2. Direitos fundamentais de
circunstância de que a atividade estatal terceira dimensão
só se torna possível por meio da ação dos Os direitos fundamentais da terceira
cidadãos. dimensão centram-se no fato de os ho-
Assim, com base na exposição de Jelli- mens estarem ligados entre si. A figura do
nek, os direitos fundamentais classificam- homem–indivíduo fica em segundo plano
se em direitos de defesa, direitos a prestações ressaltando-se a humanidade (homens
e direitos de participação, correspondendo, vistos como um todo), razão por que são
respectivamente, aos status negativo, po- conhecidos como direitos de fraternidade,
sitivo e ativo. solidariedade ou direitos de titulariedade
Sob esse enfoque, mencionam-se a clas- difusa ou coletiva.3
sificação de Jellinek e a classificação das di- A doutrina qualifica-os como direitos dos
mensões ou gerações de direitos fundamen- povos. Essa classe de direitos tem por desti-
tais, o que ressalta uma certa congruência natário, mais do que o indivíduo, um grupo
no agrupamento dos direitos fundamentais ou determinado Estado, o gênero humano
ao longo do processo histórico.2 mesmo, engendrando o direito ao ambien-
Outro autor que tratou mais recen- te, o direito ao desenvolvimento, o direito à
temente das dimensões temporais da autodeterminação, o direito à participação
cidadania e dos direitos fundamentais foi no patrimônio da humanidade.4
o economista inglês T. H. Marshall, que Para Ingo Sarlet (2001, p. 53), verbis:
defende vinculação histórica racional e
3
“Os direitos fundamentais da terceira dimensão,
2
“Em que pese o dissídio na esfera terminológica, também denominados de direitos de fraternidade
verifica-se crescente convergência de opiniões no que ou de solidariedade, trazem como nota distintiva o
concerne à idéia que norteia a concepção das três (ou fato de se desprenderem, em princípio, da figura do
quatro, se assim preferirmos) dimensões dos direitos homem-indivíduo como seu titular, destinando-se à
fundamentais, no sentido de que estes, tendo tido sua proteção de grupos humanos (família, povo, nação),
trajetória existencial inaugurada com o reconhecimen- e caracterizando-se, conseqüentemente, como direitos
to formal nas primeiras Constituições escritas dos clás- de titularidade coletiva ou difusa”. (SARLET, 2001,
sicos direitos de matriz liberal-burguesa, encontram-se p. 52).
em constante processo de transformação, culminando 4
“Em termos apertados, os direitos de primeira
com a recepção, nos catálogos constitucionais e na geração relacionam-se com o liberalismo e correspon-
seara do Direito Internacional, de múltiplas e diferen- dem aos direitos de liberdade, aos direitos individuais,
ciadas posições jurídicas, cujo conteúdo é tão variável aos direitos negativos; a segunda geração de direitos
quanto as transformações ocorridas na realidade social, relaciona-se com a social-democracia do fim do século
política, cultural e econômica no longo dos tempos. Assim XIX, correspondendo aos direitos sociais, econômicos
sendo, a teoria dimensional dos direitos fundamentais e culturais; direitos a prestações do Estado, direitos à
não aponta, tão-somente, para o caráter cumulativo do igualdade social e direitos positivos; a terceira geração
processo evolutivo e para a natureza complementar de de direitos surge a partir da consciência de um mundo
todos os direitos fundamentais, mas afirma, para além partido entre nações desenvolvidas e subdesenvol-
disso, sua unidade e indivisibilidade no contexto do vidas, que exige a fraternidade, para a proteção do
direito constitucional interno e, de modo especial, na gênero humano, correspondendo ao meio ambiente,
esfera do moderno Direito Internacional dos Direitos ao desenvolvimento, à paz, ao patrimônio comum da
Humanos” (SARLET, 2001, p. 49 e 50, grifo nosso). humanidade”. (BONAVIDES, 1996, p. 516-524).

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 117


“A nota distintiva destes direitos da Bobbio (1992, p. 6), por sua vez, evita
terceira dimensão reside basicamente definir o que seja “direito de 3a geração”, na
na sua titularidade coletiva, muitas falta de elementos conceituais seguros que
vezes indefinida e indeterminável, permitam formular uma teoria adequada
o que se revela, a título de exemplo, para sua compreensão:
especialmente no direito ao meio “Ao lado dos direitos sociais, que fo-
ambiente e qualidade de vida, o ram chamados de direitos de segunda
qual, em que pese ficar preservada geração, emergiram hoje os chama-
sua dimensão individual, reclama dos direitos de terceira geração, que
novas técnicas de garantia e prote- constituem uma categoria, para dizer
ção. A atribuição da titularidade de a verdade, ainda excessivamente he-
direitos fundamentais ao próprio terogênea e vaga, o que nos impede
Estado e à Nação (direitos à autode- de compreender do que efetivamente
terminação, paz e desenvolvimento) se trata. O mais importante deles é
tem suscitado sérias dúvidas no que o reivindicado pelos movimentos
concerne à própria qualificação de ecológicos: o direito de viver num
grande parte destas reivindicações ambiente não poluído.”
como autênticos direitos fundamen- Por outro lado, Celso Lafer (1988, p.
tais. Compreende-se, portanto, por 132) destaca a titularidade como principal
que os direitos da terceira dimensão elemento diferenciador dessa dimensão de
são denominados usualmente como direitos, verbis:
direitos de solidariedade ou frater- “Os direitos reconhecidos como do
nidade, de modo especial em face homem na sua singularidade – sejam
de sua implicação universal ou, no eles os de primeira ou de segunda
mínimo, transindividual, e por exi- geração – têm titularidade inequí-
girem esforços e responsabilidades voca: o indivíduo. Entretanto, na
em escala até mesmo mundial para passagem de uma titularidade indi-
sua efetivação.” vidual para uma coletiva, que carac-
Trata-se de direitos transindividuais, teriza os direitos de terceira e quarta
que não pertencem a uma pessoa determi- geração, podem surgir dilemas no
nada5 nem a um grupo claramente delimi- relacionamento entre o indivíduo e
tado, como ocorre, por exemplo, com os a coletividade que exacerbam a con-
trabalhadores que são titulares de direitos tradição, ao invés de afirmar a com-
coletivos, mas não direitos difundidos, es- plementaridade do todo e da parte.
parramados por toda a sociedade como o Estes dilemas provêm, em primeiro
direito ao ar puro. Direitos que, não sendo, lugar, da multiplicidade infinita dos
isoladamente, de um único indivíduo, são grupos que podem sobrepor-se uns
de todos, de uma pluralidade de sujeitos. aos outros, o que traz uma difusa e
Para Ricardo Lobo Torres (1999, p. 297), potencial imprecisão em matéria de
podem ser caracterizados, também, pelo titularidade coletiva – basta pensar
fato de possuírem tanto um status negativus na criança, na família, na mulher, nos
como um status positivus. trabalhadores, nas minorias étnicas,
religiosas, lingüísticas e sexuais.”
5
Como afirma Jorge Miranda (1993, p. 66): “Não Associam-se, também, a esses direitos
pode dizer-se que quem quer que seja possua um de terceira geração novas facetas da pro-
único, genérico e indiscriminado direito à proteção do
patrimônio monumental, ou ao controle da poluição
teção da vida, em um sentido amplo de
ou da erosão, ou à salubridade pública, ou a uma rede qualidade de vida, que se originam dos
de transportes, etc”. impactos da sociedade industrial e da tec-

118 Revista de Informação Legislativa


nologia do fim do século XX. Assim, Sarlet “Assim, o conteúdo dos direitos di-
(2001, p. 53) assinala: fusos são de duas ordens:
“Cuida-se, na verdade, do resultado I) o direito à vida no seu aspecto qua-
de novas reivindicações funda- litativo ou, sinteticamente, de um di-
mentais do ser humano, geradas, reito à qualidade de vida, expresso no
dentre outros fatores, pelo impacto sacrifício de vantagens econômicas
tecnológico, pelo estado crônico de imediatistas em nome da preservação
beligerância, bem como pelo pro- de determinados valores, tais como o
cesso de descolonização do segundo ambiente natural, espaços culturais
pós-guerra e suas contundentes (históricos, estéticos, etc.), disponí-
conseqüências, acarretando profun- veis para essas e futuras gerações, e
dos reflexos na esfera dos direitos II) o direito à integração social me-
fundamentais.” diante o devido reconhecimento
Mafra Leal (1998, p. 103) busca distin- jurídico e político, referindo-se a
guir os direitos de terceira geração por meio titularidade a grupos de indivíduos
do termo “qualidade de vida” (igualdade dispersos ou organizados, unidos por
vista como direito à integração e da inexis- alguma circunstância fática ou por
tência de um conteúdo patrimonial predo- afinidades étnicas, sociais, de gênero
minante em contraste com os de primeira e ou origem, entre outras, que reivin-
segunda geração): dicam tratamento digno por parte
“Os movimentos sociais da classe da lei, ainda que isso signifique a
trabalhadora visaram a garantir uma afirmação de uma identidade especial
maior igualdade econômica ou pelo não assimilável ao valor de igualdade
menos mitigar a desigualdade exis- universal.” (MAFRA LEAL, 1998, p.
tente entre o proletariado e os pro- 104-105)
prietários. Ou seja, também a questão Logo, fica bem caracterizada nesses
centra-se em aspectos econômicos direitos a presença marcante do elemento
(melhores salários, prestações gratui- econômico que deverá ser valorado com
tas do Estado nos campos da saúde outro elemento, como ocorre, por exemplo,
e educação, direito de aposentadoria, na preservação ambiental.
entre outros).” A característica de vinculação dos di-
“O conteúdo dos direitos difusos não reitos de solidariedade à tecnologia e ao
garantem propriedade ou liberdade processo de descolonização surgido após
econômica, nem implicam mitigação a segunda guerra mundial aproxima os
de desigualdades nesse campo. Os direitos de terceira geração do neolibera-
direitos difusos têm conteúdo não- lismo. Esse sistema econômico se desen-
patrimonial e tratam de dois aspectos volve graças aos avanços tecnológicos da
fundamentais: qualidade de vida e informática e das telecomunicações, bem
uma concepção de igualdade vista como em razão da ampliação de mercados
como direito à integração, baseada surgida após a segunda guerra mundial e
em aspectos participativos nas várias consolidada com o fim da guerra fria.
esferas da vida social.” Outro aspecto relevante desses direitos
Não obstante a colocação de que tais relaciona-se com a noção de solidariedade
direitos têm conteúdo não-patrimonial, o intergeracional. Direitos dos povos como o
próprio autor reconhece que há um envol- direito à paz e ao desenvolvimento afetam
vimento desses direitos com o elemento não só as gerações de pessoas presentes,
econômico na tentativa de sacrificar vanta- mas também as gerações futuras. Possuem,
gens econômicas imediatistas, verbis: pois, dimensão temporal que os torna ainda

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 119


mais “anônimos”, no que se refere às suas homem–humanidade ressalta a solidariedade
titularidades. mundial dos direitos de terceira geração,
Preocupam-se tais direitos com os que destacando o “homem” como parte de
ainda não nasceram e cria-se liame entre um todo (a humanidade); a titularidade–
seres humanos que transcende o tempo anônima sublinha que “sendo de todos não
presente. Nesse conceito, encontra-se, por é de ninguém”; a existência–transgeracional
exemplo, a noção de desenvolvimento mostra-se revolucionária para a ciência
sustentável. jurídica ao permitir a titularidade de seres
Por fim, o subsídio legal corporificado ainda nem concebidos (que não são “pesso-
na Lei 7.347, de 24 de julho de 1985, alicerça as” juridicamente falando, numa dimensão
outros caracteres de cunho material com temporal-prospetiva); a qualidade-de-vida
reflexos processuais, bem resumidos na vislumbra aspirações humanas que trans-
visão de Benjamin (1996, p. 70-151): cendem a existência mínima de subsistência
“1. ‘a transindividualidade real ou e projetam o homem na infinita espiral de
essencial ampla’, quando o número melhoria de seu padrão de existência.
de pessoas ultrapassa a esfera de
atuação dos indivíduos isoladamen- 2. Correlação entre os sistemas econômicos
te considerados, para levá-la a uma e as dimensões de direitos fundamentais
dimensão coletiva. Outrossim, essa
transindividualidade real significa
2.1. O liberalismo e os direitos
dizer que a pluralidade de sujeitos
de primeira geração
chega ao ponto de se confundir, mui-
tas vezes, com a comunidade; As revoluções burguesas propiciaram
2. ‘a indeterminabilidade de seus a emergência do Estado Liberal, cuja
sujeitos’, isto é, as pessoas envolvidas preocupação maior era dar àqueles que
são substancialmente anônimas; controlavam a economia (os burgueses)
3. ‘a indivisibilidade ampla’, ou seja, ampla liberdade de exercerem suas atividades,
uma espécie de comunhão, tipificada sem estarem ameaçados por qualquer outro
pelo fato de que a satisfação de um só poder. Os liberais pregavam o respeito aos
implica a satisfação de todos; assim direitos individuais, mas, quanto ao mercado,
como a lesão da inteira coletividade; este deveria regular-se por si só.
4. ‘a indisponibilidade no campo re- Macridis (1982, p. 13)6, cientista político,
lacional jurídico’, por não dispor de ensina-nos, verbis:
titulares determináveis, apresenta di- “O indivíduo – suas experiências e
ficuldades em transigir de seu objeto seus interesses – é o conceito básico
no campo jurídico-relacional; associado à origem e crescimento do
5. ‘ressarcibilidade indireta’, quando liberalismo e das sociedades liberais.
não houver a reparabilidade direta O conhecimento e a verdade derivam
aos sujeitos individualmente consi- do raciocínio do indivíduo que, por
derados (levando em conta o caráter
‘anônimo’ dos sujeitos) e, sim, ao 6
No prefácio da obra Ideologias Políticas Contem-
porâneas, Macridis (1982) assinala que “as ideologias
fundo, para recuperação dos bens moldam as nossas motivações, as nossas atitudes e
lesados.” (Idem, p. 92-96) os regimes políticos sob os quais vivemos. Elas dão
Em resumo, os direitos fundamentais de formas a nossos valores”. Assim, esse autor ressalta
terceira geração podem ser caraterizados algo importantíssimo que se procura demonstrar neste
trabalho, qual seja a íntima relação entre “as ideologias”
por quatro palavras-chaves, a saber: homem– e os valores a serem por ela alcançados, seja na expres-
humanidade, titularidade–anônima, existência– são da forma de Estado (unitário e federado), seja na
transgeracional e qualidade-de-vida. O termo expressão de ideologias políticas como o liberalismo.

120 Revista de Informação Legislativa


sua vez, é formado pelas associações fundamentais no plano interno, com
que os seus sentidos fazem a respeito a globalização, querendo significar a
do mundo exterior, pela experiência livre circulação internacional de pro-
(...) dutos e fatores, a complementá-las no
O liberalismo é uma ética individu- plano internacional. (grifo nosso)”
alista pura e simples. Nas suas fases Evidencia-se, pois, que, no plano econô-
iniciais, o individualismo se expressa mico, podem-se visualizar, claramente, dois
em termos de direitos naturais – liber- sistemas econômicos que se contrapõem
dade e igualdade. Ele está embebido ao liberalismo com diferentes graus de
no pensamento moral e religioso, intervenção estatal: o intervencionismo em
mas já aparecem os primeiros sinais sentido estrito (economia de mercado com
de uma psicologia que considera os ajustes) e o socialismo (economia em que o
interesses materiais e a sua satisfação Estado é o proprietário exclusivo dos meios
como importantes na motivação do de produção).
indivíduo. Em sua segunda fase, o Assim, ao Estado Social, Estado pro-
liberalismo se baseia numa teoria psi- motor do bem-estar, já analisado ante-
cológica segundo a qual a realização riormente, correlacionam-se os sistemas
do interesse é a principal força que econômicos intervencionistas, enquanto
motiva os indivíduos (Idem, p. 37)”. ao Estado Liberal, Estado não intervencio-
Nesse sentido, os liberais exaltavam nista, correlaciona-se o sistema econômico
como valores básicos a serem defendidos: liberal.
o individualismo e as liberdades individuais Em resumo, nas duas formas, o Estado
como forma de desafio e limite ao poder intervém na economia, seja direta ou indi-
político do Estado. retamente.
Na época liberal, as poucas interven-
2.2. O intervencionismo e os ções diretas dos Estados na produção de
direitos de segunda geração bens e de serviços restringiam-se aos in-
Assim assinala Fábio Nusdeo (2000, p. vestimentos em infra-estrutura (SANTOS,
208-209), verbis: GONÇALVES, MARQUES, p. 165).
“Durante século e meio aproxima- Assim, as leis de mercado ocasionavam
damente, predominou a doutrina sérios efeitos negativos no campo social e
liberal-utilitarista, muito embora nos econômico. Não haveria forças automáticas
últimos 50 anos sob forte assédio do de mercado aptas para ajudar a economia a
socialismo coletivista. Entre os anos sair do subemprego e voltar a aproximar-se
20 e 30, ganha terreno a chamada do pleno emprego.
social-democracia ou intervencionismo, Ainda na década de 30, Keynes lança a
no mundo ocidental, enquanto na teoria revolucionária do déficit sistemático
Europa oriental e em algumas nações das contas públicas como mecanismo de
asiáticas ensaiava-se o regime de estímulo à atividade econômica em perío-
índole coletivista-estatal. Já a última dos recessivos.
década do século assiste a um refluir Conforme assinala Fábio Nusdeo (2000),
das soluções socializantes de diversas Keynes ilustrava a sua idéia com exemplo
vertentes, com o remontar da maré aparentemente estapafúrdio:
liberalista, voltada a conter o Estado “(...) se o governo numa época de
dentro de limites mais acanhados, depressão contratar duas equipes de
ao que se tem chamado de Estado operários, incumbindo a primeira de
mínimo. Privatização e desregulamen- abrir buracos e a segunda de fechá-los,
tação têm-se constituído em balizas isto parecerá inócuo e absurdo sob o

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ponto de vista físico, mas terá um sen- desse período, o crescimento do comércio
tido altamente salutar sob o ponto de mundial suplantou o crescimento da renda
vista econômico (macroeconômico). mundial, indicando que os países se estão,
Por quê? Pela simples razão de tanto crescentemente, especializando internacio-
os trabalhadores do primeiro grupo nalmente e utilizando o mercado mundial
quanto os do segundo passarem a para aumentar o nível de bem-estar e de cres-
receber algum salário a ser gasto em cimento econômico. Isso não significa que a
compras. Estas, por sua vez, estimula- ameaça protecionista tenha sido reduzida.
rão o comércio, que voltará a colocar Particularmente a partir dos anos 70, com
encomendas junto à indústria, a qual o aumento da participação dos países em
contratará empregados (ou deixará de desenvolvimento no comércio internacional,
despedi-los) para atendê-las e, ainda, os países ricos passaram a utilizar intensa-
comprará matérias-primas a serem mente as “restrições não tarifárias” para
transportadas e assim, sucessivamen- proteger suas indústrias da concorrência
te, as engrenagens da produção e do com os países emergentes. Intensificou-se a
emprego irão se reativando.” utilização das quotas de importação, de nor-
Keynes visualizou que o mercado de mas (técnicas, fitosanitárias, de qualidade,
forma pura pode ocasionar momentos meio ambiente e condições de trabalho), das
desconfortáveis para o sistema econômico restrições voluntárias à exportação e de leis
e social, na noção de “pleno emprego”, “su- comerciais para coibir a entrada de produtos
bemprego” e da necessidade de intervenção importados (SILVA, 2000, p. 11).
estatal, inclusive sem lastro econômico Além disso, a partir dos anos 70, houve
(“déficit sistemático das contas públicas). rápida transformação do mercado financeiro
A ação estatal de combate à recessão internacional, em função da desregulamen-
significou a intervenção do Estado na eco- tação das transações financeiras internacio-
nomia, com ênfase, em primeiro momento, nais e pelo aparecimento das tecnologias
na função de Estado-produtor e, também, de informação. À medida que o tempo foi
na de agente regulador (por exemplo: na passando, a legislação foi ficando cada vez
edição de legislação social garantidora dos mais liberal com relação à entrada e saída de
direitos trabalhistas e previdenciários). recursos financeiros, sendo que hoje prati-
Nesse contexto, os direitos de segunda camente não existem impedimentos legais à
geração podem ser vistos como reflexo da movimentação internacional de capitais nos
intervenção estatal na economia. principais mercados financeiros do mundo.
O desenvolvimento das tecnologias de infor-
2.3. O neoliberalismo, a globalização e os
direitos de terceira geração realizam a Conferência Monetária e Financeira In-
ternacional das Nações Unidas em Bretton Woods, no
O período pós-guerra presenciou con- Estado de New Hampshire, com a finalidade de estru-
tínua expansão dos mercados mundiais. O turar a ordem econômica internacional a vigorar no
comércio internacional, após longo período pós-guerra. Três entes foram criados, na ocasião, com
a finalidade de implantar a nova ordem econômica
de retração devido às duas guerras mundiais internacional e dar-lhe sustentação e viabilidade: o
e à grande crise de 1929, inicia fase de rápida Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Inter-
expansão, impulsionada pelo crescimento da nacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD)
renda mundial e pela liberalização comercial e o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT).
Ao GATT foi atribuída a responsabilidade de estabe-
negociada no âmbito do GATT (Acordo lecer as normas de controle do comércio mundial de
Geral de Tarifas e Comércio).7 Ao longo mercadorias, com a função precípua de zelar pelo livre
comércio entre as nações. Depois de vários anos de
7
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, os Es- árduas negociações, chegou-se à decisão de extinguir
tados Unidos, consolidando sua liderança nos países o GATT e substituí-lo, a partir de 1o de Janeiro de 1995,
capitalistas, e os outros países vencedores do conflito pela Organização Mundial de Comércio (OMC).

122 Revista de Informação Legislativa


mação (telecomunicações e microeletrônica) cada vez mais importantes no cenário mun-
possibilitou rápida redução dos custos das dial. A internacionalização do comércio,
transações financeiras internacionais e esses das finanças e da produção é o fenômeno
elementos contribuíram decisivamente para que hoje se conhece como globalização9 da
transformar o mercado financeiro no prin- economia mundial.10
cipal mercado internacional. Estima-se que Outra tendência recente na economia
atualmente o volume de transações cambiais mundial é a da proliferação de acordos
se situe na marca de US$ 1.5 trilhão por dia, regionais de comércio. Existem atualmente
com parcela predominante de aplicações quase uma centena de tais acordos e, den-
financeiras (PINHO, 1998, p. 479). tre eles, destacam-se: a União Européia,
A diversificação das aplicações finan- o NAFTA (Acordo de Livre Comércio da
ceiras em escala planetária mudou dras- América do Norte), o Bloco do Yen (Tigres
ticamente o regime cambial mundial. Até Asiáticos) e o Mercosul.11
1973, vigorava o regime “Padrão Dólar” (ou
regime de Bretton Woods8) de câmbio fixo, 3. O meio ambiente e sua vinculação
em que as principais moedas do mundo jurídica aos sistemas econômicos
conviviam em um regime de taxa de câmbio
nominal fixo. Com o aparecimento de uma
3.1. O princípio da defesa do meio
enorme mobilidade internacional, ficou cada
ambiente como mecanismo conformador
vez mais difícil manter o regime de câmbio
da ordem econômica
fixo e os principais países do mundo opta-
ram por regime de taxa de câmbio flutuante O princípio da propriedade privada
(em que a taxa de câmbio é determinada pelo assegurado como direito fundamental (art.
mercado, embora os bancos centrais também 5o, inciso XXIII da Constituição Federal)
intervenham nesse mercado). Dada a mobili-
dade de capital e a ausência de coordenação 9
Globalização não é um conceito unívoco. Para
José Eduardo Faria (1999, p. 59-60) é um conceito
macroeconômica entre os países desenvol-
plurívoco associado, geralmente, a uma nova econo-
vidos, tem sido grande a flutuação da taxa mia política das relações internacionais, caracterizada
de câmbio entre as principais moedas do pela autonomia adquirida pela economia em relação à
mundo (CÉSAR SILVA, 2000, p. 35). política; a emergência de novas estruturas decisórias
operando em tempo real e de alcance planetário, a
Outra mudança importante do mercado realocação geográfica dos investimentos especulati-
mundial é a representada pelo aumento da vos, dentre outros.
participação das multinacionais na produ- 10
Arnaud (1999, p. 13) afirma que com o fenômeno
ção e no comércio internacional. Estima-se da globalização está ocorrendo uma expansão cres-
cente das multinacionais. Tais empresas são capazes
que pelo menos um terço da produção de fazer explodir sua produção graças à existência do
mundial seja controlada pelas multina- fluxo livre de investimentos sem fronteiras e à mudan-
cionais e essas entidades têm transferido ça dos modelos de produção associada ao poder de
parcelas crescentes da produção para os transação e de barganha das empresas multinacionais
em uma economia planetária.
países emergentes. O baixo custo da mão- 11
Segundo César Silva (2000, p. 42-43): “Um
de-obra, as perspectivas de crescimento do dos resultados mais prementes da globalização do
mercado interno e o acesso a recursos naturais sistema capitalista mediante o capital financeiro foi
têm transformado esses países em atores a estruturação de blocos econômicos unificados, ou
seja, dos processos de integração econômica suprana-
cional em escala regional. Tal fato, longe de significar
8
“O Brasil, ao aderir aos termos do Acordo de uma harmonização de interesses dentro de mercados
Bretton Woods, optou por adotar restrições à con- abertos no plano mundial, representa precisamente
versibilidade de sua moeda corrente, possibilitando o contrário: a liberalização comercial entre os países
assim um controle efetivo sobre os fluxos de capitais integrantes de cada bloco é acompanhada pelo esta-
estrangeiros no País e de capitais brasileiros no exte- belecimento de um protecionismo ainda maior em
rior” (CADIER, 1999, p. 281). relação ao resto do mundo.”

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 123


deve ser interpretado em harmonia com o propriedades imobiliárias não impe-
princípio de que a propriedade atenderá a de que o dominus venha a promover,
sua função social no que tange à proteção dentro dos limites autorizados pelo
do meio ambiente ecologicamente em Código Florestal, o adequado e ra-
equilíbrio, pois, sendo bem de uso comum cional aproveitamento econômico
do povo (interesse público), há cristalina das árvores nelas existentes. A juris-
restrição à iniciativa privada por atos do prudência do Supremo Tribunal Fe-
Poder Público. deral e dos Tribunais em geral, tendo
Sob o prisma de ponderação de bens presente a garantia constitucional que
constitucionais, o Supremo Tribunal protege o direito de propriedade,
Federal já se pronunciou no sentido de firmou-se no sentido de proclamar
interpretar-se a norma inscrita no art. 225 a plena indenizabilidade das matas
da Constituição Federal de modo harmo- e revestimentos florestais que reco-
nioso com o sistema jurídico consagrado brem áreas dominiais privadas, obje-
pelo ordenamento fundamental, dando to de apossamento estatal ou sujeitas
relevo à interdependência das normas a restrições administrativas impostas
constitucionais protetivas com o direito de pelo Poder Público. Precedentes.
propriedade (art. 5o, XXII), verbis:12 – A circunstância de o Estado dispor
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO de competência para criar reservas
– ESTAÇÃO ECOLÓGICA – RESER- florestais não lhe confere, só por si,
VA FLORESTAL NA SERRA DO considerando-se os princípios que tu-
MAR – PATRIMÔNIO NACIONAL telam, em nosso sistema normativo, o
(C.F., ART. 225, § 4o) – LIMITAÇÃO direito de propriedade, a prerrogativa
ADMINISTRATIVA QUE AFETA de subtrair-se ao pagamento de inde-
O CONTEÚDO ECONÔMICO DO nização compensatória ao particular,
DIREITO DE PROPRIEDADE – quando a atividade pública, decor-
DIREITO DO PROPRIETÁRIO DE rente do exercício de atribuições em
INDENIZAÇÃO – DEVER ESTATAL tema de direito florestal, impedir ou
DE RESSARCIR OS PREJUÍZOS DE afetar a válida exploração econômica
ORDEM PATRIMONIAL SOFRIDOS do imóvel por seu proprietário.
PELO PARTICULAR – RE NÃO CO- – A norma inscrita no art. 225, § 4o,
NHECIDO. da Constituição deve ser interpretada
– Incumbe ao Poder Público o dever de modo harmonioso com o sistema
constitucional de proteger a flora e jurídico consagrado pelo ordenamen-
de adotar as necessárias medidas to fundamental, notadamente com a
que visem a coibir práticas lesivas cláusula que, proclamada pelo art.
ao equilíbrio ambiental. Esse encar- 5o, XXII, da Carta Política, garante
go, contudo, não exonera o Estado e assegura o direito de propriedade
da obrigação de indenizar os pro- em todas as suas projeções, inclusive
prietários cujos imóveis venham a aquela concernente à compensação
ser afetados, em sua potencialidade financeira devida pelo Poder Público
econômica, pelas limitações impostas ao proprietário atingido por atos
pela Administração Pública. imputáveis à atividade estatal.
– A proteção jurídica dispensada às – O preceito consubstanciado no art.
coberturas vegetais que revestem as 225, § 4o, da Carta da República, além
de não haver convertido em bens pú-
12
STF – Recurso Extraordinário no 134.297-8–SP,
Rel. Min. Celso de Mello, publicado no Diário de blicos os imóveis particulares abrangi-
Justiça de 22/09/95. dos pelas florestas e pelas matas nele

124 Revista de Informação Legislativa


referidas (Mata Atlântica, Serra do art. 225, § 1o, inciso VII, e § 4o, da Carta
Mar, Floresta Amazônica brasileira), Política, que o novo ordenamento
também não impede a utilização, pe- constitucional promulgado em 1988
los próprios particulares, dos recursos introduziu profundas alterações no
naturais existentes naquelas áreas que sistema de direito positivo brasilei-
estejam sujeitas ao domínio privado, ro, consagrando a inexigibilidade de
desde que observadas as prescrições qualquer indenização pelos atos adminis-
legais e respeitadas as condições ne- trativos de intervenção estatal na esfera
cessárias à preservação ambiental. dominal privada, desde que, praticados
– A ordem constitucional dispensa tu- com finalidade de proteção ambien-
tela efetiva ao direito de propriedade tal, venham a incidir em imóveis
(C.F./88, art. 5o, XXII). Essa proteção situados na Serra do Mar (...).
outorgada pela Lei Fundamental da Não assiste, também neste ponto, qual-
República estende-se, na abrangência quer razão ao recorrente, eis que o
normativa de sua incidência tutelar, acolhimento da tese ora sustentada
ao reconhecimento, em favor do do- implicaria virtual nulificação do direito
minus, da garantia de compensação de propriedade, com todas as graves
financeira, sempre que o Estado, conseqüências jurídicas que desse
mediante atividade que lhe seja fato adiviriam.14” (grifo nosso)
juridicamente imputável, atingir o Por outro lado, assinalando a índole co-
direito de propriedade em seu conte- mum da proteção ambiental (ser assegurada
údo econômico, ainda que o imóvel não só pela sociedade, mas também pelo
particular afetado pela ação do Poder Estado), explica que seria inadequado impor
Público esteja localizado em qualquer somente ao particular tal ônus, verbis:
das áreas referidas no art. 225, § 4o, da “É de ter presente, neste ponto, que,
Constituição. sendo de índole comum o direito à pre-
– Direito ao meio ambiente ecologi- servação da integridade ambiental, não
camente equilibrado: a consagração se pode impor apenas aos proprietários
constitucional de um típico direito de áreas localizadas na Serra do
de terceira geração” (C.F., art. 225, Mar – que venham a sofrer as con-
caput). seqüências derivadas das limitações
No referido acórdão, o Rel. Min. Cel- administrativas incidentes sobre os
so de Mello ressalta a jurisprudência do seus imóveis – os ônus concernentes
Supremo Tribunal Federal, no sentido de à concretização, pelo Estado, de seu
garantir a plena ressarcibilidade dos pre- dever jurídico-social de velar pela
juízos materiais decorrentes das limitações conservação, em benefício de todos, de
administrativas ao direito de propriedade, um meio ambiente ecologicamente
ao referir-se ao direito do poder público equilibrado.
de constituir reservas florestais em seu Por tal razão, as normas inscritas no
território, desde que não as constitua gra- art. 225 da Constituição hão de ser
tuitamente.13 interpretadas de modo harmonioso
E continua, verbis: com o sistema jurídico consagrado
“(...) O Estado de São Paulo sustenta, pelo ordenamento fundamental, no-
ainda, a partir das regras inscritas no tadamente com a cláusula que, pro-
13
STF – Recurso Extraordinário no 134.297-8–SP, 14
STF – Recurso Extraordinário no 134.297-8–SP,
Rel. Min. Celso de Mello, publicado no Diário de Justi- Rel. Min. Celso de Mello, publicado no Diário de Justi-
ça de 22/09/95, trecho do voto do Relator extraído da ça de 22/09/95, trecho do voto do Relator extraído da
cópia do texto integral do acórdão, p. 686 a 687. cópia do texto integral do acórdão, p. 688 a 689.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 125


clamada pelo art. 5o, XXII, da Carta lação de interdependência no ordenamento
Política, garante e assegura o direito jurídico. Subjaz a essa interdependência a
de propriedade em todas as suas pro- idéia de sistema formal que obriga a não
jeções, inclusive aquela concernente à compreender “em nenhum caso somente
compensação financeira devida pelo a norma isolada senão sempre no conjunto
Poder Público ao proprietário atin- em que deve ser situada: todas as normas
gido por atos imputáveis à atividade constitucionais têm de ser interpretadas
estatal.15” (grifo nosso) de tal maneira que se evitem contradições
Destacando a íntima relação entre a pro- com outras normas constitucionais (Idem,
teção ambiental e o direito de propriedade, p. 48).
Michael Pagano (1995, p. 8), professor da Deve, pois, haver ponderação entre o
Universidade de Miami, e Ann Bowaman desenvolvimento econômico e a proteção
(1995, p. 8), professora da Universidade da ambiental no contexto do ordenamento ju-
Carolina do Sul, ao tratarem do federalis- rídico como um todo, não comportando an-
mo americano e da proteção ambiental na tinomias entre normas definitivas. Assim,
década de noventa, ressaltam, também, a a contradição entre conteúdos de normas
ponderação entre as normas ambientais abertas, a valoração, não importa elimina-
restritivas e o uso da propriedade, desta- ção de uma delas do texto da Constituição,
cando a necessidade de os órgãos estatais mas apenas harmonização de interesses em
americanos compensarem financeiramente um determinado caso concreto.
os proprietários atingidos pelas normas
restritivas, verbis: 3.2. O desenvolvimento sustentável como
“(...) By July, 1995, several regulatory ética de desenvolvimento com a harmonização
reform bills were making their way do econômico e do ecológico
through the legislative thicket. The
primary proposal would require 3.2.1. Defesa do meio ambiente como
federal agencies to undertake a rigor- objetivo da ordem econômica
ous series of risk assesments and cost- Eros Roberto Grau (1990, p. 255) iden-
benefit analyses to justify new and extant tifica a defesa do ambiente como diretriz,
regulations. A related measure would norma-objetivo, dotável de caráter constitu-
require the federal government to com- cional conformador, ao indicar:
pensate a property owner if a federal “Princípio da ordem econômica
regulatory action caused even a modest constitui também a defesa do meio
diminution in the fair market value of the ambiente (art. 170, VI), trata-se de
property.” (grifo nosso) princípio constitucional impositivo
A análise das jurisprudências do Su- (Canotilho), que cumpre dupla fun-
premo Tribunal Federal e a análise da ção, qual os anteriormente referidos.
doutrina americana apresentadas trazem, à Assume também, assim, a feição de
colação, a unidade do texto constitucional. diretriz (Dworkin) – norma-objetivo
Segundo Konrad Hesse (1983, p. 18), “(...) a – dotada de caráter constitucional
Constituição somente pode ser compreen- conformador, justificando a reivin-
dida e interpretada corretamente quando é dicação pela realização de políticas
entendida, nesse sentido, como unidade”. públicas.”
Assim, as normas encontram-se em uma re- Identificando-se o princípio da defesa
do ambiente como expoente conformador
STF – Recurso Extraordinário no 134.297-8–SP,
15

Rel. Min. Celso de Mello, publicado no Diário de Justi-


da ordem econômica (mundo do ser), por
ça de 22/09/95, trecho do voto do Relator extraído da ele são informados, conseqüentemente, os
cópia do texto integral do acórdão, p. 692 a 693. princípios da garantia do desenvolvimento

126 Revista de Informação Legislativa


nacional (art. 3o, II) e do pleno emprego.16 O Constituição, mas o núcleo se encontra no
desenvolvimento nacional não haverá mais caput do artigo 225: “Todos têm direito a um
de ser reduzido ao conceito de crescimento meio ambiente ecologicamente equilibrado,
econômico, mas deverá ser equilibrado,17 bem de uso comum do povo e essencial à
não só no sentido de atendimento do plano sadia qualidade de vida, impondo-se ao
nacional e do plano regional (procedimento Poder Público e à coletividade o dever de
necessário em face do princípio federativo), defendê-lo e preservá-lo para as presentes
mas para obediência do princípio da defesa e futuras gerações”. O capítulo da ordem
do meio ambiente, com o conteúdo deline- econômica também consagra o respeito ao
ado pelo artigo 225. meio ambiente como limitador da atividade
econômica (artigo 170, inciso IV), bem como
3.2.2. O conceito de desenvolvimento o artigo 186 que trata da função social da
sustentável e a ética do desenvolvimento propriedade dentro do Título da Ordem
Situamos o princípio de desenvolvi- Econômica e Financeira.19
mento sustentável18 em diversos artigos da O conceito de desenvolvimento sus-
tentável elaborado pelo relatório de Brun-
16
“O princípio da defesa do meio ambiente confor- dtland20 é o seguinte: “O desenvolvimento
ma a ordem econômica (mundo do ser), informando
substancialmente os princípios da garantia do desen-
sustentável seria aquele capaz de satisfazer
volvimento e do pleno emprego. Além de objetivo, as necessidades sociais atuais sem compro-
em si, é instrumento necessário – e indispensável – à meter as necessidades futuras”.
realização do fim dessa ordem, o de assegurar a todos A conceituação desse desenvolvimento
existência digna. Nutre também, ademais, os ditames
da justiça social. Todos têm direito ao meio ambiente
engloba questões ideológicas, visto que a
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum própria noção de desenvolvimento sempre
do povo – diz o art. 225, caput. O desenvolvimento acompanhou disputa por diferentes formas
nacional que cumpre realizar, um dos objetivos da de apropriação da riqueza e reprodução
República Federativa do Brasil, e o pleno emprego
que impende assegurar supõem economia autossus-
social.
tentada, suficientemente equilibrada para permitir Nesse aspecto, o saudoso Professor
ao homem reencontrar-se consigo próprio, como ser Josaphat Marinho (1995, p. 10) enfatizava
humano e não apenas como um dado ou índice econô- a diferença entre crescimento econômico e
mico. Por esta trilha segue a chamada ética ecológica
e é experimentada a perspectiva holística da análise
desenvolvimento:
ecológica, que, não obstante, permanece a reclamar
chave: a) o conceito de “necessidade”, sobretudo as
tratamento crítico científico da utilização econômica
necessidades essenciais dos pobres do mundo, que
do fator recursos naturais”. (GRAU, 1994, p. 249). devem receber a máxima prioridade; e b) a noção das
17
A Constituição Federal vigente em seu art. 174, limitações que o estágio da tecnologia e da organiza-
§ 1 , assinala: “Art. 174. Como agente normativo e
o
ção social impõe ao meio ambiente, impedindo-o de
regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, atender às necessidades presentes e futuras.
na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo 19
Ao se decompor essa disposição constitucional,
e planejamento, sendo este determinante para o setor percebe-se que, entre esses aspectos, se encontra um
público e indicativo para o setor privado. § 1o A lei de feição eminentemente ecológica ou ambiental, qual
estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do seja o item II (utilização adequada dos recursos naturais
desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorpo- disponíveis e preservação do meio ambiente), que, na
rará e compatibilizará os planos nacionais e regionais verdade, constitucionalizou e ampliou uma dispo-
de desenvolvimento”. (grifo nosso) sição infraconstitucional já presente na alínea “c” do
18
A “Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e parágrafo 1o do art. 2o da Lei no 4.504/64 (Estatuto da
Desenvolvimento” (Comissão Brundtland), criada em Terra), qual seja, a que “assegura a conservação dos
1983, trabalhou durante quatro anos para produzir recursos naturais”.
o documento “Nosso Futuro Comum”, em que foi 20
O Relatório Brundtland foi resultado da Confe-
consagrada a expressão “Desenvolvimento Sustentá- rência de Estocolmo (1972), a primeira reunião mun-
vel”, que foi ali conceituado como aquele que atende dial em que se tratou da questão ambiental, em que
às necessidades do presente sem comprometer a 114 países procuravam soluções para problemas que
possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas séculos de desenvolvimento irracional ocasionaram
próprias necessidades. Ele contém dois conceitos- para todo o planeta.

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“Se não é próprio estabelecer oposi- bem-estar (ramo do qual a economia am-
ção entre os termos, cabe assinalar biental constitui-se em parte) sob o enfoque
que, no juízo prevalecente, cresci- utilitarista social em contra ponto ao do
mento só se equipara a desenvolvimento auto-interesse:
quando une a ampliação das riquezas ao “O apoio que os crentes e defensores
robustecimento da personalidade huma- do comportamento auto-interessado
na, como força social apta a produzir num buscaram em Adam Smith é na ver-
ambiente adequado.” (grifo nosso) dade difícil de encontrar quando se
Da mesma forma, Denis A. Goulet (1966, faz uma leitura mais ampla e menos
p. 1) esclarece: “O desenvolvimento não é a tendenciosa da obra smithiana. Na
simples industrialização ou modernização, verdade, o professor de filosofia moral
nem o aumento da produtividade ou a re- e economista pioneiro não teve uma vida
forma das estruturas do mercado”. de impressionante esquizofrenia. De
Completando sua exposição e explican- fato, é precisamente o estreitamento,
do que o desenvolvimento deve ser um meio na economia moderna, da ampla
para conduzir os homens à sua dignificação, visão smithiana dos seres humanos
Goulet (1966, p. 38) defende uma ética do que pode ser apontado como uma
desenvolvimento como “um impulso não das principais deficiências da teoria
mecânico mas humano, uma criação da econômica contemporânea. Esse em-
inteligência e da vontade de homens cons- pobrecimento relaciona-se de perto
cientes e de ação, de homens que possuam com o distanciamento entre economia
uma visão dos fins que lhes permita escolher e ética (...)
racionalmente os meios. Em outras palavras, As proposições típicas da moderna
“homens que tenham uma ética (ciência e arte dos economia do bem-estar dependem
fins e dos meios) do desenvolvimento”. de combinar comportamento auto-
Analisando a obra de Goulet (1966), o interessado, de um lado, e julgar a
professor George Browne Rêgo (1995, p. realização social segundo algum critério
114) destaca que: fundamentado na utilidade, de outro
“(...) A proposta do Professor Denis (...).”(grifo nosso)
consiste em, superando o unilatera- Na sua defesa de uma convergência entre
lismo intransigente e evitando um a ética e a economia, Amartya Sen (1999, p.
ecletismo inconsistente, identificar 94-95) alinha-se a Denis Goulet (1966) na
em que medida os conflitos entre ciên- defesa de uma ética de desenvolvimento, que
cia e ética se processam, aonde estão não se restrinja a mera visão utilitária de
as suas causas e como elaborar uma progresso na sua dimensão estritamente
nova teoria do desenvolvimento da econômica. Nesse âmbito, afirma:
qual se possa derivar um plano de ação “Procurei mostrar que o fato de a
mais profundo e consistente que abrigue, economia ter se distanciado da ética
na justa medida, a interação entre homem empobreceu a economia do bem-estar e
e natureza, ao mesmo tempo em que possa também enfraqueceu a base de boa
promover as mudanças sociais requeridas, parte da economia descritiva e pre-
sem perder de vista os interesses mais ditiva (...)
gerais da pessoa humana, relativos à dig- O uso disseminado da extremamente
nidade do seu existir, quer material, quer restrita suposição do comportamento
espiritualmente.” (grifo nosso) auto-interessado tem limitado de forma
Como bem expressa, no mesmo sen- séria, como procurei demonstrar, o alcan-
tido, o nobel de economia Amartya Sen ce da economia preditiva e dificultado a
(1999, p. 44-46), tratando da economia do investigação de várias relações econômi-

128 Revista de Informação Legislativa


cas importantes que funcionam graças à explorado por ser gratuito, sem limitações
versatilidade dos comportamentos (...) quantitativas e qualitativas, mostra-se ex-
Por outro lado, ater-se inteiramente tremamente prejudicial.
à restrita e implausível suposição do Denis A. Goulet (1966, p. 95-96), por
comportamento puramente auto- outro lado, ressalta a relação entre desen-
interessado parece levar-nos por um volvimento e solidariedade na coabitação
pretenso ‘atalho’ que termina em do mesmo planeta:
um lugar diferente daquele aonde “(...) Nossa terra é única. Todos os
desejávamos.” (grifo nosso) homens ocupam-na e habitam-na. A
Logo, a ambição de ampliar a produti- simbiose entre a natureza e o homem
vidade não se coaduna com a diversidade decorre da natureza dêsse: os laços
da natureza e com seu processo de regene- que os ligam são permanentes. O ho-
ração, seja em uma visão ecocêntrica, seja mem, apesar de ser distinto da natu-
em uma visão antropocêntrica. reza, dela faz parte, de certa forma. A
A Constituição de 1988 adotou, dentro da ocupação da terra é destino de todos
perspectiva de uma ética do desenvolvimento, os homens e não privilégio de alguns.
como conceito de desenvolvimento sustentável Aliás, essa ocupação é ato não só do
aquele que não permite a privatização do meio indivíduo, mas também de grupos, de
ambiente, prioriza a democratização do controle organizações coletivas, de unidades
sobre o meio ambiente ao definir meio ambiente societárias. Uma terra para todos os
como “bem de uso comum do povo” e exige o homens e para tôdas as sociedades
controle do capital sobre o meio por intermédio humanas. O planeta cria laços que
de instrumentos como o Estudo de Impacto Am- ligam os homens a si e entre si.”
biental e muitos outros, que chamam a comuni- Com isso, a afronta aos recursos naturais
dade a decidir. Para uma aplicação eficiente do passou a ser uma afronta contra humani-
desenvolvimento sustentável, faz-se necessário dade. Assim, esses segmentos da socieda-
um levantamento da medida de suporte do de começaram a questionar o modelo de
ecossistema, ou seja, estuda-se a capacidade de desenvolvimento econômico, repudiando
regeneração e de absorção do ecossistema e se publicamente as suas conseqüências e rei-
estabelece limite para a atividade econômica. vindicando, junto a seus representantes,
Esse limite permite que as atividades econômicas mudanças nas políticas governamentais e
não esgotem o meio ambiente, mas que este seja no setor produtivo, como forma de mini-
protegido para o futuro. mizar e evitar que novos danos ambientais
ocorressem.
4. Economia do meio ambiente: busca da Para os economistas, por sua vez,
incorporação das externalidades ambientais grande parte desses problemas ambientais
deviam-se a uma ineficiência do mercado21 em
refletir esses efeitos negativos nos preços
4.1. Crescimento econômico e degradação
dos bens e serviços produzidos.
ambiental: propostas de conciliação
Passados quase trinta anos da publica-
Davis Pepper destaca a relação entre o ção de “Limites do Crescimento”, o pessi-
desenvolvimento econômico e a afronta ao 21
Ineficiência do mercado são todos os fenômenos
meio ambiente como uma preocupação cen- (p. ex. danos ambientais) que não são levados em
tral do ambientalismo moderno, por meio consideração num mercado perfeitamente competi-
da parábola do biólogo Garret Hardin em tivo; a ineficiência do mercado é também chamada
de externalidade. “Os mercados falham quando as
artigo publicado na Revista Science. Pepper transações num mercado produzem efeitos positivos
(2000, p. 82) afirma que a consideração de ou negativos a terceiros, ou seja, causam externalida-
que o bem ecológico pode por todos ser des” (MONTORO FILHO, 1998, p. 237).

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 129


mismo mostra-se hoje bem menor. Todavia, recursos naturais são classificados de re-
ainda há questões e problemas que não se nováveis e não-renováveis. Os renováveis
podem ignorar. O crescimento econômico, são aqueles que podem ser recuperados
principalmente nos países de terceiro mun- ao longo do tempo, seja por processo na-
do, foi acompanhado de sérios problemas tural ou pela ação humana, tais como bens
de poluição da água e do ar. Diversas vivos (animais, plantas etc.) e a água que
espécies de animais e vegetais que podem se renova por seu ciclo hidrológico. Os
ser úteis para a humanidade num futuro não-renováveis ou recursos esgotáveis são
próximo estão ameaçadas de extinção. Isso aqueles impossíveis de o homem fazer vol-
seria indício de que estamos fazendo algo tar à situação anterior, ou seja, aqueles cujo
errado? E, se positiva a resposta, como se estoque se encontra na terra e sua formação
poderá modificar tal maneira de agir? só é possível de acontecer numa escala de
A teoria econômica (assim, como a fi- tempo geológica. São esses os recursos mi-
losofia, a ecologia e o direito) tenta obter nerais (ferro, petróleo etc.). Constituem-se
respostas para essas perguntas. O campo fatores de produção (PINHO, 1998, p. 631).
da economia (que aplica a teoria a questões – Efeitos externos ou externalidades22
ligadas ao manejo e preservação do meio – são os danos ou benefícios ecológicos
ambiente) é chamado de economia ambiental. resultantes da produção e consumo de
Assim, discutiremos alguns dos princí- bens e serviços, que são impostos a ter-
pios dessa disciplina no tópico seguinte. ceiros (indivíduo, empresa, coletividade)
sem nenhuma compensação, e que não
4.2. Economia ambiental são considerados na formação dos preços
desses bens e serviços para sua transação
4.2.1. Economia ambiental e a no mercado.
economia do bem-estar – Bens coletivos ou bens públicos – de-
A economia do meio ambiente e dos signam os bens para os quais o consumo
recursos naturais apóia-se nos fundamentos ou utilização não é exclusivo (recursos
da teoria econômica neoclássica, que tem naturais como a água e o ar), ou seja, di-
sua análise centrada na alocação ótima de versos agentes sociais podem consumir ou
recursos pelo mercado. Essa corrente da compartilhar dos mesmos benefícios sem
economia, segundo Godard (1997, p. 201- nenhum inconveniente.
202), é o resultado do desdobramento dos Para alguns desses bens, constata-se
conceitos de recursos naturais ou ativos uma impossibilidade, teórica ou contingen-
naturais, efeitos externos ou externalidades te, de definir os direitos de uso exclusivos
e bens coletivos, que servem de reserva (o titular dos direitos não pode garantir a
para unir ao núcleo teórico neoclássico os exclusividade do uso).
problemas levantados pela natureza, os
quais resultam, em primeiro lugar, da dupla
22
Os fundamentos da teoria padrão das externa-
lidades de Marshall foram desenvolvidos por Pigou,
confrontação do produzível e do não pro- em 1920, ao classificar os efeitos das externalidades em
duzível, do mercantil e do não mercantil. positivos e negativos. O efeito positivo Pigou chamou
Os conceitos de que fala Godard (1997, de economia externa e o negativo, de deseconomia
externa. Para as externalidades negativas ou deseco-
p. 203-209) tratam de particularidades in-
nomia externas, Pigou propôs que o Estado deveria
dividuais dos bens e serviços naturais que intervir no mercado cobrando uma taxa, cujo valor
ajudam a identificar as conseqüências de deveria ser igual ao valor monetário do custo externo,
sua apropriação pelo homem: que corresponde à diferença entre o custo privado
(inclui todos os custos de produção – capital, trabalho,
– Recursos naturais ou ativos natu- terra e capacidade empresarial) e o custo social (im-
rais – designam o conjunto de bens que pactos ambientais adversos, resultantes das atividades
não são produzíveis pelo homem. Esses econômicas). (DERANI, 1997, p. 108-109).

130 Revista de Informação Legislativa


A economia do meio ambiente ou eco- No contexto ora proposto, os recursos
nomia ambiental, por sua vez, continua ambientais desempenham funções econô-
trabalhando com os conceitos de recursos micas, entendidas essas como qualquer
naturais ou ativos naturais, efeitos externos serviço que contribua para a melhoria
ou externalidades, bens coletivos ou bens do bem-estar, do padrão de vida e para o
públicos, incluindo também os fundamentos desenvolvimento econômico e social. Fica,
da economia do bem-estar.23 então, implícita, nestas considerações, a ne-
A economia do bem-estar, segundo Bellia cessidade de valorar corretamente os bens
(1996, p. 77) é a “parte do estudo da econo- e serviços ambientais, entendidos esses no
mia que explica como identificar e alcançar desempenho das suas funções, seja de fator
alocações de recursos socialmente eficientes de produção do sistema produtivo, seja de
(...) ela somente se preocupa com o con- equilíbrio ecológico.
junto de opções aberto à sociedade, que A ênfase, entretanto, dada pela econo-
contém as ‘melhores’ soluções possíveis de mia ambiental relaciona-se ao primeiro
alocação de recursos”. Destaca, portanto, o aspecto (meio ambiente como fator de pro-
surgimento de uma economia interventiva, dução), não obstante procure, em segundo
que busca a alocação de recursos social- plano, garantir o equilíbrio ecológico.
mente eficientes, com compreensão das
deficiências do mercado clássico. 4.2.2. Os componentes da valoração
A economia do bem-estar e a economia do econômica ambiental
meio ambiente têm em comum a preocupa- Essa atribuição econômica de valores
ção com a sociedade, com destaque, respec- para o meio ambiente pode ser representa-
tivamente, para os direitos sociais (direitos da, segundo Pearce (1990, p. 21-22) e Bellia
de segunda dimensão) e para os direitos (1996, p. 92-93), pela seguinte fórmula:
ambientais (direitos de terceira geração).
Assim, a questão do meio ambiente, sob Valor econômico ambiental total =
a ótica da economia do meio ambiente, é valor de uso + valor de opção + valor
apreendida em termos de alocação de bens de existência
entre agentes em função das preferências
destes últimos. Onde, de forma sintética, podemos
afirmar que:
23
“Arthur Cecil Pigou, professor de Cambridge
no início deste século, desenvolveu o vasto edifício – valor de uso (use) – refere-se aos bens
da ‘Economia do Bem-Estar’ investigando os efeitos e serviços ambientais que são apropriados
de todo um elenco de políticas econômicas, sociais e para consumo imediato. Podem ser de uso
fiscais, numa sociedade que ainda não alcançou o total
planejamento sobre a renda social e sua distribuição a
direto, quando são resultados da explora-
curto, médio e longo prazos. Fez a importante desco- ção; ou de uso indireto, se esses bens e ser-
berta de que é incorreto calcular os custos de produção viços dependem de funções do ecossistema
apenas em termos dos custos que oneram exclusi- para serem gerados.
vamente o produtor privado. Há, freqüentemente,
outros custos de produção, como o desemprego, ou
– valor de opção (option) – refere-se ao
o dano à saúde dos trabalhadores, ou ruído e fumaça valor de uso direto e indireto dos bens e
que invadem as vizinhanças, que são suportados por serviços ambientais, cuja apropriação e
outras pessoas. Igualmente é incorreto calcular os consumo foram deixadas para o futuro
ganhos na produção exclusivamente em termos de
lucros privados: poderão haver lucros sociais que (“valor de uso para os indivíduos do futu-
não cabem ao produtor que dispendeu o capital ori- ro”), como opção de conservar ou preservar
ginal (...) Pigou, assim, provou definitivamente que esses bens e serviços ambientais.
o êxito de uma empresa, ou o resultado da concor-
– valor de existência (existence) – são va-
rência (mesmo “perfeita”, no sentido convencional),
não é necessariamente vantajoso para a sociedade” lores atribuídos para preservação do bem
(BELLIA, 1996, p. 77). ambiental por questões morais, religiosas,

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 131


culturais, éticas etc. Independe de seu uso mais fidedigno, os outros dados, por serem
atual ou futuro, são valores não determi- externalidades negativas, não são conhe-
nados ou determináveis pela lógica do cidos ou ao menos avaliados espontanea-
mercado. mente pelo mercado. Por conseqüência, a
Destarte, a avaliação monetária dos ausência de uma avaliação monetária dos
danos ou benefícios constitui uma com- danos causados pela poluição dificulta a
ponente essencial da Economia do Meio determinação do Ótimo de Pareto.
Ambiente. Na ausência de tais avaliações, a Em economia, a noção de dano ou bene-
referência à eficiência econômica e ao ótimo fício repousa sobre a expressão das preferências
se tornam um ideal puramente teórico. Com dos indivíduos: preferência para evitar uma
efeito, pelo princípio geral da racionalidade perda (dano) ou para obter um benefício.
econômica, a economia, ciência da gestão Essas preferências se manifestam sobre o
dos recursos raros, tem por objetivo gerir mercado e se expressam sob a forma do
com o máximo de eficiência a fim de obter consentimento de pagar, transformando
um máximo de bem-estar que corresponda todos os valores em uma única forma de
a uma situação de “Ótimo de Pareto”.24 medi-lo: a preferência do indivíduo em pagar
Como bem expressa o nobel de econo- determinado preço no mercado.25
mia Amartya Sen (1999, p. 44-46), tratando A mensuração do valor de uso, primei-
da economia do bem-estar e do ótimo de ra parcela, do valor ambiental total não é,
Pareto: portanto, simples. Mostra-se complexa,
“A otimalidade de Pareto às vezes também mas não torna inviável a sua utilização de
é denominada ‘eficiência econômica’. Essa forma estimada, nem a possibilidade de
expressão é apropriada de um ponto avanços metodológicos nesse campo. As
de vista, pois a otimalidade de Pareto deficiências devem-se ao desconhecimento
concerne exclusivamente à eficiência da extensão e risco dos próprios impactos
no espaço das utilidades, deixando ambientais, que impede a identificação
de lado as considerações distributivas de todos os custos resultantes, e à desin-
relativas à utilidade. Porém, em outro formação dos indivíduos, o que reduz a
aspecto é inadequada, uma vez que percepção destes impactos.
todo o enfoque da análise neste caso Outro aspecto da mensuração de valores
continua sendo a utilidade (...) A oti- para bens ambientais envolve a segunda
malidade de Pareto capta os aspectos da parcela – os “valores de opção”. Esses
eficiência apenas do cálculo baseado na correspondem ao valor relacionado ao uso
utilidade.” (grifo nosso) potencial de um recurso, o qual não se utiliza
Na realidade, a determinação desse óti- de imediato, mas se deseja guardar para uma
mo exige o conhecimento de duas funções: eventual utilização posterior. Nele se encontra
a de custo total dos danos causados pela presente o elemento transgeracional do direi-
poluição e a de custo total da luta contra a to fundamental do desenvolvimento e do
poluição. Ora, se os custos da luta contra meio ambiente (direitos fundamentais de
a poluição podem ser calculados de modo terceira geração).
“A fim de remediar estas deficiências do mer-
24 25
“Economic assigned values are expressed in
cado, Pigou em 1920 preconizava a intervenção do terms of individual willingness to pay (WTP) and
estado sob a forma de taxação das externalidades nega- willingness to accept compensation (WTA)”. (PEAR-
tivas. No ponto correspondente ao ótimo de Pareto, a CE, 1990, p. 22). “De fato, na abordagem utilitarista,
taxa deve ser de um valor igual ao valor monetário do todos os diversos bens são reduzidos a uma magni-
custo externo, isto é, a diferença entre o custo privado tude descritiva homogênea (como se supõe que seja
e o custo social (...) o mercado deve presidir à alocação a utilidade), e então a avaliação ética simplesmente
dos custos, com a condição de ser corretamente ‘infor- assume a forma de uma transformação monotônica
mado’” (TOLMASQUIM, 1998, p. 326). dessa magnitude”. (SEN, 1999, p. 44 e 46).

132 Revista de Informação Legislativa


Ou seja, os indivíduos dão um valor à seu Professor Alfred Marshall), verificou a
preservação de uma floresta, de um mangue tendência no sentido da exploração preda-
ou qualquer outro patrimônio natural, a fim tória dos recursos naturais oriunda de uma
de manter aberta a opção de utilização desse “falta de desejo em relação ao futuro”.26
recurso, mesmo que essa hipótese seja pou- A internalização das externalidades
co provável ou sua execução esteja longe no consiste em fazer os seus responsáveis
tempo. A essa opção pode-se adicionar uma pagarem pelos custos coletivos ou sociais
opção pelos outros, com motivações altruís- que elas acarretam, corrigindo as diferenças
tas que fazem com que se confira um preço entre o ótimo privado e o ótimo social, cons-
à conservação de um patrimônio para as tituindo uma importante atividade estatal
gerações futuras (valores de legado) ou para a correção dessa diferença provocada pelo
os outros indivíduos (valores altruístas). mercado (Idem, p. 26-27).27
Por sua vez, os valores de existência O uso de Instrumentos Econômicos
(intrínsecos, por não estarem sujeitos ao (IE)28 na política ambiental vem ocorrendo
uso) não são ligados nem ao uso efetivo (pri- de forma crescente em muitos países como
meira parcela), nem à opção de uso (segunda mecanismo para: remediar as deficiências
parcela); dizem respeito ao valor conferido do mercado, no que se refere à internaliza-
à existência mesma de um patrimônio ção das externalidades negativas; melhoria
ou recurso, não levando em conta qual- do desempenho da gestão ambiental,29
quer possibilidade de usufruto direto ou complementação das estritas abordagens
indireto, presente ou futuro. Trata-se da
idéia de que certas coisas têm um valor, em 26
No original: “slackness of desire towards the
future”.
si, independente do uso efetivo (valor de uso) 27
A noção de um ótimo privado e de um ótimo pú-
ou potencial (valor de opção); mesmo que blico, bem como da distinção entre eles pode ser extraída
não se verifique nenhuma utilidade para de PIGOU, cético em relação aos benefícios sociais
determinado recurso ambiental, um valor do mercado ao demonstrar que os indivíduos tendem a
maximizar as suas satisfações presentes, na distinção feita
intrínseco lhe é conferido. Estar-se-á neste entre o produto marginal privado líquido e o produto mar-
ponto na fronteira entre a esfera econômica, que ginal social líquido: “The Marginal Social Net Product is
só conhece o “valor de troca e o valor de uso”, e the total net product of physical things or objective services
a esfera ecológica da conservação. due to the marginal increment of resources in any given use
or place, no matter to whom any part of this product will
O valor de existência representa, portanto, accrue ... It might happen ... that costs are thrown upon
um valor não determinado ou determinável pelo people not directly concerned ... The Marginal Private Net
mercado, mais que nele deve ser inserido para Product is that part of the total net product of physical
internação de um custo socialmente relevante. things or objective services due to the marginal increment
of resources in any given use or place which accrues in the
first instance – i.e. prior to sale – to the person responsible
5. Uso de instrumentos econômicos for investing resources there”.
28
Um instrumento seria tido como econômico uma
nas políticas ambientais: integração do vez que afetasse o cálculo de custos e benefícios do
jurídico e do econômico agente poluidor, influenciando, portanto, suas decisões,
com o objetivo de produzir uma melhoria na qualidade
ambiental (OECD, Economics, Paris, 1989, p. 12-14).
5.1. Instrumentos econômicos: introdução 29
“A noção de gestão assume na França diversas
significações. A mais antiga é técnica e se inscreve
Pigou (1946, p. 25) foi o autor pioneiro
no contexto dos procedimentos previstos para a
na aplicação dos conceitos da microeco- exploração das florestas submetidas a um regime
nomia neoclássica ao exame de questões jurídico particular, denominado ‘regime florestal’.
ambientais em sua clássica obra “The eco- Esta noção situa-se, portanto, na confluência da lógica
profissional dos encarregados da gestão florestal e de
nomics of welfare” publicada em 1920; ao
uma lógica administrativa estatal, que se exerce em
considerar o fenômeno das externalidades nome dos interesses superiores da nação”. (GODARD,
(já desenvolvido de forma incipiente por 1997, p. 204).

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 133


dos instrumentos tradicionais (padrões – o sistema de multas busca coibir a
ambientais, licenciamento e sanções legais) prática de atos excepcionais, não deve ser
e aumento da receita para prover fundos aplicado, corriqueiramente, sob pena de
para atividades sustentáveis. Paul Klem- desestímulo ao seu aspecto preventivo e
mer (1992, p. 54) afirma: desgaste do seu aspecto punitivo;
“Os instrumentos resumidos sob este – a aplicação de penalidade é tarefa de
título se inscrevem na categoria dos grande dificuldade pois, se branda, esti-
instrumentos econômicos que assu- mula a reiterada prática de infrações, se
miram grande atualidade política e rigorosa pode inviabilizar a empresa.
que procuram ou bem uma melhor Depois de um longo período no qual os
atribuição das escassas margens controles diretos foram quase exclusivos,
de aproveitamento ambiental, ou surgem os instrumentos econômicos.
então reduzir a superexploração A utilização dos Instrumentos Econômi-
dos recursos ambientais através de cos (controle indireto do Estado) apresenta-
impulsos econômicos, isto é, através se como outra forma de trato da questão
de elementos seletivos de benefícios sob um enfoque econômico de incentivo
e perdas (com orientação ecológica). ou de oneração. O controle por meio das
Em outra ordem de coisas, quem finanças públicas consiste na imposição
advoga por este tipo de instrumento tributária sobre as unidades poluentes ou
econômico procura por ‘o carro da na concessão de incentivos fiscais aos que
ecologia diante dos poderosos bois da adotem medidas preventivas ou corretivas
economia’, para poder movê-lo me- da poluição. Aos agentes econômicos é
lhor e mais rapidamente (no sentido indicado o custo social pelo desgaste am-
de eficiência ecológica).” biental ocasionado por suas atividades.
Um exemplo de instrumento de controle Assim, a denominação de “instrumen-
é a previsão da legislação brasileira da tos econômicos” e sua intervenção no
necessidade de controle prévio do Poder mercado econômico da oferta e da procura
Público para a instalação de atividades não devem induzir ao erro de que não se
industriais, comerciais e agrícolas. As Leis trata de forma estatal interventiva no meio
Federais 6.830/80, 6.902/81 e 6.938/81, ambiente.30
que dispõem, respectivamente, sobre a im- 30
Instrumentos econômicos “(...) são prestações
plantação de indústrias em áreas críticas de monetárias obrigatórias do direito público que o
poluição, criação e instalação de atividades Estado cobra para poder cumprir seus objetivos em
em áreas de proteção ambiental e sobre a matéria de proteção ambiental. Com respeito ao
Política Nacional de Meio Ambiente, pre- objetivo perseguido por sua implementação, pode-se
distinguir, basicamente, entre funções extrafiscais e
vêem expressamente o licenciamento das funções fiscais. No caso das primeiras, os chamados
atividades como pré-requisito para que direitos de intervenção, trata-se fundamentalmente de
elas possam ocorrer. Há, pois, o controle de influir sobre condutas relevantes para o meio ambien-
te: procedimentos, redução das emissões, repressão de
atividades por comando legal que impede produtos contaminadores etc. Entretanto, os rótulos
simplesmente a realização desta, se não de ‘econômico’ ou de ‘mercado’ não devem induzir a
houver obediência a um procedimento erro, visto que se trata de uma forma de administração
administrativo (instrumento de comando estatal do meio ambiente”. (KLEMMER, 1992, p.55).
“In order to avoid the distortions in international trade whi-
e controle). ch might result from failure to harmonize the environment
Inquestionável a utilidade desse meca- policies pursued in Member countries and to facilitate co-
nismo repressivo. Contudo, possui defici- operation in this field (...) consists in analysing the economic
instruments with which the policies can be effectively ap-
ências marcantes como a de que:
plied. The problem of allocating environmental costs has thus
– o infrator pode contar com a possibi- come to be recognized as a key problem, bringing together the
lidade de escapar da punição; statement of objectives, the quest for efficiency, and in the

134 Revista de Informação Legislativa


Desse modo, os IE, instrumentos estatais O cuidado na aplicação desse tipo de IE
de intervenção econômica, estão divididos deve ser observado para que sua concessão
em dois grandes grupos: não desvie de seu objetivo, que é o de re-
– o primeiro, que atua em forma de in- duzir os níveis de poluição. Caso contrário,
centivos (subsídios, isenções de impostos e os governos podem terminar beneficiando
redução de carga tributária); e os poluidores e favorecendo a manutenção
– o segundo, que atua na forma de one- do status quo da poluição.
ração (tributos, taxas e tarifas, e licenças Interessante perceber a conexão desse
negociáveis ou direitos de propriedades). pensamento com o que na Economia foi
desenvolvido por Pigou, para quem, na
5.2. Instrumentos econômicos na falha do mercado, o Estado deveria in-
forma de incentivos estatais troduzir uma subvenção ou incentivo em
A implementação dos IE do primeiro caso de economia externa (efeitos sociais
grupo implica perdas de receitas ou com- positivos) e um sistema de tributação em
prometimento de recursos do governo. Sua caso de deseconomia externa (efeitos sociais
aplicação pode ser feita de várias formas, negativos).
como, por exemplo, se as empresas polui- A Constituição Federal de 1988, em seu
doras investirem em equipamentos de pre- art. 174, ao enumerar as formas de atuação
venção e controle da poluição, poderão ser do Estado, na condição de agente econô-
beneficiadas com deduções de impostos, mico, destacou a função de incentivo, nos
ou dedução do valor dos gastos na compra termos do art. 174, verbis:
desses equipamentos, ou com financiamen- “Art. 174. Como agente normativo e
tos subsidiados para sua aquisição, ou, regulador da atividade econômica, o
ainda, podem ser autorizadas a fazerem de- Estado exercerá, na forma da lei, as
preciação acelerada desses equipamentos. funções de fiscalização, incentivo e
As que investem em produção de energia planejamento, sendo este determinante
podem receber recursos monetários a fundo para o setor público e indicativo para o
perdido, ou serem isentas de imposto de setor privado.” (grifo nosso)
renda federal. Portanto, o objetivo do incentivo estatal
A OCDE constatou que esses tipos econômico é muito semelhante ao da one-
de IE estão sendo largamente utilizados ração estatal, sendo a outra “face da mesma
pelos países membros, o que levou aquela moeda” de orientar a atuação dos agentes
organização a alertar para o fato de nas econômicos para a proteção ambiental.
cláusulas do Princípio Poluidor Pagador
5.3. Instrumentos econômicos na
(PPP) estar previsto que os incentivos de
forma de onerações estatais
prêmios poderiam ser concedidos apenas
em dois casos: no primeiro caso, durante o Assim, constata-se que esses mecanismos
período de transição necessário para que os influenciadores do mercado permitem uma
agentes se adaptem à política nacional de integração da dimensão jurídica (dever ser) e
meio ambiente; e no segundo caso, quando econômica (ser) do meio ambiente.
a sua concessão objetiva redução dos níveis As onerações estatais consistem em me-
de poluição superior ao que é possível canismos de cobrança aplicados diretamen-
mediante regulação direta.31
limitando-se a esclarecer que as medidas decididas
international sphere, the harmonization project (...)”. (OR- pelas autoridades públicas para que o ambiente esteja
GANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION num estado aceitável não devem ser acompanhadas
AND DEVELOPMENT – OECD, 1975). de subsídios, que criariam distorções significativas ao
31
“A OCDE não vai muito longe na discrimina- comércio e investimento internacionais.” (ARAGÃO,
ção dos intrumentos adequados a executar o PPP, 1997, p. 168).

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 135


te sobre o nível de poluição que excede ao “Quando a poluição ocorra no de-
padrão estabelecido, ou também sobre o uso curso do processo produtivo de um
de um recurso natural acima do permitido. bem, e em consequência do proces-
Sua aplicação é viabilizada através de um so produtivo dele, o poluidor será
imposto, taxa, contribuição, multa ou tarifa certamente o produtor do bem, mas
previsto em lei, cujo valor pode ser calcula- se é o produto em si mesmo que é
do com base nos efeitos ecológicos de certos poluente (pela sua composição, pelo
usos de recursos naturais ou nas emissões tipo de utilização que normalmente
realizadas por processos industriais. lhe é dada, ou pela sua deterioração
No caso das emissões de poluentes hí- enquanto resíduo) ou ainda no caso
dricos, a aplicação de tributação: de tanto o processo produtivo como
“(...) tem sido usada em países como o produto ou processo consumptivo
Alemanha, França, Noruega, Suécia, serem simultaneamente poluentes.”
etc, onde cada indústria poluidora é O uso de taxas e tarifas, apesar das
taxada pela contaminação provocada dificuldades de sua implementação, pode
pelos efluentes líquidos industriais permitir que a cobrança venha a ter maior
que despeja nos rios. O controle é incidência sobre as classes de renda mais
rígido e o valor é considerável. Na alta, contribuindo, também, para evitar
França, a tributação é um desdobra- acentuar as distorções sociais. Um outro
mento natural da legislação que exis- ponto favorável à utilização desses IE é
te desde 1964, e as indústrias podem que a cobrança de taxas e de tarifas permite
optar entre pagar taxas equivalentes não só internalizar os custos ambientais nos
à poluição real que provocam, ou pa- custos privados de produção e consumo,
gar por estimativa. Normalmente os mas também viabilizar um controle am-
agentes preferem pagar exatamente o biental com custos mais baixos, com maior
equivalente à sua poluição, o que os eficiência, e, ainda, induzir a mudanças
leva a pagar também por seu controle. tecnológicas tanto no processo produtivo,
As cargas poluentes são classificadas quanto na redução do consumo de bens e
conforme sua toxidade numa medida serviços ambientais.
equivalente denominada equitox, que Como espécie sui generis de oneração
serve de base para o cálculo do valor estatal figuram as licenças negociáveis.
do imposto a ser pago pelo poluidor São cotas, permissões ou tetos de poluição
(BELLIA, 1996, p. 132).” estabelecidos pelo órgão ambiental para
Logo, as taxas e tarifas32 têm sido utili- uma determinada área ou região. A defini-
zadas principalmente como instrumentos ção de tipos de licenças negociáveis exige
complementares de gestão, visando imple- que o órgão ou instituição, responsável
mentar o princípio do poluidor pagador. pelo controle da qualidade ambiental, es-
Conforme enfatiza Maria Aragão (1997, tabeleça um nível de padrão de qualidade
p. 132), saber, em cada caso concreto, quem a ser alcançado, de acordo com o total de
é o poluidor nem sempre é tarefa fácil: emissão de poluentes a serem permitidos
para aquela área ou região. Posteriormente,
Taxas têm como fato gerador o exercício regular
32

do poder de polícia, serviço público específico e divisí-


o total dessas emissões é dividido e levado
vel, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição. ao mercado para serem negociadas, ou são
Tarifa é utilizada quando o preço é apresentado em concedidas gratuitamente aos poluidores
forma de tábua, catálogo, pauta, lista, tabela, ou qual- localizados na área ou região pelas autori-
quer exposição em que se fixem quotas que originam
“preços públicos”. As taxas e tarifas teoricamente dife-
dades competentes.
rem uma da outra, no entanto, na economia ambiental De posse dessas licenças, os poluidores
são consideradas como palavras sinônimas. passam a ter o “direito”, reconhecido pelo

136 Revista de Informação Legislativa


Estado, de poluir por um determinado BENJAMIN, Antônio Herman V. A insurreição da aldeia
período aquela área que foi previamente global versus o processo civil clássico. In: ______. Textos:
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as regras pré-estabelecidas no período de
DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. São
sua aquisição. Paulo: Max Limonad, 1997.
De acordo com Bellia (1996, p. 204),
FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada.
essa abordagem apresenta um baixo custo
São Paulo: Malheiros, 1999.
operacional para o governo, estabelecendo
um mercado de licenças de poluição. GODARD, Olivier. A gestão integrada dos recursos natu-
rais e do meio ambiente: conceitos, instituições e desafios
As licenças negociadas têm sido utiliza-
de legitimação. In: VIEIRA, Paulo Freire; WEBER,
das, dentre outros países, nos Estados Uni- Jacques (Orgs). Gestão de recursos naturais renováveis
dos, Alemanha, Canadá e Austrália. “O que e desenvolvimento: novos desafios para a pesquisa
fica evidente da experiência dos EUA é que ambiental. São Paulo: Cortez, 1997.
as licenças devem ser sempre introduzidas GOULET, Denis A. Ética do desenvolvimento. São Paulo:
como complemento às regulações diretas e Livraria Duas Cidades, 1996.
não como alternativas a esta” (ALMEIDA, GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição
1998, p. 11). de 1988: integração e crítica. São Paulo: Revista dos
No caso brasileiro, podia-se considerar, Tribunais, 1990.
ainda, pouco significativo o uso de instru- ______. Proteção do meio ambiente: caso do Parque do
mentos econômicos na política ambiental. Povo. In: Revista dos Tribunais. n.702. São Paulo:
Destaca-se, porém, contemporaneamente, a Revista dos Tribunais, 1994.
iniciativa da cobrança pelo uso de água, nos HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional:
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138 Revista de Informação Legislativa


Direito Comparado
Método ou ciência?

Weliton Carvalho

Sumário.
1. Caráter científico do Direito. 2. Caracteri-
zação científica do Direito Comparado. 3. Meto-
dologia em Direito Comparado. 4. Conclusões.

1. Caráter científico do Direito


Para se evitar o máximo possível o dog-
matismo e, conseqüentemente, as verdades
inquestionáveis dos axiomas, impõe-se
questionar a adjetivação científica do Direi-
to, considerado em sua totalidade.
Inicialmente, deve-se entender que a
linguagem é o instrumento para a comu-
nicação entre os homens, em seu aspecto
coloquial ou científico. Assim nenhuma
ciência escapa da elaboração de um discur-
so. Michel Miaille (1979, p. 29) apresenta
o alcance do discurso como elemento da
ciência, ao entender que a linguagem se
forma a partir de um corpo de proposições
que, dentro de uma lógica, se reproduzem e
se desenvolvem. Por evidente que a lingua-
gem busca traduzir o empírico em um nível
de elaboração que a comunidade acadêmica
buscou denominar científico.
A ciência, portanto, é um produto
das indagações e soluções elaboradas ao
Weliton Carvalho é Doutor e Mestre em Di-
longo do tempo, com indispensável carga
reito pela Universidade Federal de Pernambuco,
Especialista em Direito Público pela Univer-
empírica. Científico, então, seria toda de-
sidade Católica de Pernambuco, Professor da monstração convincente de um fenômeno,
pós-graduação do Centro Unificado de Ensino para o qual ainda não há paradigma novo a
do Maranhão – CEUMA, Juiz de Direito. questioná-lo. Com essa afirmação, percebe-

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 139


se que nada é definitivo, a priori, no campo Neste sentido, a ciência do Direito deve
científico. Não fosse assim, a física de muito ao esforço de Hans Kelsen (1984, p.
Newton não teria cedido espaço ao gênio 109), ao delimitá-la, claro que em um corte
de Einstein. A demonstração científica, epistemológico, mas de modo peremptório,
portanto, deve superar os denominados nas suas pretensões de criar um sistema de
obstáculos epistemológicos para merecer a lógica pura do normativo como objeto da
mais elevada qualificação do conhecimento ciência do Direito.
humano. Os denominados obstáculos episte- “Na afirmação evidente de que o
mológicos receberam a seguinte considera- objecto da ciência jurídica é o direi-
ção de Michel Miaille (1979, p. 32): to, está contida à afirmação – menos
“Com efeito, não se trata de modo evidente – de que são as normas ju-
nenhum de umas quantas dificulda- rídicas o objecto da ciência jurídica, e
des de ordem psicológica, mas sim de a conduta humana só o é na medida
obstáculos objectivos, reais, ligados em que é determinada nas normas
às condições históricas nas quais a jurídicas como pressuposto ou conse-
investigação científica se efectua. quência, ou – por outras palavras – na
Assim, estes obstáculos são diferentes medida em que constitui conteúdo de
segundo as disciplinas e as épocas, normas jurídicas.”
pois testemunham, em cada uma Hans Kelsen (1984, p. 118) ainda classifi-
das hipóteses, condições específicas cou a ciência do Direito como normativa para
do desenvolvimento da investigação diferenciá-la das ciências causais. Evidente
científica”. que é possível se abrir uma crítica a Hans
Dentro desse panorama, um determina- Kelsen, não por ter delimitado com precisão
do conhecimento científico só se concretiza singular o substrato em que o conhecimento
quando transpõe os denominados obstácu- jurídico seria peculiar, mas por tentar isolar
los epistemológicos e só se mantém de pé ao a norma em uma bolha de plástico, como se
resistir a novos paradigmas que o colocam à esta não necessitasse de um olhar de cunho
prova. Mesmo aquelas verdades absolutas sociológico e filosófico. De modo empírico
denominadas axiomas não estão imunes de se pode afirmar que nenhum legislador nem
serem superadas pela pesquisa científica. qualquer operador do Direito pode ser in-
Em análise radical, todo o saber humano sensível à sociedade para a qual se destina o
é temporal, com exceção das chamadas comando normativo, nem lhe pode deixar de
verdades reveladas, como é essencialmente reconhecer o valor que catalisou a existência
a teologia, particularmente com relação a do dispositivo jurídico.
fé, e na qual, curiosamente, nasceu o fun- A partir da delimitação do objeto do Di-
damento do Direito. reito e das possíveis generalizações episte-
Em princípio o Direito sofreu durante mológicas em torno de sua fundamentação,
longo tempo de uma crise de identidade, lembra A. L. Machado Neto (1969, p. 19-20)
pois o seu objeto variava da teologia à que os argumentos de Kirchmann, um dos
filosofia, de um modo ou de outro se lo- mais famosos negadores da ciência do Di-
calizando no conhecimento metafísico. Há reito, caiu por terra. Principalmente quando
autores que não reconhecem um caráter se percebe que a dinâmica epistemológica
científico ao Direito: exemplifique-se com deixou de ser objeto exclusivo das ciências
Tércio Sampaio Ferraz (1973, p. 160). Tal naturais, pois se refutava o Direito como
corrente de pensamento reserva ao Direito ciência devido ao seu caráter instável, posto
um substrato de ordem técnica ou de arte, que fenômeno histórico.
considerando-lhe parte da sociologia, da O Direito, portanto, merece o caráter
história e mesmo da etnologia. científico, porque detém um objeto especí-

140 Revista de Informação Legislativa


fico. Aliás, muito a propósito lembra a esse obstante, deve-se perceber que objeto é o
respeito André Franco Montoro (1991, p. substrato no qual incide a observação do
95). Evidente que não é apenas a existência pesquisador; método é tão-somente o ins-
do objeto que caracteriza a ciência, mas a trumento de que se vale o estudioso para
maneira como este é investigado. Assim verificar o substrato por ele eleito. Ademais,
o Direito é ciência porque, além de deter o trabalho do comparativista não se esgota
um objeto determinado para suas consi- num mero método de comparação, posto
derações, o jurista elabora sua investigação que, para entender cada um dos ordena-
com rigor técnico ditado pela lógica sedi- mentos jurídicos estudados, precisará lan-
mentada na experiência exposta aos novos çar mão de outros instrumentos de cultura
paradigmas. para cotejar com segurança o substrato sob
análise.
A confusão entre objeto e método
2. Caracterização científica
tornou-se uma armadilha perigosa capaz
do Direito Comparado de surpreender as mais autorizadas inteli-
O Direito Comparado trabalha sobre gências. Mesmo aqueles juristas que conse-
o mesmo substrato, e não poderia ser guem vislumbrar com lucidez a diferença
diferente, do fenômeno jurídico generica- entre objeto e método em sede de Direito
mente considerado: o conjunto de normas Comparado não conseguem escapar da
postas. Apesar dessa constatação, o caráter armadilha terminológica. Felipe de Sola
científico do Direito Comparado continua Cañizares (1954, p. 104) não escapa a essa
a merecer vacilações por parte dos estudio- armadilha, porque, ao escrever que “lo
sos. Neste sentido H. C. Gutteridge (1954, objeto de la comparación son dos o más
p. 14) afirma que a definição do Direito sistemas jurídicos”, parece estar seguro do
Comparado encontra-se interligada com a substrato sobre o qual repousa o Direito
questão de se saber se essa nova realidade Comparado. No entanto, quando deveria
pode ser considerada uma ciência. evoluir para reconhecer a cientificidade
Em verdade a grande questão para do Direito Comparado, surpreende com
essa celeuma encontra-se na confusão esta passagem:
realizada a partir da própria terminologia “Si la esencia del derecho comparado
deste ângulo da ciência jurídica: Direito es la ‘comparación’, de ello se deduce
Comparado. A rigor, não se vislumbra que se trata de um método aplicado a
outra designação melhor para essa faceta las ciencias jurídicas. La idea de que
do conhecimento jurídico, mas sabe-se el derecho comparado es un método,
que a melhor expressão foi cunhada pelos apuntada entre otros por De Francis-
autores germânicos que perceberam no ci, Messino y Kaden, ha sido brillan-
termo Comparação de Direitos a verdadeira temente desarrollada por Gutteridge,
mensagem deste pathos da ciência. Não se seguido, especialmente, por David,
deve negar, por outro lado, que essa termi- y parece que es la idea que tiende a
nologia alemã ratifica o caráter de método imponerse, porque es la única que
que muitos juristas querem atribuir ao permite formular una noción del
Direito Comparado. derecho comparado compatible con
No cerne da questão, encontra-se distin- todas las finalidades y aplicaciones.”
guir objeto de método. Evidente que não (SOLA CAÑIZARES, 1954, p. 100)
é tarefa das mais fáceis. Tércio Sampaio Cláudio Souto (1956, p. 118), partindo
Ferraz Júnior (1973, p. 32) afirma que as da própria terminologia, escreveu um
modernas contendas a propósito da ciência ensaio para demonstrar a inexistência
encontram-se ligadas à metodologia. Não científica dessa especialidade jurídica,

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 141


pois seria “incoerência em tal orientação, objeto determinado, um método específico
o manter, o denominar Direito Comparado e prevalente, princípios organizados na lite-
para referência àquilo que se considera sim- ratura jurídica em vários países do mundo
plesmente um método”. Mais moderado e, finalmente, detém autonomia didática.
mostrou-se José Nicolau dos Santos (1955, Não se pode reclamar do Direito Com-
p. 349) ao ventilar a hipótese de ser o Direito parado a ausência da autonomia legislativa,
Comparado uma ciência auxiliar. pois, como lembra Ivo Dantas (2000, p. 60),
Se entre aqueles que negam cientificida- esta lhe é estranha como objeto. Ademais
de ao Direito Comparado encontram-se in- deve-se registrar que, além da compara-
teligências brilhantes, há uma corrente não ção entre ordens jurídicas, não se utiliza
menos notável de juristas reconhecendo o o Direito Comparado de quaisquer outros
caráter científico ao Direito Comparado. instrumentos estranhos ao cotidiano dos
Naojiro Sujiyama (1941, p. 61) atribui juristas.
caráter científico ao Direito Comparado,
de modo sucinto: “El Derecho comparado
3. Metodologia em Direito Comparado
como tiene por factor esencial la compro-
bación positiva, posee propriamente el Não há ciência sem método, porque o
carácter científico”. conhecimento epistemológico reclama rigor
Em língua portuguesa, Carlos Ferreira e técnica. É verdade que o método é variável
de Almeida (1988, p. 31), da Universidade de acordo com o próprio substrato traba-
Nova de Lisboa, ao constatar a existência do lhado pelo estudioso. Aliás, René Descartes
objeto e de um método específico no âmbi- (1973, p. 38) deixou assentado que “o meu
to do Direito Comparado, lança um olhar desígnio não é ensinar aqui o método que
lúcido sobre essa querela, nesta passagem: cada qual deve seguir para bem conduzir
“Por isso, concluímos (com Zweigert) que o sua razão, mas apenas mostrar de que ma-
direito comparado é uma ciência autónoma, neira me esforcei por conduzir a minha”.
que se subdivide em dois ramos ou verten- Em certos momentos da pesquisa cien-
tes complementares – a macrocomparação tífica, o método atinge uma importância
e a microcomparação”. quase igual à própria ciência a que serve.
Fernando Bronze (1976, p. 378-379), da Cabível lembrar que a divergência do pró-
Faculdade de Direito de Coimbra, entende prio termo ciência guarda estreita relação
que o método comparatístico é instrumental com a metodologia. O Direito Comparado
em relação à ciência do Direito Comparado, talvez seja um dos raros exemplos em que
notando que a metodologia simplesmente ocorra uma hipertrofia do método diante
fornece os dados ao comparativista, os do objeto estudado.
quais serão seriados, catalogados e classifi- Acostumou-se em Direito ter o jurista
cados coerentemente pela ciência do Direito de praticar vários métodos na análise do
Comparado. ordenamento. Em sede de hermenêutica,
No Brasil, Caio Mário da Silva Pereira variados são os instrumentos com os quais
(1952, p. 44) igualmente concorda com a o estudioso trabalha. No âmbito do Direito
autonomia científica do Direito Compa- Comparado, todos os métodos utilizados
rado, vez que este se utiliza do método pelo estudioso são subsídios para a com-
comparativo, mas não se esgota nele. paração. Ninguém seria ingênuo ao ponto
Na medida em que se vislumbra o con- de afirmar que o Direito Comparado, ao
ceito de método, de ciência e de autonomia, desenvolver o seu mister, utilizar-se-ia
não se pode querer restringir o Direito tão-somente do método comparativo. Para
Comparado à mera qualificação instrumen- compreender um determinado ordenamen-
tal. Vai ele muito além, posto possuir um to jurídico, o pesquisador necessariamente

142 Revista de Informação Legislativa


deverá munir-se inclusive de instrumentos acadêmicas para indagar da praticidade
metajurídicos. de suas pesquisas.
Como bem lembra Naojiro Sujiyama A formação de cada jurista terá impli-
(1941, p. 817-827), os estudiosos guardam cação direta no desenvolvimento de suas
em simultaneidade a tendência teórica e o pesquisas comparativas. Em situação de
viés prático da pesquisa em Direito Com- antagonismo, encontram-se os juristas
parado. A primeira corrente preocupa-se adeptos do positivismo puro e aqueles for-
em investigar o fundamento teórico dos mados pela visão do livre arbítrio.
ordenamentos postos para investigação; a Naojiro Sujiyama (1941, p. 56-57) chega
segunda, trabalha com a realidade presente a afirmar de modo cristalino que o estudio-
e com os métodos práticos para desvendar so do Direito Comparado está envolvido
as semelhanças e diferenças entre os orde- na mescla do social, do político, da vida
namentos estudados. enfim.
A rigor, o que existe é uma predomi- “No hay ningún Derecho compara-
nância na postura do jurista comparatista, do que no exija una comprobación
vez que ninguém é eminentemente prático positiva comparativa y sistemática,
sem teoria e não há teoria que não se con- que consiste, en suma, en investigar
duza pela via mais prática. De todo modo la substancia del derecho viviente,
a persecução dos objetivos, em regra, em para observar los efectos que derivan
Direito Comparado, tem conotação prática, de ella y las circunstancias sociales
pois a ela servem. que se encuentran detrás del derecho
Ao problematizar sobre a cientificidade viviente”.
ou não do Direito Comparado e a própria Demonstra-se, assim, mais uma vez, que
utilização do método, Felipe de Solá Cañi- não há método capaz de neutralizar a ciên-
zares (1954, p. 101) lança mão do pragma- cia, mormente aquelas ditas sociais, como é
tismo para encerrar a contenda em torno o Direito, vez que aqui o estudioso leva para
da cientificidade do Direito Comparado, suas análises toda a carga ideológica que ad-
nesta passagem: quiriu ao longo de sua formação intelectual
“Pero se el derecho comparado es e de vida como ser pensante do seu tempo.
un método, se plantea entonces, com Torna-se previsível que o jurista de
mayor motivo, la cuestión de saber formação positiva pura terá uma postura
se el derecho comparado es o no una meramente formal diante dos ordenamen-
ciencia. En realidad, es preciso saber, tos estudados, ao passo que o estudioso de
previamente, la exacta significación formação mais livre dará uma concepção
de los vocablos ‘ciencia’ y ‘método’, y mais valorativa e facilmente estabelecerá
Gutteridge, aludiendo a la vaguedad um ideal destinado a fomentar uma política
de tales expresiones, cita un estudio jurídica, que pode ser até de fundo legislati-
titulado Método de la ciencia jurí- vo. Não obstante é preciso que se diga que
dica y un libro sobre La ciencia del ambas as escolas têm sua importância para
método científico. No creemos que la o desenvolvimento da ciência jurídica.
cuestión tenga una gran importancia Em sede de metodologia de Direito
práctica”. Comparado, o que verdadeiramente se
Nota-se que Felipe de Solá Cañizares pode afirmar, nos dias que correm, é que os
começa por discutir a matéria em nível comparatistas cada vez mais se aperfeiço-
científico e termina por abandoná-la, por am nos métodos interpretativos compara-
não vislumbrar um efeito prático nessa dos, utilizando-se dos métodos legislativos
contenda. Tal qual a postura do jurista, como subsídios. De modo profundamente
outros estudiosos abandonam discussões didático, Carlos Ferreira de Almeida (1988,

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 143


p. 19-30) nos oferece um roteiro prático e Finalmente a quarta e última regra dessa
lúcido para quem deseja iniciar pesquisa etapa exige que o comparatista busque en-
no âmbito do Direito Comparado, ao es- contrar a compreensão do instituto, norma,
clarecer que a metodologia aplicada na ou sistema estudados e a efetiva aplicabili-
seara do Direito Comparado dependerá da dade destes no contexto social.
dimensão desejada. Variando, portanto, a A fase de compreensão ou integrativa
metodologia consoante se trate de macro destina-se à análise crítica do jurista que
ou microcomparação. Esclarece, ainda, o estabelecerá semelhanças e diferenças en-
jurista lusitano que, entre a macro e a micro- tre os parâmetros escolhidos no momento
comparação, há elementos convergentes. imediatamente anterior da pesquisa.
Como se torna inviável, neste espaço, o Na última fase, exatamente denomina-
aprofundamento de cada espécie de com- da comparação ou síntese comparativa, o
paração (macro ou micro) limita o estudo jurista explicará o porquê das semelhanças
aos momentos comuns a qualquer emprei- e diferenças encontradas em sua pesquisa,
tada em sede de Direito Comparado, que expondo todos os dados apurados duran-
se divide em três fases: conhecimento (fase te sua análise, devendo apresentar suas
analítica), compreensão (fase integrativa) e conclusões.
comparação (síntese comparativa).
Em síntese apertada, a fase de conheci-
4. Conclusões
mento (analítica) corresponde à delimitação
do campo de atuação do jurista compara- 1. O Direito é dotado de caráter cientí-
tista. Significa que escolherá parâmetros fico, posto que seu discurso é formulado
sobre os quais vai trabalhar. Nessa primeira de proposições lógicas, as quais regem
fase, 4 (quatro) regras são denominadas de seu desenvolvimento e se expõe a novos
ouro e podem ser enumeradas da seguinte paradigmas.
forma: 1a) utilizar as fontes originárias; 2a) 2. O Direito Comparado assume a pos-
proceder à análise de acordo com a comple- tura científica por ser dotado de um objeto,
xidade das fontes aplicáveis; 3a) usar o mé- de método próprio, além de autonomia
todo próprio da respectiva ordem jurídica; literária e didática.
e 4a) procurar conhecer o direito vivo. 3. A metodologia em Direito cada vez
No primeiro pré-requisito dessa fase, mais recepciona elementos metajurídicos,
faz-se imperativo o conhecimento da língua por uma imposição holística da ciência
em que estão escritos os ordenamentos jurí- contemporânea.
dicos estudados. E aqui cabe a ressalva de 4. O método comparativo é apenas uma
que é imprescindível o domínio dos termos das ferramentas do Direito Comparado não
jurídicos na língua original. comprometendo seu caráter científico, até
A segunda regra reclama do compara- porque, nessa seara do fenômeno jurídico,
tista uma pesquisa minuciosa a propósito o estudioso se vale de outros instrumentos
da jurisprudência e da literatura jurídica co- inseridos no cotidiano dos operadores do
mentadora do ordenamento pesquisado. Direito considerado na sua generalidade.
O terceiro requisito da primeira fase 5. Seguramente é no âmbito do Direito
impõe ao estudioso uma afinidade com os Comparado que a cientificidade do fe-
princípios peculiares que elegeram a ordem nômeno jurídico experimenta sua prova
jurídica estudada. Nesse particular toda cabal, na medida em que qualquer detalhe
cautela é recomendada, porque conhecer os despercebido pode ocasionar o compro-
meandros de uma ordem jurídica alieníge- metimento do estudo formulado entre as
na não é tarefa jurídica das mais fáceis. ordens normativas cotejadas.

144 Revista de Informação Legislativa


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Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 145


Democracia, exigências normativas e
possibilidades empíricas

José Pedro Luchi

Sumário
1. Introdução. 2. O desenvolvimento das
teorias da democracia e seu contexto. 3. A dupla
revisão da teoria política da escolha racional. 4.
Uma revisão da teoria sistêmica. 4.1. O Estado
Supervisor e sua crítica. 4.1.1. O controverso
ultrapassamento da auto-referência. 4.1.2. Ame-
aça neocorporativista ao Estado Constitucional
de Direito. 4.1.3. Carência de representatividade
democrática. 5. A circulação do Poder no Estado
de Direito. 5.1. A distinção núcleo–periferia. 5.2.
O sistema de Comportas. 5.3. Dois modos de
elaboração de problemas: normal e conflitual. 6.
Confronto conclusivo: Peters e a mitigação das
exigências normativas da deliberação. 6.1. O con-
ceito de legitimidade e seus desdobramentos. 6.2.
A efetiva função de discursos públicos. 6.3. Igual-
dade versus estratificação do espaço público.

1. Introdução
Este artigo reconstrói, num primeiro
momento, na esteira de J. Habermas1, a se-
quência de teorias da democracia surgidas
após a Segunda Guerra Mundial, buscando
a lógica do desenvolvimento das novas
teorias. Da teoria do pluralismo passa-se
àquela das elites e, diante da falsificação
de suas premissas, ocorre a bifurcação em
Teoria Econômica da Democracia e Teoria
dos Sistemas. São analisadas revisões de
José Pedro Luchi é Professor do Mestrado cada uma dessas bifurcações feitas, res-
em Direito da Unversidade Federal do Espírito
Santo (UFES), Doutor em Filosofia pela Pontifi- 1
(HABERMAS, 1994, 1997). Sobretudo o Cap.
cia Università Gregoriana – Vaticano. VIII.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 147


pectivamente, por J. Elster e H. Willke. A cracia, que conservava fraca normativida-
dupla revisão operada por Elster conduz de, próxima ao modelo liberal da democra-
ao resgate do conceito de deliberação cia. Isto é, aqui a preocupação não é com a
política. A releitura da teoria sistêmica, à legitimidade do poder político, mas a sua
qual Habermas concede grande espaço, imposição de fato. Entendendo-se poder
mostra o fracasso da tentativa de manter social como “capacidade de imposição de
a terminologia de “Estado de direito” e interesses organizados a outros, mesmo
“democracia” com um conteúdo diverso. contra sua vontade”, tanto o poder político
O Estado não pode dividir a soberania como o poder administrativo são vistos
com organizações corporativas, nem o como formas de poder social.
intercâmbio entre experts pode substituir De baixo para cima, a conquista do
um debate político representativo de todos poder político se dá por meio de eleições
os cidadãos. Um saber a ser implementado universais, na concorrência entre partidos,
socialmente, isolado de questões éticas e e, conforme o resultado, é distribuído entre
morais, efetivamente não se dá. governo e oposição. O jogo de forças das
Numa segunda etapa, é apresentada a organizações sociais provoca a elaboração
leitura habermasiana de um modelo em- e implementação de leis, no quadro da
pírico de circulação do poder, que inclui respectiva distribuição de poder, em de-
a subdivisão entre núcleo e periferia do cisões vinculantes. De cima para baixo, o
sistema político, a estrutura de comportas poder administrativo intervém tanto sobre
do processo político de elaboração de leis e a formação da vontade no parlamento como
decisões vinculantes e finalmente dois mo- sobre as organizações da sociedade.
dos de resolução de problemas, o normal e Esse processo só poderia gerar alguma
o conflitual. O tipo de resolução depende legitimidade se o poder social fosse distri-
precisamente da capacidade da Periferia e buído mais ou menos equilibradamente
da opinião pública de se mobilizar e pres- entre os diferentes grupos e seus interesses;
sionar o sistema político. do contrário, parte dos grupos sociais não
Finalmente, é estudado um artigo de B. seriam representados na disputa política.
Peters (2001) sobre o espaço público deli- Com efeito, aqui não lidamos mais com
berativo. A partir de dados empíricos em atores individuais, mas com associações e
confronto com as altas exigências normati- interesses organizados.
vas de uma política deliberativa, esse autor As seguintes premissas, que se conec-
conclui com um convite à suavização de tais tam com a visão liberal, são necessárias
exigências, diante da grande estratificação e para a manutenção da teoria pluralista
elitização dos meios de comunicação. Ques- da democracia. Com a falsificação dessas
tiona, além disso, que discursos públicos premissas, cai também o modelo: a) todos
tenham como função primeira conduzir os atores coletivos têm as mesmas chances
a um consenso explícito, mas os vê como de influência sobre processos relevantes; b)
promotores de um aprendizado social. os membros das organizações determinam
Algumas referências à situação brasileira a política das organizações e partidos; c)
são esboçadas, numa reflexão que deve esses últimos são induzidos à disposição
continuar a ser aprofundada. para negociar por múltiplas associações.
“A Democracia de concorrência configura
então um equilíbrio social de poder no
2. O desenvolvimento das teorias da
plano da distribuição do poder político de
democracia e seu contexto tal forma que a Política estatal considera
Em seguida à Segunda Guerra Mundial, igualmente um amplo espectro de interes-
foi elaborada a teoria pluralista da demo- ses” (HABERMAS, 1994, p. 402).

148 Revista de Informação Legislativa


As condições sociais mostraram que os em cada nova eleição por meio de voto de
membros das associações participam muito protesto, ausência, abstenção, etc.
diferenciadamente das decisões e que gran- A teoria dos sistemas se ocupa então
de parte beira a inatividade. Em segundo da condução do sistema político, agora
lugar, a influência de diversos grupos so- declarado autônomo. Corta os laços com
ciais sobre os detentores do poder político um modelo normativo de partida. A teoria
também é muito diversificada e não bem econômica da democracia se ocupa com
distribuída. Ambas as falsificações do mo- a questão da legitimação, a partir de um
delo pluralista levaram a uma Teoria das individualismo metodológico.
Elites, na linha de J. Schumpeter (1950). Essa última teoria pretende considerar a
Se a maioria dos membros das associa- relação entre eleitores e políticos no quadro
ções é pouco ativa, compete então às elites de uma escolha racional, isto é, como mera
levar adiante de modo eficaz a luta pelo estratégia para asseguração de respecti-
poder. Também os dirigentes políticos se vos interesses egocêntricos. Os eleitores
desvincularam crescentemente das massas, associam então seu voto a determinadas
estabelecendo objetivos no seio das elites. pretensões de auto-interesses mais ou me-
Democracia se resume, então, à escolha nos esclarecidos e os políticos, que querem
plebiscitária entre elites concorrentes. conservar ou conquistar cargos, trocam tais
Porém, pergunta-se: como o interesse votos pela oferta de políticas.
das não-elites pode ser satisfeito? Dever- A experiência abalou essa visão exclu-
se-ia admitir uma racionalidade das elites sivamente egocêntrica das motivações do
capaz de atender ao bem comum no exer- voto e mostrou que o eleitor se decide tam-
cício de funções estatais. Torna-se relevante bém a partir de valores éticos. Com efeito,
o papel de uma administração estatal capaz por exemplo, a taxa de comparecimento
de produzir lealdades das massas pouco às urnas, nos países onde ele é livre, não
politizadas, por meio de uma colocação ade- aumenta em situações de decisão apertada
quada de objetivos políticos. Agora o siste- em questões de interesse.2
ma político precisa assumir a articulação de
“necessidades públicas relevantes, conflitos 3. A dupla revisão da teoria
latentes, problemas removidos, interesses política da escolha racional
não capazes de organização” (HABERMAS,
1994, p. 403). Pode-se perguntar também: John Elster analisa as dificuldades que
sob quais condições isso é possível? surgem na aplicação da teoria da escolha ra-
Uma consideração mais cautelosa dos li- cional aos processos políticos.3 Ele conside-
mites de possibilidades do sistema adminis- ra irrealista: a) a admissão de que escolhas e
trativo evidenciou déficits tanto de condução preferências dos eleitores seriam algo fixo.
quanto de legitimidade do modelo anterior e De fato elas mudam com o processo político
gerou uma bifurcação no desenvolvimento a partir de mais informações e argumenta-
teórico. No lado out-put, surge um déficit ções; b) que todo agir racional seja apenas
de direção: o sistema administrativo se vê estratégico, isto é, um cálculo egocêntrico
reduzido na capacidade de ação porque de vantagens. A civilização como nós a
organizações e subsistemas funcionais tais conhecemos pressupõe também o agir por
como educação, saúde, tecnologia se sub- honestidade e senso de dever.
traem a uma intervenção direta. O sistema
administrativo parece mais apto a reagir 2
Habermas (1994, p. 404) não detalha essas conclu-
sões das ciências sociais empíricas, mas apenas acena
para evitar crises que a um papel ativo. Do para trabalhos correspondentes.
lado in-put, governos e partidos têm sua ação 3
Cf. J. Elster apud J. Habermas, 1994, notas 15 e ss
limitada pelo risco de retirada de legitimação do Cap. VIII, além da Bibliografia de referência.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 149


Buscando ampliar as bases da formação a racionalidade de normas, e, portanto,
racional da vontade política para além do um outro modo de coordenação de ações
agir estratégico, Elster procede a duas revi- sociais, não somente a influenciação estra-
sões no modelo de escolha racional. tégica recíproca de atores por ameaças e
Num primeiro momento de revisão, promessas, mas também a comunicação
Elster introduz, ao lado do agir estratégi- em vista do entendimento em função das
co, o agir regulado por normas. Porém, na mesmas razões e então um nível de impar-
visão de Habermas, considera-o ainda num cialidade de discurso prático que é precisa-
quadro demasiado empirista. E responde a mente aquele da justiça. “Tarefa da política
duas objeções: a) normas são apenas justi- não é apenas a eliminação de regulações
ficações a posteriori para o agir oportunista. ineficientes e antieconômicas, mas também
Resposta: até mesmo para usar normas a produção e garantia de relações vitais que
estrategicamente, é preciso que elas sejam correspondam aos interesses simétricos de
antes reconhecidas intersubjetivamente. todos” (HABERMAS, 1994, p. 412).
Sua validade social antecede qualquer uso Como conclusão parcial, a pesquisa
oportunístico; b) normas são seguidas para de Elster mostra a relevância empírica
evitar sanções internas (culpa ou vergo- do conceito de política deliberativa. Os
nha), então sua observância é estratégica. embates por meio dos quais se forma a
Resposta: tratar racionalmente as conse- vontade política incluem mecanismos que
qüências de um procedimento que seria filtram os argumentos capazes de produzir
irracional (a observância de normas) não legitimidade e são capazes de desmascarar
explica como se chega a tal procedimento. interesses inconfessados. Racionalidade
Mesmo que alguém agisse no sentido da da decisão não se coloca então apenas no
objeção, a origem das normas mesmas não nível individual, mas sobretudo naquele
seria assim explicada. institucional dos procedimentos. A “vir-
Habermas (1994, p. 410) observa que Els- tude pessoal” é de certa forma substituída
ter continua considerando as normas como pelo processo deliberativo, cujos resultados
uma expectativa recíproca de comportamen- produzem um poder comunicativo que
to sem caráter racional. Sua distinção em re- concorre com o poder social que pode fazer
lação ao agir estratégico é que este se orienta ameaças e com o poder administrativo em
pelos resultados, enquanto o agir regulado mãos dos funcionários.
por normas se atém ao “comportamento
prescrito” por forças “quase internas”.
Ora, se normas não são racionais, a co- 4. Uma revisão da teoria sistêmica
ordenação das ações entre diversos atores A teoria sistêmica não nega que possa
continua somente podendo ocorrer por surgir algo como poder comunicativo no
negociações do tipo “barganha”, em que re- quadro do espaço público que discute as
gras são equiparáveis a fatores que limitam normas da sociedade. Porém, ela descreve
o espaço de ação. Porém, ainda assim não tal processo de modo a manifestar sua
se explica porque os atores podem mudar impotência. Também a política, ancorada
de opinião durante o processo de formação no aparato estatal na visão de Luhmann,
política da vontade e não apenas a partir de autonomiza-se como um sistema funcional
ameaças e promessas críveis, mas também a entre outros e haure legitimidade a partir
partir de argumentos válidos, como mostra de si mesma, isto é, do cumprimento das
a análise das ações sociais.4 É preciso pro- regras previstas para o funcionamento
ceder a uma segunda revisão que admita de seus procedimentos, dada a completa
4
A partir dessas chaves de interpretação, Elster positivação do Direito. As disputas entre
estuda as revoluções americana e francesa. governo e oposição, por meio da concor-

150 Revista de Informação Legislativa


rência entre partidos, são linhas pelas tônomos de uma sociedade que seria então
quais se legitimam de modo paternalístico integrada e tutelada pelo Estado.
procedimentos que dizem respeito tanto a No contexto do neocorporativismo,
complexas redes organizativas quanto ao Willke (apud HABERMAS, 1994, p. 416)
público eleitor menos complexo. pensa que mesas-redondas, grêmios de
Se agora H. Willke pretende repensar discussão e articulações as mais diversas
a teoria do Estado dentro do quadro da seriam um lugar intermediário de nego-
teoria sistêmica de modo a responsabilizar ciação que permitiria “à Política, numa so-
eticamente a sociedade, isso então significa ciedade descentrada, conservar a unidade
que a concepção supra citada de Luhmann do conjunto da sociedade, unidade que o
experimenta um abalo. Estado mesmo não pode mais representar,
Retorna a problemática da legitimação. no papel de supervisão terapeuticamente
Os ganhos com a diferenciação dos sub- instruída”.
sistemas sociais poderiam ser revertidos
em perdas se não se conseguisse manter 4.1. O Estado Supervisor e sua crítica
a integração da sociedade. Os subsiste-
Habermas estabelece três pontos de
mas como saúde, tecnologia, ciência, por
análise crítica da proposta de revisão da
exemplo, são, pensa-se, insensíveis aos
teoria sistêmica por H. Willke.
custos que seu incremento provoca para
o conjunto da sociedade. Está na lógica da 4.1.1. O controverso
teoria que possa ocorrer uma reintegração ultrapassamento da auto-referência
a nível mais alto.
Porém, não há mais nenhum lugar nem Como resposta a sistemas perturbados
nenhuma linguagem em que os problemas internamente e que precisam de ajuda ou
da sociedade possam ser pensados em a prejuízos causados ao ambiente, não se
seu conjunto. Porque cada sistema forma coloca uma intervenção estatal direta, de
sua própria imagem da sociedade. Nem a resultados pouco eficazes, mas negociações
linguagem cotidiana, pouco especializada, não-hierárquicas entre sistemas. Cada sis-
nem aquela específica de cada sistema, es- tema só pode mudar de acordo com suas
pecializada demais, pode tratar de questões regras internas e então se trata de provocar
do conjunto. mudanças apropriadas no ambiente, como
Ameaças à integração social colocam é freqüente em planejamentos econômicos.
problemas de legitimação para o Direito Por meio de um tipo de “aconselhamento
e a Política, especializados na garantia de empresarial”, sistemas fechados podem
integração e na prevenção de desmoro- ser colocados em vinculação produtiva
namentos. Porém, tais problemas não são e retroagente sobre cada sistema. Assim
colocados à primeira vista como de legiti- pensa Willke.
mação porque essa é uma categoria interna A objeção de Habermas diz respeito,
à política e o Estado não representa mais o aqui, à plausibilidade do intercâmbio de
conjunto da sociedade. perspectivas entre sistemas, no quadro
H. Willke diagnostica algo como o retor- dos pressupostos dados. Problema crucial
no da problemática da legitimação diante da teoria política de Hobbes era a estabi-
de sinais de irracionalidade do conjunto do lização de uma ordem social a partir de
sistema. Qual é a sua proposta? Seria um atores egocêntricos, que agem em vista
acordo reflexivo entre os diversos sistemas, apenas de seu auto-interesse. Mas aqui o
acordo obtido pela mediação de um Estado problema é ainda mais agudo, porque “a
supervisor. A racionalidade deveria vir a egocentricidade das perspectivas que se
partir de um equilíbrio entre sistemas au- encontram não é mais determinada pelas

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 151


próprias preferências e valores, mas por Essa mudança sugerida no tipo do direi-
meio de uma gramática de interpretação to, objeta Habermas, ameaça a Democracia.
do mundo. Sistemas autopoieticamente O mesmo neocorporativismo, que busca
fechados não partilham, diferentemente resolver problemas de integração social,
de indivíduos em estado de natureza, mais ameaça a legitimidade. Porque agora ocorre
nenhum mundo comum” (HABERMAS, algo como uma “dupla–soberania”: o Esta-
1994, p. 420-421). do partilha a função de colocação do Direito
Para a teoria sistêmica, cada sistema com instâncias funcionais da sociedade.
pode, no máximo, observar os outros e A Política perde o controle sobre o dire-
observar as observações que os outros fa- cionamento de contextos promovido por
zem de si, nos seus resultados. Porém, tal sistemas corporativistas de negociações.
espiral de observações não conduz ainda “Quanto mais a administração pública se
para fora do fechamento. Seria preciso deixa envolver em ‘discursos societais’ de
compreender o outro sistema e não apenas um novo tipo, tanto menos ela pode satis-
observá-lo conforme a própria gramática. É fazer a forma democrática jurídico-estatal
necessária, então, uma linguagem ao menos do círculo oficial do Poder” (HABERMAS,
parcialmente comum, que é vetada pelos 1994, p. 423).
pressupostos sistêmicos, mas que H. Willke Willke pretende não abandonar, mas
convoca a esperar do choque intra-sistêmi- reestruturar a idéia do Estado Constitucio-
co, numa nova etapa de desenvolvimento nal de direito. Basta que tais sistemas de
social. Habermas pensa que a linguagem negociação sejam legalizados para garantir
quotidiana faz precisamente tal papel de sua legitimidade. Os novos “programas
“última metalinguagem” e possui “regras de relações” do direito se impostam sobre
de transferência intra-sistêmica”, permitin- a autocondução dos sistemas e não mais
do comunicação entre eles. A construção de sobre a autonomia privada e pública dos
Willke, então, não convence. cidadãos. Com esse deslocamento da
ação para organizações, pensa Habermas,
4.1.2. Ameaça neocorporativista ao desloca-se a base da importação das ações
Estado Constitucional de Direito e se enfraquece também a asseguração
A revisão da teoria sistêmica que esta- dos bens coletivos. Não há harmonia pré-
mos considerando prevê uma outra manei- estabelecida entre aumento de complexi-
ra de atuação do direito, não mais por meio dade da administração estatal e inclusão
de uma imposição autoritativa de objetivos política e econômica. Houve períodos em
e leis correspondentes, mas por meio de que ganhos de diferenciação corresponde-
“programas de relações” que provoquem e ram a ganhos normativos; porém, hoje se
capacitem o sistema que está gerando risco observam também desenvolvimentos con-
à automodificação. O Direito deve então trários. Bem-estar e segurança de uma parte
passar da regulação de relações pessoais da população vão junto com a segmentação
a relações sistêmicas, de uma concepção de uma classe prejudicada e impotente,
individualista a uma concepção sistêmica. que recebe menos compensações e é mais
Os âmbitos de proteção de bens coletivos na atingida pela subtração de bens coletivos.
sociedade de risco, por exemplo, proteção Por isso esses sistemas
diante de ameaças ao ambiente, da poluição “dependem de ser instruídos pelos
atômica, de conseqüências incontroláveis clientes atingidos no seu papel de
de produtos farmacêuticos e aparelhos cidadãos sobre seus custos externos
técnicos, provocam automudanças nos sub- e as conseqüências de seus fracassos
sistemas sociais, eis a nova ação da política internos. Se o discurso dos experts
por meio do direito. não é retroacoplado com a formação

152 Revista de Informação Legislativa


da opinião e da vontade, a percepção Essa concepção pressupõe que o saber
de problemas dos experts se impõe dos experts poderia ser isolado de questões
contra os cidadãos. Cada diferença de éticas e morais, o que de fato não se dá.
interpretação desse tipo vale, porém, Os problemas sistêmicos somente são per-
do ponto de vista do público dos ci- cebidos e tematizados como tais à luz de
dadãos, como mais uma confirmação um pano de fundo do mundo da vida que
de um paternalismo sistêmico que supõe interesses feridos e identidades ame-
ameaça a legitimidade” (HABER- açadas, e, então, mais que o saber reflexivo.
MAS, 1994, p. 425-426). Controvérsias entre especialistas emergem
também por causa da impregnação ética
4.1.3. Carência de e moral do saber, na sua implementação
representatividade democrática política. Daí a necessidade de uma política
Embora Willke fale de consenso e o colo- deliberativa, isto é, de disputas públicas
que mesmo como uma idealização necessá- entre experts, controladas por meio da opi-
ria para discursos racionais, como tentativa nião pública.
de harmonização segundo procedimentos
que promovem comunicação entre unida- 5. A circulação do Poder
des descentradas, Habermas considera tal no Estado de Direito
vocabulário uma simulação. Sob premissas
sistêmicas, essas palavras, procedentes de Preparando sua elaboração teórica con-
outra tradição teórica, poderiam ter sentido clusiva dessa temática, e na continuidade
apenas metafórico. das críticas acima exercidas, Habermas se
“Diálogo” aqui não inclui, como na prá- serve do modelo de integração social de-
xis comunicativa, normas, valores e interes- senvolvido por B. Peters (1993, p. 344 e ss)
ses, mas apenas aborda o saber sistêmico. para olhar sobre a circulação de poder do
Experts se esclarecem mutuamente sobre Estado de Direito, sob um ponto de vista
seu âmbito específico e são convidados a empírico.
sugerir algo para resolver problemas apre-
5.1. A distinção núcleo–periferia
sentados em outros âmbitos. Algo como
um curso continuado de Management. Em O primeiro item desenvolvido por Pe-
segundo lugar, o diálogo se realiza sem ters é a distinção centro–periferia, quanto
um horizonte de universalidade, sem que aos processos de comunicação, decisão
a terapia dos sistemas funcionais possa e implementação. O centro poliárquico
reivindicar representatividade. Observa do sistema político é constituído pela
Habermas (1994, p. 426): administração, inclusive o governo, pelo
“O reducionismo cognitivista-em- Judiciário e pelas instituições de formação
presarial dos discursos de direção democrática da opinião e da vontade (cor-
neocorporativista se explica através porações parlamentares, eleições políticas,
disso que a harmonização entre concorrência entre partidos...). No núcleo, a
sistemas funcionais levanta exclusi- capacidade de ação aumenta com a densifi-
vamente problemas de coordenação cação da complexidade organizatória. Por
funcional. Aqui o saber relevante exemplo, o legislativo é mais aberto para
para a condução de diferentes grupos percepção e tematização de problemas, en-
de experts deve ser trabalhado como quanto o aparato administrativo tem mais
políticas e implementado por juristas capacidade de elaboração de problemas.
esclarecidos conforme a teoria sistê- Constituem a periferia interna da admi-
mica em programas correspondentes nistração instituições dotadas de direito de
de Direito”. auto-administração e que exercem funções
Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 153
estatais delegadas como universidades, tivos), procedimentos que funcionam como
associações beneficentes, fundações, au- comportas. Tal sistema de comportas impe-
tarquias, etc. de que o poder administrativo ou o poder
O núcleo do sistema político tem uma social se imponham autonomamente.
periferia externa que se compõe de “recep-
tores” e “fornecedores”. Receptores são os 5.3. Dois modos de elaboração de
sistemas oficiais de negociação, agências, problemas: normal e conflitual
grupos e organizações que se situam entre Entretanto, nem sempre os fluxos de
o público e o privado, os quais preenchem pressão que vêm do poder social, atraves-
funções de regulamentação. Influenciam sando a corrente “oficial”, representam
a elaboração de leis e são orientados por somente interesses espúrios. Às vezes tam-
medidas out-put. Fornecedores são asso- bém contribuem para simplificar os pro-
ciações e grupos da periferia propriamente cessos no núcleo do sistema político. Com
dita do núcleo político da sociedade, que efeito, têm uma rotina de funcionamento
influenciam os projetos de lei e políticas na segundo certos padrões, que certamente
medida em que pressionam os receptores precisam ser avaliados segundo as cons-
e o núcleo, apresentando as reivindica- telações de poder que refletem e em sua
ções de seus representados. Eles dão vez capacidade de mudança. Tribunais emitem
a interesses e exigências. Seu espectro é sentenças, parlamentos elaboram leis e
amplo, desde grupos com interesse políti- orçamentos, burocracias dão despachos,
co claramente definido, como instituições partidos conduzem campanhas eleitorais.
culturais (ligas de escritores, academias...), Para que essas rotinas permaneçam aber-
conselhos de proteção ao consumidor e ao tas a mudanças, é preciso que se abram a
meio ambiente, igrejas e associações cari- impulsos vindos da periferia do sistema,
tativas. Essas instituições são formadoras em casos de conflito. Casos de conflito
de opinião e constituem a infra-estrutura, se caracterizam por uma consciência de
do ponto de vista da sociedade civil, de um crise, uma elevada atenção e busca de
espaço público dominado pelos meios de solução para aspectos problemáticos. Essa
comunicação de massa, com suas correntes problematização se refere sobretudo a as-
de comunicação informal. pectos normativos. Tal situação força uma
Embora a diferenciação entre receptores elaboração extraordinária das questões,
e fornecedores não seja rígida, os princípios que mobiliza a responsabilidade política
do Estado de Direito excluem uma fusão dos órgãos do Estado. Se já normalmente
entre ambos, isto é, entre aqueles que in- os parlamentos e tribunais tentam pôr
fluenciam as decisões políticas e aqueles limites normativos a uma administração
que as formulam e implementam. orientada para fins, somente em tais casos
Em seguida a essa descrição, Peters de conflitos eles conseguem determinar fa-
enriquece seu modelo de dois elementos ticamente a direção da comunicação, dada
teóricos. sua especialidade em lidar construtiva e
reconstrutivamente com razões. Aqui os
5.2. O sistema de comportas
corpos parlamentares têm a última palavra.
Fluxos de comunicação originados na Porém, eles não têm por si próprios a força
periferia, pressionando politicamente o política de transformar casos rotineiros em
centro, somente podem se tornar normas casos conflituais. O processo legislativo
vinculantes para todos se atravessarem pro- normal não dá espaço, dada também a pres-
cedimentos à entrada dos órgãos parlamen- são de tempo e acúmulo de trabalho, para
tares e dos tribunais (e às vezes, também, na elaborar dramaticamente novos problemas
saída, em relação aos complexos administra- e iniciativas.
154 Revista de Informação Legislativa
Habermas vê finalmente a necessidade de 6. Confronto conclusivo: Peters
introduzir ainda duas idéias para tornar rea- e a mitigação das exigências
lista a tradução sociológica da teoria discur- normativas da deliberação
siva da democracia, feita por Peters. Somente
a periferia do sistema político pode impedir Por ocasião dos setenta anos de J.
que os poderes administrativo e social se Habermas, em 1999, foi organizado um
autonomizem diante do poder comunica- Simpósio em Frankfurt am Main. O volu-
tivo produzido democraticamente. Por isso me “O espaço público da razão e a razão
a periferia deve tanto a) encontrar ocasiões do espaço público”6 reúne cerca de vinte
para isso como b) ser capaz de fazê-lo. Oca- e cinco artigos apresentados nesse sim-
siões são encontradas, dados os problemas pósio. Um desses artigos é escrito por B.
de integração numa sociedade constituída Peters7, autor já citado e comentado por
de sistemas parciais que se diferenciam, Habermas em “Facticidade e Validade”.
gerando crises permanentes de integração Ele reconhece a fecundidade intelectual do
e necessidade de processos de aprendizado. pensamento habermasiano, que, desde suas
Quanto à capacidade de perceber e tematizar investigações mais juvenis em “Mudanças
problemas do conjunto da sociedade, tal estruturais no espaço público”, teve como
tarefa recai sobre as estruturas periféricas tema, em seguida desenvolvido de muitos
de formação da opinião e da vontade. Isso modos, o “uso público da Razão”8.
só será possível com a formação mais ou Pois bem, na teoria habermasiana, de-
menos espontânea de opinião em redes de mocracia deliberativa é aquela que se cons-
comunicação não institucionalizadas. Tais titui por meio do discurso público, então no
espaços públicos autônomos dependem do espaço público e aberto da comunicação.
ancoramento em associações da sociedade Inclui discursos propriamente, sejam mo-
civil e da inserção em uma política liberal rais, sejam éticos, bem como negociações
numa medida que é pré-dada aos cidadãos. para alcançar compromissos entre partes,
Eles podem estimular a racionalização de ainda que por razões diversas para cada
estruturas do mundo da vida, mas não po- parte. A deliberação gera legitimação, isto
dem dispor delas segundo sua vontade. Nas é, aceitabilidade racional da ordenação
palavras de Habermas (1994, p. 434-435): política e das decisões daí provenientes.
“Sentido é um recurso raro, que não Então legitimação, ressalta Peters, diz algo a
pode ser regenerado ou multipli- respeito das lideranças do sistema político,
cado a bel-prazer, onde eu entendo a saber, que estão autorizadas a impor cer-
‘sentido’como uma grandeza-limite
da espontaneidade social. Também para a construção de uma sociedade democrática, é um
campo especialmente relevante para o caso brasileiro,
isso é, como todas as grandezas empí- na medida em que pode ajudar a compreender os
ricas, condicionado. Porém as condi- obstáculos e dificuldades para a democracia no Brasil.
ções estão em contextos de mundos da Se, como alguns admitem, no campo político e cultural,
vida, que limitam a partir de dentro não demos ainda o passo da modernidade, ficam mais
compreensíveis tendências populistas e paternalistas do
a capacidade de associados jurídicos eleitorado. Isso se liga a tradições culturais brasileiras.
organizarem eles mesmos sua vida co- 6
L. Wingert und K. Günther (hrg), Die Öffentli-
mum. Aquilo que em última instância chkeit der Vernunft und die Vernunft der Öffentli-
possibilita o modo de socialização dis- chkeit, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 2001.
7
B. Peters, Deliberative Öffentlichkeit in L. Win-
cursivo de uma comunidade jurídica gert und K. Günther (hrg), Die Öffentlichkeit der Ver-
não está simplesmente à disposição nunft und die Vernunft der Öffentlichkeit, Frankfurt
da vontade de seus membros”.5 am Main: Suhrkamp, 2001, ss 655-677.
8
Como se sabe, essa expressão é empregada por
5
A cultura política com seu enraizamento no Kant no texto “O que é Iluminismo”, que aí a distingue
mundo da vida, que representa possibilidades e limites de “uso privado da razão”.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 155


tas medidas, bem como sobre os membros mação possa ser mantida. De outro lado,
da associação política que é o Estado, isto Peters considera importante precisar qual
é, que estão obrigados a cumpri-las. a base de legitimação de uma norma: se a
Peters considera três aspectos ligados ao aceitabilidade universal, no âmbito moral,
conceito de Democracia deliberativa: sua se o interesse concordante de todos, como
caracterização, sua realização e sua avalia- em Locke, se a identidade do grupo social,
ção. Pretende confrontar esses aspectos com a partir da leitura de suas tradições. Tais
recentes resultados de pesquisas empíricas. desdobramentos conceituais levam a dis-
Em outras palavras, sua reflexão se move tinguir uma legitimidade normativa, que
naquele âmbito que busca pensar a passa- pode ainda se subdividir em legitimidade
gem da teoria filosófica da democracia para liberal e deliberativa, por exemplo, de uma
uma ciência sociológica correspondente à legitimidade empírica, que pode se subdi-
sociedade atual e vice-versa, retrorrefletir vidir em vulgar e qualificada.
a teoria filosófica a partir da empiria social.
Essa impostação já é do próprio Habermas, 6.2. A efetiva função de discursos públicos
na última parte do Capítulo VIII de “Factici- Uma das teses que Peters defende, a
dade e Validade”, “Sobre o papel da socie- partir da análise de dados de pesquisa em-
dade civil e do espaço público político”. pírica, soa como segue: a função primária
de discursos públicos10 não é alcançar de
6.1. O Conceito de legitimidade modo direto um consenso produtor de le-
e seus desdobramentos gitimidade, porém de modo indireto e ime-
Quanto à caracterização de “democracia diato os discursos devem contribuir para
deliberativa”, dois elementos são necessá- um aprendizado coletivo, que sedimenta
rios: a) igualdade de condições de participa- certos princípios e valores entre o público,
ção e b) caráter argumentativo das posições, contribuindo assim para o processo de
que visa o convencimento. Começando pe- legitimação.
los conceitos, Peters considera a objeção que A teoria da deliberação pública, al-
impugna a identificação entre “legitimação” mejando consenso, não visa negar os
e “justificação”. (PETERS, 2001, p. 658 e ss)9. conflitos ou simplesmente homogeneizar
Não seria adequada tal equiparação porque as diferenças, mas precisamente dissolver
legitimação diria respeito aos procedimen- racionalmente dissensos, atravessando-os.
tos a partir dos quais são tomadas decisões Diversidades são aceitas e bem vindas. É
(em tribunais ou corpos legislativos, por claro que uma discussão séria pressupõe
exemplo) sem exame das razões subs- que os interlocutores apresentem razões e
tanciais da decisão, enquanto justificação estejam dispostos a se deixar convencer por
considera precisamente esse último aspecto. bons argumentos.
Uma decisão ou lei é então qualificada como Negar que sociedades modernas se-
“legítima” se foi posta segundo os trâmites jam integradas por meio do consenso é
competentes, mesmo sem se avaliar ainda ou trivial ou implausível. Trivial porque
suas razões substanciais. ninguém afirma que tais sociedades sejam
A proposta de Peters é ampliar o integradas apenas pelo consenso. Implau-
conceito de justificação de tal modo que
abranja razões procedimentais e, assim,
10
Peters tende a usar os termos “discurso público”
e “deliberação” no mesmo sentido. Em Habermas,
a equiparação desse conceito com legiti- deliberação é mais amplo que discurso porque inclui,
além da interlocução argumentativa, nos campos
9
Peters dialoga com A J. Simmons, “Justification epistêmico, moral e jurídico, por exemplo, também
and Legitimacy” in Ethics 109 (7) 1999, 739-771, artigo negociações e compromissos entre interesses diversos,
citado por Peters (2001, p. 656). que não são propriamente “discursos”.

156 Revista de Informação Legislativa


sível caso se quisesse afirmar que delibera- um consenso tácito mais amplo pode ser
ções são desimportantes. Debates públicos alcançado: todas as partes passam a aceitar
que preparam tomadas de decisão podem certos princípios e valores, situações de sa-
contribuir para a integração social, sendo ber se sedimentam. Exemplos de processos
em todo caso relevantes. desse tipo são desenvolvimentos sociais re-
Mais interessantes são as questões: que centes, nos países ocidentais, sobre família,
espaço para deliberação existe em esferas meio ambiente e minorias, o esclarecimento
públicas modernas e que realização po- do passado nazista na Alemanha, etc.
demos esperar delas? Recentes estudos Tais processos de mudança poderiam
empíricos, anota Peters, indicam que a ser vistos como processos de aprendizado
dinâmica social não registra muitos esfor- coletivo, sugere Peters, caso seja possível
ços em busca de consenso. As explicações reconstruí-los internamente como ganho
para isso são as seguintes. Atores do espaço de racionalidade. O modelo ágora de
público são afeitos à controvérsia. Eles, por aconselhamento para tomada de decisões
ocasião de suas falas, em geral se dirigem não se prestaria, então, para grandes espa-
ao público buscando adesão e raramente ços públicos, mas apenas para ambientes
ao seu oponente. Porém, em geral buscam menores, onde se preparam tomadas de
apoio no seio, não do público como um decisão. Trata-se aqui da formação de uma
todo, mas de certas correntes políticas e cultura pública, a longo prazo, vista como
culturais. Há uma concorrência por lide- um processo de aprendizado coletivo. A
rança diante do próprio público e para existência de tal cultura se torna condição
conquistá-la é preciso mostrar sincerida- promotora de um espaço público político,
de, engajamento conforme os respectivos onde se cultiva o debate e se oferece con-
valores, capacidade diagnóstica e de ação. dições para aceitação de seus resultados.
Porém, tal atenção específica não favorece Então tal cultura favorece também a legi-
a adesão do público em geral. timação.
Então debates, num primeiro momento,
em vez de produzirem consenso, aumen- 6.3. Igualdade versus
tam o dissenso. A variação de opiniões estratificação do espaço público
aumenta e também ocorrem polarizações As concepções de democracia delibe-
e simplificações. De outro lado, mesmo rativa exigem que o espaço público seja
quando levam a unanimidades, debates inclusivo, aberto e igualitário. Como enten-
podem produzir um efeito esclarecedor: der tal igualdade? Podemos compreendê-la
desacreditam argumentos insuficientes, como possibilidade de acesso ao espaço
esclarecem aspectos das questões. Podem público, vista como recursos de informa-
também levar ao mútuo reconhecimento da ções e discussões, para que cada um possa
seriedade das posições opostas e facilitar a tomar decisões de modo esclarecido. Isso,
chegada a compromissos. Principalmente, entretanto, já pressupõe a distinção en-
o efeito de discursos públicos não é tanto tre falantes no pódio e auditório, a qual
a produção imediata de um consenso, com conduz à constatação, aprofundada por
redução do espectro de posições, mas o pesquisas, da desigualdade nos meios de
deslocamento do espectro de opiniões. De comunicação.
fato, no processo de debates e discussões Desigualdades podem provir dos utili-
públicas, alguns argumentos desaparecem zadores dos meios de comunicação, dadas
do estoque público, porque perdem credi- as diferenças de formação, recursos, tempo
bilidade enquanto outros se afirmam como etc., e também da oferta, com programas e
resistentes e relevantes. Novas idéias sur- debates que visam influenciar o público de
gem. De tal forma que, no frigir dos ovos, diversos modos.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 157


A exigência de igualdade, do ponto de grupos determinados, reconhecidos formal
vista normativo, da deliberação pública ou informalmente; intelectuais que não
se manifesta como necessidade de parti- pretendem representar grupos, mas fazer
cipação ativa potencialmente de todos no diagnósticos e críticas do próprio tempo,
espaço público, no sentido de um respeito em nome de standards normativos ou cul-
a todos, individualmente considerados, e turais, baseando-se na reputação de lite-
também tal igualdade é referida a grupos, ratos, artistas, cientistas. Os participantes
contra a dominação por parte de certos es- dessas categorias têm influência e presença
tratos, no sentido de se abrir à participação diferenciada conforme sua proeminência,
da periferia social. Porém, ressalta Peters, isto é, a atenção que lhes é concedida, sua
não é claro como tal igualdade pode ser autoridade, ou seja, atribuição de compe-
realizada nas condições atuais do espaço tência e antecipação de confiança, e sua
público, que não se estrutura de modo produtividade, segundo as contribuições
nenhum como comunicação entre pessoas inovativas e qualificadas que produzem,
privadas ou leigos. desenvolvendo a reserva de argumentação
Com efeito, os grandes espaços de em discursos públicos.
comunicação têm mecanismos complexos Grupos de intelectuais que se agregam
de regulação, que passam por mercados e conforme interesses culturais ou profis-
outras estruturas em rede etc., de modo que sionais podem ter também suas próprias
organizadores, editores, redatores, ainda publicações com hierarquia de prestígio.
que mantenham influência pessoal sobre Tais grupos e suas produções em geral
o processo, vêem-se também pressionados não atingem muito grande público, mas
às suas costas. Além disso, há formas de podem influenciar lideranças econômicas
desigualdade que se referem não tanto ao e políticas. Suas posições podem ter efei-
que ocorre “atrás das cortinas”, mas na to de difusão a longo prazo, com pouco
própria presença e desempenho diante do influxo imediato. Ou pode ocorrer que
público. Organizações de médio e grande representantes desses grupos sejam ativos
porte que atuam no espaço público, bem e influentes no espaço público, de modo
como instituições governamentais, têm mais permanente.
vantagem quanto à oportunidade de apa- Peters se pergunta sobre os fatores
recer em público. Pela maior facilidade de que provocam mudanças na estrutura da
articular discursos argumentativamente estratificação social e sobre aquelas que
exigentes, certos profissionais ligados ao determinam lideranças no espaço público.
mundo acadêmico são mais representados Segundo ele, os conhecimentos sistemáticos
na mídia: cientistas, juristas, técnicos, mé- sobre isso são poucos. Certamente estra-
dicos, psicólogos, eclesiásticos, etc. tégias de patrocinadores que dispõem de
No interior mesmo da esfera de comu- recursos econômicos e organizatórios são
nicação, distinguem-se vários tipos, quanto capazes de assegurar visibilidade de idéias
ao peso e ao papel: jornalistas, com amplas e pessoas na mídia. Mas isso não é a mesma
funções, além da seleção e elaboração de coisa que autoridade e influência. Peters
notícias, elaboram comentários e artigos acredita que a força racional de convenci-
de fundo; experts, representantes de áreas mento desempenhe um papel na conquista
profissionais com reputação reconhecida de influência por parte de uma idéia, bem
e por isso influência; advogados, que como os méritos de personalidades de
falam em nome de grupos sem condição reconhecida competência ou criatividade
de se representar, por questão de saúde lhes granjeia autoridade. Existem também
ou outras, e podem ser social-pedagogos, influxos contingentes, relativos à formação
terapeutas, juristas; representantes de de capacidade de articulação. É claro que

158 Revista de Informação Legislativa


se coloca a questão de como se deve consi- clara a dificuldade de precisar critérios de
derar a exigência normativa de igualdade igualdade de chances. Só se compete por
de participação no espaço público diante atenção, autoridade e influência.
de tão complexa estratificação empírica dos E a participação de leigos em progra-
meios de comunicação. mas, por meio de chamadas telefônicas
Por duas razões Peters descarta a igual- e e-mails, poderia corrigir o elitismo dos
dade simples de participação, em nível discursos públicos? Peters vê três funções
empírico: não há tempo para todos, em para tal participação: a) sinalizar que parte
espaços públicos limitados. Em segundo do público julga problemas de modo diver-
lugar, é implausível que pessoas falem o so que especialistas e falantes nos meios de
mesmo que outros já falaram, sem ter algo comunicação; b) racionalizar decisões em
de novo e interessante a dizer. Diante da campo prático, quando se trata de aconse-
impraticabilidade da igualdade simples, lhamento; c) promover autoconfiança entre
seria a “igualdade representativa” uma os participantes. Porém, conclui que tal
alternativa? Embora ressalte a dificuldade tipo de participação não tem capacidade de
de operacionalizar tal igualdade de re- mover mudanças significativas no espaço
presentação de diversas posições sociais, público, isto é, de mudar o estoque público
Peters considera plausível esse modelo de argumentação.
representativo. Existem sensibilidades e A conclusão final de Peters (2001, p. 676-
perspectivas diferentes, de acordo com o 677) é conseqüente: “Essas reflexões falam
lugar social e cultural dos grupos, e todos a favor de mitigar o ideal enfático de parti-
devem ter espaço. A lei do pluralismo dos cipação e igualdade em relação a discursos
meios de comunicação na Alemanha, por públicos”. Na realidade de sociedades com
ex., tenta assegurar tal princípio. Alguns grandes desníveis econômicos e culturais,
problemas: posições somente se desenvol- como é o caso do Brasil, não é tão pacífico
vem no interior dos debates e aí mesmo se que o público tenha acesso à ampla gama de
modificam. O critério de dar mais espaço oferta de informações e discursos dos meios
a posições com maioria momentânea não de comunicação. Tais desníveis são antes
parece adequado a Peters, porque se trata consolidados e aprofundados pelo acesso
precisamente de sopesar argumentos, ra- seletivo do público. A classe social baixa,
cionalmente, sem que se deva privilegiar por exemplo, não pode pagar a televisão e
aquele que no momento dispõe de maioria. só tem acesso a programas de baixa quali-
A exigência de Habermas que represen- dade formativa. O Estado deveria entrar
tantes da periferia devam ocupar espaços aqui mais fortemente, garantindo progra-
em discursos públicos é uma variante do mas gratuitos de boa qualidade cultural e
modelo de representação, no quadro do ideologicamente diferenciados.
esquema centro–periferia, pensa Peters.
Porém, ele objeta que não deve ser dado
por descontado que os representantes da
Referências
periferia agiriam mais comunicativamente
e menos estrategicamente, conforme in- HABERMAS, J. Faktizitaet und geltung: beitraege zur
dicaria Habermas, para quem eles teriam diskurstheorie des rechts und des demokratischen
automaticamente alta sensibilidade para rechtsstaats. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1994.
problemas. ______. Direito e democracia: entre facticidade e vali-
Quando se confronta a estrutura de dade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de
estratificação competitiva dos discursos Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
públicos acima descrita com o desideratum PETERS, B. Deliberative öffentlichkeit. In: WING-
de uma representatividade igualitária, fica ERT, L. und GÜNTHER, K. (hrg). Die öffentlichkeit der

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 159


vernunft und die vernunft der öffentlichkeit. Suhrkamp: SCHUMPETER, J.A. Kapitalismus, sozialismus und
Frankfurt am Main, 2001. demokratie. Bern, 1950.
______. Die integration moderner gesellschaft. Frankfurt
am Main, 1993.

160 Revista de Informação Legislativa


Administrando conflitos de interesses
Esforços recentes no Brasil

Cláudio Araújo Reis e


Luiz Eduardo Abreu

De início, acreditamos que é necessário


reconhecer que, nos últimos 20 anos no
Brasil, houve uma preocupação mais ou
menos constante com o que chamaremos
(valendo-nos deliberadamente do sentido
amplo e vago da expressão) de “promoção
da ética pública” – em que medida essa pre-
ocupação tem-se traduzido em resultados
efetivos é uma outra questão, a que não nos
ateremos aqui.
Essa preocupação teve sua evolução
marcada por três momentos, aos quais se
juntou, mais recentemente, um quarto. Vale
a pena mencioná-los na medida em que
fornecem um quadro de referência que nos
permite avaliar mais adequadamente os es-
forços para satisfazer a essa preocupação.
O primeiro desses momentos foi o ím-
peto legislativo que se seguiu à redemocra-
tização, que resultou, antes de mais nada,
na promulgação da Constituição de 1988.
A Constituição, em seu artigo 37, estabelece
uma série de diretrizes que, necessariamen-
te, passam a fazer parte do que devemos
entender em geral por “serviço público
íntegro” ou “ético” – notadamente, lá se
afirma que a administração pública deve
pautar-se por cinco princípios ou valores
Cláudio Araújo Reis é Doutor em Filosofia,
Professor da Universidade de Brasília e Consul-
fundamentais: legalidade, impessoalidade,
tor Legislativo no Senado Federal. moralidade, publicidade e eficiência. A
Luiz Eduardo Abreu é Doutor em Antropo- partir disso, diversas leis – notadamente a
logia e Professor do Programa de Mestrado em Lei 8.112, de 1990 – vão tratar de traduzir
Direito do UniCEUB. essas diretrizes constitucionais em orien-

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 161


tações normativas mais particulares. Os da Lei no 8.027, também de 1990, que dispu-
esforços mais recentes para constituir um nha sobre normas de conduta dos servido-
“sistema de gestão da ética” ainda ecoam res públicos civis da União, das Autarquias
esse ímpeto legislativo e esse esforço de e das Fundações Públicas – todos, em
engenharia institucional que se originam seguida, enquadrados no regime jurídico
com a redemocratização. definido pela Lei no 8.112. O mesmo espírito
O segundo fator foi a sucessão de escân- – e boa parte do mesmo conteúdo – pode
dalos políticos, quase sempre envolvendo ser encontrado no Código de Ética Profis-
acusações de corrupção, desde, sobretudo, sional do Servidor Público Civil do Poder
o início dos anos 90. Foi nesse contexto Executivo Federal, aprovado pelo Decreto
conturbado da primeira metade dos anos 90 no 1.117, de 1994. É bem verdade que essa
que foi publicado, por exemplo, o Decreto perspectiva disciplinar, efetivamente, ainda
no 1.171, de 1994, que instituiu o Código predomina, mas algumas outras influências
de Ética Profissional do Servidor Público têm provocado correções em sua força.
Civil do Poder Executivo Federal, e a Lei Com a criação da Comissão de Ética
de Improbidade Administrativa (Lei 8.429, Pública, duas alterações nessa perspectiva
de 1992). O impacto e os efeitos desses são observáveis. A primeira diz respeito
escândalos na opinião pública sem dúvida à limitação do escopo de atuação da co-
nenhuma serviram para garantir um lugar missão, que se ocupa, fundamentalmente,
para a “promoção da ética pública” na com a “alta administração”, ao contrário
agenda dos governos. das normas anteriores, que se estendem a
O terceiro momento coincide com a re- todo o serviço público civil. A segunda diz
tomada da idéia de reforma do Estado, que respeito à introdução de um foco diferente,
ganha força em meados dos anos 90, no Go- voltado também para a orientação e a pre-
verno Fernando Henrique Cardoso. A idéia venção. É justamente nesse contexto, que
motora dessa reforma era a substituição começa a apontar na direção da mudança
da administração pública burocrática pela da perspectiva da disciplina para a pre-
administração gerencial, com sua típica venção, que começa a ganhar importância
atribuição de autonomia ao gestor, acom- o conceito de “conflito de interesses”. De
panhada por uma flexibilização de formas fato, é só com a edição do Código de Ética
de controle. Foi no rastro dessa reforma da Alta Administração Federal, em agosto
que surgiu a idéia, no final dos anos 90, da de 2000, que o conceito de “conflito de in-
criação da Comissão de Ética Pública. teresses” passa a figurar explicitamente no
Esses três momentos combinam-se e texto normativo, em conexão direta com a
reforçam-se, embora seja verdade também questão da ética pública (MORAIS, 2004).
que, em alguns aspectos, possam apontar Essa aparição do conceito de conflito
para direções divergentes – o que, de resto, de interesses poderia, então, indicar uma
é significativo e pode fornecer uma chave mudança no enfoque do tratamento da
de leitura interessante para avaliarmos os questão da ética pública. A rigor, natural-
esforços mais recentes de implantação de mente, conflitos de interesse sempre foram
um sistema de integridade no Brasil. observáveis ao longo da história da admi-
Mais particularmente, até a criação da nistração pública. Sua singularização, no
Comissão de Ética Pública em 1999, o que entanto, no contexto de uma preocupação
predominou, de forma quase exclusiva, foi com a garantia da integridade do serviço
uma perspectiva eminentemente disciplinar público ou com a ética pública em geral,
e punitiva. É assim que a Lei no 8.112, de é um sintoma interessante. Antes de pros-
1990, por exemplo, incorpora, em seu título seguirmos, vejamos brevemente em que
que trata do regime disciplinar, o conteúdo sentido isso é assim.

162 Revista de Informação Legislativa


De um modo geral, a preocupação com a posições que procuram defender o valor
integridade do serviço público e com a ética positivo da corrupção, se ainda existem,
pública acaba traduzindo-se no imperativo são claramente marginais e minoritárias). O
do combate à corrupção. “Corrupção” é um sentido descritivo, por sua vez, é mais com-
termo enganosamente claro: sua definição plexo. Há um grande número de aspectos
rigorosa é uma tarefa que tem dificuldades que contribuem para tornar corrupto um
consideráveis. A clareza que o conceito de comportamento ou um ato. Alguns desses
corrupção tem no discurso comum – e, aspectos variam de sentido em contextos
muitas vezes, também no discurso político diferentes. Contextos administrativos e
– é, em larga medida, apenas aparente, e contextos políticos, por exemplo, talvez
decorre, em primeiro lugar, do fato de que ponham problemas específicos, alguns de-
o conceito corrente pode, efetivamente, ser les relacionados às características próprias
aplicado com razoável clareza em alguns dessas atividades e à maneira como, em
casos representativos e, em segundo lugar, cada uma delas, as ações são valoradas de
do fato de que o conceito carrega sempre, forma diferente. Outros aspectos, ainda,
em todos os casos e em todos os seus usos, são difíceis de caracterizar claramente. Há,
um mesmo sentido de reprovação (o que notoriamente, uma área cinzenta bastante
ajuda a reforçar a impressão de que o termo extensa que logo se apresenta, assim que
está sendo usado sempre com o mesmo nos afastamos dos casos mais simples e
sentido). Em outras palavras: vários tipos facilmente reconhecíveis de corrupção. Isso
de atos ou comportamentos podem ser cha- é particularmente verdadeiro no caso da
mados de corruptos; alguns são imediata e corrupção política (ABREU, 1996, 2006).
facilmente caracterizados como tal; outros, Seja como for – e não é nosso objetivo
não. De todo modo, sempre que atribuímos primário aqui discutir a definição do con-
a algum comportamento a qualidade de ceito de corrupção e suas dificuldades –,
“ser corrupto”, estamos reprovando esse podemos dizer, de um modo muito geral,
comportamento. que corrupção, como freqüentemente apa-
“Corrupção”, como muitos outros ter- rece no discurso comum (mas também no
mos que usamos em nossos juízos morais político e mesmo no “científico”), implica
(termos que, em alguns contextos filosóficos uma transgressão das fronteiras entre o
contemporâneos, convencionou-se chamar público e o privado, em algum sentido que
de “conceitos densos” ou “espessos” – thick precisaríamos esclarecer melhor. Dizemos
concepts1), implica uma mistura de descritivi- “em algum sentido que precisaríamos
dade e de normatividade. Com relação a seu esclarecer melhor” porque, de um modo
sentido normativo – a reprovação que em geral, a distinção entre público e privado
geral exprimimos quando consideramos um pode levantar problemas práticos relevan-
ato ou uma pessoa “corruptos” –, podemos tes (sempre haverá questões indecididas
dizer que há uma razoável unanimidade (as sobre onde passa a fronteira); no Brasil,
em particular, essa distinção e as relações
1
A noção de “conceito denso” (thick concept) entre os termos que se distinguem pode ser
tornou-se corrente nos debates de filosofia moral complexa; de todo modo, abrimos mão aqui
a partir, sobretudo, da obra de Bernard Williams
Ethics and the Limits of Philosophy, de 1985. “Conceitos
de discutir esse ponto. Ora, no conceito de
densos”, como “traição”, “promessa”, “brutalidade” conflito de interesses, aplicado ao contexto
e “coragem” – esses são exemplos dados por Willia- da ética pública, o que se quer designar
ms, aos quais poderíamos certamente acrescentar é, justamente, o conflito entre interesses
“corrupção” e “corrupto” –, exprimem uma união
de “fato” e “valor”, ou seja, possuem um sentido
privados e o interesse público. A mesma
descritivo e prescritivo. Ver Williams, 1985, p. 129 tensão entre público e privado que parece
e p. 143-145. caracterizar o fenômeno da corrupção está

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aqui presente. A proximidade entre os minaremos. Em 2005, o Brasil ratificou a
conceitos e os fenômenos que procuram Convenção das Nações Unidas contra a
capturar é, portanto, flagrante. Corrupção, que, entre outras coisas, dispõe
Há, no entanto, uma diferença importan- que cada Estado Parte, em conformidade
te: a corrupção é uma transgressão inaceitá- com os princípios de sua legislação inter-
vel; quando identificada, exige punição e/ na, procurará adotar sistemas destinados
ou reparação. Com o conflito de interesses, a promover a transparência e a prevenir
porém, o caso é diferente. Antes de mais conflitos de interesses. O projeto de lei en-
nada, conflitos de interesses podem ocorrer viado, em outubro de 2006, pelo Presidente
sem que haja qualquer tipo de transgressão. da República Luiz Inácio Lula da Silva ao
Na verdade, aceita-se, muito freqüentemen- Congresso Nacional tratando do conflito de
te, que conflitos de interesses são, de certa interesses no exercício de cargo no Poder
forma, inevitáveis, mesmo em condições Executivo Federal é parte do ajuste norma-
ideais – o inverso do que ocorre com a cor- tivo às exigências da Convenção.
rupção, que, em princípio, deveria ser evi- O projeto (PL – 7.528, de 2006), que
tável. Ao contrário da corrupção, portanto, passamos a examinar mais de perto,
conflitos de interesses não pedem punição, encontra-se, atualmente, em tramitação na
mas uma estratégia de administração. Câmara dos Deputados, já tendo recebido
De todo modo, há uma relação bastante (até maio de 2008) pareceres favoráveis na
evidente entre conflitos de interesses e Comissão de Trabalho, Administração e
corrupção, que poderíamos descrever em Serviço Público e na Comissão de Consti-
termos de uma relação entre um evento e tuição e Justiça. Foi apresentado recurso,
o meio que facilita ou torna possível sua em fevereiro de 2008, para sua apreciação
ocorrência. Intuitivamente, dada a existên- pelo Plenário da Casa.
cia de um conflito de interesses, é maior a O projeto de lei sobre conflito de inte-
probabilidade de que venha a ocorrer um resses procura realizar três objetivos bási-
ato corrupto. Em certa medida, as situações cos. Em primeiro lugar, procura apresentar
de conflito de interesses merecem nossa uma definição suficiente de “conflito de
atenção justamente porque acreditamos interesses” e “informação privilegiada”.
que essas situações envolvem esse perigo Em segundo lugar, busca tipificar as situa-
potencial de ocorrência de transgressões (de ções que constituem conflito de interesses,
corrupção), que precisamos evitar. Assim, divididas em duas grandes categorias:
administrar essas inevitáveis situações em conflitos que surgem no exercício de cargo
que interesses entram em conflito é uma ma- ou emprego público e conflitos que surgem
neira importante de prevenir a corrupção. após o exercício do cargo ou emprego. Por
Desse modo, podemos afirmar que a fim, em terceiro lugar, fixa competências no
introdução e a ênfase na questão da admi- que diz respeito à administração de confli-
nistração dos conflitos de interesses indi- tos de interesses. Seria portanto oportuno
cam uma guinada dos esforços de combate perguntar-nos em que medida ele consegue
à corrupção em direção à prevenção; e o realizar tais objetivos e quais os dilemas
reconhecimento de que a perspectiva dis- que sua formulação dogmática nos permite
ciplinar e punitiva, embora absolutamente reconhecer.
necessária e indispensável, não é capaz, (a) O projeto apresenta a seguinte defi-
sozinha, de estabelecer instrumentos ade- nição de “conflito de interesses”:
quados para lidar com o problema. (1) “Conflito de interesses: a situação
Enfim, vale mencionar um quarto gerada pelo confronto entre interes-
ponto como relevante para entendermos ses públicos e privados, que possa
a apresentação do projeto de lei que exa- comprometer o interesse coletivo ou

164 Revista de Informação Legislativa


influenciar, de maneira imprópria, o articulação entre as categorias de público
desempenho da função pública”. e de privado, rearticulação que se acom-
Chama a atenção, inicialmente, a profu- panha de uma mudança na qual há um
são de conceitos envolvidos na definição: progressivo esvaziamento da capacidade
“interesse público”, “interesse privado”, da esfera pública de produzir um sentido
“interesse coletivo”, “função pública” e que se basta em si mesmo, capacidade que,
“influência imprópria” – cada um deles, argumenta-se, cada vez mais se coloca na
por sua vez, levantando seus próprios esfera do indivíduo e da sua consciência.
problemas de definição. Assim,
Antes de prosseguirmos, é preciso re- “Tudo aquilo que incorpora uma
tirar o óbvio do caminho. O conflito entre explicação última, uma tomada de
o que se entende por interesses públicos e posição sobre a aventura humana
privados é uma questão que pode ganhar se encontra recolocado no lado dos
formulações muito diferentes, fortemente indivíduos. Em outras palavras, o
influenciadas pela cultura local e pela coletivo não representa mais, como
mudança das configurações sociais. Em quando supostamente abria a porta
relação à cultura local, podemos citar o da autonomia [no sentido político da
exemplo brasileiro em comparação com o liberdade positiva], um jogo metafísi-
estadunidense. Não deixa de ser interessan- co suficiente em si mesmo. O sacrifí-
te a perplexidade com a qual um brasilia- cio de si mesmo à coisa pública podia
nista norte-americano percebia a maneira justificar a existência ou responder à
brasileira de lidar com a relação entre o questão dos fins últimos. Esse prestí-
público e o privado. Assim, “[a] partir de gio lhe foi amputado. Nenhuma das
entrevistas com oficiais do governo, grupos razões supremas se determina no
de interesse e industriais” – declarava – plano coletivo; esse não contém em
“pode-se perceber que a cultura política si mesmo e por si mesmo a solução
brasileira adota uma perspectiva orgânica do problema do destino. Somente as
da sociedade e da política com um forte consciências singulares são habilita-
sabor rousseauniano. Acredita-se somente das a se pronunciar sobre as matérias
nas políticas em nome do ‘interesse geral’, que versam sobre as forças últimas:
da nação considerada como um todo” (grifo a autonomia e o senso de existência
nosso). Atônito, concluía: “não seria um coletiva”. (Gauchet, 1998)2
grande exagero dizer que, dentro desta Em relação ao nosso assunto, porém, é
perspectiva, os esforços dos interesses pri- preciso não confundir os propósitos. Não
vados em influenciar políticas públicas são
considerados intrinsecamente corruptos”. E, 2
No original: “Tout ce qui relève de l’explication
no que nos interessa mais de perto, “[e]ssa ultime, de la prise de position sur le sens de l’aventure
humaine se trouve renvoyé du côté des individus — le
filosofia política [brasileira] contrasta viva- collectif ne représentant plus, comme il le représen-
mente, é claro, com a doutrina nos Estados tait tout le temps où il était supposé ouvrir la porte
Unidos, que considera que o interesse de l’autonomie, un enjeu métaphysique suffisant en
público é bem servido pela participação lui-même. Le dévouement sans état d’âme à la chose
publique pouvait tenir lieu de justification de l’exis-
dos grupos privados; e que a influência dos tence ou de réponse à la question des fins dernières. Il
grupos privados no processo de decisão gover- s’est dépouillé de ce prestige. Rien des raisons suprê-
namental é a essência da democracia” (Leff, mes ne se détermine au niveau commun; celui-ci ne
1968, p. 112, grifo nosso). contient pas en soi et par soi de solution au problème
de la destinée. Seules des consciences singulières sont
Em relação à configuração social, há habilitées à se prononcer sur les matières de dernier
aqueles que argumentam que o mundo ressort, y compris à propos de l’autonomie, y compris
contemporâneo está assistindo a uma re- à propos du sens de l’existence commun.”

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se trata, com o instrumento legal que exa- ultrapassa os limites das diferenças teóricas,
minamos, de expressar uma narrativa sobre explicando-se por características próprias
nós mesmos, sobre como compreendemos do conceito mesmo de “corrupção” – como
as relações entre o indivíduo e a sociedade, “conceito denso”, no sentido explicado
sobre como, para nós, o indivíduo é uma anteriormente. De todo modo, e apesar
fonte potencial de perigo para a ordem dessa falta de consenso, não é impossível
coletiva e deve, portanto, ser submetido à fazermos uma espécie de taxonomia de
hierarquia social, colocado no seu lugar definições de corrupção. Há uma oscilação
– algo para o qual as observações de Leff perceptível entre definições que privile-
(1968) acima nos apontam. Tampouco é o giam a idéia do “interesse público” (public
caso de fazer afirmações sobre a natureza interest) e outras que enfatizam a idéia da
da sociedade, do público e do privado nos “função pública” (public office), assim como
tempos de fortes mudanças, como estes há os que defendem a redução de uma
em que vivemos. Trata-se, muito mais delas à outra3. Embora isso diga respeito
modestamente, de ter um instrumento especificamente às definições de corrupção,
útil às coisas do governo e daquilo que há uma aplicação clara também ao caso dos
razoavelmente podemos esperar prevenir conflitos de interesses, graças às relações,
e controlar, dentro da prudência que deve que apontamos anteriormente, entre os dois
reger esses assuntos. conceitos. Essa distinção entre definições
Em suma, a definição proposta pela lei que privilegiam o interesse público e as que
tem de, ao mesmo tempo, dialogar com a destacam a função pública será relevante para
nossa cultura local, enquanto inevitavel- um ponto que levantaremos na seqüência.
mente implica pressupostos gerais sobre a Ainda com relação à definição proposta
natureza da sociedade, do Estado e do in- pelo projeto (1), é digno de nota que ela
divíduo; e ser suficientemente manuseável sugere uma distinção relevante entre a
para servir de base para políticas públicas situação em que potencialmente pode ocor-
com um objetivo concreto. Foge ao nosso rer o ato corrupto e esse ato propriamente
propósito discutir ou mesmo examinar com dito. Diferentemente do ato corrupto, que
mais profundidade essas duas dimensões, já implica que a fronteira do ilícito foi
mas algumas observações cabem dentro de ultrapassada, a ocorrência do conflito de
nossas limitações. interesses, como vai dizer o projeto de lei,
A definição do projeto (1) toma a idéia “independe da existência de lesão ao patri-
de conflito de interesses como o confronto mônio público, bem como do recebimento
entre dois tipos de interesses de natureza de qualquer vantagem ou ganho pelo
distinta, um de natureza pública e outro, agente público”. Essa afirmação, devemos
privada. Como já observamos, essa oposi- reconhecer, é justa: o conflito de interesses
ção entre o público e o privado também é é um estado de coisas, mais especificamente,
importante para caracterizar o que se en- uma configuração social determinada, na
tende comumente por “corrupção”. Entre qual a ação do agente público poderia ser
os estudiosos do fenômeno da corrupção, percebida como potencialmente suspeita. É
como reflexo do que dissemos antes ocorrer preciso admitir, e traduzir isso em termos
no discurso comum, embora exista uma conceituais, que temos dois fenômenos
visível convergência de opiniões no que se distintos: um, a situação potencialmente
refere a um sentido nuclear ou mínimo de previsível na qual a ação do agente público
corrupção (uso ou apropriação de meios poderia ser influenciada de uma maneira
públicos para fins privados), não há um que nós não consideraríamos legítima;
consenso em torno de uma definição mais 3
Cf. Heidenheimer, Johnson; LeVine,
precisa do fenômeno. Essa falta de consenso 1989; Klaveren, 1989; Philp, 1997.

166 Revista de Informação Legislativa


outro, a prática de algum crime por parte blico, genericamente entendido, nos termos
desse agente, ou seja, o ato perpetrado por da definição (1). Em resumo, uma definição
ele. É essa distinção, aliás, que justamente que enfatize o interesse público como refe-
torna o conceito de conflito de interesses rência para definir a situação de conflito
utilizável no contexto da prevenção da de interesses (como parece ser o caso da
corrupção. definição 1) é inevitavelmente mais vaga
Vale a pena, agora, fazer uma compa- do que outra que privilegie a função pública
ração da definição de conflito de interesses (já que o caráter contestado que se associa
do projeto com aquela do Guidelines for ao conceito de interesse público soma-se ao
Managing Conflict of Interests in the Public caráter contestado do conceito de conflito
Service, da Organização para a Cooperação de interesses). Esse é um dado importante
e Desenvolvimento Econômico – OCDE para se ter em mente quando se busca dar
(OCDE, 2003): um tratamento legal da questão. De todo
(2) “Um ‘conflito de interesses’ en- modo, a ênfase na função pública e nos
volve o conflito entre os deveres pú- deveres que a definem parece uma opção
blicos e os interesses privados de um melhor do que apelar para abstrações como
funcionário público, situação na qual o interesse coletivo ou público.
o funcionário público tem interesses (b) O segundo objetivo perseguido pelo
privados que poderiam influenciar projeto de lei é o de tipificar situações que
impropriamente a performance dos podem oferecer ocasião a que surjam con-
seus deveres e responsabilidades flitos de interesse. O projeto divide essas
oficiais.”4 situações em duas grandes categorias. A pri-
À diferença da definição do projeto (1), meira – situações que configuram conflito de
a da OCDE (2) fala de um conflito não entre interesses no exercício do cargo ou emprego
dois tipos de interesses, mas entre os deveres – engloba os seguintes tipos de atos:
e responsabilidades públicas e os interesses “Art. 5o Configura conflito de inte-
privados do agente público. Mesmo que resses, no exercício de cargo ou em-
se queira diminuir a distinção entre “inte- prego no âmbito do Poder Executivo
resse” público (da definição 1) e “deveres” Federal:
(da 2), há que se reconhecer que existe uma I – divulgar ou fazer uso de informa-
diferença entre uma definição e outra que ção privilegiada, em proveito próprio
pode ser significativa e que pode influen- ou de terceiro, obtida em razão das
ciar de maneira decisiva, por exemplo, as atividades exercidas;
decisões da justiça. Um ponto relevante é II – exercer atividade que implique a
que os “deveres” de um cargo público estão prestação de serviços ou a manuten-
regulamentados não apenas pelo direito ção de relação de negócio com pessoa
administrativo genericamente entendido, física ou jurídica que tenha interesse
como são também, em boa parte dos casos, em decisão do agente público ou de
objeto de diploma específico, quer dizer, colegiado do qual este participe;
existem normas jurídicas que são aplicáveis III – exercer, direta ou indiretamen-
a tal ou qual função pública em particular; te, atividade que em razão da sua
o mesmo não acontece com o interesse pú- natureza seja incompatível com as
atribuições do cargo ou emprego,
4
No original: “A ‘conflict of interests’ involves a considerando-se como tal, inclusive,
conflict between the public duty and private interests a atividade desenvolvida em áreas ou
of a public official, in which the public official has
private-capacity interests which could improperly
matérias correlatas;
influence the performance of their official duties and IV – atuar, ainda que informalmente,
responsibilities.” como procurador, consultor, assessor

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 167


ou intermediário de interesses pri- semelhanças com os crimes de corrupção
vados junto aos órgãos ou entidades passiva e prevaricação, respectivamente:
da Administração Pública direta ou “Art. 317. Solicitar ou receber, para
indireta de qualquer dos Poderes si ou para outrem, direta ou indire-
da União, dos Estados, do Distrito tamente, ainda que fora da função
Federal e dos Municípios; ou antes de assumi-la, mas em razão
V – praticar ato em benefício de dela, vantagem indevida, ou aceitar
interesse de pessoa jurídica de que a promessa de tal vantagem.
participe o agente público, seu côn- (…)
juge, companheiro ou parentes, Art. 319. Retardar ou deixar de prati-
consangüíneos ou afins, em linha car, indevidamente, ato de ofício, ou
reta ou colateral, até o terceiro grau, praticá-lo contra disposição expressa
e que possa ser por ele beneficiada ou de lei, para satisfazer interesse ou
influir em seus atos de gestão; sentimento pessoal.” (BRASIL, 2005,
VI – receber presente de quem tenha p. 202)
interesse em decisão do agente pú- Se somarmos ao Código Penal outros
blico ou de colegiado do qual este diplomas, como, por exemplo, a Lei de
participe, fora dos limites e condições Improbidade Administrativa, as sobreposi-
estabelecidos em regulamento; e ções aumentam. Assim, nessa última temos,
VII – prestar serviços, ainda que por exemplo:
eventuais, a empresa cuja atividade “Art. 9o. Constitui ato de improbida-
seja controlada, fiscalizada ou regula- de administrativa importando enri-
da pelo ente ao qual o agente público quecimento ilícito auferir qualquer
está vinculado.” tipo de vantagem patrimonial inde-
Os tipos de atos que encontramos nessa vida em razão do exercício de cargo,
lista não apresentam, em si mesmos, novi- mandato ou função, emprego ou ati-
dade: são, por assim dizer, os “suspeitos vidades nas entidades mencionadas
usuais”: uso de informação privilegiada, no art. 1o desta lei, e notadamente:
exercício de atividade paralela ao serviço I – receber, para si ou para outrem,
público, tráfico de influência ou advocacia dinheiro, bem móvel ou imóvel, ou
administrativa, recebimento de presentes qualquer outra vantagem econômica,
etc. Aliás, alguns desses já estão inclusive direta ou indireta, a título de comissão,
tipificados pela legislação penal. Assim, a percentagem, gratificação ou presente
alínea IV está muito próxima do crime de de quem tenha interesse, direto ou in-
advocacia administrativa: direto, que possa ser atingido ou apa-
“Art. 321. Patrocinar, direta ou indi- rado por ação ou omissão decorrente
retamente, interesse privado perante das atribuições do agente público;
a administração publica, valendo-se (…)”
da qualidade de funcionário.” Teoricamente, pelo menos, alguns dos
Também é possível perguntar se nesse fenômenos que o art. 5o do referido proje-
tipo não caberiam, parcialmente pelo me- to de lei pretende prevenir poderiam ser
nos, as alíneas II, III, V, VI e VII, na medida enquadrados nos artigos acima do Código
em que o exercício de outra atividade em Penal e da Lei de Improbidade Adminis-
organização privada, seja ela formal ou trativa (o próprio projeto de lei que exami-
informal, implicaria como contrapartida, namos, aliás, prevê essa relação com a Lei
por parte do agente, justamente a defesa de Improbidade Administrativa). Esse, no
dos interesses dessa organização junto entanto, é um ponto menos relevante. Mais
à administração pública. Igualmente, há importante é que alguns dos atos previstos

168 Revista de Informação Legislativa


no projeto seriam melhor caracterizados E logo em seguida:
como possíveis resultados de situações em “Esse objetivo pode ser obtido pela
que se verificam conflito de interesses e não garantia de que as instituições públi-
como sendo, eles próprios, situações que cas têm e implementam critérios para
configuram conflito de interesses. Em certo promoção da integridade; processos
sentido, a sugestão, presente na definição efetivos para identificar riscos e lidar
que o projeto propõe – que, como vimos, com conflito de interesses emergen-
aponta para uma distinção entre a situação tes; mecanismos internos e externos
de conflito de interesses e o ato corrupto –, apropriados de responsabilização;
não é seguida no próprio projeto. e estratégias administrativas — in-
Num plano mais abstrato, podemos su- clusive sanções — para garantir que
gerir que o problema é o uso, no projeto, da os funcionários públicos assumam
linguagem penal. Por exemplo, as alíneas responsabilidade pessoal pelo cum-
do art. 5o do projeto são redigidas como se primento tanto da letra como do
fossem tipos penais. Tipos penais, não custa espírito de tais critérios.” (OCDE,
repetir, têm por objetivo descrever atos que 2003, p. 3)6
queremos caracterizar como criminosos, de A ênfase do documento da OCDE é cla-
modo que possamos subsumir a esses tipos ramente o estabelecimento de mecanismos
ações já praticadas. legais, políticos e culturais que permitam
Compare-se o que foi dito acima com os prevenir a existência de possíveis conflitos
seguintes trechos das Guidelines da OCDE: de interesses. Associado a isso, nas Guide-
“Embora um conflito de interesses não lines a distinção entre a situação em que
seja ipso facto corrupção, reconhece-se existe um possível conflito de interesses e
que, inadequadamente administrado, o que delas pode decorrer é clara:
o conflito entre interesses privados “No caso onde os interesses privados
e deveres públicos dos funcionários comprometeram, de fato, a perfor-
públicos pode resultar em corrupção. mance apropriada dos deveres do
O objetivo de uma política efetiva funcionário público, é melhor perce-
para o controle do conflito de interes- ber a situação como um exemplo de
ses não é proibir que os funcionários desvio, abuso ou, mesmo, corrupção,
públicos tenham interesses, mesmo ao invés de percebê-la como conflito
se isso fosse concebível. O objetivo de interesses.” (OCDE, 2003, p. 4)7
deveria ser garantir a integridade
das políticas públicas, das decisões tive decisions, and of public management generally,
administrativas e da administração recognizing that an unresolved conflict of interest may
result in abuse of public office.”
pública em geral, reconhecendo que 6
No original: “This objective can generally be
conflitos de interesse não resolvidos achieved by ensuring that public bodies possess and
podem resultar no abuso da função implement relevant policy standards for promoting
pública.” (OCDE, 2003, p. 2)5 integrity, effective processes for identifying risk and
dealing with emergent conflicts of interest, appropri-
ate external and internal accountability mechanisms,
5
No original: “While a conflict of interest is not and management approaches – including sanctions –
ipso facto corruption, there is increasing recognition that aim to ensure that public officials take personal
that conflicts between the private interests and public responsibility for complying with both the letter and
duties of public officials, if inadequately managed, the spirit of such standards.”
can result in corruption. The proper objective of an 7
No original: “Where a private interest has in fact
effective Conflict of Interest policy is not the simple compromised the proper performance of a public of-
prohibition of all private-capacity interests on the ficial’s duties, that specific situation is better regarded
part of public officials, even if such an approach were as an instance of misconduct or ‘abuse of office’, or
conceivable. The immediate objective should be to even an instance of corruption, rather than as a ‘con-
maintain the integrity of official policy and administra flict of interest’.”

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A mesma clareza, no entanto, não é vinculados, ainda que indiretamente,
observável no projeto. De fato, usar ou ao órgão ou entidade em que tenha
divulgar informação privilegiada, seja ou ocupado o cargo ou emprego; ou
não para beneficiar-se privadamente, ca- d) intervir, direta ou indiretamente,
racteriza já um desvio, e não apenas uma em favor de interesse privado perante
situação de potencial desvio. A questão órgão ou entidade em que haja ocupa-
que permanece, portanto, é: como podemos do cargo ou emprego ou com o qual
fazer para evitar que uma situação poten- tenha estabelecido relacionamento
cialmente perigosa, que podemos descrever relevante em razão do exercício do
efetivamente em termos de conflito de in- cargo ou emprego.”
teresses, em que um agente público pode O primeiro inciso apenas estende, para
ter acesso a informações que afetem seus o período posterior ao exercício efetivo
interesses privados, degenere em desvio? do cargo, a proibição, já válida durante o
É mais uma questão de administração de exercício, de utilizar as informações a que
risco do que, propriamente, de tipificação se tem acesso privilegiado em razão do
de condutas desviantes. ofício. O inciso II trata do que se conven-
Os mesmos problemas podem ser cionou chamar de “quarentena”, um dos
apontados para o art. 6o, que trata do con- temas mais extensamente tratados pela
flito de interesse após o exercício do cargo Comissão de Ética Pública. Atualmente,
público. Esse artigo refere-se às seguintes a “quarentena” é regulamentada por uma
circunstâncias: Medida Provisória e por um Decreto, além
“I – a qualquer tempo, divulgar ou de figurar no Código de Conduta da Alta
fazer uso de informação privilegia- Administração Federal.
da obtida em razão das atividades Enfim, a administração dos conflitos de
exercidas; e interesse incluiria, necessariamente, me-
II – no período de um ano, contado canismos capazes de identificar possíveis
da data da dispensa, exoneração, zonas de risco, zonas onde os conflitos
destituição, demissão ou aposenta- sejam mais prováveis. Por evidente, essas
doria, salvo quando expressamente zonas variam conforme o tipo de atividade
autorizado, conforme o caso, pela exercida. Assim, em alguns casos, as rela-
Comissão de Ética Pública ou pela ções familiares e/ou de amizade podem se
Controladoria-Geral da União: constituir fatores de risco; noutras, as cren-
a) prestar, direta ou indiretamente, ças religiosas pessoais podem exercer este
qualquer tipo de serviço a pessoa papel; noutras ainda, os interesses econô-
física ou jurídica com quem tenha micos. Claro, essas situações não esgotam
estabelecido relacionamento relevante as possibilidades, que devem ser objeto
em razão do exercício do cargo ou de um exame empírico, tendo em vista as
emprego; funções específicas da posição pública. A
b) aceitar cargo de administrador ou administração do conflito pode exigir, por
conselheiro, ou estabelecer vínculo sua vez, a mudança dessas funções, por
profissional com pessoa física ou exemplo, ou o remanejamento do agente.
jurídica que desempenhe atividade Também exige uma política de prestação de
relacionada à área de competência do informações, segundo a qual o funcionário
cargo ou emprego ocupado; teria a obrigação de fornecer informações
c) celebrar, com órgãos ou entidades julgadas relevantes, que pudessem servir
do Poder Executivo Federal, con- para identificar possíveis conflitos, como
tratos de serviço, consultoria, asses- tenta efetivamente estabelecer o projeto
soramento ou atividades similares, que examinamos.

170 Revista de Informação Legislativa


(c) Por fim, o terceiro objetivo do projeto para a prevenção ou eliminação do
é fixar competências no que diz respeito à conflito;
administração dos conflitos de interesses. III – orientar e dirimir dúvidas e
A opção do projeto foi reforçar as com- controvérsias acerca da interpretação
petências da Comissão de Ética Pública, das normas que regulam o conflito
primariamente, e, complementarmente, da de interesses;
Controladoria-Geral da União para lidar IV – manifestar-se sobre a existência
com conflitos de interesses. Segundo o ou não de conflito de interesses nas
projeto, submeter-se-ão primariamente ao consultas a elas submetidas;
regime da lei proposta os mesmos servido- V – autorizar o ocupante de cargo
res que já são sujeitos ao acompanhamento ou emprego no âmbito do Poder
por parte da Comissão de Ética Pública. Executivo Federal a exercer atividade
Assim, no seu art. 8o, estabelece a Comissão privada, quando verificada a inexis-
de Ética Pública como órgão responsável tência de conflito de interesses ou sua
por “estabelecer normas, procedimentos e irrelevância;
mecanismos que objetivem prevenir ou im- VI – dispensar a quem haja ocupado
pedir eventual conflito de interesses”. Caso cargo ou emprego no âmbito do Po-
seja aprovada a lei, portanto, a Comissão der Executivo Federal de cumprir a
de Ética Pública veria reforçadas as suas “quarentena”, quando verificada a
competências, passando a ser responsável inexistência de conflito de interesses
não apenas pela administração do Código ou sua irrelevância;
de Conduta da Alta Administração, mas, VII – dispor, em conjunto com o Mi-
também, pela aplicação da lei sobre con- nistério do Planejamento, Orçamento
flitos de interesses. O projeto prevê ainda e Gestão, sobre a comunicação, pelos
uma extensão importante no conjunto de ocupantes de cargo ou emprego no
servidores alcançados pela lei: sujeitam-se âmbito do Poder Executivo Federal,
também qualquer agente público ocupante de alterações patrimoniais relevantes,
de cargo ou emprego cujo exercício pro- exercício de atividade privada ou
porcione acesso a informação privilegiada, recebimento de propostas de tra-
capaz de trazer vantagem econômica ou balho, contrato ou negócio no setor
financeira para ele mesmo ou para terceiro privado; e
(independentemente de pertencer à “alta VIII – fiscalizar a divulgação da agen-
administração”); confirmando essa exten- da de compromissos públicos.”
são, prevê-se também que o estabelecido Ademais, no art. 9o, ficam estabelecidas
nos artigos 5o e 6o (nesse caso, apenas o as seguintes obrigações para os agentes: a)
inciso I) valha universalmente para todos os encaminhar à CEP ou à CGU, conforme o
agentes públicos no âmbito do Poder Execu- caso, declaração anual com informações
tivo Federal. No caso dessa extensão, a ação sobre situação patrimonial, participações
cabe à Controladoria-Geral da União. societárias, atividades econômicas ou
A lista de competências não apresenta profissionais e indicação sobre existência
novidades relevantes: de cônjuge, companheiro ou parente no
“I – estabelecer normas, procedi- exercício de atividades que possam susci-
mentos e mecanismos que objetivem tar conflito de interesses; b) comunicar por
prevenir ou impedir eventual conflito escrito à CEP ou à CGU o exercício de ativi-
de interesses; dade privada ou recebimento de propostas
II – avaliar e fiscalizar a ocorrência de trabalho, contrato ou negócio no setor
de situações que configuram conflito privado; e c) para os agentes que ocupam o
de interesses e determinar medidas primeiro e segundo escalões da administra-

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 171


ção pública, publicar diariamente, por meio venção de forma institucional, intervindo
da internet, sua agenda de compromissos não nas pessoas, mas nas situações. O
públicos. Note-se que essa obrigatoriedade conceito de conflito de interesses permite
de prestar declarações já existe, com base na que se pense isso de forma sistemática,
Lei de Improbidade Administrativa, mas, permitindo identificar situações e tipos de
aparentemente, tem sido cumprida, na prá- atos que implicam risco para a integridade
tica, apenas formalmente, sendo substituída e dando consistência a procedimentos que,
pela alternativa, prevista na mesma lei, da vistos como formando parte de um esfor-
entrega de declaração anual de bens, que faz ço de administrar conflitos de interesse,
parte da declaração do imposto de renda. reforçam-se e ganham organicidade.
Como conclusão, vale apontar o que No contexto da evolução dos esforços
nos parecem ser as forças e as fraquezas brasileiros para lidar com a questão da ética
desse projeto de lei, bem como refletir sobre pública ou da integridade do serviço pú-
seus possíveis impactos na administração blico, o projeto sinaliza uma inflexão que,
pública – em especial, no que diz respeito à se verificada e reforçada, poderia vir a ser
“promoção da ética” e ao combate à corrup- interessante. Da ênfase originária na disci-
ção. Um ponto inequivocamente positivo plina e punição, passa-se gradualmente a
do projeto é a introdução do conceito de dar mais atenção ao aspecto preventivo. Do
conflito de interesses na legislação. Esse ponto de vista disciplinar, existe no Brasil
conceito já tem sido utilizado, sobretudo um número razoável de previsões normati-
no que se refere à atuação da Comissão vas que cobrem um amplo espectro de pos-
de Ética Pública, mas não havia ainda sibilidades de conduta, assim como existem
encontrado uma tradução na forma de mecanismos e procedimentos que, em tese,
lei. Há ainda que se esforçar para que seu seriam suficientes para fazer frente pelo
sentido seja efetivamente compreendido e menos aos casos mais diretos de desvio.
incorporado, pelos agentes públicos, em Faltam, no entanto, dois elementos funda-
sua atuação. Que falte essa compreensão mentais: um esforço mais sério no que diz
fica claro quando consideramos alguns respeito à prevenção e à orientação e um
casos recentes de tentativa de aplicação do cuidado com a eficácia dos mecanismos e
conceito de conflito de interesses8. procedimentos (infelizmente, os controles
Como foi sugerido, o conceito de conflito nem sempre funcionam e a impunidade
de interesses ajuda a chamar a atenção para ainda é comum).
um aspecto ou uma dimensão importante Dada essa importância do conceito de
do combate à corrupção: o aspecto preven- conflito de interesse, torna-se especialmen-
tivo. Mais particularmente, permite que se te relevante a maneira como se articulam
fale dessa dimensão preventiva minimizan- sua definição, a identificação das possí-
do os riscos de se cair no moralismo. Preve- veis zonas de risco e os mecanismos de
nir a corrupção independe de uma (quase prevenção e administração. Esses pontos
sempre impossível, no contexto específico merecem uma reflexão mais adequada.
da administração pública) intervenção no Da breve análise acima ficam evidentes os
caráter das pessoas: pode-se tratar da pre- seguintes problemas: (i) o projeto usa uma
8
O mais notório foi o caso que opôs o Ministro do
definição de conflito de interesses que po-
Trabalho e do Emprego e a Comissão de Ética Pública, deria ser aperfeiçoada; (ii) o projeto usa a
que caracterizou a acumulação da pasta ministerial linguagem penal para algo que não parece
e da presidência de um partido político como uma ser apropriado: a descrição de uma situação
situação de conflito de interesses. Tanto as respostas
do Ministro quanto a discussão que se seguiu na
e não de um ato; (iii) há uma confusão na
imprensa mostram que o conceito ainda não foi bem aplicação do conceito de conflito de inte-
assimilado no debate público brasileiro. resses no uso de informação privilegiada;

172 Revista de Informação Legislativa


eles são espécies diferentes e precisariam administração das situações de conflito de
ser tratados separadamente – o uso de in- interesses deveria necessariamente passar
formação privilegiada, inclusive, deveria pela questão dos cargos de livre nomeação
ser objeto de um projeto em separado e e pelo tipo peculiar de conflito de interesses
requer necessariamente uma classificação que pode vir a suscitar.
das informações consideradas sigilosas e de
circulação restrita; (iv) por fim, é importan-
te cuidar melhor para garantir a inserção Referências
adequada desse projeto no contexto dos
esforços para constituir, no Brasil, um sis- Abreu, L. E. L. A corrupção, a relação pessoal e a
prática política. Anuário Antropológico, 95, 1996, p.
tema de integridade. O próprio projeto de 239-264.
lei, na forma como foi submetido ao Con-
gresso, indica, em suas disposições finais, ______. Riscos na política: as instituições em jogo. In:
VARELLA, M. D. (Ed.). Direito, sociedade e riscos: a
suas relações com as leis no 8.112, de 1990 sociedade contemporânea vista a partir da idéia
(Regime Jurídico dos Servidores Públicos de risco. Brasília: UniCEUB; UNITAR; Rede Latino
Civis), e 8.429, de 1992 (Lei de Improbidade Americana e Européia sobre Governo dos Riscos,
Administrativa). Ademais, deve ser visto 2006, p. 180–212.
em conexão com as intervenções mais re- Brasil. Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de
centes na estrutura ou nas funções dos dois 1940. Código Penal. In: LIMA, M. P.; GLIOCHE, A.
órgãos mais importantes desse sistema de (Ed.). Código penal, código de processo penal e leis especiais
integridade, que são a Controladoria-Geral criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
da União e a Comissão de Ética Pública. A Gauchet, M. La religion dans la democratie: parcours
CGU, por exemplo, foi reestruturada em de la laïcité. Paris: Gallimard, 1998.
2003 e, em 2006, ganhou uma Secretaria Heidenheimer, A. J.; Johnson, M.; LeVine, V.
de Prevenção da Corrupção e Informações T. (Ed.). Political corruption: a handbook. New Bruns-
Estratégicas. A CEP, por sua vez, passou wick: Transaction Publishers, 1989.
a encabeçar, em 2007, o chamado Sistema Klaveren, J. V. The concept of corruption. In: He-
de Gestão da Ética do Poder Executivo idenheimer, A. J.; Johnson, M.; LeVine, V. T.
Federal, que engloba todas as comissões de (Ed.). Political corruption: a handbook. New Brunswick:
ética constituídas segundo o que determina Transaction Publishers, 1989.
o Decreto no 1.171, de 1994, que instituiu o Leff, N. H. Economic policy-making and development
Código de Ética Profissional do Servidor in Brazil, 1947-1964. New York: John Wiley & Sons,
Civil do Poder Executivo Federal. Inc., 1968.
Por fim, pode ser interessante chamar Morais, Jôsé Leovegildo. Estudo de Caso: A Experi-
a atenção para um último ponto. Há um ência do Brasil na administração de conflito de interes-
tipo de conflito de interesses, que pode ser ses no serviço público. Fórum sobre conflito de interesses.
OCDE, OEA,CEP, Rio de Janeiro, 2004. Disponível
bastante comum na administração pública em: <https://200.181.15.9/etica/Eventos/Foru-
brasileira em função de algumas de suas mOCDE2004/Wshop2.2Por-ForumOCDE-estudo%20
características e, em especial, do tipo de de%20caso%20Brasil.PDF>. Acesso em: 24 jul. 2007.
relação que mantém com o domínio políti- OCDE. Managing conflict of interest in the public
co, que não é adequadamente enquadrado service: OECD Guidelines and Country Experi-
pelo projeto de lei que analisamos, o que ences, 2003. Disponível em: <http://www.oecd.
certamente indica um limite importante. org/dataoecd/13/22/2957360.pdf>. Acesso em: 24
Aqui nos referimos à grande quantidade jul. 2007.
de cargos de livre nomeação e, mais parti- Philp, M. Defining political corruption: political stud-
cularmente, ao uso que se faz desses cargos ies. 1997, p. 436-462.
no jogo político. Um passo mais decidido Williams, B. Ethics and the limits of philosophy. Cam-
para fazer avançar o esforço preventivo de bridge: Harvard UP, 1985.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 173


Cerceamento de defesa no indeferimento
de prova pericial
Violação de direito fundamental da parte e lesão da
ordem jurídica constituída

Aroldo Plínio Gonçalves


Ricardo Adriano Massara Brasileiro

O cerceamento do direito à produção da


prova constitui grave violação dos direitos
processuais da parte e insuportável menos-
prezo aos direitos que, ao mesmo tempo
em que são protegidos pela ordem jurídica,
estão no cerne da própria concepção do
Estado de Direito Democrático.
No arcabouço jurídico que fornece os
contornos e os fundamentos do Estado
Democrático, o Poder, qualquer que seja
o plano de manifestação, não se exerce
de forma unilateral e autoritária, própria
dos regimes autocráticos, mas, sim, com
a participação dos destinatários de seus
atos, que se expressa por diversos canais
e por diversas formas, legitimados pelo
ordenamento jurídico positivo.
No processo judicial, a manifestação e
o exercício democráticos do Poder Jurisdi-
cional requerem a garantia de participação
das partes, em simétrica paridade, nas fases
preparatórias do provimento.
A participação das partes, em contradi-
tório, na defesa de interesses em conflito,
irá, sem dúvida nenhuma, influenciar na
formação do provimento, desde o deli-
Aroldo Plínio Gonçalves é Professor Ti- neamento do pedido, ato inaugural que
tular (Emérito) de Direito Processual Civil da provoca a atuação do Judiciário e a cujos
UFMG.
lindes a decisão deve-se ater, até, com o fim
Ricardo Adriano Massara Brasileiro é Espe-
cialista, Mestre e Doutor em Direito pela UFMG; da coleta das provas, o encerramento da
Professor dos Cursos de Graduação e Mestrado instrução e a oferta das razões finais.
na Faculdade de Direito Milton Campos; Procu- Sobrevindo o provimento, favorável
rador do Estado de Minas Gerais; Advogado. a uma das partes e desfavorável à outra,

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 175


reconhecendo que uma delas está com a No processo, essas garantias acolhidas
razão e que falta razão à outra, a partici- nos planos constitucional e infraconstitu-
pação das partes continua assegurada no cional das normas processuais intentam
direito, na oportunidade de interposição de assegurar que o provimento não se trans-
recurso, mediante o qual o vencido provoca forme na manifestação de um poder usur-
as instâncias superiores para o controle do pado, autocrático e arbitrário.
acerto da decisão. Por essa razão, o cerceamento de defesa,
A atuação dos jurisdicionados no pro- que ceifa a participação da parte no proce-
cesso constitui a forma mais democrática de dimento que prepara o provimento, além
participação do exercício do Poder Jurisdi- de agredir direitos originários da parte,
cional, em toda organização jurídica que se originários no sentido preciso do termo, por
estrutura sobre a idéia de que a legítima e serem concedidos pelo Poder Constituinte,
genuína fonte originária do Poder é o povo, agride a ordem jurídica, macula a jurisdi-
que o exerce por meio de representantes ção, nega o devido processo legal, viola o
eleitos ou pelos meios e órgãos previstos contraditório e a ampla defesa.
na Constituição. A conseqüência que o Direito reserva a
Dos preceitos a ela dedicados, desta- tal ato, que investe contra o próprio modelo
cam-se os que se voltam para a garantia de processo do regime democrático, como
de que a todos será assegurado o direito procedimento que se forma com a partici-
de que sua causa será ouvida e decidida pação das partes em contraditório, com o
por um Tribunal independente e impar- fim de preparar o provimento estatal, é o
cial, com a observância dos princípios do não reconhecimento de sua eficácia.
devido processo legal, do contraditório e O não reconhecimento da eficácia dos
da ampla defesa. atos praticados em contrariedade aos pre-
No ordenamento jurídico brasileiro, ceitos constitucionais, e de todos os que se
esses preceitos encontram desdobramentos seguem na cadeia do procedimento, conta-
nas disposições constitucionais que garan- minados pelos vícios insanáveis, traduz-se,
tem que não se poderá excluir da apreciação naturalmente, como nulidade.
do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direi- No plano das normas processuais, o
tos, que ninguém será privado da liberdade Direito positivo define os atos das partes,
ou de seus bens sem o devido processo essenciais para a formação da cadeia do
legal, que será assegurado aos litigantes, procedimento que prepara o provimento,
em processo judicial ou administrativo, e e assegura sua prática, dentro das balizas
aos acusados em geral, o contraditório e a traçadas pelo modelo legal de Processo.
ampla defesa, com os meios e recursos a ela Na cadeia desses atos, a produção da
inerentes, que as decisões do Poder Judiciá- prova desponta como um direito funda-
rio serão públicas e fundamentadas. mental, cuja fonte originária, como já foi
No plano da ordem jurídica positiva, referido, é a Constituição da República,
são direitos e garantias expressos no art. 5o, que assegura aos litigantes o contraditório
incisos XXXV, LIV e LV, da Constituição da e a ampla defesa, com os meios e recursos
República, incluídos entre os Direitos e as a ela inerentes.
Garantias Fundamentais, que formam um A prova é de substancial importância
dos pilares essenciais do Estado de Direito para se desvelar os fatos controvertidos,
Democrático, às quais se acrescenta a inclu- lançando luzes sobre sua verdade, para
ída no art. 93, inciso IX, da Constituição, no traçar os contornos das questões de fato
capítulo dedicado ao Poder Judiciário, que que ao Juiz caberá apreciar, para compor o
exige que todas as decisões sejam funda- quadro no qual o Magistrado irá decidir o
mentadas, sob pena de nulidade. pedido, acolhendo-o ou rejeitando-o.

176 Revista de Informação Legislativa


A prova é capaz de elucidar a verdade A lei processual estabelece que o Juiz
real, tão importante hoje, no processo, que não está adstrito ao laudo pericial, podendo
o Direito confere ao próprio Juiz (art. 440 a formar a sua convicção com outros elemen-
443 do Código de Processo Civil) a possi- tos dos autos.
bilidade da realização da inspeção judicial, No entanto, é óbvio que, para a aplica-
de ofício ou a requerimento da parte. ção desse preceito, a prova pericial deve
Para a parte, poder produzir a prova não ter sido produzida. Caso contrário, o Juiz
é uma prerrogativa, uma concessão do Juiz sequer teria termo de comparação para
na direção do processo. formar a sua convicção, rejeitando o laudo
É, antes, uma necessidade gerada da em prol das demais provas.
distribuição legal de seu ônus e das con- Não pode o Juiz, todavia, repelir, sim-
seqüências reservadas àqueles que desse plesmente, o laudo pericial, sem demons-
ônus não se desincumbem. trar as razões de seu entendimento.
A produção da prova é, portanto, um Impedem-no o inciso IX do art. 93 da
direito das partes, amparado em normas Constituição da República e os preceitos
constitucionais e processuais, e, mais preci- dos artigos 131 e 458, II, do Código de
samente, é um direito – dever da parte que Processo Civil.
tem o ônus de produzi-la em Juízo. O Juiz é autorizado a indeferir a prova
A lei prevê a regra geral da distribuição pericial nos estritos casos previstos nos
desse encargo, cabendo ao Autor provar o incisos I, II e III do parágrafo único do art.
fato constitutivo de seu direito e ao Réu, a 420 do Código de Processo Civil, quando,
existência de fato impeditivo, modificativo nos termos da lei: “I – a prova do fato não
ou extintivo do direito do Autor, nos termos depender do conhecimento especial de
do art. 333 do Código de Processo Civil. técnico; II – for desnecessária em vista de
A importância do direito à produção da outras provas produzidas; III – a verificação
prova pode ser avaliada pelo lugar que a or- for impraticável.”
dem jurídica lhe atribuiu, situando-a sob o É necessário, contudo, que o uso da facul-
pálio da norma constitucional que exige que dade do indeferimento da prova pericial seja
se assegure aos litigantes a ampla defesa, revestido de toda a cautela. A equivocada in-
com os meios e recursos a ela inerentes. terpretação da natureza do fato que põe como
As normas processuais canalizam essa objeto da prova ou o equivocado juízo sobre
garantia para o processo, cujos atos se a desnecessidade e sua inutilidade levará,
desenvolvem sob o modelo de sua disci- com toda certeza, ao prejuízo da prestação da
plina. jurisdição, à violação de garantias das partes,
Os meios de prova admitidos no pro- ao cerceamento de defesa, ao cerceamento
cesso são amplos, como decorre do pre- da prova. A envolver tudo isso, transpare-
ceito do art. 332 do Código de Processo cerá a arbitrariedade do Órgão Jurisdicional.
Civil. O Código de Processo Civil não os A prova se destina à formação da con-
limita, a não ser por contornar o campo da vicção do Magistrado, mas o direito de
liceidade em que eles podem comparecer. produzi-la é da parte.
Admissíveis a provar a verdade dos fatos No próprio texto da Constituição da
são todos os meios legais e moralmente República, como já reiteradas vezes explici-
legítimos. tado, encontra-se assegurado aos litigantes
Entre os meios lícitos hábeis a fazer pro- o contraditório e a ampla defesa com os
va dos fatos alegados, o Código de Processo meios e recursos a ela inerentes, o que equi-
Civil acolhe a prova pericial, destinada a vale dizer, a garantia do direito à prova,
elucidar fatos que requeiram conhecimento devendo ser cabalmente fundamentada a
especializado, técnico ou científico. decisão de indeferimento.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 177


Não é, portanto, aceitável a afirmação de Essas garantias jamais podem ser sacrifi-
que o Juiz só está obrigado a mostrar as ra- cadas em prol da celeridade processual.
zões de seu convencimento. Ele deve proce- A finalidade do processo judicial não é
der à análise das questões e, em respeito aos contar pontos em olimpíadas de celeridade
direitos e garantia das partes, e às exigências e economia processual. É preparar o provi-
dos preceitos constitucionais, fundamentar, mento judicial que responderá à demanda
com aquela análise, a sua decisão. das partes, com a garantia de sua participa-
A liberdade do juiz na direção do pro- ção e respeito a seus direitos, em todos os
cesso não pode servir de justificativa para atos que a lei coloca à sua disposição.
transformá-lo em um tirano.
Ela permite ao juiz determinar as pro-
vidências necessárias ao esclarecimento da Referências
causa e indeferir requerimentos inúteis.
Mas a utilidade e a necessidade das BRASIL. Código de processo civil. Senado Federal,
providências requeridas pelas partes de- 1973.
vem ser analisadas em face das garantias BRASIL. Constituição da República (1988). Senado
constitucionais do devido processo legal, Federal, 1988.
do contraditório e da ampla defesa.

178 Revista de Informação Legislativa


Tráfico de seres humanos
Algumas diferenciações

Lilia Maia de Morais Sales


Emanuela Cardoso Onofre de Alencar

Sumário
Introdução; 1. Que tráfico é esse? 2. O con-
ceito de tráfico de seres humanos. Exploração
da prostituição de outrem ou outras formas
de exploração sexual. Trabalhos ou serviços
forçados. Escravatura ou práticas similares à
escravatura e servidão. Remoção de órgãos. 3.
Diferenciações entre tráfico de seres humanos e
outros fenômenos. Migração e tráfico de seres
humanos. Contrabando de migrantes e tráfico
de seres humanos. Prostituição e tráfico de se-
res humanos. Turismo sexual e tráfico de seres
humanos. Considerações finais.

Introdução
O tráfico de seres humanos está na
agenda de discussões internacionais con-
temporânea de governos, ONGs e pes-
Lilia Maia de Morais Sales é Doutora em
quisadores. Nesse debate, o problema do
Direito/UFPE; Coordenadora do Programa de
Pós-graduação em Direito/Mestrado e Douto- tráfico perpassa temas que a ele se ligam,
rado da Universidade de Fortaleza – UNIFOR; como, por exemplo, os fluxos migratórios
Professora Adjunta da Faculdade de Direito da atuais, que são abordados sob diferentes
Universidade Federal do Ceará – UFC; Con- perspectivas, como a necessidade de pro-
sultora do Escritório das Nações Unidas contra teção das fronteiras, o enrijecimento da le-
Drogas e Crimes – UNODC para o Programa gislação migratória e o combate à imigração
Nacional de Prevenção e Combate ao Tráfico ilegal, a proteção das pessoas traficadas e a
de Seres Humanos da Secretaria Nacional de efetivação dos direitos humanos.
Justiça – MJ, em 2005.
Nesse embate de idéias e interesses polí-
Emanuela Cardoso Onofre de Alencar é
Mestre em Direito Constitucional/UNIFOR, ticos, percebe-se que muitas vezes ocorrem
Professora do Curso de Direito da Faculdade confusões, propositadas ou não, no enten-
Católica Rainha do Sertão, Pesquisadora do dimento do tráfico com vários fenômenos
Escritório de Prevenção ao Tráfico de Seres que a ele se ligam, mas são diversos. Desta
Humanos e Assistência à Vítima no Ceará. feita, são recorrentes, por exemplo, relatos

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 179


informando que governos tratam pessoas não-governamentais tentassem apresentar
traficadas como imigrantes ilegais, depor- seu conceito de tráfico (Cf. ANDERSON;
tando-os simplesmente a seus Estados de O’CONNELL DAVIDSON, 2004, p. 16),
origem, sem dispensar o tratamento ade- fazia-se – e ainda se faz – muita confusão
quado a pessoas que sofreram exploração, entre esse fenômeno e outros que a ele
bem como casos de trabalhadores sexuais podem estar ligados.
que migram voluntariamente para outros Como observa Kapur (2005, p. 115), o
Estados para exercerem suas atividades tráfico de seres humanos está relacionado,
e, estando em situação de ilegalidade, são no discurso contemporâneo, à migração,
capturados e apresentados como vítimas especialmente a ilegal, e ao contrabando
de tráfico de pessoas (Cf. CHAPKIS, 2003; de migrantes. Paralelamente, existe ainda
KAPUR, 2005). Ademais disso, por ser con- o tráfico de mulheres e de crianças que está
siderado como ligado ao crime organizado, associado à sua venda e ao envio forçado a
nacional ou transnacional1, o tráfico é visto bordeis como trabalhadores sexuais. Para
apenas como questão de segurança, e não, a autora, esta associação do tráfico com
também, como grave violação de direitos várias formas de migração e mobilidade, de
humanos. um lado, e com a prostituição e o trabalho
Assim, tendo em vista a necessidade de sexual, de outro, está no centro do discurso
conhecer essa problemática e de realizar atual sobre o tráfico global de pessoas.
sua diferenciação de outros fenômenos que Essa problemática é reforçada por Cha-
com ele se confundem para possibilitar sua pkis (2006, p. 926) ao dispor que as defini-
melhor compreensão, o presente trabalho ções de tráfico são tão instáveis quanto o
se propõe, inicialmente, a apresentar as número de suas vítimas. Segundo ela, em
principais características do tráfico de alguns relatórios, todos os imigrantes não
pessoas, de acordo com o conceito apresen- documentados que são detidos nas frontei-
tado pelo último documento das Nações ras são contados como se estivessem sendo
Unidas a tratar desse tema. Em seguida, traficados. Outros documentos se referem
busca diferenciá-lo do movimento migra- ao tráfico envolvendo exclusivamente
tório per se, do contrabando de migrantes, vítimas da exploração sexual. Desta feita,
da prostituição e do turismo sexual, cuja em alguns exemplos, todos os imigrantes
confusão prejudica o desenvolvimento de trabalhadores sexuais são definidos como
políticas adequadas para prevenir e com- vítimas de tráfico sem levar em considera-
bater o tráfico. ção o seu consentimento e suas condições
de trabalho; e em outros casos, são enfati-
1. Que tráfico é esse? zadas as condições abusivas de trabalho ou
o recrutamento enganoso para a indústria
Durante muito tempo, não foi tarefa do sexo.
fácil conceituar tráfico de seres humanos, Em face dessa indefinição, que dificulta-
eis que não havia um consenso interna- va a identificação do tráfico, sua repressão
cional sobre o que seria essa atividade, e e punição, e tendo em vista que nenhum
muito se discutiu na tentativa de apresen- dos documentos internacionais anterior-
tar a definição mais adequada. Embora mente elaborados que tratavam do tráfico
várias organizações governamentais e de mulheres2 apresentou uma definição
1
O atual documento da ONU a tratar do tráfico
dessa atividade, tornou-se imprescindível
de pessoas é um protocolo adicional à Convenção a elaboração de um conceito de tráfico de
das Nações Unidas contra o crime Organizado Trans- pessoas que pudesse orientar as ações das
nacional, o que enfatiza a idéia de que o tráfico está
ligado ao crime organizado e deve ser tratado como 2
Na atualidade, o tráfico se refere ao tráfico de
questão de segurança. pessoas, tanto do sexo masculino como feminino.

180 Revista de Informação Legislativa


organizações governamentais e não-gover- benefícios para obter o consentimento
namentais que atuam nessa área. de uma pessoa que tenha autoridade
Desta feita, em dezembro de 2000, foi sobre outra para fins de exploração.
aberta para ratificação, na cidade de Pa- A exploração incluirá, no mínimo, a
lermo, Itália, a Convenção contra o Crime exploração da prostituição de outrem
Organizado Transnacional, objetivando ou outras formas de exploração sexu-
prevenir e combater delitos transnacionais al, o trabalho ou serviços forçados,
cometidos por grupos organizados, e, adi- escravatura ou práticas similares à
cional a esta, dois protocolos, um versando escravatura, a servidão ou a remoção
sobre tráfico de seres humanos e outro de órgãos.
sobre contrabando de imigrantes. b) O consentimento dado pela vítima
de tráfico de pessoas tendo em vista
2. O conceito de tráfico de seres humanos qualquer tipo de exploração descrito
na alínea a) do presente Artigo será
O Protocolo das Nações Unidas contra considerado irrelevante se tiver sido
o Crime Organizado Transnacional Re- utilizado qualquer um dos meios
lativo à Prevenção, Repressão e Punição referidos na alínea a);
ao Tráfico de Pessoas, especialmente Mu- c) O recrutamento, o transporte, a
lheres e Crianças, é o atual documento da transferência, o alojamento ou o aco-
Organização das Nações Unidas a tratar do lhimento de uma criança para fins
tráfico de seres humanos. Em comparação de exploração serão considerados
aos documentos internacionais anteriores
‘tráfico de pessoas’ mesmo que não
que abordaram esse tema3, o Protocolo
envolvam nenhum dos meios referi-
de Palermo, como também é conhecido,
dos da alínea a) do presente Artigo;
destaca-se por apresentar a primeira defi-
d) O termo “criança” significa qual-
nição desse delito.
quer pessoa com idade inferior a
Segundo o Protocolo de Palermo, em
dezoito anos.”
seu artigo 3:
A definição apresentada pelo Protocolo
“a) A expressão ‘tráfico de pessoas’
de Palermo trouxe significativos avanços.
significa o recrutamento, o transpor-
Inicialmente, é importante destacar que
te, a transferência, o alojamento ou o
o documento faz referência ao tráfico de
acolhimento de pessoas, recorrendo
pessoas, e não mais apenas de mulheres4,
à ameaça ou uso da força ou a outras
como se observa nos anteriores. Essa mu-
formas de coação, ao rapto, à fraude,
dança demonstra a idéia que se tem de que
ao engano, ao abuso de autoridade ou
tanto homens como mulheres podem ser
à situação de vulnerabilidade ou à en-
traficados.
trega ou aceitação de pagamentos ou
Ademais, o tráfico está definido como
3
São esses documentos o Acordo para a Repres- um processo que ocorre com várias etapas
são do Tráfico de Mulheres Brancas de 1904 (Decreto distintas, conforme se depreende da lei-
5.591/1905); da Convenção Internacional para a tura do artigo 3, a). Esse processo inclui o
Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas de 1910
(Decreto 16.572/1924); da Convenção Internacional recrutamento, o transporte, a transferência,
para a Repressão do Tráfico de Mulheres e de Crianças o alojamento ou o acolhimento de pessoa,
de 1921 (Decreto 23.812/1934); do Protocolo de Emenda utilizando-se de qualquer dos meios co-
da Convenção para a Repressão do Tráfico de Mulheres
ercitivos descritos, que podem ocorrer de
e de Crianças, de 30 de setembro de 1921, e da Conven-
ção para a Repressão do Tráfico de Mulheres Maiores, diversas formas, envolvendo várias pessoas
de 11 de outubro de 1933 (Decreto 37.176/1955); da
Convenção para a Repressão do Tráfico de Pessoas e do 4
Apesar da ênfase que ainda é dada a mulheres
Lenocínio e Protocolo Final (Decreto 46.981/1959). e crianças.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 181


em suas diferentes etapas, tendo como são bem estabelecidos e as rotinas de traba-
finalidade a exploração. lho são monitoradas. Segundo elas (2004,
Na definição do Protocolo, o tráfico de p. 8), a demanda pelo trabalho de pessoas
seres humanos ocorre com a finalidade da traficadas é freqüentemente encontrada
exploração de alguém em diversos setores em contexto que é socialmente imaginado
do mercado de trabalho. Essa exploração por não envolver relações de trabalho. Por
se refere às condições de trabalho às quais exemplo, o serviço doméstico não é com-
as pessoas são submetidas e a como se pletamente entendido como “trabalho”
desenvolve a relação trabalhista, muitas quando tem lugar no espaço privado da
vezes se submetendo o trabalhador a horas casa; aqueles que exploram trabalho in-
extenuantes de atividade, desenvolvida de fantil freqüentemente não reconhecem as
modo forçado, em condições inadequadas, crianças como empregados ou eles como
restringindo sua liberdade de locomoção, re- empregadores e escondem o que é uma
cebendo baixo ou nenhum pagamento e sem relação de exploração de trabalho atrás de
a observância da legislação trabalhista. relações de parentesco fictícias ou alguma
A existência de demanda por pessoas outra forma de paternalismo. Isso também
traficadas para desenvolverem determina- se pode aplicar em relação ao trabalho en-
das atividades, bem como a existência de volvendo adultos. Por sua vez, “prostituta”
pessoas que se arriscam a aceitar propostas é freqüentemente tomada para referir uma
de trabalho em outras localidades, muitas categoria de pessoa (uma sub-pessoa) mais
vezes com poucas informações a seu res- do que uma categoria de trabalhador, e
peito, têm uma ligação próxima. assim não pode ser imaginada como um
Como destacado por Anderson e sujeito de direitos.
O’Connell Davidson (2004, p. 7), questões Desta feita, atividades que são desen-
sobre suprimento e demanda não podem volvidas em setores em que não há regu-
ser analiticamente separadas, e ambas são lamentação adequada ou uma fiscalização
caracterizadas, ou até determinadas, por eficiente acerca das condições de trabalho,
um conjunto complexo e interligado de bem como da necessária observância da
fatores políticos, sociais e institucionais. legislação trabalhista, tendem a ser aquelas
Os serviços de pessoas traficadas são in- mais suscetíveis a receber e explorar pes-
variavelmente explorados/consumidos soas traficadas.
em setores em que o Estado concede pouca Anderson e O’Connell Davidson (2004,
ou nenhuma proteção a trabalhadores imi- p. 8) destacam, ainda, que trabalhadores
grantes desqualificados e/ou outras catego- imigrantes ilegais ou irregulares são muito
rias de pessoas exploradas (como esposas, mais vulneráveis à exploração por grupos
au pairs, crianças adotadas, pedintes); e em de traficantes de pessoas, em face do des-
que trabalhadores ou outros grupos explo- conhecimento da língua e do local para
rados têm pouca ou nenhuma oportunida- onde são levados. Muitas vezes aceitam
de de se organizarem coletivamente para se propostas de trabalho em outros locais
protegerem de abuso e exploração. Esses devido à necessidade de ganhar dinheiro
setores não existem simplesmente, mas e às condições socioeconômicas que estão
são criados por meio de uma combinação vivenciando. Um dos recursos utilizados
de ação e inação de parte de atores estatais para subjugar esses trabalhadores são os
e outros grupos de interesses. débitos, o confinamento, a força e os trata-
As autoras salientam que quase não mentos violentos.
existe demanda por pessoas traficadas para Assim, atividades como serviços gerais,
serem exploradas em setores em que os tra- serviços domésticos, trabalhos na agricul-
balhadores estão organizados, os contratos tura, na construção civil, nas indústrias e

182 Revista de Informação Legislativa


manufaturas, na prostituição, entre outras, interpretá-los de acordo com sua legislação
tendem a ser aquelas nas quais são explo- interna, bem como foi mantida a referência
radas pessoas traficadas, em várias regiões à prostituição (Cf. DITMORE; WIJERS,
do mundo.5 2003, p. 84).
As formas de exploração, segundo o Pro- Uma nota interpretativa das Nações
tocolo de Palermo, podem se dar por meio Unidas destaca que os trabalhos prepara-
da exploração da prostituição de outrem tórios indicaram que o Protocolo se refere
ou outras formas de exploração sexual, de à exploração da prostituição de outrem ou
trabalhos ou serviços forçados, da escrava- outras formas de exploração sexual somen-
tura ou práticas similares à escravatura, da te no contexto do tráfico de pessoas. Esses
servidão ou para a remoção de órgãos. termos não estão definidos no Protocolo, o
que resulta na falta de preconceito no modo
Exploração da prostituição de outrem ou como os Estados-Parte se referem à prosti-
outras formas de exploração sexual tuição em suas respectivas leis domésticas
A expressão “exploração da prostituição (Cf. DITMORE; WIJERS, 2003, p. 84).
de outrem ou outras formas de exploração Essa indefinição ocorreu em face da
sexual” é criticada por diversos autores em existência de tipos distintos de legislação
face da sua imprecisão, o que não auxilia sobre a prostituição em diferentes Estados,
em nada a compreensão desse tipo de como é o caso da Alemanha e da Holan-
exploração, principalmente por se referir da, que a regulamentam como atividade
a uma atividade específica, a prostituição, profissional, e da Suécia, que a proíbe
quando o intuito seria desvincular o trá- expressamente.
fico de qualquer atividade laboral, para Mas as atividades na indústria do sexo
compreendê-lo como uma conduta na qual não se referem somente à prostituição, pois
se usam meios fraudulentos para explorar envolvem também os serviços de entreteni-
alguém (Cf. PISCITELLI, 200-b; ANDER- mento sexual, como dançarinas, stripteases,
SON; O’CONNELL DAVIDSON, 2004). shows de sexo ao vivo, serviços de tele-sexo,
Contudo, como a prostituição e outras entre vários outros.
atividades que envolvem trabalhadores Diversos autores defendem que essa
finalidade do tráfico de pessoas está mais
sexuais foram objeto dos maiores debates
relacionada às condições de recrutamento e
nos encontros finais das negociações para
de exploração do que à realização da ativi-
a elaboração do Protocolo, esses termos
dade per se. Isso porque atividades sexuais
foram propositadamente deixados inde-
podem variar muito em relação à forma de
finidos para que cada governo pudesse
ingresso e às condições em que se desen-
5
Como destacam Anderson e O’Connell Davidson volvem (Cf. ANDERSON; O’CONNELL
(2004), na Ásia pessoas são traficadas para trabalharem DAVIDSON, 2004, p. 35-36).
em serviços domésticos, manufaturas, restaurantes, A prostituição é considerada uma ativi-
hotéis, prostituição e para casamento; na África, crian- dade que expõe o trabalhador a riscos físicos
ças são traficadas para trabalharem na agricultura, em
manufaturas, em plantações de tabaco e atuarem como e de saúde, apesar de não ser a única6, e que
soldados, enquanto adultos traficados são explorados se encontra extremamente estigmatizada na
em serviços domésticos e sexuais; na América, há
demanda por pessoas traficadas na construção civil, 6
Deve-se destacar que existem diversas outras
agricultura, restaurantes, indústria do sexo e trabalhos atividades que expõem seus trabalhadores a diferentes
domésticos; na Europa, pessoas traficadas são explora- riscos físicos e de saúde, colocando, inclusive, suas
das em serviços domésticos, na indústria do sexo, na vidas em perigo, como é o caso dos trabalhadores de
agricultura, em restaurantes e na construção civil; e no minas subterrâneas. Ocorre que, por não ser uma ati-
Oriente Médio, há tráfico para casamento, prostituição, vidade estigmatizada, está regulamentada em vários
serviços domésticos e tráfico de crianças para serem Estados e seus trabalhadores possuem um mínimo de
exploradas como soldados e jóqueis em camelos. proteção trabalhista.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 183


maioria dos Estados, não sendo vista como nem mesmo para o recebimento de seus
trabalho. Esse fato faz com que os trabalha- salários. Assim, os Estados possibilitam
dores sexuais sejam alvo de preconceitos e que os empregadores tratem essas mulhe-
coloca essa atividade entre os espaços mais res da forma como desejarem, o que torna
subalternos e marginalizados dos setores possível diferentes níveis de exploração (Cf.
informais, pouco controlados e regulamen- ANDERSON; O’CONNELL DAVIDSON,
tados, o que torna possível diversas formas 2004; BARRERO, 2005).
de exploração e violência.
Segundo Piscitelli (200-b, p. 4), a explo- Trabalhos ou serviços forçados
ração e o tráfico de pessoas não estão au- Apesar da dificuldade de se conceituar o
tomaticamente vinculados à existência da que é trabalho forçado, em face da confusão
indústria do sexo, mas são favorecidos pela que comumente se faz com o trabalho escra-
falta de proteção dos trabalhadores nesse vo e a servidão, a OIT, em seus documentos,
setor. Aqueles que traficam se beneficiam define o que considera essa prática. Segun-
das migrações (internas ou internacionais) do a Convenção sobre Trabalho Forçado,
e dos trabalhos sexuais comerciais, o que de 1930 (no 29), é “todo trabalho ou serviço
favorece o exercício do poder de quem exigido de uma pessoa sob ameaça de san-
explora sobre esses trabalhadores. ção e para o qual ela não tiver se oferecido
Além disso, a existência de demanda por espontaneamente” (art. 2o).
sexo barato e por determinados “tipos” de O trabalho forçado representa grave
pessoas, consideradas exóticas, pode ser um violação aos direitos humanos e restrição
estímulo para a existência de tráfico com a da liberdade. Não pode ser simplesmente
finalidade de exploração sexual, na medida equiparado a baixos salários ou a más con-
em que os clientes procuram diversidade de dições de trabalho. Para que uma atividade
trabalhadores sexuais. As terceiras partes seja considerada forçada, deve conter os
que traficam pessoas podem suprir essa dois elementos apresentados pela OIT:
demanda com homens ou mulheres de di- trabalho ou serviço imposto sob ameaça
versas localidades e também deslocar essas de punição e aquele executado involunta-
pessoas já traficadas de um bordel para riamente (Cf. Organização Internacional do
outro ou de uma região para outra. Trabalho, 2005).
Nos casos de trabalhadores sexuais A punição pode apresentar as caracterís-
imigrantes, a sua vulnerabilidade à ex- ticas de perda de direitos e privilégios. Uma
ploração por uma terceira parte é maior, ameaça de punição (Cf. Organização Inter-
em face das leis e políticas migratórias, nacional do Trabalho, 2005, p. 5-6) pode
que, muitas vezes, os tornam dependentes assumir diferentes formas, como violência,
de seus empregadores, que tanto podem confinamento, ameaça de morte ao traba-
ajudá-los como explorá-los. Alguns Esta- lhador e a seus familiares. A ameaça pode
dos, como o Canadá, concedem permissão ainda ter natureza psicológica7, natureza
de trabalho em setores de entretenimento financeira8 e ocorrer com o confisco dos
para mulheres estrangeiras, por períodos
de seis a doze meses. Freqüentemente a 7
Ameaças de denúncia do trabalhador imigrante
ilegal à polícia ou às autoridades de imigração, por
estada dessas mulheres está vinculada a exemplo. (Cf. Organização Internacional do Trabalho,
um determinado empregador, o que as 2005, p. 6).
torna dependentes dele para sua migra- 8
Como penas econômicas ligadas a dívida, ao não
ção regular e sua subsistência. Contudo, pagamento de salários ou à perda de salários juntamen-
te com ameaças de demissão quando ao trabalhador se
em vários Estados, essas estrangeiras que recusar a fazer horas extras além do estipulado em seus
atuam na indústria do entretenimento não contratos ou na legislação nacional. (Cf. Organização
estão garantidas pela legislação trabalhista, Internacional do Trabalho, 2005, p. 6).

184 Revista de Informação Legislativa


documentos pessoais do trabalhador com o a ameaça adicional e sempre presente de
objetivo de lhe impor trabalho forçado. denúncia às autoridades. As vítimas podem
Em relação ao consentimento, a OIT se ver diante da difícil opção entre aceitar
destaca variados aspectos que incluem a condições de trabalho altamente explora-
forma ou o conteúdo do consentimento, o doras ou correr o risco de deportação para
papel das pressões externas ou das coações seus Estados de origem se partirem para a
indiretas, e a possibilidade de revogar o defesa de seus direitos. Quarto, um número
consentimento dado livremente. Há ainda cada vez maior de pesquisas, especialmente
formas veladas que afetam o consentimento sobre a situação de vítimas do tráfico para
dado pelo trabalhador, como no caso da- trabalho forçado em países industrializa-
queles que aceitam um trabalho que será dos, tem ajudado a identificar grave lacuna
forçado, sem o seu conhecimento, eis que legislativa que dificulta a luta contra formas
a aceitação da proposta ocorreu por meio ocultas e muitas vezes sutis de coação na
de fraude e engano, para depois descobrir economia privada.
que não pode deixar o trabalho em face No que se refere ao tráfico de pessoas
das coerções físicas ou psicológicas. Esse e ao trabalho forçado, apesar de serem
consentimento inicial será considerado práticas distintas, podem acontecer casos
irrelevante porque foi obtido por fraude de tráfico com a finalidade da exploração
ou engano (Cf. Organização Internacional por meio da realização de trabalho forçado,
do Trabalho, 2005, p. 6). mas nem todo trabalho forçado é fruto do
É necessário destacar que o que vai de- tráfico. Assim sendo, há a necessidade de
terminar uma situação de trabalho forçado leis que combatam tanto o tráfico de pessoas
é a natureza da relação do trabalhador com (destacando que este deve englobar todos os
o empregador e não o tipo de atividade tipos de exploração elencados no Protocolo
desenvolvida, mesmo que as condições de de Palermo) como o trabalho forçado.
trabalho sejam duras ou perigosas.
Existem, na atualidade, algumas cate- Escravatura ou práticas similares à
gorias de trabalho considerado forçado: a escravatura e servidão
imposta pelo próprio Estado, por razões A escravidão é uma forma de trabalho
econômicas, políticas e outras; a ligada à forçado, mas que tem as suas especificida-
pobreza e à discriminação, especialmente des. Significa o estado ou condição de uma
em países em desenvolvimento; e o traba- pessoa sobre a qual se exercem todos ou al-
lho forçado como seqüela da migração e guns dos poderes decorrentes do direito de
do tráfico de trabalhadores vulneráveis em propriedade.9 Além da obrigação de traba-
todo o mundo. lhar existente na escravidão, essa situação
A OIT (2005, p. 2) destaca ainda alguns não tem tempo determinado, é permanente
aspectos de grande parte do trabalho e pode se basear na descendência. Implica
forçado contemporâneo. Primeiro, é mais também o domínio de uma pessoa sobre
comum ser imposto por agentes privados outra ou de um grupo de pessoas sobre
do que diretamente pelo Estado. Segundo, outro (Cf. Organização Internacional do
o endividamento induzido é um poderoso Trabalho, 2005, p. 8).
meio de coerção, reforçado por ameaças As práticas análogas à escravidão são
de violências ou de castigos contra traba- elencadas pela Convenção Suplementar
lhadores vítimas do trabalho forçado ou
suas famílias. Terceiro, a precariedade da 9
Essa definição foi apresentada pela primeira vez
no artigo 1o da Convenção sobre Escravidão, da Liga
situação legal de milhões de migrantes, das Nações, em 1926, e foi repetida posteriormente no
mulheres e homens, torna-os particular- artigo 7.1 da Convenção Suplementar sobre a Abolição
mente vulneráveis à coação, tendo em vista da Escravatura, de 1926.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 185


sobre a Abolição da Escravatura, de 1926, da imprecisão que ainda persiste nos docu-
como sendo: mentos internacionais sobre o que seja cada
“1. A servidão por dívidas, isto é, o uma dessas práticas, consideradas espécies
estado ou a condição resultante do de trabalho forçado, vale destacar que são
fato de que um devedor se haja com- situações que violam a dignidade da pessoa
prometido a fornecer, em garantia de humana e, segundo a OIT, a servidão por
uma dívida, seus serviços pessoais dívida ou escravidão por dívida são aspectos
ou os de alguém sobre o qual tenha proeminentes das situações contemporâneas
autoridade, se o valor desses serviços de trabalho forçado (Cf. Organização Inter-
não for equitativamente avaliado no nacional do Trabalho, 2005, p. 8).
ato da liquidação da dívida ou se a O tráfico de pessoas também não se
duração desses serviços não for limi- confunde com a escravidão, com práticas
tada nem sua natureza definida; análogas à escravidão, nem com a servi-
2. A servidão, isto é, a condição de dão, pois estas podem existir sem aquele.
qualquer um que seja obrigado pela Contudo, podem existir casos de tráfico de
lei, pelo costume ou por um acordo, pessoas para serem exploradas em situa-
a viver e trabalhar numa terra perten- ções como as destacadas.
cente a outra pessoa e a fornecer a essa
Remoção de órgãos
outra pessoa, contra remuneração ou
gratuitamente, determinados servi- Algumas críticas são feitas em relação
ços, sem poder mudar sua condição; à inclusão da remoção de órgãos como
3. Toda instituição ou prática em finalidade do tráfico, por considerá-la in-
virtude da qual: congruente. Entretanto, segundo Ditmore
4. Uma mulher é, sem que tenha o e Wijers (2003, p. 84), nos debates para
direito de recusa, prometida ou dada a elaboração do Protocolo, inúmeros re-
em casamento, mediante remunera- presentantes requereram sua inclusão e o
ção em dinheiro ou espécie entregue a assunto provocou pouco debate.
seus pais, tutor, família ou a qualquer O objetivo desse tipo de tráfico é a re-
outra pessoa ou grupo de pessoas; moção de órgãos para compra e venda no
5. O marido de uma mulher, a família “mercado negro”. Trata-se de uma prática
ou clã deste têm o direito de cedê-la a ilegal em todo o mundo. As legislações dos
um terceiro, a título oneroso ou não; Estados geralmente se referem à livre dispo-
6. A mulher pode, por morte do ma- sição dos órgãos após a morte, ou, no caso
rido, ser transmitida por sucessão a daqueles que não são vitais, ainda durante a
outra pessoa; vida.10 Mas sua comercialização é vedada.
7. Toda instituição ou prática em Contudo, essa é uma prática que vem-se
virtude da qual uma criança ou um desenvolvendo em algumas regiões. Geral-
adolescente de menos de dezoito mente pessoas ricas, que têm problemas de
anos é entregue, quer por seus pais saúde e não encontram doadores de órgão
ou um deles, quer por seu tutor, a para realizar um transplante nem querem
um terceiro, mediante remuneração expor seus familiares aos riscos de uma ci-
ou sem ela, com o fim da exploração rurgia, contatam grupos que comercializam
da pessoa ou do trabalho da referida 10
No Brasil, por exemplo, a Lei 9.434/1997, no
criança ou adolescente.” Capítulo V – Das sanções penais e administrativas,
Pela referida Convenção, a servidão é en- Seção I – Dos crimes, trata dos delitos de remoção,
compra e venda, realização de transplante ou enxerto
tendida como uma forma análoga à escravi-
entre outras atividades que envolvam tecidos, órgãos
dão, enquanto no Protocolo de Palermo está ou partes do corpo de pessoa ou cadáver, realizados
elencada de forma independente. Apesar em desacordo com a lei.

186 Revista de Informação Legislativa


órgãos no “mercado negro” para adquirir nificação familiar, o desejo de conhecer o
aqueles que lhes são necessários. mundo, entre outros (Cf. KAPUR, 2005;
Essa comercialização geralmente ocorre SALT, 2001; ANDERSON; O’CONNELL
em regiões empobrecidas do mundo, onde DAVIDSON, 2004; CONCIL OF EUROPE,
pessoas com problemas econômicos são 2006; CASTLES, 2002).
convencidas a vender um de seus órgãos Esse deslocamento pode se dar de forma
ou são até mesmo enganadas para tal (Cf. definitiva, quando o migrante não tem a
ARRUDA, 2004). intenção de retornar ao seu local de origem,
Essa prática é facilitada pelas defici- ou de forma provisória, quando o migrante
ências legais em vários Estados, apesar pretende retornar, existindo prazo certo ou
de, na maioria deles, esse comércio ser não.11 Pode se realizar ainda de forma legal,
considerado ilegal, bem como pelas difi- observando a legislação migratória do país
culdades nas investigações desses delitos, de acolhimento, ou de forma ilegal, quando
eis que as pessoas coagidas a vender um há a inobservância dessas leis.
órgão são amedrontadas e não procuram Na atualidade, têm-se intensificado
as autoridades policiais, alguns pacientes os fluxos migratórios pelo mundo, espe-
são levados a crer que os doadores foram cialmente de migração ilegal. Esse fato,
bem pagos e protegidos, e os médicos que somado aos ataques terroristas dos últimos
realizam essa prática são inescrupulosos. anos, especialmente após o episódio de 11
Ademais, muitas pessoas são subornadas de setembro de 2001, e às políticas antiter-
em troca de seu silêncio. Outro problema ror, está provocando o enrijecimento das
é a falta de ética de alguns médicos e de políticas e das legislações migratórias em
pacientes que realizam essa prática e não diversos Estados, especialmente naqueles
vêem problema em obter órgãos de pessoas considerados receptores de imigrante. Mi-
em situação de necessidade. grar de forma legal está se tornando cada
vez mais difícil.
À medida que as fronteiras dos Estados
3. Diferenciações entre tráfico de seres
se fecham, mas continua crescendo a de-
humanos e outros fenômenos manda por trabalho de imigrantes a baixo
Um dos grandes problemas para a custo e não diminui o desejo de emigrar de
identificação de casos de tráfico de seres pessoas de diversas partes do mundo, estas
humanos é a confusão que geralmente se procuram meios marginais para entrar nos
faz com outros fenômenos que, apesar de Estados.
poderem ter alguma ligação com o tráfico, Como destaca Kapur (2005, p. 119),
com este não se confundem. políticas migratórias restritivas de Esta-
dos de trânsito e destino diminuíram as
Migração e tráfico de seres humanos possibilidades de uma migração regular,
A migração pode ser entendida como legal e segura pelo mundo. Esse fenôme-
um processo em que há o deslocamento de no resultou no aumento de um regime de
alguém de um local para outro, seja dentro migração clandestina no qual traficantes e
de um mesmo Estado ou de um Estado para contrabandistas facilitam o movimento dos
outro. São vários os motivos que levam migrantes, freqüentemente providenciando
as pessoas a migrar, como a existência de para eles documentos de viagem e de iden-
conflitos armados, perseguições políticas, tificação falsos. Esse é um regime nascido
problemas econômicos e sociais que geram do desejo e da necessidade das pessoas,
o desejo de buscar melhores oportunidades 11
A migração provisória pode ter como objetivo
de vida e de trabalho em outros locais, a realização de estudos, de trabalho, pedido de asilo
mudanças climáticas, formação ou reu- político, entre outros.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 187


produzido, em parte, pela demanda por tra- humanizadas (capturando, detendo e
balho explorado barato pelas fronteiras. deportando migrantes sem documen-
O tráfico de seres humanos é uma forma tação mudam de significado quando
de migração, mas não deve se confundir apresentados como resgatando, rea-
com a migração per se, pois esta é mais bilitando e reinserindo as vítimas do
ampla e engloba o tráfico de pessoas. Este é crime organizado).”
considerado um processo de deslocamento Desta feita, apesar de o tráfico de seres
no qual alguém migra com o auxílio de um humanos estar inserido no fenômeno mi-
terceiro, que pode ser uma pessoa ou um gratório, não deve com este se confundir.
grupo, que usa de engano ou coação para Essa diferenciação deve estar clara princi-
convencê-lo a migrar, freqüentemente com palmente para os Estados, para que possam
promessas de trabalho no local de destino, elaborar políticas públicas e legislação
onde essa terceira parte pretende explorar o adequadas para cada um desses processos,
trabalho de quem se desloca. Geralmente a inclusive no que se refere à assistência e
pessoa traficada migra de forma legal, mas proteção às vítimas de tráfico, que devem
se torna irregular em face da retenção de receber um tratamento compatível com o
seus documentos pelos exploradores como grau de exploração e violação de direitos
meio de subjugá-la a realizar a atividade sofrido.
que lhe é imposta.
A grande problemática que se enfrenta Contrabando de migrantes e
atualmente é a confusão feita entre tráfico tráfico de seres humanos
de pessoas e migração ilegal, especialmen- O Protocolo Adicional à Convenção das
te pelos governos. Como geralmente as Nações Unidas contra o Crime Organiza-
pessoas traficadas migram de forma legal, do Transnacional, relativo ao Combate ao
possuindo passaporte e visto para trabalho, Tráfico de Migrantes por Via Terrestre,
mas se tornam irregulares com a retenção Marítima e Aérea apresenta a seguinte
dos documentos, são muitas vezes tratadas definição de tráfico de migrantes:
pelos governos dos Estados receptores “Artigo 3
como imigrantes ilegais, que devem ser Definições
detidos e deportados, e não como pessoas Para efeitos do presente Protocolo:
que estão sofrendo graves violações aos a) A expressão ‘tráfico de migrantes’
seus direitos humanos. significa a promoção, com o objetivo
Os governos acabam usando um dis- de obter, direta ou indiretamente,
curso que envolve o tráfico de pessoas para um benefício financeiro ou outro
combater a migração ilegal. Como desta- material, da entrada ilegal de uma
cado por Anderson e O’Connell Davidson pessoa num Estado Parte do qual essa
(2004, p. 14): pessoa não seja nacional ou residente
“Mencionar ‘crime organizado’ no permanente;
lugar de ‘imigração ilegal’ é uma b) A expressão ‘entrada ilegal’ sig-
fórmula ainda mais potente e popu- nifica a passagem de fronteiras sem
lista. Medos e preconceitos em rela- preencher os requisitos necessários
ção à ‘imigração ilegal’ estão dando para a entrada legal no Estado de
novas bases (a questão não é apenas acolhimento.”
que a sociedade será ‘invadida’ por O contrabando de migrantes também
‘alienígenas’, mas também surpreen- pode ser considerado um meio de migra-
dida por ‘máfia’ e outros criminosos ção realizado de forma ilegal. Neste, quem
perigosos), e as repressões às migra- objetiva migrar por vias marginais procura
ções irregulares são justificadas e ou é contatado por uma terceira pessoa ou

188 Revista de Informação Legislativa


grupo, que facilitará sua entrada no país do tráfico se refere à proteção das pessoas
de destino. A relação entre o migrante e o contra violência e abuso.
considerado contrabandista de migrantes Outro diferencial é o fato de a pessoa
restringir-se-á à facilitação da travessia traficada ser vista como vítima desse delito,
ilegal de fronteiras, quando os vínculos que enquanto o imigrante contrabandeado é
os une se dissolvem e o migrante buscará, considerado pelos Estados como um imi-
sozinho, sua sobrevivência no país de desti- grante ilegal, um criminoso que procurou
no, inclusive procurando um novo trabalho os serviços de grupos que contrabandeiam
(Cf. GALLAGHER, 2002). migrantes, não uma vítima (Cf. DITMO-
Não se deve confundir tráfico de seres RE, WIJERS, 2003, p. 82; SAARI, 2006,
humanos com contrabando de migrantes. p. 7; GALLAGHER, 2002; ANDERSON;
Apesar de ambos serem considerados O’CONNELL DAVIDSON, 2004).
meios de migração, o tráfico de pessoas se Apesar das definições apresentadas
caracteriza pelo deslocamento de alguém, para tentar diferenciar os dois processos,
utilizando-se de coação, engano ou outros Anderson e O’Connell Davidson (2004, p.
meios, com a finalidade da exploração do 20-22) chamam a atenção para as diferentes
seu trabalho em vários setores da economia. dinâmicas do contrabando de migrantes
O contrabando de migrantes, por sua vez, que envolvem processos de recrutamento,
caracteriza-se pela facilitação da travessia transporte e exploração que, algumas vezes,
ilegal de fronteiras, mas não tem, necessa- podem se assemelhar com o tráfico de pes-
riamente, ligação com o trabalho.12 soas. É o caso de empregadores que pagam
Como destacam Ditmore e Wijers (2003, agentes para recrutar pessoas em outras
p. 80), os processos migratórios são atual- regiões ou Estados com a finalidade de ex-
mente o coração do tráfico internacional de plorar seu trabalho; agentes que recrutam e
seres humanos, eis que pessoas traficadas transportam pessoas para serem exploradas
são migrantes, geralmente ilegais, procu- que não possuem vínculos com terceiras
rando trabalho em outros locais, e que se partes; e agentes que usam de engano ou
encontram em condições laborais insusten- coação para levar pessoas a locais onde
táveis. São essas condições, que ocorrem existe demanda por trabalhadores baratos
por engano ou coerção, que distinguem e receber dinheiro dos empregadores.
entre pessoas traficadas e contrabandea- Argumenta-se, ainda, que a problemá-
das. Uma pessoa contrabandeada, como tica dessa diferenciação cria uma divisão
muitas (mas não todas) pessoas traficadas, entre processos voluntários e consensuais,
atravessou clandestinamente fronteiras e outros involuntários e não consensuais,
ou foi transportada, mas, diferentemente além de se considerar as pessoas traficadas
do tráfico, o contrabando de pessoas não como vítimas e as contrabandeadas como
está necessariamente vinculado a traba- parceiras dessa ação (Cf. ANDERSON;
lho. Considerando que a travessia ilegal O’CONNELL DAVIDSON, 2004). Essa
de fronteiras é o objetivo do contrabando divisão apresentada pelos dois protocolos
de imigrantes, a finalidade do tráfico é a não é suficiente para promover uma dife-
exploração do trabalho de alguém. Em renciação segura entre as duas atividades,
outras palavras, o tema do contrabando de em face das diferentes feições que esses pro-
imigrantes se refere à proteção do Estado cessos tomam, bem como porque nenhum
contra imigrantes ilegais, enquanto o tema dos protocolos apresenta medidas eficazes
para proteger os direitos humanos das pes-
12
No Brasil, ocorre freqüentemente contrabando
de migrantes no caso dos brasileiros que vão ao Mé-
soas que se envolvem nesses processos.
xico e tentam atravessar a fronteira com os Estados Essa idéia é ratificada por Gallagher
Unidos com o auxílio de “coiotes”. (2002, p. 12) quando argumenta que muitos

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 189


governos ignoram o fato de que a migração internacionais sobre tráfico de mulheres –
ilegal/irregular, da qual tanto o tráfico de como eram denominados – anteriores ao
pessoas quanto o contrabando de migrantes Protocolo de Palermo se referirem ao tráfico
são meios, ocorre em face da necessidade com a finalidade da prostituição.
ou do desejo das pessoas de emigrar, da de- Essa confusão conceitual gira em torno
manda por trabalho imigrante barato e do das diferentes idéias que se têm sobre o
interesse dos Estados de tornar a legislação que é considerado tráfico de pessoas e da
sobre imigração cada vez mais restritiva. À própria prostituição. De um lado, existe
medida que as normas e as políticas públi- um grupo denominado feministas aboli-
cas restringem e impedem uma migração cionistas, o qual defende que essa atividade
legal, aumenta o surgimento de grupos que reduz a mulher ao status de objeto, que é
facilitam a migração de forma ilegal por em si uma agressão a seus direitos huma-
diferentes meios. nos e não distingue prostituição forçada
Gallagher (2002, p. 12) ainda fala que de prostituição voluntária. De outro lado,
o crescimento do tráfico e do contrabando há o grupo que defende os direitos huma-
de migrantes reflete não apenas as causas nos dos trabalhadores sexuais e rejeita a
que geram esses fenômenos nos países de idéia de que a prostituição é degradante,
origem, mas também a crescente deman- argumentando que deve ser tratada como
da por trabalho imigrante nos países de trabalho, diferenciando a prostituição
destino, especialmente no setor informal. voluntária da forçada e da infantil, que
Enquanto estão reprimindo a imigração devem ser abolidas. Defende, ainda, que
ilegal, os governos pouco têm feito para li- deve haver uma melhoria das condições de
dar com a demanda insaciável por trabalho trabalho e proteção dos trabalhadores por
barato e sexo barato, que fazem do tráfico leis, uma vez que é a falta de legislação e de
e do contrabando de migrantes atividades condições de trabalho adequadas que pos-
tão vantajosas. sibilita a exploração, inclusive o tráfico (Cf.
Assim, ver o migrante que foi contra- ANDERSON; O’CONNELL DAVIDSON,
bandeado como parceiro dessa ação é um 2004; DITMORE; WIJERS, 2003; CHAPKIS,
equívoco grave que só contribui para punir 2003; KAPUR, 2005).
quem já está em situação de vulnerabilida- É imperativo notar, argumentam Dit-
de, especialmente social. Deve-se recordar more e Wijers (2003, p. 82), que os defenso-
que a maioria dos migrantes se deslocam, res dos direitos dos trabalhadores sexuais
por vias legais ou ilegais, em busca de me- admitem que o trabalho sexual é um traba-
lhores vidas e oportunidades. lho duro e que as condições, na indústria
Para se reduzir a migração legal ou do sexo, variam de relativamente boas a
ilegal, e os meios que estão inseridos nesta extremamente exploradoras e abusivas,
última, como o contrabando de migrantes, esta última freqüentemente facilitada pela
não é suficiente o enrijecimento da legis- exclusão dos (imigrantes) trabalhadores se-
lação ou o reforço de medidas repressivas xuais de direitos e proteção legal garantidos
junto às fronteiras. Como enfatiza Castles a outros como cidadãos e trabalhadores.
(2005), “a melhor forma de reduzir a imigra- Conseqüentemente, eles procuram corrigir
ção é reduzindo as desigualdades econômi- esses abusos melhorando as condições de
cas e sociais entre os diferentes países”. trabalho e dando reconhecimento legal
para a indústria do sexo, em contraste com
Prostituição e tráfico de seres humanos as “abolicionistas”, que procuram tornar a
Uma das principais confusões que se faz indústria do sexo mais ilegal do que nor-
é entre o tráfico de pessoas e a prostituição. malmente é e perseguir e punir homens
Isso ocorre em face de todos os documentos envolvidos, como clientes e outros.

190 Revista de Informação Legislativa


A prostituição pode ser uma das ativi- casos de exploração, eis que, por acolher
dades nas quais ocorre a exploração de pes- muitas vezes pessoas em situação de irre-
soas traficadas, especialmente mulheres, gularidade, torna-as suscetíveis a diversos
mas não é a única e não deve-se confundir tipos de violência, sem contar com proteção
com o tráfico de pessoas, conforme se de- legal ou do Estado.
preende da leitura do conceito trazido pelo Como destaca Kempadoo (2005, p. 62),
Protocolo de Palermo. levando em consideração a atuação e o tra-
Além disso, a própria ONU, desde balho sexual, o envolvimento na indústria
meados de 1990, já separa os processos do sexo e em trabalho sexual no exterior
de recrutamento e transporte sob coação aparece como possibilidade a que as mu-
do comércio do sexo. A Relatora Especial lheres se dedicam voluntária ou consciente-
da ONU, Rhadika Coomaraswamy, após mente de acordo com parâmetros culturais,
pesquisa mundial sobre essa prática, defi- nacionais ou internacionais específicos.
niu a prostituição como forma legítima de Assim, em lugar de definir a própria pros-
trabalho e o comércio global do sexo como tituição como uma violência inerente contra
um lugar, mas não o único, em que ocorre o as mulheres, são as condições de vida e de
tráfico. A partir de 1996, o tráfico de pessoas trabalho em que as mulheres podem se
passou a ser entendido pela ONU não como encontrar no trabalho do sexo e a violência
escravidão de mulheres, mas como comér- e o terror que cercam esse trabalho num
cio e exploração do trabalho em condições setor informal ou subterrâneo que são tidos
de coação e força (Cf. KEMPADOO, 2005, como violadores dos direitos das mulheres
p. 64-65). e, portanto, caracterizadores do tráfico.
Atualmente, existe um grande fluxo São as condições de realização da pros-
migratório feminino que busca melhores tituição, em que pode ocorrer excessiva ex-
oportunidades de vida e de trabalho em ploração, somada ao deslocamento para o
outros Estados (Cf. Fondo de Población qual se utiliza de engano, coação ou outros
de las Naciones Unidas, 2006). Essa nova meios, que caracterizam o tráfico de pes-
característica dos processos migratórios das soas para fins de exploração sexual, e não
últimas décadas tem a ver com o novo papel apenas o exercício da prostituição ou outra
desempenhado pela mulher na atualidade, atividade ligada ao sexo, que muitas vezes
no qual ela é responsável pela mantença ocorre de forma voluntária e em condições
própria, de seus filhos e de sua família. razoavelmente adequadas.
Com as dificuldades para migrar de A associação do tráfico de pessoas com a
forma legal, muitas dessas imigrantes ficam prostituição muitas vezes é utilizada como
em situação de ilegalidade, geralmente se argumento para barrar ou estigmatizar o
inserindo em setores informais da eco- fluxo migratório de mulheres. Segundo
nomia, com pouca ou nenhuma proteção Kapur (2005, p. 119), associando o tráfi-
de direitos, entre os quais se destaca a co à exploração sexual, mulheres que se
prostituição. Essa atividade, exercida em deslocam são implicitamente suspeitas de
diversos Estados europeus, por exemplo, atravessarem fronteiras para propósitos
principalmente por mulheres imigrantes sexuais, o que estigmatiza o seu movimen-
com pouca qualificação, é realizada muitas to. Assim, mulheres e seu movimento são
vezes de forma voluntária, por ser um setor vistos através de lentes de criminalidade e
de fácil inserção e em que há perspectivas estigma, e a própria mulher é considerada
de lucratividade rápida. tanto vítima quanto sujeito imoral.
Ocorre que, por ser um setor que ge- Além disso, esse discurso é utilizado
ralmente se desenvolve na marginalidade, como meio de controle da mobilidade,
com precária regulamentação, há vários especialmente de mulheres, que muitas

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 191


vezes migram para outras localidades em desenvolvimento com o objetivo de se
para o exercício voluntário da prostituição relacionar sexualmente com mulheres na-
como meio de sobrevivência, e em situações tivas, mediante pagamento em dinheiro ou
nas quais não está presente a exploração. presentes. Essa imagem, contudo, começa a
Como destaca Piscitelli (2004, p. 313-314), ser contestada na medida em que estudos
ao unir-se aos discursos internacionais revelam que cresce a cada ano o número
hegemônicos sobre o tráfico, apagando a de mulheres, também provenientes de
complexidade que permeia a migração de países ricos, que viajam com o objetivo de
brasileiras no marco da transnacionaliza- se relacionar sexualmente com os nativos
ção do mercado sexual, certas tendências das zonas que pretendem visitar, e que
presentes no debate brasileiro oferecem, a se desenvolve um tipo de turismo que os
partir de um contexto de “terceiro mundo”, estudiosos estão chamando de “turismo de
elementos que favorecem o controle do tra- romance” (Cf. TAYLOR, 2001).
balho migrante. De maneira mais específica, Com efeito, independentemente do sexo
essas abordagens oferecem elementos que do visitante, o turismo sexual é entendido
contribuem para um maior policiamento, como uma expressão das desigualdades que
o controle da mobilidade, dos corpos e da permeiam uma nova ordem global. Segun-
sexualidade das mulheres do Sul. do Piscitelli (2005b), citando Appadurai:
Muitos defensores dos direitos dos tra- “a característica essencial dessa nova
balhadores e trabalhadoras sexuais defen- ordem é uma ampliação na mobilida-
dem, inicialmente, uma mudança na visão de (deslocamento de massas de turis-
dessa atividade, que é entendida como um tas, imigrantes, refugiados, exilados,
trabalho como outro qualquer, mudando- trabalhadores) que afeta a política de
se inclusive a própria nomenclatura para e entre nações de uma maneira sem
“trabalho sexual” e “trabalhadores sexuais”, precedentes e, justaposta aos efeitos
bem como a regulamentação da atividade da mídia eletrônica, cria uma nova
por lei, o que possibilitaria, segundo defen- ordem de instabilidades na produção
dem, maior controle sobre a realização dessa das subjetividades modernas. Nesse
atividade e maior proteção daqueles que marco, o turismo sexual é conside-
nela estão inseridos, diminuindo inclusive rado um terreno privilegiado para
os casos de tráfico de pessoas para fins de a reflexão sobre a forma como os
exploração sexual (Cf. KEMPADOO, 1997, significados e atitudes associadas à
2005; DOEZEMA, 2000, 2001, 2002, 2004; sexualidade expressam mudanças
WIJERS; VAN DOORNINCK, 2002; AGOS- mais amplas. A idéia é de que pessoas
TÍN, 2005; PISCITELLI, no prelo-b e 2006). situadas nos lugares mais ‘distantes’
do mundo, ao serem introduzidas
Turismo sexual e tráfico de seres humanos no âmbito do capitalismo global,
O turismo sexual (Cf. PISCITELLI, 2000, por meio da propaganda, da mídia
2006a, [200-a], 2005, 2006c; TAYLOR, 2001; e de enormes fluxos de capital e de
HANNUM, 2006; KARSEBOOM, 2006; pessoas, são afetadas por uma cultura
O’CONNELL DAVIDSON, 2006; GON- de consumo universalizada. Nesse
DIM, 1998) não é uma prática simples de se processo, a sexualidade tornar-se-ia
definir (TAYLOR, 2001), até porque pode um terreno no qual teriam lugar dis-
assumir diversas dinâmicas com caracterís- putas relacionadas com o impacto do
ticas diferenciadas. Tende-se a apresentar capital e das idéias em circulação.”
o turismo sexual como uma prática reali- Nas dinâmicas do turismo sexual,
zada por homens provenientes de países verifica-se o entrelaçamento de caracterís-
ricos que viajam para países pobres ou ticas não apenas econômicas, mas também

192 Revista de Informação Legislativa


ligadas a raça, sexo, classe e poder. “Esse dinâmicas que o marcam. Apesar dessa
conjunto de fatores incide na representação complexidade, possui características que
das localidades que se tornaram destino lhe são próprias e o diferenciam de outros
privilegiado pelos turistas sexuais em fenômenos que com ele podem vir a se
termos de diferenças culturalizadas e se- confundir.
xualidades: como exóticas e eróticas.”(Cf. É de grande importância e salutar ne-
PISCITELLI, 2005b). cessidade o cuidado na identificação desse
O turismo sexual está marcado por problema; saber o que é e como ocorre o
traços de diferença do “outro” que movem tráfico de seres humanos, e diferenciá-lo
pessoas de diversas partes do mundo a de outros fenômenos que com ele não se
viajar em busca dessa diversidade, utili- confundem, como os processos migratórios,
zando inclusive meios como a internet para o contrabando de migrantes, a prostituição
trocar informações acerca das experiências e o turismo sexual, por exemplo. É impres-
já vividas (Cf. PISCITELLI, 2005a). Assim, cindível às autoridades governamentais e à
a busca do novo, do diferente e o desejo sociedade civil organizada o conhecimento
de viver novas experiências estimulam desse delito, para que projetos adequados
pessoas a viajar para diferentes regiões não possam ser implementados e desenvolvi-
apenas para conhecer a cultura e a história dos objetivando a prevenção e o combate
local, as belezas naturais, mas também para do tráfico de pessoas com o rigor necessário
vivenciar novas experiências sexuais. para coibir um ilícito que afronta a digni-
A partir de uma experiência de turis- dade da pessoa humana.
mo em outro local, várias conseqüências
podem ocorrer, como negócios, roman-
ces, entre outros. Até casos de tráfico de Referências
pessoas podem surgir, na medida em que
pessoas de outras localidades visitam uma AGOSTÍN, Laura. Migrants in the mistress’s house:
determinada região e usam de artifícios other voices in the ‘trafficking’ debate. Social Politics,
para deslocar um nativo para outro lugar, Oxford, v. 12, n. 1, 2005.
mas se tratam de fenômenos distintos que ARRUDA, Samuel Miranda. Notas acerca do crime de
não devem ser confundidos. O turista ou tráfico de órgãos. Revista eletrônica PRPE, Recife, maio
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pois retornando para seu lugar de origem, crime+de+tr%c3%a1fico+de+%c3%b3rg%c 3%a3os>.
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lembrança da experiência vivida. Aquele BARRERO, Glória Patrícia Díaz. Stripers, bailarinas
que pratica tráfico de seres humanos, por exóticas, eróticas: identidad e inmigración en la
sua vez, quando se dirige a distintos luga- construcción del Estado canadiense. Cadernos Pagu,
res, pretende convencer uma pessoa a se Campinas, n. 25, jul./dez. 2005.
deslocar, utilizando meios fraudulentos, CASTLES, Stephen. Environmental change and
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remunerado, ocultando o real objetivo, que issues in Refugee Research, Genève, n. 70, oct. 2002.
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Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 195


O direito à intimidade na sociedade técnica
Rumo a uma política pública em matéria de tratamento
de dados pessoais

Jorge Barrientos-Parra
Elaine Cristina Vilela Borges Melo

Sumário
1. Introdução. 2. A técnica como fator de-
terminante da nossa sociedade. 3. O direito à
intimidade e seus riscos na sociedade técnica.
3.1. Definição. 3.2. O devassamento do direito à
intimidade na sociedade técnica. 4. O prontuário
médico eletrônico. 4.1. O prontuário médico:
conceito. 4.2 O prontuário médico eletrônico:
um produto da telemedicina. 4.3. O prontuá-
rio médico eletrônico e a violação do direito à
intimidade. 4.3.1. Os bancos de dados e a sua
vulnerabilidade. 4.3.2 De lege ferenda: questões
de política pública e princípios aplicáveis ao
tratamento de dados pessoais. 5. Conclusões.

“La technique n’est pas neutre. C’est-à-


dire qu’elle emporte par elle-même, et quelque
soit l’usage que l’on veuille en faire, un certain
nombre de conséquences positives ou négatives...
Tout progrès technique se paie. Il n’y a pas de
progrès technique absolu. À chaque avancée de la
technique, nous pouvons en même temps mesurer
un certain nombre de reculs. Le progrès technique
soulève à chaque étape plus de problèmes (et plus
vastes) qu’il n’en résout. Les effets néfastes du
progrès technique sont inséparables des effets
favorables. Tout progrès technique comporte un
grand nombre d’effets imprévisibles”.
Jacques Ellul
Jorge Barrientos-Parra é Doutor em Direito
pela Université Catholique de Louvain e Pro-
fessor de Direito Constitucional do Curso de 1. Introdução
Administração Pública da UNESP.
Elaine Cristina Vilela Borges Melo é Advoga-
Neste trabalho abordamos a questão
da da Fundação Pio XII – Hospital de Câncer de do risco à vida privada e ao direito à in-
Barretos. Mestre em Direito pela Universidade timidade consagrados na Constituição de
de Franca e Professora de Direito Público e 1988, em face da adoção de novas técnicas
Privado da Faculdade Barretos. na sociedade contemporânea, como, por

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 197


exemplo, o prontuário médico eletrônico que concerne todos os homens e todos os
na prática hospitalar. Muitas são as apli- aspectos da vida deles, superando a di-
cações da denominada telemedicina com mensão puramente econômica analisada
evidentes vantagens para o corpo clínico, por Marx (cf. TROUDE-CHASTENET,
a administração hospitalar e o paciente. 2005, p. 130).
Entretanto, independentemente do uso que De acordo com Ellul, a técnica contempo-
possamos dar às novas técnicas, além das rânea caracteriza-se pelo i) automatismo, ii)
suas conseqüências positivas, a sociedade autocrescimento, iii) unicidade, iv) univer-
deve fazer frente a variadas conseqüências salismo, v) autonomia e vi) ambivalência.
negativas. i) Automatismo
Para compreender o alcance e a pro- Por automatismo da escolha técnica,
fundidade das mudanças acarretadas pelas Ellul (1990, p. 18) entende a impossibilidade
novas técnicas, seguiremos o pensamento de recusar a solução ou o método que envol-
do festejado jurista da Universidade de ve maior racionalidade e eficácia. Vivemos
Bordeaux, Jacques Ellul, para quem a téc- uma época em que deixou de haver simples
nica passou a ser o fator determinante de técnicas, simples instrumentos ou máqui-
nossa sociedade. nas e apareceu uma realidade comum: “o
Evidentemente, não pretendemos aqui conjunto de todos os meios submetidos ao
esgotar o assunto que extrapola, e muito, imperativo de uma eficácia sempre maior
o âmbito do Direito, alcançando aspectos não importa qual seja o âmbito de aplicação,
da Economia, da Sociologia, da Ciência economia, organização do trabalho, ou das
Política, da Administração e da Ciência da máquinas, etc” (BOURG, 2004, p. 69).
Computação. Tentamos, simplesmente, por Na concepção elluliana, “o conjunto
meio da análise da legislação, doutrina e ju- de todos os meios” quer dizer o conjunto
risprudência, nacional e estrangeira, trazer de todos os métodos que caracterizam a
luzes sobre esse importante tema para os sociedade em um momento específico da
legisladores, julgadores, formuladores de história. Em segundo lugar, esses métodos
políticas públicas e estudiosos da sociedade têm um caráter racional. Essa racionalidade
contemporânea. consiste na adequação dos meios disponí-
veis aos fins propostos pela sociedade que
2. A técnica como fator determinante os utiliza. Por último esses métodos devem
ser eficazes. A eficácia se mede pelas van-
da nossa sociedade
tagens que oferece um método a despeito
Vivemos uma época de avassaladoras de outros que se aplicam para solucionar o
mudanças técnicas que mudam, de maneira mesmo problema. Quando um método ou
irreversível, o mundo do trabalho, da edu- um engenho é mais conveniente que outros,
cação, da política, do lazer, da saúde, da ges- opta-se por ele e os demais são descartados
tão e de outras esferas da atividade humana. pelas suas desvantagens. O método escolhi-
Segundo Ellul, se Marx tivesse vivido em do resulta ser eficaz em sentido absoluto, já
nossa época e se perguntasse sobre o fator que se converte no método por excelência
determinante, sem dúvida teria respondido para resolver um determinado problema.
que a técnica é que conduz o mundo. Assim a eficácia é o fator do qual depen-
Já nos anos trinta do século passado, de tudo e o valor que o sistema privilegia
Ellul pensa a técnica como “un procédé em todas as esferas. Agora já não é suficien-
général” e não simplesmente um meio da te o descobrimento de um novo método,
indústria simbolizado pela mecanização. mais eficaz que o precedente; é necessário
Para ele, o progresso técnico engendra um que ele chegue a ser o método perfeito.
fenômeno de proletarização generalizada, Nesse processo cada vez mais acelerado,

198 Revista de Informação Legislativa


o fenômeno técnico transforma o Estado e Estamos numa ordem de fenômenos cega
o próprio homem nada escapando à busca em relação ao futuro, em um domínio de
da eficácia, isto é, à busca do melhor meio causalidade integral”.
em todos os âmbitos da vida humana (cf. Em última análise, o autocrescimento
ELLUL, 1990, p. 18). significa que a técnica progride não dirí-
Automatismo significa que não existe amos sem, mas a despeito da intervenção
uma escolha entre várias técnicas, mas humana. O homem é associado a ela sem
simplesmente que a mais eficaz se impõe perceber, na medida em que é previamen-
independentemente de outros parâmetros, te absorvido pelo sistema. Dessa forma o
avançando sobre outros âmbitos e absor- homem é impotente para frear ou deter a
vendo-os (cf. TROUDE-CHASTENET, progressão da técnica.
1992, p. 34). Dessa forma se do ponto de iii) Unicidade
vista técnico algo pode ser feito, será feito Ellul (1990, p. 91) observa que o fe-
independentemente de critérios religiosos, nômeno técnico, englobando o conjunto
morais, filosóficos, costumeiros, ou de qual- das técnicas, constitui uma totalidade que
quer outra ordem. apresenta sempre, e em qualquer parte, os
ii) Autocrescimento mesmos caracteres. A unicidade não nos
A partir de certo estágio, a técnica se permite distinguir entre a técnica e o uso
produz a si própria, suscitando problemas que dela se faz, pois o “ser” da técnica con-
de natureza técnica, que exigem soluções siste no seu uso, que não é bom nem mau,
que só a própria técnica pode resolver. justo ou injusto, simplesmente porque,
Assim Ellul (1990, p. 83-84) constata que sendo técnico, é o único uso possível não
é o princípio de combinação das técnicas podendo ser julgado em função de critérios
que provoca o autocrescimento, e o for- religiosos, morais ou estéticos. O consagra-
mula em duas leis: 1o) em uma civilização do professor da Universidade de Bordeaux
técnica, o progresso técnico não se detém chega então à formulação do seguinte
e não tem limites; 2o) o progresso técnico princípio: “o homem está colocado diante
tende a efetuar-se, não de acordo com uma de uma escolha exclusiva, utilizar a técnica
progressão aritmética, mas de acordo com convenientemente, de acordo com as regras
uma progressão geométrica. técnicas, ou não utilizá-la, de modo algum;
Nessa evolução o homem desempenha mas é impossível utilizá-la a não ser de
um rol cada vez menos importante, apenas acordo com as regras técnicas”.
verificando e registrando o efeito das técni- As necessidades e os modos de ação
cas umas sobre as outras e seus resultados. de cada uma das técnicas se combinam
Isso porque, cada vez mais, o desenvolvi- formando um todo, cada parte sustentando
mento técnico segue processos em cadeia e reforçando a outra, constituindo um fe-
que excluem a intervenção humana. Dessa nômeno coordenado, do qual é impossível
forma se perde qualquer finalidade trans- retirar um elemento. Assim é um equívoco
cendente inerente ao homem. Nas palavras e mera ilusão (compreensível de qualquer
de Ellul (1990, p. 90): “O que acreditamos forma) querer suprimir a parte “má” da
ter demonstrado no parágrafo anterior, técnica e conservar o lado “bom”.
é justamente que a técnica é totalmente iv) Universalismo
estranha a essa noção, que não persegue O processo de universalização da técni-
um fim, confessado ou não, mas que evolui ca apresenta dois momentos: o geográfico
de modo puramente causal: a combinação e o qualitativo. Aos poucos, a técnica pene-
de elementos precedentes fornece novos trou e conquistou todos os países. Aqueles
elementos técnicos. Nenhuma idéia, ne- que ainda não a assimilaram, na proporção
nhum plano se realiza progressivamente... e na escala necessária, almejam fazê-lo

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 199


rapidamente. A reivindicação dos países ont encore une puissance déterminante et
emergentes pelo desenvolvimento é na que ses régimes politiques sont décisifs
verdade uma exigência de tecnificação. dans l’évolution. Ce ne sont plus les necessi-
Esse processo tem conseqüências des- tés externes qui déterminent la technique, ce
trutivas sobre as culturas tradicionais, uma sont ses nécessités internes. Elle est devenue
vez que a técnica tende a reduzir tudo aos une realité en soi qui se suffit elle-même, qui
seus próprios padrões e exigências; assim, a ses lois particulières et ses déterminations
em todos os âmbitos, religião, costumes, propres” (ELLUL, 1990, p. 122).
filosofia, arte, instituições, a técnica provoca A decorrência da autonomia é que a
a ruína das outras civilizações. Isso acontece técnica se coloca como instância acima do
porque a técnica exige uma transformação bem e do mal, não tolera ser julgada por
da totalidade da vida. Implica mudanças ninguém. Ela é o valor supremo, em função
no trabalho, máquinas e seus acessórios; do qual todos os outros devem ser aferidos;
implica órgãos de coordenação e de admi- é a instância última e irrecorrível, a partir
nistração racional; e, mais ainda, supõe uma da qual são formulados os julgamentos
adesão interior do homem ao regime. inapeláveis. De forma que a técnica se julga
Em outras palavras, a técnica impõe a a ela própria. Em casos controvertidos que
sua própria axiologia, isto é, a racionalida- levantam questões éticas e morais, a técnica
de instrumental e a eficácia. Diante desses não somente recusa ser julgada como se
valores, as culturas tradicionais se reduzem levanta como juiz da moral, construindo
a restos, destroços e fragmentos que serão uma nova moral. Assim tudo o que a téc-
recolhidos aos museus, como testemunhos nica faz ou pode fazer é permitido, lícito e
e vestígios de épocas mortas (Cf. CORBI- justificado.
SIER, 1968, p. 17). A técnica também é sacrílega, não no
Segue-se daí que a técnica não pode sentido eclesiástico do termo, mas no sen-
deixar de ser totalitária; quando ela fixa tido sociológico. Uma vez que o mundo
um método, tudo lhe deve ser subordinado. para o homem não é somente material; ele
Portanto, não há mais objetos ou situações concebe uma realidade espiritual, podendo
neutras. Ellul (1990, p. 114) exemplifica com ser fenômenos ou forças desconhecidas ou
a técnica da propaganda: “elle est totalitaire talvez incognoscíveis. No mundo ocorrem
dans sa nature, dans son message, dans ses fenômenos que o homem interpreta como
méthodes, dans son champ d’action et dans mágicos. Os psicanalistas estão de acordo
ses moyens: que pourrait-on demander de a esse respeito: o sentimento do sagrado,
plus?”. o sentido do secreto são elementos sem os
v) Autonomia quais o homem não pode absolutamente vi-
A técnica desenvolve-se em obediência ver. Em grande parte, o mistério é desejado
às suas próprias leis, não respeitando qual- pelo homem. O sagrado é o que se decide
quer oposição; ela é um poder dotado de inconscientemente respeitar. Entretanto,
força própria, de sorte que se a utilizamos como explica Ellul: “La technique n’adore
devemos aceitar a especialidade, a autono- rien, ne respecte rien; elle n’a qu’un role:
mia de seus fins, a totalidade de suas regras dépouiller, mettre au clair, puis utiliser en
– que os desejos e aspirações do homem em rationalisant, transformer toute chose en
nada podem modificar. moyen”. (ELLUL, 1990, p. 130-131).
A técnica condiciona e provoca as mu- vi) Ambivalência
danças sociais, políticas e econômicas. “Elle Além de tudo isso, a técnica é ambiva-
est le moteur de tout le reste, malgré les lente; ela libera, porém ela também aliena
apparences, malgré l’orgueil de l’homme (TROUDE-CHASTENET, 2005, p. 130), isto
qui prétend que ses théories philosophiques é, os efeitos nefastos são inseparáveis dos

200 Revista de Informação Legislativa


efeitos positivos; o progresso técnico tem 3.1. Definição
seus custos, acarreta problemas novos e
Seguindo uma linha etimológica, vá-
tem efeitos imprevisíveis (ELLUL, 1988,
rios autores têm forjado as suas definições
p. 89-200). Nesse sentido, a tendência
de intimidade; assim, por exemplo, para
atual da telemedicina, de passar a adotar
Batllé Sales (1972, p. 6), a intimidade de
o prontuário médico eletrônico nas ins-
uma pessoa seria “tudo aquilo que lhe é
tituições hospitalares, possibilita, de um
próprio e exclusivo”. Para Urabayen (1977,
lado, maior eficácia nas atividades médico- p. 9-10), seria o interior, o mais reservado, o
hospitalares, o que é indiscutível, mas, por sentir mais profundo do ser humano. Para
outro, multiplica em grau superlativo os ele, a intimidade relaciona-se com estar
riscos ao direito à intimidade do paciente, só, com reserva, em oposição ao público;
como veremos. refere-se a uma pessoa nas suas relações
consigo mesma ou com algumas outras
3. O direito à intimidade e seus riscos muito próximas a ela como cônjuge, filhos,
na sociedade técnica pais, alguns amigos que a rodeiam na sua
vida cotidiana como sucessivos e estreitos
O termo intimidade designa o caráter do
círculos concêntricos.
que é íntimo, isto é, o cerne, o âmago, o in-
No âmbito jurídico, a doutrina entende
terior e o profundo que constitui a essência
que a intimidade é um direito personalís-
de um ser, no caso em tela, da pessoa hu-
simo, isto é, um poder concedido à pessoa
mana. A intimidade pode ser vista de uma
sobre o conjunto de atividades que formam
perspectiva tríplice: como fenômeno, como
seu círculo íntimo, no sentido de obstar aos
idéia e como direito. Para Ortega y Gasset
estranhos de intrometer-se nele e de impe-
(1966, p. 84), é um fenômeno, um fato e não
dir qualquer publicidade indesejada (cf.
uma mera hipótese metafísica. A idéia de
ALBADALEJO, 1996, p. 66-67). Na mesma
intimidade, isto é, a consciência e a teoriza-
linha de pensamento, Dotti (1980, p. 69)
ção sobre ela não se encontra em todas as
entende que a intimidade caracteriza-se
sociedades; podemos dizer que é na socie-
como “a esfera secreta da vida do indivíduo
dade ocidental onde a idéia de intimidade
na qual este tem o poder legal de evitar os
alcançou seu máximo desenvolvimento
demais”. Não se afasta deles o magistério
especulativo (cf. RUIZ MIGUEL, 1995, p.
de Fariñas Matoni (1983, p. 357) que es-
27.). A seguir falaremos resumidamente
creve: “Derecho subjetivo a la intimidad
da intimidade como direito, abrangendo a
es la facultad del hombre, esgrimible erga
sua definição e a questão do devassamento
omnes, consistente en poder graduar el ‘eje
da intimidade na sociedade técnica. Entre
mismidad alteridad’ que la intimidad es,
os pioneiros na defesa da intimidade, cita-
y que radica en la misma naturaleza esen-
se o Juiz Thomas Cooley que, na sua obra
cial del hombre, anterior a la sociedad y al
“The elements of Torts” de 1873, definiu a
Estado, y que comporta la posibilidad de
privacidade como o right to be alone, isto é,
solicitar el pertinente amparo del ordena-
o direito a ser deixado em paz (cf. SILVA,
miento jurídico cuando dicha facultad sea
2007, p. 100). A primeira elaboração teórica
transgredida o vulnerada”.
do direito à intimidade é creditada a War-
Quanto ao alcance do direito à intimida-
ren e Brandeis, que, em 1890, publicaram
de, uma Conferência de Juristas Nórdicos,
a teoria do right to privacy com o intuito de
realizada em 1967, aprovou a tese de que
dar fundamentação ao direito de “gozar a
vida”, isto é, “o direito a estar só”.1 diritto a riservatezza como a exclusão do conhecimento
de outrem de quanto se refira à pessoa mesma, cf.
1
(Cf. WARREN; BRANDEIS, 1980 apud MORA- “Riservatezza e segretto (Diritto a)”, in Novissimo
LES PRATS, 1984, p. 15-81). Em italiano fala-se de Digesto Italiano, p. 115.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 201


o direito à intimidade seria a proteção à na qual estamos imersos. De fato a multi-
vida privada do indivíduo, que deveria plicação e o desenvolvimento dos bancos
estar protegido contra toda ingerência na de dados em rede e o armazenamento dos
sua vida privada familiar, contra todo ata- dados pessoais – inclusive dos prontuários
que a sua honra e reputação e contra toda médicos em fichários eletrônicos – consti-
divulgação desnecessária de fatos emba- tuem uma formidável e constante ameaça
raçosos concernentes à sua vida privada. à intimidade e à vida privada não porque
Evidentemente se incluem aqui os dados sejam negativos em si, mas porque obede-
sobre a sua saúde constantes de prontuários cem ao automatismo e à falta de finalidade
médicos. do progresso técnico como já o demonstrou
Em relação aos interesses protegidos Ellul em vários trabalhos pioneiros2.
seriam: Para Foucault (apud MORALES PRATS,
– primeiro, que as notícias ou segredos p. 32), com a informática se estabelece um
do indivíduo não venham a ser devassa- controle virtual, intangível, que se pode con-
dos; cretizar a qualquer momento em virtude de
– segundo, que essas notícias ou segre- sofisticados e rápidos instrumentos.
dos não venham a ser divulgados. Por isso, pelo direito, o homem de nosso
Em resumo o direito à intimidade é a tempo, no plano nacional3 e internacional4,
faculdade de todo indivíduo de manter procura não diremos solucionar o proble-
desconhecido e inviolado o seu âmbito pri- ma, mas minorar os seus nefastos efeitos,
vado. É um direito individual ou humano, uma vez que seria ingenuidade ou mera
reconhecido e consagrado universalmente, ilusão confiar que, nas mãos de empresas
existindo remédios para sua efetiva pro- particulares ou de organizações do gover-
teção. no, nossos dados estariam resguardados de
No Brasil a Constituição Federal de olhos indiscretos ou criminosos.
1988, reconhecendo esse entendimento, A realidade demonstra que qualquer
estabeleceu no art. 5o, X, que: “São inviolá- pessoa que entenda um pouco de infor-
veis a intimidade, a vida privada, a honra e mática pode, de qualquer país do mundo e
a imagem das pessoas assegurado o direito anonimamente, invadir bancos de dados e
à indenização pelo dano material ou moral cometer inúmeros crimes pelo computador
decorrente da sua violação”.
Note-se que o legislador constituinte 2
Consultar entre outros, La technique ou l’enjeu
distingue os conceitos de intimidade e du siècle. Paris: Econômica, 1990 (1a edição de 1954
de Armand Colin) ; Le système technicien. Paris:
vida privada, mas na doutrina o direito à
le cherche midi, 2004 (1a edição de Calmann-Lévy,
intimidade em geral é considerado como 1977); Le bluff technologique. Paris: Hachette, 1988);
sinônimo do direito à privacidade; este tem L’illusion politique. Paris: La Table Ronde, 2004 (1a
clara raiz na Common Law estadunidense. edição de Robert Laffont, 1965); Exégèse des nouve-
O direito à intimidade seria a terminologia aux lieux communs. Paris: La Table Ronde, 2004 (1a
edição de Calmann-Lévy, 1966). Propagandes. Paris:
mais utilizada no Direito dos povos latinos Economica, 1990; L’Empire du non sens. L’art et la
(SILVA, 2007, p. 101). société technicienne. Paris: PUF, 1980.
3
Consultar a Lei Orgânica da Espanha 15/99, de
3.2. O devassamento do direito à 13 de dezembro de 1999, sobre “Protección de datos de
intimidade na sociedade técnica carácter personal”; ver também a Lei argentina 25.326
de 30 de outubro de 2000.
Como vimos a Constituição Federal visa 4
Ver a Diretiva 95/46/CE de 24 de outubro de
proteger as pessoas da violação do direito 1995, relativa à proteção das pessoas físicas no que se
refere aos dados pessoais e à livre circulação de tais
à intimidade e à vida privada, que não é
dados. Consultar também a Diretiva 2002/58/CE, de
simplesmente uma tendência mas uma 12 de julho de 2002, editada pelo Parlamento Europeu
face, muito particular, da sociedade técnica e pelo Conselho da União Européia.

202 Revista de Informação Legislativa


ou com seu auxílio. Outras vezes é a negli- conferência a membros dos governos dos
gência ou conivência daqueles que teriam Estados Unidos, do Reino Unido, da Suécia
de proteger esses dados que possibilita a e da Holanda, além de engenheiros e espe-
sua violação. O prof. José Martinez de Pi- cialistas em segurança, em Nova Orleans,
son Cavero (1993, p. 147) conta que, num declarou que hackers já causaram blecautes
município perto de Madrid, uma empresa em várias regiões fora dos Estados Unidos,
de publicidade desenvolvia um lucrativo e, depois de invadirem empresas de infra-
comércio, com uma base de dados contendo estrutura, fizeram chantagem5. Isso nada
até 50 informações diferentes de mais de mais é do que a extensão a empresas e ins-
vinte milhões de espanhóis. tituições dos constantes ataques via spams
Outro fato ilustrativo, também de di- (comunicações comerciais não solicitadas),
mensões dantescas, aconteceu faz pouco spywares (programas espiões), phishing (e-
tempo na Grã-Bretanha. Em 20 de novem- mails enviados por estelionatários, como
bro de 2007, o chanceler britânico anun- se fossem provenientes de empresas ou
ciou, diante do Parlamento, que dois CDs organizações muito conhecidas) e pharming
contendo dados pessoais de 25 milhões de (que adiciona falsas informações nos ser-
famílias britânicas haviam “desaparecido”. vidores dos computadores do internauta
Nesse grave incidente, estão envolvidos o permitindo o redirecionamento para sites
HM Revenue & Customs e o serviço social clonados) que já importunaram a vida de
de apoio às famílias, dois importantes ór- 80% dos usuários da internet causando
gãos do governo do Reino Unido (PORTER, transtornos e perdas financeiras avaliadas
2007, p. 20). Agora, pasme o leitor, o mesmo em US$ 1,2 bilhão ao ano.6 Quem já não
HMRC (Her Majesty’s Revenue & Cus- recebeu um spam, um spyware, um phishing
toms) já estivera envolvido em incidentes ou um pharming, ou vários deles?
semelhantes; em setembro de 2007, perdera
um computador portátil contendo os dados 4. O prontuário médico eletrônico
pessoais de 400 pessoas, e, em outubro de
2007, perdera um outro CD contendo os A sociedade técnica exige a informa-
dados de aposentadoria de 15.000 pessoas. tização acelerada de todos os âmbitos da
Quanto a esses fatos, gostaríamos apenas atividade humana, como vimos, em razão
de fazer dois comentários: primeiro, os da busca da eficácia que não seria a mesma
dados “perdidos” são justamente os mais se se continuasse a utilizar velhos instru-
apetecidos por ladrões que podem utilizá- mentos e processos. Tomemos o exemplo
los para forjar documentos falsos, retirar da adoção do prontuário médico eletrônico
dinheiro de contas bancárias e realizar que é somente uma das técnicas que a tele-
fraudes e chantagens de todo tipo, isto é, medicina dissemina pelo mundo afora.
nome, endereço, informações bancárias, 4.1. O prontuário médico: conceito
data de nascimento do cônjuge e dos filhos.
Segundo, isso acontece na Grã-Bretanha, Falar do prontuário médico é referir-se
um país desenvolvido, de longa tradição a um elemento essencial e obrigatório na
democrática, considerado modelo em maté- prática médica. De acordo com De Plácido
ria de reforma do Estado e com baixo nível e Silva (1998, p. 650), prontuário médico
de percepção de corrupção. Que esperar en- 5
Cf. Folha de S. Paulo, Quarta feira 30 de janeiro
tão de outros onde o funcionalismo é venal? de 2008, p. F7.
E as relações público-privadas pautam-se 6
Cf. LUCCA, Newton de. Aspectos atuais da
proteção aos dados pessoais no âmbito do espaço
pelo patrimonialismo?
virtual. Disponível em: http://ce.desenvolvimento.
Mais recentemente, um analista sênior gov.br/dataprotection/default.asp?M=D. Acesso
da Central Intelligence Agency, em uma em: 31 jan. 2008.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 203


“designa, na linguagem técnico-adminis- mas toda a situação médica do paciente, in-
trativa, toda espécie de fichário ou livro clusive toda a história pregressa relaciona-
de apontamento, onde devidamente clas- da ao tratamento realizado por profissional
sificada e em certa ordem, se tem disposta de saúde ao qual se sujeitou o paciente.
uma série de informações, que devam ser De forma que o prontuário médico pode
de pronto encontradas”. ser comparado a um dossiê objetivando a
Para Carneiro (2002, p. 834), “o pron- análise da evolução psicossocial-clínica,
tuário do paciente é o documento único para análise e estudo da evolução científica
constituído de um conjunto de informações e também como defesa profissional, caso
registradas, geradas a partir de fatos, acon- venha ser responsabilizado por algum
tecimentos e situações sobre a saúde do resultado atípico ou indesejado (cf. CER-
paciente e a assistência prestada a ele, de QUEIRA LUIZ, 2003, p. 9).
caráter geral, sigiloso e científico, que pos- Assim entendemos que as duas funções
sibilita a comunicação entre os membros da básicas do prontuário médico são:
equipe multiprofissional e a continuidade i) A primeira a serviço do paciente, como
da assistência prestada ao indivíduo”. método e como base da colheita de
Adotando um ponto de vista descritivo, informações, uma vez que, por meio
a definição do Conselho Federal de Medici- dele, propicia-se a rápida comunica-
na7 nos parece suficientemente abrangente ção entre os profissionais a respeito
e detalhada, vejamos: “Documento único do diagnóstico e cuidados ministra-
constituído de um conjunto de informações, dos ao paciente, servindo como base
sinais e imagens registradas, geradas a para o acompanhamento e evolução
partir de fatos, acontecimentos e situações de uma determinada patologia, dos
sobre a saúde do paciente e assistência a progressos ou retrocessos terapêu-
ele prestada, de caráter geral, sigiloso e ticos e do controle das informações.
científico, que possibilita a comunicação Relacionando essa função com o di-
entre membros da equipe multiprofissional reito à intimidade, entendemos que,
e a continuidade da assistência prestada ao em qualquer circunstância, a violação
indivíduo.” do sigilo profissional ou o vazamento
Assim o prontuário médico, além de das informações contidas no prontu-
conter os dados de identificação do pacien- ário médico constituem violação do
te com todas as caracterizações que lhe são direito à intimidade dando ensejo a
peculiares, contém dados específicos rela- aplicação do art. 5o, X, da Constitui-
cionados ao diagnóstico do mesmo, descre- ção Federal e as suas conseqüências
vendo a terapêutica proposta, os resultados no plano jurídico, a saber, o direito à
de exames realizados, os procedimentos indenização pelo dano material ou
tomados, enfim, todas as informações moral decorrente da violação ao di-
existentes da relação médico-paciente não reito à intimidade do paciente. Nesses
incluindo apenas o atendimento específico, casos o médico, a equipe médica e
o hospital ou casa de saúde devem
7
Resolução CFM 1.638/02. Aprova as “Normas responder solidariamente, uma vez
Técnicas para o Uso de Sistemas Informatizados para
a Guarda e Manuseio do Prontuário Médico”, dispõe
que são eles os responsáveis por sua
sobre tempo de guarda dos prontuários, estabelece conservação e utilização.
critérios para certificação dos sistemas de informação ii) A segunda a serviço do médico e/ou da
e dá outras providências. Revoga-se a Resolução CFM equipe médica e da coletividade. Quanto
no 1.331/89. (Diário Oficial da União; Poder Executivo,
Brasília, DF, n. 154, 12 ago. 2002. Seção 1, p. 124-5).
a isso observamos que o prontuário
Retificação: (Diário Oficial da União; Poder Executivo, é um elemento de valor probante
Brasília, DF, n. 164, 26 ago. 2002. Seção 1, p. 204). fundamental nas contestações sobre

204 Revista de Informação Legislativa


possíveis irregularidades. Além dos porque servirá de fonte para elucidação
depoimentos pessoais, o registro de questões que envolvam a conduta ética
dos dados no prontuário aparece dos profissionais da saúde em relação aos
como um dos deveres de conduta cuidados ministrados, bem como para a
mais cobrados pelos que avaliam preservação da relação médico-paciente
um procedimento médico, por isso: dentro de um contexto de ações, meio e
“é vedado ao médico deixar de ela- resultados.
borar prontuário médico para cada
paciente”.8 4.2. O prontuário médico eletrônico:
Trata-se então de documento obriga- um produto da telemedicina
tório que, se requisitado, não poderá A adoção do prontuário médico ele-
deixar de ser exibido em juízo, sob trônico é uma tendência irreversível. Em
pena de o magistrado admitir como primeiro lugar, porque o armazenamento
verdadeiros os fatos que o requeren- em arquivos convencionais gera problemas
te, por meio do documento, queria de espaço nos hospitais e centros de saúde
provar.9 pela imensa quantidade de papel a ser con-
Quanto aos serviços à coletividade, servada (cf. CARNEIRO et al. 2002, p. 833).
a Lei10 dispõe que é direito do usu- Com a adoção do prontuário eletrônico,
ário dos serviços de saúde acessar, a ocorrerá a eliminação de algumas práticas
qualquer momento, o seu prontuário como furar papel, encapar os prontuários,
médico. gerir fluxos de prontuários entre diversos
Segundo Tanji (2004, p.16-20), os regis- setores, etc. Os procedimentos serão mais
tros, além de representarem, para toda a rápidos, os arquivos não ocuparão espaço
equipe multidisciplinar, um documento de físico. Enfim, ganhará o paciente, a equipe
relevante valor técnico, científico e ético-
médica e a administração.
legal, avaliam a qualidade do atendimento
Em segundo lugar, de acordo com Tur-
prestado, proporcionam um meio de co-
ban (2004, p. 41), os meios eletrônicos no
municação entre os profissionais de saúde
âmbito hospitalar proporcionam: “redução
e propiciam visibilidade e identificação da
do tempo de ciclo, melhoria no processo de
responsabilidade profissional sobre suas
tomada de decisão de médicos e paramédi-
ações.
cos, distribuição de informação”.
Desse modo, observamos que o re-
Em terceiro lugar, o prontuário médico
gistro de todos os elementos clínicos no
eletrônico, numa abordagem mais geral,
prontuário médico é exigência legal,11 isto
deve ser visto como um dos tantos produ-
8
Art. 69 da Resolução 1.246, de 26 de janeiro de 1988 tos da telemedicina, que pode ser definida
– Código de Ética Médica. O presente Código entrou como sendo a aplicação das técnicas da
em vigor na data de sua publicação e revogou o Código informática e das comunicações ao âmbito
de Ética Médica (DOU, 11-01-65), o Código Brasileiro
de Deontologia Médica (Resolução CFM no 1.154, de
médico-hospitalar (cf. HERVEG, 2007, p.
13-04-84) e demais disposições em contrário. (D.O.U.; 1). Com efeito, além do prontuário médico
Poder Executivo, 26 jan. 1988, p. 1.574-7, Seção 1). eletrônico, a telemedicina oferece inúmeros
9
Art. 359 do Código de Processo Civil. produtos e serviços, por exemplo:
10
Lei Estadual no 10.241, de 17 de março de 1999,
art. 2 , IV. Diário Oficial do Estado; Poder Executivo,
o – as imagens médicas (ultrasonografia,
São Paulo, SP, no 51, 18 mar. 1999, seção 1, p. 1. abreugrafia, tomografias, escanografias,
11
“Todos os estabelecimentos de assistência à
saúde deverão manter de forma organizada e siste- da evolução e condições de alta para apresentá-los à
matizada os registros de dados de identificação dos autoridade sanitária sempre que esta o solicitar, justifi-
pacientes, de exames clínicos e complementares, de cadamente, por escrito”. Lei Estadual no 10.083/98, art.
procedimentos realizados ou terapêutica adotada, 58, Código Sanitário do Estado de São Paulo.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 205


etc) passam a ser numéricas e circulam mais dência irreversível, universal e sistêmica.
rapidamente; Porém o que nos interessa aqui é estudar
– as receitas de medicamentos podem as conseqüências negativas de aplicação
ser dadas em forma eletrônica; dessa técnica, a saber, a questão dos riscos
– novos dispositivos médicos como os ao direito à intimidade. É o que faremos a
sistemas de televigilância; seguir.
– os bancos de dados da área da saúde
podem ser postos em rede no âmbito local, 4.3. O prontuário médico eletrônico e a
regional, nacional ou internacional; violação do direito à intimidade
– roupas inteligentes, que, munidas de Tendo em vista o já dito em relação
detectores eletrônicos, podem captar dife- ao direito à intimidade e à multiplicação
rentes parâmetros bioquímicos do paciente exponencial dos delitos digitais na socie-
o que permite aplicar medicamentos à dis- dade técnica, pode-se dizer que a violação
tância em determinadas circunstâncias; do direito à intimidade e a violação da
– comunicação de médicos e paramédi- privacidade de qualquer indivíduo é uma
cos por meio de redes telemáticas permite das conseqüências negativas do progresso
a consulta e a cirurgia a distância; técnico.
– agendamento de consultas e a gestão
dos leitos hospitalares poder ser feita ele- 4.3.1. Os bancos de dados e a
tronicamente; sua vulnerabilidade
– variadas ferramentas de ajuda ao O indivíduo está órfão diante do for-
diagnóstico e à terapia, transferindo os midável sistema técnico que controla a
conhecimentos médicos ao computador e sua existência abrangendo uma rede de
transformando os profissionais da medici- empresas e instituições que inclui o próprio
na apenas numa interface em contato com Estado13.
o paciente; Assim sendo, o prontuário médico ele-
– enfim, os setores de controle e de trônico é apenas um risco a mais. Um risco
financiamento médico-hospitalar criam gigantesco se olharmos o que acontece na
os seus próprios sistemas de informação Grã-Bretanha em que os prontuários mé-
com o intuito de dar maior eficácia às suas dicos serão centralizados num banco de
operações. dados do National Health Service – NHS,
Como notamos acima, vivemos uma que conterá os dados de mais ou menos 50
época em que a preocupação central da milhões de pessoas. A esses dossiês terão
sociedade é a técnica, definida como a acesso, “somente”, médicos e hospitais,
busca do melhor meio em todos os âmbi- quer dizer algo assim como 300.000 pesso-
tos da vida humana;12 assim, a adoção do as (PORTER, 2007, p. 20). Considerando a
prontuário eletrônico possibilita uma maior prática recente, temos sérias dúvidas sobre
eficácia na gestão hospitalar, numa ten- a segurança dos dados dessas pessoas.
O futuro sistema de informação em dois
12
“Nous voyons donc que cette double inter-
níveis na Bélgica, em matéria de saúde (Be-
vention dans le monde technique qui produit le
phénomène technique peut se résumer comme ‘la Health), conectará no seu primeiro nível a
recherche du meilleur moyen dans tous les domaines’.
C’est ce ‘one best way’ qui est à proprement parler 13
Sobre o assunto ler o artigo de Simon Jenkins,“A
le moyen technique et c’est l’accumulation de ces Grã-Bretanha sob o terror da vigilância”. O Estado de
moyens qui donne une civilization technique. Le São Paulo, Domingo 10 de fevereiro de 2008, p. A 16.
phénomène technique est donc la préoccupation de Nele se informa que 800 organizações – incluindo a po-
l’immense majorité des hommes de notre temps, de lícia, o Fisco e os governos central e local – ordenaram,
recherché en toutes choses la méthode absolument la e quase sempre conseguiram, 253 mil intromissões na
plus efficace”. (ELLUL, 1990, p. 18-19). vida privada de cidadãos.

206 Revista de Informação Legislativa


infra-estrutura permanente de telecomuni- vai exigir que todos os dados das pessoas
cações14. No segundo nível, o sistema conec- estejam em uma ou em poucas bases de
tará as bases de dados de todos os hospitais dados, possibilitando assim um maior e
do país. Serão verdadeiras auto-estradas melhor controle.
da informação por onde passará todo e Uma resposta possível e razoável dos
qualquer dado relacionado com a aplicação operadores do direito é a de tentar uma
da telemedicina. De sorte que, no futuro resistência libertária diante do sistema,
próximo em matéria de saúde, também no desenvolvendo um controle democrático
Brasil, em todos os níveis da federação, os dos bancos de dados, sobretudo aqueles
governos propiciarão políticas públicas de impostos pelo Estado. Para cumprir esse
desenvolvimento de infra-estruturas tele- rol em direito comparado, surgem as de-
máticas, com os conseqüentes riscos para nominadas Comissões de Controle. Por
a privacidade e para o direito à intimidade outro lado, é necessário utilizar o direito,
dos pacientes. não como mera técnica de controle a serviço
Certo, o cidadão que precisa de serviços do Estado e do capital, mas como último
médicos não se preocupa quanto a quem obstáculo para evitar que a técnica infor-
tem acesso a seus dados, e assina rapida- mática – sinal do avassalador progresso do
mente – quando pode – qualquer papel, sistema técnico – imponha-se ao preço da
ainda mais quando o discurso oficial é mais liberdade e da violação do direito à intimi-
ou menos este: a tecnologia vai melhorar dade das pessoas.
os serviços hospitalares tornando-os mais No âmbito da iniciativa privada, muitas
eficazes, e ainda maiores recursos serão vezes operando gigantescos bancos de da-
investidos a fim de fornecer serviços de dos em rede, a atitude deve ser semelhante,
primeira linha. A verdade, porém, é que, o controle e a utilização das barreiras de
do lado do paciente, nos encontramos com segurança estabelecidas na lei.
uma realidade quase matemática: quanto Tudo isso porque como sentenciou o
maior for a base de dados, maior será o TJRJ:
número de pessoas que poderão acessá-la “... III – O ser humano tem uma esfera
e menor será a segurança dos dados dos pa- de valores próprios que são postos na
cientes. Esses dados poderão cair nas mãos sua conduta não apenas em relação ao
de jornalistas à procura do estado de saúde Estado, mas, também, na convivência
de um artista famoso, de detetives privados com seus semelhantes. Respeitam-se,
à procura de segredos ou simplesmente por isso mesmo, não apenas aqueles
de vendedores de dossiês (nesse mercado, direitos que repercutem no seu patri-
compradores não faltam). mônio material, mas aqueles direitos
Assim podemos perguntar-nos: como relativos aos seus valores pessoais,
garantir os direitos da pessoa humana pe- que repercutem nos seus sentimen-
rante o sistema técnico no qual nos achamos tos. Não é mais possível ignorar
inseridos? esse cenário em uma sociedade que
Como vimos o progresso técnico implica se tornou invasora porque reduziu
a perda da liberdade do indivíduo. A ci- distâncias, tornando-se pequena, e,
vilização técnica aniquila nossa liberdade por isso, poderosa na promiscuidade
(cf. BOURG, 2004, p. 71). À medida que o que propicia. Daí ser desnecessário
sistema se aperfeiçoar e ganhar eficácia, enfatizar as ameaças à vida privada
que nasceram no curso da expansão
14
Sobre o Be-Health do governo federal bel-
ga consultar: https://portal.health.fgov.be/por-
e desenvolvimento dos méis de co-
tal/page?_pageid=56,4280428&_dad=portal&_ municação de massa. IV– Nenhum
schema=PORTAL. homem médio poderia espancar os

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 207


seus mais íntimos sentimentos de mente carece de uma lei federal de proteção
medo e frustração, de indignação e de dados, mas também de uma política
revolta, de dor e mágoa, diante da pública em matéria de dados pessoais e de
divulgação de seu nome associado controle dos bancos de dados.
a uma doença incurável, desafiado- Nesse plano poderíamos perguntar
ra dos progressos da Ciência e que quais seriam as idéias fundamentais a
tantos desesperos têm causado à serem retidas, quais os princípios a serem
Humanidade. V– O art. 5o, X, da CF adotados?
assegura ao ser humano o direito Entre as várias leis existentes em Di-
de obstar à intromissão na sua vida reito Comparado que abordam a matéria,
privada. Não é lícito aos meios de entendemos que, no plano dos princípios,
comunicação de massa tornar pú- a Diretiva 95/46/CE18 da União Européia
blica a doença de quem quer que se constitui num excelente modelo que
seja – ainda mais quando a notícia pode ser adaptado à nossa realidade, uma
é baseada apenas em boatos –, pois vez que estabelece um equilíbrio entre a
tal informação está na esfera ética da imprescindível proteção da intimidade e
pessoa humana, dizendo respeito à da vida privada das pessoas, de um lado,
sua intimidade, à sua vida privada. e a livre circulação dos dados pessoais, de
Só o próprio paciente pode autorizar outro. Apresentaremos a seguir esses prin-
a divulgação de notícia sobre a sua cípios que têm inspirado várias legislações
saúde.”15 nacionais.19
Primeiramente quanto ao espírito da
4.3.2. De lege ferenda: questões de diretiva, devemos dizer que aporta o salu-
política pública e princípios aplicáveis ao tar princípio de que a informática esteja a
tratamento de dados pessoais16 serviço do indivíduo e de que não atente
Tendo em vista o totalitarismo da socie- nem contra a identidade humana, nem
dade técnica, a vulnerabilidade dos bancos contra os direitos do homem, nem contra
de dados e a adoção crescente do prontuá- a vida privada, nem contra as liberdades
rio médico eletrônico, reiteramos a urgência individuais nem públicas.
da adoção de um marco jurídico adequado Quanto ao seu âmbito de aplicação, a
entre nós que discipline essas relações Diretiva aplica-se tanto aos dados tratados
jurídicas e que salvaguarde os referidos por meios automatizados, como aqueles
direitos individuais. Com efeito, muito destinados a figurar num fichário de papel
embora as disposições constitucionais que tradicional. Não se aplica ao tratamento
consagram a inviolabilidade da intimidade, de dados efetuado por uma pessoa física
da privacidade e das comunicações e que na esfera de suas atividades domésticas
protegem o consumidor,17 o Brasil não so- ou exclusivamente pessoais. Tampouco se
aplica ao tratamento de dados concernente
15
TJRJ, Ap. Cível 3.059/1991, j. 19/111991, RDA à segurança do Estado, segurança pública
185/197. e defesa nacional.
16
Entende-se por tratamento de dados de caráter
pessoal toda operação ou conjunto de operações ten- 18
Co-decisão COD/1990/0287. Entrada em vi-
dente a colher, gravar, organizar, conservar, adaptar, gor 13.12.1995. Transposição nos Estados Membros
modificar, extrair, consultar, utilizar, comunicar, 24.10. 1998. Publicada no Jornal Oficial como L 281
transmitir, difundir, colocar a disposição, ligar, inter- de 23.11.1995.
conectar, bloquear, apagar ou destruir esses dados. 19
Essa Diretiva serviu de modelo, entre outras, à
17
Incluímos aqui o art. 5o, LXXII (Habeas Data); Ley orgánica de regulación del tratamiento automatizado
5o, X (intimidade e privacidade); 5o, XII (inviolabi- de datos de carácter personal de Espanha no 15/99 e à
lidade das comunicações) e 5o, XXXII (proteção ao Lei argentina no 25.326, de 30 de outubro de 2000, e
consumidor). Decreto no 1.558 de 2001.

208 Revista de Informação Legislativa


O objetivo da Diretiva é proteger os as pessoas em causa devem ter o direito de
direitos e liberdades dos indivíduos, no obter do responsável pelo tratamento:
que diz respeito ao tratamento de dados – a confirmação ou não de terem sido
pessoais, utilizando como instrumento a tratados dados que lhes digam respeito e
aceitação de princípios orientadores que a comunicação desses dados.
determinam a legitimidade desses trata- – o bloqueio, anulação ou retificação dos
mentos. Esses princípios dizem respeito a: dados cujo tratamento descumpra o esta-
i) Qualidade dos dados: os dados belecido nessa Diretiva, especialmente os
pessoais devem ser exatos e se necessá- dados inexatos ou incompletos, bem como
rio atualizados. Devem ser objeto de um a notificação dessas alterações aos terceiros
tratamento lícito e honesto e ser colhidos eventuais a quem os dados tenham sido
para determinadas finalidades, legítimas repassados.
e explícitas. vi) Derrogações e restrições: o alcance
ii) Legitimidade do tratamento de da- dos princípios anteriores pode ser restrin-
dos: este somente poderá ser efetuado se gido a fim de salvaguardar a segurança
a pessoa em questão tiver outorgado o seu do Estado, a defesa, a segurança pública, a
consentimento de forma inequívoca ou se repressão de infrações penais, um interesse
o tratamento for necessário para: econômico ou financeiro importante de
– a execução de um contrato no qual a um Estado-Membro ou da própria União
pessoa em questão seja parte contratante; Européia.
– o cumprimento de uma obrigação vii) Direito de oposição ao tratamento
legal à qual o responsável pelo tratamento de dados: a pessoa em questão deve ter o
esteja sujeito; direito de se opor, por motivos legítimos,
– a proteção de interesses vitais da pes- a que os dados que lhe digam respeito se-
soa em questão; jam objeto de tratamento. Igualmente deve
– a execução de uma missão de interesse poder opor-se, gratuitamente a seu pedido,
público; ao tratamento de dados previstos para
– o prosseguimento de interesses legíti- pesquisas. Deve ainda ser informada antes
mos do responsável pelo tratamento. de os dados serem comunicados a terceiros
iii) Proibição do tratamento de dados para efeitos de pesquisa e ter o direito de
pessoais que revelem a origem racial ou se opor a essa comunicação.
étnica, as opiniões políticas, a fé religiosa viii) Confidencialidade e segurança:
ou certezas filosóficas, a filiação sindical, qualquer pessoa que, agindo sob a auto-
bem como o tratamento de dados relativo ridade do responsável pelo tratamento ou
à vida sexual e à saúde, salvo o caso em que do subcontratante (bem como o próprio
o tratamento seja necessário para proteger subcontratante), tenha acesso a dados
interesses vitais da pessoa em questão, diag- pessoais não pode tratá-los sem instruções
nóstico médico ou medicina preventiva. do responsável pelo tratamento. Por outro
iv) Informação das pessoas responsáveis lado, este último deve tomar medidas ade-
pelo tratamento de dados: o responsável quadas para proteger os dados pessoais
pelo tratamento deve fornecer à pessoa da contra a destruição acidental ou ilícita, a
qual colha dados que lhe digam respeito perda acidental, a alteração, a difusão ou
um certo numero de informações – iden- o acesso não autorizado.
tidade do responsável pelo tratamento, ix) Instituição de uma autoridade de
finalidade do tratamento, destinatários dos controle nacional: essa autoridade deve ser
dados, etc. notificada pelo responsável do tratamento
v) Direito de acesso das pessoas em dos dados antes da realização destes. Após
questão aos seus próprios dados – todas a recepção da notificação, a autoridade de

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 209


controle examinará a possibilidade de even- em matéria de liberdade, de privacidade,
tuais riscos relacionados com os direitos e intimidade e sigilo podendo aplicar sanções
liberdades das pessoas em questão. contra os responsáveis de um tratamento
x) Possibilidade de recorrer aos tribunais que viole esses direitos. Obviamente essa
no caso de violação dos direitos garantidos autoridade deve contar com os recursos
pelas disposições nacionais em matéria de financeiros necessários ao cumprimento da
tratamento de dados e de obter indenização sua missão. No caso do Brasil, entendemos
pelos danos sofridos. que deveriam ser designados no orçamento
Note-se que, apesar dos avanços que da União.
esses princípios trouxeram, as derrogações Uma política pública sobre o tratamento
e restrições (item vi) são muito amplas. No de dados pessoais deve incluir, também, as
espaço europeu, o indivíduo fica inteira- sanções penais correspondentes contra os
mente entregue às forças policiais, militares que entravem a ação da autoridade admi-
e de defesa do Estado que, tendo larguíssi- nistrativa nacional e os que violem a própria
mas atribuições inclusive a “repressão de lei, sob pena de ficarmos somente nas boas
infrações penais”, e interesses econômicos intenções. Deve garantir também a confi-
ou financeiros ditos importantes, podem dencialidade e segurança do tratamento de
ter acesso a qualquer banco de dados e/ou dados médicos. Ela deve ser pensada em
fichário em poder do Estado ou de parti- dois níveis: no da infra-estrutura telemática
culares, tudo isso evidentemente em nome e no da aplicação da telemedicina. A infra-
da segurança e da ordem que todo cidadão estrutura de telecomunicações é funda-
almeja. Voltamos aqui ao pensamento de mental, porque dela depende a segurança
Ellul.20 Essa situação, como sabemos, está na e confidencialidade em ambos os níveis,
ordem do dia em virtude do confronto das assim sendo, ela deve oferecer estabilidade
democracias ocidentais com o terrorismo.21 e segurança (Cf. HERVEG, 2007, p. 5).
Sublinhe-se ainda o princípio ix, isto Para concretizar esses princípios, faz-se
é, a organização de uma autoridade ad- necessária no Brasil uma Lei Federal de
ministrativa nacional independente do Proteção dos Dados Pessoais, que consagre o
governo22 que seja responsável por zelar regime opt-in, isto é, o responsável pelo trata-
pelos direitos garantidos na Constituição mento dos dados deve obter o consentimen-
to prévio do consumidor, assegurando-lhe o
20
“Les techniques policières, qui se développent acesso e mantendo-o informado sobre o des-
à une cadence extrêmement rapide, ont pour fin tino e a utilização feita com as informações
nécessaire la transformation de la nation tout entière
en camp de concentration. Ce n’est pas une décision
em seu poder. Em todo caso, principalmente
perverse de tel parti, de tel gouvernement; mais pour na hipótese de utilização indevida, violação
être certain d’attraper des criminels, il faut que cha- da intimidade e privacidade do cidadão
cun soit surveillé, que l’on sache exactement ce que (na qualidade de consumidor, paciente ou
fait chaque citoyen, ses relations, ses habitudes, ses
distractions...Et l’on est de plus en plus en mesure de
vítima), a lei deve estabelecer claramente a
le savoir.” (ELLUL, 1990, p. 93). responsabilidade solidária, das instituições
21
Sobre o confronto democracia versus terroris- mantenedoras dos bancos de dados e das
mo e suas conseqüências para o direito ver: Patrick empresas que operam o sistema, para efeitos
Troude-Chastenet, Guantanamo: “le Droit entre
parenthèses” in Cahiers Jacques Ellul, Association
de indenização por dano moral. Isso sem
Internationale Jacques Ellul, Bordeaux, 2004/2, p. falar na aplicação da lei penal aos autores da
17-25. violação e àqueles que se locupletam com a
22
Um modelo pode ser a Commission Nationale devassa das informações.
de l’Informatique et des Libertés – CNIL, organização
francesa instituída pela lei no 78-17 de 06/01/1978. O
É comum no contexto da infra-estrutura
leitor pode encontrar maiores informações no seguinte e de redes telemáticas que tarefas específicas
site: http://www.cnil.fr sejam terceirizadas (a especialistas, forne-

210 Revista de Informação Legislativa


cedores ou empresas); assim, na elaboração recidas pela própria técnica da informática
da legislação em matéria de confidenciali- e da comunicação nesse âmbito, a legislação
dade, é necessário definir claramente que deve prever a certificação de empresas que
os terceirizados não agirão, a não ser sob poderão ser subcontratadas e a elaboração
instrução do responsável do tratamento. de códigos de conduta setoriais. Numa certa
Quanto à segurança, a legislação deve medida, a confidencialidade e a segurança
prever que o responsável do tratamento, do tratamento de dados médicos são tam-
em colaboração com a pessoa encarregada bém assegurados por um controle reconheci-
da infra-estrutura de telecomunicações, do ao próprio paciente. Assim, um eventual
deve tomar as medidas técnicas e de orga- marco legal deve reconhecer-lhe o acesso e a
nização apropriadas para proteger os dados utilização de seus dados médicos.
pessoais contra sua destruição acidental ou
ilícita, perda, alteração, difusão ou acesso 5. Conclusões
não autorizado, notadamente quando o tra-
tamento comporta transmissões de dados A técnica contemporânea caracterizada
numa rede. Evidentemente essas medidas pelo seu automatismo, autocrescimento,
devem levar em consideração o desenvolvi- unicidade, universalismo, autonomia e
mento de novas técnicas e o seu custo. ambivalência condiciona e provoca as mu-
Na hipótese de haver subcontratação danças sociais, políticas e econômicas da
da realização de um tratamento de dados, sociedade. Entretanto a sociedade técnica
a lei deve deixar claro que os responsáveis não é somente o produto do desenvolvi-
por esse tratamento têm a obrigação de mento de certas técnicas, mas, sobretudo,
identificar as eventuais empresas e/ou pro- a aparição de uma nova disposição diante
fissionais que apresentem riscos, e assumir de processos e métodos que é a busca ra-
o seu controle, em primeiro lugar exigindo cional da eficácia máxima em toda ordem
as garantias suficientes em relação às medi- de coisas.
das de segurança técnica e de organização A técnica é ambivalente, isto é, pari
a serem implementadas. E, em segundo passu aos seus inegáveis aspectos positi-
lugar, vigiando para que essas medidas vos – sublinhemos que a telemedicina nos
sejam efetivamente tomadas. aporta produtos como o prontuário médico
Um aspecto particularmente delicado em eletrônico, extremamente satisfatórios e
matéria de confidencialidade e segurança úteis. Acarreta, porém, efeitos nefastos
de dados médicos é que a infra-estrutura que são inseparáveis daqueles, como, por
e redes telemáticas supõem a intervenção exemplo, o devassamento da privacidade e
de intermediários (profissionais liberais e
empresas e seus prepostos) que não estão Art. 105. Revelar informações confidenciais
obtidas quando do exame médico de trabalhadores,
sujeitos às regras do segredo médico nem a inclusive por exigência dos dirigentes de empresas ou
deontologia médica23. Fora as soluções ofe- instituições, salvo se o silêncio puser em risco a saúde
dos empregados ou da comunidade.
23
Código de Ética Médica, Resolução no 1.246 do Art. 106. Prestar a empresas seguradoras qual-
Conselho Federal de Medicina, de 8 de janeiro de 1988. quer informação sobre as circunstâncias da morte
É vedado ao médico: de paciente seu, além daquelas contidas no próprio
“Art. 102. Revelar fato de que tenha conhecimento atestado de óbito, salvo por expressa autorização do
em virtude do exercício de sua profissão, salvo por justa responsável legal ou sucessor.
causa, dever legal ou autorização expressa do paciente. Art. 107. Deixar de orientar seus auxiliares e de
Parágrafo único: Permanece essa proibição: a) Mesmo zelar para que respeitem o segredo profissional a que
que o fato seja de conhecimento público ou que o pa- estão obrigados por lei.
ciente tenha falecido. b) Quando do depoimento como Art. 108. Facilitar manuseio e conhecimento dos
testemunha. Nesta hipótese, o médico comparecerá prontuários, papeletas e demais folhas de observações
perante a autoridade e declarará seu impedimento. médicas sujeitas ao segredo profissional, por pessoas
(...). não obrigadas ao mesmo compromisso.”

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 211


a violação do direito à intimidade. A nossa BOURG, Dominique. Jacques Ellul ou la condam-
época tem sido chamada a era da informáti- nation morale de la technique. Cahiers Jacques Ellul.
Association Internationale Jacques Ellul. n. 2. Borde-
ca, mas com a mesma precisão poderíamos aux- France, mar. 2004.
denominá-la também a era da vigilância.
BRASIL. Novo Código Civil. Série fontes de referência.
Surge assim, para os formuladores e exe-
n. 65. Brasília: Câmara dos Deputados, 2005.
cutores de políticas públicas bem como para
os operadores do direito, o desafio de defen- BRASIL. Código de Proteção e Defesa do Consumidor.
Campinas: Copola, 2002.
der as liberdades e direitos fundamentais
ameaçados pelo Leviathan tecnológico. CALMON, Petrônio. Comentários à Lei de Informatização
do processo judicial: Lei n. 11.419 de 19 de dezembro de
Nesse plano a elaboração de uma políti-
2006. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
ca pública e de uma Lei Federal de Proteção
dos Dados Pessoais com a sua respectiva CARNEIRO, Mauro Brandão et al. Documentação
médica: guarda e manuseio dos prontuários médicos.
regulamentação são tarefas urgentes no Revista Sociedade de Cardiologia do Estado de São
Brasil. Paulo, v. 12, n. 6, nov. / dez., 2002.
Não tenhamos ilusões, porém, que, com
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabili-
medidas políticas ou legislativas, colocare- dade civil. 6 ed., São Paulo: Malheiros, 2006.
mos a técnica a nosso serviço; podem-nos
CERQUEIRA LUIZ, Ana Maria. Prontuário Médico e
ajudar simplesmente a sobreviver dentro Prontuário Eletrônico: documento de ajuda ou conde-
do sistema, como disse Ellul: “assim se nação ? prova verossímil de defesa? Trabalho de con-
completa o edifício desta civilização que clusão de curso. Faculdade de Direito da Universidade
não é um universo concentracionário, uma Estadual do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://
vez que não há atrocidade, não há demên- www.hgb.rj.saude.gov.br/ciencia/enfermagem/
pront.doc>. Acesso em: 20 nov. 2007.
cia, tudo é níquel e vidro, tudo é ordem
– e as arestas das paixões dos homens são CORBISIER, Roland. Prefácio à obra de J. Ellul: a
técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e
cuidadosamente aparadas. Não temos mais Terra, 1968.
nada a perder e mais nada a ganhar, nos-
sos mais profundos impulsos, nossas mais CORREIA, Miguel Pupo. Sociedade de informação e direi-
to: a assinatura digital. Disponível em: <http://www.
secretas pulsações do coração, nossas mais publicaciones.derecho.org./redi/N@umero12 julho
íntimas paixões são conhecidas, publicadas, de 1999/Sociedade>. Acesso em: 11 dez. 2007.
analisadas, utilizadas.”24
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só – tutela penal da intimidade. São Paulo: Revista dos
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BATLLÉ SALES, Georgina. El derecho a la intimidad naturas digitais: da qualificação jurídica dos arquivos
privada y su regulación. Alcoy: Editorial Marfil, 1972. digitais como documentos. São Paulo: LTr, 1999.
______. Documento eletrônico, assinaturas digitais: um
Tradução livre dos autores do seguinte texto.
24
estudo sobre a qualificação dos arquivos digitais como
“Ainsi s’acheve l’édifice de cette civilisation qui documentos. Revista de Direito Privado, abr. / jun.
n’est pas un univers concentrationnaire, car il n’y a São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
pas d’atroce, il n’y a pas de démence, tout est nickel
et verre, tout est ordre – et les bavures des passions ELLUL, Jacques. La technique ou l’enjeu du siècle: clas-
des hommes y sont soigneusement briquées. Nous siques des sciences sociales. Collection dirigée par
n’avons plus rien à perdre et plus rien a gagner, Hervé Coutau-Bégarie. Paris: Economica, 1990.
nos plus profondes impulsions, nos plus secrets ______. Le bluff technologique. Paris: Hachette, 1988.
battements de coeur, nos plus intimes passions sont
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Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 213


Garantias processuais dos direitos
humanos no sistema jurídico brasileiro

João Baptista Herkenhoff


Antonio Côrtes da Paixão

Sumário
1. Introdução. 2. Conceito de direitos huma-
nos. 3. Breve história dos direitos humanos. 4. Os
direitos humanos no pensamento jurídico con-
temporâneo. 5. Os direitos humanos e a tradição
constitucional brasileira. 5.1. Direitos humanos e
preceitos constitucionais historicamente solidifi-
cados. 5.2. Os direitos humanos e a Constituição
Imperial. 5.3. A primeira Constituição Repu-
blicana e os direitos humanos. 5.4. Os direitos
humanos e a primeira fase da Revolução de 30.
5.5. A Constituição de 34 e os direitos humanos.
5.6. Os direitos humanos no Estado Novo. 5.7.
1946 e a volta do estado de direito. 5.8. Os direitos
humanos na primeira fase da ditadura. 5.9. Os di-
reitos humanos e a Constituição de 1967. 5.10. Os
direitos humanos sob o Ato Institucional no 5. 6.
A vinculação histórica dos direitos humanos com
o Poder Judiciário. 7. Dos meios de proteção aos
direitos. 7.1. Garantias de regulação. 7.2. Garan-
tias de controle e fiscalização. 7.3. Garantias de
interpretação. 7.4. Garantias internas ao direito.
7.5. Garantias judiciais. 8. Conclusão.

1. Introdução
Este artigo é um trabalho produzido em
conjunto, tendo como autor um professor
do Mestrado em Direito da Universidade
Federal do Espírito Santo e como co-autor
um mestrando, orientando do professor.
João Baptista Herkenhoff é Juiz de Direito
Co-autor, como ensina o dicionarista
aposentado, Professor do mestrado da UFES, Antônio Houaiss, é “o que faz ou produz,
mestre pela PUC/RJ, Livre Docente da UFES, pós- com outro, determinado trabalho ou obra”.
doutor em Havard (EUA) e Rauen (França). Não há assim uma gradação de valor entre
Antonio Côrtes da Paixão é Juiz de Direito no autor e co-autor, ressalva que o autor faz
Estado do Espírito Santo, mestrando pela UFES. questão de inserir nesta introdução.
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A produção de trabalhos, em parceria, fundamentais”, são aqueles direitos que o
por professores e mestrandos está dentro homem possui pelo fato de ser homem, por
do espírito com o qual foi concebido o sua própria natureza humana e pela digni-
Mestrado em Direito da UFES. dade que a ela é inerente (HERKENHOFF,
Com este texto, pretende o autor, com a 2002, p. 19). Tais direitos não resultam de
colaboração do co-autor, resgatar, atualizar concessão da sociedade política, mas esta
e ampliar um ensaio publicado no número tem o dever de reconhecê-los, consagrá-los
7 da revista “Encontros com a Civilização e garanti-los porquanto nenhuma socieda-
Brasileira”, que veio à luz em janeiro de de se justifica se não zela pelo bem-estar
1979, com o título “Os Direitos Humanos dos indivíduos.
e sua Proteção Jurisdicional”.
Nesse ensaio defendeu o autor a tese da 3. Breve história dos direitos humanos
diferença entre “preceitos constitucionais
meramente formais” e “preceitos constitu- A evolução do pensamento filosófico,
cionais históricos ou solidificados”. jurídico e político da humanidade, por-
No momento da vida brasileira em que tanto, da própria humanidade, resultou
o ensaio apareceu, a defesa dessas idéias não só no reconhecimento e consolidação
era particularmente importante porque de diversos direitos humanos, como no
“preceitos constitucionais históricos ou so- próprio conceito deste.
lidificados”, como o ensaio defendeu, eram Um “sobrevôo” pela história permi-
as garantias constitucionais conquistadas te visualizar direitos atribuídos a seres
ao longo da vida política do país, pela luta, humanos – direitos humanos em sentido
pela resistência, pelo martírio. Por sua vez, amplo – desde a Antigüidade, no Código
os “preceitos constitucionais meramente de Hamurabi (Babilônia), na filosofia de
formais” (gerados pelos atos institucionais) Mêncio (China), na República de Platão e
eram aqueles que, sem radicação na história no direito Romano, embora precários, haja
brasileira, eram simplesmente determina- vista a ausência de limitação de poder do
dos pelos que detinham o poder. Estado em relação ao indivíduo.
Os “preceitos constitucionais históricos Embora Aristóteles haja definido “cons-
ou solidificados”, segundo a tese que o tituição”, o constitucionalismo, em razão
texto original defendeu, apontavam para da mencionada limitação, só teve início
o Brasil o caminho da Democracia. na Inglaterra, tendo como marco a Carta
A revista Encontros com a Civilização Magna de 1215, imposta ao rei João Sem
Brasileira, fundada e dirigida pelo saudoso Terra pelos bispos e barões. Nela foram
Ênio Silveira, foi um símbolo da resistência consignados limites ao poder do Rei, entre
democrática num período em que nosso eles, o “habeas corpus”.
país estava submetido à ditadura. Publi- Eventuais direitos antes reconhecidos
cando este ensaio naquela revista, o autor, em documentos ingleses a homens comuns
que era na oportunidade magistrado da – vassalos – não passavam de direitos de
ativa, no Espírito Santo, juntava sua voz estamentos reconhecidos pelo rei – suse-
à voz de todos aqueles que lutavam pela rano – que se comprometia a respeitá-los
supressão do arbítrio, pela anistia e pela em contratos feudais. Porém, deve ser re-
constitucionalização do país. conhecida a importância de tais contratos
pela influência que irradiou para outros
grupos dominantes e outras categorias de
2. Conceito de direitos humanos súditos1. Os direitos assim reconhecidos
“Direitos humanos” ou “direitos do 1
Cf. Magna Carta, art. 20 e 39 in O direito de ser ho-
homem”, também denominados “direitos mem, Seleção de textos organizada por Jeanne Hersch,

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não tinham caráter universal, alcançando Ultrapassados os ideais do liberalismo,
apenas alguns homens ingleses livres. O que inspirou o Estado dos proprietários,
alcance universal das proclamações ingle- a emergência do proletariado como força
sas se deu com o pensador inglês Locke, política marcou nova época na história
com sua fundamentação jusnaturalista, dos “Direitos Humanos”. Já não bastava
refletindo nas revoluções americana e o Estado de Direito. Colimava-se o Estado
francesa. Social de Direito.
Os “direitos do homem e do cidadão”, Essas aspirações do pensamento político
proclamados nessa fase histórica, quer na então dominante encontram expressão sole-
América, quer na Europa, tinham um conte- ne: na Proclamação das Quatro Liberdades,
údo bastante individualista, consagrando a de Roosevelt – a de palavra e expressão, a
chamada democracia burguesa. Apenas na de culto, a de não passar necessidade, a
segunda etapa da revolução francesa, sob de não sentir medo (1941); na Declaração
a ação de Robespierre e a força do pensa- das Nações Unidas (Washington, 1942);
mento de Rousseau, proclamam-se direitos na Conferência de Moscou (1943); na
sociais do homem: direitos relativos ao Conferência de Dumbarton Oaks (1944);
trabalho e a meios de existência, direito de na Conferência de São Francisco (1945) e,
proteção contra a indigência, direito à ins- finalmente, no mais importante, conhecido
trução (Constituição de 1973). Entretanto, a e influente documento de “direitos huma-
realização desses direitos cabia à sociedade nos” da História: a Declaração Universal
e não ao Estado, salvaguardada, assim, dos Direitos do Homem, proclamada pela
a idéia então vigente de absenteísmo do Assembléia Geral das Nações Unidas em
Estado diante de tais problemas. 10 de dezembro de 1948.
A dimensão social do constitucionalis-
mo, a afirmação da necessidade de satis- 4. Os direitos humanos no pensamento
fazer os direitos econômicos, ao lado dos jurídico contemporâneo
direitos de liberdade, a outorga ao Estado
da responsabilidade de prover essas aspi- A dimensão “social” da democracia
rações – é fato histórico do século XX. que marcou o primeiro grande salto na
A Revolução Mexicana conduz à cons- conceituação dos “direitos sociais” derivou
tituição de 1917, que proclama os direitos da constatação da fragilidade dos “direitos
do trabalhador. A Revolução Russa leva liberais” quando o homem, a favor do qual
à declaração dos direitos do povo, dos se proclamam liberdades, não satisfez ain-
trabalhadores e dos explorados (1918). A da necessidades primárias: alimentar-se,
Constituição alemã de Weimar (1917) tenta vestir-se, morar, ter condições de saúde, ter
o acréscimo às franquias liberais do século segurança diante da doença, da velhice, do
anterior dos princípios da democracia so- desemprego e de outros percalços da vida.
cial que então se impunham. Outrossim, Numa primeira fase, a reações contra os
os interesses econômicos das grandes po- postulados da democracia liberal consistiu
tências aconselharam o encorajamento das em afirmar os “direitos sociais” com menos-
reivindicações universais do trabalho, a fim prezo das liberdades clássicas. Pretendia-se
de que países onde as forças sindicais eram libertar o homem da opressão econômica e
débeis não pudessem fazer concorrência tachava-se de engodo as garantias da de-
à indústria dos países onde essas forças mocracia liberal, que importavam apenas às
eram mais ativas, com a vil remuneração classes dominantes, em nada interessando
da mão-de-obra operária. às classes oprimidas. A declaração russa
dos direitos do povo, dos trabalhadores e
p. 186 e seguintes. dos explorados, redigida por Lênin (HERS-

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CH, 1972, p. 297), dá a medida da rebeldia O desenvolvimento exige a instauração,
às anteriores declarações de direitos. no mundo, de uma ordem social justa,
Pouco a pouco, de parte a parte, houve eliminada a exploração sistemática do
uma absorção de valores: em democracias homem pelo homem, de nação por nação,
liberais, contemplaram-se os “direitos so- bem como a opressão das massas pelos
ciais”; em países socialistas, como fato dos poucos que possuem riqueza e poder,
nossos dias, assiste-se à revalorização das segundo denunciou a Comissão Pontifícia
franquias liberais clássicas. Justiça e Paz4.
Parece que o porvir reserva ao mun- Assim, na atualidade, não há apenas di-
do um encontro de vertentes, quando se reitos humanos reclamáveis ao Estado, mas
puderem conciliar as aspirações de maior também direitos humanos reclamáveis pela
igualdade no plano econômico – de que as pessoa aos grupos sociais e às estruturas
correntes socialistas foram e são portadoras econômicas, bem como direitos reclamáveis
– com as aspirações de liberdade, legado por grupos humanos e nações, em nome
da democracia clássica, aspirações umas e da pessoa humana, dentro da comunidade
outras que creio perfeitamente compatíveis, universal. Só haverá o efetivo primado dos
harmônicas e interdependentes. “direitos humanos” com a supremacia dos
Mas a visão dos Direitos Humanos, mo- valores da justiça, no mundo. Justiça que
dernamente, não se enriqueceu apenas com será, por sua vez, a força geradora da Paz.
a justaposição dos “direitos econômicos”
aos “direitos de liberdade”. Ampliaram-se 5. Os direitos humanos e a tradição
os horizontes. constitucional brasileira
Surgiram os chamados “direitos hu-
manos da terceira geração”, os direitos da 5.1. Direitos humanos e preceitos
solidariedade: direito ao desenvolvimento, constitucionais historicamente solidificados
direito a um ambiente sadio e ecologica-
mente equilibrado, direito à paz, direito de Nos países de constituição flexível (a
propriedade sobre o patrimônio comum da Inglaterra é o exemplo mais expressivo),
humanidade (VASAK, 1978). sabe-se que não existe, a rigor, a supremacia
Outrossim, assinala-se com veemência de uma lei sobre outra. Um ato do Parla-
cada vez maior que a negação dos “direitos mento ordinário revogaria na Inglaterra o
humanos”, no interior de cada país, não habeas corpus, embora seja difícil conceber
tem apenas causas internas mas, sobretudo, que a Inglaterra abrisse mão, por um ato
origem externa: a injustiça no campo das legislativo, de oito séculos de cultura jurí-
relações internacionais. dica, oito séculos de civilização.
O “direito comum dos povos a seu de- Nos países de Constituição rígida (o
senvolvimento humano integral”, procla- Brasil é, tradicionalmente, um desses), a
mado por Paulo VI perante a Organização Constituição é a lei maior, Carta Magna,
Internacional do Trabalho2, supõe a inter- superior às demais leis. Lei que contrarie a
penetração de todos os direitos humanos Constituição é inconstitucional, não é lei.
fundamentais, sobre os quais se baseiam as A Constituição Imperial (1824), regulando
aspirações de indivíduos e de nações, como o processo de emendas a seu texto, excluía
afirmou o Sínodo dos Bispos instalado em das formalidades estabelecidas as emendas
Roma, em 19713. que não se referissem a matéria constitu-
cional. E definia-se por constitucional “o
2
Cf. Justiça no mundo, textos da Comissão Pon-
que diz respeito aos limites e atribuições
tifícia Justiça e Paz, p. 39.
3
Idem. 4
Ibidem, p. 36.

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respectivas dos poderes políticos, e aos di- historicamente solidificados e vigoram por
reitos políticos e individuais dos cidadãos” outorga, resulta dessa anomalia um divór-
(art. 178). cio entre o Estado (outorgante dos preceitos
A primeira constituição republicana formais) e a Nação (detentora dos preceitos
(1891), ao tratar das reformas a ela própria, históricos solidificados). No Brasil, os pre-
determinava que não podiam ser objeto de ceitos constitucionais historicamente soli-
deliberação, no Congresso, projetos tenden- dificados dão plena acolhida aos Direitos
tes a abolir a forma republicano-federativa, humanos. Em outras palavras: numa visão
ou a igualdade da representação dos Esta- científica e sociológica do Direito Constitu-
dos no Senado (art. 90, § 4o). cional, os Direitos Humanos, no Brasil, são
A Constituição de 1934 distinguiu “constitucionais”. Isso porque a tradição
emenda e revisão. Emenda era a alteração constitucional brasileira é a de respeito aos
que não modificasse a estrutura política do Direitos Humanos. Não obstante a luta, na
Estado e a organização ou a competência história das idéias políticas no país, entre
dos poderes da soberania. Revisão era a o pensamento autoritário e o pensamento
alteração, nesses pontos (art. 178). Não liberal, prevaleceu a orientação liberal nos
seriam admitidos, como objeto de delibe- grandes textos de afirmação do pensamen-
ração, projetos tendentes a abolir a forma to político e jurídico nacional.
republicana federativa (art. 178, § 5o). Na
Constituição de 1946, novamente se estabe- 5.2. Os direitos humanos e a
leceu que não seriam objeto de deliberação Constituição Imperial
projetos tendentes a abolir a Federação ou Não obstante outorgada – após a dis-
a República. A Constituição de 1967 (art. solução da Constituinte, com desaponto
50, § 1o) repetiu a norma. para as correntes liberais do pensamento
Dentro de um formalismo técnico, político brasileiro –, a Constituição imperial
em países de Constituição rígida, consti- consagrou os principais Direitos Humanos,
tucional é todo dispositivo constante da como então eram reconhecidos.
Constituição vigente. Não há que cuidar de Instituiu a supremacia do homem-pro-
Constituições antigas. Se se der, contudo, à prietário, full-member do corpo social. Mas
tarefa hermenêutica uma maior abertura, se nisso fez coro a Locke e à ideologia liberal
se adotar uma postura sociológica, passa a que marcou sua profunda influência no
interessar o exame de textos constitucionais processo da independência e formação polí-
revogados. tica do Brasil (BARRETO, 1973, p. 22-23).
Da mesma forma que a Constituição Na esteira da Declaração dos Direitos
distingue preceitos constitucionais irre- do Homem e do Cidadão, decretada pela
formáveis, penso que o cientista do Direito Assembléia Nacional francesa em 1789, afir-
possa distinguir preceitos constitucionais mou que a inviolabilidade dos direitos civis
históricos ou solidificados. Por preceitos e políticos tinha por base a liberdade, a segu-
constitucionais meramente formais, deno- rança individual e a propriedade (art. 179).
mino aqueles que integram a Constituição Omitiu, contudo, o quarto direito natural e
vigente. Por preceitos constitucionais his- imprescritível, proclamado, ao lado desses
tóricos ou solidificados, designo aqueles três, pelo artigo 2o da Declaração francesa:
que integram a verdadeira “Constituição” o direito de resistência à opressão.
do país, ou seja, preceitos que realmente Estabelecendo uma religião de Estado,
orientaram e comandaram a estrutura po- a Constituição imperial afastou-se da Carta
lítica do Estado através do tempo. de 1789. Também não deu guarida ao art.
Quando os preceitos constitucionais 15 da Declaração francesa, que estabelecia
formais afrontam preceitos constitucionais ter a sociedade o direito de exigir que todo

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agente público prestasse conta de sua – exigência de lei anterior e autoridade
administração. Nenhuma determinação competente, para sentenciar alguém;
nesse sentido foi incluída na Constituição – independência do poder judicial;
imperial. Apenas o art. 15, § 6o, mandava – igualdade de todos perante a lei;
que, na morte do imperador, ou vacância – acesso de todos os cidadãos aos cargos
do trono, procedesse a Assembléia Geral o públicos;
exame da administração que acabou, para – proibição de foro privilegiado;
reformar os abusos nela introduzidos. A – abolição dos açoites, tortura, marca de
Constituição consagrava a irresponsa- ferro quente e todas as penas mais cruéis;
bilidade do Imperador, mas poderia ter – proibição de passar a pena da pessoa
submetido os Ministros ao dever de prestar do delinqüente e, em conseqüência, proibi-
contas aos representantes do povo, já que ção da confiscação de bens e da transmissão
eram responsáveis por qualquer dissipação da infâmia a parentes;
dos bens públicos (art. 133, § 6o). – garantia de cadeias limpas e bem areja-
Desviando-se dos documentos norte- das, havendo diversas casas para separação
americanos (HERSCH, 1972, p. 189-190, dos réus, conforme suas circunstâncias e
196-197), coerente com a opção pela forma natureza de seus crimes;
monárquica de governo, a Constituição de – direito de propriedade;
1824 evitou a menção da idéia de estrita vin- – liberdade de trabalho;
culação de todo governo ao consentimento – inviolabilidade do segredo das cartas;
dos governados. – direito de petição e de queixa, inclusi-
Do constitucionalismo inglês, herdou ve o de promover a responsabilidade dos
a vedação da destituição de magistrados infratores da Constituição;
pelo rei (Act of Settlement, 1701), o direito – instrução primária gratuita.
de petição, as imunidades parlamentares, A Constituição de 25 de março de 1824
a proibição de penas cruéis (Bill of Rights, vigorou até 15 de novembro de 1889, ou
1689) e o direito do homem a julgamento seja, durante mais de 65 anos.
legal (Magna Carta, 1215).
As principais franquias asseguradas 5.3. A primeira Constituição
pela Constituição de 1824 foram as se- Republicana e os direitos humanos
guintes: Com a República, foi instituído o sufrá-
– liberdade de expressão do pensamen- gio direto para a eleição dos deputados,
to, inclusive pela imprensa, independente- senadores, presidente e vice-presidente da
mente de censura; República, estendendo-se, implicitamente,
– liberdade de convicção religiosa e de o preceito aos cargos eletivos estaduais, por
culto privado, contanto que fosse respeita- força da disposição que mandava respeitas-
da religião do Estado; sem os Estados os princípios constitucio-
– inviolabilidade da casa; nais da União (NEQUETE, 1973, p. 17-28).
– proibição de prisão sem culpa for- Seriam eleitores os cidadãos maiores de
mada, exceto nos casos declarados em lei, 21 anos que se alistassem na forma da lei.
exigindo-se contudo, nesta última hipótese, A Constituição excluía do alistamento os
nota de culpa assinada pelo juiz; mendigos, os analfabetos, as praças de pré
– exigência de ordem escrita da autori- e os religiosos sujeitos a voto de obediência.
dade legítima para a execução da prisão, Foi abolida a exigência de renda, prove-
exceto flagrante delito; niente de bens de raiz, comércio, indústria
– punição da autoridade que ordenasse ou artes, como critério de exercício dos di-
prisão arbitrária, bem como de quem a reitos políticos. Contudo, continuando nas
tivesse requerido; mãos dos fazendeiros, como no Império, o

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primado da força econômica e estabelecido até 24 de outubro de 1930, ou seja, durante
o voto a descoberto, o sufrágio direto não quase 40 anos.
mudou as regras de distribuição do poder.
Os coronéis continuaram detendo a política 5.4. Os direitos humanos e a primeira
local. Por meio desta influíam, decisiva- fase da Revolução de 30
mente, na representação parlamentar e na Com a revolução de 30 e o advento
escolha dos titulares das mais altas funções do Decreto no 19.398, de 11 de novem-
públicas. O poderio econômico do campo bro de 1930, adveio o discricionarismo;
mantinha a dependência do comércio, das dissolveram-se o Congresso Nacional, as
profissões liberais e da máquina adminis- Assembléias Legislativas e as Câmaras
trativa aos interesses rurais, fazendo dessas Municipais; a magistratura perdeu suas
forças aliados do fazendeiro, nas questões garantias; foram suspensas as franquias
mais decisivas. constitucionais; o habeas corpus foi ames-
Não obstante essa realidade, que res- quinhado, uma vez que mantido apenas em
tringia o poder a camadas privilegiadas, a favor de réus ou acusados em processos de
primeira Constituição republicana ampliou crimes comuns, excluída a proteção mul-
os Direitos Humanos, além de manter as tissecular nos casos de crimes funcionais e
franquias já conhecidas do Império: os da competência de tribunais especiais;
– extinguiram-se os títulos nobiliár- obscureceram-se os Direitos Humanos.
quicos;
Essa situação permaneceu até o advento
– separou-se a Igreja do Estado e estabe-
da Constituição de 16 de julho de 1934, ou
leceu-se a plena liberdade religiosa;
seja, durante mais de três anos.
– consagrou-se a liberdade de associa-
ção e de reunião sem armas; 5.5. A Constituição de 34
– assegurou-se aos acusados a mais e os direitos humanos
ampla defesa;
– aboliram-se as penas de galés, bani- A Constituição de 1934 restabeleceu as
mento judicial e morte; franquias liberais e ampliou-as:
– criou-se o habeas corpus com a amplitu- – determinou que a lei não prejudicaria
de de remediar qualquer violência ou coa- o direito adquirido, o ato jurídico perfeito
ção por ilegalidade ou abuso de poder; e a coisa julgada;
– instituíram-se as garantias da magistra- – explicitou o princípio da igualdade
tura (vitaliciedade, inamovibilidade e irre- perante a lei, estatuindo que não haveria
dutibilidade de vencimento) mas, expressa- privilégios, nem distinções, por motivo de
mente, só em favor dos juízes federais. nascimento, sexo, raça, profissão própria
A reforma constitucional de 1926 res- ou dos pais, riqueza, classe social, crença
tringiu o habeas corpus aos casos de prisão religiosa ou idéias políticas;
ou constrangimento ilegal na liberdade de – permitiu a aquisição de personalidade
locomoção5. Mas, por outro lado, estendeu, jurídica, pelas associações religiosas, e in-
expressamente, à Justiça dos Estados as ga- troduziu a assistência religiosa facultativa
rantias asseguradas à magistratura federal. nos estabelecimentos oficiais;
A Constituição de 24 de fevereiro de – instituiu a obrigatoriedade de comu-
1891, com as emendas de 1926, vigorou nicação imediata de qualquer prisão ou
detenção ao juiz competente para que a
5
Nisso representou “um retrocesso na curva relaxasse, se ilegal, promovendo a respon-
ascendente da proteção dos direitos subjetivos sob a
sabilidade da autoridade coatora;
República”, como notou Fagundes, M. Seabra, In: A
evolução do sistema de proteção jurisdicional dos direitos – manteve o habeas corpus, para proteção
no Brasil republicano. da liberdade pessoal, e instituiu o mandado

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de segurança, para defesa do direito, certo e – instituição de previdência, mediante
incontestável, ameaçado ou violado por ato contribuição igual da União, do emprega-
manifestamente inconstitucional ou ilegal dor e do empregado, a favor da velhice, da
de qualquer autoridade; invalidez, da maternidade e nos casos de
– vedou a pena de caráter perpétuo; acidentes de trabalho ou de morte;
– proibiu a prisão por dívidas, multas – regulamentação do exercício de todas
ou custas; as profissões;
– impediu a extradição de estrangeiro – reconhecimento das convenções cole-
por crime político ou de opinião e, em tivas de trabalho;
qualquer caso, a de brasileiro; – obrigatoriedade de ministrarem as
– criou a assistência judiciária para os empresas, localizadas fora dos centros
necessitados; escolares, ensino primário gratuito, desde
– determinou às autoridades a expedi- que nelas trabalhem mais de 50 pessoas,
ção de certidões requeridas, para defesa de havendo, pelo menos, analfabetos;
direitos individuais ou para esclarecimen- – criação da Justiça do Trabalho, vincu-
to dos cidadãos a respeito dos negócios lada ao poder Executivo.
públicos; Também cuidou a Constituição de 34
– isentou de imposto o escritor, o jorna- dos direitos culturais, sufragando os se-
lista e o professor; guintes princípios, entre outros:
– atribuiu a todo cidadão legitimidade – direito de todos à educação, com a
para pleitear a declaração de nulidade ou determinação de que esta desenvolvesse,
anulação dos atos lesivos do patrimônio da num espírito brasileiro, a consciência da
União, dos Estados ou dos municípios. solidariedade humana;
A par das garantias individuais, a – obrigatoriedade e gratuidade do en-
Constituição de 1934, inovando no Direito sino primário, inclusive para os adultos, e
brasileiro, estatuiu normas de proteção tendência à gratuidade do ensino ulterior
social do trabalhador: ao primário;
– proibição de diferença de salário para – ensino religioso facultativo, respeitada
um mesmo trabalho. Por motivo de idade, a confissão do aluno;
sexo, nacionalidade ou estado civil; – liberdade de ensino e garantia da
– salário mínimo capaz de satisfazer às cátedra.
necessidades normais do trabalhador; Instituindo a Justiça Eleitoral (art. 82 e
– limitação do trabalho a oito horas di- seguintes) e o voto secreto (art. 52, § 1o),
árias, só prorrogáveis nos casos previstos abrindo os horizontes do constitucionalis-
em lei; mo brasileiro para os direitos econômicos,
– proibição de trabalho a menores de 14 sociais e culturais (art. 115 e segs., art. 148 e
anos, de trabalho noturno a menores de 16 segs.), a Constituição de 34 representaria a
e em indústrias insalubres a menores de 18 abertura de nova fase da vida do país, não
anos e a mulheres; fosse a sua breve vida e a sua substituição
– repouso semanal, de preferência aos pela Carta reacionária de 37.
domingos; A Constituição de 34 – que respeitou os
– férias anuais remuneradas; Direitos Humanos – vigorou até a introdu-
– indenização ao trabalhador dispensa- ção do Estado Novo, a 10 de novembro de
do sem justa causa; 1937, ou seja, durante mais de três anos.
– assistência médica sanitária ao traba-
lhador e à gestante, assegurada a esta des- 5.6. Os direitos humanos no Estado Novo
canso antes e depois do parto, sem prejuízo O Estado Novo institucionalizou o au-
do salário e do emprego; toritarismo. O Parlamento e as Assembléias

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foram fechados. A Carta de 37 previu a – salário mínimo capaz de atender
existência de um Poder Legislativo, mas as às necessidades do trabalhador e de sua
eleições para a escolha de seus membros não família;
foram convocadas. Deteve o Presidente da – participação obrigatória e direta do
República, até a queda do Estado Novo, o trabalhador nos lucros da empresa;
poder de expedir decretos-leis, previsto no – proibição de trabalho noturno a me-
art. 180 da Carta. A magistratura perdeu nores de 18 anos;
suas garantias (art. 177). Um tribunal de – fixação das percentagens de empre-
exceção – o Tribunal de Segurança Nacio- gados brasileiros nos serviços públicos
nal – passou a ter competência para julgar dados em concessão e nos estabelecimentos
os crimes contra a segurança do Estado e de determinados ramos do comércio e da
a estrutura das instituições (art. 172). Leis indústria;
eventualmente declaradas contrárias à pró- – estabilidade do trabalhador, na em-
pria Constituição autoritária, por juízes sem presa;
garantias, ainda assim podiam ser validadas – higiene e segurança do trabalho;
pelo presidente (art. 96, § único, combinado – assistência aos desempregados;
com o art. 180). A Constituição declarou o – obrigatoriedade da instituição, pelo
país em estado de emergência (art. 186), com empregador, do seguro contra os acidentes
suspensão da liberdade de ir e vir, censura do trabalho;
da correspondência e de todas as comunica- – direito de greve;
ções orais e escritas, suspensão da liberdade – liberdade de associação profissional
de reunião, permissão de busca e apreensão ou sindical;
em domicílio (art. 168, letras a, b, c e d). – criação da Justiça do Trabalho como
Em tal ambiente jurídico e político, ramo do Poder Judiciário.
mesmo as garantias individuais mantidas, Foram mantidos os direitos de salário
como exceção das que não representavam do trabalho noturno superior ao do diurno
qualquer risco para o regime autoritário e de repouso nos feriados civis e religiosos,
vigente, perderam sua efetividade. Não inovações da Carta de 37.
estiveram de pé os Direitos Humanos. O No que tange aos direitos culturais,
Estado Novo durou quase oito anos. ampliaram-se os de 34, com o acréscimo
das seguintes estipulações:
5.7. 1946 e a volta do estado de direito – gratuidade do ensino oficial ulterior
Em 1946, o país foi redemocratizado. A ao primário para os que provassem falta
Constituição de 18 de setembro restaurou ou insuficiência de recursos;
os direitos e garantias individuais, que – obrigatoriedade de manterem as em-
foram, mais uma vez, ampliados em com- presas, em que trabalhassem mais de 100
paração com o texto constitucional de 34. pessoas, ensino primário para os servidores
Criou-se, com o art. 141, § 4o, o princípio e respectivos filhos;
da ubiqüidade da Justiça, nestes termos: – obrigatoriedade de ministrarem as
“A lei não poderá excluir da apreciação do empresas, em cooperação, aprendizagem
Poder Judiciário qualquer lesão de direito aos seus trabalhadores menores;
individual”. Segundo Pontes de Miranda – instituição de assistência educacional,
(1960, p. 412), foi a mais prestante criação em favor dos alunos necessitados, para lhes
do constituinte de 46. Foi estabelecida a assegurar condições de eficiência escolar.
soberania dos vereditos do júri e a indivi- A Constituição de 1946 vigorou, formal-
dualização da pena. No que se refere aos mente, até que sobreviesse a Constituição
direitos sociais, também foram ampliados de 1967. Contudo, a partir da Revolução
com a introdução dos seguintes preceitos: de 31 de março de 1964, sofreu múltiplas

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emendas e suspensão da vigência de de e exercício em função por tempo certo
muitos de seus artigos por força dos Atos (art. 14); o de cassar mandatos populares e
Institucionais de 9 de abril de 1964 (poste- suspender direitos políticos (art. 15).
riormente considerado como o de no 1) e 27 Além dessas faculdades, conferiu ainda
de outubro de 1965 (AI-2). o AI-2 ao presidente as seguintes: colocar
A rigor, o ciclo constitucional começado em recesso o Congresso Nacional, as As-
em 18 de setembro de 1946 encerrou-se a sembléias Legislativas e as Câmaras de
1o de abril de 1964, com quase 18 anos de Vereadores (art. 31); decretar a intervenção
duração. federal nos Estados (art. 17). Todos os atos
Sob o império da Constituição de 1946, praticados estariam ao desabrigo do ampa-
estiveram garantidos os Direitos Huma- ro judicial (art. 19).
nos. Foi também estendido aos civis o foro
militar, para repressão de crimes contra a
5.8. Os direitos humanos na
segurança nacional ou as instituições mili-
primeira fase da ditadura
tares (art. 8o). Os poderes dos Atos foram
O Ato Institucional da Revolução de 31 amplamente utilizados, inclusive com a de-
de março deu ao Presidente da República cretação do recesso do Congresso Nacional,
poderes para decretar o estado de sítio em 20 de outubro de 1966, por força do Ato
sem ouvir o Congresso Nacional (art. 6o), Complementar no 23. O Ato Institucional no
suspendeu as garantias constitucionais 2 vigorou até 15 de março de 1967, quando
e legais da vitaliciedade e estabilidade e, entrou em vigor a Constituição decretada e
por conseguinte, também as garantias da promulgada em 24 de janeiro de 1967.
magistratura, pelo prazo de 6 meses (art. O regime instituído pelos Atos Insti-
§ 7o) e deu aos editores do Ato, bem como tucionais de nos 1 e 2 não se compatibiliza
ao presidente da República que seria esco- com as franquias presentes na Declaração
lhido, poderes para, até 60 dias depois da Universal dos Direitos do Homem, pelos
posse, cassar mandatos eletivos populares seguintes fundamentos:
e suspender direitos políticos. Tais atos a) os punidos, a muitos dos quais se
foram colocados a descoberto de proteção imputaram atos delituosos, não tiveram
judiciária (art. 7o, § 4o). o direito de defesa previsto no art. 11 da
O Ato Institucional teria vigência até 31 Declaração;
de janeiro de 1966, mas antes de seu termo, b) o direito de receber dos tribunais na-
em 27 de outubro de 1965, o presidente da cionais competentes remédio efetivo para os
República assinou o Ato Institucional que atos eventualmente violadores dos direitos
então foi denominado de no 2, referendado reconhecidos pela Constituição e pela lei –
pelos seus ministros, no qual se declarava previsto no art. 8o da Declaração – também
que a Constituição de 1946 e as Constitui- foi desrespeitado pelo artigo dos Atos Ins-
ções Estaduais e respectivas emendas eram titucionais que revogou o princípio da ubi-
mantidas com as modificações constantes qüidade da Justiça e excluiu da apreciação
do Ato. judiciária as punições da Revolução;
Todos os poderes excepcionais do pri- c) o tribunal independente e imparcial a
meiro Ato Institucional foram revividos: o que todo homem tem direito não o é aquele
de decretar o presidente o estado de sítio em que o próprio juiz está sujeito a punições
(art. 13); o de demitir, remover, dispensar, discricionárias. Assim, a total supressão das
pôr em disponibilidade, aposentar, trans- garantias da magistratura viola o art. 10;
ferir para a reserva e reformar os titulares d) a exclusão discricionária do grêmio
das garantias constitucionais e legais de político (suspensão de direitos de cida-
vitaliciedade, inamovibilidade, estabilida- dão) contraria o art. 21 que confere a todo

224 Revista de Informação Legislativa


homem o direito de participar do governo Finalmente a Constituição de 67 deter-
de seu país. minou que se impunha a todas as autorida-
des o respeito à integridade física e moral
5.9. Os direitos humanos e a do detento e do presidiário, preceito que
Constituição de 1967 não existia, explicitamente, nas Constitui-
A Constituição de 1967 manteve, em ções anteriores.
linhas gerais, com algumas modificações No que diz respeito aos direitos sociais,
restritivas, os direitos e garantias indivi- a Constituição de 67 inovou no seguinte: in-
duais previstos na Constituição de 1946. clusão do salário-família aos dependentes do
Continuou-se afirmando que a publicação trabalhador, como garantia constitucional,
de livros e periódicos independe de licença proibição de diferença de salários também
do poder público. Contudo, enquanto a por motivo de cor, circunstância a que não se
Constituição de 1946 estabelecera que não referia a Constituição de 46, e supressão da
seria tolerada a propaganda de processos proibição de diferença por motivo de idade e
violentos para subverter a ordem política e nacionalidade, a que se referia a Constituição
social (art. 14, § 5o), a Constituição de 1967 anterior; participação do trabalhador, even-
passou a proibir a propaganda de subver- tualmente na gestão da empresa, redução
são da ordem, sem exigir a qualificação de para 12 anos da idade mínima de permissão
“processos violentos” para a incidência da do trabalho, supressão da estabilidade, como
proibição (art. 150, § 8o). garantia constitucional, e estabelecimento do
Relativamente ao direito de reunião, a regime de fundo de garantia como alternati-
Constituição de 1946, ao determinar que a va; aposentadoria da mulher, aos trinta anos
polícia poderia designar o local para sua de trabalho, com salário integral; proibição
realização, ressalvava que, assim proceden- de greve nos serviços públicos e atividades
do, não a poderia frustrar ou impossibilitar. essenciais, definidas em lei.
A Constituição de 1967 não reproduziu a Também a Constituição de 1967, for-
ressalva. malmente, teve vigência até sua substitui-
Criou a Constituição de 1967 a pena de ção pela Carta de 17 de outubro de 1969.
suspensão dos direitos políticos, declara- Contudo, a rigor, vigorou apenas até 13
da pelo Supremo Tribunal Federal, para de dezembro de 1968, quando foi baixado
aquele que abusasse dos direitos políticos o Ato Institucional no 5.
ou dos direitos de manifestação do pensa- Não obstante a Constituição de 67 – con-
mento, exercício de trabalho ou profissão, tra a tradição constitucional do país – tenha
reunião e associação, para atentar contra a restringido a liberdade de opinião e de
ordem democrática ou praticar a corrupção expressão, deixado o direito de reunião a
(art. 151). Essa competência punitiva do descoberto de garantias plenas e estendido
Supremo era desconhecida pelo Direito o foro militar aos civis nas hipóteses de
Constitucional brasileiro. crimes contra a segurança interna, além
O foro militar, na mesma linha da de alguns recuos no campo dos direitos
emenda constitucional ditada pelo Ato sociais, não se pode ver, nos seus disposi-
Institucional no 2, estendeu-se aos civis, tivos, afronta à Declaração Universal dos
nos casos expressos em lei para repressão Direitos do Homem. Sobretudo porque
de crimes contra a segurança nacional ou manteve as garantias da magistratura; e
as instituições militares (art. 122, § 1o). Pela o Poder Judiciário, independente – se a
Constituição de 46, o civil só estaria sujeito à Constituição tivesse tido vida mais longa
jurisdição militar no caso de crimes contra a –, poderia harmonizar os preceitos de re-
segurança externa do país ou as instituições dação restritiva com o catálogo de Direitos
militares (art. 108, § 1o). Humanos.

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5.10. Os direitos humanos sob o votada). Tendo a Carta de 1969 mantido
Ato Institucional no 5 a vigência do Ato Institucional no 5 (art.
182), continuou inalterável o quadro dos
O Ato Institucional no 5 repetiu todos os
Direitos Humanos, decorrente da edição
poderes discricionários conferidos ao presi-
do referido Ato.
dente pelo AI-2 e ainda ampliou a margem
de arbítrio: deu ao governo a prerrogativa
de confiscar bens e suspendeu a garantia 6. A vinculação histórica dos direitos
do habeas corpus nos casos de crimes políti- humanos com o Poder Judiciário
cos, contra a segurança nacional, a ordem Para uma visão histórica dos Direitos
econômica e social e a economia popular. Humanos no curso da evolução constitu-
Como nos Atos anteriores, excluiu-se a cional do país, será conveniente elegermos
possibilidade de exame judiciário das me- um indicador. Esse procedimento conduz
didas aplicadas. à exatidão da análise e facilita um exame
O regime do AI-5 não se coadunava com global e sintético da matéria. Acredito seja
a vigência dos Direitos Humanos: como os indicador expressivo o exame das garantias
Atos 1 e 2, desprezou os artigos 8o, 10, 11 do Poder Judiciário. Na verdade, sendo o
e 21 da Declaração Universal dos Direitos Judiciário o principal tutor das liberdades
Humanos, já examinados. Afrontou, além civis, a sorte dessas liberdades está direta-
desses artigos, também o de no 18 – “nin- mente ligada à posição do Judiciário dentro
guém será arbitrariamente privado de sua da estrutura constitucional. Por outro lado,
propriedade” – pois a investigação prevista a supressão das garantias da magistratura
no art. 8o do AI-5, para os casos de confisco (1930, 1937, 1964, 1965 e 1968) sempre
de bens, sem dar garantias de defesa ao pre- acompanhou, como acabamos de ver, a
judicado, não exclui o caráter discricionário supressão de outras liberdades públicas.
da medida. E o próprio AI-5 o reconheceu No Império, os juízes eram perpétuos
quando dispõe no parágrafo único do art. 8o (art. 153 da Constituição de 1824). Só por
que, provada a legitimidade dos bens, far- sentença perdiam o lugar (art. 155). Mas não
se-á a restituição. Apenas é de se observar eram inamovíveis (art. 153). O Imperador
que a simples restituição, numa tal hipótese, podia suspendê-los por queixas contra eles
não satisfazia o Direito e a Justiça. feitas, procedendo audiência dos mesmos
Entretanto, a mais grave incompatibili- juízes, informação necessária, e ouvido o
dade entre o AI-5 e os Direitos Humanos Conselho de Estado (art. 154).
está na supressão do habeas corpus para A Constituição de 1891 instituiu ex-
crimes políticos e outros. Proibindo a apre- pressamente as garantias da magistratura
ciação judicial da prisão, o AI-5 negava re- (vitaliciedade, inamovibilidade e irredu-
médio contra a prisão arbitrária, tornando tibilidade de vencimentos) apenas em
letra morta o art. 9o da Declaração, redigido favor dos juízes federais. A vitaliciedade
nestes termos: “ninguém será arbitraria- e a irredutibilidade de vencimentos foram
mente preso, detido ou exilado”. assegurados pelo art. 57 e § 1o. A inamo-
Em 17 de outubro de 1969, foi outorgada vibilidade, que havia sido tratada no art.
nova Carta ao país, embora formalmente 2o do Decreto no 848, de 11 de outubro de
com a designação de Emenda à Consti- 1890, foi garantida, em preceito genérico,
tuição de 1967. Na verdade, a Carta de pelo art. 74 da Constituição.
1969 não pode, cientificamente, ser consi- Quanto a garantias da magistratura
derada uma emenda constitucional pois estadual, a Constituição silenciou, pois, a
sua origem (Carta outorgada) foi diversa organização das justiças estaduais ficou de-
da Constituição originária (Constituição legada às próprias unidades da Federação;

226 Revista de Informação Legislativa


e nem todas perfilharam por uma linha de federal, quer local (art. 7o, I, e, e art. 64).
segurança às magistraturas locais. Com o Estado Novo, a Constituição de 10
O Supremo, em 25 de maio de 1918, de novembro estatuiu no art. 177: “Dentro
afirmou que, na Federação Brasileira, todos do prazo de sessenta dias a contar da data
os juízes eram vitalícios. Argumentava-se desta Constituição, poderão ser aposen-
que as garantias estavam implícitas em tados ou reformados de acordo com a
razão do art. 63 que determinava fossem legislação em vigor os funcionários civis
os Estados regidos pela Constituição e leis e militares cujo afastamento se impuser, a
que adotassem, respeitados os princípios juízo exclusivo do Governo, no interesse
constitucionais da União. do serviço público ou por conveniência
No Estado de Minas Gerais, a Lei Cons- do regime”. A faculdade consubstanciada
titucional no 5, de 13 de agosto de 1903, nesse artigo foi restabelecida, por tempo
criou um Tribunal de Remoções constituído indeterminado, pela Lei Constitucional no
pelos presidentes do Senado e da Câmara e 2, de 16 de maio de 1938.
pelo procurador-geral do Estado, para deci- A Constituição de 46 restabeleceu as
dir sobre a remoção compulsória dos juízes. garantias do Poder Judiciário (art. 95).
O Supremo Tribunal Federal, em acórdão O Ato Institucional de 9 de abril de 1964
de 19 de dezembro de 1923, julgou não ser (AI-1) cassou as garantias pelo prazo de seis
manifestamente inconstitucional esse ór- meses (art. 7o). O AI-2 renovou a medida,
gão, vez que a Constituição só garantia aos por prazo indeterminado (art. 14). A Cons-
juízes a vitaliciedade e a irredutibilidade tituição de 67 restaurou a inviolabilidade
de vencimentos, não a inamovibilidade. do Judiciário (art. 108). O Ato Institucional
Só em 3 de agosto de 1925, o Supremo veio no 5, de 13 de dezembro de 1968, no seu art.
a fulminar, como inconstitucional, aquele 6o, novamente colocou os magistrados a
Tribunal (NEQUETE, 1973, p. 17-28). descoberto de punições discricionárias.
A reforma constitucional de 1926 esten- Em resumo, os juízes, durante todo o
deu, expressamente, à Justiça dos Estados Império, gozaram da vitaliciedade. Procla-
as garantias asseguradas à magistratura mada a República, foram expressamente
federal (art. 6o, inc. II, letra i). Com o adven- deferidas aos magistrados federais as ga-
to da Revolução de 30, o art. 3o do Decreto rantias de vitaliciedade, inamovibilidade e
no 19.398, de 11 de novembro de 1930, que irredutibilidade de vencimentos. Quanto à
instituiu o Governo Provisório, estabeleceu: Justiça Estadual, nem todas as unidades fe-
“O Poder Judiciário Federal, dos Estados, derativas asseguraram inamovibilidade aos
do Território do Acre e do Distrito Federal, juízes. Só em 1925 o Supremo proclamou
continuará a ser exercido na conformidade que a tríplice garantia beneficiava também
das leis em vigor, com as modificações os magistrados estaduais. A mesma linha foi
que vierem a ser adotadas de acordo com seguida pelas Constituições de 1934, 1946 e
a presente lei e as restrições que desta lei 1967. Em 1930, 1937, 1964, 1965 e 1968, quan-
decorrerem desde já”. do da edição de atos autoritários, houve
Com o Decreto no 19.656, de 3 de feverei- suspensão de garantias da magistratura.
ro de 1931, reorganizado provisoriamente, No curso de toda a História do Brasil,
o Supremo Tribunal Federal, reduziu para a contar da constitucionalização do país,
11 o número de seus ministros. O Decreto após a Independência, os juízes gozaram de
no 19.711, de 18 do mesmo mês e ano, decla- vitaliciedade, ou das três garantias, durante
rou aposentados seis ministros, alegando 132 anos (arredondando). Durante 22 anos
imperiosas razões de ordem pública. (em números redondos), os juízes foram
A Constituição de 34 acolheu, ampla- privados de todas as suas garantias. Duran-
mente, as garantias da magistratura, quer te 66 anos (com desprezo de meses e dias),

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além de gozar da vitaliciedade, gozaram contra o legislador ordinário e contra o
também das duas outras garantias (com poder constituinte reformador, inserindo-
reservas, no período em que em alguns os entre as cláusulas pétreas.
Estados houve dúvidas sobre as franquias A Constituição traz o catálogo de di-
dos juízes estaduais em períodos curtos reitos fundamentais cuja satisfação é dada
dentro de fases discricionárias). preponderantemente pelo legislador e pelo
A revisão histórica a que acabamos de juiz. Muitos dos direitos fundamentais cons-
proceder permite-nos concluir, à vista de tantes do catálogo, bem como os inseridos
nossa evolução constitucional, que a opção fora dele, foram de alguma maneira imple-
do Brasil, desde o Império, foi pelo Estado mentados ou satisfeitos; outros, ainda não.
de Direito. E a partir de 1934, pelo Estado Os Direitos Humanos ou Fundamentais
Social de Direito. Estivemos por muito ganharam relevo entre nós com a Consti-
mais tempo sob a égide do Estado Cons- tuição de 1988, a começar pela topologia.
titucional de Direito do que sob governos O rol foi inserido no início, no artigo 5o,
discricionários. com a elevação da dignidade humana a
A simples subsistência das franquias fundamento do Estado Democrático de
individuais não preenche os anseios e ne- Direito no artigo 1o.
cessidades do povo. As franquias, por si Os diversos ramos do Direito – civil,
só, conduzem a uma democracia relativa, penal, administrativo, constitucional, pro-
elitista, permitindo a permanência da mar- cessual etc. – encontram-se entrelaçados
ginalização econômica, social e cultural, por um vínculo de coerência entre eles.
enquanto a integração jurídica e política é Destacam-se o constitucional e o processu-
caminho para a integração total. al; o primeiro, por ser a principal fonte do
A vigência dos Direitos Humanos no Direito, tanto formal – norteando a criação
país, realizando um ideal supranacional de das leis – quanto material, positivando
ética humanitária, realiza também a vocação direitos; o segundo porque é pelo processo
nacional do Brasil. Nação supõe individua- que se aplica e realiza o direito material,
lidades respeitadas, valorização da pessoa, sendo aquele instrumento deste.
comunhão livre de vontades em torno de Nota-se que a vinculação do direito pro-
objetivos permanentes. Nação só é possível cessual com o constitucional tem dupla im-
dentro da liberdade, no Estado de Direito. portância, a da Constituição como principal
fonte do Direito, inclusive o processual; e a
da necessidade do processo para aplicação
7. Dos meios de proteção aos direitos
e realização dos direitos e garantias assegu-
Alguns direitos, dada a sua fundamenta- rados diretamente na Constituição.
lidade, merecem maior atenção do Estado. Fala-se em direito processual consti-
A fundamentalidade pode ser observada tucional (MITIDIERO; ZANETI, 2004, p.
sob dois ângulos: no sentido formal e no 31) para designar o conjunto de regras
sentido material. O primeiro vincula-se ao constitucionais que dispõem sobre proces-
sistema constitucional positivo. O segundo so. É sob a luz dessas normas que se deve
sentido relaciona-se com a repercussão dos enxergar o processo, a fim de que a vontade
direitos fundamentais sobre a estrutura do da Constituição seja concretizada, com os
Estado e da sociedade. Direitos Humanos respeitados e as garan-
A proteção especial e a dignidade dos tias constitucionais observadas.
direitos fundamentais são conferidas pelo Mitidiero e Zaneti (2004, p. 33) classi-
Estado, por meio da Constituição, tanto ficam as normas constitucionais relativas
quando dá aplicação imediata às normas a processo em três grupos: a) princípios e
a eles relativas, quanto quando os protege garantias constitucionais do processo; b)

228 Revista de Informação Legislativa


jurisdição constitucional das liberdades; ma da lei, a defesa do consumidor” (CR, 5o,
c) organização judiciária. No primeiro es- XXXII). O próprio texto – “na forma da lei” –
tão compreendidos: o acesso à justiça (5o, indica a necessidade de lei para efetividade
XXXV, LXXIV); o devido processo legal e satisfação do direito. Podemos considerar
(5o, LIV); o contraditório e ampla defesa como satisfeito esse direito com a vigên-
(5o, LV); o juiz natural (5o, XXXVII e LIII); cia das Leis 8.078/90 (CDC); 8.884/94 e
e motivação das decisões judiciais (93, IX). 8.979/95 (infrações relacionadas à ordem
No segundo grupo, alinham-se as ações econômica); e Decreto 2.181/97 (Sistema
constitucionais – Habeas Corpus, Mandado Nacional de Defesa do Consumidor). Isso
de Segurança, Habeas data, Mandado de não significa que nada mais haja a ser feito;
Injunção, Ação Popular e Ação Civil Pú- os meios de proteção precisam ser aperfei-
blica; e o controle judicial dos atos norma- çoados e ampliados cada vez mais.
tivos – difuso e concentrado – Ação Direta O mesmo não se pode afirmar com rela-
de Inconstitucionalidade, Ação Direta de ção à norma que se extrai do texto inserto
Inconstitucionalidade por Omissão, Ação no artigo 5o, XXIII, da mesma Constituição
Direta de Constitucionalidade e Ação por – “a propriedade atenderá a sua função
Descumprimento Preceito Fundamental. social”. Nem mesmo o alcance da expressão
No terceiro grupo, estão as normas relativas função social encontra-se definido. Doutri-
à organização judiciária. na e jurisprudência enfrentam dificuldades
A norma, em existindo, deverá ser váli- para fazê-lo. Muitas são as indústrias que
da e eficaz. Sendo válida e eficaz, deve ter poluem o ambiente; pode-se dizer que elas
efetividade, para não ser inócua. Os direitos cumprem sua função social porque geram
fundamentais são protegidos por garantias empregos? Igual pergunta cabe para as
legislativas, não judiciais e judiciais. Entre propriedades rurais que não conservam
as garantias judiciais, o constituinte inseriu adequadamente o solo, poluem e degradam
os chamados remédios constitucionais. as nascentes e cursos d’água.
Procuraremos, doravante, discorrer sobre Entre os direitos fundamentais satisfei-
a satisfação, efetividade e remédios prote- tos e os não-satisfeitos, encontram-se os que
tores dos direitos fundamentais. estão parcialmente satisfeitos. São aqueles
Não basta o constituinte reconhecer de- que estão parcialmente regulamentados,
terminado direito fundamental, inserindo-o havendo omissão do legislador. Podemos
no texto constitucional; é preciso que o citar, entre os direitos que se encontram
legislador ordinário o implemente criando nessa situação, o de acesso à justiça.
a lei, quando necessário. De igual modo, o A expressão “acesso à justiça” abrange
Estado-Administração deve estar prepara- muito mais do que o mero acesso ao Po-
do para garantir o exercício do direito pelo der Judiciário, do que a possibilidade de
titular do mesmo. Por fim, o Estado-juiz há ser admitido a um processo. Essa acepção
de realizar o direito para o jurisdicionado, restrita do princípio da inafastabilidade
quando requerido em face de ameaça ou da apreciação pelo Poder Judiciário (CR,
violação. 5o, XXXV) deve ser afastada, para dar-lhe
Quando o legislador cria a lei, remo- uma interpretação ampla.
vendo eventual obstáculo ao exercício do O Estado, ao chamar para si a res-
direito, e o Estado-Administração oferta ponsabilidade de distribuir justiça, com
os meios idôneos para tanto, pode-se dizer exclusividade, assumiu a obrigação não
que o direito encontra-se satisfeito, ou que só de declarar o direito e aplicar a lei ob-
há satisfação do direito. jetiva, mas também de prover a Justiça,
A vigente Constituição da República viabilizando o acesso à ordem jurídica
assegura que “o Estado promoverá, na for- justa, entendida esta como uma Justiça

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igual, dialética, cooperativa e realizada em textos que encerrem promessas mais ou me-
contraditório, permitindo às partes usarem nos vagas, cuja aplicação no âmbito jurídico
todos os meios e instrumentos necessários interno deixa às vezes muito a desejar.
para sustentarem suas razões e produzirem A proclamação de direitos, por si
suas provas, influindo sobre a formação do mesma, tem um valor pedagógico. Um
convencimento do juiz. documento solene, assinado pela quase
Nas palavras de Mauro Cappelletti e totalidade dos Estados, na época de sua
Bryant Garth, in Acesso à Justiça, (tradução elaboração, e subscrito, implicitamente, por
de Ellen Gracie Northfleet, editora Sergio todos que participam da ONU – como é o
Antonio Fabris), a efetividade perfeita no caso da Declaração Universal dos Direitos
contexto de um dado direito substantivo do Homem –, carrega uma presunção de
poderia ser expressa como a completa verdade, pelo amplo consenso a respeito
“igualdade de armas” – a garantia de que a de seus termos. Exerce, assim, a Declaração
conclusão final depende apenas dos méritos influência efetiva na opinião pública de
jurídicos relativos das partes antagônicas, todos os países.
sem relação com diferenças estranhas ao Contudo, a Declaração sofre o perigo de
direito e que, no entanto, afetam a afirma- um desgaste contínuo quando se percebe o
ção e reivindicação dos direitos. abismo existente entre os seus postulados e
O acesso à justiça no Brasil foi bastante a realidade do mundo. O contínuo desres-
facilitado com a instituição dos juizados peito aos Direitos Humanos, praticado sem
especiais, gratuitos e céleres, atendendo às remédio por governos, gera a descrença na
necessidades dos pobres; com a instituição efetividade desses Direitos. Reclama-se,
das Defensorias Públicas; e com a gratui- assim, como reivindicação incontornável
dade da justiça sempre que necessário. da consciência jurídica internacional, a
Porém, o legislador ainda não encontrou efetivação dos Direitos Humanos, a cria-
um mecanismo idôneo para fazer com que a ção de mecanismos que os promovam e os
jurisdição seja prestada em tempo razoável salvaguardem, o império desses Direitos
em qualquer processo. Outrossim, não ga- na civilização atual.
rante ainda o acesso integral, uma vez que A eficácia dos direitos fundamentais
não há gratuidade para todas as despesas, perante o Estado chama-se eficácia vertical,
como as realizadas com perícia. enquanto a eficácia dos mesmos direitos
Como nota Heleno Cláudio Fragoso sobre os particulares denomina-se eficácia
(1977, p. 123), acha-se definitivamente horizontal. Os direitos fundamentais se
ultrapassada a fase das declarações de dirigem preponderantemente contra o
direitos e liberdades fundamentais. O que Estado, especialmente contra o legislador
constitui hoje preocupação universal é a e o juiz. Não se pode negar que a decisão
criação de um sistema jurídico que assegu- do juiz incide sobre a esfera jurídica do
re, efetivamente, a observância dos direitos particular. Assim, este pode controlar tan-
e liberdades proclamados. to a lei quanto a decisão do juiz com base
Refere-se o autor, nessa passagem, for- nos direitos fundamentais. Sendo assim,
çosamente, a um certo grupo de direitos deve o juiz, ao proferir uma decisão, levar
humanos, pois que há aqueles outros direi- em consideração a incidência dos direitos
tos que o sistema jurídico por si só não está fundamentais sobre o particular, o que leva
habilitado para prover. Karel Vasak (1978), a concluir que os direitos fundamentais têm
na mesma linha de pensamento, pondera valor perante os sujeitos privados indepen-
que parece estar completo o trabalho legis- dentemente de lei.
lativo internacional em matéria de direitos Os direitos fundamentais também
humanos, pois de nada adianta multiplicar atuam como mandamento de tutela, obri-

230 Revista de Informação Legislativa


gando o legislador a proteger um cidadão por exemplo, uma entre duas formas de
do outro. Inexistindo ou sendo insuficiente execução. Nessa hipótese, diante do caso
essa tutela, o juiz deve aplicar o direito concreto, o juiz deve escolher a melhor, que
fundamental sobre as relações jurídicas é a única correta.
entre particulares. A efetividade da tutela jurisdicional
No direito brasileiro, além dessa eficácia como direito fundamental relaciona o
mediata dos direitos fundamentais sobre particular com o Estado – eficácia vertical
as relações jurídicas, há também a eficácia – sendo que a eficácia que diz respeito aos
imediata e direta, como na incidência dos particulares é lateral e não horizontal.
direitos fundamentais na regulação das re- Sendo a efetividade da tutela jurisdi-
lações entre empregador e empregado. Ou cional um direito fundamental em face do
seja, os direitos fundamentais incidem dire- Estado, ainda que com repercussão sobre os
tamente sobre os particulares, mas também particulares, o juiz, ao prestá-lo escolhendo
incidem indiretamente, por uma decisão uma alternativa ou suprindo uma omissão
judicial, caso em que a eficácia é mediata. do legislador, deve aplicar as sub-regras da
Essa eficácia mediata entre as partes não é adequação e da necessidade, em respeito a
lateral. Há, na hipótese, eficácia horizontal – eventual direito fundamental do réu.
sobre os particulares – e mediata ou indireta O avanço na concessão do direito à
porque mediada pelo juiz, ou seja, eficácia efetividade da tutela jurisdicional é inver-
vertical em relação ao juiz e eficácia horizon- samente proporcional à restrição no direito
tal mediata diante dos particulares. de defesa. Assim é que o procedimento de
De modo diverso, quando o direito fun- cognição parcial implica a restrição à alega-
damental incide sobre os órgãos estatais, ção; a tutela antecipatória impõe restrição
vinculando-os no seu modo de proceder à produção de prova. Porém, são válidos
e atuar, ainda que perante o particular, porque são provimentos que buscam dar
mas sem se projetar sobre relações entre efetividade à tutela jurisdicional. Outros
sujeitos privados, a eficácia é apenas em provimentos existem com o mesmo escopo,
face do órgão estatal. É o que ocorre com como os executivos e mandamentais, que
o juiz em relação ao direito fundamental à podem ser adotados em diversos meios de
efetividade da tutela jurisdicional. execução; a possibilidade de o juiz conceder
A decisão, que tem por objeto um direito provimento e meio de execução diversos do
fundamental de um particular, faz essa pedido; a possibilidade e o juiz, de ofício,
decisão incidir sobre o particular. Essa é a mesmo após o trânsito em julgado da sen-
eficácia horizontal mediata. No entanto, no tença, conceder meio executivo diferente
mesmo processo, há o direito à efetiva tute- do fixado na sentença.
la jurisdicional, independente do objeto da Diante do direito fundamental à tutela
demanda; essa eficácia diz-se que é vertical jurisdicional efetiva, além dos provimentos
com repercussão lateral. previstos em lei acima mencionados, outros
Resta demonstrado, então, que o direito podem ser adotados pelo juiz para suprir
fundamental à tutela jurisdicional efetiva é omissão do legislador.
dirigido contra o Estado e tem repercussão O conceito de efetividade da norma
sobre a esfera jurídica das partes. Consiste identifica-se com o da eficácia social, que
tão-somente em o juiz observar o direito é sua real obediência e aplicação no plano
fundamental na sua atividade de prestar a dos fatos. Difere de eficácia jurídica, que
tutela jurisdicional, fazendo-o adequada- traduz a aplicabilidade, exigibilidade ou
mente. O mesmo não ocorre quando o juiz executoriedade da norma, como possibi-
tem de escolher entre duas alternativas para lidade de sua aplicação jurídica (SARLET,
a prestação da tutela jurisdicional, como, 2006, p. 246).

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 231


Uma norma pode possuir eficácia jurí- dano irreparável ou de difícil reparação; ou
dica – como, por exemplo, revogar normas quando houver abuso de direito de defesa,
anteriores – mas não alcançar efetividade, ou ainda, quando for incontroversa deter-
isto é, não ser socialmente eficaz, caso não minada parcela da demanda.
seja cumprida no plano social (SILVA O tempo que o processo leva tramitando
apud SARLET, 2006). A eficácia social ou constitui ônus para o autor, se ele for real-
efetividade diz respeito à efetiva aplicação mente o titular do direito. Por isso, havendo
da norma aos casos concretos (FERRAZ; verossimilhança de sua alegação, é justo
TEMER apud SALET, 2006). que o tempo seja encurtado, antecipando-se
A norma que se extrai no texto do inciso a tutela. Isso é efetividade.
XXXV do artigo 5o da CR é a que garante Outrossim, não é razoável fazer com
a todos não só o direito de ir a juízo, mas que o autor suporte a demora do processo
também o de obter uma prestação jurisdi- na hipótese de abuso do direito de defesa
cional efetiva. O direito de ação conferido ou quando possível definir, no curso do
pelo Estado, em razão do monopólio da processo, a parcela da demanda. A defesa
jurisdição decorrente da proibição de auto- do réu é um direito cujo exercício não deve
tutela, não se restringe à solução do mérito. extrapolar os limites da razoabilidade, para
É preciso que o Estado-juiz reconheça o não torná-la injusto.
direito material envolvido no litígio e o Resta evidenciado que a tutela jurisdi-
realize. Assim, o direito à sentença coincide cional efetiva, tempestiva e, quando neces-
com o direito ao provimento e aos meios sário, preventiva, é um direito fundamental.
executivos capazes de dar efetividade ao O direito à prestação jurisdicional efetiva
direito substancial, ou seja, direito à efeti- decorre da própria existência e constitui a
vidade em sentido estrito. contrapartida da proibição da autotutela. A
A efetividade em sentido lato exige que técnica processual a ser utilizada depende
a tutela seja tempestiva, o que significa que, da necessidade do direito material. A efe-
em alguns casos, deve ser preventiva. A tividade exige adequação, devendo esta
expressão “ameaça de direito”, inserta no proporcionar efetividade.
fim do texto do inciso XXXV do artigo 5o da O direito à efetividade da tutela juris-
CR, afasta qualquer dúvida sobre o direito dicional tem natureza positiva, haja vista
à tutela preventiva. consistir no direito de exigir uma prestação
A norma que outorga direito inviolável do Estado. A tutela efetiva exige: técnica
contém implícita a que confere direito à processual adequada (norma processual);
inibição do ilícito. Do contrário, ou seja, se procedimento capaz de viabilizar a parti-
o processo não dispusesse de instrumento cipação; e a própria resposta jurisdicional.
capaz de inibir a tutela, considerando que A técnica adequada à efetividade da tutela
alguns direitos invioláveis são fundamen- jurisdicional é corolário do direito à prote-
tais, o Estado estaria negando o direito fun- ção dos direitos fundamentais, que consiste
damental que reconhece. A pessoa teria seu no cumprimento da obrigação de proteção
direito reconhecido mas estaria impedido que tem o Estado.
de dele desfrutar. Segundo Alexy (apud MARINONI,
As medidas inibidoras da violação do 2004, p. 186), “mientras que los derechos
direito são, portanto, meios de dar-lhe a competencias de derecho privado ase-
efetividade. Outra forma de garantir efeti- guran, sobre todo, la posibilidad de que
vidade ao direito no processo é antecipando puedan realizarse determinadas acciones
a tutela que seria conferida no fim do pro- iusfundamentalmente garantizadas, los de-
cedimento quando a medida for necessária, rechos a procedimiento en sentido estricto
ou seja, quando houver fundado receio de sirven em primer lugar, para la proteccion

232 Revista de Informação Legislativa


de posiciones juridicas existentes frente al luz do direito fundamental à tutela jurisdi-
Estado y frente a terceros”. cional, estando obrigado a extrair da regra
Marinoni cita também a lição de Sarlet: processual sua máxima potencialidade para
“Impõe-se a referência ao fato de que proteger os direitos, sem que viole o direito
sob a rubrica dos direitos a prestações de defesa. O direito à tutela jurisdicional
em sentido amplo, considerando- é, ao mesmo tempo, o direito de iguais
se excluídos os direitos em sentido oportunidades de acesso à justiça e direito
estrito (direitos a prestações fáticas), à efetiva proteção do direito material.
se enquadram fundamentalmente os A efetividade dos direitos fundamentais
direitos a prestações normativas por depende das garantias que os protegem.
parte do Estado, que podem incluir Estas podem ser judiciais e não-judiciais.
tanto direitos a proteção mediante a As garantias dos direitos fundamentais
emissão de normas jurídico-penais, estabelecem-se tanto no plano nacional
quanto o estabelecimento de normas quanto no internacional. Isso porque, nas
de organização e procedimento” palavras de Peces-Barba (1999), as garan-
(SARLET apud MARIONI, 2004). tias dos direitos podem descrever-se como
O dever de proteção do Estado em rela- um conjunto coerente de mecanismos de
ção aos direitos fundamentais tem mais de defesa, que não se esgotam no âmbito de
uma dimensão: o dever de editar normas cada país, mas que têm continuação em
de direito material de proteção; o dever outros, por meio de diferentes instâncias
de editar normas de direito instituindo supranacionais.
técnicas processuais idôneas para efetivar Constituem garantias no âmbito interno:
a proteção; a realização da proteção pelo a separação de funções (poderes), a adoção
Estado-juiz com a decisão sobre direitos do Estado Democrático de Direito, a prima-
fundamentais. zia dos direitos fundamentais, a cláusula
O direito fundamental à efetiva tutela pétrea ou o quorum qualificado e a proteção
jurisdicional requer técnicas processuais jurisdicional, nela incluída a criação de Tri-
idôneas à efetiva tutela de quaisquer di- bunal Constitucional ou com competência
reitos, e não só dos fundamentais. Inclui para a proteção da Constituição.
também os direitos fundamentais que não Podemos classificar as garantias em ge-
requerem proteção, mas somente presta- rais e específicas. As primeiras constituem-
ções fáticas ou prestações sociais. se pelos princípios que definem o Estado,
A prestação da tutela jurisdicional como na formulação “Estado Democrático
efetiva é a realização de um direito fun- de Direito”. Estado de Direito implica limi-
damental. A tutela jurisdicional efetiva tação ao poder por meio do direito, sendo
é necessária à proteção a todos os outros seus instrumentos básicos os direitos fun-
direitos. O legislador – ao instituir a norma damentais e os princípios de organização;
processual adequada – e o juiz – ao zelar implica também a separação das funções
por ela – protegem os direitos, inclusive o (de poderes); a adoção do princípio da lega-
direito fundamental à tutela jurisdicional lidade na administração pública, impondo
efetiva. ao poder público a submissão ao direito; e
A ausência de técnica processual ade- a existência de uma obrigação jurídica de
quada para determinado conflito constitui obediência. A própria fórmula do Estado
hipótese de omissão que viola o direito democrático contém o reconhecimento e
fundamental à efetividade da tutela ju- a garantia de vários direitos, como o de
risdicional. A omissão do legislador não participação.
autoriza a do juiz, que ante aquela, tem o Garantias Específicas são mecanismos
dever de interpretar a legislação existente à de proteção jurídica dos direitos e dividem-

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 233


se, segundo classificação de Perces-Barba 7.2. Garantias de controle e fiscalização
(1999, p. 505) em garantia de regulação; de
São os instrumentos parlamentares des-
controle e fiscalização; de interpretação;
tinados a fiscalizar a aplicação dos direitos
internas ao direito; e judiciais.
fundamentais e o respeito às liberdades
7.1. Garantias de regulação públicas, na atividade dos entes adminis-
trativos. No Brasil, destaca-se o Ministério
Estão vinculadas ao princípio da le- Público com esta atribuição, porém, outras
galidade em sentido amplo e possuem entidades como a Ordem dos Advogados
duas dimensões: a) de desenvolvimento e do Brasil, os Partidos Políticos com re-
aplicação; b) de reforma. As garantias de presentação no Congresso, as Comissões
regulação têm dois aspectos, um relacio- Parlamentares e outros Órgãos têm papel
nado com as fontes dos direitos (garantia relevante na aplicação da Constituição
de desenvolvimento) e outro com sua vin-
como um todo. O próprio cidadão, exer-
culação (garantia de aplicação).
cendo seu direito de petição, pode controlar
A questão das fontes é de grande relevân-
e fiscalizar a aplicação da Constituição e o
cia, porquanto uma ordenação rigorosa das
respeito aos direitos fundamentais.
competências e limites do desenvolvimento
normativo constitui a primeira garantia das 7.3. Garantias de interpretação
liberdades, segundo Prieto Sanchís, citado
por Perces-Barba (1999, p. 506). Refere-se aos diversos mecanismos pre-
A constituição pode estabelecer que vistos no Direito, destinados a garantir que
alguns direitos nela previstos sejam regula- o mesmo se faça para favorecer seu exer-
mentados por lei, que devem ser elaboradas cício. Apresentam duas projeções gerais: a
pelo parlamento, sendo, em tese, a expres- dos poderes públicos e a dos privados. A se-
são da vontade dos cidadãos. A garantia de gunda está em estreita conexão com o tema
aplicação se relaciona com o grau de vincu- da presença dos direitos fundamentais nas
lação dos direitos. Se a constituição prevê relações com os particulares; enquanto
que os direitos fundamentais vinculam a aquela não se limita à não transgressão,
todos os poderes públicos, sua aplicação é mas alcança a interpretação conforme seu
direta, independe de regulamentação. As- sentido.
sim, todos os cidadãos podem obter a tutela A constituição espanhola determina que
judicial desses direitos embora não tenham a interpretação dos direitos fundamentais
sido objeto de regulamentação. e das liberdades reconhecidas na mesma
Quando a constituição dispõe que seja conforme a Declaração Universal dos
determinadas normas fontes de direitos Direitos Humanos.
informarão a prática judicial e a atuação Também esta garantia tem duas dimen-
dos poderes públicos está impondo uma sões, segundo Perces-Barba (1999, p. 511):
obrigação negativa, proibindo que se esta- a garantia de interpretação a partir dos
beleçam normas contrárias a esses direitos, direitos; e a garantia de interpretação dos
isso independe de regulamentação. direitos. A primeira se refere à projeção
A dimensão das garantias de regulação, dos direitos e liberdades no restante das
denominadas por Peces-Barba (1999, p. 507) normas. É uma garantia indireta segundo
de garantias de reforma, traduz-se nos me- a qual a interpretação de todas as normas
canismos constitucionais referentes à pos- dentro do ordenamento deverá fazer-se
sível reforma das disposições que contêm em conformidade com os direitos funda-
os direitos fundamentais. Varia conforme mentais. Aplica-se a máxima “in dubio
o sistema jurídico, mas, em regra, exige o pro libertate”. A segunda – a garantia de
quorum qualificado. interpretação dos direitos – é uma garantia

234 Revista de Informação Legislativa


direta e afeta propriamente a interpretação A satisfação do direito à tutela juris-
dos direitos. Deve obediência a dois tipos dicional efetiva exige mais que o proce-
de critérios: gerais e específicos. Os gerais dimento legalmente instituído, mais que
tomam por base a literalidade, os antece- igualdade de oportunidades de acesso à
dentes históricos, o espírito da lei e sua justiça; exige o procedimento legítimo, o
finalidade, bem como a sistematização de que requer sejam observados os princípios
todo o ordenamento. Os específicos dizem constitucionais que garantam a adequada
respeito ao conteúdo essencial e à confor- participação das partes e do juiz, como: os
midade com as Declarações de Direitos do juiz natural, da igualdade, do contradi-
Humanos e com os tratados e acordos tório, da publicidade e da motivação das
internacionais ratificados pelo país. decisões.
Não obstante a interpretação ocorra
também na doutrina e na aplicação volun- 7.5.1. Técnica processual e
tária do direito, é no processo que se faz procedimento adequado
concretizar compulsoriamente pelo Poder O procedimento é uma espécie de
Judiciário, quando há resistência. técnica processual que visa viabilizar a
7.4. Garantias internas ao direito tutela dos direitos. Embora seja possível
considerar o procedimento como garantia
Essas garantias dizem respeito ao con- de técnica antecipatória, sentenças e meios
teúdo essencial, que é algo interno de cada executivos, pode o mesmo ser analisado
um dos direitos, e se constituem desde essa como algo que se diferencia do procedi-
perspectiva em sua garantia interna. É o mento ordinário de cognição plena e exau-
limite dos limites. Trata-se de um conceito riente, e nesses termos possui importância
de valor absoluto; são os elementos míni- por si só, independentemente das técnicas
mos que fazem reconhecível um direito, processuais nele inseridas.
que impedem seu desaparecimento ou sua Nas palavras de Marinoni (2004, p. 192),
transformação em outra coisa; cada direito “o procedimento, como técnica processual
possui seu conteúdo essencial. autônoma, e assim indiferente à técnica
Trata-se de um desdobramento da ga- antecipatória, sentenças e aos meios execu-
rantia de interpretação, porquanto nessa tivos, somente pode ser visto na perspectiva
fase que se verifica o conteúdo essencial da aceleração da prática dos seus atos e da
de um direito. É dado ao operador do limitação da cognição do juiz”.
direito dar interpretação diversa da literal Há diferença entre “procedimento de
a um texto legal para dele extrair a norma cognição sumária” e “procedimento for-
consentânea com os preceitos da sociedade malmente sumário”. A sumariedade formal
atual, porém, nunca alterando o conteúdo resulta da aceleração da prática dos atos
essencial do direito protegido pela mesma processuais. O procedimento de cognição
norma, ou seja, jamais transformando um sumária – uma das espécies da cognição em
determinado direito em algo diverso. sentido material – não permite o conheci-
mento aprofundado do objeto cognoscível,
7.5. Garantias judiciais enquanto que o procedimento formalmente
Essas garantias constituem o principal sumário – CPC, art. 275 e seguintes –
meio de proteção dos direitos fundamen- sempre possibilita o conhecimento apro-
tais. Podem ser classificadas em ordinárias fundado dos fatos litigiosos, embora em
e constitucionais. A atividade judicial tem tempo inferior àquele que seria gasto pelo
o papel de instrumento garantidor dos procedimento ordinário, o que decorre da
direitos fundamentais por meio da análise aceleração dos atos processuais.
do direito à jurisdição, o que se faz sempre Não é lícito confundir o procedimento
em um processo. de cognição sumária com os procedimentos
Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 235
como a execução privada do Decreto-lei 7.5.4. Direito ao meio executivo adequado
70/66 ou a busca e apreensão do Decreto-
É necessário verificar qual provimento
lei 911/69. Estes não traduzem eficácia,
mandamental e executivo deve ser utiliza-
mas restrição à amplitude da defesa, com
do no caso concreto. Pode o juiz conceder
escopo de conferir tutela mais rápida às
provimento diferente do solicitado, sobre-
instituições financeiras, o que não encontra
tudo, com base no artigo 461 do CPC e 84
respaldo na Constituição da República.
do CDC. Esses artigos e o 461-A do CPC
Diferente é o que ocorre na desapropriação autorizam o juiz, até de ofício, impor meio
com base no Decreto-lei 3.365/41, em que executivo capaz de atender ao direito à tute-
há restrição à defesa, porém justificável la jurisdicional, na fase do cumprimento da
pelo interesse público. sentença quando esta não haja viabilizado
7.5.2. Antecipação de tutela a tutela.
O meio executivo deve, ao mesmo tem-
A técnica antecipatória é um direito do po, proporcionar, em abstrato ou em termos
jurisdicionado e significa direito à possi- de efetividade social, a tutela dos direitos,
bilidade de requerimento e de obtenção e gerar a menor restrição possível à esfera
da antecipação da tutela, isto é, direito à jurídica do réu.
plena e integral efetivação da tutela. São
seus requisitos: receio de dano (CPC, art. 7.5.5. Aplicabilidade imediata do
273, I, 461, § 3o, 461-A; e CDC, 84, § 3o); direito fundamental
abuso do direito de defesa (CPC, 273, II); As normas definidoras dos direitos e
parcela incontroversa da demanda (CPC, garantias fundamentais têm aplicação ime-
273, § 6o). diata; é o que dispõe o artigo 5o, § 1o, da CR.
Marinoni (2004, p. 204) entende ser pos- Qual o alcance dessa norma em relação ao
sível a antecipação de tutela de pagamento direito fundamental à tutela jurisdicional
em dinheiro. E vai mais longe, defendendo efetiva?
a utilização, em caso de necessidade, do O direito fundamental à tutela jurisdi-
expediente da multa para dar efetividade à cional efetiva se dirige contra o Estado mas
tutela antecipatória de soma em dinheiro. repercute sobre a esfera jurídica da parte.
É um direito de eficácia vertical, mas com
7.5.3. Direito ao provimento adequado
eficácia lateral. Assim, importante é men-
A efetiva prestação da tutela exige cionar os princípios da força normativa da
provimento adequado; portanto, falar em Constituição e da efetividade, que devem
direito à tutela é falar em direito ao provi- ser considerados pelo juiz, ao interpretar
mento idôneo para prestá-la. A sentença o direito, levando em consideração os
declaratória não constitui provimento princípios que com ele possam colidir no
adequado diante de ameaça de prática de caso concreto.
ilícito, pois não é capaz de atuar sobre a O princípio da força normativa da
vontade do demandado. Constituição autoriza a otimização da
Da classificação trinária, a sentença eficácia dos direitos fundamentais, diante
condenatória é a única que não basta por si das circunstâncias concretas. O princípio
mesma, porquanto, atrelada aos meios de da efetividade implica que os direitos fun-
execução por sub-rogação previstos em lei. damentais devem ser interpretados em um
Conclui-se, assim, que os provimentos da sentido que lhes confira a maior efetividade
classificação trinária não atende ao direito possível. Isso significa que, em caso de dú-
fundamental à tutela jurisdicional efetiva vida, deve prevalecer a interpretação que
(MARIONI, 2004, p. 211). dê a maior efetividade possível ao direito

236 Revista de Informação Legislativa


fundamental, ou seja, estando o juiz diante entre princípios e regras, consoante a qual
de duas interpretações possíveis para um um conflito entre regras só pode ser solu-
mesmo texto legal, deve adotar aquela que cionado ou bem introduzindo-se em uma
outorgue a maior efetividade possível ao das regras uma cláusula de exceção que eli-
direito fundamental. mine o conflito, ou declarando-se inválida
pelo menos uma das regras; enquanto que
7.5.6. A conformação do procedimento em caso de colisão de princípios, um deve
adequado ao caso concreto ceder ante o outro, sem que isso signifique
Além das regras de direito material, o declarar inválido o princípio que cedeu;
dever de proteção requer também a presta- tampouco faz-se necessária a introdução de
ção jurisdicional e ações fáticas do Estado, cláusula de exceção no mesmo princípio.
como a atuação da Administração Pública Salienta-se que, segundo a doutrina
na proteção do consumidor, da saúde pú- de Alexy (2002, p. 89), havendo conflito
blica e do meio ambiente. entre regras, o problema é de validade,
Além das normas de direito material, a enquanto, na hipótese de conflito entre
proteção, no plano normativo, deve incluir princípios, a questão é de peso. Havendo
normas de direito processual, que também colisão de princípios, um deve ceder diante
constituem mecanismo de proteção dos do outro, conforme as circunstâncias do
direitos fundamentais, preventiva ou res- caso concreto. Registre-se que Humberto
sarcitoriamente. Ávila (2006, p. 118-119) não concorda com
Porém, havendo omissão do legislador, essa doutrina, e sustenta que as regras em
o juiz – contra quem também é dirigido geral também podem ser superadas, desde
o direito fundamental à efetividade da que preenchidos certos requisitos.
tutela jurisdicional – não pode ficar inerte.
7.5.7. Remédios constitucionais
Ele continua tendo o dever de tutelar de
protetores dos direitos fundamentais
forma efetiva os direitos, não obstante a
falta de uma norma processual explícita Na concepção de Othon Sidou (1998, p.
e apropriada para isso. Na hipótese, deve 5), a liberdade não é um direito, mas um
o magistrado interpretar a legislação conjunto de prerrogativas que nascem com
processual existente à luz dos valores da o homem e se desenvolvem em obediência
Constituição da República. Assim, deve a seus anseios, apuramento e idiossincra-
pensar o procedimento em conformidade sias. Não é um direito porque antecede,
com as necessidades do direito material e naturalmente, a manifestação primária da
da realidade social. vida jurídica. O legislador estabelece restri-
O juiz, diante de duas interpretações ções à liberdade individual no interesse da
possíveis para uma mesma regra proces- segurança social. O indivíduo, cuja conduta
sual, na perspectiva constitucional, deve representa um reflexo da sociedade em que
preferir a que garanta maior efetividade à vive, submete-se voluntariamente a essa
tutela jurisdicional, considerando sempre o restrição de liberdade, desde que, fazen-
direito material a ser tutelado e a realidade do coincidir sua vontade com a vontade
social. coletiva e participando da elaboração da
Ainda na hipótese de omissão legislati- ordem jurídico-social, considera-se livre,
va, o juiz pode prestar a tutela jurisdicional como se nenhum obstáculo se antepusesse
efetiva, harmonizando o direito fundamen- à sua liberdade. O conceito de liberdade
tal e o eventual princípio que com ele venha do ser humano tornou-se, portanto, um
colidir. Isso porque os direitos fundamen- prolongamento do conceito de liberdade
tais têm natureza de princípio, e segundo a do grupo social. A ampliação do Estado,
clássica distinção de Alexy (2002, p. 88-89) inclusive para fazer face aos cada vez
Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 237
mais dilatados direitos sociais resultantes o mandado de segurança, a ação popular,
dos progressos modernos, fê-lo ameaçar os recém-criados habeas data e mandado de
a esfera da liberdade do indivíduo, avan- injunção, além do direito de representação
çando a faixa até onde ao jurisdicionado é e de petição.
proibido fazer, para penetrar na área em As garantias, como um todo, protegem e
que transita o seu “poder fazer”. Fez-se amparam o exercício dos direitos coletivos.
necessária a utilização de instrumentos de As garantias ativas protegem e amparam
tutela relativamente enérgicos. não só esses direitos, mas também as pró-
Othon Sidou (1998, p. 10) distingue prias garantias passivas. As garantias dos
“direitos” de “garantias”. Ele define como direitos constituem um anseio universal,
direitos coletivos toda a gama de ações e por isso, consignou-se na Declaração Uni-
eximições a que a criatura humana, agin- versal dos Direitos Humanos da ONU,
do só ou por meios de entes paralelos ou proclamada em 1948, em seu artigo VIII:
ficções jurídicas, possa permitir-se, desde “Toda pessoa tem direito a um recuso
que a lei não impeça. Ele usa a expressão efetivo ante os tribunais nacionais
“direitos coletivos” como forma homôni- competentes, que a ampare contra
ma de “direitos fundamentais”, “direitos atos violatórios de seus direitos fun-
do homem” e “direitos individuais”; e os damentais reconhecidos pela consti-
divide em absolutos e relativos. Classifica tuição e pela lei”.
como absolutos os que se fazem valer por Nessa esteira de compreensão, o cons-
si, os que acompanham o homem em qual- tituinte brasileiro de 1987/1988 dotou os
quer regime constituído, e sua proscrição titulares de direitos fundamentais de insti-
ou seu alheamento contribuiria para o tutos destinados a protegê-los, conhecidos
esfacelamento do próprio Estado. São eles, como remédios constitucionais, e que são,
segundo Sidou: o de igualdade perante a lei, na verdade, as garantias, que mencionare-
a inviolabilidade do domicílio e da corres- mos a seguir.
pondência, o acesso à educação e à saúde, o O direito à liberdade de locomoção foi
provimento da subsistência, a obtenção de protegido pelo instituto do habeas corpus
socorro em caso de calamidade. Chama-os (CR, 5o, LXVIII) contra violência ou coação
de direitos fundamentais propriamente por ilegalidade ou abuso de poder. O di-
ditos. Assevera Sidou que todos os demais reito de ir, vir e permanecer constitui um
direitos constitucionais são relativos. direito fundamental dos mais relevantes.
Garantias constitucionais, para o men- Por isso, o habeas corpus configura impor-
cionado autor, são as regras de autolimita- tante garantia processual desse direito
ção na conservação dos direitos coletivos e fundamental.
que ele legitima, ou seguindo princípios de Qualquer direito, líquido e certo, não
conduta por ele próprio estabelecidos com amparado por habeas corpus ou habeas data
o ânimo de cumprir, ou por via de instru- recebeu a proteção do mandado de segu-
mentos postos em mãos dos administrados rança contra ilegalidade ou abuso de poder
e de conhecimento atribuído a um dos ór- de autoridade pública ou de agente de
gãos do Estado (SIDOU, 1998, p. 11). pessoa jurídica no exercício de atribuições
As garantias são classificadas por Sidou do poder público (CR, 5o, LXIX e LXX).
(1998, p. 13) em ativas e passivas. Estas são: Trata-se de meio constitucional com escopo
a igualdade perante a lei, o devido processo de proteger direito individual ou coletivo,
legal, a inexistência de tribunais de exceção, líquido e certo. Tem certeza jurídica pro-
a punição de qualquer discriminação aten- cessual, caracterizando-se como ação civil
tatória dos direitos e liberdades fundamen- de rito sumário e especial (MEIRELLES,
tais. Garantias ativas são: o habeas corpus, 1998, p. 29).

238 Revista de Informação Legislativa


O Mandado de Segurança constitui rio. Aliás, vinte anos após a promulgação da
importante garantia dos direitos, inclusive Constituição da República, nenhum direito
dos direitos fundamentais, por óbvio, ser- deveria estar na pendência de tais normas.
vindo como meio idôneo de impugnação O legislador ordinário tinha o dever de já
a atos ou omissões ilegais de autoridades, as haver criado. Entretanto, muitas ainda
inclusive judiciais. É certo que quanto a não o foram, autorizando o prejudicado a
estas, somente é admissível se o ato não lançar mão do mandado de injunção. Sua
for impugnável por meio de recurso ou função é permitir ao impetrante o exercício
correição eficaz. do direito obstado pela ausência de lei,
São requisitos do mandado de segu- porém a interpretação que vem sendo dada
rança direito líquido e certo, violado ou pelo STF, de que o órgão omisso deve ser
ameaçado por ato ou omissão ilegal ou com apenas notificado de sua omissão, anula
abuso de poder, de autoridade pública ou esse importante instrumento.
de agente de pessoa jurídica no exercício de O acesso de todos à justiça constitui
atribuição do Poder Público. Assim, o ato de exercício do direito fundamental da igual-
um diretor de escola negando matrícula a dade, ao passo que impedir o mesmo acesso
criança ou adolescente, em razão de ser este àqueles que não disponham de recursos
filho de prostituta, desafiaria mandado de financeiros para pagar alguma despesa
segurança, porquanto seria ato ilegal, vio- do processo – com perícia por exemplo –
lador do direito fundamental de igualdade configura violação a direito fundamental
(CR, art. 5o, caput), praticado por autoridade (LXXIV). Se tal violação decorre de ausência
pública – se a escola for pública – ou por de lei prevendo isenção da mencionada
agente de pessoa jurídica no exercício de despesa, a hipótese enseja mandado de
atribuições do Poder Público – se a escola injunção, que funciona como uma garantia
for particular. Salienta-se que os direitos à do direito fundamental.
educação (CR, art. 205) e à igualdade (CR, Criou também o constituinte o instituto
art. 5o, caput) são certos, porquanto a previ- do habeas data (CR, 5o, LXXII) para assegurar
são constitucional é suficientemente clara o conhecimento e retificação de informa-
quanto à existência dos mesmos; e líquidos ções e dados relativos à pessoa do impe-
porque independem de qualquer apuração trante, constantes de registros ou bancos de
de valor ou quantidade. dados de entidades governamentais ou de
Contra a omissão do legislador invia- caráter público. No Estado de Direito, não
bilizadora do exercício de um direito ou se admite que qualquer órgão ou entidade
liberdade constitucional, bem como das mantenha dados ou informações sobre
prerrogativas inerentes à nacionalidade, quem quer que seja, sem que a pessoa a
à soberania e à cidadania, o constituinte quem se referem os mesmos possa conhecê-
disponibilizou para o titular do direito o los e promover a retificação dos que não
mandado de injunção (CR, 5o, LXXI). corresponderem à realidade. A existência
O Mandado de Injunção é instrumento de dados ou informações dessa natureza,
jurídico constitucionalmente assegurado ao sigilosos em relação a seu titular, enseja o
prejudicado por omissão do legislador, que habeas data. O conhecimento de informações
impeça o exercício de direitos e liberdades a seu respeito, registradas ou arquivadas
constitucionais, bem como das prerrogati- por outrem, é direito constitucional (5o,
vas relativas à nacionalidade, à soberania LXXII) vinculado aos direitos fundamentais
e à cidadania. à liberdade, à igualdade e à segurança (5o,
Alguns direitos constitucionais depen- caput).
dem de lei – norma regulamentadora – que A nossa Constituição assegurou, ainda,
deve ser elaborada pelo legislador ordiná- a qualquer cidadão o instrumento da ação

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 239


popular (CR, 5o, LXXIII) para anular ato le- tutela jurisdicional também é um direito
sivo ao patrimônio público ou de entidade fundamental.
de que o Estado participe, à moralidade Os princípios e garantias constitucionais
administrativa, ao meio ambiente e ao pa- do processo compreendem o livre e pleno
trimônio histórico e cultural. O patrimônio acesso de todos à justiça, mediante o de-
pertence a todos. Sua lesão em benefício vido processo legal, neste compreendido
particular viola o direito fundamental à o contraditório e a ampla defesa, perante
igualdade. Assim, um contrato adminis- um juiz natural, que prestará a jurisdição
trativo a preço superfaturado beneficia em decisão fundamentada.
algumas pessoas em detrimento de muitas A violação dessas garantias, assim
outras, devendo ser anulado, o que se pode como de outras normas constitucionais,
fazer por meio de uma ação popular movi- pode ser impedida ou combatida com
da por um cidadão. Trata-se de instrumento as ações constitucionais – Habeas Corpus,
processual, assegurado na Constituição Mandado de Segurança, Habeas data, Man-
para defesa de direitos fundamentais. dado de Injunção, Ação Popular e Ação
Por fim, o constituinte, ao traçar as Civil Pública; e com o controle judicial dos
atribuições do Ministério Público (art. 129, atos normativos – Difuso e Concentrado
III), recepcionou a ação civil pública (Lei – Ação Direta de Inconstitucionalidade,
7.347/85) como ação constitucional, para Ação Direta de Inconstitucionalidade por
o fim de proteger o patrimônio público e Omissão, Ação Direta de Constitucionali-
social, o meio ambiente e outros interesses dade e Ação por Descumprimento Preceito
difusos e coletivos. Fundamental.
Assim como a ação popular, a ação civil Não se pode olvidar que a própria orga-
pública, disciplinada pela Lei 7.347/85, nização constitucional do Poder Judiciário,
constitui importante instrumento proces- estabelecendo as competências e vedações,
sual de garantia de direitos. Destina-se a também constitui norma a ser observada
proteger direitos difusos, alguns funda- no processo e, por conseguinte, garantia
mentais, como ao meio ambiente, que pode processual que protege direitos como os
ter reflexos nos direitos à vida, à igualdade fundamentais.
e a outros. Os direitos fundamentais, assim como
os demais direitos constitucionais, contam
8. Conclusão também com remédios protetores que ou-
trossim são garantias judiciais – processuais
Muitos dos direitos fundamentais – e consistem nas ações constitucionais:
elencados na Constituição da República Mandado de Segurança, Habeas Corpus,
já foram satisfeitos, entendida a satisfação Habeas Data, Mandado de Injunção e Ação
como a edição de lei ordinária ou comple- Popular.
mentar necessária ao exercício do direito. Constituem outras garantias processu-
No entanto, esse exercício não prescinde de ais aos direitos fundamentais a ação civil
proteção ou de garantia. Relevantes garan- pública, o contraditório, a ampla defesa,
tias dos direitos fundamentais ou humanos a motivação das decisões, o juiz natural, a
são as garantias processuais. publicidade dos atos processuais, a veda-
A efetividade dos direitos fundamen- ção das provas ilícitas, a medida cautelar
tais depende das garantias, destacando-se e a antecipação da tutela, sem exclusão de
a processual, que é uma garantia judicial outras.
e consiste na realização do direito com a
prestação da tutela jurisdicional, que, por
sua vez, deve ser efetiva. A efetividade da

240 Revista de Informação Legislativa


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Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 241


Biodiesel
Combustível para o desenvolvimento social

Marco Aurélio Gumieri Valério

Sumário
1. Introdução. 2. Programa Nacional de For-
talecimento da Agricultura Familiar – Pronaf.
3. Programa Nacional do Biodiesel – PNB. 4.
Conclusão.

1. Introdução
No dia 1 de janeiro de 2008, entrou em vi-
o

gor a Lei no 11.097, de 13 de janeiro de 20051,


que determina a adição de dois por cento
de biodiesel ao diesel de petróleo, também
chamado de diesel comum, usado pela frota
de veículos nacionais movidos a partir desse
combustível. Ainda segundo essa norma, os
postos e distribuidoras terão que aumentar a
adição de biodiesel para cinco por cento até
2013, porém, o governo estuda a possibilida-
de de antecipar o início da obrigatoriedade
dessa mistura já para 20102.

1
BRASIL. Lei no 11.097, de 13 de janeiro de 2005.
Dispõe sobre a introdução do biodiesel na matriz energética
brasileira; altera as Leis nos 9.478, de 6 de agosto de 1997,
9.847, de 26 de outubro de 1999, e 10.636, de 30 de dezembro
de 2002; e dá outras providências. Disponível em: <http://
Marco Aurélio Gumieri Valério é advogado; www.planalto.gov.br>. Acesso em: 20 mar. 2008.
Bacharel e Mestre em Direito pela Universi- 2
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei
dade Estadual Paulista, campus de Franca/ do Deputado Leonardo Vilela. Dá nova redação ao art.
SP (FHDSS/Unesp); Doutorando em Ciências 2o da Lei no 11.097, de 13 de janeiro de 2005 e dá outras pro-
Sociais e Políticas pela Universidade Estadual vidências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.
Paulista, campus de Araraquara/SP(FCL/ br>. Acesso em: 20 mar. 2008. Art. 2o: Fica introduzido
o biodiesel na matriz energética brasileira, sendo que o
Unesp); Professor da Faculdade de Economia, percentual mínimo obrigatório de adição de biodiesel
Administração e Contabilidade da Universida- ao óleo diesel comercializado ao consumidor final, a
de de São Paulo, campus de Ribeirão Preto/SP partir de 2008, obedecerá a seguinte tabela progressi-
(FEA/USP). va: [...] III – 2010, fixado em 5% [...].

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 243


O biodiesel, combustível derivado de Ministério do Desenvolvimento Social –
fontes renováveis de energia, substitui total MDS e o Ministério do Desenvolvimento
ou parcialmente o óleo diesel em motores Agrário – MDA uniram forças no âmbito
automotivos – caminhões, tratores, camio- do Programa Nacional do Biodiesel – PNB,
netas, automóveis etc. – ou estacionários visando à estruturação socioeconômica dos
– geradores de eletricidade, de calor etc. agricultores familiares.
–, podendo ser usado puro ou misturado Os programas complementares  são
ao diesel comum em diversas proporções. ações regulares, ofertadas pelas quatro es-
A combinação prevista em lei de dois por feras de governo – União, Estados, Distrito
cento de biodiesel ao diesel comum é de- Federal e Municípios. São voltados ao de-
nominada B2, a de cinco por cento, B5, e senvolvimento das capacidades das famí-
assim por diante, até chegar ao chamado lias listadas no Cadastro Único – CadÚnico,
B100, com cem por cento de pureza. beneficiárias do Programa Bolsa Família
A área plantada necessária para atender – PBF4, contribuindo para a superação da
ao percentual de mistura de dois por cento situação de pobreza e de vulnerabilidade
de biodiesel ao diesel de petróleo é estimada social em que se encontram.
em 1.500.000 (um milhão e quinhentos mil) Esses agricultores familiares devem
hectares, equivalente a um por cento dos receber assistência técnica, crédito e capa-
150.000.000 (cento e cinqüenta milhões) de citação para viabilizar sua inserção nos ar-
hectares plantados e disponíveis para a agri- ranjos produtivos da cadeia do biodiesel a
cultura no Brasil. Esse número não inclui as fim de abastecer as usinas processadoras. A
regiões ocupadas por pastagens e florestas. integração contribui para aumentar a renda
As regras estabelecidas em lei permitem a familiar e fortalecer os pólos de produção
produção a partir de diferentes oleaginosas, de oleaginosas5.
o que possibilita a participação tanto do O trabalho abordará a articulação entre
agronegócio quanto da agricultura familiar, os programas de crédito agrícola destina-
sendo esta última o foco deste artigo. dos especificamente à agricultura familiar,
O cultivo de matérias-primas e a pro- destacando tanto as conquistas já alcança-
dução industrial de biodiesel têm grande das como também os desafios que ainda
capacidade de geração de empregos, pro- estão por vir.
movendo a inclusão social, especialmente Registre-se que a apreciação do tema
quando se considera o amplo potencial tem em mira ser sempre imparcial, aspi-
produtivo da agricultura familiar. No semi- rando ser simples e objetiva, analisando
árido, por exemplo, a renda anual líquida os assuntos sob a ótica dos princípios ló-
de uma família com o cultivo de mamona
em cinco hectares e uma produção média 4
O Programa Bolsa Família – PBF é um programa
entre setecentos e mil e duzentos quilos por de transferência direta de renda com condicionantes,
hectare pode variar de R$ 2.500,00 (dois mil que beneficia famílias em situação de pobreza, com
e quinhentos reais) a R$ 3.500,00 (três mil e renda mensal por pessoa de R$ 60,01 (sessenta reais e
um centavo) a R$ 120,00 (cento e vinte reais), e extre-
quinhentos reais). Além disso, a área pode ma pobreza, com renda mensal por pessoa de até R$
ser consorciada com outras culturas, como 60,00 (sessenta reais). BRASIL. Lei no 10.836, de 9 de
o feijão e o milho3. janeiro de 2004, cria o Programa Bolsa Família, e dá
No intuito de ganhar com a sinergia outras providências; BRASIL. Decreto no 5.209 de 17
de setembro de 2004. Regulamenta a Lei no 10.836, de 9
existente entre os vários programas sociais de janeiro de 2004, que cria o Programa Bolsa Família,
em operação, com ganhos de escala, o e dá outras providências. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br>. Acesso em: 20 mar. 2008.
3
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário. 5
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário.
Programa Nacional do Biodiesel. Disponível em: <http:// Programa Nacional do Biodiesel. Disponível em: <http://
www.mda.gov.br>. Acesso em: 20 mar. 2008. www.mda.gov.br>. Acesso em: 20 mar. 2008.

244 Revista de Informação Legislativa


gicos e do bom senso e deixando de lado, tores familiares aos agentes, instrumentos
sempre que possível, o critério pessoal. É e benefícios do Programa; (d) parceria no
evidente que a tese a ser desenvolvida não planejamento, na execução e na monitoria
comportará pronunciamentos finais e não de ações entre os agentes executores e os
procurará obter solução última. Este traba- beneficiários do Programa; (e) respeito às
lho será desenvolvido com boa intenção e especificidades locais e regionais na defi-
com honestidade de propósitos e não tem nição de ações e na alocação de recursos;
a veleidade de ditar cátedra. Daí por que as (f) ações afirmativas que facilitem o acesso
críticas serão bem recebidas e as opiniões de mulheres, jovens e minorias étnicas aos
divergentes serão aceitas. benefícios do Programa; (g) defesa do meio
ambiente e preservação da natureza com
2. Programa Nacional de Fortalecimento base na sustentabilidade.
da Agricultura Familiar – Pronaf O Pronaf foi criado ainda no governo de
Fernando Henrique Cardoso como adap-
O Programa Nacional de Fortalecimento tação, revista e ampliada, do Programa de
da Agricultura Familiar – Pronaf, criado Valorização da Pequena Produção Rural –
pelo Decreto no 1.946, de 28 de Junho de Provap instituído no período Itamar Franco
1996 6 e reestruturado pelo Decreto n o por meio da Resolução no 2.101, de 24 de
3.991, de 30 de outubro de 20017, tem por agosto de 19948, do Conselho Monetário
finalidade promover o desenvolvimento Nacional – CMN, prevendo condições es-
sustentável do meio rural, por intermédio peciais para o financiamento do custeio da
de ações destinadas a implementar o au- safra 1994-1995.
mento da capacidade produtiva, a geração Os anos 90 do século passado foram
de empregos e a elevação da renda. Visa anos de grande agitação no meio rural,
melhorar a qualidade de vida e o exercício culminando com o grito da terra, uma série
da cidadania dos agricultores familiares. de marchas sobre Brasília organizadas pela
O Pronaf adota como estratégia a par- Confederação Nacional dos Trabalhadores
ceria entre órgãos e entidades da União, da Agricultura – Contag, Central Única dos
dos Estados, do Distrito Federal e dos Trabalhadores – CUT e Movimento dos
Municípios, além da participação do setor Sem Terra – MST.
privado, dos agricultores familiares e de Tanto o Provap quanto o Pronaf foram
suas organizações sociais. uma reação às manifestações dos agri-
São princípios do Programa: (a) gestão cultores familiares que reclamavam das
social, por meio de conselhos estaduais e regras para concessão de crédito rural então
municipais; (b) descentralização median- vigentes. Considerados miniprodutores,
te a valorização do papel propositor dos os pequenos eram submetidos às mesmas
agricultores familiares e suas organizações, exigências que os grandes para acesso a
em relação às ações e aos recursos do Pro- empréstimos, ou seja, tinham pouca ou
grama; (c) acesso simplificado dos agricul- nenhuma chance de consegui-los.
Os recursos vinham inicialmente do
6
BRASIL. Decreto no 1.946, de 28 de Junho de 1996. Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT,
Dispõe sobre o Programa Nacional de Fortalecimento da
Agricultura Familiar – Pronaf, e dá outras providências.
do Banco Nacional de Desenvolvimento
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Econômico e Social – BNDES e do Fundo
Acesso em: 20 mar. 2008.
7
BRASIL. Decreto no 3.991, de 30 de outubro de 8
BRASIL. Conselho Monetário Nacional. Resolu-
2001. Dispõe sobre o Programa Nacional de Fortalecimento ção no 2.101, de 24 de agosto de 1994. Institui o Programa
da Agricultura Familiar – Pronaf, e dá outras providências. de Valorização da Pequena Produção Rural – Provap. Dis-
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Aces- ponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso
so em: 20 mar. 2008. em: 20 mar. 2008.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 245


Constitucional de Desenvolvimento do A finalidade do Pronaf é apoiar as
Centro-Oeste – FCO. atividades agrícolas e não-agrícolas desen-
Havia a intenção de dar tratamento volvidas no estabelecimento ou aglomerado
desigual aos desiguais, na medida de suas rural urbano próximo. E, para isso, poderá:
desigualdades. E isso constituiu um avanço (a) negociar e articular políticas e progra-
que até os críticos do período Fernando mas junto aos órgãos setoriais dos governos
Henrique Cardoso reconhecem. Em favor Federal, Estadual, Distrital e Municipal
dos pequenos, por exemplo, o governo que promovam a melhoria da qualidade
acusado de neoliberal adotou a equaliza- de vida dos agricultores e de suas famílias;
ção de juros, um subsídio autorizado pelo (b) promover a capacitação dos agriculto-
Conselho Monetário Nacional – CMN, res familiares com vistas à gestão de seus
enquadrado pelo Banco Central – Bacen e empreendimentos; (c) disponibilizar linhas
assumido pelo Tesouro9. de crédito adequadas às necessidades dos
Na prática, houve progressos na con- agricultores familiares; (d) contribuir para
cessão do financiamento, mas este se a instalação e melhoria da infra-estrutura
concentrou no sul do país, com pífio de- pública e comunitária de apoio às ativida-
sempenho nas outras regiões. Em 2002, na des desenvolvidas pelos agricultores fami-
entrega do governo, o Pronaf registrava liares; (e) apoiar ações de assistência técnica
um acumulado de 953 mil contratos, com e extensão rural e geração de tecnologias
R$ 2.400.000.000,00 (dois bilhões e quatro- compatíveis com as características e as
centos milhões de reais) de financiamento. demandas da agricultura familiar e com os
Embora se tratasse de uma soma respeitá- princípios da sustentabilidade; (f) estimular
vel, na verdade o governo estava atrasado a agregação de valor aos produtos e aos
em cinco anos no cumprimento da meta em serviços das unidades de base familiar, con-
dinheiro prometida para 1997. tribuindo para a sua inserção no mercado e
Em 2003, os que gritavam na direção a ampliação da renda; (g) apoiar a criação de
do Planalto entraram nele para assumi-lo. fóruns municipais e estaduais representati-
CUT e Contag somaram-se às fileiras da vos dos agricultores familiares para a gestão
administração do recém-empossado go- integrada de políticas públicas.
verno Lula. O MST, cujo foco de atuação O Programa se compromete a benefi-
permanece voltado para a distribuição de ciar todos aqueles que explorem e dirijam
terras, optou por permanecer de fora. estabelecimentos rurais na condição de
Talvez, por isso mesmo, a parte mais proprietários, posseiros, arrendatários,
conflituosa do Ministério do Desenvolvi- parceiros, comodatários ou parceleiros, que
mento Agrário – MDA, o Instituto Nacional desenvolvam atividades agrícolas ou não-
de Colonização e Reforma Agrária – Incra, agrícolas e que atendam, simultaneamente,
entidade que se ocupa com cerca de seiscen- aos seguintes requisitos: (a) não possuam,
tas mil famílias de agricultores sem terra, a qualquer título, área superior a quatro
chame mais a atenção dos observadores do módulos fiscais, quantificados na legislação
que a Secretaria da Agricultura Familiar – em vigor; (b) utilizem predominantemente
SAF, a parte mais tranqüila do Ministério mão-de-obra familiar nas atividades do es-
do Desenvolvimento Agrário – MDA, que tabelecimento ou empreendimento; (c) ob-
lida com um número ainda mais expressivo tenham sua renda, predominantemente, de
de famílias com pouca terra. atividades vinculadas ao estabelecimento
ou empreendimento; (d) residam no próprio
Cf. TOTTI, Paulo. A silenciosa revolução mo-
9

vida a crédito. Jornal valor econômico. Disponível em:


estabelecimento ou em local próximo.
<http://www.valor.com.br>. Acesso em: 20 mar. O trabalho de estranhos à família, com
2008. salário pago por dia discutido com o sin-

246 Revista de Informação Legislativa


dicato, só é permitido excepcionalmente e O risco do Pronaf é do banco ou da co-
em tempo de colheita. operativa de crédito solidário que repassa
Cabe à Secretaria da Agricultura Fami- o financiamento. Em 4.200 (quatro mil e
liar planejar, coordenar e supervisionar o duzentos) municípios já há uma comissão
Pronaf em âmbito nacional, competindo- composta por agricultores e representantes
lhe, especialmente: (a) estabelecer normas da prefeitura, do governo do Estado e do
operacionais; (b) elaborar e implementar a MDA que decide sobre a concessão do
programação físico-financeira; (c) analisar crédito e fiscaliza sua aplicação.
e aprovar o apoio a projetos voltados para Em geral, o crédito à agricultura familiar
o desenvolvimento local sustentável; (d) tem performance em linha com a do crédito
monitorar e avaliar o desempenho; (e) livre no Sistema Financeiro Nacional – SFN.
negociar e articular junto aos governos Segundo dados do Ministério do Desenvol-
Federal, Estadual, Distrital e Municipal, vimento Agrário, a inadimplência do Pronaf
chega a, no máximo, seis por cento. No Para-
organizações dos agricultores familiares e
ná, beirou cinco por cento em conseqüência
as entidades da sociedade civil, ações que
da estiagem ocorrida nos anos de 2005 e
favoreçam o desenvolvimento rural.
2006. Em 2007, mesmo com safra abundante
O atual governo manteve a estrutura
e preço alto, o índice subiu para quatorze
do Pronaf, embora o tenha modificado por cento devido às sucessivas prorrogações
sob alguns aspectos: (a) diminuiu juros; (b) feitas nos prazos de pagamento que ven-
ampliou prazos; (c) criou modalidades de ciam durante a seca dos últimos dois anos.
financiamento; (d) ampliou seu funding; (e) A Zona da Mata de Minas, contudo, atingiu
exigiu que bancos apliquem oito por cento a marca de zero por cento de inadimplência
de seus depósitos a vista no crédito à agri- entre agricultores familiares12.
cultura familiar; e (f) expandiu o programa O pagamento em dia é premiado pelo
para todo o país. Pronaf com um abatimento da dívida, nor-
A participação do Sul, que era de 55% malmente de vinte e cinco por cento, mas
em 2002, baixou para 39%, a do Nordeste em alguns cultivos, como o do dendê, pode
subiu de 15% para 26%, no ano de 2006. Mas chegar a até quarenta por cento.
continua fraca e até diminuiu, de 7,8% em
2002 para 6,2% em 2007, a participação do 3. Programa Nacional do Biodiesel – PNB
Centro-Oeste no total dos desembolsos10.
Em 2006, o Pronaf liberou um total de R$ A ação conjunta do Ministério do Desen-
7.408.000.000,00 (sete bilhões quatrocentos volvimento Social – MDS e do Ministério
e oito milhões de reais). E acumulava até o do Desenvolvimento Agrário – MDA no
ano passado R$ 24.000.000.000,00 (vinte e âmbito do Programa Nacional do Biodiesel
quatro bilhões de reais) de financiamentos objetiva a estruturação socioeconômica dos
agricultores familiares que são beneficiários
desde o início do governo Lula, sendo de
do Programa Bolsa Família – PBF e que
R$ 26.300.000.000,00 (vinte e seis bilhões e
pertencem ao Pronaf, interligando todos
trezentos milhões de reais) o montante total
os programas sociais do governo.
da história do Pronaf11.
O Governo Federal lançou o selo com-
10
Cf. TOTTI, Paulo. A silenciosa revolução mo- bustível social, um conjunto de medidas
vida a crédito. Jornal valor econômico. Disponível em: específicas para estimular a inclusão pela
<http://www.valor.com.br>. Acesso em: 20 mar. agricultura. Previsto nas Instruções Norma-
2008.
11
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrá- 12
Cf. TOTTI, Paulo. A silenciosa revolução mo-
rio. Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura vida a crédito. Jornal valor econômico. Disponível em:
Familiar – Pronaf. Disponível em: <http://www.mda. <http://www.valor.com.br>. Acesso em: 20 mar.
gov.br>. Acesso em: 20 mar. 2008. 2008.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 247


tivas no 01, de 5 de julho de 200513, e no 02, de O produtor de biodiesel deverá celebrar
30 de setembro de 200514, o selo é um com- previamente contratos com todos os agri-
ponente de identificação concedido pelo cultores familiares ou suas cooperativas
Ministério do Desenvolvimento Agrário – agropecuárias de quem adquira matérias-
MDA ao produtor de biodiesel que cumpre primas. Os contratos celebrados deverão
certos requisitos. Confere ao seu detentor conter: (a) o prazo contratual; (b) o valor
o caráter de promotor de inclusão social de compra da matéria-prima; (c) os crité-
dos agricultores familiares enquadrados rios de reajustes do preço contratado; (d)
no Programa Nacional de Fortalecimento as condições de entrega da matéria-prima;
da Agricultura Familiar – Pronaf15. (e) as salvaguardas previstas para as partes;
Para sua aquisição, o produtor de bio- e (f) a identificação e concordância com
diesel terá que adquirir percentuais míni- os termos da representação do agricultor
mos calculados sobre o custo de compra das familiar que participou das negociações
matérias-primas produzidas pelo agricultor comerciais.
familiar ou sua cooperativa agropecuária. Assegurar a assistência e a capacitação
A quantidade a ser comprada varia con- técnica a todos os agricultores familiares
forme as regiões; assim, para o Nordeste, de quem adquira matérias-primas é uma
50% (cinqüenta por cento); 30% (trinta por obrigação do produtor de biodiesel.
cento) para o Sudeste e o Sul; e, para o Norte A solicitação de concessão do selo
e o Centro-Oeste, 10% (dez por cento)16. combustível social deve ser efetuada na
O produtor de biodiesel deverá manter Secretaria da Agricultura Familiar – SAF
registro com documentação comprobatória do Ministério do Desenvolvimento Agrá-
das aquisições totais de matérias-primas fei- rio – MDA, que terá prazo de sessenta dias
tas a cada ano, por um período de cinco anos; para avaliar o cumprimento dos critérios e
por seu turno, o agricultor familiar também emitir parecer conclusivo. O consentimento
deverá manter, pelo mesmo período, uma de uso será publicado no Diário Oficial da
via do comprovante das vendas efetuadas. União – DOU e terá validade de cinco anos
A cooperativa agropecuária do agri- a partir da data de publicação.
cultor familiar que vender ao produtor No exercício de seu poder de fiscaliza-
de biodiesel deverá manter pelo mesmo ção, o Ministério avaliará anualmente o
período a documentação comprobatória cumprimento dos critérios de concessão,
das aquisições totais anuais. mediante realização de avaliação externa.
Na hipótese de aprovação, será mantida
13
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrá-
rio. Instrução Normativa no 01, de 05 de julho de 2005.
a concessão, mas, no caso de reprovação,
Dispõe sobre os critérios e procedimentos relativos à concessão será concedido um prazo de trinta dias
de uso do selo combustível social. Disponível em: <http:// para apresentação de justificativa que, se
www.planalto.gov.br>. Acesso em: 20 mar. 2008. não for aceita, fundamentará a suspensão
14
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrá-
rio. Instrução Normativa no 02, de 30 de setembro de
do uso do selo pelo prazo de um ano. Essa
2005. Dispõe sobre os critérios e procedimentos relativos interrupção só cessará caso nova avaliação
ao enquadramento de projetos de produção de biodiesel ao conste a conformidade dos dados.
selo combustível social. Disponível em: <http://www. O enquadramento de projetos ao selo
planalto.gov.br>. Acesso em: 20 mar. 2008.
15
BRASIL. Decreto no 3.991, de 30 de outubro de
combustível social é destinado a empresas
2001. Dispõe sobre o Programa Nacional de Fortalecimento juridicamente constituídas e que tenham
da Agricultura Familiar – Pronaf, e dá outras providências. um projeto de produção de biodiesel que
Disponível em:<http://www.planalto.gov.br>. Aces- contemple os critérios de inclusão social da
so em: 20 mar. 2008.
16
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrá-
agricultura familiar.
rio. Selo combustível social. Disponível em: <http:// O plano de assistência e capacitação
www.mda.gov.br>. Acesso em: 20 mar. 2008. técnica dos agricultores familiares poderá

248 Revista de Informação Legislativa


ser desenvolvido diretamente pela equipe As indústrias produtoras também terão
técnica do produtor de biodiesel ou por o direito à desoneração de alguns tributos,
instituições por ele contratadas. mas deverão garantir a compra da matéria-
A solicitação do enquadramento deve prima e preços pré-estabelecidos, oferecen-
ser efetuada pelo solicitante, por meio de do segurança aos agricultores familiares.
protocolo, na Secretaria da Agricultura Fa- Há, ainda, a possibilidade da participação
miliar – SAF do Ministério do Desenvolvi- destes últimos como sócios ou cotistas das
mento Agrário – MDA, ou diretamente, no indústrias extratoras de óleo ou de produ-
agente financeiro que atenda as condições ção de biodiesel, seja de forma direta, seja
especificadas. O interessado deve entregar de forma indireta, por meio de associações
o projeto de combustível social, bem como ou cooperativas de produtores.
os dados que constarão do contrato a ser Na prática, toda essa estrutura de incen-
celebrado com os agricultores. tivos dados tanto ao produtor de biodiesel
O MDA terá um prazo de trinta dias quanto ao agricultor familiar já apresenta
para avaliar os projetos encaminhados. Um resultados. A Agropalma, uma das em-
ofício assinado pelo Secretário de Agricul- presas vencedoras dos leilões realizados
tura Familiar ou por seu representante legal pela Agência Nacional do Petróleo – ANP,
será emitido e endereçado ao solicitante, adquire da agricultura familiar 10% (dez
com parecer conclusivo, indicando o nome por cento) da matéria-prima que utiliza,
e o CNPJ da empresa, bem como se o pro- dá o adubo, as mudas e toda a assistência
jeto foi aprovado ou reprovado. técnica. Em troca, a empresa garante a ex-
No caso de aprovação, a empresa apre- clusividade no fornecimento da produção
sentará ao Ministério o cronograma de por 25 anos e tem desoneração de R$ 0,15
execução físico-financeiro a ser realizado. (quinze centavos de real) por litro no paga-
Dentro de seis meses após o início das mento de PIS/Pasep e Cofins.
operações industriais ou seis meses após o O Banco da Amazônia repassa o finan-
término do prazo previsto no cronograma ciamento do Pronaf, com juros de três por
de implantação do projeto, o Ministério do cento ao ano, com carência de três anos e
Desenvolvimento Agrário avaliará o cum- rebate de 40% (quarenta por cento) da dívi-
primento dos critérios do selo combustível da se for paga até o dia do vencimento.
social mediante realização de avaliação ex- São três grupos de 50 famílias que plan-
terna. Se tudo estiver dentro dos conformes, tam em torno de 1.500 pés de palma cada
o representante da empresa deverá fazer a uma. Enquanto a planta crescia, as famílias
solicitação do selo combustível social em recebiam do Pronaf um salário mínimo para
até trinta dias; todavia, em caso de descon- manutenção. Os lotes, de dez a onze hec-
formidade e se a justificativa apresentada tares, ficam um ao lado do outro. A renda
não for aceita pelo MDA, o projeto será de algumas famílias já chega a R$ 20.000,00
desenquadrado e os benefícios no financia- (vinte mil reais) por safra de dendê.
mento do selo combustível social poderão As sete milhões de toneladas de bio-
ser perdidos. diesel produzidas pela Agropalma anual-
O enquadramento social, seja de pro- mente a R$ 1,85 (um real e oitenta e cinco
jetos, seja de empresas que produzem centavos) por litro têm comprador cativo,
biodiesel, abre caminho para condições a Petrobrás.
de financiamento mais atrativas junto
ao Banco Nacional de Desenvolvimento
4. Conclusão
Econômico e Social – BNDES e outras ins-
tituições financeiras, além de dar direito de No Brasil há uma revolução em curso
concorrência em leilões. patrocinada pelo próprio governo. É um

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 249


movimento pacífico, embora já tenha sido to – PIB agropecuário. Dados da Fundação
tenso e controverso. Silencioso, ele ocupa Instituto de Pesquisas Econômicas – Fipe,
espaços sem alarde e já está presente em de 2003, indicavam uma participação de
5.357 dos 5.561 mil municípios do país. 36,2% da agricultura familiar na produção
Essa revolução é feita com uma arma total da lavoura brasileira e de 43,1% na
poderosa: o Programa de Fortalecimento produção da pecuária.
da Agricultura Familiar – Pronaf e a abun- A estratégia do governo no tratamento
dante munição de R$ 10.000.000.000,00 (dez da desigualdade no campo já mostra resul-
bilhões de reais) em crédito rápido e barato tados positivos. A divisão de trabalho social
para a safra 2006-717. engloba o Ministério do Desenvolvimento
Seu protagonista é o pequeno agricultor Social e Combate à Fome, que cuida da mi-
que, com a família, tira o sustento de um séria, com o Programa Bolsa Família; o Mi-
pedaço de terra limitado a cem hectares nistério do Desenvolvimento Agrário, que
na Amazônia e a trinta e dois hectares no atenta da pobreza, com os Pronaf A e B, com
Centro-Sul. renda bruta anual de até R$ 3.000,00 (três
O objetivo é a inserção no mercado de, mil reais), e, com o Pronaf C, com renda de
no mínimo, dezesseis milhões de brasilei- R$ 3.000,00 (três mil reais) até R$ 16.000,00
ros, ou quatro milhões e cem mil famílias.
(dezesseis mil reais), prepararia a transição
Quase a metade já chegou lá. O acesso ao
para as categorias D e E, teto de renda de R$
crédito do Pronaf, um esforço de melhora
45.000,00 (quarenta e cinco mil reais) e R$
das condições de vida no campo a que se
80.000,00 (oitenta mil reais), respectivamen-
engajaram até Estados governados pela
te, onde se situa o que se poderia considerar
oposição, leva alguns de seus beneficiários
classe média baixa do meio rural18.
a entusiasmos próximos do exagero.
Desde janeiro de 2003, o Pronaf con-
A ausência de um censo agropecuário – o
último se encerrou há 11 anos, exatamente tratou 6.360.000 (seis milhões trezentos e
quando o programa começava – impede o sessenta mil) operações de crédito, muitas
balanço preciso de sua influência na melhora delas de agricultores que se candidataram a
das condições de vida no campo e seu impac- novos financiamentos de custeio e, em sua
to na migração rural. Impossibilita também maioria, mudaram para um patamar mais
que se constate o verdadeiro peso da agricul- alto de renda, numa demonstração de que
tura familiar na economia brasileira. Os da- algo positivo acontece no meio rural19.
dos de 1995-6, entretanto, indicavam que, do Essa interação de programas sociais
total de 4.859.000 (quatro milhões, oitocentos pode levar ao que os especialistas chamam
e cinqüenta e nove mil) estabelecimentos de “porta de saída” para os beneficiados,
agropecuários existentes no país, 4.139.000 contribuindo na melhoria de renda e na
(quatro milhões cento e trinta e nove mil) gradual mudança de nível econômico do
pertenciam ao sistema de produção coman- agricultor familiar até o ponto em que
dado pela agricultura familiar, ou seja, 85%. ele não precise mais do assistencialismo
Esta última ocupava apenas 30,5% das terras, estatal.
enquanto a agricultura patronal – como a ela O apoio à agricultura familiar não é só
se refere o MDA – detinha 68% da área e 11% importante para a distribuição de renda e
do total dos estabelecimentos. para a democratização da terra. É importante
A agricultura familiar contribui hoje para o próprio desenvolvimento do país.
com cerca de 38% do Produto Interno Bru-
18
Cf. TOTTI, Paulo. A silenciosa revolução movida
Cf. TOTTI, Paulo. A silenciosa revolução movida
17
a crédito. Jornal valor econômico. Disponível em: <http://
a crédito. Jornal valor econômico. Disponível em: <http:// www.valor.com.br>. Acesso em: 20 mar. 2008.
www.valor.com.br>. Acesso em: 20 mar. 2008. 19
Idem.

250 Revista de Informação Legislativa


Referências ______. Lei no 10.836, de 9 de janeiro de 2004, cria o
Programa Bolsa Família, e dá outras providências.
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deputado Leonardo Vilela. Dá nova redação ao art. Acesso em: 20 mar. 2008.
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providências. Disponível em: <http://www.planalto. trução Normativa no 01, de 05 de julho de 2005. Dispõe
gov.br>. Acesso em: 20 mar. 2008. sobre os critérios e procedimentos relativos à concessão de
______. Conselho Monetário Nacional. Resolução no uso do selo combustível social. Disponível em: <http://
2.101, de 24 de agosto de 1994. Institui o Programa de www.planalto.gov.br>. Acesso em: 20 mar. 2008.
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ponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso Instrução Normativa no 02, de 30 de setembro de
em: 20 mar. 2008. 2005. Dispõe sobre os critérios e procedimentos relativos
______. Decreto no 1.946, de 28 de Junho de 1996. ao enquadramento de projetos de produção de biodiesel ao
Dispõe sobre o Programa Nacional de Fortalecimento da selo combustível social. Disponível em: <http://www.
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Acesso em: 20 mar. 2008. grama Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
______. Decreto no 3.991, de 30 de outubro de 2001. – Pronaf. Disponível em: <http://www.mda.gov.br>.
Dispõe sobre o Programa Nacional de Fortalecimento da Acesso em: 20 mar. 2008.
Agricultura Familiar – Pronaf, e dá outras providências. ______. Ministério do Desenvolvimento Agrário. Pro-
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. grama Nacional do Biodiesel. Disponível em: <http://
Acesso em: 20 mar. 2008. www.mda.gov.br>. Acesso em: 20 mar. 2008.
______. Decreto no 5.209 de 17 de setembro de 2004. ______. Ministério do Desenvolvimento Agrário. Selo
Regulamenta a Lei no 10.836, de 9 de janeiro de 2004, que combustível social. Disponível em: <http://www.mda.
cria o Programa Bolsa Família, e dá outras providências. gov.br>. Acesso em: 20 mar. 2008.
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Acesso em: 20 mar. 2008. TOTTI, Paulo. A silenciosa revolução movida a crédi-
to. Jornal valor econômico. Disponível em: <http://
______. Lei n 11.097, de 13 de janeiro de 2005. Dispõe
o
www.valor.com.br>. Acesso em: 20 mar. 2008.
sobre a introdução do biodiesel na matriz energética
brasileira; altera as Leis nos 9.478, de 6 de agosto de ______. Biodiesel de dendê, uma nova esperança. Jor-
1997, 9.847, de 26 de outubro de 1999 e 10.636, de 30 nal valor econômico. Disponível em: <http://www.
de dezembro de 2002; e dá outras providências. Dis- valor.com.br>. Acesso em: 20 mar. 2008.
ponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso
em: 20 mar. 2008.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 251


A relação adolescente–drogas e as
perspectivas da nova legislação sobre
drogas

Maria Inês Gandolfo Conceição e


Maria Cláudia Santos de Oliveira

Sumário
1. Compreendendo as drogas e o adolescente
em uma perspectiva sistêmica e relacional. 2.
Drogas, adolescentes e violência. 3. Onda jovem
no Brasil. 4. O papel das redes sociais na prote-
ção. 5. Políticas e legislação atual sobre drogas.

“Our youth now love luxury. They have bad


manners, contempt for authority; they show
disrespect for their elders; they contradict
their parents and tyrannize their teachers.”
Sócrates (469-399 a.c.)

A visão pessimista acerca de nossa ju-


ventude não é um fenômeno atual, como
nos faz crer o discurso dos mais velhos.
Suas raízes são muito remotas, como se
pode constatar na epígrafe de Sócrates, da-
tada do século V a.c. O consumo de drogas,
por sua vez, também acompanha o homem
desde tempos imemoráveis. Segundo
Carvalho (1997), há registros de consumo
de ópio e de cannabis que remontam 3.000
a.c. No entanto, o conhecimento acerca do
consumo de drogas nas mais diversas so-
ciedades humanas tem mostrado que o que
antes ocorria em eventos específicos – como
rituais xamânicos – parece ocorrer atual-
Maria Inês Gandolfo Conceição é Doutora mente de forma mais ampla e distribuída
em Psicologia, Professora Adjunta do Depar- entre diferentes grupos etários e atividades
tamento de Psicologia Clínica da Universidade sociais, ao mesmo tempo que adquire novos
de Brasília.
significados. O uso de drogas é influencia-
Maria Cláudia Santos de Oliveira é Doutora
em Psicologia, Professora Adjunta do Departa- do por características que são próprias da
mento de Psicologia Escolar e do Desenvolvi- cultura ocidental, que sugerem priorizar a
mento da Universidade de Brasília. busca do prazer imediato. Por outro lado,

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 253


seria uma análise simplista considerar que mantém com família e amigos, a rede de fa-
todo consumo de drogas, lícitas ou ilícitas, vores que o consumo impõe em relação aos
justifica-se por essa motivação. Especial- financiadores do produto e fornecedores
mente entre os jovens, tal consumo pode são aspectos sem os quais a compreensão
representar uma estratégia de socialização, do significado da droga é parcial.
de aquisição de uma identidade de grupo, Na perspectiva sistêmica, ainda, o uso
de ocupação do tempo livre e, até mesmo, de drogas é visto como um sintoma, algo
alcance de estados psíquicos propícios ao que tem função estabilizadora, unindo o
pensamento produtivo e à criação artística. sistema e mantendo seu equilíbrio. Assim,
Seja como for, a compreensão das significa- a droga exerce duas funções paradoxais: a
ções em torno da relação entre o jovem e as homeostática (mantenedora de equilíbrio)
drogas no contexto atual exige adotar uma e a de denúncia, o que se dá por meio do
perspectiva sistêmica e crítica. sintoma (SUDBRACK, 2006). A primeira
Assim sendo, o presente trabalho pode ser exemplificada em casos tais como
organiza-se da seguinte forma: na primei- os de famílias em que o casal está a ponto
ra seção, ampliamos a discussão sobre os de se separar e o filho adolescente passa a
fatores psicológicos, sociais, culturais e fazer uso abusivo de drogas. Tal compor-
econômicos que envolvem a relação entre tamento aditivo do adolescente não passa
jovens e drogas; em seguida, abordamos despercebido e, ao se constituir um novo
as inter-relações entre abuso de drogas e foco de atenção dos pais, contribui para que
violência nesse grupo etário, insistindo se unam em torno do problema do filho.
na relevância do papel da comunidade na Ao mesmo tempo em que o uso da
prevenção e proteção da pessoa envolvida droga favorece a manutenção do equilí-
com drogas; na terceira parte, discutimos brio, ou seja, a conservação do sistema, o
os novos horizontes em que se inserem as comportamento de consumo abusivo de
abordagens técnicas, jurídicas e penais para drogas aponta a necessidade de mudança,
o usuário de drogas, a partir das recentes denunciando que algo está disfuncional no
políticas e das mudanças ocorridas nos sistema. A dinâmica entre mudança e cons-
dispositivos legais. tância os converte em fatores inseparáveis
e complementares. Em outras palavras, se
1. Compreendendo as drogas e o por um lado o consumo de drogas dá a
adolescente em uma perspectiva impressão de independência, separação e
crescente individuação por parte do ado-
sistêmica e relacional
lescente, por outro, provoca justamente
Na ótica sistêmica, as drogas não são o contrário, isto é, sua reaproximação do
simplesmente um produto, mas um fe- sistema, à medida que ele começa a ter
nômeno social complexo, que não pode dificuldades com os estudos, o trabalho,
ser estudado e compreendido sem que se os relacionamentos. Trata-se, portanto,
considere na análise todo o seu universo de uma pseudo-individuação, atribuindo
relacional, do qual extrai seu valor e signi- uma dupla função ao consumo de drogas:
ficado. Opondo-se às explicações do tipo distanciar-se da família e, ao mesmo tempo,
causa e efeito, a abordagem sistêmica traz tornar-se dependente dela em relação aos
uma leitura mais ampla dos fatores que cuidados e ao sustento, por exemplo. Fora
envolvem o fenômeno das drogas, procu- de uma abordagem sistêmica, a compreen-
rando compreendê-los na sua complexida- são sobre o consumo de drogas fica limitada
de: os efeitos físicos das drogas, as crenças a uma relação linear de causa e efeito, ne-
do usuário no poder mágico do produto, gligenciando a complexidade das relações
a qualidade dos vínculos afetivos que ele envolvidas no fenômeno. Busca-se atribuir

254 Revista de Informação Legislativa


a um dos elementos dessa relação (a droga, se este fosse um mal extrínseco à sociedade
o usuário, a oferta ou a procura) a respon- e não inerente a ela. Entretanto, pouco ou
sabilidade pela existência do problema. nada fazem para abordar as drogas que se
O uso abusivo de substâncias psicoati- compram nas prateleiras de supermercado,
vas toma proporção de grave problema de independentemente dos danos que causem
saúde pública no nosso país, refletindo-se às pessoas e prejuízos aos cofres públicos,
nos demais segmentos da sociedade. Suas em virtude de doenças, incapacidades e
conseqüências afetam nações do mundo mortes que ocasionam.
inteiro, avançando por todas as sociedades O fato de a sociedade tolerar as drogas
e envolvendo homens e mulheres de dife- lícitas pode estar contribuindo para o au-
rentes grupos étnicos, independentemente mento do consumo de álcool e tabaco entre
de classe social e econômica, ou idade. os mais jovens. Uma parcela deles experi-
Existe uma tendência mundial que menta drogas muito cedo, com o risco de
aponta para o uso cada vez mais precoce de passar do uso das drogas lícitas para as
substâncias psicoativas, incluindo o álcool, ilícitas, o que nem sempre está relaciona-
sendo que, para uma parcela de usuários, do ao aumento da idade. Porém, é preciso
tal uso também ocorre de forma cada vez considerar que o uso de álcool e do tabaco
mais pesada. No Brasil, estudo realizado não condiciona direta e naturalmente o uso
pelo Centro Brasileiro de Informações de outras drogas como maconha, cocaína e
sobre Drogas Psicoativas (CEBRID) acerca demais substâncias psicoativas.
do uso indevido de drogas por estudantes Por sua vez, o adolescente usuário de
de ensino fundamental e médio, em dez drogas ilícitas tem recebido tratamentos
capitais brasileiras (GALDURÓZ; NOTO; contraditórios, sendo tratado ao longo
CARLINI, 1997), revelou percentual altís- da história ora como doente, ora como
simo de adolescentes que já haviam feito criminoso. Tanto uma como outra forma
uso de álcool alguma vez na vida: 74,1%. de tratamento levam à estigmatização e
Quanto a uso freqüente, o percentual foi de contribuem para mantê-lo na clandes-
14,7%. Também ficou constatado que 19,5% tinidade, limitando nossa compreensão
dos estudantes faltaram à escola após beber do fenômeno. Por isso, as abordagens re-
e que 11,5% brigaram. pressivas e de combate que acompanham
O panorama nacional de consumo de essa visão têm-se mostrado insuficientes e
drogas mostra que as mais consumidas e ineficazes, tendo grande responsabilidade
as que mais causam dependência não são na reprodução da violência, quase sempre
as drogas ilícitas, mas as lícitas, como o associada ao mundo das drogas. Os resul-
álcool e o cigarro, por exemplo. A presença tados das táticas repressivas de combate
de drogas no país não se deve exclusiva- às drogas se refletem nas estatísticas dos
mente aos traficantes internacionais, mas presídios superlotados e nas altas taxas de
obedece a uma lógica intrínseca ao próprio mortalidade de suas vítimas preferidas:
funcionamento de nossa sociedade, carac- os usuários negros e pobres oriundos das
terizada por interesses econômicos e nor- periferias. Paradoxalmente, em nome do
teada pelo consumo em geral. Entretanto, combate às drogas, as medidas repressivas
ainda hoje as drogas ilícitas são vistas como têm provocado mais prejuízos e perdas
substâncias com poderes diabólicos, que humanas do que o próprio efeito deletério
seduzem e corrompem pessoas inocentes das drogas.
e desprotegidas, vendo o problema como Segundo Rodrigues (2002), a unanimi-
centrado no produto. As ações de “combate dade em torno da urgência de se combater
às drogas” orientam-se a eliminar os pro- o tráfico de drogas no continente americano
dutos ilícitos do mercado informal, como está amparada em lastros morais e saberes

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 255


médico-sanitaristas. Historicamente, as caminho da simplificação e do retrocesso,
políticas voltadas para usuários de drogas, no qual propostas de penas mais duras e
no plano jurídico, baseiam-se no modelo de redução da idade penal ganham adesão.
de tribunais norte-americanos, cuja idéia Por outro lado, poucas são as iniciativas de
central é de que os consumidores, como médio e longo prazo que contribuem para
pena, ficam obrigados a tratar sua suposta resgatá-los, educá-los e implementar suas
doença, a qual é diagnosticada, na maior condições de cidadania, ao enfrentarem
parte dos casos, por uma autoridade jurí- proativamente as condições de risco e vul-
dica. O descumprimento dessa obrigação nerabilidade em que vivem.
implica uma punição legal mais severa e Essa estreita e intrincada relação entre
gera o modelo de tratamento compulsório as drogas e o fenômeno da violência se
em que os usuários passam a ser vistos tan- observa principalmente em contextos co-
to como doentes quanto como criminosos munitários de pobreza e que envolvem o
(BRAVO, 2007). tráfico. Sabemos que, em face da omissão
Bucher (2007) aponta que as visões sobre do Estado e da carência de políticas so-
prevenção, assim como as intervenções na ciais orientadas para a profissionalização
área do uso de drogas, são marcadas por e inserção profissional do jovem, o tráfico
duas concepções diametralmente opostas. de drogas converte-se em importante fator
Tais concepções resultam de éticas diferen- da economia local das comunidades de
tes sobre o papel das drogas na sociedade, baixa renda. Entretanto, o fenômeno da
e também sobre a vida social em si, do ser violência revela-se mais complexo e sua
humano, da visão de homem. A primeira compreensão envolve outros elementos,
avalia as drogas como um mal “externo” à que analisaremos a seguir, com base nos
sociedade, trazidas por traficantes e pro- resultados do Mapa da Violência apontado
dutores. Na segunda concepção, as drogas pela Unesco (WAISELFISZ, 2004):
não são trazidas de fora, mas representam – Os avanços da violência homicida
um mal inerente à sociedade, secretado por no Brasil são explicados exclusivamente
ela devido a desequilíbrios, tornando-se pelo aumento dos homicídios contra a
válvula de escape para sustentar tensões in- juventude.
toleráveis. As drogas, dessa forma, vestem – Hoje, aproximadamente 40% das
a carapuça de bode expiatório moderno, mortes de jovens devem-se a homicídios,
passando a representar novo “mal-estar na enquanto na população não-jovem essa
cultura”, caminhando ao lado da margina- proporção é de 3,3%. No Rio de Janeiro, Es-
lização social. pírito Santo e Pernambuco, essa proporção
ultrapassa 50%.
– Os homicídios vitimam fundamental-
2. Drogas, adolescentes e violência
mente a população de sexo masculino (93%)
É comum associar a juventude à vio- e de raça negra.
lência. Os jovens mantêm com a violência – Nos finais de semana, os homicídios
uma relação contraditória, oscilando entre aumentam dois terços em relação aos dias
a posição de vítima e a de agressores. de semana.
Compreender essa relação é crucial para – Os homicídios vêm crescendo mais
a elaboração de estratégias eficazes de rapidamente no interior dos estados do que
intervenção, que alcancem o objetivo de nas capitais ou regiões metropolitanas.
proteção e prevenção. Ao mesmo tempo, Esses dados evidenciam que, entre os
crescem as discussões sobre a violência jovens, o direito à vida se encontra em
juvenil e o questionamento sobre as possí- risco e necessita de atenção especial, já
veis soluções para a mesma aponta para o que a juventude está sendo desperdiçada

256 Revista de Informação Legislativa


em conseqüência da violência que a atin- da população juvenil na reprodução do
ge. Indicam também que esse problema, fenômeno, considerada a população mais
que há tempos era exclusivo dos grandes exposta e atuante no sistema de distribuição
centros urbanos, talvez em decorrência de drogas. Essas concepções traduzem-se
do incremento das políticas de segurança em posicionamentos tais como:
pública, começa a migrar para as pequenas – Eles (os jovens) são pobres e não têm
cidades do interior do país. Nesse contexto, do que sobreviver – justificando a inserção
o lazer passa a constituir fonte de risco, no tráfico pelas condições de pobreza.
demonstrado pelo aumento das mortes nos – Eles (os jovens) são infelizes e preci-
fins de semana. sam de drogas para se alienarem – justi-
O fenômeno endêmico de mortalida- ficando o consumo por uma demanda de
de juvenil revela um quadro desolador, alívio do sofrimento gerado pela condição
que mantém nossos jovens sob constante de exclusão social.
ameaça, fazendo com que se alternem nos – Eles (os jovens) são violentos por na-
papéis de vítimas e de algozes, situação que tureza e em virtude de falhas na educação
necessita ser imediatamente revertida. É familiar – justificando a marginalização em
preciso vencer o silêncio, a apatia, a falta de função de falhas na família.
perspectiva, a ausência de projeto de futuro – Matam porque não dão valor à vida –
e a resignação ante a tamanha barbárie, que justificando as práticas de violência como
compromete o projeto de futuro de um país aventuras em busca de se expor às situações
cuja população ainda é constituída predo- de risco.
minantemente de jovens. – Matam e morrem sob o efeito des-
De acordo com Sudbrack e Conceição controlado das drogas – justificando os
(2005), associar drogas à violência é uma homicídios pela supressão de consciência
das formas mais comuns de abordar e decorrente das drogas, que privam a pessoa
justificar ambos os problemas nos dias de auto-controle.
atuais, o que escamoteia as especificidades Mesmo considerando o aumento no
de cada problema e contribui sobremaneira que diz respeito às estatísticas de crimes
para a construção da violência. Freqüen- ligados aos efeitos das drogas, não pode-
temente essa associação é feita de forma mos esquecer o contexto mais amplo em
linear e parcial, resultando no aumento que a criminalidade ocorre, sob o risco de
das demandas por políticas repressivas de incorrermos em diferentes formas de redu-
segurança e de controle em detrimento das cionismo. Fatores como violência, tráfico e
políticas de saúde, assistência e educação. consumo de drogas se apresentam numa
Na realidade, poucas vezes se considera o relação estreita e impossível de ser sepa-
fenômeno das drogas em sua amplitude e rada, sobretudo nas camadas mais pobres
complexidade: ou se cai em alguma forma da população. Em função disso, o desen-
de reducionismo sociológico, abordando-se volvimento de ações sistêmicas em relação
a relação violência–tráfico como fenôme- ao abuso de drogas torna-se ineficaz sem o
no social, ou se peca pelo reducionismo amplo envolvimento e comprometimento
individualista da questão, que passa a ser da comunidade.
abordada como a doença dos dependentes
de drogas. Segundo as autoras, quando
3. Onda jovem no Brasil
se inclui a participação dos usuários na
construção do fenômeno, essa participação Como tem sido constatado em estudos
se reduz a perspectivas que reforçam a anteriores (Conceição & Oliveira, no prelo),
relação supostamente linear entre violên- a partir da década de 1980, a sociedade
cia e pobreza, com destaque para o papel brasileira empreendeu grandes esforços na

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 257


consolidação de políticas públicas voltadas Entre as ações, encontramos o Estatuto
à redução da mortalidade na primeira in- da Juventude, discutido em 2004 na Co-
fância. Doenças como a poliomielite e gran- missão Especial de Políticas Públicas para
de parte das viroses infantis foram erradi- a Juventude da Câmara dos Deputados.
cadas. Um importante trabalho de saúde Esse Estatuto, que tem o objetivo de propor
da família foi desenvolvido nas diferentes e acompanhar a consolidação de políticas
regiões do país para reduzir as mortes por nas áreas de saúde, educação, trabalho e
desidratação, problemas da água e baixa justiça, entre outras, foi o ponto de partida
qualidade nutricional. Essas ações, aliadas para a construção da Política Nacional da
à universalização da educação básica (em Juventude.
1996 alcançou-se o recorde brasileiro de A prioridade dada às questões da ju-
matrículas escolares, com 96% das crianças ventude pelo Governo brasileiro teve como
em idade escolar na escola), contribuíram marco importante o ano de 2005, quando
para que o Brasil, durante a década de 1990, foram criados simultaneamente a Secretaria
alcançasse a chamada onda jovem. Nacional da Juventude, o Conselho Nacio-
Esse fenômeno ocorre quando certo nal da Juventude e o Programa Nacional de
país atinge, como resultado do aumento da Inclusão de Jovens (ProJovem), em atenção
qualidade e expectativa de vida, um ponto à Política Nacional da Juventude.
ótimo na relação entre população jovem e O ProJovem trata de forma integrada e
idosa, de tal forma que a economia nacional criativa temas como escolaridade, profis-
pode contar com um número expressivo de sionalização e cidadania. Esse programa
trabalhadores jovens, bem qualificados e tem por objetivo ampliar o acesso e a per-
de mais baixa remuneração que os profis- manência na escola, a erradicação do anal-
sionais mais experientes, quando a geração fabetismo, geração de emprego e renda;
anterior ainda se encontra em idade produ- promoção dos direitos humanos e estímulo
tiva, o que dispensa altos investimentos em à participação social do jovem. Já está im-
previdência social. plantado em todas as capitais e no Distrito
Diferentemente de outros países, como Federal, além de 34 cidades metropolitanas,
os chamados tigres asiáticos, cujo acelerado atendendo mais de 163 mil jovens.
desenvolvimento econômico se deu em fun- Outros exemplos de políticas públicas
ção da gestão adequada da onda jovem, no para a juventude em realização, em ações
Brasil deixamos de aproveitar essa oportu- paritárias de governo e sociedade, são: os
nidade, não apenas em decorrência da falta Consórcios Sociais de Juventude, o ProUni,
de postos de trabalho para o jovem, fruto da o Soldado Cidadão, o Pontos de Cultura, o
economia recessiva, mas também por estar- Rondon, o Nossa Primeira Terra e o Escola
mos perdendo uma parte de nossos jovens de Fábrica.
pelo acirramento da violência e das práticas Entre eles, destacamos o ProUni, que
de risco, que não conseguimos evitar. busca retirar o Brasil da posição que ocupa
Esperamos ver esse quadro alterado como país da América Latina com menor
com as recentes ações de valorização da número de jovens de 18 a 24 anos cursando
juventude implementadas nos últimos o ensino superior. Esse é o maior programa
anos. As propostas aprovadas pela IV Con- de bolsas de estudo da história da educação
ferência Nacional dos Direitos da Criança brasileira, que objetiva possibilitar o acesso
e do Adolescente (2002) se resumem no de jovens de baixa renda à universidade.
“Pacto pela Paz”, que envolve uma agenda Outro marco significativo da atenção
de enfrentamento da violência, da qual à juventude e do reconhecimento de seu
crianças e adolescentes são considerados as importante papel na transformação da re-
maiores vítimas. alidade social brasileira foi a retomada do

258 Revista de Informação Legislativa


Projeto Rondon. O Rondon recruta jovens transformação social de seu meio imediato
nas universidades para que desenvolvam, (ROLDAN, 2001). Algumas ações nessa
durante as férias universitárias, trabalhos direção podem ser:
em vários estados do Brasil, nas suas áreas – Oportunidades de estudo, trabalho e
de estudo. Assim, a juventude brasileira de inserção sociopolítica que possibilitem
é levada a conhecer a realidade do país e ao jovem concretizar um projeto de vida
tem a oportunidade de contribuir para o e intervir nas ações e programas que lhes
desenvolvimento social e econômico. dizem respeito;
Agora, o Governo Federal quer ampliar – Controle efetivo do comércio de drogas
o diálogo internacional na área de juventu- legais e ilegais, aliado às ações educativas e
de. Recentemente foi assinada pela Presi- ao aprimoramento dos canais de reflexão
dência a proposta de adesão do Brasil como quanto ao significado e função do uso de
membro pleno na Organização Iberoameri- drogas pelos jovens e sua relação com ou-
cana de Juventude (OIJ), o que compromete tros comportamentos transgressivos;
ainda mais nosso país com as políticas em – Incentivos ao envolvimento dos jovens
desenvolvimento para a área. em serviços comunitários;
– Realização de campanhas e ações que
promovam o cumprimento das normas e
4. O papel das redes sociais na proteção
leis pelos jovens;
A comunidade tem um papel funda- – Implementação de espaços de reflexão
mental na proteção de crianças, adoles- crítica sobre o papel das mídias na constru-
centes e jovens contra o envolvimento ção de valores em torno do consumo, do
com drogas e outros comportamentos de prazer e da competição, entre outras.
risco. Em primeiro lugar, a escola deve Compreendendo a drogadição como
ter papel protagônico entre as ações pre- um sintoma, que revela sobre disfunções
ventivas e interventivas em relação às entre subsistemas da pessoa, da família e
drogas. A escola deve constituir também da sociedade, e não como uma doença em
um espaço privilegiado de acolhimento ao si mesma, consideramos que a demanda
adolescente, especialmente em situações de desses jovens às drogas representa um mo-
crise como as que acompanham o abuso de vimento de busca de solução para as tantas
drogas, nas quais ele deve se sentir seguro dificuldades vividas em sua condição de
e confiante de buscar apoio e proteção no vida, caracterizada por diferentes formas
ambiente escolar. Ademais, as iniciativas de exclusão. Nem sequer em contextos
recomendadas para aumentar os fatores caracterizados por condições adequadas
de proteção devem aproveitar os recursos e dignas de vida é possível considerar, a
disponíveis na comunidade, considerando priori, a demanda de drogas exclusivamente
as características socioculturais de seus res- do ponto de vista da busca do prazer, sendo
pectivos contextos e ativando outras redes necessário buscar compreender outras mo-
de apoio social. Ao mesmo tempo, dadas tivações potencialmente presentes. Quando
as peculiaridades locais, todas as iniciativas se trata de adolescentes de baixa renda, em
devem ser norteadas pelo princípio da cria- especial, o consumo de drogas, além de
tividade e do aproveitamento do potencial também atender às demandas típicas dos
inovador, tanto dos jovens quanto das processos de desenvolvimento da adoles-
diferentes esferas comunitárias. As ações cência (curiosidade, aventura, afirmação
implementadas devem ainda contribuir perante os pares), parece representar uma
para o desenvolvimento comunitário, au- busca de alívio diante de formas de sofri-
mentando a auto-estima da comunidade e mento psíquico já fortemente instaladas em
comprometendo o jovem na perspectiva de suas vidas: baixa auto-estima, insucesso na

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 259


escola, fracassos reiterados nas tentativas caracterizando-os como sujeitos de direitos
de ascensão social, conflitos nas relações e opinião.
familiares, falta de apoio e compreensão Alinhada com a perspectiva da redução
dos pais de suas necessidades adolescentes. de danos, que hoje domina a reflexão inter-
Tais dificuldades vêm agravar as angústias nacional sobre a abordagem do uso abusivo
naturais em relação ao futuro, às tarefas de drogas, e que está presente no artigo
sociais e às suas responsabilidades como 196 da Constituição Brasileira, a Política
membros de uma comunidade. Nacional Anti-Drogas/2005 (PNAD) está
Assim, as especificidades da relação comprometida com a promoção de uma
entre risco social e uso abusivo de dro- sociedade protegida do uso abusivo de
gas nos solicita uma reflexão consistente drogas, lícitas e ilícitas. Tem como pressu-
sobre como, historicamente, a sociedade postos fundamentais: a) a clara distinção
brasileira tem considerado o adolescente entre, de um lado, as diferentes categorias
usuário de drogas. A compreensão sobre de usuários e, de outro, o traficante; b) a
o fenômeno do consumo de drogas esteve, prioridade da prevenção sobre a repres-
por muito tempo, limitada a uma relação li- são; c) a realização de ações coordenadas
near do tipo causa e efeito e se negligenciou e integradas entre os diferentes órgãos e
a complexidade das relações envolvidas setores da sociedade, no desenvolvimento
no fenômeno. Essa perspectiva identifica, de estratégias de enfrentamento e supera-
nos fenômenos relacionados com o uso de ção dos problemas sociais decorrentes do
drogas, uma trama complexa de fatores, tráfico e do consumo de drogas ilícitas; d)
que se estende além do usuário e da droga o desenvolvimento de uma base de dados
(SUDBRACK; SEIDL; SILVA, 2003). acadêmico-científicos, que aglutine os re-
sultados já alcançados pela experiência bra-
sileira e internacional, nas ações orientadas
5. Políticas e legislação atual sobre drogas
à prevenção, acompanhamento e repressão
No Brasil, a referência teórica e práti- do uso abusivo de drogas.
ca em que se baseia a implementação de As diretrizes de ação da PNAD-2005
políticas públicas relacionadas ao uso de dividem-se em cinco eixos de intervenção,
drogas é o modelo das políticas de redução em face da problemática do uso abusivo
de danos. A proposta de redução de danos de drogas: prevenção; tratamento, recu-
tem como princípio aliar os interesses da peração e reinserção social; redução de
sociedade aos do usuário abusivo. As ações danos sociais e à saúde; redução da oferta;
têm por ponto de partida o desconforto e estudos, pesquisas e avaliações.
do próprio usuário com sua condição de Outro recente dispositivo jurídico im-
dependência e objetivam apóia-lo no pro- portante de ser destacado é a nova lei de
cesso de reduzir o consumo e substituir a drogas (Lei 11.343/2006). Esta lei prevê a
droga por outras de menor dano e menor descriminalização da posse de drogas para
potencial de indução de dependência, até uso pessoal, o que não significa, em absolu-
a completa superação da dependência, to, a sua legalização. Em outras palavras, o
se for o caso. A redução de danos supõe porte de drogas para consumo pessoal per-
não só uma forma diferenciada de abor- deu seu caráter de “crime”, mas continua
dagem terapêutica, quando comparada às sendo uma infração para a qual, portanto,
tradicionais, como também concede um cabe a aplicação de outras sanções, que
status jurídico e político diferente para os não mais a pena de prisão. Desse modo, do
usuários de drogas e para a comunidade, a ponto de vista legal, o usuário já não pode
quem se destina um lugar de protagonistas ser chamado de “criminoso”. A utilização
do planejamento e execução de medidas, de tal rótulo, além de contrariar a nova lei

260 Revista de Informação Legislativa


e expressar grave preconceito, também in- mente toleradas e seu consumo é parte
valida qualquer preocupação preventiva e integrante e importante das festividades
não-punitiva em relação ao usuário. e do lazer. Para um grande segmento dos
Assim, ao se considerar a questão das adolescentes atuais, da forma como se
drogas, é importante diferenciar o usuário representam e organizam seus diferentes
do traficante. O usuário é a pessoa que sistemas de atividades e redes de socia-
adquire a droga para consumo próprio, lização, as drogas lícitas e ilícitas fazem
seja por dependência química, ou não. O parte de diferentes esferas da vida social,
traficante é aquele que produz ou comer- de comemorações, de sua inserção no gru-
cializa drogas ilícitas. Para a Justiça deter- po. Em geral, o adolescente que consome
minar se a droga destina-se ao consumo drogas tem resistência em admitir que essa
pessoal, é necessário analisar a quantidade prática pode lhe causar problemas, gerar
da substância, as condições da apreensão dependência, o que dificulta a abordagem
e as circunstâncias sociais e pessoais do da questão e a mudança comportamental.
portador. Além disso, a grande carga de preconcei-
A legislação brasileira anterior sobre to social em torno do usuário contribui
drogas, datada da década de 1970, não fazia para reforçar a clandestinidade em que se
a diferenciação entre traficantes, usuários e inserem as práticas de consumo, além de
dependentes, para efeitos criminais. A nova levá-lo a isolar de sua identidade social
Política Nacional sobre Drogas (PNAD- pública, os aspectos relativos à relação
2005) e demais legislações têm gerado com as drogas ilícitas. Como efeito, nossa
uma mudança de paradigma na aborda- compreensão mais global do fenômeno e
gem daqueles caracterizados como meros as possibilidades de intervenção efetiva se
usuários ou dependentes. Em lugar da tornam limitadas.
pena de prisão, serão submetidos a penas É preciso cultivar valores de solidarie-
alternativas e encaminhados a tratamento dade, tolerância e respeito na construção
médico gratuito, não compulsório. Nesse da cidadania plena. Os caminhos que se
aspecto, as propostas da Organização delineiam são os de promover políticas e
Mundial da Saúde – OMS e as políticas pú- estratégias que estimulem a inserção e um
blicas brasileiras convergem, ao passarem papel protagônico para os jovens, que se
a tratar o dependente como “doente” e não articulem esforços e iniciativas do setor
como “delinqüente”. Assim, os usuários e público (federal, estadual e municipal),
dependentes de drogas, que foram outrora da esfera privada, das organizações não-
tratados como bandidos, passam a ser con- governamentais e dos próprios jovens.
siderados pessoas que precisam de ajuda É preciso promover o conhecimento, a
ou orientação. revalorização e o fortalecimento de nossos
Embora a nova abordagem contribua jovens, tornando-os agentes de processos
para uma visão mais humanitária dessas intencionais orientados para a construção
pessoas, é importante salientar que as de novas rotas de desenvolvimento huma-
concepções da sociedade sobre os usuários no e inserção social, mediadas por outros
de drogas ilícitas pouco se alteraram e se valores sociais, mais éticos, responsáveis e
continua a considerá-los como criminosos, comprometidos com a saúde.
moralmente desajustados, cúmplices e fi-
nanciadores do crime de tráfico de drogas.
É interessante notar que essas concepções Referências
expressam, no mínimo, um posicionamento
social moralmente ambíguo, numa cultura BRASIL. Conferência Nacional da Juventude.
em que as drogas lícitas são tão franca- Brasília: Câmara dos Deputados. Disponível em:

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 261


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sobre drogas. (no prelo).

262 Revista de Informação Legislativa


Os valores em Miguel Reale

Alexandre Marques da Silva Martins

Sumário
1. Introdução. 2. O valor na teoria dos ob-
jetos. 3. Características do valor. 4. Historicis-
mo axiológico. 5. Personalismo axiológico. 6.
Tridimensionalismo jurídico. 7. Nomogênese
jurídica. 8. Conclusões.

1. Introdução
O escopo do presente trabalho é o de
perscrutar os valores em Miguel Reale. O
falecido mestre desenvolveu a sua própria
teoria dos valores, que culminou por ser a
base de seu entendimento do direito, bem
como – de certa maneira – de sua visão de
mundo. Inicialmente, pretende-se situar os
valores na teoria dos objetos e apresentar as
suas principais características. Em seguida,
investigar-se-á o denominado historicismo
axiológico de Reale, que expõe o modo
como esse jusfilósofo entendia as relações
entre valores, história e cultura. Após, será
analisado o personalismo axiológico, que
legitima, em último plano, a teoria dos va-
lores realeana, que considera a pessoa como
valor fonte de todos os demais valores.
Compreendido como o valor se expressava
em Reale, será abordado o seu tridimen-
Alexandre Marques da Silva Martins é Pro-
sionalismo jurídico, que expõe como fato,
curador da Fazenda Nacional lotado em Bauru/ valor e norma se correlacionam. Ato con-
SP. Especialista em Direito Empresarial pela tínuo, discorrer-se-á sobre a nomogênese
PUC/SP e em Integração Econômica e Direito jurídica, que é o instituto que demonstra o
Internacional, Fiscal pela FGV/RJ. nascedouro de uma norma. Por fim, serão

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 263


consignadas as observações conclusivas e explicar os objetos naturais, quer físicos,
deste trabalho. quer psíquicos, porque se distinguem como
fenômenos que se processam, em geral,
segundo nexos constantes de antecedente
2. O valor na teoria dos objetos
a conseqüente. Todos os objetos nesse
Antes de se estudar as características domínio são suscetíveis de verificação
do valor com mais detalhes, é preciso sa- experimental, segundo pressupostos metó-
ber onde se situa o valor na realidade do dicos ‘não teleológicos’, pois os processos
conhecimento. Daí a importância da teoria finalísticos tornariam impossíveis a Física
dos objetos. e a Psicologia como ciências positivas”
É possível entender a teoria dos objetos (REALE, 2002, p. 179).
como o estudo da natureza de algo que é Diferentemente dos objetos naturais, há
passível de ser colocado como objeto do aqueles que não fazem referência nem a es-
conhecimento. Como obtempera Reale em paço nem a tempo. São os objetos ideais. São
seu Filosofia do Direito, geralmente tem-se entidades abstratas, que existem enquanto
uma percepção assaz pequena da realidade pensadas pelo homem. A matemática e a
humana. Muitas vezes, considera-se como lógica são as ciências que cuidam desses
real somente aquilo que está imediatamen- entes formais. Um quadrado, um número
te diante de nossos sentidos. Aquilo que complexo ou um silogismo são entidades
pode ser alvo de conhecimento é bem mais abstratas que, para existir, independem de
abrangente, contudo. duração no tempo (como um sentimento
Pode-se principiar citando os objetos de frustração) ou de extensão (como uma
físicos, que são aqueles que sempre fazem cadeira). Estão na mente humana. Melhor
referência ao espaço e ao tempo. Imagine-se ilustrando: mesmo que um professor de
um automóvel: ao se pensar, pode-se dis- matemática, por exemplo, deixe de pensar
pensar algumas qualidades do automóvel, em um número de uma equação por alguns
tais como cor ou resistência, mas jamais dias, quando ele voltar a pensar nessa equa-
se pode evitar de pensar na sua extensão ção, o dito número lá estará, como sempre,
e na sua duração. Como corpo físico que diferentemente de algum sentimento que
é, o automóvel terá as suas medidas ou esse mesmo professor tenha experimentado
extensão, bem como, durante a sua vida em sua mente, pois esse sentimento jamais
útil, fará referência ao tempo. retornará, tendo deixado de existir simples-
Por outro lado, há os objetos psíquicos. mente quando o professor o dissipou de
O ser humano, por suas qualidades pró- sua consciência. Podem alguns confundir
prias, possui toda uma série de sentimen- o objeto ideal com a sua representação grá-
tos como paixão, raiva, amor, angústia, fica: um triângulo na mente de um físico é
piedade etc. Essas sensações, que circulam representado quando este físico o utiliza
no espírito humano, ao contrário dos bens num gráfico. A representação dessa figura
físicos, dizem respeito tão-somente ao geométrica não é ideal, mas física.
tempo. Esses sentimentos todos existem Prosseguindo na investigação da teoria
apenas enquanto duram na consciência do dos objetos, o valor é tido por Reale como
homem. uma realidade autônoma. E nisso consiste
Os objetos físicos e os psíquicos são uma grande inovação realeana. Embora
espécies dos denominados bens naturais. também seja desprovido de espacialidade e
Aquilo que eles têm em comum a ponto temporalidade como o objeto ideal, o valor
de serem classificados num mesmo grupo possui uma característica bem peculiar: ele
é o princípio da causalidade. Com efeito, é só pode ser considerado a partir de alguma
esse princípio “que nos possibilita atingir coisa existente anteriormente, qual seja, das

264 Revista de Informação Legislativa


coisas valiosas. Outra diferença digna de forma de integração de ser e dever ser”.
nota é que o objeto ideal pode ser quantifi- Reale aduz que tais objetos “são enquanto
cável, já o valor não. Pode-se imaginar três devem ser”. Vê-se, assim, que “trata-se de
circunferências, mas não se pode afirmar realidades cujo ser é entendido sempre sob
que “o Davi de Miguel Ângelo valha cinco o prisma de algum valor. Por essa razão,
ou dez vezes mais que o Davi de Bernini. A seu ser não é acessível apenas do plano
idéia de numeração ou quantificação é com- do ser, mas do dever–ser que os julga,
pletamente estranha ao elemento valorativo sempre, como objetos valiosos” (GARCÍA,
ou axiológico. Não se trata, pois, de mera 1999, p. 19). Nessa linha de pensamento, a
falta de temporalidade e de espacialidade, cultura integra o mundo do ser e o mundo
mas, ao contrário, de uma impossibilidade do dever-ser. Ver-se-á, logo mais, que,
absoluta de mensuração” (REALE, 2002, p. para Reale, a cultura é tida como forma
187). Reale admite que se possa, por meios integrativa daquilo que é natural à esfera
indiretos, medir o valor quando se quer, à dos valores, de sorte que, sem a mesma, a
guisa de exemplo, saber o preço de uma natureza careceria de significado e o valor
estátua ou de um instrumento musical; seria inconcebível.
porém, tal mensuração seria, segundo ele, Compreendido como o valor situa-se
simples parâmetro para tornar nosso coti- na teoria dos objetos, cumpre passar-se à
diano mais pragmático. análise das suas características, que igual-
O valor, consoante Reale, é insuscetível mente receberam tratamento inovador do
de definição. Isso decorre do fato de que saudoso mestre.
tanto o ser como o valer são duas catego-
rias fundamentais do homem perante a 3. Características do valor
realidade. Se tenho um automóvel antigo
cheio de defeitos, ao olhá-lo, a realidade A primeira característica básica do valor
enuncia-me todas as qualidades que o meu é a bipolaridade. Isso quer dizer que todo
veículo possui, principalmente os defeitos. valor tem um desvalor que lhe contrapõe.
Esse é o mundo do ser. Todavia, se sonho É como se o valor fosse uma pessoa que,
em ter meu automóvel repintado, com diante de um espelho, ver-se-ia de cabeça
assentos novos e motor consertado, isso para baixo. O desvalor é a antítese do valor.
pertence ao mundo do dever-ser. E aqui Dessa maneira, há o bom e o mau; o bonito
se vislumbra a autonomia do valor como e o feio; o certo e o incerto. Disso decorre
expressão do dever-ser. Ao imaginar ter um que, para que um valor possua sentido, é
veículo melhor, faço um juízo de valor, ou mister que se exija, concomitantemente,
seja, imagino como algo deveria ser. Disso o sentido de seu desvalor. Verificam-se,
deflui que, à luz do entendimento realeano, então, valores positivos e negativos em
tanto o ser como o valor são indefiníveis. O permanente conflito numa dialética de
máximo que se pode afirmar, como faz Rea- complementaridade1.
le, é que “ser é o que é” e que “valor é o que 1
Nesta quadra, insta frisar que um instituto fun-
vale”. Na verdade, a realidade resume-se a damental para que se compreenda bem o pensamento
juízos sobre o ser ou juízos de valor. Outras de Reale (1994), notadamente o seu tridimensionalis-
mo concreto e dinâmico, é a dialética de complemen-
alegações do tipo “o homem transforma- taridade. Quando se discorrer, mais adiante, como
se na sociedade” sempre consistirão num se processa a nomogênese jurídica, ver-se-á que um
daqueles dois juízos. “Transformar-se na complexo de valores incide sobre um complexo de
sociedade” significa o ser evoluindo na fatos sociais. Na discussão legislativa, somente um ou
alguns desses valores acabam prevalecendo. Com a
escala temporal. dialética de complementaridade empregada por Reale,
Finalmente, objetos complexos são os resta mais nítido que fato e valor estão em permanente
objetos culturais, que representam “uma tensão. Ambos fazem parte da realidade jurídica,

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 265


A seara jurídica é particularmente pessoa toma partido acerca de um valor,
fecunda para o estudo da bipolaridade ela está se inclinando numa dada direção
dos valores. Todo o ordenamento jurídi- ou fim. Aquele valor que ela adota como
co funda-se em valores que pretende ver sendo o mais apropriado em determinada
tutelados, isto é, protegidos. Com efeito, situação implica um sentido, uma referên-
pode-se asseverar que, para o lícito, existe cia. O valor, por assim dizer, atua como
o ilícito. Essa dialeticidade está presente verdadeiro vetor, como se fosse uma bús-
tanto no plano do direito material como no sola apontando para uma direção.
do direito adjetivo. No Código Penal, em Outra característica do valor é a prefe-
contraposição ao valor vida, há o desvalor ribilidade. Situando-se o valor no plano do
morte. No processo penal, há um autor e dever-ser, ele enuncia como algo, em tese,
um réu, cada qual defendendo interesses teria de ser. Por outro lado, o ser humano
conflitantes: o autor pretendendo a conde- é um ser livre, ou seja, tem a possibilidade
nação do réu e este a sua inocência. Reale de escolher este ou aquele caminho numa
vai ainda mais longe, sustentando que o determinada situação. A liberdade do ser
motivo da existência do direito repousa na humano – como bem realçado por Reale
possibilidade de desrespeito aos valores na vastidão de sua obra – é fundamental
que a sociedade reputa como indispensá- para o seu desenvolvimento. Nota-se, pois,
veis à harmonia coletiva. a íntima relação entre valor e liberdade,
Implicação recíproca é outra nota do já que, em razão de ser livre, o indivíduo
valor, na medida em que nenhum valor é pode escolher aquilo que lhe mais aprou-
concretizado sem ter interferência, ainda ver. Nessa quadra, importante salientar
que indireta, na concretização de outros que a preferibilidade explica como uma
valores. A eventual proibição do porte de sociedade, numa dada época, tem certo
arma por civis, por exemplo, poderia servir entendimento do mundo e da vida, de-
para assegurar o valor paz. Sucede que a pendendo do modo como os seus valores
paz asseguraria, também, o valor seguran- são classificados, permitindo, assim, uma
ça, e assim por diante. Destarte, pode-se hierarquia axiológica.
asseverar que há verdadeira solidariedade Outro ponto digno de menção é a objeti-
entre os valores. vidade dos valores. É sabido que os valores,
Da bipolaridade e implicação recípro- como expressão do dever-ser, refletem o
ca decorre a referibilidade. Quando uma protótipo de perfectibilidade que as coi-
sas deveriam ter. A vida do ser humano,
cada um exercendo seu papel. Por cumprirem papéis
opostos, poderia haver um suposto entendimento
por seu turno, inspira-se nessa idéia de
de que fato e valor se excluiriam na trama jurídica. perfectibilidade. A conseqüência disso é
Entrementes, no novo enfoque preconizado por Reale, que os valores acabam por ter reflexo em
os dois elementos da relação, antes de se mutilarem, criações e concretizações da civilização
implicam-se, mas sem deixar a tensão ou conflito
entre ambos de lado. Consoante Miguel Reale, em se
humana. Tal se dá mediante os objetos
cuidando da dialética em comento, “dá-se a implica- culturais (pesquisados linhas acima). Em
ção dos opostos na medida em que se desoculta e se outras palavras: os valores, realizando-se
revela a aparência da contradição, sem que com este profundamente, irradiam-se no evolver do
desocultamento os termos cessem de ser contrários,
cada qual idêntico a si mesmo e ambos em mútua
mundo histórico-cultural.
e necessária correlação. É sobretudo no mundo dos Historicidade é a característica por
valores e da praxis que mais se evidencia a existência excelência na teoria dos valores de Miguel
de certos aspectos da realidade humana que não po- Reale. Nesse diapasão, o valor não pode
dem ser determinados sem serem referidos a outros
aspectos distintos, funcionais, ou até mesmo opostos,
ser compreendido como uma realidade
mas ainda assim essencialmente complementares” estanque, divorciada do desenrolar histó-
(REALE, 1994, p. 72). rico-cultural do ser humano. Nas diversas

266 Revista de Informação Legislativa


civilizações, o modo de percepção da vida utilizada pelo jusfilósofo italiano Luigi Ba-
e dos costumes baseava-se numa tábua de golini, que traduziu para o idioma italiano
valores. Sobre o que era tido como dado, o livro Filosofia do Direito de Reale em 1956,
ou seja, sobre a natureza, o indivíduo para explicitar o pensamento filosófico do
possuía um leque de opções valorativas. falecido mestre.
Escolhendo uma delas, dirigia-se a um fim. O historicismo axiológico implica a vital
Vislumbra-se, então, que os valores são his- correlação entre os institutos da axiologia,
tóricos, decorrentes das diversas condutas história e cultura em termos de dialética
estimativas do ser humano sobre aquilo de complementaridade. Nesse ponto, útil
que era tido como já dado. Segundo Reale, consignar que cultura deve ser compreen-
o liame entre história e valor é tão intenso dida como a realidade humana constituída
que seus estudos acabaram por desaguar pela pessoa no transcorrer da história.
no “historicismo axiológico”, que é o nome Além disso, aduza-se a forte influência da
de sua teoria axiológica. história no pensamento realeano, conforme
Realizabilidade e inexauribilidade são se pode observar nas palavras do grande
as duas últimas principais notas dos valo- jusfilósofo: “é por essa razão que o nosso
res. Por realizabilidade pode-se entender historicismo, o historicismo reclamado
a concretização dos valores nas passagens pelas perplexidades e pelos desenganos do
histórico-culturais. Tido como aquilo que homem contemporâneo, não se resolve nos
deve ser, o valor acaba influenciando a graus sucessivos de um processo unitário,
experiência humana, traduzindo-se, direta nem mesmo na ‘totalidade do processo his-
ou indiretamente, em atos da atividade tórico’, mas se funda antes na historicidade
histórico-cultural. Vê-se, pois, que entre originária do homem e de suas alteridades”
o valor e a realidade há estreita ligação. (REALE, 1994, p. 137-138).
Entrementes, quando um valor realiza-se Na análise do liame entre axiologia
no evolver de um ciclo civilizatório, ele não e história, percebe-se que o valor possui
se esgota. Daí advém a inexauribilidade objetividade, conforme acima menciona-
axiológica. Equivale asseverar que, embora do. Manifestando-se na concretização do
um valor possa se transformar em uma por- mundo histórico-cultural, os valores não
ção da realidade, ele não se resume a esta, têm a sua existência voltada para si, mas
tampouco pode coincidir in totum com ela. para os indivíduos. Entretanto, disso não
Destarte, verifica-se que o valor atualiza-se se pode inferir que “os valores só valham
constantemente, jamais se concretizando por se referirem a um sujeito concreto ou
em definitivo. O valor está sempre procu- individual, posto como sua medida ou
rando superar a realidade, sob pena de se razão de ser, porque, embora seja verdade
tornar estático e, via de conseqüência, de- que se referem sempre à subjetividade, ela
ficiente. Inevitável concluir, portanto, que deve ser entendida como a humanidade
valor e realidade estão envolvidos numa em geral, ou seja, como ‘sujeito universal
dialética de complementaridade. de estimativa’. Assim, não se reduz às
vivências preferenciais desse ou daquele
indivíduo concreto, mas às interpretações
4. Historicismo axiológico
sobre a realidade que dominaram cada fase
Por historicismo axiológico pode-se ou época histórica, que serão denomina-
entender o modo como Reale interpretava das ‘civilizações’ com suas ‘constelações
a axiologia e a cultura, que, no fundo, expli- axiológicas’ correspondentes” (GARCÍA,
cam como o citado filósofo fundamentava 1999, p. 47-48).
a sua conceituação de direito. A expressão Sucede que nem toda valoração ou pre-
“historicismo axiológico” foi pioneiramente ferência subjetiva acaba por se transformar

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no “complexo de valores” de cada civiliza- tividade, posto que, “mesmo querendo
ção. Para que isso ocorra, é preciso que a que o conhecimento seja objetivo, sempre
valoração em comento esteja revestida de partimos de uma ‘intuição emocional’,
significação, isto é, que protagonize uma em busca de uma compreensão na esfera
função de relevo na história. total da vida. Por essa razão, não se deve
Fenômeno complexo é o de escolha pretender procurar a exatidão própria das
axiológica, ou, em outras palavras, de como ciências físico-matemáticas, nem a pleni-
é levado a cabo o procedimento de determi- tude das conexões lógico-matemáticas. O
nação axiológica, já que, em certas épocas conhecimento dos valores é uma questão
históricas, pode haver uma “zona nebulosa” de ‘compreensão’ própria das ciências
que deixe dúvidas sobre quais valorações humanas ou espirituais” (REALE, 1977,
subjetivas são as mais essenciais. p. 181-186 apud GARCÍA, 1999, p. 51). A
Para explicitar como se dá o procedi- incompletitude, por sua vez, deriva do fato
mento de determinação axiológica, é curial de que jamais é factível o esgotamento de
trazer à baila a tríplice função do valor todas as estruturas axiológicas irradiadas
à luz do entendimento realeano. Assim, nas diversas civilizações no transcorrer do
uma das teses formadoras da sua teoria tempo. O valor, mesmo sendo expressão
tridimensional do direito é a “conseqüente autônoma do dever–ser, está em constante
reformulação do conceito de experiência mutação, eis que detém a característica da
jurídica como modalidade de experiência inexauribilidade. Ilustrativo é o exemplo do
histórico-cultural, no qual o valor atua valor justiça, que vem sofrendo alterações
como um dos fatores constitutivos dessa periódicas desde a Grécia Antiga.
realidade (função ôntica) e, concomitan- Uma última questão pertinente ao lia-
temente, como prisma de compreensão me entre axiologia e história é aquilo que
da realidade por ele constituída (função Reale entende por tempo histórico. Este,
gnoseológica) e como razão determinante captado como o lapso temporal em que
da conduta (função deontológica)” (REALE, os valores são atualizados, não se resume
1994, p. 62-63). E é justamente a função de- tão-somente ao presente. Na verdade, no
ontológica que viabilizará o conhecimento bojo do tempo histórico, presente, passado
racional dos fatores axiológicos, permitin- e futuro estão em verdadeira dialética de
do, via de conseqüência, a sua escolha no complementaridade, conforme se pode
evolver da história. concluir com as seguintes palavras: “... o
Logo, fazendo a função deontológica homem é, também, a história por fazer-se. É
referência a um fim, este, “a partir do mo- próprio do homem, da estrutura mesma de
mento em que pode ser reconhecido como seu ser, essa ambivalência e polaridade de
motivo de conduta, seja ela individual ‘ser passado’ e ‘ser futuro’, de ser mais do
ou coletiva, passa a adquirir uma certa que a sua própria história. E note-se que o
objetividade, porque transcende sempre futuro não se atualiza como pensamento,
a mera eleição empírica, situando-se antes para inserir-se no homem como ato – caso
de qualquer conduta possível. Mas, por em que deixaria de ser futuro –, mas revela-
sua vez, essa objetividade e anterioridade se em nosso ser como possibilidade, tensão,
à conduta empírica supõe a possibilidade abertura para o projetar-se intencional de
de chegar ao conhecimento desse fim, à nossa consciência, em uma gama constitu-
sua captação ontognoseológico-racional” tiva de valores” (REALE, 1994, p. 137).
(GARCÍA, 1999, p. 49). A exposição do conceito de tempo his-
Esse processo de escolha axiológica, tórico realça sobremaneira como Reale via
consoante Reale, é revestido de relativi- as ligações entre história e cultura, de um
dade e incompletitude, contudo. Rela- lado, e tempo histórico e tempo cultural, de

268 Revista de Informação Legislativa


outro, estando todas essas ligações em per- podem marcar alguns ciclos civilizatórios,
manente dialética de complementaridade. mas desaparecer em outros, ressurgindo
Saliente-se, ainda, que a exata compreensão posteriormente, em caráter eventual. Isso
da ligação entre tempo cultural e tempo his- demonstra como o espírito busca incessan-
tórico permitirá entender as “objetivações temente superar os obstáculos que surgem
axiológicas” como maneiras de enxergar o na sua existência. Com efeito, observa-se
mundo e a vida que deixam marcado cada que, havendo uma tábua de valores pre-
ciclo cultural, ou seja, as “constelações ponderantes em uma fase histórica, pode-se
axiológicas”, e, também, a eventualidade de cogitar de uma ordenação ou hierarquia no
algumas dessas objetivações protraírem-se seio dos valores, ainda que essa ordenação
no tempo, de modo indefinido, assumindo possa alterar-se no porvir da história.
a forma de “invariantes axiológicas”. Questão de grande magnitude é aquela
Além do tempo histórico, uma outra de se saber se cada ciclo civilizatório esgota-
concepção temporal igualmente desenvol- se em si mesmo ou se há herança no proces-
veu-se: trata-se do tempo cultural, fruto so de seleção que se leva a cabo no transcor-
do pensamento de índole filosófica a partir rer histórico. Nesse quadro, Reale sinaliza
da cultura. Essa nova dimensão temporal no sentido da continuidade: “no renovado
pode ser conceituada como o tempo de esforço do homem de vencer-se e de vencer
“presencialidade ou atualidade das obras a natureza, na História concebida, em suma,
realizadas pelo homem, seguindo linhas como a ‘autoconsciência mesma do homem’,
de relevância variáveis de uma época para os valores de uma civilização podem ser
outra, porém reveladoras de certa constân- assimilados ou experimentados, com ou
cia ou duração, uma vez traduzidas à luz sem deturpação, por pessoas pertencentes a
da consciência comum”, ou seja, o tempo outras coordenadas estimativas, e as forças
cultural “manifesta o ‘valor atemporal’ dos primordiais do espírito circulam através das
eventos culturais em face dos históricos, civilizações, vivificando-as, como se cada
de forma tal que eles transcendem a mera uma delas fosse uma nota oportunamente
historicidade e temporalidade” (REALE, inserida na orquestração sinfônica da qual
1977, p. 222 apud GARCÍA, 1999, p. 56). somos, ao mesmo tempo, compositores e
Vislumbra-se, pois, que os bens culturais executores” (REALE, 2002, p. 233).
estão em permanente atualização, podendo Partindo-se do pressuposto de que é
daí aparecer as constantes e invariantes viável uma ordenação axiológica, resta
axiológicas. saber como a mesma é efetuada. Na óptica
Nas últimas décadas, o instituto da realeana, o valor mais elevado ou valor
cultura tem sido alvo de importantes dis- fonte é o da pessoa humana. Todos os
cussões filosóficas, em virtude de sua influ- demais valores valem em razão deste va-
ência no entendimento da realidade do ser lor fundamental supremo. Em seguida, a
humano. Segundo a concepção realeana, classificação oferecida por Reale procura ter
tudo que o espírito concretiza no evolver da presente todas as necessidades prováveis
história, em razão de criações permanentes que inquietam o ser humano. Essas neces-
entre o dado (a natureza) e seus próprios sidades são representadas em cinco valores
atos de valorar, pertence à esfera do cultu- fundamentais: o verdadeiro, o belo, o útil, o
ral. Assim sendo, são realizações de cultura santo e o bem. Ademais, há valores subordi-
tanto o ato de plantar algo como a prolação nantes e subordinados, clarificando, assim,
de uma sentença. a gradação hierárquica dos valores.
O processo cultural pode mostrar épo- Os valores subordinados são classifi-
cas que apresentam concepções de mundo cados em obediência aos valores funda-
diferentes. Em vista disso, certos valores mentais. Como acima exposto, os valores

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podem mudar de um ciclo civilizatório Ocorre que Reale vai mais longe ainda, sus-
para outro, alterando, pois, a ordenação dos tentando que alguns desses valores subor-
mesmos. E é justamente essa gradação hie- dinantes desgarram-se da civilização que
rárquica de cada época cultural que Reale os concebeu para atingirem um patamar
chama de “constelação axiológica”. Nesse mais alto, de sorte a desempenharem um
diapasão, é oportuno frisar que inexiste papel de caráter universal transcendente e
hierarquia entre os valores fundamentais, definitivo. São as denominadas invariantes
sendo que estes se subordinam somente ao ou constantes axiológicas. Para se aperceber
valor fonte, que é o da pessoa humana. Por da relevância do assunto para Reale, basta
seu turno, os valores subordinados devem ler as seguintes palavras suas: “não creio
fazer referência aos valores subordinantes possa haver tema mais fascinante do que
ou fundamentais. este das invariantes axiológicas, isto é, da
Perscrutando-se os valores subordinan- existência ou não de valores fundamentais
tes, quanto ao valor do verdadeiro, pode-se e fundantes que guiem os homens, ou lhes
asseverar que ele “condiciona, em geral, a sirvam de referência, em sua faina cotidia-
ontognoseologia em seus diversos graus na” (REALE, 1996, p. 95). Exemplo mar-
e manifestações, por ter sido entendida cante de invariante axiológica é da pessoa
como a parte da filosofia que se ocupa do humana. Tal invariante, “que condiciona a
acesso ao conhecimento do real, no sentido vida ética em geral – e a jurídica em parti-
lato desta palavra” (GARCÍA, 1999, p. 65). cular –, transcende o processo empírico no
No que se refere ao valor do belo, ele está qual e do qual emergiu para adquirir uma
vinculado às artes e à estética. O valor do validade universal. Desse modo, supera-
útil é aquele ligado à atividade econômica mos o transcendentalismo lógico-formal
ou industrial, assim como à filosofia econô- de Kant para dar lugar a uma concepção
mica. Em seguida, surge o valor do santo, transcendental ao mesmo tempo axiológi-
que é aquele que engloba a religião e a ca e histórica, o que pressupõe a acolhida
filosofia da religião, ou seja, neste campo, do pensamento de Husserl quando ele
tenta-se explicar a contingência existencial supera o a priori formal kantiano graças ao
humana na religião ou numa realidade de conceito a priori material, o qual condiciona
cunho transcendente. Por fim, há o valor transcendentalmente o conteúdo do real”
do bem, que se refere à esfera da ética em (REALE, 2001, p. 63).
seus vários níveis: o social (o direito e os As constantes axiológicas, por seu turno,
costumes) e o individual (a moral). dariam lugar ao direito natural. Na concep-
Esses valores subordinantes menciona- ção realeana, “de tais paradigmas axiológicos
dos sempre inspiraram a conduta individu- resultam determinadas normas que são
al e coletiva nas mais variadas civilizações. consideradas idéias diretoras universais da
Pode-se afirmar que são um legado para os conduta ética, costumeira e jurídica. A essas
indivíduos. Embora a concepção do que é normas, que nos permitem compreender a
justo, falso, milagroso, feio ou barato tenha natureza e os limites do Direito Positivo, é
mudado constantemente no desenvolvi- que denomino Direito Natural, de caráter
mento da história, não é menos certo que es- problemático-conjetural... há, em suma,
ses valores sempre guiaram a humanidade uma idéia e não um conceito de Direito
nos seus diversos ciclos culturais. Verifica- Natural, como o horizonte metafísico da po-
se, então, um relativismo axiológico, que sitividade jurídica” (REALE, 2001, p. 47-48).
pode ser traduzido na busca incessante Vê-se, pois, que a visão que Reale tinha do
de um valor cujo entendimento altera-se direito natural é diametralmente oposta ao
segundo a visão de vida e de mundo que “dogmatismo absolutista”, típico do direito
predomina numa época determinada. natural racionalista ou teológico.

270 Revista de Informação Legislativa


5. Personalismo axiológico guação da essência humana. Conhecendo-
se como esta é composta, concluir-se-á que
Quando do estudo do historicismo axio- homem, pessoa2 e valor são fatores vitais na
lógico, verificou-se que a tríade axiologia/ antropologia tida por Reale, de sorte que
história/cultura era fundamental para esses fatores também estão numa relação
Miguel Reale. Dessa forma, partindo-se da dialética de complementaridade.
investigação desses três elementos, pode-se A primeira característica do ser humano
concluir que os valores consubstanciam-se é a sua racionalidade ou, utilizando-se a ex-
em parcela autônoma da realidade, não pressão empregada por Reale, o seu poder
se desvinculando, contudo, da realidade nomotético, entendido esse como a faculda-
histórico-cultural na qual estão mergulha- de humana “de outorgar sentido aos atos e
dos. Nesse ponto, é digno frisar que, na às coisas, faculdade essa de natureza simbo-
vasta obra realeana, às vezes, os institutos lizante, a começar pela instauração radical da
abordados são discerníveis sem serem se- linguagem” (REALE, 2002, p. 211). De fato,
parados, como se estivessem inseridos em diferencia-se o homem dos demais seres
universos totalmente estanques. In casu, vivos pela sua capacidade de dar sentido
axiologia, história e cultura têm, cada uma, às coisas, pela sua capacidade de síntese ou
a sua conceituação própria, mas, nem por de criação. Tal poder nomotético se revela,
isso, deixam de tomar parte da mesma rea- por si só, vinculado à liberdade que possui
lidade na qual interagem reciprocamente. o ser humano, já que, em qualquer ato de
Os valores, no âmbito de sua gradação reconhecimento por parte do homem, está
e gênese, possuem como fundamento a implícita uma ação livre.
pessoa humana. Todos os demais valores Nessa esteira, a liberdade revela-se
fundamentais devem fazer reverência ao outra notável característica do homem. Se
valor da pessoa humana. Isso restou cla- o homem não fosse um ser livre, ele não
ramente demonstrado pelo historicismo seria capaz de tomar decisões a fim de dar
axiológico. Apesar da forte vinculação da sentido às coisas que o circundam. O seu
axiologia com a história e a cultura, nota- poder de síntese estaria irremediavelmente
se que a explicação última da teoria dos mutilado. Nesse diapasão, curial obtempe-
valores de Reale reside na figura da pessoa rar que “somente a dialética de implicação
humana. E é essa justificação última da e polaridade poderá explicar-nos como é
axiologia realeana aquilo que se chama de que o valor não se anula quando se insere
personalismo axiológico. no plano do ser, por meio da liberdade,
O personalismo axiológico fornece as a qual é possibilidade infinita de experi-
razões de como aquilo que aparece na órbita ências axiológicas, isto é, de ações e, por
da consciência individual ou social possui conseguinte, também um valor” (REALE,
aptidão de fazer com que o ser humano fi- 1963, p. 42).
que adstrito a guiar-se por um determinado A historicidade é a derradeira das mais
caminho, isto é, para um fim tido como mo- importantes características do homem. Este
tivo de conduta. Em outras palavras: o histo- não pode jamais ficar reduzido a uma vida
ricismo axiológico abriu a estrada para que causal e traçada tão-somente pelos proces-
o personalismo axiológico pudesse explicar sos de índole natural. Mediante a liberdade,
por que o indivíduo, na sua faina histórica, o indivíduo vai selecionando aquilo que
revelou-se ser extremamente valorativo, mais lhe aprouver a fim de satisfazer as
bem como os motivos pelos quais o mesmo suas necessidades, construindo, assim,
ver-se-ia jungido a dados valores. 2
Conforme será a seguir exposto, para Reale, há
Para que o problema acima posto possa diferenciação entre as figuras do homem e da pessoa
ser deslindado, é preciso ir fundo na averi- humana.

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o edifício da sua própria história. Diante nição de pessoa a de “espírito absoluto”, o
da pequenez dos motivos físico-causais que, segundo Reale, acabou por desaguar
para definir a natureza do ser humano, a na outra extremidade da questão: “o que,
axiologia surge para conceder lógica ao na realidade, se verificava era uma perda
processo das suas opções. Portanto, “a do sentido autêntico da pessoa como ‘sin-
dimensão histórico-cultural na antropolo- gularidade’, para prevalecer a pessoa como
gia realeana transforma-se numa das suas simples ‘momento de um ser transpessoal’
interpretações chave, conferindo-lhe uma a que se chamou ‘sociedade’, ‘espécie’,
nova dimensão dinâmica e de permanente ‘classe’, ‘raça’, ‘idéia’, ‘espírito universal’,
projeção no mundo. Essa é uma das ativi- ‘consciência coletiva’ etc.” (REALE, 1994,
dades primordiais, porque dela depende a p. 134).
constituição da própria personalidade do Consoante Reale, tanto Kant como He-
homem (no nível individual) e a do con- gel, nos seus ensinamentos, não lograram
texto histórico-social que o cerca (enquanto levar a cabo o equilíbrio necessário entre, de
co-participante numa comunidade de indi- um lado, a liberdade de cada ser humano e,
víduos)” (GARCÍA, 1999, p. 79-80). de outro, a respectiva sociabilidade de cada
Vendo-se as características acima indivíduo. É precisamente essa conciliação
mencionadas, vislumbra-se a presença que Reale pretende efetuar. Com efeito, na
marcante do valor. O ser humano é es- visão realeana, almeja-se “superar numa
sencialmente valorativo. Todas as suas nova compreensão o valor da pessoa e o
condutas são embasadas pela concretização valor da história, que é o homem enquanto
de algum valor. Ademais, percebe-se que o pessoa (como revelado por Kant), com o
ser humano não é como tal apenas pela sua drama histórico das pessoas coexistentes
existência, mas sim em decorrência da sig- (que Hegel quis abranger numa poderosa
nificação que para ele possui a sua própria unidade integrante)... pôr-se como pessoa
vida. Essa significação pode ser traduzida é pôr-se como história, como alteridade,
como autoconsciência da sua dignidade. como comunidade, e a redução de uma à
Disso deflui o conceito de pessoa. Sendo outra romperia a unidade concreta, o mes-
um ente dotado dessa autoconsciência, ela mo resultando se prevalecesse uma sobre
torna-se, na óptica realeana, o valor fonte, a outra” (REALE, 1994, p. 136-137).
isto é, ela vale para que todos os outros Visto como Reale entendia os valores,
valores valham. cumpre verificar como o citado jusfilósofo
Nos termos do personalismo apregoado compreendia a relação fato/valor/norma,
por Reale, pode-se citar Kant como aquele que, em última análise, explicava como ele
que pioneiramente reconheceu essa cons- concebia o direito.
ciência de dignidade. No entendimento
kantiano, o homem, enquanto tal, possui
6. Tridimensionalismo jurídico
desde logo um valor inesgotável. Surge,
pois, com Kant, a esfera ético-moral do No século XIX, o formalismo jurídico
homem, que o compele a atuar em virtude ganhou muita força, acabando por prevale-
de fins, distinguindo-se, por conseguinte, cer na mentalidade da maioria dos cultores
dos demais seres. Todavia, Reale critica do direito. À guisa de ilustração, pode-se
Kant pelo seu formalismo radical na órbita mencionar o movimento dos pandectistas
prática e, também, pela falta de uma visão germânicos, que, com o seu rigorismo
histórica acerca do tema. Posteriormente, científico, acabou dando nova roupagem ao
outros pensadores como Hegel tentaram antigo direito romano, atualizando-lhe com
suprir esse acanhamento do entendimento conceituações mais precisas e sistematiza-
kantiano. Para tanto, antepuseram à defi- ções bem profundas. Entretanto, já no final

272 Revista de Informação Legislativa


do século citado, começou-se a vislumbrar sucedia na realidade, no cotidiano da socie-
que a realidade do cotidiano não corres- dade em geral. Entretanto, mesmo estando
pondia exatamente àquela idealizada pelos intensamente à procura do concreto, não
partidários do formalismo. As definições e se deve perder de vista que os papéis do
sistematizações encontradas nos códigos e filósofo e do jurista permanecem diversos.
leis não eram suficientes para solucionar A este último é incumbida, em síntese, a
os litígios que batiam nas portas dos tribu- aplicação e interpretação da legislação. E
nais. O avanço da sociedade, em especial ao filósofo cabe perquirir acerca dos moti-
no campo tecnológico, deixava patente a vos universais embasadores dos modelos
insuficiência do direito então vigente para correntes e possíveis, além dos porquês da
dar uma resposta adequada às demandas dinâmica do operador do direito quando
forenses. da interpretação da lei.
Assente o desequilíbrio entre o ordena- Do exposto acima, decorre, inexoravel-
mento jurídico e aquilo que se passava na mente, a complementaridade das pesquisas
vida social, a então ciência do direito viu-se do filósofo, do jurista e, também, do soció­
alvo do movimento do Direito Livre (libre logo. Referida complementaridade fica
recherche du droit). Tendo como fundador bem visível quando da análise da validade
François Gény, esse movimento tratou de do direito, que se divide em três campos
demonstrar que o formalismo tão endeusa- ou problemas de estudo: vigência, que
do pelo jurista era, na verdade, pertencente equivale à obrigatoriedade formal da nor-
a um plano secundário. Mediante um novo ma legal para todos os cidadãos; eficácia,
debate sobre a teoria geral da interpreta- que significa a efetiva subsunção social ao
ção, procurou-se enfocar o direito à luz conteúdo da lei; e fundamento, que traduz
dos fatos que efetivamente ocorriam na os valores aptos a legitimar os preceitos
realidade do dia-a-dia. Eram postos em jurídicos numa comunidade livre. Com
dúvida conceitos outrora considerados isso, “enunciada desse modo a questão,
praticamente dogmas. Destarte, viam-se parecem transparentes os nexos que ligam
as preocupações e indagações de cunho entre si os três problemas numa estrutura
filosófico-jurídico ingressarem no terreno tridimensional, mas, por um complexo de
da ciência do direito. motivos, uns de natureza histórica, outros
Notava-se, assim, uma atenção maior dependentes das inclinações intelectuais
do jurista até então formalista pela filoso- dos investigadores, nem sempre prevalece
fia. A par disso, igualmente é lícito afirmar a compreensão unitária dos fatores que
que, com o passar dos anos, os partidários compõem a realidade jurídica: não raro
da filosofia começavam a descer de seu orientam-se os espíritos no sentido do
pedestal, deixando um pouco de lado seus primado ou da exclusividade de uma das
“esquemas formais e abstratos para tomarem perspectivas acima discriminadas, surgin-
contato cada vez mais com a positividade do do, assim, soluções unilaterais ou setorizadas”
direito, aprendendo a dar valor ao particu- (REALE, 1994, p. 15). Percebe-se, pois, que
lar, ao contingente e ao empírico, tal como Miguel Reale sustentava que os institutos
se desenrola e se dramatiza na vida dos ad- da vigência, eficácia e fundamento fazem
vogados e dos juízes, no bojo, em suma, da parte de uma estrutura perfeitamente arti-
experiência jurídica” (REALE, 1994, p. 8). culada. Via de conseqüência, o direito seria,
Vislumbrava-se, então, aquilo que necessariamente, tridimensional.
Miguel Reale costumava chamar de busca Na sua obra, Reale procura demonstrar
pelo concreto, isto é, tanto juristas como a escassez das, por ele denominadas, “teo-
filósofos do direito passavam a conceder, rias tridimensionais genéricas”. Para essas
nos seus estudos, mais espaço àquilo que teorias, vigência, eficácia e fundamento

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 273


são perscrutados abstratamente, de sorte essencial unidade e concretitude, a qual só
a corresponder cada um desses fatores pode ser unidade de processo ou dialética,
a áreas diferentes do saber jurídico. Por o que implica a inserção do problema parti-
conseguinte, vigência estaria atrelada à cular da tridimensionalidade do direito no
dogmática do direito, enquanto eficácia quadro geral de uma diversa compreensão
estaria vinculada à sociologia jurídica, e o do homem, da sociedade e da história”. E
fundamento, à filosofia do direito. Nesse é essa nova compreensão, baseada numa
diapasão, a título de exemplo, Reale cita visão original do instituto do valor, que será
Norberto Bobbio, que, segundo ele, aco- o alicerce do tridimensionalismo jurídico
lheria a tridimensionalidade tão-somente de Miguel Reale.
com propósitos metodológicos a fim de A teoria tridimensional do direito reale-
discriminar esferas de pesquisa. ana é tida como concreta e dinâmica. Quan-
Com o desenvolvimento da pesquisa ju- do, linhas atrás, explicou-se que o estudo
rídica, a concepção tridimensional genérica da vigência, da eficácia e do fundamento
ou abstrata começou a perder fôlego. Surgi- era o divisor de águas das diversas teorias
ram, então, as primeiras teorias destinadas tridimensionais, pretendeu-se deixar claro
a compreender a realidade jurídica consi- que norma, fato e valor são elementos
derando os elementos vigência, eficácia e essenciais da experiência jurídica. Assim
fundamento de forma conjunta. sendo, na concepção realeana, “a correlação
Em 1940, na Alemanha, Wilhelm Sauer entre aqueles três elementos é de natureza
lança o seu “Juristiche Methodenlehre”, funcional e dialética, dada a ‘implicação-
enquanto, aqui no Brasil, Reale publica polaridade’ existente entre fato e valor, de
“Fundamentos de Direito”, bem como o cuja tensão resulta o momento normativo,
seu “Teoria do Direito e do Estado”. Pou- como solução superadora e integrante nos
cos anos depois, em 1947, Jerome Hall, no limites circunstanciais de lugar e de tempo
âmbito do common law, edita “Integrative (concreção histórica do processo jurídico, numa
Jurisprudence”. Nesses trabalhos inéditos, dialética de complementaridade)” (REALE,
fato, valor e norma são tratados de forma 1994, p. 57).
conjunta, ou seja, são elementos sempre Feitas as explicações de como a con-
ligados entre si na esfera da realidade ju- cepção realeana compreendia a correlação
rídica, embora se possa, às vezes, dar um fato-valor-norma, resta ingressar no campo
enfoque maior a um ou outro, mas sempre da nomogênese jurídica, ou seja, do nasci-
se considerando todos os três na análise mento da norma jurídica.
de investigação. Mencionadas obras, com
a nova concepção que introduzem, apesar
7. Nomogênese jurídica
de terem as suas diferenças, dão início,
consoante Reale, à tridimencionalidade Como salientado anteriormente, a no-
específica. mogênese jurídica corresponde ao processo
Tanto sobre a teoria de Sauer como a de nascimento de uma norma jurídica. Não
de Hall, Reale (1994, p. 50) tece os seguin- se trata aqui de analisar tecnicamente as
tes comentários: “penso que só é graças à várias etapas do processo legislativo, mas
compreensão dialética dos três fatores que se sim de como os políticos selecionam os
torna possível atingir uma compreensão assuntos a serem objeto de deliberação no
concreta da estrutura tridimensional do Congresso Nacional e como esses assuntos
direito, na sua natural temporalidade. A serão colocados no papel, à luz do entendi-
meu ver, com efeito, a experiência jurídica, mento realeano.
articulando-se e processando-se de maneira Qualquer lei equivale ao instante culmi-
tridimensional, nem por isso perde a sua nante de uma gama respeitável de fatores,

274 Revista de Informação Legislativa


que podem ser agrupados em dois tipos: os ocorrendo no mundo (por exemplo: guerras
de cunho axiológico e os de cunho fático. civis, fome em populações que vivem em
Todavia, há de chegar um momento no qual regiões miseráveis, enchentes que causam
os negociadores optem por uma das alter- milhares de desabrigados, tráfico inter-
nativas que têm a seu dispor. Importante, nacional de drogas etc.), incidem outros
portanto, os ensinamentos de Miguel Reale tantos complexos axiológicos, ou seja, cada
(1999, p. 193): “nada mais incompatível com Estado possui a sua visão sobre cada um
o direito do que a incerteza, a carência de desses acontecimentos. Exemplificando:
uma diretriz insegura: o direito responde, quando da elaboração de um tratado sobre
de maneira primordial, ao desejo espontâ- direitos humanos, cada país externará o seu
neo que o homem tem de fugir à dúvida, próprio valor sobre o tema. Assim, países
mais pungente no plano moral da ação do mais preconceituosos contra minorias ou
que no plano intelectual da especulação determinados grupos religiosos tenderão a
pura”. Prosseguindo, ensina o citado autor limitar o alcance das disposições do tratado.
que “uma opção se impõe, e tôda vez que Nessa mesma linha de raciocínio, outros
se escolhe uma via, sacrificam-se todos os Estados, ainda que internamente sejam
demais caminhos possíveis. Dentre os vá- mais liberais, podem emitir uma posição
rios projetos de lei em debate em um parla- mais conservadora ou retrógrada a fim de
mento, por exemplo, a respeito de um dado continuarem a manter relações comerciais
assunto, por mais que se procrastine, chega vantajosas com outros parceiros que igual-
o momento do fiat lex, átimo culminante mente participam das tratativas. Enfim,
de uma decisão. É êste o momento decisório e nota-se que cada membro do pacto a ser
decisivo do Poder” (REALE, 1999, p. 194). estabelecido tem o seu próprio valor acerca
Dessa forma, no plano do direito inter- dos fatos postos nas mesas de negociação.
no, quando a Câmara dos Deputados, por É tão-somente a partir do momento em que
exemplo, está a debater um projeto de lei o texto do acordo é redigido e aprovado
ordinária sobre medicamentos gratuitos e que todos os conflitos de valores são solu-
acesso à saúde, cada um dos deputados terá cionados, na exata medida em que algum
um valor sobre o tema em pauta. Alguns ou alguns valores são escolhidos e, via
deputados, por influência do corporativis- de conseqüência, refletidos no texto final.
mo da indústria de medicamentos, talvez Enfim, pode-se aduzir que “a condiciona-
tenham uma posição que favoreça mais re- lidade axiológica das tomadas de posição
ferida indústria. Outros, em razão da pres- diante dos fatos tem uma objetividade que
são de organizações não-governamentais, deriva do valor como um bem cultural com
podem votar por uma política mais bené- suporte na realidade... Os valores referem-
fica para a população carente que necessita se à realidade, mas a ela não se reduzem,
de remédios. Por seu turno, outros, ainda, pois, para Reale, têm um significado que
podem tomar uma ou outra posição tendo aponta para uma direção de dever-ser das
em vista somente interesses particulares, condutas humanas” (LAFER, 2000, p. 99).
relegando a um segundo plano o interesse
público. Sucede que, por ocasião da vo-
8. Conclusões
tação em plenário, apenas um valor será
eleito, ficando de lado todos os demais que Nesta etapa final, cumpre sejam consig-
gravitavam em torno da questão antes da nadas as principais observações conclusi-
deliberação dos deputados. vas do presente trabalho.
Fenômeno semelhante pode ser ob- O valor é tido por Reale como uma
servado no plano externo. Com efeito, realidade autônoma. Embora também seja
percebe-se que, sobre cada complexo fático desprovido de espacialidade e temporali-

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 275


dade como o objeto ideal, o valor possui mento, há os valores fundamentais ou su-
uma característica bem peculiar: ele só bordinantes (o verdadeiro, o belo, o útil, o
pode ser considerado a partir de alguma santo e o bem), que devem sempre se referir
coisa existente anteriormente, qual seja, ao valor fonte, que é o da pessoa humana.
das coisas valiosas. Além do mais, diferen- Nessa esteira, alguns desses valores subor-
temente do objeto ideal, o valor não pode dinantes desgarram-se da civilização que
ser quantificável. os concebeu para atingirem um patamar
Historicidade é a característica por mais alto, de sorte a desempenharem um
excelência na teoria dos valores de Miguel papel de caráter universal transcendente e
Reale. Nesse diapasão, o valor não pode definitivo. São as denominadas invariantes
ser compreendido como uma realidade es- ou constantes axiológicas, que, por sua vez,
tanque, divorciada do desenrolar histórico- poderiam dar margem ao direito natural.
cultural do ser humano. Ainda na seara das A explicação última da teoria dos va-
características dos valores, há a realizabili- lores de Reale reside na figura da pessoa
dade e a inexauribilidade. Por realizabili- humana. E é essa justificação última da
dade pode-se entender a concretização dos axiologia realeana aquilo que se chama de
valores nas passagens histórico-culturais. personalismo axiológico.
Daí advém a inexauribilidade axiológica, O personalismo axiológico fornece as ra-
ou seja, embora um valor possa se transfor- zões de como aquilo que aparece na órbita
mar em uma porção da realidade, ele não da consciência individual ou social possui
se resume a esta, tampouco pode coincidir aptidão de fazer com que o ser humano
in totum com ela. Destarte, verifica-se que fique adstrito a guiar-se por um determina-
o valor atualiza-se constantemente, jamais do caminho, isto é, para um fim tido como
se concretizando em definitivo. motivo de conduta. Nessa trilha, inevitável
O historicismo axiológico implica a vital concluir que o ser humano não é como tal
correlação entre os institutos da axiologia, apenas pela sua existência, mas sim em
história e cultura em termos de dialética de decorrência da significação que para ele
complementaridade. Para a exata compre- possui a sua própria vida. Essa significação
ensão desta tríade, imperioso o emprego pode ser traduzida como autoconsciência
dos conceitos de tempo cultural e de tempo da sua dignidade. Disso deflui o conceito
histórico. Este, captado como o lapso tem- de pessoa humana para Reale.
poral em que os valores são atualizados, A teoria tridimensional do direito reale-
não se resume tão-somente ao presente. ana é tida como concreta e dinâmica. Com
Na verdade, no bojo do tempo histórico, efeito, norma, fato e valor são elementos
presente, passado e futuro estão em ver- essenciais da experiência jurídica. Assim
dadeira dialética de complementaridade. sendo, na concepção realeana, “a correlação
Por seu turno, o tempo cultural “manifesta entre aqueles três elementos é de natureza
o ‘valor atemporal’ dos eventos culturais funcional e dialética, dada a ‘implicação –
em face dos históricos, de forma tal que polaridade’ existente entre fato e valor, de
eles transcendem a mera historicidade e cuja tensão resulta o momento normativo,
temporalidade” (REALE, 1977, p. 222 apud como solução superadora e integrante nos
GARCÍA, 1999, p. 56). limites circunstanciais de lugar e de tempo
Os valores podem mudar de um ciclo (concreção histórica do processo jurídico, numa
civilizatório para outro, alterando, pois, dialética de complementaridade)” (REALE,
a ordenação dos mesmos. E é justamente 1994, p. 57).
essa gradação hierárquica de cada época A nomogênese jurídica corresponde
cultural que Reale chama de “constelação ao processo de nascimento de uma norma
axiológica”. Ainda para o mestre em co- jurídica. Quando se debate um projeto de

276 Revista de Informação Legislativa


lei no parlamento, percebe-se que sobre LAFER, Celso. A legitimidade na correlação direito e
cada complexo fático incidem outros tantos poder: uma leitura do tema inspirado no tridimensio-
nalismo jurídico de Miguel Reale. In: ZILLES, Urbano
complexos axiológicos, ou seja, cada pessoa (Coord.). Miguel Reale: estudos em homenagem a seus
(e notadamente os parlamentares) possui 90 anos. Porto Alegre: Edipucrs, 2000.
a sua visão sobre cada um dos temas em
REALE, Miguel. Experiência e cultura. São Paulo:
discussão no Congresso Nacional. Todavia, Grijalbo-Edusp, 1977.
há de chegar um momento no qual os par-
______. Filosofia do direito. 20 ed. São Paulo: Saraiva,
lamentares optem por uma das alternativas
2002.
que têm a seu dispor. A partir do momento
em que uma decisão é tomada, sacrificam- ______. Nova fase do direito moderno. 2 ed. São Paulo:
Saraiva, 2001.
se todos os demais valores que gravitavam
em torno do tema. ______. O direito como experiência. 2 ed. São Paulo:
Finalmente, é correto aduzir que o Saraiva, 1999.
entendimento de Miguel Reale acerca dos ______. Paradigmas da cultura contemporânea. São Paulo:
valores permitiu-lhe ter uma concepção Saraiva, 1996.
original do direito, que se procurava atua- ______. Pluralismo e liberdade. São Paulo: Saraiva,
lizar incessantemente a fim de trazer a tão 1963.
desejada harmonia no seio da sociedade. ______. Teoria tridimensional do direito. 5 ed. São Paulo:
Saraiva, 1994.

Referências
GARCÍA, Angeles Mateos. A teoria dos valores de Miguel
Reale: fundamento de seu tridimensionalismo jurídico.
São Paulo: Saraiva, 1999.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 277


Hermenêutica jurídica em Kelsen
Apontamentos críticos

Ricarlos Almagro Vitoriano Cunha

Sumário
1. Introdução. 2. Direito e Ciência do Direito.
3. Norma e proposição normativa. 4. Causali-
dade e imputação. 5. A norma fundamental e o
Direito como um sistema dinâmico de normas.
6. Do processo de determinação do Direito. 7.
A interpretação jurídica em Kelsen. 8. Alguns
pontos críticos no modelo interpretativo da Te-
oria Pura. 8.1. A interpretação como mecanismo
subsidiário da aplicação. 9. Conclusão.

1. Introdução
José Florentino Duarte, em sua tra-
dução à “Teoria Geral das Normas”, de
Kelsen (1986), alertava o leitor desejoso de
aprofundar-se na obra do mestre de Viena
que se portasse como um verdadeiro dis-
cípulo, desarmado, por mais ilustrado que
fosse, pois somente assim, inspirado pela
modéstia, poderia captar o pensamento
do mestre. Entretanto, a advertência soa
mais grave quando o propósito é a crítica.
Confira (KELSEN, 1986, p. V):
“Se, porém, o leitor pretende criticar
a Kelsen, então o problema assume
outra projeção: arme-se, primeiro, de
amplíssimos conhecimentos jusfilo-
sóficos e, mesmo com uma bagagem
científica imensa, o árduo labor será
Ricarlos Almagro Vitoriano Cunha é Juiz difícil, quiçá improfícuo, como acon-
Federal, Doutorando em Direito Público (PUC- teceu com aqueles que se arrojaram,
MG), Mestre em Direito (UGF-RJ) e especialista se aventuraram, se arriscaram a tal
em Direito Processual Público (UFF-RJ). cometimento”.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 279


Kelsen talvez seja daqueles magníficos dessas notas iniciais, partiremos para uma
autores que paradoxalmente assumem o exposição do modelo de interpretação
ápice da lista dos mais citados e também jurídica posto por ele. Finalmente, coloca-
dos menos lidos no meio jurídico (ao me- remos algumas considerações que parecem
nos em nosso país). De suas obras somente inserir algumas fissuras em seu sistema,
ouvimos falar por referências diretas ou justificando-as.
indiretas e, mesmo assim, somente de uma
forma parcial, já que, do vasto universo de
2. Direito e Ciência do Direito
artigos e livros (ultrapassam a cifra de seis-
centos), as referências parecem estacionar Kelsen (1999), ao lançar a sua teoria pura
na órbita da Teoria Pura do Direito. Talvez do direito, foi alvo de não poucas críticas,
isso justifique a falência das empreitadas as quais, também não raro, acabavam por
críticas a que nos referimos no excerto contradizerem-se. Como ele mesmo reco-
acima transcrito. nheceu, por vezes sua teoria era tachada
Mesmo diante dessa evidente dificulda- de fascista, ao passo que os fascistas a viam
de, certo é que alguns dos postulados kel- como liberal-democrata; por sua vez, os
senianos são de difícil sustentação na atu- comunistas a viam como ideologia de um
alidade, sobretudo em face das evoluções Estado capitalista, ao mesmo tempo em
experimentadas nos campos da Filosofia que os nacionais-capitalistas a desquali-
e Teoria do Direito, que aportaram novas ficavam. Se no campo político a celeuma
dimensões (e por que não dizermos também não se resolvia, melhor sorte não lhe restou
novos paradigmas) à ciência jurídica, de que entre os religiosos. A teoria Pura era, para
é exemplo o giro lingüístico-pragmático. alguns, ligada à escolástica católica e, para
Esse trabalho não tem por escopo a críti- outros, uma teoria protestante do Estado
ca da teoria pura do direito, porquanto seria e do Direito, havendo também quem a
natimorta e fracassada, seja pelo esforço visse como marcada por um ideário ate-
decorrente da dimensão da obra criticada, ísta (KELSEN, 1999, p. XIII). Kelsen (1999)
seja pela extensão da pesquisa daí derivada, explica essa crítica multifacetada, que não
o que fugiria por completo aos modestos escapa a qualquer orientação política ou
objetivos perseguidos. Por isso mesmo, religiosa, exatamente em razão do seu grau
efetuamos um corte epistemológico, bus- de pureza. Então, em que consiste e a que
cando um tema sobre o qual Kelsen não se se refere tal pureza?
debruçou demasiado, a saber, a hermenêu- Inspirado no êxito das ciências da
tica jurídica. O mestre foi econômico no seu natureza, pretendia Kelsen (1999) repro-
tratamento, o que inicialmente sinalizaria duzi-lo no âmbito das ciências naturais,
para a falsa conclusão de que a sua análise especificamente na Ciência do Direito, o
seria mais simples. Puro engano! Após uma que almejava conseguir depurando-a de
breve pesquisa, percebemos que o tema, a qualquer elemento estranho ao seu objeto,
despeito da referida economia, está conec- sobretudo os de índole política. Esse objeti-
tado com diversos outros postulados seus, vo é explícito no prefácio à primeira edição
como, aliás, é uma nota típica do sistema da sua “Teoria Pura do Direito” (KELSEN,
por ele construído, o que inflaciona nosso 1999, p. XI):
estudo. “Há mais de duas décadas que
Exatamente por isso, o trabalho tem iní- empreendi desenvolver uma teoria
cio com uma análise introdutória daqueles jurídica pura, isto é, purificada de
institutos ou elementos da obra de Kelsen toda ideologia política e de todos os
que manifestam uma conexão mais direta elementos da ciência natural, uma
com a hermenêutica jurídica. Armados teoria jurídica consciente da sua

280 Revista de Informação Legislativa


especificidade porque consciente da critério de valor para o Direito positivo”, o
legalidade específica do seu objeto. que configuraria para o mestre um renas-
Logo desde o começo foi meu intento cer de uma metafísica do Direito natural”
elevar a Jurisprudência1, que – aberta (KELSEN, 1999, p. XVIII).
ou veladamente – se esgotava quase Em suma, a pureza de sua teoria se refere
por completo em raciocínios de polí- à Ciência do Direito e consiste basicamente
tica jurídica, à altura de uma genuína em excluir do seu campo de estudos tudo
ciência, de uma ciência do espírito. aquilo que não se refira ao seu objeto, tudo
Importava explicar não as suas aquilo que não seja possível de determinar-
tendências endereçadas à formação se como Direito e, em última análise, tudo
do Direito, mas as suas tendências aquilo que não se possa identificar com a
exclusivamente dirigidas ao conheci- norma jurídica3.
mento do Direito, e aproximar tanto
quanto possível os seus resultados do
3. Norma e proposição normativa
ideal de toda a ciência: objetividade
e exatidão”. Partindo da delimitação do objeto da ci-
Desse excerto já podemos constatar ência jurídica, Kelsen estabelece a distinção
que a pureza pretendida por Kelsen não entre norma e proposição normativa.
se refere propriamente ao Direito, uma vez A norma jurídica seria um impera-
que ele bem o reconhece como “campo da tivo posto pela autoridade competente,
disputa política e da afirmação de valores” um comando por ela estabelecido, uma
(SGARBI, 2006, p. 33), mas à ciência, que permissão, ou ainda uma atribuição de
tem nele o seu objeto, ou seja, a Ciência do competência. Ainda que se tenha em mente
Direito. De fato, denunciando a confusão que tais imperativos sejam expressos por
que se estabelece entre a “Jurisprudência” meio de fórmulas lingüísticas, certo é que
e outros setores do conhecimento humano, não se trata de um mero enunciado, uma
tais como a psicologia, a sociologia, a ética mera proposição, mas de um comando, de
e a teoria política, justificada na evidente um ato produtor do Direito, seja ele um ato
conexão existente entre elas e o próprio Di- posto pelo legislador, pela Administração
reito, pugna por uma purificação da Ciência Pública, seja pelo juiz (a diferença aqui
que o estuda, visando antes determinar o não é de ordem qualitativa, pois sempre
que ele é, em vez de pretender afirmar o estamos em um processo de determinação
que ele deveria ser, conseqüência imediata do Direito, como adiante melhor esclare-
da promiscuidade entre aqueles setores2. ceremos).
Esvai-se daí a crença de poder “definir Por sua vez, a proposição jurídica é um
um Direito justo e, conseqüentemente, um enunciado formulado pela Ciência do Di-
reito visando à descrição do seu objeto. Por-
1
A expressão jurisprudência não tem aqui o mes-
tanto, trata-se de uma distinção qualitativa
mo sentido que empregamos em nosso país, mas como
obra dos teóricos do Direito, em nosso meio jurídico (prescrição/descrição), em que a norma
indevidamente denominada “doutrina”. jurídica é um ato da autoridade que produz
2
“Esta confusão pode porventura explicar-se o Direito e a proposição jurídica, um juízo
pelo fato de estas ciências se referirem a objetos que
hipotético da ciência jurídica que descreve o
indubitavelmente têm uma estreita conexão com o
Direito. Quando a Teoria Pura empreende delimitar sistema posto, tal como fica claro no excerto
o conhecimento do Direito em face destas disciplinas, seguinte (KELSEN, 1999, p. 81):
fá-lo não por ignorar ou, muito menos, por negar essa
conexão, mas porque intenta evitar um sincretismo 3
“Na afirmação evidente de que o objeto da
metodológico que obscurece a essência da ciência ciência jurídica é o Direito, está contida a afirmação
jurídica e dilui os limites que lhe são impostos pela – menos evidente – de que são as normas jurídicas o
natureza do seu objeto” (KELSEN, 1999, p. 2). objeto da ciência jurídica” (KELSEN, 1999, p. 79).

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 281


“Na distinção entre proposição jurídi- estão alicerçadas em um princípio causal.
ca e norma jurídica, ganha expressão Exemplificando: se deixo um corpo solto no
a distinção que existe entre a função espaço, ele cai porque sobre ele atua uma
do conhecimento jurídico e a função, força – o peso – decorrente da aceleração
completamente distinta daquela, de da gravidade. Em outras palavras, quando
autoridade jurídica, que é representa- solto um corpo outrora suspenso, constato
da pelos órgãos da comunidade jurídi- o efeito da sua precipitação, causado pela
ca. A ciência jurídica tem por missão atuação da gravidade sobre aquela massa.
conhecer – de fora, por assim dizer – o Portanto a lei que rege o seu movimento
Direito e descrevê-lo com base no seu está estabelecida segundo um princípio
conhecimento. Os órgãos jurídicos causal. Prosseguindo na análise, a física, ci-
têm – como autoridade jurídica – antes ência que, entre outros objetos, estuda o mo-
de tudo por missão produzir o Direito vimento, descreve aquela lei (proposição)
para que ele possa então ser conhecido asseverando: dado que um corpo seja solto
e descrito pela ciência jurídica”. no espaço, ele se precipitará em velocidade
Exatamente por isso, o cientista do Di- crescente, porque sobre a sua massa atua a
reito não pode, despindo-se da necessária aceleração da gravidade. Portanto, se é A,
neutralidade, estabelecer proposições ali- então é B (se solto o corpo, então ele cai).
cerçadas em juízos de valor que extrapolem Por sua vez, o princípio ordenador nas
a sua função meramente descritiva do siste- ciências sociais não é a causalidade, mas a
ma de normas. A pureza da teoria, portan- imputação. Aqui, a estrutura da norma re-
to, é uma pureza epistemológica (corte que guladora é bem distinta. Em primeiro lugar,
exclui da ciência jurídica qualquer objeto a por sua origem, que é derivada de um ato
ela estranho) e também uma pureza valora- da vontade humana. Quando a prisão de
tiva (corte axiológico), ou seja, ao cientista alguém é determinada em razão do crime
do Direito, impõe-se descrever o objeto da cometido, somente por assimilação verbal
sua ciência e não valorá-lo; as proposições poderíamos afirmar que ele é preso “por
jurídicas são da ordem do ser e, por isso causa” do ilícito perpetrado. A expressão
mesmo, não tem cabimento falar-se em va- assume aí uma conotação completamente
lidade ou invalidade da proposição, senão distinta da hipótese anterior. Pode ocorrer (e
na sua verdade ou falsidade4. freqüentemente ocorre) de alguém praticar
um crime e mesmo assim permanecer em
4. Causalidade e imputação liberdade, sem que, com isso, a norma pe-
nal que determina a sua prisão deixe de ser
Para Kelsen (1999), na natureza os even- válida. O que apenas podemos afirmar (pro-
tos estão conectados entre si segundo um posição normativa) é que, dado que alguém
princípio causal, daí por que as ciências pratique determinado ato ilícito, então essa
que a descrevem – ciências da natureza – pessoa deve ser presa. Em outras palavras:
4
“A distinção revela-se no fato de as proposições se é A, então deve ser B (se o homicídio é
normativas formuladas pela ciência jurídica, que cometido, então o seu autor deve ser preso)5,
descrevem o Direito e que não atribuem a ninguém
quaisquer deveres ou direitos, poderem ser verídicas 5
A expressão “deve ser” é plurissignificativa e aqui
ou inverídicas, ao passo que as normas de dever-ser, o seu conteúdo semântico não está ligado à idéia de pro-
estabelecidas pela autoridade jurídica – e que atribuem babilidade, ou seja, no sentido de que se A comete um
deveres e direitos aos sujeitos jurídicos – não são verí- crime, então provavelmente será preso. Em verdade, o
dicas ou inverídicas, mas válidas ou inválidas, tal como “deve ser” aqui empregado significa que se A comete
também os fatos da ordem do ser não são quer verídicos, um crime, então há uma determinação legal que impõe
quer inverídicos, mas apenas existem ou não existem, a aplicação da pena de prisão (ele deve ser preso), no
somente as afirmações sobre esses fatos podendo (sic) sentido de dever ser preso. A norma prevalece mesmo
ser verídicas ou inverídicas.” (KELSEN, 1999, p. 82). que esse dever não se materialize, como vimos.

282 Revista de Informação Legislativa


mesmo quando B não ocorra. Resumindo, “a tar a sua conduta segundo o que nela está
conseqüência do ilícito é imputada ao ilícito, preceituado. O que lhe dá esse atributo não
mas não é produzida pelo ilícito, como sua é o seu conteúdo, mas sobretudo a legitima-
causa” (Kelsen, 1999, p. 91). ção de quem a põe, ou seja, a norma vale
Uma outra distinção apontada por Kel- porque, independentemente do que vem a
sen (1999) é que, na relação de causalidade, estabelecer, é um ato produzido por alguém
os elos que unem os eventos se desdobram autorizado a fazê-lo (competência). Assim,
em uma cadeia infinita, ou seja, a conse- a norma posta deve ter o seu fundamento
qüência produzida por uma determinada de validade alicerçado em uma outra nor-
causa é, por sua vez, causa produtora de ma que lhe é, portanto, superior.
outro evento e assim sucessivamente. Da Por sua vez, a norma que confere valida-
mesma forma, se percorrermos esse trajeto de a outra pode ter a sua própria validade
em sentido inverso, a causa de um determi- questionada, reclamando um substrato de
nado evento é, por sua vez, conseqüência validação em outra norma superior a ela
provocada por uma causa mais remota e e assim sucessivamente. Se, como vimos,
assim sucessivamente. Com o princípio da o sistema normativo está fundado em um
imputação, tal não ocorre, já que a regra de princípio da imputação, que não se sujeita
“causação” é fruto da vontade humana, a uma cadeia infinita, certo é que devemos
pelo que a série de imputação é limitada, pressupor um limite, sob pena de termos
existe um ponto terminal6. que recorrer a uma noção metafísica para
sustentar o nosso sistema, o que, por óbvio,
5. A norma fundamental e o Direito é repudiado pelo mestre de Viena.
como um sistema dinâmico de normas Para conferir uma unidade ao ordena-
mento jurídico, Kelsen (1986) então recorre
Do mundo do ser não deriva o dever ser! a uma norma que já não é mais posta,
Explica-o Adrian Sgarbi (2006, p. 42): mas pressuposta. Ela é algo abstrato, cujo
“Uma vez que de um ser (mundo dos questionamento de validade não é mais
fatos, mundo regido pela causalidade possível e à qual ele denominou norma
e cuja manifestação se observa nas fundamental7.
leis físicas) não deriva um dever Para Kelsen, os sistemas normativos po-
(mundo das normas, mundo regido dem ser de dois tipos: estáticos ou dinâmi-
pelo princípio da imputação e que se cos. Os primeiros são estruturados com base
manifesta nos comandos jurídicos), em um conteúdo previamente determinado,
apenas de uma norma pode advir a que pode ser alcançado por mera dedução,
validade de outra norma”. pelo que todas as normas do ordenamento
Para Kelsen (1986), quando afirmo que
uma norma vale, isso significa que ela 7
Em sua obra póstuma “Teoria Geral das Nor-
vincula um indivíduo, que ele deve pau- mas”, Kelsen (1986, p. 329) introduz ligeira alteração
no conceito de norma fundamental antecipado em sua
6
“O pressuposto a que é imputada a conseqüên- Teoria Pura, afirmando que “a norma fundamental
cia numa lei moral ou jurídica, como, por exemplo, a de uma ordem jurídica ou moral positivas (...) não é
morte pela pátria, o ato generoso, o pecado, o crime, positiva, mas meramente pensada, e isto significa uma
a que são imputados, respectivamente, a veneração norma fictícia, não o sentido de um real ato de von-
da memória, o reconhecimento, a penitência, a pena, tade, mas sim de um ato meramente pensado (...) Por
que são imputadas, respectivamente, à morte pela conseguinte, é de se observar que a norma fundamen-
pátria, ao ato generoso, ao pecado e ao crime, não têm tal, no sentido da vaihingeriana Filosofia do Como-Se
necessariamente de ser também pressupostos a que não é hipótese – como eu mesmo, acidentalmente,
sejam de atribuir novas conseqüências, o número dos a qualifiquei –, e sim uma ficção que se distingue
elos de uma série imputativa não é, como o número de uma hipótese pelo fato que é acompanhada pela
dos elos de uma série causal, ilimitado, mas limitado.” consciência ou, então, deve ser acompanhada, porque
(KELSEN, 1999, p. 101). ela não corresponde à realidade.”

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 283


já estariam contidas na norma pressuposta que não existe e, portanto, não sendo objeto
e, assim, a conduta que ela determina aos de um ato de vontade, é puro pensamento,
indivíduos é devida em razão do seu conte- o que lhe acarreta um problema não solu-
údo. Portanto, a norma fundamental desse cionado, que já se viu adiantado em sua
sistema não confere apenas um fundamento obra póstuma, a saber, a contradição. De
de validade, mas também um conteúdo vá- fato, se a norma fundamental tem por fim
lido (ou de validade). O mestre exemplifica conferir unidade ao ordenamento norma-
(KELSEN, 1999, p. 218): tivo, sendo mera abstração ela contradiz a
“Assim, por exemplo, as normas – realidade e a si mesma8.
não devemos mentir, não devemos Alinhado à sua finalidade de purificação
fraudar, devemos respeitar os com- da Ciência do Direito, não se poderia pres-
promissos tomados, não devemos supor em Kelsen uma norma posta por um
prestar falsos testemunhos – podem ato de vontade, cujo conteúdo fosse mera
ser deduzidas de uma norma que dedução de um preceito validante. Tal
prescreve a veracidade. Da norma postura conduziria a um questionamento
segundo a qual devemos amar o do sistema posto, em razão de critérios
nosso próximo podemos deduzir as metajurídicos. Portanto, o Direito seria um
normas: não devemos fazer mal ao sistema dinâmico, segundo o qual, a Consti-
próximo, não devemos, especialmen- tuição, como primeiro ato de vontade posto
te, causar-lhe a morte, não devemos com base na norma fundamental, deixa fora
prejudicar-lhe fisicamente, devemos de questão o seu conteúdo e o da ordem
ajudá-lo quando precise de ajuda”. jurídica erigida com base nela. Não importa
Os sistemas dinâmicos, por sua vez, “se esta ordem é justa ou injusta; e também
não valem por seu conteúdo deduzido da não importa a questão de saber se a ordem
norma fundamental. O que importa é um jurídica efetivamente garante uma relativa
quadro de determinação de competências, situação de paz dentro da comunidade por
as quais, quando exercidas, é que vão ela constituída. Na pressuposição da nor-
revelar os conteúdos normativos. Como ma fundamental não é afirmado qualquer
destacamos, a questão reside na outorga de valor transcendente ao Direito positivo”
validade à norma posta. Se ela pressupõe (KELSEN, 1999, p. 225).
um fundamento que lhe confira tal atributo,
então esse fundamento, sobretudo na con- 6. Do processo de determinação do Direito
cepção dinâmica do sistema normativo, só
pode estar em outra norma. Se essa outra Para Kelsen, a produção normativa,
norma, por sua vez, é também questionada, como vimos, é fruto de um ato de vontade,
devo buscar uma outra que lhe dê suporte a qual, não nega ele, está permeada de in-
de validade e assim sucessivamente, o terferências políticas, religiosas, ideologias,
que poderia levar-nos a um regressum ad valorações etc., mas que deve ser explicado
infinitum. Portanto, necessariamente de- 8
“a suposição de uma norma fundamental – como
vemos recorrer a uma norma fundamental porventura a norma fundamental de uma ordem
que dê sustentação ao sistema. “Como a moral religiosa: ‘Deve-se obedecer aos mandamentos
norma fundamental é o fundamento de de Deus, como determina historicamente a primeira
Constituição’ – não contradiz apenas a realidade,
validade de todas as normas pertencentes porque não existe tal norma como sentido de um
a uma mesma ordem jurídica, ela constitui real ato de vontade; ela também é contraditória em
a unidade na pluralidade destas normas” si mesma, porque descreve a conferição de poder de
uma suprema autoridade da Moral ou do Direito e
(KELSEN, 1999, p. 228). Que fique claro que
com isto parte de uma autoridade – com certeza ape-
ela somente alcançaria a sua finalidade se nas fictícia – que está mais acima dessa autoridade.”
concebida abstratamente, algo efetivamente (KELSEN, 1986, p. 329).

284 Revista de Informação Legislativa


pela Ciência do Direito sob um regime de- Fica claro, portanto, que não há uma
purado, visando-o somente pelo prisma do distinção de ordem qualitativa10 entre le-
seu objeto (a norma jurídica). Assim, o que gislação e execução, posto que todo ato de
confere validade ao ato não seria propria- legislação nos conduz à idéia de aplicação
mente o seu conteúdo, mas a autorização de uma norma superior. Confira (KELSEN,
para produzi-lo. Essa perspectiva faz do 2003, p. 124):
sistema jurídico um sistema dinâmico de “(...) costumam-se distinguir as
normas, como visto. funções estatais em legislação e exe-
Conseqüência desse modelo, é que o cução, que se opõem assim como a
princípio da causalidade não se presta a criação ou a produção do direito con-
explicar essa realidade sensível (mundo siderado como simples reprodução
do ser), ao contrário, é ela que deve ser (...) Mas essa concepção da relação
conduzida pela norma, segundo o princípio entre legislação e execução é inexata.
da imputação (dever ser), daí a caracte- Essas duas funções não se opõem de
rística primordial da norma como ato de maneira absoluta, como a criação à
vontade. aplicação do direito, mas de maneira
Quando o legislador põe a norma le- puramente relativa. Examinando-as
gal, independentemente do seu conteúdo melhor, vê-se que cada uma delas
(ao menos de certa forma9), o que a torna se apresenta, na verdade, ao mesmo
válida é o fato de ele estar autorizado pela tempo como um ato de criação e de
Constituição a estabelecê-la. Assim, a lei é aplicação do direito”.
concebida como aplicação da Constituição. E prossegue (KELSEN, 2003, p. 125):
Da mesma forma, o juiz e o administrador, “Como a Constituição regula, no es-
ao estabelecerem a sentença ou o ato admi- sencial, a elaboração das leis, a legis-
nistrativo (vistos também como normas), lação é, com respeito a ela, aplicação
estão aplicando a legislação. do direito. Com relação ao decreto e
a outros atos subordinados à lei, ela
9
Veja que o próprio Kelsen (1999), ao enfrentar é, ao contrário, criação do direito;
a questão das antinomias, assevera que “a norma
o decreto é, também, aplicação do
fundamental não empresta a todo e qualquer ato o
sentido objetivo de uma norma válida, mas apenas ao direito com respeito à lei e criação
ato que tem um sentido, a saber, o sentido subjetivo de do direito com respeito à sentença e
que os indivíduos se devem conduzir de determinada ao ato administrativo que o aplicam.
maneira” (KELSEN, 1999, p. 231). Assim, uma norma
Estes, por sua vez, são aplicação do
que simultaneamente proíbe o aborto em determinada
situação e o autoriza, sob o mesmo pressuposto, não direito, se olharmos para cima, e
faz sentido e não pode ser tida como válida somente criação do direito, se olharmos para
porque derivada da autoridade competente. Não baixo, isto é, no que concerne aos atos
bastasse esse aspecto, também é reconhecido que pelos quais são executados”.
as constituições, a par das normas de atribuição de
competência para a produção normativa, as quais A distinção, portanto, seria apenas de
Kelsen denomina de materialmente constitucionais, grau, posto que, à medida que descemos
encerram em seu bojo outras que circunscrevem o na pirâmide normativa, o grau de liberdade
domínio do conteúdo normativo a ser posto pelo do aplicador vai reduzindo.
legislador, sobretudo no que tange à imposição de
restrições materiais. Portanto, de certa forma, há
também a possibilidade de a autoridade competente 10
“Decerto que existe uma diferença entre estes
não editar um ato normativo válido, porque desviante dois casos, mas é uma diferença somente quantitativa,
daquele conteúdo prévio. Entretanto, isso não faz o não qualitativa, e consiste apenas em que a vinculação
sistema vincular-se a um princípio estático, posto do legislador sob o aspecto material é uma vinculação
que, qualquer que seja a norma posta, não deriva por do juiz, em que aquele é, relativamente, muito mais
dedução lógica da norma fundamental, como um seu livre na criação do Direito que este.” (KELSEN, 1999,
elemento analítico. p. 393).

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7. A interpretação jurídica em Kelsen A primeira é aquela levada a efeito pelo
órgão aplicador do Direito, ao passo que
Kelsen (1999) construiu um sistema es-
não-autêntica é a empreendida pelos que
tritamente lógico, razão pela qual, a despei-
apenas obedecem às normas jurídicas.
to de haver dedicado poucas linhas ao tema
Como visto, a produção normativa,
da interpretação no Direito, certo é que o fez
tomada como ato de aplicação do Direito,
ao final da sua obra clássica (Teoria Pura do
pressupõe um substrato de validade que,
Direito), exatamente porque pressupõe as
em certa medida, também determina o
noções que previamente exploramos.
conteúdo da norma a ser produzida. Uma
De fato, partindo-se da idéia de aplica-
sentença, por exemplo, ao estabelecer a
ção, recém abordada, os órgãos jurídicos,
norma aplicável a um caso determinado,
ao produzirem as normas do sistema, estão
está, de certa forma, produzindo o Direito
ligados a um processo de aplicação do Direi-
e também o aplicando, já que, em certa me-
to, pelo que a interpretação é algo que deve
dida, é um ato de execução da legislação.
necessariamente acompanhar esse processo
Em que pese a sua natureza executiva, não
de progressão de um escalão normativo
pode estar inteiramente determinada pela
superior a um inferior. É que, ao produzir
norma do escalão superior, porquanto,
a lei, o legislador está, em última análise,
como a norma jurídica é um ato de von-
aplicando a Constituição, o que exige a
tade, como tal estaria desnaturada, nessa
compreensão prévia do que é aplicado. Da
hipótese. Por isso mesmo, Kelsen (1999)
mesma forma, ao prolatar uma sentença, se a
introduziu a noção de moldura normativa,
tomamos como resultado de um processo de
compreendida como aquele âmbito de li-
aplicação das leis, impõe-se a compreensão
berdade em que atua o órgão aplicador do
prévia das leis que aplico. Tal característica
Direito12 (KELSEN, 1999, p. 388):
nos leva a uma compreensão da interpreta-
“A norma do escalão superior não
ção jurídica como um processo universal e
pode vincular em todas as direções
essencial à produção do Direito.
(sob todos os aspectos) o ato através
Por outro lado, os indivíduos, sujeitos
do qual é aplicada. Tem sempre de
às normas postas pelos órgãos aplicadores
ficar uma margem, ora maior ora me-
do Direito, estão obrigados ao dever ser
nor, de livre apreciação, de tal forma
nelas instituído e, ao se conduzirem na
que a norma do escalão superior tem
forma devida, diz-se que observam tais
sempre, em relação ao ato de produ-
normas (jamais a aplicam, porque não
ção normativa ou de execução que
criam Direito). De qualquer forma, também
a aplica, o caráter de um quadro ou
aqui, a determinação normativa precisa ser
moldura a preencher por este ato”.
apreendida pelo sujeito ao qual é destinada,
Portanto, vê-se que há um quadro de
pelo que também para ele, nesse processo
relativa indeterminação, a justificar aquele
de observância do Direito, assume relevo
a interpretação jurídica. como visto. Assim, quando um juiz interpreta a lei no
Estabelecida a distinção entre aplicação processo de que resulta a sentença, estamos diante de
do Direito e a sua observância, Kelsen (1999) interpretação autêntica.
12
Kelsen (1999) exemplifica: “Mesmo uma ordem
deduz daí a diferença entre o que denomi- o mais pormenorizada possível tem de deixar àquele
nou interpretação autêntica e não-autêntica11. que a cumpre ou executa uma pluralidade de determi-
nações a fazer. Se o órgão A emite um comando para
11
Não se retorna aqui à clássica distinção entre que o órgão B prenda o súdito C, o órgão B tem de
interpretação autêntica e não-autêntica, em que é decidir, segundo o seu próprio critério, quando, onde
tomada a primeira somente como aquela levada a e como realizará a ordem de prisão, decisões essas
efeito pelo próprio órgão que produziu a norma. Para que dependem de circunstâncias externas que o órgão
Kelsen (1999), a interpretação é autêntica quando emissor do comando não previu e, em grande parte,
conduzida por um órgão aplicador do Direito, tal nem sequer podia prever” (KELSEN, 1999, p. 388).

286 Revista de Informação Legislativa


espaço de liberdade reservado ao aplica- combina-se com um ato de vontade
dor do Direito, a que Kelsen denominou em que o órgão aplicador do Direito
moldura normativa. É irrelevante que tal efetua uma escolha entre as possibi-
indeterminação tenha sido desejada ou lidades reveladas através daquela
não (tal como ocorre, v.g., em decorrência mesma interpretação cognoscitiva.
da plurisignificatividade semântica dos Com este ato, ou é produzida uma
termos empregados na norma), ou ainda norma de escalão inferior, ou é exe-
que ela se circunscreva ao fato condicio- cutado um ato de coerção estatuído
nante ou à conseqüência condicionada, o na norma jurídica”.
que importa é que ela existe e que todo ato Finalmente, no âmbito da Ciência do
que se deixe enquadrar naqueles limites Direito, como não se trata de uma posição
será válido. vinculante, criadora, a interpretação se li-
Ora, se, como vimos, o ato de criação mita ao aspecto gnosiológico, é puro ato de
normativa é um ato de aplicação do Direito; conhecimento, daí a crítica da Teoria Pura à
se esse pressupõe a compreensão do que é Jurisprudência dos Conceitos, que pretende
aplicado; e se o compreendido não pode exatamente, por um ato de conhecimento,
ser univocamente determinado, então o ato criar Direito novo.
de interpretação que o pressupõe consiste Portanto, a única possibilidade da
exatamente na determinação daqueles limi- interpretação empreendida pela “juris-
tes em que a aplicação seria válida, ou seja, prudência” é a de evidenciar as múltiplas
“o resultado de uma interpretação jurídica possibilidades significativas da norma e,
somente pode ser a fixação da moldura que em conseqüência, retornamos ao princípio
representa o Direito a interpretar e, conse- norteador da Teoria Pura, do qual conclu-
qüentemente, o conhecimento das várias ímos que a adoção de preferências nesse
possibilidades que dentro dessa moldura processo configuraria intervenção de juízos
existem” (KELSEN, 1999, p. 390). políticos sobre o ato de conhecimento, o
Por tudo isso, sempre fracassaria a ten- que, para a Ciência do Direito, seria desas-
tativa de buscar um método que pudesse troso, já que desnaturaria o seu objeto.
proporcionar um sentido unívoco para a
norma a aplicar. Qualquer das opções até 8. Alguns pontos críticos no modelo
hoje experimentadas falharam exatamente
interpretativo da Teoria Pura
porque não consideraram aquele quadro
de indeterminação próprio da norma va- O conjunto teórico incorporado pela
lidante (de escalão superior) e, por via de Teoria Pura do Direito traz inúmeras vanta-
conseqüência, porque esqueceram que o ato gens. Os cortes epistemológico e axiológico
de aplicação do Direito é resultado, para introduzidos por Kelsen (1999) conduzem
Kelsen, de um ato de conhecimento (inter- à depuração de ideologias e juízos de valor
pretação que conduz o aplicador ao quadro na Ciência do Direito, aproximando-a da
normativo possível), combinado com um idéia científica de rigor e precisão. Se de
ato de vontade (aplicação propriamente um lado esse aspecto de ciência rigorosa,
dita em que, nos limites da moldura estabe- de inspiração matemática, contamina o
lecida, é eleita uma possível norma). mestre, de outro, não o deixa conduzir-se
É o que sintetiza o mestre (KELSEN, por um método que tenha por objetivo
1999, p. 394): proporcionar a infalibilidade e a certeza
“(...) na aplicação do Direito por um na aplicação do Direito. Kelsen está mais
órgão jurídico, a interpretação cog- atraído por uma análise do modo jurídico
noscitiva (obtida por uma operação de operação do que pela prescrição de um
de conhecimento) do Direito a aplicar roteiro adequado, visando ao ideal de certe-

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 287


za e univocidade (que lhe parece inatingível to de sua função formal de atribuição de
no Direito13). competência para a elaboração de outra,
De fato, ao estabelecer o ato de produ- pode, em certa medida, determinar o con-
ção do Direito como um ato de vontade, teúdo da norma validada, mas jamais essa
desautoriza qualquer pretensão de objeti- delimitação será absoluta, sempre perma-
vidade e certeza inquestionável. A pureza necendo um quadro ou moldura, dentro do
da Ciência Jurídica estaria exatamente em qual se movimentará o órgão de produção
reconhecer na norma o limite do seu objeto, jurídica. Assim, mesmo considerando o ato
dele expurgando quaisquer incursões na normativo um ato de aplicação do Direito,
seara do dever ser. sempre existirá um âmbito de aplicação
Quando a Ciência Jurídica, em vez de que permite afirmar a natureza voluntária
apenas descrever o seu objeto o valora, do ato produzido.
imiscui-se no ato de produção jurídica, pre- Nesse contexto, como vimos, a aplicação
tendendo afirmar o que deve ser o Direito. pressupõe o conhecimento da(s) norma(s)
Se assim ocorresse, o órgão de produção ju- aplicada(s), o que faz sobressair o papel
rídica deveria apenas conformar-se ao que subsidiário da interpretação jurídica, que
já estaria antecipadamente determinado a teria por objeto exatamente a determinação
ele, o que conduziria ao absurdo, por exem- daquela moldura normativa, a fim de pré-
plo, de imaginarmos que da Constituição estabelecer os limites de atuação válida do
somente haveria a possibilidade de uma órgão de aplicação normativa.
única solução legislativa, o que seria um Esse modo de ver as coisas evidencia
absurdo, sobretudo diante da já afirmada uma operação por etapas, que, em um
natureza do ato de aplicação do Direito primeiro momento, eu conheceria a re-
como um ato de vontade. Esse quadro alidade para depois aplicá-la (subtilitas
conduziria a uma antecipação fracassada, intelligendi, subtilitas explicandi e subtilitas
já que o objeto da Ciência do Direito é a applicandi). Esse fracionamento do processo
norma jurídica, competindo a ela descrever compreensivo vai de encontro à visão de
a ordem posta e não opinar sobre como compreensão como aplicação, de matiz
ela deveria ser (da ordem do ser não pode gadameriana e tão bem colocado por Lênio
derivar o dever ser). Streck (2006, p. 141):
Entretanto, esse construto bem elabora- “O texto não é, assim, apenas um
do parece desconsiderar alguns problemas enunciado lingüístico, que não se
de fundo, sobretudo no quadrante da in- sustenta em discursos de funda-
terpretação jurídica, como adiante vamos mentação; o texto não existe em uma
apontar. espécie de ‘textitude’ metafísica; o
texto é inseparável de seu sentido;
8.1. A interpretação como mecanismo textos dizem sempre respeito a algo
subsidiário da aplicação da faticidade; interpretar um texto é
Como visto, o modelo kelseniano pro- aplicá-lo; daí a impossibilidade de
põe que uma norma jurídica encontra o seu cindir interpretação de aplicação”.
fundamento de validade em outra norma É evidente o recurso à diferença ontológi-
de escalão superior. Essa norma, a despei- ca, base da hermenêutica filosófica, em que
se estabelece a distinção, sem cisão, entre
13
“com a sua teoria da norma fundamental, a ser e ente, ou seja, o ente somente existe no
Teoria Pura do Direito de forma alguma inaugura um seu ser e o ser, por sua vez, somente pode
novo método do conhecimento jurídico. Ela apenas
consciencializa aquilo que todos os juristas fazem
ser o ser de um ente! Essa tessitura filosó-
– quase sempre inconscientemente (...)” (KELSEN, fica foi manejada por Streck (2006) para
1999, p. 228). estabelecer a distinção entre norma e texto.

288 Revista de Informação Legislativa


Efetivamente, o texto não contém a norma, uma herança do pensamento metafísico,
como algo que, sendo-lhe inerente, pudesse que se manifesta na dualidade sujeito-
ser expurgado por um ato do intérprete (tal objeto, como se a norma validante pudesse
como pressupõem aqueles que vêem a inter- encerrar em si mesma um sentido próprio,
pretação como a busca do sentido e do al- apto a ser captado por um solipso sujeito,
cance da lei (cf. MAXIMILIANO, 1984, p. 1). ainda que esse sentido esteja cerrado em
Na visão de Streck (2006), o texto está para uma moldura de possibilidades, dentro
o ente, assim como a norma para o seu ser. da qual o órgão legiferante pudesse con-
Esse sentido textual revela a norma no seu duzir-se. Como se ele, legislador, devesse
acontecer, no seu desvelar histórico, e essa buscar, por exemplo, os possíveis sentidos
sua verdade não pode ser enclausurada. da Constituição unicamente a partir da
Nesse sentido é que se pode também vis- Constituição.
lumbrar a norma somente na sua aplicação. O ser humano é o único ente que, em
Ora, “na escrita, o sentido do falado está aí seu ser, tem um mundo, no sentido de que
por si mesmo, inteiramente livre de todos está atrelado a uma tradição que herda e
os momentos emocionais da expressão do que, ao mesmo tempo, vai reconstruindo.
anúncio” (GADAMER, 2002, p. 571). Não há É dessa conversa com a tradição que os
uma intenção a ser reconstruída, tampouco sentidos se desvelam, razão pela qual, não
um plexo de sentidos inicialmente dado. se pode pretender uma objetividade estéril,
Não há reconstrução do sentido do texto, nem mesmo para o cientista do Direito. Ele
mas construção contextual da norma pelo e também o órgão de aplicação do Direito, e
intérprete. Daí o acerto de Gadamer (2002), ainda aquele que apenas obedece às normas
ao afirmar que interpretação é applicatio. jurídicas, estão ungidos desse substrato
Esse argumento agrega dificuldades histórico que conduz ao que denominamos
à sustentação do modelo interpretativo pré-compreensão, a qual, longe de ser um
fracionado proposto por Kelsen (1999), já problema para a compreensão do Direito,
que, não havendo um sentido imanente, é uma condição de possibilidade dela. Essa
aquela moldura não pode ser apreendida, situação hermenêutica do sujeito estabelece
senão no momento mesmo da aplicação da um horizonte que projeta um raio de visão
norma, e aí já não nos parece haver espaço compreensiva.
para falar sequer em moldura. A busca frenética por uma objetividade
Não bastasse isso, parece que não foi científica descola o direito da realidade.
percebido o caráter histórico da verdade e Pretender ver o intérprete como uma mô-
o papel dos sujeitos na sua conformação. De nada, isolada do mundo e da história, capaz
fato, afirmar que há uma moldura prévia de apreender a realidade afastando-se dela
que limita o sentido possível da normati- é uma pretensão absurda. O homem é um
vidade, cabendo ao intérprete encontrar ser histórico e é pela e na história que trava
essas fronteiras, deixaria para trás (ao contato com os entes intramundanos.
menos) a questão da dinâmica do quadro.
Pelo menos deveríamos considerar que
9. Conclusão
aqueles limites também são cambiantes. É
que não há um sentido prévio inerente ao O arquétipo racional estabelecido por
texto normativo, que deva ser buscado, mas Kelsen, que superficialmente procuramos
um uso concretizado pelos sujeitos, que expor, não pode ser cindido, pelo que a sua
se inserem em um contexto comunicativo teoria da interpretação jurídica está confor-
interativo e dialético. mada aos substratos da sua Teoria Pura.
Parece que ainda se está arraigado a A objetividade que pretende empre-
uma noção de verdade inerente ao objeto, ender no momento interpretativo, como

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 289


uma etapa preparatória ao momento de empreendimento que intente compre-
aplicação do Direito, bem como a postura ender objetivamente, em absoluto,
neutra do cientista do Direito, que não pode qualquer tipo de fenômeno, eis que
senão compreender o seu objeto de estudo, a compreensão, como dito, sujeita-se
o Direito, descrevendo-o sem valorá-lo, também à tradição a qual pertence
acabam por empobrecer demasiadamente aquele que se dá ao conhecer”.
o seu modelo. Assim, Kelsen, em seu ideal de pureza
Veja que não pretendemos criticar toda científica, busca uma objetividade na Ci-
a obra de Kelsen, como desde o início ência do Direito, somente alcançada pela
alertamos, mas apenas questionar os pres- distinção entre as noções de ser e dever
supostos do seu modelo interpretativo, ser. Ao cientista não cabe externar juízos do
muito embora, dada a íntima conexão que segundo tipo, cabendo apenas dizer o que
acabamos de mencionar, nossas críticas o Direito é. Em última análise, reconhece
acabam-se refletindo também em outros que a ele cabe tão-somente compreender o
postulados da sua Teoria Pura. Direito de forma ascética, contemplativa,
Efetivamente, a neutralidade como ideal sem introjetar-se em seu objeto de estudo.
da Ciência do Direito não pode sustentar- A questão que fica é: como fazer isso? Como
se, em face da noção de situação histórica poderia o intérprete anular as suas pré-
do intérprete. A compreensão não pode compreensões que a tradição lhe deixou?
dar-se fora da situação em que ele se Como poderia ele saltar da história para
encontra, porque “toda forma de compre- ver a história?
ensão é historicamente situada, de sorte Da mesma forma, quando o aplicador
que toda possibilidade de realização se dá do Direito estabelece uma nova norma, ele
apenas no contexto do horizonte daquele o faz autorizado e balizado por outra, de
que se põe a conhecer” (PEREIRA, 2007, escalão superior (o legislador, por exemplo,
p. 27). Corolário dessa premissa é que o produz a lei, autorizado e, de certa forma,
intérprete só compreende partindo de pré- conformado pela Constituição), concreti-
compreensões advindas daquele horizonte zando um ato de vontade manifestado na
em que se situa. sua opção de eleição de uma entre as várias
É exatamente por isso que a pretendida possibilidades que a moldura normativa
neutralidade do intérprete (seja do cientista lhe autoriza. Assim, o ato de aplicação do
do Direito, seja daquele que o aplica, seja Direito seria um ato de vontade, precedido
ainda do que meramente compreende a de um ato de puro conhecimento, consis-
norma para observá-la) é fracassada. tente na identificação daquele rol de possi-
Como dissemos, constatar esse quadro bilidades já antecipadamente presentes na
de pré-compreensão não nos revela um norma autorizadora.
obstáculo, mas antes uma condição de Novamente aqui, temos uma submis-
possibilidade do conhecimento (PEREIRA, são a um juízo de mera constatação de
2007, p. 28): uma realidade que me é dada: a moldura
“Assim sendo, o homem, ao interpre- normativa. Caberia ao aplicador do Direito
tar qualquer fenômeno, já possui an- aplicá-lo por um ato de vontade, permeado
tecipadamente uma pré-compreensão de ingerências políticas, morais etc., por-
difusa do mesmo, um pré-conceito, tanto um ato de liberdade que, todavia, é
uma antecipação prévia do seu senti- precedido de um ato estéril, de mero conhe-
do, influenciada pela tradição em que cimento, livre de todas essas interferências.
se insere (suas experiências, seu modo Novamente permanece a questão: como
de vida, sua situação hermenêutica fazê-lo? Esse salto para fora da história é
etc.). Por esse motivo, fracassará todo uma premissa assumida: “Como se fosse

290 Revista de Informação Legislativa


possível vendar os olhos para aquilo que KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Porto Alegre:
forma a nossa herança cultural, como se nos S. Fabris, 1986.
fosse dado pular a nossa própria sombra” ______. Teoria pura do direito. 6 ed. São Paulo: M.
(PEREIRA, 2007, p. 33). Fontes, 1999.
Se fixamos a idéia de que não existe um ______. Jurisdição constitucional. São Paulo: M. Fontes,
ser entificado, um sentido estático aprisiona- 2003.
do no tempo pela lei, apto a ser descoberto MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do
pelo intérprete, logo percebemos a dificul- direito. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
dade de adoção das premissas que orientam
PEREIRA, Rodolfo Viana. Hermenêutica filosófica e
a teoria da interpretação em Kelsen. constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
SGARBI, Adrian. Clássicos da teoria do direito. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2006.
Referências
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição,
hermenêutica e teorias discursivas. Rio de Janeiro:
COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. 3 ed. São
Lumen Juris, 2006.
Paulo: M. Limonad, 2000.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços
fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 4 ed.
Petrópolis: Vozes, 2002.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 291


Autoridade parental, incapacidade e
melhor interesse da criança
Uma reflexão sobre o caso Ashely

Ana Carolina Brochado Teixeira


Luciana Dadalto Penalva

Sumário
1. O caso. 1.1. Encefalopatia estática: sin-
tomas e prognósticos. 1.2. O que foi feito com
Ashley? 1.3. Os pais de Ashley e suas razões. 2.
Abrangência da autoridade parental. 3. Direitos
de personalidade: seriam eles renunciáveis? 3.1.
O direito à procriação. 3.2. O direito ao desen-
volvimento físico. 4. Conclusão.

1. O caso
Ashley é uma garota americana de
nove anos portadora de uma doença rara
chamada “encefalopatia estática”. Em 2004,
foi submetida a um procedimento cirúrgico
para retirar seu útero e suas glândulas ma-
márias e, desde então, está tomando altas
doses de hormônio para interromper seu
crescimento, tudo com o consentimento
de seus pais.
Tal fato só foi divulgado pela mídia no
início do ano de 2007, pois o médico que
realizou as cirurgias apresentou o caso à
comunidade científica norte-americana,
narrando a situação. A repercussão dessas
interferências médicas tomou uma propor-
ção mundial, gerando debates acalorados
sobre a eticidade dessas medidas, que só
Ana Carolina Brochado Teixeira é Douto-
foram feitas porque os pais da criança
randa em Direito Civil pela UERJ. Mestre em
Direito Privado pela PUC/MG. Professora de
entenderam serem esses os meios mais
Direito Civil. Advogada. Diretora do Instituto adequados de garantir a qualidade de vida
Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM. de sua filha.
Luciana Dadalto Penalva é Mestranda em Diante disso, este artigo propõe al-
Direito Privado pela PUC/MG. gumas reflexões sobre o que seria, nesse
Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 293
caso, o melhor interesse dessa criança, que Sua sintomatologia é a mais variada
está totalmente entregue aos cuidados dos possível, embora seja comum em todos os
pais, por total impossibilidade de fazê-lo tipos de encefalopatias o desenvolvimento
sozinha. A discussão passa, inevitavel- motor retardado. Os portadores de paralisia
mente, pelo estudo sobre titularidade e cerebral leve têm alterações finais de movi-
exercício de direitos de personalidade, mento; os de paralisia cerebral moderada
bem como sobre cessão e renúncia dos sofrem dificuldades variáveis em relação
mesmos. Tais questionamentos teóricos à fala e movimentos e, por sua vez, os de
serão feitos à luz do caso concreto de Ash- paralisia cerebral grave têm incapacidade
ley, de modo a verificar-se se as “verdades para andar, usar as mãos e falar.2
dogmáticas” aplicam-se indistintamente A síndrome da qual Ashley é portado-
a todas as situações, ou se podem sofrer ra é um tipo grave de paralisia cerebral,
variações de acordo com as nuances do denominado encefalopatia estática pelo
caso concreto. seu caráter persistente, ou seja, por sua
irreversibilidade. Enfim, em que pese os
1.1. Encefalopatia estática: avanços da neuropediatria nas pesquisas
sintomas e prognósticos de encefalopatias, não há, no momento,
Primeiramente, é preciso ressaltar que tratamento capaz de reverter o quadro
o objetivo deste estudo não é aprofundar de Ashley, cujo desenvolvimento mental
na análise da síndrome da qual Ashley é cessou aos três meses de vida e, hoje, com
portadora, até pelo cunho jurídico deste. nove anos, não fala, não anda, não senta e
Contudo, para o melhor entendimento do se alimenta exclusivamente por sondas.
caso, é de suma importância uma compre-
1.2. O que foi feito com Ashley?
ensão, ainda que superficial, da doença
encefelopatia estática, que se constitui em Em 2004, Ashley foi submetida, no Hos-
uma síndrome neonatal. pital de Criança de Seattle, com o aval do
Na literatura médica, poucos são os diretor do Centro Treuman Kartz para Bio-
autores que tratam especificamente dessa ética Pediátrica, Dr. Douglas Diekema, e de
síndrome, por ser extremamente rara. A seus pais, a dois procedimentos cirúrgicos:
Encefalopatia, mais conhecida como para- retirada das glândulas mamárias e remoção
lisia cerebral, é gênero do qual fazem parte, do útero. Desde então, está tomando altas
segundo a classificação mais aceita pelos doses de estrogênio a fim de manter-se
neurologistas, 7 (sete) categorias maio- pequena e retardar seu desenvolvimento
res, 34 (trinta e quatro) menores e várias sexual. Tal medida foi tomada porque a
subcategorias.1 A paralisia cerebral pode criança, aos seis anos, já estava apresentan-
ser relacionada com vários fatores, entre do sinais de puberdade precoce.
eles: hereditariedade, infecções congênitas, 2
“... apesar de caracterizada pela disfunção motora,
malformações congênitas, complicações a PC é sempre acompanhada por outras desordens da
obstétricas, uso de drogas e medicamentos função cerebral. Entre elas as anormalidades de cogni-
pela gestante, exposição a radiações, fatores ção, visão, audição, fala, sensações táteis, atenção e com-
portamento. A epilepsia geralmente está presente, bem
perinatais (prematuridade e baixo peso, por
como defeitos na função gastrintestinal e crescimento. As
exemplo) e fatores pós-natais (infecções e desordens de funções corticais mais altas têm impacto
traumas cranianos, entre outros). importante nas atividades da vida diária e afetam tarefas
como vestir-se ou apertar botões em uma criança que
1
Sobre esse assunto, ver: Paralisia Cerebral: aparentemente é levemente afetada.” (CÂNDIDO, Ana
abordagem para o pediatra em geral e manejo mul- Maria Duarte Monteiro. Paralisia Cerebral: abordagem
tidisciplinar. Disponível em: <www.paulomargotto. para a pediatria geral e manejo multidisciplinar. Dispo-
com.br/documentos/paralisiacerebra.doc>. Acesso nível em: <www.paulomargotto.com.br/documentos/
em: 23 mar. 2007.. paralisiacerebra.doc>. Acesso em: 23 mar. 2007).

294 Revista de Informação Legislativa


O referido médico concedeu uma eram maiores do que os riscos de uma
entrevista à rede de televisão americana cirurgia. Em resumo, utilizam os mesmos
CNN,3 na qual afirma que, antes dar seu argumentos do Dr. Douglas Diekema para
parecer sobre o caso, constatou que Ashley justificar os procedimentos médicos e cirúr-
nunca falaria, andaria e seria eternamente gicos realizados em Ashley.
dependente de seus pais para tudo o que A divulgação do tratamento realizado
precisasse fazer. Além disso, sua função na criança trouxe à baila várias questões
cognitiva equivalia à de uma criança com acerca dos reais motivos que levaram os
seis meses de vida e, por essas razões, foi pais de Ashley a proporem aos médicos
favorável à realização das cirurgias e do medidas capazes de interromper seu
tratamento hormonal. crescimento e sua puberdade, motivando
Quanto aos benefícios que o tratamento a reflexão sobre os limites da autoridade
trouxe à Ashley, afirma que será mais fácil parental em casos como esse. Além disso, é
cuidar dela, pois seu tamanho será sempre preciso delimitar outras questões: a condu-
o de uma criança de nove anos, além de ta dos pais de Ashley é moralmente aceita?
que seus pais poderão facilmente abraçá- É juridicamente viável? Será que esses
la e colocá-la em uma cadeira de rodas pais pretendem facilitar a própria vida, na
para passear. Quanto ao desenvolvimento medida em que terão menos trabalho em
sexual, ela não menstruará; portanto, não cuidar da filha quando esta ficar adulta, ou
sofrerá traumas ao ver sangue saindo de de fato visam exclusivamente o bem-estar
seu corpo sem entender do que se trata. da criança? O direito à reprodução é um
Por fim, a retirada do útero tem a função direito fundamental e, portanto, indisponí-
de evitar uma gravidez, que, em virtude vel? Quais os limites da autoridade parental
de sua incapacidade permanente, será in- nos casos em que os filhos têm pouco ou
desejada. Ashley está tomando altas doses nenhum discernimento? Existe um direito
de hormônio para atender à finalidade fundamental ao desenvolvimento físico?
pretendida pelos pais. Questionado quanto A discussão que ora propomos visa
aos riscos que a alta dosagem de estrogênio refletir sobre tais questionamentos.
pode trazer, Dr. Burkholder limitou-se a
dizer que são os mesmos da ingestão de
2. Abrangência da autoridade parental
anticoncepcionais orais.
Finalmente, sobre os prognósticos Todos sabemos que o poder familiar –
acerca do desenvolvimento de Ashley, in- ou autoridade parental, nomenclatura por
formou que, quando adulta, terá feição de nós preferida, por ser mais adequada ao seu
mulher, corpo de uma menina de nove anos conteúdo constitucional4 – tem a duração
e desenvolvimento mental de um bebê de equivalente à menoridade dos filhos, por
seis meses e concluiu dizendo que todos os força do que dispõe o art. 229 da Consti-
procedimentos se justificam pelos motivos tuição Federal de 1988. E também que a
já descritos. autoridade parental é um múnus de direito
privado, um poder jurídico, isto é, um feixe
1.3. Os pais de Ashley e suas razões
de poderes – deveres atribuído pelo Estado
Os genitores justificam o tratamento aos pais, para serem exercidos no interesse
dizendo que a intenção foi melhorar a dos filhos. A Constituição estabelece que
qualidade de vida de sua filha e destacam cabe aos pais a tarefa de criar, educar e
que a decisão foi fácil porque os benefícios
4
Sobre a diferenciação da nomenclatura, reme-
3
Disponível em: <http://www.cnn.com/2007/ temos a TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Família,
HEALTH/01/11/ashley.ethicist/index.html?eref=rss_ guarda e autoridade parental. Rio de Janeiro: Renovar,
latest>. Acesso em: 29 mar. 2007. 2005, p. 3-7.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 295


assistir os filhos enquanto menores. O exer- de seus pais, devendo realizar-se sempre
cício do poder familiar nos coloca diante de uma análise do caso concreto”. Não existe
duas questões: a abrangência quantitativa e uniformidade ou definição rígida do que
qualitativa da autoridade parental. seja tal princípio, cujo exame deve ser feito
A rigor, até que a prole alcance a maiori- em cada caso. Não obstante seja impossível
dade, ou seja, complete 18 (dezoito) anos, os defini-lo de antemão, temos que buscar seu
pais devem guiar a sua vida, bem como de- núcleo essencial, que se constitui na possi-
cidir por ou com eles, vez que, dependendo bilidade de o menor exercer seus direitos
da idade, irão representá-los (até 16 anos) fundamentais. E é bastante salutar que
ou assisti-los (de 16 a 18 anos). Entretanto, o faça por si próprio, na medida em que
na medida em que a Constituição Federal adquire discernimento.5
determinou que a criança e o adolescente Afirma Maria Clara Sottomayor (2002,
são alvos de proteção especial, por serem p. 197) que, embora o interesse da criança
pessoas em desenvolvimento, valorizando ou do adolescente seja um conceito inde-
a construção da sua personalidade, temos terminável pelo seu caráter vago e elástico,
que analisar de forma criteriosa a forma de facilitando interpretações subjetivas, tem
exercer a autoridade parental. Isso porque a um núcleo conceitual que deve ser preen-
criação e educação dos filhos ocorrem como chido por valorações objetivas. Essas se
um processo: tanto maior é a atuação dos atrelam à estabilidade de condições de vida
pais quanto menor são os filhos, ou melhor, da criança, das suas relações afetivas e do
quanto menos discernimento eles têm. À seu ambiente físico e social.
medida que vão crescendo, faz-se menos Poderíamos dizer que o núcleo con-
necessária a intervenção parental, vez que, ceitual nomeado pela autora portuguesa
através dessa mesma convivência e do encontra-se, exatamente, na possibilidade
processo educacional, vivenciam situações de acesso e exercício dos direitos funda-
que lhes conduzem à paulatina aquisição da mentais pela criança e pelo adolescente.
maturidade. Dessa forma, vão-se tornando Tal princípio, aliado à doutrina da prote-
mais aptos para o exercício dos direitos ção integral, visa à proteção da criança, do
fundamentais e, principalmente, a fazerem adolescente, bem como de seus direitos,
opções, com mais liberdade. Entretanto, dis- além de garantir-lhes as mesmas prerro-
cernimento importa, para nós, o exercício da gativas que cabem aos adultos. O dever
liberdade com a correlata responsabilidade, de proteção não se limita ao Estado, mas
ou seja, ter condições psíquicas de assumir também é atribuído à sociedade e à família,
as conseqüências dos seus atos. conforme determina o art. 227 da Carta
O que propomos é, então, uma forma Constitucional, constituindo-se, destarte,
qualitativamente diferenciada do exercício um dever social (Cf. PEREIRA, 1999, p.14).
do poder familiar, respeitando a formação Sua condição prioritária deve-se ao fato
do menor, bem como as fases galgadas de de serem pessoas em desenvolvimento,
construção da personalidade por ele. Essa cuja personalidade deve ser protegida e
nova perspectiva da autoridade parental promovida, mediante o exercício dos di-
vai integralmente ao encontro do princípio
norteador em matéria infanto-juvenil: o
5
Sobre a possibilidade de se respeitar a vontade
da criança e do adolescente, remetemos a MEIRELES,
Princípio do Melhor Interesse da Criança e Rose Melo Venceu, et al. O cuidado com o menor de
do Adolescente. Segundo Tânia da Silva Pe- idade na observância da sua vontade. In: PEREIRA,
reira (1999, p. 3), “a aplicação do princípio Tânia da Silva; OLIVEIRA, Guilherme. O cuidado como
valor jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 335-354;
do best interest permanece como um padrão
TEPEDINO, Gustavo. A tutela constitucional da criança
considerando, sobretudo, as necessidades e do adolescente: projeções civis e estatutárias. No prelo
da criança em detrimento dos interesses (original gentilmente cedido pelo autor).

296 Revista de Informação Legislativa


reitos fundamentais.6 Despiciendo, neste ções ligadas ao Biodireito, como, por exem-
momento, questionarmos qual a forma de plo, na continuidade ou na interrupção de
acesso e exercício dos direitos fundamen- tratamentos médicos.8 Nesses casos, o que
tais pela população infanto-juvenil. Ao que deve prevalecer: a decisão dos pais ou a
nos parece, a relação parental é o modo autodeterminação dos filhos? Não existem
prioritário, em regra, de assegurar-lhes a respostas prontas e preestabelecidas, mas o
experiência de tais direitos, tendo em vista discernimento é a “peça fundamental” para
que o relacionamento familiar é a primeira resolver os casos concretos.
experiência do menor com o outro, princi- Além do aspecto “quantitativo” da
palmente com os pais. É a experiência pri- autoridade parental, há, também, o qua-
meira da alteridade. Esse “outro”, por sua litativo, que tem maior relevância para o
vez, recebeu do Estado um múnus, um feixe desenvolvimento das idéias propostas no
de poderes e deveres a serem exercidos em presente estudo. Imbuídos do múnus do
benefício dos filhos, o que nos autoriza a poder familiar, o que podem os pais fazer
caracterizar a autoridade parental como “em nome” dos filhos? Sob o ponto-de-vista
poder jurídico, no que tange às inúmeras patrimonial, a resposta é óbvia: representá-
categorias das situações jurídicas.7 los ou assisti-los nas situações jurídicas
Portanto, quantitativamente, pensamos patrimoniais. Para isso, questiona-se a
que é possível uma redução gradativa da validade do regime das incapacidades para
abrangência da autoridade parental, em todos os atos, que se exteriorizam mediante
prol da realização da personalidade da o instituto da representação, tendo em vista
criança e do adolescente, relativizando o que esse modelo foi construído “em e para
regime das incapacidades, previsto nos arti- outra realidade”, o que provoca o questio-
gos 3o e 4o do Código Civil de 2002, quando namento da “validade da continuidade de
estão em jogo interesses existenciais da sua utilização sem nenhuma reformulação”
criança e, principalmente, do adolescente. (Cf. CARBONERA, 2004, p. 162). Nesse
Assim, poderão eles participar das decisões sentido, Silvana Carbonera (2004, p. 162)
que definirão o rumo de suas vidas. Sensí- afirma:
vel a tal necessidade, o Estatuto da Criança “A conseqüência da capacidade ou
e do Adolescente – ECA determinou a oiti- de sua falta é a necessidade de inserir
va do adolescente no processo de adoção, no mundo jurídico pessoas que ainda
devendo a sua opinião ser considerada (art. não tenham condições de atuar indi-
28, § 1o). O mesmo deve ocorrer em casos vidualmente. Neste ponto, o instituto
de guarda e visitas/convivência familiar da representação vem suprir esta fal-
quanto à prática de atos ligados ao Direito ta. Contudo, podem ser observados
de Família. Também devemos pensar na claros contornos patrimonialistas no
valorização da vontade do menor em situa- momento de sua elaboração: se um
6
Tal condição lhes foi garantida pelo art. 6o da Lei
menor não pode comprar ou vender
8.069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente, cujo validamente por ser incapaz, que o
teor é o seguinte: “Art. 6o Na interpretação desta Lei possa fazer se estiver representado
levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, ou assistido! Mas será que a repre-
as exigências do bem comum, os direitos e deveres in-
dividuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e
sentação também é suficiente para
do adolescente como pessoas em desenvolvimento.”
7
Sobre o tema, recomendamos a leitura de 8
Tais idéias foram desenvolvidas em TEIXEIRA,
TEPEDINO, Gustavo. A disciplina da guarda e da Ana Carolina Brochado. A disciplina jurídica da au-
autoridade parental na ordem civil-constitucional. In: toridade parental. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha
CONGRESSO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍ- (Coord.). Família e dignidade humana. In: CONGRESSO
LIA, 4., 2004, Belo Horizonte. Anais...Belo Horizonte: BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA. 5., 2006, São
Del Rey; IBDFAM, 2004, p. 305-324. Paulo: IOB THomson, 2006, p. 103-123.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 297


atos de disposição quando o bem é 3. Direitos de personalidade:
indisponível, como é o caso do corpo seriam eles renunciáveis?
humano?”
A nova questão que surge é se também Os direitos de personalidade se referem
poderão tomar decisões cuja repercussão se intrinsecamente à pessoa humana, respei-
dê na órbita existencial, como, por exemplo, tando à sua esfera individual, que prima
no exercício de direitos de personalidade e, pela busca da sua realização enquanto tal.
em última instância, de direitos fundamen- Tais direitos estão atrelados à cláusula de
tais. É a partir dessa reflexão que pensare- tutela da pessoa humana, esculpida pelo
mos na atitude dos pais de Ashley, se seria Princípio da Dignidade Humana, vincu-
ou não admitida no Brasil. lado aos demais objetivos da República,
Quando uma criança nasce, ela é total- inscritos na Constituição Federal de 1988.
mente dependente dos pais ou de seus cui- As características comumente elencadas
dadores, vez que patente sua grande fragili- para os direitos personalíssimos são “a
dade psícofísica. À medida que vai crescen- generalidade, a extrapatrimonialidade, o
do – como já dissemos –, vive um gradativo caráter absoluto, a inalienabilidade, a im-
processo de aquisição de autonomia, que prescritibilidade e a intransmissibilidade”
vai-se manifestando paulatinamente, justi- (TEPEDINO, 2004, p. 33). Além dessas, tam-
ficadora, por outro lado, da diminuição da bém é bastante citada a indisponibilidade,
interferência dos pais. Entretanto, estamos a que “retira do seu titular a possibilidade de
pensar em uma criança que não tem a menor deles dispor, tornando-os também irrenun-
possibilidade de uma vida com autonomia, ciáveis e impenhoráveis” (TEPEDINO, 2004,
vez que sua integridade psicofísica está al- p. 34). Essa característica é a que será por nós
tamente comprometida pela síndrome que discutida, tendo em vista que o foco do pre-
a acomete. Entretanto, não se pode ignorar sente trabalho é investigar a possibilidade
que, “mesmo que um sujeito de direito passe de os pais de Ashley renunciarem por ela a
sua vida toda sem praticar nenhum ato ou direitos personalíssimos, especificamente o
negócio jurídico, de cunho patrimonial ou direito à procriação e à integridade física.
não, ainda assim será titular de um círculo A primeira questão cinge-se à viabili-
mínimo de direitos de personalidade” dade de renúncia – e, portanto, de exer-
(CARBONERA, 2004, p.151). cício – de direitos de personalidade por
Por essa razão, é de suma relevância outrem, in casu, pelos pais, no exercício da
refletirmos sobre o que os pais podem ou autoridade parental. Poderiam eles exercer
não fazer, como titulares do poder familiar, tais direitos pelos filhos? É claro que não,
com uma criança nessas condições. Os ge- e esse é exatamente o problema da contra-
nitores de Ashley a submeteram à cirurgia posição entre poder familiar e exercício
de retirada do útero e à impossibilidade dos direitos personalíssimos, pois estes só
do crescimento, ou seja, comprometeram podem ser exercidos pelo titular, sob pena
o exercício de relevantes direitos seus, tais de se descaracterizarem como tal, além de
como sua integridade física e o direito à não cumprir sua função constitucional de
reprodução. tutela da personalidade. Sobre essa pro-
O caso de filhos incapazes – principal- blemática, manifesta-se Pietro Perlingieri
mente se menores – é bastante peculiar (2007, p. 260):
e exige que a autoridade parental seja “A contraposição entre capacidade
exercida de forma qualitativa e quantita- e incapacidade de exercício e entre
tivamente diversa, pois, quanto menor o capacidade e incapacidade de enten-
discernimento, menor a autonomia e mais der e de querer, principalmente nas
densa a interferência dos pais. relações não-patrimoniais, não cor-

298 Revista de Informação Legislativa


responde à realidade: as capacidades ser possível afirmar que alguns direitos de
de entender, de escolher, de querer personalidade, em circunstâncias excep-
são expressões da gradual evolução cionais, são renunciáveis ou disponíveis,
da pessoa que, como titular de di- porque visam à realização de um objetivo
reitos fundamentais, por definição maior – concretização da dignidade huma-
não-transferíveis a terceiros, deve ser na – desde que tal escolha seja privativa
colocada na condição de exercê-los do titular. O art. 11 do Código Civil diz
paralelamente à sua efetiva idonei- que essa renunciabilidade só pode ocorrer,
dade, não se justificando a presença excepcionalmente, em casos expressamente
de obstáculos de direito e de fato que previstos em lei.
impedem o seu exercício (...).” Existem hipóteses, inclusive, em que o
Ultrapassada a questão da impossibili- ordenamento jurídico corrobora com tal
dade de exercício de direitos personalíssi- entendimento, como, por exemplo, “no
mos por terceiros, voltamos ao exame da caso de cessão de direito de imagem para
possibilidade de serem eles renunciáveis, fins de publicidade, ou ainda da dispo-
não obstante a doutrina afirme pela irrenun- sição gratuita de tecidos, órgãos e partes
ciabilidade. Tal problema torna-se relevante do corpo humano (rim, pulmão, sangue,
tendo em vista que os pais de Ashley opta- material genético), em vida ou post-mortem,
ram pela histerectomia9 e pelo impedimento para fins de transplante e tratamento (...)”
do crescimento da filha, por julgarem condi- (AMARAL, 2006, p. 250). Entretanto, a au-
zentes com os interesses desta, operando-se, tonomia não pode se limitar a tais situações,
portanto, uma renúncia, em nome dela, de tendo em vista que são múltiplos os direitos
seus direitos de personalidade. personalíssimos, não estando todos eles
Quando se analisa o exercício – ou não – previstos taxativamente, seja no Código
do direito de personalidade pelo próprio ti- Civil de 2002 ou em leis esparsas. Assim, a
tular, o conflito localiza-se entre autonomia impossibilidade a priori de renúncia a direi-
privada e a propalada irrenunciabilidade to de personalidade deve ser vista de forma
dos direitos personalíssimos, uma vez que crítica, mediante uma análise na qual fato
a pessoa pode entender que a forma que e norma dialoguem, de modo a perquirir
melhor realiza sua personalidade é por a função de determinada situação jurídica,
meio da disponibilidade de algum direito vez que é por meio dessa perspectiva que se
de personalidade, como é um caso de um cumprirão os objetivos constitucionais.
transexual.10 Por essa razão, entendemos Não obstante tais observações, o caso
Ashley não se enquadra nessa situação de
9
“É a retirada do útero, que pode ser total, quando a criança ou seus pais poderem renunciar
se retira o corpo e colo do útero, ou subtotal, quando só
o corpo é retirado. Na maioria das vezes, é feita através a seus direitos personalíssimos, pois, além
de uma incisão no abdômen, por onde se retira o útero de tal disposição não poder ser feita pelos
(histerectomia abdominal). Em alguns casos, também pais – e sim pelo titular –, Ashley, em razão
pode ser feita através de um incisão na vagina, por
onde se retira o útero (histerctomia vaginal). Uma ou-
da idade que acarreta a incapacidade abso-
tra abordagem é a histerectomia por videolaparosco- luta para a prática de atos jurídicos, também
pia, onde a cirurgia é realizada por pequenos orifícios não detém nenhum discernimento para se
de 5 a 10 mm no abdômen e a retirada do útero é feita autodeterminar, no aspecto patrimonial
pela vagina. Às vezes, essa cirurgia é acompanhada
da retirada dos ovários e trompas (histerectomia total ou existencial. É sob esse enfoque que será
com anexectonia bilateral).” (Disponível em:< www.
mioma.com.br>, acesso em: 3 dez. 2007). Código Civil de 2002. Belo Horizonte: Del Rey, 2004,
10
Sobre o tema, recomendamos a leitura de SÁ, p.199-222; KONDER, Carlos Nelson. O consentimento
Maria de Fátima Freire de. Da redesignação do estado no Biodireito: os casos dos transexuais e dos wannabes.
sexual. In: NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SÁ, Revista Trimestral de Direito Civil. ano 4, v. 14, jul.-set.
Maria de Fátima Freire de. Bioética, Biodireito e o novo 2003, p. 41-71.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 299


estudada a conduta de seus pais ao deter- eram voltadas ao patrimônio para a pessoa
minarem o não-exercício, pela filha, dos humana, de modo que o Princípio da Digni-
direitos à procriação e à integridade física. dade da Pessoa Humana passou a permear
e a legitimar todas as decisões jurídicas
3.1. O direito à procriação pátrias. Portanto, questões envolvendo
O desejo de procriar acompanha o ser problemas bioéticos são atualmente objeto
humano desde criança, pois as pessoas de análise e pesquisa para o profissional do
aprendem que ter filhos faz parte da ordem direito, pois afetam diretamente o homem
natural da vida. Na Antigüidade, as mu- e a sociedade, sendo uma das finalidades
lheres inférteis eram consideradas bruxas, precípuas do Direito regular relações entre
pois se entendia que o diabo as controla- estes.
va, impossibilitando-as de ter filhos (Cf. O texto constitucional brasileiro consa-
MURARO, 1991, p. 15). Com o desenvol- grou, em seu art. 226, § 7o, o direito ao livre
vimento da medicina, descobriu-se que planejamento familiar. Por isso, entende-se
a infertilidade é um problema biológico que esse direito, à luz dos princípios consti-
completamente desassociado de questões tucionais da Dignidade da Pessoa Humana
místicas. Assim, iniciou-se uma era de e da Igualdade entre homens e mulheres,
pesquisas cujo principal objetivo era fazer perfaz um verdadeiro direito reprodutivo.
com que as mulheres inférteis pudessem Todavia, questionamos: a Carta Magna
engravidar, respaldado por um suposto brasileira, ao consagrar o direito ao livre
direito à reprodução. planejamento familiar, também consa-
Desta feita, o Direito foi-se adaptando grou o direito à procriação? Ou, em outras
a essa nova situação e vários estudos dis- palavras, é possível dizer que existe no
cutiram técnicas de inseminação artificial ordenamento jurídico brasileiro um direito
e seus efeitos jurídicos, além de grandes a procriar? Em caso afirmativo, seria ele um
debates acerca da criopreservação de em- direito personalíssimo?
briões. Contudo, em que pese poder-se falar Falar em um direito à procriação signi-
hoje que há uma diversidade de discussões fica dizer que a todo ser humano deve ser
jurídicas a respeito dos direitos sexuais e garantido o direito de ser pai/mãe bioló-
reprodutivos,11 poucos são os estudiosos12 gico, de gerar uma criança e que tal direito
da ciência jurídica que pesquisam a existên- está limitado tão-somente nos Princípios da
cia de um possível direito à procriação, ra- Dignidade Humana e da Paternidade res-
zão pela qual os apontamentos deste artigo ponsável, segundo o art. 226, § 7o, CF/88.
têm um caráter preliminar e visam apenas Respaldadas pelo Princípio da Digni-
incitar a comunidade jurídico-científica a dade da Pessoa Humana e da Autonomia
debater a questão. Privada, entendemos haver um direito à
O Direito no Brasil vem sofrendo gran- procriação, pois a possibilidade de pro-
des transformações desde que a Consti- criar é uma condição humana, devendo
tuição Federal de 1988 entrou em vigor. inclusive ser alçada à qualidade de direito
Isso porque a atual Constituição brasileira
de personalidade, por ser um direito sem
deslocou as atenções jurídicas que antes
o qual a personalidade do ser humano
11
Sobre esse assunto, ver: BRAUNER, Maria
seria insatisfeita13. No entanto, ressalte-se
Cláudia Crespo. Direito, sexualidade e reprodução que, sob a égide da Autonomia Privada, é
humana:conquistas médicas e o debate bioético. Rio um direito que só será exercido se houver
de Janeiro: Renovar, 2003, passim
12
Sobre esse assunto, ver: SÁ, Maria de Fátima 13
Acerca desse tema, ver: TEPEDINO, Gustavo. A
Freire de; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Filiação Tutela da personalidade no ordenamento jurídico ci-
e Biotecnologia. Belo Horizonte: Mandamentos, 2005, vil-constitucional brasileiro. In: ______. Temas de direito
passim. civil. 6 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p.23-58.

300 Revista de Informação Legislativa


manifestação de vontade da pessoa, sendo justificativa de serem essas cirurgias garan-
possível seu não exercício se assim seu tidoras do bem-estar de Ashley, parece-nos
titular quiser. mais uma atitude voltada para diminuir
Desta feita, o caso Ashley torna-se ainda as dificuldades de cuidado e vigilância –
mais interessante diante do impasse ao qual deveres inerentes à autoridade parental e,
nos conduzem as conclusões esboçadas. por óbvio, voltados à garantia do bem-estar
Já concluímos que Ashley é uma criança da filha –, pois certamente exercer o poder
desprovida de autonomia e, portanto, a familiar de uma filha desprovida de auto-
autoridade parental de seus pais é de um nomia, de vontade e de mobilidade motora
grau quantitativo elevado e qualitativo é um múnus que muito exige dos pais, do
diferenciado. Desse modo, por ser o direito que uma atitude humanista, voltada para
à procriação um direito da personalidade – o bem-estar da criança.
todavia, passível de disponibilidade, como Isso porque as relações jurídicas que
já abordado no item anterior –, questiona- envolvem menores devem ser respalda-
mos se seria possível entendermos, à luz do das pelo princípio do Melhor Interesse da
ordenamento jurídico brasileiro, que os pais Criança, e, no caso em tela, acreditamos
de Ashley praticaram uma conduta lícita ao não ser possível vislumbrar que os proce-
permitirem a realização da histerectomia. dimentos realizados vão ao encontro desse
Acreditamos que não, porque, apesar princípio, tendo em vista que o exercício
do amplo campo de incidência da auto- dos deveres da autoridade parental em
ridade parental dos pais de Ashley, esse sua plenitude gerariam os mesmos efeitos
poder – dever não lhes confere o direito práticos que os procedimentos invasivos
de decidir sobre a supressão da capacidade aos quais Ashley foi submetida, quais
reprodutiva dela, mesmo perpassado pelo sejam, evitariam que a menor fosse vítima
fundamento de que estariam defendendo de abuso sexual e preveniriam eventuais
seus melhores interesses. Assim, em que doenças.
pese o amplo poder de decisão que estes Enfim, não cabe ao Direito – pelo menos
possuem, apenas ela poderia solicitar que a ao Direito brasileiro – legitimar condutas
histerectomia fosse realizada, ou seja, ape- individualistas em detrimento da proteção
nas Ashley poderia não exercer esse direito dos direitos de personalidade. Em suma,
de personalidade, se tivesse discernimento acreditamos ser a conduta dos pais de
para fazê-lo. Ashley uma conduta ilícita e que a existên-
Entendemos como válidas as justificati- cia de um caso desse no Brasil deveria ser
vas para a realização de tal procedimento; encarada como uma violação frontal aos
entretanto, acreditamos que cabe aos pais direitos de personalidade e à Dignidade
de Ashley, no exercício amplo de sua da Pessoa Humana.
autoridade parental – tendo em vista que
durante toda a vida de Ashley este múnus 3.2. O direito ao desenvolvimento físico
será exercido em grande grau, seja por O direito ao desenvolvimento físico de
meio do poder familiar enquanto ela for Ashley enquadra-se no direito de persona-
menor, seja mediante a curatela, quando lidade à tutela da integridade física, de que
ela se tornar maior –, efetivar o dever de são exemplos os artigos 13, 14 e 15 do Códi-
cuidado e vigilância, garantindo que esta go Civil de 2002, que vedam a disposição do
não seja vítima de abuso sexual e levá-la a próprio corpo que importar em diminuição
médicos ginecologistas a fim de averiguar permanente da integridade física ou contra-
sua saúde reprodutiva. riar bons costumes, permitem a disposição
Enfim, realizar a histerectomia e a total ou parcial, desde que gratuita, do
retirada das glândulas mamárias, sob a próprio corpo para depois da morte, uma

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 301


vez feita com objetivos científicos ou altru- trata de sua saúde, física e psíquica (...).
ísticos, além de proibirem que alguém seja A regra expressa o conceito de não-
forçado a submeter-se a tratamento médico instrumentalização do ser humano,
ou a intervenção cirúrgica que lhe acarrete significando que este jamais poderá
risco de vida, respectivamente. ser considerado objeto de intervenções
O direito à integridade física é, por- e experiências, mas será sempre sujeito
tanto, inegável componente do Princípio do seu destino e de suas próprias esco-
da Dignidade da Pessoa Humana. Maria lhas.” (MORAES, 2003, p. 99)
Celina Bodin de Moraes (2003, p. 93-102) Por essa razão, mesmo que pudéssemos
afirma, inclusive, que é um dos principais admitir que os pais, pela condição de extre-
corolários desse princípio. A integridade ma hipossuficiência de Ashley, pudessem
física constitui, juntamente com o aspecto escolher pelo exercício ou não desse seu
psíquico, o atual conceito de saúde, estabe- direito de personalidade, o pensamento
lecido pela nossa Constituição Federal de condutor é no sentido de preservar sua
1988, bem como pela Organização Mundial integridade física, vez que inexiste auto-
de Saúde – OMS. Assim, o impedir do nomia. Essa situação também é observada
crescimento físico de Ashley por seus pais quando da necessidade de transfusões
significa uma interferência direta em sua de sangue em filhos de Testemunhas de
saúde. Como já mencionamos, justificaram Jeová menores, cujos pais pretendem não
sua conduta ao argumento de facilitação da transfundi-los, mas a orientação é no sen-
mobilidade da filha, tendo em vista que, tido de se proceder à transfusão, tendo em
com o seu crescimento, ficaria mais difícil vista que estes podem escolher, quando
sua locomoção, o que é feito pelos próprios dotados de maturidade, religião diferente
pais. Novamente, paira a questão: eles estão da dos pais.14 Estão em jogo, nesse caso,
buscando a facilitação das próprias vidas, os bens jurídicos vida x liberdade religiosa,
como cuidadores da filha, ou, de fato, o que relativamente a pessoas que não têm ca-
é melhor para a criança? pacidade de entender e querer e, por essa
O art. 2o da Declaração de Helsinque, de razão, a intangibilidade de sua vida deve
1964, afirma que “os interesses e o bem-es- ser preservada – o que não significa que,
tar do ser humano deverão prevalecer sobre quando a pessoa menor de idade for do-
o interesse exclusivo da sociedade ou da ci-
ência”, o que significa que não impera mais 14
“Os Tribunais estadunidenses trazem casos ricos
a antiga concepção de interesse público que sobre a recusa dos pais a tratamento médico dos filhos,
por professarem fé que não permite a transfusão de
determinava o primado do social sobre o sangue. No caso In re Sampson, a Suprema Corte de
individual. Para o caso em análise, importa Nova Iorque confirmou a autorização outorgada por
estabelecer que não é o interesse dos pais juiz da vara de família para que Kevin Sampson, de
– mesmo que no exercício do seu papel de quinze anos de idade, fosse operado para correção de
deformidade física que o afastou da escola desde os
cuidadores e responsáveis pela filha – que nove anos. A mãe, Testemunha de Jeová, recusava-
deve prevalecer, mas o interesse de Ashley, se a autorizar a cirurgia, que requeria transfusão de
em sua condição de vulnerabilidade, não sangue. (...) Portanto, somos pela prevalência de pro-
apenas por ser menor, mas também pela cessos universais de tratamento médico em crianças e
adolescentes que necessitam de transfusão sangüínea,
sua condição de deficiente física e mental. mesmo que seus pais professem religiões que a proí-
Então, é o seu “melhor interesse” que deve bam. Entendemos, todavia, que há adolescentes que,
ser atendido. mesmo incapazes legalmente, têm discernimento sufi-
Em questões existenciais dessa natu- ciente para expressar vontade contrária ao tratamento
médico preconizado. Em casos assim, esgotadas as me-
reza, didas de persuasão, a decisão final deverá ser proferida
“o interesse, o ponto de vista do indi- pelo Judiciário, que deverá buscar a justiça para o caso
víduo, que deve prevalecer quando se concreto.” (SÁ; TEIXEIRA, 2005, p. 136-137).

302 Revista de Informação Legislativa


tada de discernimento, não poderá ter sua BURKHOLDER, Amy. Ethiscist in Ashley case
vontade valorada juridicamente.15 Pelas answers questions. Disponível em: <http://www.cnn.
com/2007/HEALTH/01/11/ashley.ethicist/index.
mesmas razões, está em questão a integri- html?eref=rss_latest>. Acesso em: 15 mar. 2007.
dade física de uma criança que não tem – e
nunca terá, ao que tudo indica – condições CÂNDIDO, Ana Maria Duarte Monteiro. Paralisia
cerebral: abordagem para a pediatria geral e manejo
de se manifestar pelo exercício ou não de
multidisciplinar. Disponível em: <www. paulomar-
seus direitos de personalidade. Por isso, ela gotto.com.br/documentos/paralisiacerebra.doc.>.
deve ter sua integridade preservada, ainda Acesso em: 23 mar. 2007.
mais pelo caráter vitalício do impedimento
CARBONERA, Silvana. Reflexões acerca do consen-
de seu crescimento. timento informado de incapazes em intervenções
médico-cirúrgicas e pesquisas biomédicas. Ciência e
4. Conclusão opinião. v. 1, n. 2/4. Curitiba, jul. 2003/dez. 2004.
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa
Diante do caso sob reflexão e dos apon- humana: uma leitura civil-constitucional dos danos
tamentos ora exarados, concluímos que: morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
a) pelas pesquisas médicas, a doença
MURARO, Rose Marie. O Martelo das feitiçeiras. 8 ed.
de Ashley, hoje, não tem cura, sendo ela Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1991.
totalmente dependente dos pais para toda a
vida, o que leva à ampliação da autoridade NEVARES, Ana Luiza Maia; TEIXEIRA, Ana Caroli-
na Brochado; VALADARES, Maria Goreth Macedo.
parental, em situação de total ausência de O cuidado com o menor de idade na observância da sua
discernimento; vontade. In: PEREIRA, Tânia da Silva; OLIVEIRA,
b) a renúncia de direitos de persona- Guilherme. O cuidado como valor jurídico. Rio de Janeiro:
lidade só é possível pelo próprio titular, Forense, 2008.
em situações em que este seja dotado de PEREIRA, Tânia da Silva. O ‘melhor interesse da
maturidade e responsabilidade, nos limites criança’. In: PEREIRA, Tânia da Silva (Coord.). O
autorizados pelo Ordenamento Jurídico, melhor interesse da criança: um debate interdisciplinar.
conjugados com o caso concreto; Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
c) por essa razão, a supressão dos di- PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 3 ed. Rio
reitos à procriação e à integridade física, de Janeiro: Renovar, 2007.
questão decidida pelo médico e pelos pais SÁ, Maria de Fátima Freire de. Da redesignação do estado
de Ashley, não condiz com o Princípio do sexual. In: NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SÁ,
Melhor Interesse da Criança, de modo que Maria de Fátima Freire de. Bioética, Biodireito e o novo
os procedimentos feitos visam facilitar os Código Civil de 2002. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
cuidados com Ashley, mas não, efetiva- SÁ, Maria de Fátima Freire de; TEIXEIRA, Ana Caro-
mente, tutelá-la. lina Brochado. Filiação e biotecnologia. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2005.
SÁ, Maria de Fátima Freire; TEIXEIRA, Ana Carolina
Referências Brochado. Responsabilidade médica e objeção de
consciência religiosa. Revista Trimestral de Direito Civil.
AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 6 ed. v. 21. Rio de Janeiro: Padma, jan./mar. 2005.
Rio de Janeiro: Renovar, 2006. SILVA, Denis Franco. O princípio da autonomia priva-
BRAUNER, Maria Cláudia Crespo. Direito, sexualidade da: da invenção à reconstrução. In: MORAES, Maria
e reprodução humana: conquistas médicas e o debate Celina Bodin de (Coord.). Princípios do direito civil
bioético. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, passim. contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
SOTTOMAYOR, Maria Clara. Quem são os verda-
15
Isso ocorre em alguns países como a Inglaterra, deiros pais? Adoção plena de menor e oposição dos
onde, a partir de 16 anos de idade, é possível a pessoa pais biológicos. Revista da Faculdade de Direito da Uni-
consentir com tratamentos médicos (menor maduro). versidade Católica Portuguesa, caderno Direito e Justiça.
(SILVA apud MORAES, 2006, p. 154) v.14, t. 1, p. 197, 2002.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 303


TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. A disciplina ju- ______. A disciplina da guarda e da autoridade pa-
rídica da autoridade parental. In: PEREIRA, Rodrigo rental na ordem civil-constitucional. In: CONGRESSO
da Cunha (Coord.). Família e dignidade humana. In: BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA. 4., 2004,
CONGRESSO BRASILEIRO DE DIREITO DE FA- Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: Del Rey,
MILIA. 5., 2006, São Paulo. Anais... São Paulo: IOB IBDFAM, 2004.
THomson, 2006.
______. A Tutela da personalidade no ordenamento
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Família, guarda e jurídico civil-constitucional brasileiro. In: TEPEDINO,
autoridade parental. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. Gustavo. Temas de direito civil . 3.ed. Rio de Janeiro:
Renovar. 2004.
TEPEDINO, Gustavo. A tutela constitucional da criança
e do adolescente: projeções civis e estatutárias. No prelo.
(original gentilmente cedido pelo autor).

304 Revista de Informação Legislativa


O desenvolvimento do novo regionalismo
asiático no direito de integração
Notas sobre a ASEAN e APEC

Fabrício Bertini Pasquot Polido

Sumário
1. Considerações iniciais. 2. Associação das
Nações do Sudeste Asiático – ASEAN. 2.1. Os
fundamentos para a criação da ASEAN como
bloco regional no Sudeste Asiático. 2.2. O status
da ASEAN nas negociações multilaterais do
GATT/OMC. 2.3. Os acordos preferenciais de
comércio da ASEAN de 1977 e os percalços da
integração regional. 2.4. Rumo à consolidação da
Área de Livre Comércio da ASEAN (AFTA). 2.5.
A Zona Asiática de Investimentos (ZAI), progra-
mas coordenados de investimentos e o Regime
de Cooperação Industrial (AICO). 2.6. Estratégias
de ampliação do regionalismo no âmbito da
ASEAN e impactos sobre o comércio multilate-
ral: a inclusão regional da China. 3. Organização
de Cooperação Econômica do Pacífico Asiático
(APEC). 3.1. Algumas premissas da criação da
APEC e o desenvolvimento do regionalismo no
Pacífico-Asiático. 3.2. Caracterização da APEC e
problemas de determinação de sua personalidade
no Direito Internacional Público. 3.3. Princípios
básicos da cooperação econômica pragmática
implicada no regionalismo moldado pela APEC e
percalços da institucionalização. 4. O novo regio-
nalismo asiático e noções de regionalismo aberto.
Fabrício Bertini Pasquot Polido é Advogado 4.1. Fundamentos do regionalismo aberto. 4.2.
e Consultor em São Paulo. Doutorando em Di- Regionalismo concorrencial. 4.3. Liberalização
reito Internacional pela Faculdade de Direito da competitiva. 4.4. Identidade asiática. 5. Perspec-
Universidade de São Paulo. Realizou estudos de tiva geral do regionalismo no Pacífico Asiático e
Graduação em Direito pela Faculdade de Direito as novas tendências. Conclusões.
da Universidade de São Paulo e Universidade
de Tübingen, Alemanha, e “Master of Laws”
(LL.M.) pela Università degli studi di Torino,
Itália, e Organização Mundial da Propriedade 1. Considerações iniciais
Intelectual (OMPI). É Professor de Direito Inter-
nacional Privado e Direito do Comércio Interna- Uma realidade singular no contexto de
cional da Faculdade de Direito da FAAP. integração regional hoje arquitetado pelas

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 305


novas dimensões do Direito Internacional Contratantes em chegar a um modelo co-
Econômico surge em evidência e revela mum de análise dos acordos regionais de
como, nas relações de cooperação entre livre-comércio.3 Em foco estavam justamen-
Estados, sobretudo no hemisfério sul, di- te a aplicação geral da cláusula da nação
ferentes processos de regionalismo emer- mais favorecida justificada pelo princípio
gem nas formas e originalidade com que da não discriminação contido no Artigo I do
são constituídos.1 O aumento significativo Acordo, e as exceções oferecidas pelo Artigo
do número de acordos de livre-comércio XXIV relativamente às uniões aduaneiras,
concluídos entre Estados nas últimas duas áreas de livre-comércio e acordos de transi-
décadas e a necessidade de remodelação ção envolvendo uniões aduaneiras e áreas
da própria unidade do sistema multilate- de livre-comércio. Segundo o Artigo XXIV,
ral do comércio edificado sob as bases do alguns requisitos devem ser obervados
GATT/OMC também devem ser objeto de pelos Estados Membros da OMC quanto à
atenção e reflexões práticas, em especial no criação de zonas de livre comércio e uniões
que concerne à região do Sudeste Asiático aduaneiras a partir de acordos preferen-
e seu desenvolvimento histórico nos últi- ciais, especificamente: (i) a não criação de
mos cinqüenta anos. Todo esse movimento uma situação mais restritiva – após a con-
não é caracterizado pelo ineditismo. Um clusão do acordo – em termos tarifários e/
problema elementar à história da humani- ou regras de comércio para os Membros que
dade, que se fez mais ou menos unificada e dele não sejam partes; (ii) inclusão de um
fragmentada, tem sido um desejo constante cronograma para a formação de união adu-
dos Estados de buscar a defesa dos espa- aneira ou da área de livre comércio em um
ços nacionais, a proteção dos mercados, prazo razoável, entendido como sendo este
a promoção de estabilidade monetária, de 10 anos (genericamente conhecido como
conservação de padrões sociais conquista- “prazo de implementação”); e (iii) margem
dos e a preservação de identidade cultural de flexibilidade para considerar válidos os
de determinado povo. Tudo isso em um acordos preferenciais cuja abrangência de
processo de nítida comunitarização, que harmonização ou eliminação das barreiras
pode ser identificado com clareza no caso tarifárias e não-tarifárias não seja total, so-
dos blocos regionais (Cf. GREWE, 2000, p. bretudo quanto à expressão “com relação a
70). O caso asiático, por suas características, substancialmente todo o comércio”, contido
acena para uma interessante proposição de no § 8o do Artigo XXIV do GATT.4
reconsideração dos processos de integração Com efeito, o Artigo XXIV do GATT
regional, pelo menos em seu distanciamen- serve de medida de compatibilidade entre
to dos fenômenos clássicos concebidos os acordos preferenciais de comércio e as
pelas escolas do Direito de Integração.2 normas estabelecidas no sistema multilate-
Ainda nas negociações do antigo Acor- ral do comércio. Em sua justificativa, está a
do Geral sobre Tarifas e Comércio de 1947 possibilidade de tais acordos proporciona-
(GATT 47), hoje incorporado ao GATT 94 rem uma expansão do comércio internacio-
(Anexo I-A do Acordo Constitutivo da nal de bens, serviços e tecnologias a partir
OMC), havia uma preocupação das Partes 3
A expressão “acordos regionais de livre-comér-
1
Sobre isso, ver fundamentalmente DIHN; cio” ou “acordos preferenciais de comércio” é aqui
DAILLIER; PELLET, 1992, p. 615 e ss.; MAHIOU, 1993, empregada de acordo com a terminologia adotada
p. 57 e ss; LAWRENCE, 1996, p. 70 e ss, especifica- pela Organização Mundial do Comércio a “todo e
mente sobre regionalismo na Ásia e Oceania; BELLIS; qualquer acordo bilateral, regional e plurilateral, de
GARCIA JIMENEZ, 1997, p. 35 e ss. natureza preferencial”.
2
Sobre tais questões, ver LAWRENCE, 1996, p. 70 4
Sobre a dificuldade de aplicação do Artigo XXIV
e ss.; CHASE, 2006, p. 1 e ss; estudos em CASELLA; do GATT, cf. LOWENFELD, 2003, p. 39 e ss; JACK-
LIQUIDATO, 2006; e CELLI JR., 2006, p. 19 ss. SON, 2000, p. 157 e ss.

306 Revista de Informação Legislativa


da redução das barreiras ao livre-comércio O regionalismo não é um processo de
entre os Estados envolvidos. Essas preo- integração envolvendo apenas estruturas
cupações embasaram a criação do Comitê normativas comuns estabelecidas pelos Es-
sobre Acordos Regionais da OMC, em 1996, tados, ou instituições políticas e econômicas
justificando ainda a necessidade de exame organizadas a partir dessa estrutura. Nele
concreto dos acordos preferenciais conclu- estão inseridos aspectos da geometria de
ídos pelos Estados Membros e da avaliação poderes entre Estados nas relações interna-
de seus impactos estruturais sobre a unida- cionais, efeitos da globalização e a dinâmica
de sistêmica do comércio internacional.5 e unidade do sistema multilateral do comér-
Notadamente após a conclusão da cio. Identificar o regionalismo é reconhecer
Rodada Uruguai, a proliferação de acor- um universo de exceções entre princípios
dos preferenciais de comércio entre os que fundamentam as instituições do GATT/
diferentes Estados Membros também pro- OMC, em sua estrutura constitucional e
vocou importantes reflexões em torno da também a legitimidade de seu processo
“fragmentação” do sistema do comércio decisório (Cf. PETERSMANN, 2004, p. 585 e
multilateral, levando boa parte da atenção ss; 2005, p. 647 e ss). De fato, essa tendência é
acadêmica para os trabalhos do Comitê refletida nas novas formulações de acordos
sobre Acordos Regionais da OMC (Cf. de livre-comércio concluído entre Estados,
LAWRENCE, 1996, p. 10 e ss; POMFRET, referindo-se a um complexo de normas que
1998, UNITED NATIONS CONFERENCE regulamentam não apenas os fluxos de co-
ON TRADE AND DEVELOPMENT, 2005; mércio intrabloco, mas também estruturas
CHASE, 2006). A multiplicação das pre- de tratamento preferencial para serviços,
ferências e das desvantagens comerciais proteção de direitos de propriedade intelec-
entre Estados, o aumento da concorrência tual, investimentos, mecanismos de solução
entre blocos regionais e uma pressão pela de controvérsias, políticas de concorrência
liberalização dos fluxos de comércio entre e proteção do meio-ambiente.
determinados países, sem a consideração É justamente nesse contexto que se
de uma totalidade de sujeitos, dão margem apresenta o processo de integração regional
para o surgimento de novos elementos de no Pacífico Asiático. Desde a década de 60,
uma análise teórica que não corresponde inúmeras iniciativas foram sendo adotadas
àquela classicamente empregada para jus- pelos Estados da região para alavancar um
tificar as diferentes fases de um processo de processo de integração que não teria corres-
integração clássico. O movimento evolutivo pondência direta com aquele que se desen-
ou involutivo de formação de áreas de livre volvia na Europa ocidental (como evidente
comércio, uniões aduaneiras e mercados no modelo de constituição da Comunidade
comuns é imediatamente identificado pelo do Carvão e do Aço e que chegou ao formato
contexto normativo do Artigo XXIV do atual da União Européia). O surgimento de
GATT/OMC e, em diferentes perspectivas, organizações internacionais de caráter re-
poderia ser estudado. gional, fóruns governamentais de discussão,
acordos de aproximação econômica e redes
5
Para uma visão geral dos recentes trabalhos do de cooperação entre Estados identificam um
Comitê de Acordos Regionais, da OMC, ver: <http://
www.wto.org/english/tratop_e/region_e/regcom_e.
processo de “regionalismo multidimensio-
htm>. Ver ainda documentos WT/REG/M/27, nal”, que tem no caso do Pacífico Asiático
Committee on Regional Trade Agreements - Twenty- sua expressão mais bem acabada. Uma pos-
Seventh Session - Note on the Meetings of 12 - 13 sível delimitação espacial desse regionalis-
October and 17 November 2000; WT/REG/W/41,
Committee on Regional Trade Agreements - Map-
mo seria então fluida por não se concentrar,
ping of Regional Trade Agreements - Note by the exclusivamente, nos fundamentos geográfi-
Secretariat, 11 out 2000. cos e territoriais de cooperação econômica

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 307


estabelecida entre Estados de um mesmo ASEAN e a APEC, são objeto do presente
continente. Ela vai além, compreendendo artigo. O item 2 busca apresentar os fun-
objetivos de políticas comuns, segurança e damentos, estrutura e funcionamento da
estabilidade, desenvolvimento social e cul- ASEAN, além do significado histórico do
tural e, igualmente, representatividade dos contexto de negociações do GATT/OMC
membros no sistema do GATT/OMC. Tais para a Organização. São analisados os Acor-
objetivos levam os Estados à criação de co- dos Preferenciais de Comércio da ASEAN
alizões e redes em nível transnacional, bem de 1977, os planos de investimentos coor-
como organizações que tenham o escopo de denados, a constituição da Área de Livre
cooperação em torno de acordos regionais, Comércio da ASEAN, seus fundamentos
inter-regionais e trans-regionais. e estrutura, bem como a Zona Asiática de
O regionalismo no Pacífico Asiático Investimentos e Regime de Cooperação
oferece importantes exemplos desses fenô- Industrial, e a inserção da China no regio-
menos: a Associação das Nações do Sudeste nalismo asiático com a conclusão da Área
Asiático (ASEAN), a Associação da Ásia de Livre Comércio entre China e ASEAN.
Meridional para Cooperação Regional (SA- O item 3 revisita o contexto de surgimento
ARC), Conselho para Cooperação Econô- da Organização de Cooperação Econômica
mica do Pacífico (PECC), a Organização de do Pacífico Asiático (APEC), as premissas de
Cooperação Econômica do Pacífico Asiático sua criação, estrutura e caracterização no Di-
(APEC), o Fórum do Pacífico Sul (South Pa- reito Internacional Público. Em destaque são
cific Forum), Acordo de Livre Comércio do considerados os princípios da cooperação
Pacífico (Pacific Regional Trade Agreement), econômica pragmática na APEC (abertura,
União do Pacífico (Pacific Union), Parceria igualdade e institucionalização evolutiva)
Econômica Estratégica do Trans-Pacífico e as recentes negociações entre os Estados
(Trans-Pacific SEP) e o Acordo de Relações participantes como temas do desenvolvi-
Econômicas e Comercias entre Austrália e mento do regionalismo do Pacífico. O item
Nova Zelândia (ANZCERTA).6 4 envolve o debate sobre novo regionalismo
Eles revelam novos elementos para a asiático, os fundamentos do regionalismo
análise do processo de integração regional aberto e as noções ali implicadas, como o
e cooperação econômica entre Estados, tais regionalismo concorrencial e liberalização
como as noções debatidas no presente tra- competitiva, e a da identidade asiática. Ten-
balho, de regionalismo aberto, regionalis- dências do regionalismo no Pacífico Asiático
mo concorrencial, liberalização competitiva são ainda discutidas no item 5. Como conclu-
e identidade asiática.7 são, o trabalho oferece uma visão geral sobre
Algumas das recentes tendências do a relevância do tema do novo regionalismo
novo regionalismo asiático, compreendendo asiático para o desenvolvimento progressivo
a importância de dois casos específicos, a de novas instituições do Direito de Integra-
ção e premissas para sua reavaliação.
6
Do ponto de vista geopolítico, especificamente,
o regionalismo é analisado a partir da Bacia Ásia-Pa-
cífico (Pacific Rim), compreendendo ainda o Sudeste 2. Associação das Nações do
Asiático, Leste Asiático, Ilhas do Pacífico, o Mar da
China Meridional e Oceania. No presente trabalho,
Sudeste Asiático – ASEAN
não examinamos o processo de integração na Ásia Me-
ridional, Sudoeste Asiático, Estados do Índico-Pacífico 2.1. Os fundamentos para a criação da ASEAN
e o Oriente Médio. O novo regionalismo asiático se
justifica no contexto do Pacífico Asiático, em especial
como bloco regional no Sudeste Asiático
quanto aos aspectos da APEC e da proliferação de O regionalismo asiático não é um
acordos de livre-comércio na região (bilaterais, regio-
nais, inter-regionais e trans-regionais).
fenômeno recente do ponto de vista his-
7
Ver itens 4.1 e 4.2 supra. tórico, mas remete a diferentes origens

308 Revista de Informação Legislativa


e fundamentos no contexto das relações Paralelamente à iniciativa da SEATO
econômicas internacionais, antes mesmo e da frustração dos objetivos iniciais ali
que uma explicação teórica fosse oferecida projetados, alguns países mantiveram
pelos processos de cooperação e integração relações diplomáticas mais estreitas na
regional surgidos paralelamente ao desen- região, o que conduziu à criação, em 8 de
volvimento do sistema multilateral do co- agosto de 1967, da Associação das Na-
mércio sob as bases do GATT/OMC. Ainda ções do Sudeste Asiático (ASEAN), com
em 1954, em plena Guerra Fria, países a conclusão da Declaração de Bangkok11.
como Austrália, Estados Unidos, Filipinas, Originalmente são signatários a Indonésia,
França, Nova Zelândia, Paquistão, Reino Tailândia, Filipinas, Malásia e Cingapura.
Unido e Tailândia criaram a Organização Após a entrada em vigor da Declaração de
do Tratado do Sudeste Asiático (a SEATO)8, Bangkok no plano internacional, a ASEAN
como forma de expressar o exercício da foi ampliada com a adesão de Brunei, em
chamada “legítima defesa coletiva” e justi- 1985, Mianmma, Laos, Camboja, em 1997,
ficar os mecanismos de intervenção militar e do Vietnam em 1999.
na região9 (Cf. DIHN; DAILLIER; PELLET, A estrutura constitucional da ASEAN
1992, p. 577 e ss). Os Membros tinham como compõe-se fundamentalmente dos trata-
objetivo primário estabelecer uma política dos celebrados entre os Estados Membros
regional comum de contenção do comu- desde a Declaração de Bangkok de 1967,
nismo na Ásia, fazendo frente à política entre os quais devem ser destacados: a
nacional perseguida pela China e antiga Declaração de Kuala Lumpur sobre a
URSS. Até a extinção da SEATO, em 1977, Zona de Paz, Liberdade e Neutralidade,
não chegaram a qualquer atuação concreta de 197112, Declaração de Dempasar sobre
relativamente ao objetivo perseguido. Em a ASEAN13, o Tratado de Dempasar sobre
questão estavam justamente as medidas Amizade e Cooperação no Sudeste Asi-
unilaterais adotadas pelos Estados Unidos ático de 1976 e respectivo Protocolo de
com o intuito de buscar, no âmbito daquela Manilla de 198414, Acordo Quadro relativo
Organização, uma medida de legitimidade à Cooperação Econômica no âmbito da
para intervenção no Vietnam, Laos e Cam- ASEAN de 1992 (“Acordo Quadro sobre
boja no espaço de defesa coletiva regional,
Pós-Guerra. A finalidade pela qual havia sido criada
ainda que não recebesse apoio expresso da e a influência dos Estados Unidos em militarizar os
França e do Paquistão (Cf. CAMILLIERI, conflitos da região prolongaram os efeitos da crise
2003, p. 58 e ss; SUDO, 2001, p. 13 e ss)10. até sua dissolução.
11
Bangkok Declaration, 8 August 1967 (aqui referida
8
O Pacto de Manila ou Tratado do Sudeste Asiático como “Declaração de Bangkok de 1967” ou “Declaração
de Defesa Coletiva (Southeast Asia Collective Defence da ASEAN de 1967”). A versão consolidada do trata-
Treaty) foi concluído em 8 de setembro 1954, logo após do pode ser consultada em: <http://www.aseansec.
a retirada da França da Indochina, e posteriormente ex- org/1212.htm>. Acesso em: 8 jun. 2006.
tinto em 1977 pelos Membros. A secretaria da SEATO 12
Zone of Peace, Freedom and Neutrality Declaration,
estava sediada em Bangkok, na Tailândia, com diver- 27 November 1971, disponível em: <http://www.
sas conferências realizadas em Manila, nas Filipinas, aseansec.org/145.htm>. Acesso em: 8 jun. 2006.
sob o mandato do Presidente Ferdinand Marcos. 13
Declaration of ASEAN Concord of February 24,
9
Explicando a polêmica em torno da aplicação 1976, tratando fundamentalmente da expansão da
do Artigo 51 da Carta da Organização das Nações cooperação entre os Estados membros nas áreas
Unidas sobre o exercício da legítima defesa coletiva econômicas, sociais, políticas e culturais. A versão
pelos Estados. consolidada do tratado pode ser encontrada em:
10
Sobre as origens do regionalismo asiático. <http://www.aseansec.org/145.htm>. Acesso em:
Importante observar que um dos fatores de enfra- 8 jun. 2006.
quecimento e fracasso da Organização esteve espe- 14
Treaty of Amity and Cooperation in Southeast
cialmente na incapacidade de os Estados atuarem Asia, of February 24, 1976; Protocol Amending the
conjunta e pacificamente na solução das controvérsias Treaty of Amity and Cooperation in Southeast Ásia,
envolvendo a região da Indochina no período do December 15, 1987.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 309


Cooperação Econômica de 1992”), Acordo (iv) a Secretaria Nacional da ASEAN
de Cingapura sobre o Regime de Tarifa estabelecida em cada Estado Membro a
Comum Preferencial Efetiva (TCPE) para quem compete levar a cabo o trabalho da
a Área de Livre-Comércio da ASEAN, de Associação e auxiliar a Conferência Minis-
199215, o Protocolo de Emenda ao Acordo terial, o Comitê Permanente e os demais
Quadro relativo ao Desenvolvimento da Comitês19.
Cooperação Econômica no âmbito da Importante destacar que a ASEAN pode
ASEAN, de 15 de dezembro de 1995 16, ser classificada como uma organização
Protocolo de Manila sobre Mecanismo internacional de caráter regional, conside-
de Solução de Controvérsias da ASEAN, rando a variedade das formas de Estados
de 20 de novembro de 1996, o Segundo e organizações internacionais no domínio
Protocolo de Manila relativo à emenda ao do Direito Internacional Público clássico. A
Tratado de Dempasar sobre Amizade e Declaração de Bangkok de 1967 faz referên-
Cooperação no Sudeste Asiático, de 25 de cia expressa à criação de uma “Associação
julho de 199817, o Plano de Ação de Hanoi para Cooperação Regional entre Países do
de 1998, a Declaração sobre a Conduta das Sudeste Asiático”. A doutrina costuma
Partes no Mar da China Meridional de 2002 tratar a ASEAN como uma organização
e a Segunda Declaração da ASEAN de Bali, regional, distinguindo-a das organizações
de 7 de outubro de 200318. internacionais de vocação universal. Na
Com a conclusão da Declaração de visão de Michel Virally (1983, p. 255 e ss), as
Bangkok de 1967, os Estados Membros organizações regionais têm uma função de
buscaram assentar uma estrutura muito “segmentação” da sociedade internacional,
simplificada para a Organização estabele- porque estão ligadas a uma solidariedade
cida, apoiando-se fundamentalmente na particular na ordem comunitária interna-
seguinte composição: cional20.
(i) Conferência Anual de Ministros das De fato, a Declaração de Bangkok
Relações Exteriores, ou “Conferência Mi- estabelece que a representação da vonta-
nisterial da ASEAN”; de coletiva dos Estados Membros esteja
(ii) Comitê Permanente, sob a presidên- centrada na Organização constituída,
cia do Ministro das Relações Exteriores do vinculando-os a partir de princípios muito
Estado em que é realizada a Conferência amplos de cooperação e esforços conjun-
Ministerial, integrando-se por autoridades tos21. O documento considera a criação de
diplomáticas dos Membros e cuja prin- uma estrutura para a ação comum entre
cipal atribuição está a coordenação dos os Estados da ASEAN relativamente à
trabalhos da Associação nas conferências cooperação regional, com base no espírito
ministeriais; da igualdade e parceria, contribuindo para
(iii) o Comitê Ad-Hoc e Comitês Per-
manentes de Especialistas e Oficiais em 19
Cf. ASEAN Declaration, Parágrafo Terceiro,
determinadas matérias; referindo-se ao “maquinário” da Associação de Esta-
dos do Sudeste Asiático.
15
Agreement on the Common Effective Preferen- 20
O autor considera a ASEAN na categoria das
tial Tariff (CEPT) Scheme For The ASEAN Free Trade “organizações de caráter regional, sub-regionais, inter-
Área, 28 January 1992. regionais e organizações de Estados produtores de
16
Protocol to Amend the Framework Agreement bens”, como seria o caso da OPEP, especificamente.
on Enchancing Asean Economic Cooperation, as of 21
Ver o Parágrafo Quinto da Declaração de Bang-
December 15, 1995. kok de 1967, no qual os Estados reafirmam: “the As-
17
Second Protocol Amending the Treaty of Amity sociation represents the collective will of the nations of
and Cooperation in Southeast Asia, Manila, Philip- South-East Asia to bind themselves together in friend-
pines, as of July 25, 1998. ship and cooperation and, through joint efforts and
18
Disponíveis em: <http://www.aseansec. sacrifices, secure for their peoples and for posterity the
org/145.htm>. Acesso em: 8 jun. 2006. blessings of peace, freedom and prosperity”.

310 Revista de Informação Legislativa


paz, progresso e prosperidade na região.22 segurança regionais também são previstos
Os Estados comprometem-se igualmente a no documento, a serem alcançados, se-
organizar um cenário de cooperação ampla, gundo o compromisso de respeito à paz,
invocando determinados valores, tais como observância do Direito nas relações com os
a existência de “responsabilidade primária” Estados e adesão aos princípios da Carta da
pelo fortalecimento da estabilidade, econô- Organização das Nações Unidas.25
mica e social, da região, e de segurança em Mais amplamente, a Declaração da
relação ao desenvolvimento nacional pací- ASEAN prevê a colaboração e assistência
fico e progressivo. Tais valores, segundo a mútua em matérias de interesse comum,
Declaração da ASEAN, devem ser assegu- em todos os campos, tais como social, cul-
rados sem interferência externa na região e tural, técnico e científico e administrativo,
permanecer livres de quaisquer formas de assistência e capacitação técnica recíproca,
coerção. A partir desse cenário, a Organi- nas áreas educacionais, profissionais e
zação buscaria preservar as “identidades administrativas, a colaboração na área da
nacionais” dos Membros.23 agricultura e indústria, a expansão do co-
Buscando estreitar as relações de coo- mércio, incluindo o estudo dos problemas
peração, tais como nas áreas econômica, relacionados ao comércio internacional
política, social e cultural, os Estados Mem- de bens, melhorias em seus transportes e
bros estabeleceram objetivos comuns na infra-estruturas de comunicação, além da
Declaração da ASEAN de 1967, entre os elevação do padrão de vida das populações
quais merecem destaque a intensificação do dos Membros.26 Outros objetivos, como o
crescimento econômico, progresso social e de promoção de estudos sobre o Sudeste
desenvolvimento cultural na região. Nesse Asiático e a manutenção de uma “coopera-
sentido, esforços conjuntos seriam estabele- ção estreita e benéfica” com organizações
cidos com base nos princípios da parceria internacionais e organizações regionais que
e igualdade entre os Membros, com vistas tenham objetivos e propósitos similares
ao aprofundamento de “uma comunidade àqueles da ASEAN, também são estabe-
próspera e pacífica de Estados do Sudeste lecidos pela Declaração. Na atualidade
Asiático”.24 Os objetivos de estabilidade e tais objetivos são reiterados na atividade
de pesquisa e estudos consolidados nos
22
Assim, cf. nos consideranda da Declaração da
ASEAN: “DESIRING to establish a firm foundation
trabalhos do Banco Asiático do Desenvol-
for common action to promote regional cooperation in vimento (ADB)27, Instituto de Estudos do
South-East Asia in the spirit of equality and partner- Sudeste Asiático (ISEAS)28 e os Relatórios
ship and thereby contribute towards peace, progress Anuais da ASEAN.29
and prosperity in the region;”
23
Assim, conclui-se da seguinte passagem da
É certo que a ASEAN tenha historica-
Declaração: “the countries of Southeast Asia share a mente revertido a tendência natural de sua
primary responsibility for strengthening the economic
and social stability of the region and ensuring their 25
Cf. Declaração da ASEAN de 1967, Parágrafo
peacefull and progressive national development, Segundo, no 2.
and that they are determined to ensure their stability 26
Cf. Declaração da ASEAN de 1967, Parágrafo
and security from external interference in any form Segundo, especialmente no 5 (“the expansion of their
or manifestation in order to preserve their national trade, including the study of the problems of inter-
identities in accordance with the ideals and aspirations national commodity trade, the improvement of their
of their peoples”. transportation and communications facilities and the
24
Cf. Parágrafo Segundo, no 1 da Declaração da raising of the living standards of their peoples”).
ASEAN: “To accelerate the economic growth, social 27
Asian Development Bank (http://www.adb.org).
progress and cultural development in the region 28
Institute of Southeast Asian Studies (http://www.
through joint endeavours in the spirit of equality and iseas.edu.sg).
partnership in order to strengthen the foundation for 29
Conteúdo dos relatórios disponíveis em: <
a prosperous and peaceful community of South-East http://www.aseansec.org/4913.htm>. Acesso em:
Asian Nations. 6 jun. 2006.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 311


formação. A Organização era vista em sua de integração que gradativamente tomava
tarefa de neutralização de tensões militares corpo entre os Estados (NARLIKAR, 2003,
regionais, desenvolvendo estratégias de p. 172).32 De fato, essa realidade se estendeu
negociações comuns para responder ao para tantas ocasiões, comprovadas pela
avanço do comunismo na China e antiga assiduidade com que as Conferências Mi-
URSS. 30 Somente no fim da década de nisteriais foram sendo realizadas, como pela
70, como será analisado, é que o foco da criação do Fórum Regional da ASEAN em
ASEAN deslocou-se funcionalmente para julho de 1994 e até hoje atuante. Nesses casos,
o estabelecimento de uma organização de os objetivos de manutenção de paz e segu-
caráter regional preocupada com o de- rança regionais continuam casados àqueles
senvolvimento de um quadro normativo de desenvolvimento de uma estrutura para
de acordos preferenciais de comércio e a cooperação econômica entre os Membros
criação de uma zona de livre comércio. (VAN MEERHAEGHE, 1998, p. 13).
Durante o processo de formação de uma É importante considerar que as normas
“identidade asiática” comum ao regiona- criadas no âmbito da ASEAN e sua apli-
lismo no Pacífico Asiático31, os Membros cação nos campos da cooperação política,
originários da ASEAN contribuíram com econômica, social e cultural, especialmente
o êxito da cooperação encetada pela orga- conforme estabelecidos nos dispositivos da
nização, ainda que não totalmente decor- Declaração de Bangkok, aparecem como
rente da estrutura normativa dos tratados modelos para formulação de políticas le-
celebrados. A explicação estaria no fato de gislativas domésticas em países em desen-
terem implementado internamente metas volvimento. Aqui se destacam, fundamen-
de estabilidade política e assentado as forças talmente, ações comuns da Organização
propulsoras que delimitavam o crescimento no campo da integração econômica e da
econômico regional. Esse seria o resultado chamada “cooperação funcional”. Na pri-
ao menos alcançado entre a segunda meta- meira área, a ASEAN estabelece a atuação
de da década de 80 e o início da crise asiática dos Membros relativamente aos acordos
em 1997. Tal esforço sugere, em boa medida, preferenciais de comércio, iniciativa de
as reformas domésticas estabelecidas pela integração da ASEAN (IAI), alimentação
Indonésia, Malásia e Tailândia no período e agricultura, direitos aduaneiros, solução
considerado e que nunca poderiam ser igno- de controvérsias, telecomunicações e tecno-
radas no contexto do regionalismo asiático logias da informação, relações econômicas,
(Cf. POMFRET, 1998, p. 146). finanças, indústria, propriedade intelectual,
A partir primeiramente de uma estratégia investimentos, energia e recursos minerais,
de manutenção da paz e segurança na região serviços, pequenas e médias empresas,
do Sudeste Asiático, a ASEAN pôde criar turismo e transportes.33 Para tais setores,
uma agenda de crescimento econômico, de especificamente, são formulados projetos e
desenvolvimento cultural e social, baseada planos de ação envolvendo redes universi-
nas relações de cooperação e alinhamento, tárias, cultura e informação, gerenciamento
por assim dizer, entre as esferas governa- das catástrofes naturais, controle do tráfico
mentais dos Membros e uma intensa disse- de drogas e narcóticos, educação, saúde e
minação dos efeitos (alcance) de um processo nutrição, HIV/AIDS e controle de pande-
30
A criação da ASEAN era vista como forma de 32
Com referência aos “positive spillover effects”e
equilíbrio de forças no cenário geopolítico em relação “synergistic interactions” da cooperação regional no
à China, ou ainda como alternativa de cooperação caso da ASEAN.
econômica entre os Estados em relação ao Japão e 33
Sobre isso, ver a extensa atuação da ASEAN nas
Coréia. (Cf. NARLIKAR, 2003, p. 167). áreas implicadas no processo de integração, disponível
31
Sobre isso, ver item 4.4, em que o tema é melhor em: <http://www.aseansec.org/4810.htm>. Acesso
analisado. em: 10 jul. 2006.

312 Revista de Informação Legislativa


mias, relações de emprego, desenvolvimen- completo, a ingerência dos Estados Unidos
to rural e erradicação da pobreza, ciência e na região (como acontecia até o inicio da
tecnologia, direitos das mulheres, proteção década de 90 em bases militares na Indoné-
da criança e adolescente.34 sia). Criava-se igualmente a Comissão para
A ASEAN também destaca a adoção de a Zona Livre de Armamentos Nucelares
políticas comuns entre os Estados Membros do Sudeste Asiático (“Commission for
nas áreas de cooperação envolvendo as cha- the Southeast Asia Nuclear Weapon-Free
madas questões transnacionais. Nessa ca- Zone”), dotada de importantes atribuições
tegoria estão insertos, fundamentalmente, no contexto de desarmamento nuclear na
os objetivos de proteção do meio ambien- Ásia, sobretudo pelo apelo que representou
te, controle da poluição transfronteiriça e a concepção geral de preservação da segu-
transporte de materiais perigosos, crime e rança regional.37
terrorismo internacional e tráfico de drogas. A mesma preocupação no domínio da
Os Estados Membros consideram tais ques- ASEAN estendeu-se para o campo da pro-
tões como expressões da área de fronteira teção internacional do meio ambiente, levando
de atuação internacional da ASEAN. os Estados Membros à composição de uma
No campo do desarmamento e não- trama de instituições e procedimentos re-
proliferação de armas nucleares, a tradição gionais para a aplicação e observância das
alcançada pela Organização no plano inter- normas comunitárias, fundamentalmente,
nacional resultou da adoção pelos Membros da Declaração de Manila sobre o Meio
da importante Declaração sobre a Zona de Paz, Ambiente de 1981, e a Declaração de Jacarta
Liberdade e Neutralidade (ZOPAN), ainda em sobre Desenvolvimento Sustentável de
1971, tendo sido posteriormente aprofunda- 1987 e o Acordo da ASEAN de 2002 sobre
da com a criação do Programa da ASEAN Poluição Transfronteiriça.38 Em destaque
para Promoção da Não-Proliferação de está a importância dos projetos pioneiros
Armas Nucleares de 1993.35 Um movimento implementados sob a égide do Programa
favorável às políticas regionais de desmili- Ambiental da ASEAN (“ASEAN Environ-
tarização de não-proliferação concretizou- mental Programme” – ASEP) e que justifi-
se com a entrada em vigor do Tratado sobre cam a cooperação regional em amplas bases
a Zona Livre de Armamentos Nucleares do de atuação. Em tal contexto favorável, os
Sudeste Asiático de 199536, por meio do qual Estados Membros tiveram incentivos para
os Estados Membros da ASEAN estabelece- tratar de temas implicados na cooperação
ram a criação de “zonas de desarmamento projetada desde a Declaração de Bangkok
nuclear”, como tentativa de afastar, por de 1967 e que estiveram, igualmente, rela-
cionados ao desenvolvimento histórico do
34
Assim, ver objetivos estabelecidos pelos Mem- regionalismo asiático. A proteção do meio
bros na Quinta Reunião Ministerial da ASEAN sobre ambiente, nesse caso, aparece como um
Bem-Estar Social e Desenvolvimento (a AMMSWD),
realizada em Dezembro de 2004, disponíveis em: 37
Sobre a importância das iniciativas da ASEAN
<http://www.aseansec.org/8558.htm>. Acesso em: nesse campo, ver GOLDBLAT, 1995, p. 125 ss. Em seu
10 jul. 2006. importante estudo, o Professor Goldblat ressalta as
35
Declaration on the Zone of Peace, Freedom and novidades de um “quadro regional” relativo à não-
Neutrality of 1971. A Declaração foi adotada em Kuala proliferação das armas nucleares no Pacífico Asiático,
Lumpur, em 27 de novembro de 1971; Programme analisando extensivamente a criação das zonas de não
of Action on ZOPFAN, adotado na 26a Conferência utilização de armamento nuclear, o uso da energia nu-
Ministerial da ASEAN, realizada em Cingapura, em clear para fins pacíficos e a relevância dos trabalhos da
Julho de 1993. Comissão criada pelo Artigo 8o do Tratado de Bangkok
36
Treaty on the Southeast Asia Nuclear Weapon-Free de 1995 no contexto da ASEAN.
Zone, concluído em Bangkok, em 15 de dezembro de 38
As versões consolidadas dos instrumentos
1995. Versão consolidada do tratado pode ser consul- podem ser consultadas em: <http://www.aseansec.
tada em: <http://www.aseansec.org/2082.htm> . org/8919.htm>. Acesso em: 10 jul. 2006 .

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 313


dos elementos relevantes do processo de estabilidade e segurança de ingerências ex-
integração regional na ASEAN. Daí porque ternas” e “promover a paz e a estabilidade
sua observância é indiscutivelmente reco- por meio do respeito à paz e ao direito nas
nhecida como “questão transnacional” no relações entre os países da região”, do que
domínio da Organização, resultando, para formalmente atuar nas frentes de negocia-
os Membros, obrigações e responsabili- ções do sistema multilateral do comércio e
dades típicas do Direito Internacional do atingir estágios formais de um processo de
Meio Ambiente (MUSARE, 1995, p. 283 e integração regional com base no exemplo
ss; SOARES, 2001, p. 163 e ss).39 da então Comunidade Européia (Idem, p.
169 e ss).
2.2. O status da ASEAN nas negociações Ocorre que a participação da ASEAN
multilaterais do GATT/OMC no contexto do GATT 47 e seu reconheci-
A relação entre os Estados Membros mento como coalizão de Estados nas ne-
da ASEAN e as negociações multilaterais gociações multilaterais contribuíram para
encetadas pelas Partes Contratantes do elevar, consideravelmente, a qualidade
antigo Acordo Geral de Comércio e Ta- das consultas e dos modelos aplicados ao
rifas de 1947 (GATT 47) foi estruturada processo decisório baseado no consenso,
a partir da formação de uma “coalizão especialmente durante as Rodadas Tóquio
regional” de Estados, indicando, inclusi- e Uruguai. Ainda em 1973, foi criado o
ve, a importância da Organização para a “Comitê de Genebra da ASEAN” para co-
evolução histórica e institucional do siste- ordenação e centralização das negociações
ma multilateral do comércio em sua atual conjuntas dos Membros da ASEAN na
configuração (NARLIKAR, 2003, p. 169 e Rodada Tóquio do GATT, e que se mantém
ss.). Tal coalizão somente se concretizaria até a atualidade, com mandato rotativo de
graças à mentalidade e desenvolvimento seis meses entre os participantes (ASEAN,
das negociações entre os Estados da ASE- 1973).40 Resultados positivos da atuação do
AN, e uma pressão pela integração regional Comitê foram em parte constatados pela
alternativa daqueles modelos tradicional- capacidade de compartilhamento, entre os
mente assentados pelos países da Europa Membros, de força de trabalho e recursos
e Estados Unidos. humanos diplomáticos nas negociações no
No caso da ASEAN, os Membros cui- âmbito do GATT 47 e que conduziram à
dadosamente evitaram aspirações políticas constituição da OMC em 1994.
que acabassem por minar o processo de Ainda no início da década de 80, a ASE-
negociações multilaterais (como o risco de AN formulava uma “instância coordenada”
um possível distanciamento dos demais de negociações, que se estenderia a outros
Estados no âmbito do GATT), buscando momentos das Reuniões Ministeriais da
manter igualmente um “estilo opaco” no OMC, como expressada em Seattle. A
contexto do regionalismo. A própria opção preparação de uma coalizão de Estados
que fizerem quanto à estrutura normativa africanos fundada no modelo de coorde-
e instituições inicialmente adotadas para nação dos trabalhos pelos Membros da
conduzir o processo de integração segundo ASEAN apontou para a importância desse
a proposta originária mostram muito bem processo, bem como na elevação substan-
esse sintoma. À primeira vista, a Declaração cial do número de propostas encaminhadas
de Bangkok de 1967 revela que os Membros por tais grupos relativas à alteração de
se preocupavam mais em “assegurar sua normas substantivas e procedimentais no
39
Para a atualidade do tema e destacando as 40
Sobre isso, cf, fundamentalmente ASEAN, Joint
obrigações implicadas na cooperação internacional Communique of the Sixth ASEAN Ministerial Meet-
nesse campo. ing, Pattaya, 16-18 April 1973.

314 Revista de Informação Legislativa


arcabouço normativo do GATT/OMC. O alargamento e institucionalização do bloco
modelo seguiu, inclusive, à formação de com base em tratados e convenções que
grupos de negociações na OMC, como o justifiquem, do ponto de vista constitutivo,
caso do G-21, em razão de suas vantagens formas clássicas de integração, tais como as
e soluções para a participação dos países zonas de livre comércio, uniões aduaneiras
em desenvolvimento no contexto das e mercados comuns. Por outro lado, os Esta-
negociações multilaterais (HOECKMAN; dos Membros da ASEAN buscariam evitar a
MARTIN, 2001, p. 105 e ss). Na atualidade, negociação isolada de acordos bilaterais de
oito Estados da ASEAN são igualmente investimento ou acordos de livre-comércio
Membros da OMC, entre os quais: Brunei, concluídos, mas antes negociar em nível
Camboja, Indonésia, Malásia, Mianmar, as trans-regional (Exemplo: ASEAN-China,
Filipinas, Cingapura e Tailândia. O Laos e ASEAN-Japão, ASEAN-Coréia). Isso seria
o Vietnam são candidatos à acessão. compatível com a lógica da coalizão regional
Assim, seria possível afirmar que a (NARLIKAR, 2003, p. 175).41
ASEAN tenha revelado, gradativamente, As crises dos mercados asiáticos de 1997,
uma habilidade de consolidar uma coali- no entanto, já tinham apontado para uma
zão efetiva de Estados, em relevo entre os mudança de paradigma em torno de tais ne-
países em desenvolvimento, e estruturada gociações, sobretudo pelas estratégias unila-
sob uma opção de regionalismo alternati- terais adotadas por alguns Membros, como
vo no contexto do sistema multilateral do seriam os casos específicos de Cingapura e
comércio. O êxito, como constatado, pode da Tailândia, nas negociações multilaterais
ser explicado pelo elemento geoestratégico do GATT/OMC. O Comitê de Genebra da
de cooperação no Sudeste Pacífico, além ASEAN mantém-se formalmente em ati-
dos objetivos primários da Declaração de vidade, porém adepto a uma flexibilidade
Bangkok de 1967. No entanto, se essa é a pela qual seus integrantes têm ampla liber-
tese em favor da efetividade da “coalizão dade de atuação em diferentes fora. E isso é
regional”, como forma de justificar o impul- bastante evidente no curso das negociações
so das negociações multilaterais no GATT/ relativas a acordos de livre comércio cele-
OMC, as pretensões mesmas da ASEAN brados entre Membros da ASEAN e países
rumo à consolidação de um processo de in- da Ásia, União Européia, além da Austrália
tegração regional passariam absolutamente e, notadamente, Estados Unidos (HOECK-
despercebidas das mesas de negociação MAN; MARTIN, 2001, p. 106).
entre Membros (ou pelo menos não evi-
dentes conforme o estado das negociações 2.3. Os acordos preferenciais de comércio
pretéritas) (NARLIKAR, 2003, p. 170). da ASEAN de 1977 e os percalços da
O fator determinante no caso analisado é integração regional
apontado como sendo um “mínimo grau de No início da década de setenta, e haven-
integração regional” nos moldes clássicos, do observado a dificuldade de realização
mas que não teria prejudicado o surgimento dos objetivos previstos na Declaração de
de uma coalizão regional no contexto das
negociações multilaterais do GATT/OMC. 41
Referindo-se ao “ávido apoio ao multilateralis-
mo” dos Estados Membros da ASEAN. Esse exemplo
Isso em grande medida resultou da apro- demonstra que o poder de barganha nas negociações
ximação entre Membros da ASEAN com do GATT/OMC em termos de associações de Estado
interesses muito parecidos no domínio do não necessariamente advém do tamanho do mercado
comércio internacional, abrindo caminho, comum ou integrado que se pretende alcançar em um
processo de integração regional nos modelos clássicos.
igualmente, para o novo regionalismo asiáti- Graus de institucionalização podem não resultar no
co. Esse aspecto é tanto mais peculiar quanto fortalecimento esperado do comércio e a cooperação
despretensioso, sobretudo no que tange ao intrablocos.

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Bangkok de 1967 pela ASEAN, a ONU preferencial de acordos de livre-comércio.
analisaria as principais alternativas para ex- Obrigações recíprocas eram estabelecidas
pansão da cooperação econômica regional. para o desenvolvimento de vários setores
Naquele momento, propostas eram justa- envolvidos na Declaração da ASEAN,
mente formuladas para elevação do comér- tais como nas áreas política, econômica,
cio na região e a coordenação de atividades social, informação e cultura, segurança e
de investimento entre os Estados Membros. melhorias do funcionamento da ASEAN.
Em verdade, elas apontavam para a neces- No tocante à cooperação econômica, os
sidade da adoção de acordos preferenciais Estados objetivavam determinadas áreas,
de comércio e desenvolvimento, de projetos, tais como (i) bens essenciais, especialmen-
de média e grande escala, de investimento te energia e alimentos; (ii) indústria; (iii)
entre os cinco Membros originais.42 comércio; (iv) abordagem comum para os
A solução apresentada pela ONU problemas relacionados à Ordem Econô-
buscava antes confirmar a tese de que o mica Internacional.
“comércio coordenado” entre os Estados e Quanto às relações econômicas entre os
políticas públicas domésticas relacionadas Membros, com vistas ao estabelecimento do
à proteção do investimento estrangeiro comércio intrabloco, os Estados reafirma-
poderiam promover o desenvolvimento de vam a cooperação em todos os campos a fim
estruturas econômicas complementares nos de promover o crescimento da produção e
países asiáticos. Assim, também, a adoção comércio regional para promoção do desen-
de medidas receptivas pelos governos em volvimento das estruturas econômicas dos
relação à atração de investimentos nos se- Estados, individualmente considerados, e
tores automobilísticos permitiria alcançar entre os Membros da ASEAN, propícios ao
benefícios de economias de escala no pro- desenvolvimento e à proteção e elevação
cesso produtivo a ser compartilhado entre dos investimentos.43
os Estados da ASEAN (Cf. DEROSA, 1995, Com efeito, em 1977 os Estados Mem-
p. 29-30). Havia então uma perspectiva ge- bros concluíram os Acordos Preferenciais de
ral de desenvolvimento regional com base Comércio da ASEAN (“ASEAN Preferential
na elevação dos fluxos de investimentos Trading Arrangements of 1977”)44, em torno
inter-regionais e intrabloco, bem como no do objetivo de consolidação da expansão
fortalecimento do processo de industriali-
43
Cf. Declaration of ASEAN Concord of 24 February
zação doméstica.
1976, item B.3:
Interessante notar que a adoção das “Cooperation in Trade
recomendações da ONU pelos Estados i) Member states shall cooperate in the fields of
da ASEAN coincidiu com a queda do trade in order to promote development and growth
of new production and trade and to improve the trade
comunismo no Laos, Vietnam e Camboja.
structures of individual states and among countries
Em 1976, reunidos na Primeira Cúpula of ASEAN conducive to further development and to
de Bali, os Membros reconhecerem uma safeguard and increase their foreign exchange earn-
nova realidade no cenário regional, che- ings and reserves.
ii) Member states shall progress towards the
gando à formulação de dois programas de
establishment of preferential trading arrangements
investimentos coordenados e um sistema as a long term objective on a basis deemed to be at
any particular time appropriate through rounds of
42
Isso levava a constatação de que a ASEAN pro- negotiations subject to the unanimous agreement of
jetou um grau limitado de cooperação econômica (a member states.
fairly limited degree of economic cooperation), como iii) The expansion of trade among member states
observado por Van Meerhaeghe (1998, p. 13). Há quem shall be facilitated through cooperation on basic com-
sustente que, até 1977, a ASEAN era uma organização modities, particularly in food and energy and through
regional sem “conteúdo econômico”, concepção que cooperation in ASEAN industrial projects.”
parece ser um tanto quanto exagerada (Cf. POMFRET, 44
Agreement on ASEAN Preferential Trading Ar-
1998, p. 102). rangements, de 24 de Fevereiro de 1977, disponível

316 Revista de Informação Legislativa


quantitativa do comércio intrabloco pela re- associada às políticas domésticas adotadas
dução de barreiras tarifárias e não-tarifárias. pelos Membros. Isso era claro pela inexis-
No entanto, no período subseqüente a entra- tência de consenso sobre o processo de
da em vigor de tais Acordos, essa expansão integração regional e adoção de estratégias
teria sido praticamente insignificante, tanto individuais de investimentos públicos para
pela adoção persistente de barreiras não- a criação de plataformas industriais volta-
tarifárias por Estados como a Tailândia e das para a exportação intensiva, a exemplo
Malásia como pela oposição, erigida por do que ocorria com a Coréia do Sul e o
alguns Membros, impedindo o êxito dos Japão. Além desse elemento, os Estados
programas de investimentos coordenados da ASEAN – por tudo aquilo que idealiza-
no âmbito da ASEAN (TAN, 2004, p. 937). vam as normas e princípios da Declaração
Os Acordos previam ainda a criação de de Bangkok – buscavam, como “ideologia
listas de bens submetidos ao tratamento regional”, uma ênfase no exacerbado sen-
preferencial e “itens sensíveis”, a fim de timento de soberania nacional, justificada
assegurar a proteção de certos segmentos na preocupação de segurança. Em grande
da indústria doméstica. Tais listas, por sua medida, isso teria sido um dos obstáculos
natureza, compreendiam boa parte dos relevantes – sempre ressaltado nas Confe-
produtos comercializados intrabloco, mas rências da ASEAN – para o aprofundamen-
não pareciam corresponder à prática obser- to do processo de cooperação econômica
vada. Os Membros da ASEAN não eram tão e integração entre Estados da região, os
favoráveis ao desenvolvimento do processo quais deveriam de alguma forma ajustar
de integração regional com base em uma suas instituições domésticas à estrutura do
zona de livre comércio, uma vez que suas regionalismo objetivado. A prioridade dos
economias não apresentavam graus de Membros, no entanto, sempre foi (como
complementaridade, e objetivavam, em ainda parece ser até hoje) a ampliação de
suas políticas domésticas, a proteção dos relações comerciais com vários Estados ao
mercados internos. Apesar de os Acordos mesmo tempo, num processo de abertura
Preferenciais de 1977 terem reduzido as para a economia mundial e “inserção glo-
tarifas de exportação aplicáveis ao comércio bal” no sistema multilateral do comércio
intrabloco a patamares satisfatórios, sua sob as bases do GATT/OMC.45
implementação nos mercados da ASEAN 45
Penso que uma certa lógica seja inclusive sub-
tornou-se insustentável. A criação de listas vertida pelo senso comum, sobretudo por aqueles que
e mais listas de produtos submetidos ao se subjugam “especialistas em Direito do Comércio
tratamento preferencial na região enfra- Internacional”. O sentido real que tem o processo
quecia os tímidos esforços de liberalização de integração regional não se confunde com o mero
fortalecimento de “relações comerciais” entre Estados,
do comércio; na prática revelavam que os mas repousa antes no adensamento e aprofundamen-
Acordos Preferenciais de 1977 serviriam to de instituições justificadas nos vários pilares da
como estrutura normativa para substituição cooperação internacional, que é sempre muito mais
de importações entre Estados, muito mais ampla e sólida. O caso da ASEAN, ainda na década de
70, parece remeter a um baixo grau de concretização
do que estabelecer objetivos de liberaliza- desse objetivo geral do próprio sistema do Direito
ção e coordenação de investimentos, como Internacional. A técnica empregada nos Acordos
anteriormente concebidos na Declaração Preferenciais de 1977 é exemplo interessante para
dos Estados Membros de 24 de fevereiro tantos desinformados e seduzidos pela “liberaliza-
ção dos fluxos de comércio” e “acesso a mercados”.
de 1976 (TAN, 2004, p. 938). Curiosamente, as listas de produtos submetidos a
Em boa medida, a insustentabilidade tratamento preferencial compreenderiam, já na me-
dos Acordos Preferenciais de 1977 esteve tade da década 80 e com todas as alterações sofridas
da versão original dos Acordos Preferenciais de 1977,
em: <http://www.aseansec.org/1376.htm>. Acesso apenas 5% dos bens comercializados intrabloco. Até
em: 3 jun. 2006. mesmo as relações comerciais (tantas vezes tomadas

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 317


2.4. Rumo à consolidação da Área de como solução de “inserção global” no co-
Livre Comércio da ASEAN (AFTA) mércio internacional (TAN, 2004, p. 939).
Como implícito na própria termino-
Durante toda década de 80 e início da
logia adotada, o Acordo Quadro de 1992
década de 90, os Estados membros da ASE-
não estabelece objetivos detalhados para a
AN concentraram seus esforços nas nego-
criação de uma zona de livre comércio, mas,
ciações envolvendo o comércio multilateral
fundamentalmente, um conjunto de planos
e faziam-se representar fundamentalmente
gerais para o estreitamento das relações
como bloco regional entre as Partes Con-
de cooperação econômica entre os Estados
tratantes do GATT 47. Ainda antes da con-
da ASEAN. Em seu artigo 2(A), o Acordo
clusão da Rodada Uruguai e a conseqüente
Quadro estabelece o plano de criação de
constituição da Organização Mundial
uma zona de livre comércio embasada nas
do Comércio, os Ministros de Estado da
relações intrabloco.47 O objetivo principal
ASEAN na Quarta Cúpula de Cingapura,
da futura AFTA seria o de “intensificar
em janeiro de 1992, observando algumas
a cooperação entre os Membros para au-
oportunidades com relação ao desenvolvi-
mentar sua competitividade internacional
mento da integração no Sudeste Asiático
e integração com o mundo”.48 Em última
(Cf. HAAS, 1997, p. 329 e ss; HAAS, 1994,
análise, tal objetivo seria o de posicionar
p. 862 e ss), adotaram o Acordo Quadro de
concorrencialmente a ASEAN como base
Cooperação Econômica que levaria à cria-
regional de produção voltada para o merca-
ção da Área de Livre Comércio da ASEAN
do internacional. O propósito de estimular
– AFTA (“Acordo Quadro de Cooperação
o comércio intrabloco, portanto entre os
Econômica na ASEAN de 1992”).46
Estados membros, seria um objetivo secun-
Em essência, o momento das negocia-
dário (TAN, 2004, p. 939).
ções na região do Sudeste Asiático parece
Para alcançar a criação do AFTA, em
indicar que os Estados da ASEAN estavam
janeiro de 1993, os Estados membros
atentos ao processo de integração européia,
celebraram o Acordo relativo ao Regime
especialmente quando do desenvolvimento
Comum Efetivo Tarifário Preferencial da
das instituições da então Comunidade Eco-
AFTA (“Acordo sobre o Regime CEPT”)49,
nômica Européia (CEE), projetado com a
que tem como objetivo principal a redução
entrada em vigor do Tratado de Maastricht
progressiva das alíquotas dos impostos de
de 1991. A mesma preocupação dos Estados
exportação a patamares entre 0% a 5% até
da ASEAN estaria centrada na constituição
2008. Vale destacar que o Regime CEPT
do NAFTA em 1992, pela posição assumida
é considerado, pelo Acordo Quadro de
pelos Estados Unidos na região, cuja in-
Cooperação Econômica de 1992, como o
fluência se fazia presente desde o período
mecanismo principal para a Área de Livre
subseqüente à Segunda Guerra Mundial. A
oportunidade de criação da Área de Livre 47
“Article 2
Comércio da ASEAN justificaria, então, A. Cooperation in Trade
a inclusão do bloco em vários mercados, 1. All Member States agree to establish and par-
ticipate in the ASEAN Free Trade Area (AFTA) within
como razão de ser da integração regional) seriam 15.years. A ministerial-level Council will be set up to
praticamente irrisórias se comparadas à liberdade de supervise, coordinate and review the implementation
fluxo de comércio supostamente desejável para uma of the AFTA”.
zona de livre comércio mínima. 48
“intensify cooperation among the members of
46
Framework Agreement on Enhancing ASEAN ASEAN to increase their international competitiveness
Economic Cooperation (January 28, 1992), disponível and integration with the world”.
em: <http://www.aseansec.org/1165.htm>. Sobre 49
Agreement on the Common Effective Preferential
histórico das negociações, ver BOWLES, 1997, p. 219 Tariff Scheme for the ASEAN Free Trade Area, disponivel
e ss.; KARTADJOEMENA, 2001, p. 203 e ss.; GREEN- em: <http://www.aseansec.org/12375.htm>. Acesso
WALD, 2006, p. 193 e ss. em: 8 jun. 2006.

318 Revista de Informação Legislativa


Comércio da ASEAN50. Até 2004 os seis Es- assinatura do Protocolo de Phnom Pehn
tados originalmente signatários do Acordo sobre Liberalização de Serviços, em 2003,
sobre o Regime CEPT reduziram as tarifas aprofundou os objetivos estabelecidos no
para 99% dos produtos comercializados e Acordo Quadro, buscando compreender
incluídos em listas de tratamento preferen- várias áreas correlatas, tais como transporte
cial. Os novos Membros da ASEAN, como marítimo, telecomunicações, turismo e
Vietnam, Laos, Mianmar e Camboja, deve- atividades negociais.
rão implementar as obrigações assumidas É importante observar existem muita re-
no Acordo sobre o Regime CEPT entre 2008 ticência e pessimismo na literatura sobre o
e 201051. Em janeiro de 1995, vale ressaltar, tema relativo ao avanço das negociações da
os Membros reduziram as tarifas incidentes AFTA, o que parece expressar um “conflito
sobre bens industriais importados e produ- de abordagens” com a orientação oficial
tos agrícolas e outros bens primários dentro assumida pela Conferência dos Ministros
da região (variando entre 0 a 5% já no ano da ASEAN, ainda que esta tivesse indire-
de 2003), como forma de justificar os obje- tamente reconhecido a inconsistência do
tivos estabelecidos no plano geral contido modelo.54 O processo de integração levado
no Acordo Quadro de 1992, desenvolvido a cabo pelos Membros seria uma espécie
pelo Regime CEPT.52 de “gargalo” regional e vem sendo, em
Ainda em 1994, houve inclusão do tema grande medida, seriamente prejudicado
dos serviços na agenda de negociações pela crise dos mercados asiáticos em 1997,
da Área de Livre Comércio da ASEAN, quando a atuação da Organização teria sido
resultando na conclusão do “Acordo desviada dos caminhos da implementação
Quadro da ASEAN sobre Serviços”, de 15 do plano geral da AFTA, como estabeleci-
de Dezembro de 199553, o qual estabelece dos no Acordo Quadro de 1992 (Cf. GRE-
obrigações gerais de liberalização do co- ENWALD, 2006, p. 193 e ss).
mércio de serviços no espaço regional. A Os Membros da ASEAN também to-
maram outros rumos nas negociações do
50
Cf. Artigo 2(A).2: “The Common Effective sistema multilateral do comércio, o que
Preferential Tariff (CEPT) Scheme shall be the main se explica pela celebração de acordos pre-
mechanism for the AFTA. For products not covered
by the CEPT Scheme, the ASEAN Preferential Trading
ferenciais com países da Ásia, Europa e
Arrangements (PTA) or any other mechanism to be Estados Unidos, desviando-se também dos
agreed upon, may be used.” objetivos gerais da AFTA. O exemplo de
51
O Acordo Quadro de 1992 estabelece a obrigação Cingapura oferece uma explicação, por seu
de liberalização do comércio intrabloco a partir da
redução e eliminação das barreiras tarifárias e não-
turno, à essência do problema enfrentado
tarifárias, como previsto no Artigo 2.A(3): “Member primeiramente no contexto de edificação
States shall reduce or eliminate non- tariff barriers da cooperação econômica na região do
between and among each other on the import and Sudeste Asiático. A crise dos mercados
export of products as specifically agreed upon under
existing arrangements or any other arrangements
financeiros de 1997 teria levado o país a se
arising out of this Agreement.”
52
Cf. especificamente Artigo 4o do Acordo sobre 54
Assim, ver a declaração oficial em: <http://www.
o Regime CEPT de 1992, no qual foi estabelecido o aseansec.org/12021.htm>. Acesso em: 10 jul. 2006. “The
cronograma geral de implementação das medidas de ASEAN Free Trade Area (AFTA) has now been virtu-
redução das tarifas preferenciais. ally established. ASEAN Member Countries have made
53
ASEAN Framework Agreement on Services, 15 significant progress in the lowering of intra-regional
December of 1995; posteriormente emendado pelo tariffs through the Common Effective Preferential Tariff
Protocolo de 2003 sobre Liberalização de Serviços (CEPT) Scheme for AFTA. More than 99 percent of the
(Protocol to Amend the ASEAN Framework Agree- products in the CEPT Inclusion List (IL) of ASEAN-6,
ment on Services). As versões atualizadas dos tratados comprising Brunei Darussalam, Indonesia, Malaysia,
podem ser encontradas em: <http://www.aseansec. the Philippines, Singapore and Thailand, have been
org/12039.htm>. Acesso em: 8 jun. 2006. brought down to the 0-5 percent tariff range.”

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 319


separar, na prática, da coalizão formada Exceção Geral” refere-se aos bens perma-
anteriormente com bloco da ASEAN no nentemente excluídos do Regime do CEPT
sistema do GATT/OMC, levando-o a não por razões de segurança nacional, danos à
poupar esforços para conclusão de acordos saúde pública e aqueles dotados de valor
de livre comércio com os Estados Unidos, artístico, histórico e arqueológico.55
Austrália e Japão. Os Estados da ASEAN têm a opção,
Há razões, no entanto, para supor que segundo o Regime do CEPT, de excluir
a integração regional na Ásia, a partir do bens das listas adotadas para o comércio
desenvolvimento da cooperação econômica preferencial intrabloco, em três categorias:
concebida no contexto da ASEAN, seja na (a) a adoção de uma lista temporária de
verdade um longo e demorado processo. A exclusão; (b) produtos agrícolas sensíveis e
implementação dos Planos Gerais, conforme (c) exceções gerais. Vários problemas foram
estabelecidos no Acordo Quadro de Coope- sendo detectados desde 1997, como, por
ração Econômica de 1992, e a conseqüente exemplo, a exclusão pelo Vietnam de 165
constituição da Área de Livre Comércio da categorias de produtos na Lista de Exceção
ASEAN dependeriam, em muito, de um Geral, como automóveis, motocicletas,
melhor redirecionamento das negociações computadores, equipamentos de informáti-
entre os Estados e comprometimento sobre ca e telecomunicações, leite, bebidas alcoó-
o ajustamento das instituições domésticas, licas e derivados de açúcar. No Laos, vários
desde reformas legislativas até um nivela- produtos também foram classificados como
mento das economias nacionais. Os suces- incluídos na Lista de Exceção Geral, tais
sivos acordos e protocolos celebrados no como veículos automotivos, embarcações
âmbito da ASEAN, desde a conclusão do de pequeno porte e bens supérfluos, como
Acordo Quadro de 1994, constatam a preo- cigarro, bebidas alcoólicas e derivados do
cupação dos Estados de incrementar o grau petróleo. Talvez o mais sério impasse seja
de institucionalização do bloco; o contexto aquele estabelecido entre Malásia, Indoné-
normativo de tais documentos se tornou sia e Tailândia quanto ao setor automotivo,
mais detalhado e formalizado, relacionan- já que os países inseriram os bens neles
do os objetivos da Área de Livre Comércio fabricados na Lista de Exceção Geral.
da ASEAN a uma miríade de obrigações Importante destacar que o AFTA foi
a serem observadas pelos Membros (Cf. notificado ao GATT ainda durante as nego-
GREENWALD, 2006, p. 210). ciações da Rodada Uruguai pelos Estados
O Regime CEPT, ao fornecer a estrutura Membros da ASEAN56, de acordo com o Ar-
tarifária para a implementação do AFTA, tigo IV sobre Comércio e Desenvolvimento.
também parece ser amplo o suficiente Ainda àquele período, o Regime CEPT era
para induzir os Estados Membros à não visto pelos Membros como compatível com
observância de seus dispositivos. O mesmo o Artigo XXIV do GATT, já que não resulta-
se observa quanto ao provável retrocesso ria em barreiras significativas ao comércio
em torno da exclusão de bens das listas com outros Estados não integrantes da
de tratamento preferencial no comércio ASEAN (Cf. STEPHENSON, 1994, p. 439 e
intrabloco. O Regime CEPT adotou uma ss). Até hoje o Comitê de Acordos Regionais
abordagem setorial para classificar os da OMC não emitiu nenhum relatório sobre
produtos, a partir de três listas básicas. A os impactos do Acordo AFTA sobre o alcan-
“Lista de Inclusão” diz respeito aos bens ce normativo do Artigo XXIV do GATT e
que serão submetidos a tarifas preferenciais do Artigo V do GATS. Em especial, a pre-
de exportação; a “Lista de Produtos Sensí- 55
Cf. Artigos 2o e 9o do Acordo sobre o Regime
veis” compreende o comércio preferencial CEPT de 1992, (nota 49 supra).
de bens primários agrícolas e a “Lista de 56
ASEAN Secretariat, 1993, p. 9.

320 Revista de Informação Legislativa


ocupação estaria na análise pela Secretaria empresas originárias de diferentes países,
sobre a liberalização do comércio intrablo- sendo-lhes oferecidas tarifas preferenciais
co, as regras de origem e os dispositivos e acesso irrestrito aos mercados dos Esta-
transitórios contidos no quadro normativo dos da ASEAN. Até março de 2003, foram
do AFTA e do Regime CEPT.57 autorizados 104 projetos classificados nos
modelos do Acordo relativo ao Regime de
2.5. A Zona Asiática de Investimentos (ZAI), Cooperação Industrial. Muitos deles eram
programas coordenados de investimentos e o apresentados por empresas atuantes nos
Regime de Cooperação Industrial (AICO) setores automobilístico, elétrico e eletrônico
Como examinado anteriormente, na Pri- e de alimentos, como os conglomerados
meira Cúpula de Bali de 1976, os Membros formados pela Toyota, Honda e Sony.59
da ASEAN reconhecerem a necessidade Um dos principais problemas do Regime
de criação dos chamados “programas de de Cooperação Industrial da ASEAN estaria
investimentos coordenados” como forma no limitado alcance de acesso aos mercados
de alavancar a cooperação econômica pelos bens fabricados, já que muitos não são
intrabloco e que seriam, futuramente, redi- objeto de tratamento preferencial uniforme
recionados para as negociações do Acordo em todos os Estados Membros. Acesso
Quadro sobre a Zona de Investimentos irrestrito aos mercados diz respeito às em-
Asiática (ZAI), concluído em 7 de outubro presas sediadas nos Estados participantes
de 1998. Paralelamente à implementação apenas. Do mesmo modo, bens primários
da Área de Livre Comércio da ASEAN, a oferecidos somente podem ser importados
ZAI ofereceria, a investidores estrangeiros e utilizados como insumos para a produção
atuais e potenciais, um ambiente propício, dos bens submetidos ao Regime de Coope-
na região da ASEAN, para atividades de ração Industrial da ASEAN (TAN, 2004, p.
produção intensiva, implementação de 942). Por outro lado, o AICO atraiu uma
plataformas industriais e investimentos série de investimentos estrangeiros diretos
diretos. Para isso, os Estados Membros já para os Estados membros da ASEAN, es-
haviam adotado o Acordo relativo ao Re- pecialmente do Japão, como mencionado,
gime de Cooperação Industrial da ASEAN nas áreas da alta tecnologia, setores auto-
(“AICO”), em 1o de novembro de 1996,58 mobilístico e eletro-eletrônico.
a fim de substituir as antigas formas de
2.6. Estratégias de ampliação do
cooperação na área econômica.
regionalismo no âmbito da ASEAN e
Do ponto de vista estrutural, o Acor-
impactos sobre o comércio multilateral:
do AICO abre espaço para a criação de
a inclusão regional da China
empresas integradas verticalmente que
possam atuar na ASEAN como plataformas
de produção regionais. Contratos coope- 2.6.1. Aspectos políticos das relações
rativos podem ser celebrados entre duas entre a ASEAN e a China
A criação da ASEAN em 1967, com a
57
Sobre a análise dos impactos da área de Li-
Declaração de Bangkok, assumia primei-
vre Comércio da ASEAN pelo Comitê, ver WT/
REG/W/45, Committee on Regional Trade Agree- ramente uma série de objetivos de caráter
ments: Rules of Origin Regimes in Regional Trade político e de cooperação econômica, os quais
Agreements – Background Survey by the Secretariat, eram vistos pela China como forma de justi-
05/04/2002; WINDEN; KENEVAN, 1993, p. 224 e ss;
ficar a existência de uma “associação militar
BOWLES, 2003, p. 37 e ss.
58
Basic Agreement on the ASEAN Industrial Co- com fins antichineses” no continente asiático
operation Scheme, disponível em: <http:// www.
aseansec.org/economic/eco_aico.htm>. Acesso em: 59
Ver informações da Secretaria da ASEAN em:
2 jul. 2006. <http://www.aseansec.org>.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 321


(HOON, 1977, p. 4 e ss).60 Por um longo US$ 0,2 bilhões para US$ 4,2 bilhões (Cf.
período no curso da História, esse primeiro BA, 2003, p. 622-623).
sentimento marcaria as relações entre o bloco No início da década de 90, as relações
de Estados do Sudeste e a República Popular bilaterais entre a China e a ASEAN foram
da China, as quais entraram em nítido de- marcadas pela controvérsia internacional
clínio a partir da década de 60. No cenário sobre o “Arquipélago Spratly”, concernente
da Guerra Fria e conseqüente profusão da à reivindicação territorial de um grupo de
bipolaridade entre as potências – Estados ilhas situadas na parte sul do Mar da China
Unidos e a antiga URSS –, uma verdadeira Meridional. Na disputa estavam envolvidos
“aura de desconfiança” havia sido instaura- China, Taiwan, Vietnam, Malásia, Brunei e
da entre a China e os vizinhos asiáticos. Ela as Filipinas.61 Buscando inicialmente ende-
era confirmada pelas políticas adotadas pelo reçar o litígio no plano regional, em 1992 os
Estado chinês e sua influência imediata sobre Ministros das Relações Exteriores da ASE-
os Estados da ASEAN, como, por exemplo, AN adotaram a “Declaração da ASEAN
o apoio expresso a grupos comunistas atu- sobre o Mar da China Meridional”62, na qual
antes em tais países (Cf. HAACKE, 2003, p. enfatizavam a necessidade de solucionar to-
113; GREENWALD, 2006, p. 199). das as questões jurisdicionais e de soberania
A transformação das relações entre Chi- relacionadas ao Arquipélago, sem recurso
na e Estados Unidos na primeira metade da ao uso da força na região. Em 1o de agosto
década de 70, no entanto, foi modificando de 1995, a controvérsia foi igualmente
a realidade do regionalismo no Sudeste discutida, sem nenhum efeito, no Fórum
Asiático, em especial pela mudança dos Regional da ASEAN, cuja competência está
padrões das relações de cooperação econô- associada às questões de segurança e paz
mica entre os países. Alguns, como Malásia, em nível regional63. Somente em 2002, após
Tailândia e as Filipinas, foram os primeiros anos de negociações individuais entre os Es-
Membros da ASEAN a restaurar relações tados, a China assinou um Acordo derivado
diplomáticas com a China. Outros proble- da Declaração de 1992, que ficou conhecido
mas surgiam nesse contexto, dificultando a como “Declaração sobre a Conduta das
progressiva aproximação entre os Estados, Partes no Mar da China Meridional”.64 Esse
como a indiferença relativa ao reconheci- documento é considerado como um dos
mento da ingerência dos Estados Unidos pilares da segurança regional entre os Esta-
na região ainda no período que precedeu dos da ASEAN e a China e estabelece uma
a Guerra do Vietnam. Somente em 1978 é cláusula geral de solução de controvérsias
que a China manifestava seu interesse em por mecanismos pacíficos.
estreitar as relações com a ASEAN, como Do ponto de vista institucional, o litígio
possível solução e fator acessório (comple- envolvendo o Arquipélago Spratly demons-
mentar) ao seu processo de reforma econô- 61
Para uma exposição detalhada do caso, ver
mica doméstica. A partir desse momento, ACHARYA, 2001, p. 133 (mencionando que o litígio
o fluxo de comércio recíproco entre China sobre as Ilhas Spratly tem sido visto, pelos Estados da
e ASEAN representaria uma elevação de ASEAN, como um dos conflitos mais significativos no
período do Pós-Guerra Fria no Sudeste Asiático).
Observando que a ASEAN foi sendo histori-
60 62
ASEAN Declaration on the South China Sea, de
camente considerada pela China como uma “aliança 22 de julho de 1992, disponível em: <http://www.
contra-revolucionária” e “instrumento do imperia- aseansec.org/1196.htm>. Acesso em: 3 mai. 2006.
lismo dos Estados Unidos” sobre os países asiáticos. 63
Sobre a repercussão no Fórum Regional da
Hoon (1977) cita um trecho extraído da Peking Re- ASEAN, ver KODAMA, 1996, p. 368.
view (n.10, Aug 18, 1967, p.40), em que se expressa: 64
Declaration on the Conduct of the Parties in the
“This reactionary association formed in the name of South China Sea, de 4 de Novembro de 2002, disponível
economic co-operation is a military alliance directly em: <http://www.aseansec.org/13163.htm>. Acesso
specifically against China.” em: 3 jun. 2005.

322 Revista de Informação Legislativa


trou a inconsistência da coesão entre os Bens do Acordo Quadro de Cooperação
Estados da ASEAN em torno de uma estra- Econômica de 4 de novembro de 2002.65
tégia de negociação comum com a China, já Entre os principais objetivos comuns está
que todos os envolvidos buscaram, indivi- a criação e implementação de uma Área de
dualmente, invocar mecanismos próprios Livre Comércio entre a China e a ASEAN
para solução da controvérsia internacional. (ACFTA). Importante destacar que, em 24
A ASEAN, como bloco regional, parecia en- de novembro de 2004, o Acordo Quadro
fraquecida nesse contexto (GREENWALD, foi notificado ao Comitê de Acordos Re-
2006, p. 212). Tal sintoma ficaria ainda mais gionais da OMC, para que o órgão pudesse
evidente pela frustração de objetivos de coo- examinar concretamente os efeitos da Área
peração política estabelecidos na Declaração de Livre Comércio China-ASEAN sobre
de Bangkok de 1967, já que no documento o sistema multilateral do comércio.66 Em
existe previsão sobre mecanismos de con- especial estão considerados os dispositivos
sultas internas entre os Estados Membros, do Acordo relativamente ao período de
tanto em nível intergovernamental, como 10 anos para implementação das medidas
nas Conferências Ministeriais. de eliminação de barreiras tarifárias e não
Aparentemente, os efeitos da influência tarifárias aos fluxos de comércio intrabloco
externa da China sobre disputa territorial e tratamento diferencial e flexibilidades
envolvendo o Arquipélago Spratly não fo- para novos Estados da ASEAN, tais como
ram neutralizados de modo suficientemente Camboja, Mianmar e Vietnam.
transparente, com o que se poderia concluir O surgimento do ACFTA corresponde
que a ASEAN se tornou um grupo político exatamente à tendência de aumento e pres-
regionalizado, de “solidariedade duvidosa” são pela concorrência entre blocos regionais
– pelo menos se considerada a diversidade surgidos no Pacífico Asiático, as reformas
de seus Membros (KODAMA, 1996, p. 384). econômicas domésticas e o crescimento
Isso levaria à conclusão sobre a necessidade exponencial da China nesse contexto. Os
de adoção de uma estrutura de integração impactos do ACFTA em relação ao sistema
mais aprofundada, a partir da reforma dos multilateral do comércio seriam sentidos
tratados celebrados entre os Estados da ASE- justamente no tocante ao volume de ex-
AN, bem como o refinamento dos mecanis- portações originadas dos Estados Partes,
mos pacíficos de solução de controvérsias, confrontado com o fluxo do comércio in-
centrado nas negociações conjuntas entre os ternacional em outros blocos regionais (Cf.
Membros. Ainda aqui restaria a difícil tarefa KONG, 2004, p. 839 e ss). Entre os objetivos
de afirmar um processo de institucionali- gerais do ACFTA, está a cooperação econô-
zação do bloco, desejável no momento em mica sobre a estrutura de liberalização do
que a China emerge como um dos Estados comércio de bens. Acredita-se que a área
mais importantes no processo de inserção e de livre comércio em questão venha inau-
concorrência nas relações econômicas inter- gurar um dos maiores blocos regionais no
nacionais da perspectiva asiática. plano internacional, superando processo de

2.6.2. A implementação do Acordo de Livre


65
Agreement on Trade in Goods of the Framework Agree-
ment on Comprehensive Economic Co-operation between the
Comércio entre ASEAN e China (ACFTA) Association of Southeast Asian Nations and the People’s Re-
public of China (November 4, 2004). A versão consolidada
O processo de acessão da China à Or- do Acordo pode ser consultada em: <http://www.
ganização Mundial do Comércio iniciado aseansec.org/16646.htm>. Acesso em: 3 jun. 2006.
em 2001 encetou nova realidade no re- 66
Cf. documento WT/COMTD/N/20, Committee
gionalismo asiático. A pressão comercial on Trade and Development – Framework Agreement
on Comprehensive Economic Cooperation between
entre Estados levou à celebração, com a the Association of South East Asian Nations and the
ASEAN, do Acordo sobre Comércio de Peoples Republic of China, 21 December 2002.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 323


integração implicados respectivamente no enfraquecimento dos objetivos relacionados
NAFTA e a União Européia em termos de à constituição da Área de Livre Comércio
contingente populacional efetivo (Cf. GRE- ASEAN-China. Esforços de integração em
ENWALD, 2006, p. 193 e ss; WANG, 2005, moldes institucionais poderiam ser ques-
p. 17 e ss). Com a consolidação dos objetivos tionados nesse contexto, já que os Estados
propostos pelos Estados, o Acordo abrange não chegaram ao consenso quanto à solução
uma região de aproximadamente 1,7 bilhão conjunta do litígio envolvendo o Arquipéla-
de consumidores, e um volume de comércio go Spratly. Os Estados – então igualmente
anual na cifra de 1,23 trilhão de dólares. Partes no Acordo sobre Comércio de Bens
de 2002 que estabelece a ACFTA – muito
2.6.3. A evolução da ASEAN e hesitaram até chegar à solução diplomática
perspectivas do ACFTA como contraponto na Declaração sobre o Mar da China Meri-
ao regionalismo no Sudeste Asiático dional. Obviamente, o caso Spratly se afasta,
Desde sua constituição em 1967, os Esta- do ponto de vista temático, das negociações
dos Membros da ASEAN não deixaram de travadas no contexto de criação do ACFTA,
observar os problemas relacionados à insu- já que nem todos Membros da ASEAN
ficiência de um quadro normativo que ti- reivindicam os territórios das ilhas no Mar
vesse como objetivo ulterior o de constituir da China Meridional. Todavia, a China foi
uma zona de livre comércio evoluindo para capaz de romper com a coesão do bloco e
uma “União Asiática”. A crise financeira in- negociar bilateralmente com cada um dos
ternacional de 1997, como mencionado, fez Estados, o que poderia ser um obstáculo
com que os Estados enfrentassem os efeitos potencial para futuras negociações envol-
arrasadores da intensa circulação de capital vendo a formulação e concretização dos
especulativo de curto prazo originado de objetivos previstos para o futuro ACFTA
países da Europa e Estados Unidos, e que (Cf. GREENWALD, 2006, p. 210).
desencadeou uma preocupação da ASEAN Por outro lado, a ausência de uma au-
quanto à formação de uma “identidade têntica estrutura constitucional normativa
asiática”, hoje refletida nas alternativas para a ASEAN (por conta da insuficiente
de regionalismo assimilada pelos Estados abrangência dos tratados e acordos con-
da região. Isso se constata igualmente cluídos desde 1967 com a Declaração de
pelo crescente número de acordos de livre Bangkok) sugeriria o colapso do ACFTA.
comércio concluídos, liberalização compe- Como visto, a dificuldade de se estabelecer
titiva e pressão pela inserção dos Membros um sistema regional de solução de con-
no sistema do comércio multilateral. No trovérsias prejudicaria a capacidade dos
entanto, ainda restariam dúvidas em rela- Estados Partes (China e os Membros da
ção ao processo de integração regional, em ASEAN) de resolver controvérsias futuras.
especial quanto à necessidade de criação A reforma do arcabouço normativo da
de instituições que pudessem concretizar ASEAN poderia sustentar a efetividade do
políticas comuns adotadas no contexto da futuro ACFTA. A China, por sua vez, não
ASEAN. Essa dificuldade seria, portanto, teria condições de, em tão curto período de
confrontada com o próprio êxito e viabili- tempo, alcançar o patamar de reformas de
dade do Acordo de Livre Comércio entre instituições e legislação domésticas exigido
ASEAN e China. para a implementação das obrigações assu-
Assim também o deficit nas negociações midas no âmbito da Organização Mundial
quanto à consolidação de um sistema re- do Comércio (Cf. SHEN, 2004, p. 268-271).67
gional de solução de controvérsias dotado 67
Observando que um dos desafios reais da China
de efetividade também aparece como fator seria superar a ajustabilidade dos regimes jurídicos e
indicado pela literatura como tendente ao administrativos domésticos.

324 Revista de Informação Legislativa


Seria também impossível analisar o pro- Nova Zelândia, Estados Unidos, Cana-
blema sem uma abordagem geopolítica da dá, Japão, Coréia do Sul e os seis então
cooperação regional a ser alcançada pelo Estados Membros da ASEAN. Em 1991,
futuro ACFTA no contexto do regionalismo ingressaram China, Hong Kong, Taiwan,
do Sudeste Asiático, tanto pela ambição dos Peru, México, Chile, Papua Nova Guiné,
países em desenvolvimento envolvidos, Rússia e Vietnam, totalizando 21 Estados
como pelas problemáticas relações dos Es- participantes.69
tados Membros da ASEAN e a China (Cf. Muito de seu surgimento está associado
GREENWALD, 2006, p. 195).68 às alternativas encontradas pelos países da
É importante ressaltar que, com exceção região Ásia-Pacífico para lidar com incerte-
de Cingapura, os demais Estados da ASE- zas da Rodada Uruguai do GATT. De um
AN são países cujas economias domésticas lado, havia a concepção da ASEAN, enta-
apresentam muitas semelhanças entre si, bulada pela Malásia de promover a idéia de
por fatores que passam pela localização uma organização mais ampla envolvendo
geográfica, aspectos históricos e culturais Estados da Ásia setentrional e oriental, com
e modelos de desenvolvimento social. As a criação da EAEC (East Asian Economic
particularidades dos Estados da ASEAN, Caucus), que evoluiria para uma área de
contando com elevado contingente po- livre comércio a partir da conclusão de
pulacional e vantagens comparativas no amplo acordo de livre comérico de alcance
comércio internacional (em especial na pro- trans-regional entre os Estados. De outro
dução e mão-de-obra intensiva), serviriam lado, havia a proposta sustentada pela Aus-
como incentivo para o funcionamento do trália, parcialmente adepta à preocupação
ACFTA. Ainda seria cedo, no entanto, para de que seu governo fosse deixado de fora
uma análise mais aprofundada. de um modelo de regionalismo entabulado
por uma organização sem objetivos delimi-
3. Organização de Cooperação Econômica tados, que fosse integrada por Estados de
do Pacífico Asiático (APEC) ambos os lados do Pacífico. Com efeito, a
iniciativa de criação da APEC surge nesse
contexto, com apoio dos Estados Unidos e
3.1. Algumas premissas da criação
Japão70 (Cf. POMFRET, 1998, p. 147).
da APEC e o desenvolvimento do
A evolução da APEC aproveitou o
regionalismo no Pacífico-Asiático
êxito da experiência da ASEAN na região,
Paralelamente à existência da ASEAN em torno da concepção de “cooperação
como organização regional formada por extensiva” preconizada pela Declaração
países do Sudeste Ásiático, em 1989 a ini- de Bangkok de 1968. Como visto, entre
ciativa do primeiro ministro australiano os Estados participantes da APEC, 12 são
Bob Hawke levou à criação da Organiza- Membros da ASEAN, o que sugere, ainda,
ção de Cooperação Econômica do Pacífico sua influência direta sobre a atuação do
Asiático (APEC – Asia-Pacific Economic Conselho para Cooperação Econômica
Cooperation), primeiramente como uma do Pacífico (PECC).71 São identificados
espécie de “diálogo ministerial informal” 69
Na atualidade, a APEC é integrada por 21 Es-
ou “fórum de discussões” entre Estados tados, entre os quais: Austrália, Brunei Darussalam,
da região Ásia-Pacífico. A APEC contava Canadá, Chile, China, Hong Kong, Indonésia, Japão,
então com 12 Estados, a saber, Austrália, República da Coréia, Malásia, México, Nova Zelândia,
Papua Nova Guiné, Peru, Filipinas, Rússia, Cingapura,
68
Referindo-se às duvidas quanto ao sucesso do Taiwan, Tailândia, Estados Unidos, Vietnã.
ACFTA (“the troubled history of Chinese-ASEAN 70
Mencionando que a Austrália seria a única
relations casts significant doubt vis-à-vis the long-term criança sem um bloco”.
feasibility of ACFTA”). 71
Sobre o PECC, ver item 4.1 infra.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 325


interesses econômicos comuns entre tais catalisar processos regionais de desenvol-
países e um precedente factível para con- vimento mediante reformas intensivas e po-
sultas diplomáticas com Estados que se liticamente orientadas sobre as economias
mantiveram por tanto tempo distanciados nacionais na região da Ásia-Pacífico (Cf.
do regionalismo asiático, como é o caso de DRYSDALE; ELEK, 1997, p. 37 e ss).73 Um
Hong Kong, Taiwan e China. dos aspectos, no entanto, para ajustamento
Na Declaração dos Líderes da APEC, da interdependência dos Estados da APEC
adotada em 15 de novembro de 1995 em passa pela constatação da necessidade da
Borgor, Indonésia (Declaração de Borgor), possível adoção de normas diretamente
os Estados participantes buscaram esboçar relacionadas à regulamentação dos cres-
o futuro curso do que seria a cooperação centes fluxos de comércio e investimentos
econômica projetada no bloco. Entre os ob- intrabloco até a repressão de manifestações
jetivos, está o compromisso de crescimento nacionalistas na Ásia.
acelerado, equilibrado e eqüitativo, não Com efeito, a “visão conjunta” dos Es-
apenas concentrado na região do Pacífico tados participantes – e é essa a expressão
Asiático, mas difundido pelo mundo.72 semântica que define a abordagem adotada
Com mudança em torno das premissas para nas Declarações dos Líderes da APEC nos
a liberalização do comércio e aumento sig- anos seguintes à sua criação – reitera a
nificativo do intercâmbio de investimentos preocupação em torno do fortalecimento e
na região, a APEC ainda parece manter a desenvolvimento da cooperação econômica
visão estratégica que norteou sua criação em curso no Pacífico Asiático. Para isso, a
em 1989. Tanto é assim que boa parte das APEC orienta-se por determinados prin-
negociações tem sido impregnada pela cípios previstos na Declaração de Borgor
visão pragmática de questões de ordem de 1995, a saber, o da parceria igualitária,
política e militar na região e a estabilização responsabilidade compartilhada, respeito
de uma estrutura aberta e ao mesmo tempo recíproco, interesse comum e benefício
flexível para cooperação econômica entre comum. Como objetivos, a Declaração ex-
os Estados do Pacífico Asiático. pressamente estabelece (i) o fortalecimento
Essa estrutura é ajustada para que do sistema aberto do comércio multilateral,
a diversidade dos participantes possa (ii) o incremento nas relações de liberaliza-
manter a existência de um fórum inter- ção do comércio e investimento na região;
governamental de diálogos ministeriais, (iii) e a intensificação da cooperação para o
sem a pretensão, ao menos oficialmente desenvolvimento no Pacífico Asiático.74
manifestada, de constituição de uma orga- A Declaração de Borgor reconhece
nização internacional de caráter regional igualmente que o crescimento econômico
por meio de um tratado, como é o caso da dos Estados participantes estaria assen-
ASEAN. Essa estrutura flexível e aberta, tado em um “sistema aberto do comércio
porquanto não existam requisitos formais multilateral”, o qual repousa na potencial
de acessão ao bloco, parece justificar-se 73
Isso está evidente no Parágrafo 9o da Declaração
na intenção dos Estados participantes de de Borgor de 1994: “In order to facilitate and accelerate
our cooperation, we agree that APEC economies that
APEC Economic Leaders’ Declaration of
72
are ready to initiate and implement a cooperative ar-
Common Resolve, as 15 November, 1994, disponív- rangement may proceed to do so while those that are
el em: <http://www.apec.org/apec/leaders__ not yet ready to participate may join at a later date.”
declarations/1994.html>. Ver § 1 da Declaração, com 74
Ver Parágrafo 3o da Declaração de Borgor de
a seguinte passagem: “(…) to chart the future course 1994, em que os líderes econômicos da APEC reiteram:
of our economic cooperation which will enhance the “(…) APEC needs to reinforce economic cooperation in
prospects of an accelerated, balanced and equitable the Asia-Pacific region on the basis on equal partner-
economic growth not only in the Asia-Pacific region, ship, shared responsibility, mutual respect, common
but throughout the world as well”). interest, and common benefit”.

326 Revista de Informação Legislativa


liderança da APEC na região, e vem coin- dependência entre as formas de cooperação
cidir, como observado, com o próprio de- analisadas e a constituição de uma organi-
senvolvimento das negociações levadas a zação internacional nos moldes clássicos,
cabo pelos Estados Membros da OMC para i.e., uma instituição criada por Estados
a reconstrução do sistema multilateral do que mantenha estrutura orgânica, siste-
comércio.75 A APEC assumiria, como valor ma decisório baseado em procedimentos
nuclear para assentar a cooperação estabe- formais e um órgão jurisdicional ou me-
lecida em sua criação, uma “liderança dos canismo adjudicatório próprio de solução
participantes”, lançando a propaganda de de controvérsias, mas antes uma espécie de
liberalização do comércio e investimentos fórum intergovernamental organizado por
em escala mundial.76 Como será analisado, uma secretaria.
isso é um dos reflexos do chamado “regio- A lógica de criação da APEC também
nalismo aberto” no contexto asiático e ad- parece centrada nos temas do Consenso de
mite importantes conseqüências no âmbito Washington, que vêm significativamente
do sistema multilateral do comércio sob as influenciar a direção e abordagem da atu-
bases do GATT/OMC. ação dos vários pilares do sistema econô-
Em sua estrutura aberta e flexível, a mico internacional (Banco Mundial, FMI e
APEC reúne um amplo espectro de com- o GATT/OMC) durante toda a década de
petências rationae materiae nas negociações 90 e até hoje sentida entre os Estados em
entre os Estados participantes, especial- suas relações internacionais. Para além da
mente para buscar meios alternativos de retomada das premissas da Nova Ordem
implementação de políticas transnacionais, Econômica Internacional (NIEO), como
executadas por meio de redes de coopera- impregnada na retórica e prática do Direito
ção dotadas de elevado grau de efetividade. Econômico Internacional nas décadas de
Essa questão é analisada por alguns autores 70 e 8077, alguns princípios aparecem res-
como Slaughter (2004, p. 137 e ss), Van saltados como fundamentos do processo de
Temaat (1998, p. 13 e ss) e Klabers (2002, integração no Pacífico Asiático no caso do
p. 11), ao observarem os vários perfis do regionalismo proposto segundo o modelo
processo de cooperação regional no plano da APEC.
internacional, para além do campo econô- Nesse domínio, em especial, a atuação
mico ou de relações de trocas comerciais, da APEC apareceria justificada no dever
e que confluem para os objetivos gerais geral dos Estados em torno da cooperação
de integração. Nesses casos – o que é mais pelo desenvolvimento global no contexto
característico – não existe uma relação de das relações econômicas internacionais.
75
Assim, cf. Parágrafo 5o da Declaração de Borgor 77
Sobre isso, ver Resoluções 3201/VI e 3202/VI,
de 1994. Curioso observar que os Estados da APEC, da Assembléia Geral da ONU, de 1o de maio de 1974,
em Borgor, concordaram em observar, “integralmente contendo a Declaração e Programa de Ação sobre a
e sem demora”, as obrigações assumidas no âmbito criação de uma Nova Ordem Internacional (NIEO);
do então GATT 47, e a chamar a atenção dos demais Resolução 3281/XXXI, de 12 de dezembro de 1974,
Estados signatários para a importância de tal compro- estabelecendo a “Carta de Direitos Econômicos e
misso no contexto da Rodada Uruguai. Importante Deveres dos Estados”, e Resolução 3362/VII, de 16
verificar, ainda no Parágrafo 5o, a retórica ensaiada de setembro de 1975, sobre desenvolvimento e coo-
pelos Estados participantes da APEC: “Full and ac- peração econômica internacional. Tais documentos
tive participation in and support of the WTO by all endereçam as principais controvérsias entre países
APEC economies is key to our ability to lead the way desenvolvidos e em desenvolvimento quanto às
in strengthening the multilateral trading system”. negociações iniciadas no contexto do sistema constitu-
76
Cf. Parágrafo 10 da Declaracao de Borgor: “Our cional das Nações Unidas, em matéria de cooperação
goal is an ambitious one. But we are determined to econômica e desenvolvimento, e até hoje estagnadas.
demonstrate APEC’s leadership in fostering further Até hoje, o vazio instaurado pelas controvérsias nas
global trade and investment liberalization. Our goal negociações norte-sul deu margem à emergência das
entails a multiple year effort”. idéias do Consenso de Washington.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 327


Essa cooperação estimula igualmente uma da região do Pacífico Asiático não tem che-
crescente interdependência entre Estados gado à etapa de edificação de um sistema
no regionalismo, afetando importantes regional em que segurança regional e esta-
áreas como comércio, relações monetárias bilidade política sejam assegurados sem a
e financeiras, investimentos, transferência interferência factual dos Estados Unidos e
de tecnologia, regulação das atividades das sua habilidade para a manutenção de força
empresas e práticas de negociações, bem militar no contexto (HELLMANN, 1997, p.
como abastecimento de bens de primeira 70 e ss).
necessidade, energia, a proteção do meio No campo dos investimentos, a atua-
ambiente e desenvolvimento sustentável. ção da APEC parece ser significativa. Os
A coordenação de várias atividades nesses Estados participantes têm concentrado
campos poderia chegar à implementação esforços para liberalização dos fluxos de
coerente de uma ordem econômica inter- investimento intrabloco, em especial com
nacional consentânea com a realidade do a implementação dos objetivos do Plano
regionalismo.78 de Ação de Manila de 1996, sobre a adoção
Importante observar que os Estados de medidas comuns para simplificação do
participantes são muito diferentes entre si, esquema de captação e coordenação de
com níveis de desenvolvimento econômi- investimentos estrangeiros diretos na área
co justificados por diferentes motivações industrial e tecnológica. Em 2001, com a
históricas, culturais e religiosas. Boa parte adoção do Acordo de Xangai sobre o Alar-
da atuação da APEC também se reflete gamento da APEC, os Estados participantes
na atual política dos Estados Unidos no buscaram estabelecer uma plataforma de
sistema do comércio multilateral nos pi- comunicação eletrônica e meios digitais
lares do GATT/OMC rumo à construção para fortalecimento das empresas bene-
de estratégias de negociações de acordos ficiadas por uma plataforma comum de
de livre-comércio orientadas pelo bilate- investimentos.
ralismo e regionalismo. Mas o argumento
do livre-comércio não aparece como valor 3.2. Caracterização da APEC e problemas
único a moldar a cooperação no âmbito da de determinação de sua personalidade no
ASEAN. Os Estados têm-se interessado por Direito Internacional Público
resgatar debates sobre segurança e poderio Por vários fatores, o caso da APEC
militar na região. Nesse ponto em especial, parece apontar para um novo formato de
existe uma espécie de convergência por regionalismo no Pacífico Asiático, no qual
superposição de temas de negociação entre prioridade é concedida muito mais à estabi-
a ASEAN, individualmente considerada, e lização de um “fórum intergovernamental
a APEC, com seu espectro mais abrangen- de diálogos” entre Estados participantes
te.79 Parece que o gigantismo econômico do que necessariamente à constituição de
uma organização internacional. Os benefí-
78
Cf. ainda sobre o tema, princípios adotados na
Resolução da Conferência da Associação de Direito cios, em tantos momentos ressaltados nas
Internacional (ILA) realizada em 1986, em Seoul, so- Declarações dos Líderes da APEC, indicam
bre os aspectos jurídicos da Nova Ordem Econômica uma forma de “cooperação econômica
Internacional, analisados por Van Themaat (1998, p. pragmática”. Nesse contexto, são enfati-
13 e ss).
79
Como evidências desse movimento, os Estados zadas relações comunitárias e a existência
da região Ásia-Pacífico se reuniram já em 1994 no Pri- de estratégias de persuasão nas estruturas
meiro Fórum Regional da ASEAN (ARF) para discutir decisórias intergovernamentais, muito
temas de segurança e militarismo, o qual prosseguiu
em Brunei (1995) e Jacarta (1996). Consideram a neces- de confiança entre os participantes, diplomacia pre-
sidade de uma evolução em três objetivos compactos ventiva e sistema pacífico de solução de controvérsias.
para as negociações futuras, quais sejam: a construção Sobre isso, ver HIROSE, 2003, p. 239 e ss.

328 Revista de Informação Legislativa


mais do que coerção dependente da ini- No limite, a APEC teria sua base fundante
ciativa de alguns dos Estados.80 Por várias em um tratado de cooperação que estabe-
razões, existe dificuldade em se conceber lece um secretariado comum e algumas
a APEC como organização internacional estruturas permanentes, porém destituída
de caráter regional, ainda que tal “fórum de personalidade jurídica. Essas estruturas
de diálogos” entre Estados apareça impro- se constatam nos planos de ação conjunta
priamente denominado como organização dos Estados participantes, em especial
de cooperação. relativamente a políticas de investimento
O documento básico da APEC, a De- e liberalização do comércio intrabloco (Cf.
claração de Seattle de 20 de novembro MEERHAEGHE, 1998, p. 14).
1993, refere-se à instituição como o Fórum Oficialmente, os Estados participantes
de Cooperação Ásia-Pacífico. Nele estão admitem que a APEC constrói-se em um
formulados alguns princípios gerais, como espaço intergovernamental cooperativo
o reconhecimento da “interdependência de relações econômicas e comerciais mul-
econômica” entre os Estados participantes, tilaterais84, como se representada por um
e a concepção de mudança em torno de uma agrupamento de Estados, mas destituída de
“comunidade de economias” da região do personalidade jurídica de Direito Interna-
Pacífico Asiático. À luz das teorias clássicas, cional. Em grande medida, essa constatação
resta pouco claro o status da APEC entre os decorre da linguagem empregada nas De-
sujeitos do Direito Internacional Público, clarações de Líderes da APEC (Seattle/1993,
sobretudo as organizações internacionais. Borgor/1994 e os instrumentos normativos
Ela poderia ser considerada “estrutura subseqüentes). Em outra abordagem, a
para diplomacia ocasional” ou “instituição APEC poderia ser enquadrada na catego-
internacional” (KLABERS, 2002, p. 11)81, a ria das redes de redes formadas por um
exemplo do que aconteceria com o Conse- grupamento de Estados cuja estrutura re-
lho do Ártico82 e o Acordo Wassenaar sobre side fundamentalmente em uma trama de
controles de exportação de tecnologias de órgãos ministeriais nacionais, legislativos
dupla utilização e armas convencionais83. e judiciários, e que formam uma entidade
ou conjunto de Estados representados por
80
Assim, ver a leitura crítica apresentada por
DRYSDALE; ELEK, 1998, p. 42-43: “The ‘new region-
autoridades governamentais, organizada
alism’ in East Asia and the Pacific gives priority to mediante um secretariado supranacional
achieving substantive economic benefits rather than to com poderes meramente informacionais e
the construction of elaborate administrative structures de diplomacia política.
or formal international treaties. The benefits of practi-
cal economic cooperation will increase confidence and
A estrutura de funcionamento da APEC
nurture a sense of trust and a progressively wider set é bastante racionalizada, concentrando-se
of shared interests. Accordingly, community-building
has precedence over institutional-building, and per- com a segurança e estabilidade em nível regional e
suasion is preferred to compulsion”. internacional, a partir dos valores da transparência e
81
Referindo-se a “full-blown organization, frame- responsabilidade em relação à transferência de armas
work for occasional diplomacy”. convencionais, impedindo seu acúmulo injustificado
82
O Conselho do Ártico (Arctic Council) constitui- nos Estados.
se em “fórum intergovernamental” orientado para a 84
“Asia-Pacific Economic Cooperation (APEC)
abordagem comum das questões e preocupações dos operates as a cooperative, multilateral economic and
“governos e dos povos do Ártico”; é integrado pelo trade forum. It is unique in that it represents the only
Canadá, Dinamarca, Finlândia, Islândia, Noruega, intergovernmental grouping in the world committed
Suécia, Rússia e Estados Unidos. Sobre sua estrutura, to reducing trade barriers and increasing investments
ver http://www.arctic-council.org/. without requiring its members to enter into legally bind-
83
“Wassenaar Arrangement on Export Controls ing obligations. The forum succeeds by promoting dia-
for Conventional Arms and Dual-Use Goods and logue and equal respect for the views of all participants
Technologies”, de 1995, objetivando estabelecer um and making decisions based on consensus to achieve its
“novo tipo de cooperação multilateral”, contribuindo free and open trade and investment goals.”

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 329


em esfera política, esfera de trabalhos, pla- Importante ainda observar que existe uma
nos de ação, e atuação de setores da socieda- superposição de competências entre redes
de (autoridades governamentais, setores da de cooperação e organizações internacio-
indústria e serviços, academia, instituições nais no caso do Pacífico Asiático: a ASEAN,
de pesquisa) e organizações não-governa- APEC e outros Estados asiáticos estão
mentais (observadoras perante o fórum reunidos no Conselho para Cooperação
intergovernamental). Ela retrata, portanto a Econômica do Pacífico (PECC).
participação de diversos atores e não apenas A APEC também é considerada, em
dos Estados propriamente ditos. O quadro tal contexto, representante de uma das
do fórum em questão é fundamentalmente “zonas de alto grau de mundialização” no
apresentado como (i) a Reunião dos Líde- plano internacional. Com essa expressão,
res; (ii) Conselho Consultivo de Negócios pretende-se definir regiões ou blocos-
da APEC; (iii) Conferência Ministerial; (iv) regionais que representam, do ponto de
Reuniões Ministeriais Setoriais; (v) Reunião vista do sistema multilateral do comércio,
de Altos-Funcionários; (vi) Secretaria da uma concentração de intenso volume de
APEC; (vii) Comitês, entre os quais: Comitê trocas comerciais e plataformas industriais,
sobre Comércio & Investimento, Comitê de comunicação e de inovação. No limite,
Econômico (CE), Comitê Administrativo e trata-se de uma zona regional econômica
Orçamentário (CTI), Grupos Especais de Ta- e comercial ajustada às diversas vertentes
refas, Comitê sobre Cooperação Econômica da globalização (DRYSDALE; ELEK, 1997;
e Técnica, e Grupos de Trabalho. BHAGWATI, 2004).
Como instituição internacional, a APEC
poderia ser considerada muito incipiente 3.3. Princípios básicos da cooperação econômica
diante das categorias de organizações pragmática implicada no regionalismo moldado
internacionais no Direito Internacional pela APEC e percalços da institucionalização
Público clássico – problema que somente O alargamento da APEC, segundo a ló-
poderia ser contornado se houvesse um gica da Declaração de Borgor de 1994, passa
tratado entre os Estados participantes es- pela reconsideração de flexibilidade das
tabelecendo um corpo distinto de órgãos e negociações entre os Estados participantes,
competências compartilhadas em direção a partir daqueles valores que justificaram
ao fortalecimento da dimensão suprana- sua constituição em 1989, como a capacida-
cional da organização. Na perspectiva de de de consenso, confiança recíproca, além
uma “ordem internacional fragmentária”, de princípios fundantes, como da abertura,
no entanto, os agrupamentos de Estados, igualdade e evolução, os quais passaram a
sob a forma de redes de cooperação ou fó- integrar o processo normativo de coopera-
runs intergovernamentais, constatam uma ção entre Estados na região Ásia-Pacífico
categoria diferente de organização, a qual (DRYSDALE; ELEK, 1997, p. 41). Essa visão
reside, fundamentalmente: i) nas relações em muito dependeu, e continuará a depen-
horizontais entre órgãos dos Estados que a der, da influência específica da ASEAN,
formam e que detêm competências seme- sobretudo no contexto da APEC e passa
lhantes; (ii) em uma estrutura decisória, pela consideração específica de tais prin-
informacional, solidária e exclusiva; e (iii) cípios no modelo de integração regional
na atuação contida de uma secretaria supra- proposto a partir da Declaração de Borgor
nacional que coopera com as autoridades de 1994. Retomo aqui algumas distinções
domésticas, antes de com elas concorrer.85 específicas nesse sentido.
85
Esse cenário seria o que Slaughter (2004, p. 137) alth, o Sistema dos Estados Nórdicos, a APEC (Asia-
chama de “ordem internacional horizontal” fundada em Pacific Economic Cooperation), e da Organização para
redes de redes, exemplificando os casos da Commonwe- Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

330 Revista de Informação Legislativa


Princípio da abertura. A APEC, como possam responder a princípios básicos de
fórum de Estados, permanece aberta à uma futura organização e também normas
entrada de quaisquer outros Estados que substantivas sobre o processo de coopera-
mantenham relações econômicas com a ção a ser estabelecido entre os Estados par-
região e que demonstrem a intenção de ticipantes, admitindo-se o consenso como
contribuir com os objetivos econômicos valor a justificar o processo decisório.
comuns estabelecidos nas Declarações de Muito ceticismo paira sobre tal modelo.
Líderes. Daí porque parece ser requisito Apesar dos esforços e da freqüência deci-
implícito à manutenção da APEC e subse- siva com que são realizadas as Reuniões
qüente alargamento do fórum criado, que de Líderes, a APEC parece ter permane-
sua estrutura seja mantida flexível e que cido em um regionalismo “amorfo”, com
propostas para cooperação entre os parti- obrigações não discriminatórias pouco
cipantes atuais não implique discriminação atrativas para outros Estados.86 Em quase
entre outros participantes. Importante dez anos de criação da APEC, observa-se
observar que a APEC adotou expressa- uma frustração quanto à falta de efetivida-
mente, como será analisado, o princípio de das medidas empregadas pelos Estados
do “regionalismo aberto”, que imporia, à participantes para conduzir à criação de
primeira vista, o reconhecimento de uma uma organização regional no Pacífico Asi-
cooperação econômica “reciprocamente ático (RAVENHILL, 2002, p. 186). Questões
benéfica” entre os Estados. O princípio como essas permanecem à espera de novas
da abertura, por sua vez, não diz respeito formulações, como as que a seguir serão
apenas à proteção de interesses econômicos analisadas.
nas relações entre os Estados, mas parece
passar pelo gerenciamento da cooperação 4. O novo regionalismo asiático e
ampla no espaço compreendido pelos paí- noções de regionalismo aberto
ses da Ásia-Pacífico (Idem, p. 41).
Princípio da igualdade. O princípio da
4.1. Fundamentos do regionalismo aberto
igualdade também refere-se a um dos prin-
cípios fundantes da APEC e diz respeito à Os exemplos da ASEAN e da APEC,
equalização dos poderes de representação pela diversidade metodológica com que
no fórum intergovernamental. À medida podem ser analisados, apresentam pontos
que se eleva a importância econômica dos em comum e levam à constatação de novas
Estados participantes, mudanças na in- vertentes no regionalismo clássico e um
fluência política intrabloco também serão apelo para reconsideração das teorias da
sentidas. Uma das saídas legitimamente integração. Fala-se aqui em “novo regio-
democráticas, nesse contexto, seria evitar nalismo asiático”. Em destaque no início
uma correlação entre o poderio econômico do século XXI, a região do Pacífico Asiático
do Estado participante à representativida- veio assistindo à multiplicação dos acordos
de no fórum e à capacidade de definir a preferenciais de comércio, de caráter bila-
agenda de negociações e os resultados da teral, regional ou trans-regional. Os fatores
diplomacia econômica dos países da região identificados, em geral, apontam para as
Ásia-Pacífico (Ibidem, p. 42). crises dos mercados asiáticos de 97, a pró-
Princípio da institucionalização evolutiva.
Trata-se do reconhecimento da necessidade 86
Cf., criticamente, POMFRET (1998, p. 147), ob-
de institucionalização gradual e pragmática servando que: “Despite the high-level attendees at this
and subsequent annual summits in Indonesia (1994)
do fórum intergovernamental criado. Tal and Japan (1995), APEC has remained rather amor-
processo compreende o adensamento de phous with its commitment to non-discriminatory
juridicidade dos acordos e tratados que ‘open regionalism’”.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 331


pria fragmentação do sistema multilateral específica com a instituição de uma organi-
do comércio, a concorrência pela formação zação internacional. Na primeira Reunião
dos blocos regionais numa nova tendência em Camberra, em 1980, 11 Estados do
do regionalismo e a globalização econômica Pacífico Asiático criaram a PECC a partir
– como fenômeno unitário que representa. do “I Pacific Community Seminar”, entre
Como observei no contexto de emergência os quais: Austrália, Canadá, Indonésia, Ma-
da APEC, o “regionalismo aberto” pa- lásia, Japão, Coréia do Sul, Nova Zelândia,
rece indicar um dos valores fundantes a Filipinas, Tailândia, Cingapura, Estados
justificar tendências novidadeiras para a Unidos, Papua Nova Guiné, Ilhas Fiji e
integração regional no Pacífico Asiático. Tonga. As delegações eram formadas de au-
Trata-se, inclusive, do reconhecimento de toridades do governo, líderes empresariais e
que teoria e prática associadas ao Direito de membros da academia, além de funcionários
Integração têm passado por um período de do Banco Asiático de Desenvolvimento. A
transformação de paradigmas.87 PECC se consolidou como rede de caráter
O novo regionalismo é expressão utili- regional, caracterizada pela independência e
zada para identificar formas que superam orientada para cooperação econômica entre
os modelos clássicos de integração regional, os participantes e proposta de integração
deduzidos dentro da lógica normativa gradual de mercados domésticos. A PECC
do Artigo XXIV do antigo GATT 47 e in- reivindica para si a constituição de um
corporado no GATT 94, como exceção ao “fórum informal regional” para tratar de
princípio da não-discriminação no sistema questões econômicas dos participantes, com
do comércio multilateral; operativamente, medidas livres da ingerência de políticas go-
creio que seja uma noção a designar ten- vernamentais, além da valorização de proce-
dências de cooperação regional no cenário dimentos informais e órgãos transnacionais
mundial, especialmente nas duas últimas envolvendo instituições de pesquisa.88
décadas. O novo regionalismo direciona-se Nas Conferências da PECC, os partici-
pela inserção dos Estados na ordem econô- pantes apontavam para premissas comuns
mica internacional a partir de programas, da cooperação econômica na região. Entre
estratégias e blocos, e não, necessariamente, elas havia a necessidade contínua de evitar
justificado por um valor único, qual seja, o controvérsias militares e de segurança, a
de liberalização dos fluxos de comércio e partir da criação de um “sentimento co-
acesso a mercados. É importante ressaltar munitário” geral, sem ameaça à paz. Os
que essa nova retórica de análise da integra- Estados participantes acreditavam que
ção regional e cooperação econômica entre os acordos já existentes, bilaterais e regio-
Estados não está livre de críticas e inconsis- nais, de cooperação econômica e acordos
tências. Suas idéias centrais e instituições preferenciais de comércio, não seriam pre-
parecem ser também não apropriadas judicados com a conclusão de quaisquer
para determinadas formas de cooperação outros novos acordos regionais celebrado
econômica entre Estados. entre eles, mas antes, seriam vistos como
A idéia central sobre o “regionalismo complementares. Em tal concepção de
aberto” aparecia muito evidente no curso “regionalismo aberto”, são reconhecidos o
das negociações levadas a cabo nas Con- envolvimento e o estreitamento institucio-
ferências para Cooperação Econômica do nal entre governos, setores da academia,
Pacífico de 1978 e 1980, quando países da empresas, organizações da sociedade civil,
região buscavam assentar propostas espe- além da desnecessidade de institucionali-
cíficas para integração, sem preocupação
88
Sobre isso, ver descrição detalhada em: <http://
Cf. fundamentalmente importantes estudos de
87
www.pecc.org/statements.htm>. Acesso em: 5 jul.
JAYASURIYA, 2004, p. 1 e ss. 2006.

332 Revista de Informação Legislativa


zação de organizações sob estruturas deci- dos Estados do Pacífico Asiático, e “comple-
sórias burocráticas. Os Estados deveriam mentar” ao sistema multilateral do comércio
concentrar esforços de negociações em do GATT/OMC. De acordo com o texto da
áreas de interesse recíproco e reconhecer Declaração, algumas premissas podem ser
que mecanismos adjudicatórios de solução aqui reformuladas. Primeiramente, o com-
de controvérsias (e.g. a constituição de um promisso por um modelo de regionalismo
tribunal ou órgão jurisdicional comum) aberto permitiria levar a região a avanços
podem ser de difícil implementação em significativos e contribuições para um “sis-
áreas sensíveis quando os litígios entre eles tema econômico internacional muito mais
fossem endereçados em fóruns de discus- efetivo”. Em segundo lugar, a eliminação
são periódicos. das barreiras ao livre-comércio deveria
O “regionalismo aberto” posiciona os considerar os diferentes estágios de desen-
compromissos de liberalização dos fluxos volvimento dos países. O caminho rumo à
intrabloco de comércio de bens, serviços e liberalização dos fluxos de comércio deveria
tecnologias. Esse seria um “objetivo futuro” ser estruturado por acordos sub-regionais e
dos Estados participantes, os quais, por meio trans-regionais. Por fim, com vistas à manu-
de tratados e acordos, chegariam à adoção tenção do ímpeto de crescimento, a região
de normas substantivas relacionadas à im- deve buscar políticas públicas comuns para
plementação de obrigações recíprocas em fortalecimento do dinamismo econômico.
intervalos gradativos (“integração gradual Outras abordagens sobre o regionalismo
e prospectiva”) no processo de integração. aberto no contexto de integração do Pacífico
A noção analisada reconhece a composição Asiático também foram estabelecidas pos-
estrutural de blocos regionais por Estados teriormente, como na Quinta Reunião Mi-
em diferentes estágios de desenvolvimento, nisterial de Seattle da APEC, em novembro
em momentos distintos daqueles modelos de 1993, quando os Estados participantes
clássicos de integração regional que pres- adotaram a Declaração sobre a Estrutura
supõem especificamente o nivelamento das de Cooperação Econômica e Investimentos
economias domésticas e harmonização nor- na Ásia-Pacífico.90 O instrumento ressalta a
mativa. Sobre isso, o caso da União Européia necessidade de as Partes trabalharem sob as
seria o exemplo mais acabado. Do ponto de bases da APEC “rumo ao desenvolvimento
vista estrutural, a integração pelo regiona- do regionalismo aberto” e interdependên-
lismo aberto ocorre por meio da interseção cia econômica orientada pelo mercado na
de órgãos estatais, regionais e redes, como região. Os Estados participantes reconhe-
é o caso específico da APEC, baseado em ciam ainda a necessidade de desenvolver
objetivos de crescimento e desenvolvimento um papel mundial para a APEC como um
regional a partir de um fórum de discussões fórum de Estados que funciona com base no
intergovernamental estruturado sob uma consenso. A nota distintiva, nesse contexto,
secretaria comum (MAULL; WANANDI; dar-se-ia pelo regionalismo aberto e com-
SEGAL, 1998, p. 84). prometimento em relação ao fortalecimento
A Declaração de São Francisco sobre o do sistema multilateral do comércio sob as
Regionalismo Aberto de 199289 aprofundou bases do GATT/OMC.91
algumas das idéias em torno do conceito 90
APEC, Declaration on an Asia Pacific Economic
analisado. A “abertura” da região seria um Cooperation Trade and Investment Framework, dis-
dos fatores para o dinamismo econômico ponível em: <http://www.apec.org/apec/ministe-
rial_statements/annual_ministerial/1993_5th_apec_
89
PECC, San Francisco Declaration on Open Re- ministerial>. (Fifth APEC Ministerial Meeting Seattle,
gionalism of 1992: A Pacific Model for Global Economic Washington/USA, 17-19 November 1993).
Cooperation, disponível em: <http://www.pecc.org/ 91
Ver os consideranda da Declaração: “1. Deter-
statements/GM/92-SanFranIX.html>. mined to work through APEC toward the further

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 333


O novo regionalismo no Pacífico Asiático tos (políticos e diplomáticos). Esses seriam
se explica, igualmente, a partir das bases do os casos dos fóruns regionais intergoverna-
Consenso de Washington, quando, especi- mentais. No caso da integração regional no
ficamente, modelos de integração regional Pacífico Asiático, existe uma preocupação
passam a enfatizar a liberalização desenfre- dos Estados implicados em relação aos
ada do comércio internacional e expansão efeitos refratários da crise asiática, o futuro
de mercados (fundamentalmente os casos das negociações multilaterais no domínio
do Acordo NAFTA e a União Européia) e a do GATT/OMC, a emergência da China
idéia de que o desenvolvimento institucional e a mentalidade visionária de projetos de
nesses processos deva ser dependente e coor- regionalismo bem distanciados dos mo-
denado por respostas racionais e funcionais delos clássicos de integração e cooperação
dos Estados envolvidos. Essa racionalidade regional. O regionalismo aberto, ora super
permanece extremamente problemática, já qualificado, aparece como uma “variante
que subestima, em certa medida, a relevância asiática” do novo regionalismo da década
de diferentes tipos de projetos políticos ado- de 90 e que se desenvolve no século XXI em
tados individualmente dentro dos Estados plena expansão (Idem, p. 2-3).92
e a real extensão dos efeitos do processo de O quadro de integração regional preten-
integração sobre os ordenamentos jurídicos dido pelos Estados participantes da APEC,
domésticos (aqui compreendidos entre ainda que pouco revestido de normati-
instituições e leis internas), decorrentes da vidade, tem sido um ingrediente crucial
aceitação de determinadas estratégias de para a economia asiática. O regionalismo
regionalismo (JAYASURIYA, 2004, p. 2). aberto tem sido possível graças a estruturas
O novo regionalismo asiático parece flexíveis dentro de uma nova “política eco-
ser igualmente um “regionalismo multi- nômica internacional”. O cenário regional
dimensional”, especialmente porque os foi sendo assimilado à turbulência nos
Estados – ainda como sujeitos clássicos do mercados financeiros, circulação de capital
Direito Internacional Público e, portanto, especulativo, fixação dos câmbios locais e
potenciais endereçados de direitos e obri- paridade com o dólar norte-americano e a
gações resultantes de tratados e conven- proteção de investimentos diretos advindos
ções que celebrem – passam a atuar em do Japão, com nítido movimento de influxo
várias “frentes” rumo à criação de novas nas últimas décadas. Nesse ambiente, o
organizações internacionais de cooperação regionalismo aberto aparece não apenas
econômica e blocos regionais. Em algumas como uma vertente da integração, mas tam-
dessas frentes, eles optam por ampliar, bém um processo dinâmico cujo controle
quantitativa e qualitativamente, espaços é moldado por constelações particulares
institucionalizados para solução de confli- de fatores domésticos e internacionais
(Ibidem, p. 5).93 O papel do Direito de In-
development of open regionalism and market-driven
economic interdependence in the Asia Pacific region;
tegração, como domínio especializado do
2. Challenged their desire to capitalize upon the strong Direito Internacional, seria o de absorver
and dynamic growth in regional trade and investment essa realidade tão particular.
through increased cooperation and facilitation; 3.
Recognizing that GATT principles are the cornerstone 92
Mencionando especificamente a existência, no
of the multilateral, international trading system and caso da APEC, de um “projeto político mais ou menos
the basis for economic cooperation in APEC, and coerente de governança regional”.
remaining committed to those principles; 4. Mutually 93
Referindo-se à seguinte passagem: “the im-
determined to develop APEC’s global role as a forum portance of conceptualizing regionalism not as some
operating through consultation and by consensus, inexorable process of regional economic integration,
distinguished by open regionalism and committed to but as a dynamic process whose governance is shaped
the strengthening of the multilateral trading system by particular constellations of domestic and interna-
embodied by GATT (…).” tional forces”.

334 Revista de Informação Legislativa


O projeto do novo regionalismo asiá- Em seu impulso por institucionaliza-
tico apresenta-se como uma estratégia de ção, o regionalismo aberto aponta para a
liberalização do comércio internacional existência de vários sujeitos envolvidos,
ora aproximada, ora distanciada das ne- os quais, no Direito Internacional Público
gociações multilaterais do GATT/OMC, clássico, não ficariam restritos às figuras
e caracteriza-se pela presença de um dos estados e organizações internacionais,
conjunto de estruturas informais e não de como endereçados de normas e responsabi-
um adensamento de juridicidade. Ele está lidades. Pode ir mais além daquele cenário
centrado no surgimento de uma forma de que compreende sujeitos de outras esferas
mercantilismo que influi de sobremaneira de poder (e conseqüentemente competên-
na compreensão do comércio internacional, cias), tais como empresas transnacionais,
distinguindo-se entre setores submetidos e lobbies, grupos de interesse, organizações
os não submetidos às relações econômicas intergovernamentais, organizações não
entre Estados, vale dizer, relações econô- governamentais, em direção à criação de
micas internacionais neomercantilistas coalizões dominantes nas negociações, a
(JAYASURIYA, 2004, p. 22). partir de estruturas flexíveis e caracteriza-
O caso do regionalismo aberto também das por objetivos graduais de cooperação
indica uma estratégia de liberalização unila- (e não necessariamente integração).
teral do fluxo de comércio de bens, serviços
e tecnologias, contando com uma extensão 4.2. Regionalismo concorrencial
limitada de benefícios para Estados não A idéia de um “regionalismo concor-
participantes da APEC baseada no princípio rencial” deriva imediatamente da concep-
da não discriminação e cláusula da nação ção analisada de regionalismo aberto, em
mais favorecida decorrentes da sistemática particular no que diz respeito à abertura
do GATT/OMC. A ASEAN está igualmente dos processos de cooperação econômica
incluída nessa estrutura, uma vez que seus e integração regional estruturados sob a
Estados Membros são participantes da recente experiência dos Estados do Pacífico
APEC. Uma das justificativas reside, justa- Asiático quanto a APEC. No campo das re-
mente, no fato de que um maior acesso ao lações internacionais e do direito econômi-
comércio dentro da região do Pacífico Asiá- co internacional, a noção de regionalismo
tico – pelo volume de negócios e contingente concorrencial estaria próxima ao ideário li-
humano – poderia elevar os efeitos positivos beral preconizado por Friedrich von Hayek
do comércio internacional, projetando os (2002, p. 9 e ss), quando o autor afirma que
Estados sobre outros blocos regionais e a concorrência nos mercados é “processo de
países a partir da aplicação da cláusula da descoberta” encetada pelos agentes econô-
nação mais favorecida (Idem).94 micos. No estudo do regionalismo aberto,
94
A noção “regionalismo por blocos”, muito essa competição aparece claramente na in-
aproximada ao de regionalismo aberto, está muitas teração das decisões dos Estados em aderir
vezes justificada na idéia de que a liberalização do a acordos de livre comércio mais eficientes
comércio internacional a partir de estratégias uni- dentro de um quadro amplo de alternati-
laterais dos Estados não é efetiva. Para aqueles não
participantes da APEC, haveria apenas benefícios se vas impostas. Essa decisão surge após um
eles se apoiassem em suas agendas domésticas de libe- processo de experimentação dos objetivos,
ralização. Para alcançar benefícios da liberalização do
comércio, a APEC teria que fazer concessões para não Estados envolvidos, e o fato de que significativa fração
participantes, especialmente pelo volume das trocas do volume de comércio no Pacífico Asiático é inter-
em seus mercados. A formação de um bloco como esse, regional (excluindo os Estados Unidos) e não intra-
no entanto, não parece ser viável do ponto de vista regional. Do ponto de vista político, o fortalecimento
político e econômico: de um lado, existe uma grande do NAFTA retardaria maiores avanços da integração
diferença entre os níveis de desenvolvimento entre os regional promovida pela APEC isoladamente.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 335


interesses comuns e melhores habilidades nivelados a formas já estabilizadas de inte-
de cada um dos Estados envolvidos em de- gração segundo os modelos clássicos, como
terminado processo de integração. A partir seria o próprio caso do NAFTA e da União
desse processo de descoberta, o número de Européia. Isso é mais uma conseqüência
adesões ou de procura em torno de um de- lógica da estrutura normativa do Artigo
terminado acordo preferencial de comércio XXIV do GATT.
determinará o êxito da constituição de um No caso asiático, o Acordo de Livre Co-
bloco regional, fundado na maior ou menor mércio entre a ASEAN a China, o ACFTA
institucionalização. é um bom exemplo de convergência em
Algumas premissas são desenvolvidas torno do regionalismo concorrencial. As
pelos autores em torno do regionalismo reformas levadas a cabo pelos países nos se-
concorrencial. A integração regional servi- tores econômicos e financeiros resultaram
ria de estratégia, para países em desenvol- em uma agenda de integração regional, na
vimento, de inserção e acesso a mercados, qual um dos Estados envolvidos, no caso,
com vistas ao crescimento econômico a China, acaba por assumir um papel de
das partes envolvidas. Blocos regionais relevo. As relações chinesas privilegiaram
competitivos não buscariam avançar nas apenas recentemente a conclusão de acor-
etapas de integração clássicas (zona de livre dos de parceira econômica, como no caso
comércio, uniões aduaneiras e mercados co- específico de Hong-Kong e Macau, além
muns), mas antes o fortalecimento de redes do Acordo Quadro com a ASEAN para a
a partir do poder dos Estados nacionais. Os constituição de uma área de livre comércio.
elementos culturais envolvidos poderiam Como analisado, a dimensão do que seria
ser aproveitados para acelerar o processo esse modelo de regionalismo após a entrada
de integração e manter a solidariedade in- em vigor do Acordo que institui a ACFTA
terna da estrutura criada (papel do capital alcança maiores projeções do que o NAF-
social implicado no processo de integração, TA e a União Européia individualmente
com a participação de vários atores: go- considerados.
verno, academia, empresas, organizações Parece que a exceção ao princípio da
da sociedade civil, lobbies etc.); trata-se de não-discriminação, como um dos meca-
“estratégia de regionalismo” interessada nismos normativos do GATT/OMC, ao
em estabelecer esferas de influência nas legitimar formas de regionalismo também
negociações do comércio multitateral (Cf. levou à consolidação de um emaranhado
SCHOTT, 2004, p. 25; UNCTAD, 2005). de tratados e acordos paralelamente à
Os efeitos do regionalismo concorren- estrutura normativa principal do sistema
cial aparecem igualmente questionados, já multilateral do comércio; estes têm apro-
que a inserção de uma enorme quantidade fundado o grau de normatividade das áreas
de acordos preferenciais de comércio, bila- co-relatas, tais como barreiras tarifárias
terais e regionais, no sistema multilateral e não tarifárias, liberalização de serviços
do comércio conduzido pela OMC, sob os e investimentos, proteção de direitos de
critérios normativos previstos no Artigo propriedade intelectual, regras de origem,
XXIV do GATT 94 e Artigo V do GATS, regulamentação da atividade industrial e
poderia acentuar a divisão do cenário in- fiscalização sanitária pelos Estados. Os efei-
ternacional em blocos que competem entre tos desses acordos, se efetivamente criam
si pela maior ou menor unidade. Cria-se desvios ou distorções ao livre comércio,
uma lógica hostil em que vantagens são poderiam ainda elevar encargos adminis-
concedidas apenas a alguns Estados, jus- trativos para os Estados e para empresas ex-
tamente aqueles que melhor respondem à portadoras, sem mencionar a oportunidade
dinâmica do regionalismo concorrencial, para corrupção. Com efeito, o regionalismo

336 Revista de Informação Legislativa


concorrencial vai aos poucos preparando teria vantagens em propor um maior núme-
um espaço em que determinados Estados ro de acordos preferenciais como reflexo de
estão inseridos em processos de integração uma maior ou menor aptidão em perceber
regional e outros ficam de fora. Cada um as “oportunidades decorrentes da liberali-
em sua própria lógica, eles também se zação dos fluxos do comércio internacio-
excluem e são incluídos simultaneamente. nal” (Cf. FRANKEL, 1997, p. 220).96
Preferências ou vantagens a alguns Estados No caso do Pacífico Asiático, por exem-
concedidas tornam-se desvantagens para plo, os Estados formariam uma somatória
outros (SCHOTT, 2004, p. 25).95 das economias domésticas cujo significado
prático alcança parcela significativa da
4.3. Liberalização competitiva economia mundial. A partir dela, sendo
A noção de “liberalização competitiva” proposta flexível e aberta para constituição
deve ser entendida no contexto do multi- de um bloco regional (mediante fórum
lateralismo e efeito imediato da expansão intergovernamental), pressionariam ou-
dos acordos regionais de livre-comércio tros Estados à acessão ou a constituição
no plano internacional. Pioneiramente, de organizações regionais de coopera-
estudos de Bergsten (1996, p. 13 e ss; ção. Não haveria, necessariamente, uma
1997, p. 10 e ss) sustentam que os acordos liberalização unilateral ou regional, mas
preferenciais podem desencadear uma antes a formação de um substrato para o
onda geral de liberalização do comércio multilateralismo, já que os Estados ficariam
em direção a um livre comércio mundial, mais atentos a todas as fases da integração
especialmente porque os Estados estariam regional de que eles não fossem parte, e
mais suscetíveis a concorrer pelos melhores passariam, com isso, a compor coalizões
acordos com outros Estados, seja regionais, (Idem, p. 221). Nessa lógica, acredita-se ain-
seja bilaterais. A liberalização competitiva, da que, diante da liberalização competitiva,
nesse sentido, levaria a uma maior abertura acordos preferenciais seriam mais arrojados
dos mercados domésticos, proporcionada para a eliminação das barreiras tarifárias
pela acessão dos países envolvidos aos e não tarifárias ao comércio internacional
blocos regionais mais eficientes e adesão a e, por isso, impulsionariam as negociações
novos acordos de livre comércio. Isso seria multilaterais, ampliando reformas liberali-
explicado pelo receio de os Estados serem zantes nos Estados.
deixados de lado ou de fora de um deter- A “liberalização competitiva” não
minado processo de integração regional pode ser ignorada como um importante
(BERGSTEN, 1996, p. 13). paradigma justificando a racionalidade de
Por outro lado, o liberalismo competiti- acordos preferenciais de comércio, enquan-
vo, para além dos efeitos que manifesta no to também venha-se justapor ao sistema
plano do Direito Econômico Internacional, multilateral do comércio centrado. Aqui
aparece como ímpeto e discurso diplomáti- nesse caso, existe uma concorrência entre
cos para negociações de acordos preferen- obrigações de tratados que vinculam Esta-
ciais de comércio. A própria APEC é um dos, desde aquele contexto que Nettesheim
bom exemplo. Os Estados participantes (2000, p. 145 e ss) denomina de “aparência
reconhecem, no contexto do regionalismo de ordenamento internacional econômico”,
aberto, que o processo de concorrência en-
96
Relacionando o “liberalismo competitivo” no
tre acordos regionais e multilaterais levaria
comércio internacional com a teoria dos jogos. O
a uma coalizão de vencedores; cada Estado autor ressalta a inadequação dessa análise, em espe-
cial pela impropriedade em se comparar estruturas
95
“Preferences granted to some are handicap econômicas com abordagens de estratégia no contexto
imposed to others”. do regionalismo.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 337


referindo-se à OMC, e os compromissos tarifas preferenciais, subsídios e complexas
assumidos em acordos bilaterais e regionais regras de origem, que, no limite, pres-
de livre comércio, numa manifestação mais suporiam o protecionismo da indústria
remota da experiência na evolução histórica doméstica norte-americana (Cf. SCHOTT,
do Direito Internacional. 1996, p. 20). Ora, nessa concepção, a prédica
De fato, tanto a dimensão como a com- examinada em nada complementa o siste-
plexidade desses acordos preferenciais, na ma multilateral do comércio sob as bases do
lógica que molda a “liberalização competi- GATT/OMC. Pelo contrário, ela prejudica a
tiva”, também reabrem as questões de saber evolução de processos de cooperação e inte-
se o regionalismo estaria contido ou não gração regional efetivamente fundados em
no sistema multilateral do comércio. Não estruturas constitucionais mínimas (como
somente pelo fato de os acordos discrimi- poderia ser o caso da ALCA, por exemplo)
narem positivamente Estados não-partes e se entrechoca com o desenvolvimento das
– ainda que sob o rótulo do Artigo XXIV instituições do sistema GATT/OMC. Um
do GATT 94 eles possam ser de outro modo modelo como esse não seria desejável.
classificados – como por compreender nor-
mas cuja incompatibilidade/incoerência 4.4. Identidade asiática
com o sistema multilateral seria de difícil Outro fator para o estabelecimento do
constatação pelos mecanismos estabele- regionalismo aberto na Ásia foi justamente
cidos. 97 Ainda que essas normas sejam a criação de uma “identidade asiática”,
elementares (fundantes) para assegurar a ancorada na solidaderiedade e objetivos
implementação das obrigações assumidas de estabilidade e paz regionais implicadas
entre os Estados relativamente ao comércio na cooperação entre Estados. O exemplo da
preferencial intrabloco, elas poderiam che- ASEAN, como analisado, parece apontar
gar a elevar custos de transação para todos para essa constatação. Os Estados Membros
os envolvidos – Estados partes e não-parte entendiam, como consenso, o reconheci-
–, em especial pela criação de barreiras de mento da integração econômica regional
acesso aos mercados e os retrocessos em como componente de uma “integração
direção ao protecionismo das indústrias econômica internacional”, orientadas pelo
domésticas. processo de inserção desses Estados no
Aqui caberia uma reflexão ainda mais mercado global. Por muito tempo, essa
profunda. Casos como o do NAFTA, por identidade asiática foi vista como reação
exemplo, ilustram a difícil questão de sa- dos países contra a ingerência dos Estados
ber se o “liberalismo competitivo” levaria Unidos na região; mas sua noção é um exer-
mesmo, no limite, a uma ampla adesão dos cício de reflexão, vista pela literatura como
Estados do continente americano ao bloco uma expressão de considerar a intrusão de
ou ampliação do mesmo, como propõe ser valores morais e políticos ocidentais no con-
a constituição da Área de Livre Comércio texto asiático, sem rejeitar, por outro lado,
das Américas (ALCA). Ou se, de outro os aspectos dinâmicos da modernização
lado, tal “liberalização competitiva” não econômica-tecnológica que reorientaram
serviria para a manutenção de um acordo as instituições domésticas nesses Estados
preferencial de comércio mais compacto (HIGGOTT, 1998, p. 42-68).
e ancorado em um regime específico de A identidade asiática no regionalismo
também parece apontar para um movimen-
97
Bastaria observar o tormentoso trabalho do to de integração de Estados para a formação
Comitê sobre Acordos Regionais da OMC, sem chegar
a muitas análises em relação a acordos preferenciais
de coalizões políticas em negociações in-
especificamente sensíveis no contexto do sistema ternacionais, especialmente como ocorreu,
multilateral. de sobremaneira, na Rodada Uruguai do

338 Revista de Informação Legislativa


GATT/OMC. Membros da ASEAN estavam vo. Não apenas essas políticas domésticas
conjuntamente alinhados para firmar uma seriam divergentes do padrão eurocen-
posição de bloco nas negociações comerciais trista e pragmático norte-americano. A
multilaterais e alcançar benefícios gerais identidade asiática também vem de uma
com a liberalização do comércio, a partir de percepção de que as soluções oferecidas
um discurso mais alinhado com os efeitos pelos países desenvolvidos eram pouco
criativos decorrentes da criação da Área de efetivas e satisfatórias e que seus modelos
Livre Comércio da ASEAN (AFTA). de políticas governamentais eram muito
Outra contra-evidência da influência oportunistas, centradas apenas na conten-
da “identidade asiática” no regionalismo ção das calamidades (de todas as ordens,
foi a possível formação de uma chamada como as crises financeiras, colapsos na rede
“blindagem regional”, em resposta a futu- de saúde pública, desastres naturais) para
ros sintomas de crise no mercado financeiro estabelecer coercitivamente uma agenda
internacional, a exemplo do que ocorrera nem um pouco bem-vinda de reformas
inicialmente com a Tailândia em 1997 (RAVENHILL, 2002, p. 212).
(BHAGWATI, 2004). Esse contexto reiterou A identidade asiática também formula
as percepções de muitos Estados asiáticos as políticas regionais de cooperação, avan-
de que suas prioridades divergiam em çando a temas que tocam conjuntamente
muito daquelas estabelecidas nas experi- a ASEAN e a APEC. Na Terceira Cúpula
ências de integração regional do Ocidente da ASEAN Plus Three de 1999, em Manila,
(exatamente a União Européia e o NAFTA), China, Japão e Coréia do Sul estariam aptos
além dos modelos de ajustamento das a desenvolver um plano comum de coope-
instituições domésticas e reformas liberais ração nas áreas de comércio, investimentos,
propostas pelo Banco Mundial e o Fundo coordenação financeira e monetária, transfe-
Monetário Internacional. rência de tecnologia e intercâmbio científico
Na visão asiática, haveria um certo entre os Estados (Cf. SUDO, 2001, p. 116).
ressentimento em relação aos Estados
Unidos e União Européia pela simplicida-
5. Perspectiva geral do regionalismo no
de com que a crise asiática foi resolvida,
em especial pelas culpas e retrocessos. A
Pacífico Asiático e as novas tendências
identidade asiática não seria compatível A crise asiática de 1997, para além de
com a lógica explicando a origem das crises ter chamado a atenção dos Estados da
de 1997. Enquanto aqueles culpavam os ASEAN e da APEC quanto à necessidade
governos asiáticos pela falta de instituições de fortalecimento institucional dos blocos,
e políticas governamentais adequadas ao transformou a realidade da cooperação
sistema financeiro internacional, os Esta- econômica na região do Pacífico Asiático. A
dos da região, em especial os Membros da interdependência econômica entre os Esta-
ASEAN prejudicados, entendiam justa- dos, já constatada na velocidade com que a
mente que essa origem estaria nos fluxos crise financeira dos mercados da Tailândia,
de capital especulativo de curto prazo Filipinas e Indonésia havia-se difundido
que inundavam os mercados asiáticos, na região, criou um ambiente criativo em
diretamente de investidores de grandes relação à cooperação, que passou a ser uma
conglomerados empresariais e governos do resposta preventiva as crises futuras que os
Ocidente. Diferentemente, os Estados asi- países asiáticos pudessem enfrentar. Além
áticos, na conformação de tal “blindagem do caso específico da ACFTA, Estados da
regional” preferiram optar por enfatizar a ASEAN concluíram acordos bilaterais de
necessidade de assistência internacional e livre comércio com outros países, tais como
controle dos fluxos de capital especulati- Japão, Coréia do Sul, Chile, Estados Unidos,

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 339


Austrália e Nova Zelândia. Esses são desa- sistemas de cooperação regional no Pacífico
fios que se apresentam no regionalismo do Asiático. Em 2004, os Estados Membros
Pacífico Asiático. da ASEAN, alguns Estados participantes
A questão da proliferação de acordos da APEC, Japão, China e Coréia buscaram
de livre comércio na região tem atraído a alicerçar um movimento de integração
atenção de vários autores, dividindo-se regional a partir de um amplo acordo de
entre uma crítica favorável, de um lado, e a cooperação nas áreas política, econômica,
rejeição parcial com relação aos potenciais social, segurança regional e financeira.
benefícios trazidos por tais negociações à Um dos problemas enfrentados estaria
própria continuidade da ASEAN. O mesmo justamente na abordagem conduzida pela
se estende ao questionamento da compatibi- China e o Japão para o futuro regionalismo
lidade de tais acordos com o sistema multila- asiático e que resume diferentes visões em
teral do comércio do GATT/OMC (CHASE, torno da “identidade asiática” formulada
2006, p. 1-30). De um lado está o reconhe- no contexto da ASEAN (RAVENHILL,
cimento de uma “identidade do Sudeste 2002, p. 211).
Asiático” como paradigma de um novo re- Os resultados do ASEAN Plus Three são
gionalismo fundado em uma abordagem da ainda pouco previsíveis, mas apontam, do
“multiplicidade de vias” ou alternativas, ao ponto de vista do Direito Internacional,
contrário da tradicional concepção unitária para a comunitarização das instituições no
do regionalismo confrontado com o sistema Pacífico Asiático, em especial pela super-
multilateral do comércio.98 posição de competências entre os blocos
Questiona-se se haveria hoje um con- agregados, criação de uma grande zona de
senso geral de que o regionalismo, ao livre comércio compreendendo a totalidade
menos como desenhado no contexto do dos Estados da região e a criação de um
Pacífico Asiático, poderia apresentar-se Fundo Monetário Asiático (Idem).101
como “complementar” ao Sistema GATT/ Outras alternativas também aparecem
OMC, e conducente à criação de um bloco mais claras. A consolidação do bloco regio-
regional voltado para coesão nas negocia- nal a partir da implementação dos objetivos
ções multilaterais, dotado de legitimidade do futuro Acordo ACFTA, entre ASEAN e
com relação aos Estados integrantes. Seria China, poderia compreender ainda Macau
ainda precoce afirmar que a proliferação de e Hong Kong, além do possível ingresso
acordos regionais no Sudeste Asiático leva- de Taiwan, pelas afinidades culturais e
ria à criação de um único bloco regional. Há comerciais hoje existentes entre os países.
no entanto casos específicos que podem ser Outro bloco seria aquele integrado por
assim estabelecidos: o bloco formado pelo Japão e Estados da ASEAN, a partir da
Acordo ACFTA99; o bloco ASEAN-Japão; e existência do Acordo de Livre Comércio
um terceiro, ASEAN-Coréia do Sul. concluído com Cingapura. Finalmente,
Um quarto bloco regional, mais amplo, um terceiro seria aquele conduzido pela
resultaria da adoção definitiva, do Acordo Coréia, também com relação ao Acordo de
“ASEAN Plus Three”100, congregando sub- Livre Comércio estabelecido com o Japão,
atraindo a atenção da ASEAN, ou centrado
98
A referência aqui é feita à contraposição entre em Cingapura apenas (daí a criação de um
o “single-track approach” e “multi-track approach”, Acordo Japão-Coréia-Cingapura.
analisado por Won-Mog-Choi (2003, p. 50).
99
Cf. item 2.6.2. A implementação do Acordo de
O quadro a seguir resume algumas das
Livre Comércio entre ASEAN e China (ACFTA) supra, perspectivas do regionalismo em curso no
sobre o Acordo de livre-comércio ASEAN-China. Pacifico Asiático.
100
A evolução das negociações pode ser consul-
tada em: <http://www.aseansec.org/16580.htm>. 101
Mencionando a existência de um “new sense of
Acesso em: 10 jul. 2006. communal identity among Asian countries”.

340 Revista de Informação Legislativa


Etapa/Período Acordos Objetivos e Princípios Paradigmas

Objetivos político-militares,
Guerra Fria; Direito
manutenção da paz e
Internacional da
Velho regionalismo SEATO, ASEAN estabilidade regionais, criação
Coexistência; abordagem
(1954 – década 70) (estrutura original) de coalizões e alianças entre
realista nas Relações
Estados Unidos, ONU e os
Internacionais
Estados da região

Princípio da abertura,
cooperação industrial e
Consenso de
coordenação de investimentos,
Washington; integração
Novo Regionalismo criação de redes de
PECC, APEC, ARF, de mercados; Direito
(década de 80 até organizações (OI’s ONG’s e
ASEAN (alargamento) Internacional da
hoje) governos), acordos regionais de
Cooperação Econômica
livre-comércio e trans-regionais;
e do Desenvolvimento
regionalismo concorrencial e
liberalização competitiva,

Inter-regionalismo, sub- Militarismo econômico;


Segundo Novo
APT (ASEAN Plus regionalismo, convergência gerenciamento regional;
Regionalismo
Three) regional e primeiro estágio de Direito Internacional
(desde 1997)
integração Comunitário

Fonte: Adaptado de Liu e Regnier (2003), p. 224/ Asia Pacific Development Journal, v. 1, Jun. 2004, p. 8.

Conclusões acordos de livre comércio concluídos, como


no caso dos Acordos ACFTA, ASEAN-
O presente trabalho buscou apontar Japão, ASEAN-Coréia.
para algumas características comuns do re- Quanto à APEC, em especial, a atenção
gionalismo no Pacífico Asiático, centrando desvia-se para sua originalidade no contexto
a análise nos casos da ASEAN e da APEC. do Pacífico Asiático. O formato da coopera-
Como visto, a prioridade dos Membros da ção regional alcançada difere em absoluto
ASEAN tem sido a ampliação das relações de quaisquer das alternativas concebidas
comerciais com vários Estados ao mesmo nos clássicos modelos de integração, espe-
tempo, num processo de abertura para cialmente pela caracterização que tem no Di-
a economia mundial e posicionamento reito Internacional. Daí porque falar-se em
estratégico no sistema do comércio mul- “fórum intergovernamental de diálogos”
tilateral do GATT/OMC. Os Estados da entre os Estados participantes. A principal
ASEAN reconhecem que o bloco requer contribuição da APEC tem sido a formula-
maior institucionalização para alcançar a ção do conceito de regionalismo aberto.
realização dos objetivos do Acordo AFTA. Os exemplos da ASEAN e da APEC,
Como visto, o mínimo grau de integração pela diversidade metodológica com que
regional nos moldes clássicos não evitou o podem ser analisados, apresentam pontos
surgimento de uma coalizão regional no em comum e levam à constatação de novas
contexto das negociações multilaterais no vertentes no regionalismo clássico e um
GATT/OMC, aberta à negociação coletiva apelo para reconsideração das teorias da
de acordos bilaterais de investimento ou integração. Fala-se aqui em “novo regio-

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 341


nalismo asiático”. Em destaque no início BERGSTEN, C. Fred. Competitive liberalization. Wash-
do século XXI, a região do Pacífico Asiático ington: Institute for International Economics. 1996.
veio assistindo à multiplicação dos acordos ______. Whither Apec?: the progress to date and agenda
preferenciais de comércio, de caráter bila- for the future. Washington: Institute for International
Economics. 1997.
teral, regional ou trans-regional. Os fatores
identificados, em geral, apontam para as BHAGWATI. Jagdish N. In defense of globalization. New
York: Oxford University, 2004.
crises dos mercados asiáticos de 97, a pró-
pria fragmentação do sistema multilateral BIRD. South Asia’s Integration into the world economy.
do comércio, a concorrência pela formação New York: World Bank Publications, 1997.
dos blocos regionais numa nova tendência BOWLES, Paul. ASEAN, AFTA and the new regiona-
do regionalismo e a globalização econômica lism. Pacific Affairs. v. 70, n. 2. San Francisco, 1997.
– como fenômeno unitário que representa. ______. The ASEAN free trade area (AFTA) and its
Como observei no contexto de emergência compatibility with GATT/WTO. Asian Yearbook of
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da APEC, o “regionalismo aberto” pa-
rece indicar um dos valores fundantes a BRESLIN, Shaun et al (Ed.). New regionalisms in the
justificar tendências novidadeiras para a global political economy: theories and cases. London;
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integração regional no Pacífico Asiático.
Trata-se, inclusive, do reconhecimento de CAMILLERI, Joseph A. Regionalism in the new Asia-
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que a teoria e prática associadas ao Direito
de Integração têm passado por um período CANDELARIA, Sedfrey M. The legal characterization
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102
Cf. fundamentalmente importantes estudos de DENTERS, Erik M.; SCHRIJVER, Nico (Ed.). Reflections
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342 Revista de Informação Legislativa


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APEC Organização de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico
ASEAN Associação das Nações do Sudeste Asiático
AUSFTA Acordo de Livre Comércio entre Austrália e Estados Unidos de 2004
CEPT Regime Comum Efetivo Tarifário Preferencial da AFTA (Esquema CEPT)
GATT 47 Acordo Geral de Tarifas e Comércio de 1947
SAARC Associação da Ásia Meridional para Cooperação Regional
SUSFTA Acordo de Livre Comércio entre Cingapura e Estados Unidos de 2003
TUFTA Acordo de Livre Comércio entre Tailândia e Estados Unidos de 2004
USTR United States Trade Representative
ZAI/AIA Zona Asiática de Investimentos de 1998 (Asian Investiment Área)
APTAs Acordos Preferenciais de Comércio da ASEAN
APT ASEAN Plus Three (ASEAN Mais Três)
PECC Conselho para Cooperação Econômica do Pacífico

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Liberdade religiosa, separação Estado–Igreja
e o limite da influência dos movimentos
religiosos na adoção de políticas públicas
Aborto, contraceptivos, células-tronco e casamento
homossexual

Maria Cláudia Bucchianeri Pinheiro

Sumário
1. Natureza jurídica e elementos integrantes
do conceito de separação Estado–Igreja. 2. A
religião do Estado e a religião do povo num re-
gime de separação. 3. Os grupos religiosos como
verdadeiros grupos de interesse e sua legítima
participação no processo político – a necessida-
de de proteção ao pluralismo. 4. A separação
Estado–Igreja e os limites da influência exercida
por grupos religiosos no comportamento estatal.
A obrigatoriedade da utilização, pelo Estado, de
uma razão pública.

O julgamento, pelo Supremo Tribu-


nal Federal, da Ação Direta de Incons-
titucionalidade no 3.510 – ajuizada pela
Procuradoria-Geral da República contra os
dispositivos da Lei de Biossegurança que
permitem, para fins de pesquisa e terapia,
a utilização de células-tronco embrionárias
obtidas de embriões humanos produzidos
por fertilização in vitro – tem levantado
importantes discussões sobre temas que,
corriqueiramente abordados, com profun-
didade, na experiência doutrinária estran-
geira, tinham merecido, até então, pouca
atenção por parte dos estudiosos nacionais:
a questão da separação Estado–Igreja e dos
limites de influência que os movimentos
religiosos (enquanto verdadeiros grupos
Maria Cláudia Bucchianeri Pinheiro é
de interesse) podem exercer, especialmen-
Assessora-chefe da Escola Judiciária Eleitoral te num Estado majoritariamente católico,
do TSE, Mestre em Direito Constitucional pela como o é o Brasil, sobre os comportamentos
Universidade de São Paulo e Professora de estatais, em tema de adoção e implemen-
Direito Constitucional. tação de políticas públicas, especialmente

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daquelas que, por igualmente envolverem Essa classificação jurídica deriva, ini-
premissas vinculadas a dogmas de fé, têm cialmente, do fato de que a cláusula da
sido denominadas políticas mistas (aborto, separação, em vez de declarar direitos aos
células-tronco, distribuição de contracepti- cidadãos, esgota-se no estabelecimento de
vos e casamento homossexual). regras de conduta voltadas à imposição de
Pois bem, antes de tudo o mais, cumpre um comportamento estatal essencialmente
precisar, ainda que em termos sumários, fundado em determinados parâmetros,
qual a natureza jurídica e qual alcance deve quais sejam, os da neutralidade axiológica
ser conferido à cláusula da separação Esta- em matéria religiosa e da não-ingerência
do–Igreja (entre nós veiculada pela norma institucional e dogmática em relação às
inscrita no inciso I do art. 19 da Constituição Igrejas.
da República, consubstanciadora de verda- As normas veiculadoras do regime de
deira vedação constitucional de natureza separação, portanto, nada mais fazem do
federativa), para que, a partir dessas delimi- que consagrar a exigência de um deter-
tações materiais, seja possível a identificação minado tipo de organização estrutural do
daqueles comportamentos que, por violarem Estado, para que os indivíduos possam
este específico regime, culminam por colocar efetivamente exercer um outro bem jurídico
em situação de perigosa lesividade os direi- que lhes é reconhecido pelo ordenamento
tos integrantes do estatuto constitucional da jurídico (a liberdade religiosa), o que é um
liberdade religiosa no Brasil. dos elementos individualizadores das ga-
rantias fundamentais.
Trata-se, além disso, de veículo nor-
1. Natureza jurídica e elementos
mativo que impõe ao Estado a adoção de
integrantes do conceito de separação um único posicionamento (e não de uma
Estado–Igreja faculdade dúplice, tal como ocorre com os
Impende destacar, de início, que, ao direitos, especialmente os de liberdade),
contrário da liberdade religiosa, que se outra típica característica das normas-tutela
qualifica como um princípio fundamental1, a ou das garantias fundamentais ou, ainda,
inspirar a produção das regras consubstan- dos “direito-garantias”.
ciadoras dos direitos de liberdade religiosa, De outro lado, a cláusula da separação
as normas veiculadoras da cláusula da entre Estado e Igreja não se reveste do
separação entre Estado e Igreja consubstan- requisito da autonomia existencial, pois
ciam verdadeiras garantias fundamentais retira sua razão de ser e seus fundamentos
(ou direito-garantias)2. legitimadores dos próprios direitos densi-
ficadores do princípio maior da liberdade
1
Sobre a classificação, como princípio funda- religiosa, a exigirem, para sua integral
mental, do valor da liberdade religiosa, conferir: concreção, um regime no qual ente estatal
BUCCHIANERI PINHEIRO, Maria Cláudia. O conse-
lho nacional de justiça e a permissibilidade da aposição de
e movimentos religiosos mantenham uma
símbolos religiosos em fóruns e tribunais: uma decisão postura de recíproca neutralidade e não-
que viola a cláusula da separação Estado-Igreja e que ingerência. O que implica dizer que o re-
esvazia o conteúdo do princípio constitucional da gime de separação e as limitações compor-
liberdade religiosa. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n.
1457, 28 jun. 2007. Disponível em: <http://www.jus2.
tamentais a ele inerentes só fazem sentido
uol.com.br/doutrina/texto.asp?id = 10039>. no contexto de um Estado que tenha como
2
Sobre o conceito de direito-garantia, conferir: objetivo e como fonte de sua legitimação a
ANDRADE, José Carlos Viera de. Os direitos funda- proteção e a defesa intransigente da liber-
mentais na Constituição portuguesa de 1976. Coimbra:
Almedina, 1987. p. 117-118. FERREIRA FILHO, Ma-
dade religiosa dos cidadãos.
noel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. São Jorge Miranda (2000, p. 95-96), ao traçar
Paulo: Saraiva, 1996. p. 33. a distinção entre direitos e garantias – dis-

348 Revista de Informação Legislativa


tinção essa que apenas reforça o enten- que o princípio da liberdade religiosa não
dimento de que a cláusula constitucional seja ofendido em razão da interferência do
da separação Estado–Igreja qualifica-se Estado em matéria de fé (ou da ilegítima
mesmo como típica garantia fundamental –, interferência religiosa em assuntos esta-
tece as seguintes considerações: tais), pois, se não há plena liberdade reli-
“As liberdades são formas de ma- giosa quando o Estado se imiscui na seara
nifestação da pessoa; as garantias espiritual (e vice-versa), então é preciso
pressupõem modos de estruturação estabelecer uma cláusula constitucional de
do Estado; garantia, que, ao vedar tais comportamen-
As liberdades envolvem sempre a tos, confira um manto de proteção àquela
escolha entre o facere e o non facere ou liberdade fundamental.
entre agir e não agir em relação aos A idéia, pois, é a de que, para que se
correspondentes bens, têm sempre possa falar em atribuição de máxima efeti-
uma dupla face – positiva ou nega- vidade ao princípio da liberdade religiosa,
tiva; as garantias têm sempre um imperiosa é a consagração institucional do
conteúdo positivo, de actuação do direito-garantia da separação entre Estado
Estado ou das próprias pessoas. e Igreja, e, para que se possa cogitar num
As liberdades valem por si; as ga- regime de efetiva separação, imprescindí-
rantias têm função instrumental e vel é a imposição, aos poderes públicos, de
derivada”. parâmetros de conduta fundados tanto na
Isso quer dizer, pois, que a separação en- idéia de neutralidade axiológica, como na
tre Estado e Igreja nada mais é do que uma premissa da não-ingerência institucional e
garantia fundamental (direito-garantia), vol- dogmática nos assuntos internos das orga-
tada especificamente à proteção dos direitos nizações religiosas3.
integrantes do conceito maior de liberdade O primeiro requisito indispensável
religiosa, pois a história das sociedades já à existência de um regime de separação
evidenciou que a associação entre político e refere-se à imposição, ao ente estatal, de
religioso, entre os poderes temporal e espiri- uma postura de neutralidade axiológica
tual, gera o aniquilamento das liberdades e em tema de religião.
promove intolerância e perseguições. Cumpre enfatizar, desde logo, que a
Não é por outro motivo que as aspira- exigência de neutralidade axiológica não
ções individuais por uma total liberdade se confunde com a noção de não-confessio-
em tema de fé vieram acompanhadas da nalidade estatal, ou, simplesmente, com o
reivindicação por um regime que apartasse caráter laico do Estado.
as figuras do Estado e da Igreja, impedindo,
com isso, que os instrumentos a cargo dos 3
Para Thierry Rambaud (2004, p. 7-8): “Resulta
poderes públicos fossem utilizados como dessa primeira análise que três garantias principais
de um regime de separação dos cultos e do Estado
meios de divulgação religiosa e de compul- podem ser identificadas: a neutralidade do Estado de
sória conversão, em total destruição de um um ponto de vista axiológico; o igual tratamento de
dos fundamentos básicos da própria idéia todas as coletividades religiosas, nenhuma podendo
de religião, que é a conversão interior pela receber um tratamento particular que lhe seja favo-
rável ou desfavorável (digo eu, requisito intrínseco
fé e pelo voluntarismo, e não a imposição à idéia de neutralidade axiológica, a implicar um
pela força e pela espada. comportamento que impeça o Estado de enviar men-
A conclusão a que se chega, pois, é a de sagens no sentido da preleção de uma determinada
que as normas que consubstanciam, em crença em detrimento das demais ou das convicções
de ateus e agnósticos); a incompetência do Estado para
um dado ordenamento constitucional, o conhecer de questões religiosas e eclesiásticas e seu
regime de separação possuem uma finali- corolário, o reconhecimento da liberdade institucional
dade específica, consistente em assegurar das coletividades religiosas”.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 349


É claro, contudo, que um Estado que mensagem de identificação e preferência
professa determinada religião, ou seja, que por determinada religião traz, ainda, um
confessa sua crença numa determinada fé outro recado, consistente, este sim, num
(que, portanto, será erigida à condição de juízo de demérito e de exclusão, no que
religião estatal ou de religião oficial) ou concerne a todos aqueles cidadãos filiados
que prega o ateísmo, jamais poderá ser às convicções religiosas preteridas4, que,
enquadrado num regime de neutralidade geralmente, são aquelas crenças minori-
axiológica, pois o fato é que, ao escolher tárias.
uma específica doutrina religiosa em detri- A interferência do Estado, portanto, no
mento de todas as demais (ou ao optar pela mercado da fé desequilibra a livre disputa
negação da religião), o Estado abandona entre crenças5, interfere na formação das
qualquer postura de imparcialidade no dis- convicções individuais e, ainda, tem a
senso religioso, para se tornar, ele próprio, potencialidade lesiva de transmitir aos de-
um agente propagador daquela específica mais membros da sociedade (não-adeptos
doutrina que foi por ele eleita. do pensamento religioso que mereceu a
Entretanto, se todo Estado confessional chancela estatal) um estigma de inferiori-
fracassa no atendimento do requisito da dade e também de exclusão, que, além de
neutralidade axiológica, nem todo ente es- incompatível com o valor da igual dignida-
tatal laico cumpre tal exigência, pois, como de de que são titulares todos os cidadãos,
dito, para que se tenha um regime de plena mostra-se capaz de se tornar, ele próprio,
consagração da liberdade religiosa, não um ilegítimo fator de conversão em favor
basta ao Estado não professar, oficialmen- da religião prestigiada pelo ente estatal.
te, nenhuma doutrina, é preciso que ele, Vê-se, pois, que a exigência de uma pos-
Estado, além disso, mantenha-se neutro, tura de neutralidade axiológica em matéria
abstendo-se de exercer qualquer influência religiosa funda-se na necessidade de se pre-
no livre mercado de idéias religiosas e no servarem a livre formação das consciências
dissenso interconfessional. religiosas e a liberdade material de escolha
O requisito da neutralidade axiológica, dos indivíduos, a exigirem, portanto, que o
portanto, apóia-se na absoluta necessidade Estado não interfira no mercado de idéias
de se preservar o voluntarismo em matéria religiosas e não se utilize de sua carga
de fé, pela imposição, ao ente estatal, de simbólica e de sua força institucional para
uma postura neutra, incapaz de exercer conformar as opções pessoais em tema de
indevidas influências no livre mercado de fé6. Daí que a liberdade religiosa impõe um
idéias religiosas, no dissenso interconfes- livre mercado de idéias religiosas7 (que só
sional e nas escolhas individuais.
Isso significa, portanto, que, num regime 4
“O Estado crê e confessa, considerando umas
de separação, além de ser vedado ao Estado determinadas crenças como as únicas verdadeiras.
Não só valora negativamente a falta de crença como
professar uma específica doutrina religiosa também qualquer outra crença que não seja a do
(tal como ocorre nos Estados confessionais), Estado: cuius regio eius religio”. (LLAMAZARES FER-
também lhe é obstado conferir tratamento NANDEZ, 1995, p. 54).
diferenciado ou privilegiado a qualquer 5
Sobre o assunto, conferir: PFEFFER, Leo. Creeds in
competition. New York: Harper § Brothers, 1958.
crença e enviar, por seus comportamen- 6
Nos dizeres de Jónatas Machado (1992, p. 176),
tos, sinais aos seus cidadãos no sentido da “... competindo as confissões religiosas no mercado
preferência ou de uma identificação estatal das idéias como alternativas entre si, a sua igual li-
com determinado pensamento religioso. berdade é, a um tempo, uma conseqüência necessária
e uma condição indispensável da e para a liberdade
Até porque, enfatize-se, qualquer compor- religiosa individual”.
tamento do Estado capaz de transmitir aos 7
A expressão livre mercado de idéias religiosas é
indivíduos, mesmo que sutilmente, uma tal atribuída, por Jónatas Machado (1996, p. 349), a Oliver

350 Revista de Informação Legislativa


será realmente livre se estiver a salvo de rismo religioso e a cláusula da separação,
possíveis desequilíbrios ocasionados pela assim se manifestou:
interferência estatal), a preservar uma das “A idéia de voluntarismo religioso é
principais características do fenômeno naturalmente um aspecto importante
religioso: o voluntarismo8. da liberdade de consciência garan-
O requisito da neutralidade axiológica, tida pela cláusula do livre exercício
pois, vai além das exigências ditadas pela religioso. Mas uma interpretação
mera não-confessionalidade, impondo, em mais ampla da cláusula da separação
acréscimo, a proibição de que o ente estatal também confere expressão à dimen-
exerça qualquer influência no livre mer- são social desse valor, restringindo o
cado de idéias religiosas e conforme, por uso do poder político na conformação
meio de sua chancela, as opções religiosas das forças ideológicas e sociológicas
(ou irreligiosas) de seus cidadãos, o que que conferem forma social à religião.
prestigia não só o aspecto voluntário que O crescimento e o avanço de uma
é próprio das adesões religiosas, mas, tam- crença religiosa devem derivar do
bém, a igual dignidade de que são titulares apoio voluntário de seus membros.
todas as convicções (independentemente se O voluntarismo em matéria religio-
minoritárias ou majoritárias). sa, portanto, adapta-se àquela parte
Irretocáveis, sob tal aspecto, as palavras duradoura da crença americana que
de Donald Giannella (1968, p. 517), que, ao assume que tanto a religião como
enfatizar a relação existente entre volunta- a sociedade será fortalecida se as
aspirações espirituais e ideológicas
Holmes, que se baseou, para cunhar tais dizeres, nos buscarem reconhecimento social com
ensinamentos de Stuart Mills. apoio em seus méritos intrínsecos. A
8
Em outro trabalho, Jónatas Machado faz uso da
expressão “mercado da concorrência espiritual”. Nele,
independência institucional das Igre-
apesar de questionar a utilização de termos econômi- jas é concebida como uma garantia
cos em tema de liberdade religiosa (temendo, com tal da pureza e do vigor de seus papéis
utilização, uma “banalização do fenômeno religioso na sociedade, e a livre competição
pelos diversos operadores jurídicos, levando-os a
de crenças e idéias busca garantir a
pretender regulá-lo como se o mesmo dissesse respeito
à produção e à comercialização de um bem ou de um excelência e a vitalidade das Igrejas,
serviço”), o autor afirma que “o que caracteriza o fenô- em benefício de toda a sociedade. As
meno religioso, em toda a sua riqueza e complexidade, conquistas práticas do voluntarismo
é o estado de concorrência espiritual que se verifica
religioso em nossa sociedade plura-
entre os diversos movimentos, independentemente da
sua dimensão. Cada um deles autocompreende-se, ge- lista exigem um substancial isolamento
ralmente, como possuindo a experiência religiosa mais do processo político em relação às pressões
autêntica, pura e completa, procurando apresentar-se religiosas e aos dissensos interconfessio-
como tal aos olhos da comunidade. Esta depara-se, nais. O tipo de dissenso religioso causado
desde logo, com o facto social da pluralidade reli-
giosa, ou seja, com uma competição entre confissões pelo envolvimento de religião e política
religiosas tipicamente marked based, que naturalmente foi, em grande parte, o mal histórico
requer o estabelecimento de um mercado livre das contra o qual a cláusula da separação foi
idéias (free marketplace of ideas). Sobre a aplicação de editada como representando um ‘artigo de
teorias econômicas ao estudo do fenômeno religioso,
conferir: POSNER, Richard; MCCONNELL, Michael.
paz’” (sem grifos no original).
An economic approach to issues of religious freedom. Para além da exigência da neutralidade
The University of Chicago Law Review, v. 56, 1989. axiológica, que busca assegurar o volunta-
A analogia do mercado permite iluminar alguns as- rismo em matéria de fé, a cláusula-garantia
pectos da relação das confissões com o Estado, eviden-
ciando, desde logo, que por detrás desta jaz o problema
da separação supõe, ainda, a presença de
fundamental da relação das confissões religiosas umas um outro parâmetro comportamental, sem
com as outras”. (MACHADO, 1996, p. 201-203) o qual não haverá que se falar na existên-

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 351


cia de uma real separação entre Estado e do interfira, avalie, emita juízos de valor,
Igreja: o da não-ingerência, a tutelar, de chancele, censure ou conforme qualquer
seu turno, a autenticidade do fenômeno doutrina espiritual pregada por organiza-
religioso, preservando-se, com isso, aqui- ções religiosas. Parte-se, pois, da premissa
lo que foi felizmente definido por James da total incompetência estatal em matéria
Wood Jr. (1989, p. 204) como o “inviolável de verdades religiosas, as quais não po-
direito da religião de ser verdadeira para dem ser medidas, avaliadas, referendadas,
si mesma”. rechaçadas ou alteradas por qualquer au-
Cumpre registrar, neste ponto, que a toridade pública.
não-ingerência estatal, a configurar ele- Não é o Estado um fiscalizador da cor-
mento integrante do conceito de separação, reta aplicação de leis divinas. Não é ele um
deve se projetar em relação a dois aspectos intérprete ou um instrumento de positiva-
da vida das Igrejas, quais sejam, o aspecto ção de mandamentos sagrados. Não pode
institucional ou organizacional e o aspecto o Estado se interpor entre os indivíduos
dogmático, atinente ao conteúdo mesmo e a sua fé. Nem incentivar ou referendar
das doutrinas de fé. algumas doutrinas e desestimular outras,
Daí por que o requisito da não-inge- pois, para tanto, seria preciso emitir um
rência abrange tanto a não-ingerência juízo de valor ou de preferência a que o
institucional, de sorte a tutelar o direito ente estatal, precisamente porque incompe-
fundamental à auto-organização religiosa, tente em matéria de fé, não se revela apto a
como a não-ingerência dogmática, a prote- formular. Não pode o Estado se apropriar,
ger a própria autenticidade dos conteúdos ainda, para justificar suas condutas, do
das doutrinas de fé. Ambas as matérias discurso religioso, pois tal comportamento,
(organização institucional e doutrina de além de transmitir uma idéia de identifica-
fé), portanto, e em razão da cláusula da ção (violando a neutralidade-axiológica e
separação (e do indispensável requisito da desequilibrando o mercado de idéias) e de
não-ingerência), traduzem-se, em relação implicar um juízo de preferência (que o Es-
ao Estado, em matérias interna corporis, ou tado é incompetente para emitir, nos termos
seja, em matérias transferidas ao âmbito da não-ingerência doutrinária), poderia
reservado das próprias Igrejas, infensas, em posicionar, ilegitimamente, as autoridades
regra, por isso mesmo, a qualquer atuação públicas, como verdadeiros intermediários
interventiva ou conformadora por parte entre as mensagens sagradas e seus reais
dos poderes públicos. Ambos os assuntos, destinatários (os indivíduos).
ainda (organização interna e doutrina Daí as corretíssimas observações de Jó-
religiosa), consubstanciam verdadeiras natas Machado (1994, p. 55-56), no seguinte
“questões religiosas” (religious question sentido:
doctrine), insuscetíveis, desse modo, de “... aos órgãos estaduais está vedada
serem alteradas, conformadas ou mesmo qualquer autocompreensão vinculada a
avaliadas (em termos de juízo de valor) uma mundividência fechada, de nature-
pelos poderes públicos (incluindo-se, nesse za religiosa, filosófica ou ideológica,
conceito, até mesmo o Poder Judiciário, que oficial. Assim, eles não podem, de
também não terá competência para proce- forma alguma, querer converter in-
der a qualquer julgamento cujo resultado crédulos ou abalar a fé dos crentes.
dependa de uma análise, de uma valoração, Do mesmo modo, não lhes pertence
das matérias inseridas nas questões religio- fazer proselitismo religioso nem pro-
sas). (MACHADO, 1996, p. 229). paganda anti-religiosa. O Estado não
A não-ingerência dogmática, portanto, pretende ser um protagonista escatoló-
traduz-se num impedimento a que o Esta- gico de uma qualquer ‘história da

352 Revista de Informação Legislativa


salvação’. Ele não pretende resolver parte dos poderes públicos9. Porque a orga-
o problema da verdade, não dis- nização interna da Igreja (com suas regras
pondo, além do mais, de qualquer permissivas ou proibitivas) nada mais é
critério externo ou de uma ‘rule of do que um reflexo da própria doutrina re-
recognition’ que lhe permita saber ligiosa por ela professada, não competindo
em concreto, se está perante uma ao Estado interferir ou julgar assuntos que
verdade transcendente ou apenas dizem respeito apenas à religião e à fé, eis
perante um religioso suficientemente que não incumbe a ele, Estado, velar pela
poderoso para alimentar a ambição de correta aplicação do direito canônico.
controlar e instrumentalizar o processo Em verdade, esse requisito inerente
político-legislativo e impor, desse forma, à cláusula-garantia da separação (o da
as suas concepções a todos os cidadãos e não-ingerência institucional e dogmática)
grupos. É a esta luz que devem ser culmina por tutelar uma das dimensões
entendidas as normas constitucio- em que se projeta o princípio maior da
nais consagradoras da liberdade re- liberdade religiosa (ao lado das dimen-
ligiosa e da separação das confissões sões individual e coletiva), qual seja, a da
religiosas do Estado” (sem grifos no liberdade institucional das organizações
original). religiosas.
Deve, portanto, o Estado, por impe- A liberdade institucional das entidades
rativos impostos pela não-ingerência religiosas representa a positivação de um
dogmática, abster-se de qualquer compor- típico direito fundamental de índole es-
tamento valorativo que esteja relacionado sencialmente negativa10, a estabelecer um
às premissas de fé, às doutrinas religiosas núcleo de matérias (sejam elas ligadas à
difundidas pelas Igrejas, deixando, à livre 9
É de se mencionar, a respeito da autonomia insti-
avaliação dos indivíduos, a validade ou
tucional desfrutada pelas Igrejas, que dispõem de um
não das verdades professadas. A partir amplo espaço de autodeterminação, o histórico voto
daí, o crescimento e a prosperidade de cada proferido, no Supremo Tribunal Federal, pelo Ministro
entidade religiosa será uma decorrência da Hahnemann Guimarães, no MS 1.114 (Rel. Min. La-
fayette de Andrada). Em tal caso – que conta, ainda,
postura que adota em relação a seus fiéis e
com parecer pela manutenção do ato presidencial, da
do valor intrínseco de suas crenças, e não, lavra de Haroldo Valladão, então Consultor-Geral da
ao contrário disso, de uma atuação confor- República –, pretendia-se a reabertura dos templos da
madora ou chanceladora do Estado, ou de Igreja Católica Apostólica Brasileira, fechados em ra-
um juízo de valor (positivo ou negativo) zão de decreto presidencial que acolheu requerimento
do Arcebispo do Rio de Janeiro. Esta última autoridade
emitido pelos poderes públicos. eclesiástica, ao encaminhar à Presidência da República
É também por esse motivo, e na linha seu pedido de fechamento religioso, afirmava que a
do requisito inerente à não-ingerência ins- Igreja Brasileira violara o direito de culto da Igreja
titucional, que os assuntos “internos” das Católica Apostólica Romana, por utilizar, a primeira,
as mesmas insígnias, vestes e ritos utilizados por esta
Igrejas, tais como ritos, liturgias, critérios última. Muito embora a ordem tenha sido denegada,
de admissão de fiéis, normas hierárquicas, o respectivo acórdão conta com voto vencido histó-
sanções disciplinares, requisitos de ascen- rico do Ministro Hahnemann Guimarães, dedicado à
são na carreira eclesiástica, organização liberdade religiosa e à liberdade interna das Igrejas.
A respeito desse voto, assim se posicionou Pontes de
dos templos, critérios de recolhimento e Miranda (1971, p. 118): “Ainda há consciências livres
de administração de contribuições finan- e brasileiras, no país, para aplaudirem o voto, estrita-
ceiras, formas estabelecidas para a melhor mente jurídico, do ilustre Ministro”.
difusão da fé e sanções eclesiásticas, devem 10
Observe-se, por oportuno, que mesmo os direi-
tos de índole essencialmente negativa possuem, por
permanecer, em regra, em esfera reserva- igual, uma dimensão positiva ou prestacional, voltada
da à própria Igreja, infensos, portanto, a ao dever de proteção e de fornecimento dos meios
indevidas ingerências ou avaliações por necessários ao efetivo exercício (em termos materiais)

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 353


organização interna das entidades religio- Estado–Igreja impõe ao Estado a adoção
sas, sejam elas relacionadas aos próprios de comportamentos estritamente fundados
dogmas de fé por elas pregados) que foi nos parâmetros da não-ingerência insti-
subtraído do poder de conformação, inter- tucional e da não-ingerência dogmática.
venção ou análise valorativa por parte dos Somente assim, ou seja, somente quando
poderes públicos, sob pena de, em assim presentes, além da necessária neutralidade
não sendo, restar comprometida a própria axiológica, esses dois requisitos, é que se
autenticidade do fenômeno religioso, que, poderá falar num regime de separação a
em vez de se qualificar como uma projeção conferir ampla efetividade ao princípio da
das respectivas doutrinas, configurará sim- liberdade religiosa. E é somente num tal
ples resultado de ingerências, adequações regime de separação que se poderá con-
e padronizações externas. cretizar o cenário ideal em tema de fé, qual
Percebe-se, pois, a importância dessa seja, aquele que em que se registram “Igre-
exigência inerente à cláusula da separação, jas livres, num Estado livre, constituído por
em tema de maximização do princípio da indivíduos igualmente livres”.
liberdade religiosa, pois, sem Igrejas livres É por esse motivo que, muito embora
de ingerências externas, não haverá que se os destinatários imediatos das normas
falar, presente o desvirtuamento das doutri- consubstanciadoras do direito-garantia
nas pregadas, em fiéis igualmente livres. da separação Estado–Igreja sejam mesmo
Frise-se, por relevante, que a noção os indivíduos, titulares dos inalienáveis
mesma de não-ingerência institucional e direitos derivados do princípio maior da
dogmática (inerente ao conceito de separa- liberdade religiosa, igualmente figuram
ção) volta-se, de um lado, contra o Estado, como beneficiários desse regime as entida-
que, por muitos séculos, fez uso das Igrejas des religiosas, titulares de inquestionável
como instrumento de justificação e legiti- autonomia em relação aos assuntos vincu-
mação de suas políticas, nelas interferindo lados às respectivas organizações internas
de forma a moldar-lhes, casuisticamente, o
e doutrinas de fé, e o próprio Estado, cujo
respectivo conteúdo. Registre-se, entretan-
aparelho funcional fica protegido contra
to, que esta exigência derivada do regime
ilegítimas instrumentalizações, levadas
de separação opõe-se, por igual, contra
a efeito por movimentos religiosos que
as próprias Igrejas, que, a partir de um
pretendem se valer das estruturas buro-
conveniente imbricamento organizacional,
cráticas dos poderes públicos, para fins
valiam-se dos instrumentos estatais para
de imposição, a toda a sociedade, de suas
divulgar suas doutrinas, fazê-las prevalecer
respectivas e particulares doutrinas e mun-
no corpo social, converter pela força e para
esmagar dissidentes. dividências.
E é tendo em conta exatamente a ne- Daí a total propriedade de se afirmar
cessidade de se conferir, contra os poderes que o manto protetivo inerente à cláusula
públicos, uma especial proteção à esfera da separação possui alcance trifronte, tu-
de autodeterminação consagrada em favor telando, a um só tempo, a liberdade dos
das entidades religiosas, e de igualmente cidadãos, a liberdade dos movimentos reli-
se conferir, já agora em favor do poder giosos e a liberdade do próprio Estado.
público, um manto protetor contra a ilegí-
tima apropriação e instrumentalização de 2. A religião do Estado e a religião do
suas estruturas funcionais por movimentos povo num regime de separação
religiosos, que a cláusula da separação
Ultrapassada a análise dos requisitos
do respectivo bem jurídico tutelado. Daí a parte final inerentes à cláusula da separação, uma
do inciso VI do art. 5o da CF. afirmação pode ser prontamente feita por

354 Revista de Informação Legislativa


qualquer estudioso: a de que é vedado ao entre si12. Sendo certo, ainda, que, em re-
Estado professar uma religião, ou seja, a de gra, as religiões majoritárias são também
que, num regime de separação, não se pode as mais antigas e tradicionais, o que faz de
cogitar de um Estado confessional. É claro suas doutrinas não apenas ensinamentos
que, como dito antes, a idéia de separação religiosos, mas, sobretudo, elementos in-
não se esgota na não-confessionalidade tegrantes da cultura e do próprio padrão
estatal, exigindo, para além disso, com- de moralidade nacionais, merecedores,
portamentos pautados pela neutralidade portanto, de um diferenciado tratamento
axiológica e pela não-ingerência por parte “de referendo” por parte do Estado.
dos poderes públicos. Contudo, não se pode deixar de con-
Entretanto, essa exigência de não-con- signar que todas essas razões, voltadas à
fessionalidade e de neutralidade estatal é justificação de um tratamento privilegiado
freqüentemente questionada por aqueles a determinadas Igrejas e a suas doutrinas,
que entendem que, numa democracia, não em detrimento de todas as demais, violam
pode ser vedado ao Estado a adoção de flagrantemente a cláusula da separação
uma postura que, em atendimento às pró- (apoiada numa idéia de neutralidade axio-
prias demandas sociais, venha prestigiar os lógica e não de preferências) e ofendem os
ensinamentos e a doutrina da religião (ou princípios da igual dignidade e da igual
das religiões) majoritária (s), em detrimento liberdade religiosa de que são titulares to-
das demais, minoritárias e menos conven- dos os indivíduos e todos os movimentos
cionais, e também de ateus, agnósticos ou religiosos.
humanistas seculares. É que a admissão de tais diferenciações
O pensamento, portanto, é aquele funda- transmitiria um claro sinal de que, aos
do na regra da maioria, permitindo ao Es- olhos do Estado, e também em razão das
tado, enquanto agente de promoção social, preferências majoritárias dos cidadãos,
o atendimento às demandas majoritárias, algumas doutrinas religiosas seriam mais
inclusive em matéria de religião. Ao assim importantes, mais adequadas ou mais ver-
proceder, o Estado estaria dando concreção dadeiras que as outras, em clara exclusão e
ao princípio da igualdade, pois estaria tra- diminuição do valor intrínseco das demais
tando desigualmente, na exata medida em entidades.
que se desigualam, aquelas religiões que, em Além disso, a concessão de privilégios ou
termos de número de fiéis e de organização chancelas estatais a determinadas crenças,
institucional, distinguem-se das demais11. com apoio no respectivo número de fiéis,
Segundo tal orientação, não poderia o apenas eternizaria e acentuaria uma situa-
Estado, em detrimento das próprias opções ção de desigualdade entre doutrinas, pois,
externadas pela maioria ou por grande ao tratar uma religião de modo especial, o
parte de sua população, conferir tratamento Estado, interferindo no livre mercado das
idêntico a entidades religiosas que possuem idéias religiosas e rompendo com sua neces-
importância social altamente diferenciada sária postura de neutralidade, transmitiria
uma mensagem de identificação, que, por
11
Perfilha a tese de que a religião majoritária deve
receber tratamento diferenciado Campoamor (1974, p. 12
Para Themistocles Brandão Cavalcanti (1949,
23), para quem “nada hay em todo esto de privilegio: p. 93), “a verdadeira política deve se basear na mais
No es el Estado sino la sociedad quien decidirá que con- ampla liberdade (...). É óbvio, entretanto, que esta
fesión habrá de beneficiarse más por disfrutar de mayor política não exclue a inclinação por uma religião
arraigo. Se trata, pues, de igualdad en las condiciones que seja realmente a expressão do sentimento de
de desarrollo y no de igualación forzada y artificial, uma grande maioria. Constitue mesmo esta política,
del mismo modo cuando el Estado financia los gastos um bom sentido da liberdade e a expressão de uma
electorales de los partifo lo hace en base a los votos orientação democrática que não pode ser desprezada,
recibidos, respetando la indicación de la sociedad”. em uma coletividade bem organizada”.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 355


sua vez, somente viria fortalecer ainda mais cláusula da separação14. Daí a advertência
a superioridade de uma religião em relação de Jónatas Machado (1994, p. 54):
às demais, dando origem a um círculo vicio- “O problema da fundamentalização e
so de desigualação. Ou seja, quanto maior constitucionalização da liberdade re-
fosse a Igreja, maior seria o prestígio estatal ligiosa faz-se precisamente em nome
a ela conferido, o que a tornaria ainda maior, da protecção das confissões minori-
e exigiria, em seqüência, ainda mais privi- tárias contra a coligação teológico-
légios; numa roda viva que pode culminar política dominante alicerçada num
com o próprio extermínio dos grupos reli- entendimento teológico e exclusivista
giosos minoritários, com o conseqüente fim da liberdade eclesiástica. Na essência
do pluralismo religioso e com a aniquilação do constitucionalismo está precisa-
da liberdade material de escolha religiosa mente uma certa desconfiança, tipi-
(pois somente se pode livremente escolher camente republicana, em relação quer
num contexto de multiplicidade de opções). às coligações teológico-políticas quer às
(MACHADO, 1996, p. 173). formas de democracia pura, desconfiança
Não custa mencionar que a consagração que está na base do propósito de contrapor
constitucional de direitos fundamentais ao voluntarismo das maiorias, políticas
desempenha uma função tipicamente e religiosas, uma estrutura institucional
contramajoritária, pois impede que deter- racionalizada de limitação do exercício do
minados valores, dada sua centralidade poder político a partir da garantia de um
mesma, sejam violados por interesses de catálogo de direitos fundamentais (Bill
maiorias muitas vezes eventuais. Além of Rights) e de princípios como o da
disso, aqueles que mais necessitam da separação de poderes e o da separação
previsão e da proteção de direitos são os das confissões religiosas do Estado (Bill
grupos minoritários, que, por seu pequeno of Powers). No constitucionalismo, a
poder de influência na tomada de decisões fundamentalidade dos direitos fun-
públicas, acham-se em posição de nítida damentais consiste, em boa medida,
vulnerabilidade tanto em face do Estado em os mesmos serem considerados
como em relação aos demais grupos. demasiado importantes para ficarem
Em verdade, e como bem acentuado na disponibilidade das maiorias”
pelo Justice Ginsburg, da Suprema Corte (sem grifos no original).
Americana, “uma parte essencial da nossa Também assim para Leo Pfeffer (1980, p.
Constituição (…) é a história da extensão 11), que, ao tratar a questão da necessária
de direitos e proteções constitucionais a
pessoas até então ignoradas ou excluídas”
14
Akhil Reed Omar (1998, p. 21), de seu turno, en-
contra um forte “majoritarianismo” subjacente às duas
(tradução livre)13. primeiras emendas à Constituição Norte-Americana.
Acresce que a proteção das minorias No seu entender, “the perspective furnished by the
assume especial relevância em tema de first two proposed amendments suggests that an even
stronger kind of majoritarianism underlies our First
religião, pois foram as reivindicações Amendment. The body that is restrained is not a hostile
dos movimentos religiosos minoritários majority of the people, but rather Congress; and the
que culminaram com a consagração de earlier two amendments remind us that congressional
cláusulas amplamente protetivas da igual majorities may in fact have ‘aristocratical’ and self-inte-
rested views in opposition to views held by a majority
liberdade religiosa de todos, como o é a of the people. Thus, although the First Amendment’s
text is broad enough to protect the rights of unpopular
13
United States v. Virginia et al. (94-1941), 518 U.S. minorities (like Jehovah´s Witnesses and Comunists),
515 (1996). No original: “A prime part of the history of the Amendment´s historical and structural core was
our Constitution (…) is the story of the extension of cons- to safeguard the rights of popular majorities (like the
titutional rights and protections to people once ignored or Republicans of the late 1790s) against a possibly unre-
excluded”. presentative and self-interested Congress”.

356 Revista de Informação Legislativa


proteção a ser conferida pelo Estado aos sua as doutrinas pregadas pela religião da
movimentos religiosos “marginais”, e ao maioria de seus cidadãos, em detrimento
enfatizar que tais movimentos são preci- de todos os demais indivíduos, pois o fato
samente aqueles em favor dos quais foram é que foi precisamente a união entre Estado
estabelecidos os direitos de liberdade, as- e grupos religiosos majoritários (com as
sim se expressou: conseqüentes perseguições e imposições
“O objetivo da cláusula da liberdade unilaterais daí resultantes) o elemento sub-
religiosa garantida pela Primeira jacente às reivindicações pela consagração,
Emenda é o de proteger crenças em sede constitucional, da liberdade reli-
impopulares. Não é necessário uma giosa e da separação Estado–Igreja.
Constituição para se assegurar se- Como bem pontuado por Leo Pfeffer
gurança a (...) bem estabelecidas e (1981, p. 223), a propósito do contexto
reconhecidas religiões. O coração da norte-americano, “afirmar que os Estados
Primeira Emenda seria mortalmente Unidos são uma nação Judaico-Cristã é
ferido se as religiões que hoje nós tão inconsistente com o espírito da Pri-
chamamos de cultos fossem excluídas meira Emenda como dizer que são uma
da zona de proteção em razão de seu nação Cristã. Roger Williams pontuava
desprestígio aos olhos das autorida- que ‘nenhum Estado ou nenhum país pode
des governamentais ou da maioria da verdadeiramente ser chamado de cristão,
população Americana”. muito embora os Cristãos vivam nele’.
Além disso (e essa realidade aplica-se Da mesma maneira, nenhum Estado ou
sensivelmente ao Brasil), não se pode per- país comprometido com as cláusulas da
der de perspectiva as advertências feitas Primeira Emenda pode ser denominado
por Jónatas Machado (1996, p. 229-230), no de Judaico-Cristão, muito embora cristãos
sentido de que muitas das religiões majori- e judeus nele se encontrem”15.
tárias garantiram sua hegemonia ao longo Além disso, a consagração, como reli-
da história nacional às custas da própria gião oficial do Estado, daquela crença que
supressão da liberdade religiosa individu- é adotada pela maioria dos cidadãos, ou
al e dos direitos das demais organizações a transformação, em política estatal, dos
religiosas, competindo ao Estado, nesse mandamentos derivados de religião ma-
contexto, em vez de perpetuar as conseqü- joritária, culmina por afetar, de modo sen-
ências derivadas de anos de nefasta domi- sível, considerada a instauração do círculo
nação, trabalhar, com total neutralidade, vicioso de desigualação acima referido, não
para que as religiões possam igualmente só a liberdade religiosa das religiões prete-
disputar entre si, num contexto de ampla ridas e de ateus, agnósticos e humanistas
divulgação de idéias religiosas que apenas seculares. Comportamentos estatais nesse
vem a favorecer e a ampliar a liberdade de sentido atingiriam, também, a liberdade
escolha dos indivíduos. religiosa dos próprios adeptos da religião
Finalmente, não se pode confundir os majoritária, que, em decorrência do apoio
conceitos de povo e de Estado. O povo nada oficial e dos conseqüentes arrefecimento do
mais é do que um dos elementos constitu-
tivos do Estado (o elemento humano), com
15
No original: “... to say that the United States
is a Judeo-Christian nation is as inconsistent with
ele não se confundindo (DALLARI, 2005, p. the spirit of the First Amendment as to say it is a
99-100). De modo que, mesmo que os cida- Christian nation. Roger Williams asserted that ‘no
dãos de determinado país filiem-se, em sua civil state or country can be truly called Christian,
although the Christians be in it. Likewise, no civil
grande maioria, a uma específica religião,
state or country committed to the First Amendment
isso não autoriza que o Estado, enquanto can be called Judeo-Christian, although Christians
entidade, venha também a adotar como and Jews be in it”.

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pluralismo religioso e enfraquecimento do existência de uma religião majoritária em
mercado de idéias, terão menores condições nada autoriza comportamentos especiais
de exercerem um juízo de avaliação e de do Estado em relação a tal específica crença,
comparação da doutrina que professam sem que, com isso, restem comprometidos
e de, inclusive, optarem, de modo livre os direitos de liberdade religiosa de todos –
e consciente, por eventual troca religiosa justifica a conclusão de que, “mesmo numa
(reversibilidade das opções de fé). Ausen- situação hipotética de identidade entre ci-
te, pois, um contexto de multiplicidade dadão e membro de uma confissão religiosa
de opções e de livre mercado de idéias, (v.g. idem cives et christianus), a oficializa-
ausente estará, por igual, o direito material ção desta e o seu tratamento privilegiado
de todos, quanto ao exercício de uma livre sempre seriam incompatíveis com o direito
escolha em matéria religiosa. individual à liberdade religiosa”.
Nesse sentido, irretocáveis as palavras Por esse modo de ver as coisas, portanto,
de Jónatas Machado (1994, p. 51), que, ao alegações fundadas no caráter majoritário
narrar a experiência histórica portuguesa de determinado pensamento religioso
de dominação e de hegemonia da Igreja jamais se revelarão aptas a afastarem as
Católica e ao afirmar que, num Estado de imposições derivadas da cláusula da se-
Igreja oficial, nem mesmo os adeptos da paração Estado–Igreja, pois o ente estatal,
religião majoritária e estatalmente privi- precisamente porque constitucionalmente
legiada desfrutam de liberdade religiosa vinculado ao dever de proteção e defesa
material, assim se manifestou: dos direitos fundamentais de todos, jamais
“Refira-se que mesmo a liberdade dos poderá apresentar padrões de conduta
católicos, individualmente considera- que, em tema de opções religiosas, enviem
dos, era significativamente cerceada. aos indivíduos a subalterna mensagem
Em boa verdade, ela era praticamente de que, sob a perspectiva do poder públi-
inexistente, na medida em que, desde co, existem cidadãos de primeira classe
logo, dificilmente teriam acesso ao (que têm o privilégio de ver suas crenças
conhecimento de outras crenças re- homenageadas e acolhidas pelos órgãos
ligiosas. Mas, se mesmo assim ainda estatais) e cidadãos de classes inferiores
quisessem optar por uma delas, te- (que precisam compulsoriamente acolher e
riam que o fazer com enormes custos cumprir determinações públicas que nada
políticos, jurídicos e sociais, ou, então, mais fazem do que conferir a chancela de
passar, pura e simplesmente, para a “oficial” a pensamentos religiosos com os
clandestinidade e para o segredo. A quais intimamente não se concorda).
liberdade pressupõe alternativas. As
alternativas pressupõem tanto o co- 3. Os grupos religiosos como verdadeiros
nhecimento como a possibilidade de grupos de interesse e sua legítima
optar sem ser penalizado. Ora, num
participação no processo político – a
sistema de religião oficial, os católicos
não tinham nenhuma destas coisas.
necessidade de proteção ao pluralismo
Neste ‘jogo de soma zero’ represen- De tudo quanto visto, constata-se que
tado pela construção teológica da li- o Estado, para que dê cumprimento aos
berdade religiosa, a única beneficiária mandamentos derivados da cláusula da
era, verdadeira e objectivamente, a separação e para que, em assim o fazendo,
instituição Igreja Católica”. confira máxima efetividade ao princípio da
Prosseguindo em seu pensamento, liberdade religiosa, deve manter uma con-
Jónatas Machado (Idem) afirma que o argu- duta, em relação às instituições religiosas,
mento acima referido – no sentido de que a fundada nos parâmetros de neutralidade

358 Revista de Informação Legislativa


axiológica e de não-ingerência institucio- siásticas possam assumir cargos públicos,
nal e dogmática, independentemente da sejam eles de confiança ou não. Os critérios
existência, ou não, no corpo social, de um de ingresso na máquina pública devem ser
específico movimento religioso congrega- fundados nos elementos da capacidade e da
dor da maioria dos cidadãos. habilitação e não numa análise valorativa
Entretanto, os rumos do Estado, suas da crença professada ou do posto eclesiás-
prioridades, suas políticas públicas, o modo tico ocupado pelos indivíduos, pois, como
de alocação de seus recursos, são ditados – visto, o Estado não dispõe de competência
respeitadas as normas constitucionais – pelo para tecer qualquer análise meritória sobre
grupo que, cumpridas as regras do jogo o valor de conteúdos de fé, também não po-
democrático, conseguiu ascender ao poder dendo assumir uma postura de hostilidade
político, obtendo a chance de imprimir ao em relação às religiões.
Estado uma política mais adequada às suas Da mesma maneira, tanto fiéis como
ideologias, visões de mundo, preferências autoridades eclesiásticas podem legitima-
e, até mesmo, impressões a respeito de qual mente se habilitar à ocupação de cargos
rumo nacional atende de modo mais com- eletivos16, desde que presentes os demais
pleto aos anseios da população. O requisito requisitos exigidos pela lei eleitoral e pela
democrático da alternância de poder, por- Constituição.
tanto, faz com que diferentes grupos políti- Em Portugal, por exemplo, o próprio
cos e de interesses, fundados num consenso texto constitucional trouxe regra impe-
mínimo a respeito das regras do jogo de- ditiva de que partidos políticos utilizem,
mocrático, possam se alternar na condução em sua denominação, nomenclatura ou
da vida política, a ela conferindo, em cada expressão religiosa17, estando interditados,
momento, diferentes ideologias e visões de de igual modo, de utilizarem, em seus em-
mundo. (LEITÃO, 1987, p. 220 e ss). blemas, símbolos religiosos. Tal regra não
Presente essa realidade, é de se questio- foi adotada pela Constituição brasileira,
nar qual a possível participação das religi- sendo legítimos, portanto, aqui, a criação
ões no processo político. Ou, ao contrário de partidos “cristãos”, partidos “muçulma-
disso, se essa participação seria indesejável, nos”, partidos “judeus”, e assim por diante,
pois poderia colocar em risco a existência pois a premissa adotada é a de que a filia-
de um Estado axiologicamente neutro dian- ção religiosa de pessoas e entidades, ou a
te do fenômeno religioso, com grave risco ideologia predominantemente religiosa de
ao regime de liberdades públicas. partidos políticos, não deve ser escamote-
Como se sabe, nenhum indivíduo e ada e não pode gerar qualquer restrição de
nenhuma entidade podem ser privados direitos por parte do poder público.
de seus direitos pelo só fato de professa- Não se pode perder de perspectiva que
rem uma fé, pois não há que se falar em os grupos religiosos, enquanto participantes
liberdade religiosa naqueles Estados em de um mercado de idéias religiosas, no qual
que a filiação a uma crença se traduz na disputam entre si pela preferência dos fiéis
automática restrição de direitos, em clara e pela predominância de suas verdades,
demonstração de hostilidade religiosa e em também precisam e devem ser enquadra-
nítido descompasso com a neutralidade de- 16
Nesse sentido, ver: McDaniel v. Paty, 435 U.S
mandada por um regime de separação que 618 (1978).
se funde na maximização da liberdade. 17
Artigo 51, 3o: “Os partidos políticos não podem,
Pois bem, presente essa consideração, já sem prejuízo da filosofia ou ideologia inspiradora
do seu programa, usar denominação que contenha
se conclui que não é legítima, num Estado
expressões directamente relacionadas com quaisquer
plural e protetivo, qualquer norma que ve- religiões ou igrejas, bem como emblemas confundíveis
nha a proibir que fiéis ou autoridades ecle- com símbolos nacionais ou religiosos”.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 359


dos na noção de “grupos de interesse”. É a religião ou que as organizações religiosas
dizer: os movimentos religiosos, enquanto podem desempenhar na solução de deter-
detentores de uma específica mundividên- minados problemas de natureza secular”
cia que entendem verdadeira e que, por (tradução livre)20.
isso mesmo, desejam ver prevalecida na A respeito dessa específica análise do
sociedade, também devem ser encarados fenômeno religioso, voltada à percepção,
como verdadeiros grupos de interesses, que nas Igrejas, de verdadeiros grupos de
desejam convencer a sociedade quanto às interesse, que, como os demais, buscam
suas idéias e, também, influenciar o com- fazer prevalecer suas convicções no corpo
portamento do Estado e das autoridades da sociedade e, também, nas ações gover-
públicas, para que suas particularizadas namentais, assim se posicionou Leo Pfeffer
crenças sejam respeitadas e materializadas (1991, p. 99), em trabalho especialmente
através dos atos estatais18. dedicado ao tema:
E essa atuação dos movimentos religio- “Eu tenho sugerido que os grupos
sos como verdadeiros grupos de interesse religiosos, de modo explícito ou não,
não pode ser encarada sob qualquer viés buscam transformar suas particulares
negativo ou restritivo, pois, numa socie- hierarquias e valores em imperativos cate-
dade plural, a variedade de idéias deve góricos para a comunidade como um todo,
ser desejada e estimulada, sendo certo que incluindo aqueles membros da comu-
as Igrejas, além de se posicionarem em re- nidade que estão fora de suas respectivas
lação a assuntos vinculados à fé, também esferas. Cada grupo religioso, cons-
possuem, como sabido, suas particulares cientemente ou inconscientemente,
convicções a respeito de assuntos políticos, procura modelar a cultura da comunidade
sociais, econômicos, científicos, de saúde de acordo com os seus próprios conceitos de
pública, desempenhando, portanto, um im- bem comum. Tendo em vista que gover-
portante papel social19. Daí as corretíssimas no e lei são meios altamente potentes de
observações do Justice William Rehnquist, transformar valores particulares em regras
no sentido de que os mandamentos deriva- universais de conduta, cada grupo religio-
dos da cláusula da separação não impedem so em situação de concorrência buscará
que se reconheça “o importante papel que obter junto ao governo o reconhecimento
de que seus particulares valores são os
18
Para John Francis (1992, p. 803-804): “Today few melhores”21 (sem grifos no original).
western European politicians are likely to see churches
as representing such inclusive ideological movements. 20
Manifestação proferida no julgamento do caso
Rather, they are more likely to see them as interest
BOWEN v. KENDRICK, 483 U.S. 1304 (1987), em que
group who also possess moral issue agendas but also
se reconheceu a constitucionalidade do Adolescent
who compete for resources and regulatory sympathy”.
Family Act (AFLA), que autorizava o repasse de verbas
“... churches and synagogues of the widest variety
federais a organizações públicas e privadas (aí incluí-
have freely operated as political pressure groups, das as de índole confessional), voltadas ao combate da
even directly in the body politic, without legal discri- gravidez na adolescência e ao aborto.
mination or restraint. Recognition of the role played 21
No original: “Each religious group, consciously
by organized religion in the body politic is, therefore, or unconsciously, attempts to shape the culture of the
essential to understanding America’s political as well community according to its own concept of the good
as religious history”. (WOOD JR., 1993, p. 146). life. Since government and law are a highly potent
19
James Wood Jr. (1968, p. 258) menciona, a esse and effective means of translating particular values
respeito, que uma das providências adotadas por into universal rules of conduct, each competing reli-
regimes totalitários é exatamente a de circunscrever gious group will seek to prevail upon the government
as Igrejas a matérias unicamente espirituais, evitando to accept its particular values as the best”. Sobre a
que elas contribuam em eventual formação de dissen- importância adquirida pela religião na solução de
so a respeito de assuntos políticos. Tem-se, portanto, problemas seculares enfrentados pelo Estado, ver:
um efetivo controle sobre o papel a ser desempenhado WOOD JR., James E. Religion, the state, and sexual
pelas religiões. morality. Journal of Church and State, 1988.

360 Revista de Informação Legislativa


O fato, portanto, é o de que as Igrejas são mentos de perseguição, de guerras e de
portadoras e veiculadoras de específicas lesão aos direitos individuais22.
idéias que desejam ver acolhidas não só Cumpre repetir, por relevante, que a
pela sociedade, mas também pelo Estado. noção de voluntarismo religioso (ou seja,
Daí por que as organizações religiosas de liberdade material de escolha em relação
devem ser encaradas como verdadeiros a qualquer convicção religiosa ou anti-reli-
grupos de interesse, que disputam entre giosa) pressupõe, como visto, que o Estado,
si a influência no comportamento estatal a fundado numa postura axiologicamente
partir de suas convicções religiosas. neutra, não interfira, por meio de suas
Tal circunstância, por si só, e em princí- condutas (sempre revestidas de especial
pio, não se revela apta a ameaçar a cláusula simbolismo e força coercitiva), na livre troca
da separação entre Estado e Igreja, pois, de idéias religiosas, pelo que qualquer com-
assim como ocorre com grupos propaga- portamento estatal apto a exercer indevida
dores de determinadas convicções sociais, influência nas opções individuais e, como
filosóficas e políticas, é da natureza mesma conseqüência, apto a enfraquecer o aspecto
das entidades veiculadoras de específicos voluntário das adesões em tema de religião
pensamentos, aí incluído o pensamento implicará em ofensa direta à cláusula da
religioso, além de inerente e necessária separação e, como efeito consequencial, ao
ao pluralismo e à democracia, a tendência princípio maior da liberdade religiosa.
de se buscar uma máxima influência à Se é assim, ao mesmo tempo em que é
conduta estatal, com o prevalecimento de vedado ao Estado professar determinada
convicções particulares em detrimento das religião (como ocorre nos Estados con-
demais. fessionais) ou emitir sinais aptos a serem
Vedar, pois, aos movimentos religiosos interpretados como mensagens de prefe-
o direito de participação no espaço público rência por específica crença, também lhe é
de troca de idéias, o direito de pregação proibido, por igual, assumir uma postura
de suas crenças e doutrinas, o direito de de hostilidade religiosa e, por isso mesmo,
tentar ver prevalecente, no corpo social, de aberta difusão de uma crença atéia,
suas específicas mundividências signifi- agnóstica, ou simplesmente anti-religiosa.
caria atribuir à cláusula da separação uma Pois, se ao Estado impõe-se uma postura
noção conceitual que, ao apoiar-se em de neutralidade e de não-interferência em
nítida hostilidade religiosa, culminaria matéria de religião, então não se pode ad-
por indevidamente se afastar de qualquer mitir seja ele utilizado como instrumento de
parâmetro que seja fundado na idéia de pregação de qualquer postura individual
neutralidade axiológica. em relação à fé (seja ela de aderência a uma
É dizer: não há – nem pode haver – nada específica religião, seja ela de rejeição a to-
na cláusula da separação Estado–Igreja que das as crenças), sob pena de violação, por
se traduza num juízo de valor negativo a igual modo, da cláusula da separação.
respeito do importante papel desempenha- É por tal motivo que se mostra revestida
do pelas religiões na sociedade, do próprio da maior pertinência a expressão utilizada
conteúdo de suas doutrinas de fé, e da parti- por Jorge Miranda, que, ao descrever as hi-
cipação dos grupos religiosos nos processos 22
Para Jónatas Machado (1996, p. 231), “a neutra-
de tomada de decisões políticas. O que lidade confessional do Estado não pretende, de forma
há, isso sim, é um juízo de valor negativo, alguma, hostilizar o fenômeno religioso em geral ou
emitido especificamente quanto a alguns uma confissão religiosa em particular. Ela pretende
apenas afastar a coerção e a discriminação do âmbito
particularizados modos de relacionamento
religioso, fazendo valer, também nesse domínio, o seu
entre Estado e Igreja que, no decorrer da programa de liberdade e igualdade jurídica de todos
história, revelaram-se verdadeiros instru- os cidadãos e formações sociais”.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 361


póteses de Estado hostil à religião, a eles se considerar essa objeção como uma
refere como Estados de “confessionalidade espécie de veto prorrogado, a fim
negativa”, a evidenciar, portanto, que o Es- de examinar o que podem aprender
tado ateu nada mais é do que uma espécie com ele. Considerando a origem re-
de Estado confessional, que adotou uma ligiosa de seus fundamentos morais,
específica posição em tema de fé e que dela o Estado liberal deveria contar com
se tornou um instrumento de propagação. a possibilidade de que, em vista dos
Miranda Campoamor (1974, p. 13), de seu desafios totalmente novos, ‘a cultura
turno, segue pensamento semelhante, ao do entendimento humano comum’
afirmar que “o ateísmo seria a Igreja oficial (Hegel) não atinja o nível de arti-
dos países comunistas”23. culação da história de sua própria
O fato, portanto, é o de que a cláusula gênese”.
da separação Estado–Igreja jamais pode
ser interpretada em qualquer sentido que
4. A separação Estado–Igreja e os
a faça coincidir com a noção mesma de
hostilidade religiosa. Num Estado que seja limites da influência exercida por
democrático e plural, grupos religiosos, as- grupos religiosos no comportamento
sim como os demais grupos veiculadores de estatal. A obrigatoriedade da utilização,
determinados posicionamentos filosóficos, pelo Estado, de uma razão pública
morais ou políticos, devem ter assegurado Vê-se, pois, que a participação de mo-
não só o seu lugar no espaço público de vimentos religiosos no espaço público não
discussões e debates, mas também o seu só é legítima, como, também, relevante
direito de tentar fazer prevalecer, no corpo numa sociedade que se pretenda inclusiva
social, suas específicas mundividências. e pluralista.
Esse também é o pensamento de Haber- Deve-se ponderar, contudo, que, mui-
mas (2004, p. 145-146), que, após advertir to embora seja desejável ao pluralismo
que “o Estado liberal (...) desperta nos fiéis a riqueza de pensamentos e as trocas e
a suspeita de que a secularização ocidental disputas travadas entre eles (o que apenas
poderia ser uma via de mão única, que amplia o espaço de debates, contribuindo
deixaria a religião à margem”, enfatiza o para o próprio exercício material da liber-
que se segue, verbis: dade de escolha individual pelos cidadãos),
“A política liberal não tem o direito a influência exercida pelos grupos religio-
de externar o conflito permanente sos sobre o Estado jamais pode chegar ao
ligado à autocompreensão secular da extremo de motivar comportamentos que
sociedade, nem fazer com que ele só violem as exigências inerentes à cláusula
se realize na mente dos fiéis. O senso da separação (quais sejam, da neutralidade
comum, democraticamente esclareci- axiológica e da não-ingerência), pois, em tal
do, não é um conceito singular, mas ocorrendo, restará altamente comprometi-
descreve a constituição mental de do o regime de liberdades, que é a própria
uma esfera pública, composta por condição de existência de uma sociedade
uma pluralidade de vozes. Em tais plural.
questões, as maiorias seculares não Em verdade, se a (legítima e desejada)
devem tirar conclusões antes de ouvir influência exercida por grupos religiosos
atentamente a objeção dos oponen- sobre o comportamento estatal chegar
tes, que se sentem lesados em suas ao inaceitável ponto de culminar com a
convicções religiosas. Elas devem consagração de políticas sectárias, discri-
23
No original: “El ateísmo sería la Iglesia oficial minatórias, ou mesmo com a eleição, para
de los países comunistas”. fins de adoção e justificação de atos oficiais,

362 Revista de Informação Legislativa


de uma específica doutrina espiritual, em ção de um específico pensamento religioso
detrimento de todas as demais existentes em detrimento dos demais, culminem por
no corpo social, então ultrapassadas estarão ofender os parâmetros da neutralidade
as fronteiras de atuação das Igrejas que são axiológica e da não-ingerência institucional
impostas pela cláusula da separação. Em e dogmática, e por comprometer os direitos
casos tais, portanto, não mais se poderá de igual liberdade religiosa titularizados
falar na legítima, desejada e constitucio- por todos os cidadãos.
nalmente assegurada atuação de grupos Cumpre acrescentar, ainda, que even-
de interesse de viés religioso, num contexto tuais políticas públicas revestidas de
de concretização do pluralismo, mas, isso substrato religioso (e derivadas da atuação
sim, na própria tentativa de subalterna positiva de grupos religiosos junto ao apa-
instrumentalização do Estado, para fins de rato estatal) não apenas violam a cláusula
estabelecimento, por leis e atos de caráter assecuratória da separação e ofendem os
impositivo, de um específico pensamento direitos de igual liberdade religiosa de
religioso, ético ou moral, cuja aceitação, todos os indivíduos, mas também colocam
ou não, deveria ter sido reservada à esfera sob forte suspeita a própria legitimidade da
íntima de cada cidadão, e não imposta por atuação do Estado, que tem o poder-dever
meio de atos gerais e cogentes, emanados de fundamentar e motivar suas políticas
das autoridades públicas. públicas a partir da noção mesma de “ra-
É preciso, portanto, que todos estejamos zão pública” (tal como preconizado por
atentos às advertências de Leo Pfeffer (1971, Rawls), ou seja, em bases discursivas que
p. 99) (já utilizadas neste escrito), no sentido se mostrem intersubjetivamente válidas,
de que, “tendo em vista que governo e lei isto é, passíveis de serem aferidas e com-
são meios altamente potentes de transfor- preendidas, em termos igualitários, por
mar valores particulares em regras univer- todos os cidadãos, independentemente da
sais de conduta, cada grupo religioso em si- crença professada.
tuação de concorrência buscará obter junto Ou seja, não se pode perder de pers-
ao governo o reconhecimento de que seus pectiva que a compreensão e a aceitação
particulares valores são os melhores”. dos pensamentos de cunho religioso estão
Entretanto, não se deve jamais esquecer essencialmente condicionadas pela fé, o
que não compete ao Estado, por efeito do que importa dizer que o conteúdo mesmo
regime de separação, exercer qualquer juízo de crenças e doutrinas religiosas só se re-
eletivo a respeito das doutrinas religiosas veste de significação e sentido para aque-
em disputa, para, a partir dessa escolha, las específicas pessoas que são filiadas ao
adotar políticas públicas de privilégios respectivo movimento, sendo de pouca ou
ou tomar decisões políticas que sejam nenhuma validade para os que propagam
fundadas em razões essencialmente con- crença diversa e para aqueles que em nada
fessionais. crêem.
Os limites de atuação das entidades É por esse motivo que os fundamentos
religiosas enquanto grupos de interesse, inerentes aos discursos e pensamentos re-
portanto, encontram sua fonte normativa ligiosos, porque apoiados essencialmente
na própria cláusula da separação Estado– na fé individual, não socorrem ao Estado,
Igreja e nas exigências que dela derivam, o no que se refere ao dever de justificação
que implica dizer que os comportamentos e motivação de seus atos e políticas, pois
estatais podem, sim, sofrer a legítima in- essa particularizada exigência de funda-
fluência de grupos religiosos, desde que mentação deve ser atendida em termos
essa influência não resulte na adoção de que sejam “intersubjetivamente válidos”,
políticas públicas que, ao traduzirem a elei- ou seja, aferíveis, compreensíveis e perti-

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 363


nentes não só àquela parcela de cidadãos Primeira, os assuntos religiosos são matéria
seguidora de determinada crença, mas a de fé. Segunda, os assuntos religiosos são
todos os indivíduos. planos inclinados a paixões, que desvariam,
Demais disso, as convicções religiosas a intolerâncias, que degradam”26.
(ou crenças) fazem parte, ao lado do amor, E é exatamente essa natureza do pen-
daquilo que se apreende pela intuição e samento religioso (e sua necessária vincu-
não pela razão24. Daí por que serem as lação à fé individual para fins de compre-
divergências de fundo religioso aquelas ensão e aceitação de seu conteúdo) que o
de equacionamento mais delicado, pois torna absolutamente inservível para fins de
ignoram todos os métodos que a lógica e a eleição, justificação e motivação de políticas
razão conhecem para explicar determina- públicas, pois, repita-se, para aquela parce-
dos fenômenos. la dos cidadãos que não professa a crença
Em tema religioso, portanto, não há que subjacente ao ato estatal, este se acha des-
se falar em convencimento pela lógica do propositado, impertinente, esvaziado de
argumento25, o que abre perigosos flancos à conteúdo e despido de fundamentação.
utilização da força como fonte de compul- Jónatas Machado (1996, p. 148-149),
sória conversão. Nos dizeres de Sampaio com propriedade, refere-se à exigência, aos
Dória, “... as religiões se distinguem das de- poderes públicos, da utilização
mais realidades opináveis em duas coisas. “... de uma linguagem publicamente
acessível e intersubjectivamente váli-
24
Neste sentido, as palavras de Sampaio Dória da, isto é, suscetível de ser examinada
(1958, p. 722), verbis: “Nas coisas sobrenaturais, porém,
nas doutro ou doutros mundos, o caminho para se
e avaliada de acordo com as capacida-
vir a saber alguma coisa já não é a observação lógica. des naturais do intelecto humano. Tal
Esta seria, quando muito, um processo auxiliar. O exigência decorre das idéias conjuga-
caminho da verdade religiosa é a fé, é a tendência das de república das razões e de razão
íntima, mais instintiva que consciente, para aderir à
verdade de certas afirmações, independentemente, e,
pública. Em face das mesmas, pode
até, contra factos e provas. Crê-se, ainda, no incrível. dizer-se que essa utilização constitui
Credo ad absurdum”. um dever cívico no contexto de uma
25
Eis o que consta, no ponto, do pensamento de comunidade política formada por
Sampaio Dória (1958, p. 716-717): “Dividem-se as
coisas cognoscíveis em dois grupos: as passíveis de
cidadãos livres e iguais e conformada
observação científica, e aquelas para a busca de cujo de acordo com princípios de justiça
conhecimento não decidem os métodos lógicos. Tanto assentes em bases de razoabilidade e
pode o homem opinar sôbre as realidades sensíveis racionalidade. Do ponto de vista dos
dêste mundo, como sôbre realidades sobrenaturais,
cuja existência admita. As opiniões sôbre aquelas po-
órgãos estaduais, ela traduz-se no dever
dem ser demonstradas de modo que a todos persuada. de adoptar um discurso legitimador e
As opiniões sôbre estas, porém, embora atraentes, só fundamentante do poder político e do seu
logram adesão por aqueles que já sejam de índole exercício em termos confessionalmente
mística (...). É o que se verifica principalmente em
matéria religiosa (...). Haverá, realmente, êsse poder
neutros. No fundo, trata-se de procu-
sobrenatural? (...) São incógnitas até hoje indecifráveis rar, no domínio das questões políti-
no campo da ciência. Não obstante, fazem os homens cas em que podem estar em causa a
sôbre elas afirmações convictas, estruturam doutrinas, operação de diferenciações jurídicas
sistematizam filosofias e, ao impulso das convicções
que os animem, oram, pregam, associam-se, devotam-
ou o emprego de formas de coacção,
se, e chegam até ao extremo das guerras, no empenho justificar as opções a que se chegue,
de propagar as opiniões que os inebriem. Os dois não por via de argumentos deduzidos de
grupos de conhecimento são inconfundíveis: os cien- premissas teológico-confessionais parti-
tíficos, cuja verdade, uma vez provada, todos aceitam;
e os religiosos, cuja verdade, por mais calorosas que
culares ou referidos a um determinado
sejam as pregações, é constantemente negada por
quem não tenha fé”. 26
Idem, p. 721.

364 Revista de Informação Legislativa


sistema simbólico, mas através de uma de gerar a emissão, aos cidadãos, de men-
linguagem susceptível de ser aceita sagens de potencial altamente lesivo ao
por todos como consistente com os seus regime de liberdades públicas: 1) a de que
direitos de igual liberdade. Isto, para a religião se qualifica como um instrumen-
não se desembocar no conflito sectário to (um meio) do Estado, apta a legitimar
ou no exercício de uma pura dominação seus comportamentos e suas políticas, em
contrária à dignidade dos indivíduos” total transgressão à noção de separação
(sem grifos no original). das esferas espiritual e temporal e com
Vê-se, portanto, que a legítima participa- possíveis e graves repercussões na própria
ção de movimentos religiosos, na condição autonomia interna das Igrejas; ou, ainda,
de verdadeiro grupo de interesse, no espaço 2) a mensagem, igualmente grave, de que
público de discussão e de troca de idéias, o aparato burocrático do Estado foi instru-
jamais poderá desembocar na eleição, pelo mentalizado por organizações religiosas,
Estado, de uma dada crença, para fins de havendo este se transformado não num
adoção ou motivação de políticas públicas ente responsável pela tutela intransigente
ou de atos oficiais. É que, além de não dos direitos igualmente titularizados por
competir ao Estado, por força da cláusula todos os cidadãos, mas, isso sim, num agen-
da separação, emitir qualquer juízo de valor te de propagação e de unilateral imposição
ou de preferência a respeito de dogmas de de um específico pensamento confessional,
fé, também não lhe é dado utilizar, como em total aniquilamento dos direitos de
fundamento de suas condutas, pensamen- liberdade e em nítida afronta ao aspecto
tos religiosos que, por sua natureza mesma, essencialmente voluntário que deve preva-
carecem de significação e de sentido àquela lecer em tema de adesão religiosa.
parcela da população que, titular de igual
dignidade e merecedora de igual respeito, A separação Estado–Igreja e as denominadas
é adepta de posicionamento diverso em questões mistas: aborto, células-tronco, métodos
matéria de religião27. contraceptivos e casamento homossexual
Mencione-se, finalmente, que os limi- Inobstante as premissas acima lançadas,
tes impostos pela cláusula da separação cumpre asseverar que, em determinadas
à influência passível de ser exercida, por situações, e dada a própria natureza de
movimentos religiosos, nas condutas dos algumas matérias (que podem envolver,
poderes públicos apenas protegem e garan- simultaneamente, juízos científicos, juízos
tem as finalidades buscadas pela consagra- morais, juízos éticos ou juízos religiosos),
ção desse específico regime: a proteção da não se revela tão nítida a linha de separa-
liberdade dos indivíduos, e, também, da ção que, ordinariamente, deve colocar em
liberdade interna das organizações religio- campos distintos o discurso confessional e
sas e da liberdade do próprio Estado. o discurso secular; os valores religiosos e os
É que o patrocínio, pelo Estado, para valores e prioridades do Estado.
fins de eleição ou justificação de políticas Trata-se, portanto, daqueles particula-
públicas, de uma específica crença reli- rizados casos nos quais se mostra particu-
giosa, com a conseqüente apropriação de larmente delicado precisar se uma dada
um dado discurso religioso, tem o efeito política pública ou se uma determinada
conduta (mesmo que omissiva) imputada
27
A esse respeito, Ronald Dowrkin (1994, p. 6) ao poder público acha-se ou não afetada
enfatiza como os pensamentos defendidos pela Igreja em sua validade, considerada sua excessiva
têm-se colocado em rota de colisão com os de um outro
grupo de interesses que desfruta de sensível poder
vinculação (ou não) a um específico dogma
na sociedade americana: aquele representado pelos religioso. É o que ocorre com as chamadas
movimentos femininos. “políticas mistas”, ou seja, com aquelas maté-

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rias que possuem forte coloração religiosa, É dizer: tendo em vista a forte coloração
mas que se projetam, por igual, nas esferas religiosa que determinados temas podem
pertinentes à saúde pública, ao biodireito, assumir (tal como ocorre com as questões
à igualdade de gênero e à livre orientação inerentes às pesquisas com células-tronco,
sexual individual28. às políticas de distribuição de contracepti-
E é exatamente esse forte imbricamento vos, ao aborto e ao enquadramento jurídico
entre fator religioso e fatores outros, todos a ser dado às relações homoafetivas), inda-
eles desvinculados de qualquer premissa gações a respeito das crenças de candidatos
de fé, o que caracteriza as chamadas políti- a cargos eletivos ou de juízes indicados
cas mistas e o que as torna objeto de acirrada aos postos mais elevados da magistratura
polêmica e controvérsia tanto no seio da nacional tornaram-se não só freqüentes,
coletividade, como no âmbito do próprio como também pertinentes e necessárias à
Poder Judiciário. perquirição do posicionamento pessoal de
Pois o fato é que, como dito acima, em cada um desses indivíduos, no que con-
tema de religião, não há que se pretender o cerne às matérias enquadradas na noção
convencimento pela lógica do argumento, de política mista. Pois não se pode jamais
eis que o pensamento religioso se apreende desconsiderar que aqueles que possuem
pela intuição e pela fé, e não pela razão. E, uma determinada crença religiosa terão
tendo em vista que as chamadas políticas todo o seu pensamento permeado pela
mistas caracterizam-se, principalmente, por própria verdade inerente à doutrina que
essa sobreposição de esferas espiritual e tem- professam, o que torna absolutamente
poral, sua adoção pode ser fervorosamente impossível isolar os conteúdos integrantes
defendida por uns e igualmente rejeitada de uma determinada manifestação e as
por outros, sem que cada um dos titulares de origens das respectivas influências. O fato,
posicionamentos divergentes seja capaz de portanto, como bem reconhece Dworkin
convencer o outro do acerto de sua premissa, (2006, p. 64), é que, para aquelas pessoas
pois, repise-se, a compreensão e a aceitação que crêem, “suas convicções religiosas são
de premissas religiosas são condicionadas seus princípios políticos”.
pela fé individual, e não pela razão. Em interessante análise sobre a dimen-
Cumpre mencionar, por oportuno, que são que as questões religiosas assumiram
as discussões dessas matérias que, por nas disputas subjacentes às eleições presi-
sua natureza mesma, envolvem, a um só denciais norte-americanas de 1984, James
tempo, premissas de fé e premissas secu- Wood Jr (1984, p. 402 e ss), editor fundador
lares, incluindo-se, portanto, naquilo que do Journal of Church and State, esclarece
se pode denominar políticas mistas, têm que Ronald Reagan e seu vice, Bush, eram
colocado a temática religiosa em posição vistos como “God´s instruments in rebuilding
de inquestionável centralidade, no que America”. O papel das crenças religiosas no
concerne aos debates travados em torno das contexto da disputa política era tal que, pela
convicções de candidatos a determinados primeira vez na história, dois livros atribu-
cargos eletivos e, também, em torno das ídos a um Presidente no efetivo exercício
crenças dos próprios indicados aos cargos de seu cargo foram publicados no período
mais elevados da magistratura. eleitoral (Abortion and the Conscience of the
Nation e Ronald Reagan: In God I Trust).
28
Para Habermas (2004, p. 146), “o limite entre De se referir, no ponto, que, muito
as razões seculares e as religiosas é fluido. Por isso, o embora fortemente apoiado por grupos
estabelecimento desse controvertido limite deveria ser
entendido como uma tarefa de cooperação, que exige
conservadores cristãos, a juíza indicada
que ambos os lados adotem também a perspectiva por Reagan à Suprema Corte Americana,
do outro”. Justice Sandra Day O´Connor, de posições

366 Revista de Informação Legislativa


moderadas, foi um dos votos favoráveis à religiosas não implica reconhecer qualquer
manutenção do reconhecimento da consti- ameaça à necessidade de que a justiça seja
tucionalidade do aborto, o que, para Robert imparcial. Tais crenças, por isso mesmo,
Boston (2003, p. 20), teria irritado a direita devem ser abertas a escrutínio” (tradução
religiosa norte-americana, cujo apoio foi livre)31.
determinante à vitória presidencial de No que concerne especificamente à
Reagan. realidade política americana, o fato de
A importância da discussão religiosa, muitas políticas laicas guardarem estreita
derivada da influência determinante exer- vinculação com princípios de índole essen-
cida pelas crenças nas chamadas questões cialmente religiosa tem levado os Estados
mistas, também é abordada por Matthew Unidos, no entender de Dworkin (2006, p.
Franck (2006, p. 452-453), no que se refere, 53), a vivenciarem um momento de acen-
especificamente, à composição dos juízes tuado uso político do “apelo e da retórica
da Suprema Corte Americana e ao interesse religiosas”, capaz de gerar um sectarismo e
que suas respectivas preferências religiosas uma divisão que são nocivas à própria so-
têm suscitado na opinião pública e no meio ciedade. E essas políticas axiologicamente
político. vinculadas à religião – aqui denominadas
É que, como dito, temas como aborto, políticas mistas – seriam, para o autor,
pesquisas com células-tronco, distribui- aquelas referentes a aborto, pesquisas com
ção pública de métodos contraceptivos células-tronco e casamento homossexual.
e relações homoafetivas são de tal modo (Idem, p. 54-55).
permeados pelo pensamento religioso que Ao buscar equacionar o problema relati-
perguntas, na sabatina pelo Poder Legisla- vo aos limites dentro dos quais pode o Es-
tivo, a respeito de “quão cristão” ou “quão tado se valer de determinado pensamento
católico” é um indicado a uma vaga na religioso, para fins de adoção, ou não, de
mais alta Corte daquele país tornaram-se específica política pública (especialmente
comuns, com o perigo de se restabelecerem, quando se tratar de uma política mista, a
tal como advertido pelo autor, os atestados versar assunto com necessária projeção na
ideológicos, expressamente vedados pelo esfera do pensamento religioso), Dworkin
artigo VI da Constituição Americana29 e in- adota o mesmo marco teórico aqui eleito: a
compatíveis, de qualquer sorte, com o con- cláusula da separação Estado–Igreja e todos
ceito de liberdade individual de crença30. os elementos conceituais que a integram.
Ao analisar idêntico tema – perguntas Assim, para referido autor, a resposta
sobre a respectiva crença religiosa, dirigidas a ser dada à pergunta sobre o papel a ser
aos indicados à Suprema Corte –, D’Army desempenhado pela religião em tema de
Bailey (2006, p. 446) chega à conclusão de adoção de políticas públicas (aí incluídas
que tais questionamentos são não apenas as políticas mistas) está a depender de um
oportunos, como também necessários, pois posicionamento prévio, necessariamente
“os juízes possuem crenças, essas crenças vinculado à abrangência e ao alcance que
são relevantes em seus processos decisó- se pretende conferir à cláusula da separação
rios e, portanto, partilhar tais convicções Estado–Igreja.
Por esse modo de ver as coisas, o limite
29
Para o autor, esses problemas decorrem de da influência do pensamento religioso
uma autopolitização da Corte (que teria extrapolado
de suas funções), a ameaçar a politização das crenças
em tema de políticas estatais será neces-
religiosas.
30
No sentido da inconstitucionalidade de exi- 31
“the judges have beliefs, their beliefs are relevant
gências de atestados ideológicos, conferir: MELLO to their decision-making, and sharing those beliefs will
FILHO, José Celso de. Constituição Federal anotada. 2 not threaten impartial justice. Those beliefs should be
ed. São Paulo: Saraiva, 1986. p. 440. open to inquiry”.

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sariamente condicionado por um juízo públicas que consagrem ou tornem impo-
antecedente, sobre se o Estado deve ser sitiva uma específica verdade religiosa, em
laico e conviver com a religião de seus ci- detrimento de todas as demais existentes
dadãos, ou se o Estado deve ser religioso, no corpo social.
admitindo a descrença de alguns de seus O pensamento religioso, portanto, por
cidadãos (Ibidem, p. 56). A opção por um se apoiar, essencialmente, na idéia (exclu-
ou outro modelo, pois, vinculará o grau dente) de monopólio da verdade e por
de permeabilidade estatal às verdades depender, para sua compreensão e aceita-
religiosas, verbis: ção, da fé individual, deve ser reservado à
“Esses dois modelos refletem princí- esfera íntima de cada cidadão, competindo
pios de moralidade política que são unicamente ao Estado a função de neutra
contrários entre si, e, muito embora proteção e guarda de um ambiente religioso
nós, em algum momento, sejamos que seja fundado na pluralidade, na livre
forçados, por determinadas políticas circulação de idéias (e no livre proselitis-
práticas, a construir alguma solução mo), na igualdade material entre crenças
de compromisso entre eles, qualquer e na igual dignidade de que são titulares
argumento sério a respeito do lugar todos os indivíduos e todos os movimentos
da religião no governo e na vida pú- religiosos.
blica deverá, no limite, representar E é por esse mesmo motivo que, em
um debate a respeito desses dois tema de políticas mistas – ou seja, daquelas
ideais” (tradução livre). matérias que envolvem, a um só tempo,
Partindo, portanto (tal como ora defen- políticas laicas estatais e pensamentos
dido neste trabalho), da premissa de que religiosos –, deve o Estado abster-se de
a cláusula da separação Estado–Igreja, qualquer medida que torne um específico
enquanto direito–garantia, deve ser com- comportamento compulsoriamente obriga-
preendida de forma a conferir a mais ampla tório ou peremptoriamente proibido, pois,
efetividade aos direitos fundamentais de para tanto, seria preciso exercer um juízo
liberdade religiosa, impondo, ao Estado, valorativo e eletivo em matéria religiosa
comportamentos que se pautem pelos pa- a que o Estado, em função da cláusula
râmetros da neutralidade axiológica e da da separação, não se acha autorizado a
não-ingerência (seja dogmática, seja insti- proceder.
tucional), de sorte a se preservar a volunta- Não se pode ignorar, no ponto, que a
riedade e a autenticidade que são inerentes religião, dadas as suas particularidades,
ao fenômeno religioso e a se assegurar qualifica-se como uma realidade que,
que a liberdade de escolha religiosa pelos muito embora complexa, mostra-se inques-
indivíduos seja exercida num ambiente de tionavelmente incindível. Crença e culto,
pluralidade, fundado na igual dignidade pensamento e conduta, fé e ação, portanto,
de crenças, a primeira opção (Estado laico nada mais são do que duas faces de um
que convive com as crenças individuais) é a único e indivisível fenômeno: o fenômeno
única que se revela passível de escolha. religioso (que alcança, por igual, a própria
E essa opção por uma defesa intran- vida interna ou orgânica das entidades
sigente do regime de separação Estado– religiosas).
Igreja traz como conseqüência inevitável a É por essa razão que se pode afirmar que
adoção de um posicionamento que rejeita, o princípio maior da liberdade religiosa, em
por incompatível com o princípio maior sua máxima efetividade, está a depender
da liberdade religiosa, qualquer grau de da simultânea consagração dos direitos
permeabilidade estatal ao pensamento de liberdade religiosa em três dimensões
religioso que resulte na adoção de políticas distintas: a individual (consubstanciadora

368 Revista de Informação Legislativa


dos direitos de liberdade de crença); a co- as menores restrições possíveis em um ou
letiva (consubstanciadora dos direitos de em cada um deles.
livre exercício dos cultos) e a institucional Qualquer banalização, portanto, da
(a abranger a liberdade interna das Igrejas dicotomia pensamento–ação ou crença–
e a formar um núcleo de questões – religious conduta, capaz de ensejar uma “generosa
question doctrine (MACHADO, 1996, p. protecção da primeira” e uma “desvalo-
229) – que são infensas à intervenção dos rização da segunda” (MACHADO, 1996,
poderes públicos). p. 222-223), culminará por enfraquecer a
O importante a ser destacado, no ponto, própria tutela da liberdade religiosa e por
é que, para além da liberdade interna das descaracterizar o conteúdo do fenômeno
Igrejas, somente se poderá cogitar de um re- religioso.
gime amplamente protetivo e consagrador Daí a orientação de Jónatas Machado
do princípio maior da liberdade religiosa se (1996, p. 223), para quem “as convicções
os indivíduos se acharem livres não apenas religiosas, como também as convicções de
para escolher um específico pensamento outra natureza, encerram, freqüentemente,
religioso e para nele crer de modo íntimo a assunção íntima e vital de um compro-
(liberdade de crença), mas, por igual, se os misso existencial e ético, com significativas
indivíduos forem igualmente livres para repercussões comportamentais nos planos
exteriorizarem sua convicção pessoal em político, social, cultural, econômico, etc.
matéria religiosa e, sobretudo, para se Se assim é, tais convicções não podem ser
comportarem, positivamente, de acordo artificialmente desligadas da acção huma-
com os ditames impostos pela fé. na em que se concretizam e manifestam,
Assim, “(se) o Estado, apesar de con- juntamente com a qual se subsumem a
ceder aos cidadãos o direito de terem uma realidade incindível: o fenômeno
uma religião, os puser em condições que religioso”.
os impeçam de a praticar, aí não haverá Por esse modo de ver as coisas, a adoção
liberdade religiosa” (MIRANDA, 2000, p. de um determinado pensamento religioso
409). Pois o fato é o de que, tendo em vista a traduz, necessariamente, uma tomada de
natureza incindível do fenômeno religioso posição individual que, ao transcender o
e a unidade que se estabelece entre pensa- aspecto eminentemente religioso inerente
mento–conduta, ou entre crença–ação, de à opção realizada, representará verdadeira
nada adiantaria ter ampla liberdade para escolha por um específico modo de vida,
se crer se os mandamentos impostos por por uma dada forma de equacionar ques-
essa crença não pudessem ser amplamente tões existenciais, morais, éticas, políticas,
seguidos. sociais e culturais.
Cumpre mencionar que, muito embora É dizer: o componente religioso, ao
a liberdade de culto não possa ser qualifica- integrar os demais aspectos vinculados à
da – ao contrário do que ocorre com a liber- formação da identidade individual, passará
dade de crença – como inviolável, qualquer a conformar, influenciando-os, os posicio-
restrição dirigida às mais diversas formas namentos e comportamentos pessoais não
de exteriorização de crenças individuais apenas em relação a assuntos vinculados
ou aos comportamentos pessoais segundo à fé, mas, também, no que atine a uma
tais convicções – presente a unidade incin- outra infinidade de matérias a respeito
dível do fenômeno religioso – deverá ser das quais têm-se posicionado, de maneira
justificada ou motivada por uma colisão ativa e na condição de verdadeiros grupos
de direitos igualmente fundamentais, a de interesse, as entidades religiosas. Entre
demandar uma harmonização prática, de essas outras matérias, destacam-se, pela
sorte a torná-los compatíveis entre si, com importância e polêmica que envolvem, as

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denominadas questões mistas, a compreen- um elaborar o seu particular conceito de
derem, especialmente, o aborto, a pesquisa existência (...), do universo e dos mistérios
com células-tronco, a distribuição de con- da vida humana. As crenças e convicções
traceptivos e o enquadramento jurídico a em tais assuntos jamais poderiam definir
ser dado às relações homoafetivas. os atributos da personalidade individual
E é por esse motivo que, em tema de po- se viessem a ser formadas através da força
líticas mistas, ou seja, de políticas vinculadas coercitiva do Estado” (tradução livre e sem
a matérias que atingem, de modo simultâ- grifos no original)33.
neo e sensível, tanto a esfera secular como É dizer: o acentuado componente moral
a esfera religiosa do pensamento, deve o e religioso que caracteriza as discussões
Estado manter posturas de não-imposição, em torno do aborto, das pesquisas com
ou seja, posturas fundadas na ausência de células-tronco, da utilização de métodos
taxativas proibições ou de peremptórias contraceptivos e do enquadramento legal
obrigações, em relação àqueles específicos a ser conferido às relações homossexuais
comportamentos que, por se acharem in- (matérias que consubstanciam o verdadei-
trinsecamente vinculados a determinadas ro núcleo duro – hard core – das políticas
doutrinas de fé, devem ser submetidos ao mistas) impõe que o Estado, ao tratar de
juízo pessoal de ponderação, avaliação e políticas públicas referentes a tais assuntos,
discrição por parte de cada um dos indiví- assuma postura de total neutralidade e de
duos, que têm o inalienável direito de se- absoluto respeito às opções individuais ex-
rem quem são, de construírem seu próprio ternadas por cada um dos cidadãos, a partir
destino e de adotarem aquela específica da respectiva crença ou mundividência.
forma de encarar o mundo (mundividên- É que, em assim não sendo, o Estado,
cia) que entendem adequada e pertinente ao impor específico comportamento ou ao
à busca da felicidade32. proibir determinada conduta – e em se tra-
Daí a total aplicabilidade e pertinência, tando de uma das temáticas que integram
no ponto, do que afirmado pela Supre- a essência das denominadas políticas mistas
ma Corte Americana, no sentido de que –, culminará por se substituir aos próprios
algumas específicas matérias “envolvem indivíduos, na eleição de um dado modo
as mais íntimas e pessoais escolhas que de vida, de uma particularizada crença
um indivíduo pode fazer ao longo de sua religiosa, ou na escolha de padrões compor-
vida; escolhas centrais à dignidade e à au- tamentais que, exatamente por suscitarem
tonomia pessoais e centrais ao direito de uma dúvida moral razoável, deveriam ter
liberdade (...). Insere-se no cerne da idéia sua análise valorativa reservada à íntima
de liberdade individual o direito de cada esfera de livre apreciação e discrição de
cada um dos cidadãos.
32
A expressão “busca da felicidade” foi apropriada-
mente utilizada pelo Ministro José Celso de Mello Filho,
A neutralidade axiológica, imposta ao
que, em aparte (sessão plenária de 08/03/2008), e ao Estado pela cláusula da separação Estado
classificar como antológico o voto então proferido pelo – Igreja e igualmente demandada pelo prin-
Ministro Carlos Ayres Britto, no julgamento da Ação cípio maior da liberdade religiosa, impede,
Direta de Inconstitucionalidade no 3510, destacou a
esperança que ele representava aos que sofrem de do- portanto, que os poderes públicos tratem de
enças gravíssimas e que encontram, nas pesquisas com forma desigualadora qualquer das crenças
células-tronco, uma possibilidade de cura. A expressão em competição, e, por isso mesmo, obsta a
também é encontrada na ementa (syllabus) do julgamen- que um específico pensamento religioso
to proferido pela Suprema Corte Americana, no caso
Loving v. Virginia 388 U.S 1 (1967), no qual se declarou receba a chancela estatal e se torne, ele
a inconstitucionalidade de lei proibitiva de casamentos próprio, fundamento e justificação de
inter-raciais: “The freedom to marry has long been
recognized as one of the vital personal rights essential 33
Planned Parenthood of Southeastern Pa. v. Casey
to the orderly pursuit of happiness by free men”. (91-744), 505 U.S. 833 (1992).

370 Revista de Informação Legislativa


determinada política pública que, por sua religiosas estão inevitavelmente com-
natureza mesma, afeta, de modo sensível, prometidas no ensinamento de seus
os demais posicionamentos individuais particulares valores religiosos concer-
em matéria de fé existentes no corpo da nentes à moralidade sexual.
sociedade (aí incluídas as posturas de Nesse contexto, recursos federais se-
questionamento ou de negação do valor rão concedidos apenas para aquelas
intrínseco às religiões). organizações religiosas cujos valores
O Estado, pois, ao tomar posição em coincidem com os da política gover-
tema de políticas mistas para o fim de proibir namental. O resultado disso é que re-
determinadas condutas ou para o efeito de cursos federais estão sendo transferi-
torná-las obrigatórias, culmina por também dos para determinadas organizações
se posicionar a respeito das doutrinas reli- religiosas, para que elas ensinem seus
giosas que necessariamente informam tais próprios valores religiosos em tema
comportamentos, escolhendo aquela cujo de moralidade sexual (...).
posicionamento será consagrado no ato Tendo em vista que a legislação em
estatal e que se situará, a partir daí, em po- causa foi explicitamente concebida
sição de nítida superioridade em relação às na defesa da abstinência sexual e
demais doutrinas que não tiveram seu pen- no desestímulo ao uso de contra-
samento referendado pelo poder público. ceptivos e na oposição ao aborto, o
Tudo isso, é claro, com claro desequilíbrio ato normativo beneficia unicamente
do livre mercado de idéias religiosas, em aqueles programas religiosos que
frontal violação à cláusula da separação são compatíveis com os objetivos
Estado–Igreja (e ao parâmetro de neutra- morais da legislação. Duas questões
lidade axiológica por ela exigido) e com se destacam nesse ponto: o uso de
potencial comprometimento da liberdade recursos públicos para o endosso
material de escolha religiosa. de determinados valores religiosos
James Wood Jr. (1988, p. 438), ao criticar sectários, e a inevitabilidade de uma
o julgamento proferido pela Suprema Corte divisão política na matéria” (tradução
Americana no caso Bowen v. Kendrick, no livre, destaques no original).
qual se reconheceu a constitucionalidade Nessa perspectiva, considerados os
de lei federal que autorizava o repasse de mandamentos derivados da cláusula da
verbas públicas federais para entidades separação, e tendo em vista, também, que
públicas ou particulares (aí incluídas as o grau de densificação do princípio maior
confessionais), para o fim específico de da liberdade religiosa está a depender do
combate ao aborto e à gravidez na adoles- fiel atendimento a todos os imperativos
cência, assim se manifestou, no que con- decorrentes desse específico modo de
cerne especificamente à escolha religiosa relacionamento entre movimentos reli-
que é inerente à opção por determinadas giosos e ente estatal, o que se espera das
políticas, aqui consideradas como mistas: autoridades públicas nacionais (aí inclu-
“No caso do Adolescent Family Life ídas as autoridades judiciárias em geral,
Act, as organizações religiosas foram responsáveis pela análise da juridicidade
chamadas para aconselhar e ensinar dos atos estatais, e o Supremo Tribunal
de uma maneira que era compatível Federal, em particular, enquanto guardião
com seus dogmas religiosos. Tendo da Constituição Federal) é que reconheçam,
em vista que a essência mesma da re- em termos semelhantes ao que já explici-
ligião é constituída por certos valores, tado pela Suprema Corte Americana, que
incluídos aqueles relativos ao sexo, à suas respectivas obrigações repousam na
castidade e ao aborto, as organizações definição e na proteção da liberdade de

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 371


todos, e não na imposição de códigos mo- ______. Is democracy possible here? New Jersey: Prince-
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não se pode jamais ignorar que a questão FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos huma-
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ed., t. 5. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971.
34
Está na ementa do julgado proferido pela Su-
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 3
prema Corte Americana, na análise do caso Planned
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Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 373


O Supremo Tribunal Federal como
“tribunal político”
Observações acerca de um lugar comum do direito
constitucional

Paulo Sávio Peixoto Maia

Sumário
Introdução. 1. Modernidade e diferenciação
funcional de sistemas na proposta de Niklas
Luhmann. 2. A diferenciação funcional dos sis-
temas do direito e da política. 3. Constituição: fe-
chamento operacional do direito e da política. 4.
A positividade do direito moderno: a separação
entre jurisdição e legislação. 5. Considerações
finais: problematizando a assim chamada “di-
mensão política” da jurisdição constitucional.

Introdução
Existe uma concepção bem difundida no
debate constitucional brasileiro – um lugar
comum – que descreve o Supremo Tribunal
Federal (STF) como um “tribunal político”.
Uma afirmação que atualmente reveste
colorações de verdade inabalável, ante a
intensidade com que é repetida por alguns
“doutrinadores”. Como se isso não fosse
suficiente, o próprio STF, nesse caso, não
se afasta da doutrina. Ao contrário, ele se
descreve como um “tribunal político”, uma
vez que a jurisdição constitucional possuiria
uma “dimensão política” que seria fruto de
uma revisão do “vetusto dogma da separa-
ção dos poderes”. Mas não tiramos isso da
nossa cabeça: essas são palavras utilizadas
em uma decisão não muito distante do STF,
Paulo Sávio Peixoto Maia é Mestre em Di- proferida na Argüição de Descumprimento
reito, Estado e Constituição pela pela Faculdade de Preceito Fundamental (ADPF) no 451.
de Direito da Universidade de Brasília (UnB) e 1
Supremo Tribunal Federal. ADPF no 45 (DF).
Professor de Direito Constitucional na Univer- Relator: Min. Celso de Mello. Decisão: 29/4/2004. Pu-
sidade de Fortaleza (UNIFOR). blicação: DJ no 84 de 4/5/2004. Também publicada

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 375


Mas o que deveria ser uma decisão cutivo no Brasil se mostraram incapazes
sem maiores repercussões – uma vez que de garantir um cumprimento racional dos
a ADPF 45 não teve seu mérito julgado, respectivos preceitos constitucionais”.
por ter perdido seu objeto – acabou por Assim, seria necessária a atuação do STF
revelar algumas pretensões do STF, em um em matéria de implementação de políticas
curioso obiter dictum. Na decisão foi tecido públicas, pois o “caráter programático das
um vasto texto em que se advoga a “legi- regras inscritas no texto da Carta política
timidade constitucional do controle e da não pode converter-se em promessa cons-
intervenção do Poder Judiciário em tema titucional inconseqüente”.
de implementação de políticas públicas” Em suma, o STF está afirmando que é
(litteris, sempre segundo a decisão). lícito a ele dizer o que é saúde, que isso não é
Nas palavras de seu eminente relator, a uma matéria a ser definida exclusivamente
ADPF se mostra um “instrumento idôneo e por deliberação em um Poder Legislativo
apto a viabilizar a concretização de políticas democraticamente eleito. Isso por si só já
públicas”, o que decorre da “dimensão polí- mostra as pretensões do STF de atuar como
tica da jurisdição constitucional”. E mesmo uma espécie de “superego da sociedade”
com a consciência de que “em princípio o (MAUS, 2000), mas a ADPF 45 nos indica
Poder Judiciário não deve intervir em esfera outro ponto igualmente grave. De forma
reservada a outro Poder para substituí-lo inequívoca, a ADPF 45 traz esculpida a
em juízo de conveniência e oportunidade”, concepção de que o STF seria um “tribunal
parece – sempre nas palavras do relator político”, o que, por sua vez, denota uma
– “cada vez mais necessária a revisão do desconsideração da diferença entre direito
vetusto dogma da Separação dos Poderes e política2.
(...) visto que os Poderes Legislativo e Exe- O que intentamos neste trabalho é
problematizar esse senso comum, essa
no Informativo no 345 do STF. Arguinte: Partido da
Social Democracia Brasileira (PSDB). Arguido: Presi-
desconsideração da diferença entre direito
dente da República. e política, que coloca o STF na posição de
A ADPF 45 foi proposta porque o Presidente da um “legislador concorrente”. O que nos
República vetara o § 2o do art. 55 da Lei 10.707/2003 causa perplexidade, assim, é a difusão de
(Lei de Diretrizes Orçamentárias). Isso na prática fazia
com que os gastos do Governo Federal com o Pro-
um entendimento teórico que fundamenta
grama Fome Zero fossem contabilizados como uma a atuação “política” do órgão de cúpula
verba pública para a saúde. O arguinte alegou que do Poder Judiciário. As reflexões que se
isso violara preceito fundamental (seja lá o que isso seguem partem do pressuposto de que
signifique) estabelecido pela Emenda Constitucional
no 29 (em seu art. 7o, II, “b”), que fixa a exigência de
política e direito se diferenciam, que os
que o orçamento destine um percentual mínimo a tribunais não têm função política. Para levar
ser gasto com a saúde. Assim, segundo o arguinte, a cabo essa proposta, utilizaremos a teoria
uma vez que o Programa Fome Zero seria uma ação da diferenciação da sociedade de Niklas
de assistência social, a sua inclusão no percentual
orçamentário destinado à saúde consistiria em um
Luhmann para vislumbrar os estreitos
artifício para o Executivo descumprir a aplicação da limites que são próprios à tese de nivelar a
parcela mínima a ser aplicada na saúde. diferença entre o direito e a política.
Depois da ação constitucional já ter sido proposta, Para isso propomos um roteiro. Ve-
o Presidente da República enviou ao Congresso um
novo projeto de lei para ser aprovado no lugar da Lei
remos (i) como a sociedade moderna se
10.707/03 e no qual constava o dispositivo vetado. diferencia por funções autônomas para
Aprovado tal projeto, foi aprovada a Lei 10.777/03,
que ab-rogou a Lei 10.707/03. Como não poderia 2
Portanto, a ADPF 45 não é exatamente uma deci-
deixar de ser, a ADPF foi considerada prejudicada – são inovadora: ela apenas sintetiza e torna manifesta
uma vez que o dispositivo anteriormente vetado se uma concepção que há muito tempo circula no nosso
encontrava nessa segunda e definitiva versão da LDO, direito constitucional. Nessa medida e nesses limites,
o que fazia a ADPF 45 perder o seu objeto. ela será aqui utilizada.

376 Revista de Informação Legislativa


(ii) melhor compreender a diferenciação interior da sociedade (LUHMANN, 1999a,
existente entre direito e política. Aborda- p. 189), ou seja, de como a sociedade orga-
remos em seguida (iii) o papel exercido niza a comunicação.
pela Constituição para o fechamento dos Na proposta de Luhmann, existem
sistemas do direito e da política, assim quatro maneiras de se organizar a comuni-
como para a comunicação entre eles. Com cação social, quatro estilos de diferenciação
a auto-referência do direito (que acontece social: segmentária, centro/periferia, por
na modernidade), sua vigência passa a ser estratos e funcional. Elas não se excluem
expressa pela positividade, o que, por um reciprocamente e não se sucedem à maneira
lado, isola os tribunais de funções governa- de um positivismo comteano. O que pode
mentais ou legislativas, e, por outro lado, ser verificado é o primado de um tipo de
faz surgir um Poder Legislativo como o diferenciação perante outras quando uma
destinatário do desejo de mudança do di- “forma regula as possibilidades de ativação
reito vigente na sociedade (iv). Após esse das outras” (LUHMANN; DE GIORGI,
percurso, teremos subsídios para avaliar 1994, p. 255)3.
(v) a chamada “dimensão política” que o Para os fins deste artigo, é necessário
STF se auto-atribui: e as conseqüências que falar da passagem do primado da diferen-
daí derivam. ciação por estratos para o da diferenciação
funcional4. Até o alvorecer dos Oitocentos,
a sociedade européia se pautava em uma
1. Modernidade e diferenciação funcional de
diferenciação por estratos, conceito que desig-
sistemas na proposta de Niklas Luhmann na uma sociedade que “tem a sua estrutura
A teoria da diferenciação de Niklas fundamental na distinção de duas partes,
Luhmann (1998, p. 34) tem por pressuposto isto é, na distinção entre nobreza e povo
a substituição da noção de “sistema” como comum” (Idem, p. 256)5.
um todo unitário, colocando em seu lugar 3
Deve ficar claro que não se trata de uma grande
aquela que compreende o sistema a partir narrativa que vai do status ao contrato (Henry Summer
da noção de diferença. Não por acaso seu Maine) da solidariedade mecânica para a orgânica (Emile
postulado metodológico básico é a distin- Durkheim) ou da experiência vivida para a forma (Georg
Simmel). Todos os estilos de diferenciação convivem
ção entre sistema e ambiente (LUHMANN, no presente, não se sobrepõem historicamente como
1997b, p. 61), o que “leva, então, à questão uma filosofia da história. Um bom exemplo é o caso
sobre como essa diferença se constitui e dos Estados nacionais, que se pautam em uma dife-
se reproduz, ao que a teoria dos sistemas renciação segmentária por se organizarem de acordo
com o princípio da territorialidade. Nas sociedades
responde através de um dos lados da dife- pré-modernas, existiam funções, mas elas tiveram que
rença, através dos sistemas” (LUHMANN, esperar a virada do século XIX para atingir a primazia
1997a, p. 42). comunicativa na sociedade.
Os sistemas são reconstruções do
4
Definitivamente não se mostra proveitosa a
descrição das diferenciações segmentária e centro/
mundo sensorial, da sociedade, a partir de periferia neste local, dada a extensão que seria neces-
sua própria lógica, da diferença que lhe é sária. Para tanto, remetemos o leitor para: (ARAUJO
particular em relação a seu ambiente. E por PINTO, 2002, p. 209-237).
outro lado, a sociedade se reproduz me-
5
Geralmente, no interior de tais agremiações
sociais existem autodescrições que procuram ame-
diante a diferença entre sistemas. A forma nizar essa radicalidade binária. É muito difundida a
como ocorre essa diferenciação entre os sis- estrutura mental do Medievo que divide a sociedade
temas, essa “repetição, dentro do sistema, de maneira ternária, entre os clérigos, os guerreiros e
da diferença entre sistema e seu ambiente” os servos. No período carolíngio a distinção era entre
nobreza e clero. Nos finais do século VIII Alcuíno
(LUHMANN, 1982a, p. 230) pode acontecer solicitou a inscrição do povo, para que ele também
de várias maneiras, a depender de como o pudesse adentrar “no caminho da salvação”. Surge aí
relacionamento entre os sistemas ocorre no o esquema das três ordens, que se difunde já no século

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 377


A estratificação se caracteriza por uma moderna (LUHMANN, 1997d, p. 13 e ss).
distribuição iníqua de riqueza e poder, Aqui nos interessa, especificamente, a di-
em suma: desigualdade nas chances de ferenciação funcional entre dois sistemas:
comunicação (LUHMANN, 1982a, p. 234). direito e política.
Há uma nítida separação entre superior
e inferior, entre tarefas e funções que são 2. A diferenciação funcional dos
próprias a cada estrato e que são prestigio- sistemas do direito e da política
sas para o estrato superior (LUHMANN,
1983, p. 204-205). Todas as possibilidades Se a modernidade é dependente dessa
do indivíduo dependiam do seu estrato separação entre sistemas, cabe indagar
de origem, pois “a estratificação regula a como a diferença se faz possível, como um
inclusão dos homens na sociedade pelo fato sistema se delimita ante os demais. Para
que ela, referida aos sistemas parciais, fixa ilustrar de que modo se dá a diferenciação
inclusões e exclusões” (LUHMANN; DE funcional, a separação entre o sistema do
GIORGI, 1994, p. 283). Por tal razão, sob direito e o sistema da política nos servirá
esse modelo de diferenciação, a inclusão de fio condutor, o que, por sua vez, adianta
de alguém na sociedade era parcial. os fundamentos de nossa percepção acerca
Com o advento da sociedade moderna, da ADPF 45.
essa situação muda. A modernidade é ca- O sistema do direito é o conjunto de todas
racterizada pelo primado da diferenciação as comunicações produzidas na sociedade
funcional. Com ela a comunicação não mais que se refiram ao direito (LUHMANN,
é organizada sob o primado de sistemas 1982b, p. 122). Para demarcar tal diferença,
parciais vinculados à ascendência de nas- é necessária uma “regra de atribuição”
cimento: “a função passou a ser o princípio (LUHMANN, 1992, p. 1.428)6 que permita
prevalecente na diferenciação interna da indicar se uma comunicação possui, ou não,
sociedade” (CAMPILONGO, 2000, p. 116). referência ao direito, o que se dá por meio
Foi dessa maneira que ocorreu o acesso de um código binário: o do sistema do direito
generalizado a todos os âmbitos funcionais é direito/não-direito7. Esse código significa
da sociedade (VERSCHRAEGEN, 2002, que inclusive a comunicação que nega a
p. 269-273). E assim é que se afirma que a existência do sentido direito (ou seja, o não-
modernidade opera com inclusão funcional direito) também faz parte do direito8. Assim,
generalizada (DE GIORGI, 1998a, p. 116). 6
Esse filtro na comunicação social não pode ser
Portanto, na modernidade os sistemas confundida com uma norma deôntica, todavia. Ela é
que existem na sociedade – como economia, uma estrutura, uma condensação de sentido.
direito, política, ciência, arte, por exemplo
7
Que é expresso, nos textos originais em alemão,
por Recht/Unrecht. Da mesma forma que considero
– reproduzem-se a partir de seus próprios adequada a tradução para lícito/ilícito – uma vez
elementos e sem hierarquia entre eles que esses dois termos também denotam algo que é
(LUHMANN, 1997c, p. 116). Por um lado, conforme ou não-conforme ao direito – acredito que
parece um certo preciosismo qualificar de “absurda”
a modernidade da sociedade moderna é a
a tradução direito/não-direito.
igualdade entre os sistemas, a ausência de 8
Luhmann concebe os dois lados do código sem
um primado de qualquer sistema ante os nenhuma pretensão de hierarquizá-los a partir de um
demais. Por outro lado, a manutenção das lado “bom” e outro “mau”. Na verdade, a considera-
ção de que tanto o sentido conforme ao direito (= o
diferenças entre os sistemas funcionais é que é direito) quanto o sentido que é contra o direito
também pressuposto de uma sociedade (= não-direito) pertencem ao sistema do direito, de-
riva do conceito de sentido trabalhado por Luhmann
IX (DUBY, 1994, p. 100-101). As três ordines é, assim, um desde o início de seu percurso intelectual. Em última
artefato semântico, com a função de aperfeiçoar o sistema análise, afirmar o “não-direito” (o ilícito) é, ainda que
feudal e reforçar o compromisso dos servos com aquele por negação, afirmar aquilo que é direito. Da mesma
estado de coisas, garantindo-lhes a obediência. forma, o non-sense não existe, pois em última análise

378 Revista de Informação Legislativa


tem-se uma estrutura que permite filtrar a Mas “uma teoria desse tipo só é convin-
comunicação relevante para a reprodução do cente se consegue definir precisamente os
sistema. Reprodução que na modernidade elementos do caráter fechado do sistema,
passa a ser auto-reprodução, pois o encadea- e a forma pela qual esses elementos deter-
mento de operações no sistema do direito faz minam a sua abertura” (LUHMANN, 1994,
referência a seus próprios elementos, e não p. 30). Precisamente. A especificidade do
a uma idéia normativa de natureza, como direito depende dessa definição de seus
acontecia com o direito natural. elementos, o que guarda relação com a
O código, então, garante a autonomia diferença entre expectativas normativas e cog-
do sistema do direito, a sua diferença em nitivas. O parâmetro que diferencia o cog-
relação a seu ambiente, o seu fechamento nitivo do normativo reside na disposição à
operacional (LUHMANN, 1999b, p. 25-90). aprendizagem diante do desapontamento
A comunicação no sistema do direito fará (LUHMANN, 1990, p. 105-106). A expec-
referência a outras comunicações (elemen- tativa é cognitiva quando não mantenho a
tos) que possuem um dos lados do código minha expectativa após o desapontamento,
direito/não-direito. Contudo – e isso deve quando aprendo com ele e assim a aban-
ficar claro – o sistema não é independente dono. Com a expectativa normativa se dá
da sociedade, ele não se “aliena”, como exatamente o contrário: não me disponho
era moda dizer em um passado não tão a mudar, e assim exteriorizo a minha frus-
longe (mas que é um teimoso presente tração (LUHMANN, 1996a, p. 104).
para alguns). Uma das características mais A vida em uma sociedade complexa
marcantes da diferenciação funcional é jus- potencializa a possibilidade de minhas
tamente o fato de que a autonomia aumenta expectativas concorrerem com as de tercei-
o grau de dependência recíproca entre ros. O conflito é cada vez mais possível, e
os âmbitos especificados funcionalmente quando alguém decide não assimilar uma
(LUHMANN, 2002, p. 68)9. decepção, temos uma expectativa normati-
Por mais paradoxal que possa parecer (e va. Com isso, não é muito difícil intuir que
realmente é10), o fechamento operacional do o sistema do direito se abre cognitivamente
sistema, entendido como auto-reprodução a para conhecer frustrações de expectativas
partir de seus próprios elementos (isto é, de normativas. Daí a função do direito de pro-
comunicação voltada ao direito), permite a cessar expectativas normativas passíveis
abertura cognitiva do sistema (LUHMANN, de serem mantidas em situação de conflito
1990b, p. 229). E é assim que o direito se (LUHMANN, 1994, p. 30). Nenhum outro
porta como um sistema que pode atender sistema da sociedade realiza essa função,
a toda a sociedade, pois ele se encontra cuja possibilidade depende de um código
aberto para as demandas sociais, venham que possa filtrar as expectativas normati-
elas de qualquer sistema da sociedade vas. Eis como sua diferença é mantida.
(LUHMANN, 1985a, p. 52-53). O sistema da política segue um esboço
similar (Cf. CAMPILONGO, 2002, p. 71-
a negação do sense faz referência ao sense, portanto 75). Dessa forma, ele também exerce uma
também é sense (LUHMANN, 1990a, p. 26). função que o diferencia no interior da so-
9
Interessante notar que os críticos da teoria da
diferenciação de Luhmann, que contestam com es-
ciedade, qual seja, a de formular decisões
tranha veemência os seus pressupostos, curiosamente que vinculem a coletividade (LUHMANN,
olvidam esse pressuposto. É mais um caso de silêncio 1982c, p. 145). Assim, a política procura in-
eloqüente. fluenciar o comportamento do destinatário
10
Para o uso criativo dos paradoxos, que consiste
em um dos traços mais característicos da teoria da
da comunicação para o vincular, o que é
sociedade de Niklas Luhmann, Cf. NEUENSCHWAN- possível com o auxílio de um medium, o
DER MAGALHÃES, 1994, p. 43-55. poder (LUHMANN, 1985b, p. 8 e ss). De

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 379


fato, de nada adianta o sistema da política política, sob condições modernas, é apenas
promulgar decisões se elas não podem ser um entre vários outros sistemas. Mas o sis-
efetivadas. tema da política tem tendências expansivas
O poder sendo medium é um elemento (Idem, p. 60-62) que procuram ignorar essa
complementar da linguagem, um símbolo diferenciação. O século XX nos mostrou
que gera informações. Ele é um instrumen- que o surgimento dos estados territoriais
to para o poderoso influir nas possibilida- soberanos não excluiu a execução de ar-
des da ação daqueles que lhe são sujeitos: bítrios por parte do poder. Ao contrário,
não por outro motivo possui o código a modernidade propiciou, pela primeira
superior/inferior. Assim, ele não é coação, vez, a possibilidade de associação do po-
pois a utilização de força física retira todas der político com a indústria bélica e com a
as possibilidades de opção do inferior: o propaganda de “ideologia de Estado” pelos
poder somente limita o espaço de seleção meios de comunicação (GIDDENS, 1991,
do agir do subordinado, mas não o extingue p. 17-18), e os resultados a que se chegou
(Idem, p. 10). dispensam nossos comentários.
A codificação do poder é redimensiona- Assim, mostramos as funções que a po-
da quando o sistema da política passa a ser lítica e o direito exercem na modernidade,
operativamente fechado. Com a diferencia- e como esse estado de coisas difere das so-
ção funcional, o poder passa a ser concen- ciedades pré-modernas. A separação entre
trado e generalizado no sistema da política, o sistema do direito e o sistema da política
e simultaneamente o seu código superior/ é um dos traços constitutivos da sociedade
inferior é recodificado (BARALDI, 1996, moderna e da diferenciação funcional que
p. 128), uma vez que o lado “superior” do lhe caracteriza; e, mais que isso, é um de
código será o local de atuação do código seus pressupostos. Agora vamos situar
do sistema da política: governo/oposição histórica e institucionalmente a passagem
(LUHMANN, 1997e, p. 164). em que se deu o fechamento operacional
Com isso, há uma diferença entre desses dois sistemas, e a contribuição, para
aqueles que detêm cargos no poder, por ter isso, de um interessante artefato, surgido ao
vencido uma eleição, e os que não possuem final dos Setecentos: a Constituição.
cargos, a oposição. Com essa codificação
secundária, o poder governante não mais
pode achar-se como aquele que sempre de- 3. Constituição: fechamento
tém a verdadeira opinião: essa onisciência operacional do direito e da política
é substituída por uma caprichosa opinião A diferenciação entre direito e política,
pública que pode favorecer também a opo- que acontece somente a partir da moder-
sição (Idem, p. 164), e que, assim, atua como nidade, não significa isolamento entre
uma instância reflexiva da política11. esses dois sistemas. Bem explicado, há
Conseqüência óbvia de sua diferen- uma comunicação entre eles, mas essa co-
ciação é que a política não pode mais ser municação é estruturalmente especificada
concebida como a totalidade da vida so- pela Constituição. Ela surge precisamente
cial, como o centro e vértice hierárquico como uma reação à separação entre direito
da sociedade (LUHMANN, 2002, p. 50). A e política (LUHMANN, 1996b, p. 87). Com
11
Segundo Raffaele De Giorgi (1998b, p. 63), a
ela, “direito e política podem prestar, um
opinião pública “estrutura sedimentações de sentido ao outro, os seus serviços recíprocos, sem
em torno das quais o sistema político coagula atenção perder a sua respectiva identidade” (CAR-
pressuposta e, por isso, útil à determinação dos temas VALHO NETTO, 2001, p. 225). A Constitui-
da decisão. (...) Esta não controla o poder e não reco-
lhe opiniões, mas reflete a capacidade de elaboração ção não “funda” a autonomia entre direito
seletiva dos temas por parte da política”. e política, mas corrobora para isso. Para

380 Revista de Informação Legislativa


compreender a função que a Constituição metade do Setecentos12, os revolucionários
cumpre na modernidade, observemos a começaram a questionar a constituição
mudança conceitual que ela sofreu no fim amorfa da Inglaterra, que propiciava a
do século XVIII, ainda que por meio de uma onipotência do parlamento (MADDOX,
apertada síntese. 1989, p. 61). Em 1776, essas colônias se
A Constituição carrega antecedentes autocompreenderam como perfect states,
semânticos que remontam aos usos lin- percebendo, concomitantemente, que a
güísticos jurídico e político de constitutio soberania é indelével da prerrogativa de
na pré-modernidade. Na tradição jurídica legislar (POCOCK, 1985, p. 83) e que, por
romana, constitutio designava um gênero isso, ela deveria ser retirada do Parlamento
normativo que abrangia certos atos do prin- inglês. Ao cabo desse “período de reflexão
ceps, como os edicta, decreta, rescripta e man- constitucional” (STOURZH, 1988, p. 45), a
data (BRETONE, 1998, p. 167); significado solução encontrada para afastar a onipotên-
que, em grandes linhas, foi conservado no cia do legislador13, após a Independência,
Medievo. No âmbito político, constitutio e foi um texto escrito (tal como as charters),
constitution designavam as instituições, re- cuja observância por parte do legislador
gras fundamentais e peculiaridades de uma seria fiscalizada por uma judicial review14.
comunidade política, por analogia ao corpo Uma solução altamente improvável, mas
humano (LUHMANN, 1996b, p. 85). que acabou por permanecer e se universa-
Com a modernidade, o que constitu- lizar pelo mundo.
tio designava passou por uma mudança Foi a partir de tais inovações políticas
conceitual decisiva no século XVIII. Um que ocorreu a mudança conceitual de cons-
movimento que é deflagrado com a Revo- titutio, entendida agora como um texto es-
lução Americana, que tinha como elemento crito que se porta como um direito superior
subjacente o constitucionalismo (moderno), (paramount law) às demais normas (Idem, p.
precisado por Michel Rosenfeld como: (i) 47). A modernidade da Constituição apare-
imposição de limites ao governo, (ii) reco- ce com toda a força em um texto escrito que
nhecimento e proteção dos direitos funda- serve de medida de conformidade a todo o direito
mentais e (iii) adesão ao rule of law, que se (LUHMANN, 1996b, p. 89). Todas as ex-
expressa pela separação entre jurisdição e pectativas normativas podem ser direito/
legislação (ROSENFELD, 1994, p. 3).
Nas colônias norte-americanas, era bem 12
Entre as medidas de taxação do Parlamento
difundida a prática de covenants, pactos que sobre as colônias, podemos lembrar: Molasses Act e
Currency Act (1764), Stamp Act e Quartering Act (1765).
fundavam uma comunidade política ou reli- Para a melhor reconstrução, no âmbito brasileiro, do
giosa, em que algumas obrigações recíprocas período revolucionário norte-americano, Cf. ARAUJO
eram estabelecidas (LUTZ, 1988, p. 25-26). PINTO, 2004, p. 115 e ss.
Ao lado disso, várias colônias foram funda- 13
No Federalista é nítida a preocupação de Ha-
milton com as tendências expansivas do Legislativo.
das sob o modelo de companhias comerciais, Cf., v.g., o no 78. HAMILTON; MADISON; JAY; 2005,
possuindo uma charter escrita e formal como linhas 32 a 167.
ato fundador (MADDOX, 1989, p. 60). Ao 14
Os registros da Convenção da Filadélfia mos-
contrário de um covenant, uma charter tinha a tram que foi um ponto pacífico entre os delegados das
colônias o de que o judiciário poderia declarar nulos
forma de um contrato bilateral que impunha os atos do legislador que violassem a Constituição
direitos e deveres delimitados por escrito a (McDONALD, 1985, p. 254). Não obstante, não se
partes determinadas (LUTZ, 1988, p. 36), o inscreveu tal regra no Artigo 3 da Constituição dos
que dava ensejo a uma comunicação mais Estados Unidos da América, que trata do Poder Judi-
ciário. Imerso nesse debate, John Marshall somente
voltada para o sistema do direito. expressou, sem dificuldade, o que estava latente no
Com o endurecimento da política britâ- constitucionalismo de seu país, no Marbury v. Madison
nica em relação às colônias, após a segunda (1803). Cf. GARRATY, 1988, p. 18 e 19.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 381


não-direito, a depender da Constituição, e a positividade do direito15, e que se expressa
não de uma ordem concreta de valores. Isso na distinção jurisdição/legislação: funda-
reforça o código do sistema do direito, que mental para compreender a posição de um
promove seu fechamento operacional. tribunal sob as condições modernas.
No que diz respeito ao sistema da polí-
tica, a Constituição também foi importante 4. A positividade do direito moderno: a
para sua diferenciação (contudo não foi sua separação entre jurisdição e legislação
causa). Ela foi o artífice do surgimento do
conceito moderno de soberania, que consis- A antiga tradição jurídica européia não
te na pretensão monopolística do exercício cansou de descrever o direito de maneira
do poder pelo Estado em um determinado hierárquica, posicionando Deus ou a natu-
território (LUHMANN; DE GIORGI, 1994, reza no ápice da pirâmide, a depender da
p. 363). As famílias nobres que exerciam conveniência. De tal sorte que a lei positiva,
o primado da comunicação no âmbito da aquela feita pelos homens, necessitava ser
diferenciação por estratos perdem o con- consoante às leis que lhe eram superiores.
trole da situação ao assistirem à apoteose O resultado era a limitação da variabilida-
da igualdade formal entre os indivíduos. O de da lei positiva por efeito de um núcleo
acesso ao poder ganha procedimentos esta- imanente, um amálgama indiferenciado de
belecidos em normas constitucionais, o que costumes, religião e leis16 (ARAUJO PINTO
favorece a mudança do modelo da rivalidade 2002, p. 227-228).
política entre dinastias pretendentes ao tro- Com o advento da diferenciação fun-
no pela diferença entre governo e oposição cional, esse modelo hierárquico não re-
(LUHMANN, 1996b, p. 102), colocando o sistiu por muito tempo. A Constituição,
resultado das urnas como o critério para entendida como uma norma de qualidade
determinar quem ocupa cada lado. superior, desloca aqueles sustentáculos
A Constituição na modernidade surge externos que impediam a auto-referência
como o meio adequado para a comunica- do direito (LUHMANN, 1996b, p. 94). A
ção entre a política e o direito. Com ela, positividade do direito é precisamente a ex-
temos um critério para se qualificar o uso pressão dessa autodeterminação do direito.
da força física por parte do poder público Dizer que o direito moderno é positivo
(como constitucional ou inconstitucional). significa que a sua vigência não é condi-
Surge também a possibilidade de se criticar cionada a uma ordem natural que lhe seja
a legislação utilizada pelas organizações superior ou a prescrições morais de fundo
formais do sistema do direito, os tribu- pedagógico-edificador. Com a positividade
nais, para a elaboração de decisões: esse que se desenvolve a partir do século XIX, a
critério é uma norma superior oriunda de vigência do direito será referida a um fator
um poder constituinte, a Constituição, cuja modificável: uma decisão do Legislativo
inobservância provoca uma inconstitucio- (LUHMANN, 1985a, p. 8)17.
nalidade. É a Constituição quem fornece 15
Bem explicado, não se trata do positivismo
“os critérios de organização política do jurídico, a escola jurídica que reduzia todo o direito
poder e os critérios de geração do Direito” às leis promulgadas pelo Estado. A positividade tem
(CORSI, 2001, p. 173). um sentido bem mais amplo.
16
A razão para tais autodescrições hierárquicas é
Uma maneira institucionalmente pal- que a vigência do direito sempre manifesta uma certa
pável de verificar a relação entre direito sintonia com a estrutura da sociedade, o que é a linha-
e política consiste em observar a transfor- mestra das pesquisas de Luhmann. Cf. LUHMANN,
1983, p. 15.
mação que a vigência do direito sofreu na 17
Essa referência às normas emanadas do Legisla-
passagem para a modernidade, o que, no tivo não quer significar que o direito “deriva da pena
léxico de Niklas Luhmann, é descrito como do legislador” simplesmente. O legislador se encontra

382 Revista de Informação Legislativa


A partir desse momento, é construído positividade atende à sociedade moderna,
um nexo interno que se estabelece entre a que se mostra cada vez mais complexa me-
legislação positivada (que vige pela seleção diante sua abertura para o futuro (ARAUJO
operada pelo legislador) e o julgador. Para- PINTO, 2002, p. 264 e ss), o que faz com que
doxalmente, esse estado de coisas acabou a mudança apareça como a única perma-
por se revelar uma condição de liberdade nência. Ao selecionar algumas normas, o
para o juiz (LUHMANN, 1990d, p. 150), direito exclui outras possibilidades quanto
uma vez que a decisão tem que se estei- à vigência, “mas não as eliminam do hori-
rar em normas jurídicas consoantes com zonte de experiência interna do sistema”
a Constituição, e não com a vontade do (LUHMANN, 1990c, p. 116). O que é ilícito
soberano ou com a physis. Não se trata da hoje pode ser lícito amanhã. A contingência
assunção de uma jurisprudência mecânica e a artificialidade estruturam a validade do
– muito embora tenha sido essa a percepção direito moderno, positivo, que tem seu sig-
do início do século XIX18–, pois a vinculação nificado expresso a partir de uma seleção, e
do juiz às normas é, por sua vez, objeto de não de uma substância transcendental (Cf.
interpretação por parte do próprio juiz. CAMPILONGO, 2006, p. 22-23).
A positividade do direito (que é diferente Aparentemente, tudo isso parece carre-
de “positivismo”) é uma redução que amplia gar uma contradição, pois, como vimos no
possibilidades e que estrutura maior comple- início deste texto, a função do direito diz
xidade. Por outro lado, é exigência de uma respeito às expectativas normativas, o que
sociedade que inventou a igualdade entre os o faz contrafactual; assim ele não “aprende”
homens (DE GIORGI, 1998a) e que não mais com situações de frustração, não “aprende”
aceita a aplicação de normas a depender com os fatos: mantém-se ante eles (ou: ape-
de ascendência ou de credo religioso19. A sar deles). Só que o direito positivo pode
também aprender, pois contrafactualidade
imerso em uma teia de expectativas normativas que
impossibilita uma pretensa onipotência do legislador não é sinônimo de imutabilidade. Contudo,
em relação à sociedade: ele não é “independente”. isso não é uma contradição. Com Raffaele
(LUHMANN, 1990c, p. 114) Nesse sentido, o Legis- De Giorgi (1979, p. 226, grifos do autor),
lativo apenas reconhece um direito que já existe e é
podemos observar que a inovação da po-
praticado na sociedade, dando assim o primeiro passo
para que o direito possa ter a contrafactidade necessária sitividade é o surgimento de um artefato
à generalização de expectativas normativas. Aliás, não que possibilite que as
nos esqueçamos que, para conferir contrafacticidade às “(...) estruturas de expectativas de
garantias constitucionais é lícito ao Judiciário a anular
as normas oriundas do Legislativo, sob o argumento
comportamento venham conjun-
da inconstitucionalidade: e assim, paradoxalmente, tamente institucionalizadas como
a contrafacticidade normativa é mantida por causa invariáveis e variáveis, como expecta-
(e não apesar!) da anulação normativa. Essa é uma tivas normativas de comportamento
das razões para colocar a Constituição como uma
aquisição evolutiva. e como expectativas cognitivas de
18
De fato, o século XVIII nutriu uma impressio- comportamento. A grande conquista
nante crença de que o cumprimento fiel da lei geral e evolutiva da positivação do direito, de
abstrata seria a solução para todos os problemas da fato, consiste nisso: que ela estabiliza as
época, como nos mostra o exemplo de Montesquieu,
que escreveu em 1748 que a diferença entre um estado estruturas de expectativas normativas
despótico e uma república é que nesta última os juízes paralelamente à legalização da sua mo-
observam literalmente a lei (MONTESQUIEU, 1997, dificabilidade.”
p. 116). Cesare de Beccaria (1996, p. 17) só confirmou
O que significa essa estabilização para-
o argumento, em 1764, porquanto opinou que a ati-
vidade judicial seria tanto mais perfeita quanto mais lela da manutenção e da transformação das
se aproximasse de um silogismo perfeito. expectativas normativas?
19
Para a busca da unidade política através da
construção da soberania do Estado a partir do con- especificamente a Barclay, D’Aubigné e Hobbes). Cf.
texto das guerras de confissão (referindo-se mais KOSELLECK, 1999, p 19 a 25.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 383


A situação paradoxal de aprendizado não podem ocupar-se de political questions
pelo direito, um sistema que opera sob o (McDONALD, 1985, p. 208), mas sim de
signo da contrafacticidade, é possível com cases and controversies, tal qual vemos no
uma duplicação de seu procedimento de- art. 3o da Constituição norte-americana. Ve-
cisório. Dessa forma, a positividade do di- rificamos um movimento similar na França
reito constrói duas modalidades de decisão, por ocasião da Lei de 16-24 de agosto de
quais sejam, a programação teleológica (Zwe- 1790, especialmente no seu Título II, que
ckprogramm) e a programação condicional. declarou em seu art. 13 que “as funções
Cada uma se posiciona ante uma função: judiciais são distintas e serão sempre se-
a primeira canaliza o desejo de mudança paradas das funções administrativas”, de
do direito vigente, enquanto a segunda modo que a intromissão dos juízes nesses
possibilita a aplicação do direito (Idem, p. assuntos render-lhes-ia a pena de prevari-
229) (LUHMANN, 1985a, p. 34-42). Uma cação (MANNORI; SORDI; 2003, p. 76). Aos
das construções mais sedimentadas do di- tribunais somente restaria a judicatura, sem
reito moderno, a separação entre legislação envolvimento na política.
e jurisdição, nos ajudará a perquirir o papel O movimento em sentido contrário, isto
dessas programações. é, a concentração do primado da legislação
A tarefa de legislar e a de dizer o direito, pelos parlamentos também foi verificada.
iurisdictio, não eram desconhecidas da pré- Com as revoluções do Oitocentos, foi
modernidade, obviamente. O que não havia inaugurada a luta contra o particularismo
era uma “tradução institucional” da dife- jurídico, isto é, a aplicação concorrente
renciação dessas funções. Assim, por um de diversos ordenamentos jurídicos a um
lado, os órgãos responsáveis pela criação mesmo âmbito espacial e temporal, e que
das normas não exerciam somente essa ta- foi superado com o advento da lei geral e
refa, como nos mostra o exemplo do Parla- abstrata das codificações (TARELLO, 2003,
mento da Inglaterra, quando julgou o corpo p. 28-34). Foi a partir da modernidade
natural de Carlos I em nome de seu corpo que as casas legislativas cada vez mais se
político, condenando-o à morte, em maio de recusaram a exercer função adjudicatória,
1642 (KANTOROWICZ, 1998, p. 30-32). Por concentrando-se na publicação de leis21.
outro lado, os tribunais tinham funções de Com a diferença institucional entre
governo; e se levarmos em conta a ausência, jurisdição e legislação, as programações
na pré-modernidade, de um monopólio do teleológica e condicional puderam ser
uso da força autorizada pelo direito, não é operacionalizadas de maneira separada,
de se estranhar a utilização da jurisdição como dois processos decisórios a serem
para questões governamentais20. trabalhados em dois contextos diferentes:
Com as revoluções do final do Sete- uma diferença que forma a unidade da
centos, essa situação muda por completo: positividade do direito.
ocorreu uma neutralização no interior dessas A programação teleológica é própria
funções (FIORAVANTI, 2003, p. 15). Nos da produção legislativa. O Legislativo
Estados Unidos da América, os tribunais, se encontra imerso em um contexto com
que exerciam até então funções adminis- um alto grau de complexidade, em que é
trativa em comunidades (LUHMANN, vasto o plexo de matérias que se pode tor-
1990d, p. 152), tiveram tal atividade 21
É claro que tal movimento comporta exceção,
suprimida. Como mostram os registros como nos mostra a possibilidade do Senado Federal
da Convenção da Filadélfia, os tribunais julgar o Presidente da República ou Ministros de Es-
tado em crimes de responsabilidade (CF/88, art. 52, I).
20
Cf. HESPANHA, 1993, p. 385, que acredita que a Contudo tal possibilidade possui clara função residu-
jurisdição em uma sociedade desse estilo é o principal al. Não por último, é de se lembrar que tal julgamento
quando não o único poder à disposição do governante. não é bem um processo judicial, mas sim político.

384 Revista de Informação Legislativa


nar objeto de seleção/decisão. Para fazer a partir da própria jurisprudência do STF,
frente a essa complexidade, o Legislativo desde que coerente com a Constituição).
tem a sua disposição uma ampla gama Devemos ressaltar que essa associação
de expedientes, como adiar suas decisões entre programação teleológica e Poder
e escolher as matérias a serem postas em Legislativo, de um lado, e programação
votação a depender do grau de consenso condicional e Poder Judiciário, por outro,
existente (CAMPILONGO, 2002, p. 103- não se dá de maneira linear. É claro que, na
104). Esse estilo de decisão do legislador atividade legislativa, há uma observância
é “voltado a fins” por buscar angariar às programações condicionais, como deno-
acordo, consenso suficiente e possível; ele ta o exemplo dos regimentos internos das
deriva do código governo/oposição. Essa casas legislativas. É também óbvio que o
abertura para o aprendizado possibilita o Judiciário opera com programações teleo-
papel desempenhado pelo legislador em lógicas, como acontece com os princípios
uma diferenciação funcional, qual seja o constitucionais ou com as normas classifica-
de destinatário do desejo de mudança do direito das pela doutrina constitucional brasileira
vigente (LUHMANN, 1990c, p. 128). de “programáticas”. Normas com uma
A programação condicional diverge abertura para o futuro mais acentuada que
diametralmente desse estado de coisas. Ela outras. A questão em tela é do primado. No
assume uma relação de se/então: ocorrida Legislativo, há um primado operacional de
uma hipótese, tem-se uma determinada programações teleológicas; é o que caracte-
conseqüência (LUHMANN, 1985a, p. 28). riza a deliberação legislativa. No Judiciário,
A tarefa jurisdicional enfrenta uma série de ao contrário, não é possível desconsiderar a
dificuldades que derivam da posição dos priori normas aprovadas democraticamen-
tribunais no centro do sistema do direito. te: há um ônus argumentativo para isso, e
Seja qual for a causa que chegue aos tribu- ele se chama “inconstitucionalidade”, como
nais, ela tem que ser decidida, como informa quis o Visconde de Bolingbroke (BOLING-
a dupla negação do non liquet (LUHMANN, BROKE, 1997, p. 124-125).
1999b, p. 245-248): não é permitido não de- Assim, para o sistema do direito apren-
cidir um caso. Simultaneamente, o tribunal der, é necessária a duplicação desses
deve respeitar o nexo interno que o submete procedimentos e sua operacionalização
ao império do direito, pela observação das em instituições próprias para isso. Essa
normas emanadas pelo Legislativo. E é duplicação gera a unidade da positividade
justamente a observância a esses programas do direito. O direito positivo não quer a
condicionais, que operam uma redução alma do cidadão, como acontecia na pólis
de complexidade, que permite ao juiz que grega (ARISTÓTELES, 1997). O direito po-
não aprenda com os fatos, que mantenha a sitivo não proíbe crenças e posicionamentos
expectativa normativa (DE GIORGI, 1979, políticos, e sim condutas. É perfeitamente
p. 229) frustrada de quem vai a juízo. possível a qualquer cidadão fundar uma
Os tribunais, está claro, não possuem organização a favor da legalização de uma
o mesmo aparato do Legislativo para ser conduta que é ainda penalmente proibida,
uma instância de mudança do direito; como é o caso do aborto. Contudo, isso
para a decisão judicial ser possível, faz-se somente é possível por causa da existência
necessário que haja uma complexidade já de um canal comunicativo próprio para
domesticada (CAMPILONGO, 2002, p. 91). isso: o Legislativo. Ele é o indirizzo da
Isso é provido pelo filtro do Legislativo, mudança política. Quando um órgão do
que dá ao direito um programa sob a forma Judiciário quer tomar esse lugar, tem-se
da condição se/então (ou de outra forma, uma clara usurpação constitucional: sem
como pela tomada de uma decisão pelo STF meias-palavras.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 385


5. Considerações finais: problematizando do desejo de mudança do direito vigente.
a assim chamada “dimensão política” da Como vimos, a formação desse procedi-
jurisdição constitucional mento específico – o processo legislativo
– é uma das possibilidades fornecidas pela
Pelo que foi proposto acima, podemos positivação do direito.
perceber que há uma ligação, uma dependên- Os procedimentos judiciais não com-
cia recíproca, entre modernidade, separação portam uma estruturação voltada prima-
entre direito e política, surgimento da riamente à mudança do direito; o Judiciário
“Constituição” como uma norma de qua- não pode vincular a coletividade a partir da
lidade superior, positividade do direito e oitiva de argumentos de duas partes. Para
separação entre jurisdição e legislação. O fio isso, existe a representação política que
que liga esse elenco se chama diferenciação atua no Congresso: para que a coletividade,
funcional. É essa “dependência recíproca” por meio de seus representantes, possa ser
que demarca a diferença entre a moderni- atendida em suas pretensões23. Quando
dade e a pré-modernidade. o Judiciário se porta como um “tribunal
Dessa forma, parece-nos bem contes- político”, o que ele faz é desconsiderar
tável a concepção expressa pelo STF, na já a representação democrática: primeiro
referida ADPF 45, de que lhe seria possível porque ignora que o procedimento para a
concretizar política pública ao argumento mudança do direito tem como destinatário
de existir uma “dimensão política” da o Legislativo, segundo porque se arroga na
jurisdição constitucional. É que essa com- função de legislador. Em outras palavras, se
preensão vai precisamente de encontro a o STF é um “tribunal político”, ele somente
essas características que embasam a mo- o pode ser sob o signo de um autoritaris-
dernidade; ela atua contra os pressupostos mo camuflado, mas não por isso menos
da diferenciação funcional, pois age no nocivo aos pressupostos de um regime
sentido de nivelar a diferença entre direito democrático.
e política. O papel que os tribunais desenvolvem
A modernidade requer uma separação no centro do sistema do direito é de ga-
entre direito e política que é operacionali- rantir a qualidade contrafáctica do direito,
zada por uma especificação funcional da o que se expressa pela obrigatoriedade de
jurisdição. Os tribunais na sociedade mo- sempre ter que existir uma decisão para um
derna não implementam política pública, caso sub judice (CLAM, 2005, p. 135). Dessa
não deliberam teleologicamente para gerar forma, argumentos de finalidade propostos
decisões politicamente vinculantes, não ao estilo de uma programação teleológica
tomam decisões de acordo com critérios não podem orientar a atividade judicial, a
de popularidade, não atribuem decisões ao não ser ao grave custo de a sociedade deixar
código governo/oposição tendo em vista a de possuir uma última instância à qual se
próxima eleição22. recorre quando se quer manter uma expec-
Para a tomada de decisões que vincu- tativa normativa, uma pretensão amparada
lem a coletividade, há todo um plexo de pelo direito.
procedimentos que permite ao Legislativo O direito não pode servir de medium
uma consonância com a instância reflexiva para o sistema da política tomar decisões
da política, a opinião pública. Daí se tem que vinculem a coletividade; só que é exata-
um aparato adequado para a canalização mente isso que acontece quando uma corte
suprema se assume como um “tribunal
Por mais que no decorrer da “Presidência
22

Nelson Jobim” algumas atitudes nos leve a ficarmos 23


Para a mudança conceitual que “representação”
descrentes em relação a isso. Cf., para o assunto, passa a ter na modernidade, e sua correlação com a
MAIA, 2006, p. 16-17. noção de soberania popular, Cf. PITKIN, 1989.

386 Revista de Informação Legislativa


político”, quando quer empreender uma zação de garantias fundamentais (...),
revisão do “vetusto dogma da separação tornando-se um texto fundamental
dos poderes”. A separação dos poderes é a partir do qual, a exemplo da Bíblia
precisamente a fórmula que as descrições e do Corão, os sábios deduziriam
do sistema do direito encontrou, desde o diretamente todos os valores e com-
Oitocentos, para expressar a diferenciação portamentos corretos”. (MAUS, 2000,
funcional (LUHMANN, 1985a, p. 45-46; p. 192, grifos do autor).
CLAM, 2005, p. 131), a separação entre Esse novo “fundamentalismo constitu-
direito e política do ponto de vista institu- cional” – usualmente denominado de “neo-
cional. Se esse “dogma” é de ser revisto, o constitucionalismo” – provoca, assim, uma
que se coloca em seu lugar? Um Judiciário, desconsideração da mudança conceitual
que não presta contas à população em que constitutio sofre no fim do século XVIII,
eleições periódicas tais como os parlamen- o que nos permite verificar a inspiração pré-
tares, exercendo a função da política, é uma moderna da postura de um tribunal que
alternativa democraticamente adequada desconsidera a sua ligação com as normas
ao “dogma” da separação dos poderes? emanadas do legislador democrático, mas
Efetivamente, não. que se considera intérprete de uma metafí-
Se o Judiciário se exime do papel de sica “ordem concreta de valores”24. O STF,
frear a política e suas tendências expan- assim, se compreende como um legibus
sivas – em que o atropelo a uma garantia solutus que, ao contrário dos supostamente
constitucional geralmente não é problema, inoperantes Legislativo e Executivo, vai
mas solução para o sucesso de uma política gerar democracia paternalisticamente para
pública, como mostra o exemplo do pacote seus tutelados, ao implementar política
de medidas tomadas para se fazer frente à pública. Só que
crise energética de 2001, o chamado “Apa- “(...) sabemos hoje, por experiência
gão” –, o Executivo e o Legislativo têm a própria, que a tutela paternalista eli-
sua disposição uma ampla via para impor mina precisamente o que ela afirma
os interesses do Estado aos cidadãos. preservar. Ela subtrai dos cidadãos
A autocompreensão do STF de que exatamente a cidadania, o respeito
pode implementar política pública sob a à sua capacidade de autonomia, à
justificativa de um suposto imobilismo sua capacidade de aprender com os
por parte do Executivo e do Legislativo próprios erros, preservando eter-
(tal como observamos na ADPF 45) deixa namente a minoridade de um povo
transparecer o perigo de uma tendência reduzido à condição de massa (de
que, na verdade, é bem disseminada tam- uma não-cidadania), manipulável e
bém em outros países. É ela a pretensão instrumentalizada por parte daque-
de atribuir aos tribunais constitucionais o les que se apresentam como os seus
papel de um verdadeiro substituto do po- tutores, como os seus defensores”.
der constituinte (BERCOVICI, 2004, p. 20). (CARVALHO NETTO, 2003, p. 11)
Mas, se os tribunais constitucionais passam A ADPF 45 permite a observação de
a se portar como um legislador concorren- todas essas pressões involutivas, decisi-
te, dispostos a encarnar a persecução dos vamente nocivas para o funcionamento
interesses da coletividade, eles o fazem, 24
Mas isso não significa voltar à noção hierárquica
necessariamente, do início do Oitocentos, em que havia uma subordi-
“(...) mediante uma profunda trans- nação dos tribunais às leis, como observávamos no
uso do instituto do référé législatif. Isso significa não
formação do conceito de Constituição:
executar uma função que não lhe pertence, e para qual
esta deixa de ser compreendida (...) não se tem um aparato institucional próprio para isso:
como documento da institucionali- e nem legitimidade democrática.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 387


das instituições democráticas. Em seu ______. Aos que não vêem que não vêem aquilo que
texto, podemos verificar com tintas fortes não vêem: sobre fantasmas vivos e a observação do
direito como sistema diferenciado. In: DE GIORGI,
uma tendência que circula na sociedade Raffaele. Direito, tempo e memória. São Paulo: Quartier
de maneira naturalizada e inquestionada. Latin, 2006.
Se o STF deseja exercer com efetividade a
CARVALHO NETTO, Menelick de. Controle de cons-
“guarda da Constituição”, a que faz refe- titucionalidade e democracia. In: MAUÉS, Antonio
rência o art. 102 da Constituição de 1988, Moreira. Constituição e democracia. São Paulo: Max
o modo adequado para isso não é um Limonad, 2001.
fundamentalismo constitucional que ni- ______. Apresentação. In: ROSENFELD, Michel.
vela a diferença entre direito e política. Ao A identidade do sujeito constitucional. Tradução de
contrário, é mantendo essa diferença, que Menelick de Carvalho Netto. Belo Horizonte: Man-
é constitutiva para o jogo democrático, que damentos, 2003.
o STF pode dar sua melhor contribuição – e CLAM, Jean. A autopoiese no direito. In: ROCHA,
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Orientações Editoriais

A Revista de Informação Legislativa divulga trabalhos elaborados pela Subsecretaria


de Edições Técnicas e artigos de colaboração. Os trabalhos devem reportar-se a assuntos
da área do direito e áreas afins – de interesse dos temas em debate no Congresso Na-
cional – e de cunho histórico que se relacionem com o Poder Legislativo. Somente serão
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d) a fonte da qual foi extraída a citação deverá constar no próprio corpo do texto
conforme os exemplos que se seguem:

Exemplos de citação direta:


Segundo Falcão (1984, p. 59), “não basta a existência de demanda estudantil para
que as faculdades continuem a produzir bacharéis”.
“Não basta a existência de demanda estudantil para que as faculdades continuem
a produzir bacharéis” (FALCÃO, 1984, p. 59).
Observação: A citação direta incluída em texto e/ou em nota de rodapé aparece
entre aspas.

Exemplos de citação indireta:


Para que a produção de bacharéis continue, vários fatores devem ser observados
além da demanda estudantil (Cf. FALCÃO, 1984, p. 59).
Para que a produção de bacharéis continue, vários fatores devem ser observados
além da demanda estudantil (FALCÃO, 1984, p. 59).
Observação: A falta de aspas e/ou o termo Cf. (confira, compare) evidenciam
que não se trata de uma transcrição e sim da utilização da fonte citada a fim de
respaldar a idéia do autor do artigo.

Monografias (livros, folhetos, teses, enciclopédias, etc.) deverão conter: sobrenome


do autor, prenome(s), título da obra, subtítulo (se houver), local de publicação, editor(a),
data de publicação.

Exemplo de monografia no todo:


MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 1974.

Exemplo de parte de monografia:


ROMANO, G. Imagens da juventude na era moderna. In: LEVI, G.; SCHMIT, J.
(Org.). História dos jovens: a época contemporânea. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996. p. 7-16.

Para artigos de periódicos, as informações essenciais são: sobrenome do autor,


prenome(s), título do artigo, subtítulo (se houver), título da revista, local de publicação,
indicação de volume, ano, número, página inicial e final, período e data de publicação.

Exemplo de artigos de periódicos:


TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Lopes da Costa e o processo civil brasileiro. Re-
vista de Informação Legislativa, Brasília, ano 37, n. 148, p. 97-111, out./dez. 2000.

Para artigos de jornais: sobrenome do autor, prenome(s), título do artigo, subtítulo


(se houver), título do jornal, local de publicação, data de publicação, seção ou caderno
do jornal e paginação.

Exemplo de artigos de jornais:


MOURA, Ana Lúcia; FEITOZA, Valéria. Escola pública: a tristeza de quem fica.
Correio Braziliense, Brasília, 6 mar. 2001. Tema do Dia, p. 6-7.

Para referências em meio eletrônico: sobrenome do autor ou entidade, prenome(s),


título, subtítulo (se houver), também são essenciais as informações sobre o endereço
eletrônico, apresentado entre os sinais <>, precedido da expressão “Disponível em:” e
data de acesso ao documento precedido da expressão “Acesso em:”.

Exemplo de referências em meio eletrônico:


CORREIO Braziliense. Disponível em: <http://www.correioweb.com.br>.
Acesso em: 5 jul. 2003.

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