NA PLENITUDE
U m a nova psicologia de
otimismo espiritual
Joan Borysenko, Ph.D.
NA PLENITUDE DA ALMA
Uma nova psicologia
de otimismo espiritual
Tradução
ADAIL UBIRAJARA SOBRAL
MARIA STELA GONÇALVES
EDITORA CULTR1X
SÃO PAULO
Para os nossos filhos
Andrei, Justin e Natalia Borysenko
E em amorosa memória de
Mathew Hitchcock
UMA PALAVRA DE AGRADECIMENTO
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medicina e a espiritualidade. Jon Kabat-Zinn, Ph.D., que foi o "padrinho"
original do programa mente/corpo que dirigi durante boa parte da década de 80,
ensinou-me muita coisa acerca da meditação com atenção total. O pensamento
do dr. Willis Harman sobre ciência e metafísica tem sido para mim uma
substancial influência, o mesmo ocorrendo com o trabalho de outros colegas
demasiado numerosos para serem citados um por um. Quando oportuno, reco-
nheci no texto as suas contribuições. A todos vocês em cujo trabalho me apoiei
mas cujo nome não mencionei especificamente, o meu muito obrigada, porque
nenhum de nós é alguma coisa sozinho. Todos os livros e artigos são escritos a
partir do pensamento de inúmeras outras pessoas.
Especiais agradecimentos a Stephen Maurer por me ter indicado o conto
"As Três Perguntas", de Tolstói e pelo amor que demonstrou por mim no
período mais terrível da minha vida; a Rick Ingrasci e Peggy Taylor pela sua
amizade e encorajamento e por levarem ao meu conhecimento o poder dos
círculos comunitários de cura; a Robin Casarjian por ter enfrentado corajosa-
mente o texto em sua fase mais difícil, incentivando-me a fazer algumas
alterações fundamentais, e — quando alcancei o ponto de desespero absoluto,
no final desta longa labuta — por me sugerir um título; a Peggy Taylor pelos
seus criteriosos comentários no tocante à reorganização do original; e a Irene
Borge por me fazer conhecer a obra de Victor Turner.
Um muito obrigado muito especial à mística e mágica Mamãe Ganso —
Célia Thaxter Hubbard, cuja amizade, estímulo e amor têm sido fundamentais
para mim. Tanto a sua pesquisa, que deu origem a uma torrente constante de livros
e artigos de autores seminais, como os seus bons conselhos enriqueceram extraor-
dinariamente este livro e ajudaram a me converter ao otimismo espiritual. A figura
da capa da edição americana foi inspirada por uma das criações de Célia. Seu amor
à arte e à beleza tem sido uma fonte contínua de educação e de inspiração.
Ao Círculo Feminino — Célia Hubbard, Joan Drescher, Carolina Clark,
Peggy Taylor, Elizabeth Lawrence, Yvonne Drew, Rachel Naomi Remen, Tricia
Lovett Stallman, Leslie Kussman, Loretta Laroche, Lauren Macintosh, Renee
Summers, Elena Burton, Robin Casarjian, Olivia Hoblitzelle, Jane Alter, Ma-
galy Rodriguez Mossman — não tenho palavras para expressar o quanto todas
vocês representam para mim e quanto a nossa experiência compartilhada ajudou
a dar forma a este livro e a acrescentar alegria à minha vida.
E, por fim, mas com a mesma importância, meus agradecimentos às duas
pessoas que tornaram este livro uma realidade. Minha maravilhosa agente
literária, Helen Rees, e minha excepcional editora na Warner Books, Joann
Davis. Obrigada às duas pela fé em mim e por me darem a oportunidade de
transmitir minha mensagem de paz.
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SUMÁRIO
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CAPÍTULO QUATRO: E Se... ? — A Reestruturação das Crenças Essenciais 83
10
Meditação, Mente e Espírito 173
A Oração Restauradora do Equilíbrio — Entrar em Contato com o Divino . . . 175
Uma Prática Simples de Meditação 178
1. Ambiente e Preparação 178
2. Liberação das Tensões 180
3. União com o Eu Superior 180
4. A Palavra Sagrada 181
5. O Estabelecimento de uma Prática 182
AUTORIZAÇÕES 236
12
Este é um livro sobre a liberdade,
sobre a quebra das algemas das velhas crenças e medos
que nos mantêm agriUioados à ilusão
de que somos separados uns dos outros e de
Tudo-O-Que-E.
J.Z.B.
PARTE UM
Crenças Básicas —
A Escolha entre o Amor e o
Nós não vemos as coisas como elas são.
Vemo-las como nós somos.
Talmude
INTRODUÇÃO
O Fogo da Transformação
O que a lagarta chama de fim da vida
o mestre chama de borboleta.
Richard Bach
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Meu amigo Lee, por exemplo, viu-se atormentado pela AIDS na maior parte
do tempo que dediquei a escrever este livro. Pouco antes de terminá-lo, a
condição física de Lee havia piorado e fui visitá-lo, pesarosa, porque meu amigo
estava tão próximo da morte. Minha esperança era poder confortá-lo e, quem
sabe, até inspirá-lo, mas foi Lee quem me deu conforto. Fui até o seu quarto e
apoiei minha cabeça em seu peito. Ele me abraçou sem dizer uma palavra.
Quando me sentei, nossos olhos se encontraram e permanecemos por mais ou
menos meia hora numa silenciosa comunhão. Eu nunca tinha sentido tanto amor.
Pareceu-me que todo o sofrimento que Lee suportara havia destruído pelo fogo
as máscaras, os véus, as inseguranças que nos mantêm fora de contato com a
nossa própria sacralidade. Depois de todo esse ardor ígneo, sua luz interior
brilhava sem obstruções. Nunca estive em solo tão sagrado.
Quando nosso espírito está em chamas, as velhas crenças e opiniões podem
ser consumidas pelo fogo, aproximando-nos mais da nossa natureza essencial,
bem como do ponto central da cura. Esses momentos de fogo interior recebem
a denominação de noite escura da alma. São João da Cruz, místico espanhol,
cunhou esse termo na segunda metade do século XVI. Ele o empregou para
designar a parte da jornada espiritual no decorrer da qual parecemos perder o
nosso vínculo com uma fonte interior de paz e, em seu lugar, enfrentamos nossas
dores e medos mais profundos. São João da Cruz via o sofrimento como uma
" catarse" ministrada pela luz divina para retirar do espírito todos os resíduos
capazes de conservá-lo separado e solitário.
O poeta e filósofo Kahlil Gibran tinha outra definição de dor. Ele a
considerava " a pílula amarga do médico interior", uma espécie de chamado ao
despertar, vindo do Universo, que " rompe o invólucro do nosso entendimento".
Este livro trata da novidade que pode surgir no nosso espírito quando esse
invólucro é rompido: a liberdade de ser quem somos e um despertar para uma
dimensão totalmente nova da vida — a dimensão espiritual.
Joseph Campbell, estudioso dos mitos, descreveu esse processo do desper-
tar como uma terrificante jornada no mar da escuridão. E ele, de fato, pode ser
aterrorizante, porque, em períodos de extremo sofrimento, pode dar-nos a
impressão de que estamos flutuando à deriva, sem nada a que nos apegar, em
mares nunca antes navegados. Para encontrar o caminho de casa, precisamos de
um guia. Do contrário, poderemos perder-nos no mar da depressão, do desespe-
ro, do cinismo, do abandono ou do vício. Este livro pretende ser um guia nessa
jornada. Porém, mais do que isso, tem o objetivo de ajudar você a encontrar a
sua orientação interior.
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Em termos pessoais, escrever este livro foi a um só tempo difícil e estimu-
lante. Ele nasceu diretamente do fogo que ardia no meu coração, uma profunda
paixão pela liberdade, pela transformação e pela volta para casa no sentido
espiritual, cujas chamas há muito vinham sendo alimentadas pelo meu arquinê-
mese e maior mestre — o medo. Por vezes, esse medo transformara em cinzas
o que havia de melhor em mim, destruindo-me e exaurindo-me literalmente pelo
fogo. Mas, à semelhança da fênix mítica, eu sempre ressuscitei, tal como o têm
conseguido muitos pacientes com os quais tenho tido o privilégio de trabalhar
ao longo dos anos. As maneiras pelas quais o medo e o trauma se transformam
em percepção interior e compaixão têm um quê de incrível fascínio: elas me
levaram a olhar além das fronteiras dos nossos sistemas psicológicos tradicio-
nais.
No início da minha carreira como psicóloga, eu era behaviorista. Acreditava
que era possível evitar o sofrimento psicológico desnecessário, ensinando as
pessoas a assimilar um novo conjunto de comportamentos e de crenças. E, com
efeito, a terapia behaviorista e cognitivo-behaviorista tem extrema utilidade em
algumas circunstâncias que abordei no meu primeiro livro, Minding the Body,
Mending the Mind. Mais tarde, dei-me conta da relevância de curar as feridas
da infância e de recuperar a auto-estima, como exponho no meu segundo livro,
Guilt Is the Teacher, Love Is the Lesson. * Neste livro, penetraremos de modo
ainda mais profundo na natureza da cura, examinando uma psicologia espiritual
em que a integralidade da pessoa compreende, não só a sua mente temporal, mas
também o seu espírito imortal.
Embora psicologia signifique tecnicamente o estudo da alma, a maioria dos
sistemas psicológicos deixou de lado o interesse por essa dimensão, na tentativa
de apresentar algo "científico". Desse modo, os ensinamentos do psiquiatra
suíço Carl Jung e do psiquiatra italiano Roberto Assagioli, que reconheceram a
importância da alma, ficaram ofuscados pela obra de Sigmund Freud, seu
contemporâneo. Embora Freud tivesse muito a dizer a respeito do inconsciente
pessoal, suas teorias negligenciam o inconsciente coletivo, postulado por Jung
— o domínio dos arquétipos ou padrões da alma, tais como: o curandeiro, o
guerreiro, o mágico e o herói, que têm plasmado o mito, o teatro, as religiões e
o mundo onírico desde o começo dos tempos.
O escopo limitado da psicologia tradicional foi revelado de modo surpreen-
dente no curso da década passada por grandes avanços em relação ao que
* Um Livro para Curar o Coração e a Alma. Editora Pensamento, São Paulo, 1995.
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entendemos por trauma, como vamos ver na Parte Dois: A Transformação do
Medo. Muitas pessoas que sofrem graves traumas desenvolvem o que se
denomina "distúrbios dissociativos". Elas se afastam mentalmente a fim de se
distanciarem do abuso e do terror e, ao fazê-lo, aprendem a viver em realidades
alternativas. Elas podem vir a desenvolver o Distúrbio da Personalidade Múlti-
pla e, embora se vejam seriamente limitadas pela dor não curada, também podem
desenvolver excepcionais capacidades intuitivas e criativas.
Os terapeutas conseguem encontrar, na maioria das pessoas acometidas por
esse distúrbio, uma personalidade nuclear denominada Ajudante Pessoal Inte-
rior,. que parece ser a alma. Independentemente da formação, ou da falta de
formação religiosa da pessoa, essa personalidade reivindica a condição de
núcleo imortal da consciência, elemento que já estava presente antes que a
pessoa tivesse um corpo e que vai permanecer presente depois que esse corpo
morrer. Essa personalidade costuma caracterizar a si mesma como um canal de
amor e de sabedoria divinos. E é sábia. Essa personalidade pode ser muito útil
ao terapeuta na transformação do trauma que causou uma fragmentação tão
grave ao eu.
Nas minhas viagens pelos Estados Unidos, dirigindo seminários para terapeu-
tas e para o público em geral, tenho ouvido espantosas histórias de e sobre
pessoas que na infância sofreram graves abusos. Muitas delas estabelecem uma
ligação com o Ajudante Pessoal Interior no decorrer do processo de cura, e a
maioria exibe um alto grau de intuição. Grande número tem recordações de
experiências espirituais extraordinárias que acompanharam o abuso sofrido.
Quando lembranças há muito reprimidas vêm à superfície como parte da cura,
afloram igualmente as experiências espirituais. Elas tendem a ser de dois tipos:
saída do corpo e contato com uma luz branca, toda feita de sabedoria e amor,
semelhante àquela relatada por pessoas que tiveram experiências de quase-
morte.
Lynne Finney, advogada e terapeuta que sofreu graves abusos e torturas
sexuais, narra sua experiência pessoal e a de muitos pacientes em seu notável
livro, Reachfor the Rainbow: Advanced Healingfor Survivors of Sexual Abuse.
Ela comenta que as lembranças da luz branca costumam surpreender tanto os
pacientes, muitos deles ateus declarados, como os terapeutas que não tiveram
contato anterior com esses fenômenos. Lynne observa que:
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que a luz branca é uma energia do bem e do amor e compreende o que a luz branca
está dizendo, embora esta na verdade nada diga. A luz informa à vítima que ela é
amada, que há um motivo para o que está acontecendo e que ela sobreviverá ao
abuso. Algumas vítimas recebem informações detalhadas acerca do universo, de
sua própria vida e do seu futuro. Há vítimas que contam ter tido intensos sentimentos
de amor e de paz na presença da luz que não se assemelham a nada que elas tivessem
conhecido antes (Reachfor the Rainbow, p. 189).
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ção do espírito que traz em si potencial para despertar nossa inclinação a
participar da cura do nosso mundo.
Vivemos uma época sem precedentes. A alma do mundo está de fato em
chamas devido à fome, à poluição e ao ódio. Muitos de nós estão feridos. E cabe
a cada pessoa usar de maneira consciente o fogo que arde em suas feridas — a
fim de curar, de trabalhar em prol da paz, de transformar o nosso mundo. Se não
o fizermos, as chamas que nos atingem o espírito vão nos consumir individual
e coletivamente. As nossas cidades vão arder, nossos filhos irão se voltar para
as drogas, a nossa terra ficará demasiado poluída para sustentar a vida. Cada vez
mais pessoas — paradoxalmente, devido à dor, ao abuso e ao trauma — estão
vendo literalmente a luz e se comprometendo com a cura pessoal e social. Para
ser agentes de cura, precisamos ultrapassar a condição de vítimas ou mesmo
sobreviventes do que quer que seja o nosso inferno pessoal. Estamos sendo
convocados a ser, em vez disso, transformadores de consciências.
Em nossas relações com os difíceis desafios desta vida, podem abrir-se
portas para outras realidades e outras vidas que levem a uma cura mais profunda
do que aquela que fomos condicionados a esperar pelas nossas crenças religiosas
ou filosóficas anteriores. Minha experiência clínica levou-me à convicção de
que esta vida é apenas uma gota no oceano. Como disse Donna Elsten, acerca
de cuja assombrosa experiência de quase-morte você vai ler no Capítulo Dois:
" Nossa vida na Terra é como o clarão de um relâmpago." A um simples estalar
de dedos, despertamos do sonho. Mas a experiência acumulada em nosso
espírito, nossa identidade mais profunda, permanece conosco em outras esferas
da existência. E crescemos e (nos) curamos em muitos níveis ao mesmo tempo.
Mediante essa concepção ampliada da vida, mesmo os eventos mais dolo-
rosos e aparentemente sem sentido podem ser considerados grãos para o moinho
da edificação do espírito e da cura profunda. Apesar dos desafios que enfrenta-
mos, temos, com certeza, acesso à ajuda do universo quando a pedimos —
embora ela possa não ser adequada aos critérios de ajuda que tínhamos em mente
ao solicitá-la. Passei a acreditar com todo o meu ser que estamos eterna e
imorredouramente seguros, muito embora o mundo temporal em que vivemos
costume ser perigoso, violento e imprevisível. Eis o que é o otimismo espiritual.
Organizei este livro de um modo que vai ajudar você a refletir a respeito de suas
próprias experiências e crenças, bem como apresentar um arcabouço intelectual
e experiencial para uma nova psicologia do otimismo espiritual.
A Parte Um apresenta a escolha que fazemos em todo momento de crise:
acreditar no amor ou capitular diante do medo. Os três primeiros capítulos
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assentam um arcabouço psicológico, científico, religioso e espiritual essencial
para as nossas crenças sobre por que acontecem coisas ruins; espero que essa
base ajude você a identificar os seus padrões de pensamento. A Parte Dois
examina os medos pessoais e arquetípicos que se evidenciam de modo especial
em momentos de crise, mas que muitos de nós vivenciam cronicamente. Quando
devemos optar entre meditação e medicação, entre terapia tradicional e abordagens
transpessoais como a regressão a vidas passadas? Qual a mais abrangente
psicologia do amor, da coragem e da liberdade, capaz de nos proporcionar uma
passagem segura pelo medo?
A Parte Três apresenta estratégias práticas para uma existência marcada
pela coragem que nos permita vivenciar o cotidiano com paz, júbilo e liberdade.
A palavra "coragem" vem do vocábulo francês coeur, que significa "coração".
A meditação, a oração e a atenção plena para com tudo o que existe são maneiras
pelas quais abrimos os olhos do coração a fim de perceber com clareza quando
a noite escura do espírito nos tolda a visão. O livro, em sua parte final, conta
com uma seção de recursos ou meios disponíveis que relaciona livros, fitas e
endereços de pessoas e organizações úteis, precedida por um capítulo chamado
" Luzes Noturnas", histórias, poemas e citações que podem ajudar a restaurar o
otimismo espiritual quando sobrevém um período depressivo e parecemos ter
esquecido como viver com fé, amor e coragem. E esse esquecimento e recorda-
ção, caro leitor, é o pulsar da vida no planeta Terra.
Como passei a dizer em todos os meus livros:
Joan Borysenko
27 de maio de 1992
Scituate, Massachusetts
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UMA PARÁBOLA:
UM CAMINHO SEGURO PARA CASA
Leon Tolstói
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centro regional de traumatologia, Mat faleceu antes de chegar ao hospital. O
agoniado "por quê?" de Andrei foi repetido pela maioria dos adolescentes que
se reuniram em nossa casa nos primeiros dias depois da tragédia. Por que Mat?
Por que uma pessoa que nunca criticara ninguém, que era tão grato pela vida,
que aceitava de maneira natural a peculiaridade e o potencial de todos que ele
conhecia? "Por que logo o melhor de nós?", perguntavam-se eles.
Destoando de Andrei e dos demais, uma mocinha alertava: "É melhor não
ficar perguntando por quê. Não existe uma resposta clara que possamos dar a
essa pergunta." Essa adolescente de tênis branco e meias vermelhas atingira o
próprio âmago do sagrado mistério. Não temos como saber. Contudo, para os
seres humanos, a necessidade de saber vem acompanhada da reestruturação da
própria vida depois da tragédia.
A tragédia evoca a necessidade de criar um sentido — de contar novas
histórias —, e isto pode devolver aos fios dispersos da vida uma unidade
coerente. A nossa capacidade de contar essas histórias tem, de acordo com a
pesquisa da psicóloga da UCLA [Universidade da Califórnia, em Los Angeles]
Shelley Taylor, uma relação positiva com a recuperação. Estudando pessoas
cujas vidas sofreram uma ruptura decorrente de infortúnios, que variavam de
estupros a enfermidades capazes de ameaçar a vida, a dra. Taylor descobriu que
aqueles que se ajustavam bem incorporavam à recuperação três estratégias de
relacionamento com o problema: a busca de um sentido na experiência; a
tentativa de tomar as rédeas no tocante ao problema em particular e à vida em
geral; e uma restauração da auto-estima depois de uma perda ou retrocesso.
A dra. Taylor ficou impressionada com a extraordinária capacidade de
recuperação da natureza humana e com o profundo reservatório de forças que a
tragédia faz aflorar. Ela observou que, em vez de ficarem abatidas em momentos
de crise, as pessoas, em sua maioria, têm uma capacidade inata de se recuperar
de problemas monumentais, reajustando-se à vida não apenas tão bem quanto
antes da ocorrência da tragédia como até melhor. E o sentido que atribuímos a
essa noite escura do espírito tem importância fundamental quanto à maneira
como saímos dela.
O que significa perder um ente querido, contrair câncer, ser estuprado sob
a ameaça de uma faca, ser molestado sexualmente quando criança? Se as suas
respostas criarem histórias negativas, a recuperação do trauma vai ser dificulta-
da. As pesquisas indicam que as pessoas que acreditam ser vítimas indefesas
têm mais propensão a continuar ansiosas, deprimidas e irritadas do que aquelas
que conservam uma sensação de controle. Uma atitude de impotência e de
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ressentimento tem sido vinculada, por sua vez, com uma redução das funções
imunológicas, com o aumento de moléstias cardíacas e com a suscetibilidade a
toda a gama de doenças ligadas ao estresse.
Tem igual efeito paralisante a atitude de culpar-se a si mesmo, a tríade
pessimista sintetizada pelo psicólogo da Universidade da Pensilvânia, dr. Martin
E.P. Seligman como:" A culpa é minha; estrago tudo o que faço e essaé a história
da minha vida." O pessimismo compromete as funções imunológicas, dificulta
a aprendizagem a partir das nossas experiências e nos deixa deprimidos e
impotentes. Se as histórias que construímos a partir das nossas tragédias forem
mais otimistas (" Não sei por que isso aconteceu, mas posso suportá-lo" ou " Um
dia perceberei o valor dessa situação"), tanto a saúde física quanto a mental
serão sobremodo favorecidas.
No decorrer dos sete anos em que dirigi um programa clínico mente/corpo
nos hospitais Beth Israel, de Boston, e Deaconness, da Nova Inglaterra, tive a
oportunidade de ouvir centenas de histórias do tipo "Por que eu?". A maioria
das pessoas procurava a clínica no ponto de sua vida em que a doença lhes
apresentava um novo e assustador desafio. Era freqüente que as suas crenças e
pressupostos não questionados acerca da vida fossem abalados pelo diagnóstico
de uma doença muito grave, pela realidade de ter de conviver com esclerose
múltipla ou uma lesão cerebral, ou ainda com a aparente perpetuação do medo
ou da depressão. O tratamento que oferecíamos era um programa em grupo que
promovia reuniões semanais de duas horas ao longo de um período de dez
semanas.
Os pacientes aprendiam a usar técnicas mentais incluindo a meditação ou
a imaginação concentrada, que fossem capazes de produzir saudáveis alterações
na fisiologia corporal. Recebiam ainda instruções sobre alongamento, relaxa-
mento, autoconsciência, quebra do ciclo de ansiedade, sobre reformulação do
sentido de sua experiência, sobre exercícios e sobre nutrição, pontos que expus
em Minding the Body, Mending the Mind.
Um grupo específico de pacientes ficou marcado na minha memória. Era a
primeira sessão do programa de dez semanas, e as pessoas explicavam a razão
de estarem ali. Uma senhora tinha enxaquecas tão fortes que temia perder o
emprego por causa de constantes faltas. Outra mulher tinha um distúrbio
neurológico que os médicos não conseguiam diagnosticar com precisão. Toda
vez que se manifestavam os sintomas de uma leve desorientação, ela sofria um
ataque de pânico. Seria um tumor cerebral que escapara aos exames? Será que
os sintomas iriam piorar e tornar-lhe impossível uma vida normal? Havia um
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homem com uma dor lombar crônica e uma mulher que havia sido vítima de
incesto e que se queixava de vários distúrbios relativos ao estresse, ligados a
esse trauma infantil. Duas outras pessoas tinham diarréia e dor no ventre
decorrente de uma síndrome de sensibilidade nas vísceras, e várias outras, que
tinham ataques de pânico acompanhados de problemas corporais como pressão
alta ou batimentos cardíacos irregulares.
A última pessoa a falar foi "Leslie". Leslie era uma morena atraente,
bem-apessoada, entrando na casa dos quarenta; viúva, trabalhava num banco
para criar, sozinha, duas filhas pequenas. Ela olhava para as pessoas em círculo,
enquanto resumia, com voz suave mas firme, os motivos de sua ida ao programa:
"Meu marido faleceu há quase três anos. Tinha apenas trinta e nove anos, mas
sofreu um derrame. Ele ficou em Spaulding [hospital de reabilitação em Boston]
por vários meses antes de voltar para casa. Estava com paralisia parcial do lado
direito e impossibilitado de trabalhar. Mas, vejam bem, ele tinha uma excelente
atitude. Sentia-se feliz por estar vivo." Leslie parou para enxugar as lágrimas e
limpar a garganta antes de prosseguir. "Certa noite, logo depois do jantar, ele
teve um segundo ataque e morreu, muito sereno. E nos meus braços."
Leslie fez uma pausa para se recompor. "Eu não trabalhava desde que
nossas duas filhas, Cindy e Ellen, nasceram; mas, com a morte de Bob, consegui
um emprego no banco. Foi uma difícil adaptação, mas estávamos nos saindo
bem, até que, há cerca de um ano, descobri um caroço no seio direito. Era
maligno e havia três nódulos linfáticos positivos — não um número tão grande
que me fizesse perder as esperanças, mas também sei que ainda não estou fora
de perigo. Já passei por cirurgia, radioterapia e quimioterapia, e agora quero
certificar-me de que estou fazendo tudo o que está ao meu alcance para me
recuperar. Quero viver para ver as minhas filhas crescidas."
Caiu um pesado silêncio no grupo enquanto as pessoas absorviam a história
de Leslie." Janet", a mulher cujas enxaquecas eram tão terríveis, falou primeiro.
Ao dirigir-se a Leslie, tinha lágrimas nos olhos. "Minhas dores de cabeça são
terríveis e tornam a vida imprevisível, mas, ao ouvir você, percebi quanto tenho
de agradecer. Estou assombrada com a sua coragem."
Eu também estava. Quando fiz a primeira entrevista com Leslie para decidir
juntas se um programa mente/corpo era apropriado às suas necessidades, fiz-lhe
a pergunta que costumo fazer a pacientes com doenças potencialmente graves.
" Embora, na maioria das vezes, não haja como saber por que adoecemos, quase
todos têm algum tipo de teoria a respeito. E você?"
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Leslie sorriu: "Você quer dizer 'por que eu'?" Assenti e ela prosseguiu.
" No início, eu pensei isso, mas depois perguntei por que não eu? Como podemos
saber de fato as causas dos acontecimentos? Por que há bêbados molestadores
de crianças que vivem até os oitenta e cinco, enquanto há tantas crianças que
morrem? Minha mãe costumava dizer que as coisas aconteciam com as pessoas
porque elas estavam sendo castigadas pelos seus pecados, mas basta olhar ao
redor para ver como essa teoria é estúpida! A verdade é que não sei por que Bob
morreu e nem por que contraí câncer, Joan. Tudo o que sei com certeza, no fundo
do coração, é que de alguma maneira, de uma forma que posso nunca vir a
entender nesta vida, em última análise, o objetivo dessas coisas é bom." Pude
sentir na voz de Leslie a sinceridade que me indicou que ela estava falando a
partir da sua verdade mais recôndita, e não de alguma tímida racionalização. Foi
o que eu lhe disse.
"Com certeza, não sou nenhuma Poliana fatalista. Estou assustada", con-
tinuou ela. "Há dias em que me sacudo ao despertar, pensando que estou em
algum terrível pesadelo." Leslie fez uma pausa e suspirou. " Quando me dou
conta, estou acordada e tenho de me ajustar outra vez a esse maldito câncer, à
minha solidão. Fico imaginando se terei um período de vida normal ou se vou
morrer jovem. E, se viver, fico imaginando que vida terei, se me apaixonarei
outra vez, se algum homem vai querer casar comigo. E também penso o que será
das crianças se adoeço ou morro. E então começo a pensar: 'Bem, é isso que
está acontecendo. Foi o papel que me deram para representar. Vou fazer isso
com toda a consciência e dignidade que puder.'"
"Jay", um paciente que conheci mais ou menos na época em que tive
contato com Leslie, tinha uma atitude radicalmente distinta. Artista muito
bem-sucedido de Nova York, Jay era um homossexual de trinta e poucos anos
cujo trabalho obtivera aclamação nacional. Depois de descobrir que tinha AIDS,
uns seis meses antes de nos encontrarmos, ele perdera algum peso, mas ainda
trabalhava e se sentia razoavelmente bem. Tinha um ótimó sistema de apoio nos
amigos, mas seu estado emocional corria perigo devido às suas idéias acerca do
motivo de ter sido contaminado pela AIDS.
Quando fez a si mesmo a pergunta "por que eu?", Jay respondeu com base
em antigas crenças religiosas, jamais questionadas, vindas da infância. Embora
não fosse religioso na idade adulta, Jay tinha sido criado numa família batista.
No seu desespero diante da doença e no seu pesar por amigos contaminados ou
que tinham morrido por causa da AIDS, Jay regrediu a um estado de desamparo
infantil. Sua velhas crenças religiosas ressurgiram com força redobrada. Ele
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deduziu que a Bíblia, afinal, tinha razão ao condenar os homossexuais e que, se
ela estava certa quanto a isso, a conclusão era de que ele iria para o inferno em
função de suas práticas sexuais.
A culpa atormentava Jay dia e noite. Seu comportamento assemelhava-se
ao de um pregador fundamentalista itinerante que lançasse culpa, medo, fogo e
enxofre sobre si mesmo. Sugeri que ele buscasse os conselhos de um ministro
treinado em aconselhamento pastoral que o ajudasse a separar seu medo e
pessimismo intrínsecos — resultados de sua criação num lar excessivamente
rigoroso — do seu temor a Deus. Como expus em Um Livro para Curar o
Coração e a Alma, a percepção de Deus como um ser amoroso e misericordioso,
em vez de punitivo e severo, tem um grande grau de correlação com a auto-es-
tima. Esta, por sua vez, tem que ver com a maneira como fomos tratados pelos
nossos pais. Se eles foram amorosos e se nós crescemos com uma sensação de
valor e de bondade com relação a nós mesmos, nós também vamos aceitar que
Deus é bom. Se os nossos pais foram muito rigorosos e autoritários conosco e
se crescemos com uma opinião ruim a nosso próprio respeito, é provável que
consideremos Deus um ser vingativo como o foram nossos pais.
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até então aceitara. Suas crenças anteriores davam todo o poder a Deus. Suas
novas crenças davam todo o poder a ele mesmo. Ele deixou a sessão zangado
por eu não ter endossado seu novo ponto de vista. Como meu principal interesse
é a interseção entre psicologia, medicina e espiritualidade — e como defendo o
uso construtivo da meditação, da afirmação e da participação de cada um na
própria cura —, ele julgou que eu concordaria com a sua filosofia da "Nova
Era", rótulo a que tenho horror porque vem sendo empregado com tão pouca
precisão que acaba por ser totalmente sem sentido.
Embora, com certeza, participemos da criação dos acontecimentos da nossa
vida, a idéia de que somos cem por cento responsáveis pela criação da nossa
realidade é uma noção psicológica e espiritualmente empobrecida. Segundo a
minha experiência, quando os pacientes que têm essa crença não conseguem
curar a si mesmos, eles muitas vezes se sentem fracassados ou passam por uma
dolorosa crise de fé. Embora possam constituir-se em importantes convites a
uma cura mais profunda quando há tempo para seguir as suas ramificações, essas
crises também podem ser um sério golpe para pessoas que enfrentam doenças
mortais e não dispõem de tempo nem de energia para ficar juntando os pedaços
dc uma fé estilhaçada.
De quando em vez, Jay ligava de Nova York e fazia um relato de seus
progressos. Os sintomas da AIDS tinham piorado e, mesmo com a ajuda de um
terapeuta, seu estado psicológico também piorou. Ele se sentia incapaz e sem
valor porque não fora capaz de se curar fisicamente nem de encontrar a paz de
espírito. Quando ficou fraco a ponto de perceber que a morte era iminente, Jay
deixou de lado a fé em poder criar a sua própria realidade e voltou à crença
original de que a doença era um castigo.
Tal como Leslie e Jay, a maioria de nós já enfrentou, ou vai enfrentar, crises
existenciais. Quando isso acontece, nossas crenças essenciais ao nosso amor-
próprio e acerca do Universo — os roteiros por vezes apenas semiconscientes a
partir dos quais vivemos — determinam a maneira como vamos encarar as noites
escuras do espírito. Será que essas crises nos levarão para mais perto de Casa
ou nos conduzirão ao deserto do medo e do isolamento? Mais do que qualquer
outra interrogação, a questão básica, "por que eu?", coloca-nos frente a frente
com aquilo em que acreditamos.
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espírito e de descoberta do seu caminho de volta a Deus. Para todos os que já
leram o Antigo Testamento, a história de Jó é, sem dúvida, o arquétipo do "por
que eu?" Ela pergunta por que, se há alguma justiça no universo, acontecem
coisas ruins a pessoas boas. A história de Jó é um dos mais antigos relatos jamais
registrados. Acreditam os estudiosos que ela foi escrita entre 800 e 300 a.C.,
tendo como base uma versão sumeriana muito mais antiga da lenda que data
mais ou menos do ano 2000 a.C. A história de Jó refere-se a um homem justo
e, segundo a Bíblia, o mais estimado da Terra aos olhos de Deus. Esse homem,
subitamente, é acossado por um terrível sofrimento quando Satanás desafia Deus
a pôr à prova a sua lealdade. Deus providencia a morte dos dez filhos de Jó, o
massacre dos seus grandes rebanhos e, por fim, o surgimento de dolorosas e
repulsivas chagas. Jó senta-se com três amigos durante uma semana, debatendo,
sem resultado, a questão de por que coisas ruins acontecem com pessoas boas.
Tal como ocorre com a maioria das histórias bíblicas, a resposta não é imedia-
tamente óbvia: cabe ao leitor extrair-lhe o ensinamento. Trata-se de um processo
de grande valor, visto nos levar a pensar.
Depois de anos de reflexão sobre a história de Jó, creio que a parábola
torna-se mais clara não em termos da pergunta " Por que acontecem coisas ruins
com pessoas boas?", mas sim em termos da pergunta. " As provações a que Jó
é submetido aprofundam a sua compreensão da natureza de Deus?" Tanto de
acordo com a Bíblia do Rei James como a da Versão Padrão Revista (os excertos
a seguir foram retirados desta última), Jó nada aprende com o seu sofrimento, a
não ser que deve arrepender-se até mesmo das queixas que faz. Esse homem
ponderado e justo termina prostrado de humilhação diante do poder terrível
de um Deus tirânico. Contudo, de acordo com uma tradução mais meticulosa
feita pelo estudioso do hebraico e poeta Stephen Mitchell, Jó teve, na
verdade, uma prodigiosa e libertadora revelação acerca da verdadeira natu-
reza do divino.
Havia um homem na terra de Uz cujo nome era Jó; e era homem íntegro e reto, que
temia a Deus e se desviava do mal. Nasceram-lhe sete filhos e três filhas. Possuía
ele sete mil ovelhas, três mil camelos, quinhentas juntas de bois e quinhentas
jumentas, tendo ainda muita gente a seu serviço, de modo que esse homem era o
maior de todos os do Oriente.
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O prólogo do narrador do Antigo Testamento passa, em seguida, ao encon-
tro anual de Deus com os anjos, conclave a que Satanás também está presente.
No Antigo Testamento, o vocábulo " Satanás" só é usado raramente (quatro
vezes, para ser exata) para designar um ser divino com intenção malévola. O
pastor episcopal e analista junguiano John Sanford, em seu excelente livro Evil:
The Shadow Side of Reality, aborda o uso mais comum de " satanás", nome que
significa "adversário" ou "acusador"; como verbo, ele tem o sentido de
"perseguir impedindo o livre movimento para a frente". No sentido secular,
todo tipo de dor, enfermidade ou perda é um satanás que temos de enfrentar a
fim de descobrir nossa integralidade, nossa autenticidade de seres humanos
criativos e conscientes de si.
Sanford assinala que, no Antigo Testamento, o próprio Deus, às vezes,
assume o papel de satanás, realizando o necessário trabalho de obstrução que
nos faz parar e considerar a vida sob uma nova óptica. Na história de Jó, Satanás
e Deus são dois seres que mantêm boas relações, que estão conluiados entre si.
O "Anjo Acusador", como Stephen Mitchell traduz "Satanás" do hebraico,
informa a Deus que tem estado a "rodear a Terra", verificando o que se passa.
Deus logo quer saber se o Acusador viu seu maravilhoso servo Jó, porque
" ninguém há na terra semelhante a ele, homem íntegro e reto, que teme a Deus
e se desvia do mal".
Satanás então faz jus à tradução literal do seu nome. Ele pondera sobre uma
importante questão psicoespiritual, na verdade, a mais relevante questão que
existe a respeito de um ser humano: é Jó de fato um homem santo, que conhece
a plenitude de si mesmo e, portanto, conhece a Deus? Ou é apenas uma pessoa
respeitável, que investe em parecer santo, entoando louvores a Deus somente
porque sua vida vai indo de vento em popa? Satanás não está sugerindo que Jó
possa ser mau, mas, antes, que ele talvez seja inconsciente.
Satanás faz a mesma pergunta que um psicólogo analítico proporia. Estará
Jó usando seus talentos, expressando seus sentimentos e levando uma vida
autêntica, ou ele simplesmente se identifica com um conceito idealizado do que
ele pensa ser uma pessoa boa? No desejo impensado de ser "bons", corremos
o risco de negar todas as partes de nós mesmos — incluindo emoções e talentos
saudáveis — que já foram objeto do desagrado dos nossos pais, dos nossos
professores, do clero ou da sociedade. Nossa peculiaridade vai sendo aos poucos
relegada ao inconsciente, aquilo que C.G. Jung chamou de a sombra; e, no curso
do nosso crescimento, vamos nos identificando progressivamente com a más-
cara ou "falso eu" que envergamos, para obter a aprovação dos outros. (Esse
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processo da perda de nós mesmos é discutido de maneira profunda no meu
segundo livro, Um Livro para Curar o Coração e a Alma.)
Assim, a acusação de Satanás com relação a Jó põe a autenticidade deste
— sua integridade — à prova, tal como a vida de vez em quando faz conosco.
Satanás pergunta a Deus se Jó não teria boas razões para cantar seus louvores.
Não o tens protegido de todo lado a ele e à sua casa, e a tudo quanto tem? Tens
abençoado a obra de suas mãos, e seus bens se multiplicam na terra. Mas estende
agora a tua mão, e toca-lhe em tudo quanto tem, e ele blasfemará de ti na tua face!
Deus replica: "Eis que tudo o que ele tem está no teu poder; somente não
estendas contra ele a tua mão." Nesse mesmo dia, Satanás faz que os rebanhos
de Jó sejam roubados e queimados, chacina muitos dos seus servos e causa a
morte "acidental" dos dez filhos dele. Jó é o próprio modelo de paciência e
tolerância diante desse enorme sofrimento. Seu único comentário é: "Nu saído
ventre de minha mãe e nu me tornarei para lá; o Senhor deu e o Senhor tirou;
bendito seja o nome do Senhor." A atitude inicial de aceitação por parte de Jó
deu origem à expressão popular "ter a paciência de Jó". Expressão errônea,
quando se lê o resto da parábola.
Deus não cabe em si de satisfação diante da resposta humilde de Jó. Ele diz
a Satanás: "Ele ainda mantém a sua integridade [que Mitchell traduz por
inocência], embora me incitasses contra ele, para o destruir sem motivo."
Mas Satanás não se impressiona nem um pouco com essa demonstração
inicial de fé por parte de Jó. Como o faria um praticante bem treinado da
psicologia profunda, ele questiona se Jó age a partir da sua integridade — da sua
integralidade — ou a partir de uma falsa máscara de bondade. Ele insiste nisso
e diz a Deus:
Pele por pele! Tudo quanto o homem tem ele dará pela sua vida. Mas estende tua
mão agora e toca-lhe nos ossos e na carne, e ele blasfemará de ti na tua face. E
Deus disse a Satanás: "Eis que ele está sob o teu poder; somente poupa-lhe a vida."
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Jó, no entanto, se apega à sua inocência por sete dias e sete noites, enquanto
Irês amigos sentam-se em silêncio para consolá-lo por suas terríveis perdas. Por
fim, ele exclama, angustiado:
Pereça o dia em que nasci, e a noite em que se disse: Foi concebido um homem...
As estrelas da madrugada se lhe escureçam... porque não fechou as portas do ventre
de minha mãe, nem escondeu dos meus olhos a aflição... Por que não morri ao
nascer?... Por que me receberam os joelhos? E por que os seios, para que eu
mamasse?... Porque aquilo que temo me sobrevém, e o que receio me acontece.
Pare por um momento e deixe que o poder dessas palavras penetre em você.
Você já se sentiu assim? Se o lamento poético de Jó despertou no seu ser a
lembrança de uma noite escura pela qual você passou, de onde você acha que
veio o seu sofrimento? Você já perguntou e respondeu ao " por que eu?" Talvez
você queira fazer uns minutos de pausa para refletir por escrito a respeito da sua
experiência. Voltaremos juntos à parábola de Jó mais adiante, neste mesmo
capítulo, depois de termos a oportunidade de situar, tanto psicológica como
religiosamente, a questão do por que acontecem coisas ruins com pessoas boas.
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pessimistas, tinha a tendência a ficar cronicamente ansioso, deprimido e com
sentimento de culpa, visto sentir-se incapaz de evitar a ocorrência de coisas
ruins.
Se o pessimista psicológico como Jay bate no peito e se lamenta, dizendo:
" Não tenho nenhum valor, a vida está perdida e é tudo minha maldita culpa",
seu pessimismo religioso dá um passo adiante e diz: "E Deus vai me castigar
por isso. Estou condenado." 2
As religiões que nos levam a experiências de inter-relação e de participação
profunda uns com os outros e com o divino são pontes para o espiritual. Elas
nos dirigem para o centro permanente — o Eu — em que a segurança, a
comunhão, a reverência, a gratidão, a compaixão, o júbilo e a sabedoria são
questões mais de experiências do que de dogma. O núcleo de todas as grandes
tradições religiosas é essencialmente o mesmo: vincular-nos de maneira profun-
da e grata com a vida ao amarmos a nós mesmos, ao próximo e a Deus. Jesus
resumia os ensinamentos do cristianismo como sendo idênticos ao ensinamento
primordial do judaísmo farisaico de sua época: " Amarás ao Senhor teu Deus de
todo o coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento... Amarás o teu
próximo como a ti mesmo."
Contudo, quando se usa o medo para inculcar o amor, surge um problema
nos ensinamentos religiosos. Essa tática constitui uma impossibilidade lógica
que desafia o senso comum e corrompe o sentido do ser amoroso. Voltando à
nossa discussão de Deus como pai, um genitor que se empenha em criticar e
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ameaçar o filho a fim de fazê-lo educado, amoroso e respeitoso, de modo geral,
termina por torná-lo impotente, envergonhado e raivoso. A criança pode enver-
gar uma máscara de polidez, de gentileza e de piedade, mas por trás dela é um
furioso vulcão de ressentimentos e de culpa por sentir-se assim. Se a nossa
psicologia secular chegou a se dar conta disso, é muito provável que Deus o
saiba desde sempre.
Reconsiderando a sua resposta à pergunta "por que eu?", você é um
pessimista psicológico como Jay, culpando-se implacavelmente a si mesmo
pelos problemas da sua vida, ou é um otimista como Leslie, que acha que os
problemas da vida de cada um são parte do seu crescimento psicológico e
espiritual? Você é um pessimista religioso ou uma otimista espiritual? A teoria
pessimista de Jay era a de que a sua doença provava a sua condição de pecador
fadado à punição eterna. A teoria de Leslie sobre a sua doença é muito mais
benigna. Sua força reside na admissão de que "não sei por que aconteceram
essas coisas ruins", aliada à sua fé de que a dor pela qual passa, um dia, será
revelada como parte de uma totalidadç mais ampla.
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vivas que pouco me importa saber onde o indivíduo começa e onde termina."
Prossegue Dossey:
Para Einstein, a noção de Jay de que somos cem por cento responsáveis pela
criação da nossa própria realidade seria considerada simplista demais. Quem é
o " eu" separado do " nós" que tem a soberba de pensar que age isoladamente?
Pessoas desconhecidas do mundo inteiro escreviam para Einstein acerca de suas
esperanças e sonhos, de seus sofrimentos e temores. Em dado momento, per-
guntaram-lhe qual era, na sua opinião, a pergunta mais importante que o ser
humano precisava fazer. Ele respondeu: "O universo é ou não um lugar
aprazível?" E, com efeito, a resposta que dermos a essa questão é a pedra angular
em que vão se apoiar de maneira inevitável muitos dos nossos valores e crenças.
Se acreditarmos que o universo é hostil e que a nossa alma está em perigo, a paz
será, na melhor das hipóteses, ilusória.
Qual a sua resposta para a pergunta acima? O universo é ou não um lugar
aprazível?" Acalentemos a esperança de que, voltando mais uma vez a atenção
para os dissabores de Jó, você possa pensar acerca dessa questão fundamental e
conhecer um pouco mais suas crenças mais essenciais.
42
considerado um homem reto, mas foi atingido de modo implacável pelas
aflições. Por quê? Quais as implicações do seu sofrimento no sistema de crenças
desses amigos?
No comentário que acompanha a sua tradução do Livro de Jó, Stephen
Mitchell assinala que, se Jó, mesmo sendo um homem justo, está sofrendo, os
amigos só podem chegar a duas conclusões: Ou Deus é injusto (e o universo é,
portanto, um lugar hostil) ou então o sofrimento nada tem que ver com o fato
de a pessoa ter ou não pecado (nesse caso o universo também é potencialmente
um lugar hostil, visto que tudo pode acontecer a qualquer pessoa). A explicação
mais comum entre os amigos, aliás, a única em que o seu pensamento limitado
vê segurança, é a de que Jó é um pecador que, por esse motivo, está recebendo
um castigo. Como o assinala a teóloga Elaine Pagels em seu livro Adam, Eve
and the Serpent, e como o demonstrou Jay em sua reação à AIDS, a maioria das
pessoas prefere a culpa à impotência, porque ela dá uma sensação de poder.
Afinal, é por culpa sua que uma carga ruim está acontecendo; por extensão, se
você for bom de verdade, bom mesmo, coisas ruins não vão acontecer.
Como a crença de que Deus é justo e de que as pessoas sofrem apenas
quando pecam é a explicação que suaviza o abandono, os três amigos de Jó se
revezam em admoestá-lo e tentam persuadi-lo a confessar seus pecados. Elifaz,
o temanita, fala a Jó da severidade de Deus, dainevitabilidade do pecado humano
e da falta intrínseca de valor na natureza humana. Mais uma vez, as imagens do
poeta do Velho Testamento são vigorosas e vividas:" Pode o homem mortal ser
justo diante de Deus? Pode o homem ser puro diante do seu criador? Eis que
Deus não confia nem nos seus servos, e até a seus anjos atribui erros." Bildad,
o suíta, continua o discurso sobre o inevitável castigo decorrente do pecado:" Na
verdade, a luz do ímpio se apagará... Terrores o amedrontam de todos os lados,
e de perto lhe perseguem os pés... Por baixo secam as suas raízes, e por cima
são cortados os seus ramos."
Jó, no entanto, não está passando por nada disso. Ele sabe que não pecou,
tendo por isso de enfrentar a insípida possibilidade de que não existe justiça com
base na retidão. "Embora eu seja justo, ele me provaria culpado... eis por que
digo: ele destrói o ímpio e o justo. Quando o desastre traz a morte súbita, ele
zomba da calamidade do inocente."
Então, para o assombro de Jó, Deus lhe fala desde um redemoinho, e
pergunta: " Quem é este que escurece o conselho com palavras de desconheci-
mento?... Onde estavas tu quando eu lançava os fundamentos da Terra?" O ego
de Jó começa a aflorar. Que hubris a de pensar que podemos conhecer o plano
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divino e, com a nossa visão limitada, que só enxerga " através de uma escura
cortina de fumaça", como disse o apóstolo Paulo, elaborar um plano a ser
obedecido por Deus!
Deus enumera todos os seus poderes e fala longamente tanto da majestade
como do terror da natureza. Jó fica literalmente sem fala, e ficamos a imaginar
que efeito esse espantoso encontro não deve ter produzido nele, a julgar pela
força de uns poucos versículos por ele enunciados em resposta a Deus. Seu
simples comentário "Por isso falei do que não entendia, coisas que para mim
eram demasiado maravilhosas, e que eu não conhecia" expressa muitíssimas
coisas sobre a impossibilidade de compreender o infinito com uma mente finita.
Suas últimas palavras aDeus nas traduções habituais da parábola são:" Com
os ouvidos eu ouvira falar de ti, mas agora te vêem os meus olhos. Por isso me
abomino, e me arrependo no pó e nas cinzas." Mitchell, em total contraste,
comenta que o verbo que tem sido traduzido por " abomino" na verdade significa
"rejeitar" ou "considerar de pouco valor". Além disso, o objeto do verbo não
é me. Mitchell sugere que uma interpretação mais fundada, sugerida pela
primeira vez numa antiga tradução siríaca, seria: "Por isso retiro (tudo o que
disse)." Quanto ao arrependimento no pó e nas cinzas, a interpretação dada por
Mitchell às últimas palavras de Jó têm que ver, na realidade, com o conforto na
sua condição de mortal.
" Com meus ouvidos eu ouvirafalar de ti; mas agora te vêem os meus olhos.
Por isso retiro tudo o que disse, confortado que estou pelo fato de ser pó" sugere
que o prodigioso novo entendimento de que Jó falou antes provocou uma
reformulação de suas idéias acerca de Deus. Os tradutores tradicionais, porém,
em vez de serem fiéis ao texto hebraico, traduziram as últimas palavras de Jó de
acordo com os preconceitos religiosamente pessimistas do cristianismo ortodoxo.
Essa perspectiva sustenta que a autodepreciação, o culpar-se e o envergonhar-se são
as respostas apropriadas para aplacar a ira do íntegro e irritadiço Jeová.
O rastejar em submissão diante do revoltante poder do Todo-Poderoso, uma
espécie de mentalidade do tipo "Sim, Chefe, farei qualquer coisa — mas me
perdoe", seria um anticlímax para o vigor dessa Primeira História poética.
Mitchell tem uma interpretação diferente:
Quando Jó diz: "com os meus ouvidos eu ouvira falar de ti; mas agora te vêem os
meus olhos", ele deixa de ser um servo, alguém que teme a Deus e evita o mal. Ele
já enfrentou o mal, já o encarou diretamente e, por meio dele, uma assombrosa
maravilha de amor... O conforto, o consolo de Jó, no final, é a sua condição de
mortal. O corpo físico é reconhecido como pó; o drama pessoal, como ilusão. É
como se o mundo que percebemos com os nossos sentidos, toda essa exuberante e
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terrível representação teatral, fosse a tênue superfície de uma bolha, e tudo o mais,
dentro e fora dela, fosse puro esplendor. Logo, tanto o sofrimento como o júbilo
são encarados como uma breve reflexão; e a morte, como um alfinete (pp. xxvii-
xxviii).
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CAPÍTULO DOIS
A Busca de Significado
A principal preocupação do homem não é obter prazer nem evitar a dor, mas
encontrar sentido em sua vida. Eis por que o homem está sempre pronto a sofrer,
com a condição, naturalmente, de que o seu sofrimento tenha um sentido.
Viktor Frankl
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família e, de certo modo, ao pensar em todas as perdas que sofremos na vida. A
campainha interrompeu o meu devaneio. Era o agente da Providência, a mão
anônima da coincidência, disfarçado de entregador da UPS.
Ele arremessou ao chão duas grandes caixas. Andrei percebeu imediata-
mente o que havia nelas. Eram exemplares do "Livro de Mat", compilado com
base nas páginas que os amigos e a família tinham escrito nos dias que se
seguiram à sua morte. Andrei estava demasiado ansioso para ir pegar uma faca
na cozinha; mas ele rompeu com as próprias mãos as fitas dos pacotes. A capa
colorida do exemplar de cima quase saltou da embalagem. Era um coração
ardente, desenhado por um dos amigos de Mat. Os rapazes tinham resolvido
qual ia ser a capa dois dias depois do acidente de Mat, na noite em que quase
cinqüenta deles se reuniram em nossa casa para escrever as páginas do livro.
Depois que a sua família tinha recebido essas páginas e adicionado as suas,
queríamos levar o livro a uma gráfica local para que cada pessoa que escrevera
uma página pudesse ter um exemplar do livro inteiro. O pai de Mat, no entanto,
é um artista. Ele se ofereceu para diagramar e imprimir o livro de modo mais
profissional. Eu estava curiosa pai a saber se ele havia dado um título à obra. E
ele havia escolhido um título. O título tratava, com muita simplicidade, do
motivo pelo qual acontecem coisas ruins. O título era: " O Amor é a Resposta."
" O amor é a resposta" é uma afirmação radical que pode parecer simplista,
sentimentalóide ou tola, bem como servir de nostálgico substituto do pesar.
Minha prática habitual em psicologia descartaria isso como "pensamento má-
gico" , fora de contato com a realidade. Mas o que é a realidade com a qual não
temos contato? Segundo o pensamento científico convencional, a realidade é o
que pode ser observado e mensurado de modo direto. Num mundo claramente
inseguro, em que garotos de dezessete anos morrem em acidentes de automóvel,
deixando seus entes queridos de coração partido, "o Amor é a resposta" parece
ilógico. Entretanto, de acordo com a experiência de mais de treze milhões de
americanos (os 5% que sobreviveram à morte clínica e voltaram para falar aos
outros da experiência de quase-morte), é a ciência que perdeu o contato com
uma realidade mais abrangente, em que o amor é, com efeito, o próprio tecido
da existência.
CONFIDÊNCIAS DA ETERNIDADE —
PROVA DE UMA REALIDADE MAIS AMPLA
Embora haja muitas visões de mundo que pretendem descrever a realidade
— científicas, psicológicas e religiosas —, falta-lhes impacto, a não ser que
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descrevam com precisão a experiência humana. Quando o jornalista Bill Moyers
perguntou ao mitólogo Joseph Campbell se ele era um homem de fé, Campbell
riu e disse que não precisava de fé porque tinha experiência. Embora as pessoas
sempre tenham tido experiências que desafiam as nossas crenças costumeiras
sobre a vida, até bem pouco tempo essas experiências ficavam fora da consciên-
cia dominante.
Como psicóloga clínica, ouvi dezenas de histórias que desafiam a teoria
científica e psicológica convencional. Em Um Livro para Curar o Coração e a
Alma, reproduzi vários relatos de pacientes, de colegas e amigos que tiveram
visões, experiências de quase-morte e encontros com uma luz radiante por meio
da qual apreenderam níveis superiores de sentido, encontraram a cura física e/ou
psicológica e passaram a crer, tal como o pai de Mat, que, apesar das tragédias
e provações da vida, estavam seguros num universo que é, em última análise,
amoroso.
" David", por exemplo, descobrira há pouco tempo que era produto de um
incesto. Lembranças chocantes e dolorosas da traição do seu pai, que vieram à
tona pela primeira vez quando ele contava quarenta e um anos, fizeram com que
ele tivesse dificuldade para levar uma vida normal, algo muito comum quando
traumas reprimidos vêm à luz. O incomum com relação a David era o fato de
ele ter tomado consciência de uma presença amorosa e protetora — de acordo
com suas palavras," angélica" — que lhe deu informações a respeito da infância
do seu pai que o ajudaram a explicar a razão por que ele se tornou um adulto
inconveniente. David sentia-se seguro e protegido por essa presença invisível.
A sensação de segurança — e a firme crença num universo amoroso que
desperta assim — fez com que David passasse muito rapidamente pelos estágios
que o recuperaram do incesto. Num espaço de tempo relativamente curto, ele
pôde chorar a própria infância, ter acesso à raiva contra o pai, compreender que
a origem do abuso, por sua vez, estava na dor da infância do pai e perdoar tanto
ao pai como a si mesmo. Ele também chegou a um acordo quanto ao fato de o
pai não ter condições de assumir a responsabilidade pelas suas ações, e que era
melhor não voltar a vê-lo, ao menos num futuro previsível.
Todavia, quando David tentou falar com o seu terapeuta acerca da presença
angélica, ele teve a sua experiência descartada como "pensamento mágico", e
sabiamente resolveu deixar esse aspecto de cura fora da terapia. A ciência
declarou que essas experiências são impossíveis, e apsicologia tentou relegá-las
ao ostracismo como episódios de doença mental. Como ironizou Lily Tomlin
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certa feita: "Quando falamos com Deus dizem que estamos rezando; quando
Deus fala conosco, consideram-nos esquizofrênicos!"
Dados obtidos por estudos realizados pela National Social Survey, sediada
na Universidade de Chicago, indicam o oposto. Pessoas que têm experiências
diretas do sagrado obtêm os escores mais elevados nas escalas de saúde mental.
As experiências visionárias não são o território de doentes mentais nem de
estranhos fanáticos desinformados. Além disso, elas não são raras: 35% dos
americanos já tiveram uma visão — um parente morto, um anjo, uma aparição
de luz, uma cena completa de outro nível de realidade. Temendo expor-se ao
ridículo, a maioria das pessoas conserva para si mesmas essas experiências, fato
que começa a mudar à medida que deixamos o nosso misticismo sair do
esconderijo.
Hoje, a opinião pública aceita essas experiências com bem mais receptivi-
dade do que meus colegas psicólogos e cientistas. Como as visões e vozes
também podem ser sintomas de psicose, distúrbio em que a pessoa não consegue
distinguir a realidade concreta das alucinações, há certa razão para cautela.
Contudo, as experiências visionárias são bem diferentes das alucinações psicó-
ticas. Embora essa enfermidade, em geral, leve à perda de contato com esta
realidade (incapacidade de dizer o que é real e o que é imaginário) e ao
comportamento disfuncional, as visões transcendentes produzem uma amplia-
ção da apreciação desta realidade, bem como a um comportamento mais equi-
librado e saudável.
A ciência contemporânea nega as visões, os anjos, as experiências de
quase-morte e a observação essencial dos seres de todas as culturas de que a
" mente" ou consciência parece existir além dos limites localizados do cérebro.
Saber quem está do outro lado da linha quando o telefone toca, um impulso de
se virar no carro por sentir que alguém num carro atrás de você o observa ou
sonhos precognitivos são ocorrências comuns que desafiam a localização da
mente no cérebro e sugerem que ela deve estender-se no espaço. O crescente
interesse popular por experiências daquilo que o doutor Larry Dossey denomina
"mente não-local" tem levado membros das comunidades científica e psicoló-
gica a questionar as suas crenças mais valorizadas.
Durante experiências visionárias, pelo que relatam as pessoas, entra-se em
contato com uma sabedoria que transcende a nossa percepção comum da vida e
que vê sentido no mundo aparentemente ilógico em que vivemos. Depois dessas
ocorrências, as pessoas em geral ficam com uma permanente sensação de amor,
de segurança e de fé na amabilidade suprema do universo. David, por exemplo,
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não somente ficou curado da sua experiência de incesto, mas chegou até mesmo
a encará-la como um passo desagradável mas necessário no desenvolvimento
do seu propósito de vida, como um terapeuta que mantém estreita ligação com
a sabedoria e a orientação do mundo " invisível".
Raymond Moody é um médico que tem estudado seriamente este universo
e os guias benevolentes, os anjos ou seres de luz a que tantas pessoas se referem
em conversas com ele como parte de experiências de quase-morte. Em The Light
Beyond, Moody fala de encontros marcantes com esses seres, relatados por
pessoas de diferentes crenças — cientistas, psicólogos, cristãos, judeus, ateus e
outros — depois de se recuperarem da morte clínica. Assim que a pessoa
percorre o túnel associado de modo tão freqüente com essas experiências, ela
depara com seres de luz que " apresentam uma bela e intensa luminescência que
parece permear tudo a ponto de deixar a pessoa plena de amor".
Depois de contatos com diferentes seres de luz que atuam como guias, quem
passa por experiências de quase-morte costuma encontrar o que Moody deno-
mina o Ser Supremo de Luz. A descrição dessa entidade varia segundo a
orientação religiosa da pessoa. A impressão que se tem é que, até certo ponto,
chegamos a ter experiência de Deus, passando pelo filtro das nossas próprias
crenças. Alguns descrevem esse Ser Supremo de Luz como Jesus, como um
Deus, Pai de amor e compaixão consumados. Outros são tomados de reverente
assombro pela santidade desse Ser Supremo, mas não lhe atribuem nenhuma
identidade cultural ou religiosa.
Quando faço palestras sobre experiências de quase-morte, as pessoas cos-
tumam me procurar quando termino para partilhar suas próprias experiências ou
para me pôr em contato com pessoas que as tiveram. Um dos mais fascinantes
relatos que já chegou ao meu conhecimento foi o de Donna J. Elsten, que fez
detalhadas anotações a respeito de duas experiências de quase-morte que ela
teve aos trinta anos, ambas ocorridas durante paradas cardíacas que ela sofreu
no curso de uma cirurgia. Ela generosamente colocou à nossa disposição as
anotações que escrevera a respeito.
Em sua segunda experiência de quase-morte, Donna deixou o corpo, olhou
de cima a cena na mesa de operação, ouvindo o corpo médico gritar que o caso
era considerado "perdido", enquanto ela flutuava para dentro de " uma imensa
e brilhante luz branca". Em seguida, ela penetrou num túnel, que descreve com
riqueza de detalhes, sentindo-se em paz, mais calma e mais amorosa ao subir
por ele. Ela observa:
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Estou flutuando com grande lentidão. Amo, amo, amo. Amo a mim mesma. Estou
cheia de amor. Sinto a afeição num nível incomensurável. Essa afeição e esse amor
me são enviados e estão vindo de mim para mim e ao mesmo tempo estão em mim.
A afeição que sinto em mim é por todas as coisas, e não somente por mim mesma.
Eu compreendo isso... Tenho a mais profunda sensação de que sou aceita. Sou
amada. É lindo aqui. E há paz. É bem tranqüilo... O peso da vida me é retirado dos
ombros.
Sei que é Deus. Enquanto ficamos face a face, nada é dito. Deus faz o gesto —
estende Sua mão... O toque é um vínculo marcado por uma intensa ligação, um
incomensurável vínculo emocional e intelectual... Vejo-me dotada de uma indes-
critível capacidade de adquirir conhecimento e compreender as coisas. Essa capa-
cidade vai além de todas as capacidades terrenas. Dou-me instantaneamente conta
do Seu poder. Ele é a Fonte de todas as coisas... E um Deus verdadeiramente
compassivo... Ele pode perdoar a todos por tudo e Ele o faz. Deus me diz
telepaticamente por que Ele é tão compreensivo. Ele perdoa porque os homens não
sabem fazer nada melhor.
Esse olhar rápido de Donna para dentro de uma realidade bem ampla
continua a se desenrolar como se ela vivenciasse a eternidade:
Aqui onde está a luz o tempo não passa. O tempo pára. O tempo não existe. Vivencio
a eternidade. Essa existência interminável é inconcebível na Terra. Existência sem
fim. Nossa vida na Terra é como o clarão de um relâmpago. Descemos e, num átimo,
a nossa vida terrena se acaba. E tão curta a nossa permanência na Terra! Um estalar
de dedos é amedidado tempo que nela passamos. Deixei de ser prisioneira da morte.
Aqui não há morte. A morte não existe. Não tenho medo da morte. De algum modo,
por meio desta alma, vejo os milagres da vida. Percebo como a vida é preciosa.
Como ela deve ser enaltecida. Eu amo a vida. Aprecio toda vida. Todas as coisas.
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quase-morte. Tal como os nativos da América, as pessoas que passaram por isso
vivenciam a sensação de que somos parte da Terra e a Terra parte de nós. Não
podemos ferir nenhuma coisa viva sem nos ferir a nós mesmos, nem podemos
nutrir ninguém ou nada sem ao mesmo tempo nutrir o nosso próprio ser.
A interligação emocional da nossa vida fica particularmente clara graças ao
estudo das vivências de pessoas que passam por uma revisão de vida como parte
de sua experiência de quase-morte. De acordo com pesquisas coordenadas por
George Gallup, Jr., 32% das pessoas que têm experiências de quase-morte
relatam uma revisão da vida. Tal como Donna, essas pessoas têm contato com
um Ser Supremo de Luz totalmente amoroso e compassivo. Perante essa
presença divina, tais pessoas vêem diante de si um completo panorama de sua
vida, como se os acontecimentos estivessem ocorrendo simultaneamente.
No caso de alguma ação causar dor, elas sentem essa dor. No caso de difundir
amor, elas sentem esse amor. Com a ajuda do Ser Supremo de Luz, elas conseguem
pôr os acontecimentos da vida em perspectiva. Telepaticamente, elas compreen-
dem o sentido da experiência por que passam e se dão conta do grau de amor que
há nelas mesmas — o coroamento de urna vida bem vivida. Quando volta ao corpo,
a maioria esmagadora dessas pessoas passa a acreditar que o mais importante
na vida é o amor. Para grande parte delas, a segunda coisa mais importante é o
conhecimento. O amor e o conhecimento, dizem-nos elas, são as duas únicas
coisas que levamos conosco ao morrer.
Voltar ao corpo físico depois de uma experiência de quase-morte costuma
ser uma opção feita com relutância, pois exige a desistência temporária do estado
de amor perfeito e o esquecimento da sabedoria transcendente que nos fazem
perceber o sentido das inevitáveis agruras que suportamos no corpo físico. Em
minhas entrevistas com sobreviventes da morte clínica perguntei por que prefe-
riram retornar; a resposta quase sempre se refere a dar continuidade a relações
de amor específicas com outras pessoas — muitas vezes crianças de quem
desejam cuidar — ou a aprender mais sobre o amor em geral.
Uma mulher relatou ter perguntado a um dos seus guias na revisão de vida
o que ela ganharia se preferisse voltar — "Por que eu haveria de querer viver
num corpo? A Terra é um lugar cheio de dor, sofrimento, perda e desilusão.
Por que alguém iria preferir estar lá quando pode ficar aqui?" O Ser de Luz
explicou que a vida na Terra, precisamente por causa do sofrimento, é a melhor
oportunidade para aprender sobre o amor. Desse ponto de vista, o pai de Mat
Hitchcock escolheu um título bem adequado para o livro em homenagem à breve
vida do filho: O Amor é a Resposta.
53
CRENÇAS QUE LIMITAM A CAPACIDADE
DE CRESCER A PARTIR DA CRISE
Quando a tragédia, a doença ou o infortúnio acontecem, é da natureza
humana questionar os sistemas de crença. Embora seja saudável a longo prazo,
a curto prazo o questionamento pode ser extraordinariamente doloroso, levando
a uma "crise de fé" em que as crenças, antes confortadoras, vêm abaixo,
deixando-nos temporariamente com uma sensação de vulnerabilidade. Jay, o
paciente de AIDS que vocês conheceram no capítulo anterior, teve várias crises
de fé. Ele duvidou do agnosticismo em que acreditava antes do diagnóstico de
AIDS e, em compensação, passou a aceitar as crenças sobre fogo e enxofre, e
sobre um " Deus está me castigando" da sua infância. Quando essas concepções
passaram a ser mais assustadoras do que confortadoras, ele passou para o lado
da atitude aparentemente revigoradora da Nova Era, a de que "você cria toda a
sua realidade", e julgou poder melhorar apropria vida pela força do pensamento.
Quando esse sistema de crença ruiu, ele entrou em pânico.
A dificuldade de Jay em encontrar crescimento e sentido na vida com AIDS
decorreu do seu desejo de saber de modo absoluto e certo o que a AIDS significava.
Em outras palavras, ele parou na tentativa de entender se era ou não responsável
(traduza isso por "culpado") pela doença, em vez de fazer a pergunta mais
relevante formulada pelo mestre budista e terapeuta Stephen Levine: " O que
significa ser responsável perante a minha doença?"
O terapeuta especializado em problemas da família, John Bradshaw, define
responsável [responsible] como "respostável" [response able], capaz de dar
atenção e de responder aos acontecimentos da vida. Na minha experiência,
pessoas capazes de descobrir um sentido para sua moléstia ou tragédia concen-
tram-se no ser responsável perante a situação, usando-a como uma oportunidade
para alcançar mais liberdade e felicidade, em vez de buscar conhecimentos
teológicos para descobrir por que é que as coisas ruins acontecem.
O leitor deve se lembrar de que Leslie, a quem conheceu no capítulo
anterior, enfrentou a morte do marido e o seu próprio câncer com uma atitude
do tipo " não sei por que" baseada na premissa de que a nossa visão espiritual
é, na verdade, demasiado estreita para apreender realmente o sentido da tragédia,
embora acreditasse que um propósito amoroso viesse a se revelar em algum
momento futuro. Enquanto isso, sua intenção era ser responsável perante a sua
vida — buscar a recuperação da saúde por meio do cuidado do corpo e da mente,
concentrar-se em relações marcadas pelo amor e manter-se receptiva ao que o
54
futuro pudesse trazer, embora, de vez em quando, demonstrasse medo. A fé de
Leslie era flexível, receptiva e baseada no viver com amor. A de Jay era rígida,
fechada e concentrada em evitar o castigo e o medo.
Talvez você consiga relacionar isso com o exemplo seguinte, de fé rígida,
e com a maneira pela qual ela pode bloquear uma nova compreensão. Fiz, certa
feita, uma palestra no sul do Texas, bem no coração do Cinturão da Bíblia.* No
intervalo, um homem de rosto afogueado e expressão irritada aproximou-se de
mim. Apresentando-se como conselheiro cristão, ele me acusou de ser uma
irresponsável representante da "Nova Era". Tentei explicar-lhe que eu era mais
uma representante da "Velha Era" que tentava juntar as mais antigas tradições
de sabedoria —judaica, cristã, dos nativos da América, voltadas para a Deusa
e para o lado Leste — com o que aprendíamos agora em termos científicos e
psicológicos. Isso não o satisfez nem um pouco. Com os dentes rilhados e os
braços cruzados em desafio, ele se preparou para o ataque. "Diga-me apenas",
trovejou. "Você acredita na criação ou na evolução?"
Respondi que não via contradição entre evolução e criação. Para mim, o
auge da elegância é a criação por uma consciência superior de um mundo que
se mantém em expansão. Por que separar Deus da sua criação? (Agrada-me
pensar no aspecto criativo da divindade como um atributo feminino de um Todo
que, em última análise, está além das distinções de sexo.) Ao que parece, a minha
resposta não foi satisfatória, e ele se foi. Meu ponto de vista constituía uma
ameaça à sua crença de que o mundo inteiro fora literalmente criado em seis dias
do calendário.
Para esse conselheiro, a vida era uma parada, às vezes desagradável, na
viagem para uma eternidade num purgatório, num inferno ou num céu a que
apenas uns poucos bons cristãos chegariam. Ele se irritara em especial com a
minha observação de que, dentre os milhares de relatos de pessoas que tinham
tido uma experiência de quase-morte — incluindo criminosos condenados —,
eu só conhecia um caso para o qual tudo fora negativo. Todas as outras pessoas,
independentemente de suas crenças religiosas, falaram de um Deus amoroso,
benevolente e compassivo. Esses testemunhos ameaçavam o conselheiro porque
questionavam suas crenças sobre a punição eterna no Inferno.
O sistema de crenças do conselheiro — segundo o qual só cristãos tementes
a Deus conseguem a "salvação" — era bom exemplo do que o teólogo e
55
pesquisador doutor James Fowler denominou Fé do Estágio Dois — uma
teologia concreta e literal. Em Stages of Faith: The Psychology of Human
Development and the Questfor Meaning, Fowler esboça seis fases no desenvol-
vimento da fé que seguem em paralelo a nossa passagem de crianças para adultos
capazes e amorosos. É importante ter em mente que podemos ficar parados em
quaisquer dessas etapas. Mesmo que tenhamos trinta, quarenta, sessenta ou
oitenta anos, existe em nós uma criança interior que ainda procura o amor
incondicional e a proteção em relação à dor e à rejeição. Se não for tratada e
curada, essa criança recriará dores passadas, contaminando os nossos pensamen-
tos, os nossos sentimentos e os nossos relacionamentos de adultos. De acordo
com o modelo de Fowler, ela também contamina as nossas crenças sobre Deus.
OS ESTÁGIOS DA FÉ
Os seis estágios do desenvolvimento da fé esboçados por Fowler, um tanto
modificados pelo meu entendimento, são:
56
da doutrina da religião da infância) e de sintetizar o nosso crescente conheci-
mento do mundo de uma maneira que forneça uma base estável para futuras
experiências. Em outras palavras, neste estágio começamos a desenvolver a
capacidade de pensar com a nossa própria cabeça. Mas, muito embora tenhamos
uma ideologia pessoal, ainda não conseguimos nos distanciar para examiná-la
de maneira crítica. Ela ainda não foi submetida a prova. As várias perdas e
tragédias da vida são catalisadoras dessa prova que nos conduz à fase seguinte.
57
constitui a maior expressão de fé. Fowler cita Gandhi, Martin Luther King (nos
seus últimos anos de vida), Madre Teresa, Dag Hammarskjõld, Dietrich Bo-
nhoeffer, Abraham Heschel e Thomas Merton, como exemplos de pessoas com
fé universalizadora. O Estágio Seis não significa perfeição nem auto-realização.
Ele se refere, na verdade, nos termos de Fowler, a " concretizar agora o Reino",
e a tornar viável um mundo baseado na ligação, na compreensão, no uso sábio
de recursos e na amabilidade.
58
navio de grande porte. Embora os tenham visto chegar nele desde suas pequenas
canoas, quando o Beagle apareceu, literalmente não conseguiam vê-lo. O navio
era invisível para mentes que j ulgavam impossível uma embarcação tão grande.
Platão referiu-se, no seu eterno clássico, A República, à incapacidade das
pessoas no sentido de apreender algo situado fora dos seus sistemas de crença
costumeiros. Ele contou a história de um povo que vivia agrilhoado, conseguin-
do olhar apenas para a parede posterior de uma caverna escura. A única realidade
que esse povo conhecia era a sombra lançadapelas atividades do mundo exterior.
Por fim, uma pessoa ficou ousada o bastante para tentar escapar. Depois de
consegui-lo, ela voltou para libertar da prisão de suas ilusões o povo que se
achava na caverna falando-lhe de um mundo exterior miraculoso de luz, cor e
substância. Os outros não conseguiam acreditar nele. Pensaram que o compa-
nheiro havia enlouquecido, pois as novas informações não se encaixavam na sua
experiência anterior.
Minha mãe, até os últimos meses de sua vida, era como um dos habitantes
da caverna de Platão. Enquanto eu cresci questionando a vida a cada momento,
buscando o significado de tudo, ela reagia com toda a seriedade adotando o lema
"a ignorância é uma bênção". Quando eu, aos quinze anos, cheguei em casa
com impressos da Igreja Unitária, ela bateu o pé. Embora não fosse uma judia
fiel, ela achava que a busca religiosa só podia levar, na melhor das hipóteses, à
perturbação mental e, na pior, ao fanatismo. Do mesmo modo, ela achava que
questionar os sentimentos e experiências de vida também causava problemas.
Jogando no lixo os folhetos da Igrej a Unitária, ela emitiu uma ordem muito clara:
"Eu a proíbo de ler sobre qualquer religião ou de estudar psicologia. Digo isso
para o seu próprio bem!"
Como acabei por tornar-me cientista e psicóloga com grande interesse pela
religião e pela filosofia, posso dizer com muita sinceridade que devo tudo o que
sou à minha mãe. Ela era o estímulo perfeito para uma natureza rebelde, e sou-lhe
grata por isso. Ela representou com perfeição seu papel no drama da minha vida,
contribuindo com a dose exata de energia necessária à instigação da busca do
significado! Nos trinta anos que se passaram desde que ela me deu a ordem
proibindo-me o contato com questões psicoespirituais, a busca da compreensão
psicológica e religiosa se tornou popular, algo cujo valor até ela aceitou em seu
último ano de vida.
O fato que provocou o seu despertar foi notável. Mamãe era uma torcedora
entusiasta do beisebol. E, 1988, um jogador do Boston Red Sox, Wade Boggs,
foi o protagonista de um escândalo nacional quando um dos seus casos se tornou
o assunto predileto da imprensa sensacionalista. O Boston Globe publicou uma
59
entrevista com Boggs, concentrando-se no motivo de ele ser capaz de suportar
as acusações e as contínuas revelações sórdidas com semelhante equanimidade.
Boggs atribuiu sua tranqüilidade a um conselho de sua mãe, que havia falecido
pouco antes. De acordo com seu relato, o espírito de sua mãe aparecera numa
visão à sua irmã, cujas cordas vocais estavam paralisadas devido à esclerose
múltipla. A mãe lhe pediu para falar no funeral. Milagrosamente, a irmã
conseguiu falar. A mãe também apareceu a Boggs, dizendo-lhe que estava tudo
bem e que ele não precisava se preocupar.
Embora as conversas que mamãe e eu tínhamos acerca da continuidade do
espírito depois da morte corporal a deixassem irredutível em suas opiniões, essa
história a tocou. Isso provocou uma mudança fundamental em suas crenças, e
ela demonstrou grande paz e coragem quando enfrentou os últimos meses de
uma debilitante enfermidade. Quando de sua última passagem pelo hospital,
perto da morte, uma enfermeira segurou-lhe a mão na sala de emergência." Sra.
Zakon", disse ela com compaixão, "o fim da vida está próximo. A senhora já
se reconciliou? Já pensou na morte?" Minha mãe saiu do seu estupor como um
missionário: "Sei tudo sobre isso. Estou pronta. Você ouviu falar da mãe de
Wade Boggs?" Para completa surpresa da delicada enfermeira, sua paciente
ressuscitou das portas da morte para lhe contar a última versão da " boa nova"!
Os fatos que nos fazem sair da caverna de Platão variam de pessoa para
pessoa. Para a minha família, a morte do jovem Matthew Hitchcock foi um
desses fatos. O nosso filho Andrei reagiu a isso com uma tristeza profunda que
amadureceu numa crescente gratidão pela vida e uma forte convicção de que as
relações marcadas pelo amor são a coisa mais preciosa a que podemos aspirar.
Andrei tem plena consciência das dádivas que recebeu da amizade amorosa de
Mat, bem como através de sua morte. "Talvez os índios nativos da América
tenham razão", disse ele, comentando o falecimento de Mat, " quando dizem
que cada pessoa e cada animal nasce com um ciclo composto por um certo
número de dias. Algumas vidas são longas e outras curtas, mas todas são
completas."
Agrada-nos pensar que Mat viveu o pleno ciclo de sua vida em dezessete
anos, e acreditamos que sua vida continua não somente em outros planos como
neste mesmo. Caímos como pedregulhos no poço de cada outra alma, e a órbita
dos círculos que produzimos na água dá continuidade à sua expansão, formando
interseções com incontáveis outras almas. Os círculos de Mat continuarão a
disseminar sua alegria, sua humildade, sua criatividade, sua atenção e seu amor
por meio de todos os que tiveram o privilégio de conhecê-lo. Portanto, para que
o nosso sofrimento tenha algum sentido, ele tem de aumentar, em última análise,
a capacidade de toda a humanidade tanto de amar como de ser amada.
60
I
CAPÍTULO TRÊS
Joseph Campbell
61
do outro mundo cumpriam a sua função de levar o sangue nutriente vermelho e
cheio de oxigênio e de devolver o sangue azulado, desgastado, para ser purifi-
cado e recarregado de vida. Quando Justin se libertou das membranas e começou
a gritar, tendo completado sua própria transição do mundo aquoso e escuro do
ventre para a luz do mundo, o cordão parou de palpitar de vida e ele estava
entregue a si.
Duas novas pessoas nasciam naquele momento. Justin acabara de vir a este
mundo, e eu renascera, num dos muitos renascimentos que toda pessoa vivência
ao longo da vida. No doloroso período de transição, quando fui aparentemente
abandonada pelo universo a fim de percorrer sozinha a passagem desconhecida,
ocorrera uma notável transformação. A estudante de vinte e três anos, mais
menina que mulher, que só pensava em si, fora embora. Eu passara pelos
trabalhos de trazer uma criança ao mundo, e o medo e a dor que sofrerá
tinham, de algum modo, despertado no meu coração uma nova compaixão.
Eu jamais poderia voltar à minha existência pré-transição, pois nascera para
a maternidade e tinha agora de ser iniciada nos mistérios da feminilidade —
a nutrição da vida.
Em algumas culturas européias, há um velho costume de enterrar o cordão
umbilical com a semente de uma fruta. Se tudo correr bem, a sementinha incha
com a água no ventre escuro da terra, abre-se e morre. A semente morta faz
germinar um broto que, em cinco ou seis estações, vai se tornar uma árvore
frutífera. A árvore e os seus frutos são propriedade exclusiva da criança de
cujo cordão umbilical a semente se alimentou. Ao observar a árvore voltar
a morrer no inverno e renascer na primavera, a criança é iniciada no mistério
das estações e na metáfora dos nascimentos, mortes e transformações que
são parte, com direitos iguais, da vida. Qual a criança que não fica maravi-
lhada ao ver uma semente germinar, uma planta ou flor se formar e a vida
ressurgir outra vez?
Embora a metáfora seja poética e simples de entender, é difícil aplicá-la à
nossa própria vida, que é uma série de pequenas mortes, um abandono do antigo
para dar espaço ao nascimento de algo novo. Cada um desses abandonos envolve
uma transição — uma passagem —, do modo como as coisas eram para o modo
como vão ser. Embora saibamos o que passou e possamos, muitas vezes, sonhar
com o futuro, o período de passagem é uma espécie de terra de ninguém, um
limbo, um espaço que nem sempre se pode definir.
Algumas dessas passagens são curtas, como a fase de transição dos traba-
lhos de parto. Outras são longas, como a adolescência. O nascimento, o fim da
62
infância, a puberdade, o casamento, a velhice, a morte — eis as transições
comuns, esperadas, às vezes jubilosas, outras vezes dolorosas. A doença, a
loucura, a perda, a guerra, o vício — essas também são transições comuns, mas
temidas, que enviam atraentes convites a fim de que nos tornemos algo novo,
algo diferente do ser que éramos. O nascimento e as características do novo ser
são determinados em larga medida pelas histórias que contamos a nós mesmos
acerca do motivo da chegada do tempo de trevas.
63
médico-psicológicas tradicionais. A noite escura da alma — o medo, a depres-
são, a loucura, o trauma — costuma ser vista através da óptica limitada do medo.
No plano do medo, só desejamos livrar-nos da aparente negatividade, não nos
interessando examinar a nossa alma em busca das dádivas que esconde. O medo
exige que o problema seja resolvido de imediato por drogas ou pela terapia, a
fim de que a pessoa possa recuperar seu estado "normal".
Sigmund Freud também acreditava que, quando uma pessoa se curava de
uma neurose, o melhor resultado que se podia esperar era o retorno a " um estado
habitual de infelicidade". Contudo, alguns profissionais de saúde mental acre-
ditam, como eu, que muitas noites escuras da alma são iniciações no sentido de
um novo modo de ser. Se o paciente se dispõe a dar uma resposta às trevas, então,
em muitos casos, uma novidade estimulante e afirmadora da vida pode surgir.
Porém, em muitos casos, temos de nos ater às Primeiras Histórias do sofrimento
como passagem para a sabedoria, mesmo quando os profissionais da saúde
mental, que são uma parte necessária da nossa transição, apegam-se às suas
próprias histórias de medo.
Um amigo meu, por exemplo, era acossado por episódios de grave e repetida
depressão. Para sua felicidade, ele contava com uma excelente equipe de
psiquiatras que recorria adequadamente a remédios e psicoterapia. Contudo,
esses profissionais não se dispunham a apoiá-lo na consideração da doença sob
uma óptica mais ampla. Quando ele discutia a depressão e a hospitalização como
ritos de passagem, como iniciações que a seu ver terminariam por fortalecê-lo
em termos psicológicos e espirituais, os médicos tentavam convencê-lo de que
ele estava ficando louco. Para os psiquiatras, o simples fato de ele acreditar que
a enfermidade era uma passagem positiva, e até uma " graça", era uma indicação
de instabilidade mental. Ainda bem que o meu amigo conseguiu beneficiar-se
dos cuidados vindos dos profissionais, ao mesmo tempo que manteve a concep-
ção mais ampla de que a depressão tinha um significado positivo.
Se perdemos a nossa compreensão cultural referente ao valor das trevas,
verdade é que também perdemos os ministros religiosos cuja função é a de
ajudar-nos a passar por essa transição. Com muita freqüência, os nossos sacer-
dotes estão tão fora de contato com as fontes da sabedoria quanto os nossos
ministros seculares, os terapeutas e psiquiatras que pensam mais em termos de
patologia do que em termos de crescimento e potencial. Podemos aprender muito
sobre como agir nesses momentos de passagem com a observação do modo pelo
qual os sacerdotes de sociedades mais "primitivas" tratam as pessoas em
64
transição, quer essa transição venha por si só, quer seja ela provocada por um
rito de passagem específico.
O HABITANTE DO LIMIAR
O antropólogo Victor Turner é bem conhecido pelo seu estudo do processo
ritual em diferentes culturas. É nas suas pesquisas e escritos que baseio meus
comentários acerca do ritual. O ritual é um rito de passagem, uma transição entre
dois estágios de ser ou estações na sociedade. 0 rito de passagem tradicional
nas sociedades " primitivas" constitui-se de três etapas distintas: a separação do
estado de ser precedente; o período liminar, durante o qual se está entre dois
mundos, nem aqui nem lá; e a reincorporação em algum novo papel ou condição
na sociedade. O estado ambíguo e intermediário, a liminaridade, costuma ser
comparado ao estar no ventre, numa condição de escuridão e invisibilidade ou
de ficar vagando em lugar ermo.
Turner passou muito tempo na Zâmbia, país do centro-sul da África,
estudando o ritual da tribo Ndembu. Quer fosse o ritual da posse de um novo
chefe quer fosse a entrada na puberdade ou o casamento, o rito de passagem
sempre abrangia os estágios de separação, liminaridade e reincorporação. Sepa-
rado da tribo, o iniciado ficava privado de sua rotina comum que lhe definia o
papel, o comportamento ou sua auto-imagem. No limiar de um novo papel, eram
retirados vestígios do antigo eu, passíveis de interferir no novo estágio. Muitas
vezes, o iniciado era castigado física ou mentalmente. O castigo, a humilhação e
a privação física eram característicos desse período. A pessoa que se encontrava no
limiar de um novo estado nada possuía Tudo lhe era tomado como parte de um
retorno simbólico a um estado de humildade e de inocência, como se fora argila
em estado bruto, pronta a receber uma nova forma.
A hipnose coletiva, nossa adesão inconsciente às crenças familiares que
orientam a nossa vida, é rompida no período liminar. Exatamente da mesma
maneira, as nossas crises não proclamadas privam-nos do que pensamos saber,
transportando-nos ao limiar do desconhecido. Em épocas de transição, somos
despertados do transe familiar da vida e vemo-nos em território alheio. Se
soubéssemos que esse período assustador e desconhecido é uma transição
necessária — tal como o período de transição do trabalho de parto —, podería-
mos pedir com mais facilidade a ajuda que julgássemos necessária e teríamos
mais paciência para suportar as agruras e esperar o nascimento. Poderíamos nos
confortar com a idéia de que o processo é natural, e não patológico.
65
Cada pequena noite escura, cada pequena morte, retira uma camada de
condicionamento, restaurando a nossa visão para podermos apreender com mais
clareza a realidade. Escrevendo acerca dos rituais da puberdade masculina em
Forest ofSymbols: Aspects ofNdembu Ritual, Turner afirma:
66
I
como experiência de mwadi, para quem deseja encará-lo sob essa perspectiva,
cria um contexto de estímulo, de sancionamento e mesmo de gratidão pela sua
existência como um canal para uma vida nova, onde haja mais autoconsciência
e que seja mais gratificante.
Os problemas psicológicos e os vícios não são os únicos fatores que
desafiam a vida e nos quais o contexto afeta o resultado. O psiquiatra Viktor
Frankl, em seu instigante livro Marís Search for Meaning, fala da vida nos
campos de concentração nazistas durante o Holocausto. Nessa época tão terrível,
algumas pessoas sucumbiam por causa das inevitáveis epidemias que atingiam
o campo, morriam devido à brutalidade nazista ou eram consumidas pelo fogo
dos fornos crematórios. Outras, as que conseguiam achar algum sentido em seu
sofrimento, tinham mais probabilidade de se manter vivas. O próprio Frankl
sobreviveu a quatro campos de concentração antes da libertação, e foi nesses
campos que ele concebeu a logoterapia, sistema de crescimento e de cura
psicológica que se baseia na apreensão do significado.
Frankl e outros como ele criaram um ritual a partir do horror, um cresci-
mento a partir da destruição, ao preferirem acreditar que havia algum sentido
transcendente em seu sofrimento. Quando nos dispomos a olhar para um
significado superior, colocamo-nos de imediato na posição daquele que está no
limiar, do iniciado numa Grande História. Deixamos de ser incapazes, prisio-
neiros ou pessoas sem importância. Passamos pelo fogo a caminho de uma
purificação dotada de valor suficiente para que o nosso sofrimento, quando
ponderado à luz dessa purificação, valha a pena. Parte do valor do sofrimento e
do estar no limiar reside no fato de ele iniciar ou intensificar a busca do que é
mais sagrado, porque somente concentrando a mente na promessa dessa sacra-
lidade podemos sair do período liminar, não apenas ilesos mas também curados.
O psicólogo americano Abraham Maslow, falecido há pouco tempo, refe-
riu-se à profunda necessidade psicológica de encontrarmos na vida não somente
sentido pessoal, como também sentido transpessoal ou espiritual. Uma necessi-
dade é como um impulso biológico, um instinto. É parte dos genes, parte das
memórias raciais que formam o inconsciente coletivo partilhado por todas as
pessoas. Quando um impulso biológico é frustrado, o organismo padece de
algum modo. O tipo característico de sofrimento que acompanha um impulso
frustrado de descoberta do significado transpessoal é uma sensação de vazio, de
ausência de sentido com relação à vida que pode tornar-se depressão se não se
atender a essa necessidade.
67
" Jack" foi um paciente meu que procurou a psicoterapia justamente por
essa razão. Homem alto e atlético, de quarenta e poucos anos, ele quase pediu
desculpas por tomar o meu tempo. "Sequer sei bem o motivo de estar aqui",
começou ele. "Sou fisicamente saudável e os negócios vão bem. Estou casado
com uma grande mulher há vinte e seis anos, e todos os filhos estão emancipados
e vão ganhando a vida." Jack parou para dar um riso maroto e procurar a carteira,
de onde tirou uma dessas fotos de bebês fornecidas pelo hospital que, invaria-
velmente, lembram girinos apanhados no meio da metamorfose. " O que acha?
Eu já sou avô." Ele sorriu quando me inclinei para apreciar a foto de sua netinha,
muito minúscula.
Depois que Jack guardou a foto e pôs a carteira de lado, seu sorriso foi
desaparecendo. " Eu deveria ser feliz, não é mesmo?" Ele fez uma pausa em
busca de palavras, balançando a cabeça e concentrando-se em seu íntimo." Algo
está errado. Alguma coisa mudou, Joan, e não creio que seja a idade. Não estou
na crise da meia-idade, preocupado com os cabelos brancos nem perseguindo
mulheres mais jovens. Estou contente com a minha vida. Consegui tudo que se
pode esperar. É que, bem... Eu gostava de acordar de manhã. Eu ansiava pelo
começo do dia. Agora, cada vez mais, eu me levanto me sentindo... bem...", Jack
voltou a procurar as palavras certas, "... não exatamente entediado, mas com
uma espécie de vazio. Uma coisa assim. Mas e daí? Isso é tudo o que existe? A
vida se resume nisso?"
Antes do nosso encontro eu havia examinado os resultados do teste psico-
lógico de Jack. Era uma pessoa perfeitamente normal com uma leve depressão.
Não se tratava de um candidato à medicação e nem mesmo à psicoterapia. Jack
simplesmente estava sedento por uma espécie de significado transpessoal. Seu
esforço nesse sentido fora frustrado e ele não sabia onde começar a procurar.
Passamos a meia hora seguinte falando de livros, dos centros de desenvolvimen-
to pessoal da área de Boston, da prática de meditação, de religião, de espiritua-
lidade e do movimento masculino em ascensão.
Fiquei mais ou menos um ano sem ver Jack, até que esbarramos um no outro
num seminário de meditação. Ele parecia muito bem. Havia entusiasmo nos seus
olhos quando ele narrou partes de sua jornada de autodescoberta no curso
daquele ano. Ele passara a praticar com regularidade a vipassana ou meditação
de percepção, uma modalidade de treinamento da atenção, da tradição budista,
que ajuda a pessoa a estar presente no momento. Sua capacidade cada vez maior
de estar " atento", de ter consciência do próprio corpo, dos sentimentos, das
outras pessoas e da natureza tinha feito voltar parte da riqueza da vida que
68
estivera faltando a Jack um ano antes. Além disso, ele participara de vários
retiros de meditação com o poeta, mestre budista e pacifista Thich Nhat Hanh.
O ideal do crescimento espiritual como ação compassiva, inerente ao budismo,
despertara o interesse de Jack em trabalhar ativamente com a Anistia Interna-
cional e em fazer um trabalho voluntário num abrigo de homens sem lar. O vazio
de que ele se queixara fora substituído por um grande transbordamento.
Creio que muitos casos de depressão resultam da necessidade frustrada de
um sentido. Os psicólogos têm definido muitas necessidades que motivam o
comportamento humano. A necessidade de poder, de realização, de intimidade
interpessoal, etc. Quando essas necessidades não são atendidas, há um aumento
de sintomas físicos e psicológicos. Na minha experiência, o não-atendimento da
necessidade de um sentido transcendente leva primeiro a sensações de tédio e
de insatisfação como as que Jack teve. Se não se der a devida atenção a essas
sensações, é provável que elas se agravem ou levem a problemas derivados como
o vício.
Dentre os meios a que as pessoas recorrem a fim de reduzir o incômodo que
sentem estão o álcool e as drogas. Quando uma pessoa ansiosa ou deprimida
bebe, os terapeutas falam de "automedicação". Embora as pessoas tendam a
beber cada vez mais ou a usar doses sempre maiores das drogas, desenvolvendo
vícios por uma variedade de razões, as qualidades de alívio da dor e de retomada
temporária de um vínculo com um estado de consciência perceptiva proporcio-
nam uma espécie de espiritualidade artificial (Ersatz) ou falsa, capaz de suprimir
a necessidade essencial de uma real reconexão espiritual. Eis por que os
programas dos doze passos, que se baseiam, em parte, no atendimento da
necessidade de uma espiritualidade autêntica, são particularmente benéficos a
pessoas cujo vício se origina de uma necessidade não preenchida por um sentido
espiritual. Para esse subconjunto de pessoas em recuperação, eles tratam as
causas e não só os sintomas.
Essas necessidades frustradas de significado transpessoal podem gerar tanto
o vício como uma séria depressão. Em seu livro Uma Confissão, Leon Tolstói
escreveu a respeito de uma depressão existencial incapacitante que ocorreu com
ele perto dos cinqüenta anos, numa época em que ele era bem-sucedido, tinha
saúde, gozava de uma excelente vida familiar, de riqueza e de considerável
renome profissional. Apesar de tudo isso, ele se sentia perdido e desanimado
enfrentando os impulsos da vida como um sonâmbulo e fazendo a si mesmo
perguntas semelhantes às de Jack. Isso é tudo? Para que serve a vida?
69
Quando essas questões existenciais começam a arder em nosso espírito,
podemos optar entre dois caminhos: podemos ignorá-las e ficar deprimidos,
entediados ou viciados, ou aproveitar a oportunidade para sondar o nosso
espírito. Foi por Tolstói ter feito esta última opção que as suas obras se tornaram
tão intrigantes com a infusão da força das Primeiras Histórias que ele contou de
novas e impressionantes maneiras.
70
esse relato, o rei sentiu remorso. Ele reconhece seu erro, devolve as terras do
homem, acrescidas de novos campos, e promete tornar-se um monarca melhor.
O homem, por sua vez, jura proteger e apoiar o rei por toda a vida, e os dois se
reconciliam.
Ao sair dessa epifania, o rei procura o eremita para obter as respostas às
suas perguntas: Qual a pessoa mais importante com quem podemos estar? Qual
a coisa mais importante a fazer? Qual o momento mais importante para fazê-lo?
O sábio sorri, dizendo-lhe que ele já as conseguira. O rei fica perplexo, obrigan-
do o homem a declarar o que considera evidente. A pessoa mais importante com
quem podemos estar é aquela com quem se está no momento. Se não tivesse
ficado com o ancião para cultivar o jardim, o rei teria sido morto pelo assassino.
A coisa mais importante a fazer? Servir à pessoa com quem se está, porque,
como o rei assim procedeu, evitou-se uma luta sangrenta e em seu lugar houve
o perdão. E o momento mais importante? Bem... o agora. Porque, nas palavras
de Tolstói: " O agora é o tempo sobre o qual temos domínio." .
Na história de Tolstói, o rei era uma pessoa no limiar, que completara um
rito de passagem conducente à sabedoria. Ele deixou de lado os mantos e
paramentos reais no sopé da montanha e buscou respostas despojado e livre de
suposições. Foi na condição não habitual de trabalhador e de ajudante que ele
aprendeu o perdão e a compaixão. O rei, como o nosso amigo Jack, era um
homem de sorte, visto que buscou conscientemente respostas para questões
pertinentes a significados mais elevados. Todavia, mesmo quando não procura-
mos conscientemente essas respostas, a vida continua a formular as perguntas,
por vezes apresentando-as de um modo capaz de parar o coração: puxando o
tapete onde pisamos.
71
Se eu não tivesse passado pessoalmente por duas noites escuras e por
inúmeras experiências liminares, não pensaria em escrever a este respeito. Dizer
que elas são desagradáveis eqüivaleria à afirmação circular que rotula os
trabalhos de parto como "contrações incômodas". Sempre julguei que a hones-
tidade é a melhor política quando se descreve a dor. Aos quarenta anos, época
da minha segunda noite escura, eu mantinha um diário. Um dos apontamentos
dizia simplesmente: "Estou aterrorizada com o meu terror. Quando me vem a
depressão, ele toma conta de mim e não consigo me libertar. E como enfrentar
a própria morte ou até pior, visto que sei que mesmo a morte não é um fim. Isso
deve ser o inferno. Dá a impressão de que pode durar eternamente. Haverá
alguma saída?"
Quando eu tinha dez anos, durante a minha primeira experiência de noite
escura, eu não mantinha um diário, mas ainda me lembro vividamente. O ano
era 1955. Acabávamos de mudar dentro da mesma cidade, a distância era de uns
oito quilômetros, mas para mim parecia que se tratava de 80 mil quilômetros
porque a escola, os amigos, o apartamento e os vizinhos conhecidos haviam
ficado para trás. Para trás ficara também Teresa, a babá (que nos anos 50
chamávamos de ama-seca) e que, tímida e distante como era, fora coluna mestre
de uma infância solitária até casar-se e nos deixar para constituir sua própria
família pouco antes de nos mudarmos.
Eu estava assustada. Com medo da nova escola, de não fazer novos amigos,
e das estranhas mudanças do meu corpo que anunciavam o desabrochar da
condição de mulher. Eu me sentia privada de qualquer coisa conhecida a que
me apegar. Mesmo a minha velha colcha fora jogada no lixo. Encontrei no meu
novo quarto uma visão do paraíso de decorador adequada a uma profissional de
Nova York. Colchas verdes personalizadas, cortinas combinando e sofisticadas
serigrafias encimando móveis de mogno. Ninguém pedira a minha opinião. Eu
odiava o verde. Odiei todo o quarto, e não me deixaram mudar nada ou mesmo
sentar na cama sem remover as cobertas, para não estragar o cenário. O quarto
parecia um Holiday Inn surrealista no qual eu teria de morar como estranha
permanente, eternamente proibida de deixar quaisquer vestígios pelo fato de
ocupá-lo.
Quase imediatamente depois da mudança, passei a ter bizarras alucinações
e obsessões. Eu não queria dormir no quarto estranho com o meu corpo estranho,
numa vida estranha, para ser despertada pelo que me parecia o som de vidro
tilintando. Minha mente de dez anos fez uma fusão de um episódio de "Boston
Blackie", uma série de detetives da televisão nos anos 50, com um filme sobre
72
a vida tribal sul-americana numa paisagem primitiva de horror. Imaginei que
caçadores de cabeças com dardos envenenados estavam cortando o vidro das
janelas ao redor da casa e que iam matar a minha inadvertida família.
Eu acreditava que eu era a única que podia ver o que estava acontecendo e
livrar-nos do terror de mortes violentas e pavorosas. Estava convencida de que
a nossa salvação dependia da realização de estranhos e repetitivos atos que iam
se multiplicando em termos de número e de complexidade, o mesmo ocorrendo
com as minhas fantasias de destruição. Para mim, escorpiões, cobras e outros
animais peçonhentos espreitavam, de prontidão, a um passo do tênue véu entre
o domínio não-manifesto e o chão verdadeiro da sala de estar. Cabia a mim evitar
que eles aparecessem em carne e osso, trazendo o veneno e a morte.
Desenvolvi os comportamentos rituais clássicos que tipificam uma neurose
obsessivo-compulsiva. Lavava as mãos dezenas de vezes por dia, em parte por
causa de um constante medo de ser contaminada por venenos e, em parte, para
impedir que os horrores dos pesadelos se tornassem reais. Minha fala ficou lenta
e chegava a me atormentar porque eu tinha de mentalizar cada palavra que eu
planejava proferir e só então
organizar
as
palavras
numa
lista
mental
vertical
centralizada
antes
de
falar.
Boa parte das minhas leituras tinha de ser feita de cabeça para baixo, de trás
para a frente e por três vezes sem interrupção. Eu tinha a certeza de que, se fosse
interrompida, as personagens do pesadelo assumiriam vida e nos matariam a
todos. E ficava com os olhos arregalados de terror diante de qualquer indício de
que não pudesse terminar o ritual necessário. Na escola, mandaram-me para casa
por algumas semanas quando a professora de matemática me levou à enfermaria
porque eu ficara histérica no momento em que ela tentara recolher um papel da
73
minha carteira antes de eu terminar o ritual de apagar três vezes cada problema
aritmético antes de registrar a resposta final. Eu fui considerada doente. Quando
chegamos à enfermaria, eu estava imaginando o meu corpo coberto de pequenas
marcas vermelhas feitas pelos dardos envenenados dos caçadores de cabeças
. que me seguiam pelo corredor, saídos de espesso nevoeiro e, infelizmente, bem
próximos de assumirem uma forma física sólida.
A enfermeira ligou para minha mãe. Parecia que as duas estavam zangadas
comigo por eu ser uma garota ruim. O maior castigo foi ser levada ao psiquiatra.
Fui vê-lo sentindo que desapontara a minha família. Ainda me lembro de ter
tomado assento numa cadeira do lado oposto ao de sua grande mesa. Cheia de
vergonha e de uma pretensão compensatória, informei-lhe que para mim aquela
era só uma visita social. Ele me fez algumas perguntas e me levou a uma mesa,
deu-me lápis de cera e me deixou sozinha para fazer um desenho. Desenhei uma
casa com muita fumaça saindo em novelos da chaminé. Não sei como, mas
entendi no mesmo instante que a fumaça era a raiva que eu sentia da minha mãe
porque ela não me deixava ser eu mesma. Não querendo traí-la e nem a mim
(não se esperava que boas garotas se descontrolassem, e muito menos tivessem
raiva), rasguei o papel.
O bom psiquiatra voltou para ver o que eu produzira. De maneira bem firme,
eu lhe disse que conhecia seus truquezinhos, que sabia ser sua intenção analisar
meus desenhos e que eu o considerava um falso. Se ele queria saber alguma
coisa a meu respeito, bastava perguntar. Tivemos então uma conversa, e cheguei
a gostar dele de verdade. Eu acredito que, aos poucos, eu acabaria confiando
nele. Ao final de uma hora, com a minha permissão, ele chamou minha mãe. O
médico disse a ela que eu tinhamuito pouca liberdade, que eu estava muito presa.
Ela devia permitir que eu me expressasse, que fosse ao cinema com as amigas,
que escolhesse tudo aquilo de que gostasse ou não gostasse. Em sua angústia e
medo, minha mãe ficou furiosa e retrucou: " Mas eu a amo. Faço tudo pelo bem
dela. Vocês, psiquiatras, são todos iguais, sempre culpam a mãe."
Quando saímos do consultório do psiquiatra, eu sabia que minha mãe não
ia me deixar voltar. Eu acreditava que ou morria ou melhorava. Também sabia
que teria de fazer esse percurso sem ajuda e sem companhia. E era verdade.
Nessas experiências, ou saímos transformados ou morremos, literal ou figurati-
vamente. Durante as noites escuras, o nosso sistema de crenças é desafiado e
somos impelidos a um combate mortal com as forças do nosso inconsciente e
do inconsciente coletivo. Por uma variedade de razões diferentes — perda,
culpa, trauma, vergonha, conflito, choque —, o mundo tal como o conhecemos
74
cessa de existir e ficamos sem um pedaço de chão conhecido onde possamos
pisar. Pode ser que em seguida ainda venha um período de caos interior,
caracterizado pelo medo, pelas dúvidas, pelo terror, pela depressão ou pela
loucura.
A crise se resolve numa de três maneiras. Passado um período de sofrimen-
to, voltamos lentamente ao nosso eu anterior e a vida segue da mesma maneira
clara ou vagamente insatisfatória de antes; ficamos tão aterrorizados, agitados
ou deprimidos que cometemos suicídio ou ficamos no deserto da doença mental;
ou saímos da crise transformados, dotados de uma nova força, de uma sabedoria
e de uma visão renovadas. As questões de que vamos tratar no restante do livro
têm relação com as nossas possibilidades de solucionar as crises dos períodos
liminares e das noites escuras, através de maneiras que levem à transformação.
Minha noite escura da infância resolveu-se de um modo deveras interessan-
te. A vida estagnara. A medida que as semanas de tormento e desequilíbrio se
tornavam meses, tive finalmente de deixar a escola. Depois de vários dias de
ausência, eu penetrara ainda mais num inferno em vida que eu já não procurava
expor a ninguém. Eu estava exausta, cansada da batalha. Por quanto tempo pode
uma criança solitária afastar as legiões das trevas?
Em algum momento no decorrer desse período, senti-me impelida a escre-
ver um poema. Para mim, a poesia sempre foi a voz dos meus sentimentos mais
profundos, da minha mais recôndita verdade. Mesmo quando o eu agoniza, o
Eu imortal em nosso íntimo permanece intocado pela dor. Com efeito, como as
antigas percepções já não filtram a realidade da mesma forma, as comunicações
vindas da sabedoria do Eu se exprimem com mais clareza em sonhos, poemas
e introvisões. Esse poema particular surgiu de súbito na minha mente num dia
em que eu estava sentada na varanda de casa olhando os canteiros de flores, cujo
desabrochar prenunciava a proximidade do verão.
The Light
Somewhere in the darkest night
There always shines
A small, bright light.
This light up in the heavens shines
To help our God watch over us.
When a small child is born
The light her soul does adorn.
But when our only human eyes
75
Look up in the lightless skies
We always know
Even though we can't quite see
That a little light
Burns far into the night
To help our God watch over us.
[A Luz / Em algum lugar na noite escura / Sempre está brilhando / Uma tênue luz
flamejante. / Essa luz brilha no alto dos céus / Para ajudar o nosso Deus a olhar por nós.
/ Quando nasce um pequenino bebê / A luz adorna-lhe a alma. / Mas quando os nossos
olhos meramente humanos / Se voltam para o Armamento escuro / Sempre sabemos /
Mesmo sem conseguir ver / Que uma tênue luz / Arde bem alto na noite / Para ajudar
nosso Deus a olhar por nós.]
Eu recitava esse poema, com freqüência, para mim mesma. Era tudo a que
eu podia me apegar, exceção feita das visitas periódicas do meu irmão mais
velho, Alan, que na época estudava em Harvard. Ele me ouvia. Ele estava
presente. E provável que eu deva a minha vida e a minha saúde mental a algumas
poucas conversas nossas que ele provavelmente já esqueceu há muito tempo.
Ele era uma ilha para mim, porque os nossos pais simplesmente não sabiam o
que fazer. Como o medo da minha mãe interferia na possibilidade de eu
conseguir ajuda profissional, eu fazia o possível para me manter discreta, o que,
sem dúvida, contribuía para que ela negasse a seriedade da situação.
Então, com a passagem dos dias de ausência da escola, fui-me dando conta
de que podia não me recuperar nunca mais. Eu poderia ficar presa no inferno o
resto da vida. Já era primavera, e todo verão eu ia para um acampamento
feminino, judeu, que eu de fato adorava. Era um lugar em que eu podia ser
criativa e onde eu comecei a descobrir quem eu era. Saber que eu poderia nunca
mais voltar ali, nunca mais me sentar no bosque de pinheiros e sentir paz na
imobilidade, que eu jamais voltaria a cantar as velhas orações que haviam sido
para mim uma experiência espiritual inicial, galvanizou a minha vontade. Tomei
a seguinte decisão: ou melhorava imediatamente, voltava à escola, ia ao acam-
pamento e retomava a vida ou morreria. Resolvi enfrentar de todas as formas as
trevas, ainda que isso me causasse a morte.
Na manhã seguinte, levantei-me e fui à escola. Quando a necessidade de
lavar as mãos ficou premente, eu apenas recitei o poema. Fiquei apavorada, mas
o terror não era novidade para mim. Eu não podia ficar pior do que já estava.
Quando me sobreveio a alucinação dos caçadores de cabeças, sentei-me na
76
minha carteira e fiz a minha lição. Se me pegassem, paciência! Quando me senti
compelida a fazer uma lista mental de palavras em coluna antes de falar, falei
até muito à vontade. Esperei que o chão ficasse cheio de serpentes e aranhas. Ele
não ficou. Esperei que os caçadores de cabeças nos matassem a todos. Eles não nos
mataram. Em poucos dias, toda a neurose obsessivo-compulsiva terminara.
O EU
77
"normalidade", o estado comum de infelicidade segundo Freud, é o máximo a
que podemos aspirar.
Maslow assinalou que nós nos vinculamos com um Eu superior durante o
que ele denominou " experiências culminantes", momento em que nos sentimos
totalmente absortos no presente — transportados pela natureza, deliciados
diante de uma criança, tomados por um enlevo criador, transformados pelo amor.
Nesses momentos de unicidade — ou momentos sagrados, como gosto de
considerá-los — sentimos júbilo, paz, segurança, unidade, harmonia, amor,
sacralidade e uma vibrante sensação de vivacidade. São esses instantes que
fazem a vida valer a pena, constituindo respostas diretas às perguntas "Por que
estou aqui?" e " Qual o significado da vida?"
Embora todos entrem em contato com sua natureza superior de vez em
quando, Maslow descobriu que algumas pessoas passam um tempo considerável
nesse estado. Em vez de reféns da natureza inferior, com suas dúvidas e temores,
essas pessoas " auto-realizadoras" são mais amorosas, compassivas, agradáveis
e equilibradas do que a maioria. Em seu livro seminal A Psychology ofBeing,
Maslow escreve a respeito da auto-realização:
78
qual formado num momento particular na infância, em geral, como resultado de
um abuso físico ou sexual grave ou do fato de testemunhar algum trauma terrível,
como uma morte violenta ou a tortura.
Uma criança cheia de imaginação em geral se dissocia — distancia-se —
no desenrolar de uma situação terrificante ou dolorosa. Esses episódios disso-
ciativos podem tornar-se mais reais do que os próprios fatos, literalmente,
assumindo vida própria. Como resultado, a criança pode vir a ter várias perso-
nalidades distintas ou " alter egos". As pesquisas indicam que o número máximo
de alter egos numa pessoa com a DPM é treze. Uma pode existir para sofrer
abusos físicos, outra para cuidar dos irmãos, outra ainda para ir à escola, mais
uma para dispor-se ao incesto, uma quinta para ser o "protetor", e assim por
diante. Essas personalidades não são apenas psicologicamente diferentes em
termos de ter uma história de vida própria, mas também são diferentes quanto a
aspectos físicos. Uma pode ser alérgica ou precisar de óculos e outra não. Uma
pode ser destra e a outra canhota. Há até relatos anedóticos segundo os quais,
quando uma personalidade faz uso exagerado de substâncias, só essa personali-
dade vai ser submetida a uma retratação.
Sob hipnose, esses alter egos em geral se recordam do momento em que
" nasceram". No início dos anos 70, o terapeuta dr. Ralph Allison relatou a
existência de uma personalidade especial potencialmente presente em cada
pessoa com a Desordem da Personalidade Múltipla. Ao contrário das outras, ela
não quer se apossar do corpo nem quer assumir o comando. Seu único interesse
é a integração de todas as personalidades fragmentadas num todo coeso e
funcional. Na realidade, ela é com freqüência uma importante fonte de ajuda na
terapia, razão por que recebeu de Allison o nome de "Alavanca interior do eu".
Quando interrogado sobre suaorigem, o "Auxiliar Pessoal Interior" contou
uma história consistente em cada pessoa na qual se pôde ter acesso a ele. Ele
disse, em essência: "Eu sempre existi", descrevendo-se a si mesmo como uma
presença imortal que existia antes do nascimento físico e que continuaria a existir
depois da morte física. Esse "Auxiliar Pessoal Interior" é desprovido de medo,
de culpa, de ódio, de raiva, de dúvida ou de depressão. Delicado, sábio, amoroso
e benevolente, essa personalidade nuclear por vezes se define como um canal
do amor de Deus. O dr. Willis Harman, presidente do Instituto de Ciências
Noéticas,* observa que descrições do Auxiliar Pessoal Interior se assemelham
* Dele, foi publicado pela Editora Pensamento, Uma Total Mudança de Mentalidade
— As Promessas dos Últimos Anos do Século XX, 1994 e, pelaCultrix, O Trabalho Criativo
— O Papel Construtivo dos Negócios numa Sociedade em Transformação, 1992.
79
a antigas descrições do Eu contidas em textos do Oriente. Os Upanishads* são
um dos marcos da tradição de sabedoria da índia; eles datam do período entre
1500 a 5000 a.C. O Katha Upanishad afirma:
O Eu... não nasce. Ele não morre. Ele não é causa nem efeito. Esse Ser Antigo não
nasceu, é imperecível; ainda que o corpo seja destruído, ele não é aniquilado...
Menor do que o menor, maior do que o maior, esse Eu habita para sempre dentro
do coração de todos.
80
decididamente não ficavam bem numa "mocinha". Estava cheia de raiva por
ser envergonhada e cheia de pesar por não poder ser apreciada pelo que eu era.
A raiva alimentava fantasias rebeldes de fuga e vingança. Na minha imaginação,
eu fugia para a cidade de Nova York, onde podia me sustentar trabalhando num
salão de danças e onde desposaria um marinheiro. Isso iria mostrar uma coisa à
minha mãe!
Não é preciso dizer que, se agirmos a partir da "sombra", os nossos atos
serão com freqüência autodestrutivos. Eis uma excelente razão para submeter a
"sombra" a escrutínio, examinar as trevas interiores que estão povoadas de
emoções, fantasias e talentos. Na medida em que vivemos fora de contato com
as energias da sombra, estamos incompletos. Levamos a vida a partir de um falso
eu, enquanto as energias criativas vão se deteriorando. Além disso, se não
esvaziarmos a sacola da sombra, seu conteúdo vai apodrecer e gerar pressão.
Podemos aliviar essa pressão projetando o conteúdo da sombra em outras
pessoas, considerando-as raivosas ou ciumentas por não conseguirmos suportar
ver essas emoções em nós. Se fizermos isso, no entanto, terminaremos passando
a vida cheios de medo da nossa própria sombra. Podemos igualmente transfor-
mar os conteúdos da sombra de maneira mais dramática — em caçadores de
cabeças, cobras e escorpiões, ou, como fez o bom dr. Jekyll, no nosso sr. Hyde
pessoal!
Como observou Jung: "Não nos tornamos iluminados imaginando figuras
de luz, mas tomando consciência das trevas." Em nenhum momento temos mais
consciência das trevas do que no curso de uma noite escura do espírito. E em
nenhum outro momento temos menos consciência da luz, muito embora ela
nunca nos abandone. Em seu ocultamente, ela novamente força a ficar no limiar
e a nos comprometer com o vir-a-ser uma nova pessoa. Se pudermos confiar e
acreditar que a nossa noite escura veio a serviço da luz, então poderemos respirar
durante a fase de transição e realizar o trabalho necessário à preparação do parto.
81
CAPÍTULO QUATRO
ESe...? — A Reestruturação
das Crenças Essenciais
Em verdade, é nas trevas que se encontra a luz de maneira que, quando
sofremos, essa luz se acha mais próxima de nós.
Meister Eckhart
Pouco antes do Natal de 1985, descobri um tumor no seio. Ele era suspeito
o bastante para exigir remoção cirúrgica. No decorrer da semana anterior à
operação, meus pensamentos ficavam voltando repetidamente à pergunta "E
se...?"." E se o tumor acabar não sendo nada?" foi uma pergunta que só fiz uma
vez, pois não fiquei a remoê-la dentro de mim. Aquilo a que a minha mente se
apegava eram as variantes da pergunta: "E se o tumor for canceroso?" A
resposta dava margem a toda uma gama de " E se...?" E se já houver metástases,
e se eu precisar de quimioterapia, e se eu morrer?
Os "e se...?", por sua vez, me levaram a considerar o significado de um
possível câncer. Seria ele na realidade uma experiência de despertar, uma noite
escura arquetípica do espírito que me enriqueceria a vida, moldaria a minha fé
e me levaria à liberdade, àquilo que denominei na parábola uma Primeira
História? Ou esse desastre fantasiado seria um acontecimento sem sentido num
universo aleatório? Pior do que isso, seria ele culpa minha — o resultado de
pensamentos negativos, o castigo pelos meus pecados ou o retomo do "carma
ruim" ? Felizmente, o tumor era benigno. E. embora eu tenha sofrido muito como
resultado dos enredos que andei criando acerca do seu sentido, aprendi muito
sobre as minhas crenças mais essenciais.
83
Agora que já tivemos a oportunidade de considerar como formulamos os
nossos sistemas de crenças e como desenvolvemos a fé, convido você a analisar
algumas alternativas que não impõem medo à questão de saber por que aconte-
cem coisas ruins mediante a reformulação dos assustadores "e se...?" em opções
mais esperançosas e realistas. Depois de cada convite para analisar um " e se... ?",
há uma afirmação. Se lhe parecer bem, tente repeti-la em voz alta.
84
sendo gentil ou útil sem pensar em retorno, cheio da paz que advém do perdão.
Nessas adoráveis ocasiões, sentimo-nos em contato com um todo mais abran-
gente. O amor é o tópico de muitas Primeiras Histórias que nos foram legadas
a fim de nos servirem de guia para casa: o amor compassivo do pai ao Filho
Pródigo, o amor bem-aventurado dos gopis por Krishna, o amor puro e devotado
de Maria Madalena por Jesus. O amor simples do príncipe que desperta a Branca
de Neve de um sono semelhante à morte.
E se você fosse imortal? Imagine que a roupa de carne que você usa no momento
seja um traje espacial de que você precisa para se aventurar num mundo
desconhecido. Você se esqueceu temporariamente de que a está envergando para
ter uma aventura e terminou por acreditar que você é esse traje! Imagine a sua
surpresa no momento da "morte". Sua roupa cai, seu objetivo foi alcançado e
o seu espírito retorna à presença da Luz de que você veio. Ali, na presença de
um amor avassalador, você terá a chance de rever a sua vida — que, quando
termina, parece bem mais um sonho — e de avaliar as histórias que você criou.
Foram elas histórias de amor e de liberdade, ou você se entregou ao sono e
sonhou histórias de medo?
85
Posso despertar agora.
Posso optar por acreditar no amor em detrimento do medo.
E se você tivesse toda a ajuda de que necessita para encontrar seu caminho
de volta à Luz? O seu Eu Superior e os seus guias — mestres e presenças que
proporcionam conforto no reino não-físico, acompanhando-o por toda a vida
(algumas pessoas pensam nesses seres como seus anjos da guarda) — estão
sempre tentando atrair a sua atenção. Muitas pessoas que tiveram experiências
de quase-morte encontraram esses guias quando fora do corpo e, mais tarde,
passaram a manter com eles uma comunicação consciente. Mas, quer você tenha
ou não consciência deles, eles estão sempre tentando entrar em contato com
você.
E se a dor for também um ato de serviço? Quando o seu coração se parte você
tem mais empatia com o sofrimento dos outros. Você se transforma então no
que Thornton Wilder denominou um " soldado a serviço do amor". Somente
aqueles que se vêem " esmagados pelas engrenagens da vida", disse Wilder,
poderiam servir dessa maneira. Uma mãe que perdeu o filho pode vir a ser um
farol especial de esperança para outros pais desolados. Uma pessoa que convive
bem com o câncer, ou que se recuperou apesar da gravidade do problema, é
peculiarmente útil a outros que percorram esse mesmo caminho. Quem já foi
86
vítima de incesto ou foi traído, brutalizado ou abandonado e que se libertou por
meio do perdão torna-se particularmente capaz de ajudar outras pessoas a
aprenderem a perdoar.
87
PARTE DOIS
A Transformação do Medo
J.Z.B.
CAPÍTULO CINCO
Bhagavad Gita
91
Minha colega reagiu à tentativa de assalto com igual coragem. Ela analisou
a situação e, por alguma razão (a maioria dos meus amigos menciona a sanida-
de), preferiu ficar imóvel e submeter-se em vez de entrar ou fugir. Se a minha
intuição não tivesse sido tão firme e insistente, o meu sistema nervoso poderia
ter feito a mesma escolha. Nesse tipo de situação, as decisões vêm das entranhas
e não do intelecto. Diante da ameaça física, é o medo que nos mobiliza para
sobreviver e dá forma à nossa coragem. Um bom susto, e o coração dispara, a
respiração se acelera e se rarefaz, e desenvolvemos uma força quase sobre-hu-
mana quando um intenso fluxo de adrenalina põe o nosso metabolismo para
funcionar a pleno vapor e lança açúcar e oxigênio na fornalha dos nossos
músculos. O medo mobiliza os nossos recursos de sobrevivência. Foi essa
" resposta de emergência" que me permitiu perseguir os nossos quase-assaltan-
tes agitando uma pesada bolsa.
Tal como outros animais, o ser humano está programado para atacar quando
as chances de vencer são boas e de não reagir quando elas não o são. Não reagir
é um sinal de submissão e por vezes evita o ataque. Não tenho dúvida de que a
coragem para preservar a vida física sob um ataque repentino é bem menos
complicada do que o destemor de fazer as escolhas éticas e morais que elevam
a civilização acima do instinto animal. Contudo, antes de considerar essas
formas de coragem de ordem superior no próximo capítulo, tratemos de modo
mais minucioso a matéria de que são feitos os nossos medos comuns e incomuns.
92
desenvolvem uma síndrome chamada hospitalismo ou incapacidade de flores-
cer. Ninguém está presente para brincar com o bebê, para sorrir quando ele sorri,
para devolver-lhe num reflexo a sua própria existência. Como resultado dessa
solidão, suas glândulas pituitárias não produzem hormônio suficiente para o
crescimento e a criança vai definhando mesmo quando recebe alimentação
adequada. Muitas dessas crianças morrem antes de completar um ano, e as que
sobrevivem costumam apresentar sérios problemas psicológicos: não conse-
guem formar vínculos com outros seres humanos.
Adultos solitários também correm riscos físicos. As doenças cardíacas e as
deficiências imunológicas estão associadas com a solidão. Viúvos, solteiros e
divorciados sofrem mais de doenças e morrem com mais facilidade do que
homens casados, e amplos estudos epidemiológicos revelam que o melhor fator
isolado de previsão da boa saúde para ambos os sexos é o apoio social, uma rede
amorosa de familiares e/ou amigos. Ficar isolado é a maior tragédia para um ser
humano e a forma mais generalizada de estresse. O leitor interessado pode
encontrar uma excelente revisão dos efeitos da solidão sobre a saúde em geral
e o sistema cardiovascular no livro Dr. Dean Ornish 's Program for Reversing
Coronary Artery Disease. Concordo com o dr. Ornish que os três níveis em que
os seres humanos vivenciam o isolamento, o medo e o estresse que o acompa-
nham são:
93
acreditando que não somos dignos de entrar nos aposentos nupciais de que falam
os místicos de todas as tradições, inclusive Jesus.
94
medo por cães na maior parte da sua vida, pelo fato de ter guardado em sua
memória, desde a infância, a cena de um cão mordendo a mãe dele. Como as
minhas primeiras lembranças referentes a cães foram agradáveis, cresci gostan-
do deles. Ter medo de cães não é uma lembrança instintiva, mas uma experiência
idiossincrática. O medo que meu pai tinha de cães era tamanho que durante anos
ele não comprou uma casa por temer que algum vizinho tivesse um. Do mesmo
modo, uma amiga minha da universidade tinha um medo doentio de roedores e
teve de abandonar um curso de especialização em psicologia porque as salas de
aula e as salas dos ratos ficavam demasiado próximas umas das outras.
Medos adquiridos, como fobias por cães, ratos, cobras, pontes, águas etc.,
podem, muitas vezes, ser tratados com eficácia por meio de um procedimento
psicológico simples denominado dessensibilização sistemática; nela, a pessoa
pratica conscientemente o relaxamento enquanto vai imaginando, de maneira
progressiva, aspectos mais assustadores da fobia. Assim, por exemplo, alguém
que tem medo de cães poderia praticar o relaxamento, primeiro, imaginando que
olha a foto de um cão. Dominado esse passo, ele poderia imaginar-se olhando
para um filhote numa loja, uma loja especializada em pequenos animais. Na
etapa seguinte a pessoa poderia imaginar que afaga um animal seguro por outra
pessoa. Quando consegue ficar relaxada enquanto imagina que está afagando o
cão, a pessoa pode praticar a dessensibilização na vida real, progredindo pouco
a pouco até chegar a afagar um filhote de verdade.
Uma variedade de técnicas comportamentais — incluindo o relaxamento,
a respiração ventral, a reestruturação do significado do medo e a prática de dar
ainda mais atenção ao medo, em vez de evitá-lo — são discutidas em detalhe
em meu livro Minding the Body, Mending the Mind. Essas técnicas, em geral,
são úteis não apenas no tratamento de fobias isoladas como também de temores
gerais e paralisadores como a agorafobia, síndrome que leva a pessoa a ficar
literalmente aterrorizada com a idéia de sair de casa.
Medos mais profundos, provenientes de abusos físicos ou emocionais
graves, do incesto, da guerra ou de outros traumas, costumam exigir um
tratamento psicológico e comportamental mais sofisticado. O fenômeno da
desordem do estresse pós-traumático que afetou muitos veteranos da guerra do
Vietnã alertou os terapeutas para a ocorrência desse distúrbio em pessoas cujo
campo de batalha foi a sala de estar ou o quarto de dormir da família. Os
terapeutas estão começando a desenvolver tratamentos para esses terríveis
traumas, como veremos mais adiante neste capítulo, depois de termos a oportu-
95
nidade de considerar estratégias criativas de relacionamentos com tipos menos
incapacitantes de medo.
A prudência recomenda que se dê atenção a todos os níveis do medo —
físico, psicológico e espiritual. Tenha ou não uma característica ou um propósito
arquetípico, de iniciação, o medo também pode veicular importantes informa-
ções acerca do ambiente e do estilo de vida da pessoa. As pessoas às vezes
cometem erros diante da opção de procurar ou não tratamento para os seus
temores porque os rotulam como " espirituais" e julgam a medicação necessária
como sendo a "material". Inversamente, elas podem usar medicamentos para
acobertar medos que podem ser um indício da necessidade de uma cura psicoes-
piritual. Seja como for, antes de examinar as raízes profundas do medo, é
oportuno levar em conta o papel da hereditariedade (algumas depressões e
desordens de ansiedade são matrizes bioquímicas herdadas que precisam de
tratamento bioquímico), do estilo de vida e do vício como fatores que comu-
mente contribuem para o medo.
A Questão da Medicação
96
Quando pessoas que precisam de ajuda se mostram relutantes em tomar
remédios, tenho o hábito de lhes contar a piada sobre o fazendeiro e a enchente.
Quando a água chegou às janelas do térreo, um vizinho foi de barco a remo
resgatá-lo. Ele agradeceu, "Sou um homem de fé. Deus vai me resgatar."
Quando a água chegou às janelas do segundo pavimento, outro vizinho foi de
barco a motor resgatá-lo. Mais uma vez ele recusou a oferta: "Sou um homem
de fé. Deus vai me resgatar." Finalmente, quando o fazendeiro estava no teto da
casa, um helicóptero sobrevoou o local e lançou uma escada. Mais uma vez o
fazendeiro recusou a ajuda: " Sou um homem de fé. Deus vai me resgatar."
Quando se deu conta, o fazendeiro estava na porta do céu. "Que aconteceu?",
queixou-se ele a São Pedro. "Porque Deus não me salvou?" São Pedro balançou
a cabeça como a lamentar o fato e disse: "Escute bem: nós mandamos um barco
a remo, um barco a motor e um helicóptero!"
O que há nos medicamentos que algumas pessoas consideram profano?
97
ajudavam a ter um padrão respiratório mais relaxado. Dois meses depois, sua
ansiedade praticamente desaparecera. No caso dela, a resposta mais criativa para
vencer o medo foi uma alteração de estilo de vida.
98
prisão, filhos que seguem os passos dos pais e se tornam alcoólatras ou depen-
dentes de drogas, uma esposa ou um marido adepto do amor firme e diz:" Chega.
Vou embora. Não consigo mais suportar o seu vício" — eis manifestações
comuns de que se chegou ao fundo do poço e de verdadeiras noites escuras da
alma que constituem um desafio para um novo nascimento.
99
pessoa é tomada pelo pânico, pelo terror ou pela premência de correr. De repente,
a pessoa fica com hiperventilação. O tratamento usual para esses ataques de
pânico não-provocados é o emprego de medicação supressiva ou o recurso de
respirar dentro de um saco de papel para inibir a hiperventilação.
Vários pacientes a quem ensinei técnicas de respiração para combater a
hiperventilação de repente recuperaram a memória sobre abusos sofridos. Essas
recordações são caracterizadas como dependentes da situação. Ou seja, sua
recuperação depende de a pessoa se encontrar no mesmo estado fisiológico
do momento em que elas foram impressas no sistema nervoso. No consultó-
rio, quando instado a hiperventilar, o paciente pode lembrar-se do trauma de
uma hora para outra. Na minha experiência, muitas mulheres com a chamada
fibrosite, uma síndrome de dor crônica inespecífica, são sobreviventes de
abusos sexuais ou psíquicos na infância, tal como o é grande número de
pessoas, tanto homens como mulheres, que sofrem de ataques de pânico de
origem desconhecida.
Em casos nos quais o medo atual se vincula com abusos sofridos na infância,
a estratégia mais criativa de encará-lo é curar as lembranças do abuso em vez
de continuar a ocultá-las. Isso significa enfrentar a dor original; reconhecer que
uma criança é impotente e não é responsável pelo abuso; controlar a raiva e o
medo causados pelo abuso; confrontar pais e/ou molestadores quando apropria-
do; voltar a cuidar da criança interior assustada (como afirmo em Um Livro para
Curar o Coração e a Alma) e, por fim, atingir um estado de perdão baseado
numa transformação pessoal. Como vamos analisar em capítulos ulteriores, o
perdão de modo algum significa desculpar o molestador. Atos de abuso foram
e sempre vão ser uma abominação. Perdoar é chegar a alguma compreensão
acerca dos motivos pelos quais as pessoas que molestam as crianças agem assim—
de modo geral, a causa é a dor dessas pessoas do abuso de que foram vítimas
— e conseguir criar uma barreira que liberte a vítima do ódio que confere ao
molestador uma extensão do poder.
Quando o abuso é grave e a criança é particularmente dotada de imaginação,
pode surgir a Síndrome da Personalidade Múltipla (SPM). Quando ataques de
pânico ou doenças psicossomáticas vêm acompanhados de ausências ou lapsos
de memória (desde que não provocados pelo alcoolismo nem pelo uso de
drogas), de súbitas e dramáticas alterações da personalidade ou de períodos
substanciais de tempo em que a pessoa não se recorda do que aconteceu, a
explicação pode ser a SPM. Há até uns cinco anos atrás, muitos terapeutas pouco
sabiam sobre a SPM, sobre incesto e molestamento infantil, abuso físico na
100
infância, filhos adultos de ambientes desestruturados e acerca da relação dessas
síndromes com estados de medo e de pânico. Os efeitos do trauma eram com
freqüência desconsiderados em pacientes adultos.
Adultos sobreviventes de holocaustos, de torturas, guerras, desastres natu-
rais, crimes violentos, acidentes graves, incêndios e de outros acontecimentos
traumáticos que ultrapassam a gama da experiência humana comum podem
desenvolver Distúrbios de Estresse Pós-Traumático (DEPT). Os sintomas po-
dem incluir uma espécie de entorpecimento psíquico ou afastamento do mundo
que faz com que fontes anteriores de prazer deixem de parecer interessantes, as
emoções tornam-se apáticas, sombrias e torna-se difícil se sentir próximo de
outra pessoa. A depressão, o medo, a hiperventilação, a aceleração dos batimen-
tos cardíacos, suor nas mãos, irritação e outros sinais de aumento da excitação
do sistema nervoso simpático são comuns, assim como o são o retorno à situação
traumática, os pesadelos repetidos sobre o evento e sentimento de culpa por ter
sobrevivido a uma situação em que outros morreram ou sofreram ferimentos
mais graves. Pode parecer estranho, mas, embora os DEPT costumem manifes-
tar-se na época do trauma, não é incomum que se manifestem vários anos depois.
A dura realidade do fato de que morreram mais veteranos do Vietnã por
suicídio depois da guerra do que no campo de batalha indica a gravidade da
DEPT. Acrescente-se aos suicídios o fato de que grande parte dos sem-teto do
nosso país são veteranos de guerra traumatizados e o alcance do problema
começará a se revelar. Os terapeutas ainda estão em busca de técnicas que
possam aliviar esse mal, que costuma ser cronicamente desabilitador e de difícil
tratamento. Indícios de novos tipos de tratamento que vêm se mostrando eficazes
procedem de duas fontes incomuns: osxamãs,ou curandeiros nativos de culturas
indígenas, e a terapia assistida por LSD, infelizmente banida quase que total-
mente dos Estados Unidos, mas que, como veremos adiante, tem sido usada em
outros países.
101
O ventre é o lugar escuro em que ocorre a digestão e onde é gerada uma nova
energia. A história de Jonas no ventre da baleia é o exemplo de um tema mítico
praticamente universal, o do herói que penetra no ventre de um peixe e de lá sai
transformado...
Psicologicamente, a baleia representa o poder da vida aprisionado no incons-
ciente. Em termos metafóricos, a água é o inconsciente e a criatura da água é a vida
ou a energia do inconsciente, que é dominada pela personalidade consciente e deve
ser privada de poder, além de subjugada e controlada.
No primeiro estágio desse tipo de aventura, o herói deixa o reino do familiar,
sobre o qual tem algum grau de controle, e chega a um limiar, digamos, à margem
de um lago ou mar, onde um monstro do abismo vem ao seu encontro... Numa
história como a de Jonas, o herói é engolido e levado para o abismo para ressuscitar
mais tarde, o que constitui uma variante do tema da morte e da ressurreição. Aqui,
a personalidade consciente entra em contato com uma carga de energia do incons-
ciente que ela não sabe controlar, tendo então de enfrentar todas as provações e
adversidades de uma estafante jornada no mar da escuridão, ao mesmo tempo que
aprende a chegar a um acordo com esse poder das trevas, para emergir finalmente
para uma nova maneira de viver (p. 146).
102
Enfermidades sérias, traumas, pesadelos arquetípicos de morte e de ressur-
reição e períodos de loucura também são descritos em relatos de iniciação
xamânica. Um xamã é um agente de cura capaz de ter acesso ao domínio do
inconsciente coletivo, sede das Primeiras Histórias. Como vamos ver mais tarde,
esse domínio da mente é também o nível em que ocorrem as experiências de
quase-morte e onde se acredita que a alma resida quando não está num corpo.
Os xamãs de outras culturas crêem que, quando sofremos um trauma, parte
da nossa alma deixa de fato o nosso corpo e tem de ser recuperada desse
domínio para que recuperemos a nossa sanidade mental, e, com freqüência,
a nossa saúde.
Embora a jornada metafórica de morte e ressurreição esteja presente nas
Primeiras Histórias de todas as culturas, também é possível ter acesso a essa
jornada partilhada a partir do inconsciente de pessoas que servem de sujeitos de
pesquisa para a análise da substância psicoativa LSD. O psiquiatra Stanislav
Grof foi um dos pesquisadores escolhidos pelo laboratório farmacêutico suíço,
Sandoz, para avaliar os efeitos do ácido lisérgico dietilamida (LSD-25) nos anos
50. Grof descobriu que, sob a influência da droga, a pessoa revive os temas
arquetípicos da provação e da redenção, do nascimento e da morte, da união e
da separação, do amor e do medo que se manifestam nos mitos e escrituras
sagradas de todas as culturas.
Quando ouvi falar do LSD na metade dos anos 60, Stanislav e outros
pesquisadores vinham fazendo experimentos com a substância há muito tempo,
tendo mapeado regiões do inconsciente coletivo que vão além das nossas
histórias pessoais e contam histórias universais. O acesso a essas regiões não é
possível somente por meio do LSD. Elas têm sido descritas em relatos de estados
psicóticos decorrentes da esquizofrenia e da epilepsia do lobo temporal, em
relatos de visões espontâneas, bem como nas religiões e na literatura mística do
Ocidente e do Oriente. Suas manifestações podem incluir contatos realistas com
anjos e demônios, guias de sabedoria e juizes celestiais; estadas em cidades
celestiais ou no ventre de animais; experiências de morte e renascimento;
recordação de vidas passadas; e viagens por regiões que lembram estados do
Bardo (lugares intermediários em que a alma se situa entre uma encarnação e
outra) descritos no The Tibetan Book ofthe Dead.*
E digno de nota que pessoas de diferentes culturas, crenças e histórias
pessoais se refiram a visões semelhantes, sejam elas induzidas pela psicose, por
103
substâncias psicodélicas, por súbitas descargas da energia sutil do corpo ou
kundalini, por técnicas de respiração controlada, estados de transe ou êxtases
religiosos decorrentes de jejum, orações, contemplação, meditação ou busca de
visões. Em Beyond Death, Stanislav Grof comenta:
104
de sentido. Grof diz que muitos sujeitos compararam independentemente esse
estágio com o estar no inferno.
Estágio 3: A Batalha de Morte-Renascimento. Este estágio é descrito como
correspondente à parte do nascimento, em que a cerviz se abre. Este estágio diz
respeito ao ser impelido pelo canal de nascimento. As imagens associadas estão
em escala apocalíptica — guerras, desastres naturais, imensos cataclismos de
energia que também podem ser de natureza sexual. Coexistem aí a agonia e o
êxtase, muitas vezes na forma de luta entre o bem e o mal. Este estágio é
marcado pela esperança e pela percepção de que o sofrimento tem um
propósito definido.
Estágio 4: Morte e Renascimento. O quarto estágio corresponde ao processo
físico de expulsão pelo canal de nascimento, pelo corte do cordão e pelo
nascimento da pessoa como entidade independente. Aqui, o sofrimento e a
agonia levam a uma completa aniquilação do que existia, a uma total morte do
ego. Depois da batalha, há visões de uma luz maravilhosa e ofuscante. Nas
palavras de Grof: "O universo é percebido como indescritivelmente belo e
radiante; os sujeitos se sentem purificados e purgados, e falam de redenção,
salvação, moksha ou samadhi."
Esses estágios da experiência psicodélica que os sujeitos da pesquisa de
Grof relacionam com o nascimento físico têm relevância direta para a cura do
trauma, que, tal como o processo físico de nascimento, fica estampado na
memória das nossas células. Fiquei extremamente animada quando ouvi falar
desses estágios porque eles me proporcionaram um novo arcabouço, em que
muitas das minhas experiências, tanto profissionais como pessoais, se enqua-
dravam.
Em vez de ver o medo pela óptica da patologia, podemos considerá-lo um
estágio de uma jornada marcada por um continuum de experiências de morte e
de renascimento. Essas experiências estão vinculadas não apenas com a nossa
história física e psicológica mas também com a história da nossa alma, o que
vamos discutir nos dois próximos capítulos, quando examinarmos aparentes
experiências de reencarnação e o uso da terapia de vidas passadas para tratar
medos resistentes a abordagens mais convencionais.
Tendo tido uma experiência psicótica de medo intenso aos dez anos, julguei
a pesquisa de Grof pessoalmente relevante. Depoi s de lê-la, convenci-me de que
a minha experiência não foi uma descida na loucura sem sentido, mas uma
experiência iniciatória que assinalou uma parada no curso da jornada do herói,
105
uma História de evolução do espírito e um exemplo daquilo que Grof chama de
emergência espiritual, experiências que efetivamente podem ser difíceis de
distinguir da psicose.
Nesse contexto, recomendo enfaticamente The Stormy Searchfor the Self,*
de Christina e Stanislav Grof, e Spiritual Emergency: When Personal Transfor-
mation Becomes a Crisis.** O segundo livro, organizado pelos Grof, contém
contribuições de notáveis psicólogos e mestres espirituais sobremodo úteis para
se colocar em perspectiva as experiências de medo e determinar quando é
necessária ajuda psiquiátrica e que tipo de ajuda tem mais probabilidade de
contribuir para a transformação em vez de abortá-la. Essa informação também
é vital como base para a compreensão de métodos de tratamento e de transfor-
mação do trauma usados em outras sociedades.
106
enquanto o paciente era apoiado e confortado para reintegrar-se no mundo dos
vivos.
Os xamãs de culturas aborígenes, de algumas tribos americanas nativas, de
culturas procedentes do Alasca e da Sibéria fazem " viagens" ao mundo inferior
com a ajuda de cânticos e do bater rítmico de tambores — talvez seja o mundo
para onde "viajam" os pacientes de Grof com a ajuda química do LSD — e
recuperam as almas perdidas dos seus pacientes física ou psicologicamente
enfermos. Infelizmente, como os psicólogos e psiquiatras modernos já não
pensam em termos de alma (embora a palavra "psicologia" signifique estudo
da alma), esse tipo de cura profunda, de cunho arquetípico, não ocorre com
freqüência nos consultórios de hoje.
Quer discutamos os Distúrbios de Estresse Pós-Traumáticos ou a sociopa-
tia, que pode resultar da falta de amor na infância e da conseqüente incapacidade
de inter-relacionamento e identificação com outros seres humanos, estamos de
fato discutindo doenças da alma, senão a perda da alma. A alma humana se
desenvolve a partir do amor e do estabelecimento de vínculos. Pode ser que
quando a alma se acha perdida ou acuada, alguns dos poderosos rituais de cura
e resgate da alma praticados pelos xamãs "primitivos" possam ser usados com
sucesso para recuperá-la. Os psicólogos modernos, que em sua maioria desco-
nhecem técnicas de acesso ao inconsciente profundo, poderiam beneficiar-se
muito com o estudo dos rituais, pesquisas psicodélicas e formas transpessoais
de cura que envolvam a colaboração de entidades do Outro Lado, que vamos
estudar nos dois próximos capítulos.
A cura do trauma parece exigir ao menos dois elementos cruciais: reviver
a experiência e transformar o trauma. É sobre o passo da transformação que
precisamos saber mais. No caso das vítimas do terremoto, o elemento transfor-
mador parece ter sido o amor, que tornou concreto uma religação com a
humanidade. Um impressionante relato que dá indicações adicionais acerca da
natureza da transformação foi publicado no interessante livro Shivitti: A Vision.
Caracterizado como "o testemunho perturbador de um homem que teve a
coragem de enfrentar um pesadelo duas vezes", trata-se de um brilhante relato
da terapia de um sobrevivente de Auschwitz que sofreu de DEPT por trinta anos
até conseguir a cura de suas terríveis feridas psicológicas.
Seu autor é Ka-Tzetnik 135633 (referência ao seu número no Konzentration
Zenter de Auschwitz), um israelense cuja experiência com o Holocausto o
impeliu a uma jornada moderna de busca dá alma que terminou por levá-lo
à clínica holandesa do professor Jan C. Bastiaans. Bastiaans é o psiquiatra
107
que por primeiro reconheceu a síndrome do campo de concentração, tendo
tratado com sucesso muitos sobreviventes de campos de concentração e outras
vítimas de violência com uma fascinante terapia à base de LSD na sua clínica
de Leiden.
Dada a excepcional clareza da parte tanto do médico como do paciente
demonstrada no livro, vou resumir o tratamento e a transformação do trauma
com algum detalhamento. Shivitti também é rico em Histórias arquetípicas,
como se pode ver pelo poema que abre uma das sessões de LSD da terapia de
Ka-Tzetnik 135633.
108
Durante dois longos anos eles passaram por mim, seus olhos penetrando os
meus. E o tempo ali, no planeta Auschwitz, não é como o tempo aqui. Cada momento
ali girava em torno das engrenagens de uma esfera temporal diferente.
Anos-inferno duram mais do que anos-luz.
Eles me deixavam para trás com seu olhar atento, mergulhado no meu. Não
seria uma dessacralização daquele olhar silente o fato de eu passá-lo ao professor
Bastiaans, no Departamento Psiquiátrico, em Leiden? (p. x-xi).
109
Ao elevar os olhos para Deus, ele viu em vez disso o rosto de um homem da
S.S. que estava carregando o caminhão que ia para o forno. Era um homem cansado,
sonolento, gélido, comum, desejoso de estar em casa, na cama, em vez de
participar daquele holocausto surreal nas primeiras horas de uma fria e escura
manhã. De-Nur examinou o homem daS. S. ao reviver o horror de ser conduzido
à sua morte iminente nos malditos fornos que espalhavam por quilômetros da
zona rural da Polônia o fedor de carne e ossos ardendo:
Será que eu o odeio? Nem sequer sei o seu nome, assim como não sei o nome do
resto de nós que agora somos levados ao crematório. De repente, um horror a mais
toma conta de mim, um honor que eu ainda não conhecia: se é dessa maneira, ele
poderia estar aqui no meu lugar, como esqueleto desnudo, neste caminho, enquanto
eu, eu poderia estar ali no lugar dele, precisamente numa manhã fria fazendo o meu
trabalho de mandá-lo, e a milhões como ele, para o crematório (p. 10).
Essa reflexão levou De-Nur a entrar em contato com o seu lado sombrio, a
nossa face oculta que em geral estamos demasiado temerosos e horrorizados
para considerar. Ele escreve:
Essa visão foi tão perturbadora para De-Nur que nele se transformou num
segundo trauma. Esse fato não escapou ao perspicaz dr. Bastiaans, que o
encorajou a enfrentá-lo, a mergulhar nele, a desenredá-lo enquanto ainda era
desconhecido. No início De-Nur não conseguiu. Mesmo quando fora chamado
a testemunhar no julgamento de Eichmann não lhe tinham pedido para fazê-lo;
a simples menção da palavra Auschwitz era por si só insuportável. Ao tentar
testemunhar a despeito dos seus temores, ele caiu no chão num estado de
semiparalisia, com o rosto terrivelmente distorcido, e teve de ser hospitalizado.
110
Mobilizar a coragem necessária para reviver o trauma sob o efeito do LSD, para
depois verbalizar sua experiência ao professor Bastiaans exigiu dele um certo
tempo. Mas o psiquiatra acreditava que a "incapacidade — de De-Nur — em
traduzir em palavras sua experiência estava na raiz do tormento de sua alma".
Mesmo aterrorizado, De-Nur confiou em Bastiaans; e, muito lentamente,
prosseguiu com as sessões de LSD e com a hesitante descrição dos indescritíveis
horrores que testemunhara e vivenciara. De-Nur fora de fato enviado ao forno
no caminhão carregado pelo oficial da S.S., mas, por pura força de vontade,
agarrara-se ao lado do veículo e encontrara refúgio no seu depósito de carvão,
tendo fugido mais tarde quando o caminhão foi levado de volta à garagem.
Bastiaans reconheceu a importância fulcral do depósito de carvão como um
elemento de transformação do terrível trauma de De-Nur, não ao ouvir a
narração direta do paciente, mas lendo sobre ela na descrição curiosamente
distanciada, na terceira pessoa, que caracterizava os livros que De-Nur já havia
escrito sobre suas experiências no Holocausto. Como escreveu Bastiaans:
O seu ato de sair daquele depósito de carvão imprimiu em todas as suas células a
consciência de que você nascera ali e naquele momento: na verdade, um infante
plenamente gestado e, naquele momento, deixando as trevas e saindo para a luz do
dia. Nesse instante, o instante da saída, sua alma começou a se dissociar. Num nível
orgânico, você sabia que deixara a escuridão do depósito para renascer. Com o
advento da libertação, você aceitou isso. De modo imperativo, como resultado
natural inevitável, seu voto irrevogável de não abandonai o homem-nascido-do-de-
pósito de carvão adveio do conhecimento orgânico. Em outras palavras, o nome
De-Nur está proibido de aparecer como autor desses livros de testemunho. Aos seus
olhos, você seria não apenas um charlatão, mas um grande ladrão, apossando-se de
objetos sagrados de um túmulo amaldiçoado pelos deuses. E está justamente aqui
a sua oportunidade de descobrir as respostas para todas as minhas perguntas. Se
entrar nesse depósito de carvão, o ventre do seu renascimento, como se penetrasse
na sua própria alma, você vai encontrar as respostas à sua espera (pp. 66-67).
111
Ele estava tomando posse do seu trauma, corrigindo a cisão de sua alma. Quando
ele fez isso, o conteúdo de suas visões com o LSD se alterou e, em vez de
manter-se preso ao canal de nascimento da transformação, ele passou por toda
a progressão de nascimento e renascimento da alma descrita por Grof.
Livre do ventre da besta e do inferno da falta de saída, De-Nur começou a
ver com mais freqüência a Luz, sobreposta aos terrores indizíveis de Auschwitz.
Quanto a uma parte da quarta sessão, ele escreveu:
Do alto, uma paz perfeita vem até mim enquanto cumpro as minhas obrigações,
todas elas. Lanço fora todos os jugos que me dobram o pescoço. Entrego o meu
corpo à terra e o meu alento ao meu Criador, enquanto uma luz inefável se apossa
do meu ser. Eu não sabia o que era essa luz desde que a minha alma deixara a mansão
das almas, uma morada sob o trono de Shekhina (o feminino divino). Vejo a minha
alma voltar-se para a fonte da luz. E todas as minhas obrigações são cumpridas, uma
a uma (p. 85).
112
um mussulman, um esqueleto que desenvolve asas; uma salamandra flamejante
(espírito da mitologia grega que vive no fogo por sete anos, e então ressuscita), uma
fênix que se eleva do meu próprio fogo. Como um míssil destinado às esferas
superiores, sou disparado da plataforma de lançamento formada por esqueletos para
dentro da tempestade do meu próprio grito de paixão — E torno a entrar no meu
corpo.
113
CAPÍTULO SEIS
Ovídio
A fila de embarque era longa. Quando consegui fazer passar a minha mala
pela multidão de viajantes em transtorno e apresentei meus documentos à
funcionária, eu estava entediada e irritada. Ela, pelo contrário, tinha os olhos
brilhantes e se mostrava incomumente amável para uma pessoa tão ocupada.
" Você vem acompanhada na viagem de volta?", ela perguntou.
"Não, volto sozinha. Por que pergunta?" Ela explicou que me tinham
reservado uma poltrona do meio e que, exceto se estivesse viaj ando com alguém,
eu ficaria mais confortável numa poltrona do corredor ou da j anela. Agradeci-lhe
por tamanha gentileza, especialmente diante da longa fila que havia atrás de
mim. Enquanto seus dedos ágeis se moviam pelo teclado do computador,
fazendo um novo cartão de embarque, ela me lançou um olhar conspiratório e
sorriu.
" Se eu não fosse gentil, eu iria ouvir poucas e boas dos meus espíritos
guias." Interessante conversa para uma funcionária de companhia aérea no
trabalho. Sua observação ficou pairando no ar, carregada de sentido. Eu deveria
deixar que ela se dissipasse ou levá-la adiante? Afinal, havia uma longa fila.
Decidi morder a isca.
"Espíritos guias? Como você entra em contato com eles? Por meio da
meditação?"
115
"Oh, não!" Ela sorriu, grampeando meu novo cartão de embarque na
passagem. "Sou médium. Minha mãe também é. Estou em contato com eles
desde que me entendo por gente. Mas todos têm espíritos guias." Ela começou
a fazer as etiquetas para a minha bagagem. "Os seus estão bem à sua direita
agora. Você consegue senti-los?" Fiz um rápido gesto de negação, imaginando
se a conversa não seria algum tipo de brincadeira e se eu não estava ficando meio
tola.
"Eles estão me contando sobre o seu acidente de carro do ano passado,
mostrando-me o seu rosto cheio de bandagens. Você de fato fez um bom trabalho
nesse nariz", disse ela, olhando-me bem dentro dos olhos. Ela balançou a cabeça
e emitiu um som de compassiva compreensão.
Tive uma estranha sensação enquanto ela continuava a falar de detalhes
específicos do acidente que provavelmente ninguém mais poderia saber. No
mais recôndito do meu íntimo, eu sabia que não colhera todos os frutos do
acidente. Embora ele por certo me tivesse levado a pensar na minha vida e a
fazer algumas mudanças que há muito já deveriam ter sido feitas, tais como
deixar o meio acadêmico, havia algumas coisas relativas a ele que eu ainda não
queria encarar. O acidente ocorrera no final de uma noite terrivelmente escura
do espírito que rivalizara com a minha neurose obsessivo-compulsiva da infân-
cia em termos da pura negatividade do terror que eu vi vendara.
A causa dessa noite terrivelmente escura não foi, ao que parece, a matéria
de que são feitos os pesadelos. O motivo que a desencadeou foi a minha falha
involuntária de dar os devidos créditos ao trabalho de uma colega no meu
primeiro livro. Embora tenhamos superado bem o problema, o incidente pareceu
destampar uma velha garrafa de onde saiu o gênio sombrio do medo primitivo
— o medo de ser eu uma pessoa humana ruim e indigna. Afinal, se eu podia
ferir alguém inconscientemente, fazer algo errado sem nem sequer me dar conta,
concluí, eu não poderia confiar em mim mesma. Senti-me como se todos os
meus desejos de levar uma vida de bondade e generosidade — de me importar
com os outros — fossem uma fraude.
Senti-me profundamente isolada de mim mesma, dos outros e do universo
durante vários meses depois desse episódio. Era como viver o inferno na Terra.
Essa intensa noite escura me levou de volta à terapia e, embora eu tenha
percebido algumas coisas importantes sobre o meu caráter, não consegui vis-
lumbrar a possível origem desse medo tão forte e profundo. Por isso, desisti de
tentar entender e mergulhei ainda mais no meu trabalho no hospital, como se,
ajudando os outros, eu pudesse reparar algum pecado vergonhoso e secreto que
116
a minha alma não conseguia ou não queria revelar. Foi nesse ponto que tive a
minha colisão frontal com o destino.
A funcionária, como se adivinhasse meus pensamentos dolorosos, devol-
veu-me os documentos de viagem com um ar de preocupação. "Seus espíritos
guias existem para ajudá-la. Eles querem que você tome consciência deles.
Peça-lhes ajuda. Escute-os durante a meditação."
Agradeci-lhe e, quando eu estava prestes a ir embora, ela acrescentou: "E
tem mais uma coisa. Eles me dizem que a chave do seu problema pode ser
encontrada numa vida passada."
"E como volto a essa vida?", perguntei rapidamente, suspendendo o
julgamento sobre se acreditava ou não em vidas passadas. Suas instruções foram
muito claras.
"Medite", ela aconselhou, "e durante a meditação imagine um túnel.
Então, deslize por ele, de costas." Tentei seguir essa sugestão assim que me
sentei no DC-10 meio cheio para Chicago. Não aconteceu muita coisa. Tentei
outra vez no quarto do hotel naquela noite e adormeci. Tentei mais uma ou duas
vezes em casa e perdi o estímulo. Mesmo assim, a conversa no aeroporto
permaneceu vivida na minha memória e no meu corpo. Ainda sinto pequenos
arrepios nas costas quando revejo a imagem mental daquela delicada e maternal
funcionária de companhia aérea olhando amorosamente por sobre os meus
ombros e transmitindo mensagens insistentes de um mundo invisível.
A moça da companhia aérea não foi o único agente cósmico secreto que
apareceu para me ajudar no momento certo. Meses depois desse "contato no
aeroporto", fui a um seminário para administradores de hospital fazer a convite
uma palestra sobre a cura mente/corpo. Na noite anterior, os anfitriões oferece-
ram uma recepção para que os vários expositores pudessem se conhecer.
Embora mal tivéssemos tido tempo para conversar, interessei-me de modo
especial por uma mulher, Magaly Rodriguez Mossman, que faz um trabalho
incomum com imagens. Os dois tipos de imagem normalmente empregados na
psicoterapia e na medicina psicossomática são a imagem diretiva e a receptiva.
Na imagem diretiva, a pessoa é orientada a pensar acerca de um assunto
específico, como relaxar na praia. Na imagem receptiva, fazem-se perguntas —
por exemplo: " Você se lembra de uma época em que se sentiu feliz?" — e você
117
então é estimulado a receber imagens do seu próprio inconsciente ou de algum
repositório mais profundo, arquetípico, de sabedoria comum.
Magaly usa outra modalidade de imagem, a transpessoal, em que faz
silenciosamente uma pergunta à alma da pessoa a quem está orientando. Ela
então pede à pessoa que observe conscientemente que imagens aparecem
quando ela faz depois uma série de perguntas audíveis. No final da sessão, ela
revela qual foi a pergunta silenciosa inicial e ajuda a pessoa a interpretar as
imagens produzidas pela alma em resposta. Como a técnica vai além da mente
consciente — afinal, o paciente não sabe qual a pergunta feita —, não há a
possibilidade de a pessoa "inventar" as respostas. Logo, pode-se ter acesso a
informações mais ou menos puras da mente inconsciente por meio dessas
imagens transpessoais.
Na manhã em que o seminário começou, encontrei Magaly e Carole Ann,
uma amiga dela, no intervalo do café. Elas eram francas e eficientes. Carole Ann
disse que não sabia por que acompanhara Magaly ao seminário, a não ser por
uma profunda sensação interior de que as duas iriam ajudar alguém. Eu,
concordaram elas, era esse alguém. Havia algo em que elas pudessem ser úteis?
" Ora, claro que sim", respondi, pois já estava acostumada a ver membros do
serviço cósmico secreto surgirem do nada. "Tenho esse padrão recorrente de
medo irracional e paranóico de que vou ferir alguém sem perceber. Ele me
perturba há muito tempo e nenhuma forma de terapia ajudou." Elas sorriram e
se propuseram a se encontrar comigo no meu quarto às cinco da tarde.
Elas foram pontuais, e logo entrei numa sessão de imagens transpessoais
que deu a Magaly alguns indícios do que parecia ser a gênese dos meus medos
em vidas passadas. Carole Ann, profundamente intuitiva, obtinha ao mesmo
tempo impressões de uma vida passada no Antigo Egito, em que eu causara
inadvertidamente sérios danos a uma irmã. Na qualidade de sacerdotisa do
templo, eu levara minha irmã ao claustro como iniciada, não em função de suas
necessidades, mas por causa do meu desejo inconsciente de ter poder. Despre-
parada para o rigor da experiência, ela enlouquecera. Vi-me tomada pelo pesar
e não consegui perdoar a mim mesma por trair as necessidades da minha irmã
a fim de atender às minhas. Se isso era verdade e se algum antigo trauma estava
registrado na minha mente, não era de admirar que um incidente semelhante em
que eu sentira ter traído alguém nesta vida tivesse catalisado aquele sofrimento
tão profundo.
Minha alma se lamentava não somente por um incidente ocorrido nesta vida
mas também por um ou mais possíveis incidentes semelhantes que tinham
118
acontecido nos sombrios corredores do passado. O medo e a culpa inconsciente
de repetir esse comportamento tinham me deixado sobremodo preocupada,
submetendo repetidamente a escrutínio cada ação minha para ver se eu descobria
algo de prejudicial que eu infligira a alguém. Quando, apesar do meu cuidado
excessivo, eu de fato prejudicava inconscientemente uma pessoa, minha reação
era uma dor que por certo não se justificava na minha atual existência, mas que
tinha muito sentido à luz de antigas lembranças da alma.
Enquanto Carole Ann revelava alguns detalhes da vida que vira, senti alguns
arrepios de reconhecimento, alguns zunidos que, segundo creio, são uma men-
sagem do Eu Superior para que eu dê atenção máxima ao que quer que esteja
acontecendo. Minha maneira de fazê-lo é dúplice. Mergulho no meu próprio
íntimo para ouvir a voz do meu Eu Superior e mergulho exteriormente na
biblioteca a fim de pesquisar temas de interesse. No caso de vidas passadas, a
" base de dados" é relativamente pequena; contudo, antes de falar das minhas
jornadas em vidas passadas, quero partilhar alguns elementos que descobri nas
minhas pesquisas.
A REENCARNAÇÃO É LITERALMENTE
VERDADEIRA?
Permitam-me começar sumariando as minhas conclusões. Ninguém pode
prová-lo, mas tenho fortes suspeitas de que a resposta é sim, não e talvez. Embora
as provas pró e contra da reencarnação sejam inconclusivas, a idéia sem dúvida
me atrai. E, independentemente das outras explicações possíveis para o que
parecem ser as vidas passadas, não há como minimizar o benefício terapêutico
que muitas pessoas têm obtido da passagem pelo que parecem ser regressões a
vidas passadas.
Um dos mais completos relatos populares da terapia de vidas passadas de
um único paciente é dado pelo psiquiatra Brian Weiss no seu livro Many Lives,
Many Masters. Esse caso é particularmente digno de nota porque nem o doutor
Weiss nem a paciente acreditavam em vidas passadas, nem estavam pensando
nelas quando ele a fez regredir hipnoticamente para descobrir as possíveis raízes
traumáticas de várias fobias resistentes. Contudo, em lugar de levar a problemas
desta vida, a regressão conduziu a uma série de traumas do que pareciam ser
v idas passadas. Com a ajuda de espíritos guias que falaram pela paciente quando
cia alcançou o momento da morte e entrou na Luz, os traumas foram resolvidos
c as fobias desapareceram.
119
Fiquei particularmente fascinada com as experiências do doutor Weiss por
causa da coragem que ele demonstrou ao publicar informações que se opõem de
modo frontal à sua orientação científica. Sua experiência era no campo da
psiquiatria biológica (uso de drogas) e ele era diretor do Departamento de
Psiquiatria do Centro Médico Monte Sinai, de Miami, quando casos de algum
modo ligados à reencarnação começaram a aparecer em sua prática profissional.
Quando viajo pelo país dirigindo seminários e conversando com terapeutas,
ouço inúmeras histórias que lembram a do doutor Weiss. Muitos terapeutas que
nunca haviam levado em consideração a idéia de vidas passadas, ou até lhe são
antagônicos, deparam com o que parecem ser lembranças de vidas passadas
quando do uso da regressão hipnótica, do relaxamento profundo ou da visuali-
zação com seus pacientes. Em alguns casos, essas lembranças surgem primeiro
nos sonhos dos pacientes.
Como os terapeutas de formação tradicional não foram preparados para
considerar as vidas passadas como possível fonte dos problemas dos pacientes,
essas experiências costumam ser um choque para eles, que então têm de buscar
a ajuda e a supervisão de colegas para tratar de uma área que está além da sua
especialidade.
Alguns estudos de casos fascinantes referentes ao uso terapêutico da regres-
são a vidas passadas são apresentados pelo analista junguiano Roger Woolger
em seu interessante e bem fundamentado livro Other Lives, Other Selves*
Sempre que um paciente revela um comportamento repetitivo difícil de influen-
ciar, ou, no meu caso, tem um medo específico, resistente a métodos terapêuticos
tradicionais, a regressão a vidas passadas pode ser benéfica, quer o paciente ou
o analista acreditem ou não que as coisas que estão sendo recordadas são de fato
vidas passadas. Woolger afirma que, deixando de lado a verdade literal, há um
outro tipo de verdade — a verdade psíquica, que ele define como "aquilo que é
real para o paciente". Ele explica aos seus pacientes que, seja qual for a sua
crença na reencarnação, a mente inconsciente, quando instada de maneira
correta, quase sempre produz uma lembrança de vida passada.
Contudo, 25% da população mundial — principalmente hindus e budistas
— tem na crença na reencarnação uma doutrina de fé. De acordo com levanta-
mentos do Instituto Gallup, 28% dos americanos também acreditam na reencar-
nação, embora os Estados Unidos sejam um país predominantemente cristão.
Embora os eruditos ainda discutam se a Igreja primitiva ensinava ou não a
120
reencarnação, na época medieval ela constituía uma heresia. O atual dogma da
Igreja é que temos somente uma oportunidade para nos mostrar dignos de passar
à eternidade no céu ou no inferno. Os reencarnacionistas, por sua vez, postulam
uma série autocorretora de vida regida pela lei do carma. A alma não é julgada;
ela tem a oportunidade de evoluir, podendo adquirir sempre mais sabedoria ao
ser submetida repetidas vezes a situações em que tenha " negócios inacabados".
No final do processo — depois de ter vivenciado todas as ações geradas pelo
seu próprio livre-arbítrio —, a alma retorna à Luz com sabedoria e compaixão
para ser uma companhia digna do Criador.
Quem crê na reencarnação costuma apresentar várias linhas de raciocínio
para sustentar o seu argumento. Em primeiro lugar, se cada alma só tivesse uma
vida para provar o seu " valor", como poderia uma pessoa nascida em meio a
condições indignas, à pobreza ou à guerra ter oportunidades iguais a uma pessoa
nascida em circunstâncias mais satisfatórias? Em segundo lugar, a reencarnação
poderia explicar crianças prodígios com habilidades excepcionais. O que justi-
fica um Mozart ou um Einstein a não ser o desenvolvimento dos seus talentos
em vidas anteriores? Em terceiro, a reencarnação poderia explicar a " injustiça"
das coisas. Por que uma pessoa nasce na abundância e outra na carência? Por
que um transeunte inocente recebe um tiro numa cena de assalto?
Vistas sob a óptica da existência de várias encarnações, coisas que parecem
acidentais ou injustas revelariam uma lógica perfeita na manifestação da lei do
carma—ou seja, de causae efeito. Se de fato colhemos o que semeamos, temos,
em última análise, de vivenciar todas as ações que desencadeamos com o nosso
livre-arbítrio. Se assassinamos, somos atraídos outra vez para a violência, talvez
como vítimas, a fim de desenvolver a empatia. Ou talvez sejamos grandes
cirurgiões a fim de pagar ao Universo o ato de tirar a vida dando vida. Como
falei antes, é importante que não nos tornemos fundamentalistas do carma,
distorcendo todos os infortúnios como "mau carma". Embora eu acredite
plenamente na lei da causa e do efeito, também creio que as sutilezas do processo
estão bem além da análise com categorias simplistas do bem e do mal.
O argumento mais comum contra a reencarnação é o de que as pessoas
normalmente não se recordam de vidas passadas. Os cabalistas, místicos judeus,
explicam esse fato de modo deveras poético, dizendo que, quando nascemos,
um anjo nos faz mergulhar numa poção de esquecimento. John Van Auken, que
há muitos anos estuda Edgar Cayce, talvez o mais conhecido médium deste
século, explica esse esquecimento de maneira mais "científica". Em seu exce-
lente livro Born Again and Again, Van Auken sugere que a nossa mente
121
consciente cessa de funcionar por ocasião da morte, mais ou menos como
quando perdemos a consciência ao dormir. No quarto e quinto reinos dimensio-
nais, em que atuamos entre encarnações, usamos o que Edgar Cayce denominava
mente subconsciente — a mente que conhecemos em sonhos, visões e intuições.
De acordo com Van Auken, na hora da reencarnação a alma tem de
desenvolver outra mente consciente a fim de funcionar na realidade tridimen-
sional. Esta é distinta da mente usada na encarnação anterior e da mente
subconsciente com a qual sonhamos e que usamos em outras realidades. Por
isso, ela não tem lembrança de encarnações anteriores. Podemos, no entanto,
recuperar essas lembranças usando a nossa mente subconsciente, o que constitui
exatamente a maneira como se conseguem regressões a vidas passadas. Mas há
exemplos em que a mente subconsciente pode irromper de modo espontâneo e
veicular lembranças de vidas passadas cujos detalhes sejam passíveis de verifi-
cação?
Roger Woolger fez uma cuidadosa análise do trabalho do dr. Ian Stevenson,
da Universidade de Virgínia, que tem reunido esses "casos do tipo reencarna-
tório" desde os anos 60. Com o espírito de um bom detetive, Stevenson
percorreu o globo coletando relatos em primeira mão de crianças da índia, do
Sri Lanka, da Turquia e do Líbano que revelam evidências de recordação de
vidas passadas. Ele e sua equipe entrevistaram a criança, sua família e as
testemunhas disponíveis. Eles descobriram casos fascinantes, em que a criança
é levada a outra povoação e consegue indicar sua antiga casa, o local onde
trabalhava e os bens pessoais.
Todavia os críticos do trabalho de Stevenson mencionam o fato de que os
casos pesquisados se referem a culturas em que a crença na reencarnação é aceita
como matéria de fé. Isso poderia conduzir a uma predisposição, devido ao desejo
inconsciente das crianças de agradar as outras pessoas e, assim, reunir indícios
peculiares sobre os mortos com pessoas que os conheceram. Apesar disso, é
difícil contestar esses casos. A capacidade de apontar sem erro pertences de uma
vida passada é, a propósito, parte do método mediante o qual cada novo Dalai
Lama tem comprovada a sua condição depois que certas profecias conduzem
homens sábios à criança. Diz-se que o atual Dalai Lama é a décima quarta
reencarnação do Buda Compassivo.
O próprio Woolger menciona o caso de um americano que recuperou a
lembrança de uma vida passada como um proprietário de terras na França.
Tendo-se recordado tanto do seu nome como de sua data de nascimento, o
homem foi à França e encontrou de fato o registro de nascimento dessa pessoa.
122
Se o proprietário de terras tivesse sido alguém importante o suficiente para ser
citado num livro de história, seria possível dizer que o nome fora recuperado
por meio da lembrança inconsciente de um fato histórico. Mas não parecia ser
esse o caso.
Os detratores da reencarnação costumam negá-la dizendo que o que parece
ser a lembrança de uma vida passada se baseia em informações aprendidas e
esquecidas nesta vida. Conhecimentos de história, de línguas e de muitos outros
fatos são armazenados na chapa fotográfica do inconsciente e podem ser
recuperados e trazidos à mente nas circunstâncias oportunas. Quando se fazem
cirurgias cerebrais, por exemplo, podem ser evocadas lembranças detalhadas
como um dia qualquer no jardim-de-infância através da estimulação de deter-
minadas áreas corticais. Ao que parece, detalhes como a cor do sapato da
professora são armazenados na nossa mente! Creio, com efeito, que alguns casos
do que passa por recordações de vidas passadas têm a probabilidade de envolver
conhecimentos desse tipo, esquecidos nesta vida, porque, no domínio do incons-
cientes em que se encontram as lembranças, não há tempo nem espaço. Entre-
tanto, a possível "mistura" de lembranças do passado recente e do passado mais
distante não acaba com a possibilidade de que algumas delas tenham sido
registradas em verdadeiras vidas passadas.
Outro argumento comum contra a reencarnação é o de que um número
muito grande de pessoas afirmam ter sido pessoas famosas em outras vidas. Essa
ilusão é reforçada por anúncios nas televisões a cabo de "médiuns" prontos e
ansiosos a contar a você sobre existências anteriores se você se dispuser a pagar
a taxa exorbitante do seu número 900. Mas a idéia de que há muitos mandantes
para poucos subordinados cai por terra quando se fazem regressões de modo
sério e não como diversão superficial e massageamento do ego.
Eu, sem dúvida, não esposo a terapia de vidas passadas para todos. Reviver
um velho trauma com detalhes excruciantes pode ser emocionalmente desgas-
tante e arriscado. Ainda mais porque, se esses traumas forem evocados e não
tratados de maneira adequada, eles podem fazer mais mal do que bem. Se a sua
orientação interior o levar à necessidade de examinar vidas passadas, procure
um terapeuta qualificado para ajudar você. Não tente isso sozinho nem confie
em amigos bem-intencionados mas inábeis.
Você poderá localizar terapeutas que trabalhem com vidas passadas em sua
área através de indicações pessoais ou entrando em contato com os doutores
Brian Weiss, Roger Woolger e Morris Netherton, ou com a doutora Elena
Burton, que figuram na sessão de "Recursos" deste livro, na parte "Terapia de
123
Vidas Passadas". Se encontrar algum terapeuta que faça isso, submeta-o aos
mesmos testes a que você submeteria outro eventual provedor de cuidados
médicos. Pergunte sobre a sua formação, peça referências, converse com ele e,
então, acrescente a sua intuição ao que descobrir. Se tiver qualquer tipo de
reserva acerca de alguém com quem pretende fazer essa terapia, desista.
Roger Woolger, assim como numerosos outros terapeutas conhecidos meus
que praticam essa modalidade terapêutica, afirma que muitas regressões evocam
mais vidas bem comuns e, o que é mais importante, desagradáveis e traumáticas
do que existências que fascinam. Além disso, as vidas passadas, ao que parece,
emergem em grupos ou em bandos, que se vinculam com o problema que a
pessoa está tentando resolver nesta vida. Foi exatamente o que aconteceu
comigo.
A PURIFICAÇÃO DO CARMA —
A CURA DAS LEMBRANÇAS
Tentei levar o próximo agente cósmico secreto que me foi enviado a
desvendar a história do meu medo. Seu nome é Elizabeth Lawrence, e é uma
agente de cura Mari-El. Mari-El é um sistema de cura de antigas lembranças que
não faz distinção em termos do momento e do lugar em que possam ter ocorrido.
A história de Mari-El é fascinante. Uma mulher chamada Ethel Lombardi era,
há anos, uma agente de cura Reiki (sistema em que o agente de cura atua como
condutor da luz divina). Sua saúde, contudo, andava mal.
Quando seguia de avião para a Clínica Mayo a fim de receber tratamento
para distúrbios cardíacos, ela foi agraciada com uma cura miraculosa — uma
restauração completa e espontânea da normalidade do coração—ao ser banhada
pela luz de um arco-íris que penetrou na aeronave. Mais tarde, ela "recebeu"
instruções de um novo tipo de cura por meio de uma energia feminina que ela
sentiu como sendo de Maria, mãe de Jesus. Nesse sistema, Maria e os seus anjos
são chamados a acompanhar a cura, que consiste em descobrir e transformar
lembranças traumáticas que ficam armazenadas nos sete sistemas de energia
sutil do corpo, ou chacras. O sistema é conhecido como cura Mari-El (Mari, de
Maria, e El, de Elohim, palavra hebraica que designa Deus).
Beth Lawrence é agente de pastoral com formação em psicoterapia tradi-
cional e cura Mari-El. Por acaso, ela mora a uns poucos minutos da minha casa,
mas eu só a conheci quando ela telefonou para mim, desejando me conhecer e
conversar comigo. Ela me ofereceu um tratamento Mari-El. Não me entusias-
124
mei. Ao longo dos anos têm-me sido feitas inúmeras ofertas para experimentar
diferentes tipos de terapia que, embora úteis, abrem uma caixa de Pandora de
questões não-resolvidas. Eu não estava disposta naquele momento a mexer em
caixas de Pandora, nem de expor a minha alma a uma pessoa estranha, e por isso
recusei delicadamente. Mas ela tinha persistência. Terminamos por nos encon-
trar para um café e, com o tempo, ficamos amigas. Quando se formou entre nós
uma ponte de confiança, aceitei fazer o tratamento Mari-El.
Fazia perfeito sentido para mim que antigas lembranças não-curadas ficas-
sem armazenadas no corpo e no seu sistema sutil de energia. Muitas pessoas que
trabalham com o corpo passaram por isso ao tratar uma parte específica do corpo,
e irrompe uma onda de energia, muitas vezes acompanhada de lembranças
específicas. Uma antiga mágoa, por exemplo, às vezes é armazenada como um
tumor na garganta. Antes de cada sessão, Beth invocava seus auxiliares do
mundo invisível, os anjos Mari-El, e rezava pela ocorrência do melhor resultado
possível para mim. E assim, enquanto eu ficava deitada no chão em completo
relaxamento, ela concentrava a atenção no meu campo de energia sutil. Manten-
do as mãos à altura dos meus olhos, por exemplo, ela perguntava o que eu via.
E surpreendentes lembranças surgiam.
Primeiro, afloraram várias lembranças dolorosas da infância. Eu dizia a
Beth o que me ocorria e ela me fazia curar a lembrança perguntando o que estava
acontecendo, levando-me a explicar as coisas à minha criança interior e a
confortá-la, e, por fim, fazendo com que eu perdoasse o adulto que me ferira. O
processo tinha uma forte tonalidade emocional, como se tudo estivesse aconte-
cendo no momento presente. Como no mundo do inconsciente não existem
tempo nem espaço, as experiências armazenadas nos bancos de memórias a que
se tem acesso têm a mesma intensidade emocional que aquelas que deixaram
marcas quando aconteceram os fatos a que se referem.
Ao longo de quatro sessões, grupos de lembranças dolorosas desta vida se
manifestaram, associadas às experiências dolorosas da infância. Com diligente
cuidado, Beth evocava as lembranças, que resgatávamos juntas e, com a ajuda
dos seus auxiliares invisíveis, elaremovia o resíduo dessas lembranças da minha
energia corporal. Na realidade, estávamos completando um velho carma erradi-
cando-o para que minha alma pudesse ficar livre da compulsão de repetir
experiências dolorosas.
Em sânscrito, as antigas impressões que levamos conosco desta vida — as
lembranças não-curadas que acumulam arrependimentos, ressentimentos e me-
dos — chamam-se samskaras. Essas lembranças ficam impressas na alma.
125
Segundo a filosofia oriental, o momento da morte é a ocasião em que elas são
indelevelmente inscritas. Se morrermos com questões não-resolvidas, essas
samskaras permanecerão conosco como carma. A necessidade de completar
esse carma nos leva inelutavelmente a repetir situações semelhantes em outras
épocas e lugares, neste ou em outros mundos, nas quais podemos encontrai' o
resultado de nossas ações e transcendê-las mediante o desenvolvimento da
sabedoria e da compaixão.
Entre uma sessão e outra com Beth, eu tinha sonhos muito nítidos que se
vinculavam com as lembranças que haviam emergido. Partes de questões
irresolvidas que considerava vergonhosas demais para considerar imploravam
por expressão. Depois da quarta sessão, eu sabia que estava no momento certo
para curar algumas lembranças realmente dolorosas, incluindo as relacionadas
com o meu acidente automobilístico, com o episódio que o precedera, no qual
eu me sentira profundamente envergonhada por não ter dado os devidos créditos
a uma colega de trabalho, bem como às dificuldades que tivera com um ex-chefe.
No decorrer da quinta e última sessão, essas memórias vieram à tona com
desusada intensidade, Beth trabalhava a área do meu plexo solar, o centro de
energia que abriga o sentido de valor pessoal, quando, de repente, resgatei uma
lembrança de um ambiente desconhecido. Os " ossos" da lembrança reaparece-
ram durante a sessão. Em seguida, recuperei a "carne", quando entrei num
estado descontraído por meio da meditação, voltei ao que parecia ser uma vida
anterior e revivi cenas inteiras que se desenrolavam na memória, relacionadas
com todos os aspectos da vida que eu buscasse para obter mais informações.
De acordo com a lembrança, eu era uma mulher simples, humilde, de vinte
e poucos anos, natural de Londres num período de perseguição religiosa. Eu era
parteira e, como muitas pessoas com esse ofício na época, era também uma
agente de cura e herborista. Encontrava-me num porão com um grupo de
mulheres. Era um esconderijo onde nos reuníamos. Segurando uma sacola feita
de tecido e mantendo-me em pé, um pouco afastada, eu me sentia profundamente
envergonhada e tinha medo do castigo e da rejeição.
Um inquisidor da Igreja fora aos meus modestos aposentos e me acusara de
ser bruxa. Estava claro que ele conhecia a maioria das parteiras da área e nós
estávamos sendo assediadas para sermos reeducadas ou executadas, dependendo
da posição que ocupássemos na sociedade. Eu era uma pobre viúva com dois
filhos pequenos e sem parentes vivos. Eu temia que, se fosse executada, eles se
tornassem moleques de rua dessa desditosa cidade de Londres. Eu sabia que eles
não iriam sobreviver. Era-me oferecida clemência se eu testemunhasse contra
as mulheres com quem trabalhava.
126
O conflito era insuportável. Se testemunhasse contra elas, admitindo publi-
camente que éramos curandeiras, aquelas boas mulheres seriam mortas como
bruxas. Se não o fizesse, meus filhos por certo pereceriam. Com uma angústia
terrível decidi salvar as crianças. E, com grande vergonha, tomei consciência de
que desej ava salvar a minha própria pele, de que talvez tomasse a mesma decisão
ainda que não existissem as crianças. A dor pelo fato de compreender isso
resultou em horríveis soluços, cheios de angústia. A culpa, a vergonha e o ódio
de mim mesma que senti ao reviver essa lembrança foram quase insuportáveis,
e deveras familiares. Esses eram exatamente os sentimentos que tive ao magoar
inadvertidamente a minha colega.
Beth instruiu-me a chamar as duas parteiras que eu traíra para um facho de
luz na minha mente. Fiz isso com grande dificuldade, porque meu coração estava
pesaroso e eu me sentia paralisada pela culpa que durante séculos me perseguira.
Com enorme emoção, eu disse àquelas mulheres exatamente como me sentira e
por que testemunhara contra elas. Não havia justificativa. Fora apenas o melhor
que eu podia fazer na época. Na nossa animada conversa mental, pedi-lhes que
me perdoassem, e fiquei surpresa com a ternura delas. Elas compreenderam que
eu fora colocada numa situação em que não havia escolhas claras. Elas explica-
ram que eu tinha de entender que a questão não era de traí-las ou não, mas de
dúvida com relação a mim mesma e de ódio de mim mesma. Já há muito eu
havia sido perdoada por todos, menos por mim. Eu mantinha minha alma como
refém, e já era hora de libertá-la.
Essas duas parteiras me disseram que o chefe com quem eu tivera uma
relação tão conflituosa não era senão o inquisidor que me prendera naquela
época. Também ele estava resolvendo o problema do carma daquela época, e
precisava compreender as circunstâncias, assumir a responsabilidade e perdoar
a si mesmo. Elas sugeririam que nós todas orássemos por ele. Foi imenso o alívio
que senti ao reviver essa lembrança, e o resultado imediato foi que o ressenti-
mento residual que eu alimentara com relação àquele chefe problemático se
dissolveu. Também consegui importantes informações sobre o tipo de medo
paranóico que se manifestava sempre que eu achava que havia magoado alguém.
Ele se relacionava, ao menos em parte, com a pesada culpa de ter traído minhas
irmãs espirituais, as parteiras.
127
pensando se se tratava, de fato, de lembranças de vidas passadas ou simplesmen-
te do meu inconsciente tecendo histórias acerca de fatos emocionalmente
carregados da minha vida. Afinal, um processo semelhante por certo acontece
nos sonhos. O fato de as histórias revelarem um profundo potencial de cura não
estava sendo levado em consideração. Meu intelecto estava simplesmente
curioso com respeito à realidade objetiva da reencarnação. Teria a minha alma
de fato habitado o corpo daquela parteira de Londres na Idade Média? Tive um
dia uma irmã no Antigo Egito que enlouqueceu quando tentei iniciá-la nos
Mistérios do Templo antes de ela estar preparada? Não tenho meios de responder
a essas perguntas. Mas disponho de algumas especulações acerca do lugar de
onde vêm essas histórias e sobre como elas nos servem.
O doutor Fred Alan Wolf é um renomado físico cujo ávido interesse pelos
vínculos entre a ciência e os estados de consciência deu origem a vários livros
que especulam sobre a natureza da mente e do Universo. Em The Dreaming
Universe, ele cita a obra de Henri Corbin, um notável erudito francês, a respeito
do "domínio imaginai" (imaginai realm). Entramos nesse domínio quando
sonhamos, em experiência de quase-morte e em outras experiências da saída do
corpo e, possivelmente, nas experiências nebulosas, como pretensos raptos por
parte de OVNIs, que parecem absolutamente reais para quem passa por elas. O
estado de consciência que ocorre durante a hipnose, e meditação, os devaneios
e o relaxamento profundo são o portal de entrada para esse domínio. Na opinião
de Corbin e de outros, esse domínio é ontologicamente real, ou seja, tem
realidade objetiva. Imaginai não é imaginário. Por outro lado, a realidade
imaginai é substancialmente diferente do nosso mundo vígil cotidiano.
Os xamãs penetram nesse domínio em favor de outras almas. De acordo
com várias tradições xamanistas, quando sofremos um trauma, perdemos parte
da alma. Essa parte fica paralisada no trauma, perdida no reino imaginai além
do tempo e do espaço. Nesse sentido, não podemos seguir em frente e vi vendar
a novidade neste mundo porque laços invisíveis nos mantêm presos à dor e ao
sofrimento de outro tempo e de outro lugar. Muitas culturas acreditam que essa
perda da alma é diretamente responsável pela doença física e mental, ponto de
vista que partilho ao menos em parte. O trabalho do xamã consiste em entrar no
mundo imaginai e libertar a parte da alma que se acha retida.
O reino imaginai em que os xamãs trabalham é a realidade na qual ocorrem
as regressões a vidas passadas. Ele está cheio do simbolismo supracultural que
aparece na mitologia, no Taro, nos arquétipos estudados por Jung. Esses símbo-
los são parte das histórias universais — as Primeiras Histórias — pelas quais
128
passam todas as almas em sua jornada de abandono da matéria e de encontro
com a Luz. Creio que todas as histórias resgatadas em regressões a vidas
passadas são reais no reino imaginai dos arquétipos, mas que somente algumas
delas um dia ocorreram na realidade tridimensional.
Eis como funciona a mecânica, ou talvez eu devesse dizer, a metafísica da
minha teoria. Nossa cultura tem por certo que os objetos sólidos são mais reais
do que os pensamentos. Isso leva, por sua vez, ao pressuposto errôneo de que a
matéria sólida dá origem aos pensamentos. Mas vimos em capítulos anteriores
evidências de que a consciência — a cápacidade de pensar, de sentir, de refletir
que identificamos como eu — tanto sobrevive à morte do cérebro como opera
a distância de maneira bem independente deste. A matéria é apenas uma forma
de vibração inferior da energia do pensamento. E a energia, como ensinou
Einstein, não pode ser criada nem destruída.
Os ensinamentos esotéricos de culturas antigas vêem a realidade como o
domínio a partir do qual a energia do pensamento passa por uma condensação
e se precipita no mundo mais denso da forma física. Em outras palavras, coisas
materialmente reais têm uma realidade precedente no mundo imaginai. E bem
depois do fim da existência física, as ações que realizamos e os pensamentos
que criamos continuam a existir como aquilo que veio a ser denominado
elementais no mundo imaginai. Em contrapartida, a realidade tridimensional é
um nível de criação menos duradouro, um mundo espectral, que desaparece
como um sonho quando despertamos na morte. Logo, o mundo físico em que
procuramos a realidade objetiva das vidas passadas não é mais do que uma
projeção de uma realidade mais permanente em que todas as histórias que já
vivemos — e muitas que podem não ter sido vividas em termos físicos — são
registradas e continuam a existir para sempre. Como todas as histórias têm
origem nesse domínio, creio que as intensas experiências encontradas nas
regressões a vidas passadas são objetivamente reais, tenham ou não sido um dia
fisicamente reais.
Essa hipótese explicaria por que mais de uma pessoa pode ter uma regressão
a vidas passadas emocionalmente catártica e com profundo potencial de cura na
qual revivem a vida de Maria Madalena, de Joana D'Are ou de alguma outra
personagem de expressão mítica. Essas vidas são arquétipos—histórias-mestras
— que sempre existem na realidade imaginai e que cada um de nós vivência
com variações em algum momento da evolução de nossa alma.
No curso do desenvolvimento de nossas almas até o que Van Auken
denomina companheiro de Deus, temos de enfrentar as tentações do uso errado
129
do nosso livre-arbítrio, dominar os diferentes domínios da consciência e optar
pela sintonia da nossa vontade pessoal com a vontade divina, na condição de
co-criadores. Enquanto montamos esse gigantesco quebra-cabeça da evolução
da alma, terminamos por vivenciar todos os arquétipos: amante e amado, traidor
e traído, pai e filho, vítima e opressor, sábio e tolo, mestre e discípulo, santo e
pecador.
130
uma advertência para que não nos deixemos apanhar pela dualidade. Com sete
páginas de extensão, ele é composto de paradoxos:
131
CAPITULO SETE
Perdão e Liberdade —
A Narração de um Antigo Conto
Since then, at an uncertain hour,
That agorry returns
And till my ghastíy tale is told,
This heart within me burns. *
[Desde então, em hora incerta, / Essa agonia retorna / E até que o meu conto espectral
seja contado, / Este coração dentro de mim arde.]
Certa noite, quando nosso filho Justin tinha uns seis anos, fiz para ele uma
paráfrase do Sermão da Montanha segundo o Evangelho de Mateus. Quando
terminei, desculpei-me com ele, supondo que devia ter sido enfadonho, e
prometi-lhe comprar uma Bíblia ilustrada. Justin estava sentado no meu colo
com a cabeça apoiada no meu ombro. Ele estava tão imóvel que achei que tivesse
adormecido. Quando me desculpei, ele se virou e me olhou nos olhos: "Para
que você quer me comprar um livro com figuras?", perguntou. E prosseguiu,
* Quando li esse excerto de The Rime ofthe Ancient Mariner em Aí Várias Vidas
da Alma, do dr. Roger Woolger, ele falou perfeitamente às repetições indesejadas dos
meus medos, cujas raízes remontavam a um antigo conto que tinha de ser contado para
que eu encontrasse a paz.
133
com ar sério: "Tenho todas as figuras na cabeça. Afinal, eu estava lá. Vivi numa
caverna no deserto em companhia de outros homens. Era quente de dia e frio de
noite. Não comíamos muito e esperávamos por um grande mestre."
Ele prosseguiu com alguns detalhes, descrevendo a vida de um essênio
(João Batista foi um desses judeus místicos, ascético). Com grande respeito ele
falou que estava no meio da multidão no dia em que Jesus proferira o sermão
que eu acabara de ler, e disse que ele não fora proferido numa montanha, mas
numa área plana. É interessante que um discurso semelhante no Evangelho de
Lucas seja chamado de Sermão da Planície. Além disso, continuou Justin,
pegando sua coberta e voltando a se instalar no meu colo, eu deixara de fora
algumas das melhores partes sobre como Jesus ensinara que devíamos ser
amáveis uns com os outros.
À medida que Justin crescia, o véu entre esse mundo e o outro se tornou
mais espesso, como sucede com a maioria de nós. Afora uma natureza extraor-
dinariamente compassiva, ele não é mais místico do que a maioria de nós. Mas
até os oito anos mais ou menos ele discutia prontamente suas visões de Deus, a
presença do seu falecido avô, explicava como era sentar no colo de Jesus e outros
tópicos que pareciam absolutamente espantosos, vindos literalmente da boca de
uma criança.
Intrigada com os comentários de Justin, segundo os quais eu deixara de fora
as melhores partes do Sermão da Montanha—ou, como ele teria preferido dizer,
do Sermão da Planície —, fui investigar essas belas escrituras. Entre outros
tópicos, os vigorosos ensinamentos de Jesus apresentam uma concisa afirmação
sobre como o perdão encerra os ciclos repetitivos desencadeados pela lei do
carma. Em Mateus 5:18, Jesus afirma: " Em verdade vos digo que, até que o céu
e a terra passem, de modo algum passará da lei um só j ou um só til, até que tudo
seja cumprido." O sermão continua, dizendo-nos como tudo será cumprido; em
outras palavras, como temos de transcender o nosso carma.
Jesus diz que, na antiga lei (a lei de Moisés, dada nos Dez Mandamentos),
foi determinado que não matássemos, mas que isso não basta para entrar no
Reino do Céu. Temos de abandonar a raiva e o ressentimento, bem como obter
o perdão daqueles a quem ofendemos. "Portanto, se estiveres apresentando a
tua oferta no altar, e aí te lembrares que o teu irmão tem alguma coisa contra ti,
deixa a tua oferta ali diante do altar e vai; reconcilia-te primeiro com o teu irmão
e depois vem apresentar a tua oferta", pois do contrário serás " lançado na prisão;
em verdade te digo que de maneira nenhuma sairás dali enquanto não pagares
o último centavo" (Mateus, 5:23-24, 26).
134
O perdão é o modo pelo qual pagamos o último centavo e encerramos o
ciclo cármico — o perdão de nós mesmos, dos outros e de Deus, de quem
podemos ter nos queixado pela aparente injustiça das nossas provações e do
nosso sofrimento. No Sermão da Montanha, Jesus ensinou o que veio a ser
chamado de Oração do Senhor, como a prática diária do perdão. Infelizmente,
as traduções deficientes das palavras originais de Jesus em aramaico para o grego
e daí para o inglês obscureceram parte da riqueza dos seus ensinamentos.
Compare o texto da Oração do Senhor na Versão do Rei James com os excertos
muito mais sensíveis e factuais da tradução de Neil Douglas-Klotz, retirados de
Prayers ofthe Cosmos: Meditations on the Aramaic Words of Jesus.
135
A RECONSIDERAÇÃO DO PERDÃO
Essas maneiras de entender o perdão irradiam o tipo de delicada profundi-
dade e amabilidade que Justin acredita ter ouvido de Jesus há 2.000 anos. A rica
sonoridade das palavras aramaicas fica registrada no corpo, evocando as mesmas
emoções veiculadas de modo mais fraco na tradução. Recomendo enfaticamente
as meditações de Prayers ofthe Cosmos, que usam os sons originais aramaicos
como foco para as meditações que têm o corpo como centro. O perdão, um
profundo estado de desapego, é vivenciado como a liberdade do relaxamento
profundo e o bem-estar corporal.
Os conceitos mentais de perdão têm menos imediaticidade do que o ato
físico de desapego, sendo muitas vezes confundidos e confusos. O perdão não
é o ato leviano de desculpar comportamentos irresponsáveis e prejudiciais. Nem
é a entrega superficial da outra face que nos torna vítimas e martirizados. Ele se
configura, na verdade, como o encerramento de questões pendentes, o que nos
permite vivenciar o presente, livres da contaminação do passado.
Aplicado a nós, o perdão exige uma completa consideração de quaisquer
atos danosos que tenhamos cometido, consciente ou inconscientemente, ao lado
da necessária reparação. No processo — que analiso longamente em Um Livro
para Curar o Coração e a Alma —, aprendemos sobre responsabilidade, sensibi-
lidade, empatia e amabilidade. Essas lições são interiorizadas, e o processo se
completa quando perdoamos a nós mesmos ao abandonar o apego àquilo que
fizemos e, em seu lugar, celebramos aquilo em que nos transformamos.
Aplicado a outras pessoas, o perdão é um processo mediante o qual nos
libertamos da servidão diante de outra pessoa, que é mantida enquanto fazemos
julgamentos a respeito dela. Embora seja uma resposta inicial adequada quando
somos feridos, a raiva é paralisadora se continuarmos a usá-la para ter razão e
atribuir todo erro a outra pessoa. As vezes preferimos apegar-nos a alguém que
já morreu, por meio da raiva, como se a raiva pudesse dar-lhe uma lição! Ou
talvez prezemos a nossa raiva acreditando erroneamente que isso nos tornará
mais poderosos e menos vítimas. Contudo, nesse caso nos tornamos vítimas da
nossa própria raiva, o que, por sua vez, mais nos enfraquece do que nos leva ao
verdadeiro poder.
Fiz certa vez uma demonstração de cinesiologia, ou força muscular, para
um grupo de adolescentes de uma escola para delinqüentes juvenis. A maioria
dos meninos era integrante da gangue do centro da cidade, e um detector de
metal na porta era a única coisa que mantinha os revólveres e facas fora da sala
136
de aula. Quando perguntei aos garotos o que eles achavam que os tornava mais
fortes, se o amor ou a raiva, eles responderam com olhares estudados de tédio e
de desgosto e com algumas risotas.
Pedi a um voluntário que me ajudasse a resolver a questão. Pensei que
nenhum deles se ofereceria, mas um jovem terminou por se juntar a mim diante
dos companheiros. Pedi-lhe que fizesse toda a força que pudesse com o seu braço
mais forte junto ao ombro para resistir aos meus esforços de puxá-lo na minha
direção. Fiquei surpresa ao ver como ele era fraco — mal conseguia resistir à
força vertical do meu braço (tenho apenas 1,62 m de altura e calço 35) puxando
o dele para baixo.
Eu já fizera essa demonstração antes em seminários com mulheres normais,
que tinham muito mais força no braço do que aquele adolescente musculoso,
cuja força vital já havia sido drenada pela raiva. Pedi-lhe que reunisse todas as
forças pensando concentradamente em algo que de fato o deixava fora de si. Ele
fechou os olhos por um momento e então fez sinal de que estava preparado. Pude
dobrar-lhe o braço com a pressão de dois dedos! O brilho em seu rosto deu lugar
a um ar de surpresa. Pedi-lhe então que pensasse em algo de que gostasse e testei
novamente o seu braço. Sua força — ou eu talvez devesse dizer fraqueza —
original havia voltado. Talvez, se aquele infeliz jovem tivesse tido condições de
acesso a uma lembrança verdadeiramente amorosa, a demonstração tivesse sido
como sempre. Ele teria ficado forte como um touro ao entrar em sintonia com a
força do amor.
Se um garoto como esse empurrasse você e roubasse a sua carteira ou bolsa,
você provavelmente ficaria irritado, e essa raiva lhe faria bem. Talvez ela o
advertisse para não andar sozinho em certos lugares da cidade ou o estimulasse
a fazer um curso de defesa pessoal. Se a sua raiva se tomasse empatia, ela poderia
levar você a entrar num programa de ajuda ou a defender os menos favorecidos.
Mas o apego a ela terminaria por transformá-la num problema. Talvez ela se
tornasse preconceito, atitude de vítima ou desejo de vingança. Essas atitudes
iriam tirar a sua paz de espírito e esfraquecê-lo física e emocionalmente. Em
termos espirituais, ela criaria vínculos cármicos com futuras situações semelhan-
tes.
Quer perdoemos ou não o ladrão adolescente — o que eqüivale a escolher
a prisão ou a liberdade para nós mesmos —, ele é, em última análise, responsável
pelas suas ações. Nossa decisão de apegar-nos à raiva e à sede de vingança ou
de nos desapegar-nos delas não é uma mensagem a Deus acerca da culpa ou da
137
inocência de outrem. Não somos o juiz nem Deus é o júri. Cada qual tem as
chaves do seu próprio destino.
Para mim, o deciframento de uma lembrança de uma vida passada me
proporcionou as chaves para uma atitude de perdão a mim mesma e aos outros,
que terminou por permitir que eu abrisse uma nova porta em minha vida e
encontrasse a libertação do terror de, em toda a vida, ser prejudicial aos outros.
138
a saber que era um dos meus guias, veio ao meu encontro na porta da cidade e
me advertiu para manter distância. Disse que eu ainda não estava pronta para
estar num lugar em que os pensamentos se manifestavam instantaneamente.
Bati numa apressada retirada mental, analisando outra vez o pouco controle
que de fato tinha sobre os meus pensamentos e que desastre seria se todos eles se
tomassem realidade. Nos anos seguintes, eu contemplara em algumas ocasiões essa
cidade à distância e, em outras ocasiões, eu me aventurara a chegar a uma de suas
arcadas exteriores. Naquela manhã, porém, fui conduzida pelo meu guia por uma
calçada de flamejantes cubos de luz. Fomos diretamente ao Salão de Vidas Passadas,
onde havia um enorme livro com o meu nome, contendo toda a história da minha
alma desde que ela nascera na Luz Una Também me mostraram uma tela de
computador em que era possível indicar qualquer padrão psicológico para ter acesso
a uma vida passada vinculada a ele.
O padrão do medo de magoar ou trair inconscientemente alguém melhorara
um pouco no ano anterior com o resgate das duas primeiras lembranças de vidas
passadas, mas de vez em quando ainda se manifestava , e eu sabia que havia mais
caminho a percorrer na jornada da libertação. Assim, procurei acesso ao "medo
paranóide" no computador cósmico e surgiu a imagem de uma bela mulher
sendo conduzida pelo escuro corredor de uma masmorra. M me disse que ver
mais da vida passada em questão poderia ser perturbador, mas que havia chegado
a hora de eu ficar livre do padrão cármico que ela representava.
Enquanto meditava sobre o Yom Kippur, o Dia da Reconciliação, eu era
levada à Cidade das Luzes, onde escrevi as minhas resoluções para o Ano-Novo
no livro da minha vida. Afirmei com vigor que aquele seria o ano de transcender
a negatividade passada. Afirmações feitas conscientemente na presença de Deus
são orações fortes.
A resposta às minhas orações veio na forma de duas amigas cujo amor e
cuidado transcenderam o tempo e o espaço para me ajudar a perdoar aos outros
c a mim mesma e a conseguir a libertação do carma passado. Conto essa história
porque ela ilustra uma grande lei cósmica: "Batei e a porta se abrirá." A porta
que se abre para toda pessoa que faz uma oração sincera é ímpar, porque somos
Iodos ímpares, únicos. Eu, com certeza, não defendo a terapia de vidas passadas
para todos. Na maioria dos casos, trabalhar com os problemas desta vida é
suficiente para levar-nos a novos níveis de percepção e para encerrar questões
inacabadas. Mas, para mim, a recordação de vidas passadas representou um
importante divisor de águas.
139
UM CONTO ANTIGO
O fim de semana do equinócio de outono, uma das duas passagens do ciclo
anual em que as horas de escuridão eqüivalem exatamente às de luz, marcou a
ocorrência do quinto círculo de cura comunitário que eu e Myrin promovemos.
Nossa querida amiga Tricia Stallman estava perto do fim de sua delicada e bela
vida. Ela e o marido, Alvin, tinham pedido que fizéssemos o círculo em sua casa,
pois ela estava muito fraca para deixar o leito.
Como costumava acontecer, Tricia estava alegre, ainda que com as forças
diminuídas. Ela estava no pavimento superior, em sua cama, e cerca de cinqüenta
pessoas estavam no pavimento inferior, na sala de estar. Quando os nossos
cânticos começaram a refletir a nossa tristeza pelo fato de Trich estar prestes a
encerrar sua passagem pela Terra, ela bateu no assoalho para nos dizer que
fôssemos devagar — ela ainda não havia partido!
Na viagem de uma hora de volta para casa, Myrin e dois dos nossos amigos
refletiam sobre a alegria de Trish e sobre a sua cura. Todos disseram ter a
esperança de, quando chegasse o nosso momento de morrer, estivéssemos tão
íntegros quanto ela — com todas as questões resolvidas, o coração em paz e a
alma livre dos arrependimentos e ressentimentos que nos mantêm prisioneiros.
A discussão sobre a cura e a libertação daquilo que a filosofia denomina a Roda
do Nascimento e da Morte continuou quando chegamos em casa. Uma das
mulheres presentes era a nossa amiga Elena B urton, médica e analista junguiana.
Myrin e eu a conhecíamos há dois anos, e ela costumava nos visitar, muitas vezes
usando a nossa casa para retiros curtos. Estranhamente, embora eu soubesse que
Elena procurava fazer regressões a vidas passadas como parte do seu trabalho,
nunca faláramos disso com profundidade.
Elena nos disse que reservava o trabalho com a terapia de vidas passadas
para certas circunstâncias em que o cliente já recorrera a todos os outros métodos
de análise e tinha uma questão definida e urgente a considerar. Eu era alguém
assim, e a melhor terapeuta que eu podia imaginar, a quem conhecíamos e em
quem, como fica implícito, confiávamos, estava na nossa casa. Combinamos
uma sessão para a manhã seguinte, que era o verdadeiro dia do equinócio, além
de ser época de lua cheia.
Escolhemos um espaço confortável e sagrado para fazê-lo — o chão do meu
escritório, que também é o meu santuário. As paredes estão cobertas de livros.
Meu confiável Macintosh fica, sempre pronto, sobre a grande mesa branca de
onde se avista uma cerejeira de ramos pendentes. À direita da mesa, há um
140
oratório, um lugar para meditação, uma saleta triangular que é, na verdade, um
cômodo do qual tirei as portas. Nele há um altar simples — uma mesa baixa com
uma vela, um cálice e alguns objetos sagrados. Fotos de familiares, de amigos,
de animais e de santos estão aqui e ali nos cantos e um suave odor de incenso
impregna a sala.
Elena fez um ninho no tapete rosa, cobrindo uma esteira de ioga com uma
manta para que eu pudesse me deitar confortavelmente durante o que veio a ser
uma sessão de quase três horas. Depois de uma parada no altar para rezar, Elena
me cobriu com um acolchoado de retalhos rosa e azuis. Sua voz era suave,
acolhedora e firme. Faríamos uma jornada à alma, uma jornada de cura e de
sabedoria. Quando a minha respiração ficou lenta e regular, reagindo à sua sábia
e tranqüila presença, ela me perguntou se havia algum animal de poder cuja
ajuda eu desejava engajar. Vi-me imediatamente nas costas de um animal amigo
(acredita-se que é melhor manter a identidade desses ajudantes animais em
segredo, para podermos imaginar esse espírito da maneira que quisermos),
viajando por um escuro e aquoso mundo inferior.
Depois de algum tempo, chegamos a uma paisagem devastada e castigada
pelo vento. Pântanos solitários se estendiam até um mar pesado que parecia se
alongar interminavelmente no horizonte. O vento assobiava pelas janelas de
pedra de um pequeno castelo abandonado cujo vestíbulo fora tomado pelo mato
alto. " Onde você está?", perguntou a voz de Elena, parecendo vir de outro
mundo.
"Na costa norte da Inglaterra", respondi, sentindo-me gelada e com um
estranho mal-estar. Eu podia "ver" com os meus olhos interiores que um
esqueleto estava enterrado no atulhado chão sujo do porão do castelo. Elena me
perguntou se eu queria ficar e examinar o castelo ou ir para outra época. Eu
estava indecisa e ela me instruiu para perguntar à alma da pessoa cujo esqueleto
se encontrava ali. Como é típico no domínio imaginai, não havia onde procurar
a alma. Minha intenção de procurá-la fez com que eu encontrasse instantanea-
mente um homem que reconheci como meu pai naquela vida.
Ver aquele rosto querido diante de mim me levou a uma nítida experiência
numa vida na Inglaterra do século XIII, na época em que o terror distante das
Cruzadas arrefecia apenas para tomar a forma de perseguição local. Nessa vida,
eu era a filha, a mais nova de três irmãos, de um pequeno monarca cujo reino à
beira-mar era grande mas pobre quanto à agricultura. Nascida clarividente,
desde a mais tenra infância eu era propensa a ter extraordinárias visões, em que
141
o irmão do meio, George, planejava matar meu pai e meu irmão mais velho,
William, o herdeiro natural das terras.
Meu pai encarava as visões como histeria, acautelando-me para não reve-
lá-las a ninguém. Embora nunca chegasse a acreditar totalmente em mim, ele
sentia que eu podia correr o perigo de a notícia da minha presciência chegar aos
ouvidos das autoridades da Igreja, que poderiam me perseguir como bruxa.
Minha mãe era simplesmente frágil demais e facilmente perturbada para me dar
atenção. Deprimida pela fria e inclemente costa da Inglaterra e saudosa da casa
de sua infância no clima ensolarado do sul da França, ela passava boa parte dos
seus dias perdida nas fantasias de sua juventude. Eu ficava sozinha com os meus
medos e teria enlouquecido não fosse por Martha, minha dedicada governanta.
Aos dezessete anos, o que na época já significava bastante idade, desposei
um italiano com o nome improvável de Morgan. Ele ganhara fama nas Cruzadas
e fora para a Inglaterra a pedido das autoridades eclesiásticas. Ele foi a primeira
pessoa da minha vida que levou a sério a minha clarividência. No seu país, ele
me confidenciou, todas as decisões nas esferas do poder eram tomadas depois
de consultas a videntes. Ele estava feliz por poder contar com o meu conselho.
Quanto à questão do meu pai e de George, ele me disse que não me preocupasse.
Ele iria protegê-los. Senti, por fim, alguma paz.
Minha felicidade, no entanto, durou pouco. Logo fiquei grávida do nosso
primeiro filho, a pequena Anna. À medida que a gravidez prosseguia, minha
visão mediúnica se reduziu e, por ocasião do nascimento da menina, desapareceu
por inteiro. Morgan ficou furioso tanto com o nascimento de uma filha — ele
queria um herdeiro homem — como com a perda dos meus poderes. Fomos nos
afastando cada vez mais. Pouco mais de um ano depois do nascimento de Anna,
nasceu-nos um segundo filho, Michael. Embora eu esperasse que a alegria de
Morgan com o nascimento de um menino fosse melhorar nossas relações, seu
afastamento só aumentou.
Contudo, eu vivia relativamente bem no meu mundo. Martha, minha velha
ama, me acompanhara quando me casei com Morgan e agora me ajudava com
Anna e Michael, que eram crianças lindas e inteligentes. Certo dia, estando eu
em nossos aposentos com os três, minha clarividência voltou e tive uma visão
terrível que revivi com espantosa intensidade emocional.
Comecei a soluçar e a gemer. Elena me estimulou delicadamente a expulsar
pelo choro o meu pesar e a lhe contar o que estava acontecendo. Na visão, eu e
o meu pai formávamos uma unidade. Era como se minha alma estivesse no corpo
de meu pai e eu vivenciasse a vida de sua perspectiva. Meu marido, Morgan,
142
acabara de feri-lo com uma lança e, ao mesmo tempo, meu querido pai via meu
irmão George matando meu outro irmão, William. Não há palavras capazes de
descrever a angústia dessa repulsiva traição. O horror da cena era aumentado
para mim pelos pensamentos do meu pai agonizante. Como meu marido era o
assassino, ele acreditava que fora traído tanto por George como por mim.
Depois de me afastar no tempo desse trauma monstruoso, revivi os tristes
detalhes dos vários meses que se passaram depois do assassinato do meu pai e
do meu irmão. Elena me fez avançar no tempo para a última semana da minha
vida nessa encarnação. Meu irmão e meu marido, traiçoeiros, me haviam
entregue à Igreja como bruxa. Declarada culpada, fui condenada à morte por
fome e desidratação. Enquanto era conduzida por um longo salão para uma
masmorra onde havia outras mulheres presas, reconheci a cena que me fora
revelada na meditação do Salão das Vidas Passadas, antes de M me aconselhar
a não ver mais sobre aquela vida.
As outras prisioneiras daquele calabouço ouviram a minha história com
interesse e compaixão, confortando a jovem que tentara a vida inteira proteger
o pai e o irmão e terminara por ser considerada traidora. Nessa mesma tarde,
uma das mulheres morreu. Foi uma morte luminosa; o cômodo ficou cheio de
luz e de paz transcendente. De outra dimensão, ela prometeu me esperar na hora
da minha morte e dar-me passagem livre para o Outro Lado. Neste ínterim, Elena
levou-me ao momento da minha morte naquela vida. Ali, na presença da Luz,
reconciliei-me com meu pai.
Depois de reviver essa história, fiquei deitada, exausta, amparada pela
querida Elena, cuja amorosa presença lembrava fortemente o círculo de mulhe-
res daquela masmorra. Elena e eu revimos a regressão do ponto de vista da
traição. Naquela vida, fui traída, mas minha maior dor foi o fato de meu pai
ter-me considerado traidora. Elena me lembrou outra vez da necessidade da alma
no sentido de viver ambos os papéis para, então, transcendê-los mediante o
perdão.
Minha incapacidade de perdoar a mim mesma por incidentes que evocam
a sombra da traição desta vida estava inexoravelmente ligada à raiva remanes-
cente que eu ainda tinha contra George e Morgan de um ciclo de vida de 800
anos atrás. Que tal esse tempo todo conservando o rancor? O Sermão da
Montanha é sucinto no seu ensinamento sobfe a liberdade. Para sermos perdoa-
dos, temos de perdoar. Apegada a uma rai va de que eu não tinha consciência até
que a regressão me despertasse a lembrança, eu ainda representava o drama do
traidor e do traído numa de suas intermináveis configurações. Esse conhecimen-
143
to permitiu-me recuar no tempo e perdoar aqueles antigos atores do teatro das
almas, encontrando assim um novo nível de amabilidade com relação a mim
mesma.
As velhas lembranças da alma não nos oferecem apenas a chance de resolver
assuntos pendentes; elas nos dão a oportunidade de apreciar o amor e a beleza
que existem mesmo nos momentos de dificuldades. A lembrança rediviva dessa
vida passada redespertou em mim uma profunda gratidão pelo círculo de
mulheres que tinham oferecido umas às outras, naquela época, um passamento
seguro. Tenho a mesma gratidão pelo círculo de mulheres com quem tenho o
privilégio de partilhar esta vida, algumas das quais você já conheceu nas páginas
precedentes, havendo mais uma, que irá conhecer em seguida enquanto ela cruza
o mundo onírico para tecer mais uma fieira na tapeçaria da totalidade.
O CÍRCULO DE MULHERES
Cerca de uma semana depois de Elena me conduzir através dessa regressão,
algumas orientações práticas para afastar a sombra do medo foram acrescentadas
por outra colega e amiga íntima, Robin Casarjian. Robin é terapeuta e autora de
um maravilhoso livro, Forgiveness: A Bold Choisefor a Peaceful Heart. Além
de atender clientes e dirigir seminários, ela é fundadora e diretora da Lionheart
Foundation, que patrocina seminários sobre o perdão nas prisões. Ao longo dos
anos, Robin tem sido um firme e amoroso ponto de apoio, bem como uma mestra
do perdão, da confiança e do equilíbrio.
Robin, Elena e eu dirigíamos um seminário intitulado "Cura Profunda:
Como Curar a Ferida da Indignidade" num centro de conferências a oeste de
Massachusetts. Robin e eu fomos juntas de carro e conseguimos nos perder
enquanto conversávamos. Chegamos exaustas, na sexta à noite, bem a tempo de
encontrar Elena, jantar e dirigir a sessão noturna. Era meia-noite e pouco quando
eu e ela nos deitamos em quartos contíguos.
Tive um sonho, que eu chamei de: " O Carma Está Chegando ao Fim". Ele
começa como um pesadelo, em que sou perseguida por uma energia que não foi
completamente destruída e fica ressurgindo na forma de pequenas criaturas
como as de "O Aprendiz de Feiticeiro". Quanto mais tento destruí-las, tanto
mais elas se reproduzem! Todas as criaturas acabam desaparecendo mas eu fico
em estado de alerta esperando a sua volta. Lidero um grupo de pessoas que
partilha dessa aventura e parece que estão aprendendo muito com isso. No
momento, estamos seguros, mas esperamos a próxima manifestação da energia
como um ataque de um raivoso bando de gaivotas. Mas, em vez disso, vemos
144
essa energia caminhando por uma rua como uma fila de ratos mecânicos, com
estrutura de arame. Eles nada têm de assustadores.
Não é preciso um especialista em sonhos para ver que esse sonho se
relacionava com a manifestação de um antigo padrão de energia que não fora
completamente resolvido e que continuou a voltar na forma de ataques assusta-
dores. Quando, finalmente, essa energia é enfrentada, o medo perde sua força,
e se torna um mestre, voltando como uma hilariante sombra do seu antigo eu.
Robin também sonhou nessa noite. Enquanto subíamos pelo longo caminho
dos nossos quartos ao salão de café, ela nos disse que o sonho não parecia ter
nenhuma relação com seus assuntos, mas que dava a impressão que tinha a ver
com os meus. No sonho, Robin, que é uma pessoa deveras circunspecta, partilha
detalhes sobre os problemas de um de seus clientes com um terapeuta de quem
recebe orientação. O outro terapeuta impensadamente conta esses detalhes a
mais alguém e a coisa termina chegando aos ouvidos do cliente, que, com toda
a razão, fica indignado. A reação de Robin no sonho reflete sua atitude vígil de
responsabilidade e confiabilidade. Ocorreu um episódio muito infeliz, em que
um de seus pacientes ficou magoado. Ela gostaria que isso não tivesse aconte-
cido, mas aconteceu. Assim, ela diz a si mesma: "Foi o que se passou mas,
aconteça o que acontecer, posso me virar."
Esse sonho tão simples apresentava o tipo de incidente que antes me faria
sentir um medo e uma angústia terríveis. No momento em que Robin o contou
a mim, houve uma espécie de mudança de sentimento. A verdade esposada pelo
poeta medieval Wolfram Von Eschenbach, no primeiro verso do seu poema
sobre o Santo Graal, foi registrada num novo nível de percepção: "Todo ato
tem resultados bons e maus. O melhor que podemos fazer é pretender gerar
os bons." Eu precisava deixar de me preocupar com os possíveis resultados de
cada ação e simplesmente pretender gerar os bons. Se houvesse resultados
negativos, paciência! "Foi o que aconteceu. Haja o que houver, eu tenho de
saber como me virar."
E assim é. A afirmação de Robin tornou-se um instrumento prático que uso
sempre que sou tentada a dar vida a antigos padrões de medo que afloram quando
fantasio que algum ato meu passa ter resultados desfavoráveis. Sei que não
podemos controlar o universo. Apesar dos nossos melhores esforços, ainda
surgirão circunstâncias difíceis. Estamos sempre aprendendo, sempre evoluin-
do, sempre nos lançando contra as paredes das prisões que criamos para nós
mesmos quando o ímpeto da liberdade começa a latejar no nosso peito. E se nos
lembrarmos de que a força do amor nos sustém e de que auxiliares visíveis e
invisíveis surgem para nos ajudar quando oramos, quando, pedindo assistência,
encontraremos a coragem de nos libertar das amarras do passado.
145
CAPÍTULO OITO
Emmanuel
147
coragem enquanto você não o engolir. Por isso o aconselho a bebê-lo assim que
puder." O Leão, induzido pela crítica a se lembrar do que j á havia no seu interior,
deu um passo à frente e assumiu seu lugar de direito como o corajoso rei da
selva.
148
Agi com base na única coragem que eu conhecia — a aplicação de uma
forte vontade que me permitiu agir apesar do medo. Embora eu concordasse em
seguir com a vida, essa estratégia me mantinha paralisada e me impedia de curar
o meu relacionamento com minha mãe, fato de que sinceramente me arrependo.
Como muitas mulheres privilegiadas de sua época, ela fora criada para acreditar
que, para uma mulher, o sucesso estava em desposar um homem abastado. Fazer
o bem à filha significava me ensinar modos perfeitos, dando-me garantia de que
eu tivesse as lições corretas (piano, balé, canto, elocução, dança de salão),
criticando e corrigindo todos os defeitos corporais e comportamentais a fim de
melhorar minhas oportunidades de atrair o Príncipe Encantado, e desestimulan-
do toda curiosidade intelectual que pudesse parecer ameaçadora aos olhos de
um homem. E ela o fez com mão de ferro.
Retrospectivamente compreendo que ela se empenhava em garantir para
mim uma boa vida da melhor maneira que estava ao seu alcance. Mas, aos vinte
anos, eu me sentia controlada, frustrada, não-reconhecida, raivosa e enrijecida.
Eu queria ser cientista e casar com o meu amor do colégio, a quem ela não
aprovava. O abismo entre nós parecia intransponível. Minha vida tinha de ser
vivida nos seus termos ou eu seria um fracasso.
Apesar de seu rigor, ela era sob alguns aspectos uma mulher excepcional
—leal, forte e com um senso de humor dos melhores. Ela estava à beira da morte
antes de curarmos o nosso relacionamento. Eu tinha então vinte e poucos anos.
Sinto falta dos anos de intimidade que poderíamos ter partilhado se eu não
tivesse corrido para fora do consultório do psiquiatra, recusando a sua ajuda no
sentido de me ensinar a coragem do Estágio 2 — a disposição de ser honesta,
de enfrentar as velhas feridas, de curar o passado e de me tomar eu mesma.
149
uma brecha ou lacuna entre nós e a outra pessoa mais importante para nós, uma
fenda na alma que nos acompanha por toda a vida com um doloroso vazio que
nada pode preencher.
A fenda que se forma na alma durante essa fase com freqüência se amplia
nos primeiros anos da infância. Minha mãe, superprotetora, costumava interferir
na minha necessidade de espaço, tentando moldar-me à sua imagem. Eu era
digna de amor se e quando atendesse às suas exigências. A seu ver, a boa
maternagem significava premiar-me pelo meu conformismo, em vez de facilitar
o desenvolvimento do meu modo de ser. Como afirmo em Um Livro para Curar
o Coração e a Alma, esse tipo de amor condicional, com sua ameaça implícita
de abandono caso não correspondamos, é extremamente perturbador para uma
criança. Ele parece uma ameaça de morte.
Para nos livrar dessa ameaça, desenvolvemos uma série de falsos eus, ou
máscaras, que nos proporcionam atenção. O perfeccionista, a vítima, o brinca-
lhão, o salvador, o santo, o bonzinho, o criador de problemas — eis alguns dos
falsos eus comuns que podem nos ter garantido aprovação e atenção, ou podem
nos ter mantido relativamente seguros quando crianças. Se, como adultos,
passarmos a acreditar que essas máscaras representam quem de fato somos,
terminamos por nos sentir ansiosos e vazios de nós mesmos. A fenda na alma
se amplia, e podemos tentar preenchê-la com comida, álcool, drogas, relações
dependentes, excesso de trabalho, sexo ou bens materiais.
Vazio é uma boa descrição de como eu me sentia aos vinte anos. Eu não
sabia quem eu era. Por fora, eu me mostrava uma superempreendedora perfec-
cionista mas, por dentro, era cheia de vergonha e de dúvidas com relação a mim
mesma. Concluí que minha verdadeira identidade era a de uma perdedora, de
uma farsante. Se soubessem quem eu de fato era, eu pensava, as pessoas me
odiariam. Não admira que eu me sentisse ansiosa!
Reconhecer e desmantelar as nossas máscaras é uma parte indispensável do
desenvolvimento da coragem psicológica e da descoberta da nossa verdadeira
identidade. Em Um Livro para Curar o Coração e a Alma, sugiro que se trabalhe
com a criança interior — o eu ou eus mais jovens que ainda persistem no nosso
íntimo, ansiando por respeito, conforto, compreensão e a oportunidade de se
tornar um adulto amoroso e sábio." Sam", por exemplo, tinha cerca de quarenta
anos quando me procurou para uma terapia de asma e bronquite. Quando lhe
perguntei se ele tinha alguma recordação do que ocorria na sua vida quando a
asma se manifestou, ele fez um gesto de assentimento que denotava tristeza.
Seus primeiros anos tinham sido idílicos até que, aos oito anos, todo o seu
150
mundo, de repente, desabou. Seu pai morreu num acidente com um guindaste
defeituoso. Sua mãe, quando se viu sozinha para cuidar de Sam e três filhos
menores, ficou deprimida. As crianças foram separadas e mandadas para a casa
de vários parentes durante três anos até a recuperação da mãe.
A resposta de Sam foi típica de uma criança — culpar a si mesmo. Ele
pensou que o colapso da mãe fora culpa sua, por ele não a ter ajudado o
suficiente. Ele se decidiu a ser, a partir de então, um bom menino em todos
os sentidos, a fim de redimir-se do que imaginava ser um fracasso. Ele não
suportava se sujar; isso daria mais trabalho à tia em cuja casa ficou depois
da crise da mãe. Ele sempre ajudava em casa, recusando muitas vezes os
folguedos para participar de tarefas domésticas ou estudar. Sam esqueceu-se
de como sentir alegria, reprimindo sua espontaneidade e mantendo-a presa
dentro de si. Afinal, ele raciocinara em sua mente infantil, se tivesse sido
mais sério e mais útil, sua mãe jamais teria adoecido. Se ele tivesse feito
melhor o seu novo trabalho de "homem da casa" depois da morte do pai, a
família poderia ter continuado unida. As tensões que ele sentia na época
manifestaram-se como asma.
Quando adulto, Sam viu a asma piorar com freqüência sempre que alguém
se irritava com ele ou mesmo suspeitasse de que ele poderia tê-lo desapontado.
Nessas ocasiões, a culpa imerecida e doentia que ele carregava desde a infância
irrompia como uma intensa ansiedade — sentimentos remanescentes da época
em que sua família se desagregou. Sam tentou manter a culpa e o medo sob
controle, esforçando-se por ser útil, amável, gentil e cooperativo. Anulando-se
para ajudar os outros, Sam se acostumara a ignorar-se a si mesmo. Todos os seus
movimentos eram ditados pelo medo de desapontar alguém.
O pesar e a vergonha que Sam suportara quando criança ainda estavam
aprisionados no seu corpo e no seu comportamento. Eles nunca tinham sido
curados. Era um processo quádruplo consistindo em lamentar a perda da
infância, sentir a raiva que naturalmente acompanha a perda, compreender a
situação de uma perspectiva adulta e perdoar a si e às outras pessoas nela
envolvidas. Esse processo de cura profunda abre o coração e cria compaixão por
si e pelos outros.
A medida que começou a exprimir o seu pesar, Sam encontrou partes do
seu próprio ser com as quais perdera o contato. Componentes da sua totalidade,
como a alegria e a raiva, tinham sido desautorizadas em sua meninice e entregues
à sombra, à " grande sacola" de que fala Robert Bly, que carregamos pela vida
até termos coragem de abri-la e esvaziá-la. Em A Little Book on the Human
151
Shadow, Bly comenta que "passamos a vida, até os vinte anos, decidindo que
partes de nós vamos pôr na sacola, e gastamos o resto da vida tentando tirar tudo
dela outra vez".
O processo de desmontar a máscara e de resgatar nossa integralidade da
sacola é a coragem psicológica em ação. Enfrentar e transformar a velha dor
com base nessa autodescoberta gradual pode, às vezes, promover também a cura
física. No caso de Sam, por exemplo, a asma tinha um claro vínculo com o
trauma infantil e com a dissociação da sua personalidade em máscara e sombra.
Além de ajudar Sam a aprender técnicas de autodisciplina, incluindo meditação,
respiração ventral e o uso da imaginação criadora para dilatar seus brônquios,
eu o fiz realizar o trabalho de cura da sua criança interior de oito anos.
No seu processo de cura, Sam viu desaparecerem em larga escala a asma e
o medo. Quando o vi na consulta de acompanhamento, seis meses depois, sua
aparência sofrerá uma completa alteração. Ele estava mais alegre e descontraído.
A tensão saíra do seu rosto e ele parecia dez anos mais novo. O que ocorreu com
Sam, a decisão de enfrentar a dor, física ou emocional, é o primeiro passo no
desenvolvimento da coragem psicológica — a vontade de ter consciência, de
resgatar a alma perdida e de corrigir a fenda que nos prejudica a alma.
Nesse processo fascinante e desafiador de cura da alma e de autodescoberta,
é inevitável pensar nas perguntas tão antigas quanto o tempo — "Quem sou
eu?" e "Qual o sentido da vida?" — da nova perspectiva que incorporamos.
Nesse alargamento dos horizontes reside a coragem espiritual. Esse terceiro
estágio da coragem é revelado de forma natural e gradativa quando os véus
através dos quais antes víamos a vida caem dos nossos olhos e começamos a
vislumbrar o amor infinito de que é feito todo o nosso drama.
152
um enlevo, transportados pela pura beleza de uma trilha de montanha ou com o
olhar perdido nos olhos de quem amamos. Sabemos disso quando abandonamos
o nosso pequenino eu e encontramos o nosso Eu maior no canto ou na dança.
Sabemos disso quando uma surpreendente e feliz descoberta nos delicia e somos
novamente lembrados de que a coincidência, como diz o velho ditado, é somente
uma maneira de Deus permanecer anônimo. Infelizmente, tendemos a nos
esquecer disso no resto do tempo. A coragem espiritual advém da nossa vontade
de continuar lembrando, de prosseguir na busca do sagrado por trás de todas as
facetas aparentemente profanas e mesmo adversas da vida.
A coragem espiritual suplanta a crença de que o universo é amigo e que,
apesar de todas as aparências em contrário, estamos em última análise seguros.
Ela se configura como o saber interior de que é assim. Esse saber é um amálgama
de todas as nossas experiências, sonhos, descobertas felizes e práticas de
recordação — como as meditações e orações e as " sensações de reconhecimen-
to" e "heurecas" casuais que vêm até nós quando sentimos que a história de
alguém desperta nossas lembranças e se tornam parte do conhecimento da nossa
alma.
Minha coragem recebeu um considerável impulso, como resultado de uma
série de fatos nada comuns que cercaram o falecimento de minha mãe em março
de 1988. Embora sua morte de enfisema e de deficiência cardíaca congestiva
tenha sido lenta e, por certo, muito incômoda, pois a doença fazia com que o seu
coração e os pulmões falhassem e que o seu corpo ficasse inchado como uma
melancia, ela raramente se queixava. Sendo uma mulher que não revelara suas
emoções na vida, ela também não as deixou vir à tona às portas da morte. Em
suas horas finais, sua maneira de dar desfecho a assuntos pendentes foi simples
e direta. Ela levantou a cabeça enquanto descíamos por um elevador, voltando
de um teste final, e me disse: "Cometi muitos erros na vida. Você me perdoa,
Joanie?"
Peguei-lhe a mão e respondi simples e delicadamente: "Perdôo, mamãe. Eu
também cometi muitos erros. Você me perdoa?" Ela fez que sim e fomos em
silêncio para o seu quarto. Meu irmão estava lá com os filhos. Meu marido e
dois dos meus filhos também. Também estavam outros parentes, amigos e duas
senhoras amigas que tinham cuidado de minha mãe em sua longa enfermidade,
Iodos reunidos para dar-lhe um último adeus.
O sol já ia se pondo, lançando longas sombras sobre uma fria tarde de um
Dia de São Patrício, que só exibia um diminuto indício da primavera vindoura.
As janelas do hospital possibilitavam uma visão do horizonte de Boston, e as
153
luzes da cidade começavam a despertar no lusco-fusco violáceo. Foi a última
vez que vimos um pôr-do-sol juntas. Demo-nos as mãos, ela imóvel e deitada
pesadamente entre os lençóis brancos, apoiando-se nos travesseiros, para impe-
dir que caísse para o lado, pois estava demasiado fraca. Aquela mulher formi-
dável parecia bem vulnerável e, no entanto, numa grande paz.
"Mamãe", comecei, olhando para olhos notavelmente doces e inocentes,
olhos que costumavam cintilar de intransigência e que muitas vezes lançavam
chispas de raiva. "Mamãe, quero trocar presentes com você. Quero trocar uma
qualidade especial, uma qualidade de espírito que admiramos uma na outra."
Hesitei por um momento, imaginando se aquela mulher sensível e determinada
não iria pensar que eu estava louca. Vi claramente que ela não pensou. Comovida
pela sua vulnerabilidade e por um sentimento de confiança mútua, fui em frente:
"Sempre admirei a sua coragem. Quero recebê-la como presente de você."
Ela sorriu para mim e apertou minha mão com suas forças em declínio." Eu
lhe dou a coragem", ela disse. "E peço de você a compaixão."
Houve muito amor nesse momento. Ela me viu como compassiva. (A
propósito, quando escrevi esta última frase, meu inconsciente inverteu as letras
de viu (saw), e escrevi "era"(war). Talvez esse lapso capte melhor do que as
palavras a essência da nossa ligação. Senti-me vista, reconhecida, valorizada.
Eu nunca pensara nela como alguém que admirasse a compaixão, nem esperava
que visse a compaixão em mim, já que eu, muitas vezes, havia sido mais raivosa
do que compassiva com ela nos quarenta e três anos do nosso convívio. Talvez
ela tenha ficado surpresa porque eu a considerava corajosa, mas era verdade. Ela
personificava o primeiro tipo de coragem — a vontade indômita, a capacidade
de seguir um dado curso sem se deixar afetar por coisa alguma.
Pelo resto da noite, ela ora perdia ora recuperava a consciência. Ela às vezes
falava que estava vendo a Luz, recuperando plenamente a consciência. Ela
chegou mesmo a fazer alguns chistes, antes de mergulhar no sono final com a
ajuda da morfina. Nosso filho Justin, meu irmão, Alan, e eu ficamos com ela
por toda a longa madrugada em que ela se empenhava em dar à luz a sua alma.
Cantamos para ela, amparamo-la, rezamos por ela, sentamo-nos com ela e
alternadamente perambulamos pelos corredores do hospital.
Num dado momento, sentei-me no quarto dela para meditar e, de súbito,
vi-me dominada por uma nítida visão que me tirou da consciência vígil e me
levou para um outro plano. Foi um tipo luminoso de experiência no decorrer da
qual cada célula do meu corpo se sentiu prodigiosamente viva, e eu sabia que
154
estava testemunhando uma realidade mais profunda do que aquela que se
costuma perceber.
Nessa visão, eu estava grávida, mas já em trabalho de parto. Curiosamente,
eu era ao mesmo tempo o bebê em vias de nascer. Embora o parto envolvesse
dor e medo, eu estava me sentindo profundamente contente, em paz, extraordi-
nariamente bem. Como mãe, eu sentia a sacralidade da condição de ser um
portal para a vida. Como bebê, sentia-me prodigiosamente admirada diante da
Luz brilhante, misteriosa e monumental que eu divisava no final do longo e
escuro túnel do nascimento. Tanto da perspectiva da mãe como do filho, eu me
sentia em total unidade com a minha mãe. A nossa vida juntas — com todas as
suas alegrias, tristezas, raivas e angústias—fazia perfeito sentido. Eu percebia
a consciência de minha mãe descendo pelo escuro túnel e deixando este mundo,
já se rejubilando no esplendor do seu retorno à Luz. Ela me dera à luz neste
mundo, e eu me sentia como se a desse à luz fora dele.
Abri os olhos e deparei com uma sala que parecia permeada de Luz, e
animada por uma energia indescritível, serena. Meu filho de vinte anos, Justin,
também se encontrava lá. Voltando-se para mim, ele me disse em tom muito
respeitoso: " Sinto que a vovó está mantendo aberta a porta da eternidade para
que tenhamos um vislumbre dela. Você sente isso?"
Embora o corpo de mamãe tenha continuado a respirar por mais algumas
horas até a retirada do tubo de oxigênio, senti que a sua alma nascera do Outro
Lado, no silêncio da noite. A lembrança da nossa última conversa e dessa visão
extraordinária permanecia comigo, criando um novo quadro de referência a
partir do qual o nosso relacionamento, por vezes difícil, parecia íntegro e
perfeito. Eu deixara de pensar em termos de perdão — de ser perdoada por ela
e de perdoá-la. A profunda aceitação e identificação que senti com ela no curso
dessas poucas horas deixou-me com uma visão bem ampla da nossa vida juntas.
Essa perspectiva mais ampla, mais abrangente, em que mesmo a dor e a
frustração faziam perfeito sentido como parte do sentido do amor divino, está,
na verdade, no centro do Estágio 3, o da coragem espiritual. Quando lhe pedi
nessa noite a dádiva da coragem, eu não tinha idéia de que teria uma relevação.
Sonhei várias vezes com mamãe nas semanas seguintes ao seu passamento.
Rmbora fossem sonhos variados — engraçados, misteriosos, deliciosos, dolo-
rosos, simbólicos e de cura —, cada um deles era como uma jóia. Num dos
sonhos, ela me lembrava que muitas vezes fora muito ruim e que eu não
começasse a idealizá-la! Noutro, me apoderei da coragem que ela dera para
cn Irentar a dor tanto desta como das vidas passadas que já descrevi em capítulos
anteriores. A experiência da coragem que me fora dada no sonho imprimiu em
155
minha alma uma nova história, devolvendo-me à vida desperta com outra
perspectiva.
No sonho, estou nas montanhas, viajando para dirigir um seminário. Noto
uma porta escondida na encosta de uma montanha e entro numa sala cheia de
gente. Dizem-me ser um bar, mas cedo descubro que estou numa escola de
espiões. Há ali várias mulheres anciãs. Elas me dizem que a escola as levou ao
seu limite de resistência — e por vezes além dele. Elas se mostram cheias de
sabedoria, confiança, força, compaixão e poder. Sinto um forte impulso e quero
submeter-me aos mesmos testes pelos quais elas passaram. Vem-me a percep-
ção de que acabei de ser admitida numa escola para o treinamento da coragem.
Vem o momento do exame final. Enquanto a classe passa por uma sala,
tenho a atenção atraída para um grupo de crianças brincando. Quando levanto
os olhos, dou-me conta de que a classe prosseguiu sem mim. Tenho de encontrar
sozinha meu caminho para a sala do exame. Só sei que devo procurar um buraco
no chão. Novamente do lado de fora, chego a um tronco oco. No seu interior,
vê-se uma gigantesca e escura fenda contendo água. Surpreendendo-me a mim
mesma, salto imediatamente nessa fenda, abandonando-me por inteiro àquela
treva úmida. De modo inesperado, caio numa balsa e viajo a uma velocidade
estonteante por um escuro túnel subterrâneo de água. Sinto uma confiança total
e sei em algum nível profundo que a minha relação com o medo e com o
desconhecido se modificou. Saindo numa paisagem de beleza maravilhosa,
desperto, sentindo-me alegre e sobremodo lúcida.
Anotei o sonho em meu diário e depois me levantei para fazer o café. Ao
lado da cafeteira havia uma etiqueta redonda, dessas que colam quando se retira
a película de trás. Tinha, e ainda tem, cerca de 3 polegadas de diâmetro, na cor
vermelha, tendo letras volteadas em branco que, à primeira vista, pareciam dizer
"Coca-Cola". Mas não. Elas na verdade diziam "Coragem". O símbolo verme-
lho da coragem esperava-me com o café da manhã. Perguntei aos meus filhos e
ao meu marido de onde ela tinha vindo. Ninguém sabia. Ela agora está em meu
escritório, sobre meu processador de texto. Posso vê-la enquanto escrevo. Com
freqüência eu olho para ela ou me lembro dela naqueles momentos em que o
medo toma a minha visão estreita e eu perco uma perspectiva mais ampla.
CORAGEM E LUCIDEZ
Enquanto refletia acerca do meu sonho sobre a coragem, fiquei muitas vezes
a imaginar sobre o sentido de ser aceita numa escola de espiões, literalmente,
156
uma escola para a visão clara do que de fato está acontecendo. A resposta me
veio com um " ahá!" quando eu lia um livro do psicoterapeuta Kenneth Kelzer,
chamado The Sun and the Shadow: My Experiment with Lucid Dreaming. Um
sonho lúcido é um sonho em que tomamos consciência de que estamos sonhando
sem despertarmos. Muitas pessoas de quando em vez têm sonhos assim; e, com
a prática (segundo a abordagem de Kelzer e de outros), a maioria delas pode
entrar com certa regularidade no estado do sonho lúcido. Embora eu só tenha
tido lucidez em sonhos em umas poucas ocasiões, posso me lembrar desses
sonhos com detalhes. No momento em que, de repente, percebemos "Ahá! Patos
não têm pêlo vermelho; devo estar sonhando!", parece que de súbito desperta-
mos num nível completamente diferente de consciência.
O estado lúcido parece "mais real do que a realidade". A percepção dos
sentidos fica mais aguçada e tudo se afigura muito mais vivido do que de
costume, quer na vida desperta quer no estado onírico comum, quase como se
estivesse sendo iluminado a partir de dentro. Nosso corpo também parece
excepcionalmente vivo. A consciência em todos os níveis passa por uma
prazerosa intensificação, e parece que um véu que esconde a beleza e a magia
da vida foi retirado, a fim de revelar as coisas em seu esplendor original. Na
minha opinião, um sonho lúcido é um convite especial, uma passagem para uma
volta temporária a um estado de maior consciência e liberdade.
No livro já citado, Kelzer comenta que, quando ficamos lúcidos num sonho,
transcendemos automaticamente o medo. Fiquei intrigada com a abordagem
dele, pois ela tem vínculos com a minha própria experiência. Ao rememorar
meus sonhos lúcidos, percebi que a coragem que neles sentia não vinha de um
estado da vontade em que eu me opusesse de modo ativo às coisas ruins que
estivessem acontecendo, na expectativa de que ocorresse o melhor. Em vez disso,
a coragem decorria de um estado alterado de percepção — uma verdadeira
lucidez — em que eu sabia, em algum nível, que a situação era, na realidade,
uma atrativa oportunidade de expansão da minha consciência e sabedoria.
Além disso, eu sabia que estava completa e absolutamente segura.
A coragem transcendente, de cunho espiritual, que surge durante o estado
de sonho lúcido tem ao menos três raízes que posso reconhecer. Em primeiro
lugar, nesse estado alterado de consciência, sabemos que estamos sonhando. É
óbvio que os eventos assustadores não passam de partes de um drama passageiro.
Em segundo lugar, quando se está lúcido fica-se estranhamente consciente da
existência de uma fonte de uma tremenda força interior. (Certa feita, enquanto
era perseguida por uma horripilante criatura onírica, dei-me conta de repente de
157
que estava sonhando e fiquei lúcida. Todo o meu corpo onírico começou a
formigar e vi-me cheia de uma vitalidade e de um vigor sobremodo acentuados.
Decidi parar de correr e enfrentar a minha perseguidora, que era particularmente
perigosa por ter poderes sobrenaturais. Senti-me invencível e tive de imediato
condições de pôr fim à ameaça de maneira criativa.) Em terceiro lugar, a lucidez
traz consigo uma sólida convicção de que sobrepujar o medo mediante algum
ato criativo representa uma real evolução da alma.
Os tibetanos, em sua antiga literatura espiritual, falam a respeito do "ioga
do estado onírico", que é o termo por eles usado para o cultivo da lucidez em
sonhos. Como a própria vida é considerada uma espécie de sonho, o cultivo da
lucidez era desejado para permitir que as pessoas despertassem no sonho da vida
e agissem por esse meio com destemor e compaixão. Além disso, O Livro
Tibetano dos Mortos descreve os estados do Bardo, reinos que a alma visita
depois de deixar o corpo e encontrar a Clara Luz da consciência amorosa. De
acordo com essa filosofia, se se puder manter a lucidez ao deixar o corpo na
Terra, a alma poderá percorrer os estados do Bardo e discernir sua natureza
ilusória, sempre orientada para a verdadeira Luz. Dessa maneira, quebram-se os
grilhões cármicos da alma e não há necessidade de renascimento.
Em The Sun and the Shadow, Kelzer resume da seguinte maneira a expe-
riência de reunir coragem no curso de um sonho potencialmente assustador em
que ele ficou lúcido:
Uma das coisas mais estranhas da existência é o fato de podermos ver com
mais clareza no estado de sonho lúcido do que na vida vígil. Nossas percepções
despertas, corriqueiras, são toldadas pela experiência passada e pelo bombardeio
da sociedade, que nos ensina a viver antes evitando o medo do que realizando
o amor. As noites escuras da alma nos desafiam a despertar dos nossos sonhos
de limitação e reivindicar a liberdade que é o nosso destino. Como escreveu o
apóstolo Paulo: "Vemos agora através de um vidro embaçado, mas veremos
então face a face."
158
VER COM CLAREZA: FACE A FACE COM A LUZ
Quando é o "então" — de que Paulo fala — em que veremos face a face?
Temos vislumbres da visão clara ao longo da vida, e não apenas na "clara luz"
que companha a experiência da morte, segundo as filosofias antigas e os 5% de
americanos que passaram pela experiência de quase-morte. As pessoas relatam
momentos em que vêem com clareza — de entrada num estado mental que
parece " mais real do que a realidade" — em visões pré-morte que procedem a
morte física real, em visões transcendentes não-associadas à morte, em sonhos
lúcidos, na meditação, em percepções intuitivas e em "momentos sagrados"
comuns ou em epifanias que todos vivenciam de quando em vez.
Quando esses momentos de visão clara duram o bastante, compreendemos
que vislumbramos o que está além do véu que separa o mundo aparente em que
vivemos de um mundo mais rico e pleno que se mostra literalmente luminoso
ou ocupado pela luz. A expressão comum "ver a luz" significa ter acesso a um
nível mais profundo de entendimento. Quando vemos a Luz, o medo deixa de
existir, porque vemos, para além dele, a radiância que é o próprio amor. Na
presença do amor, as coisas fazem sentido. Tornamo-nos presentes à sabedoria.
O pediatra Melvin Morse é um dos principais pesquisadores americanos no
campo das experiências de quase-morte [EQM], Ele passou a interessar-se por
elas depois que várias crianças por ele ressuscitadas começaram a partilhar
experiências com a Luz inefável que tinham vivenciado do Outro Lado. Em seu
esplêndido livro Cio ser to the Light: Learning from the Near-death Experiences
ofChildren, o dr. Morse discute a dificuldade que a maioria das crianças (bem
como dos adultos) tem para descrever a Luz, visto que expressões como
" toda-sábia", "toda-compassiva" e "toda-amorosa" não chegam sequer a
captar o mínimo do esplendor da experiência em si.
Um dos casos descritos pelo doutor Morse envolveu uma criança chamada
Terry, que entrou em coma e quase morreu por ter ingerido grande quantidade
de analgésicos. Quando adulta, Terry descreveu a experiência infantil de deixar
o corpo enquanto estava em coma e de ter descido por um túnel cheio de água.
Embora o túnel fosse escuro, ela não teve medo. O túnel se bifurcava e ela passou
debaixo de um arco, aparecendo de repente num lugar em que havia uma Luz
por ela descrita como "tão bela que nem poderia ser chamada de luz. Ela
representava o amor, a paz, a felicidade e o júbilo completo e profundo". Ao
sair de sua experiência, segundo seu relato, ela viu "pedaços de luz por toda
parte. Pude ver como tudo no mundo está unido".
159
O dr. Morse conta que crianças que passaram por experiências como essas
são admiravelmente maduras e sábias, bem como compassivas com os outros.
Ao chegarem à adolescência, quase nunca usam drogas ou álcool, compreen-
dendo em algum nível que essas substâncias obscurecem a Luz em vez de
aproximar-nos dela. Ao falar sobre a Luz, Morse cita exemplos em que crianças
viram a Luz sem terem passado pelas experiências de quase-morte. Ele cita o
caso de Edward Robinson, pesquisador de Oxford, que descreve uma experiên-
cia espiritual por que passou enquanto caminhava na praia com a mãe aos quatro
anos de idade; nela, flores pareciam " luzir com um fogo brilhante". Robinson
sabia que esse fogo era o "tecido vivo da vida". Nesse momento, ele teve a
sensação de conhecer o seu lugar especial na ordem das coisas e de ter a certeza
do "bem último".
Se pudéssemos passar pela experiência de Robinson e perceber o nosso
próprio lugar especial na ordem das coisas, aliado à percepção de que o tecido
do amor é o próprio amor e à certeza do bem último, não teríamos medo, mas a
coragem e o otimismo de caráter espiritual advindos da percepção direta daquilo
queé.
Acredito firmemente que existem maneiras de aprender a coragem espiri-
tual que vem pela graça a alguns de nós em visões, sonhos e experiências de
quase-morte, como vou expor na Parte Três. Claro que não precisamos de muita
coragem enquanto não enfrentamos o medo, e talvez essa seja a melhor razão
de todas para sentir medo — ele nos motiva a descobrir a verdadeira coragem
por meio de uma sincera busca do sagrado. Todavia, até desenvolvermos a
coragem e o otimismo que nascem da visão clara das coisas, podemos cultivar
a esperança de que a nossa dor e o nosso medo sejam uma iniciação à Luz.
ESPERANÇA E RENDIÇÃO
Esperança é um termo que se costuma aplicar ao futuro. Esperamos
que nossa saúde esteja boa ou que, se ficarmos doentes, ela melhore.
Esperamos que nossos filhos se saiam bem, que haja paz na Terra, que
tenhamos dinheiro suficiente para pagar as contas. Esse tipo de esperança é
diretivo, deliberado. Tal como a coragem do Estágio 1, a que nasce da vontade,
só somos " felizes" se conseguimos o que desejamos, se é feita a nossa vontade.
Como a coragem espiritual, a esperança espiritual tem mais probabilidade de se
manifestar quando renunciamos à vontade e nos tornamos receptivos à confian-
ça. O irmão David Steindl-Rast, monge beneditino que participa do movimento
160
contemplativo que pretende unir a espiritualidade ocidental e oriental, fala da
esperança em seu livro Gratejulness, The Heart ofPrayer:
Algumas pessoas imaginam que a esperança seja o grau mais elevado do otimismo,
um gênero de otimismo superlativo. Ocorre-me a imagem de alguém alçando-se
cada vez mais alto, até o mais inenarrável pináculo do otimismo, para ali agitar a
flâmula da esperança. Uma descrição mais precisa seria a de que a esperança se
manifesta quando chegamos ao fundo do poço do nosso pessimismo. Ali, não temos
outro lugar para ir além da realidade última do cuidado maternal de Deus. Eis por
que São Paulo nos diz que a " tribulação leva à paciência; a paciência à experiência;
e a experiência à esperança" (p. 136).
161
Os budistas têm uma abordagem semelhante para encontrar esperança em
momentos de adversidade e passando a agir de acordo com os termos do que
denominam "ação correta". Em vez de especificar para o universo o que a
situação significa e o que é necessário para corrigi-la, a abordagem budista é de
receptividade, é uma atitude de " não sei". O " não sei" torna possível o silêncio
e o silêncio viabiliza a sabedoria. Desse ponto de vista, a esperança nada tem de
vontade futura, sendo antes uma profundidade de compreensão capaz de trans-
formar o passado e o futuro, bem como de levar à ação consciente que ajuda a
moldar acontecimentos futuros.
Vista assim, a esperança é uma questão de perspectiva, termo que vem do
latim perspicere, " ver através". Isso tem a ver com a coragem que nasce da
visão clara. O oposto disso está vinculado com o desencorajamento: nossa visão
fica obscurecida, e nos sentimos perdidos e sem esperança. No seu livro Healing
Visualizations, o psiquiatra Gerald Epstein fala do seu encontro com uma famosa
psicoterapeuta israelense, Colette Aboulker-Muscat, que tem reputação interna-
cional pela sua capacidade de curar pessoas física e emocionalmente por meio
do envolvimento criativo da imaginação delas. Desencantado com a prática da
psicanálise freudiana, que muitas vezes produz mudanças, mas de modo lento,
se é que as produz, Epstein procurou Madame Aboulker-Muscat para ver como
ela usava imagens para criar novas perspectivas que levavam à alteração de
padrões de crença, de comportamento e de funcionamento corporal.
Ela disse a Epstein que Freud comparara a psicanálise a um trem. Olhando
para a paisagem os pacientes descreveriam o que conseguissem ver para o
analista sentado na poltrona ao lado. Virando-se para Epstein, Madame Aboul-
ker-Muscat de repente lhe perguntou: " Em que direção vai o trem?" Ele moveu
o braço no sentido horizontal para indicar o sentido usual do curso do trem. Ela
mudou de súbito a perspectiva assumida por Epstein ao mover o braço para cima.
"Bem, e se mudássemos a direção neste sentido?"
Epstein escreve:
Não consigo detalhar o que me passou pela cabeça naquele momento. Nem tenho
certeza de que então eu soubesse. O que eu sabia e ainda sei como a verdade daquele
momento é que tive uma avassaladora sensação de auto-reconhecimento; aquilo a
que se dá o nome de experiência:" ahá!" Foi uma epifania. O movimento no sentido
vertical [do braço de Madame Aboulker-Muscat] pareceu me retirar do domínio
horizontal do contexto, dos padrões comuns de causa e efeito com que convivemos
diariamente. Saltei para a liberdade e vi que a tarefa da terapia — a tarefa do ser
162
humano — era ajudar a realizar a liberdade, a ir além do dado, rumo à novidade de
que todos somos capazes e da nossa capacidade de renovar e re-criar (p. 126).
A esperança olha para todas as coisas da mesma maneira como a mãe olha o filho,
com uma paixão pelo possível. Mas esse modo de ver é criativo. Ele cria um espaço
em que a perfeição pode despontar. Mais do que isso, os olhos da esperança
enxergam, para além de todas as imperfeições, o coração de todas as coisas,
julgando-o perfeito (itálicos meus; Gratefulness, The Heart of Prayer, p. 142).
163
momento para aquilo que ainda não nasceu, bem como não se desesperar se não
houver nascimento no curso da nossa existência (p. 9).
164
PARTE TRÊS
Meditação e Oração
Restauradora do Equilíbrio
Só se pode ver bem com o coração; o essencial é invisível aos olhos.
167
A visão espiritual de Fritz abriu-se subitamente com essa torrente de energia
em ascensão. Lá estava ele, sentado na cama do hospital, vendo as mesmas coisas
que já vira com seus olhos físicos, mas agora de maneira completamente
diferente. Ele falou de ter visto as enfermeiras andando de um lado para outro
com injeções e pílulas, mas de sua perspectiva ampliada ele sabia, no nível mais
profundo do seu ser, que tudo estava perfeito. Tudo o que estava acontecendo
estava perfeito. Pense nisso por um minuto. Você já percebeu alguma vez que
todo o belo e terrivelmente louco drama da vida é perfeito? Essa percepção às
vezes se manifesta em momentos sagrados, breves suspensões do tempo nas
quais a eternidade se insinua no nosso ser e sentimos a integridade inerente da
vida.
Fritz entrou nesse estado num ambiente inusitado para um momento sagra-
do — hospitalizado, com uma solução nutritiva altamente calórica pingando em
suas veias. Suspenso num estado de perfeição, ele também se deu conta de sua
pureza interior. Pense nisso! Como a gente deve se sentir ao saber que, apesar
de todos os erros que cometeu, apesar de todas as ocasiões em que se sentiu tolo,
indigno, ruim ou simplesmente "aquém do desejado", você vê, de uma hora
para outra, que o seu ser interior é perfeito, digno e insuspeito. Essa é a
experiência de ver ou de perceber o Eu Superior, a verdadeira natureza de quem
somos.
Se você não teve uma experiência pessoal desse tipo — e a maioria das
pessoas estão nessa situação —, você pode achar difícil entendê-la. Quando me
contou sua experiência, Fritz tinha os olhos brilhantes e o rosto calmo. Dele
emanava a pureza que experimentara e uma extraordinária humildade.
Graças a uma fascinante experiência de serendipismo,* eu sabia exatamente
o que Fritz queria dizer, e não só em termos de empatia, pois eu vivenciara esse
mesmo estado em 1989 como parte de uma cerimônia religiosa dirigida por um
xamã sul-americano. Fora-nos dada uma bebida extraída de ayahuasca, uma raiz
que muitos povos nativos usam como parte de suas práticas religiosas, há
milhares de anos. O extrato contém uma substância geradora de visões que abre
uma porta para o reino imaginai das Primeiras Histórias e para a percepção direta
do sagrado.
168
No início, a planta me provocou náuseas e inquietação, mas depois de cerca
de vinte minutos me acalmei e fechei os olhos. Tornei-me consciente do
movimento de fantásticas correntes de energia no meu corpo. A experiência era
multissensorial. Senti a energia, vi-a como luz e cor e a ouvi na forma de uma
música indescritivelmente bela. Tal como Fritz, senti a ascensão da kundalini.
Começou na base da coluna e passou para o meu ventre. Embora eu já tivesse
ouvido a expressão "chamas nas entranhas", eu nunca passara antes por essa
experiência. A energia era um tipo vigoroso e tempestuoso de coragem, que parecia
mais um fogo no espírito. Era uma certeza e uma confiança absolutas de que eu
tinha um propósito nesta vida, de que eu estava em sintonia com ela e de que
teria toda a ajuda necessária na realização desse propósito. Quando a energia me
atingiu o coração, fui, à falta de melhor termo, "mostrada" no interior da minha
própria alma. Chorei incontrolavelmente diante da percepção de que eu era de
uma pureza perfeita.
Embora todas as escrituras antigas assegurem o leitor de que o Eu essencial
é puro e imaculado, é difícil imaginar como é vivenciar na prática essa verdade.
Em vez de ver com os olhos do coração (o ponto de vista do Eu), a maioria de
nós vê com os olhos do ego (concentrando-se nas falhas e no medo). Assim,
como você pode imaginar, a repentina compreensão da pureza constitui uma
extraordinária mudança de percepção. Por alguns momentos, no decorrer do
relato de Fritz, tive novamente uma percepção da vida por meio dos olhos do
coração, sentindo perfeição em todas as coisas. O Isha Upanishad diz: " Para
aquele que vê todas as coisas no Eu, como pode haver ilusão ou pesar, quando
ele vê essa harmonia em todos os lugares?" 1
Fiquei intrigada, quando Fritz prosseguiu com a sua descrição, porque a
segunda parte dela também constituía um exato paralelo com a minha. Depois
de perceber sua pureza e a perfeição absoluta de todas as coisas, ele começou a
se dar conta do seu ego. O ego é aparte do nosso ser que julga achar-se separado
169
do Todo. Tal como uma criancinha assustada, aterrorizada com a idéia de ser
abandonada, o ego projeta medo e culpa a fim de conservar o seu aparente
controle sobre os acontecimentos. Assim, ele mantém a ilusão de segurança à
custa da separação em relação ao Eu, aos outros e ao divino.
É uma experiência fascinante perceber o Eu essencial, puro, e, ao mesmo
tempo, o ego. O ego pode se levantar e dizer: "Tudo isso é uma loucura; você
não é puro", e depois repetir os seus erros ou levá-lo numa jornada através do
medo. Durante minha experiência com a kundalini, descobri que podia identi-
ficar as artimanhas do ego e simplesmente me separar dele e retomar à pureza.
Esse movimento de ir e vir entre o ego e o Eu ocorre de modo mais sutil em
nossas horas de vigília, quando passamos de momentos em que estamos relaxa-
dos e concentrados no presente para momentos em que nos sentimos presos a
dúvidas e medos passados e futuros. Desenvolver a capacidade de observar, de
perceber essas mudanças normais da consciência é o começo da aprendizagem
destinada a fazer a passagem voluntária do ego para o Eu.
A prática da meditação é o mais antigo método conhecido de superação do
ego e de aprender a ver com os olhos do coração — o Eu —, mas também tem
uma variedade de outras aplicações: medicinais, psicológicas e espirituais.
Devido às múltiplas facetas da meditação, há um desconcertante conjunto de
práticas destinadas a promover resultados diferentes mas relacionados entre si.
Um bom guia para a diversidade dessas práticas é o livro de Daniel Goleman,
The Meditative Mind.
Mais adiante, neste mesmo capítulo, partilharei com você algumas práticas
simples. Mas antes de chegar a esses aspectos práticos, consideremos alguns
aspectos técnicos.
170
ficar com a mesma concentração que a pantera tem ao caçar o seu jantar! Nesse
estado, a criatividade floresce, a intuição leva a uma sabedoria mais profunda,
o sistema de cura natural do corpo é ativado, as nossas melhores potencialidades
físicas e mentais se manifestam e nos sentimos psicologicamente satisfeitos.
Esses são os frutos da meditação secular, quer ela ocorra naturalmente ou a partir
da intenção específica de meditar durante uma atividade, como caminhar, fazer
ginástica, observar a beleza da natureza, ou concentrar-se mentalmente num
estímulo mental recorrente sentado, de olhos fechados.
Comecei a fazer meditação secular em função dos seus benefícios medici-
nais e, com o tempo, descobri seus benefícios psicológicos e espirituais mais
profundos. Como conto em Minding the Body, Mending the Mind, comecei a
meditar no final dos anos 60, desesperada, quando um conjunto aparentemente
infinito de enfermidades vinculadas com o estresse — incluindo enxaqueca,
síndrome de irritação intestinal, pressão alta, bronquite crônica, crises de ansie-
dade, disfunção imunológica e surtos de tontura — não reagia ao melhor
tratamento médico convencional.
Na época, aluna de pós-graduação em ciências médicas na Escola de
Medicina de Harvard, tive acesso a excelentes médicos. Entretanto, a cura dos
males que me afligiam não se deveu à meditação. Ela decorreu, antes, do fato
de eu ter aprendido a renunciar ao perfeccionismo e à insegurança do ego que
estavam na base do meu stress, e eram uma fonte de ruptura para o meu sistema
nervoso.
Meu sistema nervoso era como um carro com excesso de aceleração, sempre
pronto a reagir a uma ameaça. Como praticamente todas as interações com outro
ser humano pareciam ameaçadoras, ele vivia numa hiper-reação crônica à vida.
Aprendi a usar técnicas simples de respiração e meditação para reduzir a
excitação do meu sistema nervoso, técnicas de que trato detalhadamente em
Minding lhe Body, Mending the Mind. Com seis meses de prática regular da
meditação, todos os meus sintomas físicos tinham desaparecido, resultado que
na época parecia milagroso.
Os benefícios fisiológicos da meditação receberam um tratamento científi-
co, pela primeira vez, nos trabalhos de Herbert Benson, M.D., e R. Keith
Wallace, Ph.D. Eles descobriram que a meditação transcendental, que envolve
a concentração num mantra — ou som sagrado —, reduzia o número de
batimentos cardíacos, desacelerava o ritmo respiratório e o consumo de oxigê-
nio. Essas alterações eram acompanhadas de alterações hormonais reprodutíveis
e de um aumento das ondas alfa no córtex cerebral. Eles descreveram essas
171
mudanças repousantes e restauradoras como um "estado hipometabólico des-
perto" , que Benson mais tarde denominou resposta de descontração, o oposto
fisiológico da reação de "lute ou fuja". Benson também mostrou que todo tipo
simples de meditação que envolve concentração, seja secular ou não-secular,
produzia o mesmo conjunto essencial de mudanças corporais saudáveis.
Pesquisas mais recentes demonstram que, em certas condições, reações
imunológicas deficientes como a atividade natural das "células assassinas"
(linfóticos que patrulham o corpo em busca de células infectadas por vírus ou
células cancerosas) e a função das células auxiliares (linfócitos que ajudam o
sistema imunológico a formar anticorpos contra bactérias, parasitos e fungos
invasores) podem ser restauradas de maneira perceptível por formas simples de
meditação como o relaxamento muscular progressivo. Deve-se destacar que
esses efeitos benéficos só se fazem sentir passadas algumas semanas de medi-
tação, mesmo em iniciantes, que quase sempre acham que não estão meditando
de maneira correta. Quando pergunto em seminários quem medita, muitas mãos
costumam levantar-se; quando pergunto quantas pensam que meditam "bem",
a maioria das mãos são baixadas.
Muitos acham que a mente é um lugar muito agitado, que fica pulando de
pensamento para pensamento como um macaco na selva. As pessoas em geral
perdem o foco e se perdem em pensamentos, dando-se conta desse desvio
minutos depois e pensando: "Ora, eu devia estar meditando." Isso é absoluta-
mente natural. Cada vez que você é levado pelos pensamentos e volta ao seu
foco escolhido de concentração, os músculos mentais da percepção plena estão
sendo exercitados. O notável é que mesmo quando a maior parte do período de
meditação é gasto pensando, ainda assim se produzem alterações corporais
benéficas. Quando se pára de meditar, essas mudanças, em geral, desaparecem
em poucas semanas.
A resposta da descontração induzida pela meditação tem-se provado útil
como tratamento médico para uma ampla gama de distúrbios e dores crônicas
associadas ao stress. Jon Kabat-Zinn, Ph.D., meu colega no Centro Médico da
Universidade de Massachusetts, em Worcester, desenvolveu um bem pesquisa-
do programa clínico cuja base é uma forma de meditação denominada atenção
total. Seu livro Full Catastrophe Living explica de que maneira a antiga prática
da atenção total — ou percepção momento a momento de tudo o que existe —
pode reduzir a dor crônica e aliviar uma variedade de distúrbios físicos.
A diminuição da dor é alcançada, não somente pelos efeitos fisiológicos da
meditação, como também pelas mudanças mentais que a atenção total exercita.
172
A prática da atenção total estimula o desenvolvimento de uma consciência
observadora que tem consciência da dor sem se envolver emocionalmente com
ela. Ser alguém que tem consciência da dor (seja ela física ou emocional) é
totalmente diferente de ser vítima dela. O resultado dessa mudança é uma
redução do sofrimento e o rompimento do ciclo vicioso da impotência, da raiva
e da tensão que a dor pode manter. O programa de descontração e diminuição
do stress criado pelo dr. Kabat-Zinn foi uma inspiração e o primeiro modelo da
Clínica Mente-Corpo de que fui co-fundadora em 1980 e que dirigi até 1988,
em dois diferentes hospitais-escola da Escola de Medicina de Harvard. Minding
the Body, Mending the Mind baseia-se nas nossas experiências na clínica e
centra-se de modo especial nos aspectos físicos e psicológicos da meditação de
concentração, da atenção total e da imaginação criativa.
Recebi há pouco tempo a carta de um homem que lera o livro a que nos
referimos e gostou muito dele, embora tenha achado que ele "escondia algo".
Ele leu depois Um Livro para Curar o Coração e a Alma, e descobriu que a
espiritualidade que estivera implícita no meu primeiro livro fora explicitada no
segundo. Cuidar do corpo e fortalecer a mente é algo que se baseia no solo mais
profundo da restauração do nosso relacionamento com o espírito, quer falemos
da nossa alma individual, quer falemos do Espírito Universal de que todos somos
parte. Ao longo dos anos, muitos dos meus pacientes, assim como eu mesma,
começaram a praticar a meditação devido aos seus efeitos sobre o corpo e
prosseguiram em sua prática devido à sua progressiva cura da alma e abertura
para o espírito.
173
Você pergunta: " Se Aquele a quem a minha alma ama está dentro de mim, por que
não O encontro, por que não O sinto?" O Amado está oculto. Seu Noivo é como
um tesouro escondido num campo, pelo qual o mercador vendeu todas as suas posses
(Mt 13:44), e esse campo é a sua alma. Para encontrá-Lo, você tem de esquecer
todas as suas posses e criaturas, e recolher-se às câmaras interiores, secretas, do seu
espírito.
174
Talvez você, como eu, já tenha se sentado para meditar e se surpreendeu
recordando alguma raiva nova ou antiga. Você pode tentar negar ou expulsar a
raiva do pensamento — "Oh, não! Não devo ter raiva agora. Essa raiva está
estragando a minha paz" — ou acolhê-la e examiná-la, em busca de alguma
informação — "Isso deve ser um resquício dos meus sentimentos infantis a
respeito da minha mãe. Interiorizei a sua natureza crítica e estou projetando
isso" —, então você a estará ativando e ela passará a ser o seu foco de atenção.
Como, então, enfrentar essas vigorosas "criaturas" que se interpõem no
caminho que leva ao coração? Dizem os budistas que não se acalma um touro
bravo prendendo-o num curral, mas deixando-o livre no pasto. A idéia é deixar
que a mente tenha um amplo espaço ao redor do touro — no nosso caso, os
pensamentos raivosos — reconhecendo-se a presença da raiva, procurando
desapegar-se dela, e voltando a se concentrar no tema da sua meditação. Se tiver
alguma idéia sobre a raiva, espere até o término da meditação para examiná-la.
Se for algo importante, você vai se lembrar; se não for, você esquecerá. Algumas
das instruções mais claras sobre como tratar dos pensamentos, sobre onde
concentrar a mente e como pensar acerca do processo de meditação são dadas
na prática da oração atenta.
175
A oração restauradora do equilíbrio difere da maioria das formas de
meditação de concentração porque, embora envolva a repetição de uma palavra
sagrada escolhida pela pessoa que medita, o seu foco não é essa palavra em si,
mas o silêncio interior. A palavra — que pode ser simples como "paz",
" shalom", " Jesus", " desapego" ou outra preferida — não é repetida continua-
damente, mas apenas como um lembrete para voltar ao silêncio quando a mente
começar a se dispersar. A palavra é sagrada, diz Keating, não por causa de suas
características, mas porque fortalece a nossaintenção de permanecer na presença
de Deus:
A palavra é uma palavra sagrada por ser o símbolo da sua intenção de se mostrar
receptivo ao mistério da presença de Deus, além dos pensamentos, imagens ou
emoções. Ela é escolhida, não pelo conteúdo, mas pela intenção. Ela é somente um
indicador que exprime a direção do seu movimento interior para a presença de Deus
(itálicos meus; p. 110).
176
usando a palavra sagrada, como estava previsto, para me fazer voltar ao silêncio
quando a minha mente se desvia.
Seja qual for a técnica usada para alcançar o silêncio, você logo vai
desviar-se dele. Sua mente vai começar a perguntar, a duvidar, a avaliar, a
criticar, a comentar, enfim, a retirá-lo da unicidade. A meditação é uma espécie
de luta marcial mental porque aprendemos a evitar a mente e a voltar ao silêncio.
Eis o que a repetição da palavra sagrada ajuda você a fazer.
Sempre que a mente se desvia, a idéia é voltar à palavra sagrada, quando
você deve preservar sua intenção de permanecer na unicidade do Eu. Keating
aconselha:
177
ondas de imagens atraentes ou repulsivas, ou idéias e revelações aparentemente
capazes de abalar o mundo. Um tipo sutil de pensamento descrito por Keating
é a auto-reflexão:
Keating afirma que estar na presença divina é como respirar. Podemos ter
todo o ar que desejarmos, desde que não tentemos tomar posse dele nem nos
apegar a ele! Num certo momento, você poderá mergulhar no silêncio e tudo o
mais vai desaparecer, inclusive a palavra sagrada. O que acontece então pode
variar. Tal como ocorre no sono profundo, você pode perder de todo a consciên-
cia e sair do tempo. Pode ter uma experiência como a de Fritz e a minha. Pode
entrar na Luz. De qualquer modo, as instruções de Keating são deliciosamente
claras: " Não resista a nenhum pensamento, não se prenda a nenhum pensamen-
to, não reaja emocionalmente a nenhum pensamento. Qualquer que seja a
imagem, o sentimento, a reflexão ou a experiência que atraia a sua atenção, volte
à palavra sagrada."
Esse tipo de meditação nada tem de complicado e as instruções são claras.
Ele serve tanto ao iniciante como para quem medita há muito tempo. A prática
simples do desapego ajudará você a ter consciência da presença do divino na
natureza, em si mesmo e no próximo. O amor e o júbilo inerentes ao Espírito —
que constituem a própria essência do Espírito — começaram a permear a sua
vida. Onde há o amor e o júbilo como o alicerce do seu ser, a dor e o medo só
podem existir transitoriamente, como barcos flutuando rio abaixo. E nos mo-
mentos em que a nossa atenção se fixar nesses barcos, teremos a coragem e a
esperança necessárias para compreender as palavras do Rei Salomão: " Isso
também passará."
178
presença divina. Em tempo de calor, medito ao ar livre perto de um pequeno
lago que fizemos no nosso quintal, onde criamos um peixe-dourado japonês
chamado Koi e onde lançamos uma colônia de girinos, que se transformaram,
naturalmente, em ruidosas rãs. Os reflexos na água, o cheiro de terra e a natureza
em mutação — a primavera cedendo lugar ao verão, que se transforma em
outono — são um maravilhoso cenário para a meditação.
Nossa atual casa é grande o bastante para que eu finalmente tenha um lugar
reservado especificamente para a meditação quando não faz bom tempo. Antes
disso, eu usava o tampo de uma mesa de escritório, um canto da cozinha ou do
vestíbulo. Há anos retirei as portas de um pequeno espaço do meu estúdio e
pintei de branco seu interior de forma triangular.
As paredes são adornadas com retratos de crianças, de amigos, de familia-
res, de animais de estimação e de vários santos. As fotos têm em comum o estado
interior das pessoas e animais. Todos projetam amor e alegria. Costumo passar
alguns minutos contemplando esses belos rostos antes de começar. No centro
desse espaço, há uma mesinha com uma variedade de objetos que considero
carregados de sentido e que vão se modificando com o passar dos anos. Um
deles é uma grande pedra de mais ou menos um quilo que tem uma forma muito
semelhante a uma mama humana, inclusive com uma auréola pigmentada e um
bico. Minha querida amiga Célia Thaxter Hubbard a encontrou numa praia, anos
atrás, e me presenteou com ela como uma recordação da Grande Mãe. Ao lado
de uma caixa de sândalo, onde está a rosa que se encontrava no travesseiro da
minha mãe quando ela faleceu, a pedra evoca o feminino divino.
Uma pedra cinza-clara, em que se divisa perfeitamente um coração cinza-
escuro, é um lembrete da continuidade entre esta vida e os mundos invisíveis.
Quando o jovem Mathew Hitchcock faleceu no verão de 1990, fui caminhar na
praia dois dias depois do acontecido. Senti a presença de alguém e pensei: " Se
for você, Mat, dê-me um sinal de que está bem." Olhei para o chão e vi a pedra
do coração de que falei anteriormente. Um vaso em que ficaram as pétalas de
rosa que nosso grupo feminino jogou em mim quando saí numa viagem de
< li vulgação de Um Livro para Curar o Coração e a Alma, um coração de madeira
rulalhado por um amigo e oferecido a mim e a Myrin como presente de
i usamento; um pequeno Buda de prata enviado da Tailândia, por amigos; e um
vaso com cinza sagrada da índia, são pedras de toque que evocam o amor, o
vínt-ulo e a gratidão. Uma vela, um porta-incenso e um cálice completam o meu
rspuço sagrado.
179
Mesmo não dispondo de um lugar que possa considerar seu, você pode ter
uma " sacola medicinal" com suas pedras de toque. Quando estiver pronto para
meditar, disponha os objetos da maneira que desejar; ao terminar, guarde-os
outra vez! Algumas pessoas gostam de queimar incenso ou de "fumigar"
(purificação ritual vinda da tradição dos índios americanos) seu espaço de
meditação com cedro ou artemísia. Faça o que quer que o deixe feliz e dirija o
pensamento para o sagrado. Mas lembre-se de que todo esse ritual é em seu
benefício e não para invocar a presença de Deus. O Criador Cósmico já está
presente.
2. Liberação das tensões. Seja qual for o lugar escolhido para meditar, comece
por fechar os olhos e fazer alongamento. Faça algumas respirações de desapego.
Se estiver tenso, faça um breve relaxamento muscular progressivo. Quando
sentir o corpo descontraído, verifique sua postura. É mais fácil meditar com a
coluna reta e o corpo numa posição simétrica.
180
sagrado" é maravilhoso, não apenas como introdução à oração restauradora do
equilíbrio ou a outros métodos de meditação, mas também como uma meditação
em si:
Faça o alongamento com bastante lentidão. Agora feche os olhos e faça algumas
respirações de desapego, como se desse grandes suspiros de alívio ... Observe a
que se assemelha a respiração, de que maneira o seu corpo se eleva ligeiramente
quando você inspira e como ele volta à posição anterior quando você expira ...
Frua a sensação da entrada e saída do ar, percebendo o seu ritmo natural ...
sentindo que cada expiração é uma oportunidade de você se entregar à parte mais
profunda do seu ser... ao repositório de suas lembranças especiais ... Lembre-se
de um momento sagrado ... um momento em que você se sentiu profundamente
ligado à vida ... contemplando um pôr-do-sol... criando alguma coisa bela ... em
profundo contato com outra pessoa... amando um animal de estimação... sentindo
a sua presença na vida ...
Se mais de uma lembrança vier à sua mente, escolha uma delas e reviva-a
com todos os detalhes que foram do seu agrado ... O que você vê ao seu redor,
acima e abaixo de você?... Quais são as cores eformas das coisas?... Há algum
som?...
E fragrâncias?... Quais as texturas das coisas que o cercam? Você está
tocando em alguma coisa ou sendo tocado por alguma coisa? ... Há brisa? ...
Você pode sentir a terra sob os pés? ... Que sensações essa lembrança provoca
no seu corpo? ...
Deixe que essa lembrança se dissipe e concentre-se nas sensações de paz que
permanecem.
181
respiração. Inspiro e repito aaah, trazendo Deus para o meu corpo. Expiro e
repito " bwoooooon", sentindo o alento de Deus movendo-se pelo meu corpo e
ressoando nas minhas células. Na oração para restaurar o equilíbrio, não nos
concentramos na respiração; para isso, basta repetir abwoon sem referência a
ela.
Expressões seculares como "obrigado", "paz", "amor", "beleza", "har-
monia" , "unicidade" ou qualquer outro atributo do Eu Superior também podem
ser boas palavras sagradas. Escolha qualquer palavra, ou palavras (desde que
curtas), que você considerar sagrada, lembrando-se de que a verdadeira magia
não está nas palavras, mas na sua intenção de usá-las para se dirigir à presença
sagrada de Deus.
5. O estabelecimento de uma prática. A meditação é um hábito. Para
formar a maioria dos hábitos, precisamos repetir um comportamento até que ele
se torne uma segunda natureza. Escolher um determinado horário para medita-
ção e comprometer-se a meditar diariamente nesse horário é a melhor maneira
de começar e de ir em frente. O melhor é praticar por, no mínimo, vinte minutos.
Quanto maior o tempo dedicado a meditar, tanto maior o silêncio a que se poderá
chegar. Costuma demorar uns quinze minutos até que a mente comece a se
aquietar, razão por que um período mais longo de prática aumenta a intensidade
do silêncio que se pode vivenciar. Mas se você só tiver dez minutos num
determinado dia, é melhor ter dez do que nenhum! Bons horários para praticar
são as primeiras horas antes de o dia começar e pouco antes do jantar. Mas
qualquer momento serve, desde que você não esteja exausto (é provável que
você fique sonolento), não tenha acabado de ingerir uma farta refeição (também
pode haver sonolência) nem tenha, um pouco antes, tomado duas xícaras de café
(é provável que você se sinta irrequieto).
Embora muitas pessoas se beneficiem de uma prática regular da meditação
em repouso, essa não é, de modo algum, a única maneira de se lembrar do
sagrado. Como veremos no próximo capítulo, lavar a louça pode ser meditação,
assim como afagar o gato. Minha meditação favorita de todos os momentos é
um pequeno e úmido pedaço de bolo de chocolate, comido com refinada atenção
e tremenda gratidão. Sempre que estamos plenamente presentes ao momento,
estamos meditando. Nessas ocasiões, estamos livres das limitações do pensa-
mento e em unidade com o rio da vida.
182
CAPÍTULO DEZ
A oração da hora de dormir que aprendi quando criancinha foi: " Agora que
vou dormir, não deixe, Senhor, minha alma cair. E se eu morrer antes de acordar,
não deixe, Senhor, de minha alma levar."
Eu achava um horror recitar esta quadrinha. Eu mal conseguia fechar os
olhos, imaginando com quanta freqüência Deus levava as almas de criancinhas
enquanto elas dormiam. Havia na verdade duas coisas terríveis nela. Em
primeiro lugar, eu podia morrer enquanto dormia. Em segundo, Deus podia não
levar a minha alma. E se isso acontecesse? O que acontecia com as almas de
criancinhas que não encontrassem o caminho para casa? Ficariam vagando
eternamente nas trevas ou eram devoradas por espíritos maus? Cheguei à
conclusão de que rezar não era para mim. Era algo que acabava com a minha
paz de espírito.
Quando, aos oito anos, fui para um maravilhoso acampamento de meninas
judias, minhas idéias sobre a oração começaram a mudar. A oração da hora de
dormir no Camp Pembroke era uma suave canção de entrega espiritual cantada
por Hadassah Blocker, o diretor do acampamento. Quando o escurecer se
acentuava no silêncio do verão, todas as meninas do acampamento se deitavam
em suas camas de lona. O sistema de alto-falantes era ligado com um ruído e a
183
voz quente e gutural de Hadassah ecoava pelo semicírculo de pequenas cabanas
brancas:" O dia acabou, o sol se foi, do lago, das colinas, do céu. Tudo está bem,
descanse em paz, Deus está por perto."
O ritmo alegre da melodia e as palavras de Hadassah me tranqüilizavam
quanto à presença de Deus e criava todas as noites um momento sagrado. Eu
dormia envolta pelo casulo do amor de Deus, certa de estar segura, cheia de
alegria e de paz. Nossas orações se tomam realidade? Como disse o falecido
psiquiatra e místico Ainsley Meares: "Oremos de maneira tal que as nossas
orações sejam reais." No acampamento, em vez de me preocupar com o lugar
para onde iria a minha alma na morte, aprendi a usar a oração como uma
afirmação de que, neste momento, estou vivendo na presença de Deus.
COMO REZAMOS?
A matéria de capa da Newsweek de 6 de janeiro de 1992 intitulava-se
"Falando com Deus". A comunhão secreta com nosso criador já não é tão
secreta. O artigo citava estatísticas do National Opinion Research Council
(Conselho Nacional de Pesquisas de Opinião) acerca da vida de oração dos que
a revista chamava de americanos "supostamente sem raízes, materialistas e
voltados para si mesmos". 78% dos americanos relatam que rezam ao menos
semanalmente, enquanto 57% dizem que rezam todos os dias. Estudos indicam
que a maioria das pessoas começa a rezar com mais fervor depois dos trinta anos,
quando " se dissipa a ilusão de que somos senhores do nosso destino e os adultos
desenvolvem uma necessidade mais profunda de invocar o Senhor do Univer-
so".
De acordo cóm uma pesquisa Paloma/Gallup sobre as "variedades de
oração", a maneira como rezamos também muda de acordo com a idade. A
medida que amadurecemos, deixamos de rezar por ganhos materiais e ficamos
mais propensos a fazê-lo na esperança de vivenciar a presença de Deus. Assim
é que 45% das pessoas entre 18 e 24 anos que rezam o fazem por meio da
meditação, contra 70% das pessoas de 65 anos. A oração para restaurar o
equilíbrio, de que tratamos no capítulo anterior, é um excelente método para
vivenciar a presença divina.
Embora essa modalidade de oração tenha se originado na tradição cristã, a
idéia de que a oração é o canal pelo qual chegamos à presença de Deus também
constitui um dos pilares do judaísmo. O rabino hassídico Pinchas de Koretz
ensinava que a " oração não se dirige a Deus; ela é Deus", e que "todas as tuas
184
orações devem ser feitas em benefício da Presença que é chamada, ela mesma,
oração". Se estiver interessado em saber mais sobre a tradição judaica da oração
contemplativa, você poderá ler Your Word Is Fire: The Hasidic Masters on
Contemplative Prayer, organizado e traduzido [para o inglês] por Arthur Green
e Barry H. Holtz. (Na verdade, a oração para restabelecer o equilíbrio tem
aplicação inteiramente ecumênica.)
REZAR POR
A oração para restabelecer o equilíbrio e a oração contemplativa são uma
espécie de sintonização com a presença de Deus — um rezar com — que é a sua
própria resposta. Mas o que dizer da prática de rezar por? As vezes, rezamos por
saúde, por ajuda, pelo sustento material ou espiritual, por nós mesmos ou por
outrem. Essas orações são atendidas? Muitas pessoas já se aproximaram de mim
em seminários e me contaram episódios acerca do poder da oração na recupe-
ração de doenças. Uma das mais comoventes histórias desse gênero referia-se a
Brian, um menininho que conheci em dezembro de 1991, num programa
natalino de Geraldo Rivera, sobre milagres. Eu fora convidada como conhece-
dora do assunto. (Foi divertido sentir-me uma especialista em milagres!)
O saudável e ativo garoto de quatro anos, perto do qual me sentei durante
o programa, não se parecia nem um pouco com o das fotos encantadoras da
criancinha cujo terceiro transplante de fígado estava fracassando e que, a partir
do transplante, desenvolvera uma pneumonia que costuma ser fatal. Os médicos
disseram à família de Brian que não podiam fazer mais nada pela criança. Mas
a mãe do menino não estava disposta a desistir. Ela conseguiu que o jornal local
publicasse uma matéria sobre o filho, ao lado de um pedido urgente aos leitores
para que rezassem por ele. Estima-se que umas 40.000 pessoas atenderam ao
apelo. Um dia depois da publicação do artigo, Brian iniciou Uma rápida e
inesperada recuperação, que lhe valeu o título de " Milagre de Páscoa" naquele
hospital.
Há, na verdade, uma pequena literatura médica acerca da eficácia da oração.
Estimulado por relatos de pacientes que alegavam terem sido ajudados pela
oração, e partindo de sua própria fé, o doutor Randolph Byrd realizou um
excelente estudo clínico sobre os efeitos da oração a distância, quando trabalha-
va no Hospital Geral de São Francisco. Publicada em julho de 1988, no Southern
Medicai Journal, a pesquisa, que seguiu os mais rigorosos padrões dos estudos
médicos, provou que a oração ajudou pacientes enfartados a se recuperar. Byrd
185
dividiu aleatoriamente mais de 400 pacientes admitidos na unidade de terapia
intensiva de doenças coronárias entre os que receberam só o tratamento padrão e os
que só tiveram o acréscimo da oração — feita a distância por grupos de oração.
Nem os pacientes nem o corpo clínico sabiam quem era objeto das orações,
eliminando-se assim a possibilidade de os pacientes que o eram fossem alvo de
tratamento preferencial ou se curassem em função do efeito placebo (no caso, a
crença de que as orações pudessem ajudar). Os que receberam a ajuda da oração
tiveram menos paradas cardíacas, precisaram menos de ventilação mecânica
(respiradores), tinham uma incidênci a muito menor de edema pulmonar (fluidos
nos pulmões), sofreram menos infecções e requereram menos medicação. Não
há dúvida de que muitos pacientes do grupo de controle também foram objeto
de orações, mas o grupo escolhido como alvo preferencial recebeu uma atenção
adicional em termos de oração.
Há uma fundação não-proselitista em Salem, Oregon, a Spindrift, cujo
propósito é fazer experimentos a respeito da eficácia da oração. Ela publica um
boletim e fornece ao público o resultado dos seus estudos. Para os que têm
interesse nessas pesquisas, a Spindrift está na seção de Recursos (ou meios
disponíveis) no final deste livro. Pode-se, ainda, ler uma excelente revisão dos
estudos da fundação publicada no excelente livro de Larry Dossey, Reencontro
com a Alma, que analisa as descobertas da fundação sobre as maneiras mais
eficazes de rezar.
Como revela o dr. Dossey, essas pesquisas se baseiam na suposição de que
todos temos " atributos divinos, uma unicidade qualitativa com Deus". Em seus
estudos iniciais, a Spindrift pesquisou o poder da oração na recuperação de
sementes que tinham sido envenenadas ao serem mergulhadas em água salgada.
Plantadas num recipiente raso de vermiculita, essas sementes, com o uso de um
barbante, foram divididas em sementes do lado A e sementes do lado B. Depois
da oração por um lado ou pelo outro, contavam-se os brotos que iam aparecendo.
Em muitas repetições da experiência, o lado objeto de orações apresentou mais
brotos do que o lado " não-assistido".
Umas das mais intrigantes questões abordadas por esses estudos referiu-se
aos efeitos da oração " dirigida" em oposição à " não-dirigida". Nas palavras do
dr. Dossey: "Será a oração mais eficaz se se tiver em mente um objetivo
específico, ou uma simples abordagem do tipo 'Seja feita a sua vontade'
funciona melhor?" Os resultados são impressionantes. Os dois tipos de oração
mostraram-se eficientes no sentido de estimular a germinação e crescimento das
sementes, mas a abordagem do tipo " Seja feita a sua vontade" foi duas vezes
melhor do que a especificação do desejo de um dado resultado. Por isso, a
186
Spindrift sugere que rezemos mantendo na mente uma consciência "pura e
santa" daquilo que ou de quem quer que constitua o alvo das nossas orações.
Eles consideram esse método a genuína cura espiritual, e o contrastam com a
cura pela fé e outros métodos que se apoiam na oração dirigida.
Metafísicos das escolas cristã e oriental de pensamento concordam com os
pesquisadores da Spindrift acerca da idéia de que manter essencialmente uma
pessoa na Luz e rezar para que a sua integralidade se manifeste é uma forma
eficiente de oração. Esse tipo de oração não visa um resultado específico. Ele
não pede que a pessoa doente fique sã, nem que o pobre fique rico. Ele apenas
se empenha em fazer recair sobre a pessoa a bênção da integralidade, partindo
da compreensão de que a nossa visão é demasiado estreita para saber o que
alguém precisa para alcançá-la, mas que Deus por certo sabe.
Se a pobreza, a enfermidade, o divórcio, o vício ou qualquer outra forma
de dor é uma forma de conclusão cármica de acontecimentos, seria triste pensar
que poderíamos privar-nos ou privar outra pessoa do crescimento por causa de
orações mal-orientadas. Isso, ao que parece, não acontece. Orações carmicamen-
te incompatíveis são ineficazes. Não admira, pois, que os grandes mestres de
todas as tradições nos digam que não devemos rezar pela cessação da dor, mas
pela coragem de suportar quaisquer sofrimentos pelos quais tenhamos de passar
a caminho da liberdade, bem como pela capacidade de viver a vida em harmonia
com a vontade divina:
Senhor, não oramos pela tranqüilidade, não para que as nossas tributações possam
cessar; oramos ao Teu Espírito e ao Teu amor para que nos concedas força e graça
para vencer a adversidade.
Savonarola
Põe esta vida em harmonia com o propósito Divino... Que esta vida possa entrar em
harmonia com a Vontade de Deus. Que possas viver de maneira tal que todos
quantos se encontram contigo se edifiquem, todos os que te abençoarem sejam
abençoados e todos que servirem a ti tenham a maior satisfação. Se alguém tentar
fazer-te mal, que entre em contato com o teu pensamento em Deus e seja curado.
A Peregrina da Paz
Que eu não ore para ser protegido dos perigos, mas para ser destemido ao enfren-
tá-los. Que eu não suplique que as minhas dores se aplaquem, mas que o coração
as conquiste.
Rabindranath Tagore
187
A ORAÇÃO COMO BÊNÇÃO
— MEDITAÇÃO DA BONDADE
A afirmação da Spindrift de que "todos temos atributos divinos, uma
unicidade qualitativa com Deus", ratifica o nosso papel de co-criadores contin-
genciais que disseminam a Luz do Uno por meio da bênção, que significa
literalmente "multiplicação".
Minha forma predileta de bênção vem da tradição budista e tem o nome de
metta, ou meditação da bondade. As bênçãos tradicionais incluem frases como
" Que todos os seres sejam pacíficos"," Que todos os seres sejam felizes"," Que
todos os seres se libertem da aflição". Você pode ampliar essas bênçãos de todas
as maneiras que provocarem reações em você. Stephen Levine, terapeuta e
mestre budista que, ao lado da esposa, Ondrea, tem trabalhado há anos com
moribundos, sugere que primeiro repitamos essas bênçãos para nós mesmos, em
seguida pelos entes queridos, por aqueles com quem possamos estar em conflito
e, por fim, por todos os seres. Você poderá achar bom repetir bênçãos de bondade
à semelhança do que eu faço muitas vezes, como parte da sua prática de
meditação ou de oração. Levine chega a afirmar que algumas pessoas podem ter
na metta a sua principal prática de meditação.
A meditação seguinte consiste em uma introdução, destinada a nos levar à
presença da Luz e ao recolhimento do nosso coração, a que sucede as bênçãos
de bondade tradicionais. Você pode querer fazer a meditação na íntegra ou
passar diretamente às bênçãos. Você pode gravá-la, acrescentando-lhe músicas,
se quiser. Procure observar os intervalos adequados para seguir cada uma das
instruções. Use o pronome masculino ou feminino apropriado na parte introdu-
tória. Timeless Motion, de Daniel Kobialka, é uma versão espiritualmente
edificante do " Canon" de Pachelbel, que constitui uma excelente base para essa
oração/bênção/meditação.
188
Observe-se com vinte ou vinte e um anos entrando no círculo de luz. Olhe nos
olhos desse jovem adulto que mal começa a percorrer o seu caminho pelo mundo
e a manifestar a sua personalidade. Deixe-o sentir o seu apoio em todas as alegrias
e tristezas, provações e aprendizados que você sabe que estão à espera dele...
Observe-se aos doze ou treze anos — prestes a tornar-se um homem ou uma mulher
— entrando no círculo e dando as mãos ao seu jovem eu adulto. Olhe nos olhos
dessa jovem pessoa que apenas começa a sentir os impulsos da força vital na forma
de sexualidade. O que você mais gostaria que alguém lhe tivesse dito acerca da
condição de ser homem (de ser mulher)? Olhe nos olhos do seu eu mutante e
diga-lhe essas palavras... Observe-se aos sete anos de idade entrando no círculo e
dando as mãos ao seu eu de doze anos. Frua a radiância e a inocência desse belo
ser pequenino que valoriza tanto a intuição como o intelecto... E, agora, contemple.
Um radiante anjo entra na luz e coloca o seu eu infante nos braços do seu eu de
sete anos. Olhe bem dentro desses olhos, cheios da sabedoria que não tem idade e
da inocência do recém-nascido. Com o pleno conhecimento de tudo quanto esse
lindo bebê suportou em sua busca de sabedoria e de liberdade, demonstre-lhe o
seu maior respeito e amor. Agora, imagine que você pode colocar todas essas
crianças no seu coração e repita para si mesmo as seguintes bênçãos:
" Que eu possa ficar em paz. Que eu possa conhecer a beleza da minha verdadeira
natureza Que o meu coração permaneça aberto. Que eu seja curado."
Evoque um ou vários amigos ou entes queridos com o máximo de detalhes que
puder... Observe-o(s) no círculo e concentre-se nele(s) com grande respeito e amor...
"Que você(s) possa(m) ficar em paz. Que você(s) possa(m) conhecer a beleza
da sua verdadeira natureza. Que o seu coração permaneça aberto. Que você(s)
seja(m) curado(s)."
Evoque uma ou mais pessoas com as quais você está em conflito. Observe-a(s)
em pé, no interior da luz...
"Que você(s) possa(m) ficar em paz. Que você(s) possa(m) conhecer a beleza
da sua verdadeira natureza. Que o seu coração permaneça aberto. Que você(s)
seja(m) curado(s)."
Observe o nosso frágil planeta suspenso como uma jóia contra a escuridão
aveludada do espaço. Suas nuvens brancas, suas águas azuis, seus continentes
verdes. ... Imagine o seu centro ígneo, suas majestosas montanhas, suas plantas e
animais... um vivo e palpitante ser de luz.
"Que haja paz na terra Que os corações de todos os seres se abram uns para os
outros. Que toda vida realize seu más pleno potencial. Que toda vida reflita a glória da
luz."
Mais uma vez sinta-se cercado, envolto e iluminado pelo círculo de luz... Se
houver no seu coração algo que você precise dizer a Deus, faça-o agora
Amado Deus Uno, Pai/Mãe de Tudo, obrigado pelo dom da vida.
Amém.
189
Você pode incluir o que quiser nessa meditação, sem limites, abençoando
os vivos e os mortos, os santos e os pecadores, os pontos problemáticos do seu
círculo imediato ou de qualquer parte da Terra. Você também pode praticar a
metia sem recitar o que a minha mãe judia diria em iídiche, "toda a megilla",
toda a ladainha. Se se lembrar de um amigo durante o dia, você poderá enviar
toda a bondade para ele. Se se lembrar de um inimigo ou de alguém com quem
tenha problemas, você poderá alterar por inteiro o seu estado de espírito
abençoando-o em vez de se manter paralisado na raiva ou em sentimentos de
vitimização. Se estiver assistindo ao noticiário e ficar com uma sensação de
desânimo diante da situação do mundo, você pode oferecer uma bênção e
reorientar a sua mente para uma visão superior que lhe dê coragem, esperança
e idéias para uma atitude prática destinada a promover a paz na Terra.
190
CAPÍTULO ONZE
Paz e Cura
O sorriso de uma criança, o sorriso de um adulto — eis uma coisa muito importante.
Se, na nossa vida diária, pudermos sorrir, pudermos estar em paz e ser felizes, não
somente nós, mas todas as pessoas haverão de se beneficiar. Esse é o tipo mais
essencial de trabalho pela paz.
Você já se viu caminhando pela rua num dos primeiros dias da primavera,
cercado de flores por todos os lados, o mundo renovado com a promessa de nova
vida, e você tendo a mente totalmente ocupada com o cálculo da devolução do
imposto de renda? As nossas preocupações se revelam no nosso rosto, um fato
que não escapou a um desconhecido quando eu passava num desses dias pela
Boston Common. "Ei", gritou ele, para chamar a minha atenção, "que tal um
sorriso? A vida não pode estar tão ruim assim." Enquanto eu recompunha a
minha fisionomia e endireitava os cantos da boca, ocorreu uma coisa: me senti
melhor. Comecei a me dar conta da profusão de narcisos e açafrões que
formavam um esplêndido contraponto com o delicado verde dos botões que
começavam a se abrir. Aspirei o cheiro da terra umedecida, senti o sol quente e
observei que ia ficando mais tranqüila.
Thich Nhat Hanh é um monge budista, poeta e escritor vietnamita que
oferece uma nova perspectiva da paz de espírito como conseqüência natural do
fato de tomarmos plena consciência dos prodígios da vida que se acham em toda
parte ao nosso redor. Autor de vários livros sobre meditação e sobre a atenção
total, ele é um incansável lutador em favor da paz pessoal e mundial. Indicado
para o Prêmio Nobel por Martin Luther King, Jr., ele dirige seminários e retiros
191
em todo o mundo. Pessoa polida de quem emana alegria, gratidão e humildade,
Thich Nhat Hanh tem inspirado milhões de pessoas com a sua espiritualidade
realista e compassiva.
Ouvindo-o ou lendo os seus livros, somos lembrados de que cada movi-
mento da respiração constitui uma oportunidade de viver a vida com atenção
total, em vez de continuar presos nos nossos medos e preocupações. Em Guide
to Walking Meditation, ele comenta que cada passo que damos deixa a marca
do nosso estado de espírito—apreensão ou beatitude — sobre a Terra enquanto
passamos:
EU, ME PREOCUPAR?
Minha mãe era uma mestra em preocupação que conseguia imaginar as
piores tragédias e desastres sem que houvesse qualquer fundamento para suas
reações exageradas. Se o meu irmão, Alan, passasse dez minutos do "toque de
recolher", ela logo pensava que ele havia sido seqüestrado ou morrera num
acidente. Se aparecia uma espinha no meu rosto, ela já a imaginava tomando
conta dos meus nervos e se transformando num tumor cerebral. Se papai ganhava
o bastante para aplicar algo em ações, ela se preocupava com uma possível
quebra na Bolsa. Se todos estavam bem, ela se preocupava com a possibilidade
de que alguém adoecesse. Qualquer que fosse a situação, ela não sabia aprovei-
tá-la, porque os "e se" a mantinham aflita com o futuro.
Além dos "e se", um mestre em preocupações passa um tempo enorme
estragando seu próprio humor com os " se ao menos". Se ao menos eu tivesse
desposado Jack, minha vida teria sido uma maravilha. Se ao menos os meus pais
tivessem tido uma melhor condição de vida, eu teria me tornado feliz e bem-su-
cedida. Se ao menos eu tivesse economizado mais dinheiro, agora não estaria
preocupada. Se ao menos eu tivesse virado à direita e não à esquerda, o acidente
não teria acontecido. Se ao menos eu tivesse cursado a universidade, ido ao
médico, feito amigos diferentes, mudado para outra cidade, conseguido outro
192
emprego, ouvido a minha mãe... Se ao menos... Os arrependimentos e ressenti-
mentos que esses "se ao menos" representam são uma formidável fonte de
infelicidade capaz de nos tomar sem iniciativa por toda a vida.
Causa grande impressão o fato de que pessoas que estão concretamente
diante de uma crise — divórcio, doenças, desastres financeiros ou luto —
costumam não estar mais infelizes do que pessoas em circunstâncias normais,
que ficam mortalmente preocupadas sem nenhum motivo. Você alguma vez
ficou sentado na sala de estar, bem tranqüilo e aquecido, enquanto a sua mente
imaginava desastres? Já ficou sem sono à noite repetindo mentalmente conver-
sas, preocupando-se com as finanças, alimentando receios ou obcecado com a
saúde, sua ou dos outros? Fazer isso, alguma vez adiantou alguma coisa?
Muitos pensam que preocupar-se é útil porque confundem preocupação
com planejamento. Mas essas duas atitudes não têm nenhuma relação entre si.
O planejamento tem um propósito, uma meta; é moldado pela criatividade, leva
a uma mudança construtiva e aumenta a energia. A preocupação, por sua vez,
não tem objetivo construtivo, é moldada pelo medo e leva à confusão e à
exaustão. Quando se surpreender tomado pelas preocupações, pense na possi-
bilidade de passar ao planejamento construtivo ou de deixar de lado o que não
está acontecendo e dar atenção ao momento presente.
Abandonar as preocupações infundadas exige prática, e uma das maneiras
de consegui-lo é praticar, em vez dela, a atenção total com respeito a todas as
nossas atividades. O livro Full Catastrophe Living, do dr. Jon Kabat-Zinn, é
uma excelente iniciação à atenção total. Baseado em seu Programa de Relaxa-
mento e de Redução do Stress, que ele fundou e dirige na Escola de Medicina
da Universidade de Massachusetts, o livro apresenta um detalhado programa de
abandono da tensão, da dor e das aflições mediante a atitude de acompanhar com
atenção total as maravilhas da vida que estão à nossa volta. Isso se traduz numa
real atenção ao sabor e à textura do que comemos; em escutar de fato o que as
pessoas nos falam; em pensar cuidadosamente ao planejar; e em sentir o mundo
que nos cerca com alegria e gratidão ao caminhar.
193
casa. Você pode, por exemplo, passar por uma bela estrada sem ver o cenário,
concentrando-se apenas em cenas interiores de aflição, de preocupação ou de
medo. Deslocando o seu foco de atenção para o momento presente — para as
sensações corporais da respiração e do caminhar, e para as nuanças do ambiente
que está ao seu redor —, você volta ao corpo e ao controle da mente. Um ato
simples como andar toma-se então uma meditação, uma abertura à presença
divina.
Esse caminhar com atenção total é uma prática eficaz de meditação em si
mesma, podendo ainda ser combinada com a meditação que se faz sentado ou
com a oração. Sempre que estiver caminhando, tente deixar de lado os cuidados
e dedicar total atenção ao presente. Esse esforço não só tornará mais agradável
a sua caminhada como fortalecerá os seus músculos mentais para praticar o
desapego em todas as situações. Aos poucos, você vai ficando mais tranqüilo.
As instruções a seguir foram adaptadas de A Guide to Walking Meditation, de
Thich Nhat Hanh.
• Descubra um belo lugar para caminhar, se for possível, mas qualquer lugar
serve, até mesmo uma saleta.
• Observe, como disse Thich Nhat Hanh, que este mundo contém todas as
maravilhas que você poderia esperar do próprio Céu. Torne a sua percepção
receptiva às cores e às fragrâncias da terra e do céu ou aos detalhes do
ambiente em que você se encontra.
• Tome consciência do seu corpo ao caminhar. Observe o ritmo agradável da
sua respiração. Ande lentamente, concentrando-se em cada passo. Perceba
cada um dos movimentos — levantar o pé, passar o peso do corpo para o
outro pé, baixar o pé. Você consegue caminhar no ritmo de sua respiração?
• Caminhe com dignidade, humildade e respeito por si próprio. Pense num ser
que personifica essas qualidades. Caminhe como o Buda, como Madre Teresa
ou como Jesus — ou como sua Tia Joana, se ela evocar essas qualidades para
você!
• Pergunte a si mesmo por que você carrega consigo uma carga tão pesada de
preocupações e de sofrimentos. Deixe que a compaixão se eleve em seu
coração enquanto sente a dor que as preocupações e padecimentos lhe
causam. A partir dessa atenção compassiva, decida parar de preocupar e
desapegar-se dos seus sofrimentos. Thich Nhat Hanh aconselha: "Se quiser,
você conseguirá — é como tirar uma capa de chuva e sacudir dela todas as
gotas de chuva que se lhe apegaram."
194
• Mantenha nos lábios um discreto sorriso. Thich Nhat Hanh sugere o seguinte
poema de meditação:
• Tente caminhar ao ritmo do poema e da respiração. Isso vai manter você leve
e lembrá-lo de que cada momento é uma oportunidade para nascer de novo
e ver os milagres da existência cotidiana com a inocência de uma criança,
aquilo que o rabino Abraham Heschel denomina maravilhamento radical.
AÇÃO COMPASSIVA
195
outros antes de curarmos as nossas próprias feridas e de termos desenvolvido a
compaixão por nós mesmos, poderemos achar que a base do nosso socorro e da
nossa ajuda aos outros é antes co-dependência do que co-criação.
Gosto de ler sobre a vida de pessoas que são modelos de ação compassiva.
A Peregrina da Paz foi uma humilde mulher de cabelos prateados que percorreu
os Estados Unidos sete vezes, sem dinheiro — mais de 40.000 quilômetros —
entre 1953 e 1981, ano de sua morte. Tendo feito o voto de se tornar andarilha
até que a humanidade aprendesse o caminho da paz, ela cruzou o país de ponta
a ponta levando suas únicas posses, um pente e uma escova de dentes, no bolso
do seu avental azul. Ela comia quando e se lhe davam comida e dormia onde
houvesse abrigo, muitas vezes à beira da estrada.
De acordo com a Peregrina da Paz, o caminho para a paz começa quando
se atinge a paz interior e quando se põe aquilo que se aprende a serviço da ação
compassiva. Quando interrogada sobre onde aprendera a meditar, ela respondeu:
"Eu não aprendi meditação. Eu simplesmente caminhava, receptiva e em
silêncio, em meio à beleza da natureza—e pus em prática as coisas maravilhosas
que me vinham à mente." Sua peregrinação e sua filosofia estão sintetizadas no
livro Peace Pilgrim: Her Life and Work in Her Own Words, compilado por
amigos, depois de sua morte, a partir de suas cartas, entrevistas nos meios de
comunicação e fitas com as muitas palestras que fez.
Sua filosofia submete a espiritualidade a uma prova prática ao nos oferecer
o desafio de que "Se de fato acreditamos no divino poder do amor, temos de
viver de acordo com isso". Dizia ela:
Eu disse uma vez a uma mulher que acreditava na guerra e nos valores cristãos: " De
um lado você fala de valores cristãos e de outro diz 'Não é a força o único meio de
dissuasão que eles respeitam?' Esse tem sido o nosso problema ao longo das épocas
— só temos aceito os valores cristãos da boca para fora, tendo vivido de acordo
com a lei da selva, olho por olho e dente por dente. Costumamos falar 'Não se
deixem dominar pelo mal; vençam o mal com o bem' tentando então superar o mal
com o mal. Adoramos a Deus, mas não cremos na ação da lei do amor de Deus. O
mundo espera a vivência da lei do amor, que vai atingir o divino no íntimo de todos
os seres humanos e os transformará" (p. 103).
196
tibetanos, que personificam os ideais da não-violência. Nos anos 50, quando um
dos piores holocaustos de todos os tempos foi cometido no Tibete pelos chineses,
milhões de tibetanos foram assassinados, alguns foram presos e torturados e a
maioria dos que sobreviveram foi expulsa de sua pátria e pediu asilo na índia.
A prístina e virgem terra do Tibete foi estuprada e mutilada. As montanhas
foram atacadas com explosivos e transformadas em minas. Imensos rebanhos
de animais selvagens foram dizimados. Seis mil mosteiros foram incendiados e
o país reduzido a um deserto. Estranhamente, o resto do mundo pouco ouviu
sobre esse holocausto. Os tibetanos se instalaram na índia sob a direção do Dalai
Lama, o líder secular e espiritual do país. Para esse grupo, não há divisão entre
Igreja e Estado — eles são uma só e mesma coisa. Sua política secular se apóia
firmemente em suas crenças espirituais, numa atitude pacífica diante de todas
as criaturas vivas, incluindo-se aí os inimigos.
Em 1989, Myrin e eu participamos da Primeira Conferência Internacional
de Saúde e Medicina Holística em Bangalore, índia, co-patrocinada por Sua
Santidade o Dalai Lama. Enquanto viajávamos pelo sudoeste da índia, tivemos
a oportunidade de visitar um assentamento de refugiados tibetanos. A terra ao
redor era pobre e árida. A miséria era endêmica na região, mas no assentamento
havia muita atividade e relativa prosperidade. Trabalhando juntos, os tibetanos
desenvolveram uma agricultura adequada à região e estavam tendo uma produ-
ção abundante e de boa qualidade. Tinham construído uma escola, um mosteiro,
um templo e habitação decente para todos os refugiados. A fabricação artesanal
de tapetes tibetanos e de magníficas peças entalhadas em madeira proporcionava
à comunidade bens para exportação. Por outro lado, a prosperidade e ainiciativa
tibetanas estavam ajudando os indianos instalados nas adjacências.
Myrin e eu fomos até lá incógnitos e sem sermos anunciados, mas eles nos
trataram com o maior respeito e amabilidade. Dois monges que falavam inglês
nos descobriram, ofereceram-nos chá e nos mostraram o local. Quando expri-
mimos a nossa tristeza pelo sofrimento do povo tibetano, os monges concorda-
ram que o êxodo fora difícil e expressaram a esperança de um dia voltarem
pacificamente à sua terra natal, um país em que o Dalai Lama tenciona criar um
santuário para animais e pessoas em dificuldades. Em nenhum momento foi
pronunciada uma palavra áspera contra os chineses. Em vez disso, toda a atitude
dos monges lembrava a de Jesus crucificado ao abençoar seus assassinos,
dizendo: "Pai, perdoai-lhes; eles não sabem o que fazem."
Em meus estudos de meditação, conheci o Dalai Lama e inúmeros outros
monges budistas tibetanos. Todos mostram, com relação aos chineses, a mesma
197
atitude de perdão. Eles os abençoam, admitindo que a perpetração do mal só
pode vir da ignorância. Eles também aceitam o holocausto tibetano como parte
de algum plano divino mais amplo que está se processando de acordo com suas
próprias etapas. Na sociedade ocidental, somos socializados para odiar a injus-
tiça e reagir, razão por que, a princípio, compreender a perspectiva tibetana pode
parecer uma grande dificuldade. Contudo, deixando de lado as nossas crenças,
que frutos essa filosofia do perdão proporcionou aos tibetanos exilados?
Em 1989, o Dalai Lama recebeu o Nobel da Paz, chamando a atenção de
todos para a provação tibetana e promovendo uma real curiosidade acerca da
vida espiritual no Tibete. Os refugiados usaram a própria energia na reconstru-
ção de suas vidas — preservando sua espiritualidade e cultura — em vez de
desperdiçá-la odiando os chineses. O espírito de vingança liga-nos de modo
firme ao objeto do nosso ódio. O perdão dos tibetanos, em contrapartida, dá-lhes
liberdade, mesmo no exílio.
Durante o holocausto nazista, também houve pessoas que conseguiram
conservar a compaixão e a liberdade ao longo de um inferno em vida. Uma delas
foi a jovem judia holandesa Etty Hillesum. Depois de sua morte em Auschwitz
perto dos trinta anos, foram encontrados e publicados os seus diários com o nome
de An Interrupted Life: The Diaries of Etty Hillesum 1941-1943. Em 23 de
setembro de 1943, ela escreveu, numa carta à sua amiga Klaas:
Tudo o que eu de fato queria dizer é isto: temos tanto trabalho a fazer em nós mesmos
que não deveríamos sequer pensar em odiar nossos pretensos inimigos. Já somos
suficientemente prejudiciais uns aos outros do jeito que as coisas estão... e repito
com a mesma velha paixão, embora esteja começando a pensar que estou sendo
cansativa: "É a única coisa que podemos fazer, Klaas, não vejo alternativa. Cada
um de nós tem de se voltar para o seu próprio íntimo e destruir em si mesmo tudo
o que pensa que deveria fazer para destruir nos outros. E lembre-se de que cada
átomo de ódio que acrescentamos a este mundo torna-o ainda mais inóspito"
(p. 222).
198
COMO TRANSFORMAR
O SOFRIMENTO EM SERVIÇO
199
alcoólicos recuperados, podemos não ter sofrido ou aprendido com uma dificul-
dade específica apartir da qual podemos transmitir a outrem a nossa experiência.
Estando o nosso mundo tão claramente cheio de fome, de guerras, de
doenças, de opressão política, de preconceito, de pobreza e ódio, por onde pode
uma pessoa começar a mudar as coisas? Às vezes, os problemas do mundo
parecem tão avassaladores que nos sentimos paralisados. Em Words to Love By,
Madre Teresa propõe uma solução simples: a idéia de começar a ajudar apenas
uma pessoa — como ela diz, é o segredo de uma, e uma, e uma:
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celebrar o solstício de inverno* no final de dezembro de 1989. Chanukah, o
Natal, o solstício de inverno e o Ano Novo têm fortes pontos em comum.
Ocorrem na época mais escura do ano e marcam a reaparecimento da luz.
O solstício de inverno é o dia mais escuro do ano; o ponto de mutação a
partir do qual os dias começam a se prolongar. Nosso pequeno grupo de
celebradoras do solstício acendeu uma fogueira para simbolizar o retorno da luz
e cada uma de nós acendeu uma vela. Meditamos e fizemos um exame interior
em busca de uma crença ou hábito antigo que estivesse bloqueando a volta da
luz na nossa vida, anotamo-lo num pedacinho de papel e o partilhamos com o
grupo. Feito isso, lançamos os pedacinhos de papel ao fogo, afirmando a nossa
oração individual e coletiva voltada para o abandono desses padrões. Tomamos
sidra quente, comemos doces, cantamos juntas e iniciamos o processo de
formação de vínculos de amizade contando um pouco da história da nossa vida.
A amizade que começou nessa noite amadureceu num grupo de mulheres
que se reuniu por um ano e meio antes de se abrir à comunidade mais ampla
como um círculo trimestral de cura que se reúne na noite de domingo mais
próxima de cada solstício e de cada equinócio. Em geral, comparecem entre 25
e 50 pessoas, que vêm a saber de sua existênciapor informação de outras pessoas.
Os círculos de cura incluem cantos alegres (e, por vezes, completamente roucos),
meditação e oração. Além disso, toda pessoa que quiser apoio especial vai para
o centro do círculo e pede aquilo de que precisa. Pessoas que se sentem
particularmente ligadas a quem faz esses pedidos, ou que passaram elas mesmas
por semelhantes dificuldades, se reúnem e lhe dão ajuda.
É difícil descrever o sentido de ligação, de cuidado e de compaixão que se
manifesta nesses círculos sem parecer excêntrica, estranha ou prosaica — mas
vou tentar assim mesmo! Num dado círculo, por exemplo, uma mulher que
acabara de ter uma recaída de câncer de mama foi para o centro. Duas mulheres
que também tinham passado pela experiência do câncer juntaram-se a ela, deram
as mãos, entraram em sintonia com os sentimentos dela e relataram algo de suas
próprias histórias de cura. Três outras mulheres reafirmaram a sua força e lhe
ofereceram apoio contínuo. Fizemos então uma breve meditação de cura e
cantamos uma canção para ela. Houve muita alegria, algumas lágrimas e uma
prodigiosa sensação de proximidade e de comunidade. Os outros membros do
grupo maior deram apoio ao processo com sua atenção e participando da
meditação e do canto.
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Desenvolvem-se nesses círculos de cura profundos vínculos que levam a
amizades duradouras. Independentemente da idade, do sexo ou do sistema de
crença, o círculo de cura é uma modalidade de ajuda amorosa, sempre espontâ-
nea, cheia de frescor e estimulante. Nunca se sabe o que esperar, de que maneiras
as pessoas vão criar vínculos e que tipo de cura vai surgir na noite. O objetivo
dos círculos não é promover a cura física, mas proporcionar apoio, construir
laços comunitários e promover uma cura espiritual mais profunda, de que a cura
física às vezes pode ser parte. As orações são ecumênicas e são oferecidas no
espírito de "Que o melhor potencial desta pessoa ou situação se realize".
Gostamos de deixar o resultado nas mãos de uma Inteligência maior do que a
nossa.
Além de freqüentar os círculos de cura e de meditação, meu marido, Myrin,
é, há vários anos, membro de um grupo de homens. Seu grupo de cinco pessoas
começou com a escolha de duas noites para que cada um contasse a história de
sua vida aos outros membros. Depois, eles passaram várias sessões escrevendo
e partilhando suas autobiografias espirituais, um processo desenvolvido pelo
reverendo Carl Scoville na King's Chapei de Boston, popularizado pelo escritor
Dan Wakefield. O excelente livro deste, The Story ofYour Life: Writing Your
Spiritual Autobiography, descreve um processo de grupo que leva à revelação
pessoal e a uma profunda ligação com os outros participantes.
Embora eu nunca tenhaparticipado de uma dessas sessões, eu sempre estava
em casa e posso contar que eles passam mais ou menos meia hora tocando
tambor. Essa é uma prática que hoje passa por um profundo renascimento
cultural. Robert Bly, cujo livro campeão de vendas, Iron John, ajudou a lançar
o movimento masculino, realiza seminários por todo o país. Myrin e nosso filho
Justin foram a um desses encontros de fim de semana com dois amigos e se
deliciaram com a narração de histórias, com o tocar de tambores e com o espírito
comunitário de que partilharam com 600 outros homens. O que também os
impressionou foi o fato de homens permitirem que outros homens chorassem e
que é o primeiro passo rumo à cura profunda.
Ao contrário dos homens, as mulheres se sentem cultural e constitucional-
mente à vontade com a intimidade, mas também nós estamos procurando novos
modelos de comunidade. O movimento de mulheres que um dia estava voltado
apenas para a necessidade de igualdade política e econômica com os homens
está se ampliando ao acrescentar a busca da cura profunda e de novas formas de
espiritualidade. O vigoroso livro de Riane Eisler, The Chatice and the Blade, é
um relato fascinante da transição da " antiga religião", em que a Deusa era
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cultuada, para religiões cujo foco é o masculino e nas quais um " deus do trovão"
ganhou proeminência. Essa mudança, que ocorreu há uns 5.000 ou 6.000 anos,
coincidiu com o advento do judaísmo e foi levada adiante pelo cristianismo. No
curso dessa passagem de Deusa para Deus, o que Eisler chama de sociedades
"de parceria", em que homens e mulheres cooperavam, foi substituído por
sociedades "de dominação", nas quais os homens se colocaram acima das
mulheres.
Creio que agora estamos numa nova encruzilhada, tanto em termos políticos
como espirituais, em que homens e mulheres começam outra vez a trabalhar em
parceria. O movimento masculino emergente e o movimento feminino que
começa a se ampliar são evidências dessa mudança. Os dois grupos buscam uma
nova maneira de se definirem pessoalmente — em relacionamentos íntimos,
como genitores, no trabalho, na comunidade e na sua condição de seres espiri-
tuais —, uma maneira que traga a cura profunda à comunidade como um todo.
Esta última década do século XX promete ser um período no decorrer do
qual restabeleceremos o vínculo com o nosso próprio ser, uns com os outros,
com outras nações, com a Terra, com o sagrado. Onde quer que esteja, você pode
começar o processo de cura planetária ao participar de sua própria cura. E você
pode apressai a sua cura pessoal juntando-se a um grupo de pessoas que pensem
como você. Por que não formar um grupo de apoio ou de meditação, um grupo
de homens ou mulheres, ou um círculo de cura no lugar em que você mora?
Duas pessoas já bastam para começar. Assim, como diria Madre Teresa, de um
em um, poderemos alcançar a paz mundial ao fazer um esforço em favor da paz
interior.
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CAPÍTULO DOZE
A Natureza Prática
do Aperfeiçoamento da Alma —
Dez Sugestões para a Sobrevivência
O presente é o ponto em que o tempo toca a eternidade.
Uma amiga minha que leu o primeiro manuscrito deste livro devolveu-me
a cópia com um conselho sucinto: "A filosofia é boa, mas, a não ser que você
lembre às pessoas das coisas mais essenciais, como a respiração adequada, o
alongamento, a dieta, o sono e o apoio, elas poderão ficar em situação tão ruim
quando as coisas se complicarem que esquecerão toda a filosofia." E Célia tinha
razão. Quando passamos por uma noite escura, nossa tendência é jogar para o
alto a cautela e o equilíbrio. Poderemos beber mais café e ingerir mais álcool,
comer mal, perder o sono e abandonar as práticas — como meditar, caminhar,
fazer exercícios ou rezar — de que mais necessitamos. Por isso, apresento aqui
dez sugestões práticas para sobreviver à noite escura e para você se sentir forte
quando a alvorada chegar.
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a respiração diafragmática. Inspire bem fundo pela boca e solte o ar lenta e
completamente. Deixe que a próxima inspiração seja feita pelo nariz e
imagine que o ar está inflando sua barriga como um balão. Ao expirar imagine
que sua barriga está se esvaziando. Faça com freqüência, ao longo do dia,
dez ou mais respirações para descontração.
• Coma bem. De modo geral, quanto mais tensas as pessoas ficam, tanto pior
se torna a sua dieta devido à tendência a petiscar coisas doces e gordurosas,
que destroem o apetite para refeições mais substanciais. Coma boas quanti-
dades de cereais integrais, de legumes e de frutas nas refeições principais.
Elimine ou minimize a presença de cafeína e de álcool, e beba muita água
para ajudar o corpo a eliminar as toxinas.
2. São João da Cruz ensinou que o silêncio interior é o plano em que o Espírito
unge em segredo a alma, curando nossas feridas mais profundas. Consiga tempo
durante o dia para ficar sozinho, não para ler ou assistir TV, mas para ficar em
calma. Pratique jardinagem. Procure algum lugar para sentar-se fora de casa.
Faça meditação andando. Procure lugares onde você tenha contato com a
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natureza, medite, ouça música. A maioriadas pessoas dedica seu tempo e energia
aos outros, deixando pouco para si. O desequilíbrio que ocorre quando você
expulsa a você mesmo de sua própria vida cria novas tensões, que impedem a
cura de velhas dores. Reserve um tempo para você mesmo, a fim de que o
silêncio seja um companheiro no processo de sua cura.
Deus, dá-me serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar.
Coragem para mudar as coisas que posso mudar
E sabedoria para saber distinguir uma coisa da outra.
Nada adianta preocupar-se com coisas que você não consegue modificar.
Tentá-lo é um exercício de medo sem nenhum sentido. Seja realista com respeito
à sua situação e aja nas áreas em que puder. Ser sereno diante do que não se pode
mudar e ter a sabedoria para saber a diferença requer o recolhimento em seu
próprio coração. Aí, em seu próprio âmago, você saberá o que fazer. Mas você
tem de saber como encontrar o seu âmago. Eis o valor da atitude de reservar um
tempo para ficar sozinho e de aprender a expulsar da mente as idéias sem sentido
por meio da meditação ou da atenção total.
• Faça-se notar.
• Preste atenção.
• Diga a verdade.
• Não se apegue a resultados.
Meu marido me diz que eu sou boa nas três primeiras regras; é com relação à
quarta que eu ainda preciso de muita prática! Costumamos provocar sofrimento
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ao apegar-nos aos resultados em decorrência daquilo que fazemos, ainda que
tenhamos feito o melhor que podíamos. Lembre-se do primeiro verso do poema
sobre o graal do poeta medieval Wolfram: "Toda ação tem resultados bons e
ruins. O melhor que podemos fazer é pretender gerar os bons."
8. Lembre-se de que você tem o direito de ser feliz. O melhor resultado de uma
crise é voltar à sua verdadeira natureza, ao centro mais recôndito ou Eu Superior.
Os atributos desse núcleo pacífico não são apenas a sabedoria e a compaixão,
mas também a alegria e a felicidade. Mas, mesmo que a felicidade ainda não
tenha brotado naturalmente como parte da sua cura, você poderá ter uma
pequena amostra se se lembrar de sorrir. Shakespeare disse: "Pratique uma
virtude se você não a tiver."
9. Certa vez um pobre velho queixou-se a Deus por não ter sido atendida a sua
oração para ganhar na loteria. Deus balançou a cabeça e replicou: "Tenha
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paciência, Sam. Você pelo menos podia ter comprado um bilhete!" Auxiliares
visíveis e invisíveis vão responder quando você pedir ajuda. Mas há algumas
diretrizes para obter essa ajuda. Primeiro, você tem de pedir. Depois precisa
fazer a sua parte para gerar mudanças positivas.
10. Se você achar que não está conseguindo o que pediu, embora tenha feito a
sua parte para que isso acontecesse, talvez você esteja conseguindo o que
precisa. Talvez ganhar na loteria, por mais prazeroso que pudesse parecer,
tivesse, na verdade, impedido a evolução da alma de Sam. Pode ser que uma
solução muito rápida para os seus problemas privasse você de uma cura
profunda, e que seja de seu maior interesse. Uma oração sábia em meio à crise
não pede que a crise acabe, mas pede coragem e força para suportar a passagem.
O poeta e santo indiano Rabindranath Tagore disse:
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CAPÍTULO TREZE
Luzes Noturnas
A brisa do alvorecer tem segredos para lhe contar.
Não volte a dormir.
Você tem de pedir o que realmente deseja.
Não volte a dormir.
As pessoas estão cruzando o limiar da porta
onde os dois mundos se tocam.
A porta está totalmente aberta
Não volte a dormir.
Rumi
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prata que meu pai me deu quando eu era criança, uma pétala da rosa que estava
no travesseiro de minha mãe por ocasião da sua morte, um cristal que um amigo
me deu, uma serpente de j ade que me faz lembrar da superação de velhos temores
e um pedaço de um cachecol de seda branca, presente do Dalai Lama como parte
de uma saudação tradicional budista.
Lee enfiou a mão no bolso e tirou uma fieira de contas, do tipo com que
você talvez tenha brincado quando criança. Cada conta representava para ele um
amigo e continha a lembrança de um período especial passado com essa pessoa.
Para mim, aquilo era como um rosário do coração, uma lembrança de tudo o que
há de mais precioso numa vida. Várias semanas depois, recebi um pacote
remetido por Lee contendo um frasco preso a uma correia de couro. No seu
interior, havia óleo de alfazema destilado pelos monges de uma abadia do século
XII, em Senanque, na França. Foi numa visita a essa abadia, nos campos de
alfazema, que ele pusera na fieira a conta da nossa amizade. Sempre que procuro
sentir o cheiro desse óleo, ou vejo o recipiente, sinto-me amparada pelo amor
que o objeto me traz à mente.
As citações, orações e poemas deste capítulo são para mim como uma fieira
de pedras de toque, e espero que sejam para você um consolo e um lembrete do
amor divino.
Tito Colliander
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Uma alma é forjada no fogo e no cristal de rocha.
Algo austero, rígido, no sentido
do Antigo Testamento, mas também algo delicado
como o gesto com que as ternas
pontas dos seus dedos, às vezes, tocavam os meus cílios.
Etty Hillesum,
de um campo de concentração
Helen Keller
Bernadette Roberts
Coventry Patmore
Vivi à beira da loucura
desejando saber razões,
batendo numa porta. Ela se abriu.
Eu estava batendo pelo lado de dentro!
Rumi
O Livro do Gênesis
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Vê!
Eu não me
esqueceria de ti.
Eis que te gravei
na palma
da minha mão.
Isaías, 49:15-16
Rabindranath Tagore
Mechthild de Magdeberg
Lembra-te disto:
Fica tranqüilo e sabe que Eu sou Deus.
nunca te esqueças de quem és!
Não podes estar onde Deus não se encontra.
A Peregrina da Paz
Salmo 23
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O Senhor é minha luz e minha salvaçao.
De quem terei medo?
O Senhor é a fortaleza da minha vida;
Diante de quem tremerei?
Do Salmo 27
Do Salmo 139
Igreja da Unidade
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Só existe uma liberdade:
acertar as contas com a morte.
Depois disso, tudo é possível.
Não posso forçar-te a crer em Deus.
Acreditar em Deus eqüivale a chegar
a um acordo com a morte. Quando tiveres
aceito a morte, o problema de Deus
estará resolvido — e não o inverso.
Albert Camus
Nascimento e morte
não são dois estados diferentes,
mas aspectos diferentes
do mesmo estado.
Gandhi
Os Upanishads
Richard Bach
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Uma das razões pelas quais as pessoas
desistem da esperança é o fato de olharem para
seus próprios contemporâneos e
imaginar que eles são bem mais dignos
do que elas mesmas.
Rabino Nachman
C.G. Jung
Rumi
Swami Vivekananda
A Nuvem do Desconhecimento
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Quando eu tiver perdoado a mim mesmo
e tiver me lembrado de quem sou,
abençoarei a todos e a
tudo o que vejo.
A Course in Miracles
A Peregrina da Paz
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O lugar mais santo de todos os pontos da terra
é aquele no qual um ódio antigo se transformou
num amor presente.
A Course in Miracles
Teresa de Ávila
Juliano da Noruega
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Diz Deus: Estás sempre
diante dos meus olhos.
Deus, sou uma obra tua.
Antes do começo dos tempos,
já então,
eu estava na tua mente.
Hildegard de Bingen
Albert Einstein
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