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Mapeando Conceitos: a violência

Dr. Luiz Carlos Ribeiro


Programa de Pós-Graduação em História, UFPR

O objetivo desse paper, como o próprio título indica, é o de mapear alguns conceitos e
categorias de análise, visando o desenvolvimento de projetos de pesquisa e de
disciplinas em andamento na pós-graduação. O texto original apresenta três verbetes
(Violência – Multiculturalismo – Indivíduo Hipermoderno) e está estruturado a partir de
algumas leituras por mim elaboradas. Não se trata de um artigo, mas de propor uma
cartografia de autores, categorias e conceitos que permitam iniciar uma discussão
teórica. Nesse documento trataremos da violência.

Sobre a violência

O objeto, nesse documento, é a discussão sobre a violência, em especial a análise da


violência urbana na atualidade. Muito se tem escrito sobre o tema, em grande parte
inspirado por uma sensação de crise ou esgotamento dos valores da modernidade que
estaríamos vivendo. Um sentimento de desregramento e desamparo, que teria
desenvolvido nos indivíduos da atualidade um comportamento psicossocial de recusa ou
dificuldade em estabelecer laços duradouros, tornando-os individualistas e narcísicos,
donde a incapacidade à tolerância e ao respeito social e coletivo.

Por consequência, a sociedade atual viveria um momento singular de violência ou, se


quisermos um novo mal-estar civilizacional.

A referência à obra de S. Freud, de 19301 é obrigatória, em especial para o interesse dos


estudos sobre sentimentos e subjetividades na história. No seu texto Freud busca
explicar o sentimento de mal-estar que experimentamos frente à civilização, no que
concerne à incapacidade desta de nos fazer efetivamente felizes, apesar de todos os
confortos, facilidades e estabilidades que a tecnologia e a cultura contemporânea nos
oferecem. Analisa, portanto, a possibilidade da compreensão desse mal-estar enquanto
uma subjetividade psíquica.

Mas a violência não é um fenômeno exclusivo da sociedade atual. Ela está presente em
toda a experiência humana. Porém, nada nos autoriza tomá-la como natural, mas sim
como um comportamento cultural e histórico. Desse modo, a própria definição ou
compreensão do que é violência está imbricada com o momento histórico da produção
dessa definição. Ou seja, assim como a experiência da violência, a sua conceituação
também é histórica.

1
Freud. S. Malaise dans la civilizacion (1930). Paris: Presses Universitaires de Paris, 1971.

1
Apenas para enunciar o problema, tomemos a definição de violência dada pela
antropóloga Alba Zaluar:

Violência vem do latim violentia que remete a vis (força, vigor,


emprego de força física ou os recursos do corpo para exercer sua
força vital). Essa força torna-se violência quando ultrapassa um
limite ou perturba acordos tácitos e regras que ordenam relações,
adquirindo carga negativa ou maléfica. É portanto a percepção do
limite e da perturbação (e do sofrimento que provoca que vai
caracterizar o ato como violento, percepção essa que varia
cultural e historicamente. 2
Para tratar da violência contemporânea, nos limites deste texto, tomamos como
referência o contexto do Iluminismo que, em última instância, é o arcabouço intelectual e
político que dá sentido a formulações como ordem/desordem, normal/anormal, ou seja,
dá significado ao que chamamos de indivíduo e sociedade modernos.

A recorrência ao pensamento liberal-iluminista deve-se ao fato de que a discussão sobre


a violência no mundo atual se manifesta na configuração de crise do indivíduo moderno.
Portanto, a violência da sociedade atual – alvo de nossa pesquisa – encontra-se
imbricada com a ideia de crise do indivíduo moderno.

Inscrita sobretudo no campo das guerras religiosas e da construção do Estado moderno


(séculos XV e XVI), a violência é discutida desde uma lei da natureza. É assim como se
encontra em Hobbes (Leviathan, 1651), para o qual a violência é da natureza humana,
onde predominam as fraquezas e os erros de cada um. Para esse pensador, nenhuma
opinião ou norma poderá se impor senão que pelo uso da violência. Hobbes considera
que o cumprimento deste estado de natureza exige o pacto, “através do qual todos
renunciam ao respectivo direito natural, colocando-o nas mãos do soberano”. É
transferido a este o direito à violência, que passa a exercê-lo em nome e em benefício de
todos. 3

O significado desse estado de natureza é encontrado também em Voltaire, como


podemos observar no seu verbete sobre a tolerância, no Dictionaire Philosophique, de
1769: “O que é a tolerância? É o apanágio da humanidade. Estamos todos mergulhados
nas fraquezas e erros; perdoar as nossas insanidades é a primeira lei da natureza.” 4

2
ZALUAR, A. A violência e crime. In: MICELI, S. (Org.) O que ler na ciência social brasileira
(1970-1995). São Paulo: Sumaré ; ANPOCS, 1999, pág. 28.
3
Aurélio, Diogo Pires. Tolerância/Intolerência. In: Enciclopédia Einaudi. Vol. 22 – Política-
Tolerância/intolerância. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1996, p. 181.
4
“Qu’est-ce que la tolérance? C’est l’apanage de l’humanité. Nous sommes tous pétris de
faiblesses et d’erreurs; pardonnons-nous réciproquement nos sottises, c’est la première loi de la
nature.” Voltaire (1769) Dictionaire Philosophique. Paris: GF-Flamarion, 1964.

2
Para o filósofo das Luzes, portanto, a violência é própria do estado de natureza, não
podendo, assim, ser suprimida. O máximo que podemos fazer é transferi-la para o
soberano. A diferença fundamental entre Hobbes e Voltaire, nessa interpretação da
natureza humana com relação a violência, é que este não exime o soberano da
submissão à lei da natureza. Portanto, também o rei está submisso à lei geral da
tolerância universal, só possível de ser relativizada, amenizada – mas nunca suprimida –
com a instauração de um contrato social. Do mesmo modo, o príncipe de Rousseau
segue a mesma orientação, daí a tese do contrato social.

É essa razão individual detentora da verdade – enquanto bem e ordem – o fundamento


da autoridade, já estava presente em Pierre Bayle, nos seus Commentaire Philosophique
(1686). Para o autor, a autoridade para distinguir o verdadeiro e o falso, encontrava-se
“no parlamento supremo da razão e da luz natural [...] essa luz primitiva que Deus acende
na alma de todos os homens”. A razão era, desse modo, a filha de Deus. 5

O contrato deveria reduzir as idiossincrasias naturais dos indivíduos, de modo a ser


possível tolerar a natureza violenta do homem. Tolerar no sentido etimológico de suportar
pacientemente.

Esse exercício de procurar compatibilizar as múltiplas diferenças produziu um


racionalismo estoico, fundado no individualismo, substância do Iluminismo. Porém, as
revoluções burguesas, ao mesmo tempo em que fundaram um novo Estado, instituíram a
multidão como sujeito político. Diante da impossibilidade de fazer política sem a multidão,
a criação do sistema representativo consistia em viabilizar uma política de massas de
modo a procurar anular a sua força de pressão. Mas a explosão das multidões eclodiu
em uma democracia totalitária, quando projetos artificiais de individualismo
proporcionaram ações radicais e totalitárias dos movimentos democráticos. 6 Uma
violência que tinha a pretensão de se justificar a si mesma, inaugurando o terror em
nome da razão.

Por sua vez, a utopia da vontade geral – que não se trata da vontade de todos – colocava
um dilema para a viabilidade do contrato: encontrar acordos visivelmente precários que
permitissem ao Estado tolerar ou não a diversidade, ou, como alternativa, promover “a
consciência individual à categoria de última instância, situada acima dos tribunais civis e
eclesiásticos, os quais se arrogam, até aí, o poder de definir a verdade que deverá ser
universalmente aceite”. 7 Ideia síntese do individualismo racionalista do Iluminismo.

5
Apud Aurélio:1996, 188/9
6
Dumont, Louis. Essais sur l’individualisme. Une perspective anthropologique sur l’idéologie
moderne. Paris: Seuil, 1983, p. 113.
7
Aurélio:1996, 186.

3
No racionalismo moderno, a explicação à capacidade do homem tolerar só se
fundamenta no direito do mais forte. Os indivíduos que não forem capazes de suportar
sua inclusão nessa razão universal são tratados como patologias clínicas ou sociais. A
tolerância só se fundamenta como razão universal, ou seja, o paradoxo da intolerância às
diferenças. Enclausurada em si, a força dessa razão encontra-se na sua capacidade de
apagamento da alteridade. A diferença só pode existir na instância do privado,
instituindo-se assim as esferas do privado e do público como estratégia de gerência
política da sociedade.

A desconfiança à capacidade das multidões em fazer política ficou manifesta também no


pensamento marxista. A frase clássica “operários do mundo, uni-vos”, inscrita no
Manifesto do Partido Comunista, de 1848, sintetiza o desprezo de Marx e Engels pelas
multidões, que reclamava por uma organização político partidária dos trabalhadores. As
visões opostas, entre Marx e Baudelaire, sobre os homens pobres da periferia de Paris,
analisadas por Walter Benjamin, bem descrevem esse quadro. 8

É nessa perspectiva da politização das multidões que o desenvolvimento da medicina,


assim como as demais ciências, teve um desempenho não apenas científico, mas moral,
com a ideia da cura sobrepondo-se ao da salvação: “A salvação e a cura indicam a
existência de dois registros diferentes de leitura forjados pelas sociedades ocidentais
para se defrontarem com a questão do mal, que as acossa e nelas se dissemina.9

Enquanto a tradição judaico-cristã inventou a moral da culpa e da salvação, o Estado e a


ciência médica modernos inventaram a biopolítica da cura, normatizando a população e
configurando-a como um problema político. 10

Por esse pressuposto, a melhoria física e moral do ser humano se fundamentam na


racionalidade científica e normalizadora. E o resultado disso foi a produção de
paradigmas médicos, como os conceitos de normalidade e patologia. Nesse contexto, a
loucura e a criminalidade transformaram-se em “alvos privilegiados do processo de
medicalização do social por meio do qual a normalização se realizava.” 11

Portanto, a ideia de indivíduo moderno tem uma história, e ela é fundamentalmente uma
construção moderna e ocidental. Uma invenção ligada a formas sociais particulares da
experiência ocidental.

8
Benjamin, Walter. A Paris do Segundo Império em Baudelaire. In: Walter Benjamin: Sociologia
(org. Flávio R. Kothe. São Paulo: Ed. Ática, 1985, p. 44 e segs.
9
Birman, Joel. Cadernos sobre o mal. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p 21
10
Foucault, Michel. Em defesa da sociedade. Curso Collège de France (1975-1976). São Paulo:
Martins Fontes, 1999, p. 292/3.
11
Birman, Joel, Cadernos sobre o mal, p. 27.

4
Para o antropólogo canadense Charles Taylor, “na virada do século XVIII, qualquer coisa
que se parece ao eu moderno começa a se formar, ao menos entre as elites sociais e
espirituais do norte da Europa ocidental e de seu prolongamento americano”.12

O indivíduo moderno é, assim, aquele dotado de razão suficiente para não só dominar a
natureza física, como a sua própria natureza humana. Uma razão que controla e
autocontrola as pulsões, os sentimentos. É essa consciência de si que faz dele um sujeito
com capacidade de se libertar tanto dos limites da natureza quanto da vontade de Deus.
Torna-se laico, autônomo e seguro de si. É o indivíduo certo de si, mestre de si mesmo. É
aquele que, civilizado, funda a modernidade, sustentada por três ideias básicas: “a do
progresso – a sociedade estaria em marcha em direção um progresso crescente –, a da
razão (sob a influência notadamente cartesiana) e a felicidade, a qual o progresso e a
ciência não podem deixar de conduzir.” 13

*****
Um rápido olhar para o surgimento e desenvolvimento da psicanálise, desde o final do
oitocentos até os últimos escritos de Sigmund Freud (1856-1939) nos ajuda a
problematizar essa visão autossuficiente do indivíduo moderno.

A psicanálise – como quase todo conhecimento médico do final do século XIX –inscreve-
se inicialmente como um conhecimento positivista de intervenção disciplinar e regulador
da população, ao que Foucault denominou de biopolítica. 14

Essa intervenção tornou-se politicamente necessária diante das tensões dos sujeitos no
mundo da civilização. Eram tensões que colocavam à prova a universalidade da
“consciência plena de si”, do vitoriano indivíduo moderno.

Essas inquietações podem ser observadas nas manifestações das vanguardas artísticas
da virada do XIX para o XX. Analisando esse movimento Bradbury e Mcfarlane observam
o desaparecimento de muitas das certezas tradicionais, assim como o evaporar-se da
confiança que havia no progresso da humanidade, como “também na própria solidez e
visibilidade do real”. Era uma arte, referem-se os críticos, que trazia “em si aquela
tendência, tão patente no final do século XIX, de o conhecimento tornar-se pluralista e

12
Apud Dortier, Jean-François. Du je triumphant au moi eclaté... In: Molenat, Xavier. (Org.)
L’individu contemporain. Regards sociologiques. Auxerre Cedex Éditions Sciences Humaines,
2006, p. 7.
13
Aubert, Nicole. Introduction. Les métamorphoses de l’individu. In: Aubert, Nicole (Org.).
L’individu hypermoderne. Ramonville Taint-Agne: Éditions Ére, 2006, p. 14.
14
Foucault, M. Em defesa da Sociedade, op. cit.

5
ambíguo, as certezas aparentes não serem mais levadas a sério, a experiência
ultrapassar – como pareceu a muitos – o controle ordenado da mente." 15

Assim como a arte permitiu essa visibilidade, as interpretações freudianas enunciaram as


subjetividades dos impasses do sujeito no mundo da civilização. 16 Para Birman, Freud
nos seus primeiros escritos ainda manifesta uma crença na harmonia entre os sujeitos e
o social. Nesses escritos o fundador da psicanálise estava imbuído do espírito de cura,
moeda corrente do cientificismo da época.

Talvez os modelos biológicos da evolução, da eugenia e do racismo sejam bons


exemplos do projeto biopolítico do final do XIX, aos quais os discursos da psicologia e da
psicopatologia (saúde psíquica e normalidade) se associavam. 17 Freud também se
engajava na perspectiva da cura das enfermidades somáticas e psíquicas. Mas muito
rapidamente, explica Birman, “esta harmonia foi colocada incisivamente em questão”, de
tal maneira que “a problemática do desamparo do sujeito no campo social foi a marca
decisiva de sua leitura da inserção do sujeito na modernidade”.18

Assim, para Birman, o que está em questão no artigo Mal-estar da civilização, de Freud,
é a inscrição do mal-estar do sujeito na modernidade, instituindo-se aí a construção do
discurso psicanalítico. O discurso psicanalítico é, nesse sentido, “uma leitura da
subjetividade e de seus impasses na modernidade”. O crítico considera a “antinomia
insuperável entre os polos da pulsão e da civilização” como menos relevante nessa tese
freudiana. Mas isso me incomoda, pois entendo que é a análise dessa tensão que
permita uma leitura das subjetividades, como aliás conclui Birman:

Com efeito, mediante a leitura freudiana do mal-estar na


civilização, estamos diante da crítica psicanalítica da
modernidade. Essa é a versão freudiana da condição trágica do
sujeito no mundo moderno, sem tirar nem pôr. 19
Conforme Birman, a construção da intrincada teoria pulsional (pulsão da vida/pulsão da
morte) e da economia da libido teria possibilitado a Freud o desenvolvimento crítico em
relação às teorias médicas evolucionistas e positivistas da cura.

15
BRADBURY, Malcom ; McFARLANE, James. Modernismo. Guia Geral. São Paulo: Companhia
das Letras, 1989, p. 43.
16
Parte das análises aqui expostas sobre os escritos freudianos a respeito do indivíduo e da
sociedade foram extraídos dos livros de Joel Birman, em especial O mal-estar na atualidade. A
psicanálise e as novas formas de subjetividade. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005,
e Cadernos sobre o mal. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. É preciso dizer também
que meu interesse e capacidade de percepção da obra de Freud nessa questão são os de um
historiador em busca de ferramentas antropológicas e não de um especialista.
17
Birman, Cadernos, op. cit., p. 31.
18
Birman, Cadernos, Op. citr., p. 123.
19
Birman, Mal-estar, op.cit., p. 17/8.

6
A partir da elaboração das teorias ligadas ao Inconsciente, importantes para o surgimento
da perspectiva do deslocamento da soberania do consciente e do eu para os registros do
inconsciente e das pulsões, Freud aprofundou as concepções relativas às pulsões. A
pulsão de vida seria representada pelas ligações amorosas que estabelecemos com o
mundo, com as outras pessoas e com nós mesmos. O princípio do prazer e as pulsões
eróticas são outras de suas características. Já a pulsão de morte seria manifestada pela
agressividade que poderá estar voltada para si mesmo e para o outro. Traz também a
marca da compulsão à repetição, do movimento de retorno à inércia. Segundo Almeida, a
pulsão, na concepção freudiana, é definida como:

exigências de trabalho para a vida psíquica, uma carga de


excitação que o organismo necessita descarregar. Representa
então, uma excitação que encontra sua fonte no próprio corpo
(zonas erógenas), provinda, a princípio, das necessidades mais
primárias de sobrevivência; a força diz respeito ao aspecto
econômico, quantitativo da energia psíquica. Freud denominou a
energia das pulsões de libido; já a finalidade é sempre a
descarga da excitação (...). Esta descarga visa o retorno do
organismo a um estado anterior, equilibrado, existente antes do
aumento da carga excitatória. O objeto é sempre aquele que se
torna capaz de proporcionar a satisfação, pelo menos como
depositário de descarga (...). 20
A compreensão da dinâmica da teoria pulsional – a economia da libido – a partir da
postulação da pulsão de Morte, torna-se nesse aspecto, fundamental para o
entendimento do funcionamento do aparelho psíquico proposto por Freud.

Segundo Birman, Freud não nos apresentou uma leitura política da sociedade, mas as
leituras psicanalíticas da pulsão, do desejo e do sujeito fundaram enunciados pertinentes
sobre os campos da política, do social e do poder. E, com elas, o cientista pode iniciar
uma critica à harmonia entre indivíduo e sociedade. A guisa de conferência, observemos
alguns elementos que Freud destacou para compreender o mal-estar do indivíduo na
civilização. Segundo ele, “o sofrimento nos ameaça” a partir de três direções: de nosso
próprio corpo (“condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode
dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência”; do mundo externo
(“que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas”); e
de nossos relacionamentos com os outros homens. Sobre este comenta Freud: “O
sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer
outro. Tendemos a encará-lo como uma espécie de acréscimo gratuito, embora ele não

20
Almeida, Bruno Henrique Prates Pulsão de morte: Convergências e divergências entre Sigmund
Freud e Wilheim Reich. Curitiba: Centro Reichiano, 2007. Disponível em:
www.centroreichiano.com.br/artigos.htm . Acesso em: 14/92/2010

7
possa ser menos fatidicamente inevitável do que o sofrimento oriundo de outras fontes”.
21

A perspectiva colocada por Freud sobre o mal-estar civilizacional é bem pouca


animadora: “Ficamos inclinados a dizer que a intenção de que o homem seja ‘feliz’ não se
acha incluída no plano da ‘Criação’. 22

O sentimento de felicidade derivado da satisfação de um


selvagem impulso instintivo não domado pelo ego é
incomparavelmente mais intenso do que o derivado da satisfação
de um instinto que já foi domado. A irresistibilidade dos instintos
perversos e, talvez, a atração geral pelas coisas proibidas
encontram aqui uma explicação econômica. 23
No que se refere ao problema da agressividade, a economia da libido foi colocada e
definida de forma sucinta e precisa por Freud. Segundo Birman:

Assim, se uma parcela da pulsão de morte ficaria a serviço da


pulsão de vida e seria então desviada para o exterior, sob a
forma de sadismo e agressividade, outra ficaria retida e se
articularia à pulsão sexual, de modo a constituir o masoquismo
erógeno. (...) Vale dizer, a agressividade seria uma maneira
crucial de afirmação da vida, sem a qual a morte se apoderaria
efetivamente do psiquismo. 24
Analisando o preceito ‘Amarás a teu próximo como a ti mesmo’, (anterior mesmo ao
cristianismo) Freud pergunta com certa melancolia: “Qual é o sentido de um preceito
enunciado com tanta solenidade, se seu cumprimento não pode ser recomendado como
razoável?” 25

Diante da imensa angústia do indivíduo, Freud sugere “satisfações irrestritas”, tais como
o isolamento, tornar-se membro da comunidade humana, ou “o mais grosseiro, embora
também o mais eficaz” que é a intoxicação.

A minha intenção, ao abordar de forma inicial esse escritos de Freud, é o de perguntar,


inicialmente, em que medida a psicanálise oferece uma análise singular ao problema da
violência na sociedade moderna (e pós-moderna). É evidente que o discurso de Freud
não sintetiza o estudo psicanalítico sobre a violência, mas, analisando alguns textos de
especialistas é notória a referência a ele, em especial o artigo de 1930, Mal-estar na
civilização. Como estamos na fase do mapeamento, acredito que esse deva ser um
salutar ponto de referência. Dito em outros termos, a inquietação é se a crítica

21
Freud, Mal-estar na civilização. In: Freud, S. Edição standard brasileira das obras
psicologicas completas de Sigmund Freud. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987, p. 84.
22
Freud, Mal-estar na civilização, op.cit., p. 84.
23
Freud, Mal-estar na civilização, op.cit., p. 87.
24
Birman, Cadernos sobre o mal, op. cit. P. 48.
25
Freud, Mal-estar na civilização, op.cit., p. 115.

8
psicanalítica da modernidade apresentada por Freud superou a linha evolutiva e
normalizadora da biopolítica de tradição Iluminista, centrada na visão etnocêntrica de
indivíduo.

A resposta, evidentemente, não é um simples sim ou não. Como observa Birman, “a


interpretação da agressividade proposta pelo discurso freudiano se contrapõe ao que era
classicamente formulado”. Com efeito, afirma ainda Birman,

Se classicamente a agressividade se restringia à relação do


sujeito com o outro, na violência que o primeiro exercia sobre o
segundo, no discurso freudiano após a década de 1920 a
agressividade circula no campo do sujeito de diferente maneiras:
masoquismo e auto-destrutividade, sadismo e destrutividade, e
as relações agressivas estabelecidas entre as diferentes
instâncias psíquicas. 26

*****
Outro momento de reflexão sobre a violência é a definição estabelecida por Hannah
Arendt. Confesso que, desde minha primeira leitura da obra Sobre a Violência 27 , a
distinção feita por Arendt entre poder e violência, e entre espaço público e a ação social,
deixou-me incomodado. Na verdade insatisfeito, pois não conseguia ver eficácia na
ferramenta teórica disposta pela autora. Porém, as recorrentes referências, na literatura
brasileira, à definição arendtiana de violência e poder, convidaram-me a uma revisita.

Eu localizo o apego de muitos intelectuais brasileiros aos conceitos de Arendt sobre a


violência, na conjuntura intelectual e política do fim da ditadura militar e dos primeiros
passos da redemocratização do país, quando se experimentou uma luta intensa pelos
direitos humanos e, ao mesmo tempo, viveu-se um esgotamento das teorias clássicas
explicadoras, em especial a marxista. A luta pelos direitos humanos, no rescaldo de uma
ditadura militar, encontrava na ideia da violência como mal e como o fim da política, de
Arendt, uma explicação alentadora. A associação entre os regimes totalitários e a
ditadura brasileira parecia conveniente naquele momento de luta pela democratização,
no país.

A antropóloga Alba Zaluar, especialista no estudo da violência, no Brasil, também


destaca a presença de Arendt nesses estudos: “Muitos autores preocuparam-se em

26
Birman, Cadernos do mal, op. cit., p. 49.
27
Arendt, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

9
marcar as diferenças entre poder e violência, inspirando-se em Hannah Arendt e sua
caracterização da violência como um instrumento e não um fim”. 28

Hannah Arendt escreve sobre a violência tendo como referência o debate com a “tradição
intelectual” (Wright Mills, Max Weber), e com a “nova esquerda”, impressionada com a
emergência da desobediência civil dos movimentos de 1968 e com as guerrilhas. Centra
toda a discussão na definição de poder e violência, a partir da análise do pensamento
iluminista, dos regimes totalitários e da guerra fria. Vamos à sua definição de poder:

O poder não precisa de justificação, sendo inerente à própria


existência das comunidades políticas; o que ele realmente
precisa é de legitimidade. (...) O poder emerge onde quer que as
pessoas se unam e ajam em concerto, mas sua legitimidade
deriva mais do estar junto inicial do que qualquer ação que então
possa seguir-se. A legitimidade, quando desafiada, ampara-se a
si mesma em um apelo ao passado, enquanto a justificação
remete a um fim que jaz no futuro. A violência pode ser
justificável, mas nunca será legítima. 29
O poder basta a si mesmo. É um fim em si mesmo. Seu processo de construção e de
manutenção é inerente ao consenso, logo uma sociedade de tensão zero, que existiria
fora das lutas sociais. Nessa mesma perspectiva Arendt argumenta sobre a distinção – e
mesmo oposição – entre violência e poder:

Poder e violência são opostos; onde um domina absolutamente,


o outro está ausente. A violência aparece onde o poder está em
risco, mas deixada a seu próprio curso, ela conduz à desaparição
do poder. (...) A violência pode destruir o poder; ela é
absolutamente incapaz de criá-lo. 30
Minha dificuldade de compreender em que momento isso é possível e se é possível
imaginarmos a existência do poder sem lutas sociais – algumas ou na maioria das vezes
violentas – ficou esclarecida na crítica de Habermas a Arendt. Para esse pensador, essa
sociedade cujo poder nasce e se mantém sem violência só é possível por que Arendt
“estiliza [simplifica uma figura dando-lhe aspecto decorativo] a imagem da polis grega,
transformando-a na essência do político”, e “constrói dicotomias rígidas entre ‘público’ e
‘privado’, Estado e economia, liberdade e bem-estar, atividade político-prática e
produção, não aplicáveis à moderna sociedade burguesa e ao estado moderno”. 31 Para
esse autor, “este não é um caminho viável para nenhuma sociedade moderna”. 32

28
Zaluar, Alba. O contexto social e institucional da violência. NUPEVI-Instituto de Medicina
Social/ UERJ . Disponível em: http://www.ims.uerj.br/nupevi/artigos_periodicos/contexto.pdf .
29
Arendt, 1994:41.
30
Arendt, 1994:44.
31
Habermas, Jugen. O conceito de poder em Hannah Arendt. In: Habermas: Sociologia. Orgs. B.
Freitag e S. P. Rouanet. 3ª Ed. São Paulo: Ática, 2001, p. 109.
32
Idem, p. 110. Grifo no original.

10
Arendt, ao isolar o poder e a política dos elementos estratégicos da sua construção e
manutenção – naturalizou-os. Para Habermas, “a violência sempre foi parte integrante
dos meios [estratégias] para a aquisição e preservação do poder”. A violência é um
33
“elemento normal do sistema no estado moderno”. Com esse “aparelho conceitual
restrito à teoria da ação” – afirma Habermas – Arendt “se coloca em uma posição
inutilmente desvantajosa com relação às análises sistêmicas, habituais hoje em dia.

Na sua análise, Habermas recorre a Max Weber, um dos principais alvos de crítica de
Arendt. Vejamos, na direção de seu raciocino, a definição de política (e poder) dada por
Weber, em artigo de 1919:

Se só existissem estruturas sociais de que a violência estivesse


ausente, o conceito de Estado teria também desaparecido e
apenas subsistiria o que, no sentido próprio da palavra, se
denomina “anarquia”. A violência não é, evidentemente, o único
instrumento de que se vale o Estado – não haja a respeito
qualquer dúvida –, mas é seu instrumento específico. Em nossos
dias, a relação entre Estado e a violência é particularmente
íntima. Em todos os tempos, os agrupamentos políticos mais
diversos – a começar pela família – recorreram à violência física,
tendo-a como instrumento normal do poder. 34
Não é diferente a posição de Walter Benjamin. Referindo-se à greve operária, Benjamin
afirma ser a violência capaz de “instituir relações jurídicas e de modificá-las, por mais que
o sentimento da justiça possa se achar ofendido com isso”. 35 E sintetiza:

A função do poder-violência, na institucionalização do poder, é


dupla no sentido de que, por um lado, a institucionalização almeja
aquilo que é instituído como direito, como o seu fim, usando a
violência como seu meio; e, por outro lado, no momento da
instituição do fim como um direito, não dispensa a violência, mas
só agora a transforma, no sentido rigoroso e imediato, num poder
instituinte do direito, estabelecendo como direito não um fim livre
e independente da violência (Gewalt), mas um fim necessário e
intimamente vinculado a ela, sob o nome de poder (Macht). A
institucionalização do direito é institucionalização do poder e,
nesse sentido, um ato de manifestação imediata da violência. 36
A partir dessas leituras, as minhas inquietações iniciais sobre a validade das ferramentas
teóricas de Arendt ficaram razoavelmente esclarecidas. A distinção estabelecida pela
autora entre violência e poder são rígidas demais, a ponto de se anularem como
categorias de análise. A violência, em especial a que ocorre na esfera pública, é vista
como uma patologia social, um desvio de uma suposta normalidade, e que só pode ser

33
Idem, p. 112.
34
Weber, Max (1919) A política como vocação. In: Weber, M. Ciência e política – duas
vocações. 9ª Ed. São Paulo: Cultrix, 1993, p. 56.
35
Benjamin,Walter (1921) Crítica da violência, crítica do poder. In: Benjamin, W. Documentos de
cultura, documentos de barbárie. São Paulo: Ed. Cultrix, 1986, p. 164.
36
Idem, p. 172.

11
entendida em oposição a política. A autora retrocede, assim, “até a tradição do direito
natural”. 37

*****
Outro autor singular nessa discussão da violência é Norbert Elias. A pertinência da
reflexão da teoria eliaseana, em nosso caso, deve-se sobretudo à obra A busca da
excitação, 38 publicada em parceria com o Eric Dunning, sociólogo especializado em
esportes. É o único trabalho de Elias que trata especificamente dos esportes, mas é
largamente utilizada nos estudos da área. Nessa obra, Elias/Dunning buscam combinar o
jogo como metáfora da sociedade.

Para efeito desse mapeamento, é possível identificar na teoria eliaseana dois eixos
condutores, do meu ponto de vista não necessariamente bem acordados entre si: o
conceito de processo civilizador, associado ao de controle/autocontrole da violência, e o
da teoria configuracional. Iniciemos por esse último.

Roger Chartier, ao sintetizar o conceito de configuração, de Elias, utiliza-se da metáfora


do jogo:

uma formação social cujo tamanho pode ser muito variável (os jo-
gadores de um jogo de cartas, a tertúlia de um café, uma turma
de alunos de uma escola, uma aldeia, uma cidade, uma nação,
em que os indivíduos estão ligados uns aos outros por um modo
específico de dependências recíprocas e cuja reprodução supõe
um equilíbrio móvel de tensões. 39
A teoria configuracional pressupõe, portanto, uma teia de indivíduos interdependentes,
formando uma "estrutura entrelaçada de numerosas propriedades emergentes, tais como
relações de força, eixos de tensão, sistemas de classes e de estratificação, desportos,
guerras e crises econômicas". 40

Na definição da configuração, o poder é uma propriedade fundamental. Elias


desenvolveu o conceito de "relações de poder", afastando-se de tratá-lo como uma coisa,
"que alguns possuem no sentido absoluto e de que outros se encontram absolutamente
41
destituídos". Ele atribui ao poder um "caráter poliforme e multifacetado".

37
Habermas, op.cit., p. 118.
38
Elias, Norbert ; Dunning, Eric. A busca da excitação. Lisboa: DIFEL, 1992.
39
CHARTIER, R. Formação social e “habitus”: uma leitura de Norbert Elias. In: Chartier, R. A
história cultural. Entre práticas e representações. Lisboa : Rio de Janeiro: Difel, 1990. p 100.
40
Dunning, Eric. Prefácio. In: Elias, Norbert ; Dunning, Eric. A busca da excitação. Lisboa:
DIFEL, 1992, p. 26.
41
Idem.

12
É nessa "relação de poder" que Elias explora os conceitos de interdependência e de
equilíbrio das tensões, na medida em que essas noções colocam em xeque oposições
simples como indivíduo e sociedade e liberdade e determinismo.

Recusando a dicotomia entre liberdade ou determinação, Elias pensa a liberdade


individual como inscrita numa cadeia de interdependência que liga os homens. A rede de
dependência recíproca, ao mesmo tempo em que percebe a ação individual como ativa
no jogo social a submete a toda uma série de correlações de forças. Decorre dessa ideia,
a representação da configuração como um tabuleiro de xadrez, que pode ser tanto macro
quanto micro, de longa ou curta duração. "Daí a possibilidade de ultrapassar a oposição
entre o homem considerado como indivíduo livre e singular, e o homem considerado
como ser em sociedade, integrado em solidariedades e em comunidades múltiplas". 42

A teoria configuracional permite pensar as relações intersubjetivas como modalidades


historicamente variáveis, rompendo também com a dicotomia de real (os indivíduos de
carne e osso) e abstrações (as formas sociais que ligam uns aos outros). Para Elias, as
relações invisíveis, que associam a existência dos indivíduos, são igualmente reais.

Desse modo, entendo a teoria configuracional extremamente rica. Enquanto


configuração, os estudos de Elias apontaram para o "processo civilizador das sociedades
europeias”, cujos elementos básicos são: Formação do Estado; aumento da cadeia de
interdependência; reequilíbrio de poderes entre as classes sociais; refinamento das
condutas e dos padrões sociais; aumento da pressão sobre o autocontrole na
sexualidade, agressão, emoções, etc; aumento da importância da consciência como
reguladora do comportamento. 43

Elias percebeu a existência de um fenômeno configuracional na experiência europeia,


manifesto por um comportamento individual e social de controle e autocontrole das
emoções, e passou a denominá-lo de processo civilizacional. O problema é que a
constatação empírica do fenômeno do controle das emoções foi transformada, no
decorrer da carreira intelectual de Elias e de seus discípulos, numa lei geral da história.

O elemento estimulador desse percurso foi a interlocução de Elias com alguns


intelectuais – como Talcott Parson, por ele citado – ao criticar a dicotomia
indivíduo/sociedade, apresentada, segundo ele, como situações estanques. Outra
observação desfavorável foi a de que a sociologia, ao realizar a crítica à concepção
estéril do termo desenvolvimento (de tradição positivista), teria abandonado a tentativa de
dar explicações para as mudanças sociais de longa duração.

42
Chartier, op. cit., p.101
43
Dunning, op. cit., p. 30.

13
Esse tipo de sociologia, afirma Elias, “é um instrumento imperfeito de pesquisa
sociológica”. Para ele, o conceito de mudança social, entendido como um processo de
meras “disfunções acidentais” é inócuo à compreensão do processo social. Axioma que
apresenta-se contraditório à sua concepção de voo cego e indeterminação, manifesto na
teoria configuracional.

Ele reclama por um tipo do conceito que estabeleça uma clara distinção entre as
mudanças das “estruturas psicológicas individuais” e “estruturais sociais” e que aponte
nesse processo se existe uma direção específica e constante. 44

Assim, ao mesmo tempo em que por repetidas vezes critica a ideia de evolução e
progresso, enquanto conceitos estáticos, Elias reclama do desinteresse da sociologia
pelos processos de longa duração. A sociologia, para ele, ao tentar fugir da tentação de
produzir ideologia em vez de teoria, teria jogado fora o bebê junto com a água do banho.
45

Para ele, o elevado autocontrole do homem moderno, que lhe permitiu uma
autoconsciência, é que teria produzido essa “nítida linha divisória entre o que está
‘dentro’ do homem e o ‘mundo externo’”. Esse indivíduo “inteiramente auto-suficiente” é
que teria desenvolvido, desde Descartes, um enclausuramento e seu distanciamento em
relação ao social. 46 E é esse enclausuramento do homem moderno que o fez distanciar-
se da compreensão do processo. Cito:

Agora, na época que chamamos de “moderna”, os homens


chegaram a um estágio de autodistanciamento que lhes permite
conceber os processos naturais como uma esfera autônoma que
opera sem intenção, finalidade ou destino, em uma forma
puramente mecânica ou causal (...) Mas, nesse estágio, [os
indivíduos modernos] ainda não são capazes de se distanciarem
o suficiente de si mesmos para tornarem seu próprio
autodistanciamento, sua própria contenção de emoções – em
suma, as condições de seu próprio papel como o sujeito da
compreensão científica da natureza – objeto do conhecimento e
da indagação científica. 47
Assim, avança na construção de uma teoria que permita compreender a tensão entre o
voo cego da indeterminação e a sua percepção empírica da existência de um sentido
histórico:

A civilização não é “razoável”, nem “racional”, como também não é


“irracional”. É posta em movimento cegamente e mantida em

44
ELIAS, Norbert. Introdução à Edição de 1968. In: O processo civilizador. Vol. 1 – Uma história
dos costumes. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.
45
ELIAS, Introdução à Edição de 1968, op. cit., p. 234.
46
ELIAS, Introdução à Edição de 1968, op. cit., p. 241.
47
ELIAS, Introdução à Edição de 1968, op. cit., p. 245.

14
movimento pela dinâmica autônoma de uma rede de
relacionamentos, por mudanças específicas na maneira como as
pessoas se veem obrigadas a conviver. 48
Com o que estamos plenamente de acordo. Porém, a definição parece não satisfazer o
sociólogo, quando complementa:

Mas não é absolutamente impossível que possamos extrair dela


alguma coisa mais “razoável”, alguma coisa que funcione melhor
em termos de nossas necessidades e objetivos. Porque é
precisamente em combinação com o processo civilizador que a
dinâmica cega dos homens, entremisturando-se em seus atos e
objetivos, gradualmente leva a um campo de ação mais vasto para
a intervenção planejada nas estruturas social e individual –
intervenção esta baseada num conhecimento cada vez maior da
dinâmica não-planejada dessas estruturas. 49
O que o autor quis dizer com “alguma coisa que funcione melhor em termos de nossas
necessidades e objetivos”? Ele refere-se à necessidade da ciência encontrar uma
explicação racional para o caos social. No caso, esse “alguma coisa mais razoável”, é o
conceito de processo civilizador.

E quando propõe o encontro da “dinâmica cega” com o “processo civilizador”, não estaria
dando a este uma exterioridade e uma autonomia que o aproxima da condição de fio
condutor da história? Ou, em outras palavras, não seria o “processo civilizador” uma
espécie de superego do homem moderno ocidental, que daria sentido ao caos e a
indeterminação?

Aliás, é como Elias vê a definição de civilização: um conceito que “expressa a


consciência que o Ocidente tem de si mesmo (...) resume tudo em que a sociedade
ocidental dos últimos dois ou três século se julga superior a sociedades antigas ou a
50
sociedades contemporâneas ‘mais primitivas’.” Apesar de Elias reconhecer as
diferenças culturais na sua observação empírica, não é com esse pressuposto que ele
trabalha ao conceituar civilização:

Embora os seres humanos não sejam civilizados por natureza,


possuem por natureza uma disposição que torna possível, sob
determinadas condições, uma civilização, portanto uma auto-
regulação individual de impulsos do comportamento
momentâneo, condicionado por afetos e pulsões, ou o desvio
desses impulsos para fins secundários, e eventualmente também
sua reconfiguração sublimada. 51

48
ELIAS, N. Sugestões para uma teoria de processos civilizadores. In: O processo civilizador.
Vol. 2: Formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, p. 195.
49
Idem.
50
ELIAS, N. O processo civilizador. Volume 1, op.cit., p. 23..
51
Elias, N. Conceitos sociológicos fundamentais. In: Escritos & Ensaios. 1. Estado, processo,
opinião pública. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006, p.21.

15
É visível (e assumida) a incorporação por Elias da teoria pulsional de Freud. Mas
enquanto em Freud a teoria do inconsciente e das pulsões o teria levado a desenvolver
uma crítica ao progresso civilizacional, sobretudo na sua capacidade de controlar a
violência52, em Elias o que se destaca é a disposição “natural” dos “seres humanos” ao
controle/autocontrole. Enquanto em Freud a “sublimação” é uma fuga da angústia ou da
morte, mas não o fim do mal-estar civilizacional, em Elias é a evidência do controle da
violência e o “sentido” como um processo civilizador. Poderíamos, aqui, emprestar a
observação que Habermas fez a Hannah Arendt: Elias “retrocede, assim, até a tradição
do direito natural”. 53

Sobre essa polêmica, ainda, tomemos os comentários de Renato Janine Ribeiro, na


apresentação de O processo civilizador:

Tem cabimento apontar um sentido na história, como faz Elias?


Pois, ainda que o sentido seja precário em seus começos, ele
termina por apoderar-se do ritmo histórico, ou melhor dizendo, da
consciência e da fé do historiador, e este não mais se liberta do
sentido que antes, apontou. 54
Ou os de Roger Chartier, feitos originalmente na reedição de La société de Cour, em
1985, na França:

Os traços que Norbert Elias atribui à história, considerada como


perspectiva única, sempre idêntica a si mesma, não são aqueles
através dos quais os historiadores destes últimos vinte ou trinta
anos gostariam de ver caracterizar a sua prática. 55
Muito provavelmente em respostas aos seus críticos, Elias apresentou o conceito de
descivilização, aplicável ao descontrole da violência em sociedades complexas,
burguesas e supostamente civilizadas. Ou seja, descivilização definida como retrocesso
ou desvio daquela “direção muito definida” das civilizações. 56

Johan Goudsblom, talvez o mais crítico discípulo de Elias, primeiro reconhece que o
método de Elias “pretende ser uma teoria geral dos processos sociais” para, em seguida,
apontar para a necessidade de atualização do método:

Ao longo dos anos, eu mesmo fui cada vez mais atraído pela
promessa de uma teoria global dos processos sociais, que incluiria
os processos de civilização em geral. Como Elias, em seus últimos
trabalhos, também tive a tendência a ampliar o espectro de minhas

52
Freud escrevia nos belicosos e violentos anos 1920/30, violência a qual Elias, como judeu,
conheceu muito bem.
53
Habermas, op. cit., p. 118.
54
Ribeiro. Renato Janine. Apresentação a Norbert Elias. In: ELIAS, N. O processo civilizador.
Vol. 1 – Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994, p. 12.
55
Chartier, R. Formação social e “habitus”: uma leitura de Norbert Elias, op. cit., p. 92.
56
Elias, N. Introdução. In: Os alemães. A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX
e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 15.

16
próprias pesquisas a fim de que as conclusões coincidissem com a
imagem mais ampla do desenvolvimento global da humanidade.
Isso implica reconsiderar a noção de ‘processo de civilização’. 57
No limite, a atualização proposta por Goudsblom assume uma “apropriação parcial” da
teoria eliaseana. A atualização sugerida abandona a pretensão à teoria geral e assume a
riqueza dialética das configurações. Propõe utilizar a noção de processo de civilização
“enquanto equivalente ‘dinâmico’ do conceito de ‘cultura’.58

Revela-se, portanto, a impossibilidade de conciliar uma teoria geral do processo


civilizatório, com o método configuracional de equilíbrio das tensões. Este não suporta a
possibilidade mecânica e linear do contínuo/descontínuo ou civilização/descivilização. O
argumento da teoria configuracional deita por terra a possibilidade do “processo de
civilização” como teoria geral.

Curitiba, 2010

57
Goudsblom, Johan. Pensar com Elias. In: Garrigou, Alain ; Lacroix, Bernard (Orgs.) Norbert
Elias. A política e a história. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 243.
58
Idem.

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