1
2
André Bueno
Gustavo Durão
Mírian Garrido
[orgs.]
3
Edições Especiais Sobre Ontens
EDITORES
Prof. André Bueno [UERJ] (Coordenador da Revista)
Prof. Dulceli Tonet Estacheski [UNESPAR/UFSC]
Prof. Everton Crema [UNESPAR]
COMISSÃO CIENTÍFICA
Prof. Carla Fernanda da Silva [UFPR]
Prof. Gustavo Durão [UFRRJ]
Prof. José Maria Neto [UPE]
Prof. Leandro Hecko [UFMS]
Prof. Luis Filipe Bantim [UFRJ]
Prof. Maria Elizabeth Bueno de Godoy [UEAP]
Prof. Maytê R. Vieira [UFPR]
Prof. Nathália Junqueira [UFMS]
Prof. Rodrigo Otávio dos Santos [UNINTER]
Prof. Thiago Zardini [Saberes]
Prof. Vanessa Cristina Chucailo [UNIRIO]
Prof. Washington Santos Nascimento [UERJ]
COMISSÃO EDITORIAL
Prof. Aristides Leo Pardo [UNESPAR]
Prof. Caroline Antunes Martins Alamino [UFSC]
Prof. Jefferson Lima [UDESC]
4
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
André Bueno, 7
PREFÁCIO
Regine Augusto de Mattos, 13
5
FONTES E PESQUISAS DA HISTÓRIA DAS MISSÕES NA
ÁFRICA: ARQUIVOS E ACERVOS
Patrícia Teixeira Santos, Lucia Helena Oliveira Silva, Nuno de
Pinho Falcão, 128
BIOS, 311
6
INTRODUÇÃO
André Bueno1
1
Prof. Adjunto de História Oriental da UERJ.
7
epistemologias. Epistemologia é toda a noção ou
ideia, reflectida ou não, sobre as condições do que
conta como conhecimento válido. É por via do
conhecimento válido que uma dada experiência social
se torna intencional e inteligível. Não há, pois,
conhecimento sem práticas e actores sociais. E como
umas e outros não existem senão no interior de
relações sociais, diferentes tipos de relações sociais
podem dar origem a diferentes epistemologias. As
diferenças podem ser mínimas e, mesmo se grandes,
podem não ser objecto de discussão, mas, em
qualquer caso, estão muitas vezes na origem das
tensões ou contradições presentes nas experiências
sociais sobretudo quando, como é normalmente o
caso, estas são constituídas por diferentes tipos de
relações sociais. No seu sentido mais amplo, as
relações sociais são sempre culturais (intra-culturais
ou inter-culturais) e políticas (representam
distribuições desiguais de poder). Assim sendo,
qualquer conhecimento válido é sempre contextual,
tanto em termos de diferença cultural como em
termos de diferença política. Para além de certos
patamares de diferença cultural e política, as
experiências sociais são constituídas por vários
conhecimentos, cada um com os seus critérios de
validade, ou seja, são constituídas por conhecimentos
rivais. Em face desta reflexão levantam-se três
perguntas. Por que razão, nos dois últimos séculos,
dominou uma epistemologia que eliminou da
reflexão epistemológica o contexto cultural e político
da produção e reprodução do conhecimento? Quais
8
foram as consequências de uma tal dês-
contextualização? Haverá epistemologias alternativas?
(Santos, 2009, p.9)
Referências
BÁ, Hampate. A tradição viva. In ALPHA, S., BALOGUN, O.,
AGUESSY, H. & DIAGNE, P. Introdução a Cultura Africana.
Lisboa: edições 70, 1977.
HOUNTONDJI, Paulin. Conhecimento de África,
Conhecimentos de Africanos: duas perspectivas sobre os Estudos
Africanos. in SANTOS, Boaventura e MENESES, Maria [orgs].
Epistemologias do Sul. Coimbra: CES/Almedina, 2009.
SANTOS, Boaventura. Introdução in SANTOS, Boaventura e
MENESES, Maria [orgs]. Epistemologias do Sul. Coimbra:
CES/Almedina, 2009.
12
PREFÁCIO
Referências Bibliográficas
CRUZ E SILVA, Teresa; BORGES COELHO, João Paulo &
SOUTO, Amélia Neves de. Como fazer Ciências Sociais e
Humanas em África: Questões Epistemológicas, Metodológicas,
Teóricas e Políticas (Textos do Colóquio em Homenagem a
Aquino de Bragança). Dakar: CODESRIA, 2012.
FALOLA, Toyin. Nacionalizar a África, culturalizar o Ocidente e
reformular as Humanidades na África. Afro-Ásia, 36, 9-38, 2007.
HOUNTONDJI, Paulin. Conhecimento de África,
Conhecimentos de Africanos: duas perspecticas sobre Estudos
Africanos. In: SANTOS, Boventura de Sousa; MENESES, Maria
Paula, Epistemologias do Sul . Coimbra: Almedina, 2009.
SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula.
Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009.
ZELEZA, Paul. The Study of Africa: Disciplinary and
Interdisciplinary Encounters. Dakar: CODESRIA, 2006.
17
18
A REPRESENTAÇÃO DA ÁFRICA NOS LIVROS
DIDÁTICOS: ANÁLISE DO ESPAÇO DEDICADO À
ÁFRICA NOS EDITAIS E NOS GUIAS DE LIVROS DO
PNLD E EM LIVROS DE HISTÓRIA DO ENSINO
MÉDIO
Mírian Cristina de Moura Garrido1
1
Pós-doutoranda em História da Universidade Federal de São Paulo,
campus Guarulhos, doutora em História pela Universidade Estadual
Paulista, UNESP/Assis. Desenvolve pesquisas sobre livros didáticos,
identidade, biografias e afrodescendentes. Parte das reflexões apresentadas
foram fomentadas pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo (FAPESP/Processo nº 2013/14210-7).
E-mail: miriangarrido@hotmail.com.
Agradecimento especial ao Professor Antônio de Andrade Junior pelo
empréstimo da coleção didática e diálogo sobre o ensino de África nas
escolas públicas.
2
O termo “movimento negro contemporâneo” é adotado respeitando a
divisão proposta por Petrônio Domingues (2007), para quem, a década de
1970 viu florescer um novo tipo de movimento negro, tendo sua
visibilidade ampliada com a formação do Movimento Unificado Contra a
Discriminação Racial, 1978, posteriormente renomeado para Movimento
Negro Unificado. Indicamos, ainda, a importância de obras como a de
Verena Alberti e Amilcar Araújo (2007) para acessar os discursos de parte
desses indivíduos.
19
observar esses indivíduos como agentes históricos, transforma a
educação em instrumento de reversão de estigmas e estereótipos.
Contrariando a visão hegeliana na qual “A África não é
um continente histórico; ela não demonstra nem mudança nem
desenvolvimento [...] são incapazes de se desenvolver e receber
uma educação” (HEGEL Apud FAGE, 2010, p.8), com a
efetivação da Lei, almeja-se a modificação de um histórico de
rótulos preconceituosos que pairam sobre africanos e
afrodescendentes. Igualmente, a legalização da demanda social,
gera expectativas, modifica estruturas curriculares no ensino
básico e universitário, amplia a pesquisa acadêmica sobre África e
afro-brasileiros, aumenta a procura de obras sobre a temática, bem
como, exige do Estado incentivos e reorganizações de diversas
ordens.
Diante deste cenário e dada a responsabilidade do Estado
na reparação histórica com um segmento social, apresento a seguir
reflexões sobre como a temática “África” se apresenta nas políticas
públicas educacionais contemporâneas direcionadas à Educação
Básica. Para tanto, tomo como fonte Editais de Convocação do
Programa Nacional do Livro Didático (Ensino Médio)3, seus
respectivos Guias de Livros, e duas coleções didáticas destinadas
3
Selecionei apenas os Editais referentes ao Ensino Médio, portanto, um
total de quatro Editais de Convocação, referentes aos anos 2007, 2012,
2015 e 2018. Vale indica que o Decreto no.9.099, 18 de julho de 2017,
unificou as aquisições dos livros didáticos (PNLD) e obras literárias (PNBE
– Programa Nacional Biblioteca na Escola), permitindo ainda a compra de
softwares, jogos educacionais, materiais de reforço, de formação, e materiais
destinados a gestão. Essa mudança no escopo altera, ainda, a sigla do
PNLD, que mantem as letras mas passa a representar o Programa Nacional
do Livro e do Material Didático.
20
aos discentes do ensino médio4. O esforço envolve ângulos
privilegiados para quem deseja compreender possíveis vias para
inserção ou revisão de conteúdos no ensino.
4
Obras de autoria de Patrícia do Carmo Ramos Braick e Myriam Becho
Mota, editadas pela Moderna em 2005 e 2013.
5
As avaliações envolvem diversos aspectos de uma obra didática.
Características como material utilizado na produção física e a formação
profissional do(s) autor(es), por exemplo, constam entre as preocupações
dos Editais de Convocação do PNLD. No texto, porém, darei ênfase às
questões relacionadas ao conteúdo do livro didático presentes em alguns
desses Editais.
6
Até a data de fechamento deste livro, os valores despendidos no PNLD
2018 não haviam sido disponibilizados.
21
Com relação a avaliação dos livros didáticos, uma fonte
significativa são os Editais de Convocação do PNLD. Esses
documentos constituem-se em uma espécie de “regra do jogo”,
nos quais são apresentadas as condições de participação e
características desejáveis e que implicam em aprovação e,
potencialmente, compra dessas obras.
O levantamento dos Editais do PNLD – de diferentes
níveis de ensino e gêneros didáticos – disponíveis no site do
Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação, vinculado ao
Ministério da Educação, resultam em 257 editais. Esses podem ser
organizados da seguinte maneira: (6 Editais/apenas 4 contemplam
História) Ensino Médio; (4) Ensino Fundamental Ciclo II; (6)
Fundamental Ciclo I; (3) Educação de Jovens e Adultos; (1)
Alfabetização na Idade Certa, no âmbito do ciclo I do EF; (1)
Campo, para escolas situadas ou anexas as áreas rurais, âmbito do
ciclo I do EF; (2) obras complementares, também denominadas
comumente de paradidáticos, ambos no âmbito do ciclo I do EF;
(2) Dicionários de Língua Portuguesa.
Os dados apontam para o fato do PNLD ter atuado com
maior intensidade no ensino fundamental ciclo I, portanto, com
grande atenção para a alfabetização. Demonstram, ainda, que o
público alvo e campos de atuação tem sido ampliados. Exemplo
do que afirmo é a edição do PNLD 2013 destinado
exclusivamente às escolas das áreas rurais (cujo edital foi
publicado no ano de 20118).
7
O número não representa a totalidade de avaliações realizadas pelo PNLD,
apenas indica os disponíveis no site para análise. O fato, contudo, não
invalida o esforço, graças a abrangência das edições acessíveis.
8
No geral, o Edital de Convocação do PNLD é publicado,
aproximadamente, dois anos antes da obra chegar nas escolas para consumo
22
A leitura das obras que serão analisadas pelo PNLD e
explicitadas nos Editais, assinala, igualmente, mudanças na grade
curricular. Assim, nos dois PNLD’s 2011 (ciclo II EF e EJA),
foram aceitas inscrições de coleções já tradicionais para esse nível
de ensino (Matemática, Português, Ciências, Geografia e
História) somadas ao ensino de língua estrangeira (Espanhol e
Inglês). O PNLD 2013 (ciclo I EF), por sua vez, inaugura o
credenciamento de obras de História Regional e Geografia
Regional. No âmbito do Ensino Médio, o PNLD 2015 traz a
preocupação com análise das disciplinas de Matemática, Biologia,
Física, Química, Língua Portuguesa, Línguas Estrangeiras (Inglês
e Espanhol), Geografia, História, Sociologia, Filosofia e Arte –
essa última, pela primeira vez para esse nível e incorporada no
Ensino Fundamental ciclo II, no PNLD 2017.
Capazes de informar sobre as políticas públicas destinadas
ao ensino, tal como, mudanças ou adequações das grades
curriculares, esses elementos, contudo, não contribuem para
compreensão do espaço da África nos livros didáticos. Para esse
fim, proponho a seguir analisar os Editais destinados a análise de
livros didáticos para o Ensino Médio9 já realizadas pelo PNLD.
10
Vale lembrar que a lei foi atualizada em 2008 (11.645) incorporando
preocupação com as nações indígenas.
11
A obra Escravo, africano, negro e afrodescendente (GARRIDO, 2017)
ratifica a informação.
24
10/03/2004, o documento apresenta como critério eliminatório
que o “[manual do professor] oriente sobre as possibilidades
oferecidas para implantação do ensino de história da África, da
história e cultura afro-brasileira e das nações indígenas”
(PNLD2012, p.30 – grifos meus). Considero o fato um avanço,
mas uma orientação que não contribui diretamente para a
renovação de conteúdos consagrados, afinal, ainda que a obra
traga pouca – ou nenhuma – contribuição sobre os temas, ela não
seria desclassificada por esse motivo, pois, a instrução é clara:
“oriente possibilidades” aos professores!
O leitor pouco habituado com a leitura de editais, em
especial os de convocação do PNLD, poderá achar o texto
monótono e inalterado. Mas essa é uma falsa impressão. Em
pesquisa anterior, identifiquei que as alterações realizadas em
editais subsequentes, no geral, buscam solucionar problemas
identificados na avaliação anterior 12. Portanto, ainda que pareçam
poucas as alterações, elas são significativas, se comparadas em
perspectiva. E os dois últimos Editais vão ao encontro do meu
argumento.
Em ambos permanece a referência à Lei 10.639, o Parecer
CNE/CP n°003, e a instrução para o manual do professor. Essa
última, porém modificada a partir do PNLD 2015. Aqui o texto
do Edital pede que a orientação aos professores deve ser efetivada
“considerando conteúdos, procedimentos e atitudes” (PNLD
2015, p.56; PNLD 2018, p.48). Observe, não bastou indicar em
2012 que deveriam ser “orientando possibilidades”, foi necessário
12
Foi assim, por exemplo, que autores consagrados entre os professores
deixaram de figurar nas listas de aprovação do PNLD, pois, o Edital de
Convocação PNLD 2008, p.6, item 5.3.2.8 passou a exigir diploma do
autor na área de formação.
25
complementar quais seriam as ordens dessas possibilidades a
serem observadas, no caso, “conteúdos, procedimentos e
atitudes”.
Contudo, o mais significativo nos dois últimos editais está
na incorporação de critério de eliminação relacionado ao livro
regular – cujo destino é o estudante – no que tange conteúdo.
Neste sentido, os Editais determinam:
26
necessidade de realizar esse estudo pela perspectiva desses sujeitos,
de forma positiva e contínua.
13
Sobre as tramas que envolvem a feitura das Resenhas, conferir: ALVIM,
Yara Cristina. O livro didático na batalha de idéias: vozes e saber
histórico no processo de avaliação do PNLD. Dissertação em Educação,
Universidade Federal de Juiz de Fora, 2010.
14
A sigla PNLEM passou a ser suprimida graças a formulações internas do
Programa, sendo universalizada a sigla PNLD para diferentes níveis de
ensino.
27
aprovadas nas quatro edições do PNLD ensino médio,
correspondem aos autores mais comprados no PNLD 200815.
Ou seja, o primeiro, segundo e terceiro campeões de
vendas em 2008 são, também, os únicos que permanecem
aprovados em todas as edições do PNLD destinados ao ensino
médio já realizadas e, possivelmente, bem quistos pelos
professores16. Dada a representatividade desses autores e obras,
vale a pena observar o que as resenhas dos Guias diziam sobre
conteúdo de África entre eles.
A resenha da coleção de Patrícia do Carmo Ramos Braick
e Myriam Becho Mota que integra o Guia 2008 menciona uma
única vez a palavra “África”. Na página 58 do documento, afirma
“Desenvolve a presença de conteúdos a respeito da História da
África”, mas a resenha opera uma ressalva pouco positiva
“Contudo, ao se propor a dar conta de um conteúdo muito vasto,
com grande quantidade de informações, a obra incorre em
algumas simplificações explicativas” (GUIA PNLEM2008, 2007,
p.58).17
15
As informações sobre quantidade de obras compradas e suas identificações
foi disponibilizada para a pesquisadora no ano de 2010 pelo Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Educação, e foram sistematizadas e
apresentadas na em minha dissertação de mestrado defendida em 2011,
publicada em formato de livro em 2017.
16
A compra dos livros didáticos é, segundo Edital PNLEM 2007, resultado
da escolha dos professores e da negociação FNDE com os titulares de
direitos autorais (p.12).
17
Com base em entrevista com setor editorial de uma das empresas mais
consolidadas no Brasil, professores e estudantes, Daniel Medeiros (2006)
afirma que o desinteresse dos estudantes para com o livro didático é grande
(apenas 7,6% afirmam que o livro prende o interesse), porém, essa questão
“nunca foi levada em consideração” na elaboração dos materiais segundo
representante da empresa (alvo da pesquisa e não identificada
28
No Guia PNLD 2018 na coleção “História das cavernas
ao terceiro milênio” a palavra “África” aparece seis vezes (quatro
delas no sumário da obra) e africanos outras quatro vezes. Nesse
Guia de Livros, informações pertinentes a África, africanos e
indígenas são apresentados com destaque, em parágrafo específico
em cada uma das resenhas. E sobre a coleção em questão, esse
parágrafo indica o atendimento a essas questões de forma
adequada, pois há reconhecimento da “legitimidade e a
necessidade de indígenas e negros por direitos” (GUIA
PNLD2018, 2017, p.91). Ainda segundo o documento, a
formação individual desses grupos são respeitadas, bem como, a
luta pela posse e manutenção da terra.
Em Gilberto Cotrim, “África” aparece uma única vez em
2008. Ao final da resenha, o texto indica “observa desequilíbrio
entre os conteúdos selecionados, particularmente a ausência de
conteúdos específicos sobre América hispânica e África” (GUIA
PNLEM2008, 2007, p.81), ainda que a mesma resenha tenha
indicado que existe “em algumas temáticas, sujeitos históricos
como escravos, africanos, sertanejos, cangaceiros e marinheiros”
(GUIA PNLEM2008, 2007, p.79).
Em contrapartida, a resenha da coleção “História Global”
no PLND 2018 indica em sua abertura que os livros apresentam
de forma integrada conteúdos relativos a Europa, África, Ásia,
América e Brasil. Mencionado quatro vezes o termo África, o
parágrafo específico sobre esse tema indica que ele está presente
em todos os volumes, “apresenta história, cultura e contribuições
do negro; diversidade no cotidiano, combate ao etnocentrismo;
18
As políticas públicas capazes de promover renovação de livros didáticos
ganham nova dimensão a partir das discussões e aprovações da Base
Nacional Comum Curricular. Para o ensino fundamental sua aprovação se
deu em dezembro de 2017, ainda que envolta em muitas críticas, suas
determinações irão, progressivamente, alterar os textos didáticos dos livros
aprovados pelo PNLD. Na prática, para ensino fundamental, essas
modificações já podem ser observados, posto que desde 2017, o Edital do
PNLD2019 cobra das editoras às modificações das obras de acordo com a
terceira versão da BNCC. Como o texto da Base para Ensino Médio ainda
está em discussão e seu texto prévio não apresenta os conteúdos mínimos,
esse capítulo não aborda a BNCC como um elemento de modificação dos
livros do ensino médio, mas em breve, esse será um elemento importante a
ser observado.
32
pela Ohio University (EUA), atuando como professora do Ensino
Médio e Superior em Itabira (MG). Ambas possuem registro na
Plataforma Lattes, na qual confirma-se a formação de Myriam
Mota, mas não de Patrícia Braick, cujo preenchimento estava
pendente na data de consulta.
Comparando os sumários das duas coleções, ambas
divididas em três volumes (desde o PNLD2012 assim dispostos)
contabilizamos 46 capítulos na primeira coleção, com um total de
727 páginas; 44 capítulos19 e 768 páginas na segunda coleção.
Com dois capítulos a menos, a segunda coleção possui 41 páginas
a mais. Uma diferença pouco significativa e que indica que, se
houve incorporação de conteúdo, houve também o rearranjo deles
na obra para não estendê-la ainda mais.
Observo ainda que as divisões entre os volumes das
coleções são semelhantes e estabelecidas pela cronologia. Poucos
conteúdos são realocados em volumes diferentes, é o caso do
capítulo “As culturas indígenas americanas”, em 2005 primeiro
capítulo do volume 2, em 2015 décimo terceiro capítulo do
volume 1. Uma vez que cada volume é referente a um ano do
ensino médio, os conteúdos são dispostos levando em
consideração a tradição escolar (cronológica e linear) e as
instruções normativas.
Da leitura do índice, seus capítulos, subtítulos e textos
complementares, noto a existência de dois momentos em que
África entra na discussão na edição de 2005. Primeiro, no
capítulo 5 do volume 1, intitulado “A civilização floresce às
margens do Nilo”; a segunda ocorrência no volume 3, capítulo
14, sob o título “Conflitos Internacionais”. Na primeira
19
Considerei o capítulo introdutório na contagem, assim como havia feito
a edição da coleção anterior.
33
ocorrência o conteúdo se ocupa da explicação da civilização
egípcia, já consagrada na literatura didática, com texto
complementar de 1 página intitulado “Outros povos africanos”
(2005, p.46) sobre a cidade de Djenné, no Mali. Na segunda
ocorrência, o capítulo destinado a análise dos conflitos
internacionais contemporâneos, o volume 3 apresenta a “África:
estudos de caso”. Em, aproximadamente 4 páginas (2005, p.220-
223), as autoras abordam África do Sul e Angola, assim, apartheid
e lutas por independência são exemplificadas por esses dois casos,
que estão longe de sintetizar a pluralidade dos conflitos que
emergiram no continente.
A resenha da obra no Guia de Livros Didáticos alertava
“ao se propor a dar conta de um conteúdo muito vasto, com
grande quantidade de informações, a obra incorre em algumas
simplificações explicativas” (GUIA PNLEM2008, 2007, p.58),
acrescento que o conteúdo a respeito da África é superficial,
lacunar, enfim, insuficiente.
O mesmo esforço de análise do índice da coleção
publicada em 2015 apresenta outra realidade (ao menos
quantitativamente). São sete capítulos que apresentam alguma
discussão temática relacionada ao continente africano. No volume
1, capítulo 4 “Antiguidade Oriental”, capítulo 8 “A civilização
bizantina e o Islã”, capítulo 14 “A África dos grandes reinos e
impérios”. Volume 2, capítulo 6 “Religião e sociedade na América
Portuguesa” e capítulo 11 “O processo de independência da
América Portuguesa”. Por último, no volume 3, capítulo 1 “O
Imperialismo na África e na Ásia” e capítulo 8 “Os processos de
emancipação na África e na Ásia”.
Desses sete eventos, três deles são compostos por textos
complementares. O primeiro é um texto intitulado “O Islã na
África”. O excerto ocupa duas páginas (pp.144-145), é ilustrado
34
com fotografia de camelos atravessando o deserto, permitindo a
visualização do texto sobre mesmo tema, ou seja, a introdução do
camelo no norte africano pelos árabes muçulmanos e
fortalecimento comercial decorrente. Completa o conteúdo,
quatro questões de compreensão do texto. Curioso, árabes,
muçulmanos são mencionados enquanto composição humana, os
nomes africanos são reservados apenas as cidades que praticavam
comércio, “fundadas pelos mercadores muçulmanos” (p.145) sem
correlacionar os africanos – fossem eles islamizados ou não – no
processo.
Os outros dois textos complementares coincidem com os
dois momentos em que a temática aparece no volume 2. O
primeiro é um excerto extraído do livro de Marina de Mello e
Souza, Catolicismo negro no Brasil, ilustrado por uma gravura de
1686 e uma fotografia de 2012, acompanhado por quatro
questões de interpretação do texto. O texto complementar retrata
a existência do cristianismo no Reino do Congo (antes da
colonização), as identidades e crenças trazidas no tráfico e
rearranjadas na América, como forma de criar laços de
solidariedade. Trata-se de uma excepcional intervenção no
conteúdo do capítulo sobre Religião e Sociedade na América
Portuguesa.
O segundo texto complementar é um trecho retirado do
livro de Selma Pantoja, Gênero e Comércio, a respeito de
mulheres influentes (mestiças ou negras) em Luanda. Nesse caso
não há ilustrações, apenas três exercícios de interpretação de texto
e busca de informação para ser realizada na internet. O conteúdo,
por sua vez, aborda questões pouco exploradas no universo escolar
– e acadêmico, porque não? - sobre a existência de mulheres que
capitalizaram posses em Luanda e exerciam influência econômica
na cidade e tráfico transatlântico. Mulheres e o cenário luandense
35
permitem um “respiro” em capítulo dominado por explicações
político/econômicas, caso do “Processo de Independência da
América Portuguesa”.
O volume 1, apresenta o capítulo 4 “Antiguidade
Oriental” cuja composição é feita de conteúdos sobre
Mesopotâmia, Egito, Fenícios e Núbia. Na prática, apenas Núbia
não faz parte da tradição escolar, os demais são há muito tempo
apresentados sobre a batuta do “Oriente Extremo” agora
renomeado para “Antiguidade Oriental”. As três páginas
introduzem um longo período histórico da Núbia, a perspectiva
política econômica (os grandes eventos) tomam a narrativa, e a
Núbia é, em grande parte, abordada pela relação com o Egito,
algo que a historiografia vem apontando como problemático –
ainda que, historiograficamente, a produção acadêmica sobre
Núbia conviva com a mesma questão.
O terceiro volume da coleção traz, por sua vez, dois
capítulos que abordam África. Conteúdo escrito, texto
complementar, atividades, atividades direcionadas para o Enem,
ocupam 36 páginas do volume 3 (total 272páginas). Utilizadas
para apresentar aos estudantes a História africana contemporânea,
as páginas abordam a Conferência de Berlim, processos de
emancipações e imigração africana (diante das guerras civis). As
mesmas 36 páginas abordam a partilha e independência da Ásia,
com destaque para Japão, China, Índia e Indonésia.
No capítulo denominado “O imperialismo na África e na
Ásia”, a análise do conteúdo textual destinado a África demonstra
que a história de que ali se trata é a europeia. Explica-se o “fardo
do europeu”, sua existência no continente desde o século XV, os
interesses da burguesia europeia fora das fronteiras nacionais, e
legitimação do discurso pelo “darwinismo social”, e os interesses
36
particulares das nações europeias sobre as regiões que dominarão.
A respeito dos africanos o último parágrafo diz:
20
Caso deseje visualizar a imagem, ela pode ser facilmente encontrada na
plataforma de busca Google. Ver, por exemplo: A mentira do opressor.
Disponível em: https://brainly.com.br/tarefa/13225024. Acesso em: 29 de
dez. 2018.
37
Etiópia, enquanto o continente era partilhado e dominado.
Apenas a menção de dados não auxilia a construção de uma
história africana, contribuindo enormemente para as
generalizações e o consecutivo esquecimento desses sujeitos.
A crítica que faço sobre esse primeiro capítulo é a mesma
que inicia o oitavo capítulo do volume três. As autoras que até
aqui pouco espaço deram para as perspectivas endógenas
(africanas) dos processos ocorridos no continente, iniciam o
capítulo afirmando que a explicação de África sob o prisma do
europeu vem sendo revista (mesmo que não apresentada por elas,
aparentemente).
Da mesma forma, é positiva a apresentação do Pan-
africanismo e do conceito de negritude, essenciais para o processo
de emancipação, expressa em seguida. Contudo, abordar as
críticas elaboradas por Jean-Paul Sartre, em Orfeu Negro,
acompanhada de citação de Aimé Césaire sobre não se poder fazer
“um gobinismo as avessas”, pode ser muito mal interpretado no
espaço escolar, reforçando um estereótipo brasileiro de “racismo
às avessas”, inexistente no mundo real, uma vez que racismo
prescinde de poder.
Para narrar as emancipações as autoras operam também
por seleção de exemplos. Argélia, Guiné-Bissau, Angola,
Moçambique e África do Sul, são os exemplos selecionados e
observe: os recortes não foram realizados para melhor trabalhar
conteúdo, na prática, a seleção transformou histórias em
ilustração, em amostra. O espaço dedicado a cada um não é
padronizado, Argélia e África do Sul ocupam maior espaço dado
suas singularidades; os outros três países são abordados tendo
como denominador comum a colonização portuguesa, e os
eventos da Revolução dos Cravos como propulsor da paz.
38
Considerações realizadas pela Resenha do PNLD 2008 e
aqui já mencionadas são verdadeiras também para a coleção 2018.
Isto é, na tentativa de abarcar um volume grande de informações,
as autoras e suas coleções (fruto de todo um processo editorial),
simplificam processos e silenciam sujeitos históricos. É possível
que suas escolhas levem em conta a frequência em que esses temas
aparecem nos exames vestibulares, ou do status já consagrados que
ocupam – caso da África do Sul e do apartheid -. Aqui a crítica
não recai exclusivamente a essa coleção, mas é generalizada, é
fundamental operar recortes e sobre eles realizar análises
aprofundadas. Do contrário, continuaremos tentando explicar
processos complexos ora por meio de exemplos ora por meio da
política internacional, sempre arranhando a superfície da história.
Ainda que o capítulo se destaque positivamente em alguns
momentos, como a apresentação da presença de estudantes
africanos no Brasil, o conteúdo ainda é marcado por seu caráter
lacunar, tanto da perspectiva cronológica quanto do evento, que
em geral é explicado por intermédio do “exemplo”; a explicação
ainda está pautada, majoritariamente, na perspectiva europeia;
conhece-se a crítica sobre essa opção, mas a perspectiva endógena
é pouco ou nada explorada; em certos momentos, existe a
reprodução de estereótipos. Em suma, o estudante do ensino
médio sai da leitura dessas coleções com pouca ou nenhuma
compreensão da África.
Considerações Finais
Seja por pressão dos movimentos sociais ou por
adensamento das discussões acadêmicas, cuja relação é evidente, as
informações sobre África aparecem com maior regularidade e
qualidade se comparado na oportunidade da aprovação da Lei
39
10.639. Isso não significa que a questão esteja resolvida, pois, ela
não está.
Os conteúdos didáticos permanecem exibindo a
superioridade dos conteúdos ligados a história europeia, assim
como a grade curricular universitária. No que se refere os
conteúdos didáticos, existe um aumento do conteúdo, mas ele
ainda se faz de forma lacunar, sem efetiva preocupação com os
aspectos endógenos e reproduz estereótipos.
Se nos guiamos pela concepção de “livro ideal” como
proposto por Rusen (2010), é necessário que os livros didáticos
brasileiros observem um formato e estrutura claros, facilitando a
compreensão dos objetivos estabelecidos para cada conteúdo; uma
estrutura didática clara pela qual o próprio aluno possa reconhecer
os motivos da distribuição dos conteúdos e os pontos
considerados mais importantes; os livros devem apresentar uma
relação produtiva com o aluno, referindo-se a ele, utilizando a
curiosidade que é própria de certa idade, bem como seus
interesses e linguagens; e, por fim, uma relação com a prática de
aula, portanto, que se mostre útil, não meramente com o acúmulo
de textos e informações, mas que estas possam ser mobilizadas
com a finalidade de estimular questões, argumentos, consciência
histórica. A apresentação e problematização de fontes históricas,
por exemplo, é uma via que deve ser ampliada. Muitos dos livros
disponíveis no mercado brasileiro contemplam parte dessas
considerações, mas é necessário um esforço para ampliar essas
perspectivas entre autores/editoras/professores.
Pesquisas que buscam observar a perspectiva das editoras
de livros didáticos apontam que o caráter “conservador” das obras
de empresas já consolidadas correspondem ao temor de perder
espaço dentre os clientes, no caso os professores que operam as
escolhas dos livros. Discussões políticas, religiosas e de
40
comportamentos, por exemplo, são “vigiadas” para não
desagradar diferentes segmentos docentes, uma vez que o produto
corre em âmbito nacional (MEDEIROS, 2006). O fenômeno,
somado a análise aqui efetuada, são complementares e indicam
mais uma variável que dificulta a renovação da história ensinada
na escola.
O fato exige, ainda, mais preocupação com a formação
dos professores, pois, com uma boa formação é possível
transformar um conteúdo limitado em uma discussão profícua.
Por isso, a necessidade de nos preocuparmos com a formação
docente. Afinal, o que define a qualidade de uma aula ou do
ensino de um conteúdo é, acima de tudo, a atuação do professor.
É necessário que os docentes, parte significativa deles formados
antes da legislação que determinou o ensino de África nas escolas,
compreendam a importância de conhecer e ensinar História da
África. Mesmo argumento compete para afro-brasileiros e
indígenas. Para tal, é fundamental manter a vigilância e discussão
sobre as questões étnico-raciais.21
Fontes
BRASIL, Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica,
Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. PNLD
2018: história – guia de livros didáticos – Ensino Médio.
21
Igualmente a formação dos que ministram disciplinas sobre África e o
conteúdo desses cursos ainda precisam de reflexão. Sobre o assunto,
considerações podem ser obtidas na tese de doutorado de Cintia Diallo
(2017), cujo esforço buscou compreender a formação de docentes que
ministram disciplinas de África e afro-brasileiros, conteúdos e concepções
dessas disciplinas, oferecidas em universidades públicas do estado do Mato
Grosso do Sul.
41
Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica,
2017.
MOTA, Myriam Becho; BRAICK, Patrícia Ramos. História: das
cavernas ao terceiro milênio. Vol.1, 1. ed. São Paulo: Moderna,
2005.
______. História: das cavernas ao terceiro milênio. Vol.2, 1.
ed. São Paulo: Moderna, 2005.
______. História: das cavernas ao terceiro milênio. Vol.3, 1.
ed. São Paulo: Moderna, 2005.
______.História: das cavernas ao terceiro milênio. Vol.1, 3.
ed. São Paulo: Moderna, 2013.
______. História: das cavernas ao terceiro milênio. Vol.2, 3.
ed. São Paulo: Moderna, 2013.
______. História: das cavernas ao terceiro milênio. Vol.3, 3.
ed. São Paulo: Moderna, 2013.
Secretaria da Educação Básica, Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação. Edital de Convocação para o
processo de inscrição e avaliação de obras didáticas para o
Programa Nacional do Livro Didático – PNLD 2015.
Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica,
2013.
______. Edital de Convocação para o processo de inscrição e
avaliação de obras didáticas para o Programa Nacional do
Livro Didático – PNLD 2018. Brasília: Ministério da
Educação, Secretaria de Educação Básica, 2016.
______. Edital de Convocação para Inscrição no processo de
avaliação e seleção de obras didáticas a serem incluídas no
Catálogo do Programa Nacional do Livro para o Ensino
Médio – PNLEM 2007. Brasília: Ministério da Educação,
Secretaria de Educação Básica, 2005.
42
______. Edital de Convocação para Inscrição no processo de
avaliação e seleção de obras didáticas para o Programa
Nacional do Livro Didático 2012 – Ensino Médio. Brasília:
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2010.
______. História: catálogo do Programa Nacional do Livro
para o Ensino Médio: PNLEM 2008. Brasília: Ministério da
Educação, Secretaria de Educação Básica, 2007.
Secretaria da Educação Básica. Guia de livros didáticos: PNLD
2012: História. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria da
Educação Básica, 2011.
______. Guia de livros didáticos: PNLD 2015: História:
Ensino Médio. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria da
Educação Básica, 2014.
______. Guia de livros didáticos: PNLD 2018: História:
Ensino Médio. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria da
Educação Básica, 2017.
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43
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Ensino de História. Paraná: EDUFRN, 2010.
45
46
ESTRATÉGIAS PARA O ENSINO DE HISTÓRIA E
CULTURA AFRO-BRASILEIRA NA EDUCAÇÃO
BÁSICA: REPRESENTAÇÃO DO NEGRO NA
SOCIEDADE E NA SALA DE AULA
Felipe de Moura Garrido1
49
como os indígenas e os quilombolas (MEC. BNCC. 2017, p. 8-
11 – grifos do documento).
Para que a Base Nacional Curricular Comum e os
conteúdos mínimos por ela apontados levem a melhoria da
qualidade educacional e à reversão da situação de exclusão
histórica, é necessário que novas abordagens de temas ocorram.
Dificilmente será possível grandes avanços com as mesmas
práticas.
Portanto, pretendemos auxiliar na compreensão das
estratégias de vida da população escravizada no Brasil
(CHALHOUB, 2011, p. 12-31). Especificamente, pretendemos
demonstrar que negros escravizados faziam parte da rede de
crédito da sociedade colonial e participavam das Irmandades
Religiosas como estratégias conscientes de melhoria das condições
de vida (GIL, 2009: p. 215-221). 2
O tema não é inédito na historiografia, e nem
pretendíamos que fosse. Autores como Robert Slenes (2011) e
Sidney Chalhoub (2011), que são referências na elaboração desse
texto, abordaram esse processo. O objetivo é pensar em formas de
trabalhar essa temática em sala de aula, fazendo uso de
documentos históricos, revelando um pouco do ofício do
historiador para os estudantes.
Esse texto, assim, é dividido em dois tópicos: “BNCC e
suas competências” e “Fontes Históricas e sala de aula”. No
2
Tiago Gil assinalou as estratégias de crédito das elites locais na sociedade
colonial da América portuguesa. Em sua análise, os participantes de
instâncias administrativas e oficiais das ordenanças tinham maior
disponibilidade de crédito e também emprestavam mais. Isso era
decorrência da visão hierarquizada da sociedade, típica da sociedade de
Antigo Regime. Dessa forma, podemos observar que essa visão de mundo
não era restrita aos brancos livres, mas também à população escravizada.
50
primeiro tópico, pretendemos retomar a importância da Base
Curricular para o sistema educacional brasileiro e as
potencialidades desse documento. Fazemos um levantamento das
competências gerais e específicas para História, de maneira a
compreender os principais objetivos por trás da elaboração do
documento. Ao mesmo tempo, no segundo tópico, visamos
informar sobre maneiras de trabalhar com fontes históricas em
sala de aula, ultrapassando a visão limitada da escravidão, na qual
os corpos escravizados eram meros instrumentos sem agência3.
3
O conceito de agência é decorrente da capacidade de agir. A historiografia
tradicional trabalhou com visões limitadas sobre a população escravizada,
pois identificava o negro escravizado na sociedade colonial como um
alguém sem possibilidades de ação. As pesquisas mais recentes identificam
diferentes estratégias dos negros escravizados para melhorar sua qualidade
de vida, agindo, portanto, naquela sociedade para levar adiante seus
objetivos.
51
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1996) e as
Diretrizes Curriculares (1997-2013) retomaram a necessidade de
uma base comum, antevendo o passo que seria dado futuramente.
O artigo 26 da LDB (1996) informava que “os currículos do
ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional
comum, a ser complementada, [...], por uma parte diversificada,
exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da
cultura, da economia e da clientela”. A redação foi alterada pela
lei 12.796, de 2013, mas não se alterou a intenção. Já nas
Diretrizes Curriculares Nacionais (2010) reforça, em seu artigo
14, a necessidade da base comum e a define como
“conhecimentos, saberes e valores produzidos culturalmente,
expressos nas políticas públicas”.
O processo de elaboração contou com a participação do
Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e da
União Nacional dos Dirigentes Municipais da Educação
(Undime)4. Os órgãos foram incluídos no grupo de redação
através da portaria 592 do Ministério da Educação, em 2015. No
mesmo ano, saiu a primeira versão da Base Curricular (BRASIL,
MEC, 2016).
O ano de 2016 foi marcado pelo amplo debate público.
O governo disponibilizou um site para contribuições públicas de
toda a sociedade. As contribuições estão disponíveis no portal do
MEC e, após sistematização de uma equipe da UnB, deu forma a
segunda versão da Base Nacional Curricular Comum.
4
O Consed se define como um conselho com finalidade de promover a
integração entre as redes estaduais de educação para intensificar a
participação dos estados no processo decisório nacional. E, a Undime diz
ter por princípio mobilizar e articular os dirigentes municipais em defesa a
educação pública com qualidade social.
52
Por fim, no ano de 2017, a Base foi novamente
discutida. Em abril, a terceira versão foi redigida, alterando
determinados pontos, sistematizando as contribuições da
sociedade e adequando o formato para o ensino fundamental e
infantil. O ensino médio foi desmembrado para um documento
próprio, ainda em formulação. Entre junho e setembro desse ano,
a Base foi discutida no Conselho Nacional de Educação, no qual
o parecer n. 1.570, publicado no Diário Oficial em 21/12/2017,
oficializou a terceira versão da Base Curricular.
O trâmite burocrático e operacional da escrita da Base
Curricular demonstra a preocupação em ampliar o debate sobre
os conteúdos mínimos a serem trabalhados em sala de aula. O
documento passou por diferentes governos, desde a Constituição
de 1988 até a sua terceira versão, e por diferentes visões de
política pública e educacional. Isso não significa que ela seja um
espelho dos interesses da sociedade, mas faz parte de um amplo
processo democrático de formulação. O parecer do CNE apontou
cinco Audiências Públicas Nacionais, uma para cada região do
território nacional, realizados entre 7 de junho e 11 de setembro
de 2017, nas cidades de Manaus, Recife, Florianópolis, São Paulo
e Brasília (CNE, Parecer PROCESSO Nº: 23001.000201/2014-
14: 10). Dessa forma, embora as reuniões não tenham sido
realizadas no interior, nem tenham feito videoconferências que
dessem mais voz para diferentes partes do território, existiu
esforço por parte do MEC em compreender as múltiplas
realidades da Educação no Brasil.
Após compreender o processo da redação da Base
Curricular, precisamos entender o que está escrito no documento.
A sua introdução deixa claro a posição complementar que ela
ocupa, sendo mais um instrumento normativo do currículo
mínimo que deve ser cumprido pelo sistema educacional.
53
Conforme redação oficial: “BNCC e currículos têm papéis
complementares para assegurar as aprendizagens essenciais
definidas para cada etapa da educação básica” (BRASIL, BNCC,
2017, p. 12 – grifos nossos).
Para desenvolver as aprendizagens essenciais nos alunos
brasileiros, a BNCC estipulou uma série de competências que
devem ser atingidas durante a formação. As competências são
entendidas como “a possibilidade de utilizar o conhecimento em
situações que requerem aplicá-lo para tomar decisões pertinentes”
(BRASIL, BNCC, 2017, p. 15), identificando um conhecimento
que seja significativo para as diferentes realidades brasileiras e
ultrapasse o formato “bancário” de educação (FREIRE, 2005, p.
65-82).
O documento também listou as competências a serem
desenvolvidas. Nesse texto, interessa-nos as seguintes
competências gerais:
55
9. Compreender e problematizar os conceitos e
procedimentos próprios à produção do conhecimento
historiográfico (BRASIL, BNCC, 2017, p. 352).
57
Para esse texto, resolvemos abordar o uso das fontes no
estudo da escravidão e da história dos afro-brasileiros. As fontes
selecionadas estão disponíveis em acervo digital ou arquivos
municipais e podem ser consultadas com determinada facilidade,
a depender do município. Ao mesmo tempo, vamos identificar
alguns processos gerais que ocorriam no Brasil do século XIX,
especialmente em sua primeira metade.
Na pesquisa de doutorado, procuramos entender,
identificar e comparar as estratégias sociais, econômicas e políticas
de formação de clãs familiares numa área economicamente
periférica da América Portuguesa, posteriormente Brasil. O
recorte geográfico corresponde a vila de Taubaté, na região do
Vale do Paraíba paulista, a qual é famosa tanto pelas expedições
Bandeirantes, no século XVII, quanto pelos Barões do Café, no
século XIX. A nossa seleção cronológica, porém, visou
compreender a economia taubateana entre seus dois períodos
áureos e as elites que foram responsáveis pela expansão da
cafeicultura na vila, entre 1780 e 1830. Assim, buscamos
compreender quem eram os sujeitos e o que eles produziam na
formação de suas fortunas que, no século XIX, seriam utilizadas
para o estabelecimento das plantações de café e sua exportação via
porto de Santos e Rio de Janeiro (GARRIDO, 2016).
A pesquisa se baseou num amplo corpus documental:
maços de população, atas da câmara, inventários e documentos
oficiais. Os Maços de População eram espécies de censos
primitivos, pois eram documentos escritos anualmente em todas
as vilas da Capitania/Província de São Paulo, entre 1765 e 1856,
que arrolavam os donos de unidades produtivas (fogos), a
quantidade de sujeitos escravizados e as patentes militares. Em
determinados períodos, as listas melhoraram de qualidade e
passaram a anotar também o que era produzido e outros detalhes
58
sobre a vida pessoal dos moradores. Todavia, as informações
devem ser relativizadas, haja vista que nem todos os capitães-
mores fizeram suas listas com o devido zelo e a metodologia de
computação dos números variou de caso a caso (BACELLAR,
2008).
As atas da câmara de Taubaté foi um segundo
documento escrito utilizado. As atas estavam em posse do cartório
do município, mas, ainda no início do século XX, foram limpos,
catalogados, transcritos e impressos por Félix Guisárd Filho. Ele
dividiu os documentos encontrados em diferentes volumes. No
caso dessa pesquisa, utilizamos o primeiro volume, referente as
reuniões que ocorreram entre 1780 e 1798 (GUISÁRD FILHO,
1943).
No Arquivo Histórico Municipal de Taubaté “Félix
Guisárd Filho” encontramos os documentos referentes a
Inventários e Testamentos dos principais sujeitos que faleceram
na vila, entre 1780 e 1830 (ARAÚJO, 2005). A lista de nomes foi
baseada nos indivíduos que se destacaram por questões
econômicas, verificadas nos Maços de População, ou por sua
atuação política, de acordo com a Atas da Câmara.
E, para finalizar, utilizamos os documentos oficiais do
Arquivo Histórico Ultramarino, que foi sistematizado pelo
Projeto Barão de Rio Branco e, atualmente, encontra-se
disponível online. Essa documentação é composta por diferentes
documentos oficiais que transitaram entre a América Portuguesa e
o Conselho Ultramarino. Ao mesmo tempo, também verificamos
os documentos oficiais dos governadores da capitania/província
de São Paulo nos Documentos Interessantes para a História e
Costume de São Paulo. Esses documentos foram impressos e
publicados no início do século XX. Essa coleção, atualmente, está
59
disponível online no portal da Universidade Estadual de São
Paulo “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP).
A sistematização desses bancos de dados nos forneceu
algumas informações sobre a realidade taubateana.
Economicamente, a maioria dos fogos da vila produziam gêneros
alimentícios (milho, feijão e arroz, principalmente), artigos para
exportação (algodão e tabaco) e, em poucas unidades produtivas,
existia a produção de açúcar para exportação, principalmente via o
Rio de Janeiro, mas também por Parati, São Sebastião e Ubatuba.
Os fogos produtores de açúcar eram relativamente poucos, não
chegavam a 1% do total de domicílios da vila, mas concentravam
uma grande quantidade de almas escravizadas.
A posse de escravos também foi um fator significativo na
vila e aponta para a concentração de mão de obra compulsória em
algumas unidades produtivas. No período entre 1780 e 1812,
anterior a cafeicultura, anotamos 11% das unidades com mais de
vinte escravizados controlando 45% dos escravizados, em média.
E, entre 1818 e 1830, 9,5% dos fogos eram proprietários de
35,6% dos escravizados, em média. Isso significa que a
concentração de escravizados em poucos fogos ocorreu em todo o
período analisado, embora os números tenham se tornado menos
desiguais com o advento da cafeicultura. Os números também são
correspondentes com os encontrados em outras vilas da capitania
de São Paulo e do Brasil (KLEIN; LUNA, 2010).
Para além dos dados estatísticos, os maços populacionais
permitem uma série de interpretações sobre a sociedade colonial.
Embora o foco de quase toda documentação do período colonial
fosse voltado para as elites, através das brechas desses documentos
podemos observar as dinâmicas sociais da população africana e
afrodescendente.
60
Figura 1 – Lista nominativa do fogo n.1, Taubaté 1808
(APESP, maços de população, 1808)
63
Figura 2 – Lista nominativa do fogo n. 1, Taubaté, 1825
(APESP, maços de população, 1825)
64
Assim, podemos levantar algumas hipóteses com os
estudantes. A situação pode corresponder a compra de alforria das
mulheres escravizadas, pois ao se tornarem livres elas garantiam
que os eventuais filhos do casamento também estariam libertos.
Também poderia ser o casamento com mulheres livres pobres
que, embora não fossem escravas, também tinham a necessidade
da proteção na sociedade colonial. Outras hipóteses também são
válidas e podem estimular a criatividade dos alunos. As mulheres,
por exemplo, podem ter fugido do domicílio e, por isso, não
foram listadas. Essas mulheres podiam ser escravas de ganho que
residiam em uma propriedade urbana, longe de seus senhores e
não foram encontradas para a listagem. Ou, ainda, essas senhoras
eram escravas de outras propriedades e conseguiram o
consentimento dos senhores para esses casamentos. Novamente,
para além das respostas querem mostrar a série de hipóteses e
oportunidades de investigação que o uso do documento estimula
em sala de aula.
Portanto, compreendemos que, embora os Maços de
População não seja uma documentação presente em toda a
localidade da América Portuguesa e seu principal objetivo era
arrolar as elites locais, existem estratégias metodológicas e teóricas
de análise desses documentos que, em sua porosidade, revelam
dinâmicas sociais (BACELLAR, 2008). Esse conhecimento pode
ser cruzado com outra fonte documental, o que exporia com
maior profundidade o ofício do historiador.
O uso de inventários e testamentos pode ser uma boa
ação para estimular a criatividade dos estudantes em sala de aula.
Em geral, esses documentos estão localizados em órgãos públicos
como Arquivos Municipais ou os cartórios municipais. Em
algumas localidades, as famílias ainda mantêm os inventários
como patrimônio pessoal, mas esses casos são cada vez mais raros.
65
Todavia, a leitura de inventários/testamentos necessita que o
professor tenha conhecimento em paleografia, o que não é uma
disciplina obrigatória nas universidades brasileiras, mas pode ser
aprendida em minicursos (ARAÚJO, 2005).
Para esse artigo, selecionamos três inventários diferentes
de pessoas com grande relevância para a realidade taubateana,
entre 1807 e 1820. O primeiro inventário transcrito foi o do
sargento-mor Eusébio José de Araújo, falecido em 1807, era um
dos sujeitos mais ricos e poderosos da vila de Taubaté. O segundo
inventário é de D. Margarida Florinda de Jesus, falecida em 1820,
esposa do sargento-mor Eusébio e uma das principais
participantes de Irmandades Religiosas da vila (RIBEIRO, 2010).
E, por fim, no mesmo ano, faleceu o alferes José Antônio
Nogueira, genro do sargento-mor Eusébio, comerciante que
negociava por vilas mineiras, paulistas e fluminenses. Esses três
sujeitos legaram de monte-mor os valores de vinte contos de réis,
treze contos de réis e doze contos de réis, respectivamente, o que
lhes colocou na 3º, 5º e 6º posições de maiores fortunas arroladas,
num total de 50 processos.
A composição das três fortunas demonstra estratégias
diferentes na condução dos negócios e nas possibilidades da
sociedade colonial. Ao falecer, o sargento-mor possuía a maior
parte de sua fortuna em dívidas ativas, o que sugere ser um
importante prestamista local e um sujeito de vasta rede social –
lembrando que naquele período não existiam instituições oficiais
para crédito e o dinheiro era pouco utilizado, sendo o crédito o
meio mais comum de transações (GIL, 2009, p. 25-37). A sua
esposa e herdeira, por outro lado, não tinha possibilidades de
manter os investimentos devido às características machistas da
sociedade colonial. Por isso, os bens de raiz (imóveis) passaram a
ter maior importância na composição da fortuna. E, por último, o
66
seu genro faleceu quando ainda era relativamente jovem, o que
fica mais claro na composição da fortuna, pois grande parte de sua
riqueza estava em produtos importados do Rio de Janeiro e que
seriam revendidos, além de apontar vários empréstimos feitos em
Minas Gerais.
Novamente, os documentos oficiais, embora tratem das
fortunas das elites locais, mostram em suas brechas as estratégias
de sobrevivência da população negra escravizada. No inventário
de Eusébio, provavelmente o taubateano mais rico do final do
século XVIII, encontramos uma inscrição com empréstimo no
valor de 9$370 (nove mil, trezentos e setenta) réis para Jacinto
Barboza, “fiador de um negro da Capela Senhor Bom Jesus”
(AHMT, 1807, inventário de Eusébio José de Araújo). E, no
inventário de sua viúva, anotou-se empréstimo de 64 mil réis para
a escrava Roza comprar a própria alforria (AHMT, 1820,
Margarida Florinda de Jesus, p. 140).
A trajetória da família perpassou espaços de negociação
com a população cativa. As irmandades religiosas que existiam em
Taubaté eram locais que favoreciam a negociação entre senhores e
seus escravos. Pesquisas mostram que os escravos de Dona
Margarida Florinda de Jesus participavam ativamente da
Irmandade de São Benedito dos Pretos, pois um total de treze
escravos foram listados como irmãos e alguns compuseram a
Mesa5. O sargento-mor Eusébio fez questão que seu escravo
5
A Mesa de Consciência era a instância administrativa da Irmandade, sendo
ela composta por rei, rainha, juízes, juízas, tesoureiro, andador e
procurador, geralmente. Os reis e rainhas convocavam os interessados em
ocupar cargos através do andador. Normalmente, à realeza cabia a
organização de festas, recolhimento de esmolas e deliberar sobre atos de
dúvidas entre os irmãos. Aos juízes, cabia o serviço de zelar pelo
comportamento dos irmãos, exigindo postura exemplar e comportamento
67
Miguel Monjolo participasse da mesma irmandade, sendo eleito
por três anos para o cargo de andador. Esse cargo era de “suma
importância e responsabilidade para o escravo, pois lhe era
delegado o papel de circular pela cidade e arraiais, convocando os
irmãos a participarem das celebrações”. Na Mesa dessa irmandade
também atuava a escrava Domingas, que tinha papel de Juíza e
era esposa do escravo africano Miguel Monjolo (RIBEIRO, 2010,
p. 100-104).
Na Irmandade do Rosário, na qual participavam
brancos, livres e negros, encontramos parentes de D. Margarida.
A sua filha foi juíza em 1807, mesmo ano em que matriculou a
escrava Gertrudes, que ocuparia o cargo de juíza três anos depois.
O genro José Antônio Nogueira também era irmão do Rosário e
colocou dois de seus escravos como confrades da irmandade. A
sua escrava Maria era africana “da costa” e o escravo Francisco era
um mulato de 57 anos que foi mesário em 1815, 1818, 1823 e
1827 (RIBEIRO, 2010, p. 105-106).
No inventário do alferes José Antônio Nogueira
encontramos várias anotações de empréstimos para escravos,
somando 7 marcações e total de 17$780 réis, e um empréstimo
para um forro no valor de 7$100 réis (FRAGOSO, 2010). Os
valores não são altos, variando de 320 réis para Catharina, escrava
de Anna Ferreira até 4$340 réis para Benedita, escrava de Anna
Francisca (provavelmente uma das herdeiras) (AHMT, José
Antônio Nogueira, 1820). Os escravos que pegaram empréstimos
Considerações Finais
O governo brasileiro busca, desde a Constituição Federal
de 1988, organizar e desenvolver a educação pública brasileira. A
Carta Magna foi o primeiro documento a organizar a educação
brasileira na Nova República, na qual já encontramos a
necessidade de conhecimentos mínimos para cada ano, por
componente curricular e série. Os documentos seguintes, como a
Lei de Diretrizes e Bases (1996) e as Diretrizes Curriculares
(1997-2013), expuseram a necessidade de uma Base Nacional
Curricular Comum que, embora flexível para se ajustar as
realidades locais, apontasse os requisitos mínimos para os
estudantes.
Ao mesmo tempo, os estudos pedagógicos que debatem
as formas de melhoria do ensino de História identificam a
necessidade de expandir o uso de fontes históricas em sala de aula.
E, na medida do possível, revisitar os conhecimentos cristalizados
pela historiografia tradicional.
O uso de fontes históricas em sala de aula é defendido
por historiadores e pedagogos, pois esse tipo de ferramenta
desperta o interesse dos estudantes e desenvolve o conhecimento
ativo. Diferente das tradicionais aulas expositiva, essa forma de
saber ativo prega a participação do aluno, a aula a partir de seus
conhecimentos e a relação entre o seu cotidiano e o conhecimento
70
histórico. Isso não significa abolir as aulas expositivas, mas utilizar
estratégias pedagógicas diversificadas.
Dessa forma, buscamos identificar os principais objetivos
da BNCC em relação ao ensino de História, identificando as
competências gerais, específicas de Ciências Humanas e as de
História que foram arroladas pela BNCC. Em paralelo, traçamos
uma estratégia para trabalhar em sala de aula com documentos
históricos referentes à escravidão e que vislumbram as agências
dos sujeitos escravizados na sociedade colonial.
Por fim, acreditamos que essa dinâmica de aula beneficia
a compreensão dos estudantes acerca das principais características
da sociedade colonial, ao mesmo tempo em que questiona
determinadas posições da historiografia tradicional. Os sujeitos
escravizados não são vistos como meras mercadorias do sistema
colonial e nem como indivíduos sem potencialidades para
resistirem à escravidão. Ao contrário, a análise dos documentos
demonstra que eles tinham plena consciência de suas
potencialidades de resistência e as diferentes estratégias de
negociação, dentro de um sistema injusto, desigual e tangenciado
pela violência.
Documentos
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Comum. Terceira versão. Brasília: MEC, 2017. Disponível em:
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MEC, 2017. Disponível em:
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74
HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO E ENSINO DE
HISTÓRIA: O QUILOMBO COMO SUGESTÃO DE
ANÁLISE
Lúcia Helena Oliveira Silva1
78
desigualdades, as resistências e as negociações presentes no
processo histórico do país.
Foi com o término do período militar e o início do
processo de redemocratização que de fato viabilizou-se um
repensar sobre o conhecimento histórico. Para Selva Fonseca
(1995, p.91) as novas propostas de currículo tiveram grande
importância ao discutir o papel da escola fundamental, dos novos
conhecimentos e da universidade na perspectiva de romper com a
hierarquização do trabalho acadêmico repensando a produção do
saber e o lugar social da ciência.
É preciso também considerar as mudanças na academia
como a influência da Historiografia Social Inglesa 3 e da Nova
História Francesa4 que trouxeram novas configurações teórico-
metodológicas como a “história vista de baixo”. Foi a partir deste
contexto que se ampliou o escopo metodológico, trazendo à tona
a história de sujeitos históricos pouco contemplados na história
brasileira. A noção do conhecimento como construção passou a
ser compreendida também como caminho teórico-metodológico
3
Nova perspectiva teórico-metodológica surgida como um “novo marxismo
inglês”, representado na figura de historiadores ligados ao Partido
Comunista Inglês, mas que haviam rompido com o marxismo da época.
Entre os quais Eric Hobsbawn, Cristhopher Hill, Raymond Willians e
Edward P. Thompson. O destaque das análises efetivadas pela história
social é a emergência da compreensão dos grupos pouco contemplados na
historiografia, tal como, os operários.
4
A Nova História surge na França, a partir de 1971 com Pierre Nora,
profundamente influenciado pelas ideias de Michel Foucault e a publicação
de uma nova produção historiográfica, na qual pequenas e variadas histórias
se colocavam no lugar de uma “Grande História”. Tomando para si a
pesquisa de “novos problemas, abordagens e objetos”, essa ampliação
teórico-metodológica muito contribuiu para a renovação das pesquisas
brasileiras.
79
em busca de construir criticidade e reflexão, permitindo o
indeterminado.
Estas proposições, somadas ao início do processo de
redemocratização política, deram direcionamentos que buscaram
contemplar a história dos grupos marginalizados em nossa
história. Como resultado das pressões populares tivemos a
organização de uma Assembleia Constituinte que teve muitos
representantes dos movimentos populares. Ainda que com muitos
embates, houve avanços importantes que resultaram na
Constituição Cidadã de 19885.
No mesmo ano da Constituinte também se iniciou a
organização de uma nova Lei de Diretrizes e Bases (1987), mas
com menor atenção dos grupos dirigentes, ela teve longo debate e
só foi concluída em 1996, ou seja, quase dez anos depois. Sem
querer entrar na discussão sobre a demora de uma lei tão
importante que orienta o ensino em todos os níveis da educação,
a definição da LDB trouxe uma série de orientações importantes.
Uma destas orientações foram os Parâmetros Curriculares
Nacionais criados em 1998. Estes parâmetros buscaram orientar
um processo de redefinição do ensino e de seus conteúdos e
complementaram as mudanças sugeridas lá na década de 80 e
implementadas, em parte, em 1996 e posteriormente alteradas em
2003.
Parte destas mudanças era resultado das movimentações
iniciadas ainda no período da Ditadura e procuraram trazer
destaque a temáticas histórico-sociais, há muito relegadas. Um
5
Sobre a Assembleia Constituinte e lutas internas dentro do processo ver
BASILIO, L. Desigualdade racial políticas de inclusão acerca da
condição do negro (1988-2002): uma perspectiva política acercada
condição do negro. Dissertação de mestrado, IFCH-UEL, Londrina, 2004.
80
exemplo dos temas discutidos são os quilombos. Estes,
reconhecidos na Constituição no artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), são observados
como espaços de preservação das terras indígenas e quilombolas,
ocupadas historicamente, para as quais deve existir um processo
de regulamentação da posse.
Estudados no ensino fundamental e médio como forma
de resistência de escravizados do/no passado, eles continuam
existindo e devem ser assim analisados. O sentido atual de
quilombos, contudo é desconhecido de boa parte de manuais e da
história ensinada nas escolas.6 Pensando nisso e sobre os processos
de resistências dos diversos grupos da população negra, acredito
ser possível trazer um novo olhar sobre a história e memória dos
quilombos um dos signos mais tradicionais de resistência dos
escravizados africanos e afro-brasileiros.
6
O exercício do direito estabelecido no artigo 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias sepulta de vez as disposições da Lei de Terras
de 1850, confere legitimidade dominial das comunidades que ocupam as
terras. A Fundação Palmares tem sido o órgão que tem apoiado os
processos e a dirimição de dúvidas jurídicas em relação a interpretação dos
texto do artigo. Para mais informações ver: SUNFLED, C. A. (org.)
Comunidades Quilombolas: Direito à terra. Brasília: Fundação Cultural
Palmares/Minc, Editorial Abaré, 2002.
81
usado para esconderijo de escravizados era mucambo. Ele também
informa que o primeiro quilombo que se tem notícia existiu na
Bahia em 1573 e foi destruído em 1575. Em 1740, em
documentação enviada ao Conselho Ultramarino, o rei de
Portugal definiu que quilombo como “toda a habitação de negros
fugidos que passem de cinco, em parte desprovida, ainda que não
tenham ranchos nem pilões” (MOURA, 2004, p.335).
Stuart Schwartz, em seus estudos, diz que o termo nunca
havia recebido grande atenção até a luta contra Palmares e que o
termo pode ter sido uma adaptação militar imbangala do
ovimbundu (2001, p.448). Décio Freitas acrescentou ao termo
um conceito de luta e não apenas de fuga, interpretando como
um dos maiores de resistência a escravidão (1959; 1971). José
Arruti afirma que “quilombo” é o elemento mais importante na
construção semântica dos movimentos dos remanescentes e
adquiriu grande força nos eventos do dia 20 de novembro e
Zumbi dos Palmares, principalmente do tri-centenário da morte
de Zumbi em 1995, quando grande parte dos eventos passou a
contestar a data do dia 13 de maio como exaltação de vultos
nacionais, para valorizar o dia 20 de novembro como uma data de
ativismo negro, situação que perdura até os dias de hoje (2005,
p.71).
Esta forma de organização já era conhecida no período de
institucionalização da História Nacional, tanto que o Francisco A.
Varnhagen fez a menção dos quilombos na sua versão da história
do Brasil. A esta narrativa consagrada, novas pesquisas tem
evidenciado outros protagonistas e construído o quilombo como
parte dos processos de resistência. Nesta perspectiva, eles não são
espaços de exceção, ao contrário, tiveram existência contínua em
todo o período em que perdurou a escravidão. Afinal de contas,
como afirmaram João Reis e Flávio Gomes “onde houve
82
escravidão, houve resistência” (1996, p.9). Como conseqüência
deste movimento, temos conhecido diversos agenciamentos de
homens e mulheres, a existência de redes de solidariedade que
agiam tanto pela liberdade (incluindo aqui os mais diversos
processos de resistência) como na busca de condições de vida
dignas dentro do possível no contexto escravista.
Reis e Gomes organizaram um livro que demonstrou a
constância do aquilombamento em todo o continente americano.
Com diferentes denominações como mocambos, palenques,
maroons, cumbe, grand marronage, eles são um marca de diversos
países da América. Na Jamaica e Suriname, por exemplo, depois
da Abolição os moradores destas áreas conseguiram acordos com
autoridades coloniais e conseguiram certa autonomia. Buscando
dimensionar a presença de quilombos no norte do país, Vicente
Salles (1971) afirmou que em meados do século XIX havia mais
escravizados em mocambos do que nas fazendas. Tanto o trabalho
de Reis e Gomes como de Salles, traz à tona dados que mostram
que a resistência dos escravizados nunca parou e que o sentido de
quilombo foi alargado pelas várias experiências.
Aqui quilombo adquiriu símbolo de luta dos povos
escravizados, territorialidade física e cultural negra, sociabilidade.
Sua amplitude de significados está sacramentada na Constituição,
ainda que na parte das “Disposições Transitórias”, o que significa
respeito jurídico a lei maior que rege nosso país.
7
Advirto que o quilombo foi o tema selecionado para análise no capítulo,
porém, diversos aspectos da História e Cultura afro-brasileira e indígena
86
olhares e, possivelmente, melhorar a compreensão sobre o
assunto. Não se trata de descartar o que já é trabalhado em sala de
aula, no caso, as funções históricas do quilombo. Nem mesmo
menosprezar o destaque ao mais famoso o quilombo de Palmares.
Estes conteúdos são de fato importantes, mas abordados como
questão do passado reforça a ideia de finitude, de que eles não
existem mais. Creio que a ampliação do conhecimento sobre o
tema favorece novos olhares e podem ressignificar a concepção de
patrimônio, neste sentido, a Constituição de 1988, artigo 216,
define:
8
Criada em agosto de 1988 no bojo da Redemocratização e do Centenário
da Abolição da Escravidão, a Fundação Palmares foi criada vinculada ao
Ministérios da Educação. Cabe a entidade a certificação das comunidades
quilombolas, documento importante para legalização da posse da terra e
acesso aos programas sociais do Governo Federal. Fundação Cultural
Palmares. Disponível em: http://www.palmares.gov.br/?p=3041. Acesso
em 01 de dez.2018.
88
de luta e moradia da população rural e urbana, cujo
reconhecimento e identificação tem sido recuperado e
rememorado.
Como se afirmou antes, este reconhecimento veio no bojo
de um processo importante, criado pelos movimentos sociais que
reivindicaram esta identificação e também incentivaram o
reconhecimento histórico das territorialidades negras em espaços
da zona rural e também urbanos.
9
Santa Afro-Catarina: roteiros. Disponível em:
www.santaafrocatarina.blogspot.com/p/roteiros.html.
Acesso em: 15 de nov. 2018.
91
do processo de patrimonialização à medida que os novos
conhecimentos vem à tona.10
Considerações Finais
O que se buscou aqui foi pontuar ensino de história do
Brasil na sua versão oficial, as mudanças e as tentativas para a
incorporação de novos conteúdos que contemplem os segmentos,
até bem pouco, silenciados na narrativa histórica, bem como,
indicar outras versões, para além daquelas produzidas pelo olhar
positivista.
Como se viu, o anseio e a luta por mudanças não se
formaram espontaneamente, fazem parte de um momento em
que as aspirações populares por reconhecimento e a luta por
maior participação nos rumos políticos ganhavam força,
10
Mais recentemente, como resposta a apropriação do Bairro da Liberdade
como exclusivamente local de imigrantes japoneses, tem emergido projetos
que exploram o Bairro (bem como São Paulo) como espaço de memória da
comunidade negra. Conferir: CANOFRE, Fernanda. Do largo da
Memória ao Paissandu, passeio mapeia história negra em SP: Trajeto
criado por três amigos lembra episódios do povo negro esquecidos no
centro. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/11/do-largo-da-memoria-
ao-paissandu-passeio-mapeia-historia-negra-em-sp.shtml. Acesso em: 18 de
dez. 2018. No Rio de Janeiro, com a descoberta do Sítio Arqueológico do
Cais do Valongo e consequente patrimonialização pela UNESCO em
2017, tours pela “Pequena África” tornaram-se ainda mais completos e
buscados. Conferir: NÓBREGA, Monica. Tour guiado leva ao Cais do
Valongo, que virou Patrimônio da Unesco Sítio arqueológico no Rio
recebeu título no domingo: Passeio histórico revela a história da área da
cidade conhecida como Pequena África. Disponível em:
https://viagem.estadao.com.br/noticias/geral,cais-do-
valongo,70001884488. Acesso em: 18 de dez. 2018.
92
refletindo em expectativas sobre a história que se ensina e
aprende. Tão importante como ter os novos conteúdos é pensar
em caminhos metodológicos que aproximem a história e a
vivência, estimulando o desenvolvimento de crítica e consciência
entre os estudantes. O que há de novo são ações educativas que
buscam dar caráter prático ao conhecimento propiciando aos
alunos ler e ver o conhecimento se apropriando e criando sua
própria definição. Ou seja, para além do conhecimento trazido
pelos manuais atualizados pela lei 10.639 e 11.645, pode-se
somar um conhecimento que busca caráter prático ao que foi
ensinado e aprendido. Nas palavras de Maria Almeida:
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98
LITERATURA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA E
ENSINO DE HISTÓRIA
Clícea Maria Miranda1
Músicas cantadas
Histórias narradas
Na lembrança vem
Vozes
De avós negros
Meus e seus
Falam
Não se calam
Gravam na memória
A minha história
E de outros negros
Também.
1
Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. E-mail:
climari@hotmail.com
99
um ensino de História que reconheça esse legado histórico e
cultural a partir da literatura africana e afro brasileira? Vejamos!
2
O adinkra constitui um conjunto de símbolos dos povos acã da África
Ocidental, mas especificamente da região de Gana e que representa
provérbios. Para saber mais ver: NASCIMENTO, Elisa Larkin; GÁ, Luiz
Carlos. ADINKRA: Sabedoria dos Povos Africanos. Rio de Janeiro: Pallas,
2011a.
104
negras em África, nas Américas e na Europa ao longo da história
deixaram registros nos quais podemos identificar suas experiências
em diferentes espaços geográficos e sociais.
A diáspora africana dada a partir do tráfico de pessoas
escravizadas para as Américas, construiu uma série de experiências
transatlânticas que foram registradas. As narrativas produzidas no
período em que se deu a diáspora, em especial, as narrativas
produzidas por pessoas negras constituem fonte rica de registro
histórico sobre período escravista. Aqui destacamos os escritos de
Gustavus Vassa, conhecido como Olaudah Equiano, um
marinheiro africano da comunidade igbo na atual Nigéria, que
percorreu o Atlântico no século XVIII, participou do movimento
abolicionista na Inglaterra e que deixou registrado suas memórias
sobre a África, o tráfico de africanos e a escravidão no mundo
Atlântico (CANTO, 2015). Ao analisar a obra deste africano da
sociedade igbo do século XVIII, o pesquisador Rafael Antunes do
Canto avalia que
111
Exu
Tu és o senhor
dos caminhos da libertação do teu povo
sabes daqueles que empunharam teus ferros em brasa
contra a injustiça e a opressão
Zumbi Luiza Mahin Luiz Gama
Cosme Isidro João Candido
sabes que em cada coração de negro
há um quilombo pulsando
Abdias Nascimento
3
Termo que remete a uma escrita construída a partir das experiências do
cotidiano, das memórias e vivências da autora.
118
escritora Conceição Evaristo, descontrói o olhar histórico
consolidado por figura de mulheres hiper sexualizadas ou
assexuadas, permeadas por um olhar racializado e caracterizadas,
por exemplo, por personagens como Rita Baiana, do livro O
Cortiço, de Aloízio de Azevedo, ou ainda a Gabriela Cravo e
Canela, de Jorge Amado. Ausência da mulher negra como mãe,
ou melhor, dizendo, somente como a mãe preta, aquela que cuida
dos filhos dos outros, em geral, brancos é rompida para a escrita
de mulheres negras que coloquem temas como a maternidade, o
afeto, a religiosidade, ancestralidade e o racismo, conforme
podemos extrair da poesia de Conceição Evaristo.
Conceição Evaristo
121
Maria Gonçalves, Lívia Natália e Cristiane Sobral no âmbito da
literatura brasileira se destacam.4
Considerações finais
A literatura oriunda destes lugares considerados
historicamente periféricos diante da ordem global trabalha
duplamente para a desconstrução e reconstrução de narrativas,
bem como traz para o cenário literário e também historiográfico
relações sociais, de gênero, raciais, panoramas políticos, relações
internacionais... Essa produção contribui sobremaneira para olhar
as experiências de pessoas negras em suas diferentes nuances
observar e, sobretudo reconhecer sua humanidade, cuja
reivindicação tem sido historicamente reivindicada.
A literatura de matriz africana oferece um olhar sobre a
história e a cultura alinhadas a chamada história vista de baixo,
considerada aquela vivenciada e escrita por grupos historicamente
subalternizados do ponto de vista de seus lugares sociais e raciais.
Pessoas africanas e afrodescendentes passam a narrar suas
4
Obras de Chimamanda Adichie: Hibisco roxo (2003), Meio sol amarelo
(2006), No seu pescoço (2009), Americanah (2013), Sejamos todas
feministas (2014), Para educar crianças feministas – um manifesto
(2017); Yaa Gyasi: O caminho de casa (2017); Conceição Evaristo:
Ponciá Vicência (2003), Becos da Memória (2006), Poemas de
recordação e outros movimentos (2008), Insubmissas lágrimas de
mulheres (2011), Olhos d’água (2014), História de leves enganos e
parecenças (2016), Canção para ninar menino grande (2018); Ana
Maria Gonçalves: Um defeito de cor; Lívia Natália: Água negra (2010),
Correntezas e outros estudos marinhos (2015), Água negra e outras
águas (2016), Dia bonito para chover (2017); Cristiane Sobral: Só por
hoje vou deixar o meu cabelo em paz (2014), Espelhos, miradouros,
dialéticas da percepção (2011), O tapete voador (2016), Não vou mais
lavar os pratos (2010), Terra Negra (2017).
122
histórias, memórias e experiências em forma de arte literária
possibilitando o compartilhamento das vivências próprias. Deste
modo, o uso das obras literárias africanas e afro-brasileira no
ensino permite acessar contextos históricos e relações de poder
pelo olhar de africanos e africanas e pessoas afro-brasileiras e afro-
americanas. Tal perspectiva contribui para uma educação com
viés mais democrático, uma vez que todas e todos precisam
acessar suas histórias, mas também promove a valorização da
autoestima da criança negra que vê assegurado o acesso as suas
estórias e histórias.
Professores e gestores da área de ensino precisam,
portanto, estar sensíveis a uma perspectiva mais igualitária no que
se refere a construção identitária de seus alunos e alunas
atentando para o uso de recursos pedagógicos onde todas e todos
possam se sentir contemplados, bem como reconhecer e dialogar
com outras fontes de conhecimento produzidas por pessoas que
trazem uma narrativa alinhada às demandas das pessoas negras.
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127
FONTES E PESQUISAS DA HISTÓRIA DAS MISSÕES
NA ÁFRICA: ARQUIVOS E ACERVOS
Patricia Teixeira Santos
Lucia Helena Oliveira Silva
Nuno de Pinho Falcão1
1
Patricia Teixeira Santos é professora do Departamento de História da
Universidade Federal de São Paulo, Pesquisadora do CITCEM da
Universidade do Porto e do Laboratório Áfricas no Mundo da
Universidade de Bordeaux III. Coordenadora do projeto Fontes e Pesquisas
para a história das missões na África: arquivos e acervos. Lucia Helena
Oliveira Silva é professora do Departamento de História da Universidade
Estadual Paulista – campus Assis, pesquisadora do CITCEM da
Universidade do Porto e vice-coordenadora do projeto Fontes e Pesquisas
para a história das missões na África: arquivos e acervos. Nuno de Pinho
Falcão é professor do Instituto de Humanidades e Letras da Universidade
da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, campus Malês,
pesquisador do CITCEM da Universidade do Porto e membro da
coordenação do Projeto Fontes e Pesquisas para a história das missões na
África: arquivos e acervos.
O texto que aqui se oferece recupera um texto com o mesmo título
publicado na Revista Africana Studia, nº. 23. Porto: CEAUP; 2016.
128
missionárias recuperam as narrativas sobre a África pré-colonial,
colonial e pós-colonial e os diversos modelos missionários que
atuaram nos territórios. Essa rica vivência compreendeu a
formação de instituições clericais, religiosas e laicas e a forte
influência sobre os grupos.
A presença missionária em África se iniciou ainda com o
processo de expansão português apoiado por um conjunto de
documentos pontifícios como a Bula Romanus (1455) e a Bula
Inter Coetera (1456). As bulas davam ao rei a autoridade religiosa
para criar igrejas e mosteiros e enviar missionários aos territórios
ultramarinos. Assim, as missões religiosas aconteceram
paralelamente ao período da exploração comercial. A partir do
século XVII, o processo de missionação foi intensificado e o
trabalho missionário atuou na conversão dos chefes e reis
africanos que viriam a ser parceiros do governo português, como
foi o caso da rainha Nzinga, batizada em 1622, que adotou o
nome cristão de Ana de Souza. Contudo, a vivência entre grupos
tão distintos como europeus e africanos implicava também uma
forma de conversão por parte dos europeus que se dirigiam à
África, uma vez que para uma melhor aceitação por parte dos
povos locais era preciso se integrar a seus costumes. Esse longo
processo de negociação foi transcrito nas narrativas missionárias e
passou a ser valorizado como fonte de pesquisa pelos estudos da
antropologia a partir da década de 1970. Diversos estudiosos
como Comaroff (1985; 1991), Wyatt Macgaffey (2005, p.189-
207) e John Thornton (2004), entre outros, passaram a
reconhecer as fontes missionárias como importantes espaços para
o estudo da vida em África.
Estudos como os de John Thornton (2004) auxiliaram a
compreender a criação do catolicismo africano e seus diversos
entendimentos entre os diferentes grupos étnicos. Segundo
129
Rosana Gonçalves, “[é] difícil imaginar que ao chegar na África, o
europeu conseguisse converter o africano sem que este não
mantivesse o substrato de suas crenças e práticas ancestrais”
(2006, s/d). Tal afirmação baseia-se principalmente na atuação
dos portugueses na África e nas diferenças entre a religiosidade
europeia e a africana; dos encontros entre esses dois universos,
inicialmente concebidos como distintos, surgiu o catolicismo
africano. Thornton fala também do “espontaneismo” e do
“protagonismo africano”, que dá uma ideia da autonomia no
processo de conversão. Por outro lado, o esforço do clero em se
aproximar das culturas locais levou seus membros a aprender as
línguas locais e a traduzir formas ritualísticas, trabalho que foi
iniciado pelos jesuítas ainda no século XVI.
O empreendimento religioso exigiu o esforço de muitos
elementos, e a pesquisa na documentação permite perceber a
presença de diversas ordens e nacionalidades entre o clero atuante.
Atuaram nesse processo não apenas os clérigos portugueses, mas
também espanhóis e italianos, entre outras nacionalidades. Tal
presença não se dava apenas devido ao propósito de converter
povos localizados em outros lugares do globo, mas tinha alguns
direcionamentos, como a regulamentação pelo regime do
padroado. Outras ordens, como a da Ordem dos Capuchinhos,
eram motivadas também por questões políticas como o
rompimento da União Ibérica em 1640 e excomunhão da Igreja
portuguesa pelo Papa, que levou Filipe IV da Espanha, na
tentativa de manter o exercício do Padroado da Coroa Portuguesa
que perdera, a promover a vinda dos capuchinhos italianos a
partir da Espanha para os territórios de presença portuguesa como
Angola e Congo.
Junto com o percurso da história missionária portuguesa,
desenvolveu-se com bastante ênfase, no final do século XVIII e ao
130
longo do século XIX, uma ação missionária mais ampla e efetiva
das nações europeias que se colocava subordinada à Propaganda
Fide. Para essa ação missionária, haverá uma centralidade das
missões africanas no caminho de renovação da Igreja Católica à
luz das transformações das relações entre Igreja e Estado que
vieram com a Revolução Francesa. Assim, desenvolveram-se
diversos projetos que propunham o enraizamento efetivo da
ocupação cristã do continente, alterando as condições da
civilização material e propondo novas formas de se pensar o clero
nativo.
Um dos projetos mais destacados do missionarismo no
século XIX será o da ‘regeneração da África pela África’ do antigo
Vigário Apostólico da África Central, Dom Antonio Daniele
Comboni (SANTOS, 2002). Para esse prelado, o clero nativo
deveria ser o condutor da Igreja em África, promovendo o
enraizamento do evangelho ao conjugar nas suas ações as
atividades missionárias com a expansão do ensino superior. Além
disso, a hierarquia eclesiástica deveria ser estruturada dentro dos
quadros locais. O sucesso evangelizador seria medido não só pela
adesão das elites africanas, mas sobretudo, pelas transformações
das condições materiais e pelo surgimento de uma camada de
profissionais liberais, políticos e militares que fossem cristãos
originários dos espaços das missões.
Iniciativas em torno do enraizamento da presença cristã
tiveram que lidar com as injunções dos processos coloniais
empreendidos pelas nações europeias ocidentais. Tal dinâmica,
marcada por fortes tensões dentro da própria Igreja, levou a que
projetos que se distanciavam da subordinação ao estado colonial,
ou pudessem ser concorrentes, fossem obliterados, como ocorreu
no caso de Comboni e seu projeto para a evangelização da África
Central.
131
O papado de Leão XIII marcou as convergências dos
projetos missionários com os coloniais, fato que levou à divisão
interna de muitas congregações por conta da exigência de que o
missionário numa colônia deveria ser proveniente da nação
colonizadora que tinha respectiva área de influência na África
(PRUDHOMME, 1994)
Tal fato levou a uma grande reflexão intelectual na Igreja
a respeito do papel da missão no processo civilizador dos povos
não brancos e a um esforço consciente na organização dos
arquivos e do patrimônio missionário das ações evangelizadoras
dos séculos XVII a XIX.
O esforço da monumentalização da experiência foi tão
importante quanto o da ação evangelizadora. Essas instituições
arquivísticas, museus missionários e estudos elaborados na área da
missiologia (criada no início do século XX como um ramo
independente da Teologia na Itália e na França) criou acervos de
grande importância que permaneceram mesmo com o fim do
colonialismo e a expulsão de diversas congregações missionárias
da África, chegando até os dias atuais. Como exemplo para o caso
da África Lusófona podemos citar a criação da Monumenta
Missionaria Africana de António Brásio (1952).
Essas instituições enfrentam hoje o dilema do que fazer
com os grandes acervos que possuem, mas que remetem a uma
fase da história contemporânea da Igreja em que lidar com a
herança da época colonial é algo ainda muito incômodo e
perturbador. Esses acervos fazem parte de um ‘passado que se
quer esquecer’.
Os acervos dessas instituições, tanto ligados à Propaganda
Fide quanto ao Padroado português, são formados por uma
quantidade de documentos relevantes do ponto de vista histórico,
religioso e cultural, indo desde os presentes que os missionários
132
recebiam aos diários da missão, correspondência aos bispos e
Papas, relatórios paroquiais, livros de batismo, inventários e
cartografias das missões.
A proposta do projeto “Fontes e pesquisas da História das
Missões na África: Arquivos e acervos”, formulada a partir da
colaboração entre o CITCEM da Universidade do Porto, a
Universidade Federal de São Paulo, a Universidade Estadual
Paulista (campus Assis), a Universidade Federal do Vale de São
Francisco, a Universidade Estadual de Pernambuco (campus
Petrolina), a Universidade Federal do Pará (campus Cametá) e a
Universidade Internacional da Integração da Lusofonia Afro-
Brasileira (campus Malês), é de colaborar para suscitar pesquisas
sobre o cotidiano das missões e o acervo das instituições
arquivísticas ligadas às ordens e congregações missionárias
portuguesas, cuja documentação é muito pouco explorada, e
associar a essa pesquisa os arquivos das dioceses em África ligadas
a esses institutos.
Desse quadro mais amplo conseguiu-se mapear e fazer
acordos para pesquisa com as seguintes instituições e arquivos: em
Portugal com os arquivos dos Capuchinhos e dos Espiritanos,
Missionários da Consolata e os Missionários Combonianos. Em
Moçambique com o Arquivo da Missão e Centro Catequético do
Anchilo e da Revista Missionária Vida Nova, localizados na
Arquidiocese de Nampula. Importa destacar que esses arquivos,
instituições e a documentação que está na missão de Nampula
possuem relações entre si em função da história missionária
colonial, e em muitos aspectos a documentação aprofunda temas
importantíssimos da história da experiência do catolicismo na
África.
A partir dessa pesquisa documental espera-se o
desenvolvimento de projetos de conclusão de curso de graduação,
133
treinamentos técnicos, doutoramentos e pós-doutoramentos nas
áreas de História e Ciências Sociais na perspectiva da cooperação
entre Brasil, Portugal e países africanos. Nesse processo se
preconizará a organização dos acervos, a publicação de guias de
fontes e a estruturação de um portal online que favoreça a criação
de uma rede de arquivos religiosos, privados e públicos. Também
visa-se contribuir para a reorganização dos arquivos e a criação do
acervo de arquivos orais para pesquisas em torno da temática das
missões na África e do cotidiano das mesmas nos contextos
colonial e pós-colonial.
Neste projeto se fará a análise dos processos de
constituição de identidades religiosas e de reorganização de
hierarquias de terras e populações, a partir do contato e da
inserção das diversas sociedades africanas nas experiências da
globalidade das ações missionárias no continente, do século XVII
a XXI. Essa longa temporalidade permite perceber que os sentidos
da missão e sua eficácia são uma experiência histórica que se
construiu no tempo e que indicava tanto a necessidade da
conquista da civilização material (a implantação da cristandade)
quanto a constituição de hierarquias sociais e laços políticos,
celebradas nos processos de conversão e batismo.
Do século XVIII a XIX a materialidade da experiência da
inserção de espaços e sociedades nas globalidades missionárias
passava necessariamente pela ênfase nas alianças políticas com as
chefaturas e os soberanos estrangeiros. A documentação
produzida sobre essa experiência é vasta e carregada de
possibilidades de se perceber como os mediadores da experiência
religiosa traduziram esses encontros, negociações, conflitos e
acomodações entre os agentes religiosos, as chefaturas africanas e
dinâmicas econômicas e sociais como, por exemplo, os tráficos de
escravos para o Atlântico e para as áreas otomanas.
134
A partir do final do século XIX e durante o século XX, a
experiência das missões se realizou em conjunto com o processo
de subordinação aos impérios coloniais. A dimensão religiosa da
vivência comunitária da fé ocorria dentro da espacialidade dos
Estados Coloniais, informando em muitos casos os sistemas
hierárquicos, os registros de populações, os papéis econômicos,
sobretudo no que tange ao recrutamento para o trabalho forçado
nas áreas das missões e também fora delas. A documentação
produzida nesse contexto é muito vasta e compreende um amplo
repertório que vai das coleções etnográficas, passando pelos
Diários da Missão, relatos pessoais, cartas para os leitores e
filantropos, periódicos missionários e, a partir da segunda metade
do século XX, o uso do rádio e da televisão.
A heterogeneidade de fontes que expressaram a presença e
a materialidade das missões correspondia igualmente à diversidade
de experiências e produção de identidades religiosas e sociais que
contribuíram poderosamente para o surgimento das Igrejas
autóctones e das novas formas de vivenciar os antigos cultos de
ancestrais e ressaltar a dimensão política da fé. As experiências
missionárias e proselitistas, devido à riqueza de processos
históricos e identitários que produziram e atravessaram a
existência dos estados coloniais e também pós-coloniais,
constituem um caminho de pesquisa de grande importância e
produtor de abordagens bastante originais que justificam a criação
do projeto e da rede de universidades e professores colaboradores
que a ela estão ligados.
O estudo de novos objetos na prática historiográfica leva
os historiadores a considerar, em seu trabalho, a parceria com
outras áreas de pesquisa, como a Linguística, a Antropologia e a
Sociologia, e a incorporar novas metodologias e categorias de
análise. Essa necessidade nasce das dificuldades que historiadores
135
enfrentam quando se deparam com fontes que requerem novas
abordagens. Assim, a interdisciplinaridade promove o diálogo
entre a História e outras disciplinas na busca de novos modelos e
interpretações que estudam o homem e a sociedade e suas
transformações, contribuindo para a teoria da História.
O olhar sobre os acervos dos arquivos missionários nos
convida para uma observação mais aprofundada dos processos de
patrimonialização da cultura material produzida pelas missões,
que também se encontram registrados nos arquivos bem como nas
áreas que os circundam e envolvem.
Temos compreensão de que a ação missionária produziu
um espectro bastante amplo de artefatos, textos, edificações e
diferentes tipos de fontes escritas e audiovisuais que nos levam a
aprofundar a perspectiva da análise do processo da mediação
também como uma ação de produção de patrimônios materiais
do cristianismo, que precisam ser abordados de forma
diferenciada e que merecem projetos específicos de trato
documental, análise e contribuição para o estudo da ação dos
missionários na África e a constituição das cristandades locais do
final do século XVIII ao XX.
No processo de proposição de uma análise das formas de
patrimonialização da experiência missionária, é muito importante
destacar as ações da produção da memória do missionário, da
instituição missionária e dos povos abarcados pela ação
evangelizadora, promovida pelos diários individuais e os
conhecidos ‘diários da missão’, que são o registro cotidiano das
intercorrências e das atividades que ocorrem nas paróquias e
capelas que pertencem a um distrito missionário.
Os diários individuais por sua vez são uma orientação para
cada missionário, para produzir um testemunho sobre si e, através
da sua individualidade, destacar a universalidade da missão. Por
136
isso, é um relato realizado num tom intimista onde o leitor se
sente em muitos momentos o grande e único confidente, fazendo
parte, com isso da ‘grande comunidade dos confidentes’ daquele
religioso, da congregação religiosa à qual ele pertence e da obra
missionária.
Ao iniciarmos as nossas conversas com os diretores dos
arquivos dos Capuchinhos, dos Espiritanos e dos Missionários da
Consolata em Portugal foi-nos proposta a organização de um
arquivo oral com entrevistas dos missionários mais velhos que
atuaram em África durante o período colonial e das guerras civis e
que estão nas casas dessas congregações em Lisboa e Fátima. A
partir dessas propostas percebemos que os estudos das trajetórias
de vida, e dos campos de possibilidades com que os agentes
históricos se deparam, tornaram-se novamente uma importante
temática para os historiadores do tempo presente, convidados
agora mais do que nunca a pesquisar espaços e experiências
históricas do mundo contemporâneo. No que concerne aos
estudos africanos, os depoimentos orais, correspondências
privadas e diários tornaram-se corpus documentais ímpares para o
estudo dos processos de construção das nações africanas,
evidenciando a riqueza da complexidade das questões religiosas,
culturais e políticas.2
Por outro lado, escolas, hospitais e a própria literatura
missionária se tornam também propriedades reivindicadas pelos
povos que passaram pelo processo de missionação. Tal fato revela
2
Sobre as visões de trajetória de vida e de geração ver : SIRINELLI, Jean
François. A geração. In: FERREIRA, Marieta de Moraes & AMADO,
Janaína (org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1996, p.131-137. A respeito da categoria ‘campo de
possibilidades’ ver VELHO, Gilberto. Projeto e Metamorfose: antropologia
das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
137
o que Iracema Dulley (2010) já apontava para as missões dos
padres Espiritanos no planalto angolano no início do século XX,
sobre as interações dos diversos agentes envolvidos na missão e
seus interesses:
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142
INTERAÇÕES SOCIAIS E CULTURAIS ENTRE EGITO
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Fernanda Chamarelli
Gustavo de Andrade Durão1
1
Professora da Educação Básica, graduada em História pela Universidade
Estadual do Rio de Janeiro e mestranda em História Social da Cultura pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e-mail:
fchamarelli29@gmail.com.
Doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Pós-doutorado pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro. Atualmente é professor da Universidade
Estadual do Piauí – UESPI (Campus São Raimundo Nonato). E-mail:
gustavo.durao@srn.uespi.br.
143
conta as dificuldades do tempo presente. Por isso será necessário
um breve recorte da historiografia sobre o Reinos do Cush
(Napata e Meroé) como polo fundamental da cultura africana que
durante muito tempo influenciou e foi influenciada por diversas
gradações culturais e políticas. Nesse sentido, ainda poderíamos
exaltar duas importantes ramificações nesse estudo: a perspectiva
de que esses Reinos foram responsáveis por importantes interações
sociais e culturais com os egípcios (elucidando um pouco da
questão da negritude dos egípcios) e ainda o papel da mulher nas
sociedades antigas, ainda pouco elaborado em torno das
discussões sobre a História da África. Buscaremos assim,
demonstrar a existência dessa historiografia mapeando alguns
possíveis caminhos para os interessados nessa vasta temática.
2
A obra a qual fazemos referência é História Geral da África. Volume. 1:
Metodologia e pré-história da África. São Paulo – Paris: Ática – UNESCO,
1983.
144
partir do interior do continente, sobre uma história até então
pouco, ou não conhecida pelos africanos.
Como norteadores para esta reescrita, que resultará em uma
historiografia pioneira da África, Ki-Zerbo (1983, p.34) propõe
que seja feita uma história do conjunto dos povos africanos, pois
as atuais fronteiras existentes no continente não representam as
estabelecidas por esses povos, mas sim as impostas pelos anos de
colonização. Para tanto, a pesquisa a ser realizada para essa escrita
deve ser interdisciplinar, contanto com o apoio de áreas como a
antropologia, sociologia e linguística, e valorizando as sociedades
que ali se desenvolveram, suas principais instituições e estruturas.
A História da África encontra alguns desafios no campo da
análise historiográfica, pois não há uma grande quantidade de
documentos antigos escritos pelas próprias sociedades, sendo a
grande parte da produção contando as tradições e a história
através de relatos orais e a partir do exame e interpretação da
cultura material produzida. As análises são feitas através de
vestígios arqueológicos e através de pesquisas da egiptologia
tornando possível se chegar ao elemento negro-africano na
antiguidade.
Uma das maiores referências em pesquisa sobre história da
África, o africanista Cheik Anta Diop, escrevendo na década de
1950, período de intenso debate sobre o processo de
independências no continente africano, destaca-se como um dos
mais importantes pesquisadores sobre história da África.
Diop entende que é necessário haver uma valorização da
historicidade das sociedades africanas e dentro também da
concepção de estabelecer uma nova história para o continente
África, desconectada do etnocentrismo até então predominante,
trabalha com a concepção de uma unidade cultural africana,
considerando as diferenças que foram impostas ao longo do
145
tempo pelas dominações árabe e europeia. O autor busca a partir
de suas pesquisas, demonstrar que o continente existe como berço
das sociedades mais antigas, hipótese que foi bastante contestada
no século em que ele desenvolve suas análises.3
É importante refletirmos sobre a questão de se conhecer a
África a partir de um olhar interno, desconstruindo a falta de
conhecimento sobre a história desse continente e do
desenvolvimento de suas sociedades antes da chegada dos
europeus na região. Tendo em vista alguns desafios que se
colocam nesta análise, precisamos ter atenção para não buscarmos
os grandes modelos europeus (etnocêntricos) como medida ideal
para nossas reflexões. Nesse sentido, não queremos descartar as
análises comparativas e analogias, mas é preciso ter prudência ao
realizar-se essa operação.
Repensar a história ou “as histórias” da África, perpassa,
portanto, não apenas pela construção e pela afirmação de uma
identidade, mas é também um ato de mobilização política. A luta
por ressignificar os conhecimentos e olhares sobre esta história é
acompanhada por um reconhecimento das inúmeras
contribuições históricas e culturais do continente, que caminha
para ser visto fora das noções do diferente, fora de um padrão
estabelecido durante séculos de dominação das sociedades
europeias. As histórias e valores culturais africanos precisam ser
desvendados para serem não tolerados, mas revistos dentro de
uma perspectiva não hegemônica de pensamento.
3
Cheik Anta Diop é autor de uma série de obras que se configuram como
de grande relevância para o estudo da África, como por exemplo,
Civilização ou Barbárie (1988), A África negra pré-colonial (1987), A
origem africana da civilização: mito ou realidade (1974), entre outros.
146
Na Antiguidade, o continente africano era conhecido
como Líbia, nome associado ao termo libis, que significava vento
austral. De acordo com Cristiano Bispo (2006, p.26), o termo
Africorum terra, terra dos Afri, singular Afer, foi utilizado pelos
romanos para nomear a parte setentrional do continente. A
origem deste termo ainda é desconhecida, mas existem outras
definições possíveis para o termo África, sendo elas uma
proveniente da palavra fenícia Afar, que significava pó; ser ligado
ao nome da tribo bérbere Afri, que se tratava de um grupo
nômade que vivia na região de Cartago; derivação da palavra
aprica (solarengo).
A admiração e a busca por informações sobre a região
conhecida como Líbia sempre pode ser percebida entre os gregos,
sendo a obra produzida por Heródoto, História4, fonte de
importantes informações e relatos de características da região,
sendo reconhecida como um documento de relevante valor para
os estudos da África na antiguidade. Nesta obra, dois grupos são
definidos como autóctones, os líbios e os etíopes, que segundo ele
ocupavam a maior parte da África5. Os líbios estavam localizados
na parte norte do continente, do oeste do Egito ao atual Estreito
de Gibraltar.
Os etíopes, termo que derivava do grego, significando
homens do rosto queimado ou tisnado, possuíam uma localização
de difícil definição, porém, no século V AEC, a região ocupada
por eles correspondia ao sul da Baixa Núbia, território que
4
A obra História, do grego Heródoto, é um documento clássico e de
informações valorosas para os estudos africanistas. Nesta obra são elencados
comentários sobre clima, vegetação, relevo, hidrografia e aspectos humanos
que apresentam um enorme valor para os estudos da África Antiga.
5
HERÓDOTO, História. Livro IV. Tradução de Mário da Gama Kury.
Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1998.
147
engloba da Quarta Catarata do Nilo aos rios Nilo Branco e Azul.
Na atualidade a região corresponde ao território do Sudão, que
está localizado ao sul do Egito. (BISPO, 2016, p.30)
Para o estudo e análise das Sociedades Africanas Antigas,
precisamos ter em mente a dificuldade de definirmos
geograficamente e com precisão algumas das características das
sociedades que vamos estudar. Como por exemplo, defende
Leclant:
6
Era Comum é o período que mede o tempo a partir do ano primeiro no
calendário gregoriano. É um termo alternativo para Anno Domini,
também traduzido como a Era Cristã.
151
Em alguns locais nós podemos ver o Cush inserido na
categoria de Reinos Núbios, levando-se em consideração sua
localização na Núbia:
152
Figura 1- Mapa com localização moderna do Egito e do
Sudão, região da Núbia antiga. 7
7
Fonte: HARKLESS, Necia Desiree. Nubian pharaohs and meroitic
kings – the kingdom of Kush . Bloomington: Author House, 2006, p. 2.
153
8
Figura 2: Mapa da Núbia Antiga
8
SHEHATA ADAM. A importância da Núbia: um elo entre a África
central e o Mediterrâneo. In: MOKHTAR, G. (coord.). História geral da
África, II: África Antiga. 2.ed. rev. Brasília: UNESCO, 2010, p. 217.
154
e também o de “filho do rei”. Esse sistema de vice-reinado visava
garantir a dominação egípcia a partir da nomeação dos “filhos do
rei de Kush”. Sua administração incluía a região de Kush, na alta
Núbia, a região do Wawat, na baixa Núbia, e a região de Assuã
até El Kab, no Egito.
No fim do Reino Novo, os núbios já demonstravam ter
uma participação mais relevante nas questões internas
relacionadas a administração egípcia, devido a prosperidade por
eles alcançada. Após a saída dos egípcios da Núbia, de acordo com
Alberto da Costa e Silva (2011) os sacerdotes da região de Jerbel
Barcal buscaram apoio e aliança com uma linhagem de régulos
locais, que assim assumiam a função de soberanos, e, em troca
também se comprometiam a serem defensores da fé.
Com o passar do tempo a aristocracia núbia se juntava aos
costumes dos egípcios, isso provocou a autonomia do território e
no século XI a.C. o Reino do Cush se torna independente e adota
Napata como sua capital. Desta forma, o que conhecemos como
Reino de Cush é também denominado de Reino de Napata e
Méroe, por terem sido estas as capitais do reino após a dominação
egípcia. A tabela abaixo ilustra um pouco dessas sucessões.
155
Descrição Período (AEC)
Grupo A 3000- 2500
Grupo C 2500- 2000
Reino de Kerma 2500- 1590
Dominação egípcia no Reino 1590- 1100
Novo
Período Napatano (Reino de 900- 300
Napata)
Período Meroítico (Reino de 300 AEC- 350 EC
Méroe)
Figura 3 - Cronologia Núbia 9
9
HARKLESS, Necia Desiree. Nubian pharaohs and meroitic kings – the
kingdom of Kush . Bloomington: Author House, 2006, pp. 82-91.
156
sucessão real e facilitou que valores que eram tradicionais na
sociedade cushita fossem praticados de acordo com os conceitos
reais já existentes no Egito. Kashta foi casado com sua irmã
Pebtatma, que assumiu os papéis de tocadora do sistro para
divindade Amon Rá10, irmã do soberano e sua filha. Ele foi assim
reconhecido como governante pelos sacerdotes de Amon assim
que chegou em Tebas.
A submissão do Egito ao poder dos governantes kushita
foi completada por Piankhy, irmão de Kashta. Segundo Harkless
(2006, p.127), Piankhy aparece como aquele que foi apontado
por Amon para ser o senhor do trono das duas terras, de acordo
com a Estela de arenito de Piye (747 AEC). Foi sob o seu governo
que o domínio núbio sob o Egito parece ter assumido suas
maiores proporções e conseguido adquirir mais prestígio.
Shabaka, irmão de Piankhy, reforçou a dominação sobre todo o
vale do Nilo, por volta de 713 AEC e foi responsável pela
tentativa de manter boas relações com os governantes do Oriente
Próximo, particularmente com os assírios, que faziam forte
pressão sob territórios que estavam sob controle egípcio.
O filho de Piankhy, Taharqa, assume o governo com a
função de impedir o avanço dos assírios que constantemente
ameaçavam os domínios egípcios e cushitas. Esse governante se
empenhou em reestabelecer a ordem e a justiça nos territórios que
administrou, edificando monumentos para glorificar Amon e a
estabilização de seus domínios.
10
O sistrum, ou sistro, é um instrumento musical que era utilizado no Egito
em cerimônias de culto a deusa Hathor, sendo também utilizados para
outras divindades, como Isis, Amon e Bastet. Seu som se assemelhava ao de
um chocalho, sendo confeccionado principalmente em bronze. Se
acreditava que seu som promovia o apaziguamento, alivia as mulheres no
parto e espantava os espíritos nocivos.
157
Na XXV dinastia, onde os soberanos núbios se
legitimaram no poder como filhos de Amon, o culto a essa
divindade conhece grande força e expansão. Acreditava-se que a
verdadeira morada do deus era a montanha sagrada de Djebel
Barkal, localizada na região de Napata. Nesta dinastia, há a
instituição das divinas adoradoras11 e esposas do deus no clero de
Amon, funções ocupadas por mulheres que compunham a família
dos governantes. A prática remonta a XVIII dinastia, onde a
função era exercida pela esposa do soberano e era o título mais
elevado que esta poderia obter, sendo esta reconhecida como a
representante da divindade Mut12 na Terra.
O papel assumido pelas mulheres integrantes da família
do soberano, enquanto esposas do deus Amon, na XXV dinastia
núbia no Egito, revela o status e o poder que a elas era conferido a
partir desta função. De acordo Carolyn Graves- Brown (2010, p.
95), essas mulheres, que também assumiram o título de divinas
adoradoras, praticamente governaram o Alto Egito, sendo
detentoras de um grande poder político que se relacionava com
11
Esse título de divina adoradora é associado ao de esposa do deus Amon no
Terceiro Período Intermediário, na XVIII dinastia. É utilizado apenas em
Tebas e é associado a uma referência de que a mãe de Amon teria sido
engravidada pelo próprio deus.
12
Mut, divindade inicialmente reconhecida como Amonet, é apontada em
alguns relatos como mãe de Amon, concepção que pode estar relacionada
ao fato dela ser uma divindade mais antiga Amon, o tendo recebido em
Hermópolis quando ele chocou o próprio ovo de onde saiu. Amonet era
representada com forma humana e antecedeu a Mut como esposa de Amon
em Tebas. Esta divindade adquiriu grande relevância no período do Reino
Novo, no Egito, levando em sua cabeça a coroa com os símbolos do Alto e
Baixo Egito, mostrando a grandeza de seu poder.
158
sua importância nos rituais religiosos, e que era apoiado pela
sociedade egípcia.
Em Napata, o culto a Amon era de grande influência
política e espiritual. Teve sua origem no período do Reino Novo,
e manteve sua importância por um período superior a mil anos,
constituindo-se em um considerável elemento para a
independência do Reino de Cush. O santuário de Amon em
Napata estava localizado aos pés da montanha sagrada de Jebel
Barkal, que também era conhecida como Montanha de Amon.
De acordo com Harkless (2006, p.109), a adoração a
Amon foi estabelecida primeiramente na Núbia antes de alcançar
o Egito. Esta divindade era representada na Núbia como um deus
com cabeça de carneiro, sendo encontrados em Kerma estátuas de
esfinges com cabeças de carneiros, como também carneiros
decorados foram achados em locais onde eram realizados enterros.
Os governantes da XXV dinastia podem ser identificados
por sua devoção a Amon. Sua legitimidade no poder era garantida
pelos sacerdotes desta divindade, que formavam a administração
burocrática de seu governo. Esse apoio aos soberanos de Napata
garantiu para as propriedades do Templo de Amon grandes
benefícios. Esses sacerdotes ainda tinham o poder de intervir na
escolha dos sucessores no governo, e até mesmo determinar o fim
de um governo através da morte de seu soberano.
Taharqa foi sucedido por seu sobrinho, Tanutamon. Ele
enfrentou constantes ameaças de ataques assírios, e buscou manter
um controle efetivo sobre os domínios ao Norte, o que não foi
possível. O soberano não conseguiu conter este avanço, que
acabou por se estender até Tebas, que foi saqueada em 666 AED.
Esse acontecimento marca o fim dos governos dos soberanos
núbios da XXV dinastia como é possível perceber abaixo.
159
SOBERANO PERÍODO (AEC)
DATAS APROXIMADAS
KASHTA 770 - 750
PIANKHY 750 - 712
SHABAKA 712 - 698
SHEBITEKU 698 - 690
TAHARQO 690 - 664
TANUTAMON 664 - 657
Figura 4:
Quadro de Soberanos da XXV dinastia núbia no Egito 13
O Cush e o Meroé
A proximidade de Cush dos domínios do Faraó trouxe o
receio de que aquela região fosse ocupada e poderia tornar-se um
ponto estratégico dos povos inimigos. Aliado a isso outra
dificuldade encontrada por Ramsés II era de compreender a
13
HARKLESS, Necia Desiree. Nubian pharaohs and meroitic kings –
the kingdom of Kush . Bloomington: Author House, 2006
160
escrita dos cushes, o que levou a uma assimilação dessa região,
deixando-a mais e mais próxima do Egito. Por consequência a
região do Meroé também foi cobiçada, pois ela seria capaz de criar
um reforço à barreira aos povos que viam do sul.
161
por letra, mas, como a língua permanece desconhecida, o texto é
incompreensível” (2001, p.86).
Até o século VII a.C. os Cush tiveram relativa tranquilidade
nas relações com o Egito e, com a conquista dos assírios, a 25ª
dinastia precisou se retirar dessa região. Sua capital, Kerma, era
localizada perto da terceira catarata do Nilo. Os cushitas tiveram
grande absorção das tradições egípcias, sobretudo, no que diz
respeito à proximidade do templo de Amon-Rá. Ainda no século
VII a.C as províncias ao norte se tornaram mais importantes do
que o centro do Egito e a cidade de Meroé ganhou maior
representatividade tornando-se o centro das decisões do governo
(FAGE, 2010, p.46-7).
O período meroítico foi provavelmente onde houve grande
crescimento da população, se destacando como cidade de maior
concentração urbana da Núbia, de desenvolvimento da linguagem
e de estabelecimento de importantes relações com outros povos,
como gregos, romanos e egípcios do período ptolomaico.
Após a conquista por parte dos egípcios o reino do Cush
passou a abrigar fortalezas que tinham como função repelir as
etnias invasoras. Logo depois a cidade de Meroé surgiria como o
resultado de uma boa convivência entre duas culturas diferentes
(Núbios e Egípcios) e um dos primeiros reinos assentados nos
princípios da realeza sagrada (M’BOKOLO, 2009, p.83).
No Meroé ocorria uma identificação da integridade física
do rei com a integridade do reino de modo análogo aos
mecanismos religiosos-políticos dos soberanos egípcios. A
organização religiosa ocorria por meio da execução ritual, a qual
poderia gerar o suicídio do rei se fosse considerado ele o
responsável pelas catástrofes naturais. O reino gozava de posição
privilegiada e obtinha recursos próprios que fizeram desse reino
162
um local de destaque na relação internacional, em grande parte,
devido a sua mobilidade junto às sociedades antigas.
Como afirma o historiador da História Geral da África
acerca da origem dos Egípcios antigos:
163
Nesse sentido, vê-se Meroé como um entreposto
comercial importante para o Egito e outras sociedades ao seu
redor. A região era mais propícia a criação de animais e a
agricultura, graças a enormes bacias de irrigação ali existentes,
bem como, segundo Silva (2011) se localizava em uma posição
estratégica para o comércio de mercadorias de luxo, como o
marfim, as penas de avestruz, as peles de leopardo, as gomas e as
resinas. Produzia diversos produtos como: trigo, centeio, uvas,
lentilhas, abóboras e o algodão tinha grande penetração no
artesanato local.
Fato que não devemos deixar de considerar, como
apontado por Elikia M´Bokolo (2009), é que esta transferência
também se relaciona com o desejo dos chefes locais em conquistar
sua hegemonia em relação a civilização egípcia. Observamos que a
cultura egípcia era bastante presente quando a capital se localizava
em Napata, mas com a sua transferência, apesar de ainda se
manter importante em muitos aspectos, já se observa um maior
afastamento desta, tanto em relação a vestimentas, títulos
utilizados por soberanos e por aqueles que compunham sua
família, formas de representações visuais e também na
participação das mulheres, sendo mães, esposas e irmãs dos
governantes, juntamente a eles.
164
assumindo a posição de governante, mas a partir do seu lugar
social enquanto mãe.14
As candaces são reconhecidas como figuras de destaque
nos estudos africanos da antiguidade, representando a força da
mulher como indivíduo ativo. Assumiram importantes papeis
sociais e políticos, atuando como conselheiras de seus maridos,
irmãos ou filhos, e chegando a assumir o governo de forma
autônoma e independente entre os séculos II AEC e IV EC.
No Egito e na Núbia, o conceito de divindade que
envolvia a legitimação do soberano, reconhecido como filho do
deus sol, era fundamental, assumindo a titulação de filho de Rá.
Mas para que essa legitimidade de sua função enquanto
governante se completasse, era necessário a presença e a
participação de sua mãe, no momento de sua coroação e durante
seu governo. Esta mãe recebia o título de Candace, que é
usualmente interpretado como tendo o significado de “mãe do
soberano” ou “mãe do governante”, também tendo sido associado
ao termo meroítico k-tke, interpretado como “mão (presença)
feminina em vida”, demonstrando uma ligação com o título
utilizado pelas esposas de Amon em Tebas, “mão do deus
Amon”15. Apesar de em muitas ocasiões o termo candace ser
atribuído apenas às soberanas que governaram em Cush, é
possível observarmos que este título era conferido anteriormente
às mães dos governantes.
14
Sobre o papel assumido pelas mães junto aos soberanos núbios, ver:
LOHWASSER, Angelika. Queenship in Kush: Status, Role and Ideology
of Royal Women. Journal of the American Research Center in Egypt 38,
2001, p. 61-76.
15
Título meroítico drt ntr [n 'Imn]
165
Para Lohwasser (2001), as mulheres em Cush eram
imbuídas da essência da “realeza” a partir da maternidade, e seu
papel foi por muitas vezes comparado com o das deusas, sendo as
três principais ligadas à maternidade, Isis, Mut e Bastet. Os
estudos realizados por Harkless (2006, p. 99) também apontam
que o papel social de destaque ocupado pela mulher no reino
Kush pode ser explicado pela crença de que estas detinham
poderes divinos que advinham da maternidade, sendo esta vista
como único laço de parentesco reconhecido, gerando o
desenvolvimento de uma sociedade matrilinear.
O termo candace é uma apropriação e tradução Greco-
romana de uma palavra pertencente ao vocabulário kushita. Ele
deriva da palavra de origem meroíta KTKE ou KDKE, que a
partir de sua latinização, após o contato romano com esta
sociedade, passa a significar “rainha-mãe”. Esse termo alcançou
maior importância e reconhecimento pela identificação destas
mulheres como soberanas nos escritos e relatos feitos por
narradores gregos e romanos. No entanto, o título de origem
kushita não foi utilizado apenas para as soberanas que exerceram o
poder central, mas para identificar e nomear as esposas e mães dos
governantes que possuíam um papel de extrema relevância ao seu
lado no governo, bem como na legitimação de sua coroação.
Comparadas às suas homólogas no Egito, as mulheres das
famílias dos soberanos em Kush, no período do Reino de Napata,
assumiram funções sociais e políticas mais relevantes. Elas são
retratadas amamentando as divindades, derramando libações para
as mesmas e acompanhando seus maridos nas situações em que
eles celebravam esses rituais, que poderiam também ser
comandados por estas mulheres.
O papel das candaces pode ser destacado a partir de sua
essencial posição na eleição e coroação de seu filho enquanto
166
governante e também na adoção da esposa de seu filho igualmente
como sua filha, o que nos fornece dados para refletirmos sobre a
importância dos laços maternais presentes nesta sociedade. O
soberano era escolhido entre uma linhagem de “irmãos reais”,
participando desta escolha altos funcionários da corte, sacerdotes,
chefes de clãs, chefes militares, e também a mãe, que assumia
papel importante também na coroação do novo governante.
Esse ato de adoção da esposa do filho nos leva a refletir
sobre a concepção dos laços de maternidade que ligavam os
diferentes membros de uma unidade de parentesco. Ao adotar a
nora, esta passa a constituir a família do governante e se liga a ele
por uma maternidade em comum, possibilitando-nos pensar que
o entendimento do ser mãe na sociedade kushita não se relaciona
apenas com uma questão biológica, mas com o pertencimento a
um grupo de indivíduos que se conectam a partir de laços
definidos por essa figura materna.
Ali Hakem (2010, p. 304), utilizando a análise
iconográfica de templos, endossa a atuação das Candaces,
apontando que a certa altura as mulheres devem ter superado em
importância seus filhos ou maridos, e em um dado momento,
assumido a totalidade do poder. A partir da pesquisa do autor,
também é possível observar, como debatido pelas autoras acima
citadas, importantes posições e cargos ocupados pelas mulheres na
sociedade kushita desde o período da XXV dinastia egípcia,
quando a função de grande sacerdotisa do deus Amon em Tebas
era exercida pela filha do rei, posição este que lhe conferia
importante influência política e econômica. As mães e esposas do
rei assumiam papeis de elevado status social e político
anteriormente ao período em que se proclamaram soberanas.
Para comprovar a importância do poder exercido pela
rainha-mãe no reino de Cush, no período meroítico, Necia
167
Harkless (2006), aponta o registro do nome real de
Shanakdakhete como soberana, sendo o primeiro
reconhecidamente preservado nos hieróglifos meroíticos. Entre os
registros e inscrições reais que comprovam a atuação das
Candaces, podemos citar, por exemplo, a Grande Estela de
Amanirenas e seu filho, conhecida como Estela de Hamadab, a
descoberta do tesouro real da rainha Amanishakheto, sucessora de
Amanirenas e as representações reais presentes na titularidade
usada pela rainha Nawidemak, bem como o uso de seus trajes
associados a governantes do sexo masculino.
Debatendo a questão desta importância da filiação
materna, Lohwasser (2001) aponta que a mãe possuía um papel
decisivo na coroação do soberano, pois foi ela quem legitimou a
candidatura do rei, seu filho, por isso o futuro governante era
assistido por sua mãe e esposa neste momento. Utilizando como
exemplo a estela do rei Aspelta, cuja imagem podemos observar
abaixo, aponta que nela existe uma versão completa do discurso
que era proferido pela soberana mãe, pedindo a Amon para que
concedesse o governo ao novo soberano e para que fosse possível
seu estabelecimento como governante.
É possível identificarmos a imagem de Amon, apresentado
como entronado e com cabeça de carneiro, acompanhado por
Mut, a figura de Aspelta abaixado e olhando para direita,
mostrando que havia sido pessoalmente coroado pela divindade e
protegido por ela, enquanto sua mãe olha para a esquerda e
aparece com o sistro em cada uma de suas mãos. A presença de
dois sistros nos faz pensar na intenção de representar o papel
central que era por ela ali ocupado, atuando como uma
sacerdotisa e também intercedendo junto a Amon por seu filho e
para garantia de seu poder.
168
Figura 5: Estela de Aspelta 16
16
Disponível em:
https://www.crooktree.com/v/photos/33658bbf/954388819/egypt-
egyptian-aswan-nubian-nubia. Acesso em: 28 de fev. 2019. Localização
atual da estela: Museu de Assuã, no Egito.
169
É importante observar que segundo o autor o título
candace foi atribuído às “rainhas-mães”17, a partir de uma
latinização da palavra meroítica Ktke ou Kdke, porém existia um
outro título, qore ou qere, com o significado de chefe, que não
havia sido utilizado até a surgimento da escrita meroítica. Apenas
quatro governantes são conhecidas por o terem utilizado:
Amanirenas, Amanishaketo, Nawidemak e Maleqereabar, todas
por definição também candaces. Elas também receberam as
titulações faraônicas de “Filho de Rá” e “Grande Senhor das duas
Terras”. Passaram a assumir papeis que eram restritos aos
soberanos, como conquistar prisioneiros, ferir inimigos e oferecer
presentes as divindades.
O declínio da civilização egípcia ocorreu
concomitantemente com o de Meroé, que em tese deveria ser o
último bastião dos faraós. Pouco antes da Era Cristã os egípcios
perderam todo o seu poder e sua cultura foi praticamente toda
depredada.
A riqueza do reino de Meroé era muito baseada no
comércio exterior e isso causou grandes problemas,
impossibilitando seu crescimento econômico. Desde o século III
d.C. Meroé foi decaindo em parte por conta dos povos nômades e
também devido ao grande desenvolvimento do comércio no
mediterrâneo, movimento cujo reino não conseguiria acompanhar
(M’BOKOLO, 2009, p.86).
17
Utilizamos rainha-mãe entre aspas por se tratar de um termo que existe a
partir da latinização de uma palavra meroítica, que acreditamos não
corresponder em sentido a rainha, pois este é um vocábulo que possui um
significado dentro do pensamento ocidental, que não corresponde a forma
de organização política e nem mesmo cultural presente em Cush no espaço
de tempo considerado.
170
Considerações finais
Pensamos em apresentar algumas das questões mais
relevantes da África Antiga demonstrando a existência de uma
história rica e plural das sociedades africanas antes da colonização
a fim de evidenciar relações culturais, sociais e históricas ali
presentes. Primeiramente buscando partir de questões que fossem
pertinentes para estas próprias sociedades e que por elas foram
desencadeadas, compreendendo que quando nos propomos a
pesquisar e estudar sobre as histórias das Áfricas, produzir um
conhecimento que não se mostre profundamente atrelado a
concepções e análises que são características do pensamento
ocidental é algo extremamente relevante. Desse modo, os
aspectos e as relações próprias às histórias e culturas deste
continente os quais muitas vezes nos distanciamos.
Além disto, repensar e conhecer as histórias e culturas das
Áfricas se mostra como um ato de mobilização política e de
construção e afirmação de identidades. Nessa luta por ressignificar
os conhecimentos e olhares sobre estas histórias soma-se um
reconhecimento das inúmeras contribuições históricas e culturais
do continente, cujo caminho analítico precisa ser visto fora das
noções de “diferente”, distante do padrão que foi estabelecido
durante séculos de dominação das sociedades europeias.
Bibliografia
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174
DO CANTO NA ROÇA AO BAMBOULA : CANÇÕES,
BATUQUES, TRABALHO E RESISTÊNCIA NO
PROCESSO DE ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO NO
CARIBE FRANCÊS
Letícia Gregório Canelas1
1
Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP, 2017). E-mail: leticia.canelas@gmail.com.
2
Atelier era o termo utilizado nas colônias francesas para se referir ao
conjunto de escravos de uma propriedade rural.
175
farinha) aos sábados à noite. Todos participavam da atividade,
executando diferentes tarefas: ralar a mandioca (grager), cuidar do
fogo, remexer a massa da raiz no tacho, recolher a farinha depois
de pronta. Alguns assumiam as funções de tocar os tambores,
puxar os cantos, circular o rum e dançar. Era uma ocasião que
extrapolava o objetivo de produzir o alimento básico da nutrição
na fazenda – não apenas dos cativos – e, mesmo, de toda a
colônia, pois o excedente era vendido nas vilas. Era também um
momento de encontro, festejo e convívio comunitário das pessoas
escravizadas na Martinica.3
Em maio de 1848, naquele contexto de agitação social e
política, o proprietário de um engenho de açúcar no município de
Saint Pierre proibiu o uso do tambor e dos cantos durante a
grage. Contudo, a escravaria reunida se recusou a calar o batuque
e as canções, e os entoaram mais intensamente, pronunciando
sarcasmos em relação ao mando senhorial. Para punir essa atitude,
o senhor ordenou que um escravo, o principal tocador de tambor,
fosse levado preso pela polícia local na segunda-feira seguinte
àquele festejo e manifestação de insubordinação. Seus
companheiros e companheiras de cativeiro tentaram impedir a
prisão, mas não o conseguindo, seguiram em cortejo os dois
policiais e o prisioneiro até a cadeia da cidade próxima. Durante o
trajeto, escravos de outras fazendas se juntaram à procissão em
protesto. No final daquele dia, tal acontecimento se desenrolou
em uma ampla insurreição escrava, que levou o governo da
Martinica a antecipar a abolição da escravidão na colônia,
3
Várias narrativas de viagem ao Caribe Francês, entre os séculos XVIII e
XIX, relatam a importância da mandioca, desde seu plantio à fabricação da
farinha, na vida das pessoas escravizadas nas colônias. Ver
SCHOELCHER, 1998 [1842], p. 8-12; MAYNARD, 1843, p. 94.
176
decretada no dia seguinte a este evento, em 23 de maio de 1848
(PAGO, 1998, p. 107-110).
Nas Antilhas francesas, nos anos anteriores à proclamação
da Segunda República e da abolição, homens e mulheres
escravizados na Martinica e em Guadalupe manifestaram de
diversas maneiras, sutis ou evidentes, sua resistência e luta contra
a escravização, e sua compreensão sobre a gradual desestruturação
do sistema escravista francês. Algumas dessas ações se expressaram
nas letras dos cantos entoados nos campos de cana-de-açúcar,
acompanhados do toque do tambor, em revoltas durante a época
do carnaval e, mesmo, em canções vocalizadas nas ruas das
cidades em momentos de transformação revolucionária. Desde o
século XVII, as administrações coloniais, apoiadas pelas elites
senhoriais, procuraram estabelecer medidas legislativas que
proibissem as manifestações culturais dos africanos e
afrodescendentes, libertos ou escravos. Relatos de senhores de
escravos e narrativas de viajantes constantemente mencionam a
importância da música na vida cotidiana dos negros no Caribe
Francês.
Esses registros nos possibilitam apenas reconstituir um
quadro limitado sobre as ideias e comportamentos políticos,
sociais e culturais dos escravos e escravas, manifestados em
performances musicais nos momentos de festas ou mesmo no eito
no campo. As fontes observadas foram escritas por homens
brancos de origem europeia e os registros são bastante
fragmentários. No entanto, a partir destes documentos, este
capítulo busca explorar como manifestações culturais ligadas à
música e à dança eram importantes para os africanos e
afrodescendentes escravizados e como foram acionadas em
períodos de fortes mudanças nas colônias francesas caribenhas,
entre o final do século XVIII e meados do XIX, destacando,
177
ainda, o papel das mulheres negras. Com o intuito de contribuir
com os debates sobre herança cultural da diáspora africana no
Mundo Atlântico, o objetivo central é abordar as manifestações
“culturais negras” como formas de performance estética,
comunitária e política e expressão das percepções dos escravos e
escravas sobre momentos de transformação, quando exprimiram
claramente atitudes antiescravistas.
A “cultura negra” no Mundo Atlântico tem sido objeto de
estudos desde o início do século XX, abordada por uma ampla
produção historiográfica sobre escravidão e pós-abolição,
principalmente, no Brasil, nos Estados Unidos e no Caribe. Os
pesquisadores observam que os contatos entre povos africanos nas
Américas – e, ainda, entre estes e outros de origem ameríndia e
europeia – levaram à constituição de manifestações culturais,
como a música, a dança e formas de celebração e ritual. Inspirada
nos trabalhos de historiadores tais como Martha Abreu (Da
senzala ao palco, 2017), Eric Brasil (Carnavais atlânticos, 2016),
Livia Monteiro (A congada é do mundo e da raça negra, 2016), e
sob a influência das análises de Paul Gilroy sobre o Atlântico
Negro, compreendo que não existem culturas negras – muito
menos uma única cultura negra – entendidas como um conjunto
de práticas com certas características comuns e imutáveis. As
culturas se tornaram “negras” a partir dos processos de lutas e de
identidades políticas e sociais “construídas pelos descendentes de
africanos em todas as Américas depois da tragédia do tráfico, da
escravidão e da experiência do racismo” (BRASIL, 2016, p. 18).
Pensando as “culturas negras” – e mesmo “caribenhas” ou
“americanas” – como fenômenos dinâmicos, vários autores que
têm investigado as expressões culturais do “Atlântico Negro”
utilizam a noção de “performance” para compreender as
experiências de contato entre diferentes povos nas Américas e no
178
Caribe (ADAMS, BIBLER & ACCILIEN, 2007; BRASIL, 2016,
p. 45). Acionam este conceito, especialmente, a partir das
manifestações coletivas de ritual, do teatro, do carnaval, da dança,
entre outras. O uso do termo performance possibilita um novo
olhar sobre certos fenômenos que já foram analisados sob prismas
diversos, pois permite compreender o uso de linguagens corporais
e musicais em manifestações públicas como contribuições à
construção de identidades coletivas, que ao mesmo tempo
refletem e influenciam os processos históricos (LOPES, 1994, p.
5).
De acordo com Jessica Adams, as diversas performances
no Novo Mundo, sobretudo no Caribe, evidenciam relações de
confronto e colaboração entre povos originários da África, da
Europa, da América indígena e, mesmo, da Ásia, e refletem
formas culturais que foram herdadas de outros lugares, assim
como mitos e interpretações destes “outros lugares”. Nesse
sentido, as culturas caribenhas emergiram principalmente da
proeminência das tradições orais africanas, ameríndias e, mesmo,
de brancos iletrados. Segundo a autora, no Novo Mundo,
momentos de gênesis cultural frequentemente ocorreram no
contexto de outras performances de apagamento – colonial,
escravista, imperial ou neocolonial –, às vezes como resposta a
elas. Desse modo, a ideia de performance em um sentido cultural
não é separada das estruturas de poder e dos modos
“disciplinares” das sociedades, e as análises das performances
culturais nas sociedades escravistas das Américas e do Caribe
podem iluminar a compreensão tanto das imposições do poder
dominante como as formas de subversão a ele (ADAMS in
ADAMS, BIBLER & ACCILIEN, 2007, p. 6-8).
Dentro dessa chave analítica da performance, Jessica
Adams afirma que a música tem sido um dos fenômenos mais
179
significativos através do qual as culturas caribenhas têm interagido
historicamente. Nesse sentido, não é coincidência que o
importante trabalho de Paul Gilroy, O Atlântico Negro, emergiu
de seu interesse na “música negra”. Seus apontamentos
interpretativos acerca das performances culturais e musicais dos
afrodescendentes nas Américas são fundamentais para se
compreender as evidências fragmentárias analisadas neste capítulo,
sobre as manifestações culturais da classe de escravizados no
Caribe Francês. Essas são observadas, principalmente, como
forma de ação política coletiva, pois, como afirma Gilroy, “as
culturas do Atlântico Negro criaram veículos de consolação
através da mediação do sofrimento” (GILROY, 2001, p. 13) e
foram sistematicamente conjuradas por pessoas que agiram em
conjunto, abastecendo-se da energia fornecida por uma
comunidade, e devemos tentar compreender sua história no
momento que incorporaram e manifestaram críticas ao mundo
em que viviam:
5
Diferentes expressões são encontradas na historiografia ou nas fontes para
se referir ao grupo de pessoas africanas ou afrodescendentes libertas ou
nascidas livres nas colônias francesas: “gens de couleur libres” (pessoas de
cor livres), “affranchis” (libertos), “mulâtres” (mulatos), entre outras. As
pesquisas mais recentes sobre a história do Caribe Francês tem utilizado o
termo “livres de cor” (libres de couleur) para tratar a história desse grupo,
pois ele evita toda a ambiguidade de sentido que possa ser provocada pelas
expressões encontradas nas fontes documentais. Dominique Rogers, Jessica
Pierre-Louis, Abel Alexis Louis, Frédéric Régent, Jean-François Niort são
alguns destes historiadores (franceses antilhanos) cujas pesquisas recentes
utilizam o termo. Nesse sentido, orientada por essa historiografia, optei
184
escravos realizavam reuniões públicas, danças e “corriam pelas
ruas mascarados e fantasiados em horas indevidas”, armados com
bastões e espadas. A lei de 1765 proibia, então, que as “pessoas de
cor, mesmo livres”, se reunissem em grupos sob o pretexto de
comemorações de casamentos, festins ou danças. É possível que
esta decisão oficial tenha sido motivada, principalmente, pelo
intuito de reprimir as performances culturais dos escravos e livres
de cor durante o carnaval, pois foi promulgada no mês de
fevereiro daquele ano:
utilizar esta designação (a partir deste momento, sem aspas), apesar das
críticas contemporâneas (historiográficas e dos movimentos negros) a esta
expressão.
185
ou de danças […]. (Ordonnance de MM. Les
Général e Intendant, concernant les Gens de
Couleur, tant libres qu’esclaves, Martinica, 9 de
fevereiro de 1765, in DURAND-MOLARD, 1807,
p. 364-366)
6
Na língua creole martinicana, a palavra “kalenda” é grafada dessa forma,
mas também há registros dos termos “calenda” ou “calinda” em diferentes
lugares das Américas e do Caribe que se referem a festejos similares à
kalenda martinicana (GERSTIN, 2004, p. 5).
187
(1789) e da Revolução do Haiti (1791), Trinidad recebeu uma
grande quantidade de colonos franceses, acompanhados de seus
escravos, vindos das possessões francesas caribenhas,
principalmente de São Domingos. Quando os britânicos
tomaram posse da ilha em 1797, encontraram uma população
expressiva de origem “francesa”, entre fazendeiros e escravizados
originários do Caribe Francês (BRASIL, 2016, p. 183-184).
Talvez isso explique, em parte, porque a kalenda, sempre referida
como uma manifestação cultural dos africanos e afrodescendentes
das Antilhas Francesas, foi mencionada em relatos sobre Trinidad
entre os séculos XIX e XX.
Nas narrativas de viagem e outras fontes do século XIX
sobre o Caribe Francês, dificilmente encontramos menções ao
termo kalenda. O viajante francês Alphonse Maynard, quem
visitou a Martinica na década de 1840, descreve o bamboula
como um festejo realizado com a presença de escravos e libertos,
talvez similar ou o mesmo que as kalendas, descritas
principalmente em fontes do século XVIII. A despeito do olhar
enviesado de um homem de origem europeia, vale a pena
reproduzir o trecho no qual o viajante descreve seu encontro com
o bamboula que ocorria na “savana”7 próxima à cidade de Saint
Pierre (Martinica), em 1842.
Apesar da enunciação de sentimentos de terror e medo, e
da narração que exprime o que para o francês metropolitano
parecia a expressão cultural da “barbárie dos africanos pagãos”,
transparece em seu relato algo que parece nos levar ao O reino
deste mundo de Alejo Carpentier. Alphonse Maynard não
7
Savana (savane em francês) era o termo utilizado para se referir à área rural
nas colônias francesas do Caribe.
188
percebe que narra o “real maravilhoso” 8, mas faz transparecer um
pouco do “outro”9 que lhe causa tanta estupefação, ainda que
contraditoriamente ele insista em descrever este outro como uma
“raça inferior” e como “selvagem” 10. Em seu relato, destaca que
enquanto o tambor era responsabilidade de um homem, uma
mulher liderava o canto e o grupo. Não obstante o viajante tenha
ficado impressionado com o homem que tocava o instrumento de
percussão, a presença e os lugares, de aparente influência,
ocupados pelas mulheres neste festejo se destacam na narrativa:
8
Alejo Carpentier afirma que os europeus colonizadores são incapazes “de
conceber uma mística válida ou de abandonar os hábitos mais mesquinhos
para jogar a alma na temível carta de uma fé. Isso ficou particularmente
evidente para mim durante minha permanência no Haiti, ao me ver em
contato cotidiano com algo que poderíamos chamar de real maravilhoso.
Pisava eu uma terra onde milhares de homens ansiosos por liberdade
acreditaram nos poderes licantrópicos de Mackandal, a ponto de que essa fé
coletiva produzisse um milagre no dia de sua execução. (…) Mas pensava
além disso, que essa presença e vigência do real maravilhoso não era
privilégio único do Haiti, mas sim patrimônio da América inteira, onde
ainda não se terminou de estabelecer, por exemplo, um inventário de
cosmogonias. (…) é que, pela virgindade da paisagem, pela formação, pela
ontologia, pela presença fáustica do índio e do negro, pela Revolução que
constitui seu recente descobrimento, pelas fecundas mestiçagens que
propiciou, a América está muito longe de ter esgotado seu caudal de
mitologias”. CARPENTIER, 2009, pp. 9-11.
9
Acerca dos olhares europeus sobre a América, e noções como “zona de
contato” e “transculturação”, ver PRATT, 1999.
10
“(…) esta raça africana é, certamente, inferior à raça branca”; “(…) as
raças negras, sucumbidas por uma vergonhosa ociosidade, embrutecida por
longos séculos de barbárie, (…) devem submeter-se à escravidão às raças
brancas”, in MAYNARD, 1842, p. 19; p. 218
189
Na noite de minha chegada [em Saint Pierre,
Martinica], realizou-se o bamboula […] A noite
chegou, eu fui à savana, seguindo ao longo do
boulevard, admirando esta natureza grandiosa, que se
suspende em um morro íngreme sobre a vila, coberto
de uma vegetação luxuriante que enfeita por toda
parte, oferecendo seus frutos perfumados e tão belos;
em seguida, essas palmeiras, que parecem sempre
esperar a brisa, sob a qual elas se dobram.
Aproximando-me, escutei um barulho estrondoso e
vibrante, que ressoou dentro de meu peito com uma
sensação de terror, seguido de luzes que perfuraram o
véu de sombra que o céu havia jogada sobre a savana;
nunca esquecerei a impressão que me causou esta
dança selvagem do negro da Guiné, dança conduzida
por um tambor de madeira tocado pelos dedos
lépidos de um preto nu até a cintura; às vezes
[tocada] numa medida, que sua cadência sobre as
palavras cantadas, cujo significado permanece
desconhecido, e que um refrão anima, é viva,
acelerada; às vezes [tocada] lenta, suavizada, a voz do
coro assume, e então ela explode em notas sonoras e
retumbantes; a paixão se mostra sombria, enérgica;
todas as faces se inflamam, a luxúria aparece em todos
os traços; todos cantam, se balançam, participam
desta tripla unidade que se compõem de um músico,
da corista e da dançarina. Esta dança, que eu
denomino a dança lírica do amor africano, se compõe
de nada, porque ela não tem nenhum passo, com um
pouco de contorções, os pretos procuram apenas
desdobrar sua agilidade em saltos e piruetas. O preto
190
sabe tirar de um tambor sons terríveis; ele lhe faz
cantar todas as suas paixões impetuosas, exprimir o
ardor de seus desejos, perseguir o objeto cobiçado, a
vitória mesmo. As pretas levam bandeiras ornadas
de insígnias, que distinguem as diversas confrarias,
ou velas que elas balançam, cobrindo-se em uma
nuvem de fagulhas. Eu admito, este espetáculo me
apavora: nunca me vi em semelhante reunião. Estas
organizações me aterrorizam; eu temi. Meus olhos
não conseguiam se despregar deste preto, que, com
seu tambor entre as pernas, olhava a mulher líder do
grupo, que lhe repetia sua melopeia [ladainha] (…)
(MAYNARD, 1843, p. 127-129 – grifos meus)
11
A fotografia “Bamboula, Fort de France, Martinique” (1902) pode ser
observada no website The Caribbean Photo Archive. Disponível em:
https://www.flickr.com/photos/caribbeanphotoarchive/3293641544/,
Acesso em 04 de out. /2018.
192
virtudes tão poderosas que mesmo o trabalho escravo
feito em comum, apresenta um aspecto menos triste
que o trabalho solitário e lúgubre de nossos
camponeses. (SCHOELCHER, 1842, p. 23)
12
Adolphe Granier de Cassagnac era um publicista francês e visitou a
Martinica e Guadalupe na década de 1840. Lawrence Jennings demonstra
que a autocracia escravista das colônias na época teria investido na
imprensa para influenciar as opiniões sobre a escravidão e cita
principalmente o nome de Granier de Cassagnac. O senhor de escravos
Pierre Dessalles comenta em seu diário, em 10 de setembro de 1841, sobre
uma subscrição organizada na Martinica para coletar subsídios em favor de
Granier de Cassagnac, considerado pelos colonos brancos um “defensor das
colônias” devido aos seus escritos nos quais defendia a escravidão.
(FOSTER & FOSTER, 1996, p. 156; JENNINGS, 1992, p. 957-978)
193
esta música, a qual todos se agregam cantando o
refrão, comunica aos negros. Este método é aplicado
apenas na plantação de cana (…) (GRANIER DE
CASSAGNAC, 1842, p. 308-309 – grifos meus)
13
Dictionnaire de l’Académie française, 6a. ed. (1835). Disponível em:
http://artfl-project.uchicago.edu/content/dictionnaires-dautrefois. Acesso
em: 18 de març. 2017.
194
Provavelmente Schoelcher utilizou a palavra “chanterelle”
como um jogo de significados, que representa tanto a corda do
violão ou do baixo que produz o som mais agudo, quanto a
garrafa de vidro delicado de onde se tira sons muito agradáveis,
como metáforas da voz feminina. Mas é possível que Schoelcher
tenha se referido à escrava que cantava a ladainha na roça
especialmente naquela última definição de “chanterelle”,
relacionando a escravidão à gaiola e a mulher ao pássaro que canta
para atrair os outros que terão seu mesmo destino desafortunado.
Em todo caso, ao distinguir a mulher como a “chanterelle”,
Schoelcher nos dá indícios do papel de destaque ocupado por
estas escravas em suas comunidades e no mundo do trabalho nas
fazendas.
Essa função de liderança das mulheres africanas e
afrodescendentes nas manifestações culturais nas Américas e no
Caribe não é incomum. Sheila de Castro Faria destaca a atuação
das mulheres negras, escravas ou forras, na promoção de
“folguedos” e batuques no Brasil, momentos de vivência
comunitária que teriam criado condições para o surgimento de
novas identidades naquela sociedade escravista:
196
desconfiando tanto dos escravos como da população livre de cor,
ou de uma cumplicidade entre estas classes 14.
Duas cartas de Giraud, de outubro e novembro de 1829,
traduzem bem o estado de inquietação neste período. Ele revela
em sua narrativa o “terror” e o “pânico” da administração colonial
e dos habitantes e afirma que a “igualdade entre as classes livres
[…] era coisa impossível”, referindo-se às classes dos brancos e
dos livres de cor. Giraud narra que, apesar da aparente
tranquilidade naqueles arredores, as pessoas livres de cor —
“capazes de refletir” sobre aquele clima de tensão na classe
senhorial —, ao se encontrarem, apertavam as mãos dizendo um
cumprimento que ironizava o sentimento dos brancos: “Eh ben!
Ké nouvelles? Blanc ka chiés dans cullotes à io” [Eh bem! Quais as
novidades? Branco aqui se caga nas calças à io] (Archives
Nationales d’Outre-Mer – ANOM, 170, APOM/5, apud
CAMARA & DION, 2008, p. 168).
Contudo, não apenas os livres de cor eram “capazes de
refletir” e fazer chiste do medo difundido entre os brancos. As
pessoas escravizadas pareciam estar em sintonia com os libertos,
traduzindo em seus cantos a sua forma de explicar o terror dos
brancos e a tensão nas colônias. De acordo com as evidências
anteriores, muito possivelmente uma das mulheres escravizadas na
fazenda era responsável pelas ladainhas entoadas. A carta do
14
O senhor de escravos martinicano Pierre Dessalles (filho de Pierre
François Regis Dessalles, mencionado anteriormente), em carta a sua mãe
em agosto de 1825, afirma que “as notícias sobre a independência de São
Domingos foi devastadora para toda a população branca” das colônias.
Naquele ano, o monarca francês Carlos X aceitou a independência de São
Domingos / Haiti mediante uma indenização de 150 milhões de francos,
que seria distribuída entre os ex-proprietários de terras da ex-colônia (Carta
de Pierre Dessalles, 22/08/1825, in FOSTER & FOSTER, 1996, p. 78).
197
administrador Giraud evidencia a importância destes cantos do
trabalho da roça, que parecem ao mesmo tempo servir de registro
dos acontecimentos, da forma de pensar e explicar o mundo a sua
volta e de transmiti-la aos seus, assim como um meio de
comunicar aos senhores brancos e avisá-los ou lembrá-los que eles,
os escravos, não estavam alheios aos acontecimentos da colônia:
15
Giraud transcreve o refrão da música em creole e logo na sequência
fornece a tradução em francês: “Les blancs font patrouille, armes et
bagages, toutes les nuits / io ka voë zombie, io ka di c'est nègres marrons /
io ka tien ben zombie, io ka di c'est nègres marrons / io ka maré zombie, io
ka di c'est nègres marrons / Ils voient des revenants et disent que ce sont
des nègres marrons / Ils voient des revenants et disent que ce sont des
nègres marrons / Ils prennent des revenants et disent que ce sont des nègres
marrons / Ils amarrent des revenants et disent que ce sont des nègres
marrons”.
198
na colônia em suas canções, “segundo seus costumes”. Maynard,
apesar de seu olhar europeu do século XIX, carregado de
preconceito e racismo, apontou que o bamboula tinha elementos
de uma “cultura negra”, “africana”, que ele identifica como uma
“dança selvagem do negro da Guiné”. Assim como Labat entre o
final do século XVII e início do XVIII, Maynard na década de
1840 situa essa manifestação cultural dos afrodescendentes da
Martinica como uma herança cultural africana, apesar de seus
olhares enviesados e preconceituosos.
Labat afirma que a calenda também era originária da costa
da Guiné, talvez do Reino de Ardá, mas não sabemos o quanto
estas alegações podem ser confirmadas. De fato, entre 1650 e
1750, dos quase 120 mil africanos e africanas levados pelo tráfico
de escravos para a Martinica, grande parte foi embarcada na Costa
da Guiné ou Costa da Mina, sobretudo no Golfo do Benim
(62.469 pessoas) e na Costa do Ouro (12.715 pessoas), mas uma
quantidade considerável também foi capturada na África Centro
Ocidental (24.390 pessoas)16.
Desde a década de 1970, Sidney Mintz e Richard Price,
em suas abordagens sobre o “nascimento da cultura afro-
americana”, consideravam impossível que o conjunto de africanos
levados para qualquer colônia das Américas e do Caribe tenha
transportado uma única cultura coletiva. De acordo com Mintz e
Price, os africanos de qualquer sociedade escravista do Novo
Mundo formavam um aglomerado etnicamente heterogêneo de
indivíduos (“multidões”) e só se transformaram de fato numa
comunidade e começaram a compartilhar uma cultura “na
medida e na velocidade que eles mesmos as criaram”. Segundo os
16
Slave Voyage. Disponível em: http://www.slavevoyages.org/ . Acesso
em: 09 de out. 2018.
199
autores, “para que as comunidades de escravos ganhassem forma,
tiveram que ser criados padrões normativos de conduta, e tais
padrões só podiam ser criados com base em determinadas formas
de interação social” (MINTZ & PRICE, 2003 [1992], p. 37-38).
Na década de 1990, vários africanistas passaram a criticar
o modelo interpretativo de Mintz e Price. A partir de um
importante avanço nos estudos historiográficos e antropológicos
sobre o continente Africano, surgiram novas observações sobre as
heranças culturais africanas nas Américas, estabelecendo um
acalorado debate entre “africanistas” e “americanistas”. Contudo,
segundo James Sidbury e Jorge Cañizares-Esguerra, pesquisas
empíricas atuais têm tornado tal disputa sem sentido. Focando
especificamente os estudos sobre a África, Sidbury e Cañizares-
Esguerra destacam que a teoria da crioulização, desenvolvida a
partir dos apontamentos de Mintz e Price, ironicamente tem
iluminado pesquisas recentes acerca de muitos povos da África
Ocidental, Central e Sudeste. Alguns historiadores africanistas
têm observado que grande parte da África pré-colonial (entre os
séculos XV e XIX) era formada por pequenos sistemas políticos e
que era comum entre estes a constante integração de membros de
outras etnias, antes, durante e depois da era do tráfico
transatlântico. A experiência de cativos deslocados de suas
comunidades originais e forçados a se adaptar a novas culturas era,
portanto, uma condição endêmica que levava à criação de novos
arranjos étnicos e culturais nos sistemas políticos pré-coloniais
africanos. Desse modo, esses processos e experiências teriam
auxiliado os africanos e africanas enredados na escravidão atlântica
a se adaptarem à terrível opressão que vivenciavam uma vez
levados às Américas (SIDBURY & CAÑIZARES-ESGUERRA,
2011, p. 182-185).
200
James Sweet direciona sua análise nesse sentido ao abordar
a biografia do africano Domingos Álvares, capturado na região do
Daomé (Costa da Mina) e escravizado no Brasil no século XVIII,
onde, após sua alforria, constituiu uma comunidade de cura,
procurando seguir alguns ensinamentos de sua terra natal que
mantinha na memória. Para explicar as origens do curandeiro
africano, o historiador africanista narra a história da tomada de
Ouidah pelo império de Daomé, sob o reinado de Agaja na
primeira metade do século XVIII, na região denominada pelos
europeus como Costa da Mina. Sweet destaca em sua análise o
quanto este processo violento de guerra entre reinos africanos
impactou a reformulação das identidades sociais e culturais dos
povos daquela região, dos quais muitos indivíduos foram
capturados e comercializados nas tramas do tráfico de escravos.
Os povos deslocados pela violência dos ataques do exército de
Agaja reconstituíram eles próprios alianças com outros que viviam
em circunstâncias similares. Estas sociedades acuadas pelo estado
de guerra da época eram, então, multilínguas, politeístas e
etnicamente heterogêneas. Todavia, segundo Sweet, normalmente
falavam uma língua franca comum, compartilhavam ideias
religiosas e seguiam caminhos similares para resistir ao poder
esmagador do império de Daomé (SWEET, 2011, p. 12-15).
De acordo com Sweet, a fundação desta cultura regional
emergiu a partir de uma série de imigrações desde o ano 1.000 (da
era cristã), tendo continuidade através do período de dominação
de Agaja. O resultado dessas migrações sobrepostas foi a
confluência de povos Ewe, Adja, Fon, Gun e Yoruba em uma área
cultural contígua com uma ampla estrutura linguística comum –
falantes Gbe –, com um sentido compartilhado de linhagem e
história (mito de origem através da terra natal ancestral em Tado,
atual Togo), e de um sistema religioso centrado no culto aos
201
voduns. Fronteiras geográficas porosas permitiram o influxo de
uma forte influência Yorubá do leste e influências islâmicas do
norte. No entanto, Sweet destaca que a violência vivenciada no
século XVIII, nos conflitos entre os reinos de Daomé e Òyó, nos
leva a atentar que devemos ter cuidado para não confundir
similaridade cultural com coesão política. Embora pareça claro
que estas imigrações, o tráfico e o estado de guerra facilitaram que
povos compartilhassem afinidades socioculturais, eles não
necessariamente se concebiam compartilhando uma mesma
“identidade”. Em resumo, a região dos falantes de Gbe era, ao
mesmo tempo, culturalmente similar e politicamente heterogênea
antes da chegada dos Europeus.
No entanto, o comércio europeu reforçou a marcha das
trocas sociais e culturais, ao passo que a demanda por escravos
transformou a economia local e as configurações políticas. Para
Sweet, o expediente político da ação coletiva, daqueles povos que
se uniram contra os ataques do exército de Agaja, não
necessariamente se traduziu em uma completa transformação
social e cultural, pois alguns africanos se identificavam
primeiramente por suas vilas de origem. Assim, as camadas de
identidade podiam se deslocar concentricamente do parentesco
natal a significantes meta-étnicos como “Mahi”, ou mesmo mais
amplos, de proveniência, como da “Costa da Mina”. Sweet define
que estas identidades operavam como bonecas russas, uma dentro
da outra, e a utilidade de cada uma era determinada pelo contexto
e circunstância (SWEET, 2011, p. 15-17).
A partir desse conhecimento sobre a história da África,
Sweet aborda a história dos africanos levados como escravos para
o Novo Mundo compreendendo que suas experiências de
adaptação e recriação cultural têm início na África, como parte de
um processo de embate político. Oferecendo formas alternativas
202
de pensamento sobre família, religião, medicina, economia e
política, os africanos contestaram a hegemonia do poder imperial
europeu, frequentemente operando em uma epistemologia
diferente, indecifrável para a maioria dos homens brancos. Ao
mesmo tempo, de acordo com Sweet, as ferramentas conceituais
para analisar as novas contingências políticas, forjadas
primeiramente na África e então através dos vários encontros que
se seguiram, nunca se enfraqueceram na memória daqueles
africanos levados como escravos para as Américas. Sweet traça a
figura destes africanos como verdadeiros “palimpsestos”, que
teriam derivado novos caminhos de leitura dos mundos que eles
encontravam, colocando em camadas estas ideias umas sobre as
outras. Porém, o “pergaminho” e as gravuras originais eram
definitivamente africanas, moldadas em suas experiências
formativas em sua terra natal (SWEET, 2011, p. 6-7).
Retomando os números do tráfico de escravos para a
Martinica, observa-se que uma grande quantidade de africanos
desembarcados na ilha saíram da Costa da Mina. Nesse sentido, e
observando os estudos de James Sweet sobre aquela região no
século XVIII, é possível inferir que as manifestações culturais dos
africanos e afrodescendentes escravizados nas Antilhas Francesas,
como aquelas denominadas kalenda ou bamboula, ou ainda o
costume de usar o tambor e os cantos na lavoura, muito
provavelmente mantinham elementos de uma história e de uma
herança cultural compartilhadas desde os processos engendrados
na África, reconfigurados na Passagem do Atlântico dentro dos
navios negreiros, e, finalmente, nos encontros e experiências
vivenciados no Novo Mundo.
De alguma forma, o fato de estrangeiros de diferentes
espectros políticos – como o abolicionista Schoelcher e defensores
do escravismo como Granier de Cassagnac e Alphonse Maynard –
203
serem “autorizados” a observar e escutar a música que embalava o
trabalho pesado nos grandes engenhos de açúcar, a socialização
dos escravos e libertos, e ainda destacarem a utilização daquele
“método” (do uso do tambor e do canto) durante o plantio de
cana, indica a complexidade das relações estabelecidas entre
senhores brancos e escravos afrodescendentes nas colônias
francesas do Caribe. As pessoas escravizadas de origem africana,
numa intrincada mistura de acomodação e resistência, batalhavam
dentro e contra o quadro imposto a eles, e nesta sua luta cotidiana
acionavam e desenvolviam valores, ideias e expressões culturais
que lhes permitiam afirmar seus próprios objetivos, necessidades e
ritmos na vida social e de trabalho, e resistir às determinações
impostas pela ordem senhorial escravista. Delineiam-se nestes
contextos aspectos e resultados de “lutas miúdas”, de estruturas
complexas e cotidianas, entre os “campos de força” do mundo do
trabalho escravo nas Américas e no Caribe (SLENES, 2011, p.
205; p. 235).
17
Em 1822 ocorreu uma grande revolta de escravos no município do
Carbet e há evidências sobre outra tentativa de revolta na mesma localidade
em 1826; em 1823-24, dezenas de homens livres de cor foram acusados de
conspiração e condenados à prisão, ao exílio e até à marca com ferro quente
(“caso Bissette”); entre 1822-1827, houve alarde da elite branca em relação
aos casos de “envenenamento” na Martinica, levando à condenação de
205
Relata que “canções sediciosas” eram cantadas pelos escravos,
assim como se ouvia falar de “ameaças de incêndio e de morte”.
Segundo o autor do texto, nestas canções cheias de ditos
significativos, na maneira dos “gestos” e da “linguagem”, revelava-
se uma revolução em curso na mentalidade dos afrodescendentes
da colônia:
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214
IMAGINAÇÃO AFRICANA E LITERATURA AFRO-
BRASILEIRA: CAMINHOS ENTRECRUZADOS
Túlio Henrique Pereira1
Eliane Marques2
1
Doutor em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia
(UFU). Estágio Pós-Doutoral no Programa de Pós-Graduação em História
do Brasil da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Bolsista
PNPD/CAPES. Teresina – PI – Brasil.
E-mail: tuliohenriquepereira@gmail.com.
2
Graduada em Pedagogia e Direito; Mestre em Direito Público
(Constituição, Direitos Fundamentais e Hermenêutica Jurídica) pela
UNISINOS; Especialista em Constituição, Política e Economia, pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), também trabalha
como Auditora Pública Externa do Tribunal de Contas do Estado do RS. É
poeta, ensaísta, editora e roteirista. Coordenadora da Escola de Poesia;
coordenadora editorial da revista de poesia Ovo da Ema. Publicou, entre
outros, os livros de poesia “Relicário” (2009) e “e se alguém o pano”,
vencedor do Prêmio Açorianos de Literatura 2016, na categoria poema.
Porto Alegre – RS – Brasil. E-mail: anecabral763@hotmail.com.
3
Negros em itálico iniciado com maiúscula se refere aos conceitos
enunciados por Achille Mbembe em A Crítica da Razão Negra.
215
O primeiro conceito, o de imaginação africana, foi
proposto pelo crítico Francis Abiola Irele (2001), e o segundo, o
de literatura afro-brasileira, é defendido especialmente pelo
professor Eduardo de Assis Duarte (2017) na esteira de outros
pensadores que o precederam. O mundo se despedaça, do
nigeriano Chinua Achebe (1959), e Ponciá Vicêncio (2011), da
brasileira Conceição Evaristo, concretizam, de modo
exemplificativo, um e outro conceito.
Além de especificar a origem, as características e as
implicações sociopolíticas dos conceitos referidos, o ensaio se
propõe a evidenciar as consonâncias ideológicas de alguns textos
de autoria negra com o que Achille Mbembe (2014) chama de
“declaração de identidade”, ou seja, um texto segundo (em
contraposição ao texto primeiro) por meio do qual o Negro
formula interrogações relativas ao seu “eu” ao mesmo tempo em
que produz suas próprias respostas.4
O caminho metodológico a que nos cercamos se assenta
na leitura, seleção e interpretação de textos literários e da ciência
histórica, que, a partir do giro linguístico, permite a investigação
do que é literário no texto histórico e do que é histórico no texto
literário, suas produções de sentido, a intencionalidade e a
capacidade de representação político-identitária de sujeitos pelo
viés do pós-colonialismo, o que coloca em discussão as próprias
bases epistemológicas da ciência histórica e os critérios de verdade
e de ficcionalidade de suas narrativas.
As obras escolhidas, diversas quanto à autoria e à época de
publicação, foram tomadas aqui não enquanto objeto de um
4
Declaração de identidade é grifada com itálico em atenção ao conceito
desenvolvido por Achille Mbembe, assim como outros termos em destaque
ao longo do texto.
216
estudo que se propõe à comparação do contexto de suas
temporalidades, mas sim na perspectiva de que conjuntamente,
sob o prisma da produção de sentido alegórico da imagem e
representação dos sujeitos, caminham em direção a significações
que enunciam o movimento histórico de formulação e possível
consolidação do texto segundo antes referido.
Não podemos falar de texto segundo sem mencionar o
que Achille Mbembe chama de consciência ocidental do Negro,
ou seja, o texto primeiro, produzido, repetido e constantemente
consolidado pelo colonizador, pelos missionários, pelos viajantes,
pelos exploradores e pelos arautos das pseudociências, que se
encarregaram de inventar o Negro. Ao responder a pergunta
“Quem é ele”, esse que não é idêntico a mim mesmo, o europeu
afirmou e fez ecoar a afirmação de que ele – o Negro - só poderia
ser um “anormal” (MBEMBE, 2014, p. 58).
Ainda no sentido do texto primeiro, ao refutar a afirmação
de O. Mannoni de que o malgaxe sofreria de um complexo de
inferioridade que lhe seria inerente, antes mesmo da situação
colonial, Frantz Fanon assevera que,
221
senão anos depois que se tornara ciente da imagem estereotipada e
depreciativa do Negro que o papel veiculava (IRELE, 2001).
De acordo com Abiola Irele, o episódio da montagem da
peça de Mozart, em que ele interpretou Monostatos, ilustrou o
poder insidioso que certas obras de arte têm de obscurecer com
seu brilho as zonas morais sobre as quais incidem, como Voyage
au bout de la nuit, de Céline, em que o valor estético gerado pelo
virtuosismo da escrita se torna inseparável da natureza e do
sentido extratextual das vituperações aí proferidas (IRELE, 2001).
Ademais tal episódio, nos termos em que posto por Abiola Irele,
expõe em alto relevo a ironia fundamental da educação colonial,
cujas premissas ideológicas obrigaram seus agentes a terem acesso
a textos, imagens e outros modos de discurso e representação que
desvalorizam a humanidade da gente colonizada, como parte do
esforço para estabelecer a autoridade cultural e moral da raça
colonizadora (IRELE, 2001).
De igual forma, Chinua Achebe por diversas vezes
mencionou que sua literatura fora instada pela figura da África,
em especial de seus habitantes, que encontrava nos romances de
sua juventude, admitindo que nessas leituras se identificava com
os europeus, de caráter sólido e intelecto desenvolvido, e detestava
aquelas figuras instintivas e sem valores morais que encontrava
nos africanos, até o dia em que percebeu que essas figuras
desprezíveis correspondiam à caracterização que os autores
europeus faziam do povo ao qual ele pertencia. A resposta de
Achebe a Joseph Conrad e a seu Heart of Darkness, por exemplo,
veio na forma do romance Things Fall Apart (ESTADÃO, 2018).
Ngũgĩ wa Thiong'o no livro Moving the Centre: The
Struggle for Cultural Freedom (1993) observa que, no imaginário
ocidental a África se encontra tripartida entre a África do homem
de negócios ou do caçador de lucros; a África do caçador de
222
prazeres ou do caçador de lucro de férias e a África da ficção
europeia, em que Karen Blixen com seu cozinheiro africano
associado a um cão se destacaria por seu racismo-humanista.
Já Scholastique Mukasonga, em Nossa Senhora do Nilo,
narra que no Liceu Nossa Senhora do Nilo havia apenas duas
professoras ruandesas, a irmã Lydwine, de história-e-geografia, e a
professora de kinyarwanda; as demais eram europeias (belgas ou
francesas). Segundo a irmã Lydwine a história se referia à Europa
e a geografia à África. Assim, nas aulas de história havia apenas
fortalezas, calabouços, seteiras de muralhas, mata-cães, pontes-
levadiças e os cavaleiros abençoados pelo papa partindo em
cruzada para libertar Jerusalém e massacrar os sarracenos. Para a
África, então, não havia história porque os africanos não sabiam
nem ler e nem escrever antes de os missionários levarem a escola
até lá. Além disso, os europeus teriam descoberto a África e a
inserido na sua história (MUKASONGA, 2017, p. 42 e 43).
A partir dessas evidências relativas à representação e à
produção de sentidos acerca do Negro em textos sobre a África
recorremos a afirmação de Frantz Fanon de que a literatura oficial
criou muitas histórias sobre pretos que o concebem do ponto de
vista puramente biológico-sexual em detrimento de uma
concepção intelectual (saber formal) (FANON, 2008, p. 143).
Para Fanon, nos países negros ou naqueles em que houve
colonização europeia fora do continente africano, há a
demarcação do lugar inferior do negro de modo institucional e
inconsciente em relação ao branco, um lugar que determina a
visibilidade da sua pele preta, do seu corpo preto, da sua educação
preta, do seu riso e dentes de preto, da sua língua de preto e do
seu sexo de preto. Sendo assim, para a literatura oficial “qualquer
aquisição intelectual exige uma perda do potencial sexual”
(FANON, 2008, p. 143), e nessa perda o preto se torna castrado
223
e consequentemente perde sua importância no meio social
branco. Lembremo-nos do exemplo de Irele ao receber o papel de
Monostatos, o mouro lascivo.
Fanon nos ajuda a entender que esses mundos
imaginados, responsáveis pela representação maciça de
estereótipos de negros, são responsáveis pela catharsis coletiva
(FANON, 2008, p. 130), “são os jornais escritos pelos brancos,
destinados às crianças brancas [...] devorados pelos jovens nativos
[nos quais] o Lobo, o Diabo, o Gênio do Mal, o Mal, o Selvagem,
são sempre representados por um preto ou índio” (FANON,
2008, p. 130-131).
A partir dessa estereotipagem se estabelece um cânone, ou
seja, uma produção literária identificada por pares com o caráter
de oficialidade, de modo que, em seu conjunto de autores e
sentidos, sempre trará o português/francês/inglês mal escrito ou
mal falado, porque esse mal/erro seria inerente ao Negro. Essas
marcas se consolidam com tanta presteza até o ponto de não se
fazerem mais necessárias as menções a cor da pele de uma
personagem senão representá-la na forma escrita da sua língua
falada.
Autores como Chinua Achebe e Wole Soyinka escreveram
romances e dramas teatrais que quebraram com esse paradigma,
pois se valeram da língua inglesa para inscrever na história da
literatura personagens africanos em sua plena condição de gente e
não de máscaras. Assim se apresenta a questão da competência
dual em uma língua africana e outra europeia, indicativa da
situação de diglossia na qual eles estão envolvidos, assinala Irele.
Esses escritores fornecem a evidência da tensa área de significação
entre a tradição de expressão imaginativa e a tradição escrita
europeia, um terreno através do qual cada escritor africano tem
224
que encontrar um meio expressivo para navegar em seus próprios
objetivos.
Francis Abiola Irele na introdução do livro The African
Imagination (Literature in Africa and The Black Diaspora)
informa que o objetivo do seu trabalho é o de explorar o terreno
da literatura africana na mais ampla acepção do termo, bem como
chegar a um sentido de suas possíveis fronteiras na própria África
e no que pode ser percebido como sua extensão no Novo Mundo.
O crítico observa que seu uso de imaginação africana se dá como
referência a uma conjunção de impulsos, assentados tanto na
experiência como em referências, ambas culturais e comuns, que
receberam uma expressão unificada em um corpo de textos
literários.
Nesses termos, Irele destaca que a literatura africana existe
e tem sentido primordialmente no contexto de um corpus
reconhecível de textos e obras de autores africanos, situado em
relação a uma experiência global que abarca os quadros de
referência pré e pós-colonial. Tal corpus, de forma diversa do que
ocorre com o cânone oficializado, é especialmente marcado pelas
disjunções entre língua e literatura e entre língua e nação (a não
ser em alguns casos excepcionais, como o da Somália).
Assim, tratando-se de um conjunto multilinguístico,
melhor seria falarmos em literaturas africanas, as quais podem ser
organizadas em três categorias amplas: a literatura oral tradicional,
a nova literatura escrita em línguas africanas e a literatura escrita
em línguas não originárias da África, em particular, o inglês, o
francês e o português.
O termo imaginação, conforme assinala Irele, representa
as áreas de articulação e os níveis de representação e criação em
relação à África, quer como uma referência imediata quer como
um modo de conexão para o que cada vez mais tem sido aceito no
225
Novo Mundo como um recurso étnico e cultural e que ele
considera (a imagem da África) como a figura de um engajamento
com o mundo em/e pela língua a partir de uma perspectiva
histórica, étnica e cultural abrangente.
A área primordial do que o crítico denomina de
imaginação africana é representada pelo corpo de literatura
produzida por, dentro e para as sociedades tradicionais e culturas
indígenas da África, constitutiva de uma parte essencial do que é
geralmente considerada a sua tradição oral. Irele observa que se
trata de uma literatura contemporânea, produzida de várias
formas e atualizada em seus temas e referências e, especialmente,
integrante das convenções escritas adaptadas da tradição letrada
da Europa. Além disso, diz ele, a tradição oral começou a
empregar novos meios tecnológicos de produção e performance,
de modo que discos, fitas cassetes, filmes e vídeos foram usados
em diversos países africanos para a transmissão da literatura
tradicional em sua forma de expressão oral/aural original.
No que se refere à oralidade na África, apesar da
continuidade entre eles, pois seria difícil riscar uma linha exata
entre os usos linguísticos denotativo e conotativo em sociedades
orais, Irele propõe um esquema composto por três níveis: o nível
da comunicação comum dado pelo uso denotativo da linguagem;
o nível dos usos retóricos da linguagem em formas que não
necessariamente reservadas a situações especiais, mas presentes no
discurso africano tradicional por meio dos provérbios e aforismos
e que fornecem o que se poderia chamar de um enquadramento
“formulaico” para atos de fala, modos discursivos e, de fato, a
estrutura do pensamento e, por fim, o nível estritamente literário,
que se preocupa com os usos imaginativos da linguagem e a eles é
reservado.
226
Nesse último nível se encontra o que é aceito em muitas
sociedades africanas como um corpo de textos consagrados,
entendendo-se como tais não apenas uma sequência de
enunciações formadoras de um padrão de discurso, mas também a
natureza desses espécimes na tradição oral, dotados do mesmo
caráter de literalidade dos textos escritos, ou seja, metáforas,
paralelismo, anáfora, parataxe, tropos e outros dessa natureza que
criam uma segunda ordem de linguagem com palavras adiantadas,
organizadas de modos altamente estilizados, formadoras,
portanto, de uma carga especial de sentido. Ainda se encontra
como característica desse nível estritamente literário da tradição
oral, o papel especial desempenhado por valores sônicos
(onomatopeia e ideofones), especialmente os padrões tonais que
dependem, para seu efeito, do imediatismo da realização peculiar
às formas orais.
Assim, no nível estritamente literário da oralidade africana
temos um corpo de textos que constitui não apenas um repertório
com convenções estabelecidas de composição, performance e
transmissão, como no caso das nênias akan ou os nomes de louvor
familiares (oríkì) dos iorubás, mas também, e com certa
frequência, um cânone, como os poemas heroicos e de louvores
dos zulus (izibongo) e Basotho, a poesia cortesã de Ruanda, os
grandes épicos Sundiata, Da Monzon, Mwindo, e Ozidi e os
corpus de Ifá dos iorubás.
Para Irele, a literatura oral representa o intertexto básico
da imaginação africana, pois funciona como a matriz de um
modo de discurso africano no qual o griot é sua corporificação em
todos os sentidos da palavra.
A nova literatura escrita em línguas africanas evidencia a
função que a oralidade ainda cumpre na África contemporânea.
Todavia, não se trata simplesmente de usar material da tradição
227
oral, mas essencialmente de representá-lo por meio da mídia
impressa para lhe conferir maior circulação bem como expressão
nova a formas estruturadas nessas próprias línguas, o que não
impossibilita modificação das formas tradicionais, pelo contrário,
tal fato é inevitável dado o contexto de realização da literatura,
marcada pela assimilação de modos e convenções da cultura
letrada ocidental.
Para Irele, são exemplos desse movimento Okot p’Bitek,
cujo poema Song of Lawino foi escrito em acholi e depois
traduzido ao inglês pelo autor; Mazisi Kunene, cujos poemas
zulus complementam seu trabalho no inglês; Charles Mungoshi,
que criou ficção tanto em xona quanto em inglês como expressões
do mesmo impulso criativo e, especialmente Ngugi wa Thiong’o,
que foi do inglês ao quicuio e que buscou em Devil on the Cross
uma representação direta do modo oral em um meio escrito.
A relação entre oralidade e cultura letrada não é recente,
pois a tradição escrita mais antiga na África remonta à introdução
do Islã nas suas regiões leste e oeste no período correspondente à
Idade Média europeia, o que determinou uma linha específica de
desenvolvimento associada ao termo Afro-árabe. As literaturas em
suaíli, somali e hauçá, nas quais o árabe foi até recentemente
empregado para a escrita da língua africana, fornecem os
exemplos primeiros, e aí já se encontra um rompimento radical
em relação à matriz indígena, embora tanto o hauçá quanto o
suaíli frequentemente remontem a uma tradição mais antiga de
oralidade, com poemas escritos e depois declamados ou cantados
em performances ao vivo.
Quanto à literatura africana escrita em línguas europeias,
Irele nos diz que há um sentido em se afirmar que tal modalidade
começou com a escrita europeia na/e sobre a África, pois o
europeu não apenas iniciou o discurso moderno no continente,
228
mas também estabeleceu os termos em que tal discurso alcançou
os dias de hoje.
O traço comum dessa categoria de literatura, que serviu de
base para um discurso hegemônico e nas quais se incluem Heart
of Darkness, de Joseph Conrad, e The Heart of the Matter, de
Graham Greene, é a ausência de simpatia imaginativa com o
continente ou seu povo como portadores de cultura (e de história,
como diria Mukasonga), um fato que o escritor colono ou nega
ou ignora. Além do significado ideológico dessa literatura como
texto primeiro, Irele afirma que, por sua própria natureza, ela é
incapaz de estabelecer uma relação com a imaginação africana.
Uma possível ressalva a tal observação, considerada a
língua inglesa, diria respeito ao trabalho do grupo de escritores
brancos sul-africanos para os quais o assunto “África” vem em
foco imaginativo direto, tais como Alan Paton, Nadine Gordimer,
Athol Fugard, Andre Bink, J. M. Coetzee e Breyten Breytenbach
e, antes deles, Olive Schreiner e a primeira Doris Lessing, cujo
envolvimento com a experiência da comunidade negra em relação
à divisão racial lhes conferiria distinta qualidade de referência e os
separaria dos escritores mais antigos como Roy Campbell e
William Plomer.
De retorno à moderna literatura escrita em línguas
europeias por africanos, Irele assinala que o seu traço
impressionante é a notável preocupação não apenas com a
experiência africana como o assunto central de suas obras, mas
também com o problema de uma reflexão apropriada e adequada
dessa experiência, que envolve, em termos formais, um retrabalho
de seus meios de expressão para esse propósito e, especialmente, o
estabelecimento de um modo imaginativo africano derivado da
tradição oral, junto com a representação de um universo africano.
229
Essa aparente dupla relação formal ― às convenções
europeias de expressão letrada e à tradição indígena da oralidade
― talvez seja melhor caracterizada como um esforço para
reintegrar uma descontinuidade de experiência em uma nova
consciência e imaginação. Irele destaca que para o moderno
escritor africano, não foi necessário tentar chegar a um acordo
com isso, pois, na nova literatura o que se encontra é uma
constante interrogação do “eu” e da comunidade original à qual se
sente que o “eu” se relaciona de um modo fundamental. Essa
disjunção entre a África, considerada como referência
compreensiva e imagem de experiência, as línguas europeias e as
convenções literárias associadas com elas criam tensões e
ambiguidades reproduzidas pelos escritores africanos na própria
forma de expressão que utilizam. A questão, assim, diz respeito a
como criar uma harmonia formal entre expressão e referência
objetiva dessa expressão, ou seja, o problema do escritor africano
que emprega uma língua europeia é como escrever uma cultura
oral.
Entre os escritores que tentaram enfrentar essa questão,
podemos citar Amos Tutuola, que procedeu à recriação
espontânea em inglês das estruturas da língua iorubá. Irele afirma
que o caso de Amos Tutuola é notável a esse respeito, já que seus
romances seriam uma extensão do trabalho de D. O. Fagunwa em
iorubá e, portanto, representariam um movimento contínuo do
indígena ao europeu. No caso de escritores como Gabriel Okara
(The Voice) e Ahmadou Korouma (Les soleils des
indépendances), o processo consistiria num remodelamento
consciente da língua europeia com o objetivo de reproduzir os
padrões de fala e processos de pensamento de personagens
ficcionais.
230
O precedente para essa abordagem que Irele chama de
transposição (recuperação de material e formas africanos no
padrão da língua europeia) foi estabelecido pelo escritor caribenho
René Maran, com seus Batouala e Le livre de la brousse, todavia a
obra notável que inaugura a literatura africana moderna como um
modo de transposição, segue sendo, ainda para Irele, Things Fall
Apart, de Chinua Achebe. A sua significância inovadora não
apenas deriva da integração da retórica da fala africana no
romance ocidental convencional, mas também a relação formal da
obra com as tradições africana e europeia. Uma primeira
indicação da abordagem de Achebe ao problema é oferecida por
sua incorporação de contos populares como alegorias dentro do
desenvolvimento narrativo.
Na poesia africana mais conhecida entre nós, exemplo de
transposição é a de Léopold Sédar Senghor, cujas cadências da
poesia oral subjazem ao fluxo de suas linhas processionais em uma
forma de verso que é, ao mesmo tempo, uma celebração elegíaca e
heroica de um continente e um povo inteiro.
Para Irele a mais significativa transposição até agora talvez
tenha sido manejada por Soyinka em Death and the King’s
Horseman, peça teatral que progride de uma realização imediata
da oralidade como forma expressiva de um modo de vida total
para o que só pode ser descrito como a trágica perda da função
empoderadora da palavra no universo africano. O interesse
circunstancial da peça se acha sobre seu tema do encontro entre o
ethos tradicional e os valores ocidentais, entre um imperativo
metafísico e outro histórico. Mas é a apresentação desse encontro
que dá força ao tema e significância à própria obra, pois encena na
linguagem a forma do predicamento existencial que apresenta o
dilema envolvido na descentralização progressiva da psique e
imaginação africana em uma nova dispensação que se impõe sobre
231
o mundo africano. Parte da significância de Death and the King’s
Horseman é a demonstração de que esse processo se inicia com a
linguagem.
Em conclusão, para além de sua função na tradição
africana, a oralidade também serve como um paradigma para a
literatura escrita nas línguas europeias, uma literatura cuja marca
distintiva é a busca pela condição de expressão oral mesmo dentro
das fronteiras estabelecidas pelas convenções literárias ocidentais.
5
Construímos essa ideia/conceito para que seja melhor compreendida como
o equivalente a black-face, mas relacionada aos indígenas do Brasil no
sentido de sua caracterização subjetiva.
233
romance Bug-Jargal em que Victor Hugo tomaria partido dos
revolucionários haitianos contra os senhores franceses (RISÉRIO,
1993).
O antropólogo Antônio Risério considera que o
apagamento do Negro na literatura brasileira ou seu aparecimento
como figura secundária, rara e deformada, adviria (a) do fato de
que a energia contestatória se concentrava na disputa em torno do
tráfico e não propriamente na vida escravizada6 e (b) da lógica
interna da série literária: a formação europeia dos escritores, sua
pertinência histórica a modelos literários específicos e ao seu
receio de serem vistos como eivados de casta, quer dizer,
maculados de sangue negro.
Ao que parece a situação se altera um pouco quando no
plano político o escravizado passa a ser matéria interna
(RISÉRIO, 1993), especialmente com a edição do Bill Aberdeen
(1845), que concedia ao almirantado inglês o direito de aprisionar
e de julgar, como piratas, os comandantes dos navios brasileiros
6
Quanto ao fato de a energia contestatória se concentrar na disputa em
torno do tráfico, Raymond Sayers (1958) assinala que boa parte da
literatura dos séculos XIX e XX no Brasil é referenciada pelos ideais e
acontecimentos relativos ao abolicionismo (iniciado no século XVIII). Tais
acontecimentos atingiram a prosa periódica, a poesia e o romance também
do século XVIII por intermédio de autores que se destacaram como
precursores desse idealismo, tais como Frei Gaspar da Madre de Deus
(1715-1800), Hipólito da Costa (1774-1823), João Severino Maciel da
Costa (1769-1832), marquês de Queluz, além de José Bonifácio de
Andrade e Silva (1765-1838); Evaristo da Veiga (1799-1837); Maciel
Monteiro (1804-1868); José da Natividade Saldanha (1795-1830); José
Gonçalves de Magalhães (1811-1882) e Antônio Gonçalves Teixeira e
Sousa (1812-1881).
234
que transportassem para as Américas pessoas capturadas no
continente africano.
Então, no segundo quartel do século XIX, a temática da
escravidão começou a ganhar relativo espaço na literatura
nacional, especialmente com o poeta maranhense Gonçalves Dias
(1823-1864) e suas obras Meditação (1846), A escrava (1846) e A
Tempestade (1848). Gonçalves Dias era filho de uma escravizada
e sua obra considerada de maior relevância se situa no campo do
indianismo (PEREIRA, 2018, s/p).
Embora existam diferenças estruturais entre elas, O navio
negreiro (1869) de Castro Alves e As vítimas-algozes (1869) de
Joaquim Manoel de Macedo são exemplos de como o Negro era
concebido naquela época e que não-lugar a literatura lhe
concedia.
Porém, bem diferente da forma adotada por seus
contemporâneos românticos, Maria Firmina dos Reis, com Úrsula
(1859), mais do que dar voz aos escravizados, ouve e registra o
que eles têm a dizer, pois também se reconhece num lugar à
margem e, como é possível perceber na tradição do Atlântico
Negro (2012) por Paul Gilroy, confere uma forma estética ao
sofrimento que recolhe. Observamos que a autora Maria Firmina
se recusa a endossar o modelo do Negro escravizado rebelde e, ao
mesmo tempo, generoso, tal como o Bug Jargal, bem como
promove um giro de 360º relativamente a obras românticas tais
como O Guarani (1857) de José de Alencar e Simá (1857) de
Lourenço da Silva Araújo e Amazonas.
Eduardo de Assis Duarte ao citar Luísa Lobo concorda
quando a autora defende que a literatura negra no Brasil se inicia
quando o negro passa de objeto da escrita a sujeito do fazer
literário, em face do que Maria Firmina dos Reis seria a pioneira
dessa tradição literária, com o romance Úrsula (LOBO Apud
235
DUARTE, 2017, p. 201). Eduardo de Assis Duarte7 corrobora tal
afirmação ao dizer que a prefalada escritora teria publicado o
primeiro romance do que se concebe por literatura afro-brasileira
(DUARTE, 2017, p. 201). Por outro lado, também em 1859,
Luiz Gama publica Primeiras Trovas Burlescas, que, conforme
Ligia Ferreira, foi a primeira obra poética em que um escritor
assume sua negritude (FERREIRA Apud DUARTE, 2017, p.
201).
Do ponto de vista temporal, a literatura afro-brasileira se
estenderia de Domingos Caldas Barbosa (século XVIII) à
contemporaneidade. Duarte considera que a publicação dos
Cadernos Negros (1978) teria contribuído em muito para a
configuração discursiva desse conceito, caracterizado de modo
predominante pelo protesto contra o racismo, na linha da
tradição militante do movimento negro, aliado à tematização do
negro, individual e coletivamente, sua inserção social, memória
cultural e à busca de um público afrodescendente (DUARTE,
2017, p. 201).
O autor ainda entende que da militância e celebração
identitária propugnada nos Cadernos Negros8 ao negrismo
7
O ensaísta, professor e pesquisador Eduardo de Assis Duarte organizou os
quatro volumes da obra Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia
crítica (2011) em que apresenta apanhado da larga produção literária que se
inicia na colônia e segue até a contemporaneidade, produções essas que,
mesmo fora da perspectiva canônica, são tomadas pelo valor estético,
histórico, sociocultural e político na atualidade.
8
Cuti, Miriam Alves e Conceição Evaristo tiveram vários textos literários
publicados nos Cadernos Negros.
236
modernista9 descomprometido e tendente ao exótico, passando
por escritos distantes tanto de uma postura como de outra10, a
literatura negra é diversa, o que, no mínimo, enfraqueceria e
limitaria a eficácia do conceito11 como operador teórico e crítico,
em face do que ele propõe o conceito de literatura afro-brasileira,
pois o termo afro-brasileiro, por sua própria configuração
semântica, remeteria ao processo de hibridação étnica e
linguística, religiosa e cultural em curso no Brasil desde a chegada
dos primeiros africanos (DUARTE, 2017).
Eduardo Duarte entende que tal conceito não possuiria
um caráter essencialista, pois caracterizado por
9
Jorge de Lima, Raul Bopp, Menotti Del Pichia, Cassiano Ricardo e os
escritores do grupo mineiro Leite Criôlo, entre outros são exemplos de
autores filiados ao negrismo modernista.
10
Como exemplos de escritores e poetas menos comprometidos como uma
linha militante, Duarte cita Edimilson de Almeida Pereira, Ronald
Augusto, Muniz Sodré, Nei Lopes, Joel Rufino dos Santos, Júlio Emílio
Braz, Rogério Andrade Barbosa e Heloisa Pires de Lima.
11
Além dos precursores (Bastide, Sayers e Rabassa), o autor ainda cita
Benedita Gouveia, que conferiria à literatura negra um conceito que não
consideraria o pertencimento étnico e a perspectiva autoral; Domício
Proença Filho (2004), que buscaria uma solução conciliatória ao assinalar a
existência de uma literatura negra em sentido estrito (aquela feita por
negros ou afrodescendentes) e outra em sentido amplo (aquela feita por
quem quer que seja, desde que reveladora de dimensões peculiares aos
negros ou aos descendentes de negros). Já Zilá Bernd (1987, 1988)
compartilharia a posição conciliadora de Proença Filho. Lobo defenderia
que o conceito não deve incluir a produção de autores brancos, e,
juntamente com Brookshaw (1983), entende ser tal literatura apenas aquela
“escrita por negros” (DUARTE, 2017).
237
uma formulação mais elástica (e mais produtiva), a
abarcar tanto a assunção explícita de um sujeito
étnico – que se faz presente numa série que vai de
Luiz Gama a Cuti, passando pelo “negro ou mulato,
como queiram”, de Lima Barreto –, quanto o
dissimulado lugar de enunciação que abriga Caldas
Barbosa, Machado, Firmina, Cruz e Sousa,
Patrocínio, Paula Brito, Gonçalves Crespo e tantos
mais (DUARTE, 2017, p. 201-202).
238
uma voz autoral afrodescendente, explícita ou não no
discurso; temas afro-brasileiros; construções
linguísticas marcadas por uma afro-brasilidade de
tom, ritmo, sintaxe ou sentido; um projeto de
transitividade discursiva, explícito ou não, com vistas
ao universo recepcional; mas, sobretudo, um ponto
de vista ou lugar de enunciação política e
culturalmente identificado à afrodescendência, como
fim e começo (DUARTE, 2017, p. 202).
239
problemática inerente à vida e às condições de existência do
Negro no Brasil (DUARTE, 2017).
Por fim, no que diz respeito ao público específico,
Eduardo de Assis Duarte afirma que, marcado pela diferença
cultural e pelo anseio de afirmação identitária, esse fator comporia
a “faceta algo utópica do projeto literário afro-brasileiro,
sobretudo a partir de Solano Trindade, Oliveira Silveira e dos
autores contemporâneos” (DUARTE, 2017, p. 213).
243
Seria interessante se pensássemos num conceito chamado
literatura branca ou euro-brasileira, ou seja, a produção na qual o
branco adotasse uma visão de mundo própria e distinta da dos
negros, afirmando-se tal produção como um discurso da diferença
da branquitude, em que, inclusive, ela poderia reconhecer que
suas conquistas são menos por mérito e muito mais por
privilégios. E então teríamos um ponto de vista branco, temáticas
brancas, autoria branca, linguagem branca. Contudo, a literatura
de que cogitamos já existe, apenas não carrega o nome que
acabamos de indicar porque é tomada como universal e não
particular, como a literatura afro-brasileira. Alguém saberia dizer
qual é o ponto de vista branco? Ou quais são as temáticas brancas?
E por que seria importante a instituição de tais categorias?
Os temas que os teóricos geralmente indicam como
associados ao conceito de literatura afro-brasileira dizem respeito
ao resgate da história do povo negro, à denúncia da escravidão e
de suas consequências, à glorificação de alguns heróis, às tradições
culturais ou religiosas transplantadas para o novo mundo, aos
vínculos com a ancestralidade africana, bem como quanto à
história contemporânea de exclusão.
Contudo, embora não seja uma enumeração taxativa, os
critérios acadêmicos para o fim de se identificar e de se categorizar
a literatura afro-brasileira acabam impondo uma nova máscara de
flandres aos Negros que desejam ser reconhecidos como escritores;
ao mesmo tempo que ensejam nova forma de colorismo ou de
pigmentocracia entre o nosso povo: quanto mais critérios forem
identificados, mais negro será o texto e então mais valorizado;
quanto menos critérios, menos negro e menos valorizado será o
texto, de forma que seu autor, embora se autodeclare negro, não
terá espaço nem entre a literatura branca nem entre a literatura
negra e poderá, inclusive, ser considerado um traidor dos seus
244
porque escreve sob o impulso de outras formas não reconhecidas
pelo conceito.
Esses critérios indicados como ponto de vista e temática
que apontam um discurso da diferença, ainda merecem estudos,
mas nos arriscamos a dizer, com Mbembe, que, na maior parte
dos casos, a diferença é o resultado da construção de um desejo e
de um trabalho de abstração, de classificação, de divisão e de
exclusão, ou seja, um gesto de poder que, por conseguinte, é
interiorizado e reproduzido nos gestos da vida de todos os dias,
inclusive pelos próprios excluídos (MBEMBE, 2001). Porém, esse
desejo de diferença emerge precisamente dos lugares onde se vive
mais intensamente a experiência da exclusão, como no caso da
literatura, como demonstra a pesquisa da professora da
Universidade de Brasília, Regina Dalcastgnè (2017). Nessas
circunstâncias, a proclamação da diferença, diz Mbembe, é a
linguagem invertida do desejo de reconhecimento e de inclusão
(MBEMBE, 2001).
Consideramos, portanto, que o conceito de literatura
negra ou afro-brasileira deixa intacto o racismo da literatura
(branca), pois enseja a criação de uma espécie de quartinho de
empregada ou de continuidade da senzala para os autores negros
ou mesmo um lugar que não esses. Porém, grande parte da
literatura produzida pelos autores negros, não é um apartado da
produção nacional, mas um giro nesse campo.
À medida que não se questionam os pressupostos dessa
literatura (branca) e nem a possibilidade de seu rompimento a
partir das novas criações literárias ― novas no sentido de
ameaçarem a literatura aí posta, o chamado cânone ― mas, pelo
contrário, se inventa outra vertente da literatura brasileira a partir
de um suposto particularismo cultural associado aos Negros
manchados de caneta tinteiro, se reafirma o racismo na sociedade
245
brasileira: os lugares de brancos e de Negros permanecem os
mesmos, pois há uma casa grande (literatura) e uma senzala
(literatura afro-brasileira). E, obviamente, a alguns escritores ou
poetas desse último grupo se permite ascensão, de acordo com as
leis do mercado, mas sempre com o beneplácito da lei daqueles
que mandam e que reclamam do Negro que os reconheça como
senhor.
Assim, o branco permanece no lugar do branco e o negro
no lugar permanente do negro. Todavia, o fato de a subjetividade
do Negro ser negada pela sociedade patriarco-racista não significa
que não tivessem subjetividade. Essa simplesmente estava
plasmada em outras formas de arte, incluída a produção poética e
literária não reconhecidas pela gente escravizadora.
Há que se ter uma atenção aqui, porque, ao se afirmar um
conceito de literatura afro-brasileira com as primogenituras de
Maria Firmina dos Reis (1859); Luís Gama, especialmente no
livro Trovas Burlescas (1859) ou mesmo Caldas Barbosa e
eventualmente Teixeira e Sousa, está se fixando, com uma espécie
de datação por carbono 14, a época em que o Negro atinge as
formas consideradas originariamente brancas de expressão artística
(o romance e certo tipo de poesia). Obviamente o trabalho de
datação é muito importante e não se nega a fundamentalidade
desses autores para a literatura nacional; reiteramos é que a
produção artístico-literária da gente escravizada e dos Negros não
pode ter sua abrangência reduzida ao alcance de formas tidas
como brancas quando já no navio tumbeiro, nos referimos a
Middle Passage, nossos modos de arte se fizeram presentes ou
foram inventados na pressão de se conviver num espaço reduzido
com gente de línguas diferentes, com modos diferentes de estar no
mundo, o que antecipou, inclusive, várias formas que se tomaram
como brancas-modernas.
246
Esse conceito de literatura afro-brasileira será distinto do
texto primeiro, aquele que cria o Negro, aponta-lhe o dedo e o
encerra num discurso de difícil rompimento apenas por que
recolhe os textos que cataloga no sentido propugnado pelo texto
segundo? Ou será igual ao texto primeiro na medida em que
pretende dizer quem é o outro da literatura, ou seja, a literatura
afro-brasileira como o outro da literatura brasileira?
Pois bem, mais do que aprisionamento, a literatura
produzida pelos povos da diáspora africana, assim como o orixá
Exu, tem o sentido de Oritá Metá/Igbá Ketá, ou seja, o que o
dimensiona como o em construção permanente porque
inacabado, como potência que é e poderá vir a ser, de modo a
provocar mudança em toda e qualquer situação, como força
dinâmica do desequilíbrio e especialmente do conflito e da
contradição.
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cultural freedoms. Portsmouth: Heinemann, 1993.
249
250
HISTÓRIA DA ÁFRICA: COLONIALISMO,
RESISTÊNCIAS E ORGANIZAÇÃO POLÍTICA
Gustavo de Andrade Durão1
1
Doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Pós-doutorado pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro. Atualmente é professor da Universidade
Estadual do Piauí – UESPI (Campus São Raimundo Nonato). E-mail:
gdurao@outlook.com
251
obrigatório o ensino de História da África e afro-brasileira nas
escolas. Para a sociedade brasileira a Lei trouxe a deflagração do
nosso racismo institucional, por outro lado, para os estudos
africanos trouxe a necessidade de revisão das pesquisas
(ALBERTI, 2013, p. 85-6).
Tendo em vista esses desafios, buscou-se trabalhar um
breve apanhado dos recortes historiográficos da História da África
contemporânea, passando para a compreensão do legado colonial
(e o debate em si do imperialismo) e finalmente definir alguns dos
principais exemplos de resistência contemporânea ao
colonialismo.
252
Laura de Melo e Souza e Flavio Gomes (SWEET, 2007, p.20-
22).
A História da África tal como percebemos hoje se mantém
atrelada a uma grande pluralidade de questões que vão desde as
primeiras civilizações africanas nos períodos antigos até às novas
reformulações da geopolítica no continente. Mas foi escolhido o
período contemporâneo por entender-se que as resistências ao
colonialismo são igualmente importantes em relação as
resistências à escravidão.
A própria disciplina em questão se fundamentava nos
processos de constituição do nacional e por isso os estudos sobre o
continente ainda cumpriam a agenda da metrópole. Sendo a
interpretação e a análise dos processos econômicos, sociais e
políticos os estudos de África só poderiam entrar no debate, na
medida em que estivessem em condição de igualdade com os
estudos da História Mundial (CURTIN, 1982, p.39).
Mais uma vez, o racismo impossibilitava as pesquisas mais
aprofundadas, pois o africano era associado, ainda, ao atraso ou ao
fracasso civilizacional. Aliado a isso, a ciência histórica permanecia
muito representada pela escrita, desprezando a oralidade africana,
fonte fundamental de recorte e manutenção das tradições. Muito
embora a definição de “povos sem História” de Hegel já tivesse
caído por terra, somente a partir de 1960 o racismo científico foi
deixado de lado pelos pesquisadores e historiadores (CURTIN,
1982, p. 41).
Na maioria das vezes os conteúdos referentes ao
Imperialismo e a conferência de Berlim são postos em evidência e
não há qualquer tipo de referência ao questionamento dos
africanos em relação ao contato colonial. Mais do que apagar a
resposta do colonizado, não se leva em consideração o esforço
empreendido por muitos povos em manter suas tradições e um
253
status quo diante da penetração estrangeira nos seus territórios
(GUEYE; BOAHEN, 2010, p. 130).
Através de rápidas apreciações sobre a partilha vamos
começar a compreender as resistências ou mesmo os silêncios
dessa resistência na historiografia africana. Como se sabe a
Conferência foi realizada em Berlim de 15 de novembro de 1884
até 26 de novembro de 1885. Mais uma vez havia uma
justificativa humanitária (e mesmo civilizatória), contudo, os
motivos econômicos podem ter sido o estopim para os debates
sobre a exploração do continente. Assim: “Adotaram-se resoluções
vazias de sentido, relativas à abolição do tráfico escravo e ao
bem-estar dos africanos.” (UZOIGWE, 2010, p.33)
2
UZOIGWE, Godfrey N. Partilha europeia e conquista da África:
apanhado geral. In: In: KI-ZERBO, J. (Org.). História Geral da África,
vol. VII. África Sob Dominação Colonial (1880-1935) Brasília: UNESCO,
2010. p.34.
254
A clássica representação da iconografia da Conferência
leva a pensar o papel de protagonismo dos políticos e poderosos
de países como Alemanha, França, Inglaterra e Bélgica (figura 1).
Essa concepção esteve tão arraigada no pensamento intelectual
que não temos a noção de “povo africano” ou mesmo de etnias
específicas como Wolofs ou Igbos.
Interessante lembrar o quanto a História Econômica
influenciou nossas análises sobre o continente africano visto que,
somente com a escravidão ou com a interferência colonial, é
possível mensurar a devassa nos diversos países africanos. As
riquezas culturais dos territórios africanos eram pouco levadas em
consideração ratificando o eurocentrismo nas análises desse
período da História.
De acordo com a estudiosa Susan Stanford Friedman foi a
noção de modernidade que produziu os binarismos tais como
Ocidente/Oriente, Primeiro Mundo/ Terceiro Mundo, Oeste/
Resto. Essas conceituações impregnaram o pensamento intelectual
e toda produção responsável por representar a África e os
africanos na perspectiva da autora (FRIEDMAN, 2006, p. 89).
Os diamantes descobertos na África do Sul, bem como o
ouro e o cobre no Zimbábue foram fatores igualmente
preponderantes nessa aproximação como base para a exploração.
A noção de que fosse possível enriquecer facilmente se combinava
ainda a de que havia uma grande aventura civilizatória a ser feita
no continente “sombrio” (BITTENCOURT, 2003, p.4).
De alguma forma a colonização e a “divisão” do
continente tiveram repercussões tanto negativas quanto positivas.
Uma historiografia mais tradicional destaca de que maneira a
presença europeia abriu a África para o mundo, possibilitando
ainda a instauração dos modernos Estados Africanos. A
instauração de instituições também foi algo preponderante por
255
trazer um novo sistema judiciário ao mesmo tempo em que
impunha toda uma burocracia (BOAHEN, 2009, p.922-3).
Mais uma vez o colonialismo aparece como uma chave de
interpretação importante visto que teve claramente a função de
separar os grupos (“tribais”) para controlar não só os corpos, mas
as mentalidades. De modo mais enfático é possível dizer que “O
colonialismo pôs fim a tudo isso e privou assim os Estados da
África da possibilidade de adquirir experiência no domínio da
diplomacia e das relações internacionais.” (BOAHEN, 2009, p.
927).
Uma das principais agendas do colonialismo foi vitoriosa,
pois ela visava privar os africanos de toda e qualquer liberdade.
Talvez por conta desse fator ainda seja tão difícil adentrar nas
resistências africanas diante do forte aparato colonial. Atualmente,
já se faz uma revisão das relações coloniais visto que não foram tão
estanques como algumas análises querem mostrar.
O próprio patriotismo dos colonizadores foi uma
justificativa para o imperialismo e a negligência em relação às
línguas locais cumpria justamente esse papel de “deslegitimar” a
cultura dos povos nativos. As missões vinham cumprir justamente
esse papel de legitimar o contato e de evitar qualquer tipo de
resistência à assimilação (KHAPOYA, 2015, p.144-5).
O século XX foi fundamental nessa “descoberta” da África
por parte da Europa e um dos grandes impactos culturais
aconteceu no campo religioso. A África do Norte e parte da África
Ocidental Francesa foram palco de uma complicada conjuntura.
3
O Pan-africanismo foi uma movimentação envolvendo pensadores negros
norte-americanos, caribenhos e africanos os quais desde 1919 organizaram
diversos congressos gerando uma conscientização política para orientar um
colonialismo mais justo. Somente a partir de 1945 as perspectivas políticas
mais radicais foram se concretizando ocasionando o debate de condenação
ao colonialismo. Os principais iniciadores do pan-africanismo foram o
jamaicano Marcus Garvey e o norte-americano W.E.B. DuBois
(MACEDO, 2015, p.157-8).
259
Na segunda metade do século XIX tem lugar uma
nova onda de colonização europeia, a qual
denominamos ‘era imperialista’. Ela instaura o
domínio das potencias europeias sobre grande parte
do mundo, ao mesmo tempo que afirma a
superioridade da civilização da qual se apoia.
(FERRO, 2016, p.14).
4
“During the world wars, especially the second, colonial governments in
need of recruits had to make some appeal, as in India, to ‘national’ feeling,
and when Nigerian troops were fighting far away from home, it was easier
to think, or talk, of ‘Nigeria’ as an entity. Yet on the whole, few Nigerians
262
Essa perspectiva é interessante por mostrar como nem
sempre as relações foram tão transversais, podendo observar as
interseções entre as civilizações africanas e europeias.
Compreender as “zonas de contato” é também perceber onde se
integram culturas díspares e se desenvolvem relações
extremamente assimétricas de assimilação e dominação (PRATT,
1999, p.27).
A historiografia africana demonstrava que o desejo de
inserir os povos do continente, buscando entender as dinâmicas
dos países, ocorria levando em consideração a participação nas
lógicas geopolíticas e a vontade de exploração de parte dos seus
recursos. Os primeiros relatos eram certamente baseados nos
preceitos preconceituosos de Friedrich Hegel de que a África era
um continente sem História. Aliado a isso, havia o problema em
relação ao islamismo, representando a religião da pior maneira
possível para não gerar dúvidas quanto aos erros morais de seus
adeptos. Nas palavras da professora Patricia Teixeira Santos:
5
Os marabus eram os líderes religiosos com forte influencia das vidas das
pessoas. Eram os auxiliares dos ritos religiosos e dos magistrados nas
sociedades islâmicas da África Ocidental Francesa.
268
A imagem de Samory Touré foi tão importante para essa
África contemporânea que, em meados do século XX, o
presidente do Mali adotou o nome de Sekou Touré em
homenagem ao líder malinês, gestando novamente a ideia de
organização de uma unidade africana comum. Os movimentos de
independência na África Ocidental francesa em 1960 adotavam a
personificação desse mito visando a aglomeração dos Estados
africanos em memória de um antigo império.
Vale lembrar ainda que o Império Mandinga foi um dos
maiores da História da África tendo na sua composição mais de
um milhão de pessoas e ocupou o território do que seria hoje
Guiné, Mali, Serra Leoa e Libéria (MACEDO, 2015, p.129-130).
Desse modo a relação entre os contextos fica bastante clara
quando se percebe as relações de oposição existentes dentro desses
vastos Impérios africanos:
269
Passando por cima das divergências étnicas esse líder
religioso tuculeur6 consegue promover uma união nunca antes
vista nesses territórios, tendo o islamismo mais uma vez um papel
preponderante nessas uniões. Apesar das dificuldades econômicas
o papel de liderança de Tall foi importante para frear a
aproximação francesa no período.
6
Os tuculeurs foram líderes influentes na África Ocidental tendo um papel
de manutenção das tradições sunitas nos territórios africanos de expressão
francesa, sobretudo, no Senegal.
7
Disponível em: https://alchetron.com/El-Hadj-Umar-Tall Acesso em: 18
de nov. 2018.
270
amalgamando em função da oposição aos ideais colonizadores
exógenos (WALDMAN; SERRANO, 2010, p.312-3).
De uma maneira ou de outra, o estudo da vida de alguns
desses líderes religiosos demonstra a existência de vozes
dissonantes dentro dessas sociedades africanas no auge das
investidas colonizadoras da era contemporânea. O fim de Omar
Tall não representou o fim da resistência, mas o quanto as
diferenças tecnológicas se acentuaram em um contexto de
decadência econômica africana.
“Sua morte aos 65 anos, em 1864, agravaria as inúmeras
contradições no interior de seu império, que não consegue
consolidar-se, incapaz de reforçar a ideia de integração das
populações submetidas.” (KI-ZERBO, 1991, P. 22-26)
O terceiro ícone dos processos de resistência escolhido é
Muhammad Ahmad e falar de sua ascensão como líder no Sudão
não é tarefa nada fácil, contudo, ele foi precursor na divulgação da
resistência quando propagou a ideia de luta contra as noções
divulgadas pelos estrangeiros. Em 1881, foi proclamado mahdi
liderando a revolta Mahdista na mesma região, em oposição ao
contato britânico e suas imposições políticas e econômicas. O
estado mahdista ainda merece atenção nessa mesma perspectiva,
pois apropriou-se das noções do islamismo dando um sentido de
unidade ao povo no Sudão (SANTOS, 2013, p. 66-7).
Nascido por volta do ano de 1834, o menino mahdi teria
começado desde cedo seus estudos no islamismo, destacando-se
por sua grande inteligência nos ensinos ligados ao sufismo.
Considerações finais
As resistências africanas contemporâneas dizem muito
sobre a História dos vencidos, em uma perspectiva de contato
colonial, subtraindo a falsa ideia de aceitação dos processos de
violência e dominação perpetrados pelos colonizadores europeus.
Ainda se faz necessário a retomada desses processos levando em
consideração as imposições coloniais em relação ao surgimento
das estruturas de unidade (e solidariedade) surgidas no seio de
inúmeras sociedades africanas. O estudo da “resistência” além de
uma interpretação diversa da historiografia tradicional foi capaz
273
de devolver aos sujeitos o protagonismo de suas próprias
narrativas.
Precisamos eleger outros métodos de análise e rever as
perspectivas historiográficas a respeito das civilizações africanas.
Somente elegendo novas formas de categorização das análises
iremos romper com as interpretações binárias privilegiando os
centros de divulgação do saber/ poder. As narrativas tem poder e
durante muito tempo lemos e aprendemos sobre a inexistência
das resistências, por isso hoje precisamos rever as estórias
contadas, para que a História possa representar o plural e abarque
as especificidades dos povos, culturas e civilizações. Nas palavras
dos pensadores M’Baye Gueye e Albert Adu Boahen:
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277
278
HISTÓRIA DA AMAZÔNIA NEGRA E ENSINO DE
HISTÓRIA NO NORTE BRASILEIRO
Heraldo Márcio Galvão Júnior1
Arcângelo da Silva Ferreira2
1
Professor Assistente B na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará
(Unifesspa). Graduado em História pela Unesp. Mestre em História pela
Unesp. Doutorando em História pela UFPA. Bolsista Prodoutoral CAPES.
Bolsista do Programa de Doutorado Sanduíche CAPES - École des hautes
études en sciences sociales/Paris. e-mail: heraldogalvaojr@gmail.com
2
Professor Assistente B na Universidade do Estado do Amazonas. Graduado
em História pela UFAM. Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia
pela UFAM. Doutorando em História pela UFPA.
e-mail: asf1969@outlook.com
3
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=cvVT9vlYdvE&t=11s
- WebSérie Novos Olhares. Direito à cidadania. Zalika Produções.
279
estudos que contemplam análises das diferenças sociais a partir da
cor da pele e/ou etnia4.
Entretanto, apesar do aumento considerável do número
de estudos feitos a partir desta nova perspectiva, cujo início se deu
por volta de 1980, a História ensinada nas escolas brasileiras
continuou, desde o século XIX – salvo reorientações de cunho
ideológico e historiográfico –, a valorizar fatos, feitos e
personagens relacionados à região sudeste do Brasil, tendo como
focos da narrativa São Paulo e Rio de Janeiro, cujas hegemonias
políticas e econômicas fizeram com que fossem construídas
noções de polos irradiadores da história nacional. É como se a
história desta região se confundisse com a história nacional, o que
gerou uma exclusão, intencional ou não, de outras histórias do
nosso vasto país. Marcos Lobato Martins (2010), ao analisar as
perspectivas regionais na produção de materiais didáticos de
história, aponta esta preponderância afirmando que São Paulo
torna-se Brasil quando se fala em café, industrialização, imigração,
trabalho, conflito social urbano, movimentos sindicais,
vanguardas artísticas, entre outros. Esta abordagem que enaltece
São Paulo, segundo o autor, acaba por admitir uma perspectiva de
negatividade às outras regiões brasileiras, de falta, de carência em
comparação ao êxito paulista, isto é, “O ‘espelho São Paulo’ era o
instrumento por meio do qual as diversas regiões brasileiras
deveriam buscar a autocompreensão e a ação transformadora”
(MARTINS, 2010, p. 142). A própria publicação da obra, pelo
4
Sobre estes aspectos, ver: REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e
conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989. REIS, João José. Poderemos cantar, brincar, folgar: o protesto
escravo nas Américas. Afro-Ásia, nº 14, p.115-117, 1983; GOMES, Flávio
dos Santos; REIS, João José (orgs.). Liberdade por um fio - História dos
quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
280
Ministério da Educação, intitulada “História da Educação do
Negro e outras histórias” (2005) não considera a escravidão ou a
história do negro em âmbito amazônico e reproduz o dito
anteriormente.
Se, para a psicanálise, olhar-se no espelho é identificar-se a
partir de um processo simbólico da estruturação do eu, imagine o
leitor olhar-se no espelho e ver o rosto de outra pessoa (LACAN,
1966).5 Como podemos nos estruturar, nos identificar e nos
reconhecer a partir da imagem de outrem? Com esta questão
posta, somada aos movimentos sociais que passaram a exigir
políticas públicas que preservassem suas memórias e que
valorizassem suas histórias e práticas culturais, vemos o
surgimento e defesa de historiografias regionais, como é o caso da
amazônica, que busca modificar a visão mitificada e estereotipada
da região. Ao verificar a incidência da palavra “Amazônia” nos
jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo no século XX,
nota-se que as notícias são em sua maioria acerca do imaginário
exótico, das florestas, dos grandes animais, dos perigos, dos
indígenas, do “inferno verde”6, rios, lendas, folclore, grandes
projetos econômicos (essencialmente no período da ditadura civil-
militar), rodovias, desmatamento, hidrelétricas, sustentabilidade,
poluição, este últimos a alterar a paisagem “natural”. Esta história
5
Ver: LACAN, J. Le stade du miroir comme formateur da la fonction du
Je. In: ______. Écrits. Paris: Seuil, 1966
6
Herdeira da visão etnocêntrica “inferno verde” é uma acepção marcada
pelo determinismo geográfico (ou geografismo). Desde os cronistas do
século XVI até os literatos e cientistas sociais do nosso século as
representações e os imaginários sobre a Amazônia exaltam, de forma
exótica, a Natureza em detrimento da cultura. Assim, podemos verificar,
por exemplo, nos estudos de Euclides da Cunha sobre a referida região a
natureza engolindo o homem.
281
regional a partir de materiais didáticos e paradidáticos viriam
então preencher a lacuna deixada pela história nacional presente
nos materiais distribuídos pelo Programa Nacional do Livro
Didático, do Ministério da Educação, que se confunde com a da
região sudeste.
Tais questões se tornam ainda mais relevantes quando
pensamos na existência de uma Amazônia negra. Chega a causar
espanto em muitas pessoas o fato de se discutir este tema, afinal,
quando se pinta a Amazônia, o senso comum aponta para o
indígena e apenas para ele. Foi o questionamento feito por
Marcela Bonfim com sua exposição de fotografia após se mudar
para o Norte. Quando suas fotografias foram expostas no Norte,
temos o fortalecimento da identidade e, quando no sudeste, além
da primeira, choque! Escravidão no Norte? Pois bem, este tema
parece restringir-se a uma historiografia local e passar longe dos
materiais didáticos e manuais gerais de História do Brasil.
Amazônia Negra
Alguns dados já nos permitem dizer a imensa presença
negra na Amazônia. Segundo dados da Fundação Cultural
Palmares, só nos estados do Pará, Amapá, Tocantins e Maranhão7
existem 788 das 2547 comunidades quilombolas certificadas no
país.
Este quadro revela que, até a década de 1970, a
historiografia pouco se preocupou com a escravidão na região,
haja vista que se acreditava que o trabalho indígena ocorreu em
maior escala que o do escravo africano. Estudar a escravidão
africana no Brasil era atentar-se para os locais onde ela foi mais
7
Mesmo que o estado do Maranhão não faça parte da região norte
oficialmente, aqui o será considerado devido à História do Grão-Pará.
282
intensa, como no sudeste e nordeste. A partir desta década, uma
historiografia renovada da escravidão passou a produzir estudos
sob novas óticas, fontes e metodologias. Do Pará, por exemplo, é
publicado em 1971, uma das primeiras obras cujo foco recaiu
sobre o negro da Amazônia. Em parceria firmada entre a
Fundação Getúlio Vargas e a Universidade Federal do Pará, é
publicado o livro do paraense Vicente Salles, “O negro no Pará,
sob o regime da escravidão”, obra em que o autor historiciza a
“presença do negro” em uma região administrativa denominada
estado do Maranhão e Grão-Pará8. Salles buscou não fazer uma
história da escravidão, mas a presença do negro enquanto força de
trabalho, como fator étnico, como elemento aglutinador da
cultura amazônica, ou seja, o negro africano agindo e interagindo
no contexto a partir de suas lutas e vicissitudes. Outrossim, traz
uma questão: o ínfimo conhecimento que a historiografia
brasileira possuía “sobre o papel do negro na sociedade
escravocrata paraense e, porque não dizer, na Amazônia”
(VERGOLINO, 2004, p.05). A partir de então, estudos com
8
É sabido que a colonização da Amazônia é peculiar se comparada as
demais regiões da América portuguesa. Senão vejamos: o mote inicial de
sua ocupação foi militar, objetivando proteger a região dos “invasores”
franco-batavos; por quase todo o processo de colonização sua economia,
essencialmente estruturada na extração das “drogas do sertão”, foi
alavancada pela escravidão indígena; foi administrada através de legislação
especifica para sua realidade, compreendendo suas relações humanas e
circunstâncias geográficas, vazando certa autonomia político-
administrativa, verifica-se isto através de suas denominações, isto é, Estado
do Maranhão (1621); Estado do Maranhão e Grão-Pará (1654); Estado do
Grão-Pará e Maranhão (1751); Estado do Grão-Pará e Rio Negro (1772).
A partir da segunda metade do século XVIII, para suprir a demanda da
força de trabalho escrava chegaram as primeiras levas de cativos africanos.
283
características parecidas foram sendo produzidos, com especial
atenção para o curso de História da Universidade Federal do
Pará9, criado na década de 1950, que, segundo a professora
Magda Ricci10, era nesta fase bastante ligado à antropologia mas
que começava a despontar por um viés mais historiográfico e
buscar sua autonomia. Talvez um exemplo emblemático, sobre a
relação do curso de História da Universidade Federal do Pará com
a temática das trajetórias históricas dos negros na Amazônia, esteja
inscrito na publicação da coletânea organizada pelo professor
Fernando Arthur de Freitas Neves e Maria Roseane Pinto Lima:
Faces da História da Amazônia. Nessa volumosa obra, lançada
originalmente em 2006, consta uma parte direcionada a
“Escravidão Negra na Amazônia e Discursos Abolicionistas”, com
capítulos articulados por três pesquisadores: Cleodir da Conceição
Moraes, verifica na historiografia paraense e nas fontes visitadas
que o escravo negro passou a se fixar definitivamente na
Amazônia (séculos XVII, XVIII, XIX) a partir da demanda de
trabalhadores “tanto nas áreas de ocupação mais tradicional da
agricultura, como nas áreas caracterizadas pela existência da
criação de gado” (2006, p.309) como, por exemplo, no Marajó.
9
Em 2004, a editora Paka-Tatu lançou o livro O negro na formação da
sociedade paraense, de Vicente Salles. Reunião de palestras e artigos que já
haviam sido publicados, outros que àquela conjunta eram inéditos,
elaborados no período 1976-2002. Trata-se de obra inovadora, posto que
Salles lança mão de vasta e diversa documentação para reconstruir fatos
relativos ao folclore, à religiosidade de matriz africana na perspectiva de
trazer a lume pessoas anônimas por meio de suas formas de resistências,
inclusive, simbólicas.
10
História em um curso regular. Magda Ricci.
http://www.ufpa.br/historia/index.php?option=com_content&view=article
&id=2&Itemid=2
284
Nessa medida, Moraes reescreve parte da trajetória
histórica de um mulato, escravo, vaqueiro: Gabriel José
Quaresma. “Desta forma, Gabriel e muitos outros de condição
semelhante, forjaram histórias particulares de liberdades nos
campos do Marajó e muito temos a aprender com eles sobre o que
era ser escravo no Grão-Pará oitocentista” (MORAES, 2006,
p.338). Na mesma coletânea temos o trabalho do professor José
Maia Bezerra Neto: analisando as influencias das ideias
abolicionistas desde as preposições de Joaquim Nabuco, Neto
verifica os projetos abolicionistas relativos as visões da
Cabanagem, no contexto do século XIX e conclui: “(...), afinal de
contas, os abolicionistas paraenses estavam mais para herdeiros
das visões de mundo dos que derrotaram a Cabanagem do que
discípulos da rebeldia” (NETO, 2006, p.379). Por seu turno,
Helder Lameira de Lima, privilegiando jornais paraenses do
século XIX, verifica um fato inusitado para o pesquisador
contemporâneo, porém, frequente na impressa abolicionista
belenense: o racismo. Assim, apesar de abolicionista, a referida
imprensa “mostrava-se (...) racista e preconceituosa. Seja através
das colunas pagas como as Triolets e Epigrammas ou de
perseguições a cortiços de negros escravos em Belém” (LIMA,
2006, p.386).
Antes, porém, em 2003, Mary Del Priore e Flavio Gomes,
reuniram estudos de diversos historiadores, pesquisadores,
professores sobre a Amazônica. Através da editora Campus,
lançaram o livro Os senhores dos rios: Amazônia, margens e
histórias. A proposta central desta obra seria: “Mais de 500 anos
depois, redescobrir o Brasil, não. Descobrir os Brasis, sim. E para
começar, fazendo-o nas canoas dos ‘senhores dos rios” (PRIORE;
GOMES, 2003, p.XI). Em outras palavras vencer as amarras de
“uma história [do Brasil] excludente e seletiva, ditada pelos
285
interesses de hegemônicos centros acadêmicos” (p.VIII), o
Sudeste, essencialmente. No conjunto dos capítulos articulados
para essa obra se inscrevem estudos sobre a trajetória histórica dos
negros na Amazônia no século XIX e XX, com destaque para os
trabalhos de Flavio Gomes em parceria com Jonas Marçal
Queiroz, Magda Ricci, Eurípedes A. Funes. Fica perceptível
nesses estudos, por exemplo, no bojo da Cabanagem, a luta pela
liberdade não se deu apenas no campo da revolta. Ocorreu
também no campo das questões jurídicas. Em 1836, por sinal, há
indícios sobre a compra da legalidade da liberdade por escravos
em plena revolta dos cabanos. Por meio da análise de documentos
de cartórios e processos judiciais conjectura-se que determinados
escravos “acreditavam que tinha mais força a liberdade concedida
pelo senhor ou comprada em hasta pública do que aquela roubada
em meio a um levante social” (RICCI, 2003, p.186). Não sem
sentido, a memória e a história nos dão conta que existe uma
permanente luta pela liberdade na Amazônia, posto que: “Se num
primeiro momento o enfrentamento visava construir a liberdade,
rompendo com a escravidão, hoje a luta se coloca no sentido de
libertar a terra para continuarem a ser livres e terem assegurado o
direito à cidadania” (FENES, 2003, p.227). Decerto, isso é
evidenciado através das narrativas históricas acerca dos
remanescentes de quilombos do Baixo Amazonas, no Estado do
Pará.
Ao lado disso, a presença negra na Amazônia é temática
que desde as últimas décadas do século vinte vem se apresentando
na historiografia do Amazonas, de forma mais evidente, através de
diversos recortes cronológicos e corpus de análise. Certamente um
movimento de ruptura com a visão tradicional e equivocada
acerca dessa temática, pois que “de modo geral, a compreensão
dos amazonenses a respeito de sua história não inclui a presença
286
negra para a construção desta memória e de suas identidades a
não ser de modo muito pontual” (ALEIXO, 2011, p.230).
A publicação do livro O fim do silêncio: presença negra
na Amazônia, organizado pela professora Patrícia Melo Sampaio,
publicado originalmente em 2011, traz a lume temas, problemas e
objetos de interesses necessários na acepção de uma História a
contrapelo: elucida sujeitos, antes, invisíveis aos olhos da
Historiografia tradicional. Coloca, assim, questões pertinentes:
qual o papel dos escravos negros no processo de composição do
status social e na demarcação das fronteiras do mundo colonial na
Amazônia, contexto do século dezoito? Ora, “os escravos do
Grão-Pará, negros forros, mulatos fizeram valer sua presença de
maneira significativa [...]. Também eles ajudaram a demarcar as
fronteiras desse mundo colonial com suas experiências históricas”
(SAMPAIO, 2011, p.42). Outra indagação gira em torno de
como construir as trajetórias dos negros na Amazônia buscando
compreender os sentidos e as especificidades das fugas de escravos
no Amazonas na segunda metade do século dezenove? No caso do
Baixo Amazonas, fugas são mobilizadas por inúmeros motivos:
epidemias, a falta de alimentos, quebra de acordos com senhores,
proteção de familiares. Assim, “homens e mulheres deslocavam-se
pelos rios e matas cruzando suas experiências de cativeiros com
índios. Mulatos desertores, africanos, marinheiros”
(CAVALCANTE, 2011, p.71). Esses estudos são, decerto, o
testamento histórico da presença negra no Amazonas: escravos
negros foram presentes na província do Amazonas (século XIX)
sob a égide do sistema escravocrata “tendo no palco de sua
construção histórica uma importante contribuição dessas
populações. Uma realidade que a História não pode ignorar. Uma
história sem a qual o entendimento do presente não poderia ser
iluminado” (NETO, 2011, p.96). Essa significativa obra, a qual
287
estamos nos referindo, “como que um pacto firmado entre seus
autores, expressa o sentimento de que, para vencer a injustiça
racial, o esquecimento precisa parar de vencer” (FUNES, 2012,
p.200).
É, portanto, de programas de pós-graduação, ainda
jovens, nascidos na Universidade Federal do Amazonas como, por
exemplo, o Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na
Amazônia e Programa de Pós-Graduação em História Social que
novas abordagem sobre a trajetória dos negros na Amazônia estão
surgindo. Destacamos, assim, três dissertações de mestrado
recentemente defendidas. Em Nascidos no grêmio da sociedade:
racionalização e mestiçagem entre os trabalhadores da Província
do Amazonas (1850-1889), seu autor, Tenner Inauhiny de Abreu
(2002), averiguando a problemática da mestiçagem e, por
extensão, da racialização busca compreender como ocorreu, por
um lado as formas de sobrevivência, por outro, redes de relações
relativas a ascensão social no oitocentos. Nessa medida, lançando
mão de fontes impressas, alude sobre os espaços de disputas,
tensões nos quais os trabalhadores negros estavam inseridos.
Ao lado dessa dissertação de mestrado encontramos outra:
AVE LIBERTAS: ações emancipacionistas no Amazonas
Imperial. Aqui, Provino Pozza Neto, elucidando que a província
do Amazonas se antecipa em quatro anos o processo de abolição
nacional da escravidão (Lei Áurea), verifica que as relações de
trabalho na referida província estavam amaradas à lógica e a
legislação do sistema escravocrata. Nessa medida, os projetos e os
movimentos emancipacionistas foram impactantes nesse contexto.
Para desenhar os caminhos do abolicionismo no Amazonas
Imperial Provino Neto lança mão de fontes impressas, cartas de
alforria e relatórios de província. Dentre outras constatações,
afirma: a emancipação no Amazonas “não pode ser compreendida
288
a partir de interpretação unilateral da benevolência senhorial, na
contramão de uma historiografia laudatória que, como vimos,
pode, sem maiores dificuldades, ser colocada em questão”
(NETO, 2002, p.149).
Paralelo e esses estudos, surge a dissertação de Ygor Olinto
Rocha Cavalcante: Uma viva e permanente ameaça: resistência,
rebeldia e fugas de escravos no Amazonas Provincial (c. 1850 – c.
1882). Nessa pesquisa Cavalcante (2013) verifica que as fugas são
mais frequentes nos anos cinquenta até os anos setenta do
oitocentos, pois que nesse período não haviam leis
emancipacionistas regulando as relações sociais e de trabalho na
província do Amazonas. A partir dos anos setenta, do referido
século, fugas diminuem. Aspecto relevante nesse estudo é a ênfase
na figura feminina escrava. Assim, a casos em que, para proteger
seus rebentos, determinadas escravas estabeleciam redes de
relações e parentescos com os senhores, escolhidos para serem
padrinhos de seus filhos, que mesmo sob a égide da Lei do Ventre
Livre (1871), eram utilizados com força de trabalho. Nessa
perspectiva, no que diz respeito a condição de mulher negra e
escrava, a fuga ficava em segundo plano, posto que para redefinir
as condições sobre si, fugir tornou-se estratégia ineficaz.
As versões sobre a entrada de escravos na Amazônia não
são uníssonas. Conforme a professora Patrícia Sampaio, Manuel
Nunes Pereira afirma que a introdução ocorreu em 1692, quando
trazidos por holandeses, localizados no Amapá. Posteriormente
Arthur C. Ferreira Reis sinalizou a injeção dos negros através das
ações dos ingleses, na passagem do século XVI ao XVII, em
Macapá. Assim, assevera Sampaio: “se flamengo ou bretão, a
verdade é que tal pioneirismo não foi seguido de maiores
desdobramentos na região no que diz respeito à disseminação do
uso de escravos” (2011, p.18). É mesmo no século XVIII que a
289
Coroa portuguesa intensifica o uso da força de trabalho africana
na Amazônia, afirma Sampaio.
Nessa medida, com a expulsão dos ingleses da região, o
tráfico continuou existindo a partir da expansão da colonização
portuguesa, essencialmente pelo modo conhecido com
assentamento, ou seja, o carregamento era de responsabilidade
real mediante contrato com particulares ou então por meio de
Companhias de Comércio, cujo monopólio era assegurado pela
metrópole. Segundo Rafael Chambouleyron (2006), várias
tentativas de assentamento foram feitas, algum com nenhum e
outras com pouco sucesso, como é o caso do contrato de 1682,
em que “príncipe ordenava ao Conselho Ultramarino que passasse
alvará de confirmação do assento feito com vários comerciantes,
‘para a conservação do comércio do Estado do Maranhão, em
utilidade de seus moradores’. Segundo este contrato, 10 mil
negros deveriam ser enviados à capitania, mas de maneira
parcelada, isto é, 500 por ano. Outro exemplo é o contrato feito
com a Companhia de Cacheu e Cabo Verde em 1692, no qual
deveriam adentrar na capitania 145 africanos por ano. Embora o
autor apresente diversos exemplos, atenta para o fato dos números
presentes nos contratos não corresponderem à real entrada de
pessoas na condição de escravos na região, mas o fato é que pode-
se encontrar o uso da mão de obra escrava na região norte já a
partir do século XVII.
Assim, autores como Salles (1971), Bezerra Neto (2011),
Chambouleyron (2006) e Mattoso (1988) apontam para estes
aspectos, identificando o tráfico neste período e atestando sua
irregularidade enquanto atividade ocasional regulada pelo
290
assento11. Segundo eles, dados mais concretos sobre a entrada de
africanos no Grão-Pará e Maranhão do século XVII até 1755 são
difíceis de serem encontrados, haja vista que os desembarques
eram irregulares. Neste ano foi fundada a Companhia de
Comércio do Grão Pará e Maranhão, responsável pela introdução
de 28.852 cativos na região, 16.852 enviados ao Pará e 12.000 ao
Maranhão12. Estes números revelam aumento significativo do
tráfico nos 22 anos de existência da Companhia e, após seu
fechamento, os assentos particulares predominaram na região.
Estes africanos procediam principalmente de Benguela, Luanda,
Cabinda, Gabão, Guiné Bissau, Guiné Portuguesa, São Tomé,
Cabo Verde e Moçambique, isto é, das regiões ocidental, central e
oriental africanas.
Segundo dados compilados a partir do site Slave Voyages
e do projeto “Relações triangulares entre o Para-Maranhão, a
África e o Portugal: O Tráfico Negreiro do fim do século XVII
até 1846. Novos dados, novos olhares. Foco sobre a Senegâmbia”,
coordenado por Didier Lahon e com apoio do CNPq, havia três
modalidades de tráfico para a região, assim como aponta a tabela
construída pela autora:
11
Tais autores não apresentam os mesmos números de africanos que
aportaram no Norte, mas indicam esta existência irregular e ocasional.
12 Dados mais específicos podem ser encontrados em BEZERRA NETO,
José Maia. A Escravidão Negra no Grão-Pará (séculos XVII-XIX). Belém:
Paka-Tatu, 2012.
291
Fonte: LAHON, Didier. Relações triangulares entre o Pará-
Maranhão, a África e Portugal. O tráfico negreiro do fim do
século XVII até 1846: novos dados, novos olhares. Foco sobre a
Senegâmbia. (Apud PALHA, 2011, p.32)
292
Fonte: LAHON, Didier. Relações triangulares entre o Pará-
Maranhão, a África e Portugal. O tráfico negreiro do fim do
século XVII até 1846: novos dados, novos olhares. Foco sobre a
Senegâmbia. (Apud PALHA, 2011, p.33)
13
O autor, neste livro, faz uma descrição minuciosa sobre a divisão
populacional, por bairros e regiões, em Belém da época.
293
significativo, afinal com a independência do Brasil em 1822 e a
adesão do Pará à independência em 1823, muitos escravos
relacionavam a ruptura política com a abolição da escravidão
(BEZERRA NETO, 2001). Em 1832, segundo Baena, a
população branca diminuíra em relação à porcentagem, pois
existiam em Belém 5.715 escravos, 5.643 brancos e 1109
indígenas segundo o censo (BAENA, 2004, p.217-218). A partir
destes dados apresentados até o momento podemos questionar
firmemente as teorias que consideram inexpressiva a presença
negra na Amazônia e a preponderância estritamente indígena,
haja vista que a população escrava, no século XIX, chegou a quase
metade do total da população na cidade de Belém.
Segundo os autores até então trazidos aqui, de 1820 a
1835, esta proporção se manteve, o que diferenciava das regiões
mais ao interior do continente, em que o número de escravos era
muito menor. A partir de 1835 o número de negros da região de
Belém teve uma diminuição em face de “epidemias de bexigas”14 e
da Cabanagem. Esta revolta popular e social, tradicionalmente
reconhecida pela historiografia como sendo levada a cabo por
indígenas e mestiços, teve em seus quadros muitos negros cativos
que buscavam, por meio do movimento, a liberdade (BEZERRA,
2001). Os escravos, presentes nos debates políticos e sociais que
ocorriam ao seu redor, especialmente as questões relativas à
escravidão, discutiam e participavam ativamente de movimento
em prol da abolição (BEZERRA, 2001). Resgatar o escravo
enquanto sujeito de suas ações e desvinculá-lo da ideia de
reificação é relativizar, como tem feito a historiografia desde a
década de 1980, as relações de dominação do período colonial e
imperial ao considerar que ela não foi absoluta. Escravos negros
14
Bexiga era como era conhecida a varíola.
294
agiam mediante violência física e também realizavam negociações
que correspondiam aos desafios diários e souberam lidar, em certa
medida, com as imposições escravocratas 15, afinal, “no Brasil
como em outras partes, os escravos negociaram mais do que
lutaram abertamente contra o sistema” (REIS; SILVA, 1989,
p.14).
A partir dos dados apresentados, pode-se afirmar que, em
relação às outras regiões do país, como Nordeste, o número de
negros escravizados trazidos para a Amazônia Colonial e Imperial
foi muito reduzido, entretanto quando temos acesso aos dados
que comparam as origens étnicas ou a “cor da pele” da população
belenense, podemos compreender melhor a profunda inserção
social e cultural de diversos povos no cotidiano amazônico. Não
se trata de hierarquizar a presença africana entre as regiões do
Brasil, mas de duvidar deste “vazio humano” africano que
perdurou por muito tempo e com o qual sempre se caracterizou a
região (VERGOLINO-HENRY; FIGUEIREDO, 1990).
Ainda no século XIX, enquanto o café despontava no
sudeste enquanto produto importante para a economia nacional,
a borracha despontava na mesma direção para a região amazônica.
Após a Lei Eusébio de Queiroz e a partir das teses cientificistas de
branqueamento para dinamizar a economia, o setor cafeeiro
15
Sobre estes aspectos e para mais exemplos, ver REIS, João José; SILVA,
Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989. GOMES, Flávio dos Santos;
REIS, João José (orgs.). Liberdade por um fio - História dos quilombos
no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2005; LARA, Sílvia Hunold.
Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro,
1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; CHALHOUB, Sidney.
Visões da liberdade: uma história das ultimas décadas da escravidão na
Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
295
passou a promover o tráfico interprovincial e incentivou a vinda
de imigrantes europeus como mão de obra para o campo.
Diferente ocorreu na região norte, local que não atraía imigrantes
europeus e no qual o tráfico interprovincial não chegava. O
aumento da importância do setor gumífero para o Amazonas e
Pará conjugado à falta de mão de obra para a extração fez com
que a migração nordestina para a região a partir de meados de
1870 até 1912 aumentasse consideravelmente, gerando a vinda de
mais de meio milhão de pessoas do Nordeste. Estes, em grande
parte, imbuídos de herança cultural africana devido a mais de três
séculos de tráfico, encontraram na Amazônia uma população
negra. Estudos que se pautem neste encontro podem trazer
análises interessantes para a compreensão da cultura Amazônia, o
que não é o caso deste trabalho, haja vista seu escopo.
Tráfico, escravidão, lutas, fugas, formação de quilombos,
negociações sobre alforrias, migrações, encontros e desencontros
fizeram com que a cultura amazônica fosse formada pela mescla
ou, como apresenta Salles, a presença africana fez com que novas
identidades culturais se formassem, como o carimbó, o boi
bumbá, marambiré, aiuê e diversos outros folguetos que se
naturalizaram como praticas culturais dos escravos. Segundo ele, a
“lúdica Amazônica, no que tem de mais representativo, é
essencialmente africana” (2005, p.186).
Foi Mario de Andrade, segundo Figueiredo (2003), que
resgatou a figura do negro amazônico a partir de sua viagem a
Belém em 1927 quando se falava apenas em indígenas e a eles
creditava-se a cultura do norte. Nesta viagem, Andrade
aproximou-se de Gastão Vieira, com o qual continuou a manter
relações por cartas e que “pôde ter uma ideia melhor do que viu
por estas bandas” (FIGUEIREDO, 2003, p.35).
296
Em sua estadia, Mario de Andrade coletou bastantes
informações sobre os folguetos populares e as curas de pajelança,
assim como recebia constantemente correspondências de Vieira,
que se interessou pelos estudos sobre religiões e feitiçarias. Sobre o
último, o escritor identificou a presença de referências africanas
no interior da pajelança, religião que se acreditava estar sob
hegemonia da influência indígena. O que mais chamou sua
atenção foi a figura de um “Rei Nagô”, referência aos Iorubás,
aparecer com melodia indígena em um ritual de cura, assim como
em rituais com melodias de religiões africanas serem entoados a
Boiúna e o Boto.
Interessava a Mario de Andrade identificar se a matriz das
religiões de origem africana da Amazônia seguiam a linha baiana
ou haitiana, concluindo que a era mais ligada à última. A nós, não
interessa fazer aqui esta discussão, mas compreender que as
pesquisas folclóricas ligadas ao movimento modernista geraram
novos enfoques interpretativos sobre as religiões amazônicas com
afro-indígenas. A partir das anotações e estudos de Mario de
Andrade, foi formada a Missão de Pesquisa Folclórica de São
Paulo que, em 1938, foi à Belém conhecer, pesquisar e estudar
tais religiões, fato que gerou diversas publicações nas décadas
posteriores que retiram os adornos do pajé indígena para
transformá-lo em pajé do voduns, filho de “nagô” e “jeje”
(FIGUEIREDO, 2003).
304
Como pode-se perceber a partir desta explanação, são
importantes e necessários estudos que compreendam a produção
historiográfica da Amazônia em suas especificidades, o que vem
sendo discutido desde a década de 1980. Além disso, os estudos
sobre a presença negra na Amazônia acompanharam estas
perspectivas, tomando corpo mais ao final do século XX. A partir
da primeira década do século XXI, dissertações, teses e livros que
analisam o ensino de história da Amazônia a partir da disciplina
“Estudos Amazônicos” vieram à tona, multiplicando-se,
principalmente, a partir de 2010. Este capítulo, ao tratar destes
assuntos em forma de balanço, abre nova perspectiva ao
problematizar a presença do negro na Amazônia nos materiais
didáticos da região norte do país. Esperamos que estas discussões e
conclusões parciais contribuam para a ampliação dos horizontes
historiográficos que abarquem estas perspectivas.
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BIOS
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Fernanda Chamarelli é Professora da Educação Básica, graduada
em História pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro e
mestranda em História Social da Cultura pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
E-mail: fchamarelli29@gmail.com.
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Mírian Cristina de Moura Garrido é Pós-doutoranda em
História da Universidade Federal de São Paulo, campus
Guarulhos, Doutora e Mestra em História pela Universidade
Estadual Paulista, UNESP/Assis.
E-mail: miriangarrido@hotmail.com.
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