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HISTÓRIA DA ÁFRICA: DEBATES,

TEMAS E PESQUISAS PARA ALÉM


DA SALA DE AULA

1
2
André Bueno
Gustavo Durão
Mírian Garrido
[orgs.]

HISTÓRIA DA ÁFRICA: DEBATES,


TEMAS E PESQUISAS PARA ALÉM
DA SALA DE AULA

3
Edições Especiais Sobre Ontens

EDITORES
Prof. André Bueno [UERJ] (Coordenador da Revista)
Prof. Dulceli Tonet Estacheski [UNESPAR/UFSC]
Prof. Everton Crema [UNESPAR]

COMISSÃO CIENTÍFICA
Prof. Carla Fernanda da Silva [UFPR]
Prof. Gustavo Durão [UFRRJ]
Prof. José Maria Neto [UPE]
Prof. Leandro Hecko [UFMS]
Prof. Luis Filipe Bantim [UFRJ]
Prof. Maria Elizabeth Bueno de Godoy [UEAP]
Prof. Maytê R. Vieira [UFPR]
Prof. Nathália Junqueira [UFMS]
Prof. Rodrigo Otávio dos Santos [UNINTER]
Prof. Thiago Zardini [Saberes]
Prof. Vanessa Cristina Chucailo [UNIRIO]
Prof. Washington Santos Nascimento [UERJ]

COMISSÃO EDITORIAL
Prof. Aristides Leo Pardo [UNESPAR]
Prof. Caroline Antunes Martins Alamino [UFSC]
Prof. Jefferson Lima [UDESC]

BUENO, André; DURÂO, Gustavo; GARRIDO, Mirian [orgs.] História da


África: debates, temas e pesquisas para além da sala de aula. Rio de Janeiro:
Edições Especiais Sobre Ontens, 2019. ISBN: 978-85-65996-73-0
Disponível em: www.revistasobreontens.site

4
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO
André Bueno, 7

PREFÁCIO
Regine Augusto de Mattos, 13

A REPRESENTAÇÃO DA ÁFRICA NOS LIVROS


DIDÁTICOS: ANÁLISE DO ESPAÇO DEDICADO À
ÁFRICA NOS EDITAIS E NOS GUIAS DE LIVROS DO
PNLD E EM LIVROS DE HISTÓRIA DO ENSINO MÉDIO.
Mírian Cristina de Moura Garrido, 19

ESTRATÉGIAS PARA O ENSINO DE HISTÓRIA E


CULTURA AFRO-BRASILEIRA NA EDUCAÇÃO BÁSICA:
REPRESENTAÇÃO DO NEGRO NA SOCIEDADE E NA
SALA DE AULA.
Felipe de Moura Garrido, 47

HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO E ENSINO DE


HISTÓRIA: O QUILOMBO COMO SUGESTÃO DE
ANÁLISE.
Lucia Helena Oliveira Silva, 75

LITERATURA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA E ENSINO


DE HISTÓRIA. Clícea Maria Miranda , 99

5
FONTES E PESQUISAS DA HISTÓRIA DAS MISSÕES NA
ÁFRICA: ARQUIVOS E ACERVOS
Patrícia Teixeira Santos, Lucia Helena Oliveira Silva, Nuno de
Pinho Falcão, 128

INTERAÇÕES SOCIAIS E CULTURAIS ENTRE EGITO E


CUSH: A ÁFRICA ANTES DA COLONIZAÇÃO.
Fernanda Chamaralli, Gustavo de Andrade Durão, 143

DO CANTO NA ROÇA AO BAMBOULA: CANÇÕES,


BATUQUES, TRABALHO E RESISTÊNCIA NO PROCESSO
DE ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO NO CARIBE FRANCÊS.
Letícia Gregório Canelas, 175

IMAGINAÇÃO AFRICANA E LITERATURA AFRO-


BRASILEIRA: CAMINHOS ENTRECRUZADOS.
Túlio Henrique Pereira, Eliane Marques, 215

HISTÓRIA DA ÁFRICA: COLONIALISMO, RESISTÊNCIAS


E ORGANIZAÇÃO POLÍTICA
Gustavo de Andrade Durão, 251

HISTÓRIA DA AMAZÔNIA NEGRA E ENSINO DE


HISTÓRIA NO NORTE BRASILEIRO
Heraldo Márcio Galvão Júnior, Arcângelo da Silva Ferreira, 279

BIOS, 311

6
INTRODUÇÃO
André Bueno1

Pensar a África é, antes de tudo, um desafio epistemológico.


Acostumamo-nos com as teorias e métodos acadêmicos,
construídos muito ‘naturalmente’ na Europa do século 19, que
ignoravam solenemente dos currículos a presença histórica e as
tradições afroasiáticas. Ao longo do século 20 a situação melhorou
em alguns sentidos, graças a uma luta acerba pela inclusão dessas
culturas no panorama intelectual da universidade Ocidental.
Mesmo assim, ainda há muito por fazer. No caso do Brasil, foi
necessária a imposição de uma lei (10.639, em 2003) para que a
África fosse inserida em nossos programas escolares. Aberto o
caminho para preencher essa imensa lacuna em nosso processo de
formação cultural, restava, porém, pensar em como fazê-lo.
Um erro muito comum na formulação de estratégias
didáticas é utilizar, de imediato, as teorias e métodos que
aprendemos na academia. A questão, contudo, é que a ausência de
conhecimentos sobre a África forçou uma necessária reformulação
de nossos modos de construir e ensinar história. Esse imenso
continente, em suas multifacetadas expressões, exige uma
abordagem diferente daquelas concebidas pelos meios
eurocêntricos. Talvez seja apropriado pensar aqui, como
Boaventura de Sousa Santos propôs, na urgência de construir uma
nova epistemologia que expresse os saberes não-hegemônicos, o
que pode ser aplicado aos vários casos africanos:

Toda a experiência social produz e reproduz


conhecimento e, ao fazê-lo, pressupõe uma ou várias

1
Prof. Adjunto de História Oriental da UERJ.
7
epistemologias. Epistemologia é toda a noção ou
ideia, reflectida ou não, sobre as condições do que
conta como conhecimento válido. É por via do
conhecimento válido que uma dada experiência social
se torna intencional e inteligível. Não há, pois,
conhecimento sem práticas e actores sociais. E como
umas e outros não existem senão no interior de
relações sociais, diferentes tipos de relações sociais
podem dar origem a diferentes epistemologias. As
diferenças podem ser mínimas e, mesmo se grandes,
podem não ser objecto de discussão, mas, em
qualquer caso, estão muitas vezes na origem das
tensões ou contradições presentes nas experiências
sociais sobretudo quando, como é normalmente o
caso, estas são constituídas por diferentes tipos de
relações sociais. No seu sentido mais amplo, as
relações sociais são sempre culturais (intra-culturais
ou inter-culturais) e políticas (representam
distribuições desiguais de poder). Assim sendo,
qualquer conhecimento válido é sempre contextual,
tanto em termos de diferença cultural como em
termos de diferença política. Para além de certos
patamares de diferença cultural e política, as
experiências sociais são constituídas por vários
conhecimentos, cada um com os seus critérios de
validade, ou seja, são constituídas por conhecimentos
rivais. Em face desta reflexão levantam-se três
perguntas. Por que razão, nos dois últimos séculos,
dominou uma epistemologia que eliminou da
reflexão epistemológica o contexto cultural e político
da produção e reprodução do conhecimento? Quais
8
foram as consequências de uma tal dês-
contextualização? Haverá epistemologias alternativas?
(Santos, 2009, p.9)

Nesse mesmo sentido, P. Hountondji (2009) analisa o


caso das construções filosóficas e históricas da África, e de como
uma interdisciplinaridade fundamental permeia a construção dos
estudos africanos, tanto em função dos meios quanto de seus
objetivos:

Desta perspectiva, a disciplina ou o conjunto de


disciplinas a que se chama estudos africanos
certamente não terão o mesmo significado na África e
no Ocidente. Na África, fazem – ou deveriam fazer –
parte de um projecto mais vasto: conhecer-se a si
mesmo para transformar. Os estudos africanos em
África não deveriam contentar-se em contribuir
apenas para a acumulação do conhecimento sobre
África, um tipo de conhecimento que é capitalizado
no Norte global e por ele gerido, tal como acontece
com todos os outros sectores do conhecimento
científico. Os investigadores africanos envolvidos nos
estudos africanos deverão ter uma outra prioridade:
desenvolver, antes de mais, uma tradição de
conhecimento em todas as disciplinas e com base em
África, uma tradição em que as questões a estudar
sejam desencadeadas pelas próprias sociedades
africanas e a agenda da investigação por elas directa
ou indirectamente determinada. Então, será de
esperar que os académicos não‑africanos contribuam
para a resolução dessas questões e para a
9
implementação dessa agenda de investigação a partir
da sua própria perspectiva e contexto histórico.
(Hountondji, 2009, p.129)

Essa percepção já fora anunciada há algumas décadas por


importantes intelectuais africanos como Cheik Anta Diop e
Hampate Bá. Em 1977, Bá já nos informava, por exemplo, da
importante e indispensável reformulação de nossas concepções
historiográficas em confronto com a tradição da oralidade na
África:

Contrariamente ao que alguns possam pensar, a


tradição oral africana, com efeito, não se limita a
histórias e lendas, ou mesmo a relatos mitológicos ou
históricos, e os griots estão longe de ser seus únicos
guardiões e transmissores qualificados. A tradição oral
é a grande escola da vida, e dela recupera e relaciona
todos os aspectos. Pode parecer caótica àqueles que
não lhe descortinam o segredo e desconcertar a
mentalidade cartesiana acostumada a separar tudo em
categorias bem definidas. Dentro da tradição oral, na
verdade, o espiritual e o material não estão
dissociados. Ao passar do esotérico para o exotérico, a
tradição oral consegue colocar-se ao alcance dos
homens, falar-lhes de acordo com o entendimento
humano, revelar-se de acordo com as aptidões
humanas. Ela é ao mesmo tempo religião,
conhecimento, ciência natural, iniciação à arte,
história, divertimento e recreação, uma vez que todo
por- menor sempre nos permite remontar à Unidade
primordial. Fundada na iniciação e na experiência, a
10
tradição oral conduz o homem à sua totalidade e, em
virtude disso, pode-se dizer que contribuiu para criar
um tipo de homem particular, para esculpir a alma
africana. Uma vez que se liga ao comportamento
cotidiano do homem e da comunidade, a "cultura"
africana não é, portanto, algo abstrato que possa ser
isolado da vida. Ela envolve uma visão particular do
mundo, ou, melhor dizendo, uma presença particular
no mundo - um mundo concebido como um Todo
onde todas as coisas se religam e interagem. A
tradição oral baseia-se em uma certa concepção do
homem, do seu lugar e do seu papel no seio do
universo. Para situá-la melhor no contexto global,
antes de estuda-Ia em seus vários aspectos devemos,
portanto, retomar ao próprio mistério da criação do
homem e da instauração primordial da Palavra: o
mistério tal como ela o revela e do qual emana.

Recorro a esses destacados pensadores para retomar o


ponto inicial: como, no Brasil, podemos responder a essa
demanda profunda pela aprendizagem histórica do continente
africano? Estamos imersos em uma cultura cujas raízes africanas
evidenciam-se por toda a parte; e mesmo assim, enfrentamos os
absurdos do racismo, do preconceito, da ignorância sobre a
vastidão e a importância dos estudos afro-brasileiros. Obviamente,
essa luta não tem sido solitária, e tem conquistado o interesse de
uma ampla parcela de pensadores, acadêmicos e docentes nos
âmbitos escolar e universitário.

História da África: debates, temas e pesquisas para além da


sala de aula vêm trazer uma contribuição enriquecedora para o
11
desafio que representa o ensino da África no Brasil. Reunindo um
grupo de pesquisadores diretamente envolvidos com estudos
africanos, o que apresentamos aqui são propostas para enfrentar o
problema premente de reconhecer e compreender a África. Longe
de esgotar o assunto, construímos caminhos e alternativas para
acessar o vibrante e fértil mundo das africanidades, contribuindo
para torná-lo um pouco mais acessível e vivo aos estudantes e
público em geral.

Referências
BÁ, Hampate. A tradição viva. In ALPHA, S., BALOGUN, O.,
AGUESSY, H. & DIAGNE, P. Introdução a Cultura Africana.
Lisboa: edições 70, 1977.
HOUNTONDJI, Paulin. Conhecimento de África,
Conhecimentos de Africanos: duas perspectivas sobre os Estudos
Africanos. in SANTOS, Boaventura e MENESES, Maria [orgs].
Epistemologias do Sul. Coimbra: CES/Almedina, 2009.
SANTOS, Boaventura. Introdução in SANTOS, Boaventura e
MENESES, Maria [orgs]. Epistemologias do Sul. Coimbra:
CES/Almedina, 2009.

12
PREFÁCIO

A promulgação da lei 10.639/2003, que determinou a


obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira e
africana nos currículos escolares do ensino fundamental e médio,
impactou profundamente as instituições de ensino e pesquisa no
Brasil. A empreitada resultou no meio acadêmico brasileiro um
aumento do número de pesquisadores que se dedicam aos Estudos
Africanos, sobretudo a partir da criação de diversos programas de
Pós-Graduação em todo território nacional que, por sua vez, têm
feito emergir um grande volume de pesquisas no cenário nacional
e internacional. O fortalecimento dessa área tem permitido um
aprimoramento dos trabalhos que se referem ao continente
africano, sendo já destacados por sua relevância acadêmica,
podendo-se mesmo aventar uma contribuição brasileira aos
Estudos Africanos em geral.
Neste cenário, questões teórico-metodológicas e práticas
em ensino de História da África têm se evidenciado cada vez mais
como objeto de historiadores brasileiros, que mantêm um
profícuo diálogo com pesquisadores estrangeiros ligados a
instituições e centros universitários de excelência, especialmente
africanos. Estes trabalhos convergem para o campo das reflexões
acerca das experiências e propostas que privilegiam diferentes
sujeitos e grupos em suas práticas, relações cotidianas e
elaborações intelectuais.
O contato com as epistemologias africanas nos tem
mostrado que a produção do conhecimento histórico requer
também um descentramento em relação aos paradigmas do
pensamento hegemônico e uma abertura para os estudos que
tratam da diversidade, pluralidade e diferença cultural. Nesse
sentido, os estudos sobre África servem não só para desfazer
13
estereótipos, mas para deslocar o olhar para novas formas de
produção do conhecimento histórico. É nessa esteira de
pensamento que se enquadram as reflexões sobre a descolonização
do saber e a produção do conhecimento a partir de Si,
promovidas por intelectuais africanos e do “Sul Global”, como
Paulin Hountondji (2006), Paul Zelesa (2009), Boaventura de
Souza Santos e Maria Paula Menezes (2006), Teresa Cruz e Silva
(2012) e Tonin Falola (2007).
Comungando dessas preocupações e demonstrando a
importância dessas reflexões, os organizadores deste livro, André
Bueno, Gustavo Durão e Mírian Garrido, nos brindam com um
conjunto de textos que permitem a elaboração de novas narrativas
historiográficas e didáticas, alternativas e constituídas a partir de
diversos lugares e disciplinas, seja apresentando e
problematizando representações e categorias interpretativas
relacionados ao continente africano, seja incorporando as
dimensões e experiências da diáspora africana nas Américas.
Com o título História da África: debates, temas e
pesquisas para além da sala de aula, os co-autores deste livro
propõem outros olhares sobre o continente africano e a diáspora
nas Américas apresentando novas práticas de pesquisa e de ensino
na área de História. No capítulo de abertura, Mírian Garrido nos
chama a atenção para o atual estágio do espaço dedicado à África
nas políticas públicas voltadas para a Educação Básica ao analisar
os Editais de Convocação do Programa Nacional do Livro
Didático, seus respectivos Guias de Livros e a as representações
sobre o continente em duas coleções didáticas destinadas aos
discentes do Ensino Médio. Embora a autora tenha constatado
uma maior regularidade e qualidade dos conteúdos sobre o
continente africanos nos materiais estudados, destaca sua
preocupação com as lacunas, os estereótipos e o desequilíbrio com
14
relação, sobretudo, à história europeia, nos mostrando que há
muito ainda a se fazer para uma transformação epistemológica
efetiva.
No texto seguinte, retomando a importância da Base
Nacional Comum Curricular (BNCC) como documento que
propõe diretrizes no sistema educacional brasileiro e
especificamente para a área de História, Felipe de Moura Garrido
traz uma relevante contribuição apresentando uma estratégia de
trabalho em sala de aula com documentos históricos,
descortinando as agências dos sujeitos escravizados na sociedade
colonial brasileira a partir do questionamento de parte da
historiografia tradicional. Seguindo nesta mesma esteira
propositiva de novas práticas de ensino, se enquadram os
capítulos primorosos de Lúcia Helena Oliveira e Silva sobre as
reflexões em torno da Memória e do Patrimônio sugerindo a
história dos quilombos como caminho metodológico para um
exercício bastante profícuo de aproximação entre história e
experiência e de desenvolvimento de crítica e consciência entre os
estudantes; e de Clícea Maria Miranda com o uso das obras
literárias africanas e afro-brasileiras como recursos pedagógicos
que permitem acessar contextos históricos e relações de poder pelo
olhar de africanos e africanas e pessoas afro-brasileiras e afro-
americanas, promovendo uma perspectiva mais democrática de
ensino.
Voltados para os novos caminhos da pesquisa em História
da África, Patrícia Teixeira Santos, Lucia Helena Oliveira Silva e
Nuno de Pinho Falcão nos apresentam uma série de
possibilidades de estudos sobre as narrativas e modelos
missionários em África em diferentes contextos entre os séculos
XVII e XXI, elencando arquivos e acervos, cujas fontes são
riquíssimas sobre esse tema. Em outro capítulo, Fernanda
15
Chamarelli e Gustavo Durão concentram-se igualmente numa
análise inovadora no campo da História da África na Antiguidade,
ao estudarem as interações sociais e culturais entre Egito e Cush,
antes da colonização europeia, evidenciando a existência de
histórias plurais e conectadas dessas sociedades, destacando a
importância de abordagens que partam de questões pertinentes às
próprias sociedades africanas. Seguindo nessa perspectiva que
privilegia os africanos como protagonistas e sujeitos de suas
próprias narrativas, Gustavo Durão em outro capítulo reflete a
respeito de alguns dos inúmeros e diferentes movimentos de
resistências organizados pelos africanos diante dos processos de
colonização europeia a partir do final do século XIX.
As agências de africanos e de seus descendentes, mesmo
que em contextos e espaços geográficos diferentes, foi um aspecto
bastante explorado nos capítulos de Letícia Gregório Canelas, que
mostra como manifestações culturais ligadas à música e à dança
foram acionadas por africanos e afrodescendentes em períodos de
grandes transformações nas colônias francesas caribenhas, entre o
final do século XVIII e meados do XIX, com destaque para o
papel das mulheres negras nesse processo; assim como no texto de
Túlio Henrique Pereira e Eliane Marques sobre os pensadores
africanos e afro-brasileiros e o surgimento de uma literatura pós-
colonial. Abordagem esta que se repete no capítulo final, escrito
por Heraldo Márcio Galvão Júnior e Arcângelo da Silva Ferreira,
a respeito da presença negra na Amazônia e o seu reflexo na
historiografia e nos materiais didáticos da região norte do país.
Responder aos desafios do ensino de História hoje, e mais
especificamente do ensino de História da África, significa
entender a nossa própria história a partir da alteridade, isto é, uma
História não excludente, mas antes apreendida na diversidade e
para além da sala de aula, tendo como fundamento perspectivas
16
voltadas para a interculturalidade, a plena integração social e o
exercício da cidadania. Refletindo sobre o passado mas pensando
em práticas futuras, o livro aponta para esse caminho de propostas
para a elaboração de novas narrativas historiográficas e didáticas
sobre a África, os africanos e seus descendentes na diáspora. Dessa
maneira, faço convite ao (a) leitor (a) para trilhá-lo e descobrir
esses novos debates, temas e pesquisas nos belos textos aqui
reunidos!

Regiane Augusto de Mattos


Rio de Janeiro, 25 de abril de 2019.

Referências Bibliográficas
CRUZ E SILVA, Teresa; BORGES COELHO, João Paulo &
SOUTO, Amélia Neves de. Como fazer Ciências Sociais e
Humanas em África: Questões Epistemológicas, Metodológicas,
Teóricas e Políticas (Textos do Colóquio em Homenagem a
Aquino de Bragança). Dakar: CODESRIA, 2012.
FALOLA, Toyin. Nacionalizar a África, culturalizar o Ocidente e
reformular as Humanidades na África. Afro-Ásia, 36, 9-38, 2007.
HOUNTONDJI, Paulin. Conhecimento de África,
Conhecimentos de Africanos: duas perspecticas sobre Estudos
Africanos. In: SANTOS, Boventura de Sousa; MENESES, Maria
Paula, Epistemologias do Sul . Coimbra: Almedina, 2009.
SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula.
Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009.
ZELEZA, Paul. The Study of Africa: Disciplinary and
Interdisciplinary Encounters. Dakar: CODESRIA, 2006.

17
18
A REPRESENTAÇÃO DA ÁFRICA NOS LIVROS
DIDÁTICOS: ANÁLISE DO ESPAÇO DEDICADO À
ÁFRICA NOS EDITAIS E NOS GUIAS DE LIVROS DO
PNLD E EM LIVROS DE HISTÓRIA DO ENSINO
MÉDIO
Mírian Cristina de Moura Garrido1

O decreto da Lei 10.639 em 2003 reconhece a legitimidade de


uma das mais antigas demandas do movimento negro
contemporâneo2, isto é, a obrigatoriedade do ensino da História
da África e dos afro-brasileiros. Acreditando no poder que a escola
– e seus conteúdos – possui sobre a auto percepção de si, as
militâncias negras afirmam que conhecer a ancestralidade
africana, os diferentes percursos históricos do continente, e

1
Pós-doutoranda em História da Universidade Federal de São Paulo,
campus Guarulhos, doutora em História pela Universidade Estadual
Paulista, UNESP/Assis. Desenvolve pesquisas sobre livros didáticos,
identidade, biografias e afrodescendentes. Parte das reflexões apresentadas
foram fomentadas pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo (FAPESP/Processo nº 2013/14210-7).
E-mail: miriangarrido@hotmail.com.
Agradecimento especial ao Professor Antônio de Andrade Junior pelo
empréstimo da coleção didática e diálogo sobre o ensino de África nas
escolas públicas.
2
O termo “movimento negro contemporâneo” é adotado respeitando a
divisão proposta por Petrônio Domingues (2007), para quem, a década de
1970 viu florescer um novo tipo de movimento negro, tendo sua
visibilidade ampliada com a formação do Movimento Unificado Contra a
Discriminação Racial, 1978, posteriormente renomeado para Movimento
Negro Unificado. Indicamos, ainda, a importância de obras como a de
Verena Alberti e Amilcar Araújo (2007) para acessar os discursos de parte
desses indivíduos.
19
observar esses indivíduos como agentes históricos, transforma a
educação em instrumento de reversão de estigmas e estereótipos.
Contrariando a visão hegeliana na qual “A África não é
um continente histórico; ela não demonstra nem mudança nem
desenvolvimento [...] são incapazes de se desenvolver e receber
uma educação” (HEGEL Apud FAGE, 2010, p.8), com a
efetivação da Lei, almeja-se a modificação de um histórico de
rótulos preconceituosos que pairam sobre africanos e
afrodescendentes. Igualmente, a legalização da demanda social,
gera expectativas, modifica estruturas curriculares no ensino
básico e universitário, amplia a pesquisa acadêmica sobre África e
afro-brasileiros, aumenta a procura de obras sobre a temática, bem
como, exige do Estado incentivos e reorganizações de diversas
ordens.
Diante deste cenário e dada a responsabilidade do Estado
na reparação histórica com um segmento social, apresento a seguir
reflexões sobre como a temática “África” se apresenta nas políticas
públicas educacionais contemporâneas direcionadas à Educação
Básica. Para tanto, tomo como fonte Editais de Convocação do
Programa Nacional do Livro Didático (Ensino Médio)3, seus
respectivos Guias de Livros, e duas coleções didáticas destinadas

3
Selecionei apenas os Editais referentes ao Ensino Médio, portanto, um
total de quatro Editais de Convocação, referentes aos anos 2007, 2012,
2015 e 2018. Vale indica que o Decreto no.9.099, 18 de julho de 2017,
unificou as aquisições dos livros didáticos (PNLD) e obras literárias (PNBE
– Programa Nacional Biblioteca na Escola), permitindo ainda a compra de
softwares, jogos educacionais, materiais de reforço, de formação, e materiais
destinados a gestão. Essa mudança no escopo altera, ainda, a sigla do
PNLD, que mantem as letras mas passa a representar o Programa Nacional
do Livro e do Material Didático.
20
aos discentes do ensino médio4. O esforço envolve ângulos
privilegiados para quem deseja compreender possíveis vias para
inserção ou revisão de conteúdos no ensino.

África e livros didáticos: os Editais de Convocação do PNLD


- EM
Com a aprovação da Lei 10.639/2003, África passa a ser
exigida entre os conteúdos didáticos do ensino básico. Ao mesmo
tempo, o Brasil operava o maior programa de compras de livros
didáticos do mundo (CASSIANO, 2007), e desde de 1995
(PNLD/1997), era responsável também pela avaliação desse
produto5.
No que circunscreve aos valores empregados no PNLD,
como esforço ilustrativo, ofereço as cifras despendidas em 2017.
No ano foram gastos 958.738.216,28 milhões de reais
(118.740.638 exemplares) em livros destinados ao ensino
fundamental, ciclo um e dois, e para o ensino médio, o gasto foi
de 337.172.553,45 milhões (6.830.011 exemplares). No total, no
ano de 2017, o investimento em compras de livros didáticos soma
1.295.910.769,73 bilhão de reais. (Portal do FNDE, acesso em
20 dez 2017).6

4
Obras de autoria de Patrícia do Carmo Ramos Braick e Myriam Becho
Mota, editadas pela Moderna em 2005 e 2013.
5
As avaliações envolvem diversos aspectos de uma obra didática.
Características como material utilizado na produção física e a formação
profissional do(s) autor(es), por exemplo, constam entre as preocupações
dos Editais de Convocação do PNLD. No texto, porém, darei ênfase às
questões relacionadas ao conteúdo do livro didático presentes em alguns
desses Editais.
6
Até a data de fechamento deste livro, os valores despendidos no PNLD
2018 não haviam sido disponibilizados.
21
Com relação a avaliação dos livros didáticos, uma fonte
significativa são os Editais de Convocação do PNLD. Esses
documentos constituem-se em uma espécie de “regra do jogo”,
nos quais são apresentadas as condições de participação e
características desejáveis e que implicam em aprovação e,
potencialmente, compra dessas obras.
O levantamento dos Editais do PNLD – de diferentes
níveis de ensino e gêneros didáticos – disponíveis no site do
Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação, vinculado ao
Ministério da Educação, resultam em 257 editais. Esses podem ser
organizados da seguinte maneira: (6 Editais/apenas 4 contemplam
História) Ensino Médio; (4) Ensino Fundamental Ciclo II; (6)
Fundamental Ciclo I; (3) Educação de Jovens e Adultos; (1)
Alfabetização na Idade Certa, no âmbito do ciclo I do EF; (1)
Campo, para escolas situadas ou anexas as áreas rurais, âmbito do
ciclo I do EF; (2) obras complementares, também denominadas
comumente de paradidáticos, ambos no âmbito do ciclo I do EF;
(2) Dicionários de Língua Portuguesa.
Os dados apontam para o fato do PNLD ter atuado com
maior intensidade no ensino fundamental ciclo I, portanto, com
grande atenção para a alfabetização. Demonstram, ainda, que o
público alvo e campos de atuação tem sido ampliados. Exemplo
do que afirmo é a edição do PNLD 2013 destinado
exclusivamente às escolas das áreas rurais (cujo edital foi
publicado no ano de 20118).

7
O número não representa a totalidade de avaliações realizadas pelo PNLD,
apenas indica os disponíveis no site para análise. O fato, contudo, não
invalida o esforço, graças a abrangência das edições acessíveis.
8
No geral, o Edital de Convocação do PNLD é publicado,
aproximadamente, dois anos antes da obra chegar nas escolas para consumo
22
A leitura das obras que serão analisadas pelo PNLD e
explicitadas nos Editais, assinala, igualmente, mudanças na grade
curricular. Assim, nos dois PNLD’s 2011 (ciclo II EF e EJA),
foram aceitas inscrições de coleções já tradicionais para esse nível
de ensino (Matemática, Português, Ciências, Geografia e
História) somadas ao ensino de língua estrangeira (Espanhol e
Inglês). O PNLD 2013 (ciclo I EF), por sua vez, inaugura o
credenciamento de obras de História Regional e Geografia
Regional. No âmbito do Ensino Médio, o PNLD 2015 traz a
preocupação com análise das disciplinas de Matemática, Biologia,
Física, Química, Língua Portuguesa, Línguas Estrangeiras (Inglês
e Espanhol), Geografia, História, Sociologia, Filosofia e Arte –
essa última, pela primeira vez para esse nível e incorporada no
Ensino Fundamental ciclo II, no PNLD 2017.
Capazes de informar sobre as políticas públicas destinadas
ao ensino, tal como, mudanças ou adequações das grades
curriculares, esses elementos, contudo, não contribuem para
compreensão do espaço da África nos livros didáticos. Para esse
fim, proponho a seguir analisar os Editais destinados a análise de
livros didáticos para o Ensino Médio9 já realizadas pelo PNLD.

dos estudantes. Recebe, contudo, a nomenclatura do ano que circula, não o


de publicação do Edital.
9
Trata-se de um recorte, já operado na dissertação de mestrado.
Indiretamente, sua escolha permite que não se adentre nas discussões da
Base Nacional Comum Curricular, pois, para esse nível de ensino – até o
presente momento – não existe um texto aprovado, tampouco, descrição
das habilidades e objetos de conhecimento definidos, como já estabelecido
para o ensino fundamental. Ao que parece a ausência de definição é uma
estratégia para a reforma do Ensino Médio, para a qual possuo inúmeras
ressalvas.
23
No total são quatro Editais de Convocação, referentes aos
anos 2007, 2012, 2015 e 2018. Nos quais realizei uma busca
inicial pelas palavras-chave “África”, “10.639”10 e “Parecer
CNE/CP n°003 de 10/03/2004”.
Na busca pela palavra-chave África, os Editais PNLD
2012 e 2015 apresentam uma ocorrência cada um na área de
Biologia. Consta em ambos: “divulga conhecimentos biológicos
para a formação de atitudes, posturas e valores que eduquem
cidadãos no contexto de seu pertencimento étnico-racial -
descendentes de africanos, povos indígenas, descendentes de
europeus, de asiáticos [...]” (PNLD2012, p.37; PNLD2015,
p.64). O fato mostra a pouca “aderência” da discussão nas
diferentes disciplinas, cabendo à História e, de forma mais
limitada, a Biologia, as poucas menções.
O primeiro Edital, PNDL 2007, foi publicado no ano de
2005, portanto, próximo do decreto da Lei 10.639/2003 e do
Parecer CNE/CP n°003 de 10/03/2004, que institui a Diretriz
Curricular para as Relações Étnico-Raciais (2004). Na mesma
linha de raciocínio, para participarem em 2005 do processo, as
obras precisariam já ter sua edição escrita e definida. Portanto,
atribuo a essa proximidade a limitada preocupação com temas
relacionados a África, africanos e afro-brasileiros no Edital e nos
livros didáticos aprovados11. Mesmo assim, existe a menção à Lei e
ao Parecer, fato que se repete nos outros três editais.
No Edital do PNLD 2012, além da instrução para
observação da Lei 10.639 e Parecer CNE/CP n°003 de

10
Vale lembrar que a lei foi atualizada em 2008 (11.645) incorporando
preocupação com as nações indígenas.
11
A obra Escravo, africano, negro e afrodescendente (GARRIDO, 2017)
ratifica a informação.
24
10/03/2004, o documento apresenta como critério eliminatório
que o “[manual do professor] oriente sobre as possibilidades
oferecidas para implantação do ensino de história da África, da
história e cultura afro-brasileira e das nações indígenas”
(PNLD2012, p.30 – grifos meus). Considero o fato um avanço,
mas uma orientação que não contribui diretamente para a
renovação de conteúdos consagrados, afinal, ainda que a obra
traga pouca – ou nenhuma – contribuição sobre os temas, ela não
seria desclassificada por esse motivo, pois, a instrução é clara:
“oriente possibilidades” aos professores!
O leitor pouco habituado com a leitura de editais, em
especial os de convocação do PNLD, poderá achar o texto
monótono e inalterado. Mas essa é uma falsa impressão. Em
pesquisa anterior, identifiquei que as alterações realizadas em
editais subsequentes, no geral, buscam solucionar problemas
identificados na avaliação anterior 12. Portanto, ainda que pareçam
poucas as alterações, elas são significativas, se comparadas em
perspectiva. E os dois últimos Editais vão ao encontro do meu
argumento.
Em ambos permanece a referência à Lei 10.639, o Parecer
CNE/CP n°003, e a instrução para o manual do professor. Essa
última, porém modificada a partir do PNLD 2015. Aqui o texto
do Edital pede que a orientação aos professores deve ser efetivada
“considerando conteúdos, procedimentos e atitudes” (PNLD
2015, p.56; PNLD 2018, p.48). Observe, não bastou indicar em
2012 que deveriam ser “orientando possibilidades”, foi necessário

12
Foi assim, por exemplo, que autores consagrados entre os professores
deixaram de figurar nas listas de aprovação do PNLD, pois, o Edital de
Convocação PNLD 2008, p.6, item 5.3.2.8 passou a exigir diploma do
autor na área de formação.
25
complementar quais seriam as ordens dessas possibilidades a
serem observadas, no caso, “conteúdos, procedimentos e
atitudes”.
Contudo, o mais significativo nos dois últimos editais está
na incorporação de critério de eliminação relacionado ao livro
regular – cujo destino é o estudante – no que tange conteúdo.
Neste sentido, os Editais determinam:

Desenvolve abordagens qualificadas sobre a história e


cultura da África, dos afrodescendentes, dos povos
afro-brasileiros e indígenas, em consonância com as
leis 10.639/2003 e 11.645/2008, (PNLD 2015,
p.55)
Desenvolve abordagens qualificadas sobre a história e
cultura da África, dos afrodescendentes, dos povos
afro-brasileiros e indígenas, em consonância com as
leis 10.639/2003 e 11.645/2008; tratando esses
sujeitos na sua historicidade e mostrando sua
presença na contemporaneidade de forma positiva;
(PNLD 2018, p.47)

Primeiro destaco que a mesma lógica permanece no


excerto, isto é, editais subsequentes apresentam alterações que
buscam aprimorar a avaliação e, consequentemente, os livros
didáticos. Em segundo lugar, enfim, mais de dez anos depois da
aprovação da lei, um Edital de Convocação do PNLD cobra
alteração de conteúdo de livro didático. Além disso, se ambos
indicam o desenvolvimento de abordagens qualificadas, o mais
recente edital vai além, e aborda um dos argumentos mais
presentes dos que defendem a História africana e afro-brasileira: a

26
necessidade de realizar esse estudo pela perspectiva desses sujeitos,
de forma positiva e contínua.

África e livros didáticos: os Guias de Livros Didáticos do


PNLD – EM
Se os Editais são o princípio da relação entre as editoras, o
governo e os avaliadores, o Guia é a ponta desse processo.
Composto das resenhas dos livros aprovados nas avaliações, esses
documentos podem desvendar, uma vez mais, possíveis alterações
nas obras didáticas. Diante dessas informações, apresento a análise
os Guias referentes aos Editais discutidos, portanto
correspondentes aos anos 2008, 2012, 2015 e 2018.13
Em 2008 foram aprovadas dezenove coleções de História
destinadas ao Ensino Médio. Em 2012 e 2015 esse número se
repete. Em 2018 o número de coleções aprovadas baixa para
treze. Ainda que exista um equilíbrio numérico das coleções
aprovadas, as obras diversificam-se significativamente. Dos
autores das dezenove coleções aprovadas e apresentadas no Guia
do PNLEM 2008, apenas 6 constam entre os aprovados no Guia
do PNLD 201814. Destes autores, três mudaram de editora,
portanto, as obras precisam ser diferentes das apresentadas com
outra editora; as outras três coleções (5 autores no total),

13
Sobre as tramas que envolvem a feitura das Resenhas, conferir: ALVIM,
Yara Cristina. O livro didático na batalha de idéias: vozes e saber
histórico no processo de avaliação do PNLD. Dissertação em Educação,
Universidade Federal de Juiz de Fora, 2010.
14
A sigla PNLEM passou a ser suprimida graças a formulações internas do
Programa, sendo universalizada a sigla PNLD para diferentes níveis de
ensino.
27
aprovadas nas quatro edições do PNLD ensino médio,
correspondem aos autores mais comprados no PNLD 200815.
Ou seja, o primeiro, segundo e terceiro campeões de
vendas em 2008 são, também, os únicos que permanecem
aprovados em todas as edições do PNLD destinados ao ensino
médio já realizadas e, possivelmente, bem quistos pelos
professores16. Dada a representatividade desses autores e obras,
vale a pena observar o que as resenhas dos Guias diziam sobre
conteúdo de África entre eles.
A resenha da coleção de Patrícia do Carmo Ramos Braick
e Myriam Becho Mota que integra o Guia 2008 menciona uma
única vez a palavra “África”. Na página 58 do documento, afirma
“Desenvolve a presença de conteúdos a respeito da História da
África”, mas a resenha opera uma ressalva pouco positiva
“Contudo, ao se propor a dar conta de um conteúdo muito vasto,
com grande quantidade de informações, a obra incorre em
algumas simplificações explicativas” (GUIA PNLEM2008, 2007,
p.58).17
15
As informações sobre quantidade de obras compradas e suas identificações
foi disponibilizada para a pesquisadora no ano de 2010 pelo Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Educação, e foram sistematizadas e
apresentadas na em minha dissertação de mestrado defendida em 2011,
publicada em formato de livro em 2017.
16
A compra dos livros didáticos é, segundo Edital PNLEM 2007, resultado
da escolha dos professores e da negociação FNDE com os titulares de
direitos autorais (p.12).
17
Com base em entrevista com setor editorial de uma das empresas mais
consolidadas no Brasil, professores e estudantes, Daniel Medeiros (2006)
afirma que o desinteresse dos estudantes para com o livro didático é grande
(apenas 7,6% afirmam que o livro prende o interesse), porém, essa questão
“nunca foi levada em consideração” na elaboração dos materiais segundo
representante da empresa (alvo da pesquisa e não identificada
28
No Guia PNLD 2018 na coleção “História das cavernas
ao terceiro milênio” a palavra “África” aparece seis vezes (quatro
delas no sumário da obra) e africanos outras quatro vezes. Nesse
Guia de Livros, informações pertinentes a África, africanos e
indígenas são apresentados com destaque, em parágrafo específico
em cada uma das resenhas. E sobre a coleção em questão, esse
parágrafo indica o atendimento a essas questões de forma
adequada, pois há reconhecimento da “legitimidade e a
necessidade de indígenas e negros por direitos” (GUIA
PNLD2018, 2017, p.91). Ainda segundo o documento, a
formação individual desses grupos são respeitadas, bem como, a
luta pela posse e manutenção da terra.
Em Gilberto Cotrim, “África” aparece uma única vez em
2008. Ao final da resenha, o texto indica “observa desequilíbrio
entre os conteúdos selecionados, particularmente a ausência de
conteúdos específicos sobre América hispânica e África” (GUIA
PNLEM2008, 2007, p.81), ainda que a mesma resenha tenha
indicado que existe “em algumas temáticas, sujeitos históricos
como escravos, africanos, sertanejos, cangaceiros e marinheiros”
(GUIA PNLEM2008, 2007, p.79).
Em contrapartida, a resenha da coleção “História Global”
no PLND 2018 indica em sua abertura que os livros apresentam
de forma integrada conteúdos relativos a Europa, África, Ásia,
América e Brasil. Mencionado quatro vezes o termo África, o
parágrafo específico sobre esse tema indica que ele está presente
em todos os volumes, “apresenta história, cultura e contribuições
do negro; diversidade no cotidiano, combate ao etnocentrismo;

nominalmente). Para a editora “O maior tempo de análise se passa na


construção do texto, mas o que conta como recurso de venda é a
quantidade de informação” (p.77).
29
resistência negra; e sujeitos negros positivados ao longo da
coleção” (GUIA PNLD2018, 2017, p.37). Mas há uma ressalva,
pois, de acordo com a resenha essa temática não é frequente nas
atividades pedagógicas.
Para Gislane Campos Azevedo Seriacopi e Reinaldo
Seriacopi, a resenha de 2008 apresenta a palavra “África” duas
vezes, em ambos os casos para elogiar a incorporação da História
da África na coleção, pois “Ela [a obra] oferece, também,
subsídios para ampliar e aprofundar os conhecimentos do aluno
sobre processos históricos relacionados a regiões e povos que, em
geral, recebem pouca atenção nos livros didáticos, como é o caso
da História da África e da Ásia” (GUIA PNLEM2008, 2007,
p.49), e ainda, “reforçando-se novos olhares lançados à História
da escravidão e das relações raciais nas Américas, no passado e no
presente” (GUIA PNLEM2008, 2007, p.47).
Em 2018 a obra parece ter preservado sua atenção com a
integração de África e Ásia – recebendo tal menção na página 23
do Guia. Nesse documento, África é mencionada quatro vezes e
africanos uma vez. O parágrafo específico para considerações
sobre a Lei 11.645, destaca o uso de conteúdos e estratégias
pedagógicas “para desconstrução de práticas e ideias racistas ou
preconceituosas” (GUIA PNLD2018, 2017, p.26), e aponta quais
são esses conteúdos: processo de escravização, memórias de
resistência, política de respeito a diversidade, inserção das
comunidades afro-brasileiras na sociedade brasileira, história dos
povos ascendentes das gerações que chegaram ao Brasil.
Desses dados algumas considerações são necessárias. De
certa forma, evidencia-se a atualização dessas obras, em
consonância, com debates que tem aflorado na educação – caso da
temática “África”. Provavelmente, o fato contribuiu para a
subsequentes aprovações dessas coleções. Contudo, indico que as
30
resenhas destacam, em especial, a história dos africanos no Brasil e
dos afrodescendentes, assim, não há necessariamente a introdução
da África – em diferentes aspectos, cronologias e concepções de
mundo – nessas coleções.
Sobretudo, a análise dos Editais e dos Guias, nos permite
observar como uma demanda social se apresenta enquanto
política pública. Possibilita, ainda, observar a dinâmica particular
desse processo.

África e livros didáticos: o caso das coleções de Patrícia do


Carmo Ramos Braick e Myriam Becho Mota
Os livros didáticos são objetos complexos (o artigo até
aqui indicou isso) e que pode ser observado enquanto mercadoria,
fruto da fabricação e comercialização, ligados ao interesse do
mercado; depositário de conteúdos curriculares/educacionais;
suporte privilegiado para se recuperar os conhecimentos e técnicas
considerados essenciais por uma sociedade; fonte e suporte para o
ensino e compreensão do ensino; portador de sistema de valores,
ideologias, culturas; constituído por um autor e suas opções
técnicas, metodológicas e teóricas; cuja produção sofre ainda as
interferências da edição; objeto sujeito a diversas leituras,
interpretações e uso; além de objeto das políticas públicas
educacionais, caso exemplar do PNLD (BITTENCOURT, 1993;
CHOPPIN, 1998; GARRIDO, 2017, p.13).
Considerados por um tempo vilões da educação, mas
ainda assim permanecido como material pedagógico mais
utilizado, é importante levar em conta todas essas multiplicidades
que compõem um livro didático. Portanto, ao analisar conteúdos
de livros didáticos – caso desse subtítulo – tenho em mente que é
apenas uma das facetas dos livros, talvez a mais evidente entre as
críticas, dada sua visibilidade. É por esse motivo que a discussão
31
aqui apresentada iniciou sua discussão pelo papel exercido pelas
políticas públicas (no caso o PNLD) na renovação dos livros
didáticos.18 Isto posto, a escolha das coleções para análise se deu
pelo sucesso entre as compras governamentais, automaticamente,
maior disseminação do produto dentre os estudantes do ensino
médio no país. Da mesma forma, optei por analisar os livros das
autoras aprovados no PNLD-EM 2008 (editado em 2005) e no
PNLD-EM 2018 (editado em 2013), portanto, dez anos depois,
passados quatro processos de avaliação governamental, busco
compreender qual é a representatividade da África nessas duas
coleções e se a distância entre elas indica modificações no
conteúdo didático, no que circunscreve a África.
Das autoras foi possível encontrar poucas informações. O
livro didático informa que Patrícia Braick possui mestrado em
História (área de concentração Sociedades Ibéricas e Americanas),
pela PUC-RS, e atua como professora do Ensino Médio em Belo
Horizonte (MG); Myriam Mota é licenciada em História pela
Faculdade de Itabira (MG), Mestre em Relações Internacionais

18
As políticas públicas capazes de promover renovação de livros didáticos
ganham nova dimensão a partir das discussões e aprovações da Base
Nacional Comum Curricular. Para o ensino fundamental sua aprovação se
deu em dezembro de 2017, ainda que envolta em muitas críticas, suas
determinações irão, progressivamente, alterar os textos didáticos dos livros
aprovados pelo PNLD. Na prática, para ensino fundamental, essas
modificações já podem ser observados, posto que desde 2017, o Edital do
PNLD2019 cobra das editoras às modificações das obras de acordo com a
terceira versão da BNCC. Como o texto da Base para Ensino Médio ainda
está em discussão e seu texto prévio não apresenta os conteúdos mínimos,
esse capítulo não aborda a BNCC como um elemento de modificação dos
livros do ensino médio, mas em breve, esse será um elemento importante a
ser observado.
32
pela Ohio University (EUA), atuando como professora do Ensino
Médio e Superior em Itabira (MG). Ambas possuem registro na
Plataforma Lattes, na qual confirma-se a formação de Myriam
Mota, mas não de Patrícia Braick, cujo preenchimento estava
pendente na data de consulta.
Comparando os sumários das duas coleções, ambas
divididas em três volumes (desde o PNLD2012 assim dispostos)
contabilizamos 46 capítulos na primeira coleção, com um total de
727 páginas; 44 capítulos19 e 768 páginas na segunda coleção.
Com dois capítulos a menos, a segunda coleção possui 41 páginas
a mais. Uma diferença pouco significativa e que indica que, se
houve incorporação de conteúdo, houve também o rearranjo deles
na obra para não estendê-la ainda mais.
Observo ainda que as divisões entre os volumes das
coleções são semelhantes e estabelecidas pela cronologia. Poucos
conteúdos são realocados em volumes diferentes, é o caso do
capítulo “As culturas indígenas americanas”, em 2005 primeiro
capítulo do volume 2, em 2015 décimo terceiro capítulo do
volume 1. Uma vez que cada volume é referente a um ano do
ensino médio, os conteúdos são dispostos levando em
consideração a tradição escolar (cronológica e linear) e as
instruções normativas.
Da leitura do índice, seus capítulos, subtítulos e textos
complementares, noto a existência de dois momentos em que
África entra na discussão na edição de 2005. Primeiro, no
capítulo 5 do volume 1, intitulado “A civilização floresce às
margens do Nilo”; a segunda ocorrência no volume 3, capítulo
14, sob o título “Conflitos Internacionais”. Na primeira

19
Considerei o capítulo introdutório na contagem, assim como havia feito
a edição da coleção anterior.
33
ocorrência o conteúdo se ocupa da explicação da civilização
egípcia, já consagrada na literatura didática, com texto
complementar de 1 página intitulado “Outros povos africanos”
(2005, p.46) sobre a cidade de Djenné, no Mali. Na segunda
ocorrência, o capítulo destinado a análise dos conflitos
internacionais contemporâneos, o volume 3 apresenta a “África:
estudos de caso”. Em, aproximadamente 4 páginas (2005, p.220-
223), as autoras abordam África do Sul e Angola, assim, apartheid
e lutas por independência são exemplificadas por esses dois casos,
que estão longe de sintetizar a pluralidade dos conflitos que
emergiram no continente.
A resenha da obra no Guia de Livros Didáticos alertava
“ao se propor a dar conta de um conteúdo muito vasto, com
grande quantidade de informações, a obra incorre em algumas
simplificações explicativas” (GUIA PNLEM2008, 2007, p.58),
acrescento que o conteúdo a respeito da África é superficial,
lacunar, enfim, insuficiente.
O mesmo esforço de análise do índice da coleção
publicada em 2015 apresenta outra realidade (ao menos
quantitativamente). São sete capítulos que apresentam alguma
discussão temática relacionada ao continente africano. No volume
1, capítulo 4 “Antiguidade Oriental”, capítulo 8 “A civilização
bizantina e o Islã”, capítulo 14 “A África dos grandes reinos e
impérios”. Volume 2, capítulo 6 “Religião e sociedade na América
Portuguesa” e capítulo 11 “O processo de independência da
América Portuguesa”. Por último, no volume 3, capítulo 1 “O
Imperialismo na África e na Ásia” e capítulo 8 “Os processos de
emancipação na África e na Ásia”.
Desses sete eventos, três deles são compostos por textos
complementares. O primeiro é um texto intitulado “O Islã na
África”. O excerto ocupa duas páginas (pp.144-145), é ilustrado
34
com fotografia de camelos atravessando o deserto, permitindo a
visualização do texto sobre mesmo tema, ou seja, a introdução do
camelo no norte africano pelos árabes muçulmanos e
fortalecimento comercial decorrente. Completa o conteúdo,
quatro questões de compreensão do texto. Curioso, árabes,
muçulmanos são mencionados enquanto composição humana, os
nomes africanos são reservados apenas as cidades que praticavam
comércio, “fundadas pelos mercadores muçulmanos” (p.145) sem
correlacionar os africanos – fossem eles islamizados ou não – no
processo.
Os outros dois textos complementares coincidem com os
dois momentos em que a temática aparece no volume 2. O
primeiro é um excerto extraído do livro de Marina de Mello e
Souza, Catolicismo negro no Brasil, ilustrado por uma gravura de
1686 e uma fotografia de 2012, acompanhado por quatro
questões de interpretação do texto. O texto complementar retrata
a existência do cristianismo no Reino do Congo (antes da
colonização), as identidades e crenças trazidas no tráfico e
rearranjadas na América, como forma de criar laços de
solidariedade. Trata-se de uma excepcional intervenção no
conteúdo do capítulo sobre Religião e Sociedade na América
Portuguesa.
O segundo texto complementar é um trecho retirado do
livro de Selma Pantoja, Gênero e Comércio, a respeito de
mulheres influentes (mestiças ou negras) em Luanda. Nesse caso
não há ilustrações, apenas três exercícios de interpretação de texto
e busca de informação para ser realizada na internet. O conteúdo,
por sua vez, aborda questões pouco exploradas no universo escolar
– e acadêmico, porque não? - sobre a existência de mulheres que
capitalizaram posses em Luanda e exerciam influência econômica
na cidade e tráfico transatlântico. Mulheres e o cenário luandense
35
permitem um “respiro” em capítulo dominado por explicações
político/econômicas, caso do “Processo de Independência da
América Portuguesa”.
O volume 1, apresenta o capítulo 4 “Antiguidade
Oriental” cuja composição é feita de conteúdos sobre
Mesopotâmia, Egito, Fenícios e Núbia. Na prática, apenas Núbia
não faz parte da tradição escolar, os demais são há muito tempo
apresentados sobre a batuta do “Oriente Extremo” agora
renomeado para “Antiguidade Oriental”. As três páginas
introduzem um longo período histórico da Núbia, a perspectiva
política econômica (os grandes eventos) tomam a narrativa, e a
Núbia é, em grande parte, abordada pela relação com o Egito,
algo que a historiografia vem apontando como problemático –
ainda que, historiograficamente, a produção acadêmica sobre
Núbia conviva com a mesma questão.
O terceiro volume da coleção traz, por sua vez, dois
capítulos que abordam África. Conteúdo escrito, texto
complementar, atividades, atividades direcionadas para o Enem,
ocupam 36 páginas do volume 3 (total 272páginas). Utilizadas
para apresentar aos estudantes a História africana contemporânea,
as páginas abordam a Conferência de Berlim, processos de
emancipações e imigração africana (diante das guerras civis). As
mesmas 36 páginas abordam a partilha e independência da Ásia,
com destaque para Japão, China, Índia e Indonésia.
No capítulo denominado “O imperialismo na África e na
Ásia”, a análise do conteúdo textual destinado a África demonstra
que a história de que ali se trata é a europeia. Explica-se o “fardo
do europeu”, sua existência no continente desde o século XV, os
interesses da burguesia europeia fora das fronteiras nacionais, e
legitimação do discurso pelo “darwinismo social”, e os interesses

36
particulares das nações europeias sobre as regiões que dominarão.
A respeito dos africanos o último parágrafo diz:

Muitos povos africanos resistiram à dominação, o que


resultou em prolongados conflitos, como no
Marrocos (França), no Sudão (Grã-Bretanha) e em
outras regiões do continente. À exceção da Libéria e
da Etiópia, as populações africanas acabaram
subjugadas após conflitos marcados pela violência.
(BRAICK; MOTA; 2015, p.12)

Em relação as ilustrações o capítulo acompanha o mapa


do domínio europeu sobre a África e uma (terrível) fotografia de
1900, com congoleses aprisionados e enfileirados com correntes
no pescoço que descem em direção aos pés, posa ao lado deles um
homem negro, sem correntes, com chapéu que parece lhe conferir
certa distinção, subentende-se que ele é um “auxiliador” do
colonizador. 20
Textos e imagens reforçam uma narrativa cuja
centralidade é ocupada pelo europeu, cabendo ao africano
silenciamento ou estereótipos, caso da imagem sem nenhuma
problematização ou orientação ao professor, que pode não estar
atento a literatura sobre África e não saber problematiza-la. É
necessário que se compreenda o processo de partilha também pela
perspectiva endógena, que no caso, traria conflitos e acomodações
por parte dos africanos, ou abordaria a vida na Libéria e na

20
Caso deseje visualizar a imagem, ela pode ser facilmente encontrada na
plataforma de busca Google. Ver, por exemplo: A mentira do opressor.
Disponível em: https://brainly.com.br/tarefa/13225024. Acesso em: 29 de
dez. 2018.
37
Etiópia, enquanto o continente era partilhado e dominado.
Apenas a menção de dados não auxilia a construção de uma
história africana, contribuindo enormemente para as
generalizações e o consecutivo esquecimento desses sujeitos.
A crítica que faço sobre esse primeiro capítulo é a mesma
que inicia o oitavo capítulo do volume três. As autoras que até
aqui pouco espaço deram para as perspectivas endógenas
(africanas) dos processos ocorridos no continente, iniciam o
capítulo afirmando que a explicação de África sob o prisma do
europeu vem sendo revista (mesmo que não apresentada por elas,
aparentemente).
Da mesma forma, é positiva a apresentação do Pan-
africanismo e do conceito de negritude, essenciais para o processo
de emancipação, expressa em seguida. Contudo, abordar as
críticas elaboradas por Jean-Paul Sartre, em Orfeu Negro,
acompanhada de citação de Aimé Césaire sobre não se poder fazer
“um gobinismo as avessas”, pode ser muito mal interpretado no
espaço escolar, reforçando um estereótipo brasileiro de “racismo
às avessas”, inexistente no mundo real, uma vez que racismo
prescinde de poder.
Para narrar as emancipações as autoras operam também
por seleção de exemplos. Argélia, Guiné-Bissau, Angola,
Moçambique e África do Sul, são os exemplos selecionados e
observe: os recortes não foram realizados para melhor trabalhar
conteúdo, na prática, a seleção transformou histórias em
ilustração, em amostra. O espaço dedicado a cada um não é
padronizado, Argélia e África do Sul ocupam maior espaço dado
suas singularidades; os outros três países são abordados tendo
como denominador comum a colonização portuguesa, e os
eventos da Revolução dos Cravos como propulsor da paz.

38
Considerações realizadas pela Resenha do PNLD 2008 e
aqui já mencionadas são verdadeiras também para a coleção 2018.
Isto é, na tentativa de abarcar um volume grande de informações,
as autoras e suas coleções (fruto de todo um processo editorial),
simplificam processos e silenciam sujeitos históricos. É possível
que suas escolhas levem em conta a frequência em que esses temas
aparecem nos exames vestibulares, ou do status já consagrados que
ocupam – caso da África do Sul e do apartheid -. Aqui a crítica
não recai exclusivamente a essa coleção, mas é generalizada, é
fundamental operar recortes e sobre eles realizar análises
aprofundadas. Do contrário, continuaremos tentando explicar
processos complexos ora por meio de exemplos ora por meio da
política internacional, sempre arranhando a superfície da história.
Ainda que o capítulo se destaque positivamente em alguns
momentos, como a apresentação da presença de estudantes
africanos no Brasil, o conteúdo ainda é marcado por seu caráter
lacunar, tanto da perspectiva cronológica quanto do evento, que
em geral é explicado por intermédio do “exemplo”; a explicação
ainda está pautada, majoritariamente, na perspectiva europeia;
conhece-se a crítica sobre essa opção, mas a perspectiva endógena
é pouco ou nada explorada; em certos momentos, existe a
reprodução de estereótipos. Em suma, o estudante do ensino
médio sai da leitura dessas coleções com pouca ou nenhuma
compreensão da África.

Considerações Finais
Seja por pressão dos movimentos sociais ou por
adensamento das discussões acadêmicas, cuja relação é evidente, as
informações sobre África aparecem com maior regularidade e
qualidade se comparado na oportunidade da aprovação da Lei

39
10.639. Isso não significa que a questão esteja resolvida, pois, ela
não está.
Os conteúdos didáticos permanecem exibindo a
superioridade dos conteúdos ligados a história europeia, assim
como a grade curricular universitária. No que se refere os
conteúdos didáticos, existe um aumento do conteúdo, mas ele
ainda se faz de forma lacunar, sem efetiva preocupação com os
aspectos endógenos e reproduz estereótipos.
Se nos guiamos pela concepção de “livro ideal” como
proposto por Rusen (2010), é necessário que os livros didáticos
brasileiros observem um formato e estrutura claros, facilitando a
compreensão dos objetivos estabelecidos para cada conteúdo; uma
estrutura didática clara pela qual o próprio aluno possa reconhecer
os motivos da distribuição dos conteúdos e os pontos
considerados mais importantes; os livros devem apresentar uma
relação produtiva com o aluno, referindo-se a ele, utilizando a
curiosidade que é própria de certa idade, bem como seus
interesses e linguagens; e, por fim, uma relação com a prática de
aula, portanto, que se mostre útil, não meramente com o acúmulo
de textos e informações, mas que estas possam ser mobilizadas
com a finalidade de estimular questões, argumentos, consciência
histórica. A apresentação e problematização de fontes históricas,
por exemplo, é uma via que deve ser ampliada. Muitos dos livros
disponíveis no mercado brasileiro contemplam parte dessas
considerações, mas é necessário um esforço para ampliar essas
perspectivas entre autores/editoras/professores.
Pesquisas que buscam observar a perspectiva das editoras
de livros didáticos apontam que o caráter “conservador” das obras
de empresas já consolidadas correspondem ao temor de perder
espaço dentre os clientes, no caso os professores que operam as
escolhas dos livros. Discussões políticas, religiosas e de
40
comportamentos, por exemplo, são “vigiadas” para não
desagradar diferentes segmentos docentes, uma vez que o produto
corre em âmbito nacional (MEDEIROS, 2006). O fenômeno,
somado a análise aqui efetuada, são complementares e indicam
mais uma variável que dificulta a renovação da história ensinada
na escola.
O fato exige, ainda, mais preocupação com a formação
dos professores, pois, com uma boa formação é possível
transformar um conteúdo limitado em uma discussão profícua.
Por isso, a necessidade de nos preocuparmos com a formação
docente. Afinal, o que define a qualidade de uma aula ou do
ensino de um conteúdo é, acima de tudo, a atuação do professor.
É necessário que os docentes, parte significativa deles formados
antes da legislação que determinou o ensino de África nas escolas,
compreendam a importância de conhecer e ensinar História da
África. Mesmo argumento compete para afro-brasileiros e
indígenas. Para tal, é fundamental manter a vigilância e discussão
sobre as questões étnico-raciais.21

Fontes
BRASIL, Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica,
Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. PNLD
2018: história – guia de livros didáticos – Ensino Médio.

21
Igualmente a formação dos que ministram disciplinas sobre África e o
conteúdo desses cursos ainda precisam de reflexão. Sobre o assunto,
considerações podem ser obtidas na tese de doutorado de Cintia Diallo
(2017), cujo esforço buscou compreender a formação de docentes que
ministram disciplinas de África e afro-brasileiros, conteúdos e concepções
dessas disciplinas, oferecidas em universidades públicas do estado do Mato
Grosso do Sul.
41
Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica,
2017.
MOTA, Myriam Becho; BRAICK, Patrícia Ramos. História: das
cavernas ao terceiro milênio. Vol.1, 1. ed. São Paulo: Moderna,
2005.
______. História: das cavernas ao terceiro milênio. Vol.2, 1.
ed. São Paulo: Moderna, 2005.
______. História: das cavernas ao terceiro milênio. Vol.3, 1.
ed. São Paulo: Moderna, 2005.
______.História: das cavernas ao terceiro milênio. Vol.1, 3.
ed. São Paulo: Moderna, 2013.
______. História: das cavernas ao terceiro milênio. Vol.2, 3.
ed. São Paulo: Moderna, 2013.
______. História: das cavernas ao terceiro milênio. Vol.3, 3.
ed. São Paulo: Moderna, 2013.
Secretaria da Educação Básica, Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação. Edital de Convocação para o
processo de inscrição e avaliação de obras didáticas para o
Programa Nacional do Livro Didático – PNLD 2015.
Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica,
2013.
______. Edital de Convocação para o processo de inscrição e
avaliação de obras didáticas para o Programa Nacional do
Livro Didático – PNLD 2018. Brasília: Ministério da
Educação, Secretaria de Educação Básica, 2016.
______. Edital de Convocação para Inscrição no processo de
avaliação e seleção de obras didáticas a serem incluídas no
Catálogo do Programa Nacional do Livro para o Ensino
Médio – PNLEM 2007. Brasília: Ministério da Educação,
Secretaria de Educação Básica, 2005.

42
______. Edital de Convocação para Inscrição no processo de
avaliação e seleção de obras didáticas para o Programa
Nacional do Livro Didático 2012 – Ensino Médio. Brasília:
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2010.
______. História: catálogo do Programa Nacional do Livro
para o Ensino Médio: PNLEM 2008. Brasília: Ministério da
Educação, Secretaria de Educação Básica, 2007.
Secretaria da Educação Básica. Guia de livros didáticos: PNLD
2012: História. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria da
Educação Básica, 2011.
______. Guia de livros didáticos: PNLD 2015: História:
Ensino Médio. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria da
Educação Básica, 2014.
______. Guia de livros didáticos: PNLD 2018: História:
Ensino Médio. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria da
Educação Básica, 2017.

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43
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Ensino Superior Público: análises sobre currículos e disciplinas
dos cursos de licenciatura em História em Mato Grosso do Sul
(2003-2016). Tese de Doutorado em História, Universidade
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DOMINGUES, Petrônio. “Movimento Negro Brasileiro: alguns
apontamentos históricos.” Tempo [on-line]. 2007, vol.12, n.23,
p.100-122.
Editais – Portal FNDE. Disponível em:

44
http://www.fnde.gov.br/programas/programas-do-
livro/consultas/editais-programas-livro. Acesso em 05 fev 2018.
FAGE, J. D. A evolução da historiografia da África. In:
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GARRIDO, Mírian C. M. Escravo, africano, negro e
afrodescendente: a representação do negro no contexto pós-
abolição e o mercado de materiais didáticos (1997-2012). São
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MEDEIROS, Daniel Hortêncio. “Materiais didáticos e formação
da consciência histórica”. Revista Educar, Curitiba, Especial,
2006, p.73-92.
RÜSEN, Jörn. O manual didático ideal. In: MARTINS, Estevão;
SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel. Jörn Rüsen e o
Ensino de História. Paraná: EDUFRN, 2010.

45
46
ESTRATÉGIAS PARA O ENSINO DE HISTÓRIA E
CULTURA AFRO-BRASILEIRA NA EDUCAÇÃO
BÁSICA: REPRESENTAÇÃO DO NEGRO NA
SOCIEDADE E NA SALA DE AULA
Felipe de Moura Garrido1

Em 2013, teve início a discussão da Base Nacional Curricular


Comum, conduzida pelo Ministério da Educação. A intenção
referente ao documento era normatizar o ensino no país, haja
vista que os outros documentos oficiais (PCNs e LDB) não
correspondiam ao conteúdo a ser ensinado ou às expectativas
mínimas de aprendizagem, embora regulassem o funcionamento
dos sistemas educacionais no Brasil.
O MEC, àquela altura, compreendeu a necessidade de
oficializar uma grade curricular mínima e as competências básicas
que devem ser desenvolvidas em cada ano e dentro das unidades
escolares. A pretensão do Ministério da Educação era possibilitar a
equidade de ensino entre os estudantes do território brasileiro. O
desafio a essa proposta se colocou pela própria extensão do
território, já que o Brasil possui diferentes regionalidades que
devem ser respeitadas e contempladas pelos sistemas educacionais.
Os esforços para a formulação da BNCC foram
coletivos, embora alguns grupos tenham influenciado de forma
decisiva no processo, conduzido pelo MEC. As versões passaram
por consulta pública que, depois da análise das sugestões de
1
O autor é doutor em História Social pela Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG), programa de pós-graduação da Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas. Desenvolve pesquisas na área de História Colonial,
especialmente as estratégias de manutenção de poder das elites locais.
Atualmente, é professor de ensino básico no Serviço Social da Indústria –
SESI/SP. E-mail: fegarrido@gmail.com
47
gestores, professores e alunos, foi encaminhada para o Conselho
Nacional de Educação.
A aprovação do documento final ocorreu em dezembro
de 2017, quando foi lançado o parecer do Conselho Nacional de
Educação. Esse documento tem caráter mais técnico que a BNCC
e aponta os caminhos para a elaboração da Base. Em primeiro
lugar, ele contempla o histórico de elaboração da Base Nacional,
indicando que desde a década de 70, os governos vinham
tentando delimitar os componentes curriculares e suas
especificidades por faixa etária. Em segundo lugar, a própria
construção da Base decorreu de um processo normativo pelo
MEC e da necessidade de estabelecer diretrizes para os conteúdos
obrigatórios por faixa etária, esforço que os outros documentos
não contemplaram, embora sugerissem fazê-lo (CNE. PARECER
BNCC, 2017, p.1-9).
O Conselho Nacional de Educação também se
posicionou em relação aos avanços do sistema educacional
brasileiro nos últimos anos. A inserção de crianças e jovens na
escola, de fato, avançou. Hoje, o Brasil tem 94% de crianças e
jovens matriculados nas escolas. Todavia, a qualidade do ensino
ainda precisa ser melhorada. Os indicadores apresentados no
parecer mostram que existe baixo investimento na Educação
Infantil, anos iniciais, e a maior parte dos alunos estão em escola
pública. Dessa forma, ainda que tenha ocorrido aumentos nos
investimentos em educação e a melhora nos índices de qualidades,
essas conquistas foram tímidas e não superam as necessidades para
o desenvolvimento econômico e social dos jovens (CNE. Parecer
BNCC, 2017, p. 11-12 e 17-20).
Por último, o parecer elogia a BNCC por contemplar a
educação integral dos estudantes (diferente da educação em
tempo integral), pois se preocupa com o desenvolvimento dos
48
educandos em diferentes dimensões – físico, emocional, social,
cultural, intelectual e computacional. Ao mesmo tempo, o parecer
aponta outros gargalos para a melhora na qualidade da educação
brasileira, tais como a formação dos professores e os baixos
salários praticados no Brasil, mas não indica caminhos para a
solução desses problemas. De forma geral, esse documento é um
importante panorama da situação educacional, seus avanços e
desafios, e posiciona a Base Nacional Curricular Comum como
um norte a ser seguido nas escolas públicas e privadas do Brasil
(CNE. Parecer BNCC, 2017, p. 20-31).
A introdução da Base Nacional Curricular Comum
indica os objetivos e o amparo legal da normativa. Os aspectos
legais, embora importantes para legitimar a reforma educacional
empreendida no Brasil, não será alvo de análise nesse texto. Por
outro lado, os objetivos arrolados na introdução, assim como as
competências gerais e específicas, são essenciais para compreender
o sistema educacional que se pretende estruturar no Brasil.
A BNCC, “soma-se aos propósitos que direcionam a
educação brasileira para a formação humana integral e para a
construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva”.
Portanto, a Base visa um sistema educacional que repense a
estrutura desigual na qual esteve assentada, contribuindo para
uma reversão desse panorama. Adiante, o documento garante que
não se trata de um currículo único, restritivo e fechado. Na
realidade, busca-se o inverso. Para garantir a equidade de ensino,
num país com as profundas desigualdades brasileiras, é necessário
currículos “diferenciados e adequados a cada sistema, rede e
instituição escolar”. Para não restar dúvidas, o documento retorna
ao conceito de equidade, pois visa “reverter a situação de
exclusão histórica que marginaliza muitos grupos minoritários –

49
como os indígenas e os quilombolas (MEC. BNCC. 2017, p. 8-
11 – grifos do documento).
Para que a Base Nacional Curricular Comum e os
conteúdos mínimos por ela apontados levem a melhoria da
qualidade educacional e à reversão da situação de exclusão
histórica, é necessário que novas abordagens de temas ocorram.
Dificilmente será possível grandes avanços com as mesmas
práticas.
Portanto, pretendemos auxiliar na compreensão das
estratégias de vida da população escravizada no Brasil
(CHALHOUB, 2011, p. 12-31). Especificamente, pretendemos
demonstrar que negros escravizados faziam parte da rede de
crédito da sociedade colonial e participavam das Irmandades
Religiosas como estratégias conscientes de melhoria das condições
de vida (GIL, 2009: p. 215-221). 2
O tema não é inédito na historiografia, e nem
pretendíamos que fosse. Autores como Robert Slenes (2011) e
Sidney Chalhoub (2011), que são referências na elaboração desse
texto, abordaram esse processo. O objetivo é pensar em formas de
trabalhar essa temática em sala de aula, fazendo uso de
documentos históricos, revelando um pouco do ofício do
historiador para os estudantes.
Esse texto, assim, é dividido em dois tópicos: “BNCC e
suas competências” e “Fontes Históricas e sala de aula”. No

2
Tiago Gil assinalou as estratégias de crédito das elites locais na sociedade
colonial da América portuguesa. Em sua análise, os participantes de
instâncias administrativas e oficiais das ordenanças tinham maior
disponibilidade de crédito e também emprestavam mais. Isso era
decorrência da visão hierarquizada da sociedade, típica da sociedade de
Antigo Regime. Dessa forma, podemos observar que essa visão de mundo
não era restrita aos brancos livres, mas também à população escravizada.
50
primeiro tópico, pretendemos retomar a importância da Base
Curricular para o sistema educacional brasileiro e as
potencialidades desse documento. Fazemos um levantamento das
competências gerais e específicas para História, de maneira a
compreender os principais objetivos por trás da elaboração do
documento. Ao mesmo tempo, no segundo tópico, visamos
informar sobre maneiras de trabalhar com fontes históricas em
sala de aula, ultrapassando a visão limitada da escravidão, na qual
os corpos escravizados eram meros instrumentos sem agência3.

Base Nacional Curricular Comum e suas Competências


A Base Nacional Curricular Comum para o Ensino
Fundamental, anos iniciais e finais, teve um amplo histórico de
debates. A sua formulação já era apontada como uma necessidade
para o sistema educacional brasileiro, desde a promulgação da
Constituição de 1988. No artigo 210, afirma-se que “serão
fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de
maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores
culturais e artísticos, nacionais e regionais” (BRASIL,
Constituição Federal, 1988). Sendo assim, a arquitetura do
sistema educacional previa a formulação de uma base comum que
viesse a atender os requisitos mínimos a serem atendidos pelos
estabelecimentos educacionais.

3
O conceito de agência é decorrente da capacidade de agir. A historiografia
tradicional trabalhou com visões limitadas sobre a população escravizada,
pois identificava o negro escravizado na sociedade colonial como um
alguém sem possibilidades de ação. As pesquisas mais recentes identificam
diferentes estratégias dos negros escravizados para melhorar sua qualidade
de vida, agindo, portanto, naquela sociedade para levar adiante seus
objetivos.
51
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1996) e as
Diretrizes Curriculares (1997-2013) retomaram a necessidade de
uma base comum, antevendo o passo que seria dado futuramente.
O artigo 26 da LDB (1996) informava que “os currículos do
ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional
comum, a ser complementada, [...], por uma parte diversificada,
exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da
cultura, da economia e da clientela”. A redação foi alterada pela
lei 12.796, de 2013, mas não se alterou a intenção. Já nas
Diretrizes Curriculares Nacionais (2010) reforça, em seu artigo
14, a necessidade da base comum e a define como
“conhecimentos, saberes e valores produzidos culturalmente,
expressos nas políticas públicas”.
O processo de elaboração contou com a participação do
Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e da
União Nacional dos Dirigentes Municipais da Educação
(Undime)4. Os órgãos foram incluídos no grupo de redação
através da portaria 592 do Ministério da Educação, em 2015. No
mesmo ano, saiu a primeira versão da Base Curricular (BRASIL,
MEC, 2016).
O ano de 2016 foi marcado pelo amplo debate público.
O governo disponibilizou um site para contribuições públicas de
toda a sociedade. As contribuições estão disponíveis no portal do
MEC e, após sistematização de uma equipe da UnB, deu forma a
segunda versão da Base Nacional Curricular Comum.

4
O Consed se define como um conselho com finalidade de promover a
integração entre as redes estaduais de educação para intensificar a
participação dos estados no processo decisório nacional. E, a Undime diz
ter por princípio mobilizar e articular os dirigentes municipais em defesa a
educação pública com qualidade social.
52
Por fim, no ano de 2017, a Base foi novamente
discutida. Em abril, a terceira versão foi redigida, alterando
determinados pontos, sistematizando as contribuições da
sociedade e adequando o formato para o ensino fundamental e
infantil. O ensino médio foi desmembrado para um documento
próprio, ainda em formulação. Entre junho e setembro desse ano,
a Base foi discutida no Conselho Nacional de Educação, no qual
o parecer n. 1.570, publicado no Diário Oficial em 21/12/2017,
oficializou a terceira versão da Base Curricular.
O trâmite burocrático e operacional da escrita da Base
Curricular demonstra a preocupação em ampliar o debate sobre
os conteúdos mínimos a serem trabalhados em sala de aula. O
documento passou por diferentes governos, desde a Constituição
de 1988 até a sua terceira versão, e por diferentes visões de
política pública e educacional. Isso não significa que ela seja um
espelho dos interesses da sociedade, mas faz parte de um amplo
processo democrático de formulação. O parecer do CNE apontou
cinco Audiências Públicas Nacionais, uma para cada região do
território nacional, realizados entre 7 de junho e 11 de setembro
de 2017, nas cidades de Manaus, Recife, Florianópolis, São Paulo
e Brasília (CNE, Parecer PROCESSO Nº: 23001.000201/2014-
14: 10). Dessa forma, embora as reuniões não tenham sido
realizadas no interior, nem tenham feito videoconferências que
dessem mais voz para diferentes partes do território, existiu
esforço por parte do MEC em compreender as múltiplas
realidades da Educação no Brasil.
Após compreender o processo da redação da Base
Curricular, precisamos entender o que está escrito no documento.
A sua introdução deixa claro a posição complementar que ela
ocupa, sendo mais um instrumento normativo do currículo
mínimo que deve ser cumprido pelo sistema educacional.
53
Conforme redação oficial: “BNCC e currículos têm papéis
complementares para assegurar as aprendizagens essenciais
definidas para cada etapa da educação básica” (BRASIL, BNCC,
2017, p. 12 – grifos nossos).
Para desenvolver as aprendizagens essenciais nos alunos
brasileiros, a BNCC estipulou uma série de competências que
devem ser atingidas durante a formação. As competências são
entendidas como “a possibilidade de utilizar o conhecimento em
situações que requerem aplicá-lo para tomar decisões pertinentes”
(BRASIL, BNCC, 2017, p. 15), identificando um conhecimento
que seja significativo para as diferentes realidades brasileiras e
ultrapasse o formato “bancário” de educação (FREIRE, 2005, p.
65-82).
O documento também listou as competências a serem
desenvolvidas. Nesse texto, interessa-nos as seguintes
competências gerais:

2. Exercitar a curiosidade intelectual e recorrer à


abordagem própria das ciências, incluindo a
investigação, a reflexão, a análise crítica, a imaginação
e a criatividade, para investigar causas, elaborar e
testar hipóteses, formular e resolver problemas e
inventar soluções com base nos conhecimentos das
diferentes áreas. [...]
9. Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de
conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e
promovendo o respeito ao outro, com acolhimento e
valorização da diversidade de indivíduos e de grupos
sociais, seus saberes, identidades, culturas e
potencialidades, sem preconceitos de origem, etnia,
gênero, orientação sexual, idade,
54
habilidade/necessidade, convicção religiosa ou de
qualquer outra natureza, reconhecendo-se como parte
de uma coletividade com a qual deve se comprometer
(BRASIL, BNCC, 2017, p. 18-19).

Selecionamos essas duas competências, pois elas


demonstram a preocupação em um processo pedagógico ativo, no
qual a operação com fontes históricas, por exemplo, seja um
modelo para sala de aula. E, ao mesmo tempo, a educação deve
servir para a formação de uma sociedade mais justa, na qual o
respeito e a valorização da diversidade sejam a regra. Assim,
observamos a necessidade de práticas pedagógicas que questionem
a historiografia tradicional que permeia os livros didáticos acerca
do sistema escravista e a cultura afrodescendente.
Nos mesmos moldes, as competências específicas de
História reforçam a necessidade do trabalho com fontes
documentais e o respeito à diversidade. Conforme podemos notar
nas competências:

5. Elaborar questionamentos, hipóteses, argumentos e


proposições em relação a documentos, interpretações
e contextos históricos específicos, recorrendo a
diferentes linguagens, exercitando a empatia, o
diálogo, a resolução de conflitos, a cooperação e o
respeito.
6. Identificar interpretações que expressem visões de
diferentes sujeitos, culturas e povos com relação a um
mesmo contexto histórico, e posicionar-se
criticamente com base em princípios éticos
democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários. [...]

55
9. Compreender e problematizar os conceitos e
procedimentos próprios à produção do conhecimento
historiográfico (BRASIL, BNCC, 2017, p. 352).

Portanto, pretendemos estruturar uma prática


pedagógica que vai ao encontro das competências elencadas pela
Base Comum e, ao mesmo tempo, pressupõe o conhecimento
ativo de estudantes do sistema educacional, colocando-os na
posição de historiadores. Sabemos que não é objetivo do ensino
básico formar historiadores, todavia notamos em nossa prática
que o ensino prático e o uso de documentos oficiais em sala de
aula potencializam as múltiplas habilidades dos estudantes,
ressignificando o conhecimento e relacionando com suas
experiências (FONSECA, 1993, p. 85-118).
A Base Comum também elenca as habilidades que
devem ser estudadas em cada ano. Em outras palavras, os
conteúdos mínimos que os alunos devem desenvolver ao longo do
ano letivo. No oitavo ano, o conteúdo selecionado segue a
marcação tradicional feita no Brasil, iniciando na crise do Antigo
Regime e terminando com as “Configurações do mundo no
século XIX”. Anotamos duas habilidades da Unidade Temática
“O Brasil no século XIX”, nos objetos de conhecimento “O
escravismo no Brasil do século XIX: plantations e revoltas de
escravizados, abolicionismo e políticas migratórias no Brasil
Imperial”, que seriam:

EF08HI16 - Formular questionamentos sobre o


legado da escravidão nas Américas, com base na
seleção e consulta de fontes de diferentes naturezas;
EF08HI17 - Identificar e relacionar aspectos das
estruturas sociais da atualidade com os legados da
56
escravidão no Brasil; (BRASIL, BNCC, 2017, p.
377).

As duas habilidades exemplificam nossa preocupação,


pois pretendem questionar o legado da escravidão partindo da
consulta de fontes e analisar o impacto da escravidão para as
estruturas sociais. Compreendemos que o ensino de História,
assim, ultrapassa a memorização de diferentes conceitos e
processos, mas se torna significativo no entendimento da
sociedade que nos cerca (FREIRE, 2005, p.89-116).

As fontes em sala de aula


As fontes históricas são recursos essenciais na compreensão
da prática dos historiadores e na formulação dos conteúdos
desenvolvidos em sala de aula. Historiadores e pedagogos
indicaram a necessidade do uso de documentos como ferramentas
diversificadas em sala de aula, pois desperta o interesse do
estudante e favorece o processo de ensino-aprendizagem
(BITTENCOURT, 2008, p. 191-215).
Da mesma maneira, os livros didáticos, principal
instrumento de sala de aula, estão em constante atualização e
fazem uso de fontes históricas, em diagramação específica.
Tradicionalmente, os livros didáticos apresentam imagens, mapas,
textos e indicações de vídeos e filmes sobre os contextos
estudados. Atualmente, eles promovem uma mudança na
utilização desses objetos ao centralizar a leitura neles através de
boxes ou outros componentes gráficos (BITTENCOURT, 2008,
p. 81-88, 183-191 e 191-215). Sugere-se, dessa forma, um
alinhamento entre os entendimentos pedagógicos, os órgãos
oficiais do governo e o mercado editorial.

57
Para esse texto, resolvemos abordar o uso das fontes no
estudo da escravidão e da história dos afro-brasileiros. As fontes
selecionadas estão disponíveis em acervo digital ou arquivos
municipais e podem ser consultadas com determinada facilidade,
a depender do município. Ao mesmo tempo, vamos identificar
alguns processos gerais que ocorriam no Brasil do século XIX,
especialmente em sua primeira metade.
Na pesquisa de doutorado, procuramos entender,
identificar e comparar as estratégias sociais, econômicas e políticas
de formação de clãs familiares numa área economicamente
periférica da América Portuguesa, posteriormente Brasil. O
recorte geográfico corresponde a vila de Taubaté, na região do
Vale do Paraíba paulista, a qual é famosa tanto pelas expedições
Bandeirantes, no século XVII, quanto pelos Barões do Café, no
século XIX. A nossa seleção cronológica, porém, visou
compreender a economia taubateana entre seus dois períodos
áureos e as elites que foram responsáveis pela expansão da
cafeicultura na vila, entre 1780 e 1830. Assim, buscamos
compreender quem eram os sujeitos e o que eles produziam na
formação de suas fortunas que, no século XIX, seriam utilizadas
para o estabelecimento das plantações de café e sua exportação via
porto de Santos e Rio de Janeiro (GARRIDO, 2016).
A pesquisa se baseou num amplo corpus documental:
maços de população, atas da câmara, inventários e documentos
oficiais. Os Maços de População eram espécies de censos
primitivos, pois eram documentos escritos anualmente em todas
as vilas da Capitania/Província de São Paulo, entre 1765 e 1856,
que arrolavam os donos de unidades produtivas (fogos), a
quantidade de sujeitos escravizados e as patentes militares. Em
determinados períodos, as listas melhoraram de qualidade e
passaram a anotar também o que era produzido e outros detalhes
58
sobre a vida pessoal dos moradores. Todavia, as informações
devem ser relativizadas, haja vista que nem todos os capitães-
mores fizeram suas listas com o devido zelo e a metodologia de
computação dos números variou de caso a caso (BACELLAR,
2008).
As atas da câmara de Taubaté foi um segundo
documento escrito utilizado. As atas estavam em posse do cartório
do município, mas, ainda no início do século XX, foram limpos,
catalogados, transcritos e impressos por Félix Guisárd Filho. Ele
dividiu os documentos encontrados em diferentes volumes. No
caso dessa pesquisa, utilizamos o primeiro volume, referente as
reuniões que ocorreram entre 1780 e 1798 (GUISÁRD FILHO,
1943).
No Arquivo Histórico Municipal de Taubaté “Félix
Guisárd Filho” encontramos os documentos referentes a
Inventários e Testamentos dos principais sujeitos que faleceram
na vila, entre 1780 e 1830 (ARAÚJO, 2005). A lista de nomes foi
baseada nos indivíduos que se destacaram por questões
econômicas, verificadas nos Maços de População, ou por sua
atuação política, de acordo com a Atas da Câmara.
E, para finalizar, utilizamos os documentos oficiais do
Arquivo Histórico Ultramarino, que foi sistematizado pelo
Projeto Barão de Rio Branco e, atualmente, encontra-se
disponível online. Essa documentação é composta por diferentes
documentos oficiais que transitaram entre a América Portuguesa e
o Conselho Ultramarino. Ao mesmo tempo, também verificamos
os documentos oficiais dos governadores da capitania/província
de São Paulo nos Documentos Interessantes para a História e
Costume de São Paulo. Esses documentos foram impressos e
publicados no início do século XX. Essa coleção, atualmente, está

59
disponível online no portal da Universidade Estadual de São
Paulo “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP).
A sistematização desses bancos de dados nos forneceu
algumas informações sobre a realidade taubateana.
Economicamente, a maioria dos fogos da vila produziam gêneros
alimentícios (milho, feijão e arroz, principalmente), artigos para
exportação (algodão e tabaco) e, em poucas unidades produtivas,
existia a produção de açúcar para exportação, principalmente via o
Rio de Janeiro, mas também por Parati, São Sebastião e Ubatuba.
Os fogos produtores de açúcar eram relativamente poucos, não
chegavam a 1% do total de domicílios da vila, mas concentravam
uma grande quantidade de almas escravizadas.
A posse de escravos também foi um fator significativo na
vila e aponta para a concentração de mão de obra compulsória em
algumas unidades produtivas. No período entre 1780 e 1812,
anterior a cafeicultura, anotamos 11% das unidades com mais de
vinte escravizados controlando 45% dos escravizados, em média.
E, entre 1818 e 1830, 9,5% dos fogos eram proprietários de
35,6% dos escravizados, em média. Isso significa que a
concentração de escravizados em poucos fogos ocorreu em todo o
período analisado, embora os números tenham se tornado menos
desiguais com o advento da cafeicultura. Os números também são
correspondentes com os encontrados em outras vilas da capitania
de São Paulo e do Brasil (KLEIN; LUNA, 2010).
Para além dos dados estatísticos, os maços populacionais
permitem uma série de interpretações sobre a sociedade colonial.
Embora o foco de quase toda documentação do período colonial
fosse voltado para as elites, através das brechas desses documentos
podemos observar as dinâmicas sociais da população africana e
afrodescendente.

60
Figura 1 – Lista nominativa do fogo n.1, Taubaté 1808
(APESP, maços de população, 1808)

Na figura 1, podemos observar o primeiro fogo do maço


populacional de 1808. O chefe do domicílio era o capitão-mor
Manuel Correia Bitencour, 47 anos, natural de Angra dos Reis,
casado com dona Maria Angélica, 33 anos, natural de Cunha.
Usamos essa imagem para demonstrar que os principais
produtores da vila estavam dedicados à produção de açúcar, sendo
listados como “senhor de engenho” e faziam comércio com a
Praça mercantil do Rio de Janeiro.
Todavia, para esse texto a informação ao final da página
é mais significativa. O documento revela a lista de escravos, na
qual constam 43 escravizados, sendo dois casais: Felipe e Joana; e,
Manuel e Maria. Entre os casais, somente Maria era natural de
São Paulo, mas os outros foram arrolados como naturais de
Benguela. Da mesma sorte, ao final da lista de escravos foi
arrolada a escrava Clara, natural de São Paulo e parda e o
61
agregado, portanto livre, Vicente Ferreira, marido de Clara,
também pardo.
Assim, o uso de duas folhas do documento permite uma
série de questionamentos para os estudantes que visam debater a
visão dicotômica de senhor-escravo da historiografia tradicional.
Além disso, a leitura atenta do documento pode revelar as
estratégias de sobrevivências dos escravizados no contexto
colonial. Conforme pontuou Slenes, o casamento era uma das
principais estratégias de sobrevivência ao cativeiro. Isso porque,
ele garantia um(a) companheiro(a) num cenário de violência e, ao
mesmo tempo, algumas autonomias no interior das senzalas,
como a construção de casa própria ou a permissão para plantar
mantimentos próprios (SLENES, 2011, p. 52-63).
Podemos aprofundar as hipóteses junto com os
estudantes. O primeiro casal é natural de Benguela, apesar de
sabermos que as listas, em geral, informarem o porto de embarque
ao invés do local de nascimento, podemos inferir que eles tenham
se casado antes da viagem e conseguiram chegar a Taubaté juntos?
Sabemos que era possibilidade era remota, pois havia a preferência
pelo transporte de escravizados de diferentes grupos para evitar
motins e revoltas.
Ao mesmo tempo, o segundo casal informa que Manuel
tinha 21 anos e era de Benguela, mas sua esposa era de São Paulo
e tinha 32 anos. Também sabemos que as idades não eram exatas.
Contudo, o fato de Manuel ter escolhido uma esposa mais velha
era a noção de que ela teria estratégias melhores de sobrevivência
ao cativeiro? Para Maria, escolher um marido mais novo era
sinônimo de uma proteção física contra o ataque de outros
homens?
Num contexto de sala de aula, a formulação de hipóteses
pelos estudantes é mais significativa do que as eventuais respostas
62
do professor. A historiografia de famílias escravas mostra que o
casamento era uma estratégia muito procurada, pois permitia
maior segurança para as mulheres, maior poder de negociação
com os senhores e construção de redes sociais mais sólidas
(BOTELHO, ANDRADE, LEMOS, 2013, p. 51-87). Inclusive,
o próprio batizado de crianças escravizadas era uma forma de
fortalecer as redes sociais de proteção no cativeiro, sendo
selecionados, preferencialmente, um padrinho livre e que pudesse
proteger a criança e uma madrinha que fosse próxima à família
(SLENES, 2011, p. 118-125; ALVES, 2001, p. 195-284).
Na figura 2, podemos ver que o modelo do documento
foi mantido e as informações são dispostas de forma similar no
maço de 1825. Todavia, a principal produção passou a ser o café e
a criação de animais. Novamente, podemos abrir algumas
hipóteses, embora seja relativamente seguro afirmar que a
cafeicultura teve início na vila e à medida que algumas unidades
produtivas passaram a ter bons resultados comerciais com a
rubiácea, os grandes produtores passaram a investir nessa
produção.

63
Figura 2 – Lista nominativa do fogo n. 1, Taubaté, 1825
(APESP, maços de população, 1825)

O plantel de escravos do capitão-mor Victoriano


Moreira da Costa contava com 23 almas. Desse total,
encontramos seis homens casados e quatro mulheres casadas, o
que significa quatro casais e dois homens que tinham esposas
livres. O fogo do capitão-mor não apresentou agregados casados,
o que nos sugere que as esposas não eram moradoras do mesmo
domicílio. Essa composição revela outra estratégia de
sobrevivência dos escravizados na sociedade colonial, a compra de
alforrias e os casamentos entre diferentes estamentos.

64
Assim, podemos levantar algumas hipóteses com os
estudantes. A situação pode corresponder a compra de alforria das
mulheres escravizadas, pois ao se tornarem livres elas garantiam
que os eventuais filhos do casamento também estariam libertos.
Também poderia ser o casamento com mulheres livres pobres
que, embora não fossem escravas, também tinham a necessidade
da proteção na sociedade colonial. Outras hipóteses também são
válidas e podem estimular a criatividade dos alunos. As mulheres,
por exemplo, podem ter fugido do domicílio e, por isso, não
foram listadas. Essas mulheres podiam ser escravas de ganho que
residiam em uma propriedade urbana, longe de seus senhores e
não foram encontradas para a listagem. Ou, ainda, essas senhoras
eram escravas de outras propriedades e conseguiram o
consentimento dos senhores para esses casamentos. Novamente,
para além das respostas querem mostrar a série de hipóteses e
oportunidades de investigação que o uso do documento estimula
em sala de aula.
Portanto, compreendemos que, embora os Maços de
População não seja uma documentação presente em toda a
localidade da América Portuguesa e seu principal objetivo era
arrolar as elites locais, existem estratégias metodológicas e teóricas
de análise desses documentos que, em sua porosidade, revelam
dinâmicas sociais (BACELLAR, 2008). Esse conhecimento pode
ser cruzado com outra fonte documental, o que exporia com
maior profundidade o ofício do historiador.
O uso de inventários e testamentos pode ser uma boa
ação para estimular a criatividade dos estudantes em sala de aula.
Em geral, esses documentos estão localizados em órgãos públicos
como Arquivos Municipais ou os cartórios municipais. Em
algumas localidades, as famílias ainda mantêm os inventários
como patrimônio pessoal, mas esses casos são cada vez mais raros.
65
Todavia, a leitura de inventários/testamentos necessita que o
professor tenha conhecimento em paleografia, o que não é uma
disciplina obrigatória nas universidades brasileiras, mas pode ser
aprendida em minicursos (ARAÚJO, 2005).
Para esse artigo, selecionamos três inventários diferentes
de pessoas com grande relevância para a realidade taubateana,
entre 1807 e 1820. O primeiro inventário transcrito foi o do
sargento-mor Eusébio José de Araújo, falecido em 1807, era um
dos sujeitos mais ricos e poderosos da vila de Taubaté. O segundo
inventário é de D. Margarida Florinda de Jesus, falecida em 1820,
esposa do sargento-mor Eusébio e uma das principais
participantes de Irmandades Religiosas da vila (RIBEIRO, 2010).
E, por fim, no mesmo ano, faleceu o alferes José Antônio
Nogueira, genro do sargento-mor Eusébio, comerciante que
negociava por vilas mineiras, paulistas e fluminenses. Esses três
sujeitos legaram de monte-mor os valores de vinte contos de réis,
treze contos de réis e doze contos de réis, respectivamente, o que
lhes colocou na 3º, 5º e 6º posições de maiores fortunas arroladas,
num total de 50 processos.
A composição das três fortunas demonstra estratégias
diferentes na condução dos negócios e nas possibilidades da
sociedade colonial. Ao falecer, o sargento-mor possuía a maior
parte de sua fortuna em dívidas ativas, o que sugere ser um
importante prestamista local e um sujeito de vasta rede social –
lembrando que naquele período não existiam instituições oficiais
para crédito e o dinheiro era pouco utilizado, sendo o crédito o
meio mais comum de transações (GIL, 2009, p. 25-37). A sua
esposa e herdeira, por outro lado, não tinha possibilidades de
manter os investimentos devido às características machistas da
sociedade colonial. Por isso, os bens de raiz (imóveis) passaram a
ter maior importância na composição da fortuna. E, por último, o
66
seu genro faleceu quando ainda era relativamente jovem, o que
fica mais claro na composição da fortuna, pois grande parte de sua
riqueza estava em produtos importados do Rio de Janeiro e que
seriam revendidos, além de apontar vários empréstimos feitos em
Minas Gerais.
Novamente, os documentos oficiais, embora tratem das
fortunas das elites locais, mostram em suas brechas as estratégias
de sobrevivência da população negra escravizada. No inventário
de Eusébio, provavelmente o taubateano mais rico do final do
século XVIII, encontramos uma inscrição com empréstimo no
valor de 9$370 (nove mil, trezentos e setenta) réis para Jacinto
Barboza, “fiador de um negro da Capela Senhor Bom Jesus”
(AHMT, 1807, inventário de Eusébio José de Araújo). E, no
inventário de sua viúva, anotou-se empréstimo de 64 mil réis para
a escrava Roza comprar a própria alforria (AHMT, 1820,
Margarida Florinda de Jesus, p. 140).
A trajetória da família perpassou espaços de negociação
com a população cativa. As irmandades religiosas que existiam em
Taubaté eram locais que favoreciam a negociação entre senhores e
seus escravos. Pesquisas mostram que os escravos de Dona
Margarida Florinda de Jesus participavam ativamente da
Irmandade de São Benedito dos Pretos, pois um total de treze
escravos foram listados como irmãos e alguns compuseram a
Mesa5. O sargento-mor Eusébio fez questão que seu escravo

5
A Mesa de Consciência era a instância administrativa da Irmandade, sendo
ela composta por rei, rainha, juízes, juízas, tesoureiro, andador e
procurador, geralmente. Os reis e rainhas convocavam os interessados em
ocupar cargos através do andador. Normalmente, à realeza cabia a
organização de festas, recolhimento de esmolas e deliberar sobre atos de
dúvidas entre os irmãos. Aos juízes, cabia o serviço de zelar pelo
comportamento dos irmãos, exigindo postura exemplar e comportamento
67
Miguel Monjolo participasse da mesma irmandade, sendo eleito
por três anos para o cargo de andador. Esse cargo era de “suma
importância e responsabilidade para o escravo, pois lhe era
delegado o papel de circular pela cidade e arraiais, convocando os
irmãos a participarem das celebrações”. Na Mesa dessa irmandade
também atuava a escrava Domingas, que tinha papel de Juíza e
era esposa do escravo africano Miguel Monjolo (RIBEIRO, 2010,
p. 100-104).
Na Irmandade do Rosário, na qual participavam
brancos, livres e negros, encontramos parentes de D. Margarida.
A sua filha foi juíza em 1807, mesmo ano em que matriculou a
escrava Gertrudes, que ocuparia o cargo de juíza três anos depois.
O genro José Antônio Nogueira também era irmão do Rosário e
colocou dois de seus escravos como confrades da irmandade. A
sua escrava Maria era africana “da costa” e o escravo Francisco era
um mulato de 57 anos que foi mesário em 1815, 1818, 1823 e
1827 (RIBEIRO, 2010, p. 105-106).
No inventário do alferes José Antônio Nogueira
encontramos várias anotações de empréstimos para escravos,
somando 7 marcações e total de 17$780 réis, e um empréstimo
para um forro no valor de 7$100 réis (FRAGOSO, 2010). Os
valores não são altos, variando de 320 réis para Catharina, escrava
de Anna Ferreira até 4$340 réis para Benedita, escrava de Anna
Francisca (provavelmente uma das herdeiras) (AHMT, José
Antônio Nogueira, 1820). Os escravos que pegaram empréstimos

cristão. Em algumas confrarias, porém, as funções podiam se confundir. O


cargo de andador também era importante, pois era executado por alguém
que tivesse autonomia suficiente para andar pela vila convocando os irmãos
ou passando informações (RIBEIRO, 2010).
68
com o alferes eram do Padre Francisco, das herdeiras e do Capitão
Cunha, além do forro de Dona Jacinta.
Compreender essas estratégias de sobrevivência da
população negra é retomar uma parte da história brasileira que se
tentou apagar. Sidney Chalhoub apontou uma série de tentativas
do movimento republicano em alterar a história de luta. Nas suas
palavras:

[...] ao procurar mudar o sentido do desenvolvimento


da cidade – perseguindo capoeiras, demolindo
cortiços, modificando traçados urbanos –, os
republicanos tentavam, na realidade, desmontar
cenários e solapar significados penosamente forjados
na longa luta da cidade negra contra a escravidão
(CHALHOUB, 2011, p. 31)

Assim, podemos perceber que todos os empréstimos


foram feitos para pessoas que tinham algo que os distinguia
socialmente. Além do parentesco, eles eram escravos de capitães
ou de Donas, uma forma de se referir às mulheres de famílias
importantes na sociedade colonial.
Os empréstimos demonstram, por fim, que as redes
sociais eram construídas com participação ativa de pessoas
escravizadas e que atuavam conjuntamente com seus senhores em
diferentes instituições, especialmente nas religiosas. Isso indica
que os escravizados na sociedade colonial tinham sua própria
agência e formas diversificadas de negociarem melhores condições
de vida. Não estamos negando a existência da violência no sistema
escravista, o que seria um erro grotesco. Porém, para valorizar a
cultura negra precisamos ir além dos conflitos violentos abertos
contra a escravidão e compreender que todos os sujeitos
69
escravizados foram impactados pelo sistema escravista e buscaram
formas de resistência a este sistema, ainda que não de maneira
aberta, violenta ou declarada.
Dessa maneira, cumprimos com as competências
apontadas pela Base Nacional Curricular Comum, conforme
descrito no tópico anterior, demonstrando as potencialidades do
questionamento do ofício do historiador.

Considerações Finais
O governo brasileiro busca, desde a Constituição Federal
de 1988, organizar e desenvolver a educação pública brasileira. A
Carta Magna foi o primeiro documento a organizar a educação
brasileira na Nova República, na qual já encontramos a
necessidade de conhecimentos mínimos para cada ano, por
componente curricular e série. Os documentos seguintes, como a
Lei de Diretrizes e Bases (1996) e as Diretrizes Curriculares
(1997-2013), expuseram a necessidade de uma Base Nacional
Curricular Comum que, embora flexível para se ajustar as
realidades locais, apontasse os requisitos mínimos para os
estudantes.
Ao mesmo tempo, os estudos pedagógicos que debatem
as formas de melhoria do ensino de História identificam a
necessidade de expandir o uso de fontes históricas em sala de aula.
E, na medida do possível, revisitar os conhecimentos cristalizados
pela historiografia tradicional.
O uso de fontes históricas em sala de aula é defendido
por historiadores e pedagogos, pois esse tipo de ferramenta
desperta o interesse dos estudantes e desenvolve o conhecimento
ativo. Diferente das tradicionais aulas expositiva, essa forma de
saber ativo prega a participação do aluno, a aula a partir de seus
conhecimentos e a relação entre o seu cotidiano e o conhecimento
70
histórico. Isso não significa abolir as aulas expositivas, mas utilizar
estratégias pedagógicas diversificadas.
Dessa forma, buscamos identificar os principais objetivos
da BNCC em relação ao ensino de História, identificando as
competências gerais, específicas de Ciências Humanas e as de
História que foram arroladas pela BNCC. Em paralelo, traçamos
uma estratégia para trabalhar em sala de aula com documentos
históricos referentes à escravidão e que vislumbram as agências
dos sujeitos escravizados na sociedade colonial.
Por fim, acreditamos que essa dinâmica de aula beneficia
a compreensão dos estudantes acerca das principais características
da sociedade colonial, ao mesmo tempo em que questiona
determinadas posições da historiografia tradicional. Os sujeitos
escravizados não são vistos como meras mercadorias do sistema
colonial e nem como indivíduos sem potencialidades para
resistirem à escravidão. Ao contrário, a análise dos documentos
demonstra que eles tinham plena consciência de suas
potencialidades de resistência e as diferentes estratégias de
negociação, dentro de um sistema injusto, desigual e tangenciado
pela violência.

Documentos
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Curricular
Comum. Terceira versão. Brasília: MEC, 2017. Disponível em:
<http://basenacionalcomum.mec.gov.br/abase/>, acesso em 16 de
ago. 2018.
______. Base Nacional Curricular Comum. Segunda versão.
Brasília: MEC, 2016. Disponível em:
<http://historiadabncc.mec.gov.br/documentos/BNCC-
APRESENTACAO.pdf>, acesso em 20 de out. 2018.

71
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Parecer. Brasília:
MEC, 2017. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view
=download&alias=78631-pcp015-17-
pdf&category_slug=dezembro-2017-pdf&Itemid=30192>, acesso
em 17 de ago. 2018.

Fontes
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Arquivo microfilmado. Maços de população. Vila de Taubaté,
1789-1830: rolos 200-222.
ARQUIVO HISTÓRICO MUNICIPAL DE TAUBATÉ “Félix
Guisárd Filho”. Inventários e testamentos. 1780-1851.
GUISARD FILHO, Félix. Taubaté. Atas da Câmara (1780-
1798). São Paulo: Empresa Editora Universal, v. I, 1943.
______. Índice de Inventários e Testamentos. Achegas à
História de Taubaté. São Paulo: Editora Athena, v. IV, 1939.

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revista de história de Juiz de Fora, v. 14, n. 1, 2008, p. 113-
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72
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73
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SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e
recordações na formação da família escrava: Brasil, Sudeste, século
XIX. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2011.

74
HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO E ENSINO DE
HISTÓRIA: O QUILOMBO COMO SUGESTÃO DE
ANÁLISE
Lúcia Helena Oliveira Silva1

Christian Laville (1999) ao refletir sobre as diversas versões que


compõem o ensino de História nacional explicou que a adoção de
conteúdos que contemplam as “minorias” e grupos alijados do
poder sempre causou polêmica. O autor aponta como exemplo,
países como Estados Unidos, Inglaterra e França onde os
defensores das narrativas tradicionais interpretaram a adoção de
novos conteúdos históricos como uma ameaça que levaria ao
esquecimento os heróis tradicionais (LAVILLE, 1999, p.129). A
discussão de Laville remete-nos a um debate muito atual sobre
sujeitos e novos olhares teórico-metodológicos que tem
enriquecido a história de nosso país e a recusa de grupos que
representam a visão tradicional da história de heroísmos
individuais dos grupos do poder.
Falo aqui especialmente sobre o surgimento da Lei
10.639/03 atualizada para a lei 11.645/08 2. Esta lei foi reforçada
pelas Diretrizes Curriculares em 2004 e orienta o ensino da
história dos povos africanos e de seus descendentes e, também,
dos povos indígenas, em todos os níveis junto aos conteúdos
programáticos do ensino. Esta proposição, já não tão nova,
completou 15 anos de sua promulgação. Seu surgimento causou
1
Professora da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”,
campus Assis, doutora em História Social pela UNICAMP, e-mail:
lho.silva@unesp.br.
2
A lei foi criada em 2003 e depois atualizada pela lei 11.645 no ano de
2008, esta inseriu a obrigatoriedade também do ensino da história e cultura
indígena.
75
uma profusão de debates sobre como e o que ensinar e provocou
uma onda de materiais paradidáticos pensados como canais de
apoio para a efetivação das diretrizes.
Desde o surgimento da história do Brasil como disciplina
autônoma ocorrido nos anos 1940, a história tratou a presença
dos africanos, afro-brasileiros e dos indígenas como
complementar. Mais do que isso, a forma como foi e é abordada a
chegada de portugueses e sua fixação no país naturaliza um
processo muito adverso para quem aqui estava. São as
necessidades e condicionamentos históricos de Portugal na
Europa que explicam as incursões a outros continentes. Nada se
fala do caráter invasor da ação em terras que não estavam vazias,
sem falar na reação daqueles que aqui o receberam. Nesta mesma
toada, o desenvolvimento se baseia no crescimento econômico do
território através da agricultura de exportação, dos vultosos lucros,
bem como a organização de propriedades, cidades e todo o
processo de produção. Ademais, minimizam-se as informações
sobre a natureza do trabalho coercitivo e institucionalização da
escravidão dos povos que aqui moravam, os indígenas, e daqueles
vindos de outro continente, a África.
Esta versão da narrativa da História do Brasil foi elaborada
no século XIX, e por ser a vencedora no concurso do IHGB
Instituto Histórico e Geográfico do Brasil se tornou oficial. Na
análise de Manoel Guimarães

trata-se de precisar com clareza como esta


historiografia definirá a Nação brasileira, dando-lhe
uma identidade própria capaz de atuar tanto externa
quanto internamente. No movimento de definir-se o
Brasil, define-se também o "outro" em relação a esse
Brasil. (1988, p.6)
76
Segundo Guimarães, a ideia concatenava com a formação
de uma nação criada pelo projeto português e sua “tarefa
civilizadora” ante aos demais grupos da população no Brasil. A
inserção da história do Brasil nas escolas no período imperial
emergia como um apêndice da “história universal”, e semelhante
àquela ensinada em Portugal. Quanto à periodização a história
escolar se dividia em duas fases, ou seja, do surgimento até a
independência e da independência ao Estado Novo, passando
pelo período imperial e pela república velha. Já a história universal
se dividia nas periodizações clássicas, ainda hoje presentes:
período antigo, medieval, moderno e contemporâneo.
(FONSECA, 1995)
Mesmo quando surgiram as primeiras mudanças no
ensino, ocasionadas pelas reformas educacionais de Francisco
Campos (1931), de Gustavo Capanema (1942) e da Lei de
Diretrizes e Bases (anos 1990 e 2000), a essência do conteúdo do
ensino de história do Brasil permaneceu inalterada. Assim
observa-se que a longa permanência da história oficial tratada de
maneira positivista e única criou um condicionamento de que esta
versão era de fato a única. Foi a partir da década de 1960 que
começaram a chegar aos livros didáticos algumas abordagens que
enfatizavam o trabalho escravo (fruto de influência marxista) e
que interpretavam o desenvolvimento do Brasil pelos ciclos
econômicos.
Nesta perspectiva passou-se a ser dado maior destaque a
questão da mão de obra explorando a importância do trabalho de
africanos e indígenas. Pesquisas como as de Maria Emilia Viotti
da Costa (1982), Fernando Novais (1969), Paula Beiguelman
(1968), Florestan Fernandes (1965), Octavio Ianni (1962)
aprofundaram o conhecimento sobre a história econômica e social
77
do trabalho dos escravizados e no período pós-abolição. Esta
virada teórico-metodológica trouxe maior destaque à escravização
e aos processos de resistência escrava, especialmente estudado por
Décio Freitas (1959) e Clóvis Moura (1983), além de outras
sólidas pesquisas sobre o tráfico escravista feitas no período.
Nos anos 70 do século passado, o advento dos Estudos
Sociais na LDB de 1971 em detrimento da história e geografia,
deteve, momentaneamente, um avanço maior das pesquisas
agravada pelo exílio de pesquisadores e pela censura do material
didático, e em todos os níveis de ensino. Permanecia a imposição
da história episódica, o culto aos heróis e símbolos cívicos. Foi no
final do período Militar na metade da década de 1980, que se
iniciaram diversos movimentos pela redemocratização. Estes
movimentos tinham uma ampla pauta que ia desde o retorno e
anistia aos presos políticos e exilados, passando pelo direito de
liberdade de manifestação de reivindicações trabalhistas,
estudantis à reformas nos currículos escolares. Este último tema
mobilizou grandes manifestações por parte dos professores e tanta
pressão resultou em greves por melhores salários e, também, pela
volta dos direitos civis e políticos.
No âmbito da educação buscava-se repensar e mudar a
organização curricular com o retorno de disciplinas que haviam
sido suprimidas e uma atualização curricular, movimento que
reuniu professores e o corpo burocrático das secretarias de
educação. Neste bojo estava também o movimento negro que
exigia ver sua história nos currículos escolares. Por caminhos
diferentes, professores e militantes iam de encontro a narrativa
oficial que ocultava os conflitos, era parcial e impunha a memória
e valores dos “grupos dominantes”. Este era um antigo processo
que homogeneizava os grupos sociais mascarando as

78
desigualdades, as resistências e as negociações presentes no
processo histórico do país.
Foi com o término do período militar e o início do
processo de redemocratização que de fato viabilizou-se um
repensar sobre o conhecimento histórico. Para Selva Fonseca
(1995, p.91) as novas propostas de currículo tiveram grande
importância ao discutir o papel da escola fundamental, dos novos
conhecimentos e da universidade na perspectiva de romper com a
hierarquização do trabalho acadêmico repensando a produção do
saber e o lugar social da ciência.
É preciso também considerar as mudanças na academia
como a influência da Historiografia Social Inglesa 3 e da Nova
História Francesa4 que trouxeram novas configurações teórico-
metodológicas como a “história vista de baixo”. Foi a partir deste
contexto que se ampliou o escopo metodológico, trazendo à tona
a história de sujeitos históricos pouco contemplados na história
brasileira. A noção do conhecimento como construção passou a
ser compreendida também como caminho teórico-metodológico
3
Nova perspectiva teórico-metodológica surgida como um “novo marxismo
inglês”, representado na figura de historiadores ligados ao Partido
Comunista Inglês, mas que haviam rompido com o marxismo da época.
Entre os quais Eric Hobsbawn, Cristhopher Hill, Raymond Willians e
Edward P. Thompson. O destaque das análises efetivadas pela história
social é a emergência da compreensão dos grupos pouco contemplados na
historiografia, tal como, os operários.
4
A Nova História surge na França, a partir de 1971 com Pierre Nora,
profundamente influenciado pelas ideias de Michel Foucault e a publicação
de uma nova produção historiográfica, na qual pequenas e variadas histórias
se colocavam no lugar de uma “Grande História”. Tomando para si a
pesquisa de “novos problemas, abordagens e objetos”, essa ampliação
teórico-metodológica muito contribuiu para a renovação das pesquisas
brasileiras.
79
em busca de construir criticidade e reflexão, permitindo o
indeterminado.
Estas proposições, somadas ao início do processo de
redemocratização política, deram direcionamentos que buscaram
contemplar a história dos grupos marginalizados em nossa
história. Como resultado das pressões populares tivemos a
organização de uma Assembleia Constituinte que teve muitos
representantes dos movimentos populares. Ainda que com muitos
embates, houve avanços importantes que resultaram na
Constituição Cidadã de 19885.
No mesmo ano da Constituinte também se iniciou a
organização de uma nova Lei de Diretrizes e Bases (1987), mas
com menor atenção dos grupos dirigentes, ela teve longo debate e
só foi concluída em 1996, ou seja, quase dez anos depois. Sem
querer entrar na discussão sobre a demora de uma lei tão
importante que orienta o ensino em todos os níveis da educação,
a definição da LDB trouxe uma série de orientações importantes.
Uma destas orientações foram os Parâmetros Curriculares
Nacionais criados em 1998. Estes parâmetros buscaram orientar
um processo de redefinição do ensino e de seus conteúdos e
complementaram as mudanças sugeridas lá na década de 80 e
implementadas, em parte, em 1996 e posteriormente alteradas em
2003.
Parte destas mudanças era resultado das movimentações
iniciadas ainda no período da Ditadura e procuraram trazer
destaque a temáticas histórico-sociais, há muito relegadas. Um

5
Sobre a Assembleia Constituinte e lutas internas dentro do processo ver
BASILIO, L. Desigualdade racial políticas de inclusão acerca da
condição do negro (1988-2002): uma perspectiva política acercada
condição do negro. Dissertação de mestrado, IFCH-UEL, Londrina, 2004.
80
exemplo dos temas discutidos são os quilombos. Estes,
reconhecidos na Constituição no artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), são observados
como espaços de preservação das terras indígenas e quilombolas,
ocupadas historicamente, para as quais deve existir um processo
de regulamentação da posse.
Estudados no ensino fundamental e médio como forma
de resistência de escravizados do/no passado, eles continuam
existindo e devem ser assim analisados. O sentido atual de
quilombos, contudo é desconhecido de boa parte de manuais e da
história ensinada nas escolas.6 Pensando nisso e sobre os processos
de resistências dos diversos grupos da população negra, acredito
ser possível trazer um novo olhar sobre a história e memória dos
quilombos um dos signos mais tradicionais de resistência dos
escravizados africanos e afro-brasileiros.

Quilombos do passado e quilombos hoje


O termo quilombo sempre concebeu muitas definições.
Para Clóvis Moura em seu Dicionário da Escravidão (2004,
p.335) quilombo seria uma palavra de origem banta e significaria
ajuntamento de escravos fugidos. Segundo Moura foi somente a
partir do século XVII que a palavra passou a ser usada para
designar lugar de escravizados fugidos e, que antes disso, o termo

6
O exercício do direito estabelecido no artigo 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias sepulta de vez as disposições da Lei de Terras
de 1850, confere legitimidade dominial das comunidades que ocupam as
terras. A Fundação Palmares tem sido o órgão que tem apoiado os
processos e a dirimição de dúvidas jurídicas em relação a interpretação dos
texto do artigo. Para mais informações ver: SUNFLED, C. A. (org.)
Comunidades Quilombolas: Direito à terra. Brasília: Fundação Cultural
Palmares/Minc, Editorial Abaré, 2002.
81
usado para esconderijo de escravizados era mucambo. Ele também
informa que o primeiro quilombo que se tem notícia existiu na
Bahia em 1573 e foi destruído em 1575. Em 1740, em
documentação enviada ao Conselho Ultramarino, o rei de
Portugal definiu que quilombo como “toda a habitação de negros
fugidos que passem de cinco, em parte desprovida, ainda que não
tenham ranchos nem pilões” (MOURA, 2004, p.335).
Stuart Schwartz, em seus estudos, diz que o termo nunca
havia recebido grande atenção até a luta contra Palmares e que o
termo pode ter sido uma adaptação militar imbangala do
ovimbundu (2001, p.448). Décio Freitas acrescentou ao termo
um conceito de luta e não apenas de fuga, interpretando como
um dos maiores de resistência a escravidão (1959; 1971). José
Arruti afirma que “quilombo” é o elemento mais importante na
construção semântica dos movimentos dos remanescentes e
adquiriu grande força nos eventos do dia 20 de novembro e
Zumbi dos Palmares, principalmente do tri-centenário da morte
de Zumbi em 1995, quando grande parte dos eventos passou a
contestar a data do dia 13 de maio como exaltação de vultos
nacionais, para valorizar o dia 20 de novembro como uma data de
ativismo negro, situação que perdura até os dias de hoje (2005,
p.71).
Esta forma de organização já era conhecida no período de
institucionalização da História Nacional, tanto que o Francisco A.
Varnhagen fez a menção dos quilombos na sua versão da história
do Brasil. A esta narrativa consagrada, novas pesquisas tem
evidenciado outros protagonistas e construído o quilombo como
parte dos processos de resistência. Nesta perspectiva, eles não são
espaços de exceção, ao contrário, tiveram existência contínua em
todo o período em que perdurou a escravidão. Afinal de contas,
como afirmaram João Reis e Flávio Gomes “onde houve
82
escravidão, houve resistência” (1996, p.9). Como conseqüência
deste movimento, temos conhecido diversos agenciamentos de
homens e mulheres, a existência de redes de solidariedade que
agiam tanto pela liberdade (incluindo aqui os mais diversos
processos de resistência) como na busca de condições de vida
dignas dentro do possível no contexto escravista.
Reis e Gomes organizaram um livro que demonstrou a
constância do aquilombamento em todo o continente americano.
Com diferentes denominações como mocambos, palenques,
maroons, cumbe, grand marronage, eles são um marca de diversos
países da América. Na Jamaica e Suriname, por exemplo, depois
da Abolição os moradores destas áreas conseguiram acordos com
autoridades coloniais e conseguiram certa autonomia. Buscando
dimensionar a presença de quilombos no norte do país, Vicente
Salles (1971) afirmou que em meados do século XIX havia mais
escravizados em mocambos do que nas fazendas. Tanto o trabalho
de Reis e Gomes como de Salles, traz à tona dados que mostram
que a resistência dos escravizados nunca parou e que o sentido de
quilombo foi alargado pelas várias experiências.
Aqui quilombo adquiriu símbolo de luta dos povos
escravizados, territorialidade física e cultural negra, sociabilidade.
Sua amplitude de significados está sacramentada na Constituição,
ainda que na parte das “Disposições Transitórias”, o que significa
respeito jurídico a lei maior que rege nosso país.

as populações que mantiveram o vínculo social e


histórico com os grupos formados essencialmente por
escravos fugidos, ainda que composto por elementos
não considerados escravos, os quais eram
considerados perseguidos pelas forças escravistas, e
que construíram sua própria história, a margem do
83
domínio da sociedade envolvente (RIOS Op cit
DIAS; MENEZES, 2013, p.193).

Observa-se no trecho acima que as populações


reconhecidas como quilombolas não necessariamente, precisam
ter sido escravizadas, o termo inclui aqueles em condição de
exclusão abarcando, assim, diversas experiências dos descendentes
de escravizados e outros grupos marginalizados. Estão, neste
universo, aqueles que ganharam terras e tiveram-nas usurpadas,
aqueles que ocuparam áreas desabitadas e estão secularmente ali,
os que ganharam terras por compadrio, aqueles que ganharam um
pedaço de terra para suas roças e espaços criados depois do
término da Abolição, os que formaram organizações alternativas
para grupos de libertos e que moravam em habitações coletivas,
são hoje, todos considerados quilombolas. Mas estes novos
conhecimentos chegam até as escolas?
Refletindo sobre a lei do ensino da história e cultura afro,
africana e indígena, Paim e Araujo (2018) afirmam que mesmo
com as novas mudanças nos currículos, manuais e programas,
grande parte dos educadores tem explorado timidamente as
questões voltadas para a história indígena, africana, afro-brasileira
e de patrimônio. Eles realçam a importância do ensino destes
conteúdos como uma estratégia frente ao que chamam “a nova
onda conservadora” na política e sociedade brasileira. Afirmam
ainda que este processo “decolonizador” tem estimulado o
“incremento da produção acadêmica e o diálogo com diferentes
sujeitos e grupos subalternizados, localizados tanto nas escolas
como nos múltiplos espaços de memória” (2018, p.3). Assim, é
necessária a busca de novos caminhos para que o aprendizado dos
novos conteúdos cheguem aos estudantes, mostrem a história e os
espaços valorizados pelas comunidades que formaram, com seu
84
trabalho, este país. No caso de quilombos a intenção também na
valorização do espaço como patrimônio.
O que se deseja é que os novos conteúdos contribuam
para o desenvolvimento de uma concepção histórico-crítica da
história dos grupos pouco contemplados. Ler e interpretar o texto
do livro são caminhos iniciais para se aprender a história.
Contudo, somados com a possibilidade de conhecer, de sair do
espaço da sala de aula e ter uma aula prática in loco daquilo que
se estudou, o estudo em campo pode dar sentido prático e
dinâmico ao processo, permitindo ao aluno que ele possa
formular seu conceito a partir da sua vivência e saindo da
aprendizagem passiva. Desta forma, o trabalho de campo tem a
possibilidade de conferir ao ensino um maior dinamismo, pode
ser um caminho para enfrentar questões que perturbam o ensino
de história, tais como o (des)interesse e as dificuldades do
aprendizado.
Neste sentido, Peter Seixas (2002), estudando problemas
semelhantes da aprendizagem de História com estudantes do
ensino básico no Canadá, concluiu que não há formação
universitária adequada dos professores em suas disciplinas. Para
ele, os professores tendem a ensinar história/estudos sociais como
"conhecimento fixo" não suscetível de interpretações
contraditórias e análise. Seixas acredita que como consequência os
estudantes recebem os conhecimentos como fechados e prontos,
acabam por ter uma atitude negativa em relação à história ou
estudos sociais em geral.
Isto posto, acredito que envolver o aluno em aulas com
visitas ou aulas de campo, possibilita o desenvolvimento de um
olhar próprio, capaz de estabelecer a formação do conhecimento a
partir de sua interpretação e desenvolver criticidade. Esta
possibilidade metodológica vai de encontro à ideia de uma
85
história pronta e acabada e de aulas passivas. Assim, o velho, mas
eficiente método da visita de campo pode auxiliar nas dificuldades
descritas. Chamadas inicialmente de estudo do meio, elas foram
introduzidas nas escolas livres criadas pelo movimento anarquista
no começo do século XX. Esta ferramenta pedagógica também foi
usada no período movimento da Escola Nova e Escola Tecnicista
e chegou até os dias de hoje (PONTUSCHKA, 1994). Usada
largamente em diversos ramos do conhecimento como a
Geografia e Botânica, o trabalho de campo tem sido usado no
ensino de História.
As visitas exemplificam, fazem com que os alunos
chequem o que estudaram com a realidade, possibilita a
comparação, permite o surgimento de novos saberes despertando
atitudes e reflexões. Pensado como uma atividade de
desdobramento após fundamentação prévia, as aulas de campo
são uma alternativa de espaço de aprendizado ao tradicional
ambiente educacional que é o espaço escolar. Segundo Maria
Almeida (2013) que desenvolveu as excursões didáticas dirigidas
no Programa Institucional de Bolsa à Docência (PIBID, criado
em 2010) da área de História, este tipo de atividade pode
desenvolver diversas potencialidades que auxiliem o estudante a
construir o conhecimento a partir da sua vivência, da
proximidade de seu cotidiano. Longe de confirmar o que foi
previamente estudado, a visita pode levar a problematizar
“informações e conceitos vistos em sala de aula e não
compreendidos até então” (ALMEIDA, 2013, p. 5).
Assim, unindo esta metodologia aos estudos sobre
territórios negros como quilombos7, pode-se acrescentar novos

7
Advirto que o quilombo foi o tema selecionado para análise no capítulo,
porém, diversos aspectos da História e Cultura afro-brasileira e indígena
86
olhares e, possivelmente, melhorar a compreensão sobre o
assunto. Não se trata de descartar o que já é trabalhado em sala de
aula, no caso, as funções históricas do quilombo. Nem mesmo
menosprezar o destaque ao mais famoso o quilombo de Palmares.
Estes conteúdos são de fato importantes, mas abordados como
questão do passado reforça a ideia de finitude, de que eles não
existem mais. Creio que a ampliação do conhecimento sobre o
tema favorece novos olhares e podem ressignificar a concepção de
patrimônio, neste sentido, a Constituição de 1988, artigo 216,
define:

Constituem patrimônio cultural brasileiro todos os


bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira
(BRASIL, Constituição da República Federativa do
Brasil, 1998)

Como se vê a ideia de patrimônio é bastante abrangente e


nela cabe, também, o sentido de herança de nossos antepassados e
os espaços de resistência e luta dos povos africanos e afro-
brasileiros. Assim, estudar e conhecer um quilombo é trabalhar
com diversas dimensões de territorialidade negra que estão no
passado e continuam no presente como modo de patrimônio e
dar movimento a história, mostrando a experiência dos grupos

podem ser observadas pela perspectiva do trabalho de campo. A riqueza dos


temas é acrescida pelas multiplicidades regionais dessas manifestações,
assim, patrimônios materiais e imateriais podem (e devem) ser apreendidos
como espaços de aprendizagem, pesquisa e vivência.
87
dominantes e as estratégias de resistência dos grupos dominados.
Se no passado, o patrimônio era determinado pelas elites,
eternizando momentos e eventos importantes dos grupos
dominantes, conhecer os espaços da população negra é possibilitar
o conhecimento de outros patrimônios. Em um país de quase
quatrocentos anos de escravidão não nos faltam patrimônios
negros.
Muitos destes patrimônios têm sido redescobertos e
reconhecidos pelo grande público graças a movimentação dos
movimentos sociais, caso dos quilombos. Assim, os quilombos são
uma porta que se abre para a discussão da história e dos novos
conhecimentos, ressignificam espaços de luta, ou seja, um
processo de aquilombamento. Esses lugares, definidos como
territórios negros, tem em comum o sentimento de pertença da
comunidade negra que busca a preservação e reconhecimento de
sua cultura e de seu agenciamento.
Assim são reconhecidos como territórios negros os
quilombos dos Calungas em Goiás, da Serrinha no Rio de
Janeiro, de Ivaiporanduva em São Paulo, do Ambrósio em Minas
Gerais; além dos outros 3524 quilombos identificados pela
Fundação Palmares8. Também são conhecidos como espaços
negros o Largo da Batata, os bairros da Liberdade e Barra Funda
em São Paulo; o Morro da Favela, o Sítio Arqueológico do Cais
do Valongo no Rio de Janeiro. Todos territórios negros, espaços

8
Criada em agosto de 1988 no bojo da Redemocratização e do Centenário
da Abolição da Escravidão, a Fundação Palmares foi criada vinculada ao
Ministérios da Educação. Cabe a entidade a certificação das comunidades
quilombolas, documento importante para legalização da posse da terra e
acesso aos programas sociais do Governo Federal. Fundação Cultural
Palmares. Disponível em: http://www.palmares.gov.br/?p=3041. Acesso
em 01 de dez.2018.
88
de luta e moradia da população rural e urbana, cujo
reconhecimento e identificação tem sido recuperado e
rememorado.
Como se afirmou antes, este reconhecimento veio no bojo
de um processo importante, criado pelos movimentos sociais que
reivindicaram esta identificação e também incentivaram o
reconhecimento histórico das territorialidades negras em espaços
da zona rural e também urbanos.

Turismo urbano e aprendizagem histórica: levantando outros


exemplos
Além dos quilombos, o uso pedagógico dos espaços
urbanos são também uma possibilidade interessante de explorar a
história e cultura afro-brasileira. A título de exemplo, gostaria de
pontuar experiências que tem sido feitas com aulas de campo nos
chamados roteiros negros.
Em Porto Alegre, surgiu em 2011 o roteiro dos territórios
negros na cidade. Segundo Francieli Ruppenthal (2015), o
projeto surge para auxiliar a efetivação da lei 10639/03 através do
que ela chamou de “visibilização dos territórios negros”. A
experiência realizada por professores na cidade de Porto Alegre foi
desenvolvida no âmbito da Secretaria Municipal de Educação, e
contou com as parcerias da Companhia Carris, a Secretaria
adjunta do Povo Negro e a Empresa de Processamento de Dados
de Porto Alegre. O percurso circulava por regiões reconhecidas
como “territórios com ocupação e constituição de afro-
brasileiros”, assim, seu trajeto compreendia os Largos Glênio
Peres e da Forca (Praça Brigadeiro Sampaio), o Pelourinho (Igreja
Nossa Senhora das Dores), Mercado Público, Campo da
Redenção (Parque Farroupilha), a Colônia Africana (que
corresponde aos bairros Bom Fim e Rio Branco), Ilhota (região
89
próxima ao centro municipal e da avenida Érico Veríssimo), o
Quilombo do Areal da Baronesa (travessa Luis Garanha)
encerrando no Largo Zumbi dos Palmares.
Este roteiro foi considerado um sucesso devido ao
interesse e também as informações sobre a vida dos
afrodescendentes, possibilitando o conhecimento de várias
narrativas sobre a vida no passado escravista e também do período
atual. Segundo a pesquisadora, a idéia era trazer uma experiência
direta e visual a estudantes e ao público em geral. A adesão ao
projeto foi muito positiva, tanto que no ano de 2013 os
agendamentos prévios se encerraram em agosto devido ao
preenchimento da agenda para o restante do ano. O levantamento
dos resultados contribuiu para o debate do racismo e aumento da
auto-estima dos alunos negros e afrodescendentes, nas palavras de
Ruppenthal o tour pedagógico possibilitou, além de um olhar
sobre os vestígios históricos do passado, a observação do modo de
vida, o modo de uso dos espaços, a memória viva, deste modo é
possível contemplar o processo, não colocando a história como
algo estagnado, mas dinâmico (RUPPENTHAL, 2015, p.37).
Eu mesma pude participar deste roteiro em Porto Alegre
editado especialmente por um evento chamado Escravidão e
Liberdade, ocorrido em 2017. Ele foi feito em caráter particular,
o transporte foi pago pelo evento e contou com a boa vontade de
dois participantes do projeto que monitoraram o tour, que deixou
de existir em 2015. A experiência foi altamente positiva,
permitiu-nos conhecer os lugares e as ressignificações identitárias
da comunidade negra em uma cidade tradicionalmente conhecida
pela imigração europeia, a experiência, portanto, nos remeteu a
outra cidade. Tanto o percurso feito via ônibus como o feito a pé,
pelas regiões centrais da cidade, mostrou os lugares de moradia da
população, seus afazeres e marcas, seus espaços de sociabilidade,
90
que aos desavisados são praticamente invisíveis. Uma das marcas
mais emblemáticas foi o assentamento de santo do Orixá Bará
feito no ponto mais central do mercado, para atrair prosperidade.
Ele constitui um marco cultural misturado a outros costumes,
credos e trabalhadores de diversas ascendências, proporcionando
muitas reflexões para os visitantes que o conhecem. Embora ele
não exista mais como política pública da cidade, ele continua
sendo uma forma de pensar história e patrimônio de modo real
para estudantes e público interessado em conhecer a cidade.
Outro roteiro muito rico, cujo objetivo é o de mostrar a
influência afro na cidade de Florianópolis, é o projeto Santa-Afro
Catarina. Com um blog explicativo, o roteiro é conduzido por
historiadores e percorre espaços do centro e do sul da cidade 9.
Surgido em 2011, mesmo ano de surgimento do roteiro de Porto
Alegre, ele é gratuito e oferecido aos alunos de ensino público e
privado, conta com visitas a Armação Baleeira, Engenhos de
Ribeirão da Ilha, Porto e antiga Praça do Mercado. A experiência
fala de Devoção e Festas da religiosidade africana e afro-brasileira,
bem como explora a cidade pela perspectiva do poeta Cruz e
Souza. Estas iniciativas baseadas em ampla pesquisa histórica,
procuram trazer as histórias de escravidão e da liberdade,
apontando um forte ativismo por parte dos trabalhadores
escravizados e libertos, sinalizando o agenciamento na condução
de diversos projetos de vida. Também indica o caráter dinâmico

9
Santa Afro-Catarina: roteiros. Disponível em:
www.santaafrocatarina.blogspot.com/p/roteiros.html.
Acesso em: 15 de nov. 2018.
91
do processo de patrimonialização à medida que os novos
conhecimentos vem à tona.10

Considerações Finais
O que se buscou aqui foi pontuar ensino de história do
Brasil na sua versão oficial, as mudanças e as tentativas para a
incorporação de novos conteúdos que contemplem os segmentos,
até bem pouco, silenciados na narrativa histórica, bem como,
indicar outras versões, para além daquelas produzidas pelo olhar
positivista.
Como se viu, o anseio e a luta por mudanças não se
formaram espontaneamente, fazem parte de um momento em
que as aspirações populares por reconhecimento e a luta por
maior participação nos rumos políticos ganhavam força,

10
Mais recentemente, como resposta a apropriação do Bairro da Liberdade
como exclusivamente local de imigrantes japoneses, tem emergido projetos
que exploram o Bairro (bem como São Paulo) como espaço de memória da
comunidade negra. Conferir: CANOFRE, Fernanda. Do largo da
Memória ao Paissandu, passeio mapeia história negra em SP: Trajeto
criado por três amigos lembra episódios do povo negro esquecidos no
centro. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/11/do-largo-da-memoria-
ao-paissandu-passeio-mapeia-historia-negra-em-sp.shtml. Acesso em: 18 de
dez. 2018. No Rio de Janeiro, com a descoberta do Sítio Arqueológico do
Cais do Valongo e consequente patrimonialização pela UNESCO em
2017, tours pela “Pequena África” tornaram-se ainda mais completos e
buscados. Conferir: NÓBREGA, Monica. Tour guiado leva ao Cais do
Valongo, que virou Patrimônio da Unesco Sítio arqueológico no Rio
recebeu título no domingo: Passeio histórico revela a história da área da
cidade conhecida como Pequena África. Disponível em:
https://viagem.estadao.com.br/noticias/geral,cais-do-
valongo,70001884488. Acesso em: 18 de dez. 2018.
92
refletindo em expectativas sobre a história que se ensina e
aprende. Tão importante como ter os novos conteúdos é pensar
em caminhos metodológicos que aproximem a história e a
vivência, estimulando o desenvolvimento de crítica e consciência
entre os estudantes. O que há de novo são ações educativas que
buscam dar caráter prático ao conhecimento propiciando aos
alunos ler e ver o conhecimento se apropriando e criando sua
própria definição. Ou seja, para além do conhecimento trazido
pelos manuais atualizados pela lei 10.639 e 11.645, pode-se
somar um conhecimento que busca caráter prático ao que foi
ensinado e aprendido. Nas palavras de Maria Almeida:

Todo educador tem em mãos o poder de melhorar o


aprendizado dos alunos e o ambiente escolar. Abrir
fronteiras, não se acomodar e buscar novas soluções
são exemplos de atitudes que podem transformar a
realidade. Não é uma tarefa fácil fazer da luta
individual um objetivo coletivo. É preciso, ainda,
incentivar a participação de todos envolvidos,
conversando com um e com outro e tecendo uma
rede de pessoas dispostas a trabalhar por um ensino
melhor (ALMEIDA, 2013, p.7).

Ao sintetizar as funções de um bom processo de ensino e


aprendizagem, a autora nos lembra que ensinar história é um
constante rever-se em possibilidades de dar ao ensino de história
condições de fazer o estudante refletir sobre o caráter dinâmico da
historicidade e é essência da construção identitária. Muito além
do domínio de conteúdos escolares, o que se objetiva com a
educação é que o estudante possa desenvolver as competências
necessárias para participar ativamente nas questões públicas.
93
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98
LITERATURA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA E
ENSINO DE HISTÓRIA
Clícea Maria Miranda1

Músicas cantadas
Histórias narradas
Na lembrança vem

Vozes
De avós negros
Meus e seus
Falam
Não se calam
Gravam na memória
A minha história
E de outros negros
Também.

Benício dos Santos Santos

Expressar artisticamente sempre fez parte dos diferentes povos e


civilizações. A oralidade e as linguagens simbólicas de expressar e
narrar sentimentos, experiências de vida e acontecimentos em
forma de arte tiveram ao longo da história pouco espaço e
reconhecimento no âmbito da educação formal mesmo sendo a
maioria da sociedade brasileira oriunda de povos com tais traços
civilizatórios e culturais. Quais as razões para esse fenômeno e
como vem se dando as transformações que buscam a efetivação de

1
Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. E-mail:
climari@hotmail.com
99
um ensino de História que reconheça esse legado histórico e
cultural a partir da literatura africana e afro brasileira? Vejamos!

Literatura como fonte histórica


A literatura enquanto forma reconhecida de fonte
histórica tem seu uso e legitimidade consolidados quando a
História, enquanto disciplina, ampliou seu o conceito de fonte.
As novas diretrizes da disciplina do ponto de vista dos
registros históricos foram elaboradas a partir de concepções
teórico-metodológicas produzidas pela Escola dos Annales entre
os anos 20 e 30 do século passado. Essa nova compreensão da
História, voltada para os estudos das relações sociais, bem como
das mentalidades, consequentemente também passou a considerar
novos agentes e objetos de análise, sobretudo considerando-os
como elementos motores para uma nova concepção de
conhecimento da realidade histórica, mas especificamente a da
chamada história problema.
A história social e a das mentalidades como uma nova
perspectiva de produção de narrativas históricas promoveu uma
aproximação com outras disciplinas. O diálogo com outras áreas
do conhecimento e a adoção de diferentes aportes conceituais e
metodológicos oriundos da antropologia, da sociologia, da
psicologia social e demais áreas das ciências humanas, tais como o
conceito de cultura e o uso de registros orais, marcariam
profundamente a transformação do campo. A aproximação com a
teoria literária e também a linguística contribuíram especialmente
no que se refere a adoção do conceito de narrativa e o
conhecimento das dinâmicas discursivas como meios de acessar o
conhecimento histórico (ABREU; SOIHET, 2003).
Entre as muitas mudanças propostas, o olhar da
disciplina, antes centrada nos documentos escritos, de caráter
100
oficial e notadamente produzidos pelo Estado, deslocou-se para a
ampliação de outros tipos de registros documentais. Verificou-se,
portanto, o desenvolvimento de práticas metodológicas a partir da
consideração de novas possibilidades de documentos, tais como os
registros orais, fontes imagéticas e sonoras, mas também com
relação a forma com a qual o documento era incorporado ao fazer
historiográfico. Neste sentido, a fonte se torna objeto de
investigação crítica que precisa ser interrogado, uma vez que “o
documento como construção histórica é resultante de uma época,
de uma sociedade que o produziu, manipulou ou o silenciou”
(ANDRADE, 2004, p. 233).
Assim, a oralidade também se encontra nessa guinada da
disciplina. Tal envergadura se deu também muito em virtude da
geração de historiadores africanos, tais como Joseph Ki-Zerbo,
Cheik Anta Diop, John Fage, Phillippe Curti, Boubacar Barri,
Elikia M’Bokolo, entre outros, ao construírem a História do
continente a partir do próprio legado cultural e da produção de
formas de conhecimento da história das sociedades africanas.
A História da África escrita pelos próprios africanos
desmontou a ideia hegeliana de que a África não possuía história,
pressuposto ancorado na materialidade dos registros escritos como
condição primeira para a produção da pesquisa histórica enquanto
ciência. Ou seja, as sociedades africadas eram consideradas sem
História uma vez que, não havendo textos escritos, não seria
possível registrar as experiências de homens e mulheres naquele
continente. As alterações, portanto, do ponto de vista da ideia de
fonte histórica contribuíram sobremaneira para que a oralidade,
bem como outras formas de registro constituísse material de
pesquisa, e assim concorreram para o rompimento da ideia de um
fazer histórico exclusivamente a partir da fonte escrita, abrindo
um leque de possibilidades para a formulação de questões e
101
também de investigação com a contribuição de outras áreas do
conhecimento como a geologia, peleontologia, arqueologia,
geografia e a linguística entre outras (OBENGA, 2010). Além das
fontes orais, as imagens também constituem objeto de
investigação do passado uma vez que constituem também uma
forma de comunicar.
A literatura, objeto do nosso exercício de análise, coloca-se
como fonte importante para a compreensão de um determinado
período histórico e em diferentes dimensões. A primeira delas diz
respeito a um mergulho nas características da linguagem narrativa.
O tipo da linguagem descrita, o vocabulário usado, a grafia das
palavras, formas de tratamento pessoal, expressões locais são
elementos que informam muito sobre as formas de expressão e de
uso da língua em um determinado período histórico, mas
também de um grupo social.
Palavras, símbolos e termos que expressam ideias podem
ser alteradas ao longo do tempo, e nisso está impressa a sua
historicidade. Ao ler uma obra da literatura brasileira na qual a
presença de palavras como “cousa” ou “philosophia” grafadas
desta forma, por exemplo, nos situa de algum modo no tempo e
nos indaga sobre as mudanças sofridas pela língua que por sua vez
articulam-se com transformações de âmbito cultural e social. Esta
perspectiva pode constituir a literatura como uma fonte rica para
a investigação do historiador e da historiadora dentro de outras
possibilidades que a narrativa literária oferece como, por exemplo,
a reconstituição de um contexto histórico a partir das tramas que
se desenrolam em um romance ou num conto, ou na composição
de uma poesia.
Este viés constitui uma outra dimensão do uso da fonte
literária e tem relação com o seu conteúdo. Nas tramas, entre
muitas possibilidades, o pano de fundo pode revelar contextos
102
sociais, relações raciais e de gênero, panoramas políticos, práticas
sociais e culturais e outras tantas dinâmicas sociais que permeiam
momentos históricos distintos. Os dramas presentes nos romances
e contos nos quais se dão as tramas das personagens revelam visões
de mundo e contribuem para desnudar relações de poder
presentes na sociedade e problematizar a realidade histórica, bem
como expressar sistemas de pensamentos de natureza ideológica.
As mudanças na disciplina em suas dimensões teóricos,
metodológicas, mas também no que se refere aos seus objetos de
análise impactaram a produção de uma abordagem do ensino de
história, em especial ao fim do século XX, quando tais
perspectivas teóricas e metodológicas influenciaram a produção de
pesquisa no âmbito acadêmico e que traduziu-se na mudança de
abordagem não só dos sujeitos históricos, mas, também, da
produção do conhecimento a nível escolar.
No âmbito do ensino de história, o uso da literatura como
fonte histórica entre outras fontes de diferentes naturezas e suas
respectivas metodologias de análise passam a ser adotadas como
forma de construção dos saberes de alunos e alunas por meio da
inclusão destes registros históricos nas práticas didático-
pedagógicas. É preciso ter em conta o entendimento de que a
obra possui sua historicidade. Assim, o uso de gêneros narrativos,
como o romance, o conto, a fábula, entre outros no ensino estão
alinhados a uma ideia de documento histórico cujo tratamento
tem como pressuposto o olhar para as entrelinhas que perpassam
o texto narrativo para além de entreter, e como tal, o texto precisa
ser interrogado.

A nova concepção de documento, que explicita sua


utilização para muito além da mera função de
ilustração e/ou motivação, aponta para o
103
redirecionamento da atividade didática do professor
como condutor do processo ensino-aprendizagem.
Em contato com os documentos, professores e alunos
constroem, no ato de ensinar e aprender, as relações e
representações entre passado e o presente, numa
experiência possível de leitura do mundo. O ensino
de História a partir do trabalho com fontes
documentais possibilita, ainda, a professores e alunos
identificarem, recuperarem, registrarem e
(re)significarem no cotidiano vivido as marcas do
passado. (ANDRADE, 2004, p. 235).

O ofício do historiador, suas práticas e metodologias ao


tornarem-se conteúdos de estudo a nível escolar constituem-se
como condição para a compreensão da produção de
conhecimento histórico, impactando, por exemplo, o próprio
entendimento da História e a percepção do aluno como sujeito e
agente da produção de saberes.

Literatura africana e afro-brasileira


A arte de contar histórias, estórias e expressar ideias de
mundo esteve presente nas sociedades africanas, seja por meio da
figura dos griots, responsáveis por guardar e transmitir a história e
a memória de um povo, seja por meio de escritas simbólicas como
o adinkra2. Ficcionais, relatos biográficos ou poesias de pessoas

2
O adinkra constitui um conjunto de símbolos dos povos acã da África
Ocidental, mas especificamente da região de Gana e que representa
provérbios. Para saber mais ver: NASCIMENTO, Elisa Larkin; GÁ, Luiz
Carlos. ADINKRA: Sabedoria dos Povos Africanos. Rio de Janeiro: Pallas,
2011a.
104
negras em África, nas Américas e na Europa ao longo da história
deixaram registros nos quais podemos identificar suas experiências
em diferentes espaços geográficos e sociais.
A diáspora africana dada a partir do tráfico de pessoas
escravizadas para as Américas, construiu uma série de experiências
transatlânticas que foram registradas. As narrativas produzidas no
período em que se deu a diáspora, em especial, as narrativas
produzidas por pessoas negras constituem fonte rica de registro
histórico sobre período escravista. Aqui destacamos os escritos de
Gustavus Vassa, conhecido como Olaudah Equiano, um
marinheiro africano da comunidade igbo na atual Nigéria, que
percorreu o Atlântico no século XVIII, participou do movimento
abolicionista na Inglaterra e que deixou registrado suas memórias
sobre a África, o tráfico de africanos e a escravidão no mundo
Atlântico (CANTO, 2015). Ao analisar a obra deste africano da
sociedade igbo do século XVIII, o pesquisador Rafael Antunes do
Canto avalia que

o texto de Equiano nos permite mergulhar no íntimo


de um africano que se descreveu a partir de um
mundo ocidental, mas que nos traz tanto na escrita
como na lembrança uma África desconhecida. Seu
texto é tido como memória primeira da sociedade
Igbo, da atual Nigéria, cultura de onde foi
sequestrado. Suas descrições das relações sociais, dos
casamentos, da agricultura, da família, das relações de
poder, da escravidão em África – tão distinta do
processo escravista perpetrado por europeus no
mundo atlântico – do comércio, e de todo um
mundo desconhecido aos ocidentais e que só
possuíam descrições de missionários ou mesmo de
105
funcionários coloniais e viajantes, é riquíssimo.
(CANTO, 2015, p.19)

Outro exemplo de registro de uma narrativa histórica é o


relato de Mohammah Gardo Baquaqua. Sua autobiografia revela
as experiências de um escravizado que, nascido no Benin é trazido
escravizado para o Brasil no período colonial, mais
especificamente para a região de Pernambuco. Vassa ou Baquaqua
descreve, além da vivência como escravizado, sua viagem para os
Estados Unidos, a fuga em busca de liberdade, sua viagem ao
Haiti, entre outras situações como escravizado e como livre, que
mostram a saga de homens e mulheres contra a escravidão.
Os exemplos citados apontam para o trânsito que pessoas
escravizadas tiveram no Atlântico, os desafios e a agência escrava
na busca pela liberdade, as conexões entre África, América e
Europa, o tráfico e a escravidão, sob um ponto de vista diferente
do europeu e protagonizados por personagens oriundos da
chamada história vista de baixo. (BURKE, 1992)
Esses registros narrativos, portanto, apontam para uma
perspectiva diferente daquela tradicional e historicamente
elaborada na qual se considerava, sobretudo, os documentos
oficiais como pressupostos para a escrita da História, uma escrita
que tradicionalmente colocou no centro da narrativa personagens
e personalidades europeias. As narrativas aqui apontadas não só
constituem em si testemunhos dessas vivências atlânticas, mas
também oferecem materialidade para a produção de obras
literárias que recuperam a vida de homens e mulheres sob um
olhar bastante particular conforme o romance de ganense Yaa
Gyasi, O caminho de casa. A obra gira em torno da saga de
gerações de uma família na África, que percorre desde a separação
da família ocasionada pelo tráfico transatlântico de escravizados,
106
passando pela experiência da escravidão e a Guerra Civil
americana, até a migração de afro-americanos do Sul para outras
regiões nos Estados Unidos no pós-abolição. Outro exemplo é o
já clássico romance da escritora brasileira Ana Maria Gonçalves,
Um defeito de cor. A personagem Kahinde, após ser capturada no
Daomé faz a travessia do Atlântico para ser escravizada no Brasil e
começar sua saga em busca da liberdade.
Portanto, as sociedades africanas, os seus descendentes no
Brasil e em todo o restante da diáspora, deixaram registros e
narrativas das experiências de pessoas negras que subsidiam, e por
que não dizer inspiram a elaboração de uma literatura de fundo
histórico protagonizadas por homens e mulheres negras que
viveram a experiência da escravidão e da liberdade. O sentido de
saga em busca da liberdade é importante ainda sobre o ponto de
vista da mudança de uma narrativa centrada exclusivamente no
martírio e que passa a destacar as formas de resistência e de luta de
pessoas negras contra o regime escravista e pela sobrevivência e
liberdade.
Mas, o que configura uma literatura de matriz africana?
Qual o ponto que sinaliza a existência de uma literatura negra?
Quais são os critérios que identificam uma literatura negra? O
pesquisador da literatura afro-brasileiro Eduardo de Assis Duarte
(2018) nos sugere alguns caminhos nesse sentido. O autor elabora
alguns pressupostos para caracterizar uma obra literária afro-
brasileira. Para Duarte, o primeiro ponto está na assunção do
sujeito étnico, seja ela explícita, como o caso de Luiz Gama, Lima
Barreto; mais contemporaneamente Cuti (Luiz Silva) e Conceição
Evaristo; ou de forma menos explicita como foram Machado de
Assis, Maria Firmina dos Reis e Cruz e Souza.
Para Duarte, há indícios nas obras que indicam, mesmo
que nas entrelinhas a auto identificação do autor. O segundo
107
elemento seria a temática, ou seja, o assunto do texto centrado em
questões que dizem respeito às experiências dos afro-brasileiros. O
terceiro ponto seriam as “construções linguísticas marcadas por
uma afro-brasilidade de tom, ritmo, sintaxe ou sentido”; além de
“um projeto de transitividade discursiva, explícita ou não, com
vistas ao universo recepcional” e por fim, “um ponto de vista ou
lugar de enunciação política e culturalmente identificado à
afrodescendência como fim e começo” (DUARTE, 2018, p. 7).
A identidade racial e a utilização de temas porém não são
o suficiente para configurar uma literatura negra uma vez que há a
necessidade da “assunção de uma perspectiva identificada à
história, à cultura, logo à toda problemática inerente à vida e às
condições de existência desse importante segmento da
população.” (DUARTE, 2018, p. 12). Assim, para o autor é a
confluência de todos esses elementos que configuram uma
literatura afro-brasileira:

A partir, portanto, da interação dinâmica desses cinco


grandes fatores – temática, autoria, ponto de vista,
linguagem e público – pode-se constatar a existência
da literatura afro-brasileira em sua plenitude. Tais
componentes atuam como constantes discursivas
presentes em textos de épocas distintas. Logo,
emergem ao patamar de critérios diferenciadores e de
pressupostos teórico-críticos a embasar e
operacionalizar a leitura dessa produção. Impõe-se
destacar, todavia, que nenhum desses elementos
propicia o pertencimento à literatura afro-brasileira,
mas sim o resultado de sua interrelação.
Isoladamente, tanto o tema, como a linguagem e,
mesmo, a autoria, o ponto de vista, e até o
108
direcionamento recepcional são insuficientes.
(DUARTE, 2018. p. 17)

Deste modo, podemos considerar que uma literatura afro-


brasileira é caracterizada pela produção feita por pessoas negras,
mas também aquela cujos os temas que dizem respeito às suas
experiências estão ligados a questões marcadas pela cor e pela raça.
Ou seja, essa literatura denuncia os dramas e vivências de pessoas
negras na primeira pessoa. Suas personagens deixam de ser
construídas a partir de um imaginário sobre homens e mulheres
negras, que por sua vez é recorrentemente permeado por
concepções de natureza racista. Essa perspectiva é rompida na
medida em que a voz literária é concebida em primeira pessoa por
homens e mulheres negras que narram suas próprias histórias.
Podemos a este respeito tomar como antítese o exemplo
da imagem mulher negra representada na figura da tia Anastácia.
Essa, encarna o estereótipo da Mammy, que nos Estados Unidos é
a figura da mulher negra, gorda, que cuida e serve a família
branca, a ama de leite, a que foi destinada para o trabalho
doméstico tendo suas qualidades atreladas exclusivamente ao
cuidado da casa e dos outros como cozer, cozinhar e ser aquela
que nasceu para dar ouvidos e afetos. Essa imagem esta
referendada na escravidão, na imagem da escrava que tem sua
existência restrita aos serviços da casa e da família escravista.
(WALLACE-SANDERS, 2003).
Outro exemplo é a personagem do tio Barnabé, que se
assemelha ao Pai Thomaz da obra A cabana do Pai Thomaz, de
autoria da americana Harriett Beecher Stowe. Tio Barnabé assim
como Pai Thomaz encarnam a figura de negros já velhos,
fragilizados e resignados com sua condição de subalternidade e
vencidos pelas agruras da escravidão. Tanto a tia Anastácia como
109
o tio Barnabé, ambas personagens da obra do escritor Monteiro
Lobato, parecem recuperar as figuras dos antigos negros da casa
grande do período da escravidão e que no pós-abolição
permanecem numa condição de subalternidade resignada. Por
outro lado, tais personagens são a antítese do escravizado que se
rebela diante das agruras da escravidão e que contraria o sistema
conforme as obras de Ana Maria Gonçalves e Yaa Gyasi aqui já
citadas:

A instância da autoria como fundamento para a


existência da literatura afro-brasileira decorre da
relevância dada à interação entre escritura e
experiência, que inúmeros autores fazem questão de
destacar, seja enquanto compromisso identitário e
comunitário, seja no tocante à sua própria formação
de artistas da palavra. No primeiro caso, saltam aos
olhos os impulsos coletivistas que levam diferentes
autores a quererem ser a voz e a consciência da
comunidade. Nesse contexto, recupera-se a tradição
africana dos griots. Guardiães do saber ancestral
circunscrito à oralidade, bem como dos usos e
costumes das nações que deram origem à população
afrodescendente no Brasil, os griots são referência
para intelectuais militantes como Abdias Nascimento,
Solano Trindade, Carlos de Assumpção (1927), Cuti
e tantos mais. (DUARTE, 2018, p. 9).

As reflexões de Duarte remetem a um outro aspecto da


literatura africana e afro-brasileira que é o ativismo. Podemos
destacar neste âmbito as obras dos poetas da negritude, cujo
movimento adotou a poesia como instrumento de luta pelas
110
independências dos países africanos entre os anos 20 e 70 do
século XX. Aliás, a poesia, conforme chama a atenção Ali Mazrui,
pode ser considerada como “a mais intimamente africana entre
todas as formas literárias” (MAZRUI, 2010, p.665).
Resultado de uma reação africana à política imperial
europeia, mais especificamente a política francesa de assimilação
cultural, este movimento literário com influência do pan-
africanismo, reuniu escritores da África e das Antilhas como o
martinicano Aimé Cesaire, o senegalês Léopold Sédar Senghor e
Léon- Gontran Damas, da Guiana, para afirmar os valores
tradicionais africanos. Assim, tanto na forma – poesia – como no
conteúdo, o movimento literário da negritude, promoveu uma
das estratégias de luta anticolonial ou uma “formidável arma
teórica de reivindicação coletiva, racialmente grupal, em prol da
grande mudança social.” (CESAIRE, 2010, p.19).
O movimento literário da negritude ecoa no Brasil. O
grande expoente do ativismo negro Abdias Nascimento e
Guerreiro Ramos reelaboram o movimento no Brasil trazendo em
suas poesias aspectos da cultura africana como estratégia de
afirmação de uma identidade afro-brasileira.

111
Exu
Tu és o senhor
dos caminhos da libertação do teu povo
sabes daqueles que empunharam teus ferros em brasa
contra a injustiça e a opressão
Zumbi Luiza Mahin Luiz Gama
Cosme Isidro João Candido
sabes que em cada coração de negro
há um quilombo pulsando

Abdias Nascimento

Mas é com o surgimento dos Cadernos Negros no fim da


década de 1970, mas especificamente em 1978, que o movimento
afro literário ganha força. Publicando poemas e contos de autores
e autoras negras, os Cadernos Negros transformaram-se no
principal porta voz da arte literária negra. A emergência da
literatura negra, sobretudo por tal cunhagem definir um lugar em
que a fala tem uma identidade racial negra, sinaliza mudanças no
campo literário. Não há novidade quanto a produção literária de
pessoas negras, lembremos de escritores e escritoras como Maria
Firmina dos Reis, Castro Alves, Lima Barreto e Machado de Assis,
entre outras as figuras negras que por certo ou foram
invisibilizadas ou embranquecidas pelo que podemos chamar de
história oficial da literatura, que sem dúvida narraram em
diferentes formas de texto estórias e histórias dos povos negros.
A diversificação dos textos literários, que hoje incluem não
só o romance e a poesia, mas também os quadrinhos e a literatura
infantil, demonstra que tal emergência tem relação direta com a
construção de uma narrativa afirmativa dos povos negros, e se
alinha ao entendimento da escrita como ato de insubordinação.
112
Literatura africana e afro-brasileira e Ensino de História
Ao longo dos últimos quinze anos a História da África e
da Cultura Afro-brasileira vêm se ampliando no contexto da
educação básica. À esta transformação recente devemos atribuir a
promulgação e aplicação da Lei 10.639/03. A referida lei obriga a
inclusão do tema da História da África e Cultura afro-brasileira
nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficial e
particular. A lei posteriormente alterou-se na lei 11.645/08 para
incluir o estudo da história e das culturas indígenas.
Esta transformação reflete-se ainda na ampliação de cursos
com esta temática voltados para educadores e educadoras da
educação básica; na inclusão de História da África como
disciplina obrigatória nos cursos de graduação em História, e em
outras áreas do conhecimento; no aumento das pesquisas e
programas de pós-graduação sobre a temática, proporcionando,
desta forma, a qualificação de profissionais neste campo de
estudo; o aumento das publicações voltadas para todos os
segmentos de ensino, da educação básica ao ensino superior.
Podemos considerar que tais iniciativas também
constituem-se como ações afirmativas uma vez que, sendo a
maioria da população de origem africana, conforme o censo do
IBGE de 2010, onde mais de 50% das pessoas se declararam
negras, era necessário a inclusão de conteúdos que dizem respeito
a sua história e a sua identidade.
Esse avanço recente é resultado de uma demanda histórica
dos movimentos sociais negros que ao longo do século XX e XXI
vem reivindicando igualdade e cidadania para as populações
negras historicamente alijadas dos processos políticos e decisórios
da sociedade brasileira. A educação das relações étnico-raciais,
entre outras reivindicações, portanto, esteve entre as principais
pautas do movimento social negro. Já na década de 1940, o
113
Teatro Experimental do Negro, criado por Abdias Nascimento,
incluiu em suas atividades cursos de alfabetização, educação sobre
a história dos negros e negras no Brasil. Em 1946 a entidade
organizou a Convenção Nacional do Negro, que propunha, por
exemplo, políticas públicas para a população afrodescendente no
contexto da Assembleia Constituinte de 1946. (NASCIMENTO,
2014).
O entendimento era de que o desconhecimento sobre suas
origens na educação contribuía para a baixa autoestima dos
afrodescendentes comprometendo a construção de sua identidade
e impedindo seu acesso pleno à cidadania. A ascensão social, mas
também a tomada de consciência para as questões raciais era
condicionada pelo acesso ao conhecimento, especialmente aquele
que dizia respeito as origens dos afrodescendentes, sua história e
sua cultura, porém através de uma narrativa positivada.
Nesse sentido, na década de 1990, Abdias Nascimento ao
assumir a SEDEPRON (Secretaria Extraordinária de Defesa e
Promoção das Populações Negras), órgão do estado do Rio de
Janeiro, promove em parceria com o IPEAFRO uma série de
cursos de formação para educadores, bem como elabora
publicações voltadas para o conhecimento sobre a África e sobre a
história dos negros e negras no Brasil cujo conteúdo objetivava
apoiar iniciativas pedagógicas a partir de uma perspectiva
afrocentrada.
O filósofo e professor Renato Noguera argumenta que tal
perspectiva trabalhada no âmbito da educação básica consiste em
demarcar o currículo a partir das experiências africanas, das
culturas africanas e das demandas dos povos africanos
(continentais e/ou afrodiaspóricos), apresentando uma crítica a
marginalização e localização periférica da episteme africana.
(NASCIMENTO, 2011b).
114
A educação básica em toda a sua estrutura, desde o espaço
escolar passando pela formação de professores e a concepção do
currículo entre outros espaços das instâncias educacionais,
refletem a estrutura social brasileira construída a partir das
relações sociais de escravidão. Tais relações relegaram a população
negra ao último lugar da escala social, o que significa dizer que
sua herança histórica, cultural e seus saberes, e aí ressaltamos sua
produção artística e especialmente literária, que é o objeto de
nossa análise, foram omitidos e invisibilizados em nome de uma
crença na superioridade do saber ocidental europeu e na
inferioridade dos povos africanos, e consequentemente de seus
descendentes. O resultado foi um longo silêncio e a ausência de
conteúdos a respeito da história da África e da diáspora africana.
Tal fato, portanto se dá em virtude do racismo e a negação
da participação dos africanos e dos afrodescendentes na formação
da sociedade brasileira por um lado, e por outro, bastante em
razão deste primeiro aspecto citado, em relação a negação da
existência do racismo na sociedade brasileira atribuída em muito a
construção da chamada democracia racial que solidificou uma
ideia distorcida da sociedade brasileira pautada em relações raciais
harmoniosas e sem diferenças.
Ações como a lei 10.639/03 vem alterando esse cenário.
Uma ampliação da literatura tem sido sentida no que se refere a
tradução de obras de autoras e autores africanos, como Chinua
Achebe, Chimamanda Adichie, Paulina Chiziane, Mia Couto,
José Eduardo Agualusa, Yaa Gyasi e o Premio Nobel de Literatura
Wole Soyinka, por exemplo.
Já a ampliação da produção de uma literatura produzida
por pessoas negras no Brasil, tem mirado também o público
infantil, uma vez que entendemos que o conhecimento e a
consequente valorização da história, dos aspectos culturais e
115
legado civilizatório das sociedades africanas no Brasil, desde a
tenra idade, são fundamentais para a construção de uma
identidade positivada e uma boa autoestima.
Fatores de âmbito político, entretanto, permearam a
velocidade com que tais mudanças ocorressem no país. O período
da ditadura militar concorreu para o cerceamento da prática
acadêmica, mas também escolar. O ensino de História tal como o
de Geografia foi cerceado em detrimento dos Estudos Sociais
impedindo o desenvolvimento do estudo da história alinhado
com as concepções propostas pelas novas linhas historiográficas.
O ensino de história ainda era pautado no registro de nomes de
grandes personagens históricos, mas também de datas que
marcam eventos circunscritos na memória nacional. Tal
abordagem excluía a história de homens e mulheres comuns e
negligenciava sua atuação nas transformações sociais. Neste
contexto, negros, indígenas, imigrantes entre outros grupos sub-
representados historicamente apareciam de forma tangencial nas
abordagens dos grandes eventos. Soma-se ainda a crença na ideia
de democracia racial que concorreu para mascarar durante anos a
existência do racismo no Brasil bem como obscurecer as
especificidades e demandas das populações negras no que se refere
a sua própria história (NASCIMENTO, 2016).
A invisibilidade da população negra na mídia, nos lugares
socialmente reconhecidos, e em espaços de poder indicam, do
ponto de vista ideológico, a ideia de inferioridade ou mesmo a
inexistência do legado destes povos. Ou ainda, uma vez presentes
nos espaços midiáticos, negros e negras eram colocados em lugares
socialmente subalternizados e inferiorizados contribuindo assim
para a construção de uma identidade negativizada. O resultado foi
o comprometimento da autoestima da população negra e do seu
sentimento de pertencimento na sociedade brasileira.
116
Neste sentido, a forma com que povos negros e sua
cultura são representados na composição social brasileira também
se reflete no ambiente escolar. Consequentemente, a população
brasileira cuja composição é em grande parte oriunda dos povos
africanos tem também sua identidade comprometida a medida em
que suas origens e culturas não estão representadas no ambiente
escolar.
A pesquisadora Ana Célia da Silva (2011), que em sua tese
de doutorado pesquisou a presença do negro nos livros didáticos,
argumenta que houve uma mudança significativa a partir da
década de 1990, quando os livros passaram a descrever e ilustrar
personagens negros de uma forma humanizada, com direitos de
cidadania como lazer, saúde, habitação, bem como passaram a ser
retratados em diversos papéis e funções na sociedade, inclusive
aqueles que denotam socialmente como lugares de prestígio.
Entretanto, conforme argumenta Ana Celia, personagens negros
encontravam-se ainda representados como minorias e assimilados.
Características fenotípicas como a textura do cabelo crespo e o
formato dos lábios e nariz são considerados feios, as heranças
culturais como o samba e a capoeira, práticas de pessoas violentas
e ociosas, e as práticas religiosas de matriz africana, como a
religião do candomblé e da umbanda, são considerados inferiores
e negativas. O resultado se reflete na não aceitação de sua
identidade e de seu corpo, na baixa autoestima e no alto índice de
evasão escolar.
A lei 10639/03 vem modificando esse cenário, e nesse
sentido, a literatura infanto-juvenil tem um papel fundamental.
Para além do lugar subalternizado dos negros e negras
escravizados, é importante atentar para uma abordagem que dê
ênfase e valorize a agência e a resistência das pessoas negras ao
longo da história, bem como o legado cultural e político destes
117
povos africanos e diaspóricos, além de valorizar e positivar os
traços sejam eles físicos ou culturais que os identificam. Para
tanto, é imprescindível o envolvimento dos educadores e
educadoras, mas também e especialmente dos gestores escolares
em uma proposta pedagógica afrocentrada. É preciso destacar que
não se propõe uma substituição de uma perspectiva
epistemológica pela outra. Mas que se contemple de forma
igualitária todos os componentes da formação social brasileira.

Mulheres negras e literatura


Qual o lugar das mulheres negras na literatura? Em 2018
a escritora Conceição Evaristo teve sua candidatura submetida à
Academia Brasileira de Letras, fundada em 1897 pelo escritor
negro Machado de Assis (DUARTE, 2017). Mais de um século
depois uma mulher negra se candidatou para o compor o quadro
daqueles considerados ícones da literatura nacional e seu nome foi
preterido. O caso diz muito sobre o lugar da literatura negra e em
especial produzida por mulheres negras na sociedade brasileira.
Sua vivência no campo literário revela as nuances do racismo
brasileiro, mas também as experiências das mulheres negras em
diferentes âmbitos da vida social. Ao mesmo tempo, traz para o
primeiro plano o entrelaçamento de questões de raça, gênero e
classe.
A narrativa literária de mulheres negras seja na poesia, na
prosa, no conto, nos romances, tem sua relevância em construir
uma arte narrativa que rompa com grande parte do imaginário
historicamente construídos sobre elas. Sua fala, ou melhor, sua
escrita e melhor ainda, sua escrevivência3, conforme conceitua a

3
Termo que remete a uma escrita construída a partir das experiências do
cotidiano, das memórias e vivências da autora.
118
escritora Conceição Evaristo, descontrói o olhar histórico
consolidado por figura de mulheres hiper sexualizadas ou
assexuadas, permeadas por um olhar racializado e caracterizadas,
por exemplo, por personagens como Rita Baiana, do livro O
Cortiço, de Aloízio de Azevedo, ou ainda a Gabriela Cravo e
Canela, de Jorge Amado. Ausência da mulher negra como mãe,
ou melhor, dizendo, somente como a mãe preta, aquela que cuida
dos filhos dos outros, em geral, brancos é rompida para a escrita
de mulheres negras que coloquem temas como a maternidade, o
afeto, a religiosidade, ancestralidade e o racismo, conforme
podemos extrair da poesia de Conceição Evaristo.

A voz da minha bizavó


Ecoou criança
Nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.

A voz de minha avó


ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.

A voz da minha mãe


Ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.

A minha voz ainda


119
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue e fome.
A voz da minha filha
recorre todas as nossas vozes
recolhi em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.

A voz da minha filha


recorre em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade.

Conceição Evaristo

Os versos de Evaristo trazem a confluência de diferentes


temas em uma voz notadamente feminina que carrega a
ancestralidade, a família, a maternidade, a escravidão, a situação
de pessoas negras no pós-abolição e o sopro de esperança e
liberdade que as gerações futuras carregam. A literatura de
mulheres negras coloca em cena seus dramas, e questões que
giram em torno dessa constante busca pela liberdade de existir
com todas as suas especificidades:

Assenhorando-se “da pena”, objeto representativo do


poder falo-centrico branco, as escritoras negras
buscam inscrever no corpus literário brasileiro
imagens de uma auto-representação. Criam, então,
120
uma literatura em que o corpo-mulher-negra deixa de
ser o corpo do “outro”como objeto a ser descrito,
para se impor como sujeito-mulher-negra que se
descreve, a partir de uma subjetividade própria
experimentada como mulher negra na sociedade
brasileira. (EVARISTO, 2005, p.54).

Assim, no âmbito da literatura africana e afro-brasileira, a


produção literária de mulheres negras ganha relevância ao carregar
o entrelaçamento de questões raciais, de gênero e classe. A
relevância desta produção está também no aumento do número
de escritoras, de suas obras que acessam o mercado editorial, mas
sobretudo na ampliação do público leitor. Tal crescimento porém
não significa mudanças profundas quanto as facilidades no que se
refere aos aspectos que envolvem a produção de uma obra, que vai
da editoração até a distribuição.
O debate público sobre questões relacionadas a gênero e
raça, especialmente entre a população negra no Brasil fez com que
a mesma verter-se o olhar para uma produção sobre suas
experiências culturais e históricas produzidas por eles próprios. É
neste sentido que podemos verificar uma ampliação de
publicações mas que parece não corresponderem
proporcionalmente a quantidade do vem sendo produzido por
mulheres negras espalhadas pelo Brasil. A ampliação de
interessados e leitores sobre uma escrita feita por mulheres negras
na África e na Diáspora revela uma identificação com uma
história atlântica e que começa muito antes do tráfico. É neste
sentido que obras de autoras como Chimamanda Adichie, Yaa
Gyasi no âmbito da literatura africana e Conceição Evaristo, Ana

121
Maria Gonçalves, Lívia Natália e Cristiane Sobral no âmbito da
literatura brasileira se destacam.4

Considerações finais
A literatura oriunda destes lugares considerados
historicamente periféricos diante da ordem global trabalha
duplamente para a desconstrução e reconstrução de narrativas,
bem como traz para o cenário literário e também historiográfico
relações sociais, de gênero, raciais, panoramas políticos, relações
internacionais... Essa produção contribui sobremaneira para olhar
as experiências de pessoas negras em suas diferentes nuances
observar e, sobretudo reconhecer sua humanidade, cuja
reivindicação tem sido historicamente reivindicada.
A literatura de matriz africana oferece um olhar sobre a
história e a cultura alinhadas a chamada história vista de baixo,
considerada aquela vivenciada e escrita por grupos historicamente
subalternizados do ponto de vista de seus lugares sociais e raciais.
Pessoas africanas e afrodescendentes passam a narrar suas
4
Obras de Chimamanda Adichie: Hibisco roxo (2003), Meio sol amarelo
(2006), No seu pescoço (2009), Americanah (2013), Sejamos todas
feministas (2014), Para educar crianças feministas – um manifesto
(2017); Yaa Gyasi: O caminho de casa (2017); Conceição Evaristo:
Ponciá Vicência (2003), Becos da Memória (2006), Poemas de
recordação e outros movimentos (2008), Insubmissas lágrimas de
mulheres (2011), Olhos d’água (2014), História de leves enganos e
parecenças (2016), Canção para ninar menino grande (2018); Ana
Maria Gonçalves: Um defeito de cor; Lívia Natália: Água negra (2010),
Correntezas e outros estudos marinhos (2015), Água negra e outras
águas (2016), Dia bonito para chover (2017); Cristiane Sobral: Só por
hoje vou deixar o meu cabelo em paz (2014), Espelhos, miradouros,
dialéticas da percepção (2011), O tapete voador (2016), Não vou mais
lavar os pratos (2010), Terra Negra (2017).
122
histórias, memórias e experiências em forma de arte literária
possibilitando o compartilhamento das vivências próprias. Deste
modo, o uso das obras literárias africanas e afro-brasileira no
ensino permite acessar contextos históricos e relações de poder
pelo olhar de africanos e africanas e pessoas afro-brasileiras e afro-
americanas. Tal perspectiva contribui para uma educação com
viés mais democrático, uma vez que todas e todos precisam
acessar suas histórias, mas também promove a valorização da
autoestima da criança negra que vê assegurado o acesso as suas
estórias e histórias.
Professores e gestores da área de ensino precisam,
portanto, estar sensíveis a uma perspectiva mais igualitária no que
se refere a construção identitária de seus alunos e alunas
atentando para o uso de recursos pedagógicos onde todas e todos
possam se sentir contemplados, bem como reconhecer e dialogar
com outras fontes de conhecimento produzidas por pessoas que
trazem uma narrativa alinhada às demandas das pessoas negras.

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127
FONTES E PESQUISAS DA HISTÓRIA DAS MISSÕES
NA ÁFRICA: ARQUIVOS E ACERVOS
Patricia Teixeira Santos
Lucia Helena Oliveira Silva
Nuno de Pinho Falcão1

As experiências missionárias sempre foram fontes da história do


processo evangelizador da Europa para outros continentes.
Porém, desde 1970 elas têm se tornado objeto de pesquisa desde
que etnógrafos e antropólogos passaram a estudá-las como
possibilidades de entender a ação missionária nos lugares onde foi
desenvolvida, bem como os processos de mediação e as
perspectivas que dela derivaram e o espaço simbólico de embate
entre culturas (COMAROFF, 1985; COMAROFF, 1991).
Entendidas como fontes primordiais para se compreender o
universo construído entre africanos e europeus, as fontes

1
Patricia Teixeira Santos é professora do Departamento de História da
Universidade Federal de São Paulo, Pesquisadora do CITCEM da
Universidade do Porto e do Laboratório Áfricas no Mundo da
Universidade de Bordeaux III. Coordenadora do projeto Fontes e Pesquisas
para a história das missões na África: arquivos e acervos. Lucia Helena
Oliveira Silva é professora do Departamento de História da Universidade
Estadual Paulista – campus Assis, pesquisadora do CITCEM da
Universidade do Porto e vice-coordenadora do projeto Fontes e Pesquisas
para a história das missões na África: arquivos e acervos. Nuno de Pinho
Falcão é professor do Instituto de Humanidades e Letras da Universidade
da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, campus Malês,
pesquisador do CITCEM da Universidade do Porto e membro da
coordenação do Projeto Fontes e Pesquisas para a história das missões na
África: arquivos e acervos.
O texto que aqui se oferece recupera um texto com o mesmo título
publicado na Revista Africana Studia, nº. 23. Porto: CEAUP; 2016.
128
missionárias recuperam as narrativas sobre a África pré-colonial,
colonial e pós-colonial e os diversos modelos missionários que
atuaram nos territórios. Essa rica vivência compreendeu a
formação de instituições clericais, religiosas e laicas e a forte
influência sobre os grupos.
A presença missionária em África se iniciou ainda com o
processo de expansão português apoiado por um conjunto de
documentos pontifícios como a Bula Romanus (1455) e a Bula
Inter Coetera (1456). As bulas davam ao rei a autoridade religiosa
para criar igrejas e mosteiros e enviar missionários aos territórios
ultramarinos. Assim, as missões religiosas aconteceram
paralelamente ao período da exploração comercial. A partir do
século XVII, o processo de missionação foi intensificado e o
trabalho missionário atuou na conversão dos chefes e reis
africanos que viriam a ser parceiros do governo português, como
foi o caso da rainha Nzinga, batizada em 1622, que adotou o
nome cristão de Ana de Souza. Contudo, a vivência entre grupos
tão distintos como europeus e africanos implicava também uma
forma de conversão por parte dos europeus que se dirigiam à
África, uma vez que para uma melhor aceitação por parte dos
povos locais era preciso se integrar a seus costumes. Esse longo
processo de negociação foi transcrito nas narrativas missionárias e
passou a ser valorizado como fonte de pesquisa pelos estudos da
antropologia a partir da década de 1970. Diversos estudiosos
como Comaroff (1985; 1991), Wyatt Macgaffey (2005, p.189-
207) e John Thornton (2004), entre outros, passaram a
reconhecer as fontes missionárias como importantes espaços para
o estudo da vida em África.
Estudos como os de John Thornton (2004) auxiliaram a
compreender a criação do catolicismo africano e seus diversos
entendimentos entre os diferentes grupos étnicos. Segundo
129
Rosana Gonçalves, “[é] difícil imaginar que ao chegar na África, o
europeu conseguisse converter o africano sem que este não
mantivesse o substrato de suas crenças e práticas ancestrais”
(2006, s/d). Tal afirmação baseia-se principalmente na atuação
dos portugueses na África e nas diferenças entre a religiosidade
europeia e a africana; dos encontros entre esses dois universos,
inicialmente concebidos como distintos, surgiu o catolicismo
africano. Thornton fala também do “espontaneismo” e do
“protagonismo africano”, que dá uma ideia da autonomia no
processo de conversão. Por outro lado, o esforço do clero em se
aproximar das culturas locais levou seus membros a aprender as
línguas locais e a traduzir formas ritualísticas, trabalho que foi
iniciado pelos jesuítas ainda no século XVI.
O empreendimento religioso exigiu o esforço de muitos
elementos, e a pesquisa na documentação permite perceber a
presença de diversas ordens e nacionalidades entre o clero atuante.
Atuaram nesse processo não apenas os clérigos portugueses, mas
também espanhóis e italianos, entre outras nacionalidades. Tal
presença não se dava apenas devido ao propósito de converter
povos localizados em outros lugares do globo, mas tinha alguns
direcionamentos, como a regulamentação pelo regime do
padroado. Outras ordens, como a da Ordem dos Capuchinhos,
eram motivadas também por questões políticas como o
rompimento da União Ibérica em 1640 e excomunhão da Igreja
portuguesa pelo Papa, que levou Filipe IV da Espanha, na
tentativa de manter o exercício do Padroado da Coroa Portuguesa
que perdera, a promover a vinda dos capuchinhos italianos a
partir da Espanha para os territórios de presença portuguesa como
Angola e Congo.
Junto com o percurso da história missionária portuguesa,
desenvolveu-se com bastante ênfase, no final do século XVIII e ao
130
longo do século XIX, uma ação missionária mais ampla e efetiva
das nações europeias que se colocava subordinada à Propaganda
Fide. Para essa ação missionária, haverá uma centralidade das
missões africanas no caminho de renovação da Igreja Católica à
luz das transformações das relações entre Igreja e Estado que
vieram com a Revolução Francesa. Assim, desenvolveram-se
diversos projetos que propunham o enraizamento efetivo da
ocupação cristã do continente, alterando as condições da
civilização material e propondo novas formas de se pensar o clero
nativo.
Um dos projetos mais destacados do missionarismo no
século XIX será o da ‘regeneração da África pela África’ do antigo
Vigário Apostólico da África Central, Dom Antonio Daniele
Comboni (SANTOS, 2002). Para esse prelado, o clero nativo
deveria ser o condutor da Igreja em África, promovendo o
enraizamento do evangelho ao conjugar nas suas ações as
atividades missionárias com a expansão do ensino superior. Além
disso, a hierarquia eclesiástica deveria ser estruturada dentro dos
quadros locais. O sucesso evangelizador seria medido não só pela
adesão das elites africanas, mas sobretudo, pelas transformações
das condições materiais e pelo surgimento de uma camada de
profissionais liberais, políticos e militares que fossem cristãos
originários dos espaços das missões.
Iniciativas em torno do enraizamento da presença cristã
tiveram que lidar com as injunções dos processos coloniais
empreendidos pelas nações europeias ocidentais. Tal dinâmica,
marcada por fortes tensões dentro da própria Igreja, levou a que
projetos que se distanciavam da subordinação ao estado colonial,
ou pudessem ser concorrentes, fossem obliterados, como ocorreu
no caso de Comboni e seu projeto para a evangelização da África
Central.
131
O papado de Leão XIII marcou as convergências dos
projetos missionários com os coloniais, fato que levou à divisão
interna de muitas congregações por conta da exigência de que o
missionário numa colônia deveria ser proveniente da nação
colonizadora que tinha respectiva área de influência na África
(PRUDHOMME, 1994)
Tal fato levou a uma grande reflexão intelectual na Igreja
a respeito do papel da missão no processo civilizador dos povos
não brancos e a um esforço consciente na organização dos
arquivos e do patrimônio missionário das ações evangelizadoras
dos séculos XVII a XIX.
O esforço da monumentalização da experiência foi tão
importante quanto o da ação evangelizadora. Essas instituições
arquivísticas, museus missionários e estudos elaborados na área da
missiologia (criada no início do século XX como um ramo
independente da Teologia na Itália e na França) criou acervos de
grande importância que permaneceram mesmo com o fim do
colonialismo e a expulsão de diversas congregações missionárias
da África, chegando até os dias atuais. Como exemplo para o caso
da África Lusófona podemos citar a criação da Monumenta
Missionaria Africana de António Brásio (1952).
Essas instituições enfrentam hoje o dilema do que fazer
com os grandes acervos que possuem, mas que remetem a uma
fase da história contemporânea da Igreja em que lidar com a
herança da época colonial é algo ainda muito incômodo e
perturbador. Esses acervos fazem parte de um ‘passado que se
quer esquecer’.
Os acervos dessas instituições, tanto ligados à Propaganda
Fide quanto ao Padroado português, são formados por uma
quantidade de documentos relevantes do ponto de vista histórico,
religioso e cultural, indo desde os presentes que os missionários
132
recebiam aos diários da missão, correspondência aos bispos e
Papas, relatórios paroquiais, livros de batismo, inventários e
cartografias das missões.
A proposta do projeto “Fontes e pesquisas da História das
Missões na África: Arquivos e acervos”, formulada a partir da
colaboração entre o CITCEM da Universidade do Porto, a
Universidade Federal de São Paulo, a Universidade Estadual
Paulista (campus Assis), a Universidade Federal do Vale de São
Francisco, a Universidade Estadual de Pernambuco (campus
Petrolina), a Universidade Federal do Pará (campus Cametá) e a
Universidade Internacional da Integração da Lusofonia Afro-
Brasileira (campus Malês), é de colaborar para suscitar pesquisas
sobre o cotidiano das missões e o acervo das instituições
arquivísticas ligadas às ordens e congregações missionárias
portuguesas, cuja documentação é muito pouco explorada, e
associar a essa pesquisa os arquivos das dioceses em África ligadas
a esses institutos.
Desse quadro mais amplo conseguiu-se mapear e fazer
acordos para pesquisa com as seguintes instituições e arquivos: em
Portugal com os arquivos dos Capuchinhos e dos Espiritanos,
Missionários da Consolata e os Missionários Combonianos. Em
Moçambique com o Arquivo da Missão e Centro Catequético do
Anchilo e da Revista Missionária Vida Nova, localizados na
Arquidiocese de Nampula. Importa destacar que esses arquivos,
instituições e a documentação que está na missão de Nampula
possuem relações entre si em função da história missionária
colonial, e em muitos aspectos a documentação aprofunda temas
importantíssimos da história da experiência do catolicismo na
África.
A partir dessa pesquisa documental espera-se o
desenvolvimento de projetos de conclusão de curso de graduação,
133
treinamentos técnicos, doutoramentos e pós-doutoramentos nas
áreas de História e Ciências Sociais na perspectiva da cooperação
entre Brasil, Portugal e países africanos. Nesse processo se
preconizará a organização dos acervos, a publicação de guias de
fontes e a estruturação de um portal online que favoreça a criação
de uma rede de arquivos religiosos, privados e públicos. Também
visa-se contribuir para a reorganização dos arquivos e a criação do
acervo de arquivos orais para pesquisas em torno da temática das
missões na África e do cotidiano das mesmas nos contextos
colonial e pós-colonial.
Neste projeto se fará a análise dos processos de
constituição de identidades religiosas e de reorganização de
hierarquias de terras e populações, a partir do contato e da
inserção das diversas sociedades africanas nas experiências da
globalidade das ações missionárias no continente, do século XVII
a XXI. Essa longa temporalidade permite perceber que os sentidos
da missão e sua eficácia são uma experiência histórica que se
construiu no tempo e que indicava tanto a necessidade da
conquista da civilização material (a implantação da cristandade)
quanto a constituição de hierarquias sociais e laços políticos,
celebradas nos processos de conversão e batismo.
Do século XVIII a XIX a materialidade da experiência da
inserção de espaços e sociedades nas globalidades missionárias
passava necessariamente pela ênfase nas alianças políticas com as
chefaturas e os soberanos estrangeiros. A documentação
produzida sobre essa experiência é vasta e carregada de
possibilidades de se perceber como os mediadores da experiência
religiosa traduziram esses encontros, negociações, conflitos e
acomodações entre os agentes religiosos, as chefaturas africanas e
dinâmicas econômicas e sociais como, por exemplo, os tráficos de
escravos para o Atlântico e para as áreas otomanas.
134
A partir do final do século XIX e durante o século XX, a
experiência das missões se realizou em conjunto com o processo
de subordinação aos impérios coloniais. A dimensão religiosa da
vivência comunitária da fé ocorria dentro da espacialidade dos
Estados Coloniais, informando em muitos casos os sistemas
hierárquicos, os registros de populações, os papéis econômicos,
sobretudo no que tange ao recrutamento para o trabalho forçado
nas áreas das missões e também fora delas. A documentação
produzida nesse contexto é muito vasta e compreende um amplo
repertório que vai das coleções etnográficas, passando pelos
Diários da Missão, relatos pessoais, cartas para os leitores e
filantropos, periódicos missionários e, a partir da segunda metade
do século XX, o uso do rádio e da televisão.
A heterogeneidade de fontes que expressaram a presença e
a materialidade das missões correspondia igualmente à diversidade
de experiências e produção de identidades religiosas e sociais que
contribuíram poderosamente para o surgimento das Igrejas
autóctones e das novas formas de vivenciar os antigos cultos de
ancestrais e ressaltar a dimensão política da fé. As experiências
missionárias e proselitistas, devido à riqueza de processos
históricos e identitários que produziram e atravessaram a
existência dos estados coloniais e também pós-coloniais,
constituem um caminho de pesquisa de grande importância e
produtor de abordagens bastante originais que justificam a criação
do projeto e da rede de universidades e professores colaboradores
que a ela estão ligados.
O estudo de novos objetos na prática historiográfica leva
os historiadores a considerar, em seu trabalho, a parceria com
outras áreas de pesquisa, como a Linguística, a Antropologia e a
Sociologia, e a incorporar novas metodologias e categorias de
análise. Essa necessidade nasce das dificuldades que historiadores
135
enfrentam quando se deparam com fontes que requerem novas
abordagens. Assim, a interdisciplinaridade promove o diálogo
entre a História e outras disciplinas na busca de novos modelos e
interpretações que estudam o homem e a sociedade e suas
transformações, contribuindo para a teoria da História.
O olhar sobre os acervos dos arquivos missionários nos
convida para uma observação mais aprofundada dos processos de
patrimonialização da cultura material produzida pelas missões,
que também se encontram registrados nos arquivos bem como nas
áreas que os circundam e envolvem.
Temos compreensão de que a ação missionária produziu
um espectro bastante amplo de artefatos, textos, edificações e
diferentes tipos de fontes escritas e audiovisuais que nos levam a
aprofundar a perspectiva da análise do processo da mediação
também como uma ação de produção de patrimônios materiais
do cristianismo, que precisam ser abordados de forma
diferenciada e que merecem projetos específicos de trato
documental, análise e contribuição para o estudo da ação dos
missionários na África e a constituição das cristandades locais do
final do século XVIII ao XX.
No processo de proposição de uma análise das formas de
patrimonialização da experiência missionária, é muito importante
destacar as ações da produção da memória do missionário, da
instituição missionária e dos povos abarcados pela ação
evangelizadora, promovida pelos diários individuais e os
conhecidos ‘diários da missão’, que são o registro cotidiano das
intercorrências e das atividades que ocorrem nas paróquias e
capelas que pertencem a um distrito missionário.
Os diários individuais por sua vez são uma orientação para
cada missionário, para produzir um testemunho sobre si e, através
da sua individualidade, destacar a universalidade da missão. Por
136
isso, é um relato realizado num tom intimista onde o leitor se
sente em muitos momentos o grande e único confidente, fazendo
parte, com isso da ‘grande comunidade dos confidentes’ daquele
religioso, da congregação religiosa à qual ele pertence e da obra
missionária.
Ao iniciarmos as nossas conversas com os diretores dos
arquivos dos Capuchinhos, dos Espiritanos e dos Missionários da
Consolata em Portugal foi-nos proposta a organização de um
arquivo oral com entrevistas dos missionários mais velhos que
atuaram em África durante o período colonial e das guerras civis e
que estão nas casas dessas congregações em Lisboa e Fátima. A
partir dessas propostas percebemos que os estudos das trajetórias
de vida, e dos campos de possibilidades com que os agentes
históricos se deparam, tornaram-se novamente uma importante
temática para os historiadores do tempo presente, convidados
agora mais do que nunca a pesquisar espaços e experiências
históricas do mundo contemporâneo. No que concerne aos
estudos africanos, os depoimentos orais, correspondências
privadas e diários tornaram-se corpus documentais ímpares para o
estudo dos processos de construção das nações africanas,
evidenciando a riqueza da complexidade das questões religiosas,
culturais e políticas.2
Por outro lado, escolas, hospitais e a própria literatura
missionária se tornam também propriedades reivindicadas pelos
povos que passaram pelo processo de missionação. Tal fato revela
2
Sobre as visões de trajetória de vida e de geração ver : SIRINELLI, Jean
François. A geração. In: FERREIRA, Marieta de Moraes & AMADO,
Janaína (org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1996, p.131-137. A respeito da categoria ‘campo de
possibilidades’ ver VELHO, Gilberto. Projeto e Metamorfose: antropologia
das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
137
o que Iracema Dulley (2010) já apontava para as missões dos
padres Espiritanos no planalto angolano no início do século XX,
sobre as interações dos diversos agentes envolvidos na missão e
seus interesses:

Os diversos interesses conflitantes na missão levam a


um embate simbólico no qual os agentes distintos
disputam o reconhecimento, a imposição legítima de
uma visão de mundo, de um juízo de valores, de uma
percepção sobre a realidade. Trata-se, portanto, de
uma disputa pelo monopólio do sentido de um
determinado aspecto do mundo social, que engendra
uma violência simbólica baseada na legitimação e
consequente naturalização de um significado
necessariamente arbitrário. Assim, o código de
comunicação consiste no regime de convenções que
se estabilizam na disputa, compartilhado pelos
agentes como condição sine qua non da própria
disputa. É o reconhecimento da legitimidade do
código que permite a manutenção das arbritariedades
que caracterizam qualquer convenção de significação.
(DULLEY, 2010, p.21)

A construção dos códigos de comunicação se traduziu em


gramáticas, como no caso destacado por Dulley sobre a atuação
dos Espiritanos em Angola, e também na construção de espaços
como escolas, hospitais, orfanatos e nos próprios prédios das
missões, com suas regras e formas de organização dos ‘espaços
interiores’. Esses mesmos códigos se tornaram, no contexto
histórico pós-colonial, importantes instrumentos de definição de
identidade étnica e regional, sobretudo no processo de criação dos
138
modernos estados africanos, que primaram em grande parte pela
homogeneização da diversidade étnica e cultural e mantiveram
estruturas autoritárias e coloniais de hierarquização e
subalternização de populações.
Se na conjuntura pós-colonial dos anos 1980 muitas
dessas instituições religiosas e seus arquivos passaram por grandes
questionamentos com relação a seu ‘acervo colonial’, a emergência
das atuais dioceses africanas e do clero local com bastante
destaque e projeção política nos contextos nacionais e na Santa Sé
fez com que esses mesmos arquivos e seus acervos fossem
ressignificados, tornando-se instituições da memória da Igreja
Católica ‘nacional’ nas novas entidades políticas africanas.

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142
INTERAÇÕES SOCIAIS E CULTURAIS ENTRE EGITO
E CUSH: A ÁFRICA ANTES DA COLONIZAÇÃO
Fernanda Chamarelli
Gustavo de Andrade Durão1

[...] desse período de cinquenta anos durante o qual o


Egito e o Sudão unidos formaram uma grande
potência africana. O reino cuxita aparece como uma
monarquia dupla, cujo símbolo e o duplo uraeus, as
duas serpentes que se erguem sobre a fronte do faraó e
o protegem (LECLANT, 2010, p.273).

Através da temática africanista podemos chegar a inúmeros


caminhos interpretativos, sendo a análise dos Reinos africanos
antigos uma das mais instigantes para nós. Além de desfazer toda
uma dinâmica hegemônica do eurocentrismo, a existência dos
Reinos africanos valoriza a arqueologia, a antropologia e a
linguística exaltando a interdisciplinaridade como formas de
análise das sociedades antigas.
Compreender a pré-existência de sociedades africanas na
interação com outros continentes nos abre caminhos importantes
no estudo e pesquisa da História da África, sobretudo, levando em

1
Professora da Educação Básica, graduada em História pela Universidade
Estadual do Rio de Janeiro e mestranda em História Social da Cultura pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e-mail:
fchamarelli29@gmail.com.
Doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Pós-doutorado pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro. Atualmente é professor da Universidade
Estadual do Piauí – UESPI (Campus São Raimundo Nonato). E-mail:
gustavo.durao@srn.uespi.br.
143
conta as dificuldades do tempo presente. Por isso será necessário
um breve recorte da historiografia sobre o Reinos do Cush
(Napata e Meroé) como polo fundamental da cultura africana que
durante muito tempo influenciou e foi influenciada por diversas
gradações culturais e políticas. Nesse sentido, ainda poderíamos
exaltar duas importantes ramificações nesse estudo: a perspectiva
de que esses Reinos foram responsáveis por importantes interações
sociais e culturais com os egípcios (elucidando um pouco da
questão da negritude dos egípcios) e ainda o papel da mulher nas
sociedades antigas, ainda pouco elaborado em torno das
discussões sobre a História da África. Buscaremos assim,
demonstrar a existência dessa historiografia mapeando alguns
possíveis caminhos para os interessados nessa vasta temática.

Os reinos africanos e o debate historiográfico


“A África tem uma história”. (KI-ZERBO, 1983, p.21).
Joseph Ki-Zerbo2 inicia a introdução geral de uma importante
obra que colabora para ampliação dos conhecimentos atuais sobre
o continente africano e sua história com esta frase, e a partir dela
reflete sobre a necessidade de se repensar a escrita desta história.
Destacando-se como um dos importantes pesquisadores
africanistas, que contribuem para o pensar sobre a história da
África sob uma nova ótica, o autor acredita que esta deve ser
reescrita, pois, além de ser pouco conhecida, ela foi escrita por
não africanos, o que gerou uma série de estereótipos e imagens
negativas relacionadas ao continente. Essa reescrita seria como
uma verdadeira tomada de consciência, pois deve ser realizada a

2
A obra a qual fazemos referência é História Geral da África. Volume. 1:
Metodologia e pré-história da África. São Paulo – Paris: Ática – UNESCO,
1983.
144
partir do interior do continente, sobre uma história até então
pouco, ou não conhecida pelos africanos.
Como norteadores para esta reescrita, que resultará em uma
historiografia pioneira da África, Ki-Zerbo (1983, p.34) propõe
que seja feita uma história do conjunto dos povos africanos, pois
as atuais fronteiras existentes no continente não representam as
estabelecidas por esses povos, mas sim as impostas pelos anos de
colonização. Para tanto, a pesquisa a ser realizada para essa escrita
deve ser interdisciplinar, contanto com o apoio de áreas como a
antropologia, sociologia e linguística, e valorizando as sociedades
que ali se desenvolveram, suas principais instituições e estruturas.
A História da África encontra alguns desafios no campo da
análise historiográfica, pois não há uma grande quantidade de
documentos antigos escritos pelas próprias sociedades, sendo a
grande parte da produção contando as tradições e a história
através de relatos orais e a partir do exame e interpretação da
cultura material produzida. As análises são feitas através de
vestígios arqueológicos e através de pesquisas da egiptologia
tornando possível se chegar ao elemento negro-africano na
antiguidade.
Uma das maiores referências em pesquisa sobre história da
África, o africanista Cheik Anta Diop, escrevendo na década de
1950, período de intenso debate sobre o processo de
independências no continente africano, destaca-se como um dos
mais importantes pesquisadores sobre história da África.
Diop entende que é necessário haver uma valorização da
historicidade das sociedades africanas e dentro também da
concepção de estabelecer uma nova história para o continente
África, desconectada do etnocentrismo até então predominante,
trabalha com a concepção de uma unidade cultural africana,
considerando as diferenças que foram impostas ao longo do
145
tempo pelas dominações árabe e europeia. O autor busca a partir
de suas pesquisas, demonstrar que o continente existe como berço
das sociedades mais antigas, hipótese que foi bastante contestada
no século em que ele desenvolve suas análises.3
É importante refletirmos sobre a questão de se conhecer a
África a partir de um olhar interno, desconstruindo a falta de
conhecimento sobre a história desse continente e do
desenvolvimento de suas sociedades antes da chegada dos
europeus na região. Tendo em vista alguns desafios que se
colocam nesta análise, precisamos ter atenção para não buscarmos
os grandes modelos europeus (etnocêntricos) como medida ideal
para nossas reflexões. Nesse sentido, não queremos descartar as
análises comparativas e analogias, mas é preciso ter prudência ao
realizar-se essa operação.
Repensar a história ou “as histórias” da África, perpassa,
portanto, não apenas pela construção e pela afirmação de uma
identidade, mas é também um ato de mobilização política. A luta
por ressignificar os conhecimentos e olhares sobre esta história é
acompanhada por um reconhecimento das inúmeras
contribuições históricas e culturais do continente, que caminha
para ser visto fora das noções do diferente, fora de um padrão
estabelecido durante séculos de dominação das sociedades
europeias. As histórias e valores culturais africanos precisam ser
desvendados para serem não tolerados, mas revistos dentro de
uma perspectiva não hegemônica de pensamento.

3
Cheik Anta Diop é autor de uma série de obras que se configuram como
de grande relevância para o estudo da África, como por exemplo,
Civilização ou Barbárie (1988), A África negra pré-colonial (1987), A
origem africana da civilização: mito ou realidade (1974), entre outros.
146
Na Antiguidade, o continente africano era conhecido
como Líbia, nome associado ao termo libis, que significava vento
austral. De acordo com Cristiano Bispo (2006, p.26), o termo
Africorum terra, terra dos Afri, singular Afer, foi utilizado pelos
romanos para nomear a parte setentrional do continente. A
origem deste termo ainda é desconhecida, mas existem outras
definições possíveis para o termo África, sendo elas uma
proveniente da palavra fenícia Afar, que significava pó; ser ligado
ao nome da tribo bérbere Afri, que se tratava de um grupo
nômade que vivia na região de Cartago; derivação da palavra
aprica (solarengo).
A admiração e a busca por informações sobre a região
conhecida como Líbia sempre pode ser percebida entre os gregos,
sendo a obra produzida por Heródoto, História4, fonte de
importantes informações e relatos de características da região,
sendo reconhecida como um documento de relevante valor para
os estudos da África na antiguidade. Nesta obra, dois grupos são
definidos como autóctones, os líbios e os etíopes, que segundo ele
ocupavam a maior parte da África5. Os líbios estavam localizados
na parte norte do continente, do oeste do Egito ao atual Estreito
de Gibraltar.
Os etíopes, termo que derivava do grego, significando
homens do rosto queimado ou tisnado, possuíam uma localização
de difícil definição, porém, no século V AEC, a região ocupada
por eles correspondia ao sul da Baixa Núbia, território que
4
A obra História, do grego Heródoto, é um documento clássico e de
informações valorosas para os estudos africanistas. Nesta obra são elencados
comentários sobre clima, vegetação, relevo, hidrografia e aspectos humanos
que apresentam um enorme valor para os estudos da África Antiga.
5
HERÓDOTO, História. Livro IV. Tradução de Mário da Gama Kury.
Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1998.
147
engloba da Quarta Catarata do Nilo aos rios Nilo Branco e Azul.
Na atualidade a região corresponde ao território do Sudão, que
está localizado ao sul do Egito. (BISPO, 2016, p.30)
Para o estudo e análise das Sociedades Africanas Antigas,
precisamos ter em mente a dificuldade de definirmos
geograficamente e com precisão algumas das características das
sociedades que vamos estudar. Como por exemplo, defende
Leclant:

As prospecções arqueológicas bastante irregulares


dessa região ainda hoje pouco conhecida tornam
muito difícil elaborar o seu quadro histórico após a
fase brilhante, mas relativamente curta, de domínio
egípcio durante o Novo Império (-1580 a -1085); por
quase três séculos parece ter-se rompido o vinculo
entre a África e o mundo mediterrânico e um silêncio
quase total envolve a Núbia” (2010, p.273 - grifos
nossos).

Assim, para compreendermos a situação histórica e


geográfica dos reinos do Cush e Meroé precisamos saber dos três
momentos das dinastias egípcias (KI-ZERBO, 2009, p. 81):

1) 1ª Império Antigo (1ª até a 12ª Dinastia – 3500-2000


a.C.)
2) 2ª Império Médio (12ª até a 18ª Dinastia – 2000-1380
a.C.)
3) 3º Império Novo (+ ou - 1380 até 1100 a.C.)

O Reino de Cuxe por vezes é escrito com “sh” ás vezes


com “x” e em outras com a inicial “k”. Mas primeiramente
148
precisamos contextualiza-lo diante dos estudiosos desse reino.
Segundo aponto o historiador da África Joseph Ki-Zerbo: “Ao sul
da primeira catarata estendia-se um país chamado Cuxe pelos
Gregos, do nome de um dos descendentes de Cam, filho de Noé,
da mesma maneira que o nome antigo do Egipto, Misr, era o de
outro filho de Cam.” (2009, p.83).
Sob esse aspecto vale lembrar que segundo a tradição
bíblica todos os filhos de Cam seriam amaldiçoados, o que
ocasionaria na transformação da tez escura. Cam teria visto o seu
pai Noé pelado e teria censurado o seu pai. Devido a isso foi
lançada a maldição contra esse filho como forma de castigar as
suas futuras gerações (DIAGNE, 2010, p.261).
A região que corresponde a Núbia antiga foi inicialmente
denominada de Ta Seti e foi descoberta por antigos viajantes, se
localizando entre Tebas e Assuã, na região da primeira catarata do
rio Nilo. As pesquisas arqueológicas mostram uma grande
expansão desde o século IV AEC, com a ocupação de terras que
iam da segunda catarata no Norte, até a parte Sul da sexta
catarata, na confluência do Nilo Azul, na atual região do Sudão.
O termo mais antigo utilizado para denominar a região da
Núbia foi encontro em inscrições egípcias, como “Ta Nehesu” ou
“a terra dos pretos”. Segundo Shehata Adam (2010, p. 219), os
egípcios retratavam a Núbia como uma terra povoada por negros
e seus habitantes como de pele muito mais escura que a sua. Os
gregos, e mais tarde os romanos, os chamavam de etíopes, nome
que tinha como significado “os que possuem a pele queimada”. A
mesma referência, segundo o autor, é encontrada em relatos de
viajantes árabes, que se referiam a esta região como Bilad-al-
Suden, o “país dos negros”.
O Reino do Cush foi bastante estudado por conta da sua
proximidade com a cultura egípcia. Por isso, encontramos mais
149
material para compreendermos mais sobre esse reino, trazendo
um destaque para as suas características geográficas e culturais:

Queria-se pôr assim relevo o estreito parentesco das


populações destes dois países. Com efeito, Cuxe foi
povoado, quase da mesma maneira que o Egipto, por
um afluxo de povos que fugiam dos sectores em vias
de desertificação. Mas esse país era de longe menos
favorecido pela natureza: maior seca e numerosas
cataratas, por causa do relevo acidentado e pedregoso
(KI-ZERBO, 2009, p.83).

Os egípcios, desde os primeiros tempos, se mostraram


encantados pela Núbia, atraídos por suas riquezas, como marfim,
ébano, ouro e pedras semipreciosas. Assim, para conhecer melhor
a história da região da Núbia, é importante compreender suas
relações econômicas, políticas e culturais estabelecidas com o
Egito.
Essas relações já podem ser percebidas entre 3000 e 2500
AEC, quando se observa na região da Núbia uma divisão em
numerosas famílias, que apesar de apresentarem, cada uma, sua
própria cultura material e seus ritos funerários, possuíam
relevantes semelhanças entre si, e em relação aos egípcios do
período pré-dinástico. Esse grupo que ocupou a região neste
período, equivalente a primeira e a segunda dinastia egípcia foi
denominado pelos arqueólogos como Grupo A, e segundo Necia
Harkless (2006, p.84), apresentavam um contato considerável
com o Egito, principalmente baseado em relações comerciais. Os
habitantes que vieram do sul do Egito foram classificados como
grupos A, B e C. Esses grupos mantiveram relações com os
egípcios com regularidade e em diferentes momentos históricos.
150
O grupo A, que ocupava o espaço entre a primeira e a
segunda Cataratas do rio Nilo, foi contemporâneo a I dinastia
egípcia, obtendo destaque no comércio entre produtos egípcios e
os que vinham de locais mais ao sul do Nilo e da África
Subsaariana. A importância desse grupo foi interrompida com a
formação do Estado Egípcio. Já o grupo C é reconhecido pelos
arqueólogos como uma continuação do grupo A, acreditando-se
ser contemporâneo a IV dinastia egípcia, perdurando até o início
do Reino Novo. De acordo com os registros presentes no Reino
Intermediário egípcio, este grupo estava estabelecido na região do
Wawat, na parte norte da Baixa Núbia, próximo à fronteira com
o Egito, enquanto a cultura Kerma ocupava o território de Cush.
Kerma é a primeira monarquia núbia de mais relevante
prosperidade que emergiu no terceiro milênio antes da Era
Comum6. Essa cultura não se limitava a essa região, se
expandindo para a região da Alta Núbia, desde a segunda catarata,
no norte do Nilo, até a parte sul da terceira catarata. Estabeleceu
relações comerciais com a XII dinastia egípcia e de acordo com as
inscrições egípcias e objetos de valor preservados, como estátuas e
estelas, foi um centro administrativo e um importante local de
relações comerciais (HARKLESS, 2006, p. 85-87).
A história desta região possui uma duração de cerca de mil
anos, chegando a seu fim com a dominação egípcia, no período
conhecido como Reino Novo na história egípcia. O nome deste
reino núbio foi escrito pelos egípcios em hieróglifos, sendo
denominado de Cush. Desta forma, observamos que o nome
geográfico de Cush está diretamente ligado a Kerma.

6
Era Comum é o período que mede o tempo a partir do ano primeiro no
calendário gregoriano. É um termo alternativo para Anno Domini,
também traduzido como a Era Cristã.
151
Em alguns locais nós podemos ver o Cush inserido na
categoria de Reinos Núbios, levando-se em consideração sua
localização na Núbia:

A Núbia vai-se tornar assim, em primeiro lugar, um


território de exploração para o Egipto. Em seguida
aproveitará o declínio egípcio para impor o seu
domínio a todo o vale, antes de sucumbir, por uma
vez, aos golpes dos asiáticos (KI-ZERBO, 2009,
p.83).

152
Figura 1- Mapa com localização moderna do Egito e do
Sudão, região da Núbia antiga. 7

7
Fonte: HARKLESS, Necia Desiree. Nubian pharaohs and meroitic
kings – the kingdom of Kush . Bloomington: Author House, 2006, p. 2.
153
8
Figura 2: Mapa da Núbia Antiga

Os egípcios invadiram a cidade de Cush localizado ao sul


da catarata do Nilo. Ao fazerem isso, colocam um vice-Rei
responsável por acatar as decisões do Faraó e estendem ainda mais
o seu domínio. Desde o início este funcionário ostentava o título
de “governador dos países do Sul”, que correspondia a sua função,

8
SHEHATA ADAM. A importância da Núbia: um elo entre a África
central e o Mediterrâneo. In: MOKHTAR, G. (coord.). História geral da
África, II: África Antiga. 2.ed. rev. Brasília: UNESCO, 2010, p. 217.
154
e também o de “filho do rei”. Esse sistema de vice-reinado visava
garantir a dominação egípcia a partir da nomeação dos “filhos do
rei de Kush”. Sua administração incluía a região de Kush, na alta
Núbia, a região do Wawat, na baixa Núbia, e a região de Assuã
até El Kab, no Egito.
No fim do Reino Novo, os núbios já demonstravam ter
uma participação mais relevante nas questões internas
relacionadas a administração egípcia, devido a prosperidade por
eles alcançada. Após a saída dos egípcios da Núbia, de acordo com
Alberto da Costa e Silva (2011) os sacerdotes da região de Jerbel
Barcal buscaram apoio e aliança com uma linhagem de régulos
locais, que assim assumiam a função de soberanos, e, em troca
também se comprometiam a serem defensores da fé.
Com o passar do tempo a aristocracia núbia se juntava aos
costumes dos egípcios, isso provocou a autonomia do território e
no século XI a.C. o Reino do Cush se torna independente e adota
Napata como sua capital. Desta forma, o que conhecemos como
Reino de Cush é também denominado de Reino de Napata e
Méroe, por terem sido estas as capitais do reino após a dominação
egípcia. A tabela abaixo ilustra um pouco dessas sucessões.

155
Descrição Período (AEC)
Grupo A 3000- 2500
Grupo C 2500- 2000
Reino de Kerma 2500- 1590
Dominação egípcia no Reino 1590- 1100
Novo
Período Napatano (Reino de 900- 300
Napata)
Período Meroítico (Reino de 300 AEC- 350 EC
Méroe)
Figura 3 - Cronologia Núbia 9

Em 900 AEC os soberanos avançam ainda mais seu


território se expandindo até outra parte do Nilo. Em 750 AEC.
avançam mais um pouco chegando a fechar todo um cinturão do
território às margens do Nilo, retornando ao controle do Egito. A
25ª dinastia, também conhecida como dinastia etíope,
estabeleceria uma aliança com o Egito, retornando com o título
de faraós. Nesse sentido, as ligações tornavam-se maiores a
expansão à Napata se estenderia a outro Reino, o de Meroé. Essa
dinastia se forma a partir do governo de Kashta, que segundo
Harkless (2006, p.126), era aparentemente irmão de Alara e foi
seu sucessor no governo, sendo este último reconhecido como o
primeiro governante no Reino de Napata em Cush.
É interessante observarmos que a legitimidade de Kashta
como governante foi estabelecida pela nomeação da irmã de Alara
como “princesa de Amon”, o que garantiu uma justificativa para a

9
HARKLESS, Necia Desiree. Nubian pharaohs and meroitic kings – the
kingdom of Kush . Bloomington: Author House, 2006, pp. 82-91.
156
sucessão real e facilitou que valores que eram tradicionais na
sociedade cushita fossem praticados de acordo com os conceitos
reais já existentes no Egito. Kashta foi casado com sua irmã
Pebtatma, que assumiu os papéis de tocadora do sistro para
divindade Amon Rá10, irmã do soberano e sua filha. Ele foi assim
reconhecido como governante pelos sacerdotes de Amon assim
que chegou em Tebas.
A submissão do Egito ao poder dos governantes kushita
foi completada por Piankhy, irmão de Kashta. Segundo Harkless
(2006, p.127), Piankhy aparece como aquele que foi apontado
por Amon para ser o senhor do trono das duas terras, de acordo
com a Estela de arenito de Piye (747 AEC). Foi sob o seu governo
que o domínio núbio sob o Egito parece ter assumido suas
maiores proporções e conseguido adquirir mais prestígio.
Shabaka, irmão de Piankhy, reforçou a dominação sobre todo o
vale do Nilo, por volta de 713 AEC e foi responsável pela
tentativa de manter boas relações com os governantes do Oriente
Próximo, particularmente com os assírios, que faziam forte
pressão sob territórios que estavam sob controle egípcio.
O filho de Piankhy, Taharqa, assume o governo com a
função de impedir o avanço dos assírios que constantemente
ameaçavam os domínios egípcios e cushitas. Esse governante se
empenhou em reestabelecer a ordem e a justiça nos territórios que
administrou, edificando monumentos para glorificar Amon e a
estabilização de seus domínios.
10
O sistrum, ou sistro, é um instrumento musical que era utilizado no Egito
em cerimônias de culto a deusa Hathor, sendo também utilizados para
outras divindades, como Isis, Amon e Bastet. Seu som se assemelhava ao de
um chocalho, sendo confeccionado principalmente em bronze. Se
acreditava que seu som promovia o apaziguamento, alivia as mulheres no
parto e espantava os espíritos nocivos.
157
Na XXV dinastia, onde os soberanos núbios se
legitimaram no poder como filhos de Amon, o culto a essa
divindade conhece grande força e expansão. Acreditava-se que a
verdadeira morada do deus era a montanha sagrada de Djebel
Barkal, localizada na região de Napata. Nesta dinastia, há a
instituição das divinas adoradoras11 e esposas do deus no clero de
Amon, funções ocupadas por mulheres que compunham a família
dos governantes. A prática remonta a XVIII dinastia, onde a
função era exercida pela esposa do soberano e era o título mais
elevado que esta poderia obter, sendo esta reconhecida como a
representante da divindade Mut12 na Terra.
O papel assumido pelas mulheres integrantes da família
do soberano, enquanto esposas do deus Amon, na XXV dinastia
núbia no Egito, revela o status e o poder que a elas era conferido a
partir desta função. De acordo Carolyn Graves- Brown (2010, p.
95), essas mulheres, que também assumiram o título de divinas
adoradoras, praticamente governaram o Alto Egito, sendo
detentoras de um grande poder político que se relacionava com

11
Esse título de divina adoradora é associado ao de esposa do deus Amon no
Terceiro Período Intermediário, na XVIII dinastia. É utilizado apenas em
Tebas e é associado a uma referência de que a mãe de Amon teria sido
engravidada pelo próprio deus.
12
Mut, divindade inicialmente reconhecida como Amonet, é apontada em
alguns relatos como mãe de Amon, concepção que pode estar relacionada
ao fato dela ser uma divindade mais antiga Amon, o tendo recebido em
Hermópolis quando ele chocou o próprio ovo de onde saiu. Amonet era
representada com forma humana e antecedeu a Mut como esposa de Amon
em Tebas. Esta divindade adquiriu grande relevância no período do Reino
Novo, no Egito, levando em sua cabeça a coroa com os símbolos do Alto e
Baixo Egito, mostrando a grandeza de seu poder.
158
sua importância nos rituais religiosos, e que era apoiado pela
sociedade egípcia.
Em Napata, o culto a Amon era de grande influência
política e espiritual. Teve sua origem no período do Reino Novo,
e manteve sua importância por um período superior a mil anos,
constituindo-se em um considerável elemento para a
independência do Reino de Cush. O santuário de Amon em
Napata estava localizado aos pés da montanha sagrada de Jebel
Barkal, que também era conhecida como Montanha de Amon.
De acordo com Harkless (2006, p.109), a adoração a
Amon foi estabelecida primeiramente na Núbia antes de alcançar
o Egito. Esta divindade era representada na Núbia como um deus
com cabeça de carneiro, sendo encontrados em Kerma estátuas de
esfinges com cabeças de carneiros, como também carneiros
decorados foram achados em locais onde eram realizados enterros.
Os governantes da XXV dinastia podem ser identificados
por sua devoção a Amon. Sua legitimidade no poder era garantida
pelos sacerdotes desta divindade, que formavam a administração
burocrática de seu governo. Esse apoio aos soberanos de Napata
garantiu para as propriedades do Templo de Amon grandes
benefícios. Esses sacerdotes ainda tinham o poder de intervir na
escolha dos sucessores no governo, e até mesmo determinar o fim
de um governo através da morte de seu soberano.
Taharqa foi sucedido por seu sobrinho, Tanutamon. Ele
enfrentou constantes ameaças de ataques assírios, e buscou manter
um controle efetivo sobre os domínios ao Norte, o que não foi
possível. O soberano não conseguiu conter este avanço, que
acabou por se estender até Tebas, que foi saqueada em 666 AED.
Esse acontecimento marca o fim dos governos dos soberanos
núbios da XXV dinastia como é possível perceber abaixo.

159
SOBERANO PERÍODO (AEC)
DATAS APROXIMADAS
KASHTA 770 - 750
PIANKHY 750 - 712
SHABAKA 712 - 698
SHEBITEKU 698 - 690
TAHARQO 690 - 664
TANUTAMON 664 - 657
Figura 4:
Quadro de Soberanos da XXV dinastia núbia no Egito 13

Observamos assim, que os contatos estabelecidos entre


egípcios e os núbios foram bastante frequentes e também, em
muitas ocasiões conflituosos, permeados por períodos de relações
de amizade e hospitalidade. É possível reconhecermos que
existiam marcantes interações culturais, sociais e econômicas entre
as regiões e que a influência núbia sobre o Egito é alcançada com
maior força e relevância a partir da consolidação do Reino de
Napata, em Cush e o importante estabelecimento do clero de
Amon nesta região, o que possibilitou tanto o fortalecimento
quanto a legitimação dos soberanos que passaram a governar a
região e estenderam seus domínios ao território egípcio.

O Cush e o Meroé
A proximidade de Cush dos domínios do Faraó trouxe o
receio de que aquela região fosse ocupada e poderia tornar-se um
ponto estratégico dos povos inimigos. Aliado a isso outra
dificuldade encontrada por Ramsés II era de compreender a

13
HARKLESS, Necia Desiree. Nubian pharaohs and meroitic kings –
the kingdom of Kush . Bloomington: Author House, 2006
160
escrita dos cushes, o que levou a uma assimilação dessa região,
deixando-a mais e mais próxima do Egito. Por consequência a
região do Meroé também foi cobiçada, pois ela seria capaz de criar
um reforço à barreira aos povos que viam do sul.

A língua egípcia altera-se; é sob os símbolos


hieroglíficos – que podem adquirir aspectos um tanto
fantásticos – que se devem buscar, talvez de modo
mais acurado, notações do estado contemporâneo da
língua – na realidade demótica – e também reflexos
do meroíta, a língua dos cuxitas (LECLANT, 2010,
p.283).

Com a tomada de Tebas pelos assírios no século VI a.C. o


Egito ficava mais desprotegido e o Cush vinha cumprir a sua
função não mais somente de escudo, mas de realizar a batalha
para a defesa do Faraó. Contudo, era um pouco tarde e os
invasores causaram grandes prejuízos para a organização egípcia.
Com a pressão vinda do norte e através das dificuldades
climáticas, o Cush não conseguindo proteger a integridade dos
egípcios, a capital foi transferida para Napata e toda a alta
hierarquia do Faraó foi transferida para Meroé, o segundo reino
no foco da organização faraônica (KI-ZERBO, 2001, p.88).
Essas configurações demonstram o avanço desse reino e
como as sociedades cuxitas e meroítas não ficavam isoladas do
contato com outros povos, sobretudo, levando em consideração
suas diferenças na esfera política e cultural . Isso fica evidente
quando abordamos a escrita por exemplo. De acordo com Ki-
Zerbo: “Há duas espécies de escrita meroíta: a que é derivada dos
hieróglifos egípcios e a outra escrita cursiva. São decifradas letra

161
por letra, mas, como a língua permanece desconhecida, o texto é
incompreensível” (2001, p.86).
Até o século VII a.C. os Cush tiveram relativa tranquilidade
nas relações com o Egito e, com a conquista dos assírios, a 25ª
dinastia precisou se retirar dessa região. Sua capital, Kerma, era
localizada perto da terceira catarata do Nilo. Os cushitas tiveram
grande absorção das tradições egípcias, sobretudo, no que diz
respeito à proximidade do templo de Amon-Rá. Ainda no século
VII a.C as províncias ao norte se tornaram mais importantes do
que o centro do Egito e a cidade de Meroé ganhou maior
representatividade tornando-se o centro das decisões do governo
(FAGE, 2010, p.46-7).
O período meroítico foi provavelmente onde houve grande
crescimento da população, se destacando como cidade de maior
concentração urbana da Núbia, de desenvolvimento da linguagem
e de estabelecimento de importantes relações com outros povos,
como gregos, romanos e egípcios do período ptolomaico.
Após a conquista por parte dos egípcios o reino do Cush
passou a abrigar fortalezas que tinham como função repelir as
etnias invasoras. Logo depois a cidade de Meroé surgiria como o
resultado de uma boa convivência entre duas culturas diferentes
(Núbios e Egípcios) e um dos primeiros reinos assentados nos
princípios da realeza sagrada (M’BOKOLO, 2009, p.83).
No Meroé ocorria uma identificação da integridade física
do rei com a integridade do reino de modo análogo aos
mecanismos religiosos-políticos dos soberanos egípcios. A
organização religiosa ocorria por meio da execução ritual, a qual
poderia gerar o suicídio do rei se fosse considerado ele o
responsável pelas catástrofes naturais. O reino gozava de posição
privilegiada e obtinha recursos próprios que fizeram desse reino

162
um local de destaque na relação internacional, em grande parte,
devido a sua mobilidade junto às sociedades antigas.
Como afirma o historiador da História Geral da África
acerca da origem dos Egípcios antigos:

Pelo menos, Meroé era independente, enquanto o


Egito passava sucessivamente para o domínio dos
assírios, depois dos persas de Cambises, dos Gregos
de Alexandre, dos romanos de Augusto, que puseram
fogo aos tesouros da biblioteca de Alexandria, antes
de ser ocupada pelos bizantinos e pelos árabes. Mas
sobretudo Kush e Meroé tinham prestado serviços
relevantes à civilização egípcia” (KI-ZERBO, 2001,
p. 89).

As ligações com o mundo ocidental e oriental foram


inúmeras, sendo Meroé um amplo espaço para investigações
arqueológicas que já comprovam isso. Como se vê a seguir:

Méroe constituía um entreposto ideal para as rotas de


caravanas entre o mar Vermelho, o Alto Nilo e o
Chade. Acima de tudo, a abundância relativa de
árvores e de arbustos fornecia o combustível
necessário ao processamento do ferro, cujo minério é
encontrado no arenito núbio. O acúmulo de escória
indica a amplitude das atividades de metalurgia; na
opinião de autores mais recentes, porém, é exagerado
considerar Méroe como a Birmingham da África
(LECLANT, 2010, p.283).

163
Nesse sentido, vê-se Meroé como um entreposto
comercial importante para o Egito e outras sociedades ao seu
redor. A região era mais propícia a criação de animais e a
agricultura, graças a enormes bacias de irrigação ali existentes,
bem como, segundo Silva (2011) se localizava em uma posição
estratégica para o comércio de mercadorias de luxo, como o
marfim, as penas de avestruz, as peles de leopardo, as gomas e as
resinas. Produzia diversos produtos como: trigo, centeio, uvas,
lentilhas, abóboras e o algodão tinha grande penetração no
artesanato local.
Fato que não devemos deixar de considerar, como
apontado por Elikia M´Bokolo (2009), é que esta transferência
também se relaciona com o desejo dos chefes locais em conquistar
sua hegemonia em relação a civilização egípcia. Observamos que a
cultura egípcia era bastante presente quando a capital se localizava
em Napata, mas com a sua transferência, apesar de ainda se
manter importante em muitos aspectos, já se observa um maior
afastamento desta, tanto em relação a vestimentas, títulos
utilizados por soberanos e por aqueles que compunham sua
família, formas de representações visuais e também na
participação das mulheres, sendo mães, esposas e irmãs dos
governantes, juntamente a eles.

O papel das mulheres na África Antiga


As mulheres assumiram um relevante status social e
político dentro da administração da sociedade cushita através do
laço da maternidade, garantindo ao futuro soberano a legitimação
de sua posição no governo, participando deste de forma ativa e
reconhecidamente importante. O proeminente papel ocupado
pela mulher não estava relacionado a deter um cargo político,

164
assumindo a posição de governante, mas a partir do seu lugar
social enquanto mãe.14
As candaces são reconhecidas como figuras de destaque
nos estudos africanos da antiguidade, representando a força da
mulher como indivíduo ativo. Assumiram importantes papeis
sociais e políticos, atuando como conselheiras de seus maridos,
irmãos ou filhos, e chegando a assumir o governo de forma
autônoma e independente entre os séculos II AEC e IV EC.
No Egito e na Núbia, o conceito de divindade que
envolvia a legitimação do soberano, reconhecido como filho do
deus sol, era fundamental, assumindo a titulação de filho de Rá.
Mas para que essa legitimidade de sua função enquanto
governante se completasse, era necessário a presença e a
participação de sua mãe, no momento de sua coroação e durante
seu governo. Esta mãe recebia o título de Candace, que é
usualmente interpretado como tendo o significado de “mãe do
soberano” ou “mãe do governante”, também tendo sido associado
ao termo meroítico k-tke, interpretado como “mão (presença)
feminina em vida”, demonstrando uma ligação com o título
utilizado pelas esposas de Amon em Tebas, “mão do deus
Amon”15. Apesar de em muitas ocasiões o termo candace ser
atribuído apenas às soberanas que governaram em Cush, é
possível observarmos que este título era conferido anteriormente
às mães dos governantes.

14
Sobre o papel assumido pelas mães junto aos soberanos núbios, ver:
LOHWASSER, Angelika. Queenship in Kush: Status, Role and Ideology
of Royal Women. Journal of the American Research Center in Egypt 38,
2001, p. 61-76.
15
Título meroítico drt ntr [n 'Imn]
165
Para Lohwasser (2001), as mulheres em Cush eram
imbuídas da essência da “realeza” a partir da maternidade, e seu
papel foi por muitas vezes comparado com o das deusas, sendo as
três principais ligadas à maternidade, Isis, Mut e Bastet. Os
estudos realizados por Harkless (2006, p. 99) também apontam
que o papel social de destaque ocupado pela mulher no reino
Kush pode ser explicado pela crença de que estas detinham
poderes divinos que advinham da maternidade, sendo esta vista
como único laço de parentesco reconhecido, gerando o
desenvolvimento de uma sociedade matrilinear.
O termo candace é uma apropriação e tradução Greco-
romana de uma palavra pertencente ao vocabulário kushita. Ele
deriva da palavra de origem meroíta KTKE ou KDKE, que a
partir de sua latinização, após o contato romano com esta
sociedade, passa a significar “rainha-mãe”. Esse termo alcançou
maior importância e reconhecimento pela identificação destas
mulheres como soberanas nos escritos e relatos feitos por
narradores gregos e romanos. No entanto, o título de origem
kushita não foi utilizado apenas para as soberanas que exerceram o
poder central, mas para identificar e nomear as esposas e mães dos
governantes que possuíam um papel de extrema relevância ao seu
lado no governo, bem como na legitimação de sua coroação.
Comparadas às suas homólogas no Egito, as mulheres das
famílias dos soberanos em Kush, no período do Reino de Napata,
assumiram funções sociais e políticas mais relevantes. Elas são
retratadas amamentando as divindades, derramando libações para
as mesmas e acompanhando seus maridos nas situações em que
eles celebravam esses rituais, que poderiam também ser
comandados por estas mulheres.
O papel das candaces pode ser destacado a partir de sua
essencial posição na eleição e coroação de seu filho enquanto
166
governante e também na adoção da esposa de seu filho igualmente
como sua filha, o que nos fornece dados para refletirmos sobre a
importância dos laços maternais presentes nesta sociedade. O
soberano era escolhido entre uma linhagem de “irmãos reais”,
participando desta escolha altos funcionários da corte, sacerdotes,
chefes de clãs, chefes militares, e também a mãe, que assumia
papel importante também na coroação do novo governante.
Esse ato de adoção da esposa do filho nos leva a refletir
sobre a concepção dos laços de maternidade que ligavam os
diferentes membros de uma unidade de parentesco. Ao adotar a
nora, esta passa a constituir a família do governante e se liga a ele
por uma maternidade em comum, possibilitando-nos pensar que
o entendimento do ser mãe na sociedade kushita não se relaciona
apenas com uma questão biológica, mas com o pertencimento a
um grupo de indivíduos que se conectam a partir de laços
definidos por essa figura materna.
Ali Hakem (2010, p. 304), utilizando a análise
iconográfica de templos, endossa a atuação das Candaces,
apontando que a certa altura as mulheres devem ter superado em
importância seus filhos ou maridos, e em um dado momento,
assumido a totalidade do poder. A partir da pesquisa do autor,
também é possível observar, como debatido pelas autoras acima
citadas, importantes posições e cargos ocupados pelas mulheres na
sociedade kushita desde o período da XXV dinastia egípcia,
quando a função de grande sacerdotisa do deus Amon em Tebas
era exercida pela filha do rei, posição este que lhe conferia
importante influência política e econômica. As mães e esposas do
rei assumiam papeis de elevado status social e político
anteriormente ao período em que se proclamaram soberanas.
Para comprovar a importância do poder exercido pela
rainha-mãe no reino de Cush, no período meroítico, Necia
167
Harkless (2006), aponta o registro do nome real de
Shanakdakhete como soberana, sendo o primeiro
reconhecidamente preservado nos hieróglifos meroíticos. Entre os
registros e inscrições reais que comprovam a atuação das
Candaces, podemos citar, por exemplo, a Grande Estela de
Amanirenas e seu filho, conhecida como Estela de Hamadab, a
descoberta do tesouro real da rainha Amanishakheto, sucessora de
Amanirenas e as representações reais presentes na titularidade
usada pela rainha Nawidemak, bem como o uso de seus trajes
associados a governantes do sexo masculino.
Debatendo a questão desta importância da filiação
materna, Lohwasser (2001) aponta que a mãe possuía um papel
decisivo na coroação do soberano, pois foi ela quem legitimou a
candidatura do rei, seu filho, por isso o futuro governante era
assistido por sua mãe e esposa neste momento. Utilizando como
exemplo a estela do rei Aspelta, cuja imagem podemos observar
abaixo, aponta que nela existe uma versão completa do discurso
que era proferido pela soberana mãe, pedindo a Amon para que
concedesse o governo ao novo soberano e para que fosse possível
seu estabelecimento como governante.
É possível identificarmos a imagem de Amon, apresentado
como entronado e com cabeça de carneiro, acompanhado por
Mut, a figura de Aspelta abaixado e olhando para direita,
mostrando que havia sido pessoalmente coroado pela divindade e
protegido por ela, enquanto sua mãe olha para a esquerda e
aparece com o sistro em cada uma de suas mãos. A presença de
dois sistros nos faz pensar na intenção de representar o papel
central que era por ela ali ocupado, atuando como uma
sacerdotisa e também intercedendo junto a Amon por seu filho e
para garantia de seu poder.

168
Figura 5: Estela de Aspelta 16

16
Disponível em:
https://www.crooktree.com/v/photos/33658bbf/954388819/egypt-
egyptian-aswan-nubian-nubia. Acesso em: 28 de fev. 2019. Localização
atual da estela: Museu de Assuã, no Egito.
169
É importante observar que segundo o autor o título
candace foi atribuído às “rainhas-mães”17, a partir de uma
latinização da palavra meroítica Ktke ou Kdke, porém existia um
outro título, qore ou qere, com o significado de chefe, que não
havia sido utilizado até a surgimento da escrita meroítica. Apenas
quatro governantes são conhecidas por o terem utilizado:
Amanirenas, Amanishaketo, Nawidemak e Maleqereabar, todas
por definição também candaces. Elas também receberam as
titulações faraônicas de “Filho de Rá” e “Grande Senhor das duas
Terras”. Passaram a assumir papeis que eram restritos aos
soberanos, como conquistar prisioneiros, ferir inimigos e oferecer
presentes as divindades.
O declínio da civilização egípcia ocorreu
concomitantemente com o de Meroé, que em tese deveria ser o
último bastião dos faraós. Pouco antes da Era Cristã os egípcios
perderam todo o seu poder e sua cultura foi praticamente toda
depredada.
A riqueza do reino de Meroé era muito baseada no
comércio exterior e isso causou grandes problemas,
impossibilitando seu crescimento econômico. Desde o século III
d.C. Meroé foi decaindo em parte por conta dos povos nômades e
também devido ao grande desenvolvimento do comércio no
mediterrâneo, movimento cujo reino não conseguiria acompanhar
(M’BOKOLO, 2009, p.86).

17
Utilizamos rainha-mãe entre aspas por se tratar de um termo que existe a
partir da latinização de uma palavra meroítica, que acreditamos não
corresponder em sentido a rainha, pois este é um vocábulo que possui um
significado dentro do pensamento ocidental, que não corresponde a forma
de organização política e nem mesmo cultural presente em Cush no espaço
de tempo considerado.
170
Considerações finais
Pensamos em apresentar algumas das questões mais
relevantes da África Antiga demonstrando a existência de uma
história rica e plural das sociedades africanas antes da colonização
a fim de evidenciar relações culturais, sociais e históricas ali
presentes. Primeiramente buscando partir de questões que fossem
pertinentes para estas próprias sociedades e que por elas foram
desencadeadas, compreendendo que quando nos propomos a
pesquisar e estudar sobre as histórias das Áfricas, produzir um
conhecimento que não se mostre profundamente atrelado a
concepções e análises que são características do pensamento
ocidental é algo extremamente relevante. Desse modo, os
aspectos e as relações próprias às histórias e culturas deste
continente os quais muitas vezes nos distanciamos.
Além disto, repensar e conhecer as histórias e culturas das
Áfricas se mostra como um ato de mobilização política e de
construção e afirmação de identidades. Nessa luta por ressignificar
os conhecimentos e olhares sobre estas histórias soma-se um
reconhecimento das inúmeras contribuições históricas e culturais
do continente, cujo caminho analítico precisa ser visto fora das
noções de “diferente”, distante do padrão que foi estabelecido
durante séculos de dominação das sociedades europeias.

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174
DO CANTO NA ROÇA AO BAMBOULA : CANÇÕES,
BATUQUES, TRABALHO E RESISTÊNCIA NO
PROCESSO DE ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO NO
CARIBE FRANCÊS
Letícia Gregório Canelas1

Assinado em Paris em 27 de abril de 1848, o decreto de abolição


da escravidão chegaria às Antilhas francesas apenas em junho
daquele ano. Contudo, a notícia acerca da revolução que
instaurou a Segunda República, intensificada pelos rumores sobre
a supressão do regime escravista, desembarcaria antes nas ilhas
caribenhas. Na esteira dos intensos acontecimentos ocorridos a
partir de fevereiro de 1848 na França metropolitana e em suas
possessões de além-mar, um evento na Martinica, em maio
daquele ano, evidenciaria a importância da música na vida das
pessoas escravizadas, significativamente como uma maneira de
expressar sua resistência. Naqueles tempos de efervescência social
e política, os cantos entoados nos ateliers2 eram mais provocativos
e os tambores mais enérgicos que nunca. Alguns senhores de
escravos martinicanos, acreditando que as reuniões festivas
inflamavam mais ainda os ânimos entre seus cativos, tomaram
medidas coercitivas, atormentados pela ideia de uma insurreição
iminente (PAGO, 1998, p. 105-107).
Em quase todas as grandes propriedades rurais das
colônias francesas, homens, mulheres e crianças escravizadas se
reuniam para a grage (raspagem da mandioca e fabricação da

1
Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP, 2017). E-mail: leticia.canelas@gmail.com.
2
Atelier era o termo utilizado nas colônias francesas para se referir ao
conjunto de escravos de uma propriedade rural.
175
farinha) aos sábados à noite. Todos participavam da atividade,
executando diferentes tarefas: ralar a mandioca (grager), cuidar do
fogo, remexer a massa da raiz no tacho, recolher a farinha depois
de pronta. Alguns assumiam as funções de tocar os tambores,
puxar os cantos, circular o rum e dançar. Era uma ocasião que
extrapolava o objetivo de produzir o alimento básico da nutrição
na fazenda – não apenas dos cativos – e, mesmo, de toda a
colônia, pois o excedente era vendido nas vilas. Era também um
momento de encontro, festejo e convívio comunitário das pessoas
escravizadas na Martinica.3
Em maio de 1848, naquele contexto de agitação social e
política, o proprietário de um engenho de açúcar no município de
Saint Pierre proibiu o uso do tambor e dos cantos durante a
grage. Contudo, a escravaria reunida se recusou a calar o batuque
e as canções, e os entoaram mais intensamente, pronunciando
sarcasmos em relação ao mando senhorial. Para punir essa atitude,
o senhor ordenou que um escravo, o principal tocador de tambor,
fosse levado preso pela polícia local na segunda-feira seguinte
àquele festejo e manifestação de insubordinação. Seus
companheiros e companheiras de cativeiro tentaram impedir a
prisão, mas não o conseguindo, seguiram em cortejo os dois
policiais e o prisioneiro até a cadeia da cidade próxima. Durante o
trajeto, escravos de outras fazendas se juntaram à procissão em
protesto. No final daquele dia, tal acontecimento se desenrolou
em uma ampla insurreição escrava, que levou o governo da
Martinica a antecipar a abolição da escravidão na colônia,

3
Várias narrativas de viagem ao Caribe Francês, entre os séculos XVIII e
XIX, relatam a importância da mandioca, desde seu plantio à fabricação da
farinha, na vida das pessoas escravizadas nas colônias. Ver
SCHOELCHER, 1998 [1842], p. 8-12; MAYNARD, 1843, p. 94.
176
decretada no dia seguinte a este evento, em 23 de maio de 1848
(PAGO, 1998, p. 107-110).
Nas Antilhas francesas, nos anos anteriores à proclamação
da Segunda República e da abolição, homens e mulheres
escravizados na Martinica e em Guadalupe manifestaram de
diversas maneiras, sutis ou evidentes, sua resistência e luta contra
a escravização, e sua compreensão sobre a gradual desestruturação
do sistema escravista francês. Algumas dessas ações se expressaram
nas letras dos cantos entoados nos campos de cana-de-açúcar,
acompanhados do toque do tambor, em revoltas durante a época
do carnaval e, mesmo, em canções vocalizadas nas ruas das
cidades em momentos de transformação revolucionária. Desde o
século XVII, as administrações coloniais, apoiadas pelas elites
senhoriais, procuraram estabelecer medidas legislativas que
proibissem as manifestações culturais dos africanos e
afrodescendentes, libertos ou escravos. Relatos de senhores de
escravos e narrativas de viajantes constantemente mencionam a
importância da música na vida cotidiana dos negros no Caribe
Francês.
Esses registros nos possibilitam apenas reconstituir um
quadro limitado sobre as ideias e comportamentos políticos,
sociais e culturais dos escravos e escravas, manifestados em
performances musicais nos momentos de festas ou mesmo no eito
no campo. As fontes observadas foram escritas por homens
brancos de origem europeia e os registros são bastante
fragmentários. No entanto, a partir destes documentos, este
capítulo busca explorar como manifestações culturais ligadas à
música e à dança eram importantes para os africanos e
afrodescendentes escravizados e como foram acionadas em
períodos de fortes mudanças nas colônias francesas caribenhas,
entre o final do século XVIII e meados do XIX, destacando,
177
ainda, o papel das mulheres negras. Com o intuito de contribuir
com os debates sobre herança cultural da diáspora africana no
Mundo Atlântico, o objetivo central é abordar as manifestações
“culturais negras” como formas de performance estética,
comunitária e política e expressão das percepções dos escravos e
escravas sobre momentos de transformação, quando exprimiram
claramente atitudes antiescravistas.
A “cultura negra” no Mundo Atlântico tem sido objeto de
estudos desde o início do século XX, abordada por uma ampla
produção historiográfica sobre escravidão e pós-abolição,
principalmente, no Brasil, nos Estados Unidos e no Caribe. Os
pesquisadores observam que os contatos entre povos africanos nas
Américas – e, ainda, entre estes e outros de origem ameríndia e
europeia – levaram à constituição de manifestações culturais,
como a música, a dança e formas de celebração e ritual. Inspirada
nos trabalhos de historiadores tais como Martha Abreu (Da
senzala ao palco, 2017), Eric Brasil (Carnavais atlânticos, 2016),
Livia Monteiro (A congada é do mundo e da raça negra, 2016), e
sob a influência das análises de Paul Gilroy sobre o Atlântico
Negro, compreendo que não existem culturas negras – muito
menos uma única cultura negra – entendidas como um conjunto
de práticas com certas características comuns e imutáveis. As
culturas se tornaram “negras” a partir dos processos de lutas e de
identidades políticas e sociais “construídas pelos descendentes de
africanos em todas as Américas depois da tragédia do tráfico, da
escravidão e da experiência do racismo” (BRASIL, 2016, p. 18).
Pensando as “culturas negras” – e mesmo “caribenhas” ou
“americanas” – como fenômenos dinâmicos, vários autores que
têm investigado as expressões culturais do “Atlântico Negro”
utilizam a noção de “performance” para compreender as
experiências de contato entre diferentes povos nas Américas e no
178
Caribe (ADAMS, BIBLER & ACCILIEN, 2007; BRASIL, 2016,
p. 45). Acionam este conceito, especialmente, a partir das
manifestações coletivas de ritual, do teatro, do carnaval, da dança,
entre outras. O uso do termo performance possibilita um novo
olhar sobre certos fenômenos que já foram analisados sob prismas
diversos, pois permite compreender o uso de linguagens corporais
e musicais em manifestações públicas como contribuições à
construção de identidades coletivas, que ao mesmo tempo
refletem e influenciam os processos históricos (LOPES, 1994, p.
5).
De acordo com Jessica Adams, as diversas performances
no Novo Mundo, sobretudo no Caribe, evidenciam relações de
confronto e colaboração entre povos originários da África, da
Europa, da América indígena e, mesmo, da Ásia, e refletem
formas culturais que foram herdadas de outros lugares, assim
como mitos e interpretações destes “outros lugares”. Nesse
sentido, as culturas caribenhas emergiram principalmente da
proeminência das tradições orais africanas, ameríndias e, mesmo,
de brancos iletrados. Segundo a autora, no Novo Mundo,
momentos de gênesis cultural frequentemente ocorreram no
contexto de outras performances de apagamento – colonial,
escravista, imperial ou neocolonial –, às vezes como resposta a
elas. Desse modo, a ideia de performance em um sentido cultural
não é separada das estruturas de poder e dos modos
“disciplinares” das sociedades, e as análises das performances
culturais nas sociedades escravistas das Américas e do Caribe
podem iluminar a compreensão tanto das imposições do poder
dominante como as formas de subversão a ele (ADAMS in
ADAMS, BIBLER & ACCILIEN, 2007, p. 6-8).
Dentro dessa chave analítica da performance, Jessica
Adams afirma que a música tem sido um dos fenômenos mais
179
significativos através do qual as culturas caribenhas têm interagido
historicamente. Nesse sentido, não é coincidência que o
importante trabalho de Paul Gilroy, O Atlântico Negro, emergiu
de seu interesse na “música negra”. Seus apontamentos
interpretativos acerca das performances culturais e musicais dos
afrodescendentes nas Américas são fundamentais para se
compreender as evidências fragmentárias analisadas neste capítulo,
sobre as manifestações culturais da classe de escravizados no
Caribe Francês. Essas são observadas, principalmente, como
forma de ação política coletiva, pois, como afirma Gilroy, “as
culturas do Atlântico Negro criaram veículos de consolação
através da mediação do sofrimento” (GILROY, 2001, p. 13) e
foram sistematicamente conjuradas por pessoas que agiram em
conjunto, abastecendo-se da energia fornecida por uma
comunidade, e devemos tentar compreender sua história no
momento que incorporaram e manifestaram críticas ao mundo
em que viviam:

Elas [as culturas do Atlântico negro] especificam


formas estéticas e contra-estéticas e uma distinta
dramaturgia da recordação que caracteristicamente
separam a genealogia da geografia, e o ato de lidar
com o de pertencer. Tais culturas da consolação são
significativas em si mesmas, mas também estão
carregadas e contrapostas a uma sombra: a
consciência oculta e dissidente de um mundo
transfigurado que tem sido ritual e sistematicamente
conjurado por pessoas que agem em conjunto e se
abastecem com a energia fornecida por uma
comunidade mais substantivamente democrática do
que a raça jamais permitirá existir. Podemos
180
encontrar prazer nesta história de resistência, mas,
mais polemicamente, acho que deveríamos também
estar preparados para lê-la política e filosoficamente
nos momentos em que ela incorporou e manifestou
críticas ao mundo tal como é. As extraordinárias
conquistas musicais do Atlântico negro exemplificam
largamente este ponto. (GILROY, 2001, p. 13)

Ainda seguindo as abordagens de Paul Gilroy, examino as


performances culturais negras nas Antilhas Francesas sob a ideia
central de “diáspora africana” no Mundo Atlântico. Essa chave
interpretativa nos permite observar as “formas geopolíticas e geo-
culturais de vida que são resultantes da interação entre sistemas
comunicativos e contextos que elas não só incorporam mas
também modificam e transcendem” (GILROY, 2001, p. 25).
Desse modo, pretendo demonstrar a atuação e formas de
compreender o mundo dos afrodescendentes nas Américas e no
Caribe no sentido de ampliar nossa compreensão sobre sua
agência política e intelectual através das manifestações “culturais”,
observando estes fenômenos como reflexos de uma epistemologia
que vai além das noções ocidentais europeias sobre atuação
política e intelectual.
Nesse sentido, de acordo com James Sweet (2011), no
desenvolvimento de uma epistemologia “Atlântica”, muitas das
questões que inspiraram as histórias coloniais e imperiais antigas
foram recicladas em um quadro historiográfico que continua a
privilegiar os nexos europeus e americanos. Sweet critica a noção
de crioulização utilizada para compreender os processos de
interação étnica entre os povos africanos, e mesmo as abordagens
que privilegiam uma compreensão do “Mundo Atlântico” através
exclusivamente de categorias americanas e europeias, nas quais os
181
processos de transculturação são frequentemente entendidos
como exclusivos das Américas.
Os termos “crioulização” e, ainda, “transculturação”, têm
sido utilizados por antropólogos e historiadores em suas análises
sobre os processos históricos de encontros interétnicos, de
adaptações e sobrevivências culturais de diferentes povos que se
deslocaram e se estabeleceram no Mundo Atlântico,
especialmente nas Américas e no Caribe. Estes conceitos foram
desenvolvidos também no sentido de criticar a concepção
ultrapassada de “assimilação cultural”, que ressaltava as
experiências de “perda” da cultura original de uma coletividade
étnica, devido a processos de dominação social e imposição
cultural na esteira do desenvolvimento dos estados nacionais nas
Américas.4
O conceito de crioulização ocupa um espaço importante
na produção acadêmica contemporânea, pois em torno dele se
produziram acirradas polêmicas na historiografia acerca das
culturas afro-americanas. O termo (crioulização) é
frequentemente associado, na historiografia sobre a escravidão no
Mundo Atlântico, à obra de Sidney Mintz e Richard Price, O
nascimento da cultura afro-americana (1992), ainda que nunca
tenha sido usado pelos autores no livro. Embora Mintz e Price
tenham utilizado apenas a forma adjetiva – crioulo ou crioula –
para designar certas características das sociedades coloniais
escravistas, “as analogias que estabeleceram entre o processo
4
Acerca das análises sobre continuidades, mudanças e adaptações culturais
entre a África e a diáspora para a América e o Caribe, e discussões sobre
crioulização, transculturação ou “ladinização” (como definiu João José Reis
acerca de tais processos no Brasil), ver: BASTIDE, 1974 [1967];
MARCUSSI, 2010; MINTZ & PRICE, 2003 [1992]; PRATT, 1999;
REIS, 2008, p. 315-320.
182
formativo das culturas afro-americanas e o processo de
cristalização das línguas crioulas foram influentes o bastante para
que a obra acabasse associada ao termo ‘crioulização’”
(MARCUSSI, 2010, p. 55-56).
Retomando as críticas de James Sweet, este historiador
africanista afirma que os estudiosos, que pesquisam as heranças
culturais e experiências dos povos africanos no “mundo atlântico”,
negligenciaram as perspectivas e compreensões africanas. Os
“africanos atlânticos” caem no inevitável passo da americanização,
em diálogo com as ideias e instituições europeias, mas muito
raramente com as ideias africanas, e são com frequência
mecanicamente inseridos em processos históricos
predeterminados pelas fronteiras do império e do colonialismo
europeus. Nestes estudos, segundo Sweet, os africanos da diáspora
e seus desafios políticos são quase que perfeitamente encaixados
dentro da narrativa triunfalista democrática ocidental e suas
definições de liberdade, igualdade e independência. Sweet
argumenta que essas análises são importantes para a compreensão
dos processos revolucionários e emancipatórios, mas contribuem
muito pouco para revelar os impactos das instituições e as ideias
africanas na formação das Américas. A preocupação central de
James Sweet é demonstrar e ressaltar a importância das
cosmologias africanas na história intelectual e política do Mundo
Atlântico (SWEET, 2011, p. 4-27).
No entanto, embora os apontamentos críticos deste
historiador africanista sejam essenciais para o quadro que procuro
demonstrar neste capítulo, meus diálogos teóricos e
metodológicos não deixam de se estabelecer com as abordagens
historiográficas e antropológicas que analisam os processos de
construção de culturas “afro-americanas” no Novo Mundo. Isso
fica evidente quando me refiro às “culturas” que se tornam
183
“negras” nas Américas e no Caribe. Além disso, minha pretensão
com este texto é demonstrar que talvez seja possível ressaltarmos
os indícios sobre as heranças das cosmologias e culturas africanas,
ao mesmo tempo que observamos como elas foram acionadas e
adaptadas para lidar com as experiências da escravidão, da
liberdade e dos processos de desestruturação dos sistemas
escravistas no Mundo Atlântico.

“Danças de negros”: cantos na roça, calendas e bamboulas


Desde o século XVII, nas Antilhas Francesas, os
momentos de comemoração e performances culturais que fossem
identificados com os “costumes dos negros”, escravos ou livres,
sofreram restrições, principalmente legislativas. De acordo com
uma ordenação da administração colonial da Martinica de 1765,
devido às suas manifestações em ocasiões de festas, as “pessoas de
cor”, sobretudo da cidade de Saint Pierre – no norte da ilha de
Martinica –, foram consideradas como possuidoras de um
“espírito de independência” e “insubordinação” indesejáveis. O
texto legislativo afirmava que, apesar das proibições que existiam
de outros tempos na colônia, tantos os “livres de cor”5 como os

5
Diferentes expressões são encontradas na historiografia ou nas fontes para
se referir ao grupo de pessoas africanas ou afrodescendentes libertas ou
nascidas livres nas colônias francesas: “gens de couleur libres” (pessoas de
cor livres), “affranchis” (libertos), “mulâtres” (mulatos), entre outras. As
pesquisas mais recentes sobre a história do Caribe Francês tem utilizado o
termo “livres de cor” (libres de couleur) para tratar a história desse grupo,
pois ele evita toda a ambiguidade de sentido que possa ser provocada pelas
expressões encontradas nas fontes documentais. Dominique Rogers, Jessica
Pierre-Louis, Abel Alexis Louis, Frédéric Régent, Jean-François Niort são
alguns destes historiadores (franceses antilhanos) cujas pesquisas recentes
utilizam o termo. Nesse sentido, orientada por essa historiografia, optei
184
escravos realizavam reuniões públicas, danças e “corriam pelas
ruas mascarados e fantasiados em horas indevidas”, armados com
bastões e espadas. A lei de 1765 proibia, então, que as “pessoas de
cor, mesmo livres”, se reunissem em grupos sob o pretexto de
comemorações de casamentos, festins ou danças. É possível que
esta decisão oficial tenha sido motivada, principalmente, pelo
intuito de reprimir as performances culturais dos escravos e livres
de cor durante o carnaval, pois foi promulgada no mês de
fevereiro daquele ano:

As reclamações que nos tem feito o Procurador do rei


da jurisdição real da vila de Saint Pierre, sobre o
espírito de independência e de insubordinação que
reina entre as pessoas de cor, tanto livres quanto
escravos, […] que realizam reuniões públicas e fazem
bailes, apesar das proibições […], da ousadia de que
têm vários escravos de correr pelas ruas mascarados e
fantasiados em horas indevidas, armados com bastões
de ferro, cutelos e espadas: por todas estas
representações, que são de uma consequência infinita
para a segurança pública, à qual somos obrigados a
velar, nos comprometemos a fazer uma ordenação,
que retoma aquelas de nossos predecessores […], para
remediar as novas desordens […] Art. 1o. Nós
fazemos inibições e proibições muito explícitas a
todas as pessoas de cor, mesmo livres, de se juntar e se
reunir entre elas, sob o pretexto de núpcias, de festins

utilizar esta designação (a partir deste momento, sem aspas), apesar das
críticas contemporâneas (historiográficas e dos movimentos negros) a esta
expressão.
185
ou de danças […]. (Ordonnance de MM. Les
Général e Intendant, concernant les Gens de
Couleur, tant libres qu’esclaves, Martinica, 9 de
fevereiro de 1765, in DURAND-MOLARD, 1807,
p. 364-366)

Contudo, a existência da lei não significa que os


momentos de festas, danças ou rituais deixaram de ser realizados
pela população africana e afrodescendente. Diferentes viajantes ou
colonos das Antilhas Francesas descrevem as “kalendas” ou o
“bamboula”, por exemplo, que eram festejos realizados pelas
pessoas negras, nos quais tocavam tambor, cantavam e dançavam.
Pierre François Regis Dessalles, colono branco e senhor de
escravos da Martinica, na segunda metade do século XVIII,
comenta que mesmo com as antigas proibições a tais festas os
negros continuavam a realizá-las. Ele descreve o que se conhecia
por “kalenda” (calenda) naquela época, afirmando que era “uma
reunião de negros”, onde eles dançavam “a seu modo, todos
juntos ao redor de um tambor e de um instrumento que eles
chama[va]m de “banza”. De acordo com Dessalles, este tambor
era frequentemente feito de “um terço de barril” ou com “o
primeiro pedaço de madeira que eles encontra[va]m”.
Complementa com seu olhar de homem branco que a calenda era
“uma dança muito lasciva e bastante fatigante” (DESSALLES,
Adrien, 1847, p. 297). Antes disso, em 1722, o padre Jean
Baptiste Labat registrou um dos primeiros relatos sobre as
calendas martinicanas: “o que mais lhes agrada e é sua dança mais
comum é a calenda, a qual vem da costa da Guiné e,
aparentemente, do reino de Ardá [região do Daomé]”. Assim
como Dessalles, o padre Labat, sob sua visão de homem europeu e
representante da igreja católica, também observou a calenda como
186
uma dança “lasciva” que se “opõe à decência” (LABAT, 1972
[1722], p. 401-403).
Julian Gerstin observa que performances realizadas pelos
africanos e afrodescendentes escravizados similares à calenda
surgiram em várias ilhas do Caribe assim como nas colônias da
América do Norte e da América do Sul entre os séculos XVII e
XVIII. Segundo o autor, inúmeros relatos de diferentes
localidades fazem menções diretas ao termo “kalenda”6 ou
descrições de danças sem nomes – geralmente se referem à “dança
dos negros” – que parecem bastante com essa manifestação que
une música, batuque e expressão corporal na Martinica
(GERSTIN in ADAMS, BIBLER & ACCILIEN, 2007, p. 123-
124). Baseando-se no estudos de John Cowley (Kalenda: a sample
of the complex development of african-derived culture in the
Americas), Gerstin destaca as referências à calenda que ele
encontrou sobre o carnaval na ilha de Trinidad na década de
1830; em um artigo de jornal de Port of Spain, capital daquela
ilha, em 1881; e um relato da antropóloga e coreografa Katherine
Dunham, quem teria presenciado uma calenda em Trinidad em
1932, em seu artigo “The Dances of Haiti”, publicado em 1947
na revista Acta Anthropologica (GERSTIN, 2004, p. 8).
A ilha caribenha de Trinidad foi primeiramente
colonizada pelos espanhóis, cujo monarca na década de 1780
permitiu que estrangeiros de nações amigas se estabelecessem na
colônia, desde que professassem a religião católica. Por isso e
devido aos eventos engendrados a partir da Revolução Francesa

6
Na língua creole martinicana, a palavra “kalenda” é grafada dessa forma,
mas também há registros dos termos “calenda” ou “calinda” em diferentes
lugares das Américas e do Caribe que se referem a festejos similares à
kalenda martinicana (GERSTIN, 2004, p. 5).
187
(1789) e da Revolução do Haiti (1791), Trinidad recebeu uma
grande quantidade de colonos franceses, acompanhados de seus
escravos, vindos das possessões francesas caribenhas,
principalmente de São Domingos. Quando os britânicos
tomaram posse da ilha em 1797, encontraram uma população
expressiva de origem “francesa”, entre fazendeiros e escravizados
originários do Caribe Francês (BRASIL, 2016, p. 183-184).
Talvez isso explique, em parte, porque a kalenda, sempre referida
como uma manifestação cultural dos africanos e afrodescendentes
das Antilhas Francesas, foi mencionada em relatos sobre Trinidad
entre os séculos XIX e XX.
Nas narrativas de viagem e outras fontes do século XIX
sobre o Caribe Francês, dificilmente encontramos menções ao
termo kalenda. O viajante francês Alphonse Maynard, quem
visitou a Martinica na década de 1840, descreve o bamboula
como um festejo realizado com a presença de escravos e libertos,
talvez similar ou o mesmo que as kalendas, descritas
principalmente em fontes do século XVIII. A despeito do olhar
enviesado de um homem de origem europeia, vale a pena
reproduzir o trecho no qual o viajante descreve seu encontro com
o bamboula que ocorria na “savana”7 próxima à cidade de Saint
Pierre (Martinica), em 1842.
Apesar da enunciação de sentimentos de terror e medo, e
da narração que exprime o que para o francês metropolitano
parecia a expressão cultural da “barbárie dos africanos pagãos”,
transparece em seu relato algo que parece nos levar ao O reino
deste mundo de Alejo Carpentier. Alphonse Maynard não

7
Savana (savane em francês) era o termo utilizado para se referir à área rural
nas colônias francesas do Caribe.
188
percebe que narra o “real maravilhoso” 8, mas faz transparecer um
pouco do “outro”9 que lhe causa tanta estupefação, ainda que
contraditoriamente ele insista em descrever este outro como uma
“raça inferior” e como “selvagem” 10. Em seu relato, destaca que
enquanto o tambor era responsabilidade de um homem, uma
mulher liderava o canto e o grupo. Não obstante o viajante tenha
ficado impressionado com o homem que tocava o instrumento de
percussão, a presença e os lugares, de aparente influência,
ocupados pelas mulheres neste festejo se destacam na narrativa:

8
Alejo Carpentier afirma que os europeus colonizadores são incapazes “de
conceber uma mística válida ou de abandonar os hábitos mais mesquinhos
para jogar a alma na temível carta de uma fé. Isso ficou particularmente
evidente para mim durante minha permanência no Haiti, ao me ver em
contato cotidiano com algo que poderíamos chamar de real maravilhoso.
Pisava eu uma terra onde milhares de homens ansiosos por liberdade
acreditaram nos poderes licantrópicos de Mackandal, a ponto de que essa fé
coletiva produzisse um milagre no dia de sua execução. (…) Mas pensava
além disso, que essa presença e vigência do real maravilhoso não era
privilégio único do Haiti, mas sim patrimônio da América inteira, onde
ainda não se terminou de estabelecer, por exemplo, um inventário de
cosmogonias. (…) é que, pela virgindade da paisagem, pela formação, pela
ontologia, pela presença fáustica do índio e do negro, pela Revolução que
constitui seu recente descobrimento, pelas fecundas mestiçagens que
propiciou, a América está muito longe de ter esgotado seu caudal de
mitologias”. CARPENTIER, 2009, pp. 9-11.
9
Acerca dos olhares europeus sobre a América, e noções como “zona de
contato” e “transculturação”, ver PRATT, 1999.
10
“(…) esta raça africana é, certamente, inferior à raça branca”; “(…) as
raças negras, sucumbidas por uma vergonhosa ociosidade, embrutecida por
longos séculos de barbárie, (…) devem submeter-se à escravidão às raças
brancas”, in MAYNARD, 1842, p. 19; p. 218
189
Na noite de minha chegada [em Saint Pierre,
Martinica], realizou-se o bamboula […] A noite
chegou, eu fui à savana, seguindo ao longo do
boulevard, admirando esta natureza grandiosa, que se
suspende em um morro íngreme sobre a vila, coberto
de uma vegetação luxuriante que enfeita por toda
parte, oferecendo seus frutos perfumados e tão belos;
em seguida, essas palmeiras, que parecem sempre
esperar a brisa, sob a qual elas se dobram.
Aproximando-me, escutei um barulho estrondoso e
vibrante, que ressoou dentro de meu peito com uma
sensação de terror, seguido de luzes que perfuraram o
véu de sombra que o céu havia jogada sobre a savana;
nunca esquecerei a impressão que me causou esta
dança selvagem do negro da Guiné, dança conduzida
por um tambor de madeira tocado pelos dedos
lépidos de um preto nu até a cintura; às vezes
[tocada] numa medida, que sua cadência sobre as
palavras cantadas, cujo significado permanece
desconhecido, e que um refrão anima, é viva,
acelerada; às vezes [tocada] lenta, suavizada, a voz do
coro assume, e então ela explode em notas sonoras e
retumbantes; a paixão se mostra sombria, enérgica;
todas as faces se inflamam, a luxúria aparece em todos
os traços; todos cantam, se balançam, participam
desta tripla unidade que se compõem de um músico,
da corista e da dançarina. Esta dança, que eu
denomino a dança lírica do amor africano, se compõe
de nada, porque ela não tem nenhum passo, com um
pouco de contorções, os pretos procuram apenas
desdobrar sua agilidade em saltos e piruetas. O preto
190
sabe tirar de um tambor sons terríveis; ele lhe faz
cantar todas as suas paixões impetuosas, exprimir o
ardor de seus desejos, perseguir o objeto cobiçado, a
vitória mesmo. As pretas levam bandeiras ornadas
de insígnias, que distinguem as diversas confrarias,
ou velas que elas balançam, cobrindo-se em uma
nuvem de fagulhas. Eu admito, este espetáculo me
apavora: nunca me vi em semelhante reunião. Estas
organizações me aterrorizam; eu temi. Meus olhos
não conseguiam se despregar deste preto, que, com
seu tambor entre as pernas, olhava a mulher líder do
grupo, que lhe repetia sua melopeia [ladainha] (…)
(MAYNARD, 1843, p. 127-129 – grifos meus)

De acordo com a linguista francesa Marie Treps,


“bamboula” ou, ainda, “ka-mombulon” e “kam-bumbulu”,
significava “tambor” nas línguas “sara” e “bola”, faladas na região
da Guiné portuguesa no período colonial. Em 1714, na Costa do
Marfim, a palavra apareceu sob o gênero feminino e passou a
designar, então, “dança dos negros”, já com uma conotação
negativa na visão dos brancos europeus, porque estava associada
aos “negros”, à “escravidão negra”, num momento que o tráfico
de escravos africanos estava em plena expansão. No século XIX, a
palavra bamboula se tornou sinônimo de dança violenta e
primitiva no vocabulário dos brancos de origem europeia. Treps
destaca em seu estudo que no século XX, com a intensificação do
imperialismo francês na África, o termo bamboula passou a ser
utilizado na França continental para se referir às pessoas de
origem africana (principalmente senegaleses) como indivíduos que
precisavam ser civilizados, tornando-se com o tempo uma injúria
racista (TREPS, 2017). Contudo, a despeito da apropriação
191
racista do termo na França, há ao menos um registro fotográfico
de um festejo denominado bamboula do início do século XX na
ilha de Martinica11, no qual homens, mulheres e crianças
afrodescendentes aparecem tocando tambores, cantando e
dançando. Isso indica que os franceses antilhanos de pele negra
continuaram a realizar aquela manifestação cultural de herança
africana, apesar das constantes proibições e visões preconceituosas
sobre seus costumes ao longo da história do Caribe Francês.
Entre visões de brancos, e aquilo que conseguimos
observar nas entrelinhas sobre as adaptações, resistências,
sobrevivência e herança cultural africana nas plantations das
Antilhas Francesas, nota-se que quase todas as narrativas de
viajantes europeus evidenciam o fato dos homens e mulheres
escravizadas entoarem cantos e tocarem tambores enquanto
labutavam nas lavouras de cana. Principalmente em relatos de
homens franceses que passaram pela Martinica nas décadas de
1830 e 1840. O abolicionista francês Victor Schoelcher afirma
que esse costume era uma “importação africana” e que parecia
suavizar o trabalho pesado:

Em cada atelier, há um cantor ou cantora


[chanterelle] que, posicionada atrás dos trabalhadores
e apoiada sobre o cabo da enxada faz ouvir algumas
melodias de um ritmo cadenciado, das quais os
outros repetem o refrão. Não saberíamos dizer o
quanto esta música alivia a fadiga. A associação tem

11
A fotografia “Bamboula, Fort de France, Martinique” (1902) pode ser
observada no website The Caribbean Photo Archive. Disponível em:
https://www.flickr.com/photos/caribbeanphotoarchive/3293641544/,
Acesso em 04 de out. /2018.
192
virtudes tão poderosas que mesmo o trabalho escravo
feito em comum, apresenta um aspecto menos triste
que o trabalho solitário e lúgubre de nossos
camponeses. (SCHOELCHER, 1842, p. 23)

Adolphe Granier de Cassagnac 12 retrata uma cena


semelhante a essa dos cantos dos escravos na lavoura. Ele narra
que os negros, e não distingue gênero, que trabalhavam a terra
para a plantação da cana, “para dar regularidade à sua tarefa”,
seguiam o ritmo de um tambor e de um canto. Ao observar o que
desconhecia, Cassagnac descreve essa performance nos campos de
cana como algo similar ao bamboula, devido à presença do
batuque e das canções:

(…) um negro se coloca a uma pequena distância [do


grupo], montado sobre seu tambor, como em um
bamboula; ele começa a bater com vigor, realmente
como se ele dançasse. Ao mesmo tempo, uma negra
se coloca a cantar uma canção improvisada sobre
qualquer assunto, e todo o grupo cava em ritmo e
em tempos iguais. Não se pode ter ideia do furor que

12
Adolphe Granier de Cassagnac era um publicista francês e visitou a
Martinica e Guadalupe na década de 1840. Lawrence Jennings demonstra
que a autocracia escravista das colônias na época teria investido na
imprensa para influenciar as opiniões sobre a escravidão e cita
principalmente o nome de Granier de Cassagnac. O senhor de escravos
Pierre Dessalles comenta em seu diário, em 10 de setembro de 1841, sobre
uma subscrição organizada na Martinica para coletar subsídios em favor de
Granier de Cassagnac, considerado pelos colonos brancos um “defensor das
colônias” devido aos seus escritos nos quais defendia a escravidão.
(FOSTER & FOSTER, 1996, p. 156; JENNINGS, 1992, p. 957-978)
193
esta música, a qual todos se agregam cantando o
refrão, comunica aos negros. Este método é aplicado
apenas na plantação de cana (…) (GRANIER DE
CASSAGNAC, 1842, p. 308-309 – grifos meus)

Nos dois relatos, do abolicionista e do publicista apoiador


do escravismo, observam-se indícios de destaque sobre o papel das
mulheres escravizadas nas manifestações musicais na lavoura –
assim como na narrativa de Maynard sobre o bamboula.
Diferentemente de Schoelcher, Granier de Cassagnac sublinha
que enquanto um homem tocava o tambor, uma mulher era a
responsável por puxar a canção “improvisada sobre qualquer
assunto”. Schoelcher usa o termo “chanterelle” — em itálico no
texto original, enfatizando a palavra — para se referir à mulher
que entoa a ladainha no campo, e caso fosse um homem a pessoa
que cantava, “chanteur” (cantor). No entanto, o feminino deste
substantivo em francês é “chanteuse” (cantora). Quanto à
“chanterelle”, o Dictionnaire de l’Académie française, 6a. Edição
(1835)13, apresenta três significados para este substantivo
feminino: (1) a corda de um violino, de um baixo, que tem o som
mais agudo; (2) uma garrafa de vidro muito fino, da qual se tira
sons muito agradáveis soprando o bocal; (3) em termos de caça,
diz-se de um pássaro que é colocado em uma gaiola no meio de
uma floresta ou de uma campanha, de modo que com seu canto
atraia as outras aves às redes estendidas para lhes prender (“A
chanterelle atraiu muitos pássaros”).

13
Dictionnaire de l’Académie française, 6a. ed. (1835). Disponível em:
http://artfl-project.uchicago.edu/content/dictionnaires-dautrefois. Acesso
em: 18 de març. 2017.
194
Provavelmente Schoelcher utilizou a palavra “chanterelle”
como um jogo de significados, que representa tanto a corda do
violão ou do baixo que produz o som mais agudo, quanto a
garrafa de vidro delicado de onde se tira sons muito agradáveis,
como metáforas da voz feminina. Mas é possível que Schoelcher
tenha se referido à escrava que cantava a ladainha na roça
especialmente naquela última definição de “chanterelle”,
relacionando a escravidão à gaiola e a mulher ao pássaro que canta
para atrair os outros que terão seu mesmo destino desafortunado.
Em todo caso, ao distinguir a mulher como a “chanterelle”,
Schoelcher nos dá indícios do papel de destaque ocupado por
estas escravas em suas comunidades e no mundo do trabalho nas
fazendas.
Essa função de liderança das mulheres africanas e
afrodescendentes nas manifestações culturais nas Américas e no
Caribe não é incomum. Sheila de Castro Faria destaca a atuação
das mulheres negras, escravas ou forras, na promoção de
“folguedos” e batuques no Brasil, momentos de vivência
comunitária que teriam criado condições para o surgimento de
novas identidades naquela sociedade escravista:

Mulheres escravas ou forras em cidades como as de


Minas Gerais, no século XVIII, e do Rio de Janeiro e
de Salvador, desde o século XVII, vendiam pelas ruas
comidas que poderiam agradar ao paladar e aos
espíritos. Presença reconhecidamente fundamental
para o abastecimento urbano e, ao mesmo tempo,
incômoda para as autoridades, as negras foram
sistematicamente acusadas de promover encontros
tidos pelas autoridades como “badernas”. Eram as
responsáveis pela organização de folguedos, como os
195
lúdicos e sensuais lundus e batuques, em que estariam
presentes comidas afrodisíacas regadas pelo “líquido
espirituoso” mais popular do Brasil – a aguardente de
cana. As tentativas de controlar seu movimento,
estipulando lugares fixos para sua atuação, foram
sempre em vão e elas acabaram se tornando
responsáveis pelo contato e confraternização entre
povos muito diferentes. Talvez a “negra do
tabuleiro”, também designada como “negra doceira”
ou “preta quituteira”, seja a categoria social que
melhor represente simbolicamente a síntese do que
foi o encontro de variados povos: através das comidas
e das festas, das associações de santos católicos com
santos africanos do candomblé baiano, da presença de
pretos-velhos e de caboclos na macumba do Rio de
Janeiro, criaram-se condições para o surgimento de
novas identidades no Brasil escravista. (FARIA, 2007,
p. 120-121)

Há um registro bastante interessante sobre aquele costume


de cantar no eito da roça, pois fez chegar até nossos dias uma
dessas canções entoadas por escravas e escravos. O senhor Giraud,
administrador da fazenda Reiset, na ilha de Guadalupe, escrevia
constantemente ao proprietário que estava na França, na década
de 1820. Nesta época, tanto a revolução capitaneada por escravos
e libertos em São Domingos (Haiti) como a independência desta
colônia já havia marcado o imaginário senhorial. Durante a
primeira metade do século XIX, a população branca das Antilhas
francesas vivia aterrorizada pelo medo do “complô negro”,

196
desconfiando tanto dos escravos como da população livre de cor,
ou de uma cumplicidade entre estas classes 14.
Duas cartas de Giraud, de outubro e novembro de 1829,
traduzem bem o estado de inquietação neste período. Ele revela
em sua narrativa o “terror” e o “pânico” da administração colonial
e dos habitantes e afirma que a “igualdade entre as classes livres
[…] era coisa impossível”, referindo-se às classes dos brancos e
dos livres de cor. Giraud narra que, apesar da aparente
tranquilidade naqueles arredores, as pessoas livres de cor —
“capazes de refletir” sobre aquele clima de tensão na classe
senhorial —, ao se encontrarem, apertavam as mãos dizendo um
cumprimento que ironizava o sentimento dos brancos: “Eh ben!
Ké nouvelles? Blanc ka chiés dans cullotes à io” [Eh bem! Quais as
novidades? Branco aqui se caga nas calças à io] (Archives
Nationales d’Outre-Mer – ANOM, 170, APOM/5, apud
CAMARA & DION, 2008, p. 168).
Contudo, não apenas os livres de cor eram “capazes de
refletir” e fazer chiste do medo difundido entre os brancos. As
pessoas escravizadas pareciam estar em sintonia com os libertos,
traduzindo em seus cantos a sua forma de explicar o terror dos
brancos e a tensão nas colônias. De acordo com as evidências
anteriores, muito possivelmente uma das mulheres escravizadas na
fazenda era responsável pelas ladainhas entoadas. A carta do

14
O senhor de escravos martinicano Pierre Dessalles (filho de Pierre
François Regis Dessalles, mencionado anteriormente), em carta a sua mãe
em agosto de 1825, afirma que “as notícias sobre a independência de São
Domingos foi devastadora para toda a população branca” das colônias.
Naquele ano, o monarca francês Carlos X aceitou a independência de São
Domingos / Haiti mediante uma indenização de 150 milhões de francos,
que seria distribuída entre os ex-proprietários de terras da ex-colônia (Carta
de Pierre Dessalles, 22/08/1825, in FOSTER & FOSTER, 1996, p. 78).
197
administrador Giraud evidencia a importância destes cantos do
trabalho da roça, que parecem ao mesmo tempo servir de registro
dos acontecimentos, da forma de pensar e explicar o mundo a sua
volta e de transmiti-la aos seus, assim como um meio de
comunicar aos senhores brancos e avisá-los ou lembrá-los que eles,
os escravos, não estavam alheios aos acontecimentos da colônia:

(…) os escravos mesmo, segundo seus costumes, já


colocaram o evento em canção. Eu escutei
recentemente o seguinte refrão da boca de vossos
escravos: Os brancos estão patrulhando, armas e
equipagem, todas as noites / eles veem espíritos e
dizem que são escravos fugidos/ eles veem espíritos e
dizem que são escravos fugidos / são espíritos e dizem
que são escravos fugidos / eles amarram os espíritos e
dizem que são escravos fugidos.15 (ANOM, 170,
APOM/5, apud CAMARA & DION, 2008, p. 169)

Schoelcher observa aquelas performances musicais dos


escravizados nas lavouras de cana como uma “importação
africana”. Giraud destaca que os escravos da fazenda que
gerenciava exprimiram suas visões sobre a situação política e social

15
Giraud transcreve o refrão da música em creole e logo na sequência
fornece a tradução em francês: “Les blancs font patrouille, armes et
bagages, toutes les nuits / io ka voë zombie, io ka di c'est nègres marrons /
io ka tien ben zombie, io ka di c'est nègres marrons / io ka maré zombie, io
ka di c'est nègres marrons / Ils voient des revenants et disent que ce sont
des nègres marrons / Ils voient des revenants et disent que ce sont des
nègres marrons / Ils prennent des revenants et disent que ce sont des nègres
marrons / Ils amarrent des revenants et disent que ce sont des nègres
marrons”.
198
na colônia em suas canções, “segundo seus costumes”. Maynard,
apesar de seu olhar europeu do século XIX, carregado de
preconceito e racismo, apontou que o bamboula tinha elementos
de uma “cultura negra”, “africana”, que ele identifica como uma
“dança selvagem do negro da Guiné”. Assim como Labat entre o
final do século XVII e início do XVIII, Maynard na década de
1840 situa essa manifestação cultural dos afrodescendentes da
Martinica como uma herança cultural africana, apesar de seus
olhares enviesados e preconceituosos.
Labat afirma que a calenda também era originária da costa
da Guiné, talvez do Reino de Ardá, mas não sabemos o quanto
estas alegações podem ser confirmadas. De fato, entre 1650 e
1750, dos quase 120 mil africanos e africanas levados pelo tráfico
de escravos para a Martinica, grande parte foi embarcada na Costa
da Guiné ou Costa da Mina, sobretudo no Golfo do Benim
(62.469 pessoas) e na Costa do Ouro (12.715 pessoas), mas uma
quantidade considerável também foi capturada na África Centro
Ocidental (24.390 pessoas)16.
Desde a década de 1970, Sidney Mintz e Richard Price,
em suas abordagens sobre o “nascimento da cultura afro-
americana”, consideravam impossível que o conjunto de africanos
levados para qualquer colônia das Américas e do Caribe tenha
transportado uma única cultura coletiva. De acordo com Mintz e
Price, os africanos de qualquer sociedade escravista do Novo
Mundo formavam um aglomerado etnicamente heterogêneo de
indivíduos (“multidões”) e só se transformaram de fato numa
comunidade e começaram a compartilhar uma cultura “na
medida e na velocidade que eles mesmos as criaram”. Segundo os

16
Slave Voyage. Disponível em: http://www.slavevoyages.org/ . Acesso
em: 09 de out. 2018.
199
autores, “para que as comunidades de escravos ganhassem forma,
tiveram que ser criados padrões normativos de conduta, e tais
padrões só podiam ser criados com base em determinadas formas
de interação social” (MINTZ & PRICE, 2003 [1992], p. 37-38).
Na década de 1990, vários africanistas passaram a criticar
o modelo interpretativo de Mintz e Price. A partir de um
importante avanço nos estudos historiográficos e antropológicos
sobre o continente Africano, surgiram novas observações sobre as
heranças culturais africanas nas Américas, estabelecendo um
acalorado debate entre “africanistas” e “americanistas”. Contudo,
segundo James Sidbury e Jorge Cañizares-Esguerra, pesquisas
empíricas atuais têm tornado tal disputa sem sentido. Focando
especificamente os estudos sobre a África, Sidbury e Cañizares-
Esguerra destacam que a teoria da crioulização, desenvolvida a
partir dos apontamentos de Mintz e Price, ironicamente tem
iluminado pesquisas recentes acerca de muitos povos da África
Ocidental, Central e Sudeste. Alguns historiadores africanistas
têm observado que grande parte da África pré-colonial (entre os
séculos XV e XIX) era formada por pequenos sistemas políticos e
que era comum entre estes a constante integração de membros de
outras etnias, antes, durante e depois da era do tráfico
transatlântico. A experiência de cativos deslocados de suas
comunidades originais e forçados a se adaptar a novas culturas era,
portanto, uma condição endêmica que levava à criação de novos
arranjos étnicos e culturais nos sistemas políticos pré-coloniais
africanos. Desse modo, esses processos e experiências teriam
auxiliado os africanos e africanas enredados na escravidão atlântica
a se adaptarem à terrível opressão que vivenciavam uma vez
levados às Américas (SIDBURY & CAÑIZARES-ESGUERRA,
2011, p. 182-185).

200
James Sweet direciona sua análise nesse sentido ao abordar
a biografia do africano Domingos Álvares, capturado na região do
Daomé (Costa da Mina) e escravizado no Brasil no século XVIII,
onde, após sua alforria, constituiu uma comunidade de cura,
procurando seguir alguns ensinamentos de sua terra natal que
mantinha na memória. Para explicar as origens do curandeiro
africano, o historiador africanista narra a história da tomada de
Ouidah pelo império de Daomé, sob o reinado de Agaja na
primeira metade do século XVIII, na região denominada pelos
europeus como Costa da Mina. Sweet destaca em sua análise o
quanto este processo violento de guerra entre reinos africanos
impactou a reformulação das identidades sociais e culturais dos
povos daquela região, dos quais muitos indivíduos foram
capturados e comercializados nas tramas do tráfico de escravos.
Os povos deslocados pela violência dos ataques do exército de
Agaja reconstituíram eles próprios alianças com outros que viviam
em circunstâncias similares. Estas sociedades acuadas pelo estado
de guerra da época eram, então, multilínguas, politeístas e
etnicamente heterogêneas. Todavia, segundo Sweet, normalmente
falavam uma língua franca comum, compartilhavam ideias
religiosas e seguiam caminhos similares para resistir ao poder
esmagador do império de Daomé (SWEET, 2011, p. 12-15).
De acordo com Sweet, a fundação desta cultura regional
emergiu a partir de uma série de imigrações desde o ano 1.000 (da
era cristã), tendo continuidade através do período de dominação
de Agaja. O resultado dessas migrações sobrepostas foi a
confluência de povos Ewe, Adja, Fon, Gun e Yoruba em uma área
cultural contígua com uma ampla estrutura linguística comum –
falantes Gbe –, com um sentido compartilhado de linhagem e
história (mito de origem através da terra natal ancestral em Tado,
atual Togo), e de um sistema religioso centrado no culto aos
201
voduns. Fronteiras geográficas porosas permitiram o influxo de
uma forte influência Yorubá do leste e influências islâmicas do
norte. No entanto, Sweet destaca que a violência vivenciada no
século XVIII, nos conflitos entre os reinos de Daomé e Òyó, nos
leva a atentar que devemos ter cuidado para não confundir
similaridade cultural com coesão política. Embora pareça claro
que estas imigrações, o tráfico e o estado de guerra facilitaram que
povos compartilhassem afinidades socioculturais, eles não
necessariamente se concebiam compartilhando uma mesma
“identidade”. Em resumo, a região dos falantes de Gbe era, ao
mesmo tempo, culturalmente similar e politicamente heterogênea
antes da chegada dos Europeus.
No entanto, o comércio europeu reforçou a marcha das
trocas sociais e culturais, ao passo que a demanda por escravos
transformou a economia local e as configurações políticas. Para
Sweet, o expediente político da ação coletiva, daqueles povos que
se uniram contra os ataques do exército de Agaja, não
necessariamente se traduziu em uma completa transformação
social e cultural, pois alguns africanos se identificavam
primeiramente por suas vilas de origem. Assim, as camadas de
identidade podiam se deslocar concentricamente do parentesco
natal a significantes meta-étnicos como “Mahi”, ou mesmo mais
amplos, de proveniência, como da “Costa da Mina”. Sweet define
que estas identidades operavam como bonecas russas, uma dentro
da outra, e a utilidade de cada uma era determinada pelo contexto
e circunstância (SWEET, 2011, p. 15-17).
A partir desse conhecimento sobre a história da África,
Sweet aborda a história dos africanos levados como escravos para
o Novo Mundo compreendendo que suas experiências de
adaptação e recriação cultural têm início na África, como parte de
um processo de embate político. Oferecendo formas alternativas
202
de pensamento sobre família, religião, medicina, economia e
política, os africanos contestaram a hegemonia do poder imperial
europeu, frequentemente operando em uma epistemologia
diferente, indecifrável para a maioria dos homens brancos. Ao
mesmo tempo, de acordo com Sweet, as ferramentas conceituais
para analisar as novas contingências políticas, forjadas
primeiramente na África e então através dos vários encontros que
se seguiram, nunca se enfraqueceram na memória daqueles
africanos levados como escravos para as Américas. Sweet traça a
figura destes africanos como verdadeiros “palimpsestos”, que
teriam derivado novos caminhos de leitura dos mundos que eles
encontravam, colocando em camadas estas ideias umas sobre as
outras. Porém, o “pergaminho” e as gravuras originais eram
definitivamente africanas, moldadas em suas experiências
formativas em sua terra natal (SWEET, 2011, p. 6-7).
Retomando os números do tráfico de escravos para a
Martinica, observa-se que uma grande quantidade de africanos
desembarcados na ilha saíram da Costa da Mina. Nesse sentido, e
observando os estudos de James Sweet sobre aquela região no
século XVIII, é possível inferir que as manifestações culturais dos
africanos e afrodescendentes escravizados nas Antilhas Francesas,
como aquelas denominadas kalenda ou bamboula, ou ainda o
costume de usar o tambor e os cantos na lavoura, muito
provavelmente mantinham elementos de uma história e de uma
herança cultural compartilhadas desde os processos engendrados
na África, reconfigurados na Passagem do Atlântico dentro dos
navios negreiros, e, finalmente, nos encontros e experiências
vivenciados no Novo Mundo.
De alguma forma, o fato de estrangeiros de diferentes
espectros políticos – como o abolicionista Schoelcher e defensores
do escravismo como Granier de Cassagnac e Alphonse Maynard –
203
serem “autorizados” a observar e escutar a música que embalava o
trabalho pesado nos grandes engenhos de açúcar, a socialização
dos escravos e libertos, e ainda destacarem a utilização daquele
“método” (do uso do tambor e do canto) durante o plantio de
cana, indica a complexidade das relações estabelecidas entre
senhores brancos e escravos afrodescendentes nas colônias
francesas do Caribe. As pessoas escravizadas de origem africana,
numa intrincada mistura de acomodação e resistência, batalhavam
dentro e contra o quadro imposto a eles, e nesta sua luta cotidiana
acionavam e desenvolviam valores, ideias e expressões culturais
que lhes permitiam afirmar seus próprios objetivos, necessidades e
ritmos na vida social e de trabalho, e resistir às determinações
impostas pela ordem senhorial escravista. Delineiam-se nestes
contextos aspectos e resultados de “lutas miúdas”, de estruturas
complexas e cotidianas, entre os “campos de força” do mundo do
trabalho escravo nas Américas e no Caribe (SLENES, 2011, p.
205; p. 235).

Revoltas e canções sediciosas


Logo depois da Revolução de Julho de 1830 na França,
em fevereiro de 1831, uma revolta de escravos ocorreu na cidade
de Saint Pierre e em seus arredores. De acordo com o historiador
Lawrence Jennings, revoltas como esta que aconteceram na
Martinica nas décadas finais da escravidão, foram eventos
menores em comparação à grande insurreição de escravos na
Jamaica (1831-1832), que teve sucesso em pressionar o governo
britânico em relação à abolição nas colônias inglesas
(JENNINGS, 2002, p. 179). No entanto, ainda que a revolta em
Saint Pierre não tenha derrubado o sistema escravista francês, sua
ocorrência demonstra que os escravos e escravas da Martinica não
estavam passivos diante das mudanças em curso. Em uma carta
204
que relata a Revolta de 1831, sob a visão dos colonos brancos, o
autor (anônimo) narra que na véspera da insurreição, na noite
entre cinco e seis de fevereiro, uma bandeira tricolor com a
inscrição “La liberté ou la mort”, foi colocada na porta da igreja
da paróquia do Mouillage, em Saint Pierre.
O incêndio começou nas fazendas nos arredores da cidade
no dia sete e continuou até a noite de nove de fevereiro (ANOM
– DPPC, SG – Carton 18, dossier 160). Era período de Carnaval.
Os relatos sobre essa insurreição afirmam que vários escravos
atacaram e incendiaram onze engenhos de açúcar próximos à
cidade de Saint Pierre, passando de fazenda em fazenda,
invocando o fervor revolucionário que recentemente havia
chacoalhado a França. A elite branca ficou exasperada, reagindo
implacavelmente contra os libertos e escravos da colônia, com o
apoio do governo colonial (SCHLOSS, 2007, p. 204).
Para a classe senhorial martinicana, aquela revolta de
escravos de fevereiro de 1831 foi motivada pelas reverberações na
colônia dos acontecimentos revolucionários ocorridos na
metrópole. De acordo com aquele relato anônimo de um colono
branco da Martinica, a notícia sobre a revolução chegou à ilha
“nos primeiros dias de setembro” de 1830 e trouxe com ela uma
“inquietude” que desestabilizou a “tranquilidade das Colônias” –
embora essa “tranquilidade” seja apenas retórica, pois a década de
1820 não foi pacífica para os senhores de escravos da Martinica17.

17
Em 1822 ocorreu uma grande revolta de escravos no município do
Carbet e há evidências sobre outra tentativa de revolta na mesma localidade
em 1826; em 1823-24, dezenas de homens livres de cor foram acusados de
conspiração e condenados à prisão, ao exílio e até à marca com ferro quente
(“caso Bissette”); entre 1822-1827, houve alarde da elite branca em relação
aos casos de “envenenamento” na Martinica, levando à condenação de
205
Relata que “canções sediciosas” eram cantadas pelos escravos,
assim como se ouvia falar de “ameaças de incêndio e de morte”.
Segundo o autor do texto, nestas canções cheias de ditos
significativos, na maneira dos “gestos” e da “linguagem”, revelava-
se uma revolução em curso na mentalidade dos afrodescendentes
da colônia:

A inquietude aumentou entre uns, a efervescência


entre outros [negros e livres de cor]. Canções
sediciosas estavam em todas as bocas, ameaças de
incêndio e de morte em muitas; adágios significativos,
uma certa maneira de gestos e de linguagem
anunciavam um revolução já feita nas ideias e pronta
a explodir para fora. (ANOM – DPPC, SG – Carton
18, dossier 160)

O trabalho de Eric Brasil sobre uma revolta em Trinidad,


no carnaval de 1881, e a prática do Canboulay, leva a pensar se
esse levante em Saint Pierre em 1831, na época do carnaval, não
teria um significado mais profundo que os senhores de escravos e
mesmo os historiadores perceberam. O Canboulay era uma
encenação, na qual grupos se “enfrentavam” durante a festa de
carnaval em Trinidad, e num cortejo com tambores, os homens
levavam bastões e tochas, e mulheres e crianças eram responsáveis
por prover estes objetos. O termo Canboulay teria sua origem
ligada a um expediente comum nas plantations de cana-de-açúcar
da colônia, associado ao uso de fogo e às estratégias para controlar
incêndios realizadas pelos escravos das fazendas.

várias pessoas escravizadas (THÉSÉE, 1997, p. 77-114; SAVAGE, 2006, p.


35-36).
206
A palavra derivou da expressão francesa cannes brulées
(cana queimada), a qual na língua crioula teria se transformado
em Canboulay, entrando para a história do carnaval em Trinidad
(BRASIL, jan/jun 2016, pp. 48-77). Na sublevação de 1831 na
Martinica, além de ocorrer no período do Carnaval, com relatos
sobre “canções sediciosas”, os escravos insurgentes queimaram os
campos de cana. Não encontrei mais indícios para aprofundar a
análise deste evento nesse sentido, mas considerei pertinente
destacar as aparentes conexões entre o que ocorreu na colônia
francesa e a performance do Canboulay em Trinidad.
Pierre Dessalles narra, em uma carta de janeiro de 1832,
que Cyrille Bissette havia solicitado ao governo em Paris a
libertação dos escravos das colônias. O abolicionista negro e
martinicano Cyrille Bissette, quem foi expulso da Martinica na
década de 1820 e vivia exilado em Paris na década de 1830,
publicou na França, no final de 1831, uma “carta” direcionada ao
governo francês, na qual afirmava que “depois de muito tempo, as
cabeças fermentam nas Colônias pela aplicação dos direitos civis e
políticos devidos aos homens livres de cor, e para a alforria
progressiva da escravidão dos negros” (BISSETTE, nov./1831, p.
3).
É possível que este texto tenha causado a reverberação que
Dessalles relata em sua carta, que havia chegado ao conhecimento
dos escravos da Martinica o apoio dos homens livres de cor à
causa da abolição da escravidão. Com tal história rodando a
colônia, as pessoas escravizadas estariam, então, “fazendo canções
sobre o ocorrido” e dizendo que enquanto “os brancos eram
contrários a sua emancipação, os homens de cor estavam
insistentemente reivindicando-a”. Segundo Dessalles, devido a
estes acontecimentos, “a mentalidade do preto tinha
drasticamente mudado”, e que estava “muito difícil comandá-lo”
207
(Carta de Dessalles, 07/01/1832, in FORSTER & FORSTER,
1996, p. 82). Este breve relato de Pierre Dessalles mais uma vez
revela que os afrodescendentes escravizados nas colônias francesas
utilizavam a música para expressar suas percepções acerca dos
processos políticos e sociais e se faziam ouvir, inquietando os
senhores de escravos e abalando, em certa medida, a ordem
escravista.
O historiador Lawrence Jennings argumenta que não
foram nem os fatores econômicos, nem a resistência dos próprios
escravos que levaram à abolição definitiva da escravidão, mas o
desenvolvimento, durante a Monarquia de Julho (1830-1848), de
uma “cultura antiescravista” na França, que realizou seus objetivos
abolicionistas na Revolução de 1848. Ele afirma que durante este
período percebe-se uma “ausência” de agência dos escravos das
colônias francesas por sua emancipação, ainda que os
historiadores demonstrem que houve bastante “resistência
passiva” (trabalho lento, recusa a obedecer às ordens, falsas
doenças), e mesmo ações de insubordinação aberta
(envenenamento de animais, incêndios, fugas). Jennings
argumenta que, ainda que estas ações inquietassem as autoridades
locais, há poucas provas que elas tenham reduzido de forma
significativa a produção de mercadorias, ou mesmo que tenham
tornado menos viável o sistema colonial.
Segundo o autor, as correspondências oficiais dos
governos coloniais com a metrópole sugerem que o único meio
que os escravos poderiam avançar na conquista de sua própria
liberdade seria se insurgindo em massa entre 1833 e 1848
(JENNINGS, 2002, p. 178-180). Por um lado, Jennings ressalta
a importância da ação política dos abolicionistas franceses em seus
debates de ideias, por meio da imprensa e da publicação de livros
e panfletos, e em suas movimentações dentro do governo francês,
208
conjunto de ações que ele denomina de “cultura abolicionista”.
Por outro, o autor acredita que a agência dos escravos somente
poderia ser efetiva por meio de uma insurreição declarada e
ampla. Dessa forma, minimiza e desconsidera outras formas de
resistência da população negra, e mesmo outros meios de pressão
sobre a questão da emancipação escrava.
Conforme o que foi dito no início deste capítulo, as fontes
analisadas permitem apenas traçar um quadro limitado sobre
possíveis manifestações culturais afro-americanas e de heranças da
diáspora africana nas Américas – aqui, especificamente, no Caribe
Francês. No entanto, a intenção deste texto foi ressaltar que os
indícios de performances entendidas como “culturais”, tais como
a música, o uso do tambor, a dança e outros festejos e rituais,
talvez possam ser observados, nos processos históricos, também
enquanto formas de atuação, manifestação e percepções políticas e
intelectuais dos afrodescendentes nas colônias francesas,
fomentadas por epistemologias e cosmologias distintas daquelas
de origem europeia.
O fato dos escravos da Martinica transformarem em
canções e batuques – “segundo seus costumes” – suas visões e
revoltas em relação ao sistema colonial e escravista não é nem
mesmo mencionado pelos historiadores que abordam a história da
escravidão nas Antilhas Francesas. Jennings valoriza e destaca a
ação da imprensa abolicionista (JENNINGS, 1992) e sua cultura
letrada, mas está longe de tentar compreender o que significava
nas colônias a cultura oral e as estratégias dos afrodescendentes
escravizados frente ao contexto político, que visivelmente, pelas
fontes comentadas anteriormente, perturbavam os senhores de
escravos. De fato, a ascensão do movimento abolicionista durante
a Monarquia de Julho teve uma importância fundamental, mas
sem as ações e estratégias dos escravos na busca pela liberdade,
209
ainda que não de uma forma organizada e explosiva, como numa
grande insurreição, e a ação de intermediários como os livres de
cor nas colônias e na metrópole, o sistema escravista francês não
teria passado pelo abalo que sofreu. Enquanto os abolicionistas
escreviam e usavam a tribuna, os homens e mulheres escravizados
cantavam e entoavam tambores nos campos de cana e nas ruas das
cidades coloniais, espalhando sua mensagem e manifestando sua
“cultura negra antiescravista”.

Fontes
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1831.
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214
IMAGINAÇÃO AFRICANA E LITERATURA AFRO-
BRASILEIRA: CAMINHOS ENTRECRUZADOS
Túlio Henrique Pereira1
Eliane Marques2

O discurso ocidental e a declaração de identidade


A partir da proposta que nos foi apresentada – produzir
um ensaio em torno do eixo-temático os pensadores africanos e
afro-brasileiros: o surgimento de uma literatura pós-colonial –
decidimos tomar os conceitos de imaginação africana e de
literatura afro-brasileira como alicerces para o fim de esboçar um
entrecruzamento que dê conta, em uma perspectiva histórica, dos
movimentos de criação literária de autoria negra do século XIX ao
XXI, bem como de suas possíveis implicações à concepção
contemporânea dos sujeitos denominados Negros.3

1
Doutor em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia
(UFU). Estágio Pós-Doutoral no Programa de Pós-Graduação em História
do Brasil da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Bolsista
PNPD/CAPES. Teresina – PI – Brasil.
E-mail: tuliohenriquepereira@gmail.com.
2
Graduada em Pedagogia e Direito; Mestre em Direito Público
(Constituição, Direitos Fundamentais e Hermenêutica Jurídica) pela
UNISINOS; Especialista em Constituição, Política e Economia, pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), também trabalha
como Auditora Pública Externa do Tribunal de Contas do Estado do RS. É
poeta, ensaísta, editora e roteirista. Coordenadora da Escola de Poesia;
coordenadora editorial da revista de poesia Ovo da Ema. Publicou, entre
outros, os livros de poesia “Relicário” (2009) e “e se alguém o pano”,
vencedor do Prêmio Açorianos de Literatura 2016, na categoria poema.
Porto Alegre – RS – Brasil. E-mail: anecabral763@hotmail.com.
3
Negros em itálico iniciado com maiúscula se refere aos conceitos
enunciados por Achille Mbembe em A Crítica da Razão Negra.
215
O primeiro conceito, o de imaginação africana, foi
proposto pelo crítico Francis Abiola Irele (2001), e o segundo, o
de literatura afro-brasileira, é defendido especialmente pelo
professor Eduardo de Assis Duarte (2017) na esteira de outros
pensadores que o precederam. O mundo se despedaça, do
nigeriano Chinua Achebe (1959), e Ponciá Vicêncio (2011), da
brasileira Conceição Evaristo, concretizam, de modo
exemplificativo, um e outro conceito.
Além de especificar a origem, as características e as
implicações sociopolíticas dos conceitos referidos, o ensaio se
propõe a evidenciar as consonâncias ideológicas de alguns textos
de autoria negra com o que Achille Mbembe (2014) chama de
“declaração de identidade”, ou seja, um texto segundo (em
contraposição ao texto primeiro) por meio do qual o Negro
formula interrogações relativas ao seu “eu” ao mesmo tempo em
que produz suas próprias respostas.4
O caminho metodológico a que nos cercamos se assenta
na leitura, seleção e interpretação de textos literários e da ciência
histórica, que, a partir do giro linguístico, permite a investigação
do que é literário no texto histórico e do que é histórico no texto
literário, suas produções de sentido, a intencionalidade e a
capacidade de representação político-identitária de sujeitos pelo
viés do pós-colonialismo, o que coloca em discussão as próprias
bases epistemológicas da ciência histórica e os critérios de verdade
e de ficcionalidade de suas narrativas.
As obras escolhidas, diversas quanto à autoria e à época de
publicação, foram tomadas aqui não enquanto objeto de um

4
Declaração de identidade é grifada com itálico em atenção ao conceito
desenvolvido por Achille Mbembe, assim como outros termos em destaque
ao longo do texto.
216
estudo que se propõe à comparação do contexto de suas
temporalidades, mas sim na perspectiva de que conjuntamente,
sob o prisma da produção de sentido alegórico da imagem e
representação dos sujeitos, caminham em direção a significações
que enunciam o movimento histórico de formulação e possível
consolidação do texto segundo antes referido.
Não podemos falar de texto segundo sem mencionar o
que Achille Mbembe chama de consciência ocidental do Negro,
ou seja, o texto primeiro, produzido, repetido e constantemente
consolidado pelo colonizador, pelos missionários, pelos viajantes,
pelos exploradores e pelos arautos das pseudociências, que se
encarregaram de inventar o Negro. Ao responder a pergunta
“Quem é ele”, esse que não é idêntico a mim mesmo, o europeu
afirmou e fez ecoar a afirmação de que ele – o Negro - só poderia
ser um “anormal” (MBEMBE, 2014, p. 58).
Ainda no sentido do texto primeiro, ao refutar a afirmação
de O. Mannoni de que o malgaxe sofreria de um complexo de
inferioridade que lhe seria inerente, antes mesmo da situação
colonial, Frantz Fanon assevera que,

se ele é malgaxe, é porque o branco chegou, e se, em


um dado momento da sua história, ele foi levado a se
questionar se era ou não um homem, é que lhe
contestavam sua humanidade. Em outras palavras,
começo a sofrer por não ser branco, na medida que o
homem branco me impõe uma discriminação, faz de
mim um colonizado, me extirpa qualquer valor,
qualquer originalidade, pretende que seja um parasita
no mundo, que é preciso que eu acompanhe o mais
rapidamente possível o mundo branco, que sou uma
besta fera (FANON, 2008, p. 94).
217
E segue ao citar Aimé Césaire,

que meu povo e eu somos um esterco ambulante,


repugnantemente fornecedor de cana macia e de
algodão sedoso, que não tenho nada a fazer no
mundo (CÉSAIRE Apud FANON, 2008, p. 94).

No campo específico da literatura, o prefalado texto


primeiro poderá corresponder ao que Irele denomina de literatura
do exotismo, fornecedora da indicação mais evidente da
necessidade urgente de a Europa colocar a África como o oposto
polar de si mesma para reforçar sua autoafirmação como a fonte
única de valores humanos e espirituais. Diz Irele que,
especialmente por meio de textos constituintes de parte não
desprezível da formação literária de escritores africanos (e
brasileiros, dizemos nós) contemporâneos, a África então fora
projetada no Ocidente tanto imaginativa quanto conceitualmente
como aquilo que ele chama de o local da negação (IRELE, 2001).
A esse texto primeiro, afirma Mbembe, responde um texto
segundo, simultaneamente gesto de autodeterminação, modo de
presença em si, olhar interior e utopia crítica (MBEMBE, 2014,
p. 58), que se constitui a partir de outra categoria de interrogações
feitas na primeira pessoa do singular “Quem sou eu – serei isso
que eles dizem de mim? Será verdade que não sou nada a não ser
isto?” (MBEMBE, 2014, p. 58).
Mbembe postula que

se a consciência ocidental do Negro é um julgamento


de identidade, o texto segundo será, pelo contrário,
uma declaração de identidade, por meio da qual o
218
Negro diz de si mesmo que é aquilo que não foi
apreendido, aquele que não está onde se diz estar, e
muito menos onde o procuramos, mas antes no lugar
onde não é pensado (MBEMBE, 2014, p. 59 – grifos
do autor).

Assim, ao refletirmos acerca da identidade negra


incorremos na questão dos discursos históricos, especialmente
quando lançamos o olhar sobre a ideia do Negro na literatura, que
envolve a construção de sujeitos múltiplos e identidades variadas.
O sujeito e suas identidades parecem se estabelecer sobre uma
paradoxal duplicidade: “a identidade é o determinado – ou o
conhecido/consciente, mas igualmente o indeterminado, o ex
(fora, por-se fora) istir (estar/estabilidade) – jogo que leva o
homem a ex-istir/in-sistir” (FRANCISCO, 2000, p. 124).
Desse modo, encontramo-nos diante da problemática do
“enquadramento do ‘ser individual’ que deriva da constituição da
própria sociedade e de seus quadros institucionais, por exemplo, a
memória” (SANDES, 2004, p. 17), que nos serve para construir
uma história em que sua modernização/atualização refaz o sentido
regional e nacional. Efetivamente, a historiografia em torno da
construção de uma imagem do negro a ser investigada por meio
da literatura indica a análise, verificação, descrição, construção e
reconstrução de discursos sobre a crítica interna e externa de
documentos que valorizam sua “intencionalidade inconsciente”,
seja como se constitui a memória para Adam Schaff (1986, p.
281) ou na representatividade social da memória na história,
assim compreendida não somente por Pierre Nora (1981), mas,
também, por Jacques Le Goff (2003).
A declaração de identidade no campo literário, pensada
em diálogo com a crítica e o pensamento histórico evidencia não
219
apenas a forma como a literatura se posiciona diante do racismo,
mas também como o transforma em material de fruição estética,
como são exemplos o movimento da negritude desencadeado na
França com o lançamento das revistas Légitime Défense (1932) e
L’étudiant Noir (1934) e o Harlem Renaissance, iniciado em
1920 nos Estados Unidos da América.
Ao escreverem sobre a importância da diáspora negra,
tanto Fanon (2008) quanto Stuart Hall (2011) nos convidam a
pensar sobre os conflitos coloniais a que foram submetidos
africanos e antilhanos, bem como sua relação identitária e
fragmentada com a França e com a Grã-Bretanha. As migrações,
os assentamentos e a configuração de uma cultura originária fora
da terra natal propõem a concepção da diáspora, especialmente
quando esse deslocamento forçado pressupõe a necessidade de
significar de outros modos os sentidos de mundo.
E é nesse processo de pensar comunidades imaginadas que
nos voltamos para a produção de uma literatura cujos sentidos da
cultura e da história determinam lugares e representações para os
grupos descentrados, de modo que esses possam ressignificar suas
existências a partir da produção de novos lugares de
pertencimento que os possibilitem se manter em rede através de
dispositivos que os reconectam por meio da memória.
Compreendemos a memória na perspectiva do filósofo
Maurice Halbwachs (1990), de modo que aproximamos a sua
concepção da memória coletiva ao pensamento de Fanon, ao
considerar que o inconsciente coletivo se trata da consequência da
imposição cultural irrefletida, um esquema do inconsciente que
instaura a dúvida no consciente negro da diáspora ou das colônias
(FANON, 2008, p. 162).
À luz dessa concepção mnemônica é que nos propomos a
um breve percurso remissivo às evidências do crítico literário
220
Francis Abiola Irele, do filósofo Achille Mbembe, e dos
romancistas Chinua Achebe, Ngũgĩ wa Thiong'o, Scholastique
Mukasonga, na busca pela imagem e crítica construída de dentro
da África, e posteriormente, utilizamos do mesmo recurso para
pensarmos a produção do saber em torno dos negros no Brasil, a
partir de estudos precursores, como os dos tradutores e ensaístas
Gregory Rabassa e Raymond S. Sayers, e dos críticos e acadêmicos
Roger Bastide, Zilá Bernd e Eduardo de Assis Duarte.

A imaginação como marca das literaturas africanas


No livro The African Imagination (Literature in Africa
and The Black Diaspora) (2001) traduzido livremente por nós
como Imaginação africana, de autoria de Francis Abiola Irele ―
ainda inédito no Brasil –, o crítico literário Irele nos conta que
durante seus dias de graduação no final dos anos de 1950, na
University College, em Ibadan, quando a Nigéria era ainda
colônia britânica, foi montado no campus a ópera A Flauta
Mágica de Mozart, apresentada, como parte dos grandes eventos
anuais daquela universidade. Na ocasião, a escolha desta peça
teatral se deu porque a esposa de um oficial inglês na guarnição
militar estacionada em Ibadan no ano de 1958, era uma soprano
com a capacidade vocal de assumir o papel de Rainha da Noite.
Ao crítico literário, na época estudante universitário, Irele
atribuíram o papel de Monostatos, o mouro lascivo ao serviço da
Rainha da Noite, aquele que atormenta a heroína, Pamina, até
que finalmente seja expulso, com sua senhora, por Sarastro, o alto
sacerdote de Osiris (IRELE, 2001).
Foi possível perceber no ensaio de Irele, a forma como ele
observa que não lhe ocorrera, naquele tempo, interpretar
Monostatos com qualquer tipo de circunspecção, pois não fora

221
senão anos depois que se tornara ciente da imagem estereotipada e
depreciativa do Negro que o papel veiculava (IRELE, 2001).
De acordo com Abiola Irele, o episódio da montagem da
peça de Mozart, em que ele interpretou Monostatos, ilustrou o
poder insidioso que certas obras de arte têm de obscurecer com
seu brilho as zonas morais sobre as quais incidem, como Voyage
au bout de la nuit, de Céline, em que o valor estético gerado pelo
virtuosismo da escrita se torna inseparável da natureza e do
sentido extratextual das vituperações aí proferidas (IRELE, 2001).
Ademais tal episódio, nos termos em que posto por Abiola Irele,
expõe em alto relevo a ironia fundamental da educação colonial,
cujas premissas ideológicas obrigaram seus agentes a terem acesso
a textos, imagens e outros modos de discurso e representação que
desvalorizam a humanidade da gente colonizada, como parte do
esforço para estabelecer a autoridade cultural e moral da raça
colonizadora (IRELE, 2001).
De igual forma, Chinua Achebe por diversas vezes
mencionou que sua literatura fora instada pela figura da África,
em especial de seus habitantes, que encontrava nos romances de
sua juventude, admitindo que nessas leituras se identificava com
os europeus, de caráter sólido e intelecto desenvolvido, e detestava
aquelas figuras instintivas e sem valores morais que encontrava
nos africanos, até o dia em que percebeu que essas figuras
desprezíveis correspondiam à caracterização que os autores
europeus faziam do povo ao qual ele pertencia. A resposta de
Achebe a Joseph Conrad e a seu Heart of Darkness, por exemplo,
veio na forma do romance Things Fall Apart (ESTADÃO, 2018).
Ngũgĩ wa Thiong'o no livro Moving the Centre: The
Struggle for Cultural Freedom (1993) observa que, no imaginário
ocidental a África se encontra tripartida entre a África do homem
de negócios ou do caçador de lucros; a África do caçador de
222
prazeres ou do caçador de lucro de férias e a África da ficção
europeia, em que Karen Blixen com seu cozinheiro africano
associado a um cão se destacaria por seu racismo-humanista.
Já Scholastique Mukasonga, em Nossa Senhora do Nilo,
narra que no Liceu Nossa Senhora do Nilo havia apenas duas
professoras ruandesas, a irmã Lydwine, de história-e-geografia, e a
professora de kinyarwanda; as demais eram europeias (belgas ou
francesas). Segundo a irmã Lydwine a história se referia à Europa
e a geografia à África. Assim, nas aulas de história havia apenas
fortalezas, calabouços, seteiras de muralhas, mata-cães, pontes-
levadiças e os cavaleiros abençoados pelo papa partindo em
cruzada para libertar Jerusalém e massacrar os sarracenos. Para a
África, então, não havia história porque os africanos não sabiam
nem ler e nem escrever antes de os missionários levarem a escola
até lá. Além disso, os europeus teriam descoberto a África e a
inserido na sua história (MUKASONGA, 2017, p. 42 e 43).
A partir dessas evidências relativas à representação e à
produção de sentidos acerca do Negro em textos sobre a África
recorremos a afirmação de Frantz Fanon de que a literatura oficial
criou muitas histórias sobre pretos que o concebem do ponto de
vista puramente biológico-sexual em detrimento de uma
concepção intelectual (saber formal) (FANON, 2008, p. 143).
Para Fanon, nos países negros ou naqueles em que houve
colonização europeia fora do continente africano, há a
demarcação do lugar inferior do negro de modo institucional e
inconsciente em relação ao branco, um lugar que determina a
visibilidade da sua pele preta, do seu corpo preto, da sua educação
preta, do seu riso e dentes de preto, da sua língua de preto e do
seu sexo de preto. Sendo assim, para a literatura oficial “qualquer
aquisição intelectual exige uma perda do potencial sexual”
(FANON, 2008, p. 143), e nessa perda o preto se torna castrado
223
e consequentemente perde sua importância no meio social
branco. Lembremo-nos do exemplo de Irele ao receber o papel de
Monostatos, o mouro lascivo.
Fanon nos ajuda a entender que esses mundos
imaginados, responsáveis pela representação maciça de
estereótipos de negros, são responsáveis pela catharsis coletiva
(FANON, 2008, p. 130), “são os jornais escritos pelos brancos,
destinados às crianças brancas [...] devorados pelos jovens nativos
[nos quais] o Lobo, o Diabo, o Gênio do Mal, o Mal, o Selvagem,
são sempre representados por um preto ou índio” (FANON,
2008, p. 130-131).
A partir dessa estereotipagem se estabelece um cânone, ou
seja, uma produção literária identificada por pares com o caráter
de oficialidade, de modo que, em seu conjunto de autores e
sentidos, sempre trará o português/francês/inglês mal escrito ou
mal falado, porque esse mal/erro seria inerente ao Negro. Essas
marcas se consolidam com tanta presteza até o ponto de não se
fazerem mais necessárias as menções a cor da pele de uma
personagem senão representá-la na forma escrita da sua língua
falada.
Autores como Chinua Achebe e Wole Soyinka escreveram
romances e dramas teatrais que quebraram com esse paradigma,
pois se valeram da língua inglesa para inscrever na história da
literatura personagens africanos em sua plena condição de gente e
não de máscaras. Assim se apresenta a questão da competência
dual em uma língua africana e outra europeia, indicativa da
situação de diglossia na qual eles estão envolvidos, assinala Irele.
Esses escritores fornecem a evidência da tensa área de significação
entre a tradição de expressão imaginativa e a tradição escrita
europeia, um terreno através do qual cada escritor africano tem

224
que encontrar um meio expressivo para navegar em seus próprios
objetivos.
Francis Abiola Irele na introdução do livro The African
Imagination (Literature in Africa and The Black Diaspora)
informa que o objetivo do seu trabalho é o de explorar o terreno
da literatura africana na mais ampla acepção do termo, bem como
chegar a um sentido de suas possíveis fronteiras na própria África
e no que pode ser percebido como sua extensão no Novo Mundo.
O crítico observa que seu uso de imaginação africana se dá como
referência a uma conjunção de impulsos, assentados tanto na
experiência como em referências, ambas culturais e comuns, que
receberam uma expressão unificada em um corpo de textos
literários.
Nesses termos, Irele destaca que a literatura africana existe
e tem sentido primordialmente no contexto de um corpus
reconhecível de textos e obras de autores africanos, situado em
relação a uma experiência global que abarca os quadros de
referência pré e pós-colonial. Tal corpus, de forma diversa do que
ocorre com o cânone oficializado, é especialmente marcado pelas
disjunções entre língua e literatura e entre língua e nação (a não
ser em alguns casos excepcionais, como o da Somália).
Assim, tratando-se de um conjunto multilinguístico,
melhor seria falarmos em literaturas africanas, as quais podem ser
organizadas em três categorias amplas: a literatura oral tradicional,
a nova literatura escrita em línguas africanas e a literatura escrita
em línguas não originárias da África, em particular, o inglês, o
francês e o português.
O termo imaginação, conforme assinala Irele, representa
as áreas de articulação e os níveis de representação e criação em
relação à África, quer como uma referência imediata quer como
um modo de conexão para o que cada vez mais tem sido aceito no
225
Novo Mundo como um recurso étnico e cultural e que ele
considera (a imagem da África) como a figura de um engajamento
com o mundo em/e pela língua a partir de uma perspectiva
histórica, étnica e cultural abrangente.
A área primordial do que o crítico denomina de
imaginação africana é representada pelo corpo de literatura
produzida por, dentro e para as sociedades tradicionais e culturas
indígenas da África, constitutiva de uma parte essencial do que é
geralmente considerada a sua tradição oral. Irele observa que se
trata de uma literatura contemporânea, produzida de várias
formas e atualizada em seus temas e referências e, especialmente,
integrante das convenções escritas adaptadas da tradição letrada
da Europa. Além disso, diz ele, a tradição oral começou a
empregar novos meios tecnológicos de produção e performance,
de modo que discos, fitas cassetes, filmes e vídeos foram usados
em diversos países africanos para a transmissão da literatura
tradicional em sua forma de expressão oral/aural original.
No que se refere à oralidade na África, apesar da
continuidade entre eles, pois seria difícil riscar uma linha exata
entre os usos linguísticos denotativo e conotativo em sociedades
orais, Irele propõe um esquema composto por três níveis: o nível
da comunicação comum dado pelo uso denotativo da linguagem;
o nível dos usos retóricos da linguagem em formas que não
necessariamente reservadas a situações especiais, mas presentes no
discurso africano tradicional por meio dos provérbios e aforismos
e que fornecem o que se poderia chamar de um enquadramento
“formulaico” para atos de fala, modos discursivos e, de fato, a
estrutura do pensamento e, por fim, o nível estritamente literário,
que se preocupa com os usos imaginativos da linguagem e a eles é
reservado.

226
Nesse último nível se encontra o que é aceito em muitas
sociedades africanas como um corpo de textos consagrados,
entendendo-se como tais não apenas uma sequência de
enunciações formadoras de um padrão de discurso, mas também a
natureza desses espécimes na tradição oral, dotados do mesmo
caráter de literalidade dos textos escritos, ou seja, metáforas,
paralelismo, anáfora, parataxe, tropos e outros dessa natureza que
criam uma segunda ordem de linguagem com palavras adiantadas,
organizadas de modos altamente estilizados, formadoras,
portanto, de uma carga especial de sentido. Ainda se encontra
como característica desse nível estritamente literário da tradição
oral, o papel especial desempenhado por valores sônicos
(onomatopeia e ideofones), especialmente os padrões tonais que
dependem, para seu efeito, do imediatismo da realização peculiar
às formas orais.
Assim, no nível estritamente literário da oralidade africana
temos um corpo de textos que constitui não apenas um repertório
com convenções estabelecidas de composição, performance e
transmissão, como no caso das nênias akan ou os nomes de louvor
familiares (oríkì) dos iorubás, mas também, e com certa
frequência, um cânone, como os poemas heroicos e de louvores
dos zulus (izibongo) e Basotho, a poesia cortesã de Ruanda, os
grandes épicos Sundiata, Da Monzon, Mwindo, e Ozidi e os
corpus de Ifá dos iorubás.
Para Irele, a literatura oral representa o intertexto básico
da imaginação africana, pois funciona como a matriz de um
modo de discurso africano no qual o griot é sua corporificação em
todos os sentidos da palavra.
A nova literatura escrita em línguas africanas evidencia a
função que a oralidade ainda cumpre na África contemporânea.
Todavia, não se trata simplesmente de usar material da tradição
227
oral, mas essencialmente de representá-lo por meio da mídia
impressa para lhe conferir maior circulação bem como expressão
nova a formas estruturadas nessas próprias línguas, o que não
impossibilita modificação das formas tradicionais, pelo contrário,
tal fato é inevitável dado o contexto de realização da literatura,
marcada pela assimilação de modos e convenções da cultura
letrada ocidental.
Para Irele, são exemplos desse movimento Okot p’Bitek,
cujo poema Song of Lawino foi escrito em acholi e depois
traduzido ao inglês pelo autor; Mazisi Kunene, cujos poemas
zulus complementam seu trabalho no inglês; Charles Mungoshi,
que criou ficção tanto em xona quanto em inglês como expressões
do mesmo impulso criativo e, especialmente Ngugi wa Thiong’o,
que foi do inglês ao quicuio e que buscou em Devil on the Cross
uma representação direta do modo oral em um meio escrito.
A relação entre oralidade e cultura letrada não é recente,
pois a tradição escrita mais antiga na África remonta à introdução
do Islã nas suas regiões leste e oeste no período correspondente à
Idade Média europeia, o que determinou uma linha específica de
desenvolvimento associada ao termo Afro-árabe. As literaturas em
suaíli, somali e hauçá, nas quais o árabe foi até recentemente
empregado para a escrita da língua africana, fornecem os
exemplos primeiros, e aí já se encontra um rompimento radical
em relação à matriz indígena, embora tanto o hauçá quanto o
suaíli frequentemente remontem a uma tradição mais antiga de
oralidade, com poemas escritos e depois declamados ou cantados
em performances ao vivo.
Quanto à literatura africana escrita em línguas europeias,
Irele nos diz que há um sentido em se afirmar que tal modalidade
começou com a escrita europeia na/e sobre a África, pois o
europeu não apenas iniciou o discurso moderno no continente,
228
mas também estabeleceu os termos em que tal discurso alcançou
os dias de hoje.
O traço comum dessa categoria de literatura, que serviu de
base para um discurso hegemônico e nas quais se incluem Heart
of Darkness, de Joseph Conrad, e The Heart of the Matter, de
Graham Greene, é a ausência de simpatia imaginativa com o
continente ou seu povo como portadores de cultura (e de história,
como diria Mukasonga), um fato que o escritor colono ou nega
ou ignora. Além do significado ideológico dessa literatura como
texto primeiro, Irele afirma que, por sua própria natureza, ela é
incapaz de estabelecer uma relação com a imaginação africana.
Uma possível ressalva a tal observação, considerada a
língua inglesa, diria respeito ao trabalho do grupo de escritores
brancos sul-africanos para os quais o assunto “África” vem em
foco imaginativo direto, tais como Alan Paton, Nadine Gordimer,
Athol Fugard, Andre Bink, J. M. Coetzee e Breyten Breytenbach
e, antes deles, Olive Schreiner e a primeira Doris Lessing, cujo
envolvimento com a experiência da comunidade negra em relação
à divisão racial lhes conferiria distinta qualidade de referência e os
separaria dos escritores mais antigos como Roy Campbell e
William Plomer.
De retorno à moderna literatura escrita em línguas
europeias por africanos, Irele assinala que o seu traço
impressionante é a notável preocupação não apenas com a
experiência africana como o assunto central de suas obras, mas
também com o problema de uma reflexão apropriada e adequada
dessa experiência, que envolve, em termos formais, um retrabalho
de seus meios de expressão para esse propósito e, especialmente, o
estabelecimento de um modo imaginativo africano derivado da
tradição oral, junto com a representação de um universo africano.

229
Essa aparente dupla relação formal ― às convenções
europeias de expressão letrada e à tradição indígena da oralidade
― talvez seja melhor caracterizada como um esforço para
reintegrar uma descontinuidade de experiência em uma nova
consciência e imaginação. Irele destaca que para o moderno
escritor africano, não foi necessário tentar chegar a um acordo
com isso, pois, na nova literatura o que se encontra é uma
constante interrogação do “eu” e da comunidade original à qual se
sente que o “eu” se relaciona de um modo fundamental. Essa
disjunção entre a África, considerada como referência
compreensiva e imagem de experiência, as línguas europeias e as
convenções literárias associadas com elas criam tensões e
ambiguidades reproduzidas pelos escritores africanos na própria
forma de expressão que utilizam. A questão, assim, diz respeito a
como criar uma harmonia formal entre expressão e referência
objetiva dessa expressão, ou seja, o problema do escritor africano
que emprega uma língua europeia é como escrever uma cultura
oral.
Entre os escritores que tentaram enfrentar essa questão,
podemos citar Amos Tutuola, que procedeu à recriação
espontânea em inglês das estruturas da língua iorubá. Irele afirma
que o caso de Amos Tutuola é notável a esse respeito, já que seus
romances seriam uma extensão do trabalho de D. O. Fagunwa em
iorubá e, portanto, representariam um movimento contínuo do
indígena ao europeu. No caso de escritores como Gabriel Okara
(The Voice) e Ahmadou Korouma (Les soleils des
indépendances), o processo consistiria num remodelamento
consciente da língua europeia com o objetivo de reproduzir os
padrões de fala e processos de pensamento de personagens
ficcionais.

230
O precedente para essa abordagem que Irele chama de
transposição (recuperação de material e formas africanos no
padrão da língua europeia) foi estabelecido pelo escritor caribenho
René Maran, com seus Batouala e Le livre de la brousse, todavia a
obra notável que inaugura a literatura africana moderna como um
modo de transposição, segue sendo, ainda para Irele, Things Fall
Apart, de Chinua Achebe. A sua significância inovadora não
apenas deriva da integração da retórica da fala africana no
romance ocidental convencional, mas também a relação formal da
obra com as tradições africana e europeia. Uma primeira
indicação da abordagem de Achebe ao problema é oferecida por
sua incorporação de contos populares como alegorias dentro do
desenvolvimento narrativo.
Na poesia africana mais conhecida entre nós, exemplo de
transposição é a de Léopold Sédar Senghor, cujas cadências da
poesia oral subjazem ao fluxo de suas linhas processionais em uma
forma de verso que é, ao mesmo tempo, uma celebração elegíaca e
heroica de um continente e um povo inteiro.
Para Irele a mais significativa transposição até agora talvez
tenha sido manejada por Soyinka em Death and the King’s
Horseman, peça teatral que progride de uma realização imediata
da oralidade como forma expressiva de um modo de vida total
para o que só pode ser descrito como a trágica perda da função
empoderadora da palavra no universo africano. O interesse
circunstancial da peça se acha sobre seu tema do encontro entre o
ethos tradicional e os valores ocidentais, entre um imperativo
metafísico e outro histórico. Mas é a apresentação desse encontro
que dá força ao tema e significância à própria obra, pois encena na
linguagem a forma do predicamento existencial que apresenta o
dilema envolvido na descentralização progressiva da psique e
imaginação africana em uma nova dispensação que se impõe sobre
231
o mundo africano. Parte da significância de Death and the King’s
Horseman é a demonstração de que esse processo se inicia com a
linguagem.
Em conclusão, para além de sua função na tradição
africana, a oralidade também serve como um paradigma para a
literatura escrita nas línguas europeias, uma literatura cuja marca
distintiva é a busca pela condição de expressão oral mesmo dentro
das fronteiras estabelecidas pelas convenções literárias ocidentais.

Identificadores da literatura afro-brasileira


Com exceção de alguns Sermões (século XVII) do Padre
Antônio Vieira, nos quais ele denunciava atrocidades cometidas
contra os Negros e indígenas no Brasil dos quinhentos ao início
dos oitocentos, apareceram poucas manifestações literárias com a
temática da liberdade e do Negro. Quando essas se dão a
conhecer, o Negro é fundido ao escravizado, de modo que um
passa a ser sinônimo do outro, quer dizer, para a literatura
nacional não existia vida negra além da vida escravizada, inexistia
o Negro sem o seu senhor.
Voz diferenciada nesse panorama é a do poeta e músico
Domingos Caldas Barbosa (1738-1800) que, filiado ao
Arcadismo, inseriu nessa forma de poesia recursos da “fala
brasileira” (PEREIRA, 2018, s/p), com aspectos do vocabulário
mestiço da colônia. Caldas Barbosa, autor de Epitalâmio (1777)
e Viola de Lereno (1798), no dizer de Edimilson de Almeida
Pereira, iniciou a referência a autores afro-brasileiros na literatura
nacional (PEREIRA, 2018, s/p).
Os românticos brasileiros quase em nada divergiram do
paradigma do negro monstro e fóssil, pois seus textos indicam
terem celebrado uma espécie de pacto com o grupo hegemônico a
que pertenciam (a burguesia e os grandes proprietários de terra e
232
de gente), de modo que sua tentativa de invenção de uma
identidade nacional por meio da literatura correspondeu à busca
de europeizar até mesmo, e quem sabe principalmente, o
indígena, numa espécie daquilo que consideramos amerindian-
face,5 já que o negro, ao que se sabe até o ponto atual das
investigações, dificilmente fora objeto de enunciação e, quando
enunciado, o fora na condição mesma de um objeto (RISÉRIO,
1993).
Assim, o romantismo brasileiro se fixou inicialmente, com
quase exclusividade, na figura do indígena ― um Bug-Jargal mais
palatável ― numa fusão entre o exótico e o autóctone. A
identificação entre o indígena e o nacional, segundo Risério, teria
se dado por dois motivos estratégicos: o indígena fora encarado
como antecessor do projeto de independência, já que reagira ao
domínio de Portugal e estava distante dos centros de poder para
representar perigo; por outro lado, o Negro não poderia
simbolizar um passado anterior à colonização portuguesa no
Brasil, pelo contrário, representava uma séria ameaça à ordem
escravocrata, o que a casa-grande temia, especialmente depois da
revolução dos escravizados no Haiti (1791-1804) e da Revolta dos
Malês, na Bahia (1835) (RISÉRIO, 1993).
Risério observa que o Discurso sobre a História da
Literatura Brasileira, em que Gonçalves de Magalhães faz menção
ao texto ameríndio, foi escrito em 1836, um ano após a Revolta
dos Malês, pois, ao que parece, seria pouco aconselhável explorar
a questão do Negro. Não por outro motivo o autor entende que
os românticos teriam deixado de explorar de forma sistemática o

5
Construímos essa ideia/conceito para que seja melhor compreendida como
o equivalente a black-face, mas relacionada aos indígenas do Brasil no
sentido de sua caracterização subjetiva.
233
romance Bug-Jargal em que Victor Hugo tomaria partido dos
revolucionários haitianos contra os senhores franceses (RISÉRIO,
1993).
O antropólogo Antônio Risério considera que o
apagamento do Negro na literatura brasileira ou seu aparecimento
como figura secundária, rara e deformada, adviria (a) do fato de
que a energia contestatória se concentrava na disputa em torno do
tráfico e não propriamente na vida escravizada6 e (b) da lógica
interna da série literária: a formação europeia dos escritores, sua
pertinência histórica a modelos literários específicos e ao seu
receio de serem vistos como eivados de casta, quer dizer,
maculados de sangue negro.
Ao que parece a situação se altera um pouco quando no
plano político o escravizado passa a ser matéria interna
(RISÉRIO, 1993), especialmente com a edição do Bill Aberdeen
(1845), que concedia ao almirantado inglês o direito de aprisionar
e de julgar, como piratas, os comandantes dos navios brasileiros

6
Quanto ao fato de a energia contestatória se concentrar na disputa em
torno do tráfico, Raymond Sayers (1958) assinala que boa parte da
literatura dos séculos XIX e XX no Brasil é referenciada pelos ideais e
acontecimentos relativos ao abolicionismo (iniciado no século XVIII). Tais
acontecimentos atingiram a prosa periódica, a poesia e o romance também
do século XVIII por intermédio de autores que se destacaram como
precursores desse idealismo, tais como Frei Gaspar da Madre de Deus
(1715-1800), Hipólito da Costa (1774-1823), João Severino Maciel da
Costa (1769-1832), marquês de Queluz, além de José Bonifácio de
Andrade e Silva (1765-1838); Evaristo da Veiga (1799-1837); Maciel
Monteiro (1804-1868); José da Natividade Saldanha (1795-1830); José
Gonçalves de Magalhães (1811-1882) e Antônio Gonçalves Teixeira e
Sousa (1812-1881).
234
que transportassem para as Américas pessoas capturadas no
continente africano.
Então, no segundo quartel do século XIX, a temática da
escravidão começou a ganhar relativo espaço na literatura
nacional, especialmente com o poeta maranhense Gonçalves Dias
(1823-1864) e suas obras Meditação (1846), A escrava (1846) e A
Tempestade (1848). Gonçalves Dias era filho de uma escravizada
e sua obra considerada de maior relevância se situa no campo do
indianismo (PEREIRA, 2018, s/p).
Embora existam diferenças estruturais entre elas, O navio
negreiro (1869) de Castro Alves e As vítimas-algozes (1869) de
Joaquim Manoel de Macedo são exemplos de como o Negro era
concebido naquela época e que não-lugar a literatura lhe
concedia.
Porém, bem diferente da forma adotada por seus
contemporâneos românticos, Maria Firmina dos Reis, com Úrsula
(1859), mais do que dar voz aos escravizados, ouve e registra o
que eles têm a dizer, pois também se reconhece num lugar à
margem e, como é possível perceber na tradição do Atlântico
Negro (2012) por Paul Gilroy, confere uma forma estética ao
sofrimento que recolhe. Observamos que a autora Maria Firmina
se recusa a endossar o modelo do Negro escravizado rebelde e, ao
mesmo tempo, generoso, tal como o Bug Jargal, bem como
promove um giro de 360º relativamente a obras românticas tais
como O Guarani (1857) de José de Alencar e Simá (1857) de
Lourenço da Silva Araújo e Amazonas.
Eduardo de Assis Duarte ao citar Luísa Lobo concorda
quando a autora defende que a literatura negra no Brasil se inicia
quando o negro passa de objeto da escrita a sujeito do fazer
literário, em face do que Maria Firmina dos Reis seria a pioneira
dessa tradição literária, com o romance Úrsula (LOBO Apud
235
DUARTE, 2017, p. 201). Eduardo de Assis Duarte7 corrobora tal
afirmação ao dizer que a prefalada escritora teria publicado o
primeiro romance do que se concebe por literatura afro-brasileira
(DUARTE, 2017, p. 201). Por outro lado, também em 1859,
Luiz Gama publica Primeiras Trovas Burlescas, que, conforme
Ligia Ferreira, foi a primeira obra poética em que um escritor
assume sua negritude (FERREIRA Apud DUARTE, 2017, p.
201).
Do ponto de vista temporal, a literatura afro-brasileira se
estenderia de Domingos Caldas Barbosa (século XVIII) à
contemporaneidade. Duarte considera que a publicação dos
Cadernos Negros (1978) teria contribuído em muito para a
configuração discursiva desse conceito, caracterizado de modo
predominante pelo protesto contra o racismo, na linha da
tradição militante do movimento negro, aliado à tematização do
negro, individual e coletivamente, sua inserção social, memória
cultural e à busca de um público afrodescendente (DUARTE,
2017, p. 201).
O autor ainda entende que da militância e celebração
identitária propugnada nos Cadernos Negros8 ao negrismo

7
O ensaísta, professor e pesquisador Eduardo de Assis Duarte organizou os
quatro volumes da obra Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia
crítica (2011) em que apresenta apanhado da larga produção literária que se
inicia na colônia e segue até a contemporaneidade, produções essas que,
mesmo fora da perspectiva canônica, são tomadas pelo valor estético,
histórico, sociocultural e político na atualidade.
8
Cuti, Miriam Alves e Conceição Evaristo tiveram vários textos literários
publicados nos Cadernos Negros.
236
modernista9 descomprometido e tendente ao exótico, passando
por escritos distantes tanto de uma postura como de outra10, a
literatura negra é diversa, o que, no mínimo, enfraqueceria e
limitaria a eficácia do conceito11 como operador teórico e crítico,
em face do que ele propõe o conceito de literatura afro-brasileira,
pois o termo afro-brasileiro, por sua própria configuração
semântica, remeteria ao processo de hibridação étnica e
linguística, religiosa e cultural em curso no Brasil desde a chegada
dos primeiros africanos (DUARTE, 2017).
Eduardo Duarte entende que tal conceito não possuiria
um caráter essencialista, pois caracterizado por

9
Jorge de Lima, Raul Bopp, Menotti Del Pichia, Cassiano Ricardo e os
escritores do grupo mineiro Leite Criôlo, entre outros são exemplos de
autores filiados ao negrismo modernista.
10
Como exemplos de escritores e poetas menos comprometidos como uma
linha militante, Duarte cita Edimilson de Almeida Pereira, Ronald
Augusto, Muniz Sodré, Nei Lopes, Joel Rufino dos Santos, Júlio Emílio
Braz, Rogério Andrade Barbosa e Heloisa Pires de Lima.
11
Além dos precursores (Bastide, Sayers e Rabassa), o autor ainda cita
Benedita Gouveia, que conferiria à literatura negra um conceito que não
consideraria o pertencimento étnico e a perspectiva autoral; Domício
Proença Filho (2004), que buscaria uma solução conciliatória ao assinalar a
existência de uma literatura negra em sentido estrito (aquela feita por
negros ou afrodescendentes) e outra em sentido amplo (aquela feita por
quem quer que seja, desde que reveladora de dimensões peculiares aos
negros ou aos descendentes de negros). Já Zilá Bernd (1987, 1988)
compartilharia a posição conciliadora de Proença Filho. Lobo defenderia
que o conceito não deve incluir a produção de autores brancos, e,
juntamente com Brookshaw (1983), entende ser tal literatura apenas aquela
“escrita por negros” (DUARTE, 2017).

237
uma formulação mais elástica (e mais produtiva), a
abarcar tanto a assunção explícita de um sujeito
étnico – que se faz presente numa série que vai de
Luiz Gama a Cuti, passando pelo “negro ou mulato,
como queiram”, de Lima Barreto –, quanto o
dissimulado lugar de enunciação que abriga Caldas
Barbosa, Machado, Firmina, Cruz e Sousa,
Patrocínio, Paula Brito, Gonçalves Crespo e tantos
mais (DUARTE, 2017, p. 201-202).

O autor ainda assinala que tal conceito estaria presente


nos estudos literários no Brasil desde o livro pioneiro de Roger
Bastide (1943), nas reflexões de Moema Augel e de Luiza Lobo
(1993, 2007), sendo adotado por praticamente todos os que
trabalham com a questão atualmente, inclusive pelo
Quilombhoje, nos subtítulos dos Cadernos Negros ou no volume
teórico-crítico denominado Reflexões sobre a literatura afro-
brasileira (1985).
Eduardo de Assis Duarte cita como voz dissidente a do
poeta e professor Edimilson de Almeida Pereira que proporia a
adoção de um “critério pluralista”, a partir de uma “orientação
dialética” que demonstrasse a literatura afro-brasileira como uma
das faces da literatura nacional, pois haveria o risco de os critérios
étnico e temático integrantes do conceito de literatura afro-
brasileira funcionarem como “censura prévia” aos autores
(DUARTE, 2017, p. 202).
Ao alertar que literatura afro-brasileira é um conceito em
construção, Duarte explicita os elementos que a identificariam,
nesses termos,

238
uma voz autoral afrodescendente, explícita ou não no
discurso; temas afro-brasileiros; construções
linguísticas marcadas por uma afro-brasilidade de
tom, ritmo, sintaxe ou sentido; um projeto de
transitividade discursiva, explícito ou não, com vistas
ao universo recepcional; mas, sobretudo, um ponto
de vista ou lugar de enunciação política e
culturalmente identificado à afrodescendência, como
fim e começo (DUARTE, 2017, p. 202).

Quanto ao tema, Duarte assinala que deverá ser tomado


em sua interação com outros identificadores, tais como a autoria e
o ponto de vista, podendo assim, na polêmica que trava com o
discurso colonial, contemplar a história do negro na diáspora, a
denúncia da escravidão, a glorificação de heróis como Zumbi dos
Palmares, as tradições culturais ou religiosas transplantadas para o
novo mundo, com ênfase aos mitos, às lendas, ao imaginário
(geralmente circunscrito à oralidade), aos vínculos com a
ancestralidade, além da história contemporânea (DUARTE,
2017).
Relativo à autoria, Duarte entende que, conjugada ao
ponto de vista, faz-se necessário compreendê-la “não como um
dado ‘exterior’, mas como uma constante discursiva integrada à
materialidade da construção literária” (DUARTE, 2017, p. 205).
Sua relevância decorreria da interação entre escritura e experiência
e a cor da pele seria importante enquanto tradução textual de uma
história própria ou coletiva (DUARTE, 2017).
O ponto de vista indicaria o conjunto de valores nos
quais se assentariam as opções até mesmo vocabulares,
vinculando-se à assunção de uma perspectiva identificada à

239
problemática inerente à vida e às condições de existência do
Negro no Brasil (DUARTE, 2017).
Por fim, no que diz respeito ao público específico,
Eduardo de Assis Duarte afirma que, marcado pela diferença
cultural e pelo anseio de afirmação identitária, esse fator comporia
a “faceta algo utópica do projeto literário afro-brasileiro,
sobretudo a partir de Solano Trindade, Oliveira Silveira e dos
autores contemporâneos” (DUARTE, 2017, p. 213).

À guisa de conclusão: por uma literatura de encruzilhada


A partir das discussões apresentadas entendemos o
conceito de literatura-afro brasileira divergente do conceito de
imaginação africana, especialmente porque foge de uma
concepção essencialista de negro. Enquanto Irele assenta na
tradição oral as marcas dessa literatura, inclusive a escrita em
línguas europeias e destaca o trabalho do escritor africano na
criação tensionada entre dois sentidos de mundo, um da tradição
africana e outro da escrita em língua europeia, Eduardo de Assis
Duarte, especialmente por meio do que entende por ponto de
vista, embora o negue, assenta sua concepção de afro-brasilidade
numa dimensão racialista, que se disfarça sob uma problemática
dimensão étnica e encadeia o autor declarado negro naquilo que
se entende previamente como Negro, ou seja, num discurso
generalista que exclui o sujeito assim nominado até mesmo da
condição de criador, pois, de antemão, já se sabe sobre o que e
como ele escreve ou deverá escrever e qual sua concepção de vida
e de mundo.
Quanto à oralidade, percebemos, na concepção de
literatura afro-brasileira, que ela se apresenta no campo do fator
linguagem como um dos cinco elementos que se articulariam para
o possível enquadramento do autor no conceito em tela, ao
240
mesmo passo que na imaginação africana a oralidade constitui o
ponto nodal, aquilo que amarra o hoje e o ontem, o ancestral e o
contemporâneo, o europeu e o africano.
Desse modo, é possível que exista conexão temática entre
a imaginação africana e a literatura feita no Brasil, especialmente
por alguns autores Negros, ainda que apenas por referência a uma
experiência histórica comum, particularizada, que faz surgir o
sentimento de uma identidade distintiva, da qual poderia emergir
a afirmação de um sentimento específico pelo mundo, que
exigisse uma expressão distinta. Especialmente quanto aos Estados
Unidos e ao Caribe, Irele postula a existência de uma tradição
literária negra com raízes em uma tradição oral em que a narrativa
de escravizados, considerada hoje o texto mestre da expressão
literária afro-americana, teria vindo a ocupar uma posição central
e definidora.
Entendemos, contudo que o elo entre essas narrativas dos
escravizados, e por exemplo a Renascença do Harlem e o
movimento da Negritude de Léon Damas, Aimé Césaire e
Léopold Sédar Senghor (protagonistas da fundação da revista
Légitme Défense - 1932 e L’étudiant Noir – 1934), é questão de
fato histórico, que sugere a emergência da imaginação africana
também na literatura da diáspora.
A partir de então concluímos que o elo entre as narrativas,
todavia, não poderá ser desvinculado de sua dimensão política,
pois, como diz Mbembe, mais do que uma suposta raça ou uma
suposta etnia, Negro é uma palavra que apresenta um laço social
entre as pessoas que perderam o que concebiam por mundo, por
vida e por liberdade. Negro (ou afro-brasileiro) é palavra dotada
de uma dimensão simbólica oriunda de uma estratégia
originariamente revolucionária para derrubar opressões
entrecruzadas, de modo que torná-la um conceito meramente
241
operativo, em que apareceria de forma restrita e limitada como
um igual a si mesmo a esvazia do seu sentido e a empareda no
movimento do texto primeiro, ou seja, um julgamento de
identidade acerca do Negro.
Ao utilizar as considerações da escritora norte-americana
Toni Morrison, Paul Gilroy nos alerta de que enquanto a
burguesia precisava de uma forma de arte para falar de si, das suas
conquistas, dos seus valores, para o fim de se consolidar enquanto
classe, então inventa certo tipo de literatura (o romance), nós, do
Atlântico Negro, tínhamos nossas próprias formas, nosso canto,
nossas danças, nossas histórias e provérbios, ou seja, já tínhamos
inventado a literatura (GILROY, 2012).
Entendemos que a chamada literatura negra ou afro-
brasileira enquanto categoria acadêmica exige ser interpretada
quanto ao próprio sentido da categorização e do conceito sempre
com a atenção voltada ao fato de que se está no campo da
produção escrita, um valor para a sociedade branca, mas nem
sempre um valor para outras sociedades, especialmente algumas
africanas, e que tal categoria (literatura afro-brasileira), ainda que
prenhe de boas intenções, surge no contexto de uma sociedade
racista, onde a produção negra é invariavelmente vista como algo
excepcional, acompanhado com o sinal de menos.
Há uma questão, portanto, relativa a quem é o Negro ao
qual se associa a palavra literatura e outra questão relativa ao
motivo pelo qual ao Negro que produz literatura seja necessário
afirmar que sua literatura é negra, com todos os adereços de
autoria, ponto de vista, tema, linguagem e etc., numa direção de
aprisionamento da explosão subjetiva e de divisão dos autores
Negros em mais negros ou menos negros na medida em que se
aproximem ou se distanciem dos critérios que marcariam a assim
chamada literatura negra ou afro-brasileira.
242
Embora os esforços do Movimento Negro brasileiro para
trocar o sinal de menos da palavra Negro, tal palavra, uma
invenção do escravizador que nós (negros) aceitamos, continua,
em nossa sociedade, a significar o que Mbembe diz em Crítica da
Razão Negra: Negro é ainda uma síntese do monstro e do fóssil,
Negro ainda representa um vínculo social de submissão e um
corpo de exploração, inteiramente exposto à vontade de um
senhor, e do qual nos esforçamos para obter o máximo de
rendimento. Negro é ainda um nome que se carrega como insulto
permanente e como hábito, pois desde sempre expressou um
processo de coisificação e de degradação (MBEMBE, 2001, p.
39).
Em uma sociedade racista como a brasileira esse é o Negro
associado ao conceito de literatura afro-brasileira. E, importante,
por mais que na sua produção o poeta busque criticar ou
modificar tal estado de coisas, o conceito, carregado pela palavra
Negro, agora substituído por afro-brasileiro, chega primeiro e
impõe uma máscara que impede a leitura do texto com toda a sua
potência renovadora.
Assim, se de um lado, a chamada literatura negra ou afro-
brasileira surge como afirmação positiva do Negro, no sentido de
que seu corpo não seja apenas um corpo de exploração à
disposição de um senhor, mas um corpo capaz de produzir arte,
de produzir literatura e poesia escritas, um campo antes exclusivo
das elites (obviamente brancas) brasileiras encharcadas das belas
letras europeias; de outro lado há uma captura dos termos negro e
afro-brasileiro, especialmente pela academia, e o seu deslocamento
para o fundo de uma categorização que os aparta (os termos) de
seu sentido original da luta negra por um poder que não seja
dominação.

243
Seria interessante se pensássemos num conceito chamado
literatura branca ou euro-brasileira, ou seja, a produção na qual o
branco adotasse uma visão de mundo própria e distinta da dos
negros, afirmando-se tal produção como um discurso da diferença
da branquitude, em que, inclusive, ela poderia reconhecer que
suas conquistas são menos por mérito e muito mais por
privilégios. E então teríamos um ponto de vista branco, temáticas
brancas, autoria branca, linguagem branca. Contudo, a literatura
de que cogitamos já existe, apenas não carrega o nome que
acabamos de indicar porque é tomada como universal e não
particular, como a literatura afro-brasileira. Alguém saberia dizer
qual é o ponto de vista branco? Ou quais são as temáticas brancas?
E por que seria importante a instituição de tais categorias?
Os temas que os teóricos geralmente indicam como
associados ao conceito de literatura afro-brasileira dizem respeito
ao resgate da história do povo negro, à denúncia da escravidão e
de suas consequências, à glorificação de alguns heróis, às tradições
culturais ou religiosas transplantadas para o novo mundo, aos
vínculos com a ancestralidade africana, bem como quanto à
história contemporânea de exclusão.
Contudo, embora não seja uma enumeração taxativa, os
critérios acadêmicos para o fim de se identificar e de se categorizar
a literatura afro-brasileira acabam impondo uma nova máscara de
flandres aos Negros que desejam ser reconhecidos como escritores;
ao mesmo tempo que ensejam nova forma de colorismo ou de
pigmentocracia entre o nosso povo: quanto mais critérios forem
identificados, mais negro será o texto e então mais valorizado;
quanto menos critérios, menos negro e menos valorizado será o
texto, de forma que seu autor, embora se autodeclare negro, não
terá espaço nem entre a literatura branca nem entre a literatura
negra e poderá, inclusive, ser considerado um traidor dos seus
244
porque escreve sob o impulso de outras formas não reconhecidas
pelo conceito.
Esses critérios indicados como ponto de vista e temática
que apontam um discurso da diferença, ainda merecem estudos,
mas nos arriscamos a dizer, com Mbembe, que, na maior parte
dos casos, a diferença é o resultado da construção de um desejo e
de um trabalho de abstração, de classificação, de divisão e de
exclusão, ou seja, um gesto de poder que, por conseguinte, é
interiorizado e reproduzido nos gestos da vida de todos os dias,
inclusive pelos próprios excluídos (MBEMBE, 2001). Porém, esse
desejo de diferença emerge precisamente dos lugares onde se vive
mais intensamente a experiência da exclusão, como no caso da
literatura, como demonstra a pesquisa da professora da
Universidade de Brasília, Regina Dalcastgnè (2017). Nessas
circunstâncias, a proclamação da diferença, diz Mbembe, é a
linguagem invertida do desejo de reconhecimento e de inclusão
(MBEMBE, 2001).
Consideramos, portanto, que o conceito de literatura
negra ou afro-brasileira deixa intacto o racismo da literatura
(branca), pois enseja a criação de uma espécie de quartinho de
empregada ou de continuidade da senzala para os autores negros
ou mesmo um lugar que não esses. Porém, grande parte da
literatura produzida pelos autores negros, não é um apartado da
produção nacional, mas um giro nesse campo.
À medida que não se questionam os pressupostos dessa
literatura (branca) e nem a possibilidade de seu rompimento a
partir das novas criações literárias ― novas no sentido de
ameaçarem a literatura aí posta, o chamado cânone ― mas, pelo
contrário, se inventa outra vertente da literatura brasileira a partir
de um suposto particularismo cultural associado aos Negros
manchados de caneta tinteiro, se reafirma o racismo na sociedade
245
brasileira: os lugares de brancos e de Negros permanecem os
mesmos, pois há uma casa grande (literatura) e uma senzala
(literatura afro-brasileira). E, obviamente, a alguns escritores ou
poetas desse último grupo se permite ascensão, de acordo com as
leis do mercado, mas sempre com o beneplácito da lei daqueles
que mandam e que reclamam do Negro que os reconheça como
senhor.
Assim, o branco permanece no lugar do branco e o negro
no lugar permanente do negro. Todavia, o fato de a subjetividade
do Negro ser negada pela sociedade patriarco-racista não significa
que não tivessem subjetividade. Essa simplesmente estava
plasmada em outras formas de arte, incluída a produção poética e
literária não reconhecidas pela gente escravizadora.
Há que se ter uma atenção aqui, porque, ao se afirmar um
conceito de literatura afro-brasileira com as primogenituras de
Maria Firmina dos Reis (1859); Luís Gama, especialmente no
livro Trovas Burlescas (1859) ou mesmo Caldas Barbosa e
eventualmente Teixeira e Sousa, está se fixando, com uma espécie
de datação por carbono 14, a época em que o Negro atinge as
formas consideradas originariamente brancas de expressão artística
(o romance e certo tipo de poesia). Obviamente o trabalho de
datação é muito importante e não se nega a fundamentalidade
desses autores para a literatura nacional; reiteramos é que a
produção artístico-literária da gente escravizada e dos Negros não
pode ter sua abrangência reduzida ao alcance de formas tidas
como brancas quando já no navio tumbeiro, nos referimos a
Middle Passage, nossos modos de arte se fizeram presentes ou
foram inventados na pressão de se conviver num espaço reduzido
com gente de línguas diferentes, com modos diferentes de estar no
mundo, o que antecipou, inclusive, várias formas que se tomaram
como brancas-modernas.
246
Esse conceito de literatura afro-brasileira será distinto do
texto primeiro, aquele que cria o Negro, aponta-lhe o dedo e o
encerra num discurso de difícil rompimento apenas por que
recolhe os textos que cataloga no sentido propugnado pelo texto
segundo? Ou será igual ao texto primeiro na medida em que
pretende dizer quem é o outro da literatura, ou seja, a literatura
afro-brasileira como o outro da literatura brasileira?
Pois bem, mais do que aprisionamento, a literatura
produzida pelos povos da diáspora africana, assim como o orixá
Exu, tem o sentido de Oritá Metá/Igbá Ketá, ou seja, o que o
dimensiona como o em construção permanente porque
inacabado, como potência que é e poderá vir a ser, de modo a
provocar mudança em toda e qualquer situação, como força
dinâmica do desequilíbrio e especialmente do conflito e da
contradição.

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249
250
HISTÓRIA DA ÁFRICA: COLONIALISMO,
RESISTÊNCIAS E ORGANIZAÇÃO POLÍTICA
Gustavo de Andrade Durão1

A História da África e as análises historiográficas sobre o


continente africano têm trazido profundas mudanças em relação
às interpretações no que tange ao colonialismo. Os pesquisadores
voltados aos estudos africanos precisaram fazer uma autocrítica
em relação a algumas ideias principalmente quando se aborda o
contato colonial. Nossa historiografia sobre o continente africano
ainda mantém as formulações conceituais extremamente
influenciadas pelo eurocentrismo.
Além disso, como aponta o filósofo do Benin Paulin
Hountondji (2008, p.149-150) sempre que estamos falando de
história da África, filosofia africana ou antropologia africana,
estamos fazendo menção a disciplinas estritamente ocidentais.
Sem querer promover o reducionismo das análises do
reverenciado filósofo, vemos de que maneira as narrativas
essencialmente africanas ainda estão muito distantes da academia
e dos debates sobre a africanidade, aumentando ainda mais nossa
responsabilidade diante das análises sobre a temática.
Nesse sentido, o estudo da História da África trás uma
demanda de divulgar o conhecimento sobre a África deixando
bastante claro as interpretações da História sobre o continente
levando em conta as demandas da Lei 10.639 de 2003 que tornou

1
Doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Pós-doutorado pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro. Atualmente é professor da Universidade
Estadual do Piauí – UESPI (Campus São Raimundo Nonato). E-mail:
gdurao@outlook.com
251
obrigatório o ensino de História da África e afro-brasileira nas
escolas. Para a sociedade brasileira a Lei trouxe a deflagração do
nosso racismo institucional, por outro lado, para os estudos
africanos trouxe a necessidade de revisão das pesquisas
(ALBERTI, 2013, p. 85-6).
Tendo em vista esses desafios, buscou-se trabalhar um
breve apanhado dos recortes historiográficos da História da África
contemporânea, passando para a compreensão do legado colonial
(e o debate em si do imperialismo) e finalmente definir alguns dos
principais exemplos de resistência contemporânea ao
colonialismo.

A historiografia africana e algumas lacunas


O historiador brasileiro que se propõe a estudar a História
da África acaba se perdendo em questões metodológicas bastante
complicadas, principalmente porque acabaram baseando suas
pesquisas através da interpretação dos documentos europeus. Vale
dizer que a História da África ainda encontra no dia de hoje
dificuldades de se posicionar diante dos outros campos históricos.
No campo da historiografia africana em geral a escravidão
está quase sempre inserida e, assim, percebeu-se uma mudança de
algumas décadas para cá, pois foi necessário mudar a perspectiva
da aceitação tácita do sistema escravista ou mesmo o
questionamento da vitimização extrema dos escravizados.
E a explicação é necessária aqui já que o próprio termo
resistência foi utilizado inicialmente para contrapor uma narrativa
preponderante de que não houve resposta do lado dos africanos.
Vale dizer que as respostas culturais e as análises das permanências
dos costumes dos negros da diáspora foram exaltados por
estudiosos em grande parte brasileiros tais como João José Reis,

252
Laura de Melo e Souza e Flavio Gomes (SWEET, 2007, p.20-
22).
A História da África tal como percebemos hoje se mantém
atrelada a uma grande pluralidade de questões que vão desde as
primeiras civilizações africanas nos períodos antigos até às novas
reformulações da geopolítica no continente. Mas foi escolhido o
período contemporâneo por entender-se que as resistências ao
colonialismo são igualmente importantes em relação as
resistências à escravidão.
A própria disciplina em questão se fundamentava nos
processos de constituição do nacional e por isso os estudos sobre o
continente ainda cumpriam a agenda da metrópole. Sendo a
interpretação e a análise dos processos econômicos, sociais e
políticos os estudos de África só poderiam entrar no debate, na
medida em que estivessem em condição de igualdade com os
estudos da História Mundial (CURTIN, 1982, p.39).
Mais uma vez, o racismo impossibilitava as pesquisas mais
aprofundadas, pois o africano era associado, ainda, ao atraso ou ao
fracasso civilizacional. Aliado a isso, a ciência histórica permanecia
muito representada pela escrita, desprezando a oralidade africana,
fonte fundamental de recorte e manutenção das tradições. Muito
embora a definição de “povos sem História” de Hegel já tivesse
caído por terra, somente a partir de 1960 o racismo científico foi
deixado de lado pelos pesquisadores e historiadores (CURTIN,
1982, p. 41).
Na maioria das vezes os conteúdos referentes ao
Imperialismo e a conferência de Berlim são postos em evidência e
não há qualquer tipo de referência ao questionamento dos
africanos em relação ao contato colonial. Mais do que apagar a
resposta do colonizado, não se leva em consideração o esforço
empreendido por muitos povos em manter suas tradições e um
253
status quo diante da penetração estrangeira nos seus territórios
(GUEYE; BOAHEN, 2010, p. 130).
Através de rápidas apreciações sobre a partilha vamos
começar a compreender as resistências ou mesmo os silêncios
dessa resistência na historiografia africana. Como se sabe a
Conferência foi realizada em Berlim de 15 de novembro de 1884
até 26 de novembro de 1885. Mais uma vez havia uma
justificativa humanitária (e mesmo civilizatória), contudo, os
motivos econômicos podem ter sido o estopim para os debates
sobre a exploração do continente. Assim: “Adotaram-se resoluções
vazias de sentido, relativas à abolição do tráfico escravo e ao
bem-estar dos africanos.” (UZOIGWE, 2010, p.33)

Figura 1 – A representação Clássica da Conferência de Berlim


(1884-5). 2

2
UZOIGWE, Godfrey N. Partilha europeia e conquista da África:
apanhado geral. In: In: KI-ZERBO, J. (Org.). História Geral da África,
vol. VII. África Sob Dominação Colonial (1880-1935) Brasília: UNESCO,
2010. p.34.
254
A clássica representação da iconografia da Conferência
leva a pensar o papel de protagonismo dos políticos e poderosos
de países como Alemanha, França, Inglaterra e Bélgica (figura 1).
Essa concepção esteve tão arraigada no pensamento intelectual
que não temos a noção de “povo africano” ou mesmo de etnias
específicas como Wolofs ou Igbos.
Interessante lembrar o quanto a História Econômica
influenciou nossas análises sobre o continente africano visto que,
somente com a escravidão ou com a interferência colonial, é
possível mensurar a devassa nos diversos países africanos. As
riquezas culturais dos territórios africanos eram pouco levadas em
consideração ratificando o eurocentrismo nas análises desse
período da História.
De acordo com a estudiosa Susan Stanford Friedman foi a
noção de modernidade que produziu os binarismos tais como
Ocidente/Oriente, Primeiro Mundo/ Terceiro Mundo, Oeste/
Resto. Essas conceituações impregnaram o pensamento intelectual
e toda produção responsável por representar a África e os
africanos na perspectiva da autora (FRIEDMAN, 2006, p. 89).
Os diamantes descobertos na África do Sul, bem como o
ouro e o cobre no Zimbábue foram fatores igualmente
preponderantes nessa aproximação como base para a exploração.
A noção de que fosse possível enriquecer facilmente se combinava
ainda a de que havia uma grande aventura civilizatória a ser feita
no continente “sombrio” (BITTENCOURT, 2003, p.4).
De alguma forma a colonização e a “divisão” do
continente tiveram repercussões tanto negativas quanto positivas.
Uma historiografia mais tradicional destaca de que maneira a
presença europeia abriu a África para o mundo, possibilitando
ainda a instauração dos modernos Estados Africanos. A
instauração de instituições também foi algo preponderante por
255
trazer um novo sistema judiciário ao mesmo tempo em que
impunha toda uma burocracia (BOAHEN, 2009, p.922-3).
Mais uma vez o colonialismo aparece como uma chave de
interpretação importante visto que teve claramente a função de
separar os grupos (“tribais”) para controlar não só os corpos, mas
as mentalidades. De modo mais enfático é possível dizer que “O
colonialismo pôs fim a tudo isso e privou assim os Estados da
África da possibilidade de adquirir experiência no domínio da
diplomacia e das relações internacionais.” (BOAHEN, 2009, p.
927).
Uma das principais agendas do colonialismo foi vitoriosa,
pois ela visava privar os africanos de toda e qualquer liberdade.
Talvez por conta desse fator ainda seja tão difícil adentrar nas
resistências africanas diante do forte aparato colonial. Atualmente,
já se faz uma revisão das relações coloniais visto que não foram tão
estanques como algumas análises querem mostrar.
O próprio patriotismo dos colonizadores foi uma
justificativa para o imperialismo e a negligência em relação às
línguas locais cumpria justamente esse papel de “deslegitimar” a
cultura dos povos nativos. As missões vinham cumprir justamente
esse papel de legitimar o contato e de evitar qualquer tipo de
resistência à assimilação (KHAPOYA, 2015, p.144-5).
O século XX foi fundamental nessa “descoberta” da África
por parte da Europa e um dos grandes impactos culturais
aconteceu no campo religioso. A África do Norte e parte da África
Ocidental Francesa foram palco de uma complicada conjuntura.

A nova expansão islâmica associada ao


desdobramento das redes comerciais que
atravessavam o Saara, conectando-se aos postos de
troca no oceano Atlântico, e ao crescimento do
256
comércio de armas alteraram a paisagem política e
militar da região, possibilitando reações de maior
envergadura dos africanos à presença europeia.
(BITTENCOURT, 2003, p.8).

As colônias africanas foram logo percebidas como uma


maneira não só de enriquecimento, mas de se atingir um status
privilegiado diante das mudanças na geopolítica mundial
(KHAPOYA, 2015, 147). A África Ocidental foi um dos
principais focos dessa política colonial visto que englobava os
territórios estratégicos da costa africana e com maior proximidade
com a Europa.

As perspectivas do contato colonial


Antes de adentrar na análise mais estrutural da
colonização no continente é possível perceber o quanto a teoria
pós-colonial problematiza essas relações buscando compreender a
complexidade das mesmas. Zona de contato, transculturação,
hibridização e encontro colonial são só alguns dos conceitos os
quais começam a trazer uma renovação para as análises do passado
colonial (FRIEDMAN, 2006, p.89).
Essa é uma maneira de deixar um espaço de
problematização das análises sobre o colonial e explicitar de que
modo essas narrativas (coloniais) são criadas pelos vencedores,
esvaziando bastante o protagonismo dos africanos. Destarte, as
diferenças étnicas não só entre europeus e africanos, mas também
entre os próprios povos africanos na sua multiplicidade foram
fatores que afastaram as análises de qualidade acerca dos povos do
continente.
Os alicerces do colonialismo se deram através das ciências
tais como a etnologia e a antropologia, gerando a noção de que
257
havia homens menos capazes de se civilizar e aqueles que estariam
destinados à “barbárie”. A preexistência dos estados nacionais
europeus pode ser uma justificativa para iniciar essa interferência
tão hostil nos territórios africanos e asiáticos. Nesse sentido, para
além dos fatores políticos e econômicos o continente africano
passou por uma grande interferência dos Estados europeus,
sobretudo, quando os governantes tinham o ideal de
superioridade racial nutrindo suas ações.
A existência desse modelo de estado influenciado pelas
potências europeias estimulou a imposição do mesmo aos
territórios africanos na virada do século XIX para o XX
(DAVIDSON, p.1967, 54). Construto da grande missão
civilizadora, as exposições coloniais eram verdadeiras
demonstrações de força ao mundo todo de como o progresso
seguia sua marcha inexorável.
Civilização e colonização foram conceitos durante muito
tempo ligados um ao outro e certamente a ideia de progresso
dependeria do quanto uma potência pudesse se sobrepor à outra.
Contudo, a colonização dos séculos XIX e XX teve a
especificidade de não manter a designação colonizado e
colonizador; pois havia o colono, um híbrido no meio dessa
equação. De acordo com Ferro:

A colonização é ao mesmo tempo, a ocupação da


terra estrangeira e distante por uma população, com
sua cultura, e a instalação nessa terra, daqueles que
chamamos de ‘colonos’. Durante vários séculos os
europeus encarnaram esse fenômeno, administrando
em todo o mundo colônias de exploração e colônias
de povoamento (que acolhiam uma importante
população metropolitana). (2016, p.13)
258
Nesse sentido, para além da situação colonial vamos
compreender como os indivíduos envolvidos com a colonização
passaram por uma tomada de consciência mas acentuada depois
das experiências fora dos seus territórios nativos. As ideologias do
século XIX sobre o pan-africanismo, por mais contraditórias que
fossem, já demonstravam uma crítica ao modus operandi do
colonialismo. 3
Como ficou claro na historiografia tradicional os
mecanismos mais utilizados pelos administradores coloniais eram
através das armas e da coerção dos indivíduos. Contra isso
ninguém se opôs, contudo, precisamos perceber que a relação
entre África e Europa só fica desigual no limiar da Revolução
Industrial, sendo prejudicada ainda mais por conta das crises dos
Estados africanos (ILIFFE, 2009, p.394-5).
O trabalho forçado e a convocação dos indivíduos para as
atividades militares, por exemplo, eram as principais medidas
dessa nova colonização do século XX. Os mecanismos de
dominação colonial desrespeitavam inclusive as antigas jurisdições
tradicionais desfazendo dos antigos processos de julgamento,
enfatizando as disputas coloniais entre as diferentes etnias
(ILIFFE, 2009, p.396). Esse processo se deu conflagrando uma
nova maneira de subjugação do homem pelo homem.

3
O Pan-africanismo foi uma movimentação envolvendo pensadores negros
norte-americanos, caribenhos e africanos os quais desde 1919 organizaram
diversos congressos gerando uma conscientização política para orientar um
colonialismo mais justo. Somente a partir de 1945 as perspectivas políticas
mais radicais foram se concretizando ocasionando o debate de condenação
ao colonialismo. Os principais iniciadores do pan-africanismo foram o
jamaicano Marcus Garvey e o norte-americano W.E.B. DuBois
(MACEDO, 2015, p.157-8).
259
Na segunda metade do século XIX tem lugar uma
nova onda de colonização europeia, a qual
denominamos ‘era imperialista’. Ela instaura o
domínio das potencias europeias sobre grande parte
do mundo, ao mesmo tempo que afirma a
superioridade da civilização da qual se apoia.
(FERRO, 2016, p.14).

Graças a uma postura adotada pelos pensadores negros


pode ser explicada pelo choque ocorrido entre tradição e
modernidade, sobretudo, nas relações entre Europa e África em
meados do século XIX. Assim, alguns chefes de grupos influentes
podem ter aceitado a penetração dos europeus como promessa de
modernização real do continente (RANGER, 2008, p.254).
Como dito anteriormente, os Estados africanos estavam
enfraquecidos, em grande parte por conta do fim do comércio
triangular. Esse comércio significava a exportação dos cativos
oriundos, fundamentalmente do Congo e de Luanda, visando
reforçar os postos de trabalho escravo nas Américas. Desse modo,
África, Europa e Américas participavam de uma intensa troca de
produtos agrícolas das colônias, escravos e de certa quantidade de
produtos manufaturados enviados da Europa para o continente
africano (FERRO, 2016, p.31).
Apesar da crítica de que a Historiografia sobre África
esteja somente voltada para o período colonial, o período foi
escolhido por ter grande documentação capaz de exemplificar os
protagonismos africanos, até mesmo como resistência a situação
colonial.
Cabe ainda lembrar o quanto uma “idade de ouro da
colonização” pode ter sido tanto um símbolo para o crescimento
das potências europeias como um indício das grandes riquezas
260
africanas, cuja extensão ainda era desconhecida por muitos
cientistas (M’BOKOLO, 2009, p.428). Esse período pode ser
caracterizado mais ou menos entre a Primeira e a Segunda Guerra
Mundial, foi tido como um período de grandes alterações nas
relações econômicas políticas e culturais, contribuindo para
algumas das contradições expostas anteriormente.
A participação dos africanos nos conflitos mundiais é
muitas vezes esquecida dos recortes historiográficos e através das
interações transcontinentais é possível perceber um pouco melhor
da construção dos Impérios. De um lado, as nefastas alterações
nas dinâmicas próprias aos autóctones (o uso de coerção e extrema
violência) e de outro a militarização dos nativos visando a
colaboração dos mesmos nos conflitos que se seguiriam, bem
como na proteção das fronteiras no continente africano
(M’BOKOLO, 2009, p.428-9).
Em grande parte de sua obra Victor G. (KIERNAN,
1995), Imperialismo e suas contradições, explica como os
africanos foram alistados nos exércitos coloniais, levando em
consideração uma perspectiva centrada na narrativa dos
colonizadores. Contudo, o autor deixa claro o quanto havia uma
retórica para que esses colonizados utilizassem o serviço militar
para atingir a cidadania, capaz de alça-los em condição de
igualdade com os europeus.
O exemplo dos atiradores senegaleses é sintomático, visto
que tiveram uma grande participação nas guerras coloniais,
sobretudo, nas batalhas pela Argélia (QUADRAT,
ROLEMBERG, 2011, p.28). Apesar dos discursos
preconceituosos sobre o negro, era comum a defesa dos atributos
dos mesmos, pois nos documentos oficiais a defesa do
recrutamento dos súditos africanos era realizada exaltando,
inclusive, a defesa do território e levando-os a pensar que estavam
261
trabalhando para pacificar seus países (KIERGAN, 1995, p. 84-
6).
Essa historiografia mais tradicional exaltava os males da
intervenção europeia no tocante a divisão dos grupos étnicos, em
que muitas vezes as rivalidades eram acirradas. Talvez a violência
tenha surgido dessa resposta ao colonizador e, com isso, foi
possível observar por exemplo o quanto os argelinos esqueceram
todas as “melhorias” francesas no período da Guerra argelina
(KIERNAN, 1995, p.86).
O paradoxo de se pertencer a metrópole e ao mesmo
tempo englobar suas dinâmicas causou as maiores dificuldades
para essa manutenção da colonização. A maneira de manter-se
mais tempo o colonialismo foi sustentando essa justificativa de
que todos faziam parte de uma mesma nação, inclusive era a
orientação dos governos coloniais. Como fica claro na explicação
de Kiernan sobre a Nigéria:

Durante as guerras mundiais, principalmente a


Segunda, os governos coloniais necessitando de
recrutas tiveram apelar a uma Índia do sentimento
nacional, e quando as tropas nigerianas estavam
lutando longe de casa, era mais fácil pensar ou falar
“Nigéria” como uma entidade. No entanto, no geral,
poucos nigerianos chegaram a pensar no exército
como “deles”, como fazendo parte de uma nação
(KIERNAN, 1995, p.90).4

4
“During the world wars, especially the second, colonial governments in
need of recruits had to make some appeal, as in India, to ‘national’ feeling,
and when Nigerian troops were fighting far away from home, it was easier
to think, or talk, of ‘Nigeria’ as an entity. Yet on the whole, few Nigerians
262
Essa perspectiva é interessante por mostrar como nem
sempre as relações foram tão transversais, podendo observar as
interseções entre as civilizações africanas e europeias.
Compreender as “zonas de contato” é também perceber onde se
integram culturas díspares e se desenvolvem relações
extremamente assimétricas de assimilação e dominação (PRATT,
1999, p.27).
A historiografia africana demonstrava que o desejo de
inserir os povos do continente, buscando entender as dinâmicas
dos países, ocorria levando em consideração a participação nas
lógicas geopolíticas e a vontade de exploração de parte dos seus
recursos. Os primeiros relatos eram certamente baseados nos
preceitos preconceituosos de Friedrich Hegel de que a África era
um continente sem História. Aliado a isso, havia o problema em
relação ao islamismo, representando a religião da pior maneira
possível para não gerar dúvidas quanto aos erros morais de seus
adeptos. Nas palavras da professora Patricia Teixeira Santos:

Nesse momento, toda uma visão altamente pejorativa


das populações africanas e asiáticas que eram
muçulmanas se fortaleceu, sobretudo no final do
século XIX, quando ocorreram grandes revoltas
anticoloniais em áreas fortemente islamizadas, como
no Sudão, com Muhammad Ahmad, e no Senegal,
com Ahmad Bama. (SANTOS, 2013, p.112)

came to think of the army as ‘theirs’, as a part of a nation (KIERNAN,


1995, p.90). - tradução livre do autor.
263
Era chegado o momento das resistências ao colonialismo,
e apesar de haver um silenciamento desse debate é de
fundamental importância trazê-lo à tona na nossa perspectiva de
análise.

Principais Movimentos de resistências – séculos XIX-XX


Dentro dessas breves páginas acabaremos por falar sobre as
resistências de modo mais pontual, levando em consideração
algumas mudanças da longa duração ocorridas entre o século XIX
e XX. Muito utilizado pela historiografia sobre a escravidão o
conceito de resistência atua em uma perspectiva de compreensão
da não vitimização dos sujeitos históricos, desfazendo a
perspectiva de uma aceitação das atividades escravistas e de
colonização. Apesar das narrativas históricas divergirem, de certo
modo tanto a “resistência” foi importante como aceitação tácita
de uma dominação através de relações de poder e exploração do
trabalho as quais não foram aceitas de modo pacífico
(THORNTON, 2004, p.355-6).
A resistência aparece como tentativa de deslegitimar a
noção dos vencidos cuja perspectiva geralmente permeia as
interpretações sobre a História da África e de seus sujeitos. No
caso brasileiro a noção de resistência só aparece nos processos de
escravização dos nativos e, no continente africano, ela toma forma
quando na virada do século XVIII para o XIX os europeus
conseguem de forma mais eficaz adentrar nos territórios que
seriam as novas zonas coloniais (FERRO, 2008, p. 225).
Compreende-se o quanto foi mais difícil penetrar no
continente africano do que nos espaços coloniais americanos, mas
isso não invalida as comparações entre os dois processos. No caso
africano vale lembrar que o contato com a Europa era secular,
desfazendo-se o mito de um continente fechado ao contato
264
exterior. Evidentemente, as relações dos países africanos com os
europeus só vêm ganhando mais destaque de pouco tempo até
agora:

Logo, não foi a falta de interesse pela África que freou


o avanço de diversos colonizadores dos séculos XV a
XIX, e nem suas opções comerciais, mas de fato a sua
capacidade de se defender – caso contrário os
europeus teriam dominado territórios inteiros [...]
(FERRO, 2008, p. 226).

Nesse sentido a compreensão da resistência no continente


fica ainda mais em evidência, tendo em conta o quanto há certos
silenciamentos acerca de narrativas como a da rainha do Kongo-
Angola Nzinga Mbandi em meados do século XVI. Dito de
maneira geral, o caso de rainha Nzinga é exemplar, pois trata da
penetração católica no reino do Kongo e como se deram os
processos de assimilação e entrada no continente (FERRO, 2008,
p.226).
Também poderíamos pontuar algumas das fugas ocorridas
no território do Congo, resistência contra o ostensivo mecanismo
de dominação perpetrado por Leopoldo II da Bélgica em 1884.
Foi uma oposição mais no campo individual e menos organizada
de forma coletiva, mas representadas nas “rebeliões de pequenas
comunidades ou até mesmo individuais foram” (FERRO, 2008,
p.226) as quais mereceriam um espaço dedicado somente a elas. A
violência sem limites disseminada pelos europeus gerou
decapitações, mutilações e assassinatos em série, tudo em nome
do ideal exploratório colonizador. O escritor Joseph Conrad
expõe em seu clássico Coração das trevas o imaginário sobre o
continente e Adam Hochschild, em O fantasma do rei Leopoldo
265
descreve ainda parte dessas atrocidades comentando algumas das
dificuldades de resistência ao colonialismo no Congo Belga
(BITTENCOURT, 2003, p. 11-2).
Como dito anteriormente, em geral o conceito resistência
é empregado para se compreender não somente a oposição à
escravidão nas Américas, mas também, para se entender de que
modo os escravizados mantinham suas tradições culturais, ou seja,
traços de sua ancestralidade.
Se levarmos em consideração as estruturas sócio-político-
econômicas na África da virada do século XIX ao XX, veremos
diversos fatores bastante complexos para o estudo das diversas
sociedades da África Negra. Levando em consideração os contatos
da França e da Inglaterra com certas partes do continente
percebe-se o quanto os fatores religiosos, por exemplo,
culminaram na participação de lideranças importantes nesse
processo do que chamamos resistência ao colonialismo. A sempre
difícil penetração nessas “redes comerciais que atravessavam o
Saara” trouxeram mudanças na perspectiva bélica e gestou
algumas das dicotomias existentes ainda hoje entre Europa e
África (BITTENCOURT, 2003, p.76).
Desde a virada do século XIX para o XX os africanos
lutavam para resguardar seus territórios e seus estilos tradicionais
de vida, apesar das inúmeras intervenções militares. Por isso, só
restavam três opções: o confronto, a aliança ou a submissão
(GUEYE; BOAHEN, 2010, p. 130).
É preciso ainda levar em consideração a escravidão e o
tráfico como partes preponderantes nessa equação, sobretudo,
porque eram bastantes presentes em grande parte dos Estados
africanos. Por conta da inexistência da noção de propriedade
privada era a presença de escravos que media o poderio desses
Estados e as mudanças no tráfico geraram um desequilíbrio
266
econômico e político dentro dos espaços africanos, prejudicando
fortemente sua hegemonia (FERRO, 2008, p.227).
A opção pela África Ocidental foi estratégica visto que
nesse espaço houve a representação de três personagens
extremamente importantes para as resistências à colonização, a
saber, Samory Touré, Omar Tall e Mohamed Ahmed.
Impossível apresentar essas personalidades sem esclarecer
que eles coordenaram grandes espaços nos quais percebemos a
formação dos Estados Africanos. Essa foi a maneira que tiveram
de se manter no poder e articular grande contingente
populacional. Aliado a isso, a organização política do islã foi uma
das formas ideais de resistência na medida em que o “encontro
colonial” era inevitável e a força da penetração cultural europeia
era inquestionável (ASAD, 1993, p. 125-7).
O líder islâmico Samory Touré foi um dos primeiros
representantes da resistência no Sudão à penetração francesa,
sendo o responsável pelo controle de um vasto império de
expressão messiânica no Mali entre 1880 e 1890. De alguma
maneira a sua ascensão foi propiciada pelo movimento de
“modernização” do islã e dos ensinamentos do alcorão,
desenvolvendo uma expansão do ideal militar dentro das ordens
religiosas. O uso dos cavalos e a ideia da luta militar associada ao
religioso foi algo bastante presente na sua organização das
sociedades africanas da sua época (BITTENCOURT, 2003, p.
76).
Graças a essa militarização e ao controle dos gêneros
alimentares, Touré pode realizar uma forte oposição às tropas
francesas em todo território do Sudão Frances. A sua hostilidade
contra a presença francesa foi perpetuada na historiografia
europeia que o representava como alguém desprovido de
racionalidade. Seu caráter messiânico aliado a sua estratégia de
267
isolar as tropas francesas gerou uma hostilidade em relação aos
territórios vizinhos, que tiveram suas terras queimadas do mesmo
modo (BITTENCOURT, 2003, p. 77).
Por outro lado, a organização de Touré contou com a
participação de artesãos, pequenos comerciantes, funcionários,
marabus5 e líderes religiosos desse Estado que se associaram ao seu
império que ocupava quase 400 mil km². Tendo provocado uma
significativa mudança nas sociedades africanas de seu tempo, ele
trouxe uma forma de tributação que atingiria um campo político
bastante diferente para as estruturas de sua época (FERRO, 2008,
p. 228).
Como exalta Marc Ferro (2008, p.228) a historiografia
francesa tratou Samory Touré como um “chefe de quadrilha” que
ocupou um papel de extremista religioso para direcionar uma
multidão contra a colonização francesa. Interessante notar que
essa mesma interpretação entorno das lideranças africanas
trabalhou por muitos anos para descrever a África sem levar em
conta a formação dos Estados, pois sem esses estados não se têm
história:

Desse ponto de vista, o Estado que Samory foi capaz


de construir no século XIX no Sudão, é exemplar,
sendo o resultado da associação entre um indivíduo
excepcional e um grupo social, os dyulas,
comerciantes, cuja expansão está ligada a uma
renovação do Islã (FERRO, 2008, p. 228).

5
Os marabus eram os líderes religiosos com forte influencia das vidas das
pessoas. Eram os auxiliares dos ritos religiosos e dos magistrados nas
sociedades islâmicas da África Ocidental Francesa.
268
A imagem de Samory Touré foi tão importante para essa
África contemporânea que, em meados do século XX, o
presidente do Mali adotou o nome de Sekou Touré em
homenagem ao líder malinês, gestando novamente a ideia de
organização de uma unidade africana comum. Os movimentos de
independência na África Ocidental francesa em 1960 adotavam a
personificação desse mito visando a aglomeração dos Estados
africanos em memória de um antigo império.
Vale lembrar ainda que o Império Mandinga foi um dos
maiores da História da África tendo na sua composição mais de
um milhão de pessoas e ocupou o território do que seria hoje
Guiné, Mali, Serra Leoa e Libéria (MACEDO, 2015, p.129-130).
Desse modo a relação entre os contextos fica bastante clara
quando se percebe as relações de oposição existentes dentro desses
vastos Impérios africanos:

“A ascensão política de Samori coincidiu com o


período de fortalecimento do imperialismo europeu
na África, e a constituição do Império Mandinga o
colocou em rota de colisão com a França, que na
ocasião expandia-se a partir do Senegal (MACEDO,
2015, p.130).”

Outro importante personagem na liderança africana desse


período foi Omar Tall, responsável pela nova ordenação político-
religiosa dentre da África Ocidental. Na década de 1860, alguns
anos antes de Touré, Omar Tall tentava reorganizar parte da
Guiné e do Mali em função da instabilidade ocasionada pela
proibição do tráfico nessas regiões.

269
Passando por cima das divergências étnicas esse líder
religioso tuculeur6 consegue promover uma união nunca antes
vista nesses territórios, tendo o islamismo mais uma vez um papel
preponderante nessas uniões. Apesar das dificuldades econômicas
o papel de liderança de Tall foi importante para frear a
aproximação francesa no período.

Figura 2 - Representação de Omar Tall, líder político


religioso do Mali.7

Especialmente o Mali foi um local de grande penetração


das noções de resistência de Tall, visto que devido a grande
diversidade étnica de sua composição religiosa também foi grande
exemplo da penetração do islã e de sua adaptação às realidades
tradicionais dos povos. As línguas e culturas acabaram se

6
Os tuculeurs foram líderes influentes na África Ocidental tendo um papel
de manutenção das tradições sunitas nos territórios africanos de expressão
francesa, sobretudo, no Senegal.
7
Disponível em: https://alchetron.com/El-Hadj-Umar-Tall Acesso em: 18
de nov. 2018.
270
amalgamando em função da oposição aos ideais colonizadores
exógenos (WALDMAN; SERRANO, 2010, p.312-3).
De uma maneira ou de outra, o estudo da vida de alguns
desses líderes religiosos demonstra a existência de vozes
dissonantes dentro dessas sociedades africanas no auge das
investidas colonizadoras da era contemporânea. O fim de Omar
Tall não representou o fim da resistência, mas o quanto as
diferenças tecnológicas se acentuaram em um contexto de
decadência econômica africana.
“Sua morte aos 65 anos, em 1864, agravaria as inúmeras
contradições no interior de seu império, que não consegue
consolidar-se, incapaz de reforçar a ideia de integração das
populações submetidas.” (KI-ZERBO, 1991, P. 22-26)
O terceiro ícone dos processos de resistência escolhido é
Muhammad Ahmad e falar de sua ascensão como líder no Sudão
não é tarefa nada fácil, contudo, ele foi precursor na divulgação da
resistência quando propagou a ideia de luta contra as noções
divulgadas pelos estrangeiros. Em 1881, foi proclamado mahdi
liderando a revolta Mahdista na mesma região, em oposição ao
contato britânico e suas imposições políticas e econômicas. O
estado mahdista ainda merece atenção nessa mesma perspectiva,
pois apropriou-se das noções do islamismo dando um sentido de
unidade ao povo no Sudão (SANTOS, 2013, p. 66-7).
Nascido por volta do ano de 1834, o menino mahdi teria
começado desde cedo seus estudos no islamismo, destacando-se
por sua grande inteligência nos ensinos ligados ao sufismo.

Nos anos de 1870, Muhammad Ahmad funda sua


própria confraria e, de acordo com Dujarric e
Bermann, começa a fazer suas viagens proselitistas
pelo norte do Sudão, quando então passa a se
271
identificar com a insatisfação de importantes santos
sufis da Qadiriyya e da Shadhiliyya com o domínio
otomano-egípcio (SANTOS, 2013, p.67).

A resistência do Mahdi passou tanto pelo aspecto da


oposição ao colonizador, quanto pela negação aos egípcios
demonstrando a força do Estado de inspiração político-religiosa
que foi o Mahdismo. O processo de construção da figura do
mahdi ainda está em consolidação no nosso país e é possível dizer
que um dos trabalhos mais consistentes sobre ele em uma
perspectiva histórica é a obra da professora Dra. Patrícia Teixeira
Santos, intitulada Fé, Guerra e Escravidão – Uma História da
Conquista Colonial do Sudão (1881-1898).
Vale notar que como todo movimento tido como
messiânico, ele deixou uma tradição que resignificava a
experiência religiosa do islã e fornecia legitimidade em relação aos
movimentos de independência surgidos décadas após. A própria
figura do mahdi e sua construção na qualidade de líder messiânico
trouxe uma (re)valorização dos fieis dentro do islamismo. Em
função do seu “carisma” parte da historiografia tentou representá-
lo negativamente como uma figura radical que somente foi capaz
de se articular por conta de uma multidão “perdida e desgarrada”,
como aconteceu diversas vezes nos relatos europeus acerca dessas
lideranças da resistência africana (SANTOS, 2013 p. 164).

“Em 1881 suas forças iniciam uma expansão mais


ousada ao sul. Com sua morte em 1885, as forças de
desagregação se fariam sentir. Uma nova derrota
deixaria 11 mil mortos madistas. Em 1899 os ingleses
já controlavam a situação” (BITTENCOURT, 2003,
p.9 Apud OLIVER, 1994, p. 203-206).
272
De alguma maneira ele foi derrotado mas suas
representações deram à História da África um grande manancial
de fontes para o estudo das resistências via o estudo do islã no
continente africano.
Esses líderes são de extrema importância para o estudo dos
processos de resistência nos estudos africanos sendo todos eles
grandes exemplos de como o Estado na África tinha um poder de
organização político-religioso que não deixava nada a desejar aos
seus vizinhos europeus.

Assim, ali onde existiram verdadeiros Estados – que a


tradição histórica europeia ignorou –, a resistência
militar foi dizimada, mas nem por isso a destruição
desses Estados liquidou com a ideia de
independência, que permaneceu viva, tanto na África
Ocidental como em Madagáscar e no Quênia; a
contrapartida, se podemos dizer assim, é que a lenda
popular ou erudita transformou esse chefes
derrotados em verdadeiros heróis [...] (FERRO,
2013, p.229).

Considerações finais
As resistências africanas contemporâneas dizem muito
sobre a História dos vencidos, em uma perspectiva de contato
colonial, subtraindo a falsa ideia de aceitação dos processos de
violência e dominação perpetrados pelos colonizadores europeus.
Ainda se faz necessário a retomada desses processos levando em
consideração as imposições coloniais em relação ao surgimento
das estruturas de unidade (e solidariedade) surgidas no seio de
inúmeras sociedades africanas. O estudo da “resistência” além de
uma interpretação diversa da historiografia tradicional foi capaz
273
de devolver aos sujeitos o protagonismo de suas próprias
narrativas.
Precisamos eleger outros métodos de análise e rever as
perspectivas historiográficas a respeito das civilizações africanas.
Somente elegendo novas formas de categorização das análises
iremos romper com as interpretações binárias privilegiando os
centros de divulgação do saber/ poder. As narrativas tem poder e
durante muito tempo lemos e aprendemos sobre a inexistência
das resistências, por isso hoje precisamos rever as estórias
contadas, para que a História possa representar o plural e abarque
as especificidades dos povos, culturas e civilizações. Nas palavras
dos pensadores M’Baye Gueye e Albert Adu Boahen:

Se lançarmos uma vista de olhos a este período épico


da história africana, a questão que naturalmente
acode ao espírito é a de saber se a resistência não foi
uma ‘loucura heróica’, ou seja, uma atitude
criminosa. [...] Pouco importa, com efeito, que os
exércitos africanos tenham sucumbido diante de
inimigos mais bem equipados, se a causa pela qual os
resistentes se imolaram resta viva no espírito de seus
descendentes (GUEYE; BOAHEN, 2010, p. 166).

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277
278
HISTÓRIA DA AMAZÔNIA NEGRA E ENSINO DE
HISTÓRIA NO NORTE BRASILEIRO
Heraldo Márcio Galvão Júnior1
Arcângelo da Silva Ferreira2

Na cobertura externa de um edifício e em meio à selva de pedras


paulistana, Marcela Bonfim, fotógrafa, conta em entrevista: “foi
em Porto Velho que comecei a ver estes negros em uma outra
situação que eu nunca vi. Eles muito mais no centro, muito mais
falados, muito mais ressaltados do que em São Paulo. Famílias
tradicionais negras (...) que tem uma relevância pra cidade muito
grande”3. Este trecho de sua fala resguarda aspectos importantes a
serem considerados neste capítulo. A artista, paulista residente em
Rondônia, ao falar sobre seu projeto “(Re)conhecendo a
Amazônia Negra: povos, costumes e influências negras na
Floresta” vai ao encontro da perspectiva historiográfica que há
pouco mais de três décadas passou a compreender de outra
maneira a escravidão negra a partir da perspectiva da resistência
aos grilhões físicos e mentais, autonomia de ação e pensamento e

1
Professor Assistente B na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará
(Unifesspa). Graduado em História pela Unesp. Mestre em História pela
Unesp. Doutorando em História pela UFPA. Bolsista Prodoutoral CAPES.
Bolsista do Programa de Doutorado Sanduíche CAPES - École des hautes
études en sciences sociales/Paris. e-mail: heraldogalvaojr@gmail.com
2
Professor Assistente B na Universidade do Estado do Amazonas. Graduado
em História pela UFAM. Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia
pela UFAM. Doutorando em História pela UFPA.
e-mail: asf1969@outlook.com
3
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=cvVT9vlYdvE&t=11s
- WebSérie Novos Olhares. Direito à cidadania. Zalika Produções.
279
estudos que contemplam análises das diferenças sociais a partir da
cor da pele e/ou etnia4.
Entretanto, apesar do aumento considerável do número
de estudos feitos a partir desta nova perspectiva, cujo início se deu
por volta de 1980, a História ensinada nas escolas brasileiras
continuou, desde o século XIX – salvo reorientações de cunho
ideológico e historiográfico –, a valorizar fatos, feitos e
personagens relacionados à região sudeste do Brasil, tendo como
focos da narrativa São Paulo e Rio de Janeiro, cujas hegemonias
políticas e econômicas fizeram com que fossem construídas
noções de polos irradiadores da história nacional. É como se a
história desta região se confundisse com a história nacional, o que
gerou uma exclusão, intencional ou não, de outras histórias do
nosso vasto país. Marcos Lobato Martins (2010), ao analisar as
perspectivas regionais na produção de materiais didáticos de
história, aponta esta preponderância afirmando que São Paulo
torna-se Brasil quando se fala em café, industrialização, imigração,
trabalho, conflito social urbano, movimentos sindicais,
vanguardas artísticas, entre outros. Esta abordagem que enaltece
São Paulo, segundo o autor, acaba por admitir uma perspectiva de
negatividade às outras regiões brasileiras, de falta, de carência em
comparação ao êxito paulista, isto é, “O ‘espelho São Paulo’ era o
instrumento por meio do qual as diversas regiões brasileiras
deveriam buscar a autocompreensão e a ação transformadora”
(MARTINS, 2010, p. 142). A própria publicação da obra, pelo
4
Sobre estes aspectos, ver: REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e
conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989. REIS, João José. Poderemos cantar, brincar, folgar: o protesto
escravo nas Américas. Afro-Ásia, nº 14, p.115-117, 1983; GOMES, Flávio
dos Santos; REIS, João José (orgs.). Liberdade por um fio - História dos
quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
280
Ministério da Educação, intitulada “História da Educação do
Negro e outras histórias” (2005) não considera a escravidão ou a
história do negro em âmbito amazônico e reproduz o dito
anteriormente.
Se, para a psicanálise, olhar-se no espelho é identificar-se a
partir de um processo simbólico da estruturação do eu, imagine o
leitor olhar-se no espelho e ver o rosto de outra pessoa (LACAN,
1966).5 Como podemos nos estruturar, nos identificar e nos
reconhecer a partir da imagem de outrem? Com esta questão
posta, somada aos movimentos sociais que passaram a exigir
políticas públicas que preservassem suas memórias e que
valorizassem suas histórias e práticas culturais, vemos o
surgimento e defesa de historiografias regionais, como é o caso da
amazônica, que busca modificar a visão mitificada e estereotipada
da região. Ao verificar a incidência da palavra “Amazônia” nos
jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo no século XX,
nota-se que as notícias são em sua maioria acerca do imaginário
exótico, das florestas, dos grandes animais, dos perigos, dos
indígenas, do “inferno verde”6, rios, lendas, folclore, grandes
projetos econômicos (essencialmente no período da ditadura civil-
militar), rodovias, desmatamento, hidrelétricas, sustentabilidade,
poluição, este últimos a alterar a paisagem “natural”. Esta história

5
Ver: LACAN, J. Le stade du miroir comme formateur da la fonction du
Je. In: ______. Écrits. Paris: Seuil, 1966
6
Herdeira da visão etnocêntrica “inferno verde” é uma acepção marcada
pelo determinismo geográfico (ou geografismo). Desde os cronistas do
século XVI até os literatos e cientistas sociais do nosso século as
representações e os imaginários sobre a Amazônia exaltam, de forma
exótica, a Natureza em detrimento da cultura. Assim, podemos verificar,
por exemplo, nos estudos de Euclides da Cunha sobre a referida região a
natureza engolindo o homem.
281
regional a partir de materiais didáticos e paradidáticos viriam
então preencher a lacuna deixada pela história nacional presente
nos materiais distribuídos pelo Programa Nacional do Livro
Didático, do Ministério da Educação, que se confunde com a da
região sudeste.
Tais questões se tornam ainda mais relevantes quando
pensamos na existência de uma Amazônia negra. Chega a causar
espanto em muitas pessoas o fato de se discutir este tema, afinal,
quando se pinta a Amazônia, o senso comum aponta para o
indígena e apenas para ele. Foi o questionamento feito por
Marcela Bonfim com sua exposição de fotografia após se mudar
para o Norte. Quando suas fotografias foram expostas no Norte,
temos o fortalecimento da identidade e, quando no sudeste, além
da primeira, choque! Escravidão no Norte? Pois bem, este tema
parece restringir-se a uma historiografia local e passar longe dos
materiais didáticos e manuais gerais de História do Brasil.

Amazônia Negra
Alguns dados já nos permitem dizer a imensa presença
negra na Amazônia. Segundo dados da Fundação Cultural
Palmares, só nos estados do Pará, Amapá, Tocantins e Maranhão7
existem 788 das 2547 comunidades quilombolas certificadas no
país.
Este quadro revela que, até a década de 1970, a
historiografia pouco se preocupou com a escravidão na região,
haja vista que se acreditava que o trabalho indígena ocorreu em
maior escala que o do escravo africano. Estudar a escravidão
africana no Brasil era atentar-se para os locais onde ela foi mais

7
Mesmo que o estado do Maranhão não faça parte da região norte
oficialmente, aqui o será considerado devido à História do Grão-Pará.
282
intensa, como no sudeste e nordeste. A partir desta década, uma
historiografia renovada da escravidão passou a produzir estudos
sob novas óticas, fontes e metodologias. Do Pará, por exemplo, é
publicado em 1971, uma das primeiras obras cujo foco recaiu
sobre o negro da Amazônia. Em parceria firmada entre a
Fundação Getúlio Vargas e a Universidade Federal do Pará, é
publicado o livro do paraense Vicente Salles, “O negro no Pará,
sob o regime da escravidão”, obra em que o autor historiciza a
“presença do negro” em uma região administrativa denominada
estado do Maranhão e Grão-Pará8. Salles buscou não fazer uma
história da escravidão, mas a presença do negro enquanto força de
trabalho, como fator étnico, como elemento aglutinador da
cultura amazônica, ou seja, o negro africano agindo e interagindo
no contexto a partir de suas lutas e vicissitudes. Outrossim, traz
uma questão: o ínfimo conhecimento que a historiografia
brasileira possuía “sobre o papel do negro na sociedade
escravocrata paraense e, porque não dizer, na Amazônia”
(VERGOLINO, 2004, p.05). A partir de então, estudos com

8
É sabido que a colonização da Amazônia é peculiar se comparada as
demais regiões da América portuguesa. Senão vejamos: o mote inicial de
sua ocupação foi militar, objetivando proteger a região dos “invasores”
franco-batavos; por quase todo o processo de colonização sua economia,
essencialmente estruturada na extração das “drogas do sertão”, foi
alavancada pela escravidão indígena; foi administrada através de legislação
especifica para sua realidade, compreendendo suas relações humanas e
circunstâncias geográficas, vazando certa autonomia político-
administrativa, verifica-se isto através de suas denominações, isto é, Estado
do Maranhão (1621); Estado do Maranhão e Grão-Pará (1654); Estado do
Grão-Pará e Maranhão (1751); Estado do Grão-Pará e Rio Negro (1772).
A partir da segunda metade do século XVIII, para suprir a demanda da
força de trabalho escrava chegaram as primeiras levas de cativos africanos.
283
características parecidas foram sendo produzidos, com especial
atenção para o curso de História da Universidade Federal do
Pará9, criado na década de 1950, que, segundo a professora
Magda Ricci10, era nesta fase bastante ligado à antropologia mas
que começava a despontar por um viés mais historiográfico e
buscar sua autonomia. Talvez um exemplo emblemático, sobre a
relação do curso de História da Universidade Federal do Pará com
a temática das trajetórias históricas dos negros na Amazônia, esteja
inscrito na publicação da coletânea organizada pelo professor
Fernando Arthur de Freitas Neves e Maria Roseane Pinto Lima:
Faces da História da Amazônia. Nessa volumosa obra, lançada
originalmente em 2006, consta uma parte direcionada a
“Escravidão Negra na Amazônia e Discursos Abolicionistas”, com
capítulos articulados por três pesquisadores: Cleodir da Conceição
Moraes, verifica na historiografia paraense e nas fontes visitadas
que o escravo negro passou a se fixar definitivamente na
Amazônia (séculos XVII, XVIII, XIX) a partir da demanda de
trabalhadores “tanto nas áreas de ocupação mais tradicional da
agricultura, como nas áreas caracterizadas pela existência da
criação de gado” (2006, p.309) como, por exemplo, no Marajó.

9
Em 2004, a editora Paka-Tatu lançou o livro O negro na formação da
sociedade paraense, de Vicente Salles. Reunião de palestras e artigos que já
haviam sido publicados, outros que àquela conjunta eram inéditos,
elaborados no período 1976-2002. Trata-se de obra inovadora, posto que
Salles lança mão de vasta e diversa documentação para reconstruir fatos
relativos ao folclore, à religiosidade de matriz africana na perspectiva de
trazer a lume pessoas anônimas por meio de suas formas de resistências,
inclusive, simbólicas.
10
História em um curso regular. Magda Ricci.
http://www.ufpa.br/historia/index.php?option=com_content&view=article
&id=2&Itemid=2
284
Nessa medida, Moraes reescreve parte da trajetória
histórica de um mulato, escravo, vaqueiro: Gabriel José
Quaresma. “Desta forma, Gabriel e muitos outros de condição
semelhante, forjaram histórias particulares de liberdades nos
campos do Marajó e muito temos a aprender com eles sobre o que
era ser escravo no Grão-Pará oitocentista” (MORAES, 2006,
p.338). Na mesma coletânea temos o trabalho do professor José
Maia Bezerra Neto: analisando as influencias das ideias
abolicionistas desde as preposições de Joaquim Nabuco, Neto
verifica os projetos abolicionistas relativos as visões da
Cabanagem, no contexto do século XIX e conclui: “(...), afinal de
contas, os abolicionistas paraenses estavam mais para herdeiros
das visões de mundo dos que derrotaram a Cabanagem do que
discípulos da rebeldia” (NETO, 2006, p.379). Por seu turno,
Helder Lameira de Lima, privilegiando jornais paraenses do
século XIX, verifica um fato inusitado para o pesquisador
contemporâneo, porém, frequente na impressa abolicionista
belenense: o racismo. Assim, apesar de abolicionista, a referida
imprensa “mostrava-se (...) racista e preconceituosa. Seja através
das colunas pagas como as Triolets e Epigrammas ou de
perseguições a cortiços de negros escravos em Belém” (LIMA,
2006, p.386).
Antes, porém, em 2003, Mary Del Priore e Flavio Gomes,
reuniram estudos de diversos historiadores, pesquisadores,
professores sobre a Amazônica. Através da editora Campus,
lançaram o livro Os senhores dos rios: Amazônia, margens e
histórias. A proposta central desta obra seria: “Mais de 500 anos
depois, redescobrir o Brasil, não. Descobrir os Brasis, sim. E para
começar, fazendo-o nas canoas dos ‘senhores dos rios” (PRIORE;
GOMES, 2003, p.XI). Em outras palavras vencer as amarras de
“uma história [do Brasil] excludente e seletiva, ditada pelos
285
interesses de hegemônicos centros acadêmicos” (p.VIII), o
Sudeste, essencialmente. No conjunto dos capítulos articulados
para essa obra se inscrevem estudos sobre a trajetória histórica dos
negros na Amazônia no século XIX e XX, com destaque para os
trabalhos de Flavio Gomes em parceria com Jonas Marçal
Queiroz, Magda Ricci, Eurípedes A. Funes. Fica perceptível
nesses estudos, por exemplo, no bojo da Cabanagem, a luta pela
liberdade não se deu apenas no campo da revolta. Ocorreu
também no campo das questões jurídicas. Em 1836, por sinal, há
indícios sobre a compra da legalidade da liberdade por escravos
em plena revolta dos cabanos. Por meio da análise de documentos
de cartórios e processos judiciais conjectura-se que determinados
escravos “acreditavam que tinha mais força a liberdade concedida
pelo senhor ou comprada em hasta pública do que aquela roubada
em meio a um levante social” (RICCI, 2003, p.186). Não sem
sentido, a memória e a história nos dão conta que existe uma
permanente luta pela liberdade na Amazônia, posto que: “Se num
primeiro momento o enfrentamento visava construir a liberdade,
rompendo com a escravidão, hoje a luta se coloca no sentido de
libertar a terra para continuarem a ser livres e terem assegurado o
direito à cidadania” (FENES, 2003, p.227). Decerto, isso é
evidenciado através das narrativas históricas acerca dos
remanescentes de quilombos do Baixo Amazonas, no Estado do
Pará.
Ao lado disso, a presença negra na Amazônia é temática
que desde as últimas décadas do século vinte vem se apresentando
na historiografia do Amazonas, de forma mais evidente, através de
diversos recortes cronológicos e corpus de análise. Certamente um
movimento de ruptura com a visão tradicional e equivocada
acerca dessa temática, pois que “de modo geral, a compreensão
dos amazonenses a respeito de sua história não inclui a presença
286
negra para a construção desta memória e de suas identidades a
não ser de modo muito pontual” (ALEIXO, 2011, p.230).
A publicação do livro O fim do silêncio: presença negra
na Amazônia, organizado pela professora Patrícia Melo Sampaio,
publicado originalmente em 2011, traz a lume temas, problemas e
objetos de interesses necessários na acepção de uma História a
contrapelo: elucida sujeitos, antes, invisíveis aos olhos da
Historiografia tradicional. Coloca, assim, questões pertinentes:
qual o papel dos escravos negros no processo de composição do
status social e na demarcação das fronteiras do mundo colonial na
Amazônia, contexto do século dezoito? Ora, “os escravos do
Grão-Pará, negros forros, mulatos fizeram valer sua presença de
maneira significativa [...]. Também eles ajudaram a demarcar as
fronteiras desse mundo colonial com suas experiências históricas”
(SAMPAIO, 2011, p.42). Outra indagação gira em torno de
como construir as trajetórias dos negros na Amazônia buscando
compreender os sentidos e as especificidades das fugas de escravos
no Amazonas na segunda metade do século dezenove? No caso do
Baixo Amazonas, fugas são mobilizadas por inúmeros motivos:
epidemias, a falta de alimentos, quebra de acordos com senhores,
proteção de familiares. Assim, “homens e mulheres deslocavam-se
pelos rios e matas cruzando suas experiências de cativeiros com
índios. Mulatos desertores, africanos, marinheiros”
(CAVALCANTE, 2011, p.71). Esses estudos são, decerto, o
testamento histórico da presença negra no Amazonas: escravos
negros foram presentes na província do Amazonas (século XIX)
sob a égide do sistema escravocrata “tendo no palco de sua
construção histórica uma importante contribuição dessas
populações. Uma realidade que a História não pode ignorar. Uma
história sem a qual o entendimento do presente não poderia ser
iluminado” (NETO, 2011, p.96). Essa significativa obra, a qual
287
estamos nos referindo, “como que um pacto firmado entre seus
autores, expressa o sentimento de que, para vencer a injustiça
racial, o esquecimento precisa parar de vencer” (FUNES, 2012,
p.200).
É, portanto, de programas de pós-graduação, ainda
jovens, nascidos na Universidade Federal do Amazonas como, por
exemplo, o Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na
Amazônia e Programa de Pós-Graduação em História Social que
novas abordagem sobre a trajetória dos negros na Amazônia estão
surgindo. Destacamos, assim, três dissertações de mestrado
recentemente defendidas. Em Nascidos no grêmio da sociedade:
racionalização e mestiçagem entre os trabalhadores da Província
do Amazonas (1850-1889), seu autor, Tenner Inauhiny de Abreu
(2002), averiguando a problemática da mestiçagem e, por
extensão, da racialização busca compreender como ocorreu, por
um lado as formas de sobrevivência, por outro, redes de relações
relativas a ascensão social no oitocentos. Nessa medida, lançando
mão de fontes impressas, alude sobre os espaços de disputas,
tensões nos quais os trabalhadores negros estavam inseridos.
Ao lado dessa dissertação de mestrado encontramos outra:
AVE LIBERTAS: ações emancipacionistas no Amazonas
Imperial. Aqui, Provino Pozza Neto, elucidando que a província
do Amazonas se antecipa em quatro anos o processo de abolição
nacional da escravidão (Lei Áurea), verifica que as relações de
trabalho na referida província estavam amaradas à lógica e a
legislação do sistema escravocrata. Nessa medida, os projetos e os
movimentos emancipacionistas foram impactantes nesse contexto.
Para desenhar os caminhos do abolicionismo no Amazonas
Imperial Provino Neto lança mão de fontes impressas, cartas de
alforria e relatórios de província. Dentre outras constatações,
afirma: a emancipação no Amazonas “não pode ser compreendida
288
a partir de interpretação unilateral da benevolência senhorial, na
contramão de uma historiografia laudatória que, como vimos,
pode, sem maiores dificuldades, ser colocada em questão”
(NETO, 2002, p.149).
Paralelo e esses estudos, surge a dissertação de Ygor Olinto
Rocha Cavalcante: Uma viva e permanente ameaça: resistência,
rebeldia e fugas de escravos no Amazonas Provincial (c. 1850 – c.
1882). Nessa pesquisa Cavalcante (2013) verifica que as fugas são
mais frequentes nos anos cinquenta até os anos setenta do
oitocentos, pois que nesse período não haviam leis
emancipacionistas regulando as relações sociais e de trabalho na
província do Amazonas. A partir dos anos setenta, do referido
século, fugas diminuem. Aspecto relevante nesse estudo é a ênfase
na figura feminina escrava. Assim, a casos em que, para proteger
seus rebentos, determinadas escravas estabeleciam redes de
relações e parentescos com os senhores, escolhidos para serem
padrinhos de seus filhos, que mesmo sob a égide da Lei do Ventre
Livre (1871), eram utilizados com força de trabalho. Nessa
perspectiva, no que diz respeito a condição de mulher negra e
escrava, a fuga ficava em segundo plano, posto que para redefinir
as condições sobre si, fugir tornou-se estratégia ineficaz.
As versões sobre a entrada de escravos na Amazônia não
são uníssonas. Conforme a professora Patrícia Sampaio, Manuel
Nunes Pereira afirma que a introdução ocorreu em 1692, quando
trazidos por holandeses, localizados no Amapá. Posteriormente
Arthur C. Ferreira Reis sinalizou a injeção dos negros através das
ações dos ingleses, na passagem do século XVI ao XVII, em
Macapá. Assim, assevera Sampaio: “se flamengo ou bretão, a
verdade é que tal pioneirismo não foi seguido de maiores
desdobramentos na região no que diz respeito à disseminação do
uso de escravos” (2011, p.18). É mesmo no século XVIII que a
289
Coroa portuguesa intensifica o uso da força de trabalho africana
na Amazônia, afirma Sampaio.
Nessa medida, com a expulsão dos ingleses da região, o
tráfico continuou existindo a partir da expansão da colonização
portuguesa, essencialmente pelo modo conhecido com
assentamento, ou seja, o carregamento era de responsabilidade
real mediante contrato com particulares ou então por meio de
Companhias de Comércio, cujo monopólio era assegurado pela
metrópole. Segundo Rafael Chambouleyron (2006), várias
tentativas de assentamento foram feitas, algum com nenhum e
outras com pouco sucesso, como é o caso do contrato de 1682,
em que “príncipe ordenava ao Conselho Ultramarino que passasse
alvará de confirmação do assento feito com vários comerciantes,
‘para a conservação do comércio do Estado do Maranhão, em
utilidade de seus moradores’. Segundo este contrato, 10 mil
negros deveriam ser enviados à capitania, mas de maneira
parcelada, isto é, 500 por ano. Outro exemplo é o contrato feito
com a Companhia de Cacheu e Cabo Verde em 1692, no qual
deveriam adentrar na capitania 145 africanos por ano. Embora o
autor apresente diversos exemplos, atenta para o fato dos números
presentes nos contratos não corresponderem à real entrada de
pessoas na condição de escravos na região, mas o fato é que pode-
se encontrar o uso da mão de obra escrava na região norte já a
partir do século XVII.
Assim, autores como Salles (1971), Bezerra Neto (2011),
Chambouleyron (2006) e Mattoso (1988) apontam para estes
aspectos, identificando o tráfico neste período e atestando sua
irregularidade enquanto atividade ocasional regulada pelo

290
assento11. Segundo eles, dados mais concretos sobre a entrada de
africanos no Grão-Pará e Maranhão do século XVII até 1755 são
difíceis de serem encontrados, haja vista que os desembarques
eram irregulares. Neste ano foi fundada a Companhia de
Comércio do Grão Pará e Maranhão, responsável pela introdução
de 28.852 cativos na região, 16.852 enviados ao Pará e 12.000 ao
Maranhão12. Estes números revelam aumento significativo do
tráfico nos 22 anos de existência da Companhia e, após seu
fechamento, os assentos particulares predominaram na região.
Estes africanos procediam principalmente de Benguela, Luanda,
Cabinda, Gabão, Guiné Bissau, Guiné Portuguesa, São Tomé,
Cabo Verde e Moçambique, isto é, das regiões ocidental, central e
oriental africanas.
Segundo dados compilados a partir do site Slave Voyages
e do projeto “Relações triangulares entre o Para-Maranhão, a
África e o Portugal: O Tráfico Negreiro do fim do século XVII
até 1846. Novos dados, novos olhares. Foco sobre a Senegâmbia”,
coordenado por Didier Lahon e com apoio do CNPq, havia três
modalidades de tráfico para a região, assim como aponta a tabela
construída pela autora:

11
Tais autores não apresentam os mesmos números de africanos que
aportaram no Norte, mas indicam esta existência irregular e ocasional.
12 Dados mais específicos podem ser encontrados em BEZERRA NETO,
José Maia. A Escravidão Negra no Grão-Pará (séculos XVII-XIX). Belém:
Paka-Tatu, 2012.
291
Fonte: LAHON, Didier. Relações triangulares entre o Pará-
Maranhão, a África e Portugal. O tráfico negreiro do fim do
século XVII até 1846: novos dados, novos olhares. Foco sobre a
Senegâmbia. (Apud PALHA, 2011, p.32)

Conforme o quadro, dos 10.024 escravos africanos que


entraram no Grão-Pará e Maranhão de 1801 a 1841, 8.000 foram
por meio de itinerário triangular (Lisboa-África-Pará), 1543 por
meio do modelo Bilateral Indireto (Rio de Janeiro/Pernambuco-
África-Pará) e 481 Bilateral Direto (Pará-África-Pará). É
importante lembrar que os escravos que chegavam por Belém não
ficavam necessariamente na região, podendo ser vendidos a outras
localidades, como os atuais Amazonas e Mato Grosso. Sobre os
locais dos quais os cativos vieram, a autora promoveu o seguinte
quadro:

292
Fonte: LAHON, Didier. Relações triangulares entre o Pará-
Maranhão, a África e Portugal. O tráfico negreiro do fim do
século XVII até 1846: novos dados, novos olhares. Foco sobre a
Senegâmbia. (Apud PALHA, 2011, p.33)

Este contingente de pessoas trazidas da África para a


região Norte refletiu na característica demográfica de sua
população na medida em que foi preponderante para a sua
configuração. Contrariando Spix e Martius que, a partir de relatos
de religiosos, estipularam em 1820 o número de 24.500
habitantes de Belém, Bezerra Neto (2012) acredita que os
números apresentados por Antonio Baena (1969)13 são mais
seguros e, a partir deles, defende que a população negra, indígena
e mestiça, na condição de escravo ou não, representava 54,8% do
total da população belenense em 1822. Percentual muito

13
O autor, neste livro, faz uma descrição minuciosa sobre a divisão
populacional, por bairros e regiões, em Belém da época.
293
significativo, afinal com a independência do Brasil em 1822 e a
adesão do Pará à independência em 1823, muitos escravos
relacionavam a ruptura política com a abolição da escravidão
(BEZERRA NETO, 2001). Em 1832, segundo Baena, a
população branca diminuíra em relação à porcentagem, pois
existiam em Belém 5.715 escravos, 5.643 brancos e 1109
indígenas segundo o censo (BAENA, 2004, p.217-218). A partir
destes dados apresentados até o momento podemos questionar
firmemente as teorias que consideram inexpressiva a presença
negra na Amazônia e a preponderância estritamente indígena,
haja vista que a população escrava, no século XIX, chegou a quase
metade do total da população na cidade de Belém.
Segundo os autores até então trazidos aqui, de 1820 a
1835, esta proporção se manteve, o que diferenciava das regiões
mais ao interior do continente, em que o número de escravos era
muito menor. A partir de 1835 o número de negros da região de
Belém teve uma diminuição em face de “epidemias de bexigas”14 e
da Cabanagem. Esta revolta popular e social, tradicionalmente
reconhecida pela historiografia como sendo levada a cabo por
indígenas e mestiços, teve em seus quadros muitos negros cativos
que buscavam, por meio do movimento, a liberdade (BEZERRA,
2001). Os escravos, presentes nos debates políticos e sociais que
ocorriam ao seu redor, especialmente as questões relativas à
escravidão, discutiam e participavam ativamente de movimento
em prol da abolição (BEZERRA, 2001). Resgatar o escravo
enquanto sujeito de suas ações e desvinculá-lo da ideia de
reificação é relativizar, como tem feito a historiografia desde a
década de 1980, as relações de dominação do período colonial e
imperial ao considerar que ela não foi absoluta. Escravos negros

14
Bexiga era como era conhecida a varíola.
294
agiam mediante violência física e também realizavam negociações
que correspondiam aos desafios diários e souberam lidar, em certa
medida, com as imposições escravocratas 15, afinal, “no Brasil
como em outras partes, os escravos negociaram mais do que
lutaram abertamente contra o sistema” (REIS; SILVA, 1989,
p.14).
A partir dos dados apresentados, pode-se afirmar que, em
relação às outras regiões do país, como Nordeste, o número de
negros escravizados trazidos para a Amazônia Colonial e Imperial
foi muito reduzido, entretanto quando temos acesso aos dados
que comparam as origens étnicas ou a “cor da pele” da população
belenense, podemos compreender melhor a profunda inserção
social e cultural de diversos povos no cotidiano amazônico. Não
se trata de hierarquizar a presença africana entre as regiões do
Brasil, mas de duvidar deste “vazio humano” africano que
perdurou por muito tempo e com o qual sempre se caracterizou a
região (VERGOLINO-HENRY; FIGUEIREDO, 1990).
Ainda no século XIX, enquanto o café despontava no
sudeste enquanto produto importante para a economia nacional,
a borracha despontava na mesma direção para a região amazônica.
Após a Lei Eusébio de Queiroz e a partir das teses cientificistas de
branqueamento para dinamizar a economia, o setor cafeeiro

15
Sobre estes aspectos e para mais exemplos, ver REIS, João José; SILVA,
Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989. GOMES, Flávio dos Santos;
REIS, João José (orgs.). Liberdade por um fio - História dos quilombos
no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2005; LARA, Sílvia Hunold.
Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro,
1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; CHALHOUB, Sidney.
Visões da liberdade: uma história das ultimas décadas da escravidão na
Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
295
passou a promover o tráfico interprovincial e incentivou a vinda
de imigrantes europeus como mão de obra para o campo.
Diferente ocorreu na região norte, local que não atraía imigrantes
europeus e no qual o tráfico interprovincial não chegava. O
aumento da importância do setor gumífero para o Amazonas e
Pará conjugado à falta de mão de obra para a extração fez com
que a migração nordestina para a região a partir de meados de
1870 até 1912 aumentasse consideravelmente, gerando a vinda de
mais de meio milhão de pessoas do Nordeste. Estes, em grande
parte, imbuídos de herança cultural africana devido a mais de três
séculos de tráfico, encontraram na Amazônia uma população
negra. Estudos que se pautem neste encontro podem trazer
análises interessantes para a compreensão da cultura Amazônia, o
que não é o caso deste trabalho, haja vista seu escopo.
Tráfico, escravidão, lutas, fugas, formação de quilombos,
negociações sobre alforrias, migrações, encontros e desencontros
fizeram com que a cultura amazônica fosse formada pela mescla
ou, como apresenta Salles, a presença africana fez com que novas
identidades culturais se formassem, como o carimbó, o boi
bumbá, marambiré, aiuê e diversos outros folguetos que se
naturalizaram como praticas culturais dos escravos. Segundo ele, a
“lúdica Amazônica, no que tem de mais representativo, é
essencialmente africana” (2005, p.186).
Foi Mario de Andrade, segundo Figueiredo (2003), que
resgatou a figura do negro amazônico a partir de sua viagem a
Belém em 1927 quando se falava apenas em indígenas e a eles
creditava-se a cultura do norte. Nesta viagem, Andrade
aproximou-se de Gastão Vieira, com o qual continuou a manter
relações por cartas e que “pôde ter uma ideia melhor do que viu
por estas bandas” (FIGUEIREDO, 2003, p.35).

296
Em sua estadia, Mario de Andrade coletou bastantes
informações sobre os folguetos populares e as curas de pajelança,
assim como recebia constantemente correspondências de Vieira,
que se interessou pelos estudos sobre religiões e feitiçarias. Sobre o
último, o escritor identificou a presença de referências africanas
no interior da pajelança, religião que se acreditava estar sob
hegemonia da influência indígena. O que mais chamou sua
atenção foi a figura de um “Rei Nagô”, referência aos Iorubás,
aparecer com melodia indígena em um ritual de cura, assim como
em rituais com melodias de religiões africanas serem entoados a
Boiúna e o Boto.
Interessava a Mario de Andrade identificar se a matriz das
religiões de origem africana da Amazônia seguiam a linha baiana
ou haitiana, concluindo que a era mais ligada à última. A nós, não
interessa fazer aqui esta discussão, mas compreender que as
pesquisas folclóricas ligadas ao movimento modernista geraram
novos enfoques interpretativos sobre as religiões amazônicas com
afro-indígenas. A partir das anotações e estudos de Mario de
Andrade, foi formada a Missão de Pesquisa Folclórica de São
Paulo que, em 1938, foi à Belém conhecer, pesquisar e estudar
tais religiões, fato que gerou diversas publicações nas décadas
posteriores que retiram os adornos do pajé indígena para
transformá-lo em pajé do voduns, filho de “nagô” e “jeje”
(FIGUEIREDO, 2003).

Ensino de História da Amazônia


Como se percebe até o momento, com estes exemplos que
o limite de páginas impõe, estas questões – e muitas outras mais –
fazem parte de uma historiografia local, surgida a partir das
universidades federais e estaduais dos estados do Norte do país
que dificilmente chegam aos materiais didáticos e fazem referência
297
no ensino de história geral. Isto faz com que as noções de
Amazônia indígena, inferno verde, atrasada, tradicional, etc.,
mantenham-se cristalizadas no imaginário social brasileiro. Como
vimos, a partir da década de 1970 há mudanças importantes neste
quadro a partir da historiografia, mas que dificilmente chegam às
escolas. Há uma valorização da história regional, afinal, ela é
“necessária para o ensino por possibilitar a compreensão do
entorno do aluno, identificando o passado sempre presente nos
vários espaços de convivência - escola, casa, comunidade, trabalho
e lazer - igualmente por situar os problemas significativos da
história do presente” (BITTENCOURT, 2009, p. 168),
enfocando uma história local que crie vínculos com a memória
familiar, do trabalho, da migração, das festas, entre outros setores
da vida cotidiana.
Para atender esses objetivos em relação ao Ensino de
História, foram feitos, no Pará, diversos debates na década de
1980 sobre a necessidade da criação de materiais que atendessem
a realidade local, gerando, em um primeiro momento, um evento
voltado aos professores da rede estadual. Os debates, que até então
estavam postos apenas no meio acadêmico começaram a ser
travados para sua construção e seu uso no espaço escolar. Assim, a
Secretaria de Educação do Estado Pará (SEDUC) em parceria
com o Instituto de Desenvolvimento Econômico-Social do Pará
(IDESP), com o intuito de forjar as diretrizes, suprir o conteúdo
destas disciplinas e auxiliar os professores que não haviam tido
formação acadêmica específica para tal, publicou uma coletânea
que discutiam os problemas atuais da região.
Em seguida foi criada a disciplina “Estudos Amazônicos”,
direcionada ao ensino fundamental. Sua criação ocorreu para
atender a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) pois, em
seu artigo 26, evidencia que o ensino básico deve ter uma base
298
nacional comum, mas que deve ser complementada pelos sistemas
de ensino e pelas escolas com uma parte extra construída a partir
da características regionais e locais, enfocando sociedade, cultura e
economia (BRASIL, 1996). A intenção era haver duas aulas
semanais nas 5 e 6 séries e três aulas semanais nas 7 e 8 séries.
Uma das propostas que havia para a disciplina era de que
ela deveria ser chamada de História da Amazônia. Entretanto,
houve a preocupação que ela ficasse dependente da disciplina
História e consequentemente limitada, ficando decidido,
primeiramente, por “Estudos Paraenses” e, finalmente, “Estudos
Amazônico”, podendo os professores de geografia, de ciências
sociais e de história ministrá-la. Esta disciplina, mais dinâmica,
não possui uniformidade de conteúdo tampouco de
direcionamento, haja vista que de acordo com a formação de
cada docente, muda-se a abordagem e a seleção de conteúdos
considerados mais importantes acerca do que ensinar sobre a
Amazônia. Não há currículo mínimo, uma base comum nem um
manual para o professor. Assim, há professores que se atém mais à
questões como natureza, geografia física, sociológica, política,
economia e sociedade, além poderem ocorrer, de um lado,
abordagens simples e cronológicas e de outro analíticas e críticas.
Se a disciplina em sala de aula já apresentava variedade de
temas e abordagens, esta variedade se propagou com o
aparecimento de diversas editoras prontas a publicar manuais e
materiais didáticos regionais, escritos por historiadores,
sociólogos, cientistas sociais e diversas áreas. Davison Hugo
Rocha Alves (2017), ao analisar estes materiais da década de
1990, identifica duas propostas curriculares diferentes que variam
de livro a livro. Uma delas dá ênfase ao meio ambiente e análise
dos problemas recentes da Amazônia enquanto a outra versa sobre
a história do Estado do Pará articulada à História da Amazônia,
299
analisada por períodos. A disputa pela narrativa foi e é intensa. A
Amazônia deveria ser apresentada por meio dos rios ou por meio
das estradas? Pelas cidades da floresta ou pelas cidades na floresta?
Pela natureza ou pelos projetos arquitetônicos da segunda metade
do século XX? Assim ficaram definidas as duas possibilidades de
se trabalhar na disciplina “Estudos Amazônicos” que, por falta
amplos debates que definam propostas curriculares sobre a
Amazônia e que dialogue com diversos campos do saber, mantém
a disciplina como Ensino de História da Amazônia visto de forma
compartimentada. Com esta base, a formação acadêmica do
docente que trabalha esta história pode demonstrar uma
apreensão do passado que não está em consonância com a teoria
da história e com a historiografia atual em suas preocupações.
A falta de um currículo básico ou mínimo, a desarmonia
entre as propostas didáticas e o que realmente se efetiva em sala de
aula são (piorados) por uma característica física da região: suas
dimensões continentais e desafios naturais dificultam a chegada
dos matérias e de cursos em certas regiões, o que leva o professor a
encontrar qualquer maneira que esteja a seu alcance para ensiná-
la. Além disso, há um problema historiográfico e de identidade
nestas abordagens. Os autores e editoras de livros direcionados a
esta disciplina, sendo paraenses, acabam lecionando uma História
da Amazônia que acaba por se confundir com a História regional
do Pará, o que passou a ser questionado a partir da década de
2010, como podemos perceber na obra Estudos Amazônicos:
ensino fundamental, em que o autor perpassa por todas as regiões
da Amazônia brasileira, mas dá maior ênfase ao Estado do Pará,
indo ao encontro das prerrogativas da LDB, supracitadas.
Em relação à presença de grupos africanos nestes livros, é
fato que vem aumentando desde a década de 1980, mas ainda
tem encontrado pouco espaço. Vamos focar, a título de exemplo,
300
no livro Estudos Amazônicos: ensino fundamental, de Tiese
Teixeira Júnior, publicado pela editora Paka-Tatu. Geraldo
Magella de Menezes Neto (2017) fez um levantamento das
principais editoras do Pará que publicam obras direcionadas a esta
disciplina no século XXI e identificou 5: Estudos Amazônicos,
Editora Amazônia, Paka-Tatu (simboliza dois animais presentes
na região amazônica, a paca e o tatu), Açaí e Samauma (árvore
imensa de florestas inundáveis), com nomes e discursos
regionalistas. A escolha de um livro da editora Paka-Tatu não é
arbitrária. Ela foi criada em 2000 por Armando Alves Filho, José
Alves de Souza Júnior e José Maia Bezerra Neto, todos professores
do departamento de História da Universidade Federal do Pará – o
último, inclusive, autor de uma das mais conhecida obras sobre a
escravidão negra na Amazônia, como já citado anteriormente
neste capítulo.
O livro apresenta temas principais, como A Amazônia
pré-colonial, Amazônia espanhola, projeto colonizador europeu,
economia extrativista, o Pará em tempos de Império, cultura
popular amazônica, Amazônia no século XX, o Pará em tempos
de ditadura, Amazônia e modernidade, Capital e devastação da
Amazônia, Urbanização, Meio ambiente, cultura e resistência,
Amazônia contemporânea, migração e educação, aspectos
geográficos e culturais e um capítulo, dedicado ao 7º ano,
intitulado Os negros na Amazônia brasileira.
O capítulo, bem sintético, inicia com a fundação da
Companhia Geral do Comércio do Grão Pará e Maranhão no
século XVIII, deixando de lado diversos aspectos, como a
introdução do escravo a partir da colonização inglesa no século
XVII, a forma de tráfico conhecida como assentamento e não
diferencia negro de escravo negro africano, como se todo negro
fosse escravo e vice-versa, como se vê na citação a seguir “Nas
301
cidades, as negras faziam o trabalho de babá, cozinheira, lavadeira,
servente, costureira, etc. Já os negros eram direcionados para os
serviços de porteiro, carregador, carpinteiro, torneiro, sapateiro,
etc.” (JUNIOR, 2010, posição 999, ePub). Além de não fazer a
diferenciação citada acima, o texto parece suavizar a escravidão
com o uso dos verbos “faziam” e “direcionados”, como se não
fossem escravizados ou obrigados a fazerem nada. Após um rápido
parágrafo que trata sobre a contribuição cultural por meio de
danças, comida e religião, é apresentado o subtópico “Abolição da
escravatura no Pará”, que inicia como se não existisse o tópico
anterior. É quase um recomeço.
Após serem tratados sobre os “heróis” da abolição, citando
a sociedade abolicionista Ipiranga, faz-se um catado geral da
economia na época da abolição a partir da cana de açúcar,
algodão, fumo e drogas do sertão. Em seguida, trata-se da
Cabanagem, o item maior de todo o capítulo, justamente o
assunto que faz parte da maioria dos materiais didáticos do país.
Fora este capítulo, os africanos e afrodescendentes são tratados no
livro apenas em um capítulo sobre imigrações na Amazônia,
comentando rapidamente sobre suas contribuições culturais.
Assim, a análise deste livro nos leva a crer que há um
aumento considerável acerca da História da Amazônia em
comparação aos demais materiais didáticos utilizados nas escolas
brasileiras, mas que a presença do africano, do negro escravo e do
negro livre, muito pequena, não diferencia muito dos demais
materiais em nível nacional. Não é apresentado um escravo com
relativa autonomia, lutando por seus direitos, formas de
resistência que extrapolem o quilombo. Em momento algum são
citadas as etnias vindas ou das principais regiões da África que os
ingleses ou portugueses traziam os escravizados. Parece que não
houve a mesma preocupação com as populações negras da
302
Amazônia com que foram tratados os indígenas. Se nos materiais
didáticos oficiais o currículo mínimo quase não trata dos negros
na Amazônia, nos matérias regionais feitos para o ensino de
história da Amazônia também deixam a desejar.
Problemática que Valéria Costa e Flávio Gomes trazem à
baila quando afirmam:

O que mais falta são estudos mais empíricos que


cubram todo o Brasil, avançando para regiões urbanas
e rurais da escravidão e da pós-emancipação. Pouco se
conhece sobre o interior das senzalas ou dos casebres
– em becos, ruas e travessas -, ou das matas e grutas
nas quais escravos e livres – a população negra –
reinventavam o cotidiano entre práticas sagradas e
profanas (COSTA; FLAVIO, 2016, p. 7)

Nessa coletânea, publicada originalmente em 2016, feita


com a preocupação de atingir o público acadêmico (mais,
essencialmente, o não acadêmico, por isso, a prioridade aos dados
empíricos, deixando os textos mais leves, nem por isso, o descuido
com a reflexão historiográfica), encontramos o estudo da
professora Mundicarmo Ferretti (2016), por exemplo. Elucidando
os processos de religiosidade na passagem do século XIX ao XX, a
referida antropóloga nos faz verificar as redes de relações entre
terreiros Mina de São Luis do Maranhão com o processo de
formação de pais de santo que abriram casas de Mina nos estados
do Nordeste e, principalmente no “Norte, notadamente em
Belém do Pará” (FERRETTI, 2016, p. 292), sugerindo
indagações sobre os fios e os rastros que podemos trilhar para
compreender a trajetória histórica da história e da cultura afro-
brasileira. Obra como essa talvez possam trazer argumentos para
303
uma indagação pertinente: qual “o lugar da historiografia na
conformação do saber histórico escolar em projetos de aplicação
da legislação” (COELHO; COELHO, 2013, p.94).
Nesse ponto, pensamos na pesquisa, publicada em 2013,
desenvolvida pelo professor Mauro Coelho coma coautoria da
professora Wilma Coelho: elegendo escolas na Região Norte
(Amapá, Amazonas, Pará e Tocantins), aquelas cujos projetos
pedagógicos contemplavam a aplicabilidade da referida lei,
averiguaram uma determinada distância entre a historiografia e o
saber escolar no que diz respeito ao ensino da história da África e
da cultura afro-brasileira. São do pesquisador e da pesquisadora as
seguintes palavras:

Ultrapassamos já, a fase da luta pela inserção das


temáticas africanas, afro-brasileiras e indígenas no
universo escolar. Desde onde percebemos, os desafios
futuros dizem respeito à emergência de uma reflexão
que operacionalize o engendramento de um saber
histórico escolar não orientado a partir de uma visão
eurocêntrica e nem promotor de outros mitos, com
sinal inverso aos que povoam a nossa memória e os
mesmos desdobramentos danosos. Para tanto, o
amadurecimento da reflexão sobre o saber histórico
escolar deve caminhar pari passu nos cursos de
formação, na produção historiográfica e na prática
docente. Talvez, por esse caminho, as aparentes
dicotomias entre bacharéis e licenciados, hoje em
discussão, perderão sentido (COELHO; COELHO,
2013, p. 94)

304
Como pode-se perceber a partir desta explanação, são
importantes e necessários estudos que compreendam a produção
historiográfica da Amazônia em suas especificidades, o que vem
sendo discutido desde a década de 1980. Além disso, os estudos
sobre a presença negra na Amazônia acompanharam estas
perspectivas, tomando corpo mais ao final do século XX. A partir
da primeira década do século XXI, dissertações, teses e livros que
analisam o ensino de história da Amazônia a partir da disciplina
“Estudos Amazônicos” vieram à tona, multiplicando-se,
principalmente, a partir de 2010. Este capítulo, ao tratar destes
assuntos em forma de balanço, abre nova perspectiva ao
problematizar a presença do negro na Amazônia nos materiais
didáticos da região norte do país. Esperamos que estas discussões e
conclusões parciais contribuam para a ampliação dos horizontes
historiográficos que abarquem estas perspectivas.

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309
310
BIOS

André Bueno é Prof. Adjunto de História na UERJ, Brasil; Pós-


Doutor em História pela UNIRIO; Bolsista da Fundação
Biblioteca Nacional [2018-2019]. Mantém o Projeto
Orientalismo, para divulgação na rede de materiais sobre história
e cultura asiáticas.

Arcângelo da Silva Ferreira é Professor Assistente B na


Universidade do Estado do Amazonas. Graduado em História
pela UFAM, Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia pela
UFAM, e atualmente, doutorando em História pela UFPA.
E-mail: asf1969@outlook.com

Clícea Maria Miranda é Doutora em História Social pela


Universidade de São Paulo. E-mail: climari@hotmail.com

Eliane Marques é graduada em Pedagogia e Direito, Mestre em


Direito Público (Constituição, Direitos Fundamentais e
Hermenêutica Jurídica) pela UNISINOS, Especialista em
Constituição, Política e Economia, pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS), também trabalha como Auditora
Pública Externa do Tribunal de Contas do Estado do RS.
E-mail: anecabral763@hotmail.com.

Felipe de Moura Garrido é Doutor em História Social pela


Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), programa de
pós-graduação da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
Atualmente, é professor de ensino básico no Serviço Social da
Indústria – SESI/SP. E-mail: fegarrido@gmail.com

311
Fernanda Chamarelli é Professora da Educação Básica, graduada
em História pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro e
mestranda em História Social da Cultura pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
E-mail: fchamarelli29@gmail.com.

Gustavo de Andrade Durão é Doutor em História Comparada


pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pós-doutorado pelo
Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro. Atualmente é professor da Universidade Estadual
do Piauí – UESPI (Campus São Raimundo Nonato).
E-mail: gustavo.durao@srn.uespi.br.

Heraldo Márcio Galvão Júnior é Professor Assistente B na


Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa).
Graduado em História pela Unesp, Mestre em História pela
Unesp, e doutorando em História pela UFPA. Bolsista
Prodoutoral CAPES. Bolsista do Programa de Doutorado
Sanduíche CAPES - École des hautes études en sciences
sociales/Paris. E-mail: heraldogalvaojr@gmail.com

Letícia Gregório Canelas é Doutora em História pela


Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP, 2017).
E-mail: leticia.canelas@gmail.com.

Lucia Helena Oliveira Silva é Professora do Departamento de


História da Universidade Estadual Paulista – campus Assis,
pesquisadora do CITCEM da Universidade do Porto e vice
coordenadora do projeto Fontes e Pesquisas para a história das
missões na África: arquivos e acervos. E-mail: lho.silva@unesp.br.

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Mírian Cristina de Moura Garrido é Pós-doutoranda em
História da Universidade Federal de São Paulo, campus
Guarulhos, Doutora e Mestra em História pela Universidade
Estadual Paulista, UNESP/Assis.
E-mail: miriangarrido@hotmail.com.

Nuno de Pinho Falcão é Professor do Instituto de Humanidades


e Letras da Universidade da Integração Internacional da
Lusofonia Afro-Brasileira, campus Malês, pesquisador do
CITCEM da Universidade do Porto e membro da coordenação
do Projeto Fontes e Pesquisas para a história das missões na
África: arquivos e acervos.

Patrícia Teixeira Santos é Professora do Departamento de


História da Universidade Federal de São Paulo, Pesquisadora do
CITCEM da Universidade do Porto e do Laboratório Áfricas no
Mundo, da Universidade de Bordeaux III. Coordenadora do
projeto Fontes e Pesquisas para a história das missões na África:
arquivos e acervos.

Túlio Henrique Pereira é Doutor em História Social pela


Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Estágio Pós-
Doutoral no Programa de Pós-Graduação em História do Brasil
da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Bolsista
PNPD/CAPES, Teresina (PI).
E-mail: tuliohenriquepereira@gmail.com.

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