RESUMO – A pergunta socrática sobre o bem é o ponto da filosofia do lógos que une
algumas teses de Platão e Aristóteles. Ambos puseram em evidência a suspeita de Sócrates
de que nós não sabemos o que é o bem. Isso foi decisivo para mostrar que o modo “como”
nos comportamos pode estar orientado por regras morais equivocadas, ou melhor, por uma
noção distorcida da ideia de bem. Segundo a interpretação de Gadamer, esse parece ser um
problema ainda profícuo, para discutirmos sobre a possibilidade de uma ética filosófica.
ABSTRACT – The Socratic question about the good is the point of the philosophy of logos
that unites some theories of Plato and Aristotle. Both have highlighted the suspicion of
Socrates that we do not know what is the good. This was decisive to show that the way in
which we behave may be based on wrong moral rules, or rather, on a distorted notion of the
idea of the good. According to Gadamer’s interpretation, this seems to be still a meaningful
issue to discuss the possibility of a philosophical ethics.
INTRODUÇÃO
presente na tradição ocidental desde a filosofia grega antiga. Aí temos como exemplar a
ética de Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.), cujo trabalho se caracterizou por reunir questões
postas por seus antecessores a respeito do éthos do ser humano em um âmbito conceitual
que chamamos de “ética”. Uma vez que a preocupação maior com relação a esse problema
1
Viviane Magalhães Pereira is Professor at the State University of Ceará. She holds a Master’s degree
in Philosophy from Federal University of Ceará (2012) and a Doctoral degree in Philosophy from the
Pontifical Catholic University of Rio Grande do Sul (2015), with a sandwich research at the University
of Freiburg. Her research focuses on the relationships between hermeneutics, metaphysics, aesthetics
and ethics, and in particular on Gadamer’s works.
estava ligada à auto-organização da própria cidade (pólis) e, portanto, à política, perguntar
pelos modos de comportamento significava inquirir o cidadão pelo seu papel nesse espaço
Sócrates (c. 469 a.C. - 399 a.C.) foi a figura emblemática que nos forneceu
elementos para pensarmos sobre a possibilidade de uma ética filosófica, porque com seu
próprio modo de filosofar mostrou que mesmo o ideal da pura contemplação permanecia
relacionado à vida ativa e sua realização correta. Platão (428/427 a.C. - 348/347 a.C.) o
trouxe para os seus diálogos e, por fim, tentou defender em sua Politeia2 que a pólis em
sua natureza era poderosa o suficiente para pôr uma fronteira em toda confusão humana.
Contudo, ao observarmos como ele desenvolveu a ideia de bem, vemos que aí prevalece
a pergunta pelo ético em sentido próprio. Por mais que a perspectiva ontológica de uma
ordem do ser tenha aparecido como base para defender um ideal de existência humana, a
presença da pergunta socrática sobre o que seja o bem revela o condicionamento daquela
ser. Quando ele tentou fornecer uma base para a sua teoria de que o comportamento ético
está ligado ao que chamamos de “racionalidade prática” (phrónesis), sua intenção maior
não era criticar a “teoria das ideias”3, mas mostrar que a escolha ética tem um caráter
2
cf. Platão 2012: 53-99, 357a-383c.
3
cf. Gadamer 2002: 17.
interpretação nos orientamos, esse sentido genial para o condicionado múltiplo,
ante a pergunta sobre como é possível uma ética filosófica, isto é, como uma teoria
humana sobre aquilo que é humano pode existir sem que se transforme em uma arrogância
desumana4.
conceito de phrónesis, tem uma relevância moral, na medida em que está sob
circunstâncias que lhe condicionam. Ela somente se torna possível por meio daqueles que
comportamento ético e a aplicação à situação atual como a tarefa central para a qual a
ética filosófica aponta. O éthos se vê remetido, portanto, a essa razão (lógos) prática, isto
é, a pôr em prática as ideias sobre o que é bom e correto. Obviamente conhecemos a ironia
que se encontra aí: ao invés de muitos filósofos agirem, fazerem o que é correto,
Contudo, não seria já a ocupação teórica com o éthos do ser humano um modo de
comportamento de quem tem interesse pelo bem comum? Não estaria aquele que não
4
cf. id. 1999b: 186.
questão fundamental da ética filosófica, que é a formação da racionalidade prática para o
seu uso correto, põe-se em movimento juntamente com o nosso processo de formação. O
A ação ética não é a mera execução de leis morais, ou seja, não é porque algo está
sendo realizado que ele é correto. O artesão mostra que é capaz de fazer um objeto,
comportamento, isto é, em como nós fazemos o que é “correto”. Assim, a ação ética
depende muito mais de nosso ser do que de nossa consciência e o que nós somos depende,
por sua vez, muito mais de possibilidades e circunstâncias do que daquilo que nós
conduta (eupraxía) e a aspiração de uma vida boa e feliz (eudaimonía), que está de certo
modo para além daquilo que nós mesmos somos6. Gadamer expressa bem essas ideias na
seguinte passagem:
Certamente qualquer pessoa é dependente da imagem de seu tempo e seu mundo, mas nem
se segue disso a legitimidade do ceticismo moral, nem também a legitimidade da
manipulação técnica de toda formação de opinião sob a perspectiva do exercício de poder
político. As mudanças, que lançam mão de costumes e modo de pensar de um tempo e lugar
e que cultivam os antigos para dar a impressão ameaçadora de uma dissolução total dos
costumes, ocorrem por uma razão estática. Família, sociedade, Estado determinam a
constituição essencial do ser humano, enquanto seu éthos preenche-se com conteúdos
mutáveis. Na verdade, ninguém sabe dizer tudo o que pode vir a ser do ser humano e de suas
formas da vida em conjunto – e isso não significa que tudo seja possível, que tudo pode ser
reduzido e fixado pela vontade e arbitrariedade, como o poder o deseja 7.
5
cf. ibid.: 187.
6
cf. ibid.: 185-188.
7
ibid.: 188.
É por essa razão que é adequado ter a ética essencialmente ligada à política. Não há
verdadeira política, ou segundo os gregos, a correta organização da pólis, sem que haja
interesse por parte dos seres humanos de conduzirem suas vidas da melhor maneira
comunidade mais plena. Nesse sentido, a prática de uma política autêntica é sempre
responsabilidade de todos, do mesmo modo que refletir sobre essas questões não é tarefa
de todo éthos humano do ser moral e político, como para a própria questionabilidade de
II
Para Gadamer, a pergunta socrática sobre o bem não apenas tornou possível o
aquela de crítico ávido da teoria das ideias, mas de alguém que encontrou um lugar
especial em seus manuscritos para retomar a suposição socrática de que nós não sabemos
o que é o bem, reformulando-a sem precisar recorrer ao modo aporético dos diálogos
socrático-platônicos10.
Entendemos que o texto em forma de diálogo foi o modo que Platão encontrou para
8
cf. Aristoteles 1915; 1985.
9
Gadamer já havia defendido esta tese desde a publicação do seu primeiro livro sobre Platão (cf.
Gadamer 1999a.
10
cf. id. 1991a: 128-145.
revelar a especificidade da problemática que envolve as virtudes (arétai) e o bem. O
próprio diálogo é algo que não se aprende com facilidade, pois nem pode ser mensurado,
nem ensinado. Temos somente para nos auxiliar o exemplo do próprio dialético, que
simples objetivo de manter o olhar em direção daquilo que é verdadeiro e justo. Ao invés
se prestar um esclarecimento, em uma nova chance de articular com ainda mais primor
nossas intenções11.
entre o dialético e todos os outros, que se ocupam, de um modo diferente, com a questão
diálogo desse tipo. Muito parecida é a situação na qual se encontra a ética filosófica,
quando vemos que a pergunta fundamental pelo bem não pode ser respondida por meio
de uma definição, mas aí se trata sempre da escolha correta no momento certo12. Quem
escolhe bem já é sensato (phrónimos), do mesmo modo que quem conduz bem o diálogo
dialético13. Um sofista não estaria em condições de discorrer sobre esse tema, pois, como
11
cf. ibid.: 151.
12
cf. Gadamer 1998: 61-62.
13
cf. Platon 2007.
Este é certamente um problema hermenêutico que interessa a Gadamer. O dialético
é, ele sabe como buscar orientação junto a si mesmo e a outros para refletir sobre
determinado tema, pois já é virtuoso. Em outras palavras, ele já busca conhecer, antes de
tudo, a si mesmo e sabe, portanto, da dificuldade que existe onde não há comportamento
verdade e do bem é a mesma, tanto na vida social e política, como na vida pessoal14.
Platão não fez, por exemplo, uma diferenciação entre racionalidade teórica e prática e,
assim, concedeu ao termo phrónesis um sentido amplo. Dialética para ele é phrónesis,
mas também o são, em certo sentido, téchne e epistéme. A diferença está na ênfase dada
conhecimento é como um “ver diante de si” e, por isso, está muito mais ligado à aísthesis,
enquanto na dialética está em questão o próprio éthos humano. Aí ele precisa representar
III
aproxima, para Gadamer, muito mais de uma virtude ao modo da phrónesis aristotélica,
similar, tradições éticas não se fundam tanto em ensinar e aprender, mas recorrem muito
14
cf. Gadamer 1991a: 150.
mais a exemplos e imitação. O fenômeno do ético ganha destaque mediante o modelo de
uma figura ética. Se faz ética na medida em que se é, ou melhor, se busca ser ético. A
Nisso consiste sua crítica à nova paideía. Um mundo no qual as pessoas se tornaram
como devem proceder, só pode ser um mundo cuja educação é em verdade uma téchne
possível de prazer15.
Quando se trata especialmente das experiências ética e política parece que o fator
determinante para Platão é algo quase divino (theía moíra), isto é, sobre o qual não temos
conhecimento. É por isso que Sócrates declara ser o conhecimento do não conhecimento
a verdadeira sabedoria humana. Aquele que muito sabe sobre si mesmo já percebeu a
urgência de contemplar a própria alma, em busca de um vestígio que fora esquecido. Esse
mesmos, e este está para além do lógos. Segundo Gadamer, isso contrapõe o discurso
usual de que há um intelectualismo forte nos diálogos platônicos no tocante à questão das
virtudes e do bem.
conhecimento presente nos diálogos. Com tal crítica, ele obteve o conceito de éthos,
dando assim origem a novas indagações dentro do âmbito que intitulamos “filosofia
15
cf. ibid.: 152-154.
prática”. Ademais, o tipo de texto aristotélico está de acordo com o seu conteúdo, isto é,
aporias, que surgem com a arte platônica do diálogo socrático. Uma dessas distinções foi
aquela entre sophía e phrónesis, embora a separação entre ambas não existisse no uso da
língua grega. Apesar de isso ter representado uma perda do potencial linguístico que há
na palavra viva, foi ao mesmo tempo um ganho para a transmissão do sentido da ética
filosófica.
Isso também não eliminou o aprendizado que trazemos dos diálogos socráticos para
os nossos dias, a saber, que a estrutura do monólogo do saber científico jamais alcançará
um bem comum, Gadamer preferiu dar ênfase ao modo como Aristóteles integrou à sua
CONSIDERAÇÕES FINAIS
trouxe destaque para a seguinte verdade da pergunta socrática pelo ser e saber do bem: há
uma unidade profunda entre lógos e éthos. Na Ética a Nicômaco, põe-se em evidência
que a vida na teoria, que não incluísse a vida da práxis humana, seria sem sentido. Não
16
cf. Gadamer 1993: 12-13.
se trata da aplicação do saber, mas da vida no saber, o que Aristóteles descreve como a
realização mais própria17 do saber (enérgeia)18. Assim, o Estagirita leva ainda mais
adiante a pergunta socrática sobre o que seja o bem e se empenha para trazer, por meio
do conceito, a ideia do bem para a vida humana, isto é, na concreção plena de sua práxis19.
Portanto, é na relação entre a dialética platônica e a ética aristotélica que surge, para
próprio para a phrónesis, possuem a função de unificar as virtudes e tentar impedir que a
questão do bem seja reduzida a um saber determinado por certas manifestações tomadas
por “éticas”. Aí, onde se trata do comportamento verdadeiro e correto, nós mesmos
precisamos participar. Ninguém nos pode ensinar e nem mesmo fazer por nós a
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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W. D. Ross, Oxford.
_______ (1985, 4a ed.), Nikomachische Ethik, Übers. von Eugen Rolfes, Hamburg.
Gadamer, H.-G. (1991a), “Die Idee des Guten zwischen Plato und Aristoteles”, in:
_______ (2002), “Die Lektion des Jahrhunderts: ein Interview von Riccardo Dottori”,
Münster.
17
cf. Peters 1983: 74.
18
cf. Gadamer 1998: 66.
19
cf. id. 1991b: 374.
_______ (1991b), “Die sokratische Frage und Aristoteles”, in: Grieschische Philosophie
aristoteles, Nikomachische Ethik VI. Hrsg. übers. von H.-G. Gadamer, Frankfurt am
Main.
_______ (1999b), “Über die Möglichkeit einer philosophischen Ethik”, in: Neuere
Peters, F. E. (1983, 2a ed.), Termos filosóficos gregos: um léxico histórico, Trad. Beatriz
Platão (2012, 13a ed.), A República, Trad. Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa.