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UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – PPGL

ELIS REGINA MELERE

UM PUNHAL PÚTRIDO:
UMA ANÁLISE DA CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA DE
LÚCIO CARDOSO

DISSERTAÇÃO

PATO BRANCO – PR
2018
ELIS REGINA MELERE

UM PUNHAL PÚTRIDO:
UMA ANÁLISE DA CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA DE
LÚCIO CARDOSO

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-graduação em Letras (PPGL) –
Mestrado em Letras da Universidade
Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR,
campus Pato Branco como requisito
parcial para obtenção do título de Mestra
em Letras. Área de concentração:
Linguagem, cultura e sociedade.

Orientador: Prof. Dr. Marcos Hidemi de


Lima

PATO BRANCO – PR
2018
M519p Melere, Elis Regina.

Um punhal pútrido: uma análise da Crônica da casa assassinada de


Lúcio Cardoso / Elis Regina Melere. -- 2018.
109 f. : il. ; 30 cm.

Orientador: Prof. Dr. Marcos Hidemi de Lima

Dissertação (Mestrado) - Universidade Tecnológica Federal do


Paraná. Programa de Pós-Graduação em Letras. Pato Branco, PR,
2018.
Bibliografia: f. 102 - 110.

1. Homossexualidade na literatura. 2. Personagens literários. 3.


Literatura - Análise. I. Lima, Marcos Hidemi de, orient. II. Universidade
Tecnológica Federal do Paraná. Programa de Pós-Graduação em
Letras. III. Título.

CDD 22. ed. 469

Ficha Catalográfica elaborada por


Suélem Belmudes Cardoso CRB9/1630

Biblioteca da UTFPR Campus Pato Branco


Dedico este a minha família, em especial, Neusa, Ademir, Eduardo e Donna.
Vocês foram paz em tempos de turbilhão.
AGRADECIMENTOS

Foram muitas as pessoas que compartilharam comigo essa trajetória de


pesquisa e aprendizado. A todas elas, meus sinceros agradecimentos. No
entanto, alguns nomes devem ser destacados.
Agradeço à Universidade Tecnológica Federal do Paraná – campus Pato
Branco a qual me acolheu desde 2011, quando ainda adolescente e imatura, e,
aos excepcionais professores do curso de Licenciatura em Letras Português e
Inglês e do Programa de Pós-Graduação em Letras, os quais me
transformaram em uma pesquisadora apaixonada pelos meus estudos.
Agradeço à minha banca, Professor Doutor Maurício Cesar Menon, Professora
Doutora Mariese Ribas Stankiewicz e Professor Doutor Miguel Heitor Braga
Vieira pela rigorosa correção e essenciais dicas fundamentais para a avaliação
da pesquisa e seu aprimoramento.
Agradeço imensamente ao meu orientador Professor Doutor Marcos
Hidemi de Lima por ter me guiado e auxiliado com maestria durante a pesquisa
e por ter me apresentado, em 2014, ao autor Lúcio Cardoso e ao mundo
cardosiano caótico e perturbado pelo qual me encantei.
Agradeço infinitamente a minha família cuja presença e apoio fez com
que meu desejo de estudar profundamente Lúcio Cardoso se tornasse
realidade. Agradeço aos colegas com os quais compartilhei aflições e alegrias
e aos amigos que me apoiaram e compreenderam as minhas ausências, me
incentivando sempre.
O sorriso de que um ótimo trabalho foi desenvolvido pertence a vocês. A
todos, muito obrigada.
Era esta, não havia nenhuma dúvida, a resposta que me
indicavam aqueles lábios estreitos, fechados sobre suas
próprias trevas. O caminho que me indicavam era o do
inferno – um inferno miúdo, humano, elaborado com as
fraquezas, os dejetos e as infâmias de todo dia. Veio-me
neste instante um sentimento desgarrador, uma tão
grande sede de justiça que meus olhos cegaram e meu
coração se comprimiu sobre ele próprio, como no esforço
de uma prece. Ah, Deus, que necessidade tinha eu de
acreditar na imortalidade – e, no entanto, indagava de
mim mesmo se jamais um Meneses poderia acreditar na
imortalidade. (CARDOSO, Lúcio. 2013)
MELERE, Elis Regina. Um punhal pútrido: uma análise de Crônica da casa
assassinada de Lúcio Cardoso. 2018, 110 p. Dissertação (Mestrado em
Letras) – Programa de Pós-graduação em Letras, Universidade Tecnológica
Federal do Paraná, Pato Branco.

RESUMO

Este trabalho estuda Crônica da casa assassinada (1959), considerada a


obra-prima de Lúcio Cardoso, investigando sobre o viés temático da
homossexualidade as personagens Timóteo e Maria Sinhá e sobre a ótica
temática da transgressão as personagens Nina e Ana, com o intuito de
expandir as pesquisas sobre o supracitado livro e, consequentemente,
demonstrar a importância e atualidade desse romance para os estudos
literários. Para a abordagem da questão do homossexualismo, são
apresentados e discutidos estudos sobre alguns de seus aspectos e sobre
algumas figurações romanescas do homossexual na literatura brasileira até
chegar à Maria Sinhá e Timóteo. Com a finalidade de evidenciar e discutir a
transgressão no romance, analisam-se alguns conceitos sobre incesto, traição
e a condição feminina na sociedade brasileira, detendo-se enfim em Nina e
Ana, cujas ações violam as regras da lógica patriarcal, levantando
metaforicamente um punhal que expõe toda a decomposição presente na
família Meneses. Para a compreensão do homossexualismo e da transgressão
destacados em Crônica da casa assassinada, o arcabouço teórico vale-se de
Gilberto Freyre (2003); Michel Foucault (1984); Judith Butler (2008); Ruth
Silviano Brandão (2006); Heleieth Saffioti (1976); Roberto Reis (1984) entre
outros. Percebem-se nesta obra de temas contemporâneos, instigante e
desgostosa de Lúcio Cardoso personagens falhas dentro de uma sociedade
esfacelada – evidente demonstração de que se trata de um romance repleto de
conjecturas e escuridão que não teme pôr em cena os aspectos mais pútridos
de uma família moral e financeiramente decadente.

Palavras-chave: Lúcio Cardoso. Homossexualidade. Transgressão. Crônica


da casa assassinada.
MELERE, Elis Regina. A rotten dagger: an analysis of Crônica da casa
assassinada by Lúcio Cardoso. 2018, 110 p. Dissertation (Master of Letras) –
Graduate Program in Letras, Federal Techonological University of Paraná, Pato
Branco, 2018.

ABSTRACT

This work studies Crônica da casa assassinada (1959) considered Lúcio


Cardoso’s masterpiece, investigating about the thematic bias of homosexuality
the characters Timóteo and Maria Sinhá and from the perspective of the
transgression the characters Nina and Ana, with the intention of expanding the
research on the aforementioned book and, consequently, demonstrate the
importance and relevance of this novel for literary studies. In order to approach
the question of homosexuality, studies are presented and discussed on some of
its aspects and on some romanesque figurations of the homosexual in the
Brazilian literature until arriving at Maria Sinhá and Timóteo. In order to highlight
and discuss the transgression in the novel, some concepts about incest,
betrayal and the feminine condition in Brazilian society are analyzed, and
focusing in Nina and Ana, whose actions violate the rules of patriarchal logic,
metaphorically rising a dagger that exposes all the decomposition present in the
Meneses family. For the understanding of homosexuality and transgression
highlighted in Chronicle of the murdered house, the theoretical framework is
based on Gilberto Freyre (2003); Michel Foucault (1984); Judith Butler (2008);
Ruth Silviano Brandão (2006); Heleieth Saffioti (1976); Roberto Reis (1984)
among others. It is evident in this contemporary themes, intriguing and
disgusting work of Lúcio Cardoso flawed characters within a collapsed society -
a clear demonstration that it is a novel full of conjecture and darkness that does
not fear putting into play the most putrid aspects of a family moral and
financially decadent.

Keywords: Lúcio Cardoso. Homosexuality. Transgression. Crônica da casa


assassinada.
Sumário

CONSIDERAÇÕES INICIAIS ....................................................................................................... 9


1 LÚCIO CARDOSO: UM ACÚMULO DE PERSONALIDADE ............................................ 12

1.1 O AUTOR ..................................................................................................... 12


1.2 RECEPÇÃO CRÍTICA DA CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA .................. 17
1.3 MENESES: UMA IMPONENTE E FRÍVOLA HISTÓRIA ................................ 24
1.4 SERES FRAGMENTADOS E TUMULTOSOS .............................................. 27
2 TIMÓTEO E MARIA SINHÁ ................................................................................................ 34

2.1 APONTAMENTOS SOBRE HOMOSSEXUALIDADE.................................... 35


2.2 ALGUNS ASPECTOS SOBRE A HOMOSSEXUALIDADE NO BRASIL ........ 36
2.3 OUTROS OLHARES SOBRE A HOMOSSEXUALIDADE ............................. 39
2.4 FIGURAÇÃO DO HOMOSSEXUAL EM ALGUNS ROMANCES DA
LITERATURA BRASILEIRA .................................................................................... 43
2.5 UMA REMINISCÊNCIA DESTEMIDA E VARONIL ........................................ 47
2.6 A VINGANÇA EM TRAJES DE GALA ........................................................... 52
3 UM PUNHAL PÚTRIDO: O FIM ANUNCIADO .................................................................. 66

3.1 TRANSGRESSÃO: UM BREVE OLHAR TEÓRICO ..................................... 66


3.2 UM ANJO CAÍDO ......................................................................................... 71
3.3 UMA IMAGEM FOSCA E PERTURBADA .................................................... 81
3.4 UMA SOMBRA OBSCURA: UM RELATO DE OBSSESÃO, INFIDELIDADE E
INCESTO ................................................................................................................ 87
3.5 FENECEM-SE EM PODRIDÃO E DESSASSOSEGO .................................. 92
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................ 98
REFERÊNCIAS ......................................................................................................................... 102
CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A iniciativa deste trabalho se deu ainda em minha graduação quando Lúcio


Cardoso foi-me apresentado. Desde então, despertou-se em mim uma admiração
profunda pelo autor e sua obra. A escolha desse autor e de Crônica da casa
assassinada (1959) deriva da possibilidade de um grande leque de análises a
serem feitas, descobertas e de certo esquecimento de Cardoso no meio literário
devido à data da publicação de Crônica da casa assassinada, a qual coincide com
a época da publicação de Grande Sertão: Veredas (1956) de Guimarães Rosa livro
que ofuscou muitas boas obras no mesmo período. Neste trabalho, o objeto de
estudo centra-se no romance Crônica da casa assassinada cuja primeira
publicação ocorreu em 1959 pela Editora José Olympio, porém para este trabalho é
utilizada a 13.ª edição de 2013 lançada pela Civilização Brasileira.
Nascido em berço mineiro, Lúcio Cardoso (Curvelo, 1913-Rio de Janeiro, 1968)
foi romancista, poeta, dramaturgo, tradutor e artista plástico. Esse berço, a família
tradicional mineira, é justamente o que o autor descreve em suas obras,
empregando uma ótica bastante crítica em relação à constituição familiar e todo o
esfacelamento da família como instituição social e de seu legado seja este sua
árvore genealógica interrompida ou seus bens materiais que se esvaem no tempo
repleto de falcatruas, mentiras e desventuras. Segundo Alfredo Bosi, em História
concisa da literatura brasileira, Cardoso descreve “a decadência das velhas
fazendas e modorra dos burgos interioranos” (2006, p. 442).
Nesta dissertação, o ponto central é o espírito subversivo existente nos
membros dos Meneses com especial enfoque na homossexualidade de duas
personagens bastante evidente em Timóteo e não tão clara de precisar em Maria
Sinhá, uma antepassada da família, e a transgressão de Nina e Ana que, em acordo
silencioso, tramam o fim da família e da casa Meneses. Com menos ênfase, a
análise das demais personagens auxiliam o desenvolvimento deste trabalho no
sentido de desvendar – ou encobrir – os fatos que acrescentem informações
necessárias ao entendimento do leitor.
10

As contribuições pretendidas com esta pesquisa visam apresentar a


importância e a atualidade para os estudos literários do escritor Lúcio Cardoso,
sobretudo nesta obra-prima aqui estudada, abordando as personagens em pares e
exemplificando suas semelhanças e/ou diferenças. Como mencionado acima, um
dos pares estudado é composto por Timóteo e Maria Sinhá e o outro por Ana e Nina.
No primeiro capítulo desta dissertação, “Lúcio Cardoso: um acúmulo de
personalidade”, são apresentados dados biográficos do escritor e a recepção crítica
de sua obra, especialmente a relacionada à Crônica da casa assassinada. Além
disso, há uma apresentação do romance e do enredo que se desenvolve nesta
trama inquietante de Cardoso. Justamente em virtude da forte e angustiante relação
existente entre as personagens do romance, neste capítulo inicial também se efetua
uma descrição das personagens que compõem o romance e o papel que cabe a
cada uma para o desenvolvimento da trama.
Sobre as personagens Timóteo e Maria Sinhá, busca-se estudar a presença
da homossexualidade, dando especial enfoque a Timóteo, que, apesar de não ser a
personagem protagonista, contribui de maneira peculiar com os acontecimentos
narrados no romance. No que diz respeito à Maria Sinhá, trata-se de uma
personagem mencionada no romance, na maioria das vezes, apreendida sob uma
ótica negativa devido à sua atuação masculinizada. Conforme o enredo do romance
revela no passado dessa família, Maria Sinhá, tia-avó dos Meneses, teve atuação
importante a ponto de causar impactos no presente da narrativa.
A fim de analisar e compreender a homossexualidade representada nessa
obra, foi desenvolvida no capítulo intitulado “Timóteo e Maria Sinhá” uma breve
retrospectiva da homossexualidade desde o Brasil colonial até o decênio anterior à
publicação do romance. Dessa maneira, não se pretende analisar as personagens
apenas dentro do romance, mas também o contexto histórico no qual vivem e
relacioná-las a este momento, considerando que os fatos sucedidos com os
Meneses e os que estão à sua volta transcorrem em princípios do século XX.
No último capítulo desta dissertação são estudadas as personagens Nina e
Ana e os elementos que as rondam. Neste capítulo, a análise detém-se na
transgressão em um mundo patriarcal em decadência e no espírito subversivo das
personagens Nina e Ana, espírito este que busca destruir a família Meneses.
Para a construção do arcabouço teórico deste trabalho, foram empregadas as
contribuições de vários estudiosos. Entre eles, destacam-se como essenciais para
11

os aportes teóricos sobre homossexualidade no Brasil Peter Fry (1991), Gilberto


Freyre (2003), Michel Foucault (1984), James Naylor Green (2000), Anthony
Giddens (1993), Judith Butler (2008), entre outros. No que tange à discussão sobre
Nina e Ana, a coerção sofrida por estas personagens numa ordem patriarcal em
processo de esfacelamento e a dificuldade de mulheres que ousam transgredir os
valores de um universo masculino, foram empregadas as discussões efetuadas em
estudos de Ruth Silviano Brandão (2006), Roberto Reis (1984), Heleieth Saffioti
(1976), entre outros.
Esta dissertação pretende desenvolver um apanhado teórico de alguns críticos
do romance e do autor analisando Crônica da casa assassinada. Enfocam-se
também as personagens homossexuais do romance, Timóteo e Maria Sinhá, que,
apesar de não serem os protagonistas do romance, contribuem sobremaneira para o
desenvolvimento da narrativa. Integram-se à análise aqui efetuada o espírito
subversivo evidenciado em Nina e Ana que apresentam no decorrer do romance
particularidades como a descrença na família e na religião, o suposto incesto e o
acordo tácito entre as duas com a finalidade de ocultar fatos passados, uma vez que
elas conhecem os atos transgressores ali ocorridos e não os delatam a ninguém da
família.
Assim, além de reunirem-se informações gerais da recepção crítica sobre o
autor e a obra, analisam-se as personagens femininas e sua participação decisiva
para o desenvolvimento da trama. Ademais, este trabalho busca analisar aspectos
do homossexual no romance e aspectos da homossexualidade no Brasil em meados
de 1920 retratando as discussões sobre gênero que continuam, na
contemporaneidade, a ser encaradas como problemas sociais.
12

1 LÚCIO CARDOSO: UM ACÚMULO DE PERSONALIDADE

1.1 O AUTOR

Lúcio Cardoso nasceu em Curvelo, Minas Gerais, em 1913, e faleceu no Rio


de Janeiro em 1968. Foi romancista, poeta, dramaturgo, tradutor e artista plástico.
Segundo Alfredo Bosi, em História concisa da literatura brasileira (2006),
Cardoso passou a infância em Belo Horizonte, onde cursou o primário e o ginásio.
Depois se mudou para o Rio de Janeiro, em 1923, com a mãe e os irmãos. O pai
havia ficado em Minas. Desde criança, suas inclinações artísticas se demonstraram
com a música ao aprender piano e com sua insaciável busca pelo cinema. De
acordo com Maria Helena Cardoso “apesar de criança ainda, tinha o gosto apurado,
conhecendo cinema como gente grande” (1974, p.265).
Pela ausência do pai em diversos momentos de sua vida, o menino havia sido
criado pela mãe, irmãs, tias e avó, fato que era criticado pelo pai. Este “não
compreendia aquele filho tão diferente dos outros, culpando mamãe pela sua
educação defeituosa, com tantos mimos” (CARDOSO, 1974, p. 274), o que levava o
jovem a um comportamento arredio e desconfiado.
Em 1924, Cardoso retorna a Belo Horizonte para continuar seus estudos e
regressa ao Rio de Janeiro em 1929. Seu desenvolvimento com a escrita despontou
aos dezesseis para dezessete anos. Sua irmã Maria Helena acompanhava e
incentivava seus escritos que eram, inicialmente, baseados em histórias de Curvelo.
Escreve uma peça de teor levemente comunista que fez chegar à mão de um
escritor em voga da época. Este opina ser uma “peça [que] não é má, mas que
preciso ainda crescer muito em sentido vertical” (CARDOSO, 1974, p. 312). Para o
adolescente, a opinião pouco mudou, pois continuou escrevendo e lendo sem parar,
enriquecendo tais práticas com conhecimentos musicais e da vida.
No livro de Maria Helena Cardoso, Por onde andou meu coração:
memórias (1974), não há alusão do nome dessa peça nem mesmo indicação de
uma data certeira, no entanto, na 13ª edição de Crônica da casa assassinada, em
“Cronologia”, o ano de 1929 é marcado como aquele das primeiras tentativas
literárias de Lúcio. Ali consta que sua primeira peça não publicada chamava-se
Reduto dos deuses, possivelmente sendo esta a peça que Maria Helena menciona.
13

Benjamin Moser, escritor, editor, crítico e tradutor estadunidense, na nota


bibliográfica do livro Chronicle of the murdered house (2016), traduzido para a
língua inglesa por Margaret Jull Costa e Robin Patterson pela Editora Open Letter,
apresenta informações pessoais de Lúcio Cardoso desde sua infância em Curvelo
passando pelos seus primeiros empregos, o amor que Clarice Lispector nutriu pelo
escritor, o lançamento de seus filmes e participação em teatro, o adoecimento e a
morte em 1968.
Categoricamente, Moser apresenta o espírito de Cardoso, sua essência como
autor e ser humano buscando desde sua infância seu comportamento arredio e
escandaloso para uma pequena cidade do interior de Minas. Segundo o autor
provocar um escândalo em tais circunstâncias era fácil, mas ninguém fazia tão bem
quanto Cardoso “que se recusava ir à escola, era obcecado por estrelas de cinema e
brincava com bonecas”1 (MOSER, 2016, p. 6, tradução dos autores). Brincar com as
bonecas era o ponto que desestabilizava seu pai. Este rancorosamente culpava a
mãe pelo comportamento “homossexual”2 (MOSER, 2016, p. 6, tradução dos
autores) do menino.
Moser comenta sobre a paixão de Clarice Lispector por Lúcio Cardoso,
afirmando que se não fosse a opção sexual do escritor, eles poderiam até ter sido
marido e mulher. Além disso, Moser também discorre sobre os casos amorosos do
autor, comentando que o escritor nunca viveu um relacionamento sério, “[...] Lúcio
nunca teve um relacionamento de longa duração [...] Ele aparentemente nunca quis
um, apesar de estar constantemente se apaixonando por homens diferentes”3 (2016,
p. 8, tradução dos autores).
A produção literária de Lúcio Cardoso é vasta. Destacam-se os romances
Maleita (1934), Salgueiro (1935), A luz no subsolo (1936), Dias perdidos (1943),
Crônica da casa assassinada (1959) e O viajante (romance inacabado, 1973).
Além disso, escreveu novelas, contos, poesias, peças, diários, adaptações para o
cinema e traduções para a língua portuguesa. Segundo Bosi, no Rio de Janeiro, o
autor “tentou, com menor êxito, o teatro e o cinema” (2006, p. 441).
Abusando do álcool e das drogas, Cardoso é mostrado por Moser como um
homem que festejava demais, aproveitava todos os momentos da sua vida, mesmo

1 “who refused to go to school, was obsessed with movie stars, and played with dolls”
2 “queer”
3 But Lúcio never had a lasting relationship [...] He apparently never wanted one either, though he was

constantly falling in love with different men.


14

sendo advertido por um médico após ter sofrido alguns espasmos faciais. Contudo,
o escritor manteve sua vida de boêmio até que em 7 de dezembro de 1962, Maria
Helena o encontrou em seu apartamento gravemente doente, e, na sequência, em
coma. Ao retornar do coma, as sequelas do acidente vascular cerebral deixaram o
lado direito paralisado, impedindo-o de escrever; assim, depois do derrame, “ele
nunca seria capaz de falar normalmente de novo. Sua carreira de escritor havia
terminado”4 (MOSER, 2016, p.19, tradução dos autores).
No entanto, sob os cuidados da irmã, o escritor encontrou na pintura outro
meio de expressão, tornando-se um pintor talentoso usando apenas a mão
esquerda. Compôs perto de quinhentas telas de filiação surrealista e expressionista,
recriando, de acordo com Mario Carelli “uma atmosfera próxima do resto de sua obra
literária, através da violência cromática e das opções temáticas” (1996, p. 638) e
realizou exposições em galerias de arte do Rio de Janeiro, São Paulo e Belo
Horizonte. Faleceu vítima de derrame cerebral, em 22 de setembro de 1968.
Clarice Lispector em seu ensaio “Lúcio Cardoso” descreve tristezas e
saudades do escritor quando, doente, ficou impossibilitado de escrever. Depois, na
sala de espera do quarto no hospital, onde ele permanecia em coma, a romancista
lamenta que “Antes, mudo, ele pelo menos me ouvia. E agora não ouviria nem que
eu gritasse que ele fora a pessoa mais importante da minha vida durante a minha
adolescência” (1991, p. 789). Ela confessa, enfim, não ter ido ao velório, nem ao
enterro, nem à missa, pois dentro dela havia silêncio demais. De acordo com suas
palavras, “eu vira a morte” (1991, p. 789). Sobre Cardoso, Lispector revela os “seus
anseios e alegrias, de suas angústias profundas, de sua luta com Deus, de suas
fugas para o humano, para os caminhos do Bem e do Mal” (1991, p. 790). A autora
reflete que, apesar de estar mudo, Cardoso havia encontrado maneiras de
expressar-se através da pintura, nunca estando de fato mudo.
A estreia de Lúcio no campo literário foi em 1934, com a publicação de
Maleita, livro no qual o autor “encontraria o próprio caminho, a introspecção e a
análise” (BOSI, 2006, p. 441). Maleita foi publicado em meio a uma profusão dos
chamados “romance do Nordeste”, que possuía como característica a ambientação
nordestina e uma forte crítica social. Acompanhando as discussões literárias,
Cardoso descreveu no romance, baseando-se em uma história familiar, a fundação

4 “He would never again be able to speak normally. His writing career was over”.
15

de Pirapora por seu pai Joaquim Lúcio Cardoso, em 1893, adicionando elementos
ficcionais e a descrição dos hábitos, costumes, ambiente e fala das personagens.
Carelli afirma que Maleita “é a transposição romanesca de uma história autêntica, a
epopeia trágica e lamentável da fundação da cidade de Pirapora, em 1893, pelo pai
do escritor” (1996, p. 626).
Devido ao assunto de caráter naturalista de seu primeiro romance que retrata
a fundação de Pirapora no sertão mineiro, Cardoso foi agrupado equivocadamente
pela crítica entre os escritores chamados regionalistas. Desta vertente da literatura
escrita na década de 1930, os melhores romances se chamavam Cacau de Jorge
Amado, Os Corumbas de Amando Fontes, Menino de Engenho de José Lins do
Rego. Entretanto, de acordo com Bosi, tal filiação de Lúcio Cardoso ao romance
regionalista foi um engano cultural, visto que logo sua produção mostraria mais
afinidade com o grupo espiritualista de Octávio de Faria, Jorge de Lima, Cornélio
Pena, Vinicius de Moraes, grupo este com o qual Lúcio manteve contato até sua
morte.
Segundo Mario Carelli, na edição crítica de Crônica da casa assassinada
(1996) em que atua como coordenador e crítico, certas nuances como densidade
poética e a criação de atmosferas pesadas de suas obras posteriores já podiam ser
observadas em seu primeiro livro. Comenta Luís Bueno, em Uma história do
romance de 30, que Maleita “foi um grande sucesso de crítica” (2006, p. 204)
entusiasmando Agripino Grieco, considerado o crítico mais ferino da literatura
nacional de então.
Percebe-se, pela escrita de Maleita, que Cardoso conhece e reconhece as
peculiaridades das falas bem como o registro da oralidade em que se nota o
distanciamento intelectual das personagens. Isso ocorre, por exemplo, no trecho em
que o protagonista da obra repreende os pescadores e sua nudez: “- Vossemecê
sabe que é mior para a pesca... Adispois vestimo todos.” (CARDOSO, 2005, p. 76).
Característica contestada pela crítica, a fala em Crônica da casa assassinada tem
sido alvo de questionamentos pela aparente homogeneidade dos discursos,
considerada como falha do romance, defeito de técnica ou ainda como um elemento
destruidor da verossimilhança.
Ao realizar a leitura de Maleita e Crônica da casa assassinada elucida-se
que o autor não só afirma conhecer as particularidades de discursos, bem como não
as ignora. O autor “redargüia com a afirmação do seu direito de realizar uma obra
16

desvinculada dos moldes mais convencionais ou, pelo menos, que lhe pareciam
convencionais” (SANTOS, 2005, p. 156), rompendo com moldes de retratos fiéis de
personagens, aproximando-se a uma verdade humana, sem o ar familiar e
encontradiço dos romances de costumes. Consuelo Albergaria reitera que todas as
personagens usam o mesmo registro de fala, independente de sexo, idade ou
condição social e este recurso remete a presença de Cardoso como sujeito-autor e
que em todas as enunciações paira “um clima de conciliábulo, de intriga e de
curiosidade mórbida [...]” (1991, p. 683).
Assim posto, Albergaria expõe que o motivo de manter uma comunicação
fragmentária revela o entredito e o interdito, discurso monológico em que as opiniões
do falante permanecem submersas, uma linguagem não comprometida que se
caracteriza por falar e não dizer, permeando a mensagem “sem que na verdade
sejam transmitidas informações diretamente provenientes de um sujeito, sendo
característica da gente mineira, bem pode ser um dos fundamentos da sua
reconhecida desconfiança [...]” (1991, p. 683) um costume advindo do século XVIII
em que a sensatez na fala e a desconfiança ao ouvir refletem o conhecimento de
antepassados em que cada palavra proferida pode levar à autodestruição. Logo, a
homogeneidade dos discursos em Crônica da casa assassinada constrói no leitor
a imagem de uma família que, presa a uma aura ao redor do casarão dos Meneses,
constitui um só discurso, um discurso de desesperança, rancor, vigilância e
infindáveis suspeitas.
Uma curiosidade para ser ressaltada é que tanto em Maleita quanto em
Crônica da casa assassinada, existem famílias com sobrenome Meneses, sendo
que em Maleita a diferença se dá em sua grafia Menezes com a letra Z ao invés da
S. No primeiro romance, há a seguinte passagem: “Antônio Menezes sorriu. Dobrou
a carta que um tropeiro lhe trouxera e passeou pela sala, as mãos atrás das costas,
distanciado” (CARDOSO, 2005, p. 35). Ainda, outra curiosidade interessante é que
em ambos os textos há menção a Antônio Meneses. Em Maleita, Antônio Menezes
é o fundador da cidade de Pirapora, é quem leva modernização a um lugar ermo,
enquanto em Crônica da casa assassinada, Antônio Meneses foi o nome do pai
dos três irmãos Meneses e seria o nome do futuro filho de Valdo e Nina como no
trecho em que Valdo, extasiado, comenta com o farmacêutico que “[...] se chamará
Antônio, como se chamou meu pai” (CARDOSO, 2013, p. 140).
17

Delineando traços gerais de Cardoso, identifica-se um artista complexo e


completo que constrói, desde seu primeiro livro, romances tais que a literatura
brasileira ainda encontra dificuldades de deglutir. Cardoso foi, além de um grande
artista, um exímio intelectual estudando filmes, artistas e obras buscando o
refinamento para seus dramas e, somando ao seu talento com as palavras, ele
desenvolve romances que envenenam a alma, que trazem a doença, que causam o
caos.

1.2 RECEPÇÃO CRÍTICA DA CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA

Crônica da casa assassinada é a obra sobre a qual este estudo se debruça.


Publicado em 1959, esse romance foi considerado por críticos como Carelli e Bosi,
citados anteriormente, a obra-prima de Lúcio Cardoso, tendo sido traduzido para o
francês, inglês e italiano. Diversos críticos, como Adonias Filho e Nelly Novaes
Coelho, compararam Lúcio Cardoso a autores como Julie Green, François Mauriac e
Georges Bernanos devido à sua proximidade com o tema destes autores, tais como
o drama familiar, os conflitos e crises interiores. Outros críticos relacionaram o
escritor mineiro a Dostoievski, Cornélio Penna e Raul Brandão devido à inquietude
existencial-metafísica. Há ainda quem o tenha relacionado a William Faulkner
associando a escrita de Cardoso a ecos do fluxo de consciência empregados pelo
escritor americano.
Nelly Novaes Coelho em seu artigo “Lúcio Cardoso e a inquietude existencial”
(1996) discorre sobre a tempestade existencial das personagens de Lúcio em
diversos romances e vários personagens com o enfoque na sua existência. Ela
aborda a questão da religiosidade e a busca das personagens no romance pela
comunhão com Deus e a justificativa pela imperfeição do ser humano. Essa busca
ocorre onde Deus não está, como no erro e no pecado da carne. Segundo Coelho, é
em Crônica da casa assassinada que Cardoso “aceita abertamente a ‘danação’
como único caminho para a solução do drama de suas personagens” (1996, p. 779).
Ela também afirma que há a voz do narrador e que as outras vozes que aparecem
no romance seriam seu instrumento. Concordando com Coelho, Carelli afirma que o
percurso traçado pelo autor desemboca neste “romance propriamente polifônico,
não só pela opção narrativa fragmentária mas, sobremaneira, pela complexidade de
18

suas criaturas [...]” (1996, 638), romance este que teria continuidade no livro O
viajante, que ficara incompleto devido ao estado de saúde do escritor.
Apesar de suas personagens buscarem a comunhão com Deus, de acordo
com Coelho, André do Carmo Seffrin, em seu artigo “Câncer e violetas”, afirma que
Lúcio era um boêmio e, por isso, “[...] escreveu com algum método misterioso em
que imperavam as leis do destino” (1996, p. 792). As leis do destino que Seffrin
discorre são os inúmeros infortúnios e desarranjos de uma família completamente
desestabilizada. Infortúnios estes que transparecem como obra do destino e não
como escolha de um ser.
Além dos comentários críticos sobre Crônica da casa assassinada, para
este estudo foram analisados os diários escritos pelo autor, alguns publicados em
vida, e reorganizados por Ésio Macedo Ribeiro (2012). Nos Diários, reeditados por
Ribeiro, existe um cuidado em apresentá-los cronologicamente. Além disso, o autor
corrige os “muitos equívocos, como a inserção de trechos em duplicidade e leitura
errônea de letras e vocábulos na transcrição dos manuscritos, sem mencionar as
gralhas, também numerosas” (2012, p. 11).
A leitura dos Diários permite um aprofundamento da maneira como Cardoso
pensa, conhecendo-o no seu íntimo e tendo contato com sua trajetória no cinema,
no teatro, na escrita, nas leituras, além de verificar as influências sofridas pelo
escritor e sua percepção religiosa, resultando em uma maior compreensão da sua
literatura, sobretudo lançando luzes sobre pontos obscuros de Crônica da casa
assassinada.
De acordo com Afrânio Coutinho, “Lúcio encarna, dentro do romance
brasileiro, a figura solitária de um homem que somou ao fascínio pessoal e
legendário uma força criadora altamente romântica e surpreendente” (1986, p. 445).
Essa figura solitária é o que se percebe em Crônica da casa assassinada quando
suas personagens, apesar de pertencerem a um mesmo núcleo, não se relacionam
fraternalmente. Coutinho reflete sobre o romance apontando-o como uma obra
extraordinária, com tamanha densidade e riqueza rara, que beira uma morbidez em
derrocada. O crítico descreve Crônica da casa assassinada como obra de temática
universal “que paira solitário dentro da ficção brasileira, e que representa a síntese
de uma vivência em nosso tempo, em nossa crise de almas e de grandeza, atrás da
qual fulgura a vocação incontida do homem para a ressurreição” (COUTINHO, 1986,
p. 455).
19

Bosi apresenta como um amadurecimento do autor ao retratar a:

[...] reconstrução admirável do clima de morbidez que envolve os ambientes


(quem esquecerá o fundo esverdinhado da velha chácara onde há mofo e
sangue?) e os seres (indelével, a figura de Nina, atraída pela vertigem da
dissolução no próprio eros) (2006, p. 442).

Deveras, este romance de Cardoso expõe-nos a todas as angústias e ao


desconforto do ambiente da Chácara, seja ele físico ou moral, e desenvolve
personagens complexas, com destinos atormentados, desesperançosas e
descrentes.
Ainda Bosi salienta em seu ensaio “Um grande folhetim tumultuosamente
filosófico” que o romance possui um teor universalizante, que passou por uma
grande autoanálise e subjetividade. Bosi reflete sobre a escrita de Cardoso e traça
comparativamente similaridades com outros autores vigentes da época para relatar
o momento histórico-literário dos anos de 1930. Segundo o autor, neste momento,
atenta-se para personagens e focos líricos e romanescos que vivem ambiguamente
“[...] entre os estados de pecado e de graça, de danação e salvação. Nessa
atmosfera sujeita a temperaturas extremas, irrompem, obsessivas, figuras mórbidas
ou letais” (BOSI, 1991, p. 21).
A ambiguidade citada por Bosi é percebida, claramente, na personagem Ana,
que vive em um dilema entre mandar suas cartas com suas confissões ao Padre e,
ao mesmo tempo, duvidar de uma existência superior, mas que ela crê ser capaz de
condenar os pecaminosos e ressuscitar os mortos. Ademais, seu próprio nome
sugere tal ambiguidade uma vez que se constitui de um palíndromo, ou seja, pode
ser lido na ordem direta ou de trás para frente, sugerindo um duplo na personagem.
Valdo também apresenta características ambíguas quando questiona o Padre sobre
a existência de Deus, no entanto, afirmando crer na existência do Inferno.
Segundo Carelli, a “obra-prima catalisa e transcende as principais
descobertas humanas e estéticas do autor maldito que consegue adequar a visão e
a forma pessoais” (1996, p. 639). Crônica da casa assassinada é o romance em
que o autor emprega as suas tentativas de expressão criativa e que as deixa em
evidência pelo seu projeto artístico empreendido. No ensaio “O resgate de um
escritor maldito”, Carelli enfatiza que diversos foram os participantes da retomada do
autor e suas obras, em especial Crônica da casa assassinada, e declara que
20

Cardoso foi um dos temperamentos mais fortes de sua geração e que sua obra-
prima possui perturbadora e apaixonante densidade. Ainda enfatiza que com
Crônica da casa assassinada “a literatura brasileira se enriqueceu de um texto
convulsivo e rebelde, marco de uma de suas fronteiras: a busca angustiada do
sentido da aventura humana” (CARELLI, 1991, p. 26).
Somando às pesquisas críticas, analisa-se a tese apresentada pela autora
Cássia dos Santos, estudo que ilumina diversas pesquisas sobre Lúcio Cardoso e
Crônica da casa assassinada como também seu projeto posterior à publicação
deste livro. Esta obra de Cardoso, conforme observa a pesquisadora, “é igualmente
representativo desse projeto ambicioso que, a partir de 1951, ano do início da
elaboração do romance inacabado O viajante, passou a absorver o escritor”
(SANTOS, 2005, p. 3) e que deixou outras obras suas inconclusas.
Crônica da casa assassinada seria o primeiro livro de uma série de três
romances constituído por Crônica da casa assassinada (1959), O viajante (1973)
e Réquiem, livros em que o autor daria continuidade à fictícia cidade de Vila Velha e
a personagens de Crônica da casa assassinada que têm seu fim desconhecido
como André, que aparece junto ao bando de Chico Herrera, e personagens que são
apenas mencionados teriam seu caráter desenvolvido na sequência dos romances
como Chico Herrera e Donana de Lara. Todos esses, Faria afirma, possuem
“importância excepcional [que] não devemos duvidar” (1996, p. 679). Acrescenta o
crítico que estas personagens abordariam temas que já vinham despontando em
outras obras, como a crueldade do ser humano, o questionamento religioso, a
revolução patriarcal e a decadência do sistema.
Os fatos de Crônica da casa assassinada ocorrem nas proximidades da
fictícia cidade de Vila Velha, nalgum lugar de Minas Gerais, onde a família Meneses
vive numa imponente Chácara. A família, composta por Demétrio, Valdo, Timóteo,
Ana (mulher de Demétrio) e os empregados, Betty (a governanta), Alberto (o
jardineiro) e outros, aguardam a chegada de Nina, mulher de Valdo, que está se
mudando do Rio de Janeiro para viver na pequena cidade de seu marido. Nina é a
personagem principal, sendo que as narrativas, confissões, depoimentos, cartas e
diários retratam acontecimentos relacionados a ela. É também ela quem denuncia a
decadência da família Meneses e a critica por viver na glória do passado recusando-
se em alterar a situação atual.
21

Nesse romance, Lúcio desconstrói a tradicionalidade mineira; ele descreve


uma sociedade em decadência que, após a abolição da escravatura e da
proclamação da república, não possui, segundo Eunara Quixabeira Rosa e Silva, em
Lúcio Cardoso: paixão e morte na literatura brasileira, “[...] sustentação econômica
por uma série de erros, inicia[ndo] sua lenta agonia rumo à extinção que ocorrerá
após a ruína financeira de 1930” (2004, p. 168). Soma-se a carência econômica para
manter os luxos de outrora “[...] uma forte religiosidade tradicional e dogmática
apegada a mecanismos como culpa, a purgação e a penitência” (ROSA E SILVA,
2004, p. 168).
Ainda em conformidade com a análise de Rosa e Silva, na narrativa de
Cardoso “a exacerbação do desejo engendra o dilaceramento do ser traduzido em
erotismo, solidão, angústia e desespero – categorias da condição humana – que se
concretizam nas personagens degradadas e femininas” (2004, p. 17), percebidas em
várias personagens do romance. Em Timóteo, constatam-se a solidão a partir do
momento em que não participa mais do meio familiar, a angústia e o desespero para
exterminar a família Meneses e o erotismo em seu amor por Alberto. Conforme a
interpretação de Carelli, “Lúcio apresenta a Crônica da casa assassinada como um
libelo contra a sociedade de Minas Gerais. Na realidade, ele permanece
visceralmente mineiro, não podendo por isso abandonar uma relação de amor-ódio
pela região natal” (1996, p. 637).
Eduardo Portella discorre no ensaio “A linguagem prometida” sobre a Chácara
dos Meneses e classifica-a como “uma zona de turbulências, habitada por seres
perplexos e fantasmas convictos” e que o ambiente é “o domicílio natural dos
desencontrados, a passarela soturna na qual desfilam, se cruzam e se chocam,
homens e mulheres mais ou menos disfarçados, atingidos pela pontaria certeira do
desvio” (1991, p. 19). Portella apresenta a Chácara como a personagem na qual há
um crescendo do sentimento de estrangeiridade, onde todas as personagens
possuem suas transgressões e nenhuma se identifica com o meio em si, sendo esse
meio o palco de uma “solidão acompanhada, e a companhia solitária” (1991, p. 20).
De fato, as personagens formam uma família, mas apenas em linhas sociais, uma
vez que seus membros reconhecem-se como parte da família Meneses, mas não
zelam por ela, não zelam por um sentimento íntimo que os une além do sobrenome,
posto que o ambiente familiar encontra-se despedaçado e perdido.
22

Portella ainda salienta que a ordem social representada por Cardoso reflete
as ruínas de “um mundo soterrado, porém ainda não de todo morto: letárgico,
coagulado, larval, incapaz de decidir sobre o que fazer dos seus distúrbios
recalcados ou das suas feridas expostas” (1991, p. 20). As marcas sociais da ordem
patriarcal que o autor de Crônica da casa assassinada apresenta são marcas de
um sistema ultrapassado, mas ainda assim um sistema que persiste, que rasteja,
para manter-se em um poder quase que inexistente.
No ensaio “Lúcio Cardoso”, Octavio de Faria analisa a figura do autor e suas
séries inacabadas, abordando os motivos para a série A luz no subsolo não ter seu
segundo e terceiro volume publicados. Aborda seu itinerário afirmando que após seu
terceiro livro “não havia mais como duvidar: estávamos diante de um criador de
envergadura equivalente à dos maiores de que podíamos nos orgulhar” (1996, p.
661), comparando o escritor a autores das grandes tragédias gregas, distinguindo-o
no patamar de autores brasileiros como “o mais autêntico, o mais completo, o mais
vivo e o mais importante dos nossos atuais romancistas” (1996, p. 661).
Faria ainda explora as personagens e todas as suas complexidades e o
mundo que o romancista criou, que se caracteriza por ser:

eminentemente trágico e eminentemente desesperado [...] mundo de onde a


presença de Deus parece ter sido varrida e onde as pegadas do demônio
podem ser seguidas sem grande esforço em não sei quantos e quantos
personagens essenciais (1996, p. 665).

Octavio de Faria declara que, por esse motivo, por ser um mundo completo
de infelicidade ancorado na desgraça humana com seres que carregam consigo a
tragédia e não podem e não parecem querer fugir, Cardoso deveria ser filiado à linha
dos grandes trágicos. Soma-se a tragédia de seus romances, o ódio que promove,
as desavenças que obriga seus personagens a esconderem-se e a espionarem-se
uns aos outros fazendo emergir situações como pecado, adultério, maldição,
havendo, em consequência de tudo isso, o banimento da esperança na Chácara.
Em “Espaço e transgressão” de Consuelo Albergaria, há uma retrospectiva
histórica e social do período literário em polvorosa no Brasil como os romances de
1930 e seu engajamento social e a geografia do estado de Minas que interfere em
suas relações sociais. Ela retrata como os autores deste estado se portavam e
afirma: “diz o ditado que Minas trabalha em silêncio. E rumina” (1991, p. 681),
23

apresentando Lúcio Cardoso como um daqueles que representam a mineiridade em


seu aspecto mais incisivo: a repressão da família patriarcal.
Ademais, Albergaria relata que a mola impulsionadora de Crônica da casa
assassinada é a paixão: paixão de Cardoso por Minas; paixão de Cardoso contra
Minas. No decorrer de seu ensaio, a autora aborda as personagens principais do
romance, Timóteo, Nina e Ana, e discorre sobre suas funções no romance. As duas
primeiras, segundo a pesquisadora, rompem, destroem o mundo que os Meneses
veneravam; a última figura como a representação desse sistema em decadência.
Nesse romance, diversos assuntos incitam e mexem profundamente,
situações mostradas nua e cruamente por Lúcio Cardoso. Mas, entre tantos
assuntos possíveis de serem tratados sobre a obra desse escritor, este estudo
procura abordar as personagens sob a ótica da transgressão moral e social
considerada inadequada para os moldes sociais da época. Como Bosi afirma, em
Crônica da casa assassinada são os:

[...] fantasmas da transgressão que assediam as personagens de um drama


montado a partir de uma paixão subjetivamente incestuosa (que é o que
moralmente conta); e em torno da violação fundamental se consumam o adultério
e a perversão (BOSI, 1991, p. 22).

Com especial enfoque, este trabalho detém-se no estudo das personagens


Timóteo e Maria Sinhá, caracterizadas com travestimento e homossexualidade, e as
personagens Ana e Nina, representantes de desvios tais como o incesto, traição e
acordo mútuo entre as partes, dado que as personagens conhecem o incesto e a
traição que permeiam os laços familiares, no entanto sem relatar a nenhum outro
membro e sem, até mesmo, arranjar entre si o silêncio uma da outra, acordo este em
que se insere o jardineiro Alberto.
Em suma, diversos críticos e estudiosos escreveram sobre Crônica da casa
assassinada, analisando temáticas diferentes, uma das riquezas do livro. Além
disso, o romance é reconhecido como uma obra-prima que aborda assuntos até
então não versados em sua totalidade na literatura brasileira, como o incesto, a
traição, as transgressões, o desgosto. Cardoso aponta um punhal contra as
verdades humanas, principalmente, suas falhas e assim apresenta um romance
complexo e desagradável que traz à alma certa escuridão. Ao retratar estes
assuntos de tal forma, Cardoso se encarrega de engendrar inúmeras discussões no
24

século XXI e assim passa a integrar, cada dia mais, o hall de autores consagrados
pela crítica.

1.3 MENESES: UMA IMPONENTE E FRÍVOLA HISTÓRIA

Crônica da casa assassinada é um romance que retrata a vida dos


integrantes da família Meneses na fictícia cidade de Vila Velha no interior de Minas
Gerais. Nesta narrativa, Lúcio Cardoso mostra por intermédio de suas personagens
a decadência do sistema patriarcal, bem como a destruição, sob vários aspectos, da
família Meneses.
Para este trabalho foi utilizada a décima terceira edição de 2013, lançada pela
editora Civilização Brasileira, contendo 545 páginas entre prefácio e apêndice. O
romance é composto de 56 capítulos divididos entre diários de André, diários de
Betty, cartas de Nina a Valdo Meneses, cartas de Nina ao Coronel, carta de Valdo
Meneses, carta de Valdo a Padre Justino, narrativas do farmacêutico, narrativas do
médico, narrativas de Padre Justino, confissões de Ana, depoimento de Valdo,
depoimento do Coronel, livro de memórias de Timóteo e pós-escrito numa carta de
Padre Justino.
Ao longo dos capítulos, pode-se ter uma breve ideia de como o romance de
Lúcio Cardoso se constrói: são diversas lembranças escritas por diferentes
personagens que recuperam a realidade sob a sua perspectiva, compondo assim
uma narrativa caleidoscópica em que as informações, algumas vezes, são contadas
por mais de uma personagem e sob outro ponto de vista. Para Adonias Filho, no
artigo “Crônica da casa assassinada”, as várias vozes que narram o romance
parecem teias com “inúmeros depoimentos – diários, narrativas, confissões, -
articula[ndo]-se em tamanho equilíbrio que a tragédia surge aos pedaços para
adquirir finalmente a projeção inteira”. (1996, p. 769).
Por seu turno, a Guy Besançon:

[...] a própria redação da Crônica da casa assassinada favorece as observações


esboçadas, visto que consiste em uma série de notações que emanam dos
diferentes atores do drama e de algumas testemunhas privilegiadas, como a
governanta, o farmacêutico, o médico, o padre Justino (1996, p. 690).
25

Há também um flashback inicial no romance, a partir do qual o autor descreve


momentos finais da trama, narrando-os de trás para frente. Porém, no decorrer do
romance, a narrativa não se comporta meramente como um flashback. É possível
observar que as informações estão intercaladas para construir no imaginário do
leitor as vozes desencontradas do romance que, muitas vezes, recontam algum fato
com maior ou menor detalhamento. Nalgumas situações, existe o desacordo de
informações de um ou outro narrador.
No prefácio “Uma gigantesca espiral colorida” (1999), ao tratar de Crônica da
casa assassinada, Seffrin descreve o romance do seguinte modo:

Um tumulto de atmosferas opressivas, de ambientes convulsionados. Em


ritmos alternados de exaltação e calmaria, uma trama que oscila em polos
de um simbolismo que vaga entre a luz e a treva, o amor e a morte, a
beleza e a doença. Concerto para vozes dissonantes sob os alicerces de
uma casa e de uma família em franca degradação social e moral. Uma
história que conhecemos somente pelo relato de seus próprios
personagens, através de cartas, diários, memórias, confissões,
depoimentos. Maciço perturbador cujos temas centrais são adultério e o
incesto, a loucura e a decadência (2013, p. 7).

A franca degradação social e moral apresentada no já aludido prefácio de


Seffrin remete ao prestígio que outrora a família Meneses detivera: era respeitada
pelos seus iguais, por membros da alta sociedade, como também pelos cidadãos de
Vila Velha. Enquanto a narrativa transcorre, tem-se ciência de que a família e sua
imponente casa mantêm certo respeito perante os cidadãos, embora os membros da
alta sociedade já não frequentem a Chácara dos Meneses – por mais que sejam
convidados, como acontece com o valoroso Barão de São Tirso. Além disso,
fechada em si mesma e assinalada pela soberba, a família Meneses nunca participa
dos bailes e eventos sociais.
Essa degradação começa a acontecer antes de o romance ser narrado.
Quando se inicia o romance, trava-se contato com uma família já desestabilizada e
com problemas financeiros. Desestabilizada, justamente, pela imperícia da
administração orquestrada pelos irmãos Meneses. Durante o desenrolar dos fatos,
acompanha-se a morte tanto social quanto moral dessa família que não consegue,
em momento algum, juntar os poucos pedaços que sobraram do que antes se podia
acreditar que era uma família.
26

Segundo Besançon, o título do romance deve ser levado em consideração


uma vez que “uma Crônica da casa assassinada é um relato de uma série de
acontecimentos importantes, como uma campanha militar ou uma epidemia. No
caso, narra-se a queda da casa Meneses, ou, mais exatamente, seu assassinato”
(1996, p. 690). Além disso, a destruição ocorre quando da chegada de um agente
exterior, Nina, conquanto não caiba somente a ela a responsabilidade pela
decadência do clã. O fim dos Meneses “já se anunciava desde o seu casamento
com Valdo” (BESANÇON, 1996, p. 690) como pode ser notado no relato das outras
personagens. Portanto, a vinda de Nina – que critica o modo mineiro de
administração familiar – só agrava a situação.
Crônica da casa assassinada tem como temas principais o adultério, o
incesto, a loucura e a decadência, como afirma Seffrin no prefácio do romance. O
adultério se dá pelas personagens Nina e Ana, que se envolvem com o jardineiro da
casa, Alberto. Desses relacionamentos, ambas engravidam e concebem dois
meninos. Nina concebe seu filho no Rio de Janeiro e o abandona lá. Ana também
vai ao Rio de Janeiro, com o intuito de encobrir sua gravidez alegando a Demétrio,
seu marido, que pretendia tentar trazer Nina e o bebê de volta para a casa. Ana
retorna à Chácara com seu filho, porém afirma que o recém-nascido é de Nina e
Valdo. Como revelado no fim da narrativa, André, a criança trazida por Ana, nunca
chega a saber quem realmente são seus pais.
Após um espaço de tempo de quinze anos, Nina retorna do Rio de Janeiro
para a Chácara dos Meneses, já sabendo da doença que a acomete e que
lentamente levar-lhe-á à morte. Nesta sua volta à Chácara, Nina e André,
supostamente seu filho, envolvem-se em um relacionamento sexual, o que é visto
como uma relação incestuosa, exceto para Nina e para a cunhada que sabem que o
adolescente é filho de Ana e Alberto.
A loucura, de que fala Seffrin em “Uma gigantesca espiral colorida”, encontra-
se em cada capítulo, em cada frase da narrativa, pois todos os membros carregam
consigo uma loucura interior, seja a de convivência em um ambiente isolado e
interiorano, seja a rede de mentiras que são inventadas a todo momento para
encobrir algum ato criminoso ou suspeito que contradiga as ordens ditadas por
Demétrio. E a decadência fica mais clara na medida em que a leitura avança, uma
vez que em cada um deles desvendam-se a pútrida aristocracia mineira, as
27

imposições sociais e sexuais, a escravidão disfarçada ou esquecida, a falência de


um sistema econômico condenado.

1.4 SERES FRAGMENTADOS E TUMULTOSOS

Em Crônica da casa assassinada, várias personagens caracterizadas


diferentemente são retratadas. Cada uma delas possui determinada particularidade
o que faz do romance uma obra grandiosa e passível de diversas interpretações,
uma vez que as diversas óticas narrativas que existem na obra possibilitam que seja
interpretada sob os mais diversos olhares.
Antonio Candido comenta em A personagem de ficção que as personagens
alcançam uma “validade universal que em nada diminui a sua concreção individual;
e mercê desse fato liga-se, na experiência estética, à contemplação, a intensa
participação emocional” (1968, p. 64). Em Crônica da casa assassinada, a
validade universal se dá aos temas trabalhados por Cardoso os quais instigam o ser
humano e se perpetuam uma vez que são intimamente ligados à psique humana.
As personagens em Crônica da casa assassinada são complexas e
múltiplas, visto que o “romancista pode combinar com perícia os elementos de
caracterização, cujo número é sempre limitado se os compararmos com o máximo
de traços humanos que pululam, a cada instante, no modo-de-ser das pessoas”
(CANDIDO, 1968, p. 79). Isso posto, encontram-se neste romance, seres
complicados, profundos, nos quais o mistério e o desconhecido permeiam suas
existências e que se revelam a cada nova interpretação e que a cada nova leitura, a
cada nova pesquisa, desvenda-se mais uma peça deste quebra-cabeça.
Assim, adentra-se em Vila Velha e conhece-se sua realidade, mais
precisamente a do casarão dos Meneses e das suas personagens. Segundo Faria,
as personagens de Cardoso são “atraídos pela destruição, predestinados à
destruição, escravos da destruição” (1996, p. 672) uma vez que não conseguem se
libertar das correntes imaginárias que os atam à Chácara e ainda são definidos
como “os heróis da tragédia grega”, em virtude da similaridade das tragédias,
sobretudo a de Édipo, uma vez que a história do herói grego retrata a relação
incestuosa entre mãe e filho.
28

Assim como no mito, em Crônica da casa assassinada existe uma relação


incestuosa só solucionada em seu último capítulo. No entanto, Ana e Nina têm
ciência de que André não é filho desta última e, portanto, seria um relacionamento
entre tia e sobrinho. Entretanto, para André a ideia de haver um relacionamento
pecaminoso com a mãe se mantém, mesmo depois de Nina morta. Diferentemente
do mito grego em que Édipo e Jocasta desconhecem seu parentesco, no romance
André desconhece que Nina não seja sua mãe.
A personagem principal do romance é Nina, mulher que se casa com Valdo.
Acostumada com a cidade do Rio de Janeiro, muda-se para a interiorana Vila Velha,
em Minas Gerais. Ao chegar, Nina depara-se com um casarão em ruínas e uma
família financeiramente decadente, algo que não esperava, visto que Valdo havia lhe
dito que possuía recursos financeiros para sustentá-la. Desde a sua chegada, ela
percebe a bancarrota familiar e a frivolidade com que os Meneses se relacionam.
Como personagem principal, em boa parte das narrativas que se desenvolvem na
trama buscam contar histórias, momentos vividos com Nina ou sobre sua pessoa,
tentando retratar sua vida em Vila Velha ou no Rio de Janeiro.
Valdo Meneses, marido de Nina, apresenta-se como um ser inseguro e
hesitante e é incessantemente atormentado pelo irmão mais velho Demétrio. Sua
fraqueza de caráter faz com que frequentemente submeta-se às opiniões de seu
irmão, sendo sempre submisso a ele. Valdo poderia ser considerado o chefe dos
Meneses, uma vez que ele seria o progenitor da família com o nascimento de seu
suposto filho. No entanto, Demétrio acusa Nina de trair Valdo com Alberto,
mandando-a embora e semeando no irmão dúvidas sobre seu casamento. Sendo
assim, Valdo é dominado “pelo estatuto tradicional de Demétrio” (ROSA E SILVA,
2004, p. 245).
Demétrio é considerado o chefe do clã. Possui uma postura autoritária e rude,
porém não tem grande autoridade perante o grupo, já que todos o desafiam, até
mesmo Ana, sua mulher que influenciada por Timóteo afirma que o Barão nunca
visitaria a casa dos Meneses como no trecho a seguir:

‘Olha, pode dizer ao meu irmão que o sonho jamais se realizará: o Barão
nunca pisará nesta casa.’ Sempre me guardei de transmitir tais palavras,
mas um dia (posso mesmo dizer: recentemente...) Demétrio aludindo
novamente ao Barão, afirmei um pouco distraída que ele jamais viria à
Chácara (CARDOSO, 2013, p. 105).
29

Ana também questiona a autoridade de Demétrio quando o trai com o


jardineiro Alberto. Este dúbio direito de decidir de Demétrio, constantemente
colocado à prova, remete ao passado da família Meneses, no qual era uma mulher
que desempenhava o papel do comando familiar. Possivelmente, os outros dois
irmãos de Demétrio também sentiriam a mesma dificuldade de assumir o comando
da família. De acordo com Marcos Hidemi de Lima, em Os desvãos da ordem
patriarcal:

[...] com a perda da mãe os três irmãos Meneses têm dificuldade em ocupar
o núcleo, já que pertencem a uma família cuja condução sempre foi
vinculada a figuras femininas com traços viris, até mesmo de caráter
autoritário, no que concerne à questão do comando (2017, p. 163).

As figuras femininas que conduzem a família e são citadas na obra são Maria
Sinhá, que se vestia como homem e era considerada mais forte e valente que os
varões da fazenda e Dona Malvina, mãe de Timóteo, Valdo e Demétrio, retratada no
romance como independente e extravagante. Apenas quando se cogita nomear o
primogênito de Valdo em referência ao seu pai, faz-se alusão aos homens da
família, no entanto, sem garantia que fosse um dos ascendentes masculinos que
poderiam ter assumido e comandado o clã. Desta maneira, é inegável que a
influência feminina na liderança da família afeta os irmãos Meneses, que não
conseguem conduzir a Chácara tão bem quanto as mulheres que os precederam.
Por isso, tentam repudiar suas fraquezas e seus traços femininos. Apenas Timóteo
abraça sua feminilidade, e, por escancarar a verdade que os irmãos tentam
esconder, encontra-se encerrado em sua solidão.
Demétrio é a única personagem do romance que não oferece nenhum relato
de sua autoria. Constata-se nessa obra de várias vozes que o condutor da família é
construído pelas outras personagens, porém não é possível conhecer
profundamente seus sentimentos. Albergaria declara que, de todas as personagens,
Demétrio é a que não possui voz, não possui capítulos por ele redigidos, sendo
representado no discurso direto alheio, construindo uma identidade que pode ser
questionada pela interferência do autor do fragmento (ALBERGARIA, 1991). Tais
considerações corroboram as observações de Candido sobre personagens:

Essas considerações visam a mostrar que o romance, ao abordar as


personagens de modo fragmentário, nada mais faz do que retomar, no
plano da técnica de caracterização, a maneira fragmentária, insatisfatória,
30

incompleta, com que elaboramos o conhecimento dos nossos semelhantes.


Todavia, há uma diferença básica entre uma posição e outra: na vida, a
visão fragmentária é imanente à nossa própria experiência; é uma condição
que não estabelecemos, mas a que nos submetemos (1968, p. 75).

Assim, constata-se que Cardoso leva ao romance a percepção parcial das


personagens como elemento que rege o cotidiano factual, em que não há
possibilidade de conceber os seres ao todo, apenas parcialmente. É possível
perceber, portanto, que Demétrio acaba tendo sua voz filtrada pelas vozes dos
outros personagens da trama. Ademais, no transcorrer da trama, essa personagem
demonstra-se afastada de sua esposa, cultivando um amor secreto por Nina,
escondido por artimanhas e grosserias.
Apesar de Demétrio ser o chefe da família, ele não consegue ter relações
íntimas com Ana, sendo assim, incapaz de ter um herdeiro para levar o nome
Meneses adiante, coisa que, na ordem patriarcal, é dever de quem encabeça o clã.
Segundo Rosa e Silva “o corpo petrificado de Demétrio, sustentado por um
vigamento de ferro que não permite o menor indício de um sentimento, afigura-se a
representação de um ser fanatizado pelos preconceitos” (2004, p. 136). Essa
personagem mostra-se incapaz de revelar outros sentimentos que não sejam
orgulho e superioridade. Por “ser fanatizado pelos preconceitos”, Demétrio
desconstrói o que restava da família Meneses por meio de seus julgamentos
obsoletos contra os demais.
Ana é a personagem que foi moldada para ser uma Meneses. Escolhida a
dedo por Demétrio, foi educada para se portar adequadamente como uma
representante da família Meneses. Essa personagem possui grande inclinação
religiosa, porém discute-a e questiona-a em diversos momentos em suas confissões
direcionadas ao Padre Justino. Com a chegada de Nina, Ana retrata em suas
narrativas toda a vivacidade, a beleza, as joias, perfumes e roupas da recém-
chegada, enquanto ela havia deixado a sua feminilidade de lado para agradar seu
marido sempre usando “vestido escuro, com os cabelos lisos amarrados em coque”
(CARDOSO, 2013, p. 116). Entre os membros da família Meneses, talvez seja Ana a
que endossa os valores do clã com muito mais vigor que os demais, sendo
considerada por Timóteo uma Meneses desde o princípio, como se pode ver no
trecho “[Timóteo] Fitou-me durante algum tempo com visível desdém, depois se riu:
‘Você também é uma Meneses’” (CARDOSO, 2013, p. 110).
31

O jardineiro Alberto é a paixão física de Nina, o amor de Ana e também


conquista o coração de Timóteo. Alberto relaciona-se sexualmente com as duas
mulheres e as engravida. Apesar de parecer uma personagem pouco relevante, no
decorrer da história, percebe-se sua importância dado os eventos que decorrem a
partir da gravidez de ambas. Ele se suicida ao saber que Nina deixaria a casa para
voltar ao Rio de Janeiro, uma vez que fora expulsa da Chácara por Demétrio. Este a
acusava de que ela havia traído Valdo com Alberto. A afronta contra os valores
patriarcais que a custo Demétrio busca punir resulta na expulsão de Nina do soturno
ambiente da Chácara.
Alberto apaixona-se por Nina, deixando toda manhã um ramo de sua flor
preferida – violetas – em sua janela. Porém, Timóteo, vizinho de quarto e janela com
Nina e Valdo, rouba-as toda manhã, antes que Nina possa vê-las, demonstrando
assim que Timóteo também se apaixonou por Alberto. Com Ana, Alberto não
expressa sentimentos tão fortes, apenas relaciona-se com ela devido a insistência
de seu abraço e a lembrança de Nina “e o calor que ela sempre lhe deixava no
sangue” (CARDOSO, 2013, p. 528). Ana é quem se apaixona com grande ardor por
Alberto, pois a sua relação sexual com Alberto seria “como se fosse a primeira vez
que um homem a possuísse” (CARDOSO, 2013, p. 528), desenvolvendo por Alberto
ciúmes, paixão e sofrendo imensamente com sua morte.
Ao término do romance, a Padre Justino também é revelada a verdade por
meio da confissão de Ana em seu leito de morte. O que se observa no romance é
que André e Nina desenvolvem uma relação incestuosa perante os olhos do leitor
até o momento da revelação final. Os outros membros da casa não desconfiam de
seu relacionamento, apenas Ana sabe o que está ocorrendo, visto que sempre se
esgueirava atrás dos passos de Nina.
Algumas personagens sem relações de consanguinidade com os Meneses
possuem grande importância para a trama de Crônica da casa assassinada. Uma
delas é Betty, que atua como governanta da casa. Contratada inicialmente para
lecionar língua inglesa para Timóteo, ela permanece na casa como governanta e
torna-se amiga de Nina e Timóteo. Essa personagem descreve diversos
acontecimentos vividos no espaço da Chácara, já que na função de governanta
acaba tendo acesso a diversos cômodos da casa, bem como vivencia os muitos
momentos conturbados dos Meneses.
32

Outras personagens sem parentesco com os Meneses também revelam ou


tentam apreender a vida da Chácara. Destacam-se Padre Justino, o farmacêutico
Aurélio dos Santos e o médico dr. Vilaça. A singularidade desses três homens
relaciona-se ao fato de serem as únicas personagens que durante o romance
entram na casa ou possuem diálogos com os Meneses devido à importância de suas
funções na cidade. Eles narram a grandiosidade e a imponência que a família
representa em Vila Velha e os acontecimentos inusitados que ocorrem dentro da
casa, todavia, por não pertencerem efetivamente àquele espaço, é evidente em suas
narrativas que conhecem poucos detalhes e, consequentemente, tendem a supor
evidências, construindo as mais diversas suspeitas.
Há a personagem Coronel Amadeu Gonçalves, amigo de Nina que mora no
Rio de Janeiro e está geograficamente distante de todos os acontecimentos na
cidade de Vila Velha. Esta personagem é descrita apenas por Nina e esta é a
perspectiva que a conhece-se. O Coronel possui apenas uma narrativa no romance,
“Depoimento do Coronel”. Nele, a personagem retrata a vinda de Nina ao Rio de
Janeiro, sua necessidade de comprar roupas novas, já que havia queimado as
antigas, suas falsas promessas de permanecer no Rio e o primeiro sinal de que Nina
procurava um médico para a doença que viria a acometê-la pouco tempo depois.
Nina cultiva esta amizade com o Coronel sabendo do amor presumidamente
platônico que este nutre por ela. Constata-se que Nina permite este amor pelas
facilidades monetárias que o amigo financia, já que Valdo mostra-se
monetariamente incapaz de satisfazê-la.
Ligadas por parentesco, há ainda as personagens Maria Sinhá e Timóteo que
apresentam traços homossexuais. Tanto Maria Sinhá quanto Timóteo são sujeitos
“[...] inadaptados, expulsos do convívio social ou da própria condição humana, mas
seres plenamente vivos e plenamente conscientes das suas possibilidades [...]”
(CARELLI, 1996, p. 665-666).
Octávio de Faria afirma em seu artigo “Lúcio Cardoso” que os protagonistas
de Crônica da casa assassinada são “atraídos pela destruição, predestinados à
destruição, escravos da destruição, não espanta que os heróis de Lúcio Cardoso
revelem, e com tanta insistência e nitidez, a consciência de um destino pesando
sobre eles [...]” (1996, p. 672). Nelly Novaes Coelho no artigo “Lúcio Cardoso e a
inquietude existencial”, inserido na edição crítica de Crônica da casa assassinada,
organizada por Mário Carelli, declara que:
33

Há, porém, uma marca de fogo estigmatizando todos os seus heróis (e


principalmente heroínas) e essa “marca” seria a revolta contra a vulgaridade
e a estreiteza da vida circundante; a ânsia de romper a solidão que os isola
e simultaneamente uma sede de grandeza interior que se lança
desassombrada contra todas as forças coercitivas que se lhe querem opor.
(1996, p. 779, grifo do autor).

Faria afirma também que as personagens de Crônica da casa assassinada


não desenvolvem confiança nem segurança, a todo tempo elas estão sendo
vigiadas, estão sendo acusadas, faltando compreensão e comunicação entre elas.
Como visto anteriormente, Ana segue Nina, Demétrio acusa a cunhada de traição,
entre diversos outros momentos. Deste modo, todas caminham para “o isolamento
levando à solidão e a solidão levando ao deserto – morte da alma” (FARIA, 1996, p.
674).
As personagens de Cardoso em Crônica da casa assassinada representam
claramente este isolamento apresentado por Faria, pois todas estão enclausuradas
dentro de si próprias, reservando-se a uma existência que fecha os canais ao
próximo. Apesar de os habitantes da Chácara constituírem-se numa família,
paradoxalmente não há laços familiares suficientes que confirmem isto, haja vista
que nem sempre todos que pertencem ao clã dos Meneses realmente sejam
considerados pelos liames de consanguinidade. Isso pode ser observado em Maria
Sinhá e Timóteo – personagens que, de certa forma, apresentam-se isoladas tanto
em si próprias como isoladas espacialmente. Também são personagens cujo fim é
solitário: Maria Sinhá falece sozinha em um quarto esquecido da antiga fazenda e
Timóteo tem um fim obscuro, já que não se sabe o que acontece no desfecho da
trama com essa personagem.
34

2 TIMÓTEO E MARIA SINHÁ

Como mencionado anteriormente, Timóteo e Maria Sinhá são personagens


que apresentam elementos transgressores como a homossexualidade e
transexualidade. Com o intuito de tratar sobre tais questões, foi desenvolvida uma
breve pesquisa sobre a homossexualidade no Brasil, analisando alguns aspectos
desde a colonização do país até meados do ano de 1920, sendo abordados,
conforme necessidade, referências da sociedade grega e indígena. Examina-se,
também, como a sociedade é representada nas personagens do romance para
assim haver melhor compreensão das características que despontam na trama.
Faz-se necessário pontuar que durante a pesquisa diversos foram os
questionamentos sobre a leitura da teoria queer para as personagens. A sua
repercussão surge em meio à discussão das teorias homossexuais e lésbicas do
século XIX bem como discussões sobre o sujeito, identidade e identificação.
Ademais, há uma necessidade de expandir a compreensão de sexualidade entre
papéis de homem e papéis de mulher, implodindo a lógica de oposição binária de
um pensamento dicotômico e polarizado sobre os gêneros. Segundo Guacira Lopes
Louro, romper com essa dicotomia pode incluir mulheres e homens que vivenciam
feminilidades e masculinidades de formas diversas e “que, portanto, muitas vezes
não são representados/as ou reconhecidos/as como ‘verdadeiras/verdadeiros’
mulheres e homens, fazem críticas a esta estrita e estreita concepção binária”
(LOURO, 1997, p. 34).
Ao colapsar a concepção dicotômica, um variado leque se expande e revela
concepções diferentes que destoam das até então (re)conhecidas como a
homossexualidade, o lesbianismo e o binarismo heterossexual. Segundo Louro, com
a teoria queer, reconhecem-se diversos sujeitos da sexualidade desviante, sendo
eles homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis, drags.

É o excêntrico que não deseja ser ‘integrado’ e muito menos ‘tolerado’.


Queer é um jeito de pensar e de ser que não aspira o (sic) centro nem o
quer como referência; um jeito de pensar e de ser que desafia as normas
regulatórias da sociedade, que assume o desconforto da ambiguidade, do
‘entre lugares’, do indecidível. Queer é um corpo estranho, que incomoda,
perturba, provoca e fascina. (LOURO, 2004, p. 7 e 8)

Ainda que a teoria queer enriqueça as discussões sobre sujeito e


sexualidade, não há como inserir esta leitura nas personagens de Timóteo e Maria
35

Sinhá uma vez da sua contemporaneidade, enquanto o livro tem seu enredo situado
em meados do século XX. Dessa forma, as teorias pós-modernas que tratam sobre
a sexualidade e todo o seu leque estariam começando a ser discutidas e,
possivelmente, Cardoso ainda não as conheceria como hoje se retrata.
Ao longo desse trabalho e com as concepções compreendidas, aborda-se a
nomenclatura homossexual para definir os papéis de Timóteo e de Maria Sinhá em
razão de as terminologias que caracterizam a comunidade homossexual oscilarem
frequentemente. A título de exemplo o autor Jurandir Freire Costa, em A inocência
e o vício: estudos sobre o homoerotismo, onde discute brevemente a isenção
valorativa e descritiva - ou não - da palavra homossexual, apresenta que, em virtude
de estar relacionada a estudos médicos sobre sexualidade e comportamento,
sobretudo no que tange ao conceito de enfermidade, as palavras homossexualidade
e homossexualismo “[...] está inevitavelmente comprometida com a ideologia médica
que lhe deu origem e, por conseguinte, saturada de preconceitos” (1992, p. 60).
Noutras palavras, desde meados do século XIX, homossexualidade e
homossexualismo apresentam o sentido de moléstia, de modo que a sociedade que
se formou dessa época em diante relaciona sujeitos e vocábulos a concepções
preconceituosas. Dessa maneira, o autor prefere utilizar o termo homoerotismo.
Portanto, ao longo deste trabalho e com as concepções compreendidas, são
utilizados os vocábulos sem distinções, posto das diversas terminologias que
circundam o campo de estudo possibilitando olhares diferentes sob diversas
perspectivas teóricas acrescendo as discussões de gêneros, sujeito e sociedade.

2.1 APONTAMENTOS SOBRE HOMOSSEXUALIDADE

Herança que nos legou a cultura europeia, é possível constatar que desde o
Brasil colonial também têm havido, no seio da sociedade que aqui se constituiu e
evoluiu, rígidas separações entre os papéis sexuais femininos e masculinos, e as
exceções a essa regra foram tratadas severamente pelas instituições sociais e
religiosas que faziam as vezes de mantenedoras da ordem e da moral. Segundo
Peter Fry e Edward MacRae no livro O que é homossexualidade, desde pequenos,
os meninos e as meninas são educados para serem homens e mulheres mais tarde:
36

Os homens deveriam ser fortes, trabalhadores capazes de sustentar sua


família, interessados em futebol e outras atividades definidas como
masculinas, e sobretudo, não deveriam chorar. Convém também que desde
o início da adolescência comecem a ter experiências sexuais. Neste Brasil
que estamos evocando, estas experiências podem ser com irmãs, primas,
empregadas domésticas ou prostitutas (FRY; MACRAE, 1991, p. 41-42).

Além disso, os autores também apontam que havia:

[...] formas de comportamento que são próprias a apenas um sexo e


cercadas de proibições para o outro. É o exemplo do batom, das bonecas e
do chorar. Homem não usa batom (a não ser durante o carnaval), menino
não brinca com boneca e certamente não deve chorar. Afinal, se pintar,
cuidar de nenéns e ser sensível são predicados da feminilidade (FRY;
MACRAE, 1991, p.42).

Nessas citações já se percebem a rigidez e a imposição de comportamentos


sexuais que também podiam ser percebidos no Brasil colonial e ainda não cessaram
de todo, a despeito de serem observadas em pleno século XXI. Tais imposições
persistem e encaram com surpresa meninos usando a cor rosa, brincando de
boneca e de “casinha” e não desempenhando o papel de pai. Assim como ainda é
surpresa meninas gostarem, assistirem e entenderem futebol, lutarem karatê, jiu-jitsu
e gostarem de rock and roll.
Na retrospectiva proposta a seguir, pretende-se, brevemente, mostrar como a
sexualidade se apresentou em nosso país, como foi compreendida desde a
colonização e até meados do momento da publicação do livro em questão Crônica
da casa assassinada (1959) de Lúcio Cardoso.

2.2 ALGUNS ASPECTOS SOBRE A HOMOSSEXUALIDADE NO BRASIL

De acordo com Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala (2003), a


homossexualidade apresenta-se muito antes da colonização, entre os vários grupos
indígenas aqui existentes. Para diversas tribos indígenas ameríndias a relação
homossexual era comum e frequente no meio já que, como sugere Westermarck:

O ritmo guerreiro da vida dessas sociedades talvez favorecesse o intercurso


sexual de homem com homem e mesmo de mulher com mulher. As
sociedades secretas de homens, possível expressão, ou antes, afirmação -
na fase sexual e social de cultura atravessada por muitas das tribos
ameríndias ao verificar-se a descoberta do continente - do prestígio do
macho contra o da fêmea, do regime patronímico ao matronímico, talvez
37

fossem melhor estímulo que a vida de guerra à prática da pederastia (apud


FREYRE, 2003, p. 188).

Essas sociedades secretas de homens são, para Freyre, “um ambiente


propício à homossexualidade” (2003, p. 207) que apenas os homens podiam
frequentar, excetuando-se as mulheres velhas, masculinizadas ou dessexualizadas
pela idade. O menino, ao atingir a puberdade, passa a frequentar esses locais onde
aprende “a tratar a mulher de resto; a sentir-se sempre superior a ela; a abrir-se em
intimidades não com a mãe nem com mulher nenhuma, mas com o pai e com os
amigos” (FREYRE, 2003, p. 207).
Freyre retrata os índios considerados efeminados ou invertidos como pajés,
curandeiros, conselheiros que sempre detinham poderes e funções místicas eram
temidos e respeitados. Alguns eram efeminados devido ao tempo, que tende de
efeminar alguns homens e masculinizar algumas mulheres e outros, talvez, por
“perversão congênita ou adquirida” (FREYRE, 2003, p. 186). O autor cita três outros
autores, Goldenweiser, Westermarck e Faithful, cada um com seu ponto de vista de
estudo, antropologia, sociologia e sexologia, respectivamente, “destaca[ndo] o fato
de não raro assumirem os homo ou bissexuais posição de mando ou influência nas
sociedades primitivas” (FREYRE, 2003, p. 187).
Em Casa-grande & senzala, Freyre aborda o horror dos estrangeiros com as
práticas homossexuais indígenas como exemplifica a citação a seguir: “Parece,
entretanto, que a mentalidade portuguesa cedo identificou os indígenas com a
prática da pederastia; prática para os cristãos tão abominável” (FREYRE, 2003, p.
189). Isso resulta na imediata postura da Igreja que reforça nos novos católicos o
conceito do pecado quanto a essas práticas. No entanto, também é abordado que os
próprios portugueses se demonstraram a favor dessas práticas. Demonstrando que
a prática homossexual não era uma obrigação e uma opção em diversos momentos
da sociedade, Freyre ressalta ainda que:

É impossível apurar até que ponto a homomixia ocorresse na América


primitiva por perversão congênita; a verdade é que entre os ameríndios se
praticava a pederastia sem ser por escassez ou privação de mulher.
Quando muito pela influência social da segregação ou do internato dos
mancebos nas casas secretas dos homens (2003, p. 188).

Dito isto, pode-se encontrar nos gregos e nos índios ameríndios uma
semelhança quanto aos relacionamentos sexuais, já que para ambos a atividade
38

homossexual é uma maneira de obter prazer e não ocorre pela falta de mulheres.
Nos dois casos, a prática era considerada regular e frequente entre os membros
daquela comunidade, praticada sob algumas regras sociais que regulamentavam
alguns aspectos do relacionamento homossexual.
Quanto ao papel do negro submetido a um papel homossexual, Gilberto
Freyre descreve uma cena rotineira da época: o menino branco “ganhar”, ao nascer,
um companheiro negro que seria seu e serviria para o que o proprietário ordenasse
“através da submissão do moleque, seu companheiro de brinquedos e
expressivamente chamado leva-pancadas, iniciou-se muitas vezes o menino branco
no amor físico” (2003, p. 113). Sem explicitamente tratar da questão sexual, essa
cena está descrita em Machado de Assis, no livro Memórias póstumas de Brás
Cubas, no qual o narrador relata como era a relação com o seu leva-pancadas:

Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha


as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu
trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas
a um e outro lado, e ele obedecia, — algumas vezes gemendo, — mas
obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um — “ai, nhonhô! ” — ao
que eu retorquia: — “Cala a boca, besta! ” (ASSIS, 1994, p.15).

Quando a iniciação sexual do menino branco no mundo patriarcal não se


realizava com os meninos escravos, com animais de estimação, entre outros, Freyre
ressalta ainda a figura da mucama, estigmatizada pela sua condição escrava, a
servir também de satisfação sexual aos futuros senhores.
A propósito, a mucama não se restringiu a relacionamentos com homens.
Houve grande importância da mucama na vida sentimental da sinhá. De acordo com
o autor, “pela negra ou mulata de estimação é que a menina se iniciava nos
mistérios do amor” (FREYRE, 2003, p. 423). O autor descreve a intimidade que as
mucamas e as sinhás desenvolviam entre si, tendo a mucama tanto conhecimento
da alma da sinhá quanto o padre e mais conhecimento do corpo que o médico.
Assim como o leva-pancadas, a mucama pode ter sido o pilar da relação amorosa
entre as mulheres no Brasil colonial como se depreende dos comentários do autor
de Casa-grande & senzala.
Houve ainda a iniciação sexual entre meninos. A respeito disso, Freyre
discorre brevemente sobre os colégios e internatos a partir dos anos de 1850, após
a simplificação em mandar meninos para estes locais com a implantação das
39

estradas de ferro. O romance de Raul Pompeia, O Ateneu (1996), ilustra bem este
aspecto quando narra o relacionamento entre os meninos do internato de Aristarco.
Freyre cita algumas pesquisas que comentam sobre a rigidez do ensino, as regras
de vestimenta e os problemas que começaram a surgir após a popularização dessas
instituições de ensino.
Um dos trabalhos citados por Freyre foi o de Frutuoso Pinto da Silva no qual
há a discussão da moralidade e da higiene sexual nos internatos sendo eles os
perigos do onanismo e a pederastia que ocorriam nos colégios bem como a procura
dos meninos por escravas e de outras mulheres para a satisfação sexual. Esse tipo
de procedimento parece ser algo culturalmente enraizado na sociedade brasileira,
como é possível depreender da canção “Doze anos”, de Chico Buarque, na qual
existe alusão a esse “troca-troca” como se depreende do trecho “Rodopiando pião/
Fazendo troca-troca/Ai, que saudades que eu tenho” (BUARQUE, 1977) que se
realizava entre os meninos durante a fase inicial da adolescência.
Ao longo dos escritos de Gilberto Freyre, percebe-se uma análise profunda da
sociedade brasileira na qual diversos aspectos são analisados e da qual podem ser
inferidos inúmeros aspectos da sexualidade da época. Também há como
compreender qual a concepção da época e do autor sobre a homossexualidade e
como tal compreensão influenciaria Cardoso e seus escritos.

2.3 OUTROS OLHARES SOBRE A HOMOSSEXUALIDADE

Referindo-se a um vínculo de poder, a relação sexual entre iguais não sofria


recriminações no mundo grego. Michael Foucault no livro História da sexualidade
2: o uso dos prazeres no capítulo “Erótica” escreve sobre a sexualidade grega e
como ela se dava em sua época. De acordo com Foucault, entre os gregos a prática
homossexual era algo corrente e tolerado, sendo explicado como um desejo
“implantado no coração do homem para aqueles que são ‘belos’, qualquer que seja
o seu sexo” (1984, p.168). Foucault também descreve neste capítulo diversas regras
sociais que eram seguidas, reflexões filosóficas desenvolvidas e romances que
retratavam os relacionamentos homossexuais vividos.
Sobre a homossexualidade entre os gregos, Foucault pondera que:

[...] não se concebia dois apetites distintos, distribuindo-se em indivíduos


diferentes, ou confrontando-se numa mesma alma; encarava-se antes como
40

duas maneiras de obter seu prazer, uma das quais convinha melhor a
certos indivíduos ou a certos momentos da existência (1984, p. 170).

No entanto, convém observar que muitos que tiveram tal tipo de iniciação não
se identificaram como homossexuais. Mesmo aqueles que fizeram o papel de
passivo nem sempre optaram pela homossexualidade. Como se pode perceber, na
sociedade grega o relacionamento homossexual era habitual e era constituído pelo
erasta e eromeno. Erasta era o homem que detinha e repassava o conhecimento ao
eromeno. Erasta é definido por Foucault como aquele que:

[...] tem a posição da iniciativa, ele persegue, o que lhe dá direito e


obrigações: ele tem que mostrar seu ardor, e também tem que moderá-lo;
ele dá presentes, presta serviços; tem funções a exercer com relação ao
amado; e tudo isso o habilita a esperar a justa recompensa (1984, p. 175).

Eromeno era o rapaz de corpo juvenil e belo que o erasta cortejava. De


acordo com Foucault o eromeno deveria:

[...] evitar ceder com muita facilidade; deve também evitar aceitar
demasiadas honras diferentes, conceder seus favores às cegas e por
interesse, sem pôr à prova o valor de seu parceiro; também deve manifestar
reconhecimento pelo o que o amante fez por ele (1984, p.175).

Por meio de Foucault, percebe-se que os homens tinham uma profunda


intimidade, porém não deixavam de relacionar-se com as mulheres cujo intuito era
de procriação. Assim, há a percepção que os meninos podiam iniciar seus
relacionamentos entre si, no entanto esta prática não significava, necessariamente,
uma apreciação futura pelo mesmo sexo.
A partir da segunda metade do século XIX, médicos e psiquiatras passaram a
interessar-se com mais afinco sobre a homossexualidade. O médico austríaco Krafft-
Ebing, “foi um dos pioneiros do estudo da homossexualidade e que influenciou a
medicina definitivamente” (FRY; MACRAE, 1991, p. 64). De acordo com este
médico, a homossexualidade era “ou uma patologia congênita ou uma mera
perversão quando praticado por pessoas não uranistas” (Apud FRY, 1991, p. 64).
Como observam Peter Fry e Edward MacRae “o neologismo ‘uranista’ foi inventado
em homenagem à musa Urânia que, no mito contado por Platão, seria a inspiradora
do amor entre pessoas do mesmo sexo” (1991, p. 62).
41

E ao término de sua pesquisa na qual coletou confissões de seus pacientes,


Krafft-Ebing concluiu que “os uranistas sofrem de uma mancha psicopática, que
mostram sinais de degenerescência anatômicos, que sofrem de histeria, neurastenia
e epilepsia” (apud FRY; MACRAE, 1991, p. 64). O médico acrescenta ainda que:

Na maioria dos casos, anomalias psíquicas (disposição brilhante para a


arte, especialmente música, poesia, etc., ao lado de poderes intelectuais
maléficos ou excentricidade original) são presentes e podem se estender a
condições salientes de degeneração mental (imbecilidade, loucura moral)
(apud FRY; MACRAE, 1991, p. 64).

A partir dos estudos de Krafft-Ebing, outras pesquisas sobre a


homossexualidade vão surgindo no cenário acadêmico, incluindo aqueles nos quais
a “doença” da homossexualidade acarretaria também outras patologias, surgindo o
homossexual esquizoide, paranoide, entre outros. Fry e MacRae observam que “ao
falar da homossexualidade e da heterossexualidade, dos homossexuais e dos
heterossexuais, a ciência médica faz que se acredite que o mundo é de fato dividido
entre uma categoria e outra” (1991, p. 78).
Dessa forma, a ciência contribuiu para a construção de um estereótipo no
qual a homossexualidade é uma doença que deve ser curada por intermédio de
métodos invasivos e extremamente dolorosos ao homossexual como a “operação
cirúrgica que consistia na retirada de uma parte dos lóbulos frontais do cérebro,
relacionados com a produção de fantasias e do prazer sexual” (FRY; MACRAE,
1991, p. 71). Mais tarde, na evolução científica, anuncia-se uma nova técnica capaz
de “queimar, através de choques elétricos, uma pequena seção do hipotálamo”
(FRY; MACRAE,1991, p. 71), assim, não era mais necessário a cirurgia. A castração
foi um método utilizado nos Estados Unidos e na Espanha. Nesses países, os
homossexuais eram conduzidos aos “centros de cura” que nada mais eram do que
locais para os retirar de circulação. Havia também a “terapia de aversão” que
consistia em “condicionar um reflexo de repulsa a estímulos que causam prazer,
mas são considerados mal adaptativos como, neste caso, o comportamento
homossexual” (FRY; MACRAE, 1991, p. 76).
De acordo com James Naylor Green em seu livro Além do carnaval: a
homossexualidade masculina no Brasil do século XX, entre 1920 a 1945 o
pensamento reinante era de que o homossexual era “uma mulher presa no corpo de
um homem” (2000, p. 136). Fry e MacRae descrevem o pensamento de Karl
42

Heinrich Ulrichs, jurista alemão, que “no caso dos uranistas, os órgãos genitais vão
numa direção e o cérebro noutra. Assim se produz ‘uma alma feminina encapsulada
num corpo masculino e vice-versa’” (1991, p. 63).
A medicina exerceu, e continua a exercer, grande influência na sociedade,
pois, ao afirmar que a homossexualidade era uma doença rotulou os homossexuais
de doentes necessitados de tratamentos os quais, muitas vezes, eram cruéis e
humilhantes. Após as críticas vindas do movimento homossexual, introduziu-se o
termo “homossexual sadio”.
Em meados de 1930, apesar de a ciência desmistificar a ideia de que o
homossexual era um doente de personalidade medíocre e instável, a sociedade
ainda os via como um perigo, pois “impunham um sério risco ao tecido social
brasileiro, à família e à correta ordenação dos relacionamentos entre os gêneros”
(GREEN, 2000, p. 208). Além disso, o homossexual foi excluído do convívio da
sociedade burguesa, que o transformou em uma espécie de parasita. O
homossexual era visto, segundo Jurandir Freire Costa, em A inocência e o vício:
estudos sobre o homoerotismo, como:

[...] uma espécie de ser ocioso, dispensável, que, dependendo da


necessidade, podia ser apresentado ora como um homem descartável, ora
com um vampiro que sugava as forças, a saúde, a moralidade e o ímpeto
para crescer, progredir e produzir, que eram a alma social da burguesia.
Esse lugar fantasmagórico de outro do homem normal, disciplinado,
produtivo, obediente e partidário da ordem apontava para o homoerotismo
como o reinado do excesso, da desordem, do êxtase ou da dissipação
(1992, p. 54, grifos do autor).

Em A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas


sociedades modernas, Anthony Giddens observa que, em 1948, a
homossexualidade:

[...] continua a ser encarada como uma perversão por muitos


heterossexuais – isto é, como especificamente não natural e a ser
moralmente condenada. Mas o próprio termo “perversão” desapareceu
quase completamente da psiquiatria clínica, e a aversão sentida por muitos
em relação à homossexualidade não recebe mais um apoio substancial da
profissão médica (1993, p. 23).

Entretanto, nos tempos atuais, no que tange ao estudo do sujeito


homossexual na sociedade, não tem prevalecido apenas uma ótica negativa como
frequentemente podia ser verificado em muitos dos discursos mais antigos de
43

médicos, psiquiatras, psicólogos, entre outros. Na contramão dos velhos e não raros
preconceituosos discursos que abordavam essa questão, Edward Carpenter, por
exemplo, constata que os homossexuais seriam:

[...] seres superiores justamente porque combinavam aspectos femininos e


masculinos, capazes, portanto, de formar uma ponte entre os dois. Nos
seus argumentos para justificar a homossexualidade, citava a existência de
homossexuais excepcionalmente talentosos (Apud FRY; MACRAE, 1991, p.
86).

Essa afirmação de Carpenter remete ao caráter talentoso dos homossexuais


que apresentam aptidão em diversos campos do conhecimento. Nesse contexto,
vale a pena lembrar que Lúcio Cardoso também era homossexual assim como
diversos outros grandes nomes da literatura como João Silvério Trevisan, James N.
Green, Mário de Andrade, Caio Fernando Abreu, Walt Whitman, Oscar Wilde, Patrick
White, Marcel Proust, André Gide, Tomas Mann, Alice Walker, Edward Carpenter,
entre outros.
Por intermédio desta breve e resumida introdução sobre a homossexualidade,
podemos relacionar a visão vigente na época e explicitada neste estudo com o
romance Crônica da casa assassinada e, principalmente, com a personagem
Timóteo. Sob a ótica de perversão é que esta personagem, frequentemente, é vista
e julgada pelos outros habitantes da casa, como observado no trecho a seguir, no
qual a governanta Betty descreve o primeiro contato com Timóteo: “[...] para mim, o
Sr. Timóteo era mais um caso de curiosidade do que mesmo de perversão – ou de
outra coisa qualquer que o chamem” (CARDOSO, 2013, p. 56).
Para Fry e MacRae “a homossexualidade continua sendo tratada, na prática,
como uma indigesta mistura de pecado, sem-vergonhice e doença” (1991, p. 117-
118) e que, apesar de nos encontrarmos no século XXI, são pensamentos
preconceituosos do século passado que lamentavelmente ainda permanecem na
estrutura da sociedade.

2.4 FIGURAÇÃO DO HOMOSSEXUAL EM ALGUNS ROMANCES DA


LITERATURA BRASILEIRA

A literatura traz em seu âmago a beleza de permitir que todos se expressem e


sejam ouvidos. Nas pesquisas recentes, obras consideradas marginalizadas
44

ressurgem e atraem a atenção de leitores e pesquisadores como a literatura sob o


olhar do negro, do indígena, das mulheres, do homossexual e outros. Essa
diversidade abordada expressa o reconhecimento do outro e no outro a si mesmo
possibilitando espaço e voz as mais diversas comunidades sociais.
Apresentam-se, ordenados pela linha do tempo, algumas obras que
representam o comportamento sexual na sociedade brasileira. Existem algumas
alusões a personagens homossexuais, sobretudo na produção romanesca de
recorte naturalista. Já mencionado anteriormente, a pesquisa inicia-se com o
romance O Ateneu de Raul Pompeia onde se lê sobre o relacionamento dos
meninos do internato de Aristarco.
Em O cortiço, de Aluísio Azevedo, há pelos menos dois casos flagrantes
de homossexualidade. Um deles se refere ao Albino, cujo ofício é lavar roupas.
Pode-se perceber que a profissão é exercida em um meio, na época,
essencialmente feminino. Sua caracterização revela um ser afeminado, fraco e até
mesmo doente, tão próximo das mulheres que estas lhe confidenciam segredos.
Além disso, Albino economiza dinheiro o ano todo, para que possa aproveitar o
carnaval e sair pelas ruas vestido de dançarina. Observa Leonardo Mendes, em O
retrato do imperador: negociação, sexualidade e romance naturalista no
Brasil, que “Aluísio Azevedo se vale de uma série de estereótipos para caracterizar o
personagem de um homossexual como Albino – o gosto pelo carnaval, a capacidade
de ser aliado e confidente de mulheres [...]” (MENDES, 2000, p. 83). Albino seria a
representação de um homossexual estereotipado na época em que vive, uma vez
que Azevedo o retrata como um caso de doença, sempre fraco e triste, algo
bastante revelador sobre a concepção médica a respeito de gays em 1890.
Outro caso de abordagem de personagens homossexuais em O cortiço se
refere à Léonie e Pombinha. Léonie é uma prostituta de luxo que vive no
cortiço e consegue ter ascendência sobre Pombinha por representar aos olhos desta
última certa liberdade econômica e uma vida aparentemente sedutora. Pombinha, a
bem-comportada jovem que todos admiram no cortiço acaba cedendo
a recônditos impulsos sexuais e tem uma relação homoafetiva com Léonie.
Pombinha sente-se imaculada algo que reflete no seu futuro e que também a leva ao
mesmo mister da amiga. Após o ato sexual, Léonie entrega a Pombinha um anel de
diamantes cuja finalidade é servir como uma espécie de símbolo que “formaliza uma
espécie de noivado simbólico entre as duas mulheres” (MENDES, 2000, p. 104).
45

Percebe-se assim, em ambas as personagens um retrato, bem ao gosto da estética


naturalista, do lesbianismo.
Bom-Crioulo, romance de Adolfo Caminha, apresenta a relação do negro
Amaro com o branco Aleixo que se instalam em uma pensão do Rio de Janeiro para
viver o seu relacionamento. A história retrata o “universo da subcultura gay: a forma
como a sociedade pensa essa subcultura, sem deixar de exibir o sujeito gay na sua
particularidade” (SILVA, 2012, p. 88).
Machado de Assis também incursionou pelo tema. O conto “Pílades e
Orestes”, publicado pela primeira vez em 1903, relata a história de Quintanilha e
Gonçalves. No artigo “O legado homoerótico em Machado de Assis”, os estudiosos
Luciano Marques da Silva e Valeria Rosito demonstram que a relação homoerótica
apresentada neste conto de Machado se faz por meio de estratégias discursivas:
uma delas se refere à intertextualidade com o mito de Orestes da Grécia Antiga. Na
lenda grega, Pílades e Orestes se tornam muito próximos em uma relação de
completa fidelidade e intimidade, o que sugere uma relação homossexual. No conto
machadiano, Quintanilha revela ter um papel fraternal em relação a Gonçalves, uma
vez que recebendo a herança de seu tio, passa a emprestar ao amigo dinheiro e
prover-lhe uma vida de luxos.
“O menino do Gouveia” (1914) de Capadócio Maluco, revela um conto erótico
gay em que há uma exposição crua ao relatar o desejo homossexual. O autor
representa o desejo carnal “de forma mais apropriada, mais próxima das relações
entre os sujeitos que se relacionam sexual e afetivamente com o outro do mesmo
sexo” (SILVA, 2012, p. 89). O escritor expõe as relações homossexuais na sua
intimidade, sem eufemismos, sem pudores e minuciosamente representando, em um
discurso de ruptura a proibição de manifestar desejos sexuais, sejam eles
homossexuais ou heterossexuais, cercados por muitos tabus e por uma sistemática
repressão.
Em Capitães da areia, de Jorge Amado, existem diversos casos de
homossexualidade entre as personagens da narrativa. Um deles é o que ocorre
quando Boa-Vida procura um contato mais íntimo com Gato no momento em que o
primeiro parece estar adormecido. No entanto, Gato levanta e se afasta das
tentativas de Boa-Vida. Além disso, há o relacionamento sexual entre Barandão e
Almiro. Noutro momento da narrativa, Pedro Bala assiste na cadeia aos
presos assediando um “pederasta” chamado Mariazinha, momento em que Pedro
46

revela ser pederastia uma coisa indigna, reforçando “a representação desfavorável e


preconceituosa do homossexual que, no entanto, nenhum crime cometeu além de
causar escândalo nas ruas, provavelmente exteriorizando sua sexualidade
‘anormal’” (ANTUNES, 2009, p. 203).
Em Mário de Andrade, no conto “Frederico Paciência”, tem-se a narração de
Juca e seu relacionamento com Frederico Paciência, seu antigo colega de escola.
Juca relata o envolvimento afetivo entre seu colega e o comportamento de seus
outros colegas que culminam em uma briga quando Frederico é vítima de agressão
verbal devido a uma insinuação de sua relação com Juca. Luana Teixeira
Porto observa no artigo “Literatura e sociedade: uma leitura da representação
da homoafetividade em contos brasileiros do século” que Andrade apresenta neste
conto “a dificuldade de concretização amorosa e sexual de dois sujeitos do mesmo
sexo em uma sociedade discriminatória e conservadora” (2016, p. 83).
O gaúcho Caio Fernando Abreu escreveu inúmeras narrativas em que a
homossexualidade é retratada poética e criticamente. No mesmo artigo, Porto
discorre sobre dois deles: “Anotações sobre um amor urbano” em que as
personagens sentem medo de envolver-se fisicamente com outro alguém
devido à ameaça da Aids que assola a cidade, no entanto com a percepção de uma
das personagens que eles não poderiam se “abalar pelo medo da morte e que
não hesit[e]m em assumir sua identidade sexual” (PORTO, 2016, p. 84).
O outro conto de Caio Fernando Abreu chama-se “Terça-feira gorda”. Nele é
retratado, novamente, o carnaval que costumeiramente leva os participantes a
realizarem seus desejos, a se transformarem. Nessa narrativa, Abreu aborda a
aproximação afetiva entre dois homens e a reação violenta do público atacando-
os verbal e fisicamente enquanto eles fogem em direção à praia. Apenas um
consegue fugir, ao passo que a outra personagem não. O desfecho revela-se trágico
ao descrever a morte daquele que “ousou viver a liberdade sexual no Carnaval”
(PORTO, 2016, p. 85). Percebe-se, portanto, que Abreu relata a “problematização
da homossexualidade no contexto social brasileiro, uma inclinação para uma
literatura de denúncia e questionamento do heterossexismo compulsório” (PORTO,
2016, p. 85), evidenciando uma política de repressão sexual que
ocorre na trama e também na própria escrita quando censurada por uma resistência
que prefere que as minorias sejam caladas e diminuídas.
47

Ao nominar alguns dos escritos que retrataram sobre a homossexualidade


implica-se, involuntariamente, a exclusão de tantos outros. No entanto, apreende-se
dessa concisa apresentação de romances brasileiros com incursões homossexuais
que o tema não foi ignorado pela literatura, ao contrário, ele possui voz e
representatividade nesse meio. Segundo Francis de Lima Aguiar, na dissertação
Homossexualidades e contextos: romances e contos de Lygia Fagundes Telles:
análises literárias, contextuais e temáticas, “a presença de personagens
homossexuais nos enredos das narrativas não é algo novo. Desfrutamos, sim, de
um momento histórico e cultural propício à discussão das figurações da
homossexualidade nas literaturas [...]” (2007, p. 19). Percebe-se como Crônica
aborda um tema em ascensão nas discussões literárias, através de Timóteo e Maria
Sinhá, os destaques dos próximos capítulos.

2.5 UMA REMINISCÊNCIA DESTEMIDA E VARONIL

Maria Sinhá foi a tia-avó de Timóteo, Demétrio e Valdo. Durante todo o


romance ela é descrita por Timóteo, Nina e Betty em suas narrativas, sendo,
portanto, uma personagem secundária, sem voz. De acordo com Rosa e Silva, Maria
Sinhá pode ser classificada como “personagem periférica, representa o feminino
invertido” (2004, p. 245). Maria Sinhá é sempre representada como uma
reminiscência no romance.
Timóteo descreve sua tia-avó num diálogo travado com Betty como uma
mulher que se vestia de homem, fazia longos estirões a cavalo e ia às cidades
vizinhas em menos tempo que o melhor dos cavaleiros da chácara, usava chicote e
com ele castigava os escravos que encontrava em seu caminho. Por tais motivos,
Timóteo revela que “Ninguém da família jamais a entendeu, e ela acabou morrendo
abandonada, num quarto escuro da velha Fazenda Santa Eulália, na Serra do Baú”
(CARDOSO, 2013, p. 57).
Percebe-se que Maria Sinhá fora incompreendida pelos membros da família e
vivera isolada do convívio familiar por suas escolhas, sua vestimenta e seus atos
masculinizados descritos no trecho anterior. A isolação de Maria Sinhá aconteceu
tanto em vida, quanto após a morte, quando Demétrio retira o quadro da tia-avó da
sala de estar. Essa ação decorre do fato de Demétrio acalentar o desejo de uma
visita do honroso Barão a quem seguramente não gostaria de ter que explicar quem
48

era aquela senhora e trazer à tona toda a vergonha que tentava esconder. De certo,
porém, a retirada do quadro acaba influenciando a revolta de Timóteo contra a
família.
Na “Primeira carta de Nina a Valdo Meneses”, Nina descreve a antiga
localização do retrato de Maria Sinhá que se achava na sala, acima do aparador
grande com pratas empoeiradas, em que o quadro da Ceia de Cristo tentava ocultar
a mancha larga que denunciava o lugar onde o retrato havia ficado. Segundo
Brandão “a marca do retrato, entretanto, continuou como uma inscrição na parede
da sala, funcionando como cicatriz de algo que deve ser recalcado. [...] olhar o
retrato de Maria Sinhá é violar um segredo” (2006, p. 164). Apesar do empenho de
Demétrio para acobertar o passado inglório da família Meneses, a mancha do retrato
de Maria Sinhá evoca a lembrança da antepassada que causava alvoroço na região.
Ademais, a recordação da tia-avó permanece intensa, posto que Timóteo não a
esquece, revive-a em memórias e comportamento, e, assim como a mancha, não
esmorece em seu intento.
Timóteo descreve várias vezes Maria Sinhá com orgulho, emoção e
entusiasmo, sendo possivelmente o único membro da família que fala
encarecidamente de Maria Sinhá: “- Quem – tornou ele com uma breve risada –
quem nesta casa ousaria falar nisto senão eu? ” (CARDOSO, 2013, p. 57) e o único
que descreva este sentimento pela tia-avó, como se percebe no diálogo em que
trava com Betty:

- Quem foi então Maria Sinhá?


- Oh – começou ele, e sua voz traía uma emoção sincera - foi a mais nobre,
a mais pura, a mais incompreendida de nossas antepassadas. Era tia de
minha mãe, e foi o assombro de sua época.
Calou-se um minuto, como se procurasse diminuir o entusiasmo que a
lembrança de Maria Sinhá lhe causava [...] (CARDOSO, 2013, p. 57)

Apesar de não ter conhecido esse membro da família, esse entusiasmo


causado em Timóteo pela lembrança de Maria Sinhá revela a intimidade que ele
nutre por sua tia-avó, sentimento provindo da exclusão social vivida por Timóteo, a
qual é análoga àquela vivida pela tia-avó. O que distingue Timóteo de Maria Sinhá
relaciona-se aos modos da antiga parenta: autoritária, ela conseguia expressar sua
vontade, não havia quem lhe fizesse oposição, bem como se revelava inviável fazer
restrições ou opor-se às suas ordens. Na contramão dessa mulher singular, Timóteo
49

não detém poder algum, não está à testa da família; sua situação é a de permanecer
prisioneiro em seu próprio quarto.
A relação que Timóteo desenvolve com Maria Sinhá influencia-o em sua
escolha sexual, visto que Maria Sinhá não ocultou sua masculinidade para a
sociedade de seu tempo, permitindo a Timóteo também reconhecer sua
feminilidade. Esta influência pode ser considerada a inversão de gênero de Timóteo,
em razão de Maria Sinhá ser mulher e apresentar características masculinas e
Timóteo ser homem e apresentar características femininas. Essa influência é de fácil
percepção nos trechos já apresentados, bem como no trecho a seguir, quando
Timóteo descreve o retrato que existia na sala e a atração que este lhe incutia:

- Quantas e quantas vezes ali me detive, imaginando seu cavalo veloz


pelas estradas de Vila Velha, invejando-a com seus desaforos, sua
liberdade e seu chicote... Depois que comecei a manifestar isto a que
chamam escrupulosamente de minhas “tendências”, Demétrio mandou
esconder o retrato no porão. No entanto, tenho para mim que Maria Sinhá
seria a honra da família, uma guerreira famosa, uma Anita Garibaldi, se não
vivesse neste fundo poeirento de província mineira... (CARDOSO, 2013, p.
58).

Timóteo inveja a liberdade de Maria Sinhá e a venera como “uma guerreira


famosa, uma Anita Garibaldi”, porém ela só seria reconhecida como tal se não
vivesse em Vila Velha, pois essa cidade representa o arcaico, o patriarcalismo, um
sistema econômico em decadência. Nesse ambiente em que a ordem patriarcal se
desmorona, ambas as personagens se encontram presas, atadas pelo laço familiar
que lentamente vai obstruindo e apagando as lembranças e memórias,
considerando-as vergonhosas.
Vestindo-se de mulher, Timóteo acredita ser fiel às suas origens, uma vez que
Maria Sinhá se vestia de homem: “Dizem que em muitas noites, quando a lua se
escondia, saía ela por essas estradas afora, vestida como um homem, fumando,
uma escura capa tombada sobre os ombros” (CARDOSO, 2013, p. 60). Devido a
seus trajes e a seu temperamento considerados masculinos, Maria Sinhá, assim
como Timóteo durante o romance, acaba isolada do meio familiar. Incompreendida,
acaba morrendo abandonada em seu quarto escuro na velha fazenda onde vivera.
Esse vestuário de Timóteo e de Maria Sinhá pode ser compreendido como
uma identidade posta em xeque frente às definições culturais do meio em que
vivem. Como Judith Butler afirma em Gender Trouble:
50

Considerando que a “identidade” é assegurada através de conceitos


estabilizantes de sexo, gênero, e sexualidade, a própria noção de “pessoa”
é chamada atenção pela emergência cultural daqueles seres de gênero
“incoerente” ou “descontínuo” que aparentam ser pessoas, mas falham ao
se conformar com as normas de gênero de inteligibilidade cultural pelas
quais pessoas são definidas. (2008, p. 23, grifos de BUTLER, tradução dos
autores)5.

Maria Sinhá também é retratada no “Diário de Betty (III) ” quando a


governanta comenta com Nina sobre essa personagem. Nina tem demasiado
interesse em ver o retrato que outrora permanecia na sala e agora está guardado no
porão. Junto com a preta Anastácia, que vivera no tempo de Maria Sinhá, Nina
visualiza o retrato. De acordo com a descrição de Betty, há no quadro uma
fisionomia de mulher, severa e fechada à expressividade das emoções, fisionomia
esta que se assemelhava ao rosto de um homem em que tudo era denso e maduro:

[...] Os tons que compunham sua fisionomia eram tons de cinza de


arrebatamentos domados, e ocres de violências contidas. Não se tratava
propriamente de uma mulher velha, mas de uma mulher atirada ao limiar de
si mesma, e sem outra vestimenta para cingi-la senão da própria verdade,
perigosa ou não em seus causticantes efeitos (CARDOSO, 2013, p. 145).

De acordo com a descrição de Betty, o retrato representa o lado masculino e


impositivo dessa personagem, bem como a fisionomia que aparenta ser dura. Na
sequência dessa descrição, Betty avalia que apesar de a cabeça aparecer com
grande nitidez o mesmo não podia ser afirmado do restante do retrato no qual
apareceria a vestimenta de Maria Sinhá. O foi possível constatar era a gargantilha
de veludo que usava e os cabelos amarrados no alto, sem enfeites.
Essa descrição torna-se fundamental para a personagem, pois foge ao
discurso de Timóteo; não se trata de Betty narrando o que Timóteo conta, mas sim
sua percepção perante o retrato e a personagem. É evidente que Betty ainda
referencia o discurso de outros, pois, de fato não a conheceu. Desse modo, Betty
retrata fatos que ouvira dizer sem confirmação de datas que a tia-avó dos Meneses
percorria os pastos a cavalo, mesmo em dias de chuva, laçava bezerros, domava
cavalos bravos. Era considerada uma mulher sem religião, visto que havia

5
Inasmuch as “identity” is assured through the stabilizing concepts of sex, gender, and sexuality, the
very notion of “the person” is called into question by the cultural emergence of those “incoherent” or
“discontinuous” gendered beings Who appear to be persons but Who fail to conform to the gendered
norms of cultural intelligibility by which persons are defined. (2008, p. 23, grifos da autora).
51

expulsado um padre segurando-o pela batina quando este infringira suas ordens de
ministrar os últimos sacramentos a uma de suas escravas.
Maria Sinhá é uma personagem construída por intermédio de lembranças de
outras personagens sendo assim difícil classificá-la e entendê-la no todo. Não se
pode afirmar que Maria Sinhá envolvia-se sexualmente com outras mulheres, visto
que esta informação não está clara em nenhuma das passagens nas quais ela é
retratada no romance. Porém, de acordo com as descrições feitas pelas
personagens acima, percebe-se Maria Sinhá como uma mulher forte que impôs sua
vontade em uma época e em uma sociedade na qual poucas mulheres detinham
alguma forma de poder.
Mesmo sendo esquecida pelos membros da família – ou intencionalmente
relegada ao olvido, de acordo com a retirada de seu quadro da sala – pelo tempo ou
pela imposição de Demétrio, Maria Sinhá repercute durante todo o romance em
passagens de Timóteo, Valdo, Nina e Betty. Essa repercussão revela a importância
que essa personagem outrora viveu e como sua presença permanece incrustrada na
Chácara e nos Meneses.
Sua reminiscência permanece viva em Timóteo, personagem que mais se
referencia na antepassada de gestos e ações viris. Durante todo o romance, ele
assume características femininas, enquanto ela assumiu postos e características
masculinas, apresentando a inversão de gêneros. Essa inversão pode ser
compreendida pela própria falta de modelos masculinos, já que as personagens
masculinas do passado da família Meneses se encontram ausentes durante a trama.
Ademais, Timóteo pensa ser uma reencarnação de Maria Sinhá, a incorporação da
antepassada quando afirma “sou dominado pelo espírito de Maria Sinhá”
(CARDOSO, 2013, p. 57).
Portanto, ainda que durante toda a narrativa Maria Sinhá e Dona Malvina
sejam apresentadas como protagonistas que fazem apenas parte da memória
familiar, a tia-avó revela-se uma representação que influencia diversos momentos do
romance incluindo seu desfecho assinalando um ou outro personagem, sobretudo
repercutindo aspectos da inversão em Timóteo, no que tange às suas ações e ao
seu discurso.
52

2.6 A VINGANÇA EM TRAJES DE GALA

Timóteo Meneses é o irmão mais novo de Valdo e Demétrio Meneses. Essa


personagem desencadeia diversos momentos importantes na narrativa e, apesar de
não ser a protagonista, apresenta-se como um sujeito que, claramente, chama a
atenção da família e da sociedade mineira por meio de sua ousadia. Com exceção
de Nina, Timóteo causa estranhamento aos membros da família Meneses. Esse
estranhamento é como Lúcio Cardoso define romances, pois em uma entrevista
cedida a Edson Guedes de Morais, em 1957, Cardoso explana sobre ter elencado
um tema triste para Crônica da casa assassinada:

(11) Porque não imagino romances como divertimento ⎯ meu intento é


inquietar e escurecer. Se um livro é poeticamente realizado, seu efeito é o
de afrouxar as sufocantes paredes do cotidiano. Imagino que o leitor se
aborreça e, nos casos plenos, até adoeça fisicamente. O que importa é a
febre (Apud SANTOS, 2005, p.53).

A maioria das personagens expressa sua opinião sobre Timóteo e seus


hábitos. Quase sempre retratado como um doente, Timóteo é caracterizado
primeiramente por Betty. Esta relata os costumes bizarros de uma personagem
gorda e suada, que trajava vestido de franjas e lantejoulas e um corpete
excessivamente justo arrebentava sua costura; na cabeça, um turbante ou chapéu
sem abas com mechas de cabelos alourados; no rosto, maquiagem. Para roupas e
maquiagem, Timóteo havia se apoderado do guarda-roupa de sua mãe quando esta
falecera. Seus gestos eram lentos e abanava-se com um leque do qual emanava
uma onda sândalo. O único traço masculino que sobressaía era o nariz enorme,
característica da família Meneses.
Inicialmente, para Betty, Timóteo era apenas mais um Meneses de hábitos
excêntricos, vestindo-se com as roupas e maquiando-se com o que sua mãe havia
deixado após a morte. De acordo com a ótica de Betty, concebe-se um retrato claro
de como Timóteo se vestia diariamente bem como ele se comportava aprisionado
em seu quarto.
Ana descreve o seu contato visual e impressão iniciais de Timóteo em sua
primeira confissão:

Não sei se o Senhor Padre sabe, ou se apenas suspeita, ouvindo todos


esses murmúrios cheios de maldade que percorrem a nossa cidade, que
53

Timóteo sempre foi um temperamento esquisito, de hábitos fantásticos, o


que obrigou a família a silenciar sobre ele – como se silencia sobre uma
doença reservada (CARDOSO, 2013, p. 109).

Ainda na “Primeira confissão de Ana”, há uma fala de Demétrio e o que este


pensa sobre o irmão. Conforme a ótica de Demétrio, Timóteo “No fundo é um ateu,
um revolucionário, um homem que não acredita em coisa alguma – melhor fora ter
morrido do que tentar destruir o nome de Meneses pela sua vida dissoluta...”
(CARDOSO, 2013, p. 111). Na “Terceira Narrativa do Médico”, Demétrio leva André
para o Pavilhão para afastá-lo das “influências que considerava perniciosas. (Difícil
dizer em que consistiam essas influências: sempre que se referia a isto, Demétrio
era exageradamente reticencioso)” (CARDOSO, 2013, p. 265). Nesse momento,
acredita-se que essas influências perniciosas devam ser Timóteo, pois é depois que
André vê Nina entrar no quarto daquele que André sofre um colapso nervoso e
tenha que ser afastado da Chácara. Provavelmente, Demétrio considera Timóteo tão
má influência quanto o retrato de Maria Sinhá que ficara certo tempo na sala.
Todas essas personagens constroem partes do que é Timóteo, pois como dito
anteriormente, o romance é fragmentado, portanto cada qual retrata Timóteo de
acordo com a sua visão, sendo que nenhuma dessas visões revele-se efetivamente
imparcial. Apenas Nina não o retrata como louco ou doente. Durante todo o
romance, Timóteo é rotulado com alguma designação pejorativa. Betty julga bizarros
seus costumes. Nesse momento, tem-se a primeira e única palavra que reflete a
homossexualidade de Timóteo como perversão, porém, apesar de os membros da
família não usarem essa palavra, suas intenções ficam mal mascaradas atrás de
outros vocábulos na tentativa de encobrir seus preconceitos.
No “Diário de André (III)”, o adolescente retrata como para seu pai era
importante que praticasse um esporte, “primeiro, que um rapaz da linhagem dos
Meneses devia praticar algum esporte – segundo, que a um adolescente eram
necessários jogos violentos, a fim de que não se transformasse num ser desfibrado
como tio Timóteo” (CARDOSO, 2013, p. 223). Para Valdo Meneses, Timóteo é
considerado desfibrado, covarde, talvez por trancar-se em no quarto ou talvez por
não se comportar como um Meneses.
Entretanto, acredita-se que Timóteo seja, provavelmente, uma das
personagens mais corajosas de todo o romance, pois aprisionar-se em seu quarto,
vestir-se femenilmente e defender uma posição que contraria todos os que o
54

rodeiam constitui-se uma grande coragem, mesmo quando esse protesto é feito
entre quatro paredes aguardando o momento exato para executar seu plano de
vingança.
Valdo também exprime sua percepção sobre Timóteo quando ao conversar
com o Médico na “Terceira narrativa do Médico” ele o retrata como um “ser
extravagante, um demente [...] é um ser doente e maldoso, uma alma intratável”
(CARDOSO, 2013, p. 263) e em sua voz transparecia “um ódio decidido e firme,
além dos limites do desprezo, e que em última análise era o que alimentava seu
sentimento” (CARDOSO, 2013, p. 263). O Médico, ao ouvir a narrativa de Valdo,
relata que “já ouvira muitas vezes histórias a respeito daquele rebento espúrio dos
Meneses, sentia o exagero, se bem que tivesse plena convicção de que era ele a
vergonha da família” e finaliza chamando-o de “irmão infame”. (CARDOSO, 2013, p.
263). De idêntico modo, no “Diário de Betty (II)”, existe o mesmo discurso, quando
ela narra que “todos consideravam um réprobo [...]” (CARDOSO, 2013, p. 122).
Como destacado nas citações anteriores, a vestimenta de Timóteo consiste
no uso de perucas, joias, maquiagem e trajes femininos dos quais a personagem se
apossou após a morte da mãe. No romance, esses signos tornam-se parte da
identidade de Timóteo, visto que ele não aparece com outras roupas, exceto na
“Segunda carta de Nina a Valdo Meneses”, na qual ela narra que o cunhado havia
deixado seu quarto para visitá-la no Pavilhão e colocara sobre os ombros um paletó
de homem, mas por baixo ainda usava as roupas femininas usuais.
Timóteo conta à Betty como em tempos passados ele tentou seguir a
tradição, achou “que devia seguir o caminho de todo mundo”, usando gravatas
apertadas e tendo conversas banais. Porém, afirma que “era criminoso, era
insensato seguir uma lei própria”. Sendo assim, Timóteo se questionou “por que
seguir leis comuns se eu não era comum, por que fingir-me igual aos outros, se era
totalmente diferente?” (CARDOSO, 2013, p. 59). Seguindo a visão científica da
época, a personagem reflete sobre a dicotomia entre os sexos, ou se era homem ou
mulher, não podendo transparecer elementos considerados do sexo oposto, mesmo
sem definir-se homossexual ou lésbica. Fry e MacRae e a teoria queer,
anteriormente mencionados, discutem esse aspecto que ultrapassou a esfera
médica e influenciou diversas gerações.
Timóteo declara que era apenas a sombra de um homem, que nada
despertava sua paixão como se o seu ser não existisse. Assim que ele suspende os
55

laços tradicionais que o prendem e permite que sua homossexualidade transpareça


através de sua vestimenta, seu “espírito livre se apodera das coisas. Amo e padeço
como qualquer um, odeio, divirto-me, e, boa ou má, sou uma verdade estabelecida
entre os outros, e não uma fantasia” (CARDOSO, 2013, p. 61). No entanto, Timóteo
afirma que suas roupas são:

senão uma alegoria: quero erguer para os outros uma imagem da coragem
que não tive. Passeio-me tal como quero, ataviado e livre, mas ai de mim, é
dentro de uma jaula que o faço. É esta a única liberdade que possuímos
integral: a de sermos monstros para nós mesmos (CARDOSO, 2013, p. 59).

Para Timóteo, suas roupas, seus costumes, vão além de representar sua
identidade tal como ela é. Ele pretende demonstrar coragem e verdade, pois “a
verdade é essencial a este mundo [...] A verdade não se inventa, nem se serve de
maneira diferente, nem pode ser substituída – é a verdade. Pode ser grotesca,
absurda, mortal, mas é a verdade” (CARDOSO, 2013, p. 60), em razão da sua
negação violenta quando Betty sugere que ele estaria afrontando a sociedade
apenas pela sua felicidade.
Timóteo afirma no romance que ao vestir-se de mulher ele estaria honrando
as vozes do sangue, as vozes de Maria Sinhá, como se percebe no diálogo travado
com a governanta no “Diário de Betty (I)”:

- [...] Betty, você não acredita que se possa atender às puras vozes do
sangue?
- Como assim Sr. Timóteo? – e não havia nenhum fingimento e nem falso
pasmo em minha pergunta.
Seus olhos velaram-se de súbita gravidade:
- Sou dominado pelo espírito de Maria Sinhá. Você nunca ouviu falar em
Maria Sinhá, Betty? (CARDOSO, 2013, p. 57)

Por meio desse travestimento, dessa dominação pelo espírito de Maria Sinhá,
Timóteo tenta mostrar a verdade da identidade dos irmãos Meneses. Essa
verdadeira identidade, provavelmente, seria a faceta feminina da família, uma vez
que esta sempre foi comandada por mulheres com traços masculinizados, fortes e
de pulso firme como D. Malvina que quase não aparece na trama, mas tem um ar de
gente que manda, ordena e organiza – prerrogativas, no mundo patriarcal, dos
homens –, e Maria Sinhá descrita como uma mulher muito mais eficiente que
qualquer cavaleiro da fazenda. Porém, quando a família passa a ser comandada por
Demétrio este se vê perdido, uma vez que o exemplo de masculinidade passada aos
56

irmãos sempre foi de referências femininas. Essa família atual liderada por Demétrio
demonstra-se frouxa e oscilante.
Portanto, ser forte e liderar a família entre os Meneses são dois quesitos que
representam a condição de assumir, paradoxalmente, uma forma invertida: mulheres
que se assemelham a homens; homens que se assemelham a mulheres. Os irmãos
Valdo e Demétrio, apesar de, por um lado, na aparência e nas vestes masculinas
apresentarem o comportamento do sexo masculino, por outro, são sujeitos
titubeantes, fracos. Na trama, essas personagens possuem passagens no romance
nas quais demonstram sua faceta feminina como no capítulo “Carta de Valdo
Meneses” no qual há a tentativa de Valdo suicidar-se, ação vista como uma fraqueza
“feminina”, demonstração de sua falta de pulso. No caso de Demétrio, após a morte
de Nina, durante uma discussão com Valdo ele grita femenilmente:

Até mesmo sua voz era estranha, vibrante, quase moça. Talvez, recuando
no tempo, não fosse a voz de um homem – havia nela, pelo seu desejo de
aliciar e de submeter, alguma coisa estranhamente feminina – um grito de
criança, um gemido de mulher no cio – e quem sabe, possivelmente, a voz
do único Meneses autêntico, que eu não conhecia, que jamais conhecera,
mas que repontava agora, revelado, fatal (CARDOSO, 2013, p. 487 e 488).

No fundo, Timóteo prova e corporifica uma família em que as mulheres são


fortes; ele assumiu sua “porção mulher” sendo o retrato exato da forma invertida
mulher-homem/homem-mulher. Valdo e Demétrio às vezes assumem sua porção
feminina e quando o fazem são mais verdadeiros do que quando se mascaram em
seus corpos.
Essa identidade que Timóteo assume, reprovada por todos na casa, o isola
durante o romance. Para Timóteo o mundo era mais, porém esse mais era apenas
realizado dentro de seu quarto “[...] dentro de uma jaula [...]” (CARDOSO, 2013, p.
59). A “jaula” na qual Timóteo obtinha sua liberdade era a área na qual ele podia
expressar-se como homossexual, vestindo-se com roupas extravagantes, perucas e
maquiagem, sem ter que encarar e escutar o julgamento dos outros moradores da
casa. Esse aspecto do romance apresenta uma característica social de como o
homossexual e sua opção de vestimenta era considerada. De acordo com Green:

Até 1940, o travestismo em público constituía uma violação do Código


Penal. Os homens que apareciam nas ruas vestidos como uma mulher ou
com acessórios excessivamente femininos ou maquiagem estavam sujeitos
à detenção e a uma permanência prolongada na cadeia (2000, p.172).
57

Green complementa que “marcadores femininos, obviamente, podiam resultar


em ostracismo social, especialmente se a pessoa vivesse com os pais ou parentes”
(2000, p.173). Isto posto, fica claro relacionar a condição do homossexual na
sociedade refletida no romance. Timóteo, assim como diversos homossexuais da
época em que a narrativa transcorre possivelmente nos dois primeiros decênios do
século XX “não apenas aceitavam sua homossexualidade, mas de fato reafirmavam”
adotando “uma atitude desafiadora perante a reprovação social” (GREEN, 2000, p.
124).
Segundo Butler:

Se é possível falar com um “homem” com atributos masculinos e entender


aquele atributo como uma característica feliz mas acidental naquele
homem, então também é possível falar com um “homem” com atributos
femininos, seja qual for, e ainda manter a integridade do gênero (2008, p.
33, grifos da autora, tradução dos autores).6

Dito isto, pode-se compreender como as características femininas adotadas


por Timóteo nada mais são do que sua personalidade que se demonstra feminina,
mas em que nenhum momento Timóteo deixa de ser homem por vestir-se
femenilmente. Além do mais:

as “bichas” e “sapatões” adotam apenas alguns dos aspectos específicos


dos papéis femininos e masculinos, respectivamente. Há toda uma
gradação entre a “bicha” ligeiramente efeminada até o travesti, como há
uma mesma gradação entre o “sapatão” vagamente masculinizado e a
“mulher-macho” mesmo (FRY, MACRAE, 1991, p. 47, grifos dos autores).

Segundo Fry e MacRae, quando transpostas as características que seriam


consideradas normais a um determinado sexo são apenas alguns aspectos que são
adotados como, por exemplo, as “mulheres-macho dão ênfase aos aspectos de
força física e uma certa rudeza do papel masculino, os homens escolhem
justamente os aspectos do papel feminino que ressaltam a delicadeza, o lazer e o
luxo” (1991, p. 47). É essa inversão de valores que aparece nas personagens Maria
Sinhá e Timóteo, já que a primeira se apresenta máscula, muito mais varonil que
diversos homens da fazenda, enquanto Timóteo veste-se com as roupas de sua
mãe, sendo até mais feminino que a cunhada Ana.

6
“If it is possible to speak of a “man” with a masculine attribute and to understand that attribute as a
happy but accidental feature of that man, then it is also possible to speak of a “man” with a feminine
attribute, whatever that is, but still to maintain the integrity of the gender”
58

A vestimenta de Timóteo, além de representar a sua personalidade,


identidade e a verdade, demonstra ao longo do romance o declínio econômico
daquela sociedade. Suas roupas, no início, mostram-se ainda bonitas, conservadas
assim como quem as veste. No decorrer do romance, Timóteo engorda, passa a
beber e suas roupas esgarçam, descosturam, suas perucas tornam-se malcuidadas.
No “Diário de Betty (II)”, a governanta constata:

Diante de mim, lento e majestoso (não sei se já disse que o Sr. Timóteo –
que começava a beber com certo exagero, talvez para fugir à causticante
monotonia de sua vida entre aquelas quatro paredes, talvez por um motivo
mais secreto e triste, um suicídio lento – engordava a olhos vistos, e os
ricos e extravagantes vestidos que haviam pertencido à sua mãe, e que
tanto lustro haviam dado outrora à crônica social da Chácara, estouravam
agora pelos cantos, rompiam em cicatrizes, esgarçados em lugares onde o
excesso já torneava as primeiras e irremediáveis deformidades...) [...]
(CARDOSO, 2013, p.120).

Na “Continuação da carta de Nina ao Coronel”, Nina revela mais detalhes


dessa decadência de Timóteo que deixara de ser uma dama para representar uma
“velha dama derrotada pelo desleixo e pela hidropisia” (CARDOSO, 2013, p. 214). A
respeito desse modo de Timóteo se vestir, Rosa e Silva salienta o seguinte:

O traje esgarçado e roto, a peruca bastante usada e o corpo tornado


monstruoso pela enxúndia, constituem-se indicadores do processo de
decadência vivido no presente enquanto as joias, na sua beleza e valor
permanentes, falam do passado quase perfeito (2004, p. 500, grifo da
autora).

Percebe-se dessa maneira como Lúcio Cardoso apresenta Timóteo como


uma alegoria, palavra usada pela própria personagem, pois ela não representa
apenas um gênero sexual, mas também a sociedade mineira que vai se corroendo,
acabando-se aos poucos e ainda sobrevive, teimosamente, do mesmo jeito sabendo
que apenas a mudança pode ser capaz de modificar a situação atual para uma
situação melhor.
Essa derrocada de Timóteo acontece lentamente na prisão em que se
converteu seu quarto. Timóteo não vê a luz do sol, não conversa com outras
pessoas, a não ser com Nina, Betty e com os empregados aos quais manda fazer
seus favores; não se movimenta mais do que alguns passos dentro de seu quarto.
Assim, como sua pessoa, seu quarto torna-se depreciado também.
59

Na “Terceira narrativa do Médico”, Valdo conta como criara André sem o


conhecimento do tio Timóteo e de suas “tendências”. Toda vez que o menino
tentava entrar naquele quarto era interceptado pelo suposto pai. Como ele insistia
em entrar, Valdo recorreu a uma mentira dizendo que ninguém podia entrar naquele
quarto, pois ali haveria uma moléstia contagiosa. André encara a porta com terror e
nunca mais tenta adentrá-la. Valdo também chama a porta como a de um autêntico
leproso, porta proibida e o quarto como um reduto amaldiçoado.
Em vista disso, percebe-se que o que está relacionado a Timóteo, suas
roupas, maquiagens, seu quarto, são vistos de maneira negativa. Nina não é
considerada negativamente assim, visto que ela já é tida como um ser problemático
desde a primeira vez em que chega a Chácara. No que se refere à Betty, a ótica
também não é de descrédito, pois a governanta aparentemente assume um papel
imparcial nessa relação que desenvolve com Timóteo.
Ainda sobre o quarto de Timóteo, há as descrições do espaço por Betty e
Nina. Essas descrições transpassam o tamanho da isolação de Timóteo, visto que,
além de ele se encontrar totalmente modificado fisicamente, Betty delineia o quarto
dele em que os móveis e o assoalho não eram limpos, um ar que não circulava, um
ar viciado, transformando o quarto num espaço com clima próprio, tal lugar onde só
Timóteo poderia sobreviver.
O espaço no qual Timóteo encontra-se recluso na maior parte do romance
denuncia como o homossexual e suas relações são apresentadas. De acordo com
Antonio de Pádua Dias da Silva e Carlos Eduardo Albuquerque Fernandes no artigo
“Apontamentos sobre o espaço físico e o desejo gay em narrativas de temática
homoerótica” publicado na revista Graphos diversos espaços em que o romance gay
se realiza “recebe uma carga semântica negativa” (2007, p. 162), seja a sua
desorganização, a sua sujeira, a falta de mobília.
Os autores afirmam também que o homossexual frequentemente está “em
espaços fechados ou que possam esconder o desejo gay” (SILVA; FERNANDES,
2007, p 162) e que os locais onde os homossexuais são livres para se expressar
muito os “caracterizam negativamente, refletindo, assim, no plano da cultura, a
repressão e o tabu de que o desejo gay é transgressor e deve permanecer recluso”
(SILVA; FERNANDES, 2007, p 163).
Historicamente, o homossexual frequentemente vivia e se relacionava em
locais como pensões, bares, bordéis, quartos modestos em hotéis baratos,
60

banheiros públicos de parques e estações ferroviárias, nas escuras salas de


cinemas, em áreas urbanas com numerosas atividades ilícitas e padrões de vida
precários. Esses eram os ambientes nos quais eles podiam demonstrar sua
orientação sexual e vestir-se com roupas femininas.
Logo, o quarto de Timóteo figura esse local onde só ele parece reinar,
assemelha-se a um quarto abandonado, sempre na penumbra com as cortinas
cerradas, um ambiente exótico de essências de jasmim e sândalo. Por conta desses
aspectos destacados, o quarto remete a um espaço semelhante, ao quarto de
Gregor Samsa, personagem central de A metamorfose (1915) de Franz Kafka que
é representado como um lugar imundo, no qual ninguém conseguia entrar e que as
pessoas da família, aos poucos, vão fingindo não existir, mesmo conscientes de que
havia alguém lá. No entanto, ambos os quartos nem sempre foram assim, eles
passam por uma metamorfose acompanhando seus moradores.
O quarto de Timóteo é a representação do seu isolamento, de sua prisão. E
essa prisão, inicialmente, pode parecer dúbia durante a trama, pois em
determinadas narrativas algumas personagens sustentam que Timóteo se auto
excluiu da família, ao passo que em outras alegam que foi Demétrio quem o privou
do convívio familiar e das pessoas de fora do ambiente da Chácara.
Analisando a trama, conclui-se que Timóteo ilhou-se por vontade própria em
seu quarto e não por ameaças de Demétrio. No entanto, para o líder do clã, o
isolamento de Timóteo vem com boas notícias, pois influenciado pela sociedade
burguesa, como afirma Costa, o homossexual é metamorfoseado em um “ser ocioso,
dispensável, que, dependendo da necessidade, podia ser apresentado ora como um
homem descartável, ora com um vampiro que sugava as forças, a saúde, a
moralidade e o ímpeto para crescer, progredir e produzir [...]” (1992, p. 54) e, uma
vez retirado de circulação os Meneses podem prosseguir, sem inconveniências, os
delineamentos futuros. Talvez Timóteo tenha se auto exilado para evitar:

[...] estupor nos olhares [...], [a afronta aos] olhares como se acabasse de
chegar de um outro mundo [...] À medida que me aproximo, as pessoas
vão-se afastando – dir-se-ia que carrego comigo não esmeraldas e
topázios, mas o emblema de uma doença horrível, de uma lepra que eles
desejam evitar a todo custo (CARDOSO, 2013, p. 508-509).

Essa personagem, por mais isolada que esteja do convívio familiar, conhece o
sentimento dos irmãos em relação a suas “tendências”, sabe que seu perfil afronta
61

seus irmãos e a sociedade que o rodeia; sabe que é marginalizado e ridicularizado,


apesar de não se perceber desta maneira.
Todavia, Timóteo parece temer a saída pela reação de seus irmãos, porque,
como ele relata à Nina no dia em que sai de seu quarto para visitá-la no Pavilhão,
fica imaginando a cara de seu irmão Demétrio e que eles o matariam se o vissem
fora de sua prisão. Mesmo que Timóteo aceite sua orientação sexual, a família
Meneses reprime-o como um prisioneiro, um marginal.
Esse aprisionamento de Timóteo contradiz o espírito de Maria Sinhá pelo qual
Timóteo diz ser dominado. Maria Sinhá, como apontado anteriormente, era livre,
podia ir e vir, tomava suas próprias decisões, e, independentemente de ser vestir de
maneira masculinizada, detinha grande autoridade na antiga Chácara. No que
concerne a Timóteo, as várias vozes que compõem a narrativa consideram-no como
um louco aprisionado, um sanguessuga na família Meneses, visto que não participa
e nem contribui – conforme a ótica de Demétrio e Valdo – para manter o clã dentro
dos limites do respeito e admiração, sendo, portanto, considerado um sujeito inútil.
São dois momentos da trama que Timóteo afirma estar sob o domínio de
Maria Sinhá. O primeiro deles ocorre quando fala com Betty que atende as puras
vozes do sangue e vive dominado pelo espírito de Maria Sinhá, como é possível
verificar na seguinte citação: “Por isto é que disse a você que o espírito de Maria
Sinhá havia se encarnado em mim: ela sempre sonhou com trajes diferentes do que
usava” (CARDOSO, 2013, p. 60). O último, presente no “Depoimento de Valdo (V)”,
se dá quando este retrata o momento triunfal de Timóteo ao chegar ao funeral de
Nina. Fica nítido que Timóteo relembrava o espírito de Maria Sinhá, considerada
uma “dama que representava de modo tão ostensivo [...]” (CARDOSO, 2013, p.
504). Era esta que havia outrora fornecido comentários sobre os Meneses antigos,
era ela quem jamais aceitara a vida dentro de seus limites comuns e abalara os
calmos povoados das redondezas com:

suas cavalgadas em trajes de homem, com seu chicote de cabo de ouro


com que castigava os escravos, seus banhos de leite e de perfume, sua
audácia e seu despudor. Como não senti-la ali naquela hora, viva e total
como uma palmeira erguida no deserto, ousando de novo desafiar e
corromper, com a mão erguida para um supremo gesto de afronta, com que
aniquilaria seus inimigos para sempre, seus idênticos e eternos inimigos?
(CARDOSO, 2013, p. 504).
62

Essa incorporação de Maria Sinhá por Timóteo resulta na vingança dele que
se dá pelo extermínio dos Meneses. Para isso ele conta com a ajuda de Nina.
Paradoxalmente, o momento crucial para efetivar seu plano acontece justamente
quando o funeral dela está transcorrendo na casa.
Durante o romance, percebe-se ser Timóteo uma personagem que está
engajada “em exterminar o mundo dos Meneses ao mesmo tempo em que
reconhece que aquela é sua gente” (ROSA E SILVA, 2004, p.168). A personagem
trama com Nina a destruição da família. Betty narra a desconfiança de Valdo quando
Timóteo solicita uma garrafa de champanha para comemorar com Nina “[...] - Que
faziam, que tramavam contra mim? [...] Ninguém tramava contra o senhor, não se
disse coisa alguma!” (CARDOSO, 2013, p.120) e “Timóteo não descansará
enquanto não nos destruir” (CARDOSO, 2013, p. 121). Nina, por sua vez, deixa
claro em sua carta ao Coronel que ela e Timóteo estavam planejando o fim da
família quando Timóteo declara: “Ah, Nina, quando começamos uma coisa, é preciso
ir até o fim. E nós começamos, você não se lembra? Nós começamos, Nina, e você
era toda a minha esperança” (CARDOSO, 2013, p. 215) e “Nina, é preciso destruir
esta casa. Ouça-me bem, Nina, é preciso liquidar os Meneses. É preciso que não
sobre pedra sobre pedra” (CARDOSO, 2013, p. 215).
Ao saber da morte de Nina, Timóteo esquematiza tudo rapidamente para ir ao
encontro do Barão que viria ao funeral e, assim, desferir o golpe final na família
Meneses. Timóteo solicita a Betty que três empregados negros o carreguem para a
sala em uma rede onde o velório ocorria assim que o Barão chegasse, solicitando
também à governanta que lhe arranje as violetas com as quais prometera
homenagear Nina em seu leito de morte. Com a chegada do Barão, Timóteo
encaminha-se para a sala e Valdo descreve a cena como um espetáculo que
inicialmente ninguém conseguia adivinhar do que se tratava:

Detendo-se no meio da sala, os portadores do extraordinário carregamento


duvidaram um momento, e logo, batendo palmas, Timóteo fez baixar a rede
e aprestou-se a descer. (Foi neste momento, precisamente neste momento,
creio, quando ele estendeu um pé branco e nu para fora, arregaçando a
saia no esforço para atingir o chão, que Demétrio percebeu do que se
tratava. [...] Fora ele quem gritara, não havia a respeito disto a mínima
dúvida – e pálido, as mãos no ventre como se procurasse em vão, menos
conter o sangue que o esvaziava, e o deixava inerme sobre a mesa, do que
defender, trapo humano, a essência mortal que o compunha) (CARDOSO,
2013, p. 502).
63

De acordo com a passagem acima, Demétrio reage como se algum golpe o


tivesse ferido no ventre. Esse golpe que Timóteo desfere e do qual Demétrio tenta
se defender seria um ataque contra a imponente casa, a propriedade e o patrimônio
que Demétrio protegia com tanto zelo. Rosa e Silva afirma que:

O espetáculo de Timóteo durante o velório de Nina é um escândalo, uma


revelação que dilacera, que imobiliza; o momento exato em que sai da rede,
exibindo-se aos circunstantes, sobretudo ao Barão de Santo Tirso, figura
tão cara a Demétrio, constitui-se um êxtase horrível, um deleite atroz, uma
apoteose barroca que lhe fere o corpo, aniquilando-o (2004, p. 139, grifos
da autora).

Ainda nesse capítulo de narração de Valdo, ele retrata a aparência modificada


de Timóteo e todo seu assombro por aquele irmão que apesar de reconhecer
imediatamente tornou-se uma pessoa completamente estranha a ele, não só pela
aparência que havia mudado extraordinariamente, a despeito de conviverem sob o
mesmo teto, mas também pela falta de contato, de diálogo com um membro familiar.
Valdo narra a enxúndia de Timóteo, vê-o imenso; o braço era sem vida e até mesmo
os olhos eram difíceis de serem reconhecidos: “[...] naquela massa humana tratada
pelo descaso e pela preguiça [...]” (CARDOSO, 2013, p. 501). Timóteo é comparado
a uma criatura morta. Valdo relata ainda o sentimento que seu irmão transparece
acima de todo o descaso de anos de reclusão:

E, coisa estranha, naquela figura espetacular, que parecia aglomerar em si


todo o esforço da inatividade, do ócio e do abandono, havia qualquer coisa
marinha, secreta, como se escorresse sobre ele o embate invisível das
águas, rolando a esmo a massa amorfa que o compunha, e onde
repousava, mortal e silenciosa, a palidez de distantes solidões lunares
(CARDOSO, 2013, p. 501-502).

Timóteo sente-se realizado ao chegar à sala e encarar as diversas pessoas


que, possivelmente, já haviam dele falado e que propagariam as fofocas da Chácara
e seu ambiente decadente. Ao prestar suas homenagens a Nina, estendendo as
violetas que havia prometido a ela, Timóteo reconhece entre os diversos rostos que
o encaram feições conhecidas: o rosto de André.
Apesar de André e Timóteo nunca terem se encontrado na Chácara antes,
Timóteo rapidamente reconhece a semelhança física entre Alberto e André e
esbofeteia o cadáver afirmando que o fazia para testemunhar seu arrependimento e
que soubesse que ele zombava de sua existência. Valdo, que também narra esse
64

acontecimento, relata a surpresa de Timóteo ao ver André e ele julga ver Timóteo
“[...] erguer a mão e desferir uma bofetada no cadáver. Sim, uma bofetada. Mas juro
como não sei qual foi o motivo [...] (CARDOSO, 2013, p. 505).
No momento em que Timóteo esbofeteia o cadáver de Nina descobre-se que
Alberto havia despertado paixões em Ana, Nina e Timóteo, pois o último era quem
roubava as violetas que o enamorado jardineiro deixava para Nina em sua janela.
Além disso, o mais jovem dos Meneses observava todo dia o empregado da casa
por uma fresta da cortina que puxava possibilitando-lhe a visão. Em seu segundo
livro de memórias, Timóteo afirma que a visão de Alberto era “[...] a única coisa que
me alimentou durante este longo exílio no meu quarto – meu único contato com o
mundo, o único enredo, solitário e triste [...]” (CARDOSO, 2013, p. 510).
Após o espetáculo dado por Timóteo no velório de Nina, ele passa mal, sofre
uma apoplexia e é encaminhado ao seu quarto seguido por curiosos que olhavam
todos os detalhes da casa meticulosamente com olhares maliciosos e pelo médico
que havia sido chamado às pressas. Constrangidas ou quiçá satisfeitas com a cena
que Timóteo fizera outras pessoas que se encontravam no funeral procuraram uma
maneira de sair do ambiente.
Como se pode averiguar pelas discussões efetuadas nos parágrafos acima,
Timóteo pode ser reconhecido como uma das personagens mais marcantes de
Crônica da casa assassinada, pois se apresenta irreverente e desafiadora de
padrões que julga serem obsoletos. Durante a trama, diz-se estar possuído pelo
espírito de Maria Sinhá, espírito que regeria diversas escolhas dele; uma delas, sua
opção de mostrar sua faceta feminina. Como dito anteriormente, Maria Sinhá e
Timóteo apresentam a inversão dos gêneros, posto que a primeira se caracteriza por
modos e atitudes consideradas masculinas, ao passo que a segunda revela
características femininas.
Uma leitura cuidadosa do romance demonstra, porém que não são só essas
personagens que são assinadas pela inversão dos gêneros já que Valdo e Demétrio
também possuem essas características, mas são mascaradas na tentativa de
transpassar uma imagem máscula. Sendo assim, Timóteo e Maria Sinhá podem ser
apreendidos na densa e tensa narrativa de Crônica da casa assassinada como
representantes de uma forma de inversão que se consubstancializa no corpo e na
alma.
65

Assim como Maria Sinhá, é possível supor que Timóteo não tenha relações
sexuais no romance. No entanto, os signos que essa personagem assume durante a
trama, as roupas, a maquiagem e as joias, evidenciam sua orientação sexual. A
homossexualidade se revela ao término do romance quando ele afirma que Alberto
era o homem que observava e que, indiretamente, acalentava durante os dias de
escuridão de seu quarto transformado em sua própria prisão.
Timóteo mostra-se enclausurado e essa reclusão deriva de suas escolhas de
vestuário e atitudes que contrariam a visão dos demais moradores da Chácara. Por
ser uma personagem que demonstra a decadência do meio em que vive e o refuta,
seu confinamento é bem visto pelos outros membros da família assim como para os
moradores da cidade de Vila Velha. Ademais, suas características e sua irreverência
tornam-no semelhante a uma caricatura cruel da homossexualidade na época, além
de ser uma espécie de elemento ativo que engendra a destruição de um sistema
econômico como aquele representado pelo clã dos Meneses.
66

3 UM PUNHAL PÚTRIDO: O FIM ANUNCIADO

A personagem enfocada neste capítulo é Nina que, em um primeiro momento


de sua vida, se desloca do Rio de Janeiro para Vila Velha, em Minas Gerais, a fim
de se unir a Valdo Meneses passando a viver com a família do marido. A discussão
aborda também Ana Meneses, esposa de Demétrio Meneses que, desde pequena,
havia sido instruída para viver e comportar-se conforme os preceitos do clã. Cumpre
observar que nenhuma delas é realmente Meneses haja vista que não possuem
vínculos de consanguinidade com esta família.

3.1 TRANSGRESSÃO: UM BREVE OLHAR TEÓRICO

Para tratar dessas personagens, deve-se atentar que elas carregam consigo
signos subversivos e trafegam em um mundo transgressivo que já se manifestava
com a inversão de gêneros de Maria Sinhá e Timóteo, já abordados nesta pesquisa.
Como afirma Ruth Silvano Brandão em Mulher ao pé da letra: a personagem
feminina na literatura algo transgressivo já marcava o casarão dos Meneses:

[...] a subversiva presença de Maria Sinhá, uma mulher que ousava romper
com a ordem, invertendo os papeis masculinos e femininos. Tal troca de
papéis vai ser a marca da desordem, que se estabelecerá na família,
através da indiferenciação sexual, que vai ter seu ponto máximo em
Timóteo (2006, p. 164).

Michel Foucault no “Prefácio à Transgressão” em seu livro Estética:


literatura e pintura, música e cinema analisa a presença da transgressão e
exemplifica-a como uma experiência singular, decisiva para a cultura. Ela estaria
rompendo com as barreiras como um jogo entre transgressão e limites,
recomeçando uma nova linha que “imediatamente se fecha de novo em um
movimento de tênue memória, recuando então novamente para o horizonte do
intransponível” (FOUCAULT, 2009, p. 32). Acrescenta o autor que “a transgressão
leva o limite até o limite do seu ser; ela o conduz a atentar para sua desaparição
iminente, a se reencontrar naquilo que ela exclui (mais exatamente talvez a se
reconhecer aí pela primeira vez) [...]” (FOUCAULT, 2009, p. 32 e 33). Sendo assim,
a transgressão por Foucault seria alcançar um limite, extrapolá-lo e construir novos
limites.
67

No entanto, faz-se necessário compreender os valores sociais e sexuais


considerados padrões da sociedade em que Nina e Ana estariam sendo
representadas para compreender o sentido de transgressão e subversão na esfera
patriarcal analisada. Segundo Marilena Chauí “nenhuma cultura lida com o sexo
como um fato natural bruto, mas já o vive e compreende simbolicamente, dando-lhe
sentidos, valores, criando normas, interditos e permissões” (1985, p. 22). O sexo,
apesar de corriqueiro na vida dos seres, convive com uma grande barreira social:
não se fala sobre e não é permitido falar sobre, no entanto diversas regras existem
no subconsciente social que regula os atos sexuais.
Uma dessas regras apresentada pela autora estaria relacionada à repressão
sexual feminina. Chauí observa que, desde jovem, a menina é educada para os
trabalhos manuais e domésticos reprimindo seus desejos sexuais e mantendo-se o
padrão virginal e angelical, enquanto o menino é educado para ser agressivo,
silencioso e até mesmo violento buscando nos bordéis da cidade prazer e instrução
sexual, uma vez que será ele incumbido de ensinar as artes do amor a sua futura
esposa.
Chauí (1985) apresenta os estudos feitos pela antropóloga Margareth Mead
sobre três sociedades diferentes e cada uma com sua especificidade em educar
mulheres e homens. Em uma delas, homens e mulheres são educados para serem
carinhosos, políticos, compreensivos, muito verbalizadores, características
consideradas pela sociedade ocidental como “próprios do sexo feminino”. Em outra,
homens e mulheres são educados para serem agressivos, belicosos, violentos,
pouco falante, características consideradas “próprias do sexo masculino”. Em uma
terceira, as mulheres são educadas para o poder e o comando, enquanto os homens
são educados para a domesticidade, a lavoura, o artesanato, e o cuidado das
crianças, realizando padrões considerados “femininos”.
Apresentam-se acima os valores considerados adequados a determinados
grupos sociais e sua reflexão sobre as características entre homens e mulheres. Na
sociedade brasileira dos anos de 1920, sob o olhar falocrático e patriarcal, atributos
como autoridade e sabedoria seriam qualidades que a mulher não possui e deseja,
sendo a presença da liderança e sabedoria masculina indispensável, preceitos que
reinavam nos lares brasileiros. O homem detinha o poder e tomava as decisões,
para as mulheres era relegado o trabalho artesanal e doméstico iniciando assim o
que viria a atuar na “repressão da sexualidade ao estabeleceram características que
68

seriam ‘naturalmente’ femininas e masculinas, estimulando-as e reprimindo as


contrárias” (CHAUÍ, 1985, p. 24, grifos da autora).
De certa forma, o sexo, que deveria acontecer entre marido e esposa, passa
a ser regulado e supervisionado pela a Igreja e pela medicina. Chauí apresenta que
inicialmente o campo religioso, moral, jurídico e artístico preocupavam-se com as
exigências da vida amorosa, conjugal e extraconjugal. Em seguida, ele passa a ser
estudado e investigado pela medicina e a ciência a fim de classificar todos os casos
de doenças venéreas, os desvios e as anomalias:

[...] tanto com finalidade higiênica ou profilática quanto com a finalidade de


normalização de condutas tidas como desviantes ou anormais. O interesse
maior volta-se para o estudo das “aberrações sexuais”, de um lado, e para o
incentivo pedagógico e terapêutico das formas “normais”, de outro lado
(CHAUÍ, 1985, p. 16, grifos da autora).

Assim, fala-se de um sexo que pode ser administrado pelo contexto científico,
à parte de juízos de valor e condenações postos pelo contexto religioso e moral, em
que o religioso busca a demarcação dos limites entre pecaminoso e não
pecaminoso; e o moral procura estabelecer a fronteira entre o lícito e o ilícito. Chauí
afirma ainda que existe um círculo vicioso, mesmo com a inserção da perspectiva
médica que busca introduzir conhecimentos e normas, no entanto sem questionar os
códigos repressivos, constituindo-se em novas dificuldades. Para a autora:

[...] uma sociedade repressora e uma moral conservadora acarretam


segredo e clandestinidade de inúmeras práticas sexuais que, por seu turno,
provocam tanto distúrbios físicos (a sífilis, por exemplo) quanto psíquicos (a
culpa, por exemplo) [...] (CHAUÍ, 1985, p. 19).

São esses distúrbios que a medicina busca evitar, mas, sem a contestação
dos códigos morais, pouco efeito reflete na sociedade. Desse modo, a mulher
casável permanece insegura e alienada sexualmente e socialmente permanecendo
nos espaços reclusos com afazeres considerados femininos. As ações que
transgridam esse sistema são condenadas das mais diversas formas sendo as mais
comuns a difamação popular e a exclusão do meio social.
Uma das transgressões abordadas em Crônica da casa assassinada se
revela no incesto cometido entre Nina e André, mãe e filho respectivamente. No
entanto, como se sabe, Nina não é mãe de André o que torna o relacionamento um
presumido incesto. Já quando Ana impõe sua vontade sexual a André, caso a sua
69

imposição fosse bem-sucedida, seria então um caso real de incesto, visto que Ana é
sua mãe de verdade, o que é revelado apenas no último capítulo do romance.
Sigmund Freud descreve o horror ao incesto e o tabu que permeia diversas
discussões sociais. Freud explana que desde os selvagens já existia um “[...] horror
excepcionalmente intenso ao incesto ou são sensíveis ao assunto num grau fora do
comum [...] (1996, p. 10). As punições para o incesto consistiam nas mais severas
punições desde o apedrejamento e até a morte sendo que “[...] a própria sociedade
encarregava-se da punição dos transgressores, cuja conduta levara seus
semelhantes ao perigo” (FREUD, 1996, p. 20).
Acresce-se às punições a carga negativa que o indivíduo adquire “o fato mais
estranho parece ser que qualquer um que tenha transgredido uma dessas proibições
adquire, ele mesmo, a característica de ser proibido - como se toda a carga perigosa
tivesse sido transferida para ele” (FREUD, 1996, p.21) e, a esta carga negativa,
soma-se o sentimento de culpa – no romance, vivenciado claramente por André – e
o inevitável castigo final: a morte.
Freud relata casos incestuosos que possuem fins trágicos como as figuras
divinas Átis, Adônis e Tamuz que cometeram incesto com a mãe, em desafio ao pai.
O sentimento de culpa não era amenizado e com vidas breves, sua punição se daria
“[...] pela emasculação ou pela ira do pai manifestada sob a forma de um animal.
Adônis foi morto por um javali, o animal sagrado de Afrodite; Átis, amado de Cibele,
pereceu por castração” (1996, p. 109).
Em Crônica da casa assassinada, ao transgredir a relação mãe e filho, Nina
sofre uma morte repulsiva seguida de um velório patético, enquanto André sofre com
a culpa de seus atos, foge da família sem nunca saber a verdade. Ademais, o
incesto não é o único ato transgressor em que estas personagens estão envolvidas;
o adultério ressoa nas páginas do romance como um lembrete da transgressão que
as mulheres puderam cometer e, em conjunto, permaneceram caladas.
Em Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil, Mary Del
Priore aborda a questão da infidelidade e afirma que o valor feminino perante a
sociedade estava diretamente ligado ao seu recato, suas funções no lar e os filhos
que proveria para a família. Além disso, a “[...] mulher casada passava a vestir-se de
preto, não se perfumava mais, não mais amarrava seus cabelos com laços ou fitas,
nem comprava vestidos novos. Sua função era ser ‘mulher casada’, para ser vista só
por seu consorte” (2011, p. 56). Bem adequado a esta concepção, tem-se Ana
70

Meneses que na narrativa é descrita com trajes pretos, cabelos amarrados em


coques simples e sem adereços.
A felicidade do esposo e a serenidade do casal repousava sobre a fidelidade
da esposa, mesmo não havendo a reciprocidade pela parte masculina. No entanto,
sabe-se que o adultério era recorrente por ambas as partes e que era contrário as
noções de fidelidade, de vida comum e de ajuda mútua, pregados pela religião
católica e pela sociedade. Segundo Del Priore:

O homem ou a mulher, quando adúlteros, violavam a honra conjugal,


praticando a “injúria grave”, que era razão, nas leis religiosas, para anulação
do matrimônio. A quebra da fidelidade era considerada falta grave para
ambos os sexos, porém colocava a mulher numa situação inferior do ponto
de vista jurídico (2011, p. 59).

Del Priore ainda afirma que o adultério feminino seria passível de ser punido
com a morte “afinal, os homens sentiam-se obrigados a lavar sua honra em sangue.
O poder masculino dentro do casamento era total” (2011, p. 45). Dessa forma,
percebe-se que o silêncio imposto ante as personagens femininas provém,
provavelmente, de seu temor a reação de uma família patriarcal com costumes
antiquados que eram os Meneses. Ana afirma que não podia aceitar André como
seu filho “[...] se a esta simples ideia meu ser se paralisava, imaginando o olhar de
meu marido, sua reprovação, meu castigo?” (CARDOSO, 2013, p. 533). Assim, a
infidelidade das mulheres Meneses permanece obscura aos homens da família, pois
elas temiam a reação e a punição, as quais mesmo que não tenham vindo de seus
lábios, se pronunciaram em suas mortes. Tal circunstância relaciona-se com o
sentimento de culpa das suas transgressões – segundo a ótica de Freud –
resultando em mortes perturbadas e solitárias, espelhado em um castigo perante
seus atos.
Elizabeth da Penha Cardoso, em sua tese Feminilidade e transgressão –
uma leitura da prosa de Lúcio Cardoso, reafirma a fala de Del Priore: a mulher era
vislumbrada de uma única maneira de ser dona de casa-mãe-esposa, imposta a
sujeição de repressão sexual e moral, “qualquer configuração fora desse padrão
caía na ilegalidade do adultério e da prostituição” (CARDOSO, 2010, p. 140). É esta
a busca de Cardoso, a quebra do padrão esperado pela sociedade patriarcal, pelas
suas mulheres que se tornam transgressoras, pelos homossexuais no cotidiano, o
questionamento de uma liderança débil levando-se à criação de um ambiente
71

propício a tantos desafetos como a solidão, a obscuridade, a tristeza, a falta de


esperança.
Logo, Nina e Ana, esta última influenciada pela protagonista, não concordam
com este lugar que lhes é relegado e submetem-se à “transgressão, realizando atos
aparentemente corriqueiros de adultério, fuga, loucura, que não importam
necessariamente em si, mas em suas tramas, pois é nesse âmbito que a mulher
constrói seu discurso autônomo” (CARDOSO, 2010, p. 15). As duas mulheres
burlam o sistema de Demétrio e Valdo retratando sua insatisfação com o sistema e o
seu comando, transgredindo para evidenciar a insatisfação feminina.
Em Crônica, as personagens exibem diversos traços considerados
transgressivos ao momento da trama como: a insubmissão da mulher; a fraqueza na
liderança de Demétrio; a questão de gênero em Timóteo e Maria Sinhá e entre
outros exemplos deste romance. Como apresentado por Foucault, algumas
transgressões descritas na obra de Cardoso, anos após sua publicação, passam a
ser encaradas como normais, tal qual ocorre em um loop, uma relação espiral,
passa a oferecer novos graus de transgressões para serem superados no meio
social.

3.2 UM ANJO CAÍDO

Nina é a personagem principal do romance. Sobre ela, todas as outras vozes


desencontradas do romance constroem a sua imagem, no entanto sem captar toda a
essência que a personagem pode oferecer. Nina é aquela sobre a qual os olhares e
as vozes da cidade de Vila Velha e da Chácara recaem, é aquela que, apesar de
vigiada, não revela seus segredos, que expõe os elementos transgressores
existentes no seio familiar e, por fim, liquida a família Meneses levantando seu
punhal contra as suas concepções patriarcais. É a partir de sua chegada que os
elementos transgressores que constituem e perduram na narrativa manifestam-se
agressivamente.
Nina é descrita como uma personagem de traços belos, presença iluminadora
confirmada por vários narradores. Betty afirma que Nina é uma “[...] mulher
extraordinariamente bela [...]” (CARDOSO, 2013, p. 63) no momento de seu primeiro
encontro quando se evidencia um caráter intenso que contrasta fortemente com o
ambiente da Chácara: soturno, escuro e sufocado e de seus moradores: frágeis e
72

inaptos ao comando da família. Conforme salienta Albergaria, a chegada de Nina


deixa transparecer a aversão que na casa todos sentem por aquela mulher estranha
àquele meio, dado que ela apresenta toda uma liberdade que a família não possui.
Em Nina se evidencia o “desejo de uma liberdade urgente, reação diametralmente
inversa à repressão exercida pelas instituições de caráter conservador”
(ALBERGARIA, 1991, p. 685). Dessa maneira, os Meneses repelem Nina por
apresentar a liberdade, a alegria de que eles foram privados ou de que se privam.
A imagem de alguém de fora, que respira liberdade, ao desenrolar-se a
história, está paradoxalmente relacionada à imagem do casarão soturno e doentio,
sendo que o reflexo de uma revela o do outro como o rachar das paredes, a
corrosão das estátuas, e, por fim, a destruição da casa e da família com a morte da
protagonista. Como afirma Valdo ao responder à Nina sobre as diferenças que
ocorreram desde a sua partida:

A casa é a mesma, mas a ação do tempo é bem mais visível: há outras janelas
que não se abrem mais, a pintura passou de verde ao tom escuro, as paredes
gretaram-se pelo esforço da chuva e, no jardim, o mato misturou-se às flores. Não
há como negar, Nina, houve aqui uma transformação desde que você partiu –
como que um motor artificial, movido unicamente pelo seu ímpeto, cessou de
bater – e a calma que se apossou da casa trouxe também esse primeiro assomo
da morte que tantas vezes reponta no âmago do próprio repouso [...] (CARDOSO,
2013, p. 127).

A partir de sua chegada, percebe-se que a casa dos Meneses já se


encontrava em franca degradação pelo tempo e pela falta de manutenção. No
entanto, após o retorno de Nina já abatida pelo câncer, a imagem da casa e de Nina
se fundem, possuindo o mesmo reflexo de destruição. Na “Terceira Narrativa do
Médico” este relata que “E de dentro da chuva cerrada quase sentia procurar-me da
distância o olhar do velho prédio sacrificado, com estrias de sangue que
escorressem ao longo de suas pedras mártires” (CARDOSO, 2013, p. 259). Dessa
maneira, o médico prenuncia o cheiro de morte que mais tarde infestaria o ambiente
com a putrefação do corpo de Nina exemplificado pelo trecho do capítulo
“Continuação do diário de André (IX)”: “E pelos meus punhos, pelos meus dedos,
escorria um líquido que não era sangue e nem pus, mas uma matéria espessa,
ardente, que descia até meus cotovelos e exalava insuportável mau cheio”
(CARDOSO, 2013, p. 427 e 428).
Segundo Ruth Silviano Brandão, em Mulher ao pé da letra, existem nestes
exemplos o “[...] corpo ferido, lentamente agônico de Nina e o corpo da casa, na sua
73

destruição final, num processo de corrosão, que se acompanha, através de


minuciosa descrição das fendas que se vão abrindo [...]” (2006, p.160). Enquanto a
casa revela estrias de sangue, Nina revela a decomposição da carne escorrendo por
seus lençóis. Ademais, “na Crônica, confundem-se os dois corpos, o da casa e o de
Nina, com suas mútuas feridas, que têm a mesma função de revelar a perda
narcísica do poder e da beleza” (BRANDÃO, 2006, p.165, grifos da autora).
Em suas primeiras aparições, Nina exibe-se bela, a mais bela entre todas as
mulheres que os muitos narradores do romance descreve. Após a manifestação da
sua doença, Nina não perde todos seus encantos, mas encontra-se frágil, pálida,
emaranhando-se com a casa. A casa, assim como Nina, era considerada imponente
e digna de seus moradores, era motivo de orgulho para os cidadãos de Vila Velha.
No entanto, o descaso com a sua manutenção e a falta de dinheiro para fazê-lo,
deixam-na ao relento, às intempéries do tempo que não cessam de castigá-la.
Albergaria salienta que “[...] é notório o paralelismo estabelecido entre a casa e o
corpo pútrido de Nina corroído pela doença; casa e corpo cancerosos marcam o fim
de uma época” (1991, p. 686). Ambas as personagens deixam sua imponência, sua
beleza no passado e carregam consigo o fardo de findar com a Chácara dos
Meneses e sua linhagem.
A Chácara revela-se como o reduto da lembrança de Nina após sua partida.
Para André “[...] aquela própria casa, com suas pedras e colunas, mantinha-se de pé
apenas porque fora o cenário de onde ela vivera um dia” (CARDOSO, 2013, p. 226),
como se o casarão estivesse esperando o seu retorno para, enfim, desabar. Betty
também afirma que tudo o que existia na casa “[...] os móveis, os acontecimentos, a
sucessão das horas e dos minutos, o próprio ar [...]” (CARDOSO, 2013, p. 254) se
achava impregnado pela presença de Nina. Inclusive o ritmo da Chácara se
encontrava desvirtuado e o espírito da casa já não era mais o mesmo. Segundo
Betty, “[...] a imagem da casa lacerada, como se fosse um corpo vivo, não me saía
mais do pensamento” (CARDOSO, 2013, p. 256). De acordo com Faria “não
estranha, que nessas chácaras, nessas casas, nesses lares, tudo seja pecado e
desgraça, infortúnio e morte. Ou que o adultério ombreie com o crime e o pavor só
arrefeça para dar lugar ao ódio” (1996, p. 668), afirmando que a casa, repleta de
discórdia e tristezas, apresenta-se como um reduto da transgressão e do ódio
promovido entre seus moradores e contra eles próprios.
74

Cássia dos Santos afirma que a leitura do romance revela a frequência em


que citações relacionadas à casa são feitas e que em diversas narrações, por um
“[...] peculiar processo de animismo, ela ganha características humanas, ao passo
que seus habitantes, pelo silêncio e pela frieza com que em geral são descritos,
parecem ter absorvido dela os atributos que lhe seriam próprios” (2005, p. 252). A
corporificação da casa apresenta a associação entre o corpo de Nina e o corpo do
casarão, uma vez que os discursos ligados a eles se referem ao não saber, à morte,
à destruição, à decomposição e ao desgaste. São as mesmas metáforas que
revelam essa fusão, o “mesmo discurso incompleto, cheio de lacunas e silêncios,
como as fendas abertas nos dois corpos. Assim, o corpo da casa, o corpo de Nina e
o corpo do texto se falam da mesma maneira: como discurso da fragmentação e do
não-todo [...]” (BRANDÃO, 2006, p. 161).
É esse discurso que, por fim, aniquila tanto Nina quanto a Chácara, em
virtude da curiosidade devoradora a tudo que se refere aos Meneses e ao que
ocorre em relação à Nina, uma vez que, por ter vindo do Rio de Janeiro, informações
sobre a sua pessoa são de aparências e, muitas vezes, fantasias. Segundo
Brandão:

Sobre Nina, misteriosa em sua incapturável essência, tudo se questiona,


tudo se supõe. Quando chega em (sic) Vila Velha, imagina-se que ela seja
uma rainha, cantora de cabaré ou herdeira de sangue azul. Ao não-saber
sobre ela correspondem as ficções, as teorias, hipóteses, suposições, todo
um imaginário dos habitantes de Vila Velha, da casa e seus moradores
(2006, p. 176).

Os rumores que precedem a vinda de Nina são tamanhos que mesmo antes
de a personagem chegar a haviam considerada “[...] a mais formosa das mulheres,
rica, dotada de todos os atributos que poderiam caracterizar a escolhida de um
Meneses” (CARDOSO, 2013, p. 96) e, dado o seu atraso, os falatórios que giravam
ao seu redor já se mostravam hostis e desagradáveis, “diziam que ela não queria vir
para a roça, e que detestava sair do Rio de Janeiro [...]” (CARDOSO, 2013, p. 96).
Afirma ainda o farmacêutico que “desde o momento em que pisou a cidade
converteu-se no centro de interesse geral, fazendo os próprios Meneses recuarem
para um discreto segundo plano” (CARDOSO, 2013, p. 97).
Somam-se a sua chegada, as suas idas e vindas do Rio de Janeiro e
solicitações de médicos e farmacêuticos a atenderem Nina e os moradores da
75

Chácara “[...] uma expectativa e uma tensão em torno de sua pessoa. Tanto fascínio
e sedução produzem, também, uma atmosfera de estranheza, perigo e suspeição
em sua volta” (BRANDÃO, 2006, p. 168), constituindo-se em um jogo de presença e
ausência o qual eleva a febre que paira sobre a personagem.
Essa curiosidade incessante pela personagem de Nina é a mola propulsora
do romance, posto que todos os olhares e discursos voltam-se a ela, levando até os
imponentes Meneses a se obscurecerem com desmesurada excitação que é
agravada pelo não-saber, pelas dúvidas não saciadas, pelas “lacunas, silêncios,
contradições, ou, às vezes, por um excesso de pormenores, de minúcias que tem,
paradoxalmente, um efeito de irrealidade [...] produzindo-se um efeito contraditório:
de dúvida e de desconhecimento” (BRANDÃO, 2006, p. 178). As inúmeras
incertezas que rondam a Chácara e Nina só são superadas pelo excesso de
histórias que se inventam para saciá-las a respeito do que se passa dentro das
paredes do casarão.
Brandão afirma que são essas múltiplas ficções que, de certa forma,
conduzem-nas as suas mortes “a casa é assassinada e também o é Nina:
assassinada pela palavra alheia, palavra excessiva e mortífera que a satura de
signos, sem esclarecer seu enigma” (BRANDÃO, 2006, p.161). Será essa
curiosidade incessante, esse desejo intenso pelos membros da família, acentuado
pela presença de Nina, a estrangeira em seu meio, que farão as vozes da cidade de
Vila Velha e as vozes da Chácara sussurrarem sem nunca lhe atribuir uma imagem
real e verdadeira, apenas estilhaços de uma Nina em cada relacionamento,
percepções de cada personagem sobre ela impossibilitando, assim, que haja uma
verdade unânime sobre Nina. Betty expressa no capítulo 34 – “Diário de Betty (V)”
que muitas coisas eram ditas e sussurradas, mas que “[...] ao certo, sabia-se tão
pouco a respeito daquela criatura!” (CARDOSO, 2013, p. 335).
Acresce-se a pouca transparência de Nina e as diversas invenções dos
cidadãos de Vila Velha a sua capacidade de atuar, manipular como afirma Valdo no
capítulo “Carta de Valdo a Padre Justino” “[...] assistindo-a, eu indagava a mim
mesmo se tudo não passaria de mais uma das suas habituais comédias”
(CARDOSO, 2013, p. 244) em que Nina utiliza de diversos artifícios para findar a
discussão com Valdo entre eles um pouco de pele a mostra na qual “[...] a curva dos
seios reaparecia [...]” (CARDOSO, 2013, p. 245); suas lágrimas de supetão que mais
indicavam “[...] um descontrolado prazer [...]” (CARDOSO, 2013, p. 245).
76

Em seu diário, Betty questiona se Nina “[...] estaria representando, ou


verdadeiramente trafegava num mundo onde jamais teríamos acesso?” (CARDOSO,
2013, p. 252). Além disso, a personagem forja, em diversos momentos, uma
aparência modesta para sensibilizar as outras personagens da sua carência, a título
de exemplo o “Depoimento do Coronel” em que este homem sugere que Nina
“vestia-se mal, tão mal como nunca eu a vira, nem mesmo nos seus tempos de
solteira. Podia supor, é verdade, que ainda fosse um daqueles truques, nos quais
era tão fértil [...]” (CARDOSO, 2013, p. 380). Há ainda a confissão de Nina em que
ela admite construir uma aparência modesta para que Valdo sinta-se penalizado
pela sua doença “mas vou mais longe, confesso que fabriquei, que modelei com
perícia aquele exterior modesto, a fim de tocar o coração de meu marido”
(CARDOSO, 2013, p. 208). Ademais, a única menção feita a sua mãe refere-se
especificamente a sua qualidade artística, a sua profissão, levando o pai de Nina a
afirmar que “ela era igual a mãe – uma italiana, atriz de teatro de segunda classe,
que regressara cedo à Europa, dizendo-se morta de saudades – e que um dia
desses o abandonaria também” (CARDOSO, 2013, p. 104).
Santos discorre sobre este assunto e questiona-se sobre os discursos que
visam a aprofundar a psicologia de Nina, uma vez da alusão feita a sua mãe atriz de
teatro de segunda classe; a habilidade da personagem em representar, construir
uma imagem para atingir seus objetivos; ou, até mesmo, o fato de a mãe ter
abandonado a família como Nina o fez. Santos acrescenta que “embora essa
resposta não possa ser postulada, é inegável que, com um acréscimo de tal
natureza, o romancista é extremamente bem-sucedido ao agregar mais um traço à
já complexa composição de sua personagem” (2005, p. 189).
Membros da família ou os cidadãos de Vila Velha sugerem, analisam essa
dualidade da personagem, seus traços de encenação, dado que muitos percebem
sua atuação e indagam seu propósito. Brandão afirma que Nina “[...] tem gestos e
atributos teatrais e que representa papéis, nunca se sabendo se ela fala verdade ou
mentira, sempre consciente do efeito sobre os outros de sua presença e de suas
palavras” (2013, p. 172). Logo, Nina pinta uma imagem durante o romance, uma
imagem que por não ser bem mascarada acaba revelando seu intuito inicial de
esconder, forjar, transmitindo ao leitor e às outras personagens um vitimismo
forçado, mas também da parcialidade da personagem, da sua incompletude e da
sua moléstia.
77

Bosi relata que “a tragédia de um ser passa a refletir-se no coro das


testemunhas; e estas percorrem a vária gama de reações, que vai da febre amorosa
ao ódio, desde a indiferença ou ao juízo convencional” (2006, p. 442). Os discursos
presentes no romance evidenciam as diversas realidades sob um determinado fato
ou personagem esclarecendo vários sentimentos que permeiam as atitudes e a
personagem em si, não só Nina, mas outros que venham a contrariar a ordem
estabelecida por Demétrio.
Como já comentado anteriormente, Demétrio encarna a figura do patriarca
que se dedica à condução da Chácara, no entanto, sem muito sucesso, uma vez
que os recursos financeiros da família estão à mingua concorrendo para que sua
autoridade vá se esvaindo, sendo questionada pelos habitantes da casa, incluindo
Nina e Ana. Desde muito antes da chegada das duas mulheres a ordem social e
patriarcal dos Meneses já vinha sendo rompida, sobretudo pela transgressão
liderada por Maria Sinhá e Dona Malvina.
A expectativa existente na ordem social que envolve a Chácara é a de
submissão feminina a figura de Demétrio que supõe controlar tudo e todos
transformando até mesmo pessoas em bens pertencentes à família. Nessa lógica
machista, as mulheres também representam um bem material. Nessa forma de
procedimento adotado pelo primogênito dos Meneses, a observação de Simone de
Beauvoir, em O segundo sexo, de que “a sociedade sempre foi masculina; o poder
político sempre esteve nas mãos dos homens” (1970, p. 91) funciona como uma
percepção de uma lógica que exclui as mulheres do exercício do poder.
Apesar de essa ordem ser tradicionalmente regida pela figura masculina, em
Crônica nos deparamos com mulheres que ocupam o lugar do homem. Isso não foi
uma situação incomum na sociedade. Segundo Heleieth Saffioti, em A mulher na
sociedade de classes: mito e realidade (1976), existiram casos frequentes “[...] em
que as viúvas tomaram a direção dos negócios da família com energia e sucesso,
revelando-se líderes genuínas, mas também casos em que a esposa de um homem
incapaz ou incapacitado tomou seu lugar na chefia da família” (1976, p. 171).
Dessa forma, a ordem comumente exercida pelo homem passava para mãos
femininas. Além disso, Saffioti salienta que o patriarcado funciona mesmo sem a
presença do patriarca sendo acionado pelas mulheres colaborando para alimentar
tal sistema. Ideologicamente, ao dar “[...] cobertura ao patriarcado, mulheres
desempenham, com maior ou menor frequência e com mais ou menos rudeza, as
78

funções do patriarca, disciplinando filhos e outras crianças ou adolescentes,


segundo a lei do pai” (2004, p. 102, grifos da autora). Em vista disso, a ordem é
rompida parcialmente, uma vez que Maria Sinhá e Dona Malvina cada uma em seu
tempo exercem o mando mantendo a lógica do patriarcado, sendo que a única
mudança se limita ao gênero do líder que detém o poder. Sob o comando de
Demétrio, os habitantes da Chácara convivem com uma liderança vacilante de
alguém que busca ser a representação do poder. Sobre tal questão, Albergaria faz a
seguinte observação:

E ainda que não se ouça a voz de Demétrio ao longo de todas as narrativas,


é ele o coordenador da vida na chácara. Demétrio modela Ana como uma
Meneses e também determina a Betty o tipo de tratamento a ser dispensado
a Nina e a Timóteo. Aos olhos da população de Vila Velha, é ainda
Demétrio quem encarna o espírito dos Meneses (1991, p. 687).

Nina seria a personagem que ocuparia o centro vacante justamente pelos


seus questionamentos ao controle de Demétrio, especialmente em relação às
finanças, dado que ela agora é dependente de Valdo Meneses, seu marido.
Segundo Brandão, Nina é a estrangeira, a estranha “que vem abalar esse poder, ou
melhor, revelar a decadência da família que o suporta. Vinda de fora, ela é a única
que, devido a seu ligar (sic) na família, pode questionar os atributos imaginários que
a sustentam” (2006, p. 163).
Nos poucos momentos de moradia na Chácara, Nina percebe as mudanças
que podem ser feitas para alterar a situação precária atual dos Meneses. Em sua
“Primeira carta a Valdo”, ela enfatiza: “[...] venda alguns desses móveis inúteis que
entulham a Chácara, venda essas velhas riquezas mortas, e produza o necessário
para dar subsistência a quem vive ainda” (CARDOSO, 2013, p. 45), o que evidencia
o fato de Nina ser uma mulher que recém-chegada e sem laços de consanguinidade
com os Meneses já poderia assumir a família despedaçada que havia sido, ao longo
do tempo, relegada ao comando de mulheres.
Tal fato interfere negativamente no exercício de poder masculino por
Demétrio ou Valdo, uma vez que a história familiar não apresenta homens no
comando dos Meneses como tradicionalmente ocorre. No lugar da figura masculina,
houve a presença de Maria-Sinhá e dona Malvina. Portanto, como ambas já
deixaram de existir e nenhum dos três irmãos mostra-se capaz de estar à testa do
clã, de certa forma, o centro de administração da família permanece desocupada,
79

como afirma Roberto Reis em A permanência do círculo que detecta vazio o centro
do círculo, isto é, o espaço central de exercício do poder masculino não está
devidamente ocupado. Dessa forma, “[...] as relações hierárquicas perdem sua
vigência e abre-se, vacante, o lugar do poder” (REIS, 1984, p. 91).
Reis afirma ainda que Nina procurava junto aos Meneses amparo, abrigo,
proteção e estabilidade financeira e social, mas que ao perceber a fraqueza em que
estes se encontravam em uma realidade de economia e pouca ou nenhuma pompa,
ela acaba desafiando esta estrutura de poder cindido. Assim sendo, Nina é a
provável personagem que poderia reverter a situação decadente dos Meneses
assim como foram Dona Malvina e Maria Sinhá que “[...] se colocaram à testa dos
Meneses. Na falta de um pai, mesmo de ‘outro pai’, mulheres ocupam o núcleo e
dominam” (REIS, 1984, p. 93, grifos do autor).
No entanto, “[...] sua capacidade de comandar a torna um perigo – Nina não é
do clã, é elemento da nebulosa” (REIS, 1984, p. 98, grifos do autor). Constitui-se
como elemento do núcleo a figura do senhor e patriarca junto com aqueles que
habitam a casa-grande como Demétrio e a família Meneses, excetuando-se Timóteo
que, por não respeitar o sistema imposto, passa a integrar a nebulosa. A nebulosa
constitui-se dos personagens restantes: os que figuram com categorias étnicas,
sociais estando “[...] subjugados na base de uma relação de dominação, hierárquica.
Efetivamente, os figurantes do núcleo senhorial exercem domínio sobre os da
nebulosa.” (REIS, 1984, p. 32, grifos do autor).
Logo, por não pertencer a uma presumida pureza que caracterizaria os
Meneses, Nina não pode comandá-los, visto que tal ação representaria uma ameaça
ao núcleo fraturado do poder do clã. Além disso, ela acabaria por ressaltar a
incapacidade de Demétrio e Valdo de estar à frente da família. Segundo Reis:

Nina tomando o poder decretaria o fim dos Meneses, imporia um novo


regime: reeditaria a tradição de uma mulher no governo da Chácara, com a
agravante de não ser masculinizada e de ser de outro sangue. Desta forma,
também estaria em jogo o fracasso dos três irmãos, herdeiros que não
foram capazes de conservar o prestígio do clã. (REIS, 1984, p. 99)

Por não assumir a liderança dos Meneses, Nina “[...] tendo sido impregnada
pelo declínio da família, quase que passa a ser um deles, o que a faz ainda mais
perigosa” (REIS, 1984, p. 99) como quando afirma que “mais do que a minha própria
palidez, o que se achava colado a mim era o nome Meneses” (CARDOSO, 2013, p.
80

208) aceitando seu quinhão como esposa e tendo acesso às informações e


privilégios na casa, no entanto, agindo de maneira transgressora ao se envolver com
Alberto e, posteriormente, com André. Assim, Nina “[...] contaminada pelos Meneses,
sucumbe, numa decadência física (ao passo que a dos donos da Chácara é mais
econômica e moral)” (REIS, 1984, p. 97).
A decadência moral dos Meneses de que trata Reis refere-se ao declínio da
importância dessa família no vilarejo e o prestígio do clã só poderia ser recobrado,
na imaginação de Demétrio, com uma possível visita do Barão de São Tirso à
Chácara. Por um momento, Nina fez despertar o interesse da cidadezinha pelos
Meneses, todavia a distinção do clã acaba manchada com o casamento dela e
Valdo, posto que Nina não pertence a mesma classe social do marido e da família,
degradando-os com seus “escândalos”, de acordo com a ótica de Demétrio.
Ademais, há a ruina financeira que os leva à bancarrota familiar.
A decadência física de Nina culmina com o câncer que a levará à morte e, a
partir do momento em que esta chega a casa, as discussões tornam-se frequentes.
Nina afirma no capítulo “Segunda carta de Nina a Valdo Meneses”: “Sim, Valdo, era
fácil chorar em sua casa, a felicidade não era comum naquela Chácara”
(CARDOSO, 2013, p. 87). Dessa forma, Nina assume o esfacelamento da família
como integrante dela, porém, mancomunada com Timóteo, ambos são integrantes
da família, todavia como elementos da nebulosa buscam o seu fim. E é com a sua
morte que Nina e Timóteo obtém o seu objetivo.
Embora Nina seja integrante dos Meneses, na realidade ela não o é. Ela se
apresenta, segundo afirma Brandão, como o bode expiatório da sociedade
revelando “[...] a violência e a hipocrisia social e dá voz ao recalcado individual e
social, fazendo Timóteo sair do quarto, com todo o escândalo que sua presença
significa, como revelação da vacuidade do orgulho viril dos Meneses” (2006, p. 166).
Ao se tornar o centro das culpas que pairam sobre o clã, Nina viabiliza o desejo de
Demétrio de ver em sua casa o Barão de São Tirso. O detalhe é que a visita ocorre
no seu velório.
De acordo com Brandão, a morte de Nina permite a invasão dos cidadãos de
Vila Velha nos domínios da Chácara escancarando a intimidade dos Meneses: “Essa
invasão, que precede à invasão final de Chico Herrera, funciona como violação do
corpo feminino e é o prenúncio da destruição da casa, enquanto signo do poder dos
Meneses” (2006, p. 165). É neste momento que a cidade visualiza visceralmente a
81

decadência da família: suas pratas empoeiradas denunciando os bons dias de


outrora, seus escândalos familiares que evidenciam o desacordo como a família
vivia e tentava sufocar tudo aquilo que não seguia as premissas determinadas por
Demétrio.
Nina é o estopim que revela o fim dos Meneses; sua atitude desafiadora
demonstra a fraqueza dos irmãos no comando e a vacância do poder que ela
poderia assumir e arquitetar um futuro para a família. Estando vetada de assumir a
liderança do clã, Nina engendra a vingança com Timóteo. A vingança ocorre em
frente aos moradores de Vila Velha que, por tanto tempo, divulgam histórias da
família e da protagonista sem atribuírem à Nina uma identidade exata, apenas
estilhaços de quem ela seria. Ademais, a imagem de Nina funde-se com a imagem
do casarão visto da corrosão e esfacelamento que permeiam as descrições de
ambas: a Chácara em estado de putrefação devido à negligência de seus moradores
de preservá-la e Nina em estado de putrefação devido ao câncer em estágio
avançado que coroe sua carne.

3.3 UMA IMAGEM FOSCA E PERTURBADA

A partir da chegada de Nina diversos aspectos na família se alteram. Uma


das principais modificações relaciona-se à percepção de Ana quanto ao estilo de
vida da cunhada fazendo ressaltar a monotonia e a decadência que a cercam.
Segundo Albergaria, Nina adentra o ambiente dos Meneses como uma lufada de ar
fresco e “sendo carioca e bela, sua presença é uma afronta aos hábitos da chácara:
em primeiro lugar, por ser ‘de fora’, isto é, estrangeira. Depois, por fugir aos padrões
dos quais Ana é um protótipo” (1991, p. 687 e 688, grifos da autora). Há de ser
ressaltado que Ana casou-se com Demétrio e foi educada para ser uma Meneses.
Tanto para os pais quanto para Ana – gente interiorana – tornar-se um membro de
tão importante família representava um dos mais altos privilégios que poderia haver.
A educação para se transformar numa mulher modelada para pertencer ao clã
produziu tamanho efeito em Ana que esta acaba esquecendo-se de si mesma sem
reconhecer seu rosto e corpo causando em si mesma repulsa como se pode
observar, por exemplo na “Terceira confissão de Ana”:
82

Ah, como me detesto, como me desprezo, que tremenda hostilidade interna


delineia minha figura exterior. Aquela saia cor de rapé, aquela blusa
desbotada e sem nenhum enfeite, aquele modo relaxado de pentear os
cabelos são as provas do quanto considero minha pessoa mesquinha e vil
(CARDOSO, 2013, p. 285).

Ana passa a questionar a aparência quando Nina chega à Chácara. A recém-


chegada tem cabelos esvoaçantes, vestidos curtos e tecidos leves, joias, chapéus e
outros tantos acessórios, enquanto Ana segue prendendo seu cabelo em um coque,
continua a usar vestidos pretos, sem nenhum enfeite, levando-a a considerar-se
uma mulher sem atrativos. Albergaria afirma que a personagem encarnada em Ana
é um tipo bastante difundido, enquadrando-se na galeria de personagens femininas
mineiras que representam uma mesma “[...] cultura patriarcal austera, submissas e
revoltadas, sempre vestidas de preto, silenciosas e impotentes, onde a resignação
demonstrada nada mais é que o velamento da revolta” (ALBERGARIA, 1991, p. 688)
encontram-se presas ao imobilismo de seus maridos acorrentadas a esta atmosfera
de sombra e apatia.
Ao ser modelada para se enquadrar ao sistema dos Meneses, de acordo com
a vontade de Demétrio, Ana vê-se destituída de características próprias. Ela
endossa um mundo que lhe foi imposto. No entanto, ao ser elaborada desta maneira
e ao perceber-se na sociedade por meio de Nina, ela nota os olhares que seu
marido direciona a cunhada: “‘Sei muito bem’, continuei eu, ‘sei muito bem que é
Nina a quem você adora. Vejo seus olhares...’” (CARDOSO, 2013, p. 112). Segundo
Rosa e Silva:

Ana é o resultado do desejo de Demétrio, tem a forma que ele lhe imprimiu.
Padre Justino a vê como o espírito dos Meneses, determinada a
permanecer nos limites traçados pelo rígido sistema de Demétrio, sem
jamais ultrapassar a esfera do bom senso. Mas o encontro com Nina revela
a outra face (a verdadeira Ana?): um ser movido por forças antagônicas,
desejos e sentimentos recalcados (2004, p. 75, grifos da autora).

Ana percebe-se então uma criatura que foi construída conforme o modelo dos
Meneses e vivencia o mais profundo sentimento de desamparo face ao seu criador,
Demétrio. “Não se trata somente de desprezo, é descaso, é destituição. Aquele
olhar, entretanto, desperta-lhe a consciência de si mesma, de sua individualidade”
(ROSA E SILVA, 2004, p. 75).
Ao ser considerada uma criatura, como ela mesma se denomina “De pé,
lamentável, eu era como uma criatura abandonada pelo seu criador” (CARDOSO,
83

2013, p. 112) e que um monstro a coabita “[...] mas suficientemente lúcida para ter
certeza de que um monstro existe dentro de mim, um ser fremente, apressado, que
acabará por me engolir um dia” (CARDOSO, 2013, p. 161), há a possibilidade de
aproximação de uma leitura entre Crônica da casa assassinada com o romance
Frankenstein (1823) de Mary Shelley. Nesta obra, Victor Frankenstein reúne partes
de vários corpos para construir um novo ser humano. Ao dar vida para sua criatura,
esta se volta contra o criador em um misto de ódio e rancor por tê-lo concebido
desta maneira e abandonando-o à sua própria sorte. Ana não tem seu corpo
construído por Demétrio, mas possui seus pensamentos dominados pelo sistema
Meneses; sua recriação por Demétrio é tão invasiva quanto a de Frankenstein, uma
vez que Ana deixa de ser quem ela é, ou quem ela poderia ser, para incorporar-se
naquilo que é esperado que seja.
Desse modo, Ana percebe-se como um monstro, uma criatura modelada para
viver os preceitos do clã. As mudanças que Nina efetua no seio da família Meneses,
seja provocando os olhares de Demétrio, seja mantendo relacionamentos
extraconjugais com Alberto e André, seja seu conluio com Timóteo, entre outros
exemplos, altera a atmosfera da casa. Assim, começa a nascer uma Ana que se
questiona a partir da possibilidade de ver Nina espécie de representação de outras
possibilidades com as quais Ana nunca havia contado. Observa Santos que:

O real sofrimento de Ana parece ter se iniciado, porém, menos com seu
casamento do que com a chegada de Nina. Até então, se não é feliz, pelo
menos vive em paz consigo mesma. A partir de sua convivência com a
outra, no entanto, tudo se modifica. Percebe que o marido a despreza e se
dá conta de sua falta de graça, de sua palidez, de seus vestidos escuros
(2005, p. 262).

Dessa maneira, percebe-se que Ana, apesar de não ser feliz em seu
casamento vivia em paz consigo, com os mandamentos da religião e seus trajes
antiquados. No entanto, tão logo Nina chega a consciência sobre sua infelicidade, os
questionamentos sobre a religião e a percepção do quanto é um ser insosso,
transformam-na e até mesmo o casarão, sua moradia, se converte no seu espaço de
exaustão.
Enquanto Nina e a casa dos Meneses se refletem, se constituem e se
fundem, para Ana a casa é seu túmulo, é o local que exaure suas forças. Brandão
afirma que “pedra, cimento e cal, a casa é túmulo para uma Ana incapaz de viver
sua sexualidade [...]” (BRANDÃO, 2006, p. 167) e, sem forças em si, Ana busca em
84

Nina o que a casa e os Meneses lhe tomaram. Ana “[...] invejosa da vitalidade, do
brilho e do poder de fascinação de Nina, figura privilegiada de uma feminilidade que
se mostra em sua complexidade de objeto de construção imaginária” (BRANDÃO,
2006, p. 167) busca nela o ímpeto de viver, as cores que a constituem, a
sexualidade que a outra desfruta, a influência que Nina possui sobre os Meneses.
É a essa influência, essa autoridade que Nina goza sobre o clã que indica sua
possível liderança permitindo-lhe que pudesse ser considerada a figura feminina que
viria a organizar o sistema da Chácara dando continuidade ao poder feminino que
reinava na casa. Em contrapartida, Ana não pode sequer ser considerada, uma vez
que seu modo de atuação é bastante masculinizado até mesmo mais que os irmãos
Meneses levando o Padre a constatar “[...] um tom profundamente masculino [...]”
(CARDOSO, 2013, p, 189) em sua voz e em sua fisionomia de homem. Sendo
considerada masculinizada, Ana destoa das mulheres imponentes que comandaram
o clã. Reis afirma que “Ana foi anulada pelos Meneses e não chegou a ser uma
efetiva postulante ao poder” (1984, p. 100).
Ademais, é o olhar de Nina para Ana que instaura nesta todo o desassossego
que a acompanha desde o primeiro jantar em que ambas estiveram reunidas. Nessa
ocasião, Demétrio indicou Ana para a cunhada como modelo de vestir-se. Segundo
Betty, “[...] foi desde aí, desse olhar largado de alto e cheio de espantoso desdém,
que a inimizade para sempre surgiu entre ambas” (CARDOSO, 2013, p. 68) até seu
leito de morte, no qual em “seu semblante não havia nenhum sinal dessa paz que é
tão peculiar aos mortos” (CARDOSO, 2013, p. 536).
Mas é por ação de Nina, por esse olhar que Ana vai descobrir tudo o que lhe
fora negado. Segundo Rosa e Silva, em um primeiro momento, Ana “rejeita a
imagem que percebe de si mesma, anódina e insignificante, destituída de graça ou
de sedução [...]” (2004, p. 76), para que, na sequência, estabeleça-se “uma relação
de confronto em que crescem a sua revolta e seu ódio pelo efeito espe[ta]cular que
a outra proporciona [...]” (ROSA E SILVA, 2004, p. 77, grifos da autora). Ademais, a
comparação entre as personagens, suas vestimentas, cabelos e modos, instaura em
Ana o desprezo que sente por si. São esses elementos que Nina lhe desperta que
vão levar Ana a receber o que “nenhuma outra pessoa poderia conceder-lhe: a
revelação de si mesma. Nina lhe outorga a condição de ser” (ROSA E SILVA, 2004,
p. 77), ou seja, Ana pode finalmente descobrir-se sem a forma que Demétrio e sua
mãe haviam-na moldado.
85

Diante de Nina, uma estranha mulher que habita os espaços da Chácara e os


sentimentos que ela provoca, Ana passa a viver através de Nina: seus desejos, sua
vida gira em torno da cunhada. Ana transforma-se na sua sombra a fim de cercar-
lhe, sugar-lhe sua vivacidade. Brandão afirma que Ana, por ser exatamente o
contrário de Nina, caracteriza-se como o seu duplo negativo, uma vez de suas
aparências contrastarem fortemente e “a relação de Ana com o poder é, ao contrário
de Nina, de submissão e silêncio, sentindo ela, por isso, a casa em seu aspecto
vampiresco [...]” (BRANDÃO, 2006, p. 166).
O duplo que se manifesta em Ana explorado em Brandão como uma relação
de oposição também será apresentado por Rosa e Silva, no entanto, no nível
discursivo, uma vez que somente em suas confissões a verdadeira Ana se revela.
Ela apresenta uma dupla face: enquanto em seus discursos confessionais há
revelação de sentimentos, exposição de desejos, “para os outros narradores, ela
continua a ser esse ente fechado em sua frieza, em sua aparente contenção, em
seu conformismo [...]” (ROSA E SILVA, 2004, p. 80).
Apesar da repulsa que Ana sente em razão de ser quem se tornou, ela é a
personagem que endossa externamente os valores patriarcais, em alguns
momentos, mais que os próprios membros da família sendo julgada com desdém
por Timóteo que a considera uma Meneses. A maneira como Ana atua endossa as
palavras de Saffioti sobre o papel da mulher na ordem masculina. A autora destaca
que era a mulher que “[...] encarnava, realmente as forças conservantistas da
sociedade. Pela sua imobilidade geográfica e seu universo sócio-cultural restrito, a
mulher era, inegavelmente, mais conservadora do que o homem [...]” (1976, p. 173).
Logo, Ana configura como a personagem conservadora ao sistema seguindo seus
preceitos e endossando seus valores. Contudo, apenas seu exterior reflete tais
aspectos, uma vez que ao se conhecer intimamente Ana em suas confissões fica
evidente que seus traços subversivos rompem com a tradição que Demétrio
aparentemente representa. A título de exemplo, será por intermédio de Timóteo que
Ana questiona o poder de Demétrio alegando que o Barão de São Tirso jamais
pisará na soleira daquela casa e é através de Nina que Ana transgrede o sistema de
Demétrio ao manter um relacionamento extraconjugal com Alberto ou procurar um
envolvimento com André.
Os mandamentos da religião que antes faziam de Ana uma religiosa fervorosa
são motivos de questionamentos incessantes da personagem: questionamentos
86

acerca da punição, da danação, da vontade divina e da vontade humana, bem como


suas indagações sobre os castigos divinos para Nina, a tentativa de ressuscitar
Alberto, momento em que Padre Justino constata que esta personagem
“representaria para mim o desespero de qualquer socorro divino, a consciência
exata e miserável deste mundo, sem nenhuma possibilidade de resgate ou de
socorro” (CARDOSO, 2013, p. 187), além de não haver possibilidades em Ana de
“crescer uma folha sequer da erva do júbilo ou da fraternidade” (CARDOSO, 2013,
p. 187). Ana também indaga-se reflexivamente: “Que Deus é este que exige a
renúncia à nossa própria personalidade, em troca de um mirífico reino que não
podemos ver nem vislumbrar através da névoa?” (CARDOSO, 2013, p. 302). Essas
constatações corroboram os comentários de Santos:

Revolta, falta de fé, ódio por si mesma e pelos seus semelhantes, inveja,
egoísmo, recusa em aceitar a vontade e os desígnios de Deus, em quem
deixa de crer, as características atribuídas pelo escritor a Ana parecem
fazer dela a personagem realmente demoníaca do romance (2005, p. 264).

Permanece assim, durante boa parte do romance questionando a vontade de


Deus, sua presença e os castigos que devem suceder principalmente à Nina. Dessa
maneira, Ana revela-se como uma antagonista que detém em seu discurso a
responsabilidade de esclarecer não só sobre o próprio fim, mas também sobre o que
vai suceder à Nina, a André, a Alberto e à família. Segundo Rosa e Silva sua fala
possui “[...] linhas essenciais do romance [...]” (2004, p. 74) que presumivelmente
desvendam o mistério do incesto e da traição.
Brandão (2006) e Santos (2005) afirmam que o grande enigma do romance o
incesto entre Nina e André é supostamente esclarecido quando ocorre a última
confissão de Ana. Embora vários críticos como Carelli tenham assegurado que Nina
sabia que não era mãe de André evidenciando, portanto, que o incesto não se
configuraria um enigma no romance. Todavia, Santos salienta que, devido à
multiplicidade de pontos de vista no romance, constitui-se um impedimento para
fazer uma afirmação precisa sobre a questão.
Soma-se a estes fatos indefinidos a passagem de Ana e Nina no Rio de
Janeiro juntas, cena que somente é narrada por Nina para o Coronel e que afirma a
presença das duas mulheres grávidas no estado fluminense:

Minha cunhada Ana viera comigo, e eu o apresentei a ela: ‘Aqui está o meu
melhor amigo’. Lembro-me até hoje da expressão do seu rosto. Quando
87

anunciei que não voltaria a Chácara, e que iria tentar a vida por mim
mesma, ali na cidade ela disse simplesmente: ‘Eu sei, aquele seu amigo.’ E
o pior é que não havia nenhuma ironia em sua voz. Atingimos Coronel, o
ponto que eu desejava chegar. Ana partiu para a Chácara, cumprindo sua
missão, que era de levar meu filho (CARDOSO, 2013, p. 343)

Dessa forma, Cardoso adiciona ao romance um suspense que apesar de ser


esclarecido ao término do romance permanece obscuro, uma vez que há múltiplos
detalhes que podem ser acrescentados às discussões. Poucas certezas são claras
como o fato das traições e de que ambas as personagens femininas terem
consciência de seus atos. Segundo Santos, sobre o romance de Cardoso apenas
conjecturas podem ser formadas.

3.4 UMA SOMBRA OBSCURA: UM RELATO DE OBSSESÃO, INFIDELIDADE E


INCESTO

Como apresentado anteriormente, Nina é a estrangeira que chega a Vila


Velha para perturbar a família Meneses. Pelo olhar de Nina, Ana passa por uma
metamorfose, constituindo-se em uma outra mulher. Toda a vitalidade e sexualidade
de que Nina usufrui, Ana também tenta desfrutar. Para fazê-lo, Ana persegue-a
como uma sombra, como narrado na “Primeira confissão de Ana”: “[...] eu não a
perdia de vista, acompanhava-a como uma sombra, espreitava-a pelas frestas,
através das portas entreabertas, junto às vidraças descidas, de qualquer modo que
pudesse vislumbrar sua silhueta estranha e magnética” (CARDOSO, 2013, p. 113) e
Ana confessa que a segue apenas pela imensa ociosidade que ronda o ambiente
em que vive.
Sabendo que Ana a perseguia Nina a faz sofrer: “mas eu sabia, eu tinha
certeza, espionava-a, sabia que você também me seguia” (CARDOSO, 2013, p.
291). O sofrimento de Ana refere-se ao relacionamento em que a cunhada mantém
com o jardineiro Alberto. Santos salienta que Ana “não consegue perdê-la de vista,
vigia-a o tempo todo, até que a surpreende em companhia de Alberto, o jardineiro.
Somente então é que constata o quanto ele era belo e, com o passar do tempo,
apaixona-se por ele” (2005, p. 262).
Assim, desejando o jardineiro Ana permanece vigiando-os, mancomunando
também a traição, uma vez que sabe do fato e não o revela ao seu esposo.
Evidencia-se que Nina e Ana constroem um pacto silencioso “uma espécie de
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cumplicidade, que talvez fosse apenas o pressentimento da violência próxima, nos


unia naquele instante” (CARDOSO, 2013, p. 314). Dessa forma, as personagens
têm ciência do pacto que as une e do silêncio que as ronda.
O desejo de Ana atinge seu ápice quando se aproxima de Alberto, logo após
o encontro entre ele e Nina. Ana abraça-o à força e “Ele correspondeu afinal ao
abraço, beijou-a – e Ana entregou-se ali mesmo, sobre a relva, como se fosse a
primeira vez que num homem a possuísse” (CARDOSO, 2013, p. 528). Segundo
Brandão:

Ana só consegue viver sua própria sexualidade recalcada, vicariamente,


através dos amores de Nina. É em sua atividade de voyeur, seguindo,
vigiando Nina e Alberto, que Ana vai experimentar pelo jardineiro sua paixão
feita de carência e impossibilidade. É olhando o jogo amoroso dos parceiros
que ela vai se conhecer como mulher. Pelo menos, vai conhecer o seu
próprio desejo de ser desejada e de desejar, como uma mulher (BRANDÃO,
2006, p. 192, grifos da autora)

Portanto, Nina propicia à Ana o conhecimento de si mesma, de sentir-se,


finalmente, mulher, de sentir desejos e afeições. Brandão afirma que “[...] é a
sexualidade de Nina que mobiliza toda sua atenção, como se só através dessa
mulher, Ana pudesse tomar consciência de seu próprio corpo” (2006, p. 191). É por
meio de Nina que Ana busca reconstruir-se “[...] recompor sua própria imagem
fazendo emergir sua sexualidade recalcada” (BRANDÃO, 2006, p. 190).
Ao buscar concretizar seus desejos despertados, Ana engravida. O mesmo
sucede à Nina, e ambas buscam refúgio no Rio de Janeiro. Uma para esconder a
gravidez e a outra para “abandonar” o filho. Diversos questionamentos podem ser
levantados quanto ao abandono do filho de Nina nomeado Glael. Alguns
pesquisadores como Cássia dos Santos questionam-se se de fato Nina havia
abandonado Glael ou colocado aos cuidados de uma enfermeira amiga sua
chamada Castorina. Segundo Santos:

A decisão de abandonar a criança e o desconhecimento sobre seu


paradeiro se tornam passíveis de questionamento, contudo, diante das
alusões a uma outra enfermeira que surgem em dois momentos distintos do
romance. Incluídas pelo autor no texto definitivo, essas referências
conduzem à inevitável pergunta: teria Nina, de fato, rejeitado o próprio filho
ou o teria deixado sob os cuidados de uma amiga? Caso tenha optado por
essa última alternativa, como poderia ignorar que ele não havia sido levado
por Ana para Vila Velha? (SANTOS, 2005, p. 182)

Ainda questões podem ser levantadas sobre a paternidade de Glael, pois


muitos pesquisadores assumem que esta criança seria filho da relação de
89

infidelidade de Nina e Alberto. Entretanto, Nina também se relacionava com Valdo,


podendo o menino ser filho de um Meneses, contudo, sem nunca conhecer a
identidade de seu pai. A autora Consuelo Albergaria em seu ensaio “Espaço e
transgressão” (1996) discorda das leituras que “aceitam o adultério Nina/Alberto
como indiscutível. Leituras atentas podem demonstrar que André é filho de Ana e
Alberto, enquanto os pais de Glael são Nina e Valdo” (1991, p. 688).
Ademais, questionamentos sobre Ana e André fruto de seu relacionamento
infiel com Alberto também são levantados. Há como confirmar que Nina saberia da
relação de Ana e Alberto quando afirma na “Continuação da terceira confissão de
Ana” que Ana nunca o amou e o que ela sente é remorso, “não o remorso de ter sido
dele – uma única vez –, mas que importa? De ter sido tão pouco, de não ter sabido
ser mais” (CARDOSO, 2013, p. 319). Segundo Santos “um dado, entretanto, é
incontestável: ela [Nina] tinha plena consciência de que Ana havia se envolvido com
Alberto, o que fortalece a suposição de que não ignoraria a verdade sobre o
nascimento de André” (2005, p. 188).
Assim, há duas relações infiéis veladas pelo silêncio de ambas as
personagens que será acrescido da relação supostamente incestuosa de Nina e
André, mãe e filho, perante aos olhos do leitor e se descobertos aos olhos dos
membros da família Meneses, exceto para Ana. Albergaria afirma ainda que a
relação de Nina e André apesar de adúltera, não se trata de incesto:

Pois apesar do enigma imposto pelas sucessivas narrativas, duas pessoas


– e apenas duas – conhecem a verdadeira identidade de André: Nina que
sabe que seu filho Glael fora preservado do ambiente Meneses apesar do
sangue, e Ana, que também sabe que André é seu filho e de Alberto – e
como tal, isento do sangue dos Meneses. (1991, p. 688)

A relação supostamente incestuosa de Nina e André inicia-se quando esta


retorna a chácara já ciente do câncer que a acometia e vê em André a
representação de seu antigo amor por Alberto. Ignorando as relações familiares de
mãe e filho que existem na casa, os dois investem em um romance escondido mais
uma vez dentro das mesmas paredes do Pavilhão onde outrora houvera o romance
entre ela e Alberto. André, apesar de estar de acordo com o relacionamento
questiona-se sobre o que é ser mãe ou ter uma mãe, visto que ele não havia
conhecido amor maternal, ou até mesmo, amor algum “[...] que sabia eu das mães e
dos seus costumes!” (CARDOSO, 2013, p. 199). É Nina quem desperta a admiração
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feminina: “[...] aquela mãe que era uma estranha para mim, e que sozinha, como um
fato inédito, assumia aos meus olhos todo o inebriante fascínio das mulheres”
(CARDOSO, 2013, p. 198) e ambos estarão comungando de um ato leva à
“impressão de carregar uma secreta culpa” (CARDOSO, 2013, p. 229).
Para Nina o relacionamento com André visa à busca de seu amor perdido por
Alberto, uma reminiscência daquele que outrora ela havia amado. Segundo André
“[...] teria ela realmente me amado, ou procuraria em mim apenas a reminiscência de
alguém?” (CARDOSO, 2013, p. 353) e Nina exprime na “Continuação da terceira
confissão de Ana” que “Se me deito com André, é para ver se o reencontro, se
descubro nos seus traços, nos seus ombros, na sua posse, enfim, a criatura que já
desapareceu” (CARDOSO, 2013, p. 318). Segundo Teresa de Almeida há uma
transmigração de almas que seria vivenciada por André

[...] em particular, nas suas relações bizarras – rememoração de


acontecimentos ou mesmo de cenas de sensações auditivas ou visuais,
ocorridos tais momentos num tempo pretérito em que ele não teria nascido
ou provavelmente não poderia deles partilhar. E por vezes parece insinuar-
se, no seu relacionamento erótico com Nina, a presença fantasmagórica de
um “outro” habitando-lhe talvez a alma (1996, p. 707, grifos da autora).

Ao procurar o amor de Alberto nos braços de André, Nina procura também a


juventude que ficara para trás. Através da lembrança de Alberto e do tempo com
André, a protagonista já aparenta estar mais jovem após alguns encontros com o
menino: “ah, como seu rosto havia se transformado, e até mesmo rejuvenescido de
um modo assustador, como se a expressão do seu tormento, em viagem durante
tantos anos de agonia e luta, afinal regressasse ao seu ponto de origem [...]”
(CARDOSO, 2013, p. 279).
Seu envolvimento com André, assim como fora o com Alberto, é vigiado por
Ana que levada pelas ações, pelas palavras de Nina também busca contato físico
com André. É após o interesse de Nina pelos dois homens que Ana também passa a
nutrir semelhante sentimento como ela relata no capítulo “Continuação da terceira
confissão de Ana” comentando que André “[...] nunca fora um personagem que
entrasse em minhas cogitações [...] mas jamais conseguiria interessar-me a ponto
de me debruçar sobre sua natureza autêntica” (CARDOSO, 2013, p. 299).
Após a explicitação de Nina da semelhança entre o jardineiro e o menino
como os lábios grossos, os dedos finos e fortes e o cheiro do cabelo, Ana a “[...]
91

sugava, eu a fazia minha, porque queria arrancar de seus lábios a presença daquele
amante, eterno, formidável na sua eloquência” (CARDOSO, 2013, p. 316). Ela busca
em André o mesmo êxtase que Nina afirma sentir “quero ver como é feito. Se
soubesse como preciso disto... Quero sentir a linha do seu nariz, a força dos seus
lábios. Beije-me André, beije-me como beija sua mãe, como beija uma mulher
qualquer, uma vagabunda de rua” (CARDOSO, 2013, p. 331). Como se sabe que
Ana e André representam efetivamente mãe e filho desta trama pode-se cogitar que
se o investimento da suposta tia fosse bem-sucedido, haveria um caso de incesto na
família Meneses.
Brandão afirma que “o desejo de Ana era, em última instância, não Alberto,
Demétrio ou André, mas a própria Nina. Pode-se falar num amor estruturalmente
homossexual, especular, de Ana em relação a Nina” (2006, p.192), devido aos seus
atos para com a protagonista que podem inferir tal leitura, uma vez que ao sugar,
usurpar o local de Nina, segui-la incessantemente, parece-lhe querer sê-la, tê-la
intimamente. Tal desejo se assemelharia ao que ocorre com Timóteo que resguarda
em si um amor homossexual pelo jardineiro sem nunca de fato concretizá-lo o que
condizia com os fatos transgressores que já se acercam da vida dos Meneses. No
entanto, tal leitura pode ser apenas especular como a autora afirma, dado que não
há afirmação por nenhuma das personagens deste amor homossexual.
Nessa família, há duas mães, mas nenhuma atua como tal. Nina confunde
André deixando-o sem saber como seria um amor maternal e levando-o a acreditar
que ele estaria traindo preceitos religiosos ao relacionar-se com sua mãe. Ana
renega o próprio filho que trouxe consigo do Rio de Janeiro não demonstra por ele
qualquer carinho ou afeição em sua criação relegando o jovem aos cuidados da
governanta Betty. Conforme observa Rosa e Silva, Ana elimina o filho de sua vida de
maneira dura e cruel, pois ao não o reconhecer como filho ela o recusa ao amor:
“durante anos, nega ao filho qualquer tipo de afeto ou atenção. Nem mesmo quando
o vê consumir-se na suspeita de uma relação incestuosa com Nina, ela assume sua
maternidade. Não consegue enfrentar os Meneses [...]” (2004, p. 80). Ao ser
abandonado pela própria mãe, André se afeiçoa a figura que por tantos anos
venerou e imaginou criando por Nina uma paixão presumidamente edipiana.
Segundo Saffioti “O tabu do incesto apresenta alta relevância, pois é ele que
revela a cada um seu lugar na família, em vários outros grupos, enfim, na sociedade
em geral” (2004, p. 29). Percebe-se assim que, além do poder vacilante nas mãos
92

dos irmãos Meneses, a transgressão revelada com os dois possíveis incestos


evidencia a desordem familiar que Demétrio obstina-se a não ver deixando que o
destino cumpra seu curso final. Guy Besançon acrecenta que o incesto “[...]
representa a transgressão máxima tanto no plano cultural quanto no patológico.
Quem viola o tabu não pode escapar da morte” (1996, p. 690).
Ana, por conhecer os atos ilícitos de Nina, questiona-se qual seria o castigo, a
punição para tamanho desrespeito aos votos matrimoniais um dia jurados. Quando
Nina não pode mais esconder os traços do câncer que a acomete, Ana acredita ser
a justiça divina agindo sob o teto dos Meneses “[...] era um castigo abrupto e sem
sentido que sobrevinha, uma agressão, o sinal da vontade e da cólera de um Deus
provocado em sua justiça” (CARDOSO, 2013, p. 440).
No entanto, Ana procede com os mesmos atos de traição e em seu leito de
morte sofre angustiosamente até mais que Nina ao confessar ambas as traições das
personagens, o abandono de seus filhos e o ódio pelos Meneses. De acordo com
Besançon “o personagem de Ana aparece como fundamental na construção da
crônica e no destino da casa Meneses” (1996, p. 695), uma vez que é ela quem
relata grande parte dos acontecimentos na Chácara, revelando o mistério do incesto
que pairava sobre o romance. Segundo Brandão “Ana faz da sua escritura um
espelho, do qual não escapa, fechando-se cada vez mais no círculo mortífero de
suas obsessões, até a alienação total da morte a que se abandona” (2006, p. 190 e
191).
As mortes das personagens femininas revelam a deterioração da família
Meneses que se iniciava muito antes de Nina chegar, muito antes até mesmo do
casamento de Ana com Demétrio. As transgressões realizadas agregam-se as
tantas outras já realizadas no seio da família tradicional mineira e suas mortes
representam o castigo, a punição pelas suas infidelidades e pelo incesto. Por
intermédio de suas mortes, da metaforização do câncer e da morte perturbada essa
estrutura familiar encontra seu fim.

3.5 FENECEM-SE EM PODRIDÃO E DESSASSOSEGO

Ambas as mortes são solitárias: enquanto Ana faleceu sozinha, apenas com a
presença do Padre, no quarto pequeno que era de Alberto, Nina faleceu rodeada de
93

familiares e vizinhos que pouco se condoem por sua morte. Essas mortes significam
o fim moral e o fim físico dos Meneses, respectivamente.
Ao descobrir sua doença, Nina retorna à Chácara justificando a necessidade
do luxo que os Meneses poderiam lhe ofertar e a necessidade de rever seu filho.
Retornando à Vila Velha, a protagonista busca desesperadamente reviver sua vida,
seu amor com Alberto, já que acometida pelo câncer está ciente de que sua morte
se aproxima e em André ela encontra esse último sopro de vida. Similar ao mito
edipiano, após a consumação do incesto o mal, as pragas recaem sob a cidade e a
família de Édipo. Em Crônica, tem-se análoga leitura posto que a condenação da
família Meneses, inicia-se muito antes da chegada de Nina. De qualquer forma, é
Nina o gatilho que dispara a desgraça familiar desde quando se enamorou de
Alberto. Mas a tragédia se consuma quando vive uma relação afetiva com André
ação reprovável já que representa o incesto.
Uma interpretação possível aos atos transgressores cometidos por Nina
(julgados por Ana como pecado) é a transformação de tais ações na doença que a
mata representando, portanto, uma espécie de punição. De acordo com esta leitura,
o câncer deriva de seu envolvimento com Alberto e a suposta culpa sua pela morte
do jardineiro; da sua suposta promiscuidade com Alberto e com André e até mesmo
do abandono de Glael. É possível acrescentar que:

O câncer de Nina representa o câncer moral sofrido pela família Meneses, o


processo de putrefação pelo qual passa seu corpo representa a
metamorfose e declínio da Chácara Meneses, portanto, a doença é a
materialização do processo de decadência pelo qual está passando a
família... (MOREIRA; FORTES, 2011a, p. 437).

Assim, a doença de Nina é a doença dos Meneses, a decomposição de Nina


funde-se a decomposição da casa. Moralmente, Nina extermina os Meneses, uma
vez que, mancomunada de Timóteo, a reputação dos Meneses se esvai. Nina é o
bode expiatório dessa sociedade em decadência que a relegou que alçasse um
punhal para exterminar com as ideologias antiquadas da família mineira dos
Meneses.
Este punhal revela-se pútrido em razão de toda a atmosfera doentia que
envolve as relações dos Meneses. Uma delas se refere a recusa de André ao aceitar
a morte da sua mãe e amante: ele se recusa a aceitar que o câncer a havia
dominado e, assim, investe pela última vez em uma cena quase de necrofilia. As
94

minúcias retratadas pelo autor oferecem ao ledor uma leitura repleta de desgosto,
asco e perplexidade, visto que não se trata de uma relação carnal com cheiro de
mocidade, mas “[...] um odor rançoso, indefinível, que sobrevinha do seu âmago
como um excesso de óleo que fizesse andar as escuras profundezas daquele
engenho humano (CARDOSO, 2013, p. 427). Relata-se o encontro de André com a
morte e a sua paixão: “amei como nunca, sem saber ao certo o que amava - o que
possuía. Não era um interior, nem uma mulher, nem coisa alguma identificável – era
uma monstruosa absorção a que me entregava, uma queda, um esfacelamento”
(CARDOSO, 2013, p. 427).
Rosa e Silva expõe que “Nina consegue transgredir uma dupla interdição: a
da vida, praticando o incesto; e a da morte, ao realizar, agonizante, habitada pela
própria morte, o intercurso sexual ‘incestuoso’ com André” (2004, p. 63, grifos da
autora). Teresa de Almeida em seu ensaio “Marcas do texto: Julie Green e outros”
relata a eficácia estética quase intolerável que Cardoso evoca nesta cena, “[...] aqui
desdobram-se imagens articuladas de forma altamente insólita, nesse tempo
derradeiro de uma paixão maldita. Ou que em seu maximalismo se situa
tragicamente além do bem e do mal” (1996, p. 704). Dessa forma, Cardoso retrata
uma relação considerada incestuosa durante boa parte do romance e seu ápice de
repulsa ocorre nessa cena em que as personagens transgredem o momento que
prenuncia o falecimento da moribunda.
Repulsa é a aura que segue todo o velório de Nina. O seu translado do quarto
para a sala onde aconteceria o velório é precipitado e negligente. A mando de
Demétrio, Betty e Ana retiram Nina de sua cama sem que tivesse exalado seu último
suspiro. Com o corpo ainda quente, Ana envolve-o com um lençol de linho, um dos
melhores da casa, e transportam-no para a sala momento em que Betty “[...] parecia
escutar um protesto se elevar a cada um daqueles solavancos, imaginando a pobre
com os olhos apenas cerrados, onde rolariam devagar duas grossas lágrimas de
cera” (CARDOSO, 2013, p. 467).
Conforme destacam Kelly dos Santos Moreira e Rita Félix Fortes (2011), o
tratamento com que Ana e Demétrio destinaram ao cadáver de Nina representa os
sentimentos que o casal lhe dispensava e a omissão de Valdo por mais uma vez não
dispor de voz ativa para oferecer a sua esposa um velório respeitoso “de acordo
com a tradição, a toalete no morto é um elemento importante nos ritos funerários e
não cumpri-los desvela o desrespeito para com a morta [...]” (MOREIRA; FORTES,
95

2011a, p. 440). Ademais, a pressa em iniciar os ritos funerários se dá pelo processo


avançado de decomposição do corpo e principalmente pela tentativa patética de
Demétrio receber, enfim, a visita do Barão satisfazendo sua vaidade, mesmo que
isso signifique um gesto de loucura e extrema repugnância.
Valdo descreve o comportamento de seu irmão mais velho como movimentos
“[...] nervosos, descontrolados, com essa pressa característica de certos maníacos.
Indiferente aos que olhavam da sala – ele, sempre tão cheio de pudor nas suas
atitudes...” (CARDOSO, 2013, p. 479). Tais movimentos de arrancar as roupas,
sapatos e acessórios de Nina “[...] exprimia[m] uma violência, um asco, que era uma
ofensa mortal ao ser a quem aquelas coisas haviam pertencido” (CARDOSO, 2013,
p. 481). Segundo DaMatta:

De fato, não deixa de ser significativo o fato de, nas sociedades


individualistas, as práticas serem de destruir o morto, dele não devendo
ficar nem mesmo uma memória, pois aqui pensar sistematicamente no
morto e falar constantemente dele trai uma atitude classificada como
patológica (1997, p. 99).

Alegando que as roupas estariam infetadas, Demétrio tenciona não deixar


que nenhuma memória de Nina reste, bem como fizera com a imagem de Maria
Sinhá. Porém, a ação é inútil, pois ambas sobreviveram na memória dos Meneses e
dos moradores da cidade. Acresce-se à tamanha insensibilidade e descuido da
família o descaso dos cidadãos de Vila Velha. Valdo narra que ao adentrar a sala
onde a protagonista repousava havia “[...] uma atmosfera de festa muito pouco
fúnebre. Dir-se-ia mesmo que a pobre morta, enrolada no seu lençol e estendida
sobre a mesa, era um fator que muito poucos levavam em conta” (CARDOSO, 2013,
p. 478). O velório se identificava mais com uma reunião em que os presentes
conversavam em grupos em voz alta, risos contidos e o cheiro incômodo da morta
que relembrava aos visitantes tratar-se de um velório.
Moreira e Fortes afirmam ser o velório apenas mais uma ocasião para reunião
social e que “[...] os presentes no velório apresentam é um misto de curiosidade em
relação à casa e aos Meneses, associada ao pretexto do dever penoso de se velar
os mortos e prestar solidariedade à família” (2011a, p. 439), não havendo uma
demonstração real de luto. As poucas pessoas a demonstrarem certo pesar com a
morte de Nina são Betty, Valdo e André.
96

Como dito anteriormente, Ana também morre ao relento e de uma morte aflita.
Após o falecimento de Nina, Valdo e André deixam a Chácara; sobre Demétrio,
Timóteo e Betty não se sabe o paradeiro, mas Ana permanece na casa, mesmo
depois desta ter sido saqueada pelo bando de Chico Herrera. Segundo Rosa e Silva,
Ana a única herdeira orgulhosa da família passa a viver no Pavilhão, no pequeno
quarto que pertencera ao jardineiro Alberto.
É neste ambiente que Ana sente a presença daquele que fora seu amor.
DaMatta sustenta que os “[...] espectros estão também presos a promessas, bens
materiais e emoções que só podem ser liberadas depois de serem devidamente
descobertas e receberem as orações apropriadas” (1997, p. 107). Assim, Ana
protege aquele ambiente para que a lembrança de Alberto permaneça viva. Para
Ana, o túmulo de Alberto era seu quarto e existem “obrigações para com eles [os
mortos], devendo cuidar de seus túmulos e ossos, provendo para que não se
percam ou se destruam e, naturalmente, fiquem sempre unidos e em família”
(DAMATTA, 1997, p. 107).
Assim, ela permanece perto de Alberto, da sua lembrança, mas ela “[...]
dilacera-se, buscando respostas para as dúvidas que a acompanharam durante toda
sua vida. Morre envolta na mais profunda solidão por não ter compreendido e aceito
sua falta, por não ter emitido seu grito de salvação [...]” (ROSA E SILVA, 2004, p.
82) e quando o faz, quando se permite revelar a verdade ao Padre Justino somente
o faz por estar em seus últimos minutos de vida terrena.
É por meio de sua confissão que se descobre a verdadeira identidade de
André e o conluio que existiu entre as personagens femininas. À Ana é relegada a
difícil tarefa de revelar, de proferir o que nunca havia sido dito em voz alta: ambas as
mulheres transgrediram em seus matrimônios, esconderam os filhos de relações
adúlteras e partilharam deste segredo culminando no irreversível fim da família. A
confissão de Ana busca o perdão do padre, da religião católica para obter seu
repouso eterno, no entanto, em meio aos seus pensamentos Padre Justino, pouco
antes de perdoá-la, percebe que Ana Meneses não existia mais e que em seu “[...]
semblante não havia nenhum sinal dessa paz que é tão peculiar aos mortos”
(CARDOSO, 2013, p. 536).
DaMatta afirma que o ser humano é responsável pelos atos cometidos,
responsável pela sua salvação e que os outros, os que sobrevivem não podem
recuperar o seu caráter “não há mais confissão, nem compadrio, nem purgatórios,
97

nem indulgências, rezas ou missas que os outros possam realizar por sua melhoria
moral” (1997, p. 98). Consequentemente, Ana não conquista o descanso que busca
ao chamar o Padre e tampouco conseguiria caso seus familiares pudessem orar por
sua alma. “E para Ana não há salvação, visto que ela não sente remorso por ter
guardado esse segredo durante tanto tempo e nem gratidão por Nina não tê-lo
revelado” (MOREIRA; FORTES, 2011b, p. 93).
Ana não esboça paz de espírito, uma vez que, sua confissão revela dados
surpreendentes sobre o romance que provocam mais questionamentos ao leitor.
Sem a absolvição divina, Ana morre repleta de remorsos e, assim como Nina, sua
morte pode ser compreendida como uma metáfora de sua transgressão, e das
transgressões ocorridas na família, sendo punida enfim.
As personagens Ana e Nina estão fadadas a um destino incrivelmente triste.
A primeira desconhece-se como ser humano e descobre-se a partir do olhar da
chegada de uma estrangeira no seio familiar. A segunda debate-se contra um
sistema viciado e prepotente determinada a eliminá-lo por vez. Ambas são infelizes
e sabem da infelicidade que as rondam; compartilham os segredos de suas traições
e morrem expondo a podridão que corroía os pilares da família Meneses.
98

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em Crônica da casa assassinada, o leitor depara-se com um mundo


convulsivo e desgostoso algo muito particular da escrita de Lúcio Cardoso que
apresenta em sua obra a tristeza e a solidão, duas das facetas mais caras de suas
personagens. Cardoso constrói na Chácara dos Meneses um mundo quase
desamparado da bondade humana onde não há esperanças e o horizonte é
obscuro. Assim, adentra-se na família dos Meneses, uma família despedaçada e
transgressora muito antes do início da sua narrativa.
Esta dissertação enfoca algumas personagens transgressoras iniciando por
aquelas consideradas homossexuais: Maria Sinhá e Timóteo. Para analisar Maria
Sinhá e Timóteo foi necessário compreender a situação do homossexual na década
de 1920, provável período em que Cardoso situa a narrativa dos Meneses.
Depreende-se que o homossexual possuía uma aura extremamente negativa e
repreendida. As manifestações homossexuais eram reprimidas pela sociedade que
considerava tais atos ofensivos e contra o preceito da reprodução. Além disso, o
homossexualismo era reprimido pela ciência que se valia de diversos métodos
invasivos para exterminá-lo, pois era considerado uma “doença”.
Mesmo assim, as representações homossexuais não cessaram, apenas
foram limitadas a poucos e certos espaços como cinemas ou ruas específicas em
que o homossexual poderia se vestir como quisesse e relacionar-se como quisesse.
Tem-se nessa perspectiva Timóteo uma personagem que representa bem esse
espírito social em uma pequena e interiorana cidade de Minas Gerais. Ao se afirmar
possuído pelo espírito da sua tia-avó, Timóteo apresenta todas as características
que seu irmão, Demétrio, o representante da ordem patriarcal, reprova: veste-se
com os velhos vestidos de sua mãe, maquia-se, usa peruca e as joias que obteve
quando se apossou do guarda-roupa da matriarca falecida. Assim é descrito o irmão
mais novo dos Meneses.
Os elementos que circulam na órbita de Timóteo são considerados sob uma
ótica de censura. A porta do quarto é considerada a entrada de um reduto
amaldiçoado, seu quarto é sujo e desorganizado, permitindo que apenas ele vivesse
naquele ambiente. Ademais, apesar de Timóteo ser um membro da família e possuir
o sangue Meneses em sua veia, ele é considerado um ser da nebulosa, uma vez
99

que não participa ativamente das decisões familiares, já que foi excluído do núcleo
do clã pela sua escolha sexual.
Soma-se a discussão a presença de Maria Sinhá personagem que aparece
apenas como uma reminiscência familiar e que teria sido a influência de Timóteo.
Sua presença é marcante no romance: ela é comparada a uma espécie de Anita
Garibaldi de Minas Gerais. Sua aparência é definida como a de um homem:
cavalgava melhor que os cavaleiros da fazenda, usava chicote, açoitava os
escravos, detinha o controle da Chácara. Apesar de não ser a única mulher no
período a comandar uma família, Maria Sinhá tivera uma posição de respeito
naquela sociedade, posição esta que não era comum ver-se em mãos femininas.
Maria Sinhá, assim como Timóteo, apresenta a inversão do gênero: ela é
descrita como homem, enquanto ele é descrito como mulher sendo por essa razão a
influência que teria feito Timóteo a assumir sua porção feminina. Relevante ressaltar
que este aspecto transgressivo assumido por Maria Sinhá e Timóteo também
aparece nas personagens Demétrio e Valdo que, no entanto, mascaram suas
porções femininas e tal ação culmina em tragédias pessoais, haja vista que nunca
reconhecem seu lado feminil.
Nina e Ana também contribuem para esta discussão transgressiva. Nina é
protagonista do romance, aquela sob a qual todas as vozes desencontradas
emitiram uma opinião. Ela surge no meio de Vila Velha como uma lufada de ar
fresco a um recanto desencantado; todos admiram sua beleza, no entanto, logo ela
acaba exaurida pelas imposições de Demétrio e Valdo e comete seu primeiro ato
transgressivo: trai o marido com o jardineiro Alberto. Influenciada por aquela
presença arrebatadora, Ana que desde a chegada de Nina passa a ser sua sombra
percebe como sua vida era sem graça e não questionada por si mesma. Assim, ela
também se torna infiel a Demétrio, entregando-se a Alberto.
As duas engravidam e concebem seus filhos no Rio de Janeiro, retornando de
lá apenas um, o filho de Ana e Alberto nomeado André. A outra criança é deixada
no Rio de Janeiro sabendo-se dele apenas o nome Glael. Dessa segunda criança
diversas conjecturas são levantadas não havendo possibilidade de afirmações, visto
as poucas informações disponíveis no romance. Uma das belezas do romance é
justamente as conjecturas que o tornam um material infinito de buscas e incertezas.
Acresce-se à primeira transgressão cometida pelas personagens femininas o
incesto. Incentivado pelas narrativas caleidoscópicas que várias personagens do
100

romance fazem, crê-se André como filho de Nina e Valdo, e com sua suposta mãe,
André aventura-se em um romance repleto de culpa e estranheza que culmina na
cena em que Nina, já abatida e carcomida pelo câncer, relaciona-se com André pela
última vez. Esta presumida e dilacerante relação supostamente incestuosa deixa
ressoar o mito de Édipo. Só não o é de fato porque se descobre no fim do romance
que André era filho de Ana e Alberto, não configurando uma relação entre mãe e
filho.
No entanto, Ana, novamente dominada pelas palavras de Nina, busca o
contato sexual de André que, se bem-sucedido, configuraria uma relação
incestuosa. Dado as suas ações transgressoras contra a sociedade patriarcal de
Demétrio questionando sua autoridade e o sistema opressor, as personagens são
fadadas a um fim trágico e solitário, assim como sucedera a Maria Sinhá, a
antepassada que havia morrido abandonada na antiga fazenda Serra do Baú.
Nina, acometida por um câncer, entra em decomposição ainda em vida
metáfora que torna possível analisar sua putrefação semelhante ao que ocorre com
a Chácara em que os corpos se intrincam. Portanto, a morte de Nina revela também
a morte da casa. A protagonista sofre punições que deveriam ser sofridas pelos
Meneses tornando-a um bode expiatório dos Meneses. Sua morte provoca a vinda
do Barão de São Tirso à Chácara; provoca a saída espalhafatosa de Timóteo do
quarto, escandalizando as pessoas que vieram ao velório de Nina; provoca, enfim, o
golpe fatal que expõe os Meneses e toda a aura negativa que ronda seus membros.
Além disso, sua morte define o fim da casa uma vez que Valdo e André a
abandonam e as outras personagens não se tem notícias, excetuando Ana.
Com Ana uma morte sem paz a acomete, uma vez que sozinha e no antigo
quarto de Alberto, no inóspito Pavilhão. Sua morte reflete também seus atos
transgressores, a culpa religiosa que a persegue, o peso de ser encarregada de
proferir ao Padre Justino a confissão de seus atos e dos atos de Nina. Sua confissão
revela que a vingança planejada por Timóteo e Nina de não permitir que o sangue
dos Meneses tivesse continuidade foi afortunada, dado que não há herdeiros para
manter o clã vivo.
Lúcio Cardoso constrói uma obra primorosa descrevendo todos os desgostos
do ser humano, seu final infeliz e suas dores em ser. Acresce-se a atualidade de
seus escritos que abordam a condição feminina em um cenário pouco propício a
autonomia a condição homossexual; a transgressão a um sistema falido que persiste
101

arraigada a crenças ultrapassadas. Em síntese, Lúcio Cardoso apresenta uma obra


extremamente instigante e repleta de conjecturas o que a faz de difícil deglutição e
popularização em meio aos clássicos da literatura brasileira.
102

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