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B O R R A / O

P A U L O PEREIRA LEITÃO C A V A L C A N T I

OU B R I G Y T H I E P A Ç O Q U I N H A

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

ESCOLA DE ARTES, CIÊNCIAS E HUMANIDADES

MUDANÇA SOCIAL E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA

RELATÓRIO DE QUALIFICAÇÃO | MESTRADO ACADÊMICO

TÍTULO DO PROJETO DE DISSERTAÇÃO:

B O R R A / O DA EXPERIÊNCIA DE DANÇA EM ABATÁS DE SALTO ALTO

OU

PARTO DE UMA DAS NOVAS BIXAS TROPICAIS DO SÉCULO XXI

ORIENTADORA:

Profa. Dra. MARÍLIA VELARDI

BANCA AVALIADORA DO EXAME DE QUALIFICAÇÃO:

Prof. Dr. LUIZ RUFINO RODRIGUES JÚNIOR

Prof. Dr. LUIZ RICARDO BASSO BALLESTERO

SÃO PAULO, 2019


“Eu quero a beleza saindo pelos poros, vai?

Já fez o picumã?

Já enfiou as garras?

Já limpou o piano?

Já colocou a pig?”

(PEPITA, 2018)1

1
PEPITA, Mulher (2018). Videoclipe oficial disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Os55iICF07k>.
Acesso em Abril de 2019.
BAPHO

Dos estranhamentos nas danças, “facadas” e desfiles deste corpo subdissidente, mesclado
ítalo-afro-candango-nordestino-mineiro-indígena... cis-gênero, boiando no vértice
pontiagudo da colonialidade neofascista glocal, à perversão combativa de delicadeza,
intimidade e volúpia. Imbricado num intenso processo - e desejo - de subjetivação;
antropodólogo “pardo”; vou estudar o fazer artístico em dança extemporânea na Santa Paula,
grande praça de uma ilha da Amérika do Sul, chamada Brazyl, de um povo miscigenado
oriundo da cultura do estupro dos homem tudo branco moderno europeu cristão
fundamentalista heterossexual cis-gênero patriarca meritocrático positivista neoliberal
plutocrático capitalista cartesiano ilustrado machista racista antropocêntrico eugenista
higienista teleológico civilizado extrativista epistemicida depredador explorador onívoro
cientificista ocidental hegemônico silenciador e assassino. Resolveram rotular um grupo de
pessoas como índios. Violentaram, violentaram, violentaram, vestiram. Babados, seda,
espelho, sapato. Salto alto. Saltamos para fins de 2018, onda fascistóide e Voldemort eleito na
sonífera ilha. Começam os trabalhos da clínica de antropodologia. Agenda cheia. Danças dos
pés de foice que transbordam do salto alto. “Segura essa marimba, monamu.” (BRASIL,
2015)2

Palavras-chave: poc; salto alto; pajubá; stiletto; pés; autoetnografia; decolonialidade; dança

contemporânea; investigação baseada em arte; pesquisa qualitativa.

2
BRASIL, Inês (2015) Disponível em vídeo no Youtube: <https://www.youtube.com/watch?v=Ytj8L-BiloE>.
Acesso em Abril de 2019.
sumário

prólogo 1
disciplinas cursadas 43
formação acadêmica e grupo de pesquisa 57
o projeto 58
ações 70
chuca 73
drama da irene 77
aquecimento 78
aquecimento dois 82
tandi 85
getê 98
rondejan 104
fondi 105
frapê 106
rondi anler 107
lento 108
pety batimã 109
gran batimã 111
alongamento 112
pordebrá 112
centro 113
piruetas 114
pequenos saltos 115
médios saltos 143
bateria 143
diagonal 147
reverência 149
coda 149
perguntas 151
cronograma 156
plano 190
referências bibliográficas 194
referências vindouras 195
créditos das imagens 197
epígrafes de epílogo 198
eu arfante 199 circunstâncias: minúsculas
1

P R Ó L O G O3

3
Definição do dicionário do Google:

Prólogo

substantivo masculino

HISTÓRIA DO TEATRO
no antigo teatro grego, a primeira parte da tragédia, em forma de diálogo entre personagens ou monólogo, na
qual se fazia a exposição do tema da tragédia.
POR EXTENSÃO•TEATRO
em uma peça teatral, cena ou monólogo iniciais, em que ger. são dados elementos precedentes ou elucidativos
da trama que se vai desenrolar.
POR EXTENSÃO•TEATRO
a primeira personagem a entrar em cena, a que expõe o prólogo.

MÚSICA
introdução a algumas óperas, ger. estranha ao enredo.
POR EXTENSÃO•BIBLIOLOGIA
m.q. PREFÁCIO.

Origem

⊙ ETIM lat.tar. prolŏgus,i

Ou anteâmbulo, antelóquio, apresentação, exórdio, introdução, preâmbulo, prefação, preliminar, prelúdio,


proêmio, prolegômenos, prolusão.
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Eu desejo atingir o abismo: as questões mais abissais, os pensamentos mais proibidos,


as imagens mais inimagináveis. Arfo. Vou tentar alcançar as topias mais nucleares pelas
superfícies, quiçá eu chegue lá, ou morra no caminho, sem fôlego, arfante. Tocando as
películas e camadas mais inflamadas e sensíveis da pele Terra, à beira de um estouro. Do
avesso, atravesso platôs esburacados, envaginados, e caio, dançando nas espirais de um
vórtice negativo, me derrubo para vazar. Devaneio. A poética de dança que conheço e
manifesto, como depoimentos sônicos, vibrantes, viscerais, fragrantes, hápticos, plásticos,
possui uma aspectos de fetiche, tesão, fascinação e obsessão pela beleza. Que aspectos torpes
e tolos da beleza preciso entender para reconhecer as mazelas que recaem sobre os corpos
vistos como abjeções dissidentes, aberrantes, marginais? Conseguirei, enfim, desarraigar a
dança de uma ideia de feiura ou beleza, algo além disso… mas ainda visível? Não sei, vou
colocar um salto alto. Inebriação. Aqui em cima me sinto lindo(a), e também ridículo(a).

Las imágenes tienen la fuerza de construir una narrativa crítica, capaz


de desenmascarar las distintas formas del colonialismo
contemporáneo. Son las imágenes, más que las palabras, en el
contexto de un devenir histórico que jerarquizó lo textual en
detrimento de las culturas visuales, las que permiten captar los
sentidos bloqueados y olvidados por la lengua oficial. (...) “Hay en el
colonialismo una función muy peculiar para las palabras: ellas no
designan, sino que encubren.” Por eso la descolonización no puede ser
sólo un pensamiento o una retórica, porque las palabras suelen
desentenderse de las prácticas. (CUSICANQUI, 2010. p. 5-6)

Silvia Rivera Cusicanqui é uma autora boliviana feminista, socióloga e teórica da


subalternidade, que participa ativamente de debates de movimentos indígenas, sobre história
oral e cosmologias Quechua e Aymara. A sua contribuição para este trabalho vem, por
enquanto, apenas para colaborar com uma fruição estética atenta sobre o que tenho a
compartilhar artística e imageticamente, na produção deste ser paradoxalmente feminino.
Afinal, eu não tenho recursos linguísticos para explicar as imagens anteriores. “De
este modo, las palabras se convirtieron en un registro ficcional, plagado de eufemismos que
velan la realidad en lugar de designarla” (Idem, p. 19). Escavo os problemas reais da vida
dissidente nas realidades torpes do fundamento colonial da sociedade: a figuração da
condição não humana do outro (CUSICANQUI, 2010, p. 28). É a “zona do não ser”, como
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disse Frantz Fanon em sua obra ‘Pele Negra Máscaras Brancas’, que ainda citarei outras
vezes neste trabalho direta e indiretamente.
“Los discursos públicos se convirtieron en formas de no decir. (...) Las imágenes nos
ofrecen interpretaciones y narrativas sociales, que desde siglos precoloniales iluminan este
trasfondo social y nos ofrecen perspectivas de comprensión crítica de la realidad” (Idem, p.
20). Visto aqui o figurino da necessidade de dizer algo com minha fisicalidade e sexualidade,
de um jeito anticolonial, combativo e corrosivo, por dentro e por fora.
No blog Pesquisa Qualitativa em Cena, criado pelo grupo de pesquisa ECOAR
(Estudos em Corpo e Arte) do qual faço parte, encontro mais reflexão sobre a questão de
leitura e desempenho de imagens. Uma questão de educação estética por meio da arte, e aqui
no corpo.
O texto O que as imagens sentem? Como sentem e pensam as imagens? está
disponível em:
<http://pesquisaqualiemcena.blogspot.com/2016/04/o-que-as-imagens-sentem-como-sentem-
e.html> (acessado em 09/05/2019).
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1. RELAÇÃO DAS DISCIPLINAS CURSADAS, ANÁLISE DO CONTEÚDO

MINISTRADO E ESTABELECIMENTO DAS RELAÇÕES ENTRE AS DISCIPLINAS

Cursadas:

● Filosofia da Ciência MPP5001

Professor Marcos Bernardino e Professora Silvia Helena Zanirato

Nesta disciplina foram oferecidos textos sobre a história da ciência e pensamentos

contemporâneos acerca da produção de conhecimento. Nas últimas aulas houve os estudos

de leituras que se voltavam às questões de gênero, sexualidade, imigração, subalternidade,

questões étnico-raciais e decolonialidade.

● Introdução às pesquisas qualitativas nas Artes Cênicas CAC-5411

Professora Marília Velardi e Professora Sayonara Pereira

Nesta disciplina foi apresentado um panorama sobre o espectro da pesquisa

qualitativa, desde os moldes mais tradicionais vinculados às ciências sociais até as vertentes

mais radicais oriundas da Escola de Chicago. Aqui enfatizamos a importância do estudo do

método e do entendimento do método enquanto uma forma de pensar, algo capital para as

pesquisas qualitativas mais radicais, nas quais as produções acadêmicas são escritas em

primeira pessoa. Nesta disciplina os alunos pós-graduandos fomentam o Blog “Pesquisa

Qualitativa em Cena”, citado anteriormente.

● Arte, Experiência e Educação, Cartografias de Si, Processos Criativos e Percursos de

Formação de Professores CAP5048

Professora Sumaya Mattar


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Nesta disciplina todas as pessoas participantes empreenderam um processo íntimo e

coletivo de subjetivação por meio de cartografias, refletindo sobre questões de produção de

conhecimento artístico para a docência e para os próprios fazeres de acordo com o campo de

conhecimento de cada uma. Deixarei a seguir o texto que sobra e rememora a minha

experiência no semestre em questão:

CARTOGRAFIA COR-DE-ROSA

Paulo Cavalcanti

Mediado(a) pela arte, pelo meu corpo, e pela minha intelectualidade disruptiva, em
movimento e intriga perene... Quem sou eu? O que eu faço? Qual é a minha questão? Onde eu estou?
Para onde vou ou poderia ir? Do que eu gosto? O que me machuca? Como posso resistir? Como
posso responder a tantas perguntas? A partir do quê elaboro tais perguntas? Caos. Vamos mergulhar
no caos da subjetividade e da subjetivação nos cenários de encontro das alteridades... corajosamente,
com afeto, com raiva, com coragem. Parafraseando Roland Barthes, etimologicamente, usando
coração e raiva, cour-rage. Cá estou iniciando o meu texto com uma primeira citação européia,
francesa, porque (in)conscientemente foi a primeira informação que me atravessou e me deu o
desejo de comunicar agora. Esse detalhe consiste no - e decorre do - terrível sistema-mundo violento
e injusto da colonialidade, que até hoje se arrasta e recai nas mais indiscerníveis filigranas, nos
dociliza sem que às vezes saibamos e nos isenta da responsabilidade de uma história muito longa de
extermínio, destruição de saberes e povos. A figura do colonizador é a iconografia de um belo
homem branco moderno europeu cristão fundamentalista heterossexual cis-gênero patriarca
meritocrático positivista neoliberal plutocrático capitalista cartesiano ilustrado machista racista
antropocêntrico eugenista higienista teleológico civilizado extrativista epistemicida depredador
explorador onívoro cientificista ocidental hegemônico silenciador e assassino. Eu me percebo uma
rapaz de quase 30 anos, miscigenado, oriundo de uma cultura do estupro, tenho sangue de homem e
mulheres brancas, indígenas, negras, africanas, italianas...pelo menos. Fui nascido numa ilha chamada
Brazyl, no eixo de viagem que percorreu Minas Gerais, Alagoas e Brasília, acabei sendo parido em
São Paulo-SP, na maior metrópole da América Latina. No hemisfério Sul, abaixo da linha do
Equador. Sou homem, homossexual, cis-gênero, cabelo crespo alisado, musculoso, magro, eutrófico,
vigoroso, mas longe de atender todos os requisitos do padrão de beleza do mundo globalizado
capitalista. Ora sou lido socialmente como negro, um negro de pele mais clara. Ora sou lido como
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branco, um branco de pele escurecida. Em minha certidão de nascimento consta a informação


“pardo”.

Esta apresentação introdutória se alinha com uma opção e um escolha artístico-


epistemológica decolonial, ou descolonial. Na assunção e intuição de que uma das mais urgentes
tarefas da contemporaneidade seja o empenho cotidiano de descolonização do corpo, do
pensamento e do imaginário. Enfrentando a colonialidade do ser, do poder e do saber, parafraseando
Anibal Quijano - sociólogo das humanidades peruano recentemente falecido, um dos percursos do
pensamento decolonial, participante do coletivo
MODERNIDADE/COLONIALIDADE/DECOLONIALIDADE. Meus raciocínios e interesses se
localizam nesta forma de pensar e repensar o mundo contemporâneo, em toda sua beleza implícita e
suas mazelas explícitas. Este texto rosa é oriundo da experiência que vivi durante os processos de
criação, escuta, pesquisa e aprendizagem no decorrer da disciplina Arte, experiência e educação,
Cartografias de Si: Processos Criativos e Percursos de Formação de Professores, oferecida pela
Professora Doutora Sumaya Mattar no Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Paulo (CAP-ECA-USP). Fui convidado a cartografar os meus
processos subjetivos, e opto por redigir esse ensaio monográfico em primeira pessoa, de maneira
intensamente qualitativa, afinal trata-se de um relato de experiências, indagações e investigações de
natureza artística e poética, nas quais o meu processo de subjetivação é um assunto e uma busca
nevrálgica. Esta tal subjetivação menos se trata de se “ensimesmar”, e mais de dialogar
profundamente com o mundo, os corpos e presenças do mundo, do meu mundo circunscrito a uma
enorme natureza, a uma coletividade; deixando de lado a apatia da impessoalidade e potencializando
os afetos, acolhendo os sentidos. Eu me matriculei nesta disciplina na qualidade de graduando do
curso de Educação Física e Saúde da Escola de Artes, Ciências e Humanidade da Universidade de São
Paulo (EACH-USP), no entanto, concomitantemente eu estava já cursando o primeiro ano do
Mestrado em Mudança Social e Participação Política, também na EACH-USP, também conhecida
como USP LESTE. As atividades ocorreram durante o segundo semestre do ano de 2018, um grupo
de estudantes, professores, pesquisadores e artistas, durante a tarde, das 14h às 17h45min para esta
viagem...

ÍTACA

Se partires um dia rumo à Ítaca Faz votos de que o caminho seja longo repleto de
aventuras, repleto de saber. Nem lestrigões, nem ciclopes, nem o colérico Posidon te
intimidem! Eles no teu caminho jamais encontrarás Se altivo for teu pensamento Se
sutil emoção o teu corpo e o teu espírito. tocar Nem lestrigões, nem ciclopes Nem o
bravio Posidon hás de ver Se tu mesmo não os levares dentro da alma Se tua alma
não os puser dentro de ti. Faz votos de que o caminho seja longo. Numerosas serão as
manhãs de verão Nas quais com que prazer, com que alegria Tu hás de entrar pela
primeira vez um porto Para correr as lojas dos fenícios e belas mercancias adquirir.
Madrepérolas, corais, âmbares, ébanos E perfumes sensuais de toda espécie Quanto
houver de aromas deleitosos. A muitas cidades do Egito peregrinas Para aprender,
para aprender dos doutos. Tem todo o tempo ítaca na mente. Estás predestinado a ali
chegar. Mas, não apresses a viagem nunca. Melhor muitos anos levares de jornada E
fundeares na ilha velho enfim. Rico de quanto ganhaste no caminho Sem esperar
riquezas que Ítaca te desse. Uma bela viagem deu-te Ítaca. Sem ela não te ponhas a
caminho. Mais do que isso não lhe cumpre dar-te. Ítaca não te iludiu Se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência. E, agora, sabes o que significam
Ítacas. Constantino Kabvafis (1863-1933) in: O Quarteto de Alexandria - trad. José
Paulo Paz.

O texto acima foi enviado para os alunos pela professora Sumaya, e, ali, estávamos sendo
provocados a pensar sobre a validade de um processo, sobre a fruição dos processos, e a capacidade
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de reflexão a partir e dentro dos caminhos, e não somente dos produtos finais, ou das linhas
conclusivas de chegada. Foi feito um primeiro passo, uma pergunta, estávamos iniciando, de fato,
uma viagem. Minha primeira pergunta elaborada foi:

“Quais aspectos, expressões ou políticas podem suscitar de experiências de estranhamento na


presença de um corpo masculino moreno cis-gênero homossexual jovem no movimento
autoetnográfico de dança e encenação com sapatos de salto alto?” (Paulinho, 23 e agosto de 2018)

Coadunada a esta pergunta inicial estava na minha primeira cartografia, também um


pequeno relato autobiográfico e uma pequena cena de dança e performance de aproximadamente
três minutos.

Cartografia de mim

Do balé a ralé Do salto a subalternidade Desbrasileiro, descalças, desalinhada,


inorganizada, desbinarizavel, enegrecente, iludido. Dançando uma autoetnografia de
salto alto em plutão Plutão, aliciamento da plutocracia no planeta terra. Defequei na
barriga da minha mãe, isso era perigoso, eu poderia ter engolido material fecal. Como
isso é possível? Teria eu inventando essa memória? Acho que foi minha mãe que
contou essa história. Minha mãe relata minha inclinação artística desde a tenra idade
quando ela me viu no meio do corredor de uma loja de brinquedos sozinho com um
microfone da Xuxa, forjando alguma movimentação, uma garatuja, umas poses,
gestos, gestos, uma mãozinha para cima. três anos, talvez. Eu sou homossexual, pele
morena, cabelo escuro, olhos castanhos, cis-gênero, um dos meus sobrenomes é de
origem italiana, minha mãe nasceu em Brasília, meu pai em Alagoas, e eu, em São
Paulo. Na verdade, Cavalcanti é meu único sobrenome porque meu pai fez questão de
suprimir o nome da minha mãe da minha certidão de nascimento. A primeira
violência colonial no Brasil foi a imposição de vestimenta aos índios. Eu nem era
nascido. Eu devia ter dois ou três anos e me lembro de uma cena dentro de uma loja
de brinquedos, me vi sozinho num corredor, peguei um microfone da Xuxa, levei
uma das mãos pra cima, a outra segurava o microfone perto da boca, eu devia
balbuciar alguma canção e ensaiava uma dancinha. Meu pai me deu um tapa na
cabeça quando eu tinha seis anos porque eu disse que ele era meio preto, ele havia
perguntado qual era a cor da pele dele, eu respondi assim porque achava que ele era
mais preto do que branco. Após uma festa de Natal na casa da minha avó, meu pai
brigou com minha mãe e mandou ela me dizer que eu era muito feminino quando
frequentava as festas de família, no jeito de sentar, falar e agir. Ela disse que aquele
não era eu. Eu já tinha uns 14 anos. Aos 18 anos, fiz minha primeira aula de balé
clássico. Meu pé era muito ‘ruim’, e até hoje, a curvatura do colo do meu pé e minha
flexão plantar não se adequam ao padrão ideal exigido pela técnica clássica, assim
como a rotação lateral dos meus membros inferiores está muito aquém do esperado
pelas convenções desta arte que remonta às óperas da corte italiana do século XV, lá
acredito que as bailarinas e bailarinos devessem ser brancas(os). Esta digladiação com
meu próprio corpo me assombra cotidianamente até hoje. Uma vez, durante uma
discussão, com um ex-namorado, eu tinha uns 22 anos, eu havia me recusado a entrar
numa sauna gay com ele, pq não estava a fim de sexo grupal naquele dia. Nós
mudamos de assunto. E ele ficou espantado quando eu disse já ter me relacionado
sexualmente com um de nossos conhecidos em comum, outro bailarino. Ele disse:
"Sério?! Nossa, mas ele é mais feio que você!". Depois ficou se desculpando e disse que
não era aquilo que ele queria dizer.
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Aos meu 27 anos, passei a virada do ano no Rio de Janeiro, na praia de Copacabana, a
queima de fogos era mágica, era um quadro cinematográfico, ver aquela noite,
daquele céu que se dissolvia na água, havia MUITAS pessoas na praia. Eu estava com
os calçados na mão, uma rosa branca na outra e com os pés na água. Senti vultos atrás
de mim, ingenuamente não entendia que aquilo era a corrida de rapazes que talvez
estivessem fazendo "arrastões". Um amigo estava ao meu lado. Subitamente, quando
olhei para a direita, avistei um grupo de homens espancando um menino, um rapaz
muito magro, negro, pequeno, jovem, sem camiseta. Aqueles homens violentavam,
batiam, socavam, chutavam. Foi o acontecimento mais terrível e cruel que já
presenciei, eu nunca vi ou senti nada parecido. Ao me aproximar vi uma mulher que
tentou apartar o linchamento apanhar também. Logo o menino ficou desacordado, no
chão de areia, e os homens não paravam, eram muitos, vi a água passando e levando o
sangue do menino para o mar. Imaginei que pudesse chamar algum policial para
socorrê-lo. Tentei desbravar a multidão para chegar até a rua, demorou, mas cheguei,
ao tentar abordar um PM, uma moça antecipou na minha frente gritando que eles
não faziam nada mesmo vendo os rapazes fazendo arrastão debaixo dos seus narizes.
Fui procurar a tropa de choque, abordei um policial, ele praticamente me ignorou,
mal olhou pra mim. No dia seguinte outro amigo ainda teve a coragem de opinar
dizendo que "esses meninos até que merecerem levar uns petelecos pra aprenderem a
não ser bandidos." A partir dessa experiência eu nunca mais celebrei o Ano Novo. Já tive duas namoradas e
dois namorados na vida, tudo aconteceu entre meus 15 e 26 anos. Encontros com
Luis, Cláudia, Bonnis, Neyde, Esmeralda, Joel, Audrey, Maurício, Fernando, Danilo,
Ivan, Vinícius me formaram enquanto indivíduo cênico na vida. Foram encontros de
dança clássica, moderna e contemporânea, do mundo corporativo, do universo
doméstico, de amor e de ódio. Aos 21 anos eu abandono o Bacharelado em Relações
Internacionais. Aos 23, concluo minha graduação em Comércio Exterior. Aos 24 anos
ingresso no curso de Bacharelado em Ciências da Atividade Física na USP Leste. Aos
28 trabalhei como arte-educador no Programa Vocacional da Prefeitura da Cidade de
São Paulo. A partir daí tornei o papel de professor de dança e artes do corpo e da cena
a minha principal ocupação. Enquanto professor na Bodytech Company e no Estúdio
Anacã, numa intensa rotina de aulas de ioga modalidades, de segunda a sábado, pela
manhã e a noite. Minha mãe, separada do meu pai, começa suas aulas de capoeira, ela
está muito feliz! Eu começo a fazer aulas de dança no salto alto. Eu conheço minha
aluna Mica No cursinho, em um dado momento, me propus a exercitar minhas
capacidades de redação. Redigir um bom texto. Eu nunca fui elogiado por nenhum
texto, exceto pelo texto no qual eu falava de amor. Meditação sobre PUDOR
cartografado no corpo Um dispositivo de prazer e de dor. Dor do salto, dor da
lampadada, dor da solidão de não pertencimento, da diáspora africana. De
ridicularização. A drag, a trans, a poc, pocpoc, Brigitte paçoquinha era meu apelido de
Drag. A trava. O passinho, a bixa preta, imagem através da qual eu não sou lido, mas
que desejo celebrar, e nela me inspirar um pouco.

O texto acima e a pergunta que o antecedeu, disparadores da minha pesquisa acadêmica de


mestrado não são exatamente a minha primeira cartografia, são apenas um prólogo para ela. A minha
cartografia em si é uma dança, como já comentei. Na cena de dança havia uma indumentária de um
avental, uma canga vermelha que cobria meu rosto, uma coleira que eu vestia no pescoço, dois pares
de sapatos de salto alto, e um suporte (o tapa sexo que os bailarinos homens costumam usar). Eu fiz a
troca de roupa durante a performance, passando pela nudez, havia música e pouca luz, eu ia trocando
de roupa enquanto ainda falava sobre assuntos relacionados ao meu relato autobiográfico, até que só
ficou a música e a dança daquele corpo outro em processo de desbinarização, numa dança-desfile
esquizofrênica entre o balé, o stiletto e o improviso de criação contemporânea. Durante a dança, em
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alguns momentos do minuto inicial eu explicava princípios básicos da dança de salto alto, também
conhecida como High Heels Class, Stiletto, ou Femme Style, três nomenclaturas que me incomodam
pelo anglicanismo e pela padronização binária e estigmatizadora de gênero e sexualidade. Exemplos:
você tem que ter peito, tem que arquear a coluna o máximo possível, não deve colocar peso sobre os
calcanhares, é preciso sempre se apoiar no antepé, é uma dança sensual e feminina, você tem que ser
uma menina, nada de masculinidade e agressividade. Como delirar a metrópole heteronormativa que
habita as minhas vísceras e a minha ontogenia? Para dar um fim ao juízo do colonizador,
pseudoparafraseando Artaud, para criar para si um corpo decolonizado, pseudoparafraseando
Deleuze, para entrever a treva enegrecendo a brancura da luz, pseudoparafraseando Agamben. Como
delirar essa bagagem filosófica e acadêmica que é totalmente eurocentrada, inclusive nos textos de
autores brasileiros? Como encontrar, legitimar e assumir o meu lugar de expressão no salto alto?
Como ser dignamente contemporâneo? Qual é a minha dança que eu ainda não vi?! Sei que ela está
aqui, mas ela não costuma ser facilitada, tampouco viabilizada. Quero desenvolver técnicas de
desopressão. Augusto Boal já fez isso com o Teatro, não é? - Para gozar a ancestralidade e desabar os
pilares do pudor. Enviadescer com dança. Ou mesmo motivar uma dança viada que possa ser
dançada por heteros, a dança é do domínio do Devaneio, Ânima, da feminilidade,
pseudoparafraseando Bachelard. Aí, novamente....

Uma vez um dos diretores de uma das companhias de dança onde eu trabalhei, em 2016, me
disse que eu trazia muitas perguntas, e poucas respostas/soluções... O primeiro seminário da
disciplina foi realizado por um grupo no qual eu estava inserido, fomos Thelma, Thiago Miguel,
Thaís e eu falarmos sobre Cartografias e Processos de Subjetivação, a partir de uma densa e literatura
eminentemente da filosofia de Deleuze e Guattari. Confesso que fiquei bastante intrigado por ter de
me debruçar tanto em autores europeus tendo optado pela decolonialidade na minha produção de
conhecimento, mas enfrentei este desafio, e tentei intertextualizar um pouco as teorias da diferença
com um vídeo de dança contextualizado com a ideia de corepolítica e coreopolícia do autor André
Lepecki. Eu rechaço a literatura deleuziana pelo fato de notar que hoje em dias muitas pessoas aqui
no Brasil tendem a valorizar muito mais essa produção de pensamento e filosofia em detrimento de
nossas produções locais que são tão boas quanto, ou talvez mais interessantes. Sabendo dos limites
dessa crítica, pois apesar de ouvir muito falar e ler muitas citações a respeito dos autores pós-
estruturalistas e da esquizoanálise, eu não me aprofundei nestes campos até hoje, ainda me
mantenho na opção de buscar literaturas que viabilizem e celebrem culturas e pensamentos
emergidos do hemisfério sul. Este seminário foi a nossa primeira cartografia coletiva.

“EU ESCREVO COM O CORPO.” (Manoel de Barros)


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Desde já, trago então as referências que acho que seriam capitais e capilares para um
processo de reflexão artística e educativa: Jota Mombaça e a barricada anticolonial, Lucas Veiga e a
psicologia preta, Djamila Ribeiro e o lugar de fala, Jessé Souza e a questão da subalternidade,
Boaventura Souza Santos e as epistemologias do Sul, Darcy Ribeiro e o povo brasileiro, Ariano
Suassuna e seus ensinamentos de estética, Norman Denzin e a pesquisa radicalmente qualitativa
performativa e autoetnográfica, Frantz Fanon e os condenados da Terra, e todos(as) autores(as)
latino-americanos(as) do coletivo MODERNIDADE/COLONIALIDADE/DECOLONIALIDADE,
entre eles Walter Mignolo, Catherine Walsh, Aníbal Quijano, Nelson Maldonado Torres, Silvia
Rivera Cusicanqui. Um dos nomes também seria Luiz Rufino, e esta pessoa nós tivemos o grande
privilégio de conhecer, conversar e dialogar em umas das aulas, quando discutimos e aprendemos um
pouco sobre o seu livro “A ciência encantada das macumbas”, onde ele traz um pouco do seu
pensamento de pedagogia das encruzilhadas, absolutamente alinhado com o pensamento e a atitude
decolonial e a lei 11.645/08, de assunção da nossa dívida histórica, que regulamenta a obrigatoriedade
do Ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Indígena em todos os níveis de ensino. As
referências supracitadas, em minha opinião, seriam uma ponte para um desejo um pouco mais
ambicioso de produção e circulação de conhecimento. Precisamos reaprender a valorizar a
transmissão de conhecimento oral, regional e a escuta de vozes que nem sempre são ouvidas com
tanta amplificação. A própria noção de autoria seria revista nesse ponto de vista. Sobretudo em
tempo de tecnologia digital da internet 2.0 onde qualquer pessoa pode produzir conteúdo virtual de
alcance planetário. Mulheres, pessoas negras, LGBTTQIA e outras corporeidades dissidentes
precisam produzir conhecimento, legitimar seus espaços, suas vozes, seus pertencimentos, sua
existência e sua presença. Um processo pungente de descolonização precisa ser empreendido.

Minha segunda cartografia foi uma caixa, dentro desta caixa havia um emaranhado de um
salto alto enovelado por uma sapatilha de balé clássico, e dentro do salto havia um carregador de
celular com duas saídas para cabos USB. A partir daí seguiria uma proposição de aula, cuja concepção
foi dividida entre mim, Nara e Simone. Como seria uma escrita do seu corpo? Como se soaria a
malha tecida pelo seu corpo em dialogia com outros corpos? Como seria a coreografia política do seu
corpo no trânsito urbano da cidade? E a estética utópica dos sonhos de um corpo? Aqui propomos
um entendimento do movimento corporal enquanto alguma inscrição na efemeridade do tempo e na
dimensão do espaço, de acordo com a materialidade e a presença da nossa anatomia sensível. Que tal
se nós concebessemos - para além da cisão que opõem o corpo e mente, ou da lógica moderna que
entende o corpo como carne instrumental - um corpo enquanto lugar.

“Meu corpo, topia implacável”. (Foucault)


50

Mais do que um corpo-eu, um corpo-lugar. Um lugar subjetivo de mim e de nós. Uma


mistura. Partindo da premissa de que um corpo só é um corpo quando está em relação a outro corpo.
Temos nossos pares, nossos duplos e nossos coletivos. Temos também nossas dobras. Nossas
possibilidades de dobra.

“Mas esse primeiro trabalho [Bichos] não se achata no chão, possuindo, por isso,
certos caracteres clássicos da escultura, apesar de uma dobradiça (invenção
revolucionária), que junta dois planos, e duas partes dobradas, rebatidas, que não se
mexem. Um eixo central preside ao mover dos planos. Logo depois, Lygia aborda o
círculo como um passo evolutivo natural. Um eixo central, e um plano circular que
gira em torno do eixo vertical. Essa obra tem a dignidade de um relógio de sol,
marcador do tempo. A partir daí a evolução é no sentido de uma complexidade
estrutural crescente, em que quadrados se ligam a triângulos, quadrados a quadrados,
quadrados a círculos, etc. Nessa complexidade, as obras vão se individualizando, com
movimentos e contramovimentos, ora tendendo a expandir-se para as extremidades,
ora para o interior, à procura de uma célula central, como na simetria convergente ou
póstero-anterior dos organismos vivos.” (CLARK, 1980, p.17)

O que advém da abertura do corpo? O que poderia advir da abertura de uma caixa? Quê
tanto contém dentro de um corpo? O que pode transbordar ou se alastrar de dentro de uma caixa
entreaberta? Nesta ocasião nós criaremos, juntos, a garatuja de um corpocaixa, ou quiçá, uma
caixacorpo. Partindo da noção de que de presença radical na qual um corpo só pode ser corpo, e de
fato existir, quando estiver em contato com outro corpo, propomos uma aula coletiva de consciência
corporal a fim de explorar, descobrir e sensibilizar o corpo a partir de suas articulações e dobras.
Após esta vivência de criação e experimentação corporal, vamos propor ao grupo uma
materialização, desta investigação, transpondo ou traduzindo de alguma maneira as articulações de
um corpo para as dobras de uma caixa. Esta materialização se dará através de uma criação plástica a
partir de uma caixa de papelão junto de outros materiais. Refletir sobre o encantamento e a criação
de lugares acolhedores a partir de nosso corpo. A caixa será uma metáfora de lugares que ocupamos,
habitamos, também de rótulos, formatos e clausuras, etc. A caixa também como um lugar acolhedor,
onde se guardam coisas importantes, um presente, uma surpresa, memórias boas e ruins, ou um lugar
de proteção. A partir de cada um olhar para a caixa e dar outra forma para ela. O corpo como lugar
de morada, de experiências, de possibilidades, subjetividades. Trata-se de mais uma estratégia de
mediação artística, na qual temos o corpo como centralidade e depois como periferia infinita.
Considerando o percurso de uma turma de pesquisadoras(es) das artes que está junta já há algumas
semanas nesta empreitada de cartografar a si mesma(o), escavando percursos de arte-educação,
acreditamos que será uma boa oportunidade para dar corpo, e caixa para nossa expressões.
Expressando alguma intimidade e intensidade que queira de desencaixotar, desencaixando para
reencaixar. Sempre de maneira criativa e aberta, disponível, profícua. Entre metáforas, analogias e
metonímias, trabalhamos questões do real e da materialidade do corpo, que se dobra e desdobra.
51

Criamos um duplo nosso, que era uma caixa, que se torna outra coisa, talvez um dobro, talvez uma
dobradura, talvez. Talvez um projeto mitológico contemporâneo de si. Talvez um simulacro:

(...) “a metamorfose estética do corpo é sinal da eternidade da vida e um


princípio fundador da perenidade do mito.” que é, por sua vez, “um lugar-
texto da transfiguração do corpo” e “Tendo Pasifaé, a esposa de Minos, se
enamorado de um touro, Dédalo lhe construiu uma vaca de madeira. Ela
fabricou uma bezerra tão perfeita, tão parecida a um animal real, que o touro
se enganou. Pasifaé havia se colocado no interior desse simulacro, e, assim, o
acasalamento pôde ocorrer. A cada vez, o princípio da imitação é tão bem
realizado que o logro tem êxito. (...) o simulacro não simula mais nada, torna-
se um corpo em si.” (JEUDY, 2002, p. 32).

Tecer uma cartografia de si, primeiro por meio da escrita do corpo, grafar e inscrever movimentos na
efemeridade do tempo-espaço. Descobrir a possibilidade infinita de movimentos do corpo.
Propriocepção. Mobilidade articular. Exercício de autonomia das diferentes partes do corpo, e
também de sinergia, coordenação neuromotora refinada. Um processo corpográfico, registrado em
nossas memórias. Dar corpo a algum afeto, a um sentimento, a uma questão. Incorporar um material
que seria descartado, que a princípio é insignificante. Dar outro sentido para ele.

Nas palavras de Foucault:

“Seria talvez necessário dizer também que fazer amor é sentir o corpo refluir
sobre si, é existir, enfim, fora de toda utopia, com toda densidade, entre as
mãos do outro. Sob os dedos do outro que nos percorrem, todas as partes
invisíveis do nosso corpo põem-se a existir, contra os lábios do outro os
nossos se tornam sensíveis, diante de seus olhos semicerrados, nosso rosto
adquire uma certeza, existe um olhar, enfim, para ver nossas pálpebras
fechadas. O amor, também ele, como o espelho e como a morte, sereniza a
utopia de nosso corpo, silencia-a, acalma-a, fecha-a como se numa caixa,
tranca-a e a sela. É por isso que ele é parente tão próximo da ilusão do
espelho e da ameaça da morte; e se, apesar dessas duas figuras perigosas que
o cercam, amamos tanto fazer amor, é porque no amor o corpo está aqui.”
(FOUCAULT, 2013, p. 16, grifo nosso).

Para realização desta aula, à luz de algumas inspirações teóricas e artísticas, criamos nosso próprio
método de investigação estética. A partir da ação do verbo dobrar. A aula foi belíssima, as pessoas
todas se envolveram e se empenharam nas experimentações corporais de dobras e articulações,
movimentando e dialogando com os próprios corpos e os corpos do outro, após uma trabalho de
bastante sensibilização e mapeamento do corpo e das suas possibilidades de movimento e inscrição
no espaço, tentamos traduzir um pouco daquela experiência em um registro pessoal de cada um,
utilizando caixas. Cada pessoa elaborou e criou caixas e desencaixes lindos, enquanto produções de
subjetivação. Eram caixas-corpos, ou corpos-caixa. Esta aula de experiência com arte foi a nossa
segunda cartografia coletiva. Restava somente uma cartografia dentro do planejamento do nosso
programa, uma cartografia pessoal final, enquanto síntese poética do processo, que foi apresentada
no último encontro de aula, além disso, aliada a esta quinta cartografia, temos esta monografia e um
52

volume com registros do caderno que utilizamos ao longo do curso, um caderno muito especial
criado a partir do método artesanal da professora Clarissa Suzuki. Outra aula especial que ainda não
citei foi a aula da professora Eleni Souza, bastante inspirada pelo conhecimento e a educação
decolonial, Eleni nos trouxe vivências de coco e jogos corporais, com música ao vivo, inclusive. No
dia desta aula, infelizmente, tivemos a surpresa de uma manifestação deveras agressiva de racismo
cultural e preconceito religioso. Ouvimos o seguinte brado de outro professor do departamento: “Isso
aqui não é terreiro”. Notemos que ainda em 2019, vivenciamos os efeitos da colonialidade, a violência
da branquitude e das opressões que vem de diversas formas a todas as pessoas que não se encaixam
dentro dos padrões e das normas impostos pela sociedade. Ademais, retrocedemos muito com o atual
governo eleito no Brasil, de um presidente militar ultraconservador, despreparado, declaradamente
racista, homofóbico e inimigo dos direitos humanos. Toda essa energia de tristeza e revolta me
assolou durante uma das proposições de aula, de um grupo de colegas, no mesmo dia da aula de
Corpos-Caixa que propusemos. Na aula anterior nós confeccionamos máscaras, mais uma brilhante
oportunidade de processo e produção de subjetividade, eu encontrei ali uma dimensão de mim
mesmo bastante ruim e melancólica, transmutei-me para um estado bastante alheio de todos ali por
alguns instantes enquanto vestia aquela máscara, era também uma máscara de luto pela realidade
brasileira na qual estou atracado. Outro momento marcante foi a criação de um desenho coletivo
com aquarela. Ali, com a ajuda de pessoas sensíveis, a garatuja de um desenho que eu estava
timidamente iniciando, com muitas dúvidas, inquietações e receios.... Se transformou de maneira
muito assertiva, e isso somente foi possível com a colaboração e continuação artística coletivas. Era
um exercício de reelaboração da nossa pergunta inicial, que sempre carregávamos conosco. Uma
reafirmação ou atualização talvez. Minha pergunta então, para aquele desenho, se tornou uma
afirmação no infinitivo:

ESPECTRO DE UM CAMINHO DE IDA E VOLTA - SEM LUGAR - DE MITO E MARGEM.

Entre o preto e o branco, e minha penúria de não-lugar racial classificado, eis que tenho o que
deveria ser mais óbvio, a cor rosa! Finalmente, em minha última cartografia, eu trouxe novamente
uma caixa, com meus sapatos de salto alto e agora com um tutu prato, um tênis rosa, um collant
vermelho, um top rosa, um cabide, a máscara fúnebre, o desenho coletivo algumas faixas roxas, uma
paçoquinha pra cada um e então manipulamos coletivamente aquele corpo outro composto por
roupas ares e significados pelo espaço. Saí absolutamente transformado após todos esses encontros,
como na minha 3a cartografia, meu registro poético no qual propus uma coreografias de mãos para
confecção de uma caixa com uma pistola que jorra tinta arco-íris, ao mergulhar na caixa e sair, nós
saímos transformados, o primeiro passo é criar a caixa e ter coragem de mergulhar, e depois voltar.
53
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56

Cursando no 1o semestre de 2019:

● Arquiteturas do risco e do inesperado: Derivas Documentárias e Dramáticas


Fraturadas na Cena Paulistana Contemporânea (interrompida)
Professor Dr. Evaldo Mocarzel e Professora Dra. Silvia Fernandes

● Teatralidade e Performatividade na Criação de Corpos Abjetos no Teatro


contemporâneo
Professor Dr. Ferdinando Martins

Essa disciplina tratou das ressonâncias a respeito da ideia de abjeção que recam
sobretudo na sexualidade, no gênero, nos corpos dissidentes, nas performances artísticas que
colocam em cheque o entendimento de corpo. São estudadas na disciplina diversas obras de
artistas brasileiras com cenas que vão transgredindo as formas do fazer artístico cênico
convencional, algumas obras estudadas foram: “Lobo” do coletivo de Carolina Bianchi e Cara
de Cavalo, “Anatomia do Fauno”, montagem na qual eu mesmo participei no papel de Fauno
em 2015; “Stabat Mater” de Janaína Leite, “Feminino Abjeto” de Janaína Leite; “O evangelho
segundo Jesus, Rainha do Céu” de Renata Carvalho e outros. Os textos de debate reúnem
autores da Teoria Queer, Teoria do Teatro e Psicanálise, entre elas: Julia Kristeva, Paul
Beatriz Preciado, Jacques Lacan, Judith Buttler, Sigmund Freud, Antonin Artaud, e outras. A
disciplina foi de suma importante para as últimas estratégias que pensei para o trabalho,
sobretudo no limiar e abismo entre beleza e abjeção que habito ao me vestir com sapatos de
salto alto e ao desnudar as camadas de pudor do meu corpo.

Todas as disciplinas escolhidas até agora têm relação direta com debates em
torno das artes, especialmente do corpo, com exceção da disciplina Filosofia da
Ciência, que é a única disciplina obrigatória exigida pelo programa de mestrado ao
qual me vinculo. Cursar uma disciplina sobre o método qualitativo em artes foi
fundamental para embasar a minha conduta e lugar de falar nas discussões em outras
disciplinas. As disciplinas do primeiro e segundo semestres do mestrado tiveram
importância brutal para meu projeto, ajudando-me a entender quem eu sou, o que
pretendo e o que estou fazendo aqui.
57

Estou aqui em um profundo mergulho de descoberta contemporânea e ancestral, pela


representatividade LGBTTQIA+, e para o delírio da colonialidade sobre os corpos.

Eu possuo em meu histórico acadêmico três cursos de ensino superior:


● Relações Internacionais - graduação não concluída (2009-2011);
● Comércio Exterior - Graduação Tecnológica concluída (2011-2013);
● Educação Física e Saúde (Ciências da Atividade Física) Bacharelado (2013-2019).

Formação artística:
● Balé Clássico - Luis Augusto Ribeiro, Neyde Rossi, Eduardo Bonnis,
Esmeralda Penha Gazal (Escola de Dança Ismael Guiser, Coreo Escola de Dança,
Núcleo de Dança Nice Leite Ilara Lopes, Estúdio Dona Kitty Bodenhein);
● Dança Contemporânea - Maurício de Oliveira, Rafaela Sahyoun, Fernando
Martins e Claudia de Souza (FOMENTO À DANÇA DA CIDADE DE SP);
● Piano Erudito - Horário Gouveia, Alfeu Araújo, Hermes Jacchieri, Rodrigo
Lima e Alex Buck (EMESP- ESCOLA DE MÚSICA DO ESTADO DE SP);
● Heels - Flávio Verne e Pedro Reis (Estúdio Anacã Corpo e Movimento).

Grupo de pesquisa acadêmica ao qual estou vinculado:


ECOAR - EACH - USP
Estudos em Corpo e Arte
Escola de Artes, Ciências e Humanidades
Universidade de São Paulo http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/40179
Coordenação: Marília Velardi
Integrantes:
Renata Matsuo Nathalia Borzilo
Brenda Barbosa Marina Corazza
Anna Carolina Longano Marilia Silveira
Paulo Cavalcanti Luis dos Santos
Paulo Henrique Cavalcante Katia dos Anjos
Wesley Fernandes André Bizerra
58

2. O PROJETO DE PESQUISA E AS ATIVIDADES NO MESTRADO

Desde o meu início no programa de mestrado, o projeto de pesquisa esteve


sempre em movimento; aqui contarei um pouco sobre suas mutações ao longo de um
ano, a primeira versão do projeto está disponível no ANEXO I. O título do trabalho já
teve várias configurações, exponho algumas:

Dramaturgia e encenação na dança: mitologias contemporâneas e corpo decolonial;


Uma dramaturgia autoetnográfica para alguma dança decolonial: corpo, sexualidade e mito
contemporâneo;
Autoetnografia enquanto movimento decolonial do corpo: mitologias contemporâneas;
Adaga: autoetnografia de um corpo dissidente no salto - meditações de dança e
decolonialidade;
Estranhamentos de um corpo candango-nordestino gay cis não-branco dançando com
sapatos de salto alto na cidade de São Paulo;
Borra/o da experiência de dança em sapatos de salto alto;
Borra/o da experiência de dança em abatás de salto alto….
A dança das POC, dissidência epistêmica e agenda contracolonial de um corpo palimpsesto;
Parto de uma das novas bixas do século XXI.

Na corredura dessas nomeações eu percebo a filtragem e a decantação de


algumas ideias, ao passo do surgimento de outras. É como se eu coasse um café, a
água fervente passa, eu bebo o café e depois olho para a borra. A borra borra.
Vamos tentar fruir, de antemão, objetivos, justificativas, temas, desejos e
recortes no caminho desses títulos.
É um projeto de pesquisa em arte, meu suporte artístico primeiro é a dança. Meu
interesse é a criação contemporânea de dança, alguma que seja descolonizadora e
anticolonial em sua potência. Destarte, de quais estratégias decoloniais posso lançar mão por
meio da minha dança e a da minha comunidade mais expressiva: LGBTTQIA brasileira?
Tenho absoluta ciência de que minha formação acadêmica e artística foi colonial. Minhas
primeiras referências artísticas foram balé clássico e piano erudito. Mas e agora?...
59

Agora é o momento de exercício, experimentação e intervenção urgente de arte no


mundo, colocando o corpo que foi posto na linha de frente dos combates políticos e
ideológicos do Brasil de 2019 para dançar esta dança macabra, deste protofascismo tropical
em ascensão.

Por decolonialidade consideremos, por enquanto, a opção e a atitude de


deslocamento de enunciação dos discursos, fazeres e existências pautadas a partir da figura
do homem colonizador (branco moderno europeu cristão fundamentalista heterossexual cis-
gênero patriarca meritocrático positivista neoliberal plutocrático capitalista cartesiano
ilustrado machista racista antropocêntrico eugenista higienista teleológico civilizado
extrativista epistemicida depredador explorador onívoro cientificista ocidental hegemônico
silenciador e assassino). A colonialidade é o efeito advindo da colonização que se arrasta até
hoje e é aquilo o que estrutura o sistema-mundo que oprime as existências dissidentes à
norma eurocêntrica.

Luiz Rufino (2016 : 57), ao refletir e defender estratégias e ações de caráter exusíaco,
em decolonialidade e performances afro-diaspóricas, percebe que “o corpo é o primeiro
lugar de ataque do racismo/colonialismo, porém esse mesmo corpo que é atacado nos revela
outras possibilidades.” Tais práticas exusíacas consistem em saberes e presenças que
encarnam dinâmicas de movimentos, transformações, conflitos, imprevisibilidades,
inacabamentos e possibilidades que estariam radicadas nas potências do signo Exu, elegbara
e enugbarijo, engolir e vomitar, absorver e restituir, o que a nova come e devolve
transformado. Torcido. Haverá muitas torções nesse trabalho. Um corpo que habita a
contradição de ser ao mesmo tempo vítima e algoz.
E sim, revisitarei a demonização do lugar de vítima pelo senso comum da libertação
esotérica do autoconhecimento branco, do bom samaritano, que nunca é vítima, é sempre
uma fortaleza divina. Para os brancos é muito prático e cômodo, de fato, condenar qualquer
assunção do lugar de vítima, sobretudo nas existências sobre as quais recaem suas agressões
sistêmicas.
Seja através do desvio existencial, da descredibilização dos modos de
saber ou nas mais variadas formas de subordinação, é no corpo que se
ressaltam as experiências da colonialidade. Todavia, é também nos
limites do corpo que emergem as possibilidades de novas inscrições, é
através dos seus saberes textualizados em múltiplas performances que
se conformam e se rasuram esses regimes (RUFINO, 2012:idem) .
60

Aqui o corpo rutila na centralidade do debate, e no fulcro deste trabalho, cuja


nevralgia é altamente sexual, na contradição e paradoxo da feminilidade e da masculinidade
tóxicas. O que está além do corpo também interessa. A ancestralidade e a espiritualidade do
Brasil e da América Latina são eminentemente negras e indígenas, há uma dívida histórica
escravocrata de mortandade e abusos das piores crueldades inimagináveis, sendo cobrada e
redistribuída em diferentes dimensões existenciais.

Essa redistribuição da violência pode ser entendida pela conceituação de Jota


Mombaça em seu livro digital publicado em 2016. "Rumo a uma redistribuição desobediente
de gênero e anticolonial da violência!"4: neste breve texto de apenas dezesseis páginas,
Mombaça discorre sobre tópicas muito urgentes da condição guerrilheira que é imposta a
todo corpo que não se adequa ao formato da figura colonizadora dominante na
contemporaneidade (global). Polícia que não é policiada, o que configura um crime uma vez
que a lei é uma mantenedora de injustiças e o racismo enquanto uma fantasia colonial, o
poder ficcional da violência colonial na alienação dos conflitos e na ilusão da seguridade, a
naturalização e abstração das hegemonias, reimaginar formas de conceber o mundo e rotas
de linhas de fuga para rearticular e resistir aos domínios de violência, o estado molecular
movido pelo desejo que ratifica o sistema condescendente com a violência perpetrada pelo
homem cis-gênero, a paz não opcional, o design global da violência contra corpos
dissidentes, são muitas ideias criando um vórtice de terror perante ao qual nós, corpos da
linha de frente, devemos nos posicionar, do contrário seremos exterminados, silenciados ou,
no mínimo, estaremos dando combustível para a necropolítica, como disse Achille Mbembe,
da colonialidade, brancossupremacista, machista e heterocisnormativa.

Na cena sobre redistribuição da violência, a autora coloca quatro estratégias: 1)


Nomear a norma, marcar as branquitudes, machulenciais e heterocisnormatividades, afinal a
norma é o que não se nomeia e nisso consistem os privilégio, vamos desdar o que está dado.
2) Fantasiar violências femininas, para que o arquétipo feminino se liberte finalmente do
lugar de fragilidade que só pode apanhar e não poder ser feroz e brutal quando necessário 3)
A autodefesa, física, política e psíquica, “aprender a ler as coreografias da violência e estudar
modos de intervir nela”. (MOMBAÇA, 2016 p.14) 4) O autocuidado, o que distingue a

4
Disponível em: https://issuu.com/amilcarpacker/docs/rumo_a_uma_redistribuic__a__o_da_vi
61

redistribuição sensível da violência com um processo de instauração generalizada e terrorista


de violência.

Como disse Fanon, na primeira parte de Os condenados da Terra lido na barricada de


Jota Mombaça (2016)5 a descolonização é um projeto de desordem total, que precisa findar
com todos os regimes que fundam nossas vidas. Fim do mundo, como o conhecemos. É um
horizonte radical, não se trata de reconciliação, é uma empreitada apocalíptica que nos
ultrapassa em nossas particularidades, uma micropolítica coletiva e ecumênica.

Com a ajuda e inspiração de Jota Mombaça, tal autora não binária, preta, nordestina,
artista pujante, percebo e me encorajo a marcar toda a produção intelectual branca, e todas
as pessoas brancas que conheço quando verifico situações de injustiça e opressão colonial,
esta é uma das possibilidades de redistribuição da violência proposta por ela. Venho
acompanhando cotidianamente suas publicações em redes sociais, especialmente no
Instagram: @monstraerratik. Jota pode nos ajudar e encorajar a perceber problemas sérios de
extrativismo epistêmico, apropriação epistêmica e ilegitimidade de fala de produções de
conhecimento por intelectuais brancos, outros exemplos são Peter Paul Pelbart, Suely Rolnik
e a própria editora N-1, apenas exemplos de um grupo de pessoas que se valem do - e
ocupam o - lugar de fala que precisa ser ocupado por mulheres negras, trans, não binárias,
homens trans, indígenas, pessoas da periferia, negros outras corporeidades dissidentes. Não
que haja problema no fato de pessoas brancas opinarem sobre racismo ou questões coloniais,
pelo contrário, precisamos do maior número de pessoas possíveis debatendo e ouvindo sobre
o assunto, mas precisamos viabilizar e escolher as referências certas.

Estou embebido desta corrente de pensamento e ação que é oriunda de um longo


histórico crítico, sociológico, artístico e filosófico desde o Grupo de Estudos Subalternos do
Sul da Ásia, na década de 1970, fundado por Ranajit Guha, até a formação do Grupo de
Estudos Subalternos Latino-Americano (1992-1998), e até a criação do coletivo
Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade na América Latina (Abya Yala) em 1998. O
chamado giro decolonial, que propõe justamente o deslocamento de enunciação ao qual me
refiro, ou seja, prover escuta a quem foi silenciado historicamente, ou que ainda é sufocado
politicamente nos tempos contemporâneos, não trata de uma reviravolta, tampouco

5
Idem.
62

inaugura um novo paradigma: trata-se da continuidade de um pensamento e um


engajamento delicada e responsavelmente concebido por muitas vozes, intelectualidades e
corpos disponíveis e inconformados com o curso da violência colonial que não perdeu sua
hegemonia, palavras essas que podemos encontrar na fala de Adelia Miglevich Ribeiro, da
Universidade do Espírito Santo, durante o X Simpósio de Linguagens e identidades da/na
Amazônia Ocidental em 2016, na mesa temática sobre o que consiste o colonialismo.

Desde os anos 1950/60 tais ideias já vibram, e a autora brasileira Luciana Ballestrin6
divide a evolução do pensamento descolonizador em pelo menos três fases. A primeira é a
fase das teorias pós-coloniais, de autores como Edward Said, Aimé Cesaire, Albert Memmi,
Frantz Fanon, Gayatri Spivak, Achille Mbembe e outros. A segunda fase se relaciona aos
Estudos Culturais e algumas teorias do pós-estruturalismo, criação do campo de Estudos
Subalternos indianos já citados acima. A terceira fase é finalmente o lugar de criação dos
Estudos Subalternos Latino Americanos que entre 1992 e 1998 se desdobrou no Coletivo
Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade, já citado. Os principais integrantes são: Walter
Mingolo, Anibal Quijano, Edgardo Lander, Ramón Grosfoguel, Agustín Lao-Montes, Walter
Mignolo, Zulma Palermo, Catherine Walsh, Arturo Escobar, Fernando Coronil, Javier
Sanjinés, Enrique Dussel, Santiago Castro-Gómez, María Lugones e Nelson Maldonado-
Torres.

De acordo com o autor branco, europeu e português, Boaventura Souza Santos, a


epistemologia hegemônica europeia colonial foi concebida de acordo com as intenções de
dominação dos colonizadores, e tudo isto está assentado em uma ideia de pensamento
abissal. Essa lógica opera a partir da “definição unilateral de linhas que dividem as
experiências, os saberes e os atores sociais entre os que são úteis, inteligíveis e visíveis (os
que ficam do lado de cá da linha) e os que são inúteis ou perigosos, ininteligíveis, objetos de
supressão ou esquecimento (os que ficam do lado de lá da linha).” Segundo ele, “o
pensamento abissal continua a vigorar hoje, (...) Para o combater, propõe uma iniciativa
epistemológica assentada na ecologia dos saberes e na tradução intercultural.”

Designamos a diversidade epistemológica do mundo por


epistemologias do Sul. O Sul é aqui concebido metaforicamente como
um campo de desafios epistêmicos, que procuram reparar os danos e

6
Informações retiradas de sua fala em um dos seminários sobre arte e descolonização do MASP em 2018.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cIG8WwPNUfc
63

impactos historicamente causados pelo capitalismo na sua relação


colonial com o mundo, Esta concepção do Sul sobrepõe-se em parte
com o Sul geográfico, o conjunto de países e regiões do mundo que
foram submetidos ao colonialismo europeu e que, com exceção da
Austrália e da Nova Zelândia, não atingiram níveis de
desenvolvimento econômico semelhantes ao do Norte global (Europa
e América do Norte). A sobreposição não é total porque, por um lado,
no interior do Norte geográfico classes e grupos sociais muito vastos
(trabalhadores, mulheres, indígenas, afro-descendentes) foram
sujeitos à dominação capitalista e colonial e, por outro lado, porque
no interior do Sul geográficol
….. houve sempre as “pequenas Europas”, pequenas elites locais que se
beneficiaram da dominação capitalista e colonial e que depois das
independências a exerceram e continuam a exercer, por suas próprias
mãos, contra as classes e grupos sociais subordinados. A ideia central
é. como já referimos, que o colonialismo, para além de todas as
dominações por que é conhecido, foi também uma dominação
epistemológica, uma relação extremamente desigual de saber-poder
que conduziu à supressão de muitas formas de saber próprias dos
povos e/ou nações colonizadas. As epistemologias do Sul são o
conjunto de intervenções epistemológicas que denunciam essa
supressão, valorizam os saberes que resistiram com êxito e investigam
as condições de um diálogo horizontal entre conhecimentos. A esse
diálogo entre saberes chamamos ecologias de saberes (SANTOS,
2006, apud SANTOS & MENESES, 2010 : 13)

O Hemisfério Norte como um todo não podem ser mais se perpetuar como
referência absoluta do Planeta Terra, e o conceito de universalidade, fundado na Europa não
nos serve, é algo muito enviesado e muito particular de um povo e de um tempo que
violentou e dizimou muitas culturas. É de tamanha violência que as palavras são poucas pra
descrever. Talvez só arte ou ter mesmo vivido o terror da escravidão e a perseguição às quais
foram subjugadas pessoas negras, árabes, africanos, asiáticos, indígenas, mulheres,
homossexuais, transsexuais, pessoas com deficiências… para chegar perto do entendimento
do que é tamanha agressão e assassínio.

Palavras num texto acadêmico não bastam, mas são um ponto de partida, uma
maneira de legitimar e ratificar subjetividades, e desse ponto de partida preciso avançar a
produção de conhecimento por meio de imagens, vídeos, performances em espaços públicos
e privados, está é a minha intenção de atuação acadêmica no Brasil de 2019 e 2020,
assombrado e em vibração de ameaça fascista, brutal e boçal.

Em suma, universalidade é um dos conceitos mais débeis e infelizes já criados. A


contemporaneidade urge por pluriversalidade.
64

Por essa razão, é muito importante que meu trabalho seja aportado por um programa
interdisciplinar de Mudança Social e Participação Política.

Mesmo as palavras sendo apenas meu aparato de viabilização comunicativa dentro


da esfera acadêmica, cada palavra que escrevo aqui é um risco, e eu tenho ciência disso.
Imaginemos entram quando me coloco nu em público expondo meu corpo e minha
sexualidade, quando desfilo de salto alto, quando danço de maneira feminina…

Se eu não puder fazer isso, minha vida não tem sentido, minha vida é um risco, para
mim, e para a colonialidade.

Coração. Raiva. Coragem.

No início eu pretendia tratar o assunto da dramaturgia da dança contemporânea,


pois, ao acompanhar o contingente de produções artísticas locais me parecia ser este o
debate atual mais acalorado. Já imbuído da opção decolonial e do pensamento de autores
latino-americanos, eu gostaria de propor uma criação em dança nessas perspectivas. Me
intriga o fato de que nomes como Pina Baush e a dança-teatro de Wuppertal, na Alemanha,
o movimento de Dança conceitual europeu, especialmente da Bélgica, conceituado como
Fleemish Wave, e o movimento de dança pós-moderna estadunidense da Judson Dance
Theatre sejam até hoje os baluartes teórico-práticos da dança contemporânea dentro do
Brasil. É no mínimo inconcebível que uma profusão e contingência artística tão profusa,
popular, ancestral e negro-indígena no Brasil e em toda América Latina sejam relegadas,
suplantadas e estreitadas pelos modelos branco-europeus. Seja dentro da academia, do
mercado da arte ou nas falas de senso comum de pessoas leigas, Pina Baush costuma ser
sempre a primeira referência. Ainda que possamos importar influências, não poderiam vir do
Oriente ou da África, por exemplo?

Em 2018 inaugura-se a pós-graduação em dança na UFRJ, e para a celebração do


lançamento deste programa de mestrado convidaram Morena Nascimento, artista brasileira
bastante conhecida especialmente por ter dançado na Companhia de Wuppertal com Pina
Baush, e Gabriele Klein, uma socióloga, teórica da dança e professora da Universidade de
Hamburgo, para falar sobre o fazer artístico da Cia. de Wuppertal.
65

E eu me pergunto... Porque convidaram estas pessoas para evocar e reproduzir


conhecimento alemão em um curso fundado no Rio de Janeiro com um contexto urbano,
social e artístico diametralmente oposto, e com uma riqueza de artistas e produções de dança
locais sem precedentes, como por exemplo, o trabalho da Companhia de Lia Rodrigues na
Maré e a irrupção fenomenal do Passinho oriundo das favelas cariocas? Gabriele e Morena
são mulheres artistas muito incríveis que respeito, leio e admiro, mas é no mínimo injusto
que outras artistas brasileiras não sejam convidadas para falar de uma dança contemporânea
que, senão puramente brasileira (o que é impossível, não é essa a questão) pelo menos olhe
para questões de um Brasil mestiço, subalterno do hemisfério sul, em processo de
emancipação, com mais de 50% da população negra e vivendo em uma cultura
66

hegemonicamente branca. Existem muitas artistas brasileiras com poéticas brilhantes


esperando para serem convidadas.

A mesma oficina oferecida por Morena Nascimento - “Magia e Técnica” - para a


ocasião do lançamento na UFRJ também foi oferecida no Centro de Referência da Dança de
São Paulo (CRDSP) no dia 26/11/2018, e eu fui um dos participantes. Lembro-me claramente
de um comentário da artista no início da prática dizendo que achava no mínimo engraçado
ou curioso o convite do Goethe Institut para que ela ministrasse aquela oficina de dança
considerando a experiência que ela teve com Pina sendo que naquele mesmo dia a
Companhia Wuppertal Tanztheater estava no Brasil, em São Paulo, para se apresentar no
Teatro Alfa. Segundo Morena, havia muitos outros bailarinos com muito mais tempo de
Companhia do que ela que poderiam compartilhar seus conhecimentos.

Entendamos o x da questão: Goethe Institut. Mas, com pesar, denuncio a UFRJ e os


responsáveis pelo marco de criação deste programa de mestrado em dança: creio que valha
muito uma profunda autocrítica. Nesse exemplo me apoio para criticar até aquelas outras
iniciativas que desconheço. Mas que, sei, existem e proliferam...

No entanto, desejo que fique claro o meu enorme apreço por processos de
intercâmbio e internacionalização, desde que tais fluxos sejam mediados e pautados de
maneira heterárquica. Tenho a lembrança viva de já ter escutado excelentes referências da
Alemanha enquanto um país que acolhe artistas brasileiros, especialmente bailarinos, mas o
interesse no corpo desses bailarinos é para cooptá-los ou para, sinceramente, entender de
onde eles vêm e o que têm a comunicar? E porque tal manifestação ou comunicação só pode
brilhar em outro continente e não na terra natal? Reitero inclusive meu respeito pelas
artistas Morena e Gabriele. É uma felicidade o fato de serem duas mulheres e dois homens as
principais vozes a serem escutadas neste encontro, mas são mulheres brancas ecoando
dizeres europeus. Precisamos mudar este cenário que só viabiliza, visibiliza e privilegia
artistas brancos de natureza europeia, e este movimento de mudança deve ser engrenado
institucionalmente, porque a colonialidade e o racismo são institucionais.

Eduardo Viveiros de Castro, no livro Metafísicas Canibais (2015:20) diz que “A


antropologia está pronta para assumir integralmente sua verdadeira missão, a de ser a teoria-
prática da descolonização permanente do pensamento.” No entanto, o autor é um homem
67

branco adepto ao pós-estruturalismo, o que o vincula a uma tradição europeizada. O


pensamento decolonial é mais radical e agudiza a tração que foi iniciada pelos estudos pós-
coloniais. O meu próprio programa de mestrado em Mudança Social e Participação Política
propõe uma bibliografia básica de ingresso absolutamente branca e masculina.

Este problema sistêmico-epistêmico-social está longe de ser sanado, mas precisamos


catalisar esse processo. Eu mesmo estarei sempre no limbo entre a negritude e a
branquitude, mas, sabendo dos efeitos nocivos do racismo, desejo sempre celebrar as
negritudes do mundo e valorizar a beleza negra na minha cidade, Estado, país, continente,
hemisfério e planeta, nesta ordem. Preciso aprender a negritude que não aprendi por conta
de um processo bastante violento de embranquecimento heteronormativo ao qual fui
submetido em minha formação cidadã. Sobre minha sexualidade, não há limbo, minha
presença é uma pujança gay, feminina que exala alegria, delicadeza e todas as qualidades
fêmeas que eu possa aprender e exercer. Dançar de salto alto é só uma delas, mas é um
grande salto para todas as outras neste meu processo.

Ontem7 acabei me desentendendo com um rapaz, gay, branco, com traços negróides
bem expressivos, cabelos pretos muito lisos, ele havia me mandado uma mensagem
reclamando que é muito difícil falar com pessoas brancas. Então eu disse que pra mim ele
era muitíssimo branco, então a fala dele me soava bastante estranha. Ele ficou extremamente
ofendido, alegou que etnia é algo que cada um tem o direito de autodefinir, e que no Brasil a
miscigenação é total, e que sua etnia é latina, e que a branquitude vai muito além da cor da
pele.

Maravilhoso. No entanto, lembro-me de pessoas brancas que se beneficiam de cotas


para negros por alegar afrodescendência, pessoas de pele branca, muito branca, não podem
imaginar os efeitos do racismos que recaem sobre uma pessoa negra retinta, nem mesmo a
uma pessoa mestiça; pessoas de pele clara, bem branca, não são uma ameaça quando entram
em um Banco, especialmente se estiverem vestidas de acordo com o protocolo social de
moral e bons costumes.

7
O tempo é fluido por aqui, parafraseando Neil Gaiman.
68

Uma vez, no bandejão Central da USP uma Sra. Branca, muito Branca, ao meu lado
disse que desafiava qualquer pessoa a ousar dizer que ela não era negra, porque ela tem
sangue negro, porque ela é brasileira.

MORES, ENTENDAM UMA COISA, VOCÊS PODEM IMAGINAR SER O QUE


VOCÊS QUISEREM SER, E EU ACHO ISSO LINDO, UM MIMO, MAS AGORA
BICHINHA BRANCA POP-POC GERAÇÃO MILLENIUM UNIVERSITÁRIA, CLASSE
MÉDIA, E MULHER BRANCA DE OLHO AZUL CHEGANO NIMIM PRA QUERER
OCUPAR LUGAR DE OPRESSÃO QUE NÃO SOFREM É NO MÍNIMO UM ABUSO
BEM PETULANTE À MINHA BELEZA, ME POUPEM, MANAS, EU SOU TUDO MENOS
OBRIGADA A ISSO. TÁ BOUA? UÓ. DESAQUENDEM DESSES CLOSE ERRADO.
GRATA.

d e s a c u e y n d e y n, por obséquio. Afe.

Não pedirei desculpas pela suposta falta de decoro que muitas pessoas devem pensar
ao ler os últimos parágrafos de denúncia ácida e desprovida do medo de comitês de ética.
Biografias não autorizadas são absolutamente legais, todavia, aqui eu tenho o mais atento
cuidado para não ofender ou macular a honra e a integridade social de nenhuma pessoa, pelo
contrário, é justamente o contrário.

Como já comentei, de acordo com Frantz Fanon, em sua obra ‘Os condenados da
Terra’ (1979: 25), “a descolonização é sempre um fenômeno violento é um programa de
desordem absoluta”. Aqui estou sendo muito mais ameno do que eu deveria, estou propondo
um delírio de colonialidades que atingem a minha subjetividade, apenas por marcar pessoas
brancas, eurocentrismos, machismos, heteronormatividades e bancar a representatividade da
minha sexualidade e natureza artística num país campeão em assassinatos de pessoas
LGBTQIA+. Um país cujo recém eleito presidente é declaradamente homofóbico, misógino,
sexista e racista, que satiriza o exílio de um deputado gay nordestino eleito
democraticamente que abandona o país em razão de ameaças de morte. Uma nação que
executa vereadoras lésbicas impunemente, que deseja flexibilizar leis ambientais que já não
funcionam e matam pessoas inocentes destruindo cidades inteiras como Mariana e
Brumadinho, pelo capital, pelo capital; cuja ministra chama os meninos de príncipes,
vestindo azul, e as meninas de princesa, vestindo rosa. Um país recorde em feminicídios. Que
69

mata meninos negros, a cada onze minutos. Prisões políticas arbitrárias. Milícias.
Intervenção militar. Analfabetismo político. Demarcação de terras indígenas lançadas para os
interesses ruralistas. Projetos de liberação de porte de armas, incitação à guerra civil. Elogio e
homenagem a torturadores declarados e reconhecidos do período da ditadura militar,
inclusive pela Comissão da Verdade.

Estamos na distopia brasileira. Cada palavra que eu escrevo aqui já é um risco. Meu
medo já passou. Minha escritura corporal é candente e glacial ao mesmo tempo. Não
descerei do salto em nenhum argumento. Absolutamente aberto para discussão, instaurando
diálogos, mas não estou parcimonioso para injustiça social e supremacia do colonizador.
Essas mazelas são a minha prerrogativa, cada vez mais acentuada.

Com o decorrer do ano de 2018, minha questão de crítica, denúncia e revisão da


dança na contemporaneidade vai introjetando, e pelas entranhas encontro um lugar de
expressão da minha subjetivação, um encontro com minha intimidade. Vou descobrindo
aqui a minha potência poética.

Eu mergulho, então, em processo de reconhecimento de mim mesmo, para verificar a


legitimidade dos meus discursos e onde eu caberia – dentro - dessas epistemologias que
propõem um deslocamento de enunciação, retirando a europa colonizadora do centro,
delirando essa hierarquia histórica. Eu procuro, então, no meu corpo, quais são as minhas
dimensões dissidentes, as que mais chamam atenção contra as normas da colonialidade
contemporânea. É muito claro, eu sou homossexual, latino-americano e mestiço. Sendo
assim, a sexualidade é um dos eixos políticos da minha poética de dança de(s)colonial. Não
menos importante, todas as danças não-brancas e não eurocentradas me interessam.

Entendo que, mesmo ocupando um lugar de minoria social, eu detenho inúmeros


privilégios. Sou universitário, de uma instituição pública. Homem gay cis-gênero. Dentro da
sigla LGBTTQIA+, eu pertenço à parcela menos oprimida desta comunidade. Tenho enorme
passabilidade branca na sociedade: muitas pessoas me leem como branco, outras como
negro, tenho dados sobre essa questão que serão expostos no decorrer do texto. Tenho
descendência indígena, negra e branca, até onde sei sou um pouco candango-nordestino-
mineiro-italiano-indígena esse percurso geográfico não é nada trivial. Não consigo me
declarar negro e nem branco, em minha certidão de nascimento sou pardo, sempre me
70

nomeei moreno, hoje não posso me definir etnicamente senão como um homem gay mestiço
latino de pele esclarecida no inverno e escurecida no verão, ora bege, ora cor-de-rosa, ora
marrom. Moro na região central de São Paulo-SP.

Revisando aspectos como estes reconheço principalmente o padrão de


heteronormatividade que me garante uma posição social de mínima aceitação. Por um lado
tenho a identidade social mestiça-homossexual que me subalterniza, por outro tenho acesso
a muita informação e a escuta de outras pessoas por ser universitário, artista e professor.
Nesta tensão aproveito, inclusive, dos meus signos claramente coloniais de vida para tentar
desnudar, denunciar e delirar esse sistema de normatização, controle e aniquilamento de
corpos, suas expressões e existências.

O meu tema ronda a dança, a sexualidade e a esfera política. Meu objetivo é dançar,
sexualizar (pois aqui está o fulcro da minha subjetivação), micropolitizar e descolonizar. A
minha justificativa é a minha existência coadunada às mazelas do governo federal do Brasil e
o atraso da colonialidade. Meu método é um elã de arte e vida, corporal e coletivo na base,
por ser corpo, uma autoetnografia artística radicalmente qualitativa.

Situar. Descobrir. Desafiar. Desfilar. Aprender. Ensinar. Encorajar. Criar. Desenovelar.

AÇÕES

Escorre a minha autoetnografia de práticas artísticas. Até o momento minhas


atividades no mestrado podem ser sintetizadas pelas seguintes experiências:

● Performance anticolonial de início de percurso na EACH-USP. Fevereiro de 2018;

● Curso de História Prática da Dança no Brasil na FUNARTE com a DUAL Cena


Contemporânea, participante (2018);

● Aulas de Dança no salto alto, duas vezes por semana, com Flávio Verne, no Estúdio
Anacã, enquanto aluno, desde fevereiro de 2018;

● Ministrante de algumas aulas de dança no salto alto avulsas, particulares e coletivas;


71

● Participação, enquanto ouvinte, do evento Centralidades Periféricas sobre os Saraus


da Cooperifa do IEA-USP (Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São
Paulo) (2018);

● Curso de História Prática da Dança no Brasil no Centro Cultural São Paulo com a
DUAL Cena Contemporânea, participante (2018);

● Performance de dança com sapatos de salto alto adaga ( stiletto) na EACH na Semana
de Arte e Cultura de 2018;

● Performance de dança na busca de um corpo outro desbinarizado no CAP/ECA/USP,


em uma disciplina de mestrado oferecida pela professora Sumaya Mattar;

● Ministrante da Oficina de Dança no Salto na Jornada de Gênero e Sexualidade da


Escola de Aplicação da USP em novembro de 2018;

● Contemplação da Performance Drag Queen de Helena Borgys (Uatila Coutinho) na


Blue Space;

● Práticas de Dança Contemporânea e Decolonialidade - Curso de Inverno - Difusão,


na qualidade de propositor e ministrante, em parceria com a mestranda Anna
Carolina Longano, extensão universitária da EACH-USP. Experiência de quatro dias.
Julho de 2018;

● Dança Contemporânea e Teatralidades Radicalmente Qualitativas - Curso de Verão -


Difusão, na qualidade de ministrante em parceria com a mestranda Anna Carolina
Longano e a Professora Doutora Marília Velardi. Extensão Universitária da EACH-
USP. Três dias de curso. Janeiro e Fevereiro de 2019;

● Aquisição de sete pares de sapatos de salto alto, Scarpin, Sandália e Bota;

● Ensaio fotográfico com Fausto Rolim sobre balé clássico, dança contemporânea,
nudez, abatás e autoetnografia.

● Presença na 23ª Para do Orgulho LGBT+ de São Paulo, de Scarpin rosa.

● Contemplação da Performance de Dança “Foreign Body” de Clebio Oliveira;


72

● Performance de Dança no Salto alto, com o título “ROUBADA”, com Wemerson da


Silva em Mairiporã, em uma festa privada de um traficante. Fomos lesados e não
recebemos o cachê. Junho de 2019;

● Curso no SESC Pompéia: Arte contemporânea e perspectivas queer: derivas e


deformações, com Vitor Grunvald; Julho de 2019;

Dançar de salto alto é o avesso da poda, é a afirmação do sim, ulterior a tantos nãos e
censuras da égide clássico-europeia contemporânea.

Produzir conhecimento com dança, gênero e linguagem pode ser uma desobediência
epistêmica e afirmativa de qualidades brasileiras e latinas, o avesso da poda mordeno-
colonial-cristã dos patriarcas e das donzelas.

A dança no salto alto, no corpo da bixa POC POC, é uma celebração da feminilidade,
um pouco pornografada, um pouco obscena, um pouco cômica, um pouco vulgar, erótica
por excelência, e não precisamos ter vergonha dessa legitimidade. Mais do que sexual, a
partir da sexualidade até as identidades, na inebriação de perfumes invisíveis, a dança das
POC é um derramamento de água de chuca no carpete, lubrificante no ventilador, um jorro
de leite quente para todos os cantos, um berro ensurdecedor, uma lascívia sem fim, é a
abertura que engole as podas, que ramifica e floresce em arcos e curvas, cada vez mais desejo
e movimento.

Do pé de descalço, desde a sapatilha, ao Scarpin, na Bota, de Sandália, no tijolo Bahia,


no tênis, no caco de vidro, na merda, no algodão-doce cor-de-rosa. Borrão que borra a
tessitura do ecrã, que rompe a pudor, que denúncia o machismo, que combate o ascetismo
cristão, que machuca os pés, para explorar e entender a dor, o ridículo e a beleza decantada
desse café coado, embebido, engolido, circulado, excretado, marcando um terreno que,
depois de todo pó/dejeto/borro seco, revela o palimpsesto, geológico, epistemológico,
ontológico da experiência de transformação e poetização das pequenas coisas da vida, das
existências dissidentes, das diferenças, dos encontros, dos afetos, das violências, lembranças,
feridas e curativos de autocuidado. A dança das POC.
73

3. PROJETO E SEU ESTÁGIO DE DESENVOLVIMENTO, COM APRESENTAÇÃO DAS


PARTES JÁ ESCRITAS DA DISSERTAÇÃO

Muito do que foi exposto acima estará também na dissertação final, mas a seguir
adiciono mais reflexões e criações de autoteoria, autoetnografia e revisão bibliográfica.

CHUCA8

Este projeto se baseia, a priori, na decolonialidade enquanto opção, atitude e


arcabouço teórico-prático de análise e reflexão para considerar e conceber corporeidades
outras, a qualidade de corpo dissidente, suas potências, poderes, espaços, privações,
representatividades e políticas no caminho de assunção das singularidades idiossincráticas e
das chaves de insurgência. Através da autoetnografia - da dialogia, de metagrafias e de
dramaturgias não convencionais que desdobrem a relação biunívoca entre textualidade e
ação - a poética da dança pode ser revista e apropriada (por meio da subjetivação), buscando
assim não somente evitar a reprodução de aspectos coloniais de diversas ordens em danças
que, ainda que sejam consideradas contemporâneas, tem sua mediação arraigada na
colonialidade9, mas também permite intuir formas outras de criação e fruição. O Brasil
abriga o habitar de corpos íbero-negro-indígenas, em uma configuração plurinacional. Este
cenário é o platô para os atravessamentos e as imersões do pesquisador em sua criação e
indagação. A enunciação do problema formulado é decorrente de reflexões memoriais,
subjetivas e éticas, sobre experiências profissionais e contemplativas. Em decorrência de um
olhar autobiográfico, desdobrar-se-ão intervenções e ações de natureza artística, assim como
contribuições e vislumbramentos para a produção de conhecimento que não se restrinja ao
âmbito acadêmico, em consonância com os estudos qualitativos contemporâneos e às
epistemologias do sul. O cronograma está organizado de acordo com os prazos do programa
de Mudança Social e Participação Política (PROMUSPP) da EACH-USP. O método e a
coadunação do arcabouço teórico, de natureza transdisciplinar, privilegiam a escrita na
primeira pessoa do singular, deliberadamente, concebendo um lugar de fala que possibilite a
emolduração de um percurso performativo de descolonização do pensamento, do corpo e do

8
Designação, na cultura gay, para a lavagem anal, geralmente realizada por homens homossexuais enquanto
preparação para a atividade sexual na qualidade de parceiro passivo no ato.
9
O balé clássico contemporâneo é talvez o maior exemplo deste legado colonial europeu.
74

imaginário. Este livro cênico está sendo escrito por uma pessoa bailarina(o), aparentemente
cis-gênero, nas meditações de suas andanças de salto alto. Reitero: a figura do colonizador é a

iconografia de um belo homem branco moderno europeu


cristão fundamentalista heterossexual cis-gênero
patriarca meritocrático positivista neoliberal
plutocrático capitalista cartesiano ilustrado
machista racista antropocêntrico eugenista
higienista teleológico civilizado extrativista
epistemicida depredador explorador onívoro
cientificista ocidental hegemônico silenciador e
assassino.
A minha imagética de dança em movimento busca contrastar toda esta alegoria torpe
que se arrasta até hoje tragando existências, oprimindo e estreitando possibilidades de vida e
expressão.

Aqui lanço a intelectualidade do meu corpo a um processo de desbinarização para a


vinda, concepção e recepção, de um corpo outro. Trata-se de uma tentativa de aparição, de
uma corporeidade fresca, uma corpografia intensiva que defende os direitos humanos e a
liberdade de todos os corpos dissidentes em suas diversidades, ora via sussurro, ora via

berro.
75

“Se não for para causar, eu nem saio


Se não for para afrontar, bebê, eu nem saio
Se não for pra esculachar, ai, eu nem saio
Se não for para arrasar, querida
Berro, berro
Sou um sonho de consumo que tu nunca realizou
Berro, berro
Uma das sete maravilha que tu desacreditou
Pique zica me define, ouça bem o meu recado
Acordei, avisa o mundo, que hoje eu vou gritar bem alto
Tô feia, mas tô na moda
O terror das inimigas
Que pensam que vão causar falando mal da minha vida
Nossa hora é agora, porra
Entenda quem puder
Sou preta, não me intimido
Me respeita, eu sou mulher.”
(Tati Quebra-Barraco e Lia Clark)10

O método de perversão combativa que escolhi é uma estratégia decolonial de


utilização de conteúdos, informações e formas que serão voltadas contra elas mesmas,
reconfiguradas, às vezes desfiguradas. A descolonização não sucederá senão a partir de
dentro-dentro da colônia. Discorrerei bastante sobre o método nas próximas páginas, por ser
uma investigação baseada em arte de natureza radicalmente qualitativa. Aqui entendo o meu
método enquanto uma forma de pensamento e não somente como um protocolo a ser
seguido, há, de fato, uma metodologia. E naturalmente, este método, assim como o título
dessa dissertação por vir, assim como meu corpo, está em franco movimento.

O que quero dizer com “perversão combativa”? PC é uma maneira de usar conteúdos
deveras coloniais - que também são veículos de opressão - como manifestações decoloniais
de emancipação e insurgência, exemplos: balé clássico, modalidade de dança no salto alto
com nomes anglolátricos e estigmatizadores (Femme Style e Heels Class, por exemplo), e
outros elementos da cultura queer, do capitalismo rosa, etc. Pretendo perverter esses
elementos e essas informações em favor de um projeto de descolonização subjetiva (e a
preparação para a descolonização objetiva que levará mais de 700 anos); perverter a
referência cultural branco-europeia, e por meio da minha dança, colocar esses conteúdos em
tensão com essas danças, subjetividades, agora não mais reverenciando o repertório
informacional colonial que me foi exposto ao longo de toda minha vida, mas colocando esta
formação identitária em xeque, na busca de um corpo outro, resgatando memórias, histórias,

10
Paisagem sonora, “Berro” - Heavy Baile feat. Tati Quebra Barraco & Lia Clark (2017) Disponível em: <
https://www.youtube.com/watch?v=NzILPU8PG2s>.
76

ancestralidades e vislumbrando utopias. É a minha tática, mais situacional do que deliberada,


de tentar delirar o estatuto colonial imposto nas formas de ser e agir no mundo. Destarte,
começo por aqui, revendo minha forma de dançar, de transmitir dança, de fruir dança e de
entender a dança.

Já consigo eleger alguns alvos primeiros precisos: machismo e heteronormatividade.


São dois dos principais problemas que preciso enfrentar cotidianamente no mundo
contemporâneo e às vezes até dentro de mim. A dança que proponho é inequivocamente
feminina, mais pelo fato de eu ter nascido homem do que pelo fato de ser uma dança
legitimamente feminina… Se é uma dança não-branca ainda não sei, mas é uma dança
colorida, não é pálida. Turva. É o elogio e a celebração da volúpia, da intimidade, da
diversidade e da mutação.

Neste livro-cênico, exponho um caminho autoetnográfico que revê passados e


presentes, meditando e remoldando memórias, um processo de intervenção e diálogo com o
entorno que hora me aceita e hora me rechaça, e comigo, que hora me deslumbro, hora me
aceito e hora me rechaço. Meus grupos étnicos são interseccionais, da mestiçagem e da
comunidade LGBTTQIA+.

Tenho uma identidade borrada, sou um vulto dançando, um rostidade que oscila,
uma presença que assinala um não lugar, que não pertence a lugar bem definido, mas existe.

A história que vou contar brilha exatamente na primeira vez em que calço sapatos de
salto alto, e começo a aprender essa nova dança. Em 29 anos de vida, nunca me senti tão feliz
dançando. Esse fato merece muito a minha atenção, pois ao me montar em cima do salto,
instantaneamente desmontei muitas noções sobre o meu corpo (étnico, humano) e a minha
dança (contemporânea? política!). Doravante, desconstruía-se uma trajetória de vida, de
afetos, de carreira profissional, a biografia de um eu-artista, bailarino clássico, pianista
erudito, estudante de relações internacionais, tecnólogo em comércio exterior, que desejava
formar uma família, ter um marido e adotar um filho. Muitos pilares desabando, demolição
risonha e corrosiva. A experiência de uma dança que começa quando subo no salto e rolo na
derrocada da condição heteronormativa de vida social homoerótica paulistana. Mas esse não
é o único início da história...
77

D R A M A D A I R E N E11 (ou esquema gráfico das errâncias antropodológicas)

-5) SAPATO SOCIAL | PIANO ERUDITO

-4) SAPATILHAS | BALLET CLÁSSICO

-3) MEIAS | DANÇA CONTEMPORÂNEA

-2) CHINELO | UM RÉVEILLON TRAUMÁTICO12

-1) TÊNIS | UM PROJETO ECUMÊNICO

0) PÉS NUS | AÇÃO DE ATAQUE VIOLENTO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

1) SCARPIN | PERDENDO A VIRGINDADE COM O SALTO ALTO

2) BOTA | HISTÓRIA FICCIONAL DA DANÇA NO SALTO ALTO

3) MEIA-PATA | FEMINILIDADE

4) COTURNO | MASCULINIDADE

5) POLAINA | CORPO PALIMPSESTO (FUGA A MUITAS VOZES)

6) MEIA-CALÇA | PAUSA PARA O CAFÉ

7) TIJOLO | DANÇAS URBANO-POÉTICAS

8) PATINS | AUTÔMATO

9) PONTAS | HOMEOPATIA ANTROPODOLÓGICA

10)FASCITE PLANTAR PONTEIRA, PALMILHA DE SILICONE, VODOL, BANDAID,


CORTADOR DE UNHA, TERRA, BOLINHA DE TÊNIS, HIDRATANTE, TALCO, PEDRA
POMES. O AVESSO DO ÓDIO. APROVEITANDO A VISTA DA MARCHA BRASILEIRA AN
ARRIERE AUTOTEORIA, AUTOETNOGRAFIA, AUTOFICÇÃO, AUTOPOIESE, DUPLO,
NARCISO EM VÍSCERAS, SUBJETIVAÇÃO, FRUIÇÃO ESTÉTICA, ICONOLATRIA.

11
Drama de acordo com o pajubá da cúpula gay é um misto de comédia e tragédia, ou só baixa auto-estima e
necessidade de chamar a atenção mesmo. Irene é uma bicha na casa dos 30 anos.

12
Talvez aqui tenha começado minha história borrada, após a brutalidade e a crueldade quase alucinógena de
um linchamento de um menino negro que presenciei na praia de copacabana, em plena queima de fogos.
78

AQUECIMENTO
Articulação dos pés, torção, equilíbrio, inclinações

Este é um projeto de pesquisa qualitativa que propõe produções e ações de


conhecimento e discussão em torno de uma poética de dança contemporânea realizada por
um corpo masculino no salto alto. O meu corpo. Portanto, trata-se de uma autoetnografia.

Bosquejo uma imersão de relato da minha subjetividade em diálogo com o mundo.


Inspirado na metodologia qualitativa de autoetnografia que pode ser sintetizada enquanto: “a
transformação de uma história de vida tradicional, um projeto biográfico que se torna um
projeto de autoetnografia interpretativa, em uma crítica, uma prática performativa, prática
que se inicia com a biografia de quem escreve e se direciona para a cultura, ao discurso, a
história e a ideologia” (DENZIN, 2013 : 10, 2018) .

É um desejo de narrar uma história, que não poderia ser contada por ninguém senão
eu mesmo, o Paulinho. Uma metagrafia de experiências eminentemente corporais e
imaginativas. Processos de criação, inscrições de experimentação e acontecimentos de
fruição. Ou seja, uma autoetnografia performativa.
79

Apesar de ainda me considerar cis-gênero, eu transito pelo universo da feminilidade e


suas sutilezas, suscitando um movimento político de presença, legitimação, reconhecimento
e circulação da cultura LGBTTQIA+, a partir da minha subjetividade homossexual. Nesta
qualidade minimamente dissidente, divergente e desviante, apresento meu contraponto e
minha conduta decolonial: Partindo do pressuposto de que a colonização e a decorrente
colonialidade do poder (que remanesce até hoje no tecido social mundial, hierarquizando os
hemisférios, silenciando saberes, e privilegiando a existência européia, heteronormativa,
branca, patriarcal, masculina, machista, plutocrática, lógico, positivista, cartesiana,
racionalista, científica, neoliberal em detrimento das existências das grandes minorias
pobres, mulheres, negras, LGBTTQIA+, comunidades indígenas, animais, ecossistemas,
anomias...) seja a base, a nevralgia e o eixo de todos os problemas contemporâneos
econômicos, sociais, éticos, estéticos e políticos, de opressão, desigualdade social e não-
sustentabilidade, verifico a minha maneira e condição de poder intervir intelectual, dialógica
e artisticamente no mundo, por meio de uma micropolítica militante da decolonialidade, que
nada mais é do que o movimento, a vigìlia, a insurgência e a ação política para reverter esse
cenário, visibilizar, libertar, criar e construir legitimidades de formas de existir que foram
colonizadas no passado, e que ainda hoje remanescem aliciadas pela colonialidade. Em
síntese a colonialidade é a força hegemônica que universaliza e privilegia um padrão de
existência humana, hierarquizando as minorias da sociedade, com a supremacia de um
padrão normativo. A dança contemporânea, assim como toda arte, tendo como nevralgia o
corpo e a sua expressão em movimento, também sofre as consequências sistêmicas de corpos
colonizados e de formas coloniais de entender, configurar e mover o corpo. Sendo assim, o
meu trabalho é uma autoetnografia performativa decolonial.

O estatuto do mundo contemporâneo ainda organiza seus sistemas e dispositivos


sociais sob a égide hegemônica da modernidade colonial. A história da colonização europeia,
dominando e violentando corpos, culturas e territórios ainda ressoa no século XXI, na forma
da colonialidade do poder, do saber e do existir. Eu acredito que esta seja a base e a grande
mácula que agride os direitos humanos, estreitando e exterminando vidas até hoje. Em
minha opinião, assim como a modernidade está para a colonialidade, a contemporaneidade
está para a decolonialidade. E, ao pensar na história da dança - reduzidamente ocidental -,
assistimos ao deslocamento de lógicas, sentidos, arquétipos e estéticas da dança moderna
80

para a dança contemporanea, também precisamos assistir à contribuição da decolonialidade


na dança contemporânea. Descolonizando o pensamento, decolonizando o corpo, através de
mediações dialógicas.

Eu vislumbro caminhos de dialogia, imaginação, potência, utopia e (re)criação, por


meio da arte e da educação. Por esta (des)razão ou sentimento, minha investigação estética é
de natureza artística, e não científica. Faço questão de destacar e assumir este aspecto, certo
de que dentro da Universidade Pública, especificamente na Universidade de São Paulo - que
acolheu a minha motivação de ingresso para o Programa de Pós-Graduação em Mudança
Social e Participação Política, nível Mestrado, na Escola de Artes, Ciências e Humanidades -
o primeiro capítulo “Dos Objetivos” do Regimento de Pós-Graduação da instituição, do
Título I, “Da Conceituação”, os dois primeiros artigos são bastante categóricos ao precisar
que a função primeira da Universidade, além, é claro, de várias outras contribuições sociais e
culturais que possam advir de sua existência e do encontro de pessoas que sua arquitetura
suscita, é a criação de conhecimento e inovação:

Artigo 1º – A Pós-Graduação stricto sensu, voltada para a geração do


conhecimento, destina-se à formação de docentes, pesquisadores e profissionais com
amplo domínio de seu campo do saber e capacidade de liderança e inovação.
Artigo 2º – A Pós-Graduação stricto sensu compreende um conjunto de
atividades realizadas no âmbito dos Programas de Pós-Graduação, acompanhadas por
orientador, específicas para cada pós-graduando, as quais incluem e privilegiam o
ensino e a pesquisa, visando à integração do conhecimento e o desenvolvimento da
sociedade.
§ 1º – A Pós-Graduação stricto sensu deve ser entendida como um sistema de
formação intelectual e, ao mesmo tempo, de produção de conhecimento e inovação
em cada área do saber.

A arte é produção de conhecimento, difusão de valores, de aspectos culturais,


estéticos, sensíveis, subjetivos e políticos. De todo modo, para mim, a arte é a celebração da
vida, e devemos celebrar todas as formas de vida, pois todas as formas de vida importam, até
mesmo (aliás, sobretudo!) as mais discriminadas, excluídas socialmente e alvos de abjeção. E,
sim, a minha opinião importa. E a não definição de um alvo, estudo de caso, ou resultado
quantitativo esperado é oportuna aqui, porque potencializa as ramificações e os vetores para
onde a pesquisa, minhas ações performativas/performáticas, e meu relato de experiência
podem se expandir. Vejo uma coreografia coletiva de relações e conversas entre mim e o
meu entorno, entre minha subjetividade e meu lugar na cultura, entre meu lugar de fala e os
81

espaços onde ocupo, habito, comunico e atravesso; entre meu corpo, meu pensamento e meu
inconsciente.

A política e as artes contemporâneas possuem entre si uma relação bastante


íntima, inextricável, e o elemento que ressalta esta relação entre arte, vida e política é o
dissenso. Essa instauração de política artística ou arte política dissensual, que causa
estranhamento, abridora de potências é ainda mais pungente nas artes do corpo, da
efemeridade, onde a precariedade do sujeito e a ilusão das cronotopias ficam mais evidentes,
presentes e ausentes, na dança, no teatro, na performance.

Os últimos quatro parágrafos compõem uma miríade de fatores, esferas a instâncias


de diferentes disciplinas, e a discussão pode ser somada às questões de religião, filosofia,
mitologia contemporânea, e temas de cultura popular, pequenas comunidades, não tem fim.

Por isso este assunto - e este elã - não pode ser disciplinar, tampouco interdisciplinar
ou multidisciplinar, somente transdisciplinar. Ratificando a atitude decolonial já bradada.
Com efeito, ofereço uma autoetnografia performativa decolonial transdisciplinar.

O Brasil é o país líder em assassinatos de pessoas trans no mundo. E este assunto


merece a nossa atenção. “A cada 19 horas uma pessoa LGBT morre de forma violenta vítima
da LGBTfobia, o que faz do Brasil o campeão mundial de crimes contra as minorias sexuais”.
13Talvez eu ainda não tenha sido assassinado, pois me considero cis-gênero (ou pelo menos
tento), não tenho pele negra e não moro na periferia - ciente de todos os meus privilégios,
intensifico meu dever social de denúncia, repúdio e debate sobre tal crueldade. Sim, este
trabalho acadêmico, desde o projeto, como se pode notar, é escrito em primeira pessoa do
singular, por necessidade, e por uma questão de disposição política em detrimento da
impessoalidade da escrita em terceira pessoa, isto é uma consonância com os estudos
qualitativos contemporâneos. Destarte, me afirmo na escrita de uma autoetnografia
performativa decolonial transdisciplinar radicalmente qualitativa.

Caso eu ainda não tenha conseguido me expressar bem, reiterarei noções


importantes:

13
Informações obtidas no Relatório de pessoas LGBT mortas no Brasil em 2017 do Grupo Gay da
Bahia. Disponível em: <https://homofobiamata.files.wordpress.com/2017/12/relatorio-2081.pdf>.
82

a. este não é um projeto de pesquisa científica

b. eu não tenho objetivos científicos com este projeto

c. este projeto não apresenta objeto de pesquisa

Mergulho em uma autoetnografia performativa decolonial transdisciplinar


radicalmente qualitativa de dança:

AQUECIMENTO 2

Cloches

Imbuído desta proposição e da minha condição étnica de homem cis-gênero,


homossexual, mestiço, latino, brasileiro, de ideologia política inclinada à esquerda, artista,
educador, mestrando e solteiro, explicarei nas próximas páginas os motivos pelos quais
cheguei neste lugar de interesse e inspiração coadunando uma breve apresentação das bases
metodológicas que iluminam meu percurso e trajeto.

Dançar de salto alto não é uma tarefa fácil, requer treinamento, bastante habilidade e
equilíbrio.

A garatuja - um rabisco, um desenho mal feito, ilegível, um traço disforme - é uma


expressão de grande importância no processo educativo que ocorre nos estágios elementares
de comunicação e aprendizagem de uma criança. Na dança contemporânea,
recorrentemente, o público leigo ou não “iniciado” nesta arte, e até mesmo o profissional, se
depara com a estranheza da incompreensão de movimentos e configurações corporais sem
formas definidas, que nada significam. Mas por que a dança precisa significar algo? A
sexualidade hoje, com siglas que não param de se somar, se revela cada vez mais plural, com
a performatividade dos gêneros, a fluidez das relações, a liberdade para escolher e desejar, a
recusa de uma classificação “natural” de identidade suplantada. Por que a sexualidade deve
ser escrava da reprodução de vidas?
83

Proponho a elucubração sobre a decolonialidade, ou seja, uma qualidade de agir que


se opõe e que procura se emancipar daquilo que podemos conceituar como a colonialidade
do poder (QUIJANO, 2005), que impera sobre as maneiras de ser, pensar e agir na vida, nas
artes e na educação, com ações que contraponham às lógicas eurocentradas, positivistas,
heteronormativas, patriarcais, machistas, cartesianas, tayloristas, fordistas, toyotistas,
biologizantes, fundamentalistas, eugenistas, higienistas e a todo o epistemicídio cultural que
oprime e desqualifica produções de conhecimento e valores que não se enquadrem nas
regulações e paradigmas fundados pela tradição ocidental europeia da ciência moderna, das
ciências duras, do racionalismo científico que privilegia - inequivocamente - pessoas de
fenótipo e condição branca, neoliberal, na ilusão da meritocracia e na perversidade da
plutocracia. Acredito que as tarefas mais prementes das epistemologias contemporâneas do
hemisfério sul sejam a descolonização da beleza, da saúde, da eficiência, do saber, da
elegância, da liberdade, do desejo, da meritocracia, do binarismo de gênero, das fronteiras,
do progresso, da modernidade, da voz autorizada.

O termo decolonial advém do contraponto a palavra colonialidade, ou seja, toda a


projeção de relações de poder e colonização da cultura, do corpo e do pensamento que
ecoam até hoje desde a colonização europeia, de maneira mais alastrada, introjetada e
reticular. A colonialidade é o efeito da colonização, a decolonialidade é a atitude necessária
após a suposta descolonização ou emancipação das pós-colonias. Precisamos delirar as
metrópoles às quais nos subjulgamos até mesmo inconscientemente.

Para começar meu percurso, atenho-me a primeira questão, a beleza, enquanto um


ponto fulcral das expressões artísticas e do campo filosófico de discussão sobre a estética. As
convenções e os padrões de beleza outorgados por grupos de pessoas intelectuais ou não, ou
forçados pela indústria cultural, alienante e aliciadora, formatam os ditames do que pode ser
qualificado enquanto arte. Na dança contemporânea isto não é diferente.

A dança na contemporaneidade é marcada pela interdisciplinaridade, e também pela


intradisciplinaridade (o aprofundamento e a fragmentação de uma mesma questão, tema,
campo ou disciplina). Esta característica se nota na dialogia com outros suportes da arte,
música, artes visuais, teatro, tecnologias, mídias, poesia, literatura, política, filosofia, ciência e
cultura de modo geral. Em toda linguagem coreográfica, há o “princípio da discursividade
84

oral”, onde, mesmo quando não há uma manifestação de fácil intelecção racional, ali se dá
um fenômeno de “inscrição ou intenção de imprimir um traço, mesmo quando este é mera
garatuja”.

Quais são as estratégias possíveis para empreender um processo de decolonização do


corpo, do pensamento e desconstrução dos padrões eurocêntricos vigentes? O que poderia
vir a ser uma dança contemporânea decolonial? E como o meu corpo desviante e dissidente -
para evitar usar a palavra estrangeira queer - pode criar, fruir e executar tal dança, intervindo
por meio dela para também decolonizar meus espaços e tempos?

A decolonialidade advém de teorias latino americanas que versam sobre atitudes,


condutas e tarefas de reversão e transformação da colonialidade epistêmica, existencial e
social a qual todo o hemisfério sul está subjugado. A colonialidade é o eco da colonização
que se arrasta até os dias de hoje. Há movimentos que tentam coibir essa insurgência, em
favor da ciência moderna e das lógicas positivistas eurocêntricas.

Eu sou homossexual, um dos meus sobrenomes é de origem italiana, minha mãe


nasceu em Brasília, meu pai em Alagoas e eu, em São Paulo. Na verdade, Cavalcanti é meu
único sobrenome porque meu pai fez questão de suprimir o nome da minha mãe da minha
certidão de nascimento.

Conceitualmente, minha ação e escrita partem da ideia de subjetivação, a criação de


mim mesmo, atravessada pelo meu presente, considerando minhas experiências do passado e
prospectando meus desejos e ideias para o futuro que se torna presente a cada segundo. Aqui
especificamente, intenciono me conceber decolonial.

As culturas dominadas na colonização – que é toda a África, toda


América e toda a Ásia, mas que são também todas as regiões da
Europa que não Europa Ocidental, principalmente o Mediterrâneo, as
culturas árabes e judaicas do mediterrâneo antes da inquisição, as
culturas negras e indígenas que habitavam a América – eram culturas
cuja política de subjetivação é totalmente distinta e onde o corpo
estava muito presente (ROLNIK, 2010).
85

BATIDA ESTICADA - ATÔNITA

Articulando bem os pés, passando pela meia ponta, calcanhar proeminente acima para frente

e abaixo para trás e para frente ao lado.

O corpo é um problema. Andre Lepecki (2017) fala sobre a exaustão e o esgotamento


da dança, e assim como Paul Virilio (2015 apud Paula Sibilia) versa sobre a importância
política do parar. A paragem é uma das estratégias políticas da dança contemporânea. A
dança que se pensa, que para para pensar… pesar… desaparecer, ecoar.

Vladimir Safatle (2016) anuncia o fim do indivíduo e fala sobre as novas


corporeidades que podem insurgir resilientes às opressões e mecanismos de controle que
recaem sobre o corpo. No Instituto Moreira Salles (IMS) em São Paulo, 2017, uma obra diz
ser impossível fazer política sem imagens hoje em dia. A mídia ninja e outras plataformas
colaborativas vêm mostrando isso desde as manifestações de junho de 2013, no Brasil, por
exemplo. Facebook, Instagram, Snapchat, Tinder, Grindr, Hornet, LinkedInn, YouTube,
Blogs, QR Code, WhatsApp. Avatares. Iconolatria, idolatria das imagens. “Elogio da
86

superficialidade”, parafraseando Vilém Flusser (2008), sobre o “universo das imagens


técnicas”.

Desde a web 2.0, há um estatuto inaugural do corpo contemporâneo. Que corpo é


esse? Qual é a implicação existencial de um corpo que habita e não habita os lugares nos
quais transita? Um corpo avatar, sempre em manchete, (in)visível, dilatado, que ocupa as
ruas e as redes digitais, que (não) tem acesso a tudo, a toda a violência (e beleza) que há
algumas décadas não era vista e acessada com tanta facilidade. Gumbrecht (2010), em seu
ensaio "Graciosidade e estagnação" fala sobre a dança enquanto jogo e não-jogo ao mesmo
tempo. O jogo da dança, resgatando sua origem ritualística e de celebração, oscila o binômio
teatralidade-performatividade. Josete Féral (2009) também se insere no debate pós-crise da
representação nas artes e no mundo, projetando a ideia de jogo, em detrimento da mimese
no teatro contemporâneo. No final de seu artigo “Por uma poética da performatividade: o
teatro performativo.”, ela resume:

No teatro performativo, o ator é chamado a“fazer” (doing), a “estar


presente”, a assumir os riscos e a mostrar o fazer (showing the doing),
em outras palavras, a afirmar a performatividade do processo. A
atenção do espectador se coloca na execução do gesto, na criação da
forma, na dissolução dos signos e em sua reconstrução permanente.
Uma estética da presença se instaura (se met en place). (...) Nesta
forma artística, que dá lugar à performance em seu sentido
antropológico, o teatro aspira a produzir evento, acontecimento,
reencontrando o presente, mesmo que esse caráter de descrição das
ações não possa ser atingido. A peça não existe senão por sua lógica
interna que lhe dá sentido, liberando-a, com freqüência, de toda
dependência, exterior a uma mímesis precisa, a uma ficção narrativa
construída de maneira linear. O teatro se distanciou da representação.
Mas, ele se distanciou, de fato, da teatralidade? A questão merece ser
colocada. (FÉRAL, 2009, p. 209)

A performance poderia ser considerada como o ponto nevrálgico do contemporâneo


(GOUMARRE & KIHM, 2008 apud FERAL, 2009), eu também acredito nesta possibilidade,
afinal a presença do corpo está no seu desempenho, no que ele exibe, no que ele manifesta,
age, comunica, instaura, provoca. A dança, o teatro e todas as artes do corpo possuem esta
questão que merece nossa atenção, a presença do corpo, um tema que atravessa filosofia,
política, sociologia, antropologia, ciência, e portanto, transdisciplinar, pois vai além de tudo
isso. O teatro contemporâneo, também concernente à dança contemporânea, se distanciou
da representação, mas será que se distanciou da teatralidade e de toda mitologia que advém
87

das nossas narrativas cotidianas não lineares? De qual teatralidade necessitamos para
decolonizar?

Pelo intercâmbio muito íntimo entre teatro e dança, sobretudo no século XXI, é
demasiado importante pensar as naturezas das dramaturgias aplicadas à dança, mesmo que
sejam "não dramatúrgicas", com a luz/escurecimento do teatro pós-dramático, por exemplo.
Vou representar uma pessoa branca, rica, caucasiana, de descendência europeia? Pintar
minha cara de preto? Dançar um balé cortês? No Brasil? Na favela do Rio de Janeiro? Nas
ruas centro de São Paulo? Nas orlas das praias da Bahia? No carnaval de Recife? Nas festas
do interior? Com botas gaúchas? Com fantasia? Nu(a)? Por quê? Para quem?

Mário de Andrade, em 1982, escreveu as “Danças dramáticas brasileiras”, uma grande

obra em vários tomos. A dramaturgia de um Brasil já estava lá, na cultura popular… há

muitos anos. Butler, ao trazer a ideia de gênero performativo, nos lembra da potência do

corpo em devir seus desejos, transformando a si e o mundo. Em seu ensaio “Corpos que

pesam”, a primeira página se dispara com três citações provocativas:

Por que nossos corpos deveriam terminar na pele? Ou por que, além
dos seres humanos, deveríamos considerar também como corpos,
quando muito, apenas outros seres também encapsulados pela pele?
(Donna Haraway, O Manifesto Cyborg)
Se pensarmos realmente no corpo como tal, não existe nenhum
possível contorno do corpo como tal. Existem pensamentos sobre a
sistematicidade do corpo, existem codificações que atribuem valores
ao corpo. O corpo como tal não pode ser pensado e eu, certamente,
não posso acessá-lo. (Gayatri Chakravorty Spivak, "In a tvord"
entrevista com Ellen Rooney)
Não existe natureza alguma, apenas efeitos de natureza:
desnaturalização ou naturalização… (Jacques Derrida, Donner le
temps) (BUTLER, 1993)
Eduardo Viveiros de Castro (2015) grifa com assertividade que a tarefa
contemporânea da antropologia: “assumir sua verdadeira missão de ser a teoria-prática da
descolonização permanente do pensamento”. Mas, como bradado no início, aqui não se trata
de antropologia, mas sim…

A N T R O P O D O L O G I A.
88

Ou, para além, parafraseando Cornelius Castoriadis, de(s)colonizar o imaginário. Em


São Paulo, Ibirapuera, no Museu da Empatia, podemos calçar sapatos alheios e escutar as
histórias de vida das pessoas que habitavam estes calçados… Quem pode falar sobre a história
alheia? O que é lugar de fala? E a escuta? Praticamente não há história da dança do Brasil
antes do século XIX, e o que há está absolutamente restrito às molduras da colonização
européia. A ideia de cultura afro-diaspórica e seu (re)conhecimento é muito importante para
a população afro-brasileira, adestrada pelos ditames eurocêntricos e norte-americanos. A
concatenação das informações destes parágrafos introdutórios, análoga a uma conurbação
esquizofrênica, é um retrato deliberadamente escrito para retratar a égide da
contemporaneidade hipermidiática sob a qual vivemos, sem respiro, sem tempo, sem espaço
para tomar fôlego, apenas arfar. Posto este cenário rizomático de políticas, e questões sociais,
apresento a poética subjetiva do meu corpo que coteja a própria história com a historicidade
do mundo, procurando na arte o motor para ressignificação destas realidades.

Viver em São Paulo é não conseguir fruir todo o contingente artístico-cultural que a
megalópole oferece, a dança contemporânea produzida aqui é extremamente diversa,
dificilmente delineável ou classificável por meio de definições e características comuns a
89

todos os fazeres… Ao se misturar com outros suportes das artes, embotar a dança
contemporânea em uma categorização se torna cada vez mais difícil e contraproducente. No
entanto, discutir a natureza dos corpos e suas ações no âmbito da dança contemporânea me
parece uma tarefa necessária e possibilitadora de noções que sirvam como denominadores
comuns dos atributos que concernem a cultura local de uma determinada comunidade que
cria dança. Ou seja, considerando que a dança contemporânea é subsequente aos rituais
dançantes da antiguidade, do balé clássico, da dança moderna e muitas formas de
movimentos corporais produzidas por alguns séculos anteriores ao século XX, precisamos
sempre discutir se a dança contemporânea é de fato contemporânea, ou se é uma
continuidade de lógicas que não são mais condizentes com o tempo e o espaço do nosso
mundo. Ou, minimamente, assegurar que um exercício de produção de arte não seja mais
um motor de veiculação, propagação e introjeção de práticas culturais rastejantes que
invisibilizam, desconsideram, hierarquizam, oprimem ou rechaçam modos de se fazer arte
que não sejam condizentes com padrões e tradições eurodescentendes, do hemisfério norte.
Hipoteticamente, André Lepecki (apud BARDET, 2014) lança a ideia de que “ a dança
contemporânea é muito mais definida pela presença de seus dançarinos do que pelos
movimentos dos corpos”. Marie Bardet desenrola esta ideia cotejando duas noções de
presença antitéticas: a) como conexão mágica, transcendente, de totalidade plena e
ecumênica e b) uma atenção, um esforço, no presente… um sonho acordado? (Idem)

Em seu ensaio “O Corpo Utópico”, Michel Foucault ele diz que o nosso corpo é o
contrário de uma utopia:

a utopia é um lugar fora de todos os lugares, mas um lugar onde eu


teria um corpo sem corpo, um corpo que seria belo, límpido,
transparente, luminoso, veloz, colossal na sua potência, infinito na sua
duração, solto, invisível, protegido, sempre transfigurado; (...) um
corpo incorporal, (...) feérico, (...) o contrário de uma utopia, o que
jamais se encontra sob outro céu. Lugar absoluto, pequeno fragmento
de espaço com o qual, no sentido estrito, faço corpo. (FOUCAULT,
2013, p. 8)
E extrapola…

Meu corpo é o lugar sem recurso ao qual estou condenado. Penso,


afinal, que é contra ele e como que para apagá-lo que fizemos
nascerem as utopias. (...) Afinal o que são as múmias? Elas são a utopia
do corpo negado e transfigurado. A múmia é o grande corpo utópico
que persiste através do tempo. (...) Porém, a mais obstinada talvez, a
mais possante dessas utopias pelas quais apagamos a triste topologia
90

do corpo, nos é fornecida, desde os confins da história ocidental, pelo


grande mito da alma. (...) Minha alma é bela, pura, é branca; e, se meu
corpo lamacento vier a sujá-la, haverá sempre uma virtude, haverá
uma potência, haverá mil gestos sagrados que a reestabelecerão na sua
pureza primeira. (Ibidem, p. 9)

Postula-se o desaparecimento do corpo. No entanto, no final deste mesmo ensaio -


muito engenhosamente - o autor nos diz exatamente o oposto: “Todas aquelas utopias pelas
quais eu esquivava meu corpo encontravam muito simplesmente seu modelo e seu ponto
primeiro de aplicação, encontravam seu lugar de origem no meu próprio corpo”. (Ibid. p. 11)
E diz que para que eu seja utopia, basta que eu seja um corpo, simples (e complexamente!).
Ele diz que o haviam enganado quando disseram que as utopias estavam contra o corpo e
ameaçavam apagá-lo, e que elas “nascem do próprio corpo e, em seguida, talvez, retornem
contra ele.” (Ibid. p. 11) Maquiar-se, travestir-se, tatuar-se, se arrumar, antes de ser o forjar de
outro corpo, é fazer com que o seu corpo entre em contato com “poderes secretos e forças
invisíveis”, instalando o corpo em outros lugares, criando heterotopias, ou seja,
presentificando espaços, sensações, justamente pela materialidade e espacialidade da
situação.

A máscara, a tatuagem, a pintura, instalam o corpo em outro espaço


imaginário que se comunicará com o universo das divindades ou com
o universo do outro. Por ele, seremos tomados pelos deuses ou
seremos tomados pela pessoa que acabamos de seduzir. De todo
modo, a máscara, a tatuagem, a pintura são operações pelas quais o
corpo é arrancado de seu espaço próprio e projetado em um espaço
outro. (...) E se considerarmos que a vestimenta sagrada ou profana,
religiosa ou civil faz com que o indivíduo entre no espaço fechado do
religioso ou na rede invisível da sociedade, veremos então tudo o que
concerne ao corpo - desenho, cor, coroa, tiara, vestimenta, uniforme -
tudo isso faz desabrochar, de forma sensível e matizada, as utopias
seladas no corpo. (Ibidem, p. 12)

Despossuir-se.

“Afinal, o corpo do dançarino não é justamente um corpo dilatado segundo um


espaço que lhe é ao mesmo tempo interior e exterior? (...) Meu corpo está, de fato, sempre
em outro lugar.” (Ibidem, p. 14) Ligado e conectado a tudo. Essa potência de criar mundos
nos é inerente. No entanto, nascemos em um dado mundo, e a colonialidade sistêmica regula
os corpos e as lógicas de pensamento nesta mundialidade (conceito de Edouard Glissant).
91

José Gil considera o corpo não somente um fenômeno, mas um metafenômeno. Que
vai além. Percebido concretamente em sua materialidade, visível, virtual ao mesmo tempo.
“Um interior orgânico e ao mesmo tempo solúvel à superfície.” (Ibidem) Receptáculo que
abre e fecha, que se conecta sem cessar com outros corpos e com a natureza.

Um devir-bailarino, paradoxal que pode devir qualquer coisa. (...) Um


corpo interior-exterior, poroso, esponjoso, liso, estriado, de simetrias
assimétricas. A dança é imanência, por excelência, o corpo que dança
é pura imanência. Com tal imanência pode- se alcançar as mais altas
intensidades, como desejava Cunningham. (...) Por que dançar? Pelo
desejo, cuja natureza jaz no ato de agenciar. (...) O desejo cria
agenciamentos. (...) O desejo não se esgota no prazer, mas aumenta
agenciando-se. Criar novas conexões entre materiais heterogêneos,
novos nexos, outras vias de passagem de energia, ligar, pôr em
contato, simbiotizar, fazer passar, criar máquinas, mecanismos,
articulações. (...) Infinito. (...) O desejo produz ou constrói em si
próprio. Os agenciamentos, doravante, tornam-se dispositivos para
fluência do desejo. (...) Corpo-sem-órgãos, plano de imanência. (Idem,
p. 73)

Se o substrato da crise da colonialidade contemporânea é a metrópole europeia que


reverbera desde as colonizações até hoje, como um ditame, precisamos delirar a metrópole
portuguesa, decolonizar os corpos e o imaginário, decolonizar as maneiras de existir e olhar
o mundo. A arte não nos faz ver, ela reproduz o que vemos - parafraseando Paul Klee -,
portanto, o retrato de uma época é inerente a nossa produção artística.

A dança contemporânea é um paradoxo. Ser contemporâneo, grosso modo, é


pertencer a um dado tempo específico. De acordo com o filósofo francês Roland Barthes
(apud AGAMBEN, 2009 : 58), “o contemporâneo é o intempestivo”. Destarte, ao elucubrar
sobre outro filósofo alemão, Nietzsche, o filósofo italiano escreve:

Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo,


aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas
pretensões, e é, portanto, nesse sentido, inatual; (...) A contemporaneidade,
portanto, é uma relação singular com o próprio tempo, que adere a este, e, ao
mesmo tempo, dele toma distâncias (...) através de uma dissociação e um
anacronismo. (...) Pode-se dizer contemporâneo apenas quem não se deixa
cegar pelas luzes do século e consegue entrever nessas a parte da sombra, a
sua íntima obscuridade. (...) que percebe o escuro do seu tempo como algo
que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo. (...) Ou ainda, ser pontual num
compromisso ao qual se pode apenas faltar. (AGAMBEN, 2009 : 58-65)
92

A dança contemporânea hoje, 2019, é uma classificação para um enorme arquétipo


estético, conceitual e estilístico que começou a insurgir e se (in)definir em meados do século
XX, um período de intensas desconstruções demarcadas predominantemente pelo que
ocorria na europa ocidental sobre os modos de se fazer dança. As ideias sobre dança
contemporânea com as quais já me deparei na vida são muito diversas: “livre, abstrata,
desconstruída, quebra de paradigmas, experimentação, experiência, vivência, mais sensação e
menos representação, mais sentido e menos emoção, causadora de estranhamento, híbrida,
que se pensa, somática, performativa, ocupação de espaço, de chão, esquisita, sem regras, um
jogo, improvisação, contato/improvisação, fusão de técnicas, evolução de técnicas, expressão
corporal, ideocinese, consciência corporal, Eutonia, Feldenkrais, Klaus Vianna, Alexander,
BMC, instauração de ambiências, ritual, escuta, Tanz-Theater, reconfigurações do corpo,
inusitada, subjetiva, coletiva. Potência, presença… Todavia, para além (ou aquém) deste
debate, o meu interesse primeiro neste projeto são práticas decoloniais de dança
contemporânea e a elucubração sobre esta possibilidade.

Mais especificamente, recortando debate decolonial autoetnográfico circunscrito à


questão de gênero: Nós, homens gays, assim como as mulheres, sabemos que a configuração
patriarcal da sociedade colabora para comportamentos machistas e condutas misóginas de
opressão a toda e qualquer expressão do arquétipo da feminilidade, seja sobre as mulheres
ou sobre os homens. Qualquer pessoa que se presentifique com atributos femininos acaba
por ser fatalmente hierarquizada de acordo com a hegemonia androlátrica, da superioridade
masculina. Mulheres, homens gays cis-gênero passivos, ou efeminados, mulheres trans-
gênero, a drag queen. Posto isso, ao pensar na dança clássica, reflito sobre o fortalecimento
da divisão dos papéis binários do homem e da mulher da modernidade nos grandes
repertórios clássicos reproduzidos até os dias de hoje. O balé clássico privilegia a figura da
mulher doce, delicada, etérea, sobre a ponta dos pés, com vestidos, babados, adornos, magra,
muito magra, sempre amparada por um parceiro bailarino homem que está lá para segurá-la,
elevá-la, uma figura “mais forte”, um príncipe que aparece no final, etc. Este é o cenário mais
convencional de balés de repertório como Les Sylphides, Gisele, Copélia, Dom Quixote,
Sylvia, Esmeralda, O lago dos cisnes. A Bela Adormecida, La Bayadere, Sonho de uma Noite
de Verão, Spartacus, A Filha do Faraó, O Quebra-Nozes, O Corsário, Raymonda, Apolo, O
Espectro da Rosa, e tantos outros. Existe também a prática de balé trocadeiro, com exemplo
93

do famoso balé trocadeiro de Montecarlo, onde bailarinos e bailarinas trocam seus papéis de
gênero e encenam de maneira cômica os mesmos balés de repertório com as devidas
alterações. Notemos que neste casos, a transição entre gêneros é abordada apenas de maneira
sarcástica, em tons pejorativos, por meio do humor, da sátira, beirando a sensação de uma
aberração muito engraçada, por ser aberrante.

Notemos, ainda, que, no balé clássico, nas escolas, academias, estúdios, teatros e
companhias do mundo todo, há uma predominância de bailarinos homens gays, há inclusive
uma cultura queer, da qual homens heteros e mulheres também participam. São maneiras de
fala, de gesto, de atitude, de gosto, que foram construídas socialmente por pensamentos e
ações genuinamente homossexuais, próprias da cultura LGBTQIA. No entanto toda essa
cultura se restringe, velada nos bastidores e nunca deve ir para a cena! É a cena do palco
italiano é aquela que legitima os padrões patriarcais de uma casal formado por um homem
belo, forte e provedor, e por uma mulher magra bela, e geralmente branca.

Um segundo recorte, ainda queer, pode ser identificado no “Passinho”, oriundo das
favelas cariocas na década de 90, ao som do funk:

Mesclando diversas outras matrizes de dança, como frevo, capoeira, break e


samba, sob batalhas que aglutinam milhares de pessoas ao som de funk, o
PASSINHO aumenta o som das caixas, verdadeiras paredes sonoras, para
que batalhem os virtuosos inventores de passos rápidos, extravagantes e
complicados. Quadradinho, rabiscado, sabará, cruzada: o passinho criou uma
cultura nova, própria, criou um novo jeito de dançar o funk; e os dançarinos
mudaram a cara das favelas do Rio de Janeiro, negando o caráter absoluto do
preconceito e da discriminação que imperam sobre os subúrbios cariocas.
(BERNARDELLI, 2017 : 130)14

Durante um workshop de História Prática da Dança do Brasil oferecido pela DUAL


Cena Contemporânea, o artista da dança Iguinho Imperador, um dos precursores do
passinho afirma que muito da poética desta dança específica é inspirada em movimentos
gays, dos rapazes gays, travestis, drag queen, cis ou transgênero. É pungente a maneira como
a cultura feminina e gay do subúrbio se manifesta e se representa no funk, que também pode
servir como veículo de opressão da figura feminina aqui de configura como potência,
empoderamento e representatividade.

14
https://ciadual.files.wordpress.com/2018/06/lanternas-no-caos1.pdf
94
95

Terceiro recorte queer: O Jazz Funk (palavras americanas globalizadas, o funk, aliás
passa por uma radical transformação brasileira, tornando-se muito diverso da música norte-
americana, é o caso do Funk Carioca) uma dança absolutamente contemporânea, largamente
disseminada com o aparato de redes sociais digitais como o instagram, é uma das vertentes
das danças urbanas, uma expressão similar é a dança em salto alto, também divulgada como
Stiletto (palavra italiana) ou simplesmente Heels (palavra inglesa).

Estamos diante da colonização.

Nestas modalidades podemos notar evidentemente a ressignificação da presença


feminina na dança, as projeções de movimentos que remetem às relações sexuais,
simbologias do sexo, gestualidades próprias de videoclipes nos quais as cantoras estão
praticamente seminuas, um despojamento dos pudores que supostamente as mulheres
deveriam ter ao dançar, a menos se fossem dançarinas de bar, prostitutas etc. Ou seja, trata-
se de um deslocamento paradigmático, acima de qualquer julgamento moral, uma expressão
estética e social das feminilidades e afetividades femininas que circulam no inconsciente
coletivo e nas referências da indústria cultural. Não obstante, talvez um fator crucial desta
poética seja o ímpeto de pessoas da comunidade LGBTQIA que territorializam e produzem
sua cultura e seus costumes em performances artísticas, estúdios de dança, movimentos em
96

grupo, verifico ainda, pares de uma comunidade interpretativa que compartilha de alguns
valores em comum e que podem explorá-los coletivamente, a saber, mulheres e gays.

Em geral, a maioria das audições para ingressar em uma companhia de dança


contemporânea aqui no Brasil utilizam como critério de avaliação o desempenho da(o)
bailarina(o) durante uma aula de balé clássico. Naturalmente, muitos grupos e companhias
não operam desta maneira, mas quem empreende esse método já representa um gigantesco
contrassenso. Há ainda a máxima do senso comum, sobre o fato de que “quem dança balé
clássico” dança todas as danças, o clássico é a base.
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98

BATIDA JOGADA - LANÇADA

Com vigor e precisão

A primeira violência colonial foi a imposição de vestimenta aos índios. Corta. Eu nem
era nascido. Eu devia ter dois ou três anos e me lembro de uma cena dentro de uma loja de
brinquedos, me vejo sozinho num corredor, peguei um microfone da Xuxa, levei uma das
mãos pra cima, a outra segurava o microfone perto da boca, eu devia balbuciar alguma
canção e ensaiava uma dancinha. Corta. Meu pai me deu um tapa na cabeça quando eu tinha
6 anos por que eu disse que ele era meio preto. Corta. Após uma festa de Natal na casa da
minha avó, meu pai brigou com minha mãe e mandou ela me dizer que eu era muito
feminino quando frequentava as festas de família, no jeito de sentar, falar e agir. Ela disse
que aquele não era eu. Eu já tinha uns 14 anos. Corta. Aos 18 anos, fiz minha primeira aula de
balé clássico. Meu pé era muito ruim, e até hoje, a curvatura do colo do meu pé e minha
flexão plantar não se adequam ao padrão ideal exigido pela técnica clássica. Assim como a
rotação lateral dos meus membros inferiores está muito aquém do esperado pelas
convenções desta arte que remonta às óperas da corte italiana renascentista do século XV, lá
acredito que as bailarinas e bailarinos devessem ser brancas(os). Esta digladiação com meu
próprio corpo me assombra cotidianamente. Corta. Uma vez, durante uma discussão, com
um ex-namorado, eu tinha uns 22 anos, eu tinha me recusado a ir a uma sauna gay com ele,
porque não estava a fim de sexo grupal naquele dia. Mudamos de assunto. E ele ficou
espantado quando eu disse já ter me relacionado sexualmente com um de nossos conhecidos
em comum, outro bailarino, ele disse: "Sério?! Nossa, mas ele é mais feio que você!". Depois
ficou se desculpando e disse que não era aquilo que ele queria dizer. Corta.

De que beleza e abjeção estamos falando?

Um lugar subjetivo. Uma investigação estética deverá se desdobrar. De amores, raivas,


injustiças, desejos, expurgações, profanações, obscenidades anódinas, isso é política, isso é
uma dança viva. Eu danço a viadagem paulistana no século XXI (toda a melancolia e euforia
que dela advém) e não a corte Francesa da Idade Moderna. Vez ou outra irei espernear. Sym.

A produção de conhecimento a respeito da dança contemporânea hoje é muito


diversa e plural, umas das marcas dessa arte hoje é o flerte e a interlocução com elementos
cênicos do teatro, da música, das artes visuais, da performance, da literatura, da política e da
99

vida, numa dimensão mais íntima do que no passado da história da dança ocidental.
Intrinsecamente política.

Acredito que no Brasil e em outros países do hemisfério sul, haja uma hegemonia das
epistemologias e dos ditames eurocentrados, toda lógica de ensino produção de
conhecimento e formas de pensar, fazem remissão ao que foi transmitido e outorgado pelas
leis e violências culturais epistêmicas dos colonizadores europeus.

Hoje o cenário se complexifica, e a primazia norte americana também pré-fabrica os


contingentes culturais mundiais, com força similar a Europa ocidental. Tal aliciamento
moral, ético e estético, se deve, especialmente ao capitalismo, ao neoliberalismo radical e
global e as reproduções do engendramento colonial. Todo o legado que hoje perpetua as
relações de poder, opressão, exploração, assédio, (in)visibilidade, lugares de fala
(silenciamento), a neutralização dos comportamentos e modos de vida divergentes, racismo,
fascismo, eugenismo, higienismo, misoginia, o patriarcado, o machismo, a plutocracia, a
cleptocracia, a lgbttqiafobia, em minha opinião, advém da decolonialidade.

As artes detém a potência de entrever a treva, de discutir o "indiscutível", de


promover mudança social e participação política, de manifestação, protesto, expressão,
fortalecimento de ideias, criação de mitologias contemporâneas, estranhamento e
encantamento, abjeção e beleza, subjetivação e coletividade, ética e estética, práxis e poiesis.

Encontro na dança, os motores, as ambiências e as epistemes corporais que podem


oferecer pistas e caminhos para a insurgência de corpo, imaginação e pensamento para
delirar a colonialidade que ainda encobre a magia criativa e emancipada que pode devir de
todo e qualquer corporeidade, de toda e qualquer pessoa viva. Independente da indústria
cultural, dos modelos educacionais fordistas e tayloristas advindos da revolução industrial
europeia, e das lógicas positivistas, cartesianas, de racionalismo extremo, das ciências "duras"
oriundas da modernidade.

A dança contemporânea oferece espaço para composição de movimentos que partam


das singularidades do corpo que se manifesta. Permite a experimentação, a criação e a
fruição estética de investigações díspares, que não necessariamente sejam produto de
convenções e tradições anteriores, que na hegemonia pós-colonial, a ancestralidade de uma
pessoa de outra cultura é desconsiderada, senão diminuída.
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Este trabalho é chutado com uma introdução de imagens, através das quais podemos
apreender uma leitura poética, uma fruição, ou não. A minha intenção ali é a produção de
conhecimento das-nas-com-pelas-a partir de imagens, mas é só a minha atenção, o que
advém disso é arte.. São imagens estanques, porém dançantes de um corpo (ou corpos), são
manchas e rabiscos que inscrevo por onde eu passo, num mundo onde meu corpo é um risco
(de)ambulante. Especialmente no Brasil de 2019, plena crise do Estado Democrático de
Direito, no qual as sexualidades estão no fulcro dos debates políticos. Minha dança é
feminina e esta natureza feminina, pode ser, inclusive, expandida. Há um momento em que
um gesto sexual, um gemido, uma batida de cabelo, uma caminhada altiva, uma celebração
das curvas e uma exacerbação das mobilidades da coluna e do quadril, numa releitura e
exploração de movimentos dados como sexuais, se tornam constructos de cultura, uma
cultura gay, trans, feminista, algo anticolonial, anti cis, anti hetero, antinormativo e a fim de
liberdade de expressão. Habitando a contradição da mestiçagem em mim, eu autoetnografo
aparições de um corpo indo/europeu que se automutila por dentro, de sangue azul e
vermelho. Estou criando arte a partir do cotidiano, e repensando maneiras de criação
artística da coreografia que meu corpo desenha por onde desfila. Neste breve caminho já
encontrei muitos obstáculos, que são os vórtices da discussão: estranhamento, criação de
significado, patrimônio cultural, censura, direitos humanos, assunção étnica e delicadeza. É o
giro de tradução da heterocisnormatividade brancas pelos corpos mestiços Ch’ixi, que agora
não mais devem traduzir, mas garatujar para que vocês traduzam. Mas… o que é Ch’ixi?
Taboua, amada? Bebeu água de chuca? Eu hein, amiga. To ótima, ridícula! Prestenção.
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RODA DA PERNA NO SOLO

Passando pela primeira posição, segurando o quadril, grifando a diagonal frente a cada
passagem, como se a perna fosse um compasso

Ch’ixi é uma palavra da língua dos póvos Aimarás, com diversas conotações. Silvia
Rivera Cusicanqui, em sua obra já citada no início deste relatório, entende que esta palavra
traduz mais adequadamente a nomeação de mestiças que nós latino americanas somos
geralmente chamadas. Mas o conteúdo que esta palavra carrega vai um pouco além da
mestiçagem. Literalmente a palavra significa a cor “cinza”. Mas não é qualquer cinza… é algo
que é e não é ao mesmo tempo, na lógica de um terceiro incluído. Uma cor cinza ch’ixi é
branco e não é branco ao mesmo tempo, é branco e também é negro, o seu contrário.
(CUSICANQUI, 2010. p. 69)

es un color producto de la yuxtaposición , en pequeños puntos o manchas, de


dos colores opuestos o contrastados: el blanco y el negro, el rojo y el verde,
etc. Es ese gris jaspeado resultante de la mezcla imperceptible del blanco y el
negro, que se confunden para la percepción sin nunca mezclarse del todo. (...)
Sociedade abigarrada. (Idem)

Ch’ixi conjuga o mundo indígena com o seu oposto, sem nunca se fundir com ele. A
possibilidade de uma reforma cultural profunda depende da descolonização dos nosso
gestos, dos nossos atos e da língua com a qual nomeamos o mundo. (Idem). Aí verifico um
chamado para que eu incorpore o Pajubá da Cúpula LGBT do Vale dos Unicórnios neste
texto acadêmico manifesto-dançante.

El retomar el bilingüismo como una práctica descolonizadora permitirá crear


un “nosotros” de interlocutores/as y productores/as de conocimiento, que
puede posteriormente dialogar, de igual a igual, con otros focos de
pensamiento y corrientes en la academia de nuestra región y del mundo. (...)
Construir nuestra propia ciencia - en un diálogo entre nosotros mismos -
dialogar con las ciencias de los países vecinos, afirmar nuestros lazos con las
corrientes teóricas de Asia y África, y enfrentar los proyectos hegemónicos
del norte con la renovada fuerza de nuestras convicciones ancestrales.”
(CUSICANQUI, 2010, p. 71)

A metáfora Ch’ixi é uma maneira de descolonizarmos nosso imaginário.


105

BATIDA DERRETIDA

Descida com densidade e subida com vigor, um movimento extremamente sexual e


controlado

No tango, quem usa o salto alto é a mulher, o homem, não. Curiosamente… Os


sapatos de saltos alto eram originalmente utilizados por homens. Cavaleiros persas, por
exemplo, usavam botas de salto alto porque elas eram úteis para manter o pé preso
seguramente ao estribo. (SEMMELHACK, 2008 apud LITTIG, 2013 : 464)

European upper-class men fascinated by the strong Persian military tradition


introduced the Persian heeled shoe fashion at the end of the 16th century to Europe.
This trend was soon taken up by women. According to Semmelhack (2008), in the
18th century rationality was ascribed to men and irrationality to women – a gender
divide which was reflected in fashion, too. Men began to wear more functional, less
ornamented clothes and shoes and stopped using make-up. High heels which are
irrational and
non-functional for walking – except if you are a horse rider – became associated with
femininity and, through pornographic photography, linked to female desirability .
(Idem)

Em suma, o salto alto foi criado por homens, na Ásia, e logo incorporado por monarcas e
aristocratas ociosos. Quando a modernidade traz o paradigma do racionalismo, o salto alto
passa a ser considerado inútil e fútil, a racionalidade passa a ser um atributo masculino, a
irracionalidade, o devaneio…. A histeria, algo feminino. Coisas fúteis e inúteis ficam para as
mulheres doravante.
106

BATIDA GOLPEADA

Raspando o pé no chão, partindo da posição em flexão e articulando o pé até a total flexão


plantar

No dia 28 de junho de 2019 presenciei o espetáculo solo do artista brasileiro radicado


em Berlim, Clebio Oliveira, no SESC Pompéia em São Paulo. O nome do trabalho é Foreign
Body15. Na cena sempre pungente, penetrante do início ao fim, o bailarino se autoflagela,
coloca em pauta uma discussão de gênero que ainda precisamos discutir muito, evoca a
transfobia, não revela seu genital, dança o tempo inteiro de costas ou perfil, cai
recorrentemente do salto alto, no chão, na parede. Achei o trabalho muito complementar ao
que desejo criar nesta empreitada autoetnografica no salto. Aqui não temos o salto definindo
um gênero específico de dança, ou modalidade, mas sim um elemento cênico fico
provocador muitas sensações e transformações na concretude da sua matéria, e na maneira
como estes sapatos reconfiguram a possibilidade e a aparência da pessoa que encena com ele.

15
Disponível em: <https://vimeo.com/262888147>. Acesso em julho de 2019
107

RODA DA PERNA NO AR

Segurando a coxa, desenho de um semi-círculo para fora com as tíbias e fíbulas de uma
perna erigida a 90 graus. Depois fazendo o mesmo girando para dentro. Sem levar nunca o
pé para trás. Acento fora.

O salto alto está presente nas performances das Drag Queens, na indumentária da
travesti brasileira, na advogada entrando e saindo dos tribunais e escritórios, no Pole Dance,
com mulheres e homens sensualizando, no samba de gafieira, no tango, na salsa, na valsa
vienense, na rumba, no mambo, no zouk, na lambada, no vogue, no waacking, no stiletto,
femme style, na dança contemporânea. Em São Paulo já existem muitos locais que sediam
encontros de dança de salão para casais LGBT.

Nesse ínterim de danças que exalam feminilidade, em corpos cis, trans, homem,
mulher, temos o pajúba, o código indígena das mana, mais uma língua marginalizada e
proibida. Mas o funk proibidão de opressão a mulher continua rolando solto...
108

16

LENTO

Movimento lento, desenvolvimento das pernas

Ex-Cerimonialista do Theatro Municipal de São Paulo, Egberto Cunha é uma pessoa


corajosa e eloquente que teve o costume de trabalhar cotidianamente no Municipal usando

16
Matéria sobre o veto de palavras do Pajubá LGBT e o “Dicionário da Censura” disponível em:
https://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2019-04-26/bolsonaro-veta-palavras-do-vocabulario-lgbt-de-
campanhas-estatais-diz-site.html. Acesso em Julho de 2019.
109

um Scarpin (antigamente conhecido também como decotelé), um sapato de salto alto,


geralmente de bico fino, agulha, e aberto, como se houvesse um decote no colo do pé.17

PEQUENAS BATIDAS

Elevação das pernas com flexão dos joelhos, pequenos desenvolvimentos da perna cortando
o ar, batida pequena sobre o pescoço do pé

O Stiletto é uma junção de algumas modalidades de danças urbanas e deveras comerciais,


com influências do Vogue, do Waacking, Jazz, Jazzfunk, Ragga, Hip-Hop, e há variações de
nomenclatura, uma aula de dança no salto é alto pode também ser chamada de Heels Class
ou Femme Style, como já foi comentado. Meu trabalho não é exatamente sobre esses
protocolos, mas sobre uma expressão de dança que dialoga como este elemento cênico,
técnico e estético. Quem concebeu esta técnica de dança com sapatos de salto alto,
conhecida mais comumente como Stiletto foi Dana Foglia, na década de 90, na época
professora norte americana da Broadway Dance Center. Coreógrafa da artistas como
Beyoncé Knowles, por exemplo.

18

17
Matéria sobre Egberto disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=NUoEOaB-rbA>. Acesso em julho
de 2019.
110

19

GRANDE BATIDA

Lançamento da perna mobilizando o quadril unilateralmente em flexo-extensão.

Os homens persas inauguraram o uso do sapato de salto alto, na montaria, para que o pé não
escorregasse do estribo. Por volta do século XV, a monarquia europeia importou da cultura

18
Um exemplo de um dos primeitos sapatos de salto alto, como os que os persas usavam para que o pé não
escapasse do estribo.
19
Um sapato de salto alto Stiletto, salto agulha, com meia pata.
111

oriental a adoção do salto na indumentária para a corte renascentista. Catarina de Medici era
de baixa estatura e usava salto alto. O rei Luís XIV, inventor de vários aspectos de moda e
luxo, da ideia de Paris como berço da moda para o mundo inclusive, criou a moda de uso do
salto alto vermelho. O Rei Luís XV popularizou a indumentária do salto alto para homens e
mulheres. Após a Revolução Francesa, final do século XVIII, o salto caiu em desuso para os
homens, as mulheres mantém o costume mas com alturas menores. No início do século de
XIX o salto alto foi associado à meretriz. Na passagem para o século XX que o salto alto,
mais baixo ou mais alto, foi paulatinamente voltando. Em 1930 foi inventado o salto
Plataforma por Salvatore Ferragamo, tipo de salto muito usado por Carmem Miranda. Após
a 2ª Guerra Mundial, o Stiletto (salto agulha) foi inventado por Roger Vivier e Cristian Dior.
No Brasil Fernando Pires é um nome bastante conhecido de designer de sapatos de salto alto
artesanais feitos sob medida. O salto alto é um traço de poder? 20

21

20
Fonte audiovisual não acadêmica: https://www.youtube.com/watch?v=xa2jNePwkGU; Outras piratarias:
https://www.modices.com.br/estilo/a-nova-tendencia-da-plataforma-de-carmen-miranda/
& https://www.clubelatino.com.br/timetable/event/stiletto/. Acesso em Julho de 2019.
21
Um par de Chopines, sapatos plataforma do Renascimento, a corte usava, dizem que sua criação se deu
pensando na função de evitar pisar em merda ou cadáveres.
112

ALONGAMENTO

Exercícios de mobilidade e flexibilidade, aumentando a amplitude muscular e tendínea.

Este é um trabalho sobre dança, releitura, autoetnografia, sexo anal, relacionamentos


abusivos (mais civis do que amorosos), processo de subjetivação, cu, decolonialidade, revolta
ao ascetismo cristão, obscenidades e vergonha de ser e viver tudo isso plena e corajosamente.

PORTE DOS BRAÇOS NO CENTRO

Variações com deslocamentos e piruetas

No dia da minha matrícula de ingresso no mestrado em Mudança Social e


Participação Política, mesmo dia em que ocorreram de eventos de recepção dos calouros da
graduação, realizei uma performance artística ao ar livre, em frente a biblioteca e aos grandes
auditórios da Escola de Artes, Ciências e Humanidade da Universidade de São Paulo
(EACH-USP) Campus Leste. Após 30 minutos de um processo de envaidecimento, eu tiro
completamente minhas roupas, forjo uma vagina entre as coxas e cuspo vinho que escorre
pelo meu corpo, nesta ação performativa e performática que não durou mais que 3 minutos,
mobilizaram-se funcionários, o prefeito do campus, secretárias e algumas pessoas que,
desagradadas queriam impedir que eu me manifestasse naquela ocasião na frente daquelas
pessoas, naquela Universidade Pública. Lembro-me nitidamente do terno e do Prefeito do
Campus. Graças ao Representante Discente Nabi Oliveira, ninguém interrompeu meu ato.
Uma pessoa fez uma notificação ao ministério Público sobre minha performance alegando
algo como atentado violento ao pudor... Nem eu imaginava a urgência de debates como este
que proponho, tampouco imaginava que estávamos tão... tão atrasados, mesmo dentro de um
ambiente de produção de conhecimento, estadual. Lamentável.22

Neste dia eu nem imaginava que eu chegaria a usar salto alto e que isso chamaria
tanto a minha atenção, emoção e motivação. Apenas sentia que precisava iniciar minha
descolonização pelo começo, pela nudez.

22
Momento final da performance “Eu Arfante” disponível em: https://vimeo.com/258303801. O vídeo também
pode ser acessado por meio da leitura do código QR acima,
113

“A placa de censura no meu corpo diz, não


recomendado à sociedade” (...) “Má influência,
péssima aparência, menino indecente, viado!” (Caio
Prado)

BATIDAS NO CENTRO

Batidas esticadas, lançadas, Passo do Bourré, valsa, giro, elevação, pivotada, etc

Será que lampião era gay?...

ADAGIO NO CENTRO

Movimentos lentos no centro, principalmente desenvolvimento das pernas

Fernando Pires é um artista que faz sapatos de luxo sob medida. Ele deu um sapato
de presente para a uma bixa que não tinha sapatos no programa da Xuxa, Rede Record.
Saullo Berk, conhecida
como a Diva dos
Tijolos (de acordo
com Marcos Mion).
Ele é de Juazeiro do
Norte. E essa não é
uma informação
trivial.
114

PIRUETAS NO CENTRO

Giros sob apoio unipodal, para fora, para dentro, com a perna retirada, em arabesco, em
atitude, etc.

En dehors Divina Raio-Laser, meu crush é uma Drag Queen!! Foi mágico me relacionar com
uma pessoa e descobrir que ele se monta, A Divina é a comandante de um concurso
chamado Cover Girl, um bapho!

En dedans Pesquisa via whats app: Você me lê “negro de pele clara ou branco de pele
escura?” Um total fracasso racista. Teve gente que disse que eu era branco porque estudava
na USP, outras me disseram que se eu já sofri racismo eu sou negro, outras que sou indígena,
outras se recusaram a responder.

Attitude Algumas gays chamam o vírus HIV de “A boneca”; Muitas gays votando em
Bonossauro. “você é aquele rejeitado por todos”, disse uma bixa desconhecida para mim (ela
nem me conhecia) mas algum motivo havia pra ela me dizer aqui; Estava com um ex amigo,
ex amigo de um dos meus ex-namorados, fomos prestigiar o show da Drag Hellena Borgys,
pesquisa antropológica na Blue Space, uma danceteria da esquina de casa. Pretendo
futuramente entrevistar o Uatila Coutinho, o bailarino por trás de Hellena.

Arabesque Desfile na barra funda, almoço de domingo. Anódino. Desnecessário. Ridículo.


Doído. É um pouco desconfortável andar de salto em paralelepípedo e no ônibus.
115

PEQUENOS SALTOS

Aquecendo os pés em ritmos acelerados

Relato de experiência dos projetos de extensão na EACH-USP:

- PRÁTICAS DE DANÇA CONTEMPORÂNEA E DECOLONIALIDADE (PDCD)

Curso de Inverno – Difusão Pró-Reitoria de Cultura e Extensão da USP

Artistas propositoras:
Paulo Cavalcanti;
Anna Carolina Longano

Docente responsável:
Professora Doutora Marília Velardi

Segunda-feira 23-07-18

UM ENCONTRO
Paulo Cavalcanti

Nesta reunião, havia 23 pessoas presentes. Começava o nosso (per)curso de inverno.


Cumprimento, boas-vindas, apresentação e presentificação de cada pessoa:
116

Larissa Eric
Mica Lavínia

Thaís Leo
Lari Alice

Gabrielle Cida
Mara Maíra

Angelita Cacá
Marcela Alessandra

Mariana Gustavo
Daniel Anna
Renatinha Paulo

Ari

Um encontro minimamente inusitado. Muitas pessoas se conhecendo pela


primeira vez. Reunidas para dançar, experimentar, conhecer, criar, aprender e
ensinar, fruir, propor, contemplar, elucubrar, relembrar, investigar, meditar, existir,
insurgir, emergir, expressar, manifestar, bradar, levantar, dialogar. Sob a égide da
decolonialidade, desta opção, atitude, pensamento e legado histórico que perfaz e
arraiga o cenário da contemporaneidade.
117

À fim de dar fim a colonialidade do corpo, corroer os pilares coloniais do


pudor, implodir as armaduras do contrato social (dos homens brancos, cis-gênero,
heterossexuais, machistas, plutocráticos, escravocratas, patriarcais e capitalistas)
forjadas para que toda a humanidade ou vista ou adore; descamar e brilhar a pele
racializada e colorizada pejorativamente, num sistema subliminar cinicamente
implícito; desobjetificar; destampar, desestreitar; amplificar e escutar vaginas,
úteros, pênis, ânus, dildos, bocas, tornozelos, quadris, olhos e fricções; desnudar a
poética e a sensibilidade artística inerente a qualquer pessoa pertencente a natureza;
diluir o antropocentrismo no ecossistema do meio-ambiente; delirar a metrópole
introjetada na vísceras de quem dá seu sangue, seu tempo e seu ATP colonialmente
para a economia que nos empurra, nos esgota e se autodestrói para fomentar
números na nuvem bancária; revirar a centralidade emissora européia e norte-
americana ocidental; resgatar a ancestralidade originária da humanidade,
afromatizar, afroorientar, afrocentrar, afrorizomar, afromotrizar; olhar, reconhecer,
celebrar e aprender com os corpos dissidentes: queer, kuir, cuir, trans, entre, através
e além; enxergar a beleza do abjeto; escavar a própria aldeia familiar e coletiva;
ouvir, visibilizar, berrar, acolher, com sinuosidade, memória e afeto, eu planejo
minhas proposições e serendipidades, com dialogias corporais: dançando e
conversando.

Após uma breve fala individual de cada pessoa sobre si. Eu fiz algumas perguntas:
Quem aqui é branca(o)? Quem é negra(o)? Quem é heterossexual? Quem é
homossexual? Trans-gênero? Cis-Gênero? As perguntas poderiam se estender muito
mais, no entanto já foi o suficiente para instaurar uma atmosfera de desconforto
entre todas nós. Como você se sente? Como você é lida(o) pela sociedade? Mestiça?
Mulata? Parda? Morena? Ocidental? Oriental? A discussão estava posta. Fato é que, a
maioria ali era branca, mulher, heterossexual, cis-gênero. De 21 pessoas, apenas 3
negras. Esse cenário sistêmico, não ignoremos, tem sim relação com afinidade e
talvez uma questão de perfil de pessoas que se interessem em dança e temas
contemporâneos. Mas o componente branco-hetero-cis é um reflexo da sociedade, a
única maioria esmagadora que pudemos diluir aqui foi a maioria masculina. E que
bom.

Lembremos que:

A cada 23 minutos morre um menino negro no Brasil.


A cada 11 minutos morre uma mulher no Brasil, pela cultura do estupro.

A cada 19 horas morre uma pessoa LGBTTQIA+ no Brasil.


O Brasil é o país que mais mata LGBTTQIA+ no mundo.

A maioria geral da população brasileira é negra, não branca. Aproximadamente


53%.
118

Essas informações merecem a nossa atenção.

Destarte, propus que realizássemos uma versão destas mesmas falas, porém,
agora por meio dos corpos, numa dinâmica que não fosse mais eminentemente verbal
e oralizada. A proposta era simples: Nós dançaríamos do nosso próprio jeito, com
nossa bagagem, nossa memória, nosso desejo, nossa habilidade, nossas idiossincrasias
corporais, e, com essa presença, exibição e percepção, todo o coletivo expressaria
esse contágio, mimetizando este corpo, experimentando as singularidades e
particularidades de outrem em si. Não se trataria, pois, de uma tentativa literal de
imitar e reproduzir o movimento alheio, ainda que isso tenha acontecido bastante por
instinto, impulso ou obviedade.
Agenciando e mimetizando os corpos, ocorrem misturas, decorrem
reconhecimentos, devém uniões e elãs. Neste exercício de alteridade, como um jogo
de metacorifeu, um corpo exibe e manifesta a sua corporeidade e os outros corpos
mimetizam e recriam uma versão imediata do outro. Ora me impressiono com a
diferença do outro, ora visto perfeitamente a outridade deste disparo num lugar
comum e familiar, ora só posso conferir o estranhamento do corpo que mexe comigo e
me modifica por um átimo de segundo. A ideia foi justamente aprofundar o lugar de
conhecimento entre cada uma das pessoas presentes, reconhecer as outridades,
contar sua própria história atualizada naquele dia, naquele momento, privilegiando
uma expressão sensorial corporal, sinestética e cinestésica, em vez de uma fala bem
pensada ou um currículo… Traduções, leituras, releituras, transposições, inversões,
montagens, bricolagens, mosaicos, retalhos, malhas, intenções, a propedêutica para
uma pequena comunidade interpretativa que já germinava...
Registro em vídeo do final da prática e conversa subsequente:
https://drive.google.com/file/d/1O3jKgC1xmGLouhGRdamFxsvSWd9DdH-
v/view?usp=sharing

Encerramos o primeiro dia. Fizemos muito, mas ainda era muito pouco, era só
uma breve apresentação, a preparação de um terreno, a instauração de um campo
criativo para encenarmos nossas vidas com dança.
119

Eu pedi a todos que pensassem uma autoetnografia, que meditassem sobre si


mesm_s, trazendo suas próprias mitologias entre ficções e realidades, que trouxessem
suas danças e especificidades corporais.

MEDITAÇÃO
Essa estratégia meditativa de criação não tem a ver necessariamente com
práticas corporais e/ou espirituais/religiosas que se relacionam com conexão entre
corpo, mente e espírito, como comumente verificamos em práticas de concentração e
introspecção que visam o esvaziamento da mente e das tensões, que acalmam, que
“elevam”, nada disso. A decolonialidade requer tensão, dureza, urgência, ainda que
isso possa ser delicado e sereno. Apenas não proponho aqui relegarmos o corpo por
um estado de espírito e pensamento pleno e não carnal, muito pelo contrário,
diametralmente o contrário. Trata-se de se pôr a pensar com o corpo, por meio do
corpo, nos meandros do corpo, através do corpo, além do corpo, a partir do corpo,
para o corpo, no próprio fluxo da sua prática, exercício, materialidade, sobre
questões subjacentes a esse corpo, mas, especialmente sobre as memórias e marcas
desse corpo, na busca pelo resgate dos resquícios, das cicatrizes e das tatuagens
abstratas que foram impingidas e impressas ontogeneticamente nesta pele, neste
tecidos, nesses órgãos, nestas vísceras. Essa meditação ocorre antes durante e depois
do repouso corporal, é a escrita cartográfica de uma partitura de movimentos. Seu
presente, seu passado e sua intenção/intuição de futuro elaborados num tempo
acrônico, numa topia singular, heterotópica, denunciando a ilusão do tempo
presente, a efemeridade da vida e a celebração da tessitura existencial que coincide
todas as dimensões de tempo e espaço, algo sem fim, que ultrapassa nossas
capacidades racionais. Este lugar não-racional pensante me interessa. Um
inconsciente decolonial. Utilizei como exemplo a feitura de uma partitura de Z.
Kodàly, “Meditação sobre um motivo de C. Debussy”.
Temos então uma meditação que foge da ordem do religioso, que se baseia
mais na definição do dicionário, da etimologia latina, ou mesmo de um significado
inventado. Um pensamento, reflexão e prática ao mesmo tempo, meditação musical,
memorial, ruidosa, afetiva, uma feitura e transformação de lembranças. Na prática
de ioga por exemplo, geralmente somos instruídos a estar num estado de consciência
e atenção plana que permita que os pensamentos nos atravessem, que cheguem e que
deixemos eles partirem, proponho o contrário, proponho capturarmos e celebrarmos
cada pensamento que apareça, por mais incômodo e inapropriado que ele pareça, por
mais óbvio, por mais trivial que seja… Com isso temos na materialidade do corpo e do
tempo que nos envolve (como se o tempo pudesse ser material… acho que pode) todo
o contingente estético e expressivo necessário para uma criação autêntica, legítima,
libertadora, sincera.

Uma meditação corporal autoetnográfica…


É a tática coreográfica (método para uma grafia do corpo) que elejo em
detrimento de uma dramaturgia ou de uma coreografia, é um lugar existencial, um
lugar que posso habitar, um lugar que ocupo, um lugar que transformo, um lugar que
define a minha presença, desenho e sou rabiscado.
120

Contar uma história, a sua narrativa.

“Auto: reflexão de si mesma(o);


Etno: explorar experiências de pessoas;

Grafia: escrever, produzir uma imagem, performar uma ação que eu criei, ou que
você criou;

Autoetnografia: dobrar o passado no presente; eu escrevo o meu caminho dentro e


através das minhas experiências; eu me verifico enquanto uma singularidade
universal; eu invento uma cena e me interpreto.” (DENZIN, 2018)

Terça-feira 24-07-18

A CADA 11 MINUTOS MORRE UMA MULHER NO BRASIL, PELA CULTURA DO ESTUPRO

Anna Carolina Longano

Estou escrevendo sobre a experiência vivida neste curso numa terça-feira,


exatas duas semanas depois de ocorridos os encontros. Acabo de sair de uma aula (a
falta de informações precisas é proposital, para preservar as pessoas envolvidas) na
qual, apenas 4 horas depois da convivência como professora substituta com um grupo
de alunos, fico sabendo, ao final do encontro, pela voz de uma aluna – negra -
jovem, que ela tinha sido estrupada (sim, ela disse desse jeito) em algum momento
de sua vida.

Intuição. Feeling. Instinto feminino. Até agora não consigo nomear direito como
cheguei na minha proposta do encontro de terça. Segundo dia de encontro.
Disse ao Paulo que eu queria trabalhar quadril e coluna, partes do corpo muito
significativas no universo feminino. O quadril pode rebolar. Pode parir. Pode trepar.
Pode guardar a pureza de uma mulher ou pode ser violado. A coluna, como sua
continuidade, ajuda no balanço dos quadris, na sua exibição ou na sua camuflagem. A
coluna, como ligação do quadril ao crânio, liga o sexo ao cérebro. Une a razão ao
desejo. O racional ao primitivo. O pensamento ao instinto.
Claro que, ao propor trabalhar quadril e coluna, pensei apenas na ligação com
o universo feminino. Isto, naquele momento, era o que eu conseguia expressar.

O MELHOR MOVIMENTO FEMININO É O DOS QUADRIS. (FERNANDES, Millor)

A aula deste dia foi preparada após saber da demissão injusta de um professor
colega de trabalho. Por uma “confusão” (a falta de informações precisas é proposital,
para preservar as pessoas envolvidas), meu colega, um profissional sério, envolvido,
121

comprometido e respeitoso, foi demitido. Alguém perdeu o emprego em tempos de


crise.
Sabe quando você está com problemas que te tiram o prumo? Te desanimam,
te distraem? Problemas que te chateiam e fazem você odiar tudo o que te faz lembrar
aquele problema? Pois bem, eu estava com um problema na área artística e
educacional e precisava planejar uma aula para uma vivência artística e educacional.

Situações de desconforto, desespero e incredulidade podem abalar nossas


convicções. E, talvez, com as convicções abaladas sejamos mais livres. Livres para
fazer algo sem precisar agradar à alguém. Desiludidas, nossos cérebros parecem ficar
mais ágeis, nossas línguas mais afiadas, nossos anseios mais anarquistas. E isso pode
ser fatal. Ou sensacional. O tempo dirá.

Ao preparar a aula, minha preocupação foi focar nas duas extremidades dessa
relação: quadril e olhar. O quadril que guia o corpo e o movimento. O olhar que
realmente vê e se contamina pelo mundo. E, ligando os dois, a coluna.
Preparei um aquecimento, alongamentos e movimentações que focassem em
conscientizar, sensibilizar, fortalecer a região do quadril e da coluna. Pedi que as
alunas fizessem os exercícios e que guardássemos a fala apenas para o final do
encontro. Todas concordaram e começamos.
No teatro, a roda tem inúmeras funções. A que mais gosto é que, em roda, a
gente perde a noção espacial de liderança já que todas as pessoas ocupam igual
posição na estrutura. E, em uma roda perfeita, também conseguimos enxergar todas
as pessoas, o rosto de cada uma. Gosto muito da roda.

Mas a roda não cabe em qualquer espaço. A roda não preza pela melhor
distribuição espacial dos corpos. A roda não permite que corpos mais tímidos se
escondam e/ou protejam. Então, para que não esqueçamos que as melhores reflexões
são sempre as mais complexas, nessa aula aboli a roda e assumi a frente da sala. Eu
faria os movimentos, enquanto guiaria as alunas também vocalmente, desenvolvendo
uma série de exercícios.

Respira. Alonga. Aquece. Abre um lado, fecha outro. Ísquios, ilíacos, cóccix,
sacro e púbis. Senta, rola. Vence a gravidade. Deixa a gravidade vencer. Empurra o
chão. É importante saber o que pode fazer força para te sustentar. É sempre
importante saber em quem você pode se apoiar para se sustentar.

Eu dou aula há 10 anos no ensino técnico profissionalizante. Ensino TÉCNICO.


PROFISSIONALIZANTE. Os alunos querem técnicas. Eles precisam entender. Eles
precisam entender rápido. Eles precisam fazer para ganharem suas notas. Eles
precisam ficar acordados após terem trabalhados por, pelo menos, 8 horas e dormido
bem menos do que isso. Lecionar sobre essas diretrizes te deixam acelarada. Rápida.
Falante. A professora é a maior autoridade da sala de aula? O aluno é a maior
autoridade da escola. Se ele reclamar de mim, estarei em uma “confusão”. Então a
gente fala. E fala. E explica. E anima. E joga todas suas convicções em forma de
piadas leves, para que ninguém se sinta ofendido e reclame de você. E a aula segue
Com os corpos aquecidos, as alunas têm a liberdade. Liberdade para que seus
movimentos sejam guiados pelo olhar ou pelo quadril. E é desse estímulo que
122

começam os improvisos, estimulados sonoramente. Elza Soares. Ludmilla. Anitta. E,


ao final, uma música frenética, tirada de um vídeo indicado às alunas antes do curso,
que embalava uma Vogue Femme Final Battle.
(https://www.youtube.com/watch?v=Jhhd_tEaJEQ)
A maioria das participantes do curso se guiam apenas pelo olhar. Nem Anitta e
seus versos clamando para que o quadril quique até o chão são suficientes para que o
quadril assuma seu protagonismo.

Ao final do encontro, finalmente as alunas são convidadas a falar sobre o que


vivenciaram naquele encontro.
Olhos, olhar, ver, visão, enxergar. Falamos muito sobre os olhos. Pouquíssimo
sobre o quadril. A exceção se dá através de uma figura masculina (!), que não apenas
comenta sobre o quadril enquanto todas as participantes estão em roda (lembre-se,
na roda perfeita, ninguém se esconde), como após o encontro, em particular,
pergunta para mim sobre a relação de movimentar o quadril e ficar excitado. Um
homem. O único a falar sobre isso naquele momento.
Deixo este canal aberto. Se no encontro de segunda elas foram confrontadas
por uma série de inquietações vindas do Paulo, no encontro de hoje eu preferia a paz.
Que falemos apenas sobre os olhos, afinal, ligados a eles sempre teremos o quadril. E
talvez isso baste neste momento.
Aula acabou, todas as pessoas contentes. Certo? Errado. Uma participante pede
a palavra. Ela não pegou a aula do começo. Quando ela chegou, eu estava no meio do
aquecimento e ela só ouvia minhas instruções. Minha voz. Minha voz de... comando?
Minha voz de ordem?
Se ela fosse minha aluna e levasse essa reclamação adiante, eu estaria em
“confusão”. Minha voz causa incômodo? Uma mulher no comando causa incômodo?
Estaremos abertas para seguir direcionamentos que não combinem com nosso gosto?
Estarei eu aberta para direcionar menos as minhas alunas? Direcionar demais deixa
claro quem manda? Ou direcionamos demais para os que mandam não se sintam
abandonados?
O encontro real acabou. Não falei sobre o quadril. Mas o mundo real não acaba
mais nos encontros presenciais, ele continua no mundo virtual. E foi assim que nosso
encontro daquele dia continuou. Ao colocar no grupo do Facebook sobre as
referências sonoras e bibliográficas do encontro, uma colega, que não estava
presente no encontro, complementa nosso encontro com as seguintes palavras:

“Desde que comecei a dar aulas percebi que o quadril é o lugar mais difícil de
soltar das minhas alunas, e p mim é o lugar mais importante é necessário de se
movimentar. Só que a sociedade vai podando a gente desde sempre e nos ensinando q
esse lugar deve ser escondido, deve ser limitado a meu ver ao parto e olhe lá....
Querem nos privar de umas das coisas mais vivas e dançantes: o quadril. Sempre digo
que "rebolar" é tão, ou mais, importante do que os exercícios de força na academia
😂😂😂 Veja, tem gente com tanto medo, o pudor é tanto que um simples
agachamento se tornar difícil, porque soltar o quadril não fora permitido...”
123

Intuição. Feeling. Instinto feminino. Até agora não consigo nomear direito como
cheguei na minha proposta do encontro de terça. Mas ela aconteceu, comunicou e
contagiou. Ainda restam três dias. Ao final da quinta-feira irei entender.

Quarta-feira, 24-07-18

AO COLONIAL, DECOLONIAL
AO ENCONTRO; DE ENCONTRO…
Paulo Cavalcanti

Terceiro dia de encontro. O Ginásio da EACH-USP, onde fica o Laboratório


Didático 2 (Sala de Dança) estava em reformas, e por conta disso a sala amanhecia
sempre muito suja, muito pó e pegadas brancas. Não havia também funcionários
disponíveis para o serviço de limpeza nesse período entre-semestres. Por essa razão
fui a procura de panos de chão para que nós mesmos pudéssemos dar conta de limpar
a casa e iniciarmos nossas práticas num ambiente minimamente limpo e confortável
para todas e todos.

Inspirado pelo livro de Yoshi Oida, o ator invisível, propûs que o nosso exercício
cênico hoje começasse com um jogo, um jogo de limpeza do nosso ambiente-espaço.
Lembremos que se trata de um espaço público. A limpeza de um lugar causa certa
apropriação e propicia ocupação e presentificação de quem limpa e ali habita. Aqui se
trata da apropriação coletiva de um espaço público, a Universidade de São Paulo,
campus Leste.

Com no máximo três panos e três garrafas de água de 600ml, nós revezamos na
função de passar o pano no chão da sala, e em alguns móveis. Pedi para que
realmente nos conectassemos, e, tal como num jogo, percebêssemos a hora de entrar
e sair na “cena”, pegar o pano, dar para outra pessoa, que percurso fazer, por onde
começar, para quem devo passar o pano agora, onde jogo a água, que estado de
atenção é esse, que espetáculo é esse?
O jogo não deu certo como eu previa, mas aconteceu como deveria acontecer.
Talvez a minha formação ortodoxa de ensino disciplinar sempre goze quando eu me
deparo com estruturas metodológicas bastante formatadas, organizadas, com início,
meio e fim, com bastante concentração e quietude, e produtividade. A vida não é
sempre assim, e não pode ser. Naturalmete depois de aproximadamente 2 minutos,
muitas pessoas já estavam dispersas daquela tarefa, conversas paralelas dispararam,
afinal havia uma espera pelo pano, ou a ideia de que a sala já estava limpa, não
precisava mais limpar, enfim, n razões, isso não é o que importa realmente. A minha
intenção era que houvesse um comprometimento coletivo e a intenção e
disponibilidade de estar dentro de um ritual, um jogo enquanto ritual, celebrando
aquele ato de limpeza, que favoreceria a todos. Ok. Não há nenhuma razão para
desaprovar ou corrigir a conduta de ninguém, ninguém estava errada(o) e eu não
124

mandei ninguém fazer nada, eu propus, e a coisa aconteceu como teria que
acontecer.
Quando a sala já estava limpa, outra energia, outra atmosfera, eu bradei:
“Aula de Dança Contemporânea, liguei o som alto com uma música gringa, com baixo
repetitivo, bpm acelerado, um estilo de música eletrônica. Coloquei-me a frente das
pessoas, diante do espelho, e comecei a fazer pequenos saltos no lugar, dando a
indicação corporal para que me imitassem. Isso aconteceu. Nos próximos 5 minutos,
eu executei os movimentos mais comuns que já vi se repetirem em aulas de dança
contemporânea ao longo da minha vida, havia movimentos em pé, agachado, deitado,
elevação das pernas, rotação das pernas, contrações, torções, cloches, ondulações da
coluna, giros, flexões, extensões, deslocamentos. Com isso pudemos acelerar nossa
frequência cardíaca e experimentar diferentes caminhos de movimento e lançamento
do corpo no espaço. Pausei a música.

Desabafei um pouco dizendo que aquela era uma aula ruim pra mim, beirava
quase o débil e infantil em alguns aspectos, um modelo de corpo em movimento a ser
reproduzido, e aquilo não pode ser chamado de dança contemporânea.
A dança contemporânea é uma dança contemporânea, uma dança do tempo
presente, hoje, ontem, amanhã, e não pode ser o rótulo de um amálgama arquetípico
de jeitos, passos e códigos que grupos de pessoas - notadamente brancas e de elite -
convencionaram ser. Uma linguagem e estética muito plural e controversa que surgiu
de âmbitos europeus e norte-americanos no século XX. Pelo menos a maioria dos
coreógrafos (porque as coreógrafas também são minoria) bebeu desta fonte e ainda
faz remissão ou reproduz o legado de uma dança que sempre celebra a europa
pinabauschiana belga flemish wave conceito e a américa-do-norte pós-moderna.
Essas referências absolutas não devem ser absolutas.

Existe muito mais a ser descoberto sobre a dança na ancestralidade das pessoas
negras, da África, dos Índios, do Oriente - ainda que haja uma oblação ao arquétipo
de serenidade, austeridade e transcendência do Butoh, do Yoga, isso é influente na
dança mundial, mas isso é branco -. Não obstante, o Brasil circunscreve corpos íbero-
negro-indígenas, essa é questão, nossa dança precisa olhar pra isso, não é mais tempo
de permitir a invisibilidade das culturas, dos valores e das emergências territoriais,
regionais, das questões que subjazem. E não adianta fazer uma Ópera chamada “O
Guarani” para lotar o Theatro Municipal de pessoas brancas e ricas; não adianta
transformar toda e qualquer manifestação artística dissidente em uma alegoria
zoológica - nada contra os animais -. E, sobretudo, NÃO ADIANTA LEVAR BALÉ
CLÁSSICO ORIUNDO DA CORTE DO LUIS XIV PARA AS COMUNIDADE PERIFÉRICAS.
Precisamos é difundir, escutar, amplificar, ramificar e ecoar as centralidades
periféricas. Seria mais legal estudar o Passinho, e continuar levando o passinho para
os centros. Doravante, perscrutando tantas outras emergências artísticas que ainda
devem estar escondidas, ou que acontecem plenamente e mal sabemos, nós
privilegiados das grandes metrópoles.

O que poderia vir a ser uma dança? Uma dança contemporânea? Uma dança
contemporânea contextualizada e encarnada pela opção, ação e pensamento
decolonial? Como empreender a decolonialidade na dança. Como disparar
decolonialidade com dança, como destruir e construir (e não desconstruir)
125

decolonialidade por meio do corpo que se movimento no tempo e no espaço? Está é


uma enorme provocação, um desafio. Um paradoxo.
Estávamos ali todas e todas junt_s para meditar essas questões. Mica começou
com sua expressão, uma história inventada, misturando ficção e realidade, Mica La
Marica desempenhou suas memórias de Travesti conosco, contou um pouco sobre sua
tentativa frustrada de cirurgia, sobre amigas, sobre lugares que visitou e depois eu
pedi que ele continuasse essa histórias apenas dançando para nós. Tocou uma música,
ele dançou, expressando toda afeminilidade, doçura e delicadeza que aquele corpo
de 64 anos poderia exprimir, trajando uma minissaia, meia-calça e um body preto,
maquiada, é claro. Danadinha esta mexicana brasileira.
“I love my body, I love my skin, I am a Goddess, I am a Queen.” (Jessie J)

Maíra entra em cena, veste uma saia florida e passeia pela sala com sua dança
intuitiva, curiosa, experimental, inteira, tentando descobrir alguma coisa, com sua
bagagem de balé clássico, de jazz e de tudo o mais que já viu e fez na vida. Antes de
começar a dançar sua fala trouxe estes aspectos do seu apreço enorme pela dança
clássica e ao mesmo tempo o seu anseio por conquistar uma habilidade que ela
admira: causar estranhamento com o corpo, formas imprevistas, inusitadas e
estranhas mesmo.

Juan, convidado da Renatinha Matuso, estava presente naquele dia, apenas


naquela quarta-feira, quase por acaso. Eles propôs danças festivas, coco e frevo, a
primeira dança popular brasileira. Em filas, ou paredões íamos seguindo e criando os
passos que ele nos mostrava, com bastante saltos e deslocamentos, um momento de
muito contágio e alegria.

Donina, realizou uma dança cênica de Orixás, muitas pessoas pediram que ela
encenasse Oxum, mas ela preferiu o orixá Omulu Obaluaê. Foi lindo.
Daniel ao final propôs que nós ressignificassemos a questão do pudor e nos
tocássemos, fizemos três duplas espontâneas, o encontro terminou de uma maneira
muito sensível, na simbiose, contemplação e dialogia de alguns corpos, Mica,
Angelita, Leo, Mariana, Daniel e eu. Corpos no mundo. Uma música desfechava o dia
com o refrão que se repetia na frase:“E a palavra amor cadê?”.
126
127

Quinta-feira, 25-07-18

QUANDO REALIZAMOS UMA APRESENTAÇÃO, TRABALHAMOS COM A COISA MAIS


DIFÍCIL DO MUNDO: O ENCONTRO ENTRE SERES HUMANOS. QUANDO DAMOS AULA,
TAMBÉM. POR ISSO, GOSTO DE TER AS COISAS DA FORMA MAIS ORGANIZADA
POSSÍVEL, POIS O NÃO PLANEJADO IRÁ ACONTECER
Anna Carolina Longano

Para meu segundo dia – quarto dia das alunas – eu e Paulo combinamos que
minha parte seria apenas a de aquecer aqueles corpos para uma Jam. Teríamos a
apresentação de uma performance, feita por uma música que também era uma das
alunas do curso, seguida de uma Jam.
Porém, o Paulo atrasou. Tinha número ímpar de alunas e eu tive que conduzir e
fazer exercício junto com uma aluna. A música precisava de mais tempo do que
precisava para arrumar sua performance. A Jam quase não aconteceu. Calma.
Aquece, respira, alonga. ALINHAMOS NOSSO CORPO NO MUNDO PRESENTE E NÃO NO
MUNDO IDEAL. As alunas já possuem intimidade. No encontro de hoje, não há
necessidade da relação frontal professora/alunas. No quarto encontro, não temos
mais a necessidade de reforçar nossa individualidade. Podemos trabalhar em duplas.
Com o toque, com a pele, com o tato, com o cheiro, com o peso, com o calor do
corpo da outra.

Finalizado o exercício, Cacá, a artista, prepara-se para sua performance. O


corpo aquecido para. Senta. Conversa. Mas para quê fizemos o trabalho anterior?
Paulo começa a falar sobre a aula do dia anterior, quando ele e as alunas limparam o
chão.

Yoshi Oida é uma referência nas práticas teatrais brasileiras. Principalmente


para as práticas de quem assume a função de performar no palco. Arrisco dizer que
Oida representa o ideal do utópico artista perfeito ao unir a formação oriental, tão
fetichizada pelo teatro ocidental, com a experiência ocidental, já que há anos Oida
trabalha com um importante encenador europeu. Em um de seus três livros, Oida
compartilha sua experiência de limpar o chão do local de trabalho.

Algumas alunas afirmam que com a limpeza do espaço, veio a noção de


apropriação daquele lugar que, além de ser público, ainda estava sendo utilizado
pelas alunas há 3 dias. Em que mundo uma MULHER se sente mais dona de um espaço
– público- após passar um pano no chão dele?
ALINHAMOS NOSSO CORPO NO MUNDO PRESENTE E NÃO NO MUNDO IDEAL.

A performance começou. Medusa. Uma mulher deformada pela sua história


social. Uma mulher violada. Violentada. A performance narra um abuso. Um estupro.
A performance é baseada em acontecimentos reais da vida da performer. É a vida
real transformada em arte. A arte encontrando reconhecimento na vida real. Como
poucas vezes acontece, a arte cala os homens presentes nos encontros e as mulheres
começam a falar. Emocionadas. Representadas. Violentadas. Violentas.
128

A cada 11 minutos morre uma mulher no Brasil, pela cultura do estupro.

E assim como hoje eu não estava preparada para a revelação do estrupo


da aluna, citado anteriormente, diariamente somos violentadas e ainda não estamos
preparadas para ouvir as violências que outras viveram. Por isso gosto de tudo
organizado, como se assim eu me preparasse para o caos que é mundo.

Situações de desconforto, desespero e incredulidade podem abalar nossas


convicções. E, talvez, com as convicções abaladas sejamos mais livres. Livres para
fazer algo sem precisar agradar a alguém. Desiludidas, nossos cérebros parecem ficar
mais ágeis, nossas línguas mais afiadas, nossos anseios mais anarquistas. E isso pode
ser fatal. Ou sensacional. O tempo dirá.

Na ânsia e ímpeto de serem representadas, muitas vozes começam a se


levantar e nos deparamos com um perigo: começamos a desenhar o perfil do
abusador.

Tentamos dar cara definida aos nossos inimigos? Apenas homens agridem
mulheres? Apenas homens héteros agridem? Apenas homens héteros e brancos? Apenas
homens héteros brancos e ricos? E quem são as pessoas agredidas? Apenas mulheres?
Apenas mulheres negras? Apenas mulheres negras e pobres? E nós já estivemos na
posição de agressoras? E de agredidas? O poder é patriarcal. A violência é patriarcal.
Qualquer pessoa na posição de poder está pronta para assumir uma atitude violenta
patriarcal. É necessário despatriarcalizar para decolonizar.

Mas como começar? Como faremos isso se, apenas na leitura desse relato,
soubemos que duas mulheres foram estupradas? Duas mulheres reais, e a Medusa da
ficção. Como começar algo com nossos quadris ignorados, nossa coluna enrijecida,
nossos olhos ignorando nosso redor? Como sair do chão que nós limpamos para o chão
que é nosso? Os corpos estavam pesando. Os corpos estavam pensando. Os corpos
precisavam reagir.

Cacá então improvisou com seu cello. Nós improvisamos com nossos corpos. O
encontro acabou.
Saio da sala apressada, atrasada para meu próximo compromisso. As alunas
estão em êxtase. As alunas estão conversando. Mulheres sorrindo, conversando, se
ajudando. Mulheres dobrando panos, carregando peso, auxiliando umas às outras.
Uma aluna oferece carona. Mulheres estão conversando. Mulheres estão se ajudando.
Os corpos estão pensando. Os corpos estão vivendo. Os corpos estão dançando. Os
corpos estão reagindo. Os corpos estão se despatriarcalizando. Intuição. Feeling.
Instinto feminino.
129

Sexta-feira 27-07-2018

“ÚLTIMO” ENCONTRO

Paulo Cavalcanti

Neste dia, recebemos a visita de Lucas Veiga, do Rio de Janeiro, mestre em


psicologia pela Universidade Federal Fluminense UFF, clínica, estuda e escreve sobre
psicologia preta.

Começamos com um aquecimento coletivo, eu, Paulo, propus que começássemos um


percurso individual sem perder o estado de atenção coletiva, sem música, começamos
nos conectando em uma roda, corpos em contato, a princípio pelas mãos, dedos ou
dorso da mão. Aos poucos fomos criando juntas um microbalanço, sem que ninguém
necessariamente fosse líder ou comandante, todos os corpos iam reagindo nesse fluxo
sutil se microlocomoção, como uma brisa, uma maré calma, uma transferência de
peso entre as diferentes regiões dos pés, ainda conectados pelo olhar e pelo não
controle da situação, fomos aos poucos deixando esse movimentos crescer até nos
separarmos, sem contudo perder a conexão estabelecida. Nessa ocupação espacial
mais dispersa, fomos destacando a presença das diferentes partes do corpos,
diferentes membros, músculos, ossos, articulações, regiões da pele, do órgãos, das
vísceras, ativando uma integridade e (in)completude de corpo, cumulativamente,
camada por camada, perscrutando as possibilidades de potencialização desses lugares
nos quais podemos disparar dança. Em síntese, essa foi a nossa estratégia de
130

aquecimento, conexão, escuta e apropriação de si e de nós, para celebrarmos o final


desta semana de residência artístico-decolonial.
Na sequência, Lucas ocupa seu lugar de fala e com mm partilha conosco seus
olhares muito brilhantes e assertivos sobre antirracismo, os efeitos nocivos do
racismo, psicologia preta, colonialidade e corpo.

23

Um pouco da fala dele pode ser ouvida neste link: Disponível em:
<https://drive.google.com/file/d/1Jh1XV3ktQ21HJgWwuSYtEWYmKxtOFrta/view?usp
=sharing>
Todos ficamos muito felizes com a vinda do Lucas, trata-se de uma presença
que evoca e rutila a negritude e a representatividade LGBTTQIA+.
Chega então Aline Lima, trazendo sua experiência com senhoras da
comunidades de M’Boi Mirim, numa brincadeira de roda, com música e dança da
cultura popular.
Para o encerramento, assistimos ao espetáculo Duo Para Dois Perdidos, da Dual
Cena Com no Contemporânea, no vão dos Auditórios da EACH-USP. Os bailarinos Ivan
(também diretor da Companhia) e Hélio, conversaram conosco após a apresentação
sobre a poética só trabalho e o processo criativo do grupo.

23
Registro do conversa com o Psicólogo e Mestre em Psicologia Lucas Veiga.
131

24

24
Registro do excerto da obra “Duo Para Dois Perdidos” da Dual Cena Contemporânea com os bailarinos Ivan
Bernardelli e Helio Feitosa. No encerramento do curso de Extensão de Práticas de Dança Contemporânea e
Decolonialidade. EACH-USP, 2018.
132

A despedida se deu com afeto, com desejo de continuidade e gratidão. Foi uma
semana intensa, cansativa, provocadora e muito feliz!

Página do evento do minicurso de Inverno no Facebook:


Disponível em:
<https://www.facebook.com/events/1324701301006682/?active_tab=discussion>.
133

LITERATURAS

BÉZIERS, M.M.; PIRET, S. A Coordenação motora: aspecto mecânico da organização


psicomotora do homem. São Paulo: Summus, 1992.
BONDÍA, J. L. Notas sobre a experiencia e o saber de experiencia. Revista Brasileira
de Educação, Rio de Janeiro, n. 19, p. 20-28, 2002.

DENYS-STRUYF, G. Cadeias musculares e articulares: o método G.D.S. São Paulo:


Summus, 1995.
DENZIN, N. K. Performance Autoethnography: critical pedagogy and the politics of
culture. New York: Routledge, 2018.

FEDERECI, S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo:


Ed. Elefante, 2017.
QUIJANO, A. Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-estructural a la
colonialidad/ descolonialidad del poder. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO,
2014.

MÚSICAS
Elza Soares: https://www.youtube.com/watch?v=Kw9ke8zt7XA
Ludmilla: https://www.youtube.com/watch?v=RNVLCr-Y7rQ

Anitta: https://www.youtube.com/watch?v=kDhptBT_-VI
Seleção de outras músicas selecionadas para trilha sonora das práticas disponível em :
<https://open.spotify.com/user/paulocorpo/playlist/61s0ejnhz4Jfrtyg4NxHYH>

VÍDEO

https://www.youtube.com/watch?v=Jhhd_tEaJEQ
25

25
Créditos na própria imagem. Fonte: Google.
134

- DANÇA CONTEMPORÂNEA E TEATRALIDADES RADICALMENTE

QUALITATIVAS (DCTRD)

Curso de Verão – Difusão – Pró-Reitoria de Cultura e Extensão da USP

Novamente, eu, Anna e Marília propusemos um novo curso, dessa vez seriam apenas

3 dias, um pouco mais longos, Anna ministrou um encontro e eu ministrei os outros dois,

desta vez eu estava mais imbuído e mergulhado da poética de dança com sapatos de salto

alto, elemento que sequer figurava na minha pesquisa na época do primeiro curso proposto

no inverno. Havia apenas um rapaz, gay, e várias moças, foram encontros muito profícuos e

no final esquematizamos uma performance coletiva ao ar livre, nos ambientes de livre

circulação na entrada da EACH-USP, a maioria de nós estava de salto alto.

Dançamos ao som de Glória Groove, experimentamos possibilidades de movimento

dos pés, no salto e fora dele, pensamos numa dança inspirada por LGBTs, onde empinar a

bunda e executar movimentos sexualizados deixa de ser um entendimento de putaria para se

tornar uma legitima expressão artística de múltiplas identidades, culturas compartilhadas e

produção de conhecimento local e subjetivo.


135
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143

MÉDIOS SALTOS

Trocas rápidas das pernas, lançamentos e baterias.

Notas sobre a prática de dança no salto alto, primeiras e últimas impressões, do


aprendizado e do vômito em criação. Flavio Verne, Pedro Reis. Mica Cimet. Bodytech.
Sabirna. Escola de Aplicação da USP. Alex Martins. (Em processo.)

BATERIA

Sequência de saltos com batidas

Epílogo do livro “Pelo Cu” (por mim editado), oriundo de uma tradução de Ginsberg,
Allen. A queda da América. Porto Alegre: LPM, 1987. (SAEZ & CARRASCOSA, 2016 p.183)

“Por Favor, Meu Amo”

por favor meu amo deixa eu tocar teu rosto

por favor meu amo deixa eu me ajoelhar a teus pés

por favor meu amo deixa eu baixar tua calca azul

por favor meu amo deixa eu contemplar o teu ventre de dourados pelos

por favor meu amo deixa eu tirar tua cueca devagarinho

por favor meu amo deixa eu desnudar tuas coxas para meus olhos

por favor meu amo deixa eu tirar minha roupa sob a tua cadeira

por favor meu amo deixa eu beijar teus tornozelos tua alma

por favor meu amo deixa eu colar meus lábios na tua coxa dura lisa musculosa

por favor meu amo deixa eu grudar o ouvido no teu estomago


144

por favor meu amo deixa eu abraçar tua bunda lisa

por favor meu amo deixa eu lamber tua virilha de pelos louros e macios

por favor meu amo deixa eu tocar com a língua teu cu violeta

por favor meu amo deixa eu esfregar o rosto no teu saco,

por favor meu amo, por favor, olha nos meus olhos,

por favor meu amo me manda deitar no chão,

por favor meu amo manda eu lamber tua pica grossa

por favor meu amo põe tuas mãos ásperas no meu crânio careca cabeludo

por favor meu amo aperta a minha boca contra o coração do teu pau

por favor meu amo aperta o meu rosto contra o teu ventre,

me puxa lentamente com teus polegares fortes até tua dureza muda chegar a minha garganta

até eu engolir & sentir o gosto do teu pau-tronco cheia de veias carne quente delicada

por favor meu amo empurra meus ombros me olha bem nos olhos & me faz debruçar sobre

a mesa

por favor meu amo agarra minhas coxas e levanta minha bunda até a tua cintura

por favor meu amo tua mão áspera no meu pescoço palma da outra mão na minha bunda

por favor meu amo me levanta, meus pés apoiados em cadeiras, até meu cu sentir o hálito do

teu cuspe e teu polegar girando

por favor meu amo manda eu dizer Por Favor Meu Amo Me Fode agora Por Favor Meu amo

lubrifica meu saco e boca peluda com doces vaselinas

por favor meu amo unta teu caralho com cremes brancos

por favor meu amo encosta a ponta do teu pau nas pregas do buraco do meu eu
145

por favor meu amo enfia devagar, teus cotovelos envolvendo o meu peito teus braços

alisando o meu ventre, teus dedos tocam no meu pênis

por favor meu amo mete em mim um pouco, mais um pouco, mais um pouco

por favor meu amo enfia esse troco no meu cu bem fundo & por favor meu amo meu faz

rebolar para entrar a pica-tronco até o fim até minhas nádegas aninharem tuas coxas, minhas

costas arqueadas, até eu ficar só solto no ar, tua espada enfiada latejando dentro de mim

por favor meu amo tira um pouco e lentamente esfrega em mim

por favor meu amo enterra fundo outra vez, e tira fora até a cabeça

por favor

por favor meu amo me fode outra vez com o teu ser, me fode

Por Favor Meu amo enfia até machucar o meu macio o Macio

por favor meu amo faz amor com meu cu, da corpo ao centro

& me fode direitinho como uma garota me abraça com carinho

por favor meu amo eu me entrego à vos

& enterra no meu ventre o mesmo doce lenho quente que dedilhaste em tua solidão em

Denver ou no Brooklin ou fodeste uma donzela num estacionamento em Paris

por favor meu amo entra em mim com teu veículo, corpo de gotas de amor, suor de foda

corpo de ternura, Me fode assim de quatro mais depressa

por favor meu amo me faz gemer sobre essa mesa Gemer O meu amo

por favor me fode assim nesse teu ritmo de roça-enfia & tira-e-roça

& enterra até o fim até meu cu ficar mole cachorro sobre mesa ganindo de terror prazer de

ser amado
146

Por favor meu amo me chama de cachorro, arrombando, me esculhamba

& fode mais violento, meus olhos escondidos por tuas mãos que agarram meu crânio

& enterra fundo com forca brutal arrebentando a macieza úmida de peixe

& pulsa cinco segundos esguichando sêmen quente

& mais & mais, enfiando fundo enquanto eu grito o teu nome ah eu te amo

por favor meu Amo.

(Allen Ginsberg)

Obedecer, mandar, desejar, recuar, avançar, dominar, controlar, seduzir, encantar,

iludir, fantasiar, fingir, sentir dor, o que isso tudo têm a ver com a dança?

Quando eu nasci, o porta precisou ser feitos às pressas porque creio que eu tenha defecado

dentro da barriga da minha mão, se eu engolisse aquele material fecal isso seria muito

perigoso, corria algum risco de vida. Parece que deu tudo certo... parece.

Vocês já assistiram ao canal da blogueirinha de merda no Youtube? Oops, ela mudou

de nome, agora é somente “Blogueirinha”. Confiram, é um ícone da cultura LGBT+ dos

trópicos:, disponível em: <https://www.youtube.com/channel/UCF8MQYobXcHejWAaet4nSxA>.


147

DIAGONAL

Variações com giros, piruetas e grandes saltos

Conheci Mica: Micaella e Micael. Em 2018, durante uma das minhas aulas de Balé
Clássico na academia Bodytech Vila Olímpia, surge na sala um Sr. Mais velho, cabelo
grisalhos curtos, barbudo, trajando um micro shorts de dança e uma camiseta regata, ele
relatou que já tinha alguma experiência com balé clássico. Notei que ele aparentava ter
aproximadamente 60 anos. Tratava-se de uma aula intermediária, e Micael não conseguiu
acompanhar muito bem, devido a muitas limitações técnicas e físicas, absolutamente
esperado. Ele nunca mais retornou para minha aula de balé.

Nosso segundo encontro foi bem diferente, ofereci uma aula especial naquele mesmo
lugar, em celebração ao dia internacional da mulher. Era uma aula de Stiletto, de dança
sensual com sapatos de salto alto, coreografei uma música da Britney Spears chamada
“Breathe on me” para a ocasião. Foi muito impressionante a cena de Mica tentando (e muitas
vezes conseguindo) acompanhar a coreografia, ao lado de moças tão mais jovens que ele.
Eram movimentos nada triviais, alguns bem complexos, nos níveis alto, médio e baixo, com
giro, torção, contração, queda, contra-tempo, equiulíbrio...

Pois bem, ao término da aula Mica me abordou, disse que fora o dia mais feliz da vida
e que gostaria de iniciar aulas particulares de dança no salto alto comigo. Eu disse que, sim,
claro.

Iniciamos as aulas, foi um processo muito rico, de muita subjetivação, para mim era
um enorme desafio, prazer, oportunidade de diálogo e conhecimento. Nossas aulas não
foram regulares por muito tempo, mas foram muito emocionantes, apesar de todas as
dificuldades do contexto. Em pouco tempo tivemos que interromper o processo pois Mica
sentia fortes dores na região dos tornozelos, na região do tendão calcâneo. Foi necessária
uma cirurgia, e alguns meses de recuperação.

Não chegamos a retomar as aulas pois acabamos nos desentendendo por questões de
outra ordem, infelizmente. Mica foi uma das surpresas e arrebatamento que me fizeram
eleger o fenômeno da utilização do salto alto como baluarte do meu trabalho de mestrado.
148

26

Quem antes foi o Sr. Micael Cimet hoje é a Sra. Micaella Cimet.

26
Eu e Mica tomando um café após uma sessão de aula particular de dança no salto.
149

CODA

Passos extraordinários, grandiosos, impactantes, difíceis, grandes saltos, piruetas e giros no


ar

Este não é um trabalho sobre mim e minhas memórias e delírios, é sobre usar a mim,
minhas memórias e delírios em serviço de cenários e cenas que vejo acontecerem, do micro
ao macro, participo e vivencio desde 1989, da história que as pessoas dissidentes do âmbito
artístico e sexual LGBT+ vem construindo, descontruindo e reconstruindo. Como Sísifo,
como Frankenstein, como Deusas.

REVERÊNCIA

Pra quem?

Para minha mãe, capoeirista, branca do cabelo crespo, para meu pai, machista do
cabelo liso, de pele mais escura, com traços indígenas, para minhas famílias, para minha
comunidade. Para meus pares de dança e meus amores que me colocam em combustão. De
São Paulo à Brasília, Itápolis, Guarulhos, Sorocaba, Porto Alegre, Florianópolis à Caruaru. Da
militância até a Polícia Militar.

Para as POC, para a nova bixa do século XXI.


150

27

2727
Meme biaxado do Instagram.
151

PERGUNTAS E ASPECTOS DA TESSITURA DOS MÉTODOS DE INVESTIGAÇÃO

A fim de entender mais sobre o campo artístico e cultural da dança e da


decolonialidade, aquilo o que me instiga pode ser escrito como perguntas que permitem
iniciar uma escritura: como se fazer dança contemporânea em contextos pós-coloniais?
Quais são os recursos políticos e metodológicos dessa dança? Como tecer uma dramaturgia
autoetnográfica para o corpo?

Aqui procurarei metagrafar uma dança performativa, oriunda da minha


autoetnografia. Entre teatralidade e a performatividade, procurarei tecer dialogias disparadas
por indagações a respeito de: presença, ontologia, onde estou, o que sou, como existo, quem
sou, o que sinto, como sinto, a beleza, o que visualizo, como concebo, como me soam, a
sexualidade, a feminilidade, o que desejo, como desejo, o que desejo, a ancestralidade,
etnografia, de onde vim, para onde vou, no que acredito. Tais perguntas são o tecido com o
qual pretendo costurar minha dança. Como descolonizar esse cenário a partir do meu corpo?

Este projeto de mestrado propõe um processo criativo, empírico, dançado, ensinado,


coreografado, dramatúrgico - na dança. A escrita acadêmica aqui deve ocorrer no intuito de
promover o diálogo sobre este processo, sobre o método, além de fomentar e registrar os
acontecimentos poéticos, performativos e políticos do percurso. Além de ser uma mediação
para outras interfaces de apreciação desta forma de produção de conhecimento, tais como:
fotografias, vídeos, performances em espaços públicos e privados e dados midiáticos em
redes sociais.

Esta tarefa só poderia ser empreendida por meio de uma investigação qualitativa um
pouco mais radical em relação a produção científica hegemônica que devém da ciência
moderna, eurodescendente. Uma autoetnografia performativa, baseada em arte, uma
epistemologia estética, ética e poética. Verificando a validade do fazer artístico enquanto
produção de conhecimento , performance de dados e manifestação política. A própria
investigação já pode ser considerada uma obra: processo, experiência, mediação, fruição,
evento, acontecimento, estranhamento, manifesto.

Por se tratar de uma autoetnografia, este trabalho deverá ser escrito eminentemente
em primeira pessoa do singular.
152

Eu penso a pesquisa enquanto um movimento de curiosidade, descoberta e reflexão.


Uma palavra que elejo é “treva”. Entrever a treva a fim de enxergar aquilo que, quiçá, já
esteja posto, mas que eu ainda não consigo ver ou discernir bem o que é. Creio, ainda, que
toda a pesquisa humana, assim como a arte, seja a farpa da lasca do da moldura do retrato de
uma época, e um ponto de vista de alguém que ocupa um local na cultura e se pergunta,
como uma criança “o que é que está acontecendo?”.

Este projeto de pesquisa prevê a abordagem dos temas: autoetnografia e dramaturgia


da dança à luz das teorias decoloniais (e pós-coloniais), partindo de um ponto de vista
alinhado com os estudos radicalmente qualitativos e autoras(es) contemporâneas(os) das
artes, da antropologia, das ciências políticas, da filosofia, da teoria queer e de saberes
transdisciplinares.

Serão buscados, oportunamente, artigos acadêmicos especialmente nas bases de


dados: JStor, Scielo e Ebsco. Com os descritores: dança contemporânea, stiletto queer
decolonial lgbt, dança de salto, dança no salto, dramaturgia da dança, dramaturgismo na
dança, corpo decolonial, corpo pós-colonial, teoria pós-colonial, teoria decolonial, encenação
na dança, dramaturgia da dança brasileira, pós-colonialismo no Brasil, dramaturgia da
presença, dramaturgia da ausência, dança e política.

O fazer autoetnográfico advém da junção dos exercícios de autobiografia e etnografia.


A primeira questão a ser posta em cheque é: Por que a minha história merece atenção? Neste
contexto específico, a resposta é que o pesquisador que se utiliza deste método, dispõe de
recursos da literatura e de estudos culturais, objetivando refletir e relacionar a própria
experiência pessoal e imersiva com o mundo que o rodeia (ELLIS, ADAMS & BOCHNER,
2010).

Novamente recorrendo à filósofa Judith Butler, em seu livro “Relatar a si mesmo:


crítica da violência ética”, podemos encontrar uma elucidação que defende a validade da
autoetnografia enquanto prática de alteridade: “o sujeito descobre que não pode narrar a si
mesmo sem se responsabilizar, ao mesmo tempo, pelas condições sociais em que surge”
(BUTLER, 2017). Não obstante, ao citar Foucault (p.150), a autora revela as limitações do
sujeito ao falar sobre si, e a impossibilidade de fundação de si, de maneira absoluta, pois
“sempre tem uma parte de si criada por algo que não é ele mesmo - seja a história, o
153

inconsciente, uma série de estruturas, a história da razão”. (Ibid.) Butler e Foucault nos
mostram os limites da concepção fenomenológica do sujeito. E ela explica que, “a relação
com o si-mesmo é uma relação social e pública, sustentada inevitavelmente no contexto de
normas que regulam as relações reflexivas: como poderíamos e deveríamos aparecer?” (p.
147).

Quem sou eu que vos escreve? Creio que eu seja uma pessoa inclinada ao fazer
artístico e aos movimentos sociais, especialmente aos movimentos do corpo que dança. O
meu corpo, intelecto, espírito e emoção é gay, cis, mestiço, jovem, sem muito dinheiro,
ideologia de esquerda, filho de pai alagoano e mãe brasiliense, paulistano, brasileiro,
habitante do hemisfério sul, bailarino clássico, contemporâneo, professor, educador físico,
gosto de piano, de prazer e não gosto de injustiça. Está é uma descrição pífia e insuficiente.
Uso meu corpo, minha escrita e minha sexualidade para criar as mitologias necessárias a
criação de alguma dramaturgia de dança. Uma autoetnografia. O corpo é a solução.
Relatando a mim mesmo, mediando meus processos de subjetivação e dialogando esses
processos com outras subjetividades, pela alteridade e pelo dissenso, presentificar meu corpo
e minha historiografia latente, presente e premente dentro da minha cultura e do meu
mundo coletivo. Buscando uma autoetnografia coletiva, singular, pública e particular,
reticular, informe, queer, feminista, transdisciplinar, performativa, libertadora, que possa
germinar e florescer nos meandros das dificuldades e normatividades do sistema colonial
que ecoa até o final desta segunda década do século XXI.

Este método é uma composição que imbrica revisão de literaturas, processo criativo
de dança em estúdio, práticas individuais e coletivas de dança, autoetnografia, performance
de dados, performances e intervenções em espaços públicos e elaborações de produção de
conhecimentos em diferentes formatos além da escrita, como imagem e vídeo, por exemplo.
A metodologia (o estudo e a maneira de pensar sobre esses procedimentos) é radicalmente
qualitativa e transdisciplinar, e uma autorização e questionamento constante, uma
metalinguagem.

Somente a pesquisa radicalmente qualitativa, enquanto campo de conhecimento, com


percursos alinhados com a malha que devém das perguntas de um acaso-procurado, com a
flexibilidade de seus métodos e recursos, poderia explorar todas essas instâncias
154

transdisciplinares, avaliando e considerando a simultaneidade deste bricolage. A


autoetnografia, e a consciência de que não devemos nos apropriar da vida do outro ou
invisibilizar, ou calar, mas escutar as vozes do outro, porém, primeiro a minha própria, me
dão pistas para escrever uma encenação acadêmica em 1° pessoa, explicando os motivos
desta escolha e porque ela é tão necessária.

Para ratificar o caráter qualitativo desta pesquisa, grande atenção será reservada para
relatos de experiência pessoal do autor enquanto arte-educador e intérprete-criador na área
da dança contemporânea, considerando seu fazer artístico durante a vigência do programa
de mestrado e seu memorial de vida profissional. Tal estratégia se alinha com os estudos
qualitativos de Arts Based Research e Practice as Research.

Inicialmente, haverá a busca por uma coleta de relatos de experiência de grupos,


coletivos e artistas atuantes na cena contemporânea paulistana, que desejem compartilhar
seus processos criativos e sua postura em relação às referências importadas do hemisfério
norte para a produção nacional de dança.

As tarefas complementares de ação do projeto são:

1) Processos de criação em dança;

2) Laboratórios de experimentação em dança;

3) Observação participativa e Relatos de experiência;

4) Performances e intervenções;

5) Videografias e fotografias.

O disparo se dá por meio de uma performance na EACH-USP, na qual me


presentifico como um corpo masculino e feminino, há nudez, há repressão. Deixarei o
vídeo28 da cena final da performance, que deflagra justamente o efeito mais eloquente e
esperado/inesperado do risco ao qual me lancei, a aparição das forças de censura.

28
EU ARFANTE. Vídeo da performance anticolonial do mestrando Paulo Cavalcanti na EACH USP em 2018.
Disponível em: <https://vimeo.com/258303801>.
155

Há também a ideia do projeto de extensão no qual eu possa conversar e enxergar


outros corpos, me expressando, compartilhando escolhas, desejos e tecendo conexões de
aprendizado decolonial, elogiando, incentivando e legitimando formas desviantes e
sufocadas de ser e agir no mundo, na escuta e na presença. Já foi possível realizar dois
pequenos cursos de Inverno com a minha amiga mestranda Anna Carolina Longano,
também integrante do grupo de pesquisas ECOAR. No entanto ainda tenho intenções de
propor um curso de extensão ministrado apenas por mim, aprofundando e dividindo mais a
poética da pesquisa deste trabalho, pretendo que essa realização se dê em às vésperas da
entrega da dissertação final.

Esta é um trabalho de arte, disparado pela intenção de uma escrita poética para
encenar e ensaiar pensamentos e entendimentos a respeito da dança, especialmente a dança
vista e vivida no século XXI, no hemisfério sul, na América Latina, no Brasil. Se, de acordo
com Eduardo Viveiros de Castro (2016), “a tarefa da antropologia contemporânea é a
descolonização do pensamento”, destarte, vislumbra-se aqui uma tentativa de mediação de
tal pensamento ANTIdecolonial por meio do movimento, a encarnação das teorias,
antropofagia, fruição de ideias, instauração de sensações, ambiências e o desabrochar de
sentimentos no corpo. Por meio da elucubração, da criação, da dialogia, da intertextualidade,
do estranhamento, da abstração e da experiência, espera-se que as ações corporais inspiradas
pelas ideias dos textos lidos e produzidos neste percurso possam suscitar transformações
mentais, físicas, emotivas e sociais, portanto, transformações éticas e estéticas: políticas.
Antes de resultantes, processuais; disparadores e devires.

Espero não dissociar em nenhum momento teoria e prática e sua aplicabilidade


biunívoca, sendo assim, a revisão de literatura, os relatos de experiência e o trabalho de
campo de contemplação e criação artística ocorrerão sempre num fluxo contínuo e
performativo, de imersão pela causa.

A prospecção deste projeto vislumbra contribuir para a insurgência de novas formas


de produção de conhecimento transdisciplinar em dança e artes contemporâneas, acima de
qualquer pretensão de produção científica tradicional-convencional-moderna de lógica
positivista, cartesiana e racionalista.
156

Estudos que ratifiquem e iluminem a cultura e as produções de conhecimento


brasileiras e latino americanas, além das de outros povos postos à margem - por razões
eminentemente econômicas e/ou mercadológicas - em detrimento da importação
hegemônica de culturas ocidentais do hemisfério norte, nunca foram tão necessários e
pertinentes, em minha opinião. Assim como ações e políticas públicas e/ou privadas que
suscitem pontes e maiores interlocuções entre o conhecimentos acadêmico e a vida, as
culturas e os regimentos das sociedade.

Celebro a dança na diversidade dos corpos, inesgotável. Disparo processos de


(inter)subjetivação que façam brilhar constelações da diferença, do respeito e da produção
de conhecimento estético e sensível. Descolonizo-me, colorindo, delirando, manifestando,
agindo. O corpo é uma solução.

CRONOGRAMA

jan/1 mar/ abr/1 mai/1 jun/1 jul/1 ago/1 set/1 out/1 nov/1 dez/1
Atividade/
8 fev/1 18 8 8 8 8 8 8 8 8 8
Mês 1º ano
8
Revisão x x x x x x x X

Bibliográfic

Análise do x x x

Material

Cumprime x x x x x x X X

nto de

créditos de

disciplinas

Reflexões x x X x x X

no

contexto
157

Pesquisa de x

campo

Produção x x x X x

de Texto

jan/1 mar/ abr/1 mai/1 jun/1 jul/1 ago/1 set/1 out/1 nov/1 dez/1
Atividade/
9 fev/1 19 9 9 9 9 9 9 9 9 9
Mês 2º ano
9
Revisão x x x X

Bibliográfic

Análise do x x x X

Material

Cumprime

nto de

créditos de

disciplinas

Qualificaçã x

Produção x x x x X x x x

artística

Produção x x x x x x x X x

de Texto
158

29

29
Festa de aniversário de 30 anos de Paulo Cavalcanti, 8/2/2019. “Carnaval da Manchete”. Selfie no espelho.
Ateliê André Bétio.
159

30

Aula especial de Stiletto na Bodytech Unidade Eldorado, em comemoração ao dia internacional da mulher,
30

março de 2019.
160
161

31

31
Aula especial de Estilo Feminino no Estúdio Anacã Unidade Pinheiros, em comemoração ao dia
internacional da mulher. Março de 2019.
162

32

32
Performance na Semana de Arte e Cultura na EACH USP em Outubro de 2018. Dança no Salto Alto. Foto de
Ann,
a Carolina Longano.
163
164

33

34

33
Oficina de Dança no Salto na Escola de Aplicação da USP em novembro de 2018.
34
Aula particular de Dança no Salto Alto para Sabrina Almeida.
165
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168
169
170
171
172
173
174
175

35

35
Durante o Canaval, gravaram um vídeo meu andando pelo viaduto do Chá, este vídeo foi postado na
internet, pelo Instagram, e fui alvo de muitos comentários com discurso de ódio, havia também muitos
comentários positivos ou achando engraçado. O problema era que eu estava usando um suporte de balé, o que
deixava minhas nádegas a mostra.
176

36

36
Com Tiffany Bradshow, após um show no qual a Drag fez cover da Britney Spears.
177
178
179

37

37
23ª Parada do Orgulho LGBTQ de São Paulo, Brasil, 30 de junho de 2019. Com o estilista André Betio.
180
181
182
183

38

38
Carnaval da manchete.
184

39

39
Cartaz de divulagação do filme de Pedro Almodovar, em português, “De Salto Alto”.
185
186
187
188
189

PLANO FINAL DE REDAÇÃO DA DISSERTAÇÃO...


190

DANÇAR COM TIJOLOS BAIANOS40

O desenho do meu trabalho começa com a transposição de uma visão. A minha ótica
subjetiva ao longo dos meus trinta anos de vida, de 1989 a 2019, possibilitada pela interface
da minha memória e das meditações dentro do que consigo elencar e resgatar. Eu posso
também ser uma prova viva do processo de transição e evolução do meu enterno político em
termos de Direitos Humanos, racismo, homofobia, discriminação e preconceito à respeito
das corporeidades dissidentes e suas existências em libertação, desde. Na década de 20 do
século XX ser LGBT ainda era um grandissíssimo tabu no Brasil, em São Paulo, e era
bastante convencional e engraçado humilhar e satirizar gays. “Quantas namoradas você tem?
hahaha”. Somente no século XXI começamos a perceber as consequências e efeitos mais
tangíveis de toda a militância que vem sendo realizada pelas bixas mais radicais desde muito
antes de Stonewall. A insurgência queer e a militância da comunidade LGBTTQIA+ já ocupa
muito mais espaço, sem medo, mas ainda correndo risco de vida.

Paulo Pereira Leitão Cavalcanti, ou Brigythie Paçoquinha, já teve duas namoradas,


dois namorados, já foi gay discreto, já pensou que transexualidade era uma patologia, já
participou do Festival Mix Brasil com uma videoarte de música e dança com tema lésbico41,
já tive um namorado que hoje é soropositivo, um dos maiores estigmas da comunidade de
homens gays, já estudei piano erudito42, vendia pianos, fui bailarino clássico certinho,
rebelde também, já fui corporativo, já fui vegetariano, um passado presente e futuro aliciado
pela heteronorma, porém, transbordando exagero e pinta, e fechação, regurgitando tudo o
que meu corpo engole. Eu assisto e, ao mesmo tempo, protagonizo a historicidade da
comunidade LGBT, quiça eu sou machista e vítima e de machismo, racista e vítima de
racismo, homofóbico e vítima de homofobia, porque tudo isso infelizmente ainda é
estrutural, mas a destruição disso é urgente. Fazemos arte e precisamos dela, eu(ele-a)
está(ão)mos agora, somente agora, se/me(nos) tornando uma das novas bixas do século XXI,
uma bixinha POC (POC), pão com ovo, bailando a dança das POC. Ouça o barulho do salto
batendo no piso, de longe. Tacones Lejanos.

40
Vídeo de exemplo da dança com tijolos aqui: <https://www.youtube.com/watch?v=j-lVi2GeVkk>. Acesso em
julho de 2019.
41
Videoarte OUVE (Listen) Mix Brasil 2016. Disponível em: <https://vimeo.com/172940600>. Acesso em julhor
de 2019.
42
Videoarte. Caos-Meditação. Meditação sobre um tema de Claude Debussy de Zoltan Kodály, Paulo
Cavalcanti. 2015 Disponível em: < https://vimeo.com/172932357>.
191

São muitas imagens e elucubrações, belezas e abjeções, um esforço hercúleo para


amalgamar tudo e sintetizar de forma minimamente inteligível (mesmo que não
racionalmente) para meu pares, interleitoras e locutoras(os), a minha grafia de mim,
absolutamente coletiva, uma lente caleidoscópio.

Ao optar por um método artístico autoetnografico eu assumo o risco de beirar a


egomania, a egolatria e a hiperpessoalidade. O componente narcísico eu não beiro, neste, de
fato, estou mergulhado e não há como fugir disso, por enquanto, por necessidade também.
Todavia, não se trata de uma pesquisa de mim. Trata-se, antes de uma pesquisa da minha
produção subjetiva, sobretudo de dança, em atrito com o espaço, o tempo, a cultura e a
contingência que me rodeia. Uma espiral de linhas atravessada, dinâmicas e assaltos. Eu faço
parte da história que está sendo escrita e armazenada na nuvem. No risco. Na garatuja.

A centralidade da crise e dos debates políticos no Brasil giram em torno da


sexualidade. O presidente do Brasil de 2019 é abertamente homofóbico e seu Estado não é
laico. Há trinta anos assisto aos avanços e retrocessos dos direitos LGBT no Brasil e no
mundo. Nasci no período pós ditadura militar, e vivi minha infância na década de 90, com o
tabu de ser homossexual numa cidade do interior e com toda a estigmação do homem gay
192

como baluarte da transmissão do vírus HIV, da AIDS. Caminhava na Av. Paulista todas as
noites na época em que soubemos da notícia do ataque a um rapaz, por um grupo de
homens homofóbicos com uma lampadada. Hoje o símbolo desta homofobia e de toda a
mácula que pode advir de uma natureza tal, preside nosso país. Eu vivo, desde meu
nascimento a ascensão dos movimentos sociais de corpos dissidentes e abjetos na sociedade
das normatividades coloniais. Hoje assisto ao espetáculo grotesco e bárbaro do retrocesso e
da mortandade. Minha dança é uma digladiação interna e desnudada em hemorragia floral
de luto e esperanças preocupadas de sangue, de barro, de poro. Do prazer à dor ao prazer à
dor ao sexo à morta à vida, confundindo o tempo que não existe. Me ultrapassam.

Seja por meio da arte, da dança, com o salto alto que aperta e machuca, seja com
tijolos, seja com uma ida ao salão de beleza que tenha profissionais sensíveis que saibam
tratar de cabelos cacheados de forma natural, o cuidado de si é uma prática que deve
caminhar lado a lado ao nosso processo de descolonização de cada dia, afinal este é um
processo tão violento...
193

O dramalhão já começou, e esse pé palimpsesto vai carregar todas as marcas e rastros


de violência, ternura, beleza e feiura para conceber uma dança e uma subjetividade, um
despacho, a entidade burlesca e abjeta, sodomita, um elogio às passivas e como podemos
intervir ativamente no mundo, transformando objetos, símbolos, costumes e medos. Nos
aguardem nas plataformas homoeróticas do espaço urbano-poético pitoresco.

Como soaria para você um corpo aburguesado do balé contemporâneo musical


stilettóide transposto para a platarforma tijolo baiano? Será mesmo que a contemplação de
toda a alegria, exuberância e até inocencia das gays da periferia do nordeste brasileiro
inventado circunda apenas o plano da piada?... Da sátira? Do entretenimento? Da vista
grossa? E do seu encerramento de seus corpos aniquilados cotidianamente pela colonialidade
branco machista da milícia imperatriz?

Almejo discorrer sobre a experiência de dança no salto, utilizando ao máximo termos


e expressos atreladas ao pajubá de origem indígena que tanto inspira os diálogos entre as
gay, sem me preocupar com a tradução, já que passei tantos anos traduzindo para minha
alma as brutalidades da civilidade heterossexual moderna. Uma dança de salto alto que
extrapola os binarismos, confundindo as percepções do que pode ser masculino ou feminino,
um corpo outro, desejante e envaginado, aberto, desencaretado, que diz mais sim do que
não, que engole o mundo lembrando de sua ancestralidade, que se situa geograficamente,
que mexe a raba com seriedade, degustando e lançando a transmutação de um corpo
palimpsesto, clássico, contemporâneo, urbano, extemporâneo, que coloca mil calçados para
descobrir mais sobre os próprios pés, a anatomia da caminhada errante. Conversarei com
artistas brasileiros da dança no salto, da dança POC e da dança contemporânea (Diego
Hazan, Uatila Coutinho, Alex Martins, Rivaldo Ferreira, Ivan Bernardelli), comigo mesmo,
com minha mãe capoeirista e comigo mesmo, com Drag, com Trans, com mulheres, e
comigo mesmo. Desfilando para dentro, como um auto-afeto, que afeta o entorno, que
aparece para dizer que existe e vai continuar existindo. As imagens em movimento do
percurso devem voltar todas borradas, informes, mutantes, plásticas, profanadas, vultos,
rastros, na concretude da efemeridade dos desejos, na precariedade criadora.

Porque eu não sou obrigada,

Brighytie Paçoquinha
194

5. BIBLIOGRAFIA

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atualidade. 4ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018.

FOTOGRAFIAS

Imagens do ensaio fotográfico do prólogo:

Fausto Roim | Ballet 4 Fun

Locação: Ateliê André Betio

Outras imagens: Pirateadas do Google ou produzidas por meio do meu dispositivo digital,
a maioria capturas de tela do celular ou recuperação de registros do Instagram.

Situações: Aulas coletivas e particulares de dança, 23ª parada do Orgulho LGBT, Festas de
pré-caranaval e carnaval, Festa de aniversário de 30 anos de idade; Performance EACH-
USP, Oficina na Escola de Aplicação na FEUSP;
198

“Se perguntarem a um homem por que razão ele se permitiu abusar de seu semelhante
indefeso, ele dirá: eu fiz porque nada me impediu de fazer.” (Maria Rita Kehl)

E se perguntarem a um homem gay?

E a uma mulher?

“Talvez somente pela experiência do outro, sob a condição de termos suspendido o juízo,

tornamo-nos finalmente capazes de uma reflexão ética sobre a humanidade do outro, mesmo

quando o outro busca aniquilar

a humanidade.” (Judith Butler)

“Não se nasce bixa. Torna-se bixa.”

(Ditado Popular) In: Ética Bixa de Paco Vidarte


199

ANEXO

EU ARFANTE

Sujeito adjetivo de dois gêneros

PAULO CAVALCANTI

Palavras chave

Censura, Cultura, Desobediência Civil, Estado de Direito, Ética, Etnia, Extremismo Religioso,
Feminismo, Gênero, Gentrificação, Justiça, Levante, LGBTQIA, Minorias, Público/Privado,
Violência

Resumo da proposição

A performance EU ARFANTE “sujeito adjetivo de dois gêneros” parte da inspiração política e


subjetiva que reúne elementos de arte cênica, visual, musical, literária e, sobretudo, da dança,
que versa sobre um corpo e sua feminilidade. Um corpo em movimento decolonial. Um corpo
200

traçando um caminho de inflexão, autoetnograficamente, concebendo (suas) mitologias


contemporâneas. Um relato de si, no mundo. É o corpo de um homem homossexual, 29 anos,
cis-gênero, de pele morena, nascido em São Paulo, descendente de uma mão brasiliense e um
pai alagoano, sol em aquário, ascendente em gêmeos, lua em peixes, artista, professor e
mestrando. Atravessamentos que transtornam o corpo, a corporeidade. Os dez temas
supostamente abordados nesta criação performativa são:

1) Ciência. A prerrogativa de escrita radicalmente qualitativa na primeira pessoa do


singular para produções de conhecimento, de cunho artístico ou não, relatar a si mesmo,
autobiografia, autoetnografia. Pela validade de um memorial que conversa com a sociedade.

2) Religião. A questão da fé e da crença e a violência sofrida por religiões demonizadas e


criminalizadas de matriz africana. Em contraponto a moralidade e censura postuladas pela
Igreja, pela institucionalidade cristã, de origem europeia.

3) Decolonialidade. Enfatizando a questão da dança, a desconstrução de um corpo ora


clássico, ora contemporâneo, com referências de arte-educação eminentemente
eurocentradas, balé clássico, piano erudito e indústria cultural.

4) Amor. Um corpo que ama/existe. Como todas as outras pessoas e seres capazes de
amar/existirem.

5) O belo. O equívoco ainda arraigado de que a arte se relaciona fundamentalmente com


a beleza, um ideal de beleza kantiano, apolíneo, higienista e eugenista. A arte do abjeto, da
necessidade, do desejo e da política.

6) Eurocentrismo. A invisibilização das culturas do hemisfério sul e de toda a ásia e europa


que não a europa ocidental, culturas afrodiaspóricas, cultura popular brasileira, corpos ibero-
negro-indígenas. Celebração destas energias corporais ancestrais e contemporâneas.

7) Homofobia. Reflexão sobre a cultura ditatorial do que é “brega” e do que é “chique”,


do que é aceito ou rechaçado para a pertença social, elogio da cultura queer, do desvio, da
identidade de gênero, arfante, do direito a extravagância e a legitimidade para conceber uma
subjetividade livre, plena e autônoma, que não necessariamente precisa ser
heteronormatizada. Por que não feminina, trans, drag, preta, bi, caminhoneira, quebradeira,
funkeira, travestida?
201

8) Machismo. Paragem. Paralisação, presença e escuta do corpo. Durante um momento


de manifestação verbal que denigre a imagem da mulher, a qualidade feminina, depreciação e
opressão.

9) Censura. Brado pela liberdade de expressão, especialmente artística. Não só de


expressão comunicativa, mas existencial. Pelo direito à existência e ocupação de espaços
sociais a todas as pessoas independente da diversidade de sensações, sentimentos, origem e
desejos. Tal Estado de Exceção, na pior das hipóteses é fatal e colabora para estatísticas que
apresentam o Brasil como o país que mais mata transsexuais no mundo.

10) Desamparo. Disparo de esperança micropolítica. Desobediência civil. Ocupação.


Manifestação. Presença. Militância. Exibição. Mostra. Debate. Antropologia. Nudez.

Cronograma: De uma a duas apresentações por dia durante a 14ª edição da Verbo Mostra de
Performance Arte, de 3 a 7 de julho de 2018. Duração: 33”

1o mov.: 29 voltas pelo espaço. 29 anos de vida. Andamentos.

2o mov.: Batizado para um nascimento. Com água benta.

3o mov.: Assassínio de uma princesa defunta (matar alguém já morta).43 Passinhos de uma
dança clássica desconcertante, uma valsa (compasso ternário) no compasso binário da pavana
(?!).

4o mov.: Uma canção de amor, urgente, intenso, pessoal, pungente, arfante. “Eu te amo como
a morte ama a humanidade.”44 Yoga, musculação, improviso, (falta de) ar, respiração, caixa
torácica, ossos, apneia.

43
Referência à peça musical para piano ou para orquestra de Maurice Rave, “Pavana para uma princesa defunta”
(ou “Pavana para uma criança defunta” ou “Pavane pour une infante défunte”), composta em 1899 .
44
Referência à peça musical de Asaf Avidan “Bang Bang” (2015).
202

5o mov.: “Autoestima delirante, corpo espetáculo”45. Desfile de maiô, fio-dental.

6o mov.: Atabaques. Corpo ibero-afro-indígena. Falta de repertório de uma dança concernente


à própria historicidade. Soltura do corpo, intuição e inclinação para um rito de catarse.

7o mov.: “Baile de peruas, (...) escolheu a beleza errada. (...) A lantejoula apareceu de novo.
(...) cafonice intrínseca (...) acabou forçando a barra.”46 Aerojazz, look trash 80 fitness, so
fashion, vintage, Kitsch, démodé, Avant garde, lacre.

8o mov.: Funk proibidão, depreciação do feminino. “Safada, cachorra, puta, piranha, quanto
mais tu xinga ela melhor ela é na cama.”47 Paragem.

9o mov.: “A placa de censura no meu corpo diz: não recomendado a sociedade. (...) Pervertido,
mal amado, menino malvado, muito cuidado, má influência, péssima aparência, menino
indecente, viado.”48 Abramos um vinho, celebremos. Foram muitas fantasias. Um sangue de
Cristo presentificado escorrendo até a vagina forjada de um corpo andrógino pseudo trans.

10o mov.: Um corpo que jaz, manifestado, fragilizado, exposto, explícito. Seguro e assertivo
em seu desamparo.

45
Referência à peça musical do grupo NoPorn “Maiô da Mulher Maravilha (2016)”.
46
Referência a peça musical “Baile de Peruas” (2006) do grupo NoPorn.
47
Referência a peça musical “Mega atabaque” (2015) de Mc Didão, Mc DG e Mc WG.
48
Referência a peça musical “Não recomendado” (2014) de Caio Prado.
203

Poética da problematização conceitual

Re ações.

Da autoetnografia enquanto prática decolonial do corpo para a dança contemporânea.

Corpo candente, presente. arfante.

Cor/açâo.

Coragem - coeur rage (coração + raiva)49

Minha pesquisa radicalmente qualitativa propõe uma autoetnografia performativa, uma


pesquisa baseada em arte que se concebe em exercício artístico, experimentação, criação e
fruição. Diálogo, discussão, mudança social e participação política. Apresento a minha
condição existencial na sociedade e a dança enquanto elementos de pesquisa continuada. Esse
âmbito se desdobra na discussão dos processos de subjetivação que atravessam as políticas do
corpo. Como eu me crio, mediado pelo meu corpo e mediando com meu corpo? Quais são os
espaços que posso criar? Quais são os espaços que (não) posso habitar?

A primeira ação colonizadora no Brasil foi a imposição da vestimenta às comunidades


indígenas, aliciadas pela moralidade e pela crença da Igreja Européia. Para empreender uma
pesquisa decolonial, escolhi partir deste lugar, da nudez. E, para isso, performo uma
encenação inteira que carrega meu cenário interlocutor até a minha nudez “final”, que é na
verdade, propedêutica.

A investigação estética é difusa, um grande novelo que enrola e se desenrola formando uma
tessitura de significados, sensações, impressões, suspeitas e intuições. Uma contracorrente ao
machismo, patriarcado, neoliberalismo, misoginia, homofobia, heteronormatividade,
convenções de beleza, plutocracia, meritocracia, cartesianismo, positivismo, equívoco da arte
enquanto “O Belo”, censura, e, sobretudo, ao colonialismo. Os motes de insurgência são: as
mitologias contemporâneas, as fés, a arte, a educação, a cultura, as grandes minorias, a matriz
afrodiaspórica, a feminilidade, as redes digitais, a performatividade, a subjetivação, o corpo, o
diálogo, e, primeiro, a autoetnografia.

49
Referência a obra de Roland Barthes, “Fragmentos de um discurso amoroso”, sobre a etimologia da palavra
coragem.
204

Decolonizar o pensamento, o corpo e o imaginário pode ser a grande tarefa contemporânea do


hemisfério sul.

Doce, delicado?

Abjeto, aberração?

Inútil, ácido?

Lymda, fêiu?

Pelego, subdesenvolvido?

Viadinho, passiva?

Você é homem?

Diva, vagabunda?

Discreto, obsceno?

Violento, violentado?

Você, eu?

Nós?

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