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]. C. M.

Colombo

c5.ta crtlaria Çj}oretti


Mártir da Pureza

DEDICAO

http://alexandriacatolica.blogspot.com.br

EDIÇOES PAULINAS
RIO DE JANEIRO - S. PAULO - PORTO ALEGRE
FORTALEZA - BELO HORIZONTE CURITIBA
-
Nihil obstat
Fr. Remando Fiene O. F. M.
Rio de Janeiro, 2-2-1949
Censor ad hoc

Pode Imprimir-se
Rio, 3 de fevereiro df! 1949
Mons. Caruso pro Y�ário Geral

Imprimatur
Pe. Salvador De Ruggiero
Provincial
APRESENTAÇÃO

Este livrinlw foi de início uma tradução, mas


inúmeras modificações intrqduzidas alteraram bas·
tante o texto de origem.
Entre os vários motivos que me aconselharam
tal procedimento, um se me afigura sobremaneira
justo: a conversão do infeliz Alexandre Serenelli, com
o qual o leitor travará conhecimento na leitura destas
páginas. Pois é fácil aos agiógrafos realçar a fôrça
de seus heróis, prejudicando adversários ou, também,
perseguidores. Não haveria nisso alguma falta de ca·
ridade? Tanto mais que, em nosso caso, o autor da
morte de S.ta Maria Goretti ainda vive, e, acima de
tudo, é hoje um perfeito convertido. Era preciso exal·
Ear, com a generosidade da nossa heroína, a admirá­
vel conversão desse nosso irmão.
Do livro do R. P. Armando Gualandi conservei
a disposição inicial dos vários capítulos, e dele me
serví como fonte principal.

P. Colombo
iarde de sangue

5 de julho de 1902.
Em Ferriere, pequena aldeia da ensoalhada
••campagna" romana, a poucos quilômetros de Nettu-
no.
No páteo da casa colonial, chamada "'cascina an·
tica", propriedade do Conde Attílio Mazzoleni. Dar­
deja o sol meridiano. São mais ou menos 15 horas.
Dois pares de bois atrelados a dois carros agrícolas
giram em tôrno do terreiro, debulhando favas.
Dentro do primeiro vão três irmãozinhos : dois
meninos e uma pequenina em algazarra : radiantes
com este passeio de "carruagem . . . "
Um jovem de vinte anos, Alexandre Serenelli,
guia o outro· carro. Parece sério e preocupado. Mo·
lesta·o um triste pensamento, e um demônio impuro
perturba-lhe a alma. De repente, volta-se para a mu·
lher, que ao seu lado espalha as favas e diz-lhe:
- "Assunta, guie você um pouco, agora. Tenho
que ir lá em cima um momento".
A mulher sem nada suspeitar, sobe tranquila-

7
mente ao carro com o filho, Mariano, e o trabalho
continua, lento, sob um céu de fogo. A natureza pare­
ce entorpecida. Até mesmo as cigarras estão cala­
das . . .. Apenas alguma alegre risada ou um inocen­
te chiste, vindos do primeiro carro, onde estão os pe­
querruchos, rompem a monotonia daquela tarde.
No interior da casa, porém, trava-se um drama
passional . . .
O jovem Alexandre, possuído pelo demônio, so­
be pela pequena escada exterior e entra na casa.
Uma menina de doze anos, sentada no patamar9
remenda uma camisa. Ao seu lado dorme sobre um
acolchoado, a irmã de dois anos : Teresinha.
- Maria, vem para dentro, intima-lhe Alexan-
dre.
Maria, não se move, ela sabe . . . já por duas ve­
zes pressentira o mal, e seu coração inocente bate in-
/
quieto . . .
Outra vez a mesma ordem :'
- Maria, vem para dentro !
E Maria continua imóvel como uma estátua.
- Para que? Que queres?
- Vem para dentrÕ ! . . .
- Não ! dize ·primeiro o que queres, do contrá-
rio não vou !
Mas a paixão cega-o, e Alexandre aproximando·
se de Maria, agarra-a brutalmente pelo braço, arras·
ta-a para dentro, e fecha violentamente a porta com
o pé, sem dar à pobrezinha o tempo de soltar um gri·

8
lo ou de se agarrar ao corrimão da escada, numa últi·
ma tentativa d� salvação.
Começa a luta desigual.
-, m.o ! Não ! Deus não quer ! Se fazes isto vais
'para o inferno! Que fazes, Alexandre? Não me to­
ques ! É pecado ! Vais para o inferno. Sim, vais para
o inferno ! É um pecado ! Deus não quer !
Mas a mão, trêmula de raiva e de paixão, fecha-
lhe a boca, e enfia-lhe um lenço na garganta.
Sobre o armário há um longo ferro ponteagudo.
- Eu te mato, se . ,.
A menina· tenta livrar-se; luta, parece uma pe­
quena leôa : a fé redobra-lhe as fôrças.
- Não, não, não !. Deus não quer ! Se fazes isto
cometes um pecado. Vais para o inferno !
O terrível ferro já se ergue sobre sua cabeça . ..
Mesmo assim ela não cede.
- É pecad o .I . . . N-ao .IN-ao I.
A paixão transforma-se agora em ódio feroz. E
o ferro homicida oito vezes golpêia violentamente a
carne imaculada, para vencer e castigar aquela vonta­
de inquebrantável, aquele coração indómito, que ain­
da repete : "Não ! Não ! É pecado ! Deus não quer !"
O �.angue jorra das feridas abertas. A menina
cai . . . tudo giril em seu redor ; não vê, nem sente mais
nada . . A luta feroz, deixou-a sem fôrças.
.

Deus, compadecido, poupa-lhe por um momento,


a terrível realidade.

9
O ethninoso, julgando-a morta, retira-se para o
��eu quarto.
. Mas a heróica menina ainda vive. Recupera 01
sentidos e, arruta.ndo-ae penattamente numa poça de
oaogue, consegue chegar alé a porta, Abro-a e, e<>m
um tênue fio de voz, chama:
- Joiio, venha cál Ale...dre me matou ...
Ao ouvir aquela voz, que julgara para sempre
extinta, o malvado sai ·do quàrto, e., num paro:d81'l10

lO
Ge'iidio e furor aatânioo, avança novamente para a wa
VItima.
Com mais seí11 terrfveis golpes.. tranepuaa-a da
lado a lado ...
Meu Deus!. . eq morro! Mamãe! Mamãe!
.

A mãe, porém, não ouve. Alheia a toda aquela


tragédia, guia tranquilamente o carro.. . Entretanto,
separam-na apenas uns quarenta metros.. . Maa o
chjado du rodas, o eetalar das favas secas e a taga­
.�elice das crianças encobrem o pedido de socorro.
O pai do criminoso, João Serenelli, que alacado
de malária deitara-se à BOmbra da casa, é o primeiro
� perceber os gemidos.
Também Teresa, a �le criaturinha que a
irmã fizera adonnecer, já acordou. a&&ustada com
aquele rumor estranho, e, movida talvez pela intuiçio
do perigo, põe-ee a chorar. Imediatamente, D. Aeeun·
� mãe carinhoea, manda o filho Mariano acudi-la.
depois de haver inUtilmente chamado duu vezes por
Maria. Corre Mariano ainda em tempo para alcan·
� o pai do asaassioo que subia apressadamente a
�scada.
Neste momento os bois. até agora tão tranquiloa,
assustam-se, D. ABSunta aperla as rédeas e grita:.
- Ó Virgem Maria! Meu Saqto Antônio! que é
que esl.á acontecendo?
João e Mariano penetram juntos em casa... Hor­
rorizado à vista do sangue, Mariano agarra a pequena
Teresa e corre aos gritos, para junto da mãe...

li
Trêmula e tomada de lúgubres pressentimentos,.
Assunta' faz imediatamente parar os bois, e voa para
casa, seguida de outra camponesa, D. Teresa Cima­
relli, que com seu marido trabalhava no terreiro. Ao
deparar com aquele quadro pavoroso a pobre mãe
cai desfalecida . . . Quando volta a si, rompe em gri­
tos lancinantes.
Deus, fervorosamente invocadó por aquela mãe,.
restitui à vítima as fôrças perdidas . . . Maria abre os
olhos inundados de lágrimas, e olha ternamente para
a mãe.
* * *

- Marieta, minha filhinha, que aconteceu,.


quem esteve aqui ? quem fez isto?
- Alexandre.
- Mas por que?
- Porque me queria fazer cometer um pecado
feio e eu não quis.
E as fôrças novamente a abandonam.

12
PRIMEIRA PARTE

1. Dois pobres no mesmo caminho.


2. Sem pai.
3. Uma pequenina dona de casa.

4. Marieta.
5. Alma puríssima.

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Dois pobres

no mesmo caminho

A família Goretti era originária de Corinaldo


·(Ancona).
O pai, Luiz, depois de ter feito o serviço mili�
lar, casara-se com a sua conterrânea D. Assunta Car�
lini, de dezenove anos, e a levara para sua casa, na
sua pequena propriedade, onde viveram anos felizes.
Assunta Carlini é chamada por todos os biógra·
fos da nossa mártir: "a mulher forte".
Dera-lhe a natureza JJ.ma índole viva, embora tí·
ínida, sentimental. Rica de boas qualidades, não lhe
.. faltavam defeitos. De sua sensibilidade intuitiva,
pronta a perceber os pensamentos e os sofrimentos do
próximo adquiriu aquela dedicação que lhe caracte­
rizou toda a vida, no amor, no sofrimento e no sacri�
freio.
Não lhe acalentou a infância a doçura do beijo
materno; e, na sua adolescência, para ganhar o pão,
teve que sujeitar-se ora a um ora a outro patrão.
Quem conhece a vida dessas pobres moças, que s�

15
empregam nos campos, pode avaliar quais foram os
primeiros anos de Assunta. Arcava com duros traba­
lhos. Era a última a deitar-se e a primeira a levan­
tar-se; tinha de contentar-se com o que lhe davam,
tanto para comer, como para se vestir; exposta a to­
das as intempéries e à inclemência das estações, sem­
pre sujeita às ordens e mesmo aos abusos dos patrões.
Viveu assim até 19 anos, forjando aquelas virtudes
de sacrifício e de coragem, de que a sua Marieta da­
ria tão luminosa prova.
A dura vida em casa alheia enriqueceu-a tam­
bém de conhecimentos práticos, indispensáveis a uma
boa mãe de família: aprendeu a manter a casa bem·
limpa, a remendar vestidos, a preparar refeições com
gesto e variedade, a substituir os homens no árduo
trabalho do campo, manejando com habilidade o ma­
chado, a enxada e a foice.
Os gravíssimos perigos morais a que se achou
exposta na casa dos patrões, obrigaram-na a maior
·

vigilância na defes� do seu melhor tesouro: sua pure­


za. Respeitou-se e fez-se respeitar. Guardou aquela
nobre altivez, que, no dizer do Papa, aumenta o va­
lor moral da jovem, impede-lhe dobrar-se em escra­
vidão, e a conserva .intacta para se consagrar a Deus
na vida religiosa ou para entregar-se ao esposo na
formação da família.
O segredo desta admirável segurança com que
soube, por tantos anos, defender a sua virtude, deve
ser encontrado na sua constante fidelidade à lei de

16
Deus, na prática da piedade cristã, hem como na sua
filial devoção a Maria Santíssima. A invocação:
"Mãe das Dores", afigurava-se-lhe o mais belo título
com que honraria Nossa Senhora e a maior garantia
contra todo perigo e toda insídia.

17
Seus princípios de vida cristã eram simples: fi.
delidade à lei de Deus, à Missa festiva, ao S.to Ro�
sário e aos preceitos da Igreja. A oração, a confissão
frequente, a ComWlhão e uma fervorosa e constante
devoção a Jesus Sacramentado, proporcionavam-lhe as
energias físicas e morais de que diàriamente necessi­
tava e de que ainda mais precisaria no tempo de sua
viuvez. Embora analfabeta, ainda assim conseguiu
decorar todo o catecismo, que, mais tarde, repetiria
com segurança aos filhos em pacientes lições domi·
nicais.
Os dias, decorridos a serviço de patrões diferen·
tes, no meio de tantos perigos e mil necessidades não
foram sempre tranquilos. Ela, no entanto, venceu
sempre e chegou ao matrimônio cheia dessa saúde fí.
sica e moral, que constitui, ainda hoje, o mais valioso
patrimônio da nossa mocidade dos campos.
O casamento foi para ela, como para todo ver·
dadeiro cristão, uma comunhão de espíritos, uma ver­
dadeira fusão de almas, mais do que uma simples
comunhão de bens físicos e materiais... Nunca o
concebeu como um bom negócio ou como uma ventu·
ra sentimental.
Na vida conjugal, foi ela sempre fiel companhei­
ra, dividindo com o marido os sacrifícios e as ale­
grias. Jamais sombra alguma veio ofuscar a felicida-
"
de desses dois esposos.

* * *

18
Luiz Goretti, o companheiro que Deus reservara
para o coração de D. Assunta, crescera na sólida e in·
gênua piedade que reinava na sua família. De manei­
ras rudes, era, no entanto, incansável trabalhador,
'
econômico e honesto, e um bom cristão no autêntico
.sentido da pala�a: oração quotidiana, pela manhã e
à noite; sinal da cruz antes e depois das refeições; têr·
·\ÇO à noite em família; Santa Missa todos os Domin·
i,8os e festas de preceito; amorosa observância de to·
::das as leis de Deus e da Igreja.
Os mandamentos eram o seu código. Considera­
\ra-os como elos da corrente de ouro baixada do céu
� terra, para elevar a alma humana da terra ao céu; o
}{io
\;;
de divisão entre livres e escravos, o sulco profundo
rque separa o trigo do joio. Trazia a lei de Deus na
t.r .
�ente e no coração, encontrando na aparente amargu·
:ffa do preceito ou da proibição a doçura da graça de
lleus nesta vida e a consoladora esperança da vida
futura.
, Lavrador incansável e inteligente ganhava com
:seus braços o pão para a esposa e os filhos, que Deus
Jhes mandava, e que eram acolhidos com a mesma
a ' ·
· legria com que se recebem dons do céu.
.
Sua principal renda era o produto do campo
• sempre incerto, como as condições climáticas de que
depende. E quando o tempo desfavorável, anunciava
uma colheita escassa, cresciam as preocupações do
bom homem. Era com o coração apertado que via a
.
neblina descer dos Apeninos, e cobrir a terra quei­
mando o trigo e destruindo as sementes . • •

19
Mas, nem mesmo nos anus favoráveis, a colheita
da sua pequena propriedade dava para sustentar fa­
mília tão numerosa. Era preciso emigrar. Dura neces­
sidade! . . . Luiz procurou . . . e quando lhe oferece­
ram trabalhar, numa propriedade de Gianturco (Pa­
liano ) , não hesitou. O terreno insalubre e a impuni­
dade dos crimes que afastavam desse lugar todos os
que amavam a vida, não amedrontavam esse pai, que,
por amor dos filhos, não media sacrifícios.
Dia e noite, ao sol, ao gêlo, à chuva, o pobre
Luiz lavrava a terra, esperando antes o prêmio do
Pai Celeste do que o salário dos patrões.
Três anos depois, a escassês das colheitas, as
crescentes necessidades da família e mais outras cir­
cunstâncias, obrigavam-no a emigrar novamente -·

doloroso calvário dos pobres - para o centro do A·


gro Pontino, em Ferriere de Conca. Aí terminaria sua
laboriosa existência, para receber no Reino de Deus,
o prêmio de tantas lutas e de. tantas fadigas.

20
·sem pai

Á direita da imperial "Via Appia", a atual es­


ti-ada n"' 7, a onze quilômetros e meio da cidadezinha
�de Nettuno, nas cochilas do tristonho "�ro Roma­
�o", surge a aldeia de "La Ferriere".
Outrora lugarejo de umas poucas casas de colo­
ttos, é hoje uma região pontilhada de vilàs. O gigan­
:(esco trabalho de saneamento transformou os campos
onde pastavam búfalos selvagens em cidades povoa­
·
das de laboriosos agricultores.
Bem diversa, porém,·era a aldeia de "La Ferrie­
re" nos tempos de nossa hetoina: pântanos, charcos
e juncais por todo lado; e, por toda parte focos de
malária.
Os poucos habitantes ali estabelecidos, e os ou­
tros nômades, pastores de Abruzos ou camponeses
dos vizinhos montes Lepini, eram gente típica do pân­
tano: magros, pálidos e nervosos, frequentemente ata­
cados de febres, que os castigavam em período quase
que regulares. Viviam cultivando campos numa ou
noutra região mais fértil (famosa era a chamada
"Campo de carne", que produzia saborosas uvas_ de

21
mesa). Dos bons lucros que, de tempos em tempos,
auferiam, aproveitam-se para juntos se expandirem
em ruidosas alegrias, nas festas da aldeia, sobretudo
nas de Nettuno, as mais famo�as e as mais frequen­
tadas.
Nettuno é um encanto. Seus jardins sombrea­
dos, seus campos bem regados, o aroma das noites
f]oridas, a brisa marítima e, enfim, a tentadora praia,
tudo isso dava àqueles camponeses a impressão de
um pequeno paraíso terrestre. As poucas horas lá
passadas renovavam-lhes as forças para voltarem em
seguida mais animados· para o trabalho.
Em Ferriere todos sentiam-se "em casa". E,
tal como numa boa família, esses pobres lavradores,
lá chegados de todas as regiões da Itália, amavam-se
entre si como se fossem irmãos, compartilhando do­
res e alegrias. Só uma coisa entristecia-os profunda­
mente: a falta de uma igreja e de um padre. A Santa
Missa só raramente era celebrada em Ferriere; o mais
das vezes, era preciso ir a Conca, a Cisterna ou, mais
fàcilmente a Nettuno... e eram quilômetros e qui·ô·
metros de distância!
Mas "Deus está em toda parte" murmuravam
as águas que desciam alegremente dos montes Lepini.
"Deus está em toda parte" sussurravam as folhas agi-.
tadas pela brisa. E o cintilar das estrelas, à noite, re­
petia o mesmo canto da Divina Providência: "Deus
está em toda. parte".
Luiz Goretti e sua esposa sentiam esta invisível

22
�resença de Deus. Não eram cristãos apenas pelo Ba­
.)ismo: viviam intensamente a sua fé e davam a Deus
ha família, o lugar que lhe cabe: o primeiro. Sabiam
wr experiência, que, procurando o reino de Deus e
sua justiça, tudo o mais ser-lhes-ia dado por acrésci­
mo, conforme a promessa divina. E tinham tanta ne­
cessidade das bênçãos de Deus! Os filhos aumenta­
oram e os braços,· embora incansáveis no trabalho,
.eram apenas dois . . . Era preciso prover as boquinhas
sempre abertas daquelas avezinhas de Deus. Pais de­
dicadíssimos, mesmo na solidão de Ferriere, cuida-
vam dos seus pequeninos com todo o zêlo para que a
Deus reservassem sempre as primícias. Garante D.
Assunta que, mal suas crianças balbuciavam as pri­
meiras sllabas de ma-mãe e pa-pai, logo ensinava­
lhes o nome de Jesus e o sinal de Cruz, enquanto elas
com as mãozinhas atiravam beijos às imagens dos san·
tos. Ainda com pouca idade, já todos sabiam rezar.
E era de ver com que recolhimento acompanhavam
os pais à igreja, em dias de festa!

Mas a cruz não pode faltar neste mundo: é da­


da a todos, e se levanta em toda casa... Não faltaria
também nesta virtuosa família.

Luiz, forte e robust6, sofria com o clima insa­


lubre do tórrido "Agro Pontino". Nos abrazados dias
de verão, sentia saudades da frescura das colinas,
que, coroando a fértil província onde nascera, des­
ciam até o mar Adriático, aí abrindo-se em convida-

23
tivas praias, junto à água do mais límpido e mais he·
lo azul . . .
Na primavera de 1900 adoeceu. Ao empaludis·
mo veio ajuntar-se o tifo, e depois a ri:teningite .. .
Estava perdido! Teria pressentido? Quem sabe?.
Certo é que, um dia, descarregando os caixões mortuá­
rios, que o patrão para qualquer eventualidade en­
comendara, dissera: '�Serei o primeiro a precisar de
um deles!'; Riram-se os colegas como de uma brinca·
deira . . . os supersticiosos apressaram-se a fazer os
devidos esconjuros . . . Entretanto, era realmente isto
o que a Divina Providência havia determinado.
A doença do pai veio revelar a dedicação da pe·
quenina Maria. Tão criança e já parece moça feita.
Esquecendo as diversões próprias da sua idade, une�
se à mãe na assistência do enfermo e nas tarefas de
casa. Atenta aos menores desejos do pai para aliviar­
lhe os sofrimentos, cuida, ao mesmo tempo dos irmão­
zinhos. Varre a casa, prepara a comida, arruma os
quartos, corre à farmácia, encarrega-se das despesas.
Maria está em todo lugar, afim de poupar aos pais,
em tão dolorosa contingência preocupações e angús­
tias. Noites de insônia, dias quase sem alimento, em
movimento contínuo.
Entrementes chegara para Luiz a hora do cha­
mado de Deus. A morte não o assustou. Fortalecido
com os confortos da religião, de que havia de temer?
Por que entristecer-se, se ia passar do mundo para a
recompensa eterna? Afligia-o, porém, a sorte de sua

24
mulher e de .seus filhos a ponto de fazê-lo chorar.
Faltara-lhe o tempo para garantir-lhe um futuro me­
lhor. Chamando a esposa, aconselhou-a voltar para
Corinaldo, sua terra natal, o mesmo repetindo no de­
lírio da agonia. Deixava-lhe agora, toda a responsa­
bilidade, pois teria também que substituí-lo no ganha­
pão para os filhos, ain'da pequenos. Segurando-lhe
as mãos pediu-lhe, com olhar suplicante que deles
cuidasse com todo o carinho. Depois, voltando-se pa­
ra Maria e os outros presentes, recomendou-lhes que
obedecessem à mãe como a ele próprio.
Foi esse o derradeiro adeus às coisas do tempo.
Depois entregou-se aos pensamentos da eternidade,
que,; dentro em breve, o receberia.

Ao último suspiro do pai, Maria sentiu-se desfa­


lecer; dominou-se porém, e, voltando-se para a ima­
gem de Nossa Senhora que acolhera o olhar do mori­
bundo, diante dela expandiu toda a sua dor.

- "Não tenho mais pai!" disse-lhe, e, nestas


palavras traduzindo toda a sua angústia, rompeu em
prantos. Essas lágrimas eram o merecido tributo de
amor àquele pai, que havia sustentado a ela, bem co­
mo aos irmãozinhos com o suor de seu rosto.
À noite, mãe e filha guardaram sozinhas os des­
·
pojos queridos. À luz dos quatro círios, Maria olha­
va, ora para o pai imobilizado entre as tábuas do cai­
xão, ora para a mãe, que, embora chorando, mostra­
va-se calma. De súbito, irrompeu em seu coraçãozi-

25
nho uma torrente de dor e saudades. Soluçava e as lá­
grimas rolavam·lhe sem cessar pelas faces impalide­
cidas. Atemorizada, D. Assunta, correu para ampa­
rã-la, receando mais uma terrível perda . ..
Depois disso, Maria mostrou-se mais forte, mas
daquele dia em diante, uma nuvem de tristeza desceu
para sempre naquele rosto tão suave.

* * *

A sensação de vazio que reinava agora na casa,


sem o pai, que tanto a enchia de. sua presença, foi
outro golpe para a menina. O sofrimento aumentava
quando via sua mãe interromper abruptamente a: re­
feição e procurar, com os olhos marejados em lágri­
mas, o lugar do amado esposo . . .
Essa dolorosa contingência serviu, no entanto,
para revelar-lhe o sentido real da vida e da morte. A
vida é um tempo de provação e de demonstração de
fidelidade a Deus; a morte, a imolação de todo o ser
e o caminho para a pátria abençoada, eterna recom­
pensa dos justos.

26
Uma pequenina dona de casa

Luiz Goretti deixava vivos, seis filhos:


P) Angelo, nascido a 27 de agosto de 1888;
29) Maria Teresa, (a nossa mártir) nascida a
16 de outubro de 1890;
39) Mariano, nascido a 27 de janeiro de 1893;
49) Alexandre, nascido a 30 de julho de 1895;
59) Ercília, nascida a 23 de fevereiro de 1898;
69) Teresa, nascida a 2 de fevereiro de 1900.
Os quatro primeiros vieram à luz em Corinaldo,
Ercília em Colle GianTurco, na Comuna de Palia­
no e a última,' Teresa, em Ferriere de Conca, nas pro•
ximidades de Nettuno.
D. Assunta, agora viúva, teve de substituir o
marido também no sustento da casa. Maria tomou a
si auxiliá-la na educação dos irmãozinhos. Assistia-os
pois, com o maior cuidado, para que se criassem co·
mo o pai desejava. Limpeza, brinquedos, orações, tu­
do se fazia sob seus olhos como outrora sob o olhar
do pai. Maria sentia, aliás, reviver em si ·a tal ponto

27
a solicitude paterna, que até mesmo o tom autoritá­
rio do pai vinha-lhe naturalmente no momento preci.
so, e os pequenos não ousavam resistir-lhe.
Diziam os vizinhos a D. Assunta: "Que anjo de
menina é sua filha! Quando lhe f alam Ó s, responde
modestamente, e vai tocando pela estrada, sem ficar
de prosa com ninguém".
"Eu mesma, atesta D. Assunta, observei-a mui­
tas vezes do patamar da escada, quando saia à rua,
regozijando-me em ver com que diligência sabia de­
sempenhar-se de suas obrigações". E mais ainda:
"Sabia também corrigir os irmãozinhos em tempo
oportuno e, quando o filho mais velho dava-me qual­
quer desgosto, repreendia-o, dizendo-lhe: Como po·
des aborrecer a mamãe, quando o papai não está mais
aqui?"
O mesmo repetia ela a Mariano, ainda na ma­
nhã da Primeira Comunhão, acrescentando: "Que fa­
rias se não fosse a mamãe? Pensa em Quem vais rece­
ber: deves ser melhor!"
No carinho e no zelo de Maria, que assim se es­
forçava por encher na medida do possível o vazio dei·
xado pelo pai, encontravam, mãe e irmãos, o alivio
da grande perda sofrida. Para essa admirável meni­
na a última vontade do moribundo ficara-lhe como
uma ordem.
Deus, chamando a Si o pai, havia demonstrado a
sua vontade, e para os corações retos a vontade de
Deus é tudo. Sem perda de tempo empenhou-se, en-

28
tão, em cumprir com fidelidade a vontade do Senhor
nas suas tarefas cotidianas.
Os que a conheceram e que frequentavam sua ca­
sa declararam nunca terem presenciado a zangas ou
brigas com os irmãozinhos. O mesmo depoimento é
confirmado pela mãe. "Jamais notei em Maria de­
feito algum. Se às vezes eu ralhava com ela, era tão
somente porque as grandes preocupações me punham
nervosa: fazia-o sem que ela merecesse, e, até hoje,
me censuro! Maria, no entanto, recebia com calma a
imerecida repreensão, não respondia, e continuava a
sua tarefa, sem ficar sentida comigo. Sempre pontual
e exata, mesmo quando os irmãos a incitavam a deso­
bedecer".
A menina crescia, pois, dócil e piedosa. Cheia
de compaixão para com todos os que sofrem, de boa
vontade, dava parte de sua refeição- ou mesmo to­
da- aos mais pobres. "Generosa de coração- tes­
temunha ainda a mãe - à hora da comida, servia
primeiro aos outros, e só depois a si própria, nada
tomando, sem ter feito antes a minha parte e a àos ir­
mãozinhos. E se lhe parecia que eu me servia pouco,
insistia comigo: ''Tome mais, mamãe. A senhora é
bem maior do que eu".
O próprio assassino assim depõe no processo:
"Conheci-a sempre boa, obediente aos pais, pie­
dosa e séria, nada leviana ou volúvel como as outras
meninas: caminhava pelas ruas séria, modesta, dili­
gente 'no desempenho das ordens recebidas.. Obedecia

29
sempre prontamente e com .grande alegria. Contenta·
va·se com qualquer vestido que a mãe lhe fizesse ou
com que a presenteassem. Era inteiramente submis·

30
sa à vontade materna. Seguindo o exemplo dos pais,
era piedosa, fiel à lei de Deus, e posso afirmar ja·
mais tê-la visto faltar em algum r.tandamento. Nunca
proferiu uma mentira. Seguindo o conselho de sua
mãe, fugia das companhias perigosas".
Nas longas noites de inverno, durante o serão no
estábulo, como é costume entre os camponeses, D. As-'
sunta contava-lhe as antigas e comoventes histórias
populares da sua terra, que a menina ouvia com as
lágrimas nos olhos.
Nem se recusava aos jogos infantís com os vizi­
nhos. Era, no entanto, sempre muito comedida. Ver­
dadeiro anjo de paz, sua palavra apaziguava os exal­
tados, aplainava dificuldades e resolvia controvérsias.
Em casa divertia os irmãos, recordava com eles
as lições aprendidas no catecismo, e, sempre atencio­
sa, não consentia em desordens que impacientassem a
mãe, mas defendia-os com carinho quando, culpados,
a ela recorriam para escapar do castigo materno.

Era·lhes tão espontâneo tal recurso, que também


depois da morte de Maria, continuavam eles a valer­
se do mesmo socorro. D. Assunta conta a esse propó­
sito:
"Um mês depois da morte de Marieta, Ercília,
então de quatro anos e meio, teve abcessos no rosto e
na cabeça, em consequência do pavor causado pelo
assassínio da irmã. Levei-a ao médico de Ferriere, e

31
na hora da operação a pequena invoca o auxílio de
Maria, gritando: Ajuda-me, Marieta".
Ao pensar em :Maria, ocorrem-no� os anjinhos
dos painéis que representam a casa de Nazaré, sem·
pre risonhos e sempre atarefados.

32
Marieta

Maria, a terceira filha do casal Goretti, nasceu


em Corinaldo ( Ancona) na província de Presagna, a
dezenove quilômetros de Senigallia, no dia 16 de ou­
tubro de 1890.
Bons cristãos, os pais levaram-na à pia batismal
dentro das vinte e quatro horas seguintes ao nasci­
mento, na igreja paroquial de São Francisco. Não já
que a menina estivesse em perigo de morte, mas ape­
nas movidos pelo desejo de apressar-lhe a vida da
graça, e garantir-lhe, em qualquer eventualidade, a
vida eterna. Deram-lhe o nome de Maria, para que
tivesse urna poderosa padroeira no Céu, e um grande
modelo para imitar na terra. Trouxeram-na de volta
à casa, radiantes, por sabê-la, agora, integrada no
Corpo Místico de Cristo, filha de Deus, e herdeira do
Reino celeste.
E a pequenina, acolhida com o ósculo materno
e "carregada pelos braços qu� jamais descansam",
foi crescendo forte, bela e viçosa. Logo ao primeiro
balbuciar, aprendeu, corno seus irmãos, os nomes de
Jesus e Maria; seus primeiros beijos foram para as
image·ns da Virgem Santíssima e do seu Divino Filho ;

33
.e as primeiras exortações: •"Faça isto para agradar a
Jesus", "Aquilo não se pode fazer: é pecado". A
primeira palavra pela manhã era: ';Ave Maria�' e a
última que o sono lhe cortava nos lábios, à noite:
"Padre nosso". O primeiro gesto de cada manhã, as­
sim como de cada ação, fosse embora a mais cornu�
o sinal da Cruz e era sempre com o mesmo sinal que
rematava o dia.
Sem caprichos ou manhas, sempre contente, bo�
inteligente e generosa, ela cresceu revelando uma re­
flexão superior à sua idade. Como se sentiam felizes
aqueles pais possuindo uma filha, tal qual haviam
sonhado seus corações! Surgiu então o problema da
instrução. Mas como frequentaria a escola?. . . Era
tão distante! Foi necessário renunciar ao luxo de sa­
ber ler e escrever . . . tanto mais que, na esperança
de ganhar o suficiente para o pão de cada dia, os pais
já thaviam decidido transferir-se para o "Agro Po-
'
tino".
Antes, porém, pensaram em crismar os filhos,
pois, tal oportunidade não se lhes apresentaria tão
fàcílmente naqueles páramos tão remotos. Maria con­
tava apenas seis anos. Obtida a licença necessária, aos
4 de outubro de 1896, recebia com seu irmão Angelo,
das mãos de S. Ex. Mons. Giulio Boschi, Bispo de
Senigallia, o Sacramento da Confirmação. No mesmo
ano, a família Goretti• chegava a Colle Gianturco.
Aqui, as dificuldades aumentavam ao invés de
diminuírem. Não havia nem igreja, nem padre� nem

34
asilo, nem religiosas. Maria teve pois de contentar-se
com os bons exemplos do pai e com os ensinamentos,
que a mãe (ela também analfabeta) lhe dava.
Depois de orfã, tornou-se ainda mais zelosa,
mais dócil, mais serviçal. Era ela quem vestia e ar­
rumava os irmãos, quem tomava a si todas as tarefas
domésticas compatíveis com a sua idade, ela quem
corria até Conca para as compras.
Nessas viagens tão frequentes,. ao passar diante
do cemitério onde jazia o seu querido pai, não perdia
a ocasião de depor sobre e venerado túmulo o tribu­
to de uma prece, de uma lágrima, ou de uma flor
campestre:

35
"Toda a educação que Maria recebeu - teste·
munha D. Assunta - foi dada exclusiramente por
meu marido e por mim : essa mesma edacação dáva·
mos igualmente aos outros filhos, para que cresces·
sem como bons cristãos. Eu mesma ensinava aos pe­
queninos o "Padre Nosso", a "Ave Maria", o "Cre­
do" e os primeiros elementos da Doutrina Cristã. Ma·
ria, avantajava-se aos outros na atenção, tornando-se,
por sua vez, professora dos irmãozinhos".
Que quadro comovente, essa jovem viúva, ajoe·
lhada com os seus filhos, para a oração da manhã e
da noite, ou a caminho de Campomorto para com eles
assistir à Santa Missa ! Que cena admirável, nas tar·
des dos dias de festa, depois de uma refeição frugal
- um prato de sopa e um pedaço de pão bento -
essas crianças reunidas em volta da mãe, a ensinar·
lhes os mandamentos de Deus e da Igreja, as princi·
pais lições de catecismo, os meios de salvação, ou a
contar, com a suave poesia das almas puras, a trá·
gica história de Abel e Caim, o idílio de lsac e Re­
beca, o inefável mistério de Belém e a Morte do Di­
vino Salvador!
Essa pobre camponesa, sem instrução, mas
guiada pelo Espírito Santo, soube educar seus filhos
no mais completo e mais alto sentido da palavra. A
própria Igreja assim o reconheceu, elevando à honra
dos altares a sua Marieta, a doce menina cujo martí­
rio hoje celebramos.
D. Assunta seria a primeira a gozar dos frutos
da sua dedicação àqu.ela alminha. Na hora oportuna

36.
os ensinamentos maternos voltavam para a fonte de
onde partiam. Pois, essa boa camponesa, que infun­
dira em sua filha a confiança na Providência Divina,
não raramente era vítima do desânimo diante das pri­
vações que aumentavam de dia parà dia. Nessa ho·
ra, Maria lá estava para ampará-la, à mãe repetindo
os conselhos dela recebidos.
"Maria procurava fortalecer o meu ânimo nas
dificuldades da vida, diz sua mãe, principalmente no
ano em que meu marido morreu. Apesar de havermos
então colhido trezentos quintais de trigo e noventa e
seis de favas, ao acertar as contas com o proprietário
Mazzolení, fiquei com um débito de quinze liras, de
forma que o ano se abria sem fundos. Então Marieta
me encorajava, dizendo :
"Por que esse medo, mamãe? Daqui a pouco,
nós estaremos crescidos. Basta que Nosso Senhor nos
dê a saúde: a Providência nos ajudará".
Maria não ignorava que os meios de subsistên·
cia eram inadequados para a damília tão numerosa ...
seis avezinhas que cada dia corriam para ela e para a
mãe, pedindo pão, roupa e calçado. Mas a fé na Di­
vina Providência robustecia-lhe o coração e a tornava
corajosa.
Abandonar-se à Vontade Divina, acaso não é es­
te o dever de todo cristão? E não são da Verdade E­
terna estas expressões : "Nem um cabelo cairá de vos­
sa cabeça, sem que o vosso Pai saiba?" e as outras :
"Vêde as aves do céu, que não semeiam nem ceifam,

37
nem recolhem nos celeiros ; todavia vosso Pai celes­
tial as alimenta . . . Considerai os lírios do campo co­
mo crescem ; não trabalham nem· fiam . . . todavia,
digo-vos, nem Salomão em toda a sua glória se vestiu
como um deles". (S. Mat. VI, 26 e 28)

38
Maria tinha pois toda a razão. Tranquil� sere­
na e resignada, entregava-se ao beneplácito de Deus,
como criança no seio do Pai Celeste, deixando-lhe o
cuidado de todos os acontecimentos, o futuro·da fa.
mília, da mãe e dos irmãos, sabendo que do nosso
Pai, tudo provém : chuva e sol, tempestades e colhei·
tas . . . "Filii Dei sumus": somos filhos de Deus . . .
e Pai algum é tão bom quanto Deus !
Sem dúvida, a pobreza pesava-lhe ; desejaria ter
ao menos o necessário para mandar rezar missa pela
alma de seu bom pai . . . Guardava essa mágu� e ou­
tras mais, no seu coração, silenciosa e resignadamen­
te, para que o perfume do sacrifício não se evaporas·
se. Seu conforto era sempre a oração, à qual acres­
centou o terço diário, pedindo a Nossa Senhora o re­
frigério pela alma do pai e o socorro de que tanto pre·
cisavam. E' nessa ocasião que a mãe observa : "A
corôa se lhe tornou necessária", e, mais que tudo, nas­
ceu-lhe o desejo de se unir ao seu Jesus na Primeira
Comunhão. Mas como, se lhe faltava tudo? Decidiu
então abrir-se com a mãe.'
- Mamãe, quando vou fazer a Primeira Co­
munhão ? Eu quero Jesus !
- Meu coração, não é possível. Ainda não sa­
bes o catecismo. E, depois, como arranjar dinheiro
para o vestido, o véu, os sapatos ; não tenho um mi­
nuto de tempo livre� há sempre tanto que fazer .. .
- Mamãe querida, mas assim nunca farei a
Primeira Comunhão ! Eu não quero ficar sem Jesus !

39
- E, que pode fazer esta tua pobre e infeliz
mãe, minha filhinha? Dóe-me vê-los crescerem como
bichinhos ! . . .
- Pois bem, Mamãe, Deus pensará em :udo !
Em Conca, D. Elvira, a roupeira da casa Mazzoleni,
sabe ler. Eu prometo cumprir antes todas as o1riga·
ções da casa e depois nas horas vagas, irei a Conca
aprender o Catecismo. O Pe. Alfredo Paliani, que
todo Domingo vem de Cisterna, ele também me aju­
dará.
As sábias razões da menina tiveram ganho de
causa. D. Assunta acedeu e Maria começou a frequen­
tar toda as semanas as lições de D. Elvira e as expli­
cações do Padre. Onze meses depois podia gloriar-se
de saber o catecismo à perfeição.
Apesar disso, a mãe não estava ainda satisfeita.
Queixou-se ao pároco D. Temistocles Signori, e o bom
sacerdote tranquilizou-a: "Confie sua filha a 1\ossa
Senhora, ponha-a sob o manto dela e fique sossega­
da !"
E à querida Marieta nada faltou ! Deram-lhe de
presente o vestido, o véu, os sapatos e até a vela . . .
A mãe' enfeitou-a com seus brincos e com ·o colar de
coral, presente de seu casamento. Nada mais tinha pa­
ra lhe dar ! . . .

40
Alma puríssima

Sem que ela própria o notasse, Marieta, ia-se


transformando em moça. Seu espírito, porém, não de­
monstrava nenhuma dessas inquietações tão comuns
às mocinhas da sua idade. O físico era robusto e ai­
roso; a inteligência viva e aberta; o coração delicado
e afetuoso; o temperamento corajoso e forte, um tan­
to sério, a ponto de parecer, por vezes, tnste.
Os testemunhos são unânimes em reconhecer-lhe
prendas físicas, "digna do pincel do Beato Angélico.
As grandes pálpebras sempre prontas a velar modes­
tamente o olhar vivo, destacavam-se nas cores suaves
de um rosto gentil. . . Fartos cabelos acentuavam-lhe
a formosura. De. harmonioso desenvolvimento e gra­
ciosa elegância, era já, aos doze anos, uma flor por
todos admirada".
Entretanto, mais do que os encantos do seu físi­
co, era sua angélica pureza que exercia sensível atra­
ção sobre todos os que dela se aproximavam. É o pró­
prio Alexandre que assim depõe: "A menina agrada­
va-me, não porque fosee extremamente bonita, mas

41
porque, segundo o exemplo de sua mãe! era modesta.
Usava vestes compridae também r.o calor do verão.
Lembro-me particularmente de que evitava a compa­
nhia de certas mocinhas, um tanto levianas, que mora­
vam perto de sua casa. . E ao passar por elas � quando
ia buscar água à fonte próxima, estugava o passo,
tanto assim que sempre admirávamos a rapidez com
que voltava para casa sem nunca parar no caminho.
Nunca a vi entreter-se a brincar com meninos . . .
Mesmo no trato com os irmãozinhos, mostrava-se sem­
pre muito recatada. Eu possuía revistas e jornais ilus­
trados pouco decentes ; nunca percebi nela a menor
curiosidade em olhá-los ou tocá-los. Jamais notei nes­
sa menina o menor ato contrário à pureza ; e eu a es­
timava pela sua correção":
Ela sentia pena das companheiras que nos do­
mingos se enfeitavam exageradamente, no desejo de
sobrepujar as outras com a ostenção de seus encantos
juvenís. Ria-se discretamente daquelas que diante dos
vidros das janelas ou dos espelhos não paravam de
arrumar o cabelo em penteados complicados para a­
trair os olhares alheios.
No límpido espelho de sua alma boa e simples,
Marieta via a nulidade dessas frivolidades munda­
nas e o vazio de tudo o que não é Deus e para Deus.
"Não era vaidosa, diz a mãe ; não ambicionava
vestidos novos ou diferentes ; aceitava prontamente
tudo quanto eu determinava . . . Zelava sempre para
que os irmãozinhos estivessem decentemente vestidos

42
e ela própria tinha o maior recato com a sua pessoa.
Não sõmente não procurava companheiras, senão tam­
bém, evitava-as; e nas viagens ao longínquo Nettuno
ia comigo ou com D. Teresa Cimorelli".
"Tinha horror ao palavreado grosseiro, tanto as·
sim que sua boca jamais proferiu uma só palavra me·
nos correta; da mesma forma detestava qualquer co·
mentário desonesto. Certo dia em que fôra buscar
água à fonte, aconteceu-lhe ouvir expressões um tanto
livres que a deixaram horrorizada. Voltando para ca·
sa, disse toda dosgostosa à mãe:
- De que falou aquela moça? (e mencionou o
nome).
- E por que ficaste a ouvir?
- Que havia de fazer, enquanto esperava que o
cântaro se enchesse?
- Faze, então, com que aquilo que entrou por
um ouvido saia pelo outro. Vê, minha filha, assim co·
mo te espantas do que escutaste, assim também os ou·
tros se espantariam contigo se tu fizesses o mesmo".
Que admirável simplicidade e que eloquentes ex­
pressões na boca dessa educadora camponesa!
De sua parte Marieta guardara à risca a exor­
tação do Padre na véspera da Primeira Comunhão:
"Tornai cuidado com a língua, porque ela é a primei·
ra a tocar o Corpo de Nosso Senhor ... "

As moças de sua idade, que por um motivo ou


por outro encontravam-se com ela, eram as primeiras
a notar-lhe tal recato e admiravam-na. E, quando al­
guma delas deixava escapar palavras equívocas ou

43
menos decentes, Marieta manifesta\a o seu desagra­
do. Se a ocasião se prestava, retirava-se imediatamen­
t(', ou então, desviando habilmente a palestra, recon­
duzia para o teueno da honestidade.
Tão ·pouco perdia tempo em olhar jornais ilus­
trados: escasseava-lhe o tempo para essas coisas e era
muito o trllbalho que a barca domé:stica exigia para
chegar ao pôrto do pão de cada dia. Mesmo quando
narrava ·histórias edificantes, ou quando repetia as
prédicas ouvidas na igreja, evitava sempre as passa­
gens que tocavam em argumentos escabrosos, tanto te­
mia a perturbação que tais assuntos podem trazer.
* * *

No último período de sua vida era visível sua


coqtínua ascensão espiritual. Melhorava de dia para
dia e era cada vez mais dedicada. Em casa disputava
os trabalhos mais pesados e quando ia pelo campo to­
mava a dianteira, a fim de evitar o horror instintivo
que sua mãe sentia pelas cobras : "Deixe-me ir na
frente, dizia. Eu não tenho medo".
Realmente é para admirar que em tão pequeni­
n a idade Marieta, sem outros mestres afora seus pais
analfabetos, chegasse a tal perfeição. A aç�o do Divi­
no Espírito Santo é por demais evidente. Por Ele guia­
da e nEle abandonada a que alcandorados cumes não
chegaria?
Naquele remanso das "Paludes Romanas" acen­
dia-se uma estrela de primeira grandeza.

44
SEGUNDA PARTE

O MARTíRIO

I. Preparação para o holocausto.


2. Veneno mortal.
3. O heroismo de uma criança.
4. Acende·se uma estrela no céu.

http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Preparação para o holocausto I

No dia 16 de julho do ano de 1901 Maria Goret­


ti fazia a sua Primeira Comunhão.

Candura de um lírio que abre sua coJ,"ola ao pri­


meiro beijo do sol, dia de írttima união no amplexo
divino, é assim que nos representamos o primeiro en­
contro de Maria com Jesus Sacramentado.

Sua Primeira Comunhão não foi, como para ou­


tras suas colegas, um rápido contacto com Deus, que
apenas d� leve roça a superfície da alma. O luxo que
pela única vez aparentava, as rendas e o vaporoso véu
de pequenina esposa de Jesus não lhe tolhiam o reco­
lhimento. Preocupada tão somente com a presença do
seu grande Senhor, ela fez a sua Primeira Comunhão
como uma "santa", afirma D. Assuntá.

Nunca como naquele dia sentiu o vazio das ri­


quezas, dos prazeres e das atrações terrenas. Nunca
como naquele dia sentiu a imperiosa necessidade de
só firmar-se em Deus, única realidade inabalável e
imensa. E a resolução de repudiar todas as lisonjas

47
do mundo com seus encantos sedutores nasceu, na­
quela alminha, espontânea e decisiva.
"A pureza acima de tudo e a fidelidade às tri:d
Ave Marias" diárias, constituíram os temas das exo'l"·
tações que precederam a grande solenidade; "e foi
isso um desígnio do Céu, diz Mons. Signori, para que
a menina progredisse e se firmasse ainda mais no
exercício da virtude angélica! pela qual daria, dentro
em breve, a vida".
O recillhimento de Marieta era visível. Quando,
depois da Comunhão, as crianças se renniram na sa­
cristia para agradecer ao sacerdote celebrante, ela se
conservou tranquila e silenciosa, isolada num canto,
toda absorvida no seu Deus. Manteve-se assim o did.
inteiro, completamente alheia aos brinquedos dos ir­
mãozinhos, deixando transparecer do seu rosto urn
contentamento inegualávei.
"Tão somente cinco vezes, diz Mons. Signor1, a
piedosa menina teve a ventura d� receber no. seu co­
ração ao Deus de amor e de pureza: a primeira a 16
de junho de 1901; a segunda, pouco depois, no San­
tuário de N. S.ra das Graças, protetora de Nettuno;
a terceira na Páscoa de 1902; a quarta na Igreja ue
Campomorto; a quinta na hora da morte".
A Primeira Comunhão vem marcar uma nova e­
tapa na vida de Maria. ''Verá que daqui em diante
serei melhor", dissera à sua mãe; os fatos provariam
com que seriedade fizera aquela promessa. Já tão a­
morosa e serviçal em casa, começou a prodigar sua
dedicação também aos vizinhos, grandes ou peoue-

48
.....
,.--/

'.._-c "?.
'
'
-�

nos. Sempre diligente em aliviar o trabalho e as fadi­


gas do próximo, com graça e desenlharaço, desfazia
as brigas q.ue nasciam entre irmãos e colegas na hora
dos folguedos, ou amainava as tempestades que os
vizinhos levantavam porque uma galinha andava cis­
cando nas sementeiras ou porque os pequenos pisa­
vam na horta.
Dedicada até o sacrifício, tudo fazia sem alar­
de, aparentemente como a coisa mais natural, na rea-

49
lidade movida peh caridade sobrenatur-al. Discreta,
sabia dissimular aquilo que a caridade exigia enco­
berto ; jovial e amável nas horas de recreio, atendia a
todos como a mãezinha daquele bando de crianças.
Era, porém, junto aos doentes que a sua dedica­
ção revelava-se admirável. Visitava-os com frequên­
cia e tratava-os como a mais suave irmã, servindo-os
até nas mais humildes tarefas. Quantas vezes lhe fói
dado ver no olhar comovido dos pobres enfermos a
gratidão sincera dos humildes ! Se ''a maior prova de
amor é sacrificar-se por aquele que se ama", Maria
dava essa prova.
Pela manhã levantava-se muito cedo, junto com
a mãe, e, depois das orações costumeiras, arrumava a
casa, despertava os irmãos, preparava-lhes roupas e
comida. Em seguida, desempenhava-se nas obrigações
diárias. Era notável o seu espírito de mortificação
nas coisas naturais : não tinha olhos, ouvidos, gostos
e desejos senão para os deveres de casa e para suas
oevoções de igreja. o tempo disponível empre�ava-o .
em trabalhos úteis, e, quando cansada do dia cheio,
tomava o merecido repouso, ajoelhava-se com os ir­
mãos aos pés da cama, para as orações da noite. Inú­
til dizer que ai o querido papai era sempre relem­
brado.
Seus princípios de ascética não iam além dos
mais simples e comuns da vida cristã. "E' preciso
fazer isto, porque é nosso dever : é vontade de Deus.
Não devemos fazer aquilo, porque é pecado; de­
sagrada a Jesus". Era esse o eixo de toda a sua vida

50
sobrenatural em que fôrá educada e em que educa­
va também seus irmãos. "Agora que receberam a
J esus, costumava dizer-lhes, devem ser sempre mui·
to b onzinhos".
Não lhe faltavam, de certo, defeitos naturais,
próprios da sua idade : impulsos que era preciso re­
primir, indolências para despertar, inclinações pa·
ra orientar. Mas o que a caracterizava era o apêgo a
seus deveres e à lei de Deus resumido neste heróico
lema : antes a morte do que o pecado.
E não eram palavras vãs. Sabia que o demônio
procura infiltrar-se nos corações através de coisas
aparentemente sem importância, até chegar a domi­
nar a alma e desviá-la de Deus. Vigiava, pois, para
conservar aquela pureza, que repele com energia as
menores culpas e os menores defeitos.
Acima de tudo, cultivava o amor pelo seu Jesus.
Sentia-se cheia desse fogo sobrenatural, que o Senhor
trouxe à terra. -Não eram transportes místicos, quais
encontramos nas vidas dos grandes santos, e, sim a­
quele amor simples e cândido de uma criança privi­
legiada, que sabia repetir, mais na prática do que
com as palavras, a maravilhosa expressão de S. Pe·
dro : "Mestre que tudo sabeis, vós sabeis também
quanto eu vos amo !"

* * *

Não seria possível, no entanto, nortear-s_e pelo


oceano da vida sem uma bússola. A bússola de Ma-

51
ria eram o seu confessor, que, de quando em vez, lhe
recebia as confidências, e a Lei de Deus aprendida
com a mãe e no catecismo.
"Quando eu ia confessar-me, testemunha D. As·
sunta, levava-a comigo, e posso afirmar que se confes·
sava de bom grado ; procurava, depois, melho.rar em
tudo, e, à medida que crescia, tornava-se cada vez
mais perfeita".
Nas suas confissões era breve e clara, nada exa­
gerando nem atenuando. Abria sua alma com a can·
dura da verdade. Não parece, no entanto, que seu
confessor ou aqueles que a rodeavam, tenham jamais
suspeitado da grandeza dessa alma, que precisava ser
orientada com diligência, para se não perderem os
tesouros de graça divina nela prodigalizados. As nor·
mas que lhe indicavam eram as mais comuns : obede­
cer sempre e em tudo, ajudar os irmãozinhos na me­
dida do possível, cumprir bem os deveres para com
Deus e para com o próximo. ·
Só isso; tudo o mais foi obra de Deus. '�Via-se
que Maria era uma menina guiada por Nosso Se·
nhor", afirmam nos processos tanto a mãe quanto as
pessoas que frequentavam a família·
O certo é que cada confissão trazia novo óleo pa­
ra aquela limpada, intensificando-lhe a chama do
amor divino e purificando-a sempre mais, para que
fosse sempre mais digna do holocausto para o qual
fôra destinad.a.
* * *

52
A assistência à Santa Missa aos Domingos e dias
de guarda criava muitas vezes para a família Goretti
vm sério problema. Nem sempre havia Missa em Fer­
riere e era preciso ir a Campomorto, ou mesmo até
1\'.ettuno. O sol abrasador do verão, ou então, castiga­
dos pela gélida ventania dos meses de dezembro e ja­
neiro� sem falar nas chuvas torrenciais da primavera
e nas penetrantes garoas do outono, tornavam a via­
gem mais penosa e até mais longa.
Ainda assim, Maria nunca faltava, a todos edifi"
cando, não só pelo seu bom comportamento na igreja,
senão também quando a eaminho dela. t do Rev.do
Pe. Miguel Faina, Passionista, o seguinte depoimen-.
to : "Indo à Missa dominical na capela de Campomo�­
to, e passando diante de rapazes que costumavam ati-

53
rar gracejos às moças que entravam na igreja, a Jlle­
nina corava ouvindo lisonjear sua beleza. Não lhes
dava, porém, a menor atenção ; caminhava r àpida­
mente, sem imitar suas colegas, que tanto se agrada­
vam com tais cumprimentos".
Levava, geralmente, pela mão um ou outro de
seus irmãos, com quem rezava durante o tempo do
Santo Sacrifício. "Sempre pontual, era a primeira a
entrar e a última a sair". Mantinha tal recolhimento
e fervor que as próprias comadres, sempre dispostas
a comentar a vida alheia, admiravam-na, e, não a co­
nhecendo, indagavam de onde vinha aquele anjo de
menina.
Nem era só para ouvir Missa que procurava a
igreja. Agradava-lhe também assistir às cerimônias li­
túrgicas e aos sermões do seu vigário que entendia à
perfeição. Assim é que, numa Sexta Feira Santa,
após o Sermão das "Três Horas de Agonia", repetiu­
() em seus pontos principais à mãe e aos irmãozinhos,
não poupando lágrimas e suspiros.
SentÜ�·Se principalmente atraída a visitar Jesus
Sacramentado. A Primeira Comunhão deixara-lhe tais
saudades que, por vezes, enfrentava uma viagem de
duas horas a pé, tão somente para saciar sua, sede de
amor pelo Divino Prisioneiro.
Evitando toda distração, concentrava-se para ou­
vir a voz de Deus. Como quiseramos conhecer os sua­
ves colóquios dessa pequenina esposa de Jesu, em
lua de mel. Que propósitos de fidelidade teria ela coa­
fiado ao Coração adorável do seu Divino Esposo?

54
Veneno mortal

A nova propriedade do "Agro ,Potino" onde


Luiz Goretti se transferira, era vasta ·demais para
seus braços. Associando-se, então a dois outros lavra­
dores, João Serenelli e seu filho, Alexandre, com eles
eividia os trabalhos e com eles repartia os lucros.
De João Serenelli temos escassas notícias, e es­
tas não muito lisonjeiras: pouca ou nenhuma religião,
muito acentuado o vício do alcool.
"O velho Serenelli - depõe D. Assunta -.- era
de caráter autoritário e bastante dado ao vinho, em·
hora conservasse certa religiosidade exterior " Sua
. • .

conduta moral não devia ser muito louvável, se sobre


ele recai a acusação de haver fomentado, posto que
inconscientemente, a perversão do filho com as más
leituras. Bom trabalhador, embora, não era porém o
ideal para acompanhar uma família profundamente
cristã como esta onde vivia a nossa heroína.
Luiz o percebera, tanto assim que, antes de mor­
rer, e mesmo no delírio da doença, não parava de re­
petir : "Assunta deve voltar para Corinalclo". Entre-

55
tanto, D. Assunta não achou possível realiztr logo o
conselho do marido. De fato, como haveria ce prover
à manutenção dos filhos, sem o rendimento da pro­
priedade? Pois, se poucos auxílios tinv-a em Ferrie­
re, menos ainda esperava ela em Corinaldo. Deixou­
se, então ficar onde estava, até que os filhos cresces­
sem mais um pouco.
As duas famílias tinham em comum o uso da es­
cada e da cozinha. Os quartos eram separados, e os
C'uidados domésticos entregues à viuva Goretti e à sua
filha Maria. As exigências daqueles dois homens, so­
bretudo depois da morte de Luiz, tornavam-se , cada
vez mais despóticas. Mas era preciso suportar tudo
em vista de um bocado de pão, muitas vezes tão es­
casso, que mãe e filhos p81Ssavam fome·
Se as notícias do pai escasseiam, os processos es­
c1arecem �té nos menores detalhes a vida do filho
Alexandre. /

Nasceu este em Paterno (Ancona) em 1882 e


foi batizado na igreja paroquial. Uma trágica ocor­
rência surpreendeu-o nos primeiros meses de vida :
sua mãe enlouquecera. Assustada com os temores e as
previsões de uma existência infeliz que parecia amea­
çar seu filhinho, tentou afogá-lo num pântano. Sal­
You-o, porém, a intervenção do filho mais velho. Dis­
to queixar-se-á mais tarde o próprio Serenelli e, já
convertido, dirá : "não haveria cometido tão horrível
delito e hoje não causaria horror aos outros se me
tivessem deixado morrer"· Perdeu a mãe pouco de­
pois e, assim não conheceu na i.nfância aquele amor

56
, ; ,.
,

(/

I
,

profundo, que é para o homem guia insubstituível.


Foi criado quase que como um estranho por uma pa­
renta, pois o pai, sempre absorvido nos negócios, não
encontrava tempo para educá-lo. Mudando-se a famí­
lia para Torrette de Ancona, Alexandre fez aí a sua
Primeira Comunhão, aprendeu um pouco -de Catecis­
m o e cursou a escola até o segundo ano primário. Em

57
seguida, empregou-se como ajudante marinheiro, on­
de péssimas companhias encaminharam-no para o
terrível vício da impureza, que, po11co a pouco o le­
varia até o crime.
Parecia, no entanto, um bom rapaz. Não blasfe­
m ava " . . . assíduo no trabalho, respeitoso para com
o pai e para comigo, diz D. Assunta. Não perdia Mis­
sa, cada dois meses recebia os Sacramentos e, toda
noite, rezava o terço conosco. Mas era de gênio fe­
chado, frio e solitário : fugia da companhia dos ou­
tros. Quando não estava trabalhando, metia-se no
q uarto e lá ficava absorto nas suas más leituras . . . "
Quanto às relaç§es com sua filha, diz ainda D.
Assunta : "Ele tratava Maria como qualquer outra pes­
soa da família . . . e, quando c;lepois da morte de meu
marido, ela teve que substituir-me na cozinha, ele
chegava a tomar de certo modo a defesa da menina
contra o pai, que reclamava por causa da comida, di­
zendo : "Sem começar, ela não aprende". No entanto,
um mês antes do crime, Alexandre mostrava-se rude
com Maria, dando-lhe ordens - ríspidas, no visível in­
tuito de aborrecê-la. Marieta cumpria as ordens re·
cehidas, fazendo-lhe ver com palavras e lágrimas, a
injustiça das repreensões. Tanto assim, que eu mui·
tas vezes a consolei, dizendo-lhe : "Tem paciência, fi­
lha, logo ele terá que sair daqui para o serviço mi­
litar".
A conclusão a que chegou a perícia psiquiátri·
ca, feita depois do assas�ínio, reconhece em Alexan­
dre Serenelli "um indivíduo perfeitamente normal ...

'
58
muito perspicaz e de boa memória... com plena con­
sciência de seus atos, e, portanto, responsável pelo
crime cometido".
No cárcere teve sempre boa conduta e a sua pe ­

na foi encurtada de acordo com as leis penitenciárias,


eendo-lhe perdoados dois anos. Saindo do cárcere a
7 de março de 1929, estabeleceu-se em Torrette de
Ancona, sua terra natal e depois em S. Biagio di Osi­
mo, a serviço do Sr. Bontempi que não lhe regateia
elogios. Atualmente, trabalha como empregado na
horta de um convento de Capuchinhos, sendo ótimas
sob todos os aspectos as referências dadas por aque­
les religiosos. Finalmente, os Postuladores da Causa
de Beatificação de Maria Goretti reconhecem em Ale­
xandre um bom cristão "afeito à oração, assíduo aos
Sacramentos, consciencioso no trabalho, sociável,
,'

0
' blasf"em1as
correto no f a1ar, avesso as . . ."
A

Como, então, chegou a manchar-se com tão hor­


rível crime?
A resposta deve ser encontrada nas perniciosas
leituras que lhe fomentavam os vícios contraídos en­
tre maus companheiros. Aos vinte anos Alexandre sa­
ciava a sua curiosidade, com os crimes policiais das
folhas diárias e com revistas ilustradas geralmente
pornográficas. ''Tapizava as paredes do seu quarto
com gravuras indecentes recortadas daquelas revistas,
d�põe D. Assunta. E quando eu o aconselhei a retirá­
las, respondeu-me que, se não me agradavam� des­
viasse os olhos . . . Devo, porém, dizer que era seu
pai quem lhe trazia, cada vez que voltava de Nettu·

59
no, esses maus jornais", que aFenas se distinguiam
pelo aliciamento ao vício. Proclamanm-se "publica­
ções independentes", "libertadoras da escrivadão da
moral católica" e da "opressão dos padres fanáticos",
que desejavam manter a "ignorância das maseas".
Seus redatores alardeavam-se em paladinos da mo­
ral leiga, da cultura e do progresso e não se peja­
vam de conculcar, em nome da liberdade, a mais
sRgrada de todas.: a liberdade de conciência. Na ten·
tativa de combater a Igreja, atacavam a . Religião
Católica, vínculo sacrossanto do povo italiano e com­
b atiam a moral cristã, germe da verdadeira liberda­
de para o mundo inteiro. Tachavam os padres de
'"vampiros, retrógrados e atrasados", excluindo-os
do ensino e de toda atividade civil. Vigiavam-nos
para que "não saíssem da sacristia", enquanto paro·
diavam as cerimônias do culto, difundiam escânda­
los reais, ou forjavam outros para as massas ávidas
desse veneno. Ao mesmo tempo, a maçonaria, os li­
vres pensadores e as demais seitas a eles ligadas,
explorando a situação econômica do operário opri·
mido, procuravam atrair as simpatias do povo. Não
os moviam sentimentos humanitários, e sim, apenas
a pretensão de desacreditar a Igreja, sobre quem fa·
ziam recair a culpa do descalabro social. A luta tocou
as raias do inverossímil quando se dirigiu às almas
consagradas a Deus. Houve homens e moças que, in­
troduzindo-se nos conventos e nos seminários, ou
vestindo abusivamente o hábito eclesiástico , promo­
viam escândalos que os jornais se apressavam a pro-

60
pagar. Os protestos e os desmentidos nem sempre
eram lidos e, muitas vezes, nem sequer publicados.
Alexandre Serenelli era, aos vinte anos, uma ví­
tima dessas vulgaridades desmedidas. Ele próprio
confessa que "a idéia de cometer o crime veio-lhe na
leitura do Mensageiro", jornal maçônico, que se espe­
cializava em tão escabrosas reportagens. Tais descri­
ções estimulavam-lhe naturalmente os maus instintos,
acendiam-lhe a rebelião dos sentidos contra todo freio
da lei moral, embotavam-ihe o espírito, enfraqueciam­
lhe a vontade e atiravam-no à livre satisfação de to­
das as paixões. "Desenvolveu-se, então, em mim, con­
clui ele próprio, uma forte propensão para o mar·.
Nessa situação em que a propaganda do vício se avan­
tajava a uma educação cristã muito . superficial, a pai­
xão encontrou o ter:J;"eno propício para fixar-se com
raizes profundas. Vendo crescer ao seu lado, qual
flor imaculada, Maria, Alexandre sentiu o .impulsc
demoníaco penetrar-lhe a alma, e, sem forças para re­
sistir-lhe, decidiu companhá-lo até o fim. Aquela
flor devia murchar, custasse o que custasse ! . . .
Eni dado momento notou-se nele certa mudança :
mais taciturno, mais irritado e ainda mais autoritá­
rio que de costume, mostrava-se especialmente ríspi­
do com os Goretti. Ainda assim, tomava parte no ter­
ço rezado em comum e chegava-se também aos Sacra­
mentos . . . Conservando, porém, na alma o foco de
corrupção, não encontrava nesses meios a força para
a vitória.
A vontade é um rochedo. Ondas furiosas, as pai-

61
xões tentam derrubá-la, mas impontentes morrem-lhe
aos pés em tranquilo e inofensivo marulhar. Entretan­
to, para mantê-] a inabalável, é necessário que tenha
suas bases firmes na Lei de Deus e que no seu cimo
se alce o estandarte do nome de Jesus. Ixielizmente,
essa vontade forte Alexandre jamais a possuiu.
"Quando o espírito imundo - lemos no Livro
da Vida - sai de um homem, vagueia por lugares
áridos à procura de um pouso e, não o encontrando,
diz : Voltarei para a minha casa, de onde fui enxota­
do. E voltando encontra-a vazia, varrida e adornada.
Vai, então, toma outros sete espíritos piores que ele,
entram na casa, nela �e estabelecem, e o último esta·
do daquele homem torna-se pior que o primeiro".
Alexandre iria ter a prova disso.

62
O heroismo de um a criança

A tentação, que pouco a pouco viera nascendo no


coração do infeliz Alexandre, já amadurecera, e L�� ­
perava a ocasião oportuna para explodir com violên­
cia. Um dia, ousou dirigir-se a Marieta. Mas a ino­
cente menina "não compreendeu todo o mal que se
encerrava naquelas propostas", dirá ele próprio. Re·
pelido na primeira' vez, tentou um segundo assalto,
n1as sempre com o mesmo resultado.
Aquelas palavras, no entanto, impressionaram
profundamente a Maria. Fugiu do tentador como de
uma casa ameaçada pelas chamas, enquanto tentava
apagar pela oração aquela triste lembrança. De tudo
o que se dera, só uma coisa ficara-lhe hem gravada :
aquele infeliz queria induzí-la ao pecado, à transgres·
são da Lei de Deus.
Naquela noite, Marieta fez suas orações ainda
com maior. fervor, desejou bom repouso à mãe fadiga·
da e tentou conciliar o sono. Impossível ! Os aconte·
cimentos haviam-na deixado em angústias atrozes.
Seus lábios não paravam de invocar os santos nomes
de Jesus e Maria. Mas, enfim, vencida já pelo cansa-.
ço e já pelas próprias preocupações, adormeceu. Pe­
Ja manhã sentiu-se mais aliviada. Pôde as!:im retomar
os serviços domésticos. Todavia, pairavam naquela
pobre alminha, graves apreensões. Sentia-se como
uma ovelha que visse o lobo entrar no aprisco.
No intuito de precatar-se contra as ciladas do
abutre, que sempre atento aguardava o momento pro­
pício para o seu abominável assalto, ela agarrava-se
ao Rosário. Segurava-se à corôa como à única Láhoa
de s'alvação, não a depondo, senão quando os traba­
lhos o exigiam.
Mas Alexandre estava resolvido a realizar o seu
propósito "a qualquer custo, ainda que tivesse de ma­
tá-la". Copiando as façanhas dos seus heróis, adqui·
riu um punhal de 24 centímetros de comprimento,
com uma ponta agudíssima de 3 milímetros, e escon·
deu-o no seu quarto. De aicatéia, espreitava a ocasião.
Para evitar uma denúncia que lhe estorvaria os
planos, procurou intimidar a menina : "Se abres a bo­
ca, eu te mato ! . . . " dissera-lhe ele no dia em que a
te.ntara pela primeira vez. E a ameaça surtiu efeito.
Marieta guardou o silêncio, quer "por vergonha", co­
mo afirmou antes de morrer, quer pelo receio de não
ser compreendida pela mãe, e também para não difi­
cultar ainda mais as relações já tensas entre aqueles
dois homens e a sua família.
A pobre mãe, preocupada com tantas coisas, na­
da de fato suspeitava e, quando a filha a suplicou
que não a deixasse sozinha em casa, pois "tinha tan-

64
to medo", o pedido não lhe mereceu atenção alguma,
como um capricho de criança.
Vendo-se sozinha, nesta luta oculta e desigual,
Maria redobra de vigilância : não trabalha fora de
casa senão em companhia da mãe e dos irmãos, une·
se ainda mais com Deus pela oração, e, sem o demons­
trar, foge do olhar do tentador que a persegue, como
fera seguindo sua presa.
Agitada por tristes pressentimentos, vê por toda
parte a sombra do seu inimigo. Sente o fogo que ar­
de sob as cinzas, à espera da ocasião oportuna para
romper em violentas labaredas. Porquanto se esforce
}Jara disfarçar a terrível luta que se trava em seu co­
ração, sua atitude a trai. Uma semana antes do cri­
me, os amigos reparavam : "Como essa menina é sé­
ria e pensativa !"
Por sua vez, Alexandre mostrava-se, dia a dia,
mais irritado com a pobre menina. Queixava-se de
tudo o que ela fazia : nada lhe agradava. Levantava a
voz, ralhava, reclamava. E as reclamações· acabaram
influenciando também D. Assunta. Assim é que certa
vez, em que Marieta ocupada nas tarefas domésticas,
e!'quecera-se de pôr água ao fogo, repreendeu-a àspe­
ramente, muito embora ela própria confessasse, mais
tvrde, sua injusta atitude: A resposta de Maria foi O'
exemplo da mais heróica mansidão. Sem alterar-se,
disse-lhe carinhosamente : "Não se aborreça, mamãe;
cioravante cuidarei antes de tudo e sempre daquilo
que a senhora mandar e deixarei o resto para depois".
"Causa verdadeiro espanto - diz o Decreto da

65
Introdução da Causa -· o alto grau de virtude a que
atingiu essa menina, que naquela desolada região
r.ão recebera instrução nem leiga, nem religiosa, a
r;ão ser as práticas que ouvia na igreja, os rudimen­
tos do catecismo para a Primeira Comunhão e o exem­
plo dos pais. Pois, sendo analfabeta, não tinha nem
sequer o recurso da leitura. E' bem certo que os puros
de coração têm a intuição de Deus ; que Deus revela
s�us segredos aos pequeninos ; e que nos pequeninos
se manifesta de um modo maravilhoso ; que a virtu­
de e os dons infusos do Batismo se aperfeiçoam pele
Crisma e se alimentam pela Eucaristia".
* * *

Os preparativos para o holocausto estavam ter-

66
minados. A graça engalanara a vítima. Naquele ,,;.
bado, dia 5 de julho de 1902, que deveria terminar·
tão gloriosamente para a pequena martir, Marieta,
qu.ase pressentindo o aproximar-se dos acontecimen·
tos, pedira a D. Teresa Cimarelli que, no dia seguin·
te, a acompanhasse a Campomorto, pois: "tinha tanta
vontade de comungar !" Atormentava-a a sede daque­
le vinho que faz germinar as virgens e a fome daque­
le pão que enrija as almas frente ao martírio.
Ao iniciar a descrição da gloriosa Paixão e
Morte de Maria Goretti, nossa atenção volta-se para
cutra heroína : Santa Inês. _Os pontos de contacto são
numerosos : a mesma idade, a mesma tentação, a mes·
ma resistência. Não procuremos, porém, aqui as elo­
quentes respostas registradas nas Atas dos Mártires
em tempo de perseguição. A nossa história tem um
fundo muito simples, muito natural e muito huma­
no. Eis como o próprio assassino narra os anteceden·
tes do fato.
"Por duas vezes tentei induzir Maria a consen­
tir nos meus desejos. Fiz ·a primeira proposta. Ela
rr.spondeu-me que tais coisas não se faziam . . . Des­
,
vencilhou-se com tanta força que tive de desistir . . . .
••Depois de uns dez dias, voltei ao assalto, mas, ain­
da desta vez, o seu esforço levou-me de vencida . . .
Lembro-me de que nas duas vezes fiquei encolerizado
contra ela". "Nos dias seguintes, notei que Maria evi- •
tava ficar sozinha comigo. Durante o dia, quando a
('ncontrava, sentia-me tomado de raiva, pensando na
sua relutância; e, depois da segunda tentativa, fir·

67
mou-se no 1 meu espírito a resolução de conseguir o
'lue queria, e decidi-me mesmo a matá-la, se conli­
J•uasse a resistir . . . Confeseo que o único alvo era
a.1 entar contra o pudor cla menina, e se, na terceira
vez não conseguisse de novo, a minha vingança seria
rr•esmo matá-la".
A tempestade final desencadeou-se naquela tar­
de tranquila de julho. As duas famílias, haviam ter­
minado a sua frugal refeição e se preparavam para
voltar aos seus trabalhos. Alexandre tinha alguma coi­
sa a fazer no seu quarto . . . Entra, coloca uma camisa
,·elha sobre a cama juntamente com a linha e os peda­
ços necessários para o remendo. Em seguida, dirige·
St" à cozinha e com seu habitual ar autoritário diz-lhe·:
"Marieta, tens que consertar a minha camisa". Maria
não resp_onde . . .
D. Assunta, admirada ante o silêncio da filha,
insiste :
- Não ouviu o que Alexandre disse?
- Sim, mamãe. Mas onde está a camisa?
- Na minha cama - continua Alexandre
junto com o pano e a linha.
Ele havia calculado tudo. Agarraria a menina no
quarto, enquanto os outros debulhavam as favas no
páteo . . .
A visão de Santo Abraão renovava-se longos sé­
culos depois. "Parecia-lhe ver sair de certo lugar um
terrível e forte dragão, que, sibilando ruidosamente,
entrava na sua cela e ali, encontrando uma linda e

68
ht anca pomba, engulia-a e voltava depois para a ca­
\·erna de onde saira".
Mas os puros vêm a Deus e não há planos que
' ençam o Onipotente. Marieta descobriu no rosto do
Divino Martir á armadilha que lhe preparavam. Es·
pr·rou que todos descessem, entrou no quarto, apanhou
c trabalho e voltou imediatamente para o patamar
da casa. Deitou ao seu lado, para dormir, Teresa, a
irmãzinha de dois anos e meio, e iniciou a sua cos­
tura.
De repente, eis os passos de Alexandre que sobe
precipitadamente a escada.
- Meu Deus ! será um nov� assalto? E o cora­
ção bate com violência.
Ele, no entanto, passa correndo, sem lhe dirigir
um olhar sequer, e entra no quarto.
Estaria enganada? Seria, então, falso o seu pres­
sentimento? Se pudesse ver através das paredes, fugi­
ria horrorizada. Sobre um velho traste da cozinha, o
desalmado colocara uma arma ao alcance da mão."
Instantes depois, surge à porta, vestindo uma camisa
Hmpa e passada. A cena é rápida. Antes mesmo de
r·oder soltar um grito de socorro, Marieta se sente
;.garrada brutalmente e arrastad� com violência para
dentro da casa.
Chegara a hora decisiva.
Preferindo a palavra autêntica das Atas a qual­
quer outra descrição, tomamos a liberdade de citá­
las ao pé da letra. A eloquência dos textos oficiais é

69
mais forte na sua simplicidade do que os recursos li­
terários.
O Promotor :
" . . . Ele arrastou à força Maria até a cozinha,
fechou a porta, e tapou-lhe a boca com um lenço : mas
tendo a menina oposto resislência. Serenelli apanhou
o afiado estilete que havia deixado sobre o banco, e
vibrou-lhe repetidos golpesu·
Alexandre :
" . . . Vendo que ela não cedia de forma alguma
ao meu brutal intento, fiquei furioso, e como a meni­
na se agitava, tentando livrar-se, percebendo que nem
desta vez conseguiria dominá-la, tomei do estilete e
comecei a golpeá-la como quem soca o milho . . . Ma­
rieta gritava, mais preocupada em defender o seu pu­
dor do que a sua vida . . .
"Não direi que naquele dia sentisse alguma coi­
sa. Só mais tarde é que fiquei agitado pensando no
que eu fizera".
Ao médico psiquiatra que o interrogava, Alexan­
dre confessa :
" . . . Jamais pensei em casar-me com ela, pois
era muito menina, nem me parecia beleza tal que a­
traísse. Também nunca vi nela sorriso ou expressão
que favorecesse meus maus instintos".
No depoimento do Processo Canônico, Alexan·
dre torna a confessar :
" . . . Maria Goretti sempre se opôs às minhas
tentativas. E eu outra coisa não tencionava, senão in-

70
duzí-la a consentir no meu pecado. Matei-a porque
resistiu".
Os depoimentos multiplicam-se tanto no proces­
so civil onde o assassino é examinado para ser conde­
nado, assim como no processo eclesiástico onde é in­
terrogado para que sua vítima seja glorificada. Em
todos há sempre uma nota constante : da parte do cri­
minoso a provocação, da parte da vítima a resistên­
cia. Não a move um simples, embora nobre, sentimen­
to de pudor. Sua firmeza tem por base um princípio
sobrenatural ; o temor de Deus, o mandamento divino.
O próprio assassino não o ignora : "Naquele momen­
to, testemunha ele, eu compreendia perfeitamente que
estava cometendo um ato contrário à lei de Deus e que
tencionava induzir Maria ao pecado. Se eu a matei,
foi justamente por ter ela resistido às minhas propos­
tas".
Os momentos finais do martírio são registrados
sob a palavra jurada de D. Assunta. "Minha filha dis­
se-me que, depois de estar ferida no abdomen, ergueu­
se e tentou gritar. Alexandre porém, apertou-lhe a
garganta com uma das mãos e com a outra vibrou-lhe
repetidos golpes com o mesmo ferro pontudo, só de­
sistindo, quando a viu cair como morta . . . Disse-me,
ainda, que ela havia gritado por socorro, enquanto
Alexandre a feria, mas que ele não a deixou, senão
depois de vê-la deitada por terra, junto à porta da co­
zinha onde se deu o fato. Depois, retirando-se,Alexan­
dre para o seu quarto, Marieta encontrou forças para

71
se pôr de pé e chamar João Senerelli, dizendo-lhe que
seu filho a ferira".
* * *

"O reino dos céus é semelhante a um negociante


que procurava pérolas preciosas. Descobriu uma pé·
rola de grande valor, foi vender tudo o que possuia e
a comprou". (S. Mat. , XIII, 45 e 46) .

72
Acende-se urna estrela no céu

Na cama, onde D. Teresa Cimarelli a havia colo·


cado, Maria jazia toda salpicada de sangue. Pedia que
a acudisse, pois as roupas se lhe enfiavam nas feri­
das, causando-lhe dores indizíveis. Chamava pela
mãe.
As pessoas que acorreram tentavam embargar o
passo a D. Assunta, que a todo custo queria ver sua
filha. Mas o amor redobrou-lhe as forças e, vencendo
a resistência das amigas, conseguiu penetrar. O seu
coração não pôde, no entanto, suportar a terrível ce­
na que se lhe deparava e teve de ser carregada, des·
falecida, para a casa dos vizinhos.
Entrementes, a notícia, alastrando-se pelo luga·
rejo, trouxe grande ajuntamento de povo. Aquela con­
fusão desagradava a Marieta, mais preocupada com o
seu pudor do que com sua saúde. "Quero ficar sôzi·
nha com você", disse em tom de súplica a D. Teresa.
Foram-lhe, então, ministrados os primeiros cu·
rativos caseiros. Mas quando tentaram tirar-lhe as ves·
tes, o sangue voltou a jorrar aos borbotões, causando-

73
lhe ainda maiores sofrimentos. Veio, depois, o delí­
rio e no delírio, a reconstrução do monstruoso aten­
tado : "Oh, Alexandre, como és mau ! gritava, fazen·
do o gesto de repelir o inimigo. Por caridade, não
deixem entrar Alexandre!"
O médico, chamado às pressas, não escondeu a
gravidade do mal. "Não há nada a fazer, declarou.
E' preciso levá-la imediatamente para o hospital e
tentar o impossível". Foi, então, chamada a ambulân­
cia, enquanto os Carabineiros chegavam no lugar.
Quando, naquela tarde serena, à luz dourada do
sol prestes a desaparecer nas águas do mar em brasas,
a menina apareceu deitada na maca, ergueu-se da
multidão um murmúrio de compaixão e de discretos
comentários . . . .As mulheres choravam, os homens
descobriam-se. E na hora em que Marieta era passa­
da para a ambulância, todos se comprimiam e tenta­
vam erguer-se para vê-la. Estava completamente trans­
formada. O rosto muito pálido tornara·se transparen­
te como água cristalina. Branca como uma hóstia.
Pura como um lírio do céu.
D. Assunta e o casal Cirriarelli, tomaram lugar
perto da martir, e a ambulância pôs-se lentamente a
caminho, abrindo os Carabineiros alas entre o povo
que não se arredava. Em meio do murmúrio ouviam­
se distintamente as palavras de despedida e de súpli­
ca : "Adeus Marieta ! Reza por nós, Adeus !"
Aquela gente boa e simples parecia sentir que
a menina pobre e desconhecida de Ferriere seria, den­
tro em breve, apontada como exemplo e admiração
74
do mundo inteiro. Quem observa os Mandamentos de
Deus com perfeição e heroismo, difunde em torno de
si um suavíssimo perfume. Todos, sem o perceberem
distintamente, aspiravam-no diante de Marieta, mas
naquele dia trescalara irresistível e descobriam, en­
tão, a flor que a morte lhes tolhia.
Entrementes, o carro seguia pelas estradas tris­
tonhas da "Campagna Romana", que naquela tarde
pareciam ainda mais monótonas. A menina sofria do­
res incríveis, embora tentasse ocultá-las à mãe tão
agoniada. Uma única vez rompeu o silêncio e pergun­
tou-lhe se faltava ainda muito para chegar. Nada
mais do que isto : não se queixava nem da sede, nem
do calor, nem do cansaço. O seu Calvário devia reno­
var, o mais ·possível, o Calvário de Jesus.
A viagem prosseguiu, assim, por duas horas, in­
terrompida, de quando em vez, pelos bons campone­
ses daquelas regiões que se descobriam como se des­
filasse uma procissão. A um dado momento, um tro­
pel de soldados obrigou a ambulância a diminuir a
marcha e ceder a passagem. Eram os Carabineiros
que levavam Ó infeliz Alexandre algemado . . .
As 18,30 hs., a comitiva chegava ao hospital de
Netuno. As portas uma multidão comprimia-se, no
desejo de vê-la ainda uma vez. E, quando a pequena
martir apareceu nos braços piedosos dos amigos, os
olhares de todos ergueram-se e acompanharam-na até
o momento em que desapareceu nos sombrios corre·
dores daquele hospital.

75
Os médicos que a examinara�, não deram espe­
ranças. Estava perdida. Teria, quando muito, poucas
horas de vida. Que chamassem o Padre. E ao P· Mar­
linho Guijarra que acorrera prontamente disseram:
"Nós lhe deixamos apenas um cadáver, mas V. Rev.
ma encontrará um anjo".
Logo após, começou a intervenção cirúrgica, que
foi preciso fazer a sangue frio. Eram catorze feri­
mentos graves e quatro contusões. O coração, os intes­
tinos e um pulmão foram atingidos. Se a· ciência sou­
besse fazer milagres ! : . .
Com uma força sobrenatural, própria das almas
que amam ao Senhor, Marieta deixou que, durante
duas horas, os ferros revolvessem sua carne imacula­
da. Gemia. Chorava. E quando os médicos deram seu
trabalho por terminado, seus olhos pareciam já não
ter mais lágrimas. Abriam-se apenas para pedir des­
culpas das moléstias que causava a tanta gente !
Quase exangue, foi então transportada para um
quarto. Ela precisava de repouso absoluto e de silên­
cio, mas o povo, que até aquele momento se confor­
mara em manter-se fora do hospital, invadia agora os
corredores. Queria vê-la a todo custo. Começou, pois
a desfilar diante daquele leito, que mais se poderia
chamar um altar. E a multidão era tão grande que a
ninguém era permitido deter-se para falar. À vista
daquela menina já aureolada os olhos de todos mare­
javam-se de lágrimas, e os lábios ora murmuravam
preces, ora imprecavam contra o assassino.
Em meio daquele pavoroso calor do verão roma-
76
no, depois de tanto sangue derramado, Marieta sentia,
mais que tudo, a angústia da sede.
- Mamãe, pedia, um pouco d'água.
- Não podemos dar-lhe água, querida. Os médi-
cos disseram que lhe faria muito maL
Tranquilizava-se uns instantes e, depois :
- Ao menos um golinho d'água.
- Não Marieta, não podemos.
- Mas, nem uma gota só?
- Seja por Jesus, minha filhinha !
Por Jesus, por amor ao seu Jesus, Marieta não
pediu mais nada . . . e durante · vinte e quatro horas
sofreu aquela terrível sede. "Avaliem a minha pena,
diz D. Assunta. Não poder dar nem esse pequenino
alívio a minha filha. Não encontro outro meio para
conformar-me, senão voltar o meu pensamento para
Jesus, a quem também negaram uma gota d'água e
abeheraram com fel e vinagre . . . " No mesmo amor
por Jesus, mãe e filha encontravam as forças para
aquele mútuo tormento.
A noite reservar-lhe-ia um novo sacrifício para
que à sua corôa não faltasse nem um espinho sequer.
Em obediência às ordens dos médicos, D. Assunta te­
ve de ser afastada. Precisava evitar que a menina fa­
lasse.
- Como? mamãe, não fica ao meu lado esta
noite? perguntou-lhe, vendo-a sair.
- Minha filhinha, não me deixam. Teresa toma·
rá o meu lugar.
- E mamãe onde vai dormir?

77
- Deus há de prover, minha filha.
- Pois sim. Sabe que eu já estou melhor?
- Está bem. Mas não fale. O médico disse que
isso faz mal.
Mons. Temístocles Signori e D. Teresa Cimarel·
li vigiaram-na durante a noit� inteira entre palavras
de conforto e orações. Por sua vez, ela não se cansava
de beijar o Crucifixo e a imagem de Nossa Senhora.
Foi assim que a m_ãe a encontrou quando pela manhã
correu ao seu lado. "Notei - acrescenta D. Assunta
- que, nesse último dia, minha filha teve sempre o
olhar fixo no quadro da Madonna, suspenso à pare­
de".
O P. Martinho Guija�ra, que notara a ardente de·
voção de Marieta. por Nossa Senhora, perguntou-lhe :
- Desejaria ser inscrita entre as Filhas de Ma-
ri.a?
Oh, muito, muito, sr. Padre!
- Pois bem, eu mandarei o seu nome à Congre·
gação de Roma. E desde já dou-lhe a medalha de Fi­
lha de Maria.
Os ·olhos de Marieta cintilavam de alegria, en­
quanto seus lábios cobriam de beijos a querida me­
dalha, que a distinguia como filha predileta da Vir­
gem Santíssima.
Vinte e sete anos depois, a mesma medalha foi
encontrada sobre aquele peito . . . Estava enegrecida,
mas o tempo respeitara a inscrição : "Oh Maria, con·
cebida sem pecado, rogai por nóe que recorremo& a
vós".

78
No dia !!eguinte, o quarto de Marieta amanheceu
tapizado de flores. Esperava-se aí a visita de Jesus
Sacramentado, pois Mons. Signori decidira adminis­
trar-lhe os últimos Sacramentos pelas primeiras horas
do dia.
Certo, embora, das ótimas disposições daquele
coraçãozinho, ainda assim quis dar-lhe os toques fi·
nais. Precisava, acima de tudo, de uma declaração pú­
blica e formal do perdão para o assassino. E a decla­
ração veio firme, decisiva, heróica.
- Marieta, Jesus morreu perdoando ao bom la­
drão ; e você perdoa de todo coração ao assassino?
perguntou-lhe.
- Oh, sim. Eu também, lhe perdôo por amor de
Jesus. E desejo vê-lo hem perto de mim no Paraíso.
Não era isso entusiasmo do momento. A outras
pessoas que lhe faziam a mesma pergunta, dava sem­
pre a mesma resposta:' "Sim eu lhe perdôo e lhe per­
dôo de todo coração . . . espero que também Deus lhe
perdoe". Fruto de convicções profundas, dom autên­
tico da graça divina, sua generosidade era o resulta­
do de uma luta íntima. Tal, pelo menos, é o testemu­
ho de Mons. Signori : "Marieta, tendo vencido todtz
repugnância, responde sempre que perdoa de boa von­
tade".
Tudo estava preparado para a recepção do Di­
vino Hóspede. Humilde como a casa de Nazaré, e sua­
ve como o refúgio de Betânia, não seria esta a mora­
dia que a pequenina esposa de Jesus lhe havia reser­
vado ? E o Esposo chegou para dar-lhe o abraço, a fim

79
de que, "innixa super dilectu.m SlLum", iniciasse se­
gura e tranquila a marcha das núpcias celestiais. Era
o seu Jesus. Aquele Jesus do Qual ninguém, jamais
a poderia separar. Aquele Jesus, que, dentro em pou­
co iria ver.
A cahecinha docemente inclinada sobre o peito,
tabernáêulo do seu Senhor Sacramentado, assim per­
maneceu longo tempo a sós com o seu Deus, para di­
zer-lhe toda a sua gratidão e, desde já, saboreando, na
felicidade desse momento, o gôzo da felicidade eter­
na.
Após a Extrema Unção, disse-lhe o Ir. Meirado :
- Maria, lembre-se de mim, quando estiver no
céu.
- Quem sabe qual dos dois chegará primeiro?
retrucou a menina.
- Você, cara Maria.
- Bem, se assim for, não o esquecerei.
Mais uns lampejos e a chama se extinguiria.
"Levem-me mais para junto de Nossa Senhora...
Como ! não querem que eu vá com Nossa Senhora?"
e seus braços exangues erguiam-se como se fossem ao
encontro de alguém. Ocorre-lhe também a lembrança
do pai e, voltando-se para D. Assunta, repete, nos der­
radeiros momentos, o grito dos primeiros momentos
da vida : "Papai, Mamãe !"
"Minha querida . . . " intervém D. Assunta, mas
as palavras lhe morrem na garganta. "Vendo-me as­
sim, disse ela então : Perdoe-me, mamãe . . . E com-

30
preendi que me pedia perdão, temendo haver-me en­
tristecido com a lembrança da morte do pai".
Agoni�ava. O murmúrio das preces rezadas em
voz submissa acompanhava o estertor da moribunda.
De repente, eis que tenta erguer-se. E' o delírio. Rea­
cende-se-lhe na memória a cena do atentado. Agarra­
st:, então ao braço de Teresa Cirnarelli, que estava ao
seu lado, e grita : "Que fazes, Alexandre? Vais para
o inferno !" E no esfôrço de afastar o inimigo, recai
no leito.
"Padre Nosso, que estais na céu . . . e não nos

81
deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal". O
Ámen Marieta o pronunciou já na eternidade. Mor­
reu com a respiração cortada, no ardor da luta como
um herói no campo de honra.
Eram 15 horas e 45 minutos, do dia 6 de julho
de 1902. Maria tinha 1 1 anos, 8 meses e 20 dias.
Apagava-se uma lâmpada na terra e acendia-se
uma estrela no céu.
A mãe fechou-lhe os olhos e beijou-lhe a fronte,
como para marcar, nesta. despedida, o encontro certo
no Reino dos Céus.

82
3"" PARTE

SEQU:€NCIA DE GLóRIA

1. Sepulcro glorioso.
2. O caminho de Damasco.
5. Na glória dos Santos.
4. Graças e favores.
5. Na glória dos Santos.
6. Alocução de S. S. Pio XII.

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Sepulcro glorioso

A cena de dor que acompanha o desenlace de


Marieta é fácil de imaginar. A pobre mãe, que até
aquela hora conseguira dominar-se, rompe em gritos
lancinantes. Sua fortaleza, que heroicamente enfren­
tara os duros golpes do dia precedente, cai abrupta­
mente.
A submissão à vontade divina não impede a jus­
ta expressão da dor. Foi com gemidos e lágrimas ine­
narráveis que Jesus nos remiu na Cruz. E não são do
mesmo Senhor estas expressões : "Meu Pai, se for pos­
sível, passe de mim este cálice. Não porém a minha
vontade, mas a tua seja feita?" E ainda : "Meu Deus,
meu Deus, por que me abandonaste?" Assim é que,
embora conformada com a disposição divina, D. As­
sunta sentia o seu coração dilacerar-se e uma espada
de dor transpassar-lhe a alma. Dando, pois, livre ex­
pansão à torrente de dor que lhe invadia o espírito�
chorava e chamava pela filha.
Mas Deus, que refresca com o orvalho os campos
ressequidos, apiedou-se dessa pobre criatura e, reser­
vando-lhe para mais tarde a consolação a poucas

85
mães concedida na terra de ver sua filhL nos altares,
enviou-lhe, na palavra dos homens, as p1imeiras con­
solações da terra. Antes que desfilasse dante do cor­
po da martir, rendendo-lhe as homena.gms próprias
dos santos, o povo dirigiu-se para aque..a mie, cuja
dor se confundia com a glória da filha Todos que­
riam falar-lhe, todos a procuravam para consolá-la e,
mais ainda; todos queriam felicitá-la. As <\tas do mar­
tírio de Santa Maria Goretti trazem com :"idelidade as
palavras daquela gente honrada e simpl�s. Não são
expressões corriqueiras ou rebuscadas e, sim, a tra­
dução autêntica de uma piedade sincera e de um pro·
fundo sentimento de admiração.
- Coragem, diziam-lhe, mãe cristã!
- Sua filha está no céu. E' uma vedadeira mar-
tir.
- E' outra Santa Inês ! Ditosa menina que soube
morrer como uma santa, antes que se mmchar.
- Tenha coragem, pois ela está certamente no
eéu. Perdoou até ao seu assassino !
, "Todos se congratulavam comigo, atesta D. As­
sunta, por ter eu uma filha martir". Não é para admi­
rar que, pouco a pouco, se seguisse, à dor cruciante
que a atormentava, o suave conforto da conformidade
divina. "Meu Deus, dizia ela, Vós me destes um anjo
e Vós mo tirastes. Não era digna de possuí-lo . . . Se­
ja feita a vossa vontade !"
Se a morte de Maria Goretti foi gloriosa, o enter­
ro foi um triunfo. "Magnífico triunfo, disse o Car­
deal Salotti, verdadeira apoteose, sublime hino à vir-

86
tude de Cristo, vivo apJauso à educação matéma so­
lícita e precoce, vigorosa repulsa ao vício imundo, e
maravilhoso estímulo à prática da mais intensa vida
cristã".
Eram as primeiras horas da manhã do dia 8 de
julho de 1902, quando a multidão começou a aglome­
rar-se na praça de Nettuno, diante da Capela do Hos­
pital. Gente de todas as condições sociais; ricos que
veraneavam naquela cidade, lavradores da "Campag­
na Romana", jovens e crianças. Como que obedecen­
do a uma ordem, todos esmeraram-se para que o en­
têrro fosse o mais suntuoso possível. Fecharam todas
as lojas e oficinas. Flores e colchas pendiam das por­
tas das casas, das janelas,_ dos balcões e até dos telha­
dos. O luto foi substituído pelas roupas domingueiras.
As mães levavam uma vela ou um lírio : todas o Ro­
sário.
Coube ao Sr. Arcipreste tecer o elogio fúnebre.
"Sinto que esta menina não tenha nascido em· Nettuno,
disse ele entre outras coisas, porque, então, teríamos
uma verdadeira martir, que nos seria invejada por ou­
tras cidades . . . Meninas, jovens e senhoras de Nettu­
no, aprendei duma pequena camponesa como se luta
e morre em defesa do próprio pudor e honestidade".
Terminada a oração, o cortejo iniciou sua mar­
cha lenta em demanda do cemitério. Encabeçava o
préstito a Confraria do Santíssimo Sacramento, se­
guiam-se depois as Filhas de Maria em seu uniforme
branco, crianças das escolas acompanhadas de seus
professores, alunas dos colégios religiosos e, final-

87
mente, os Cônegos da CatedraL. e o próprio Arcipreste.
Em volta do esquife, que homens e mulheres se dispu..
tavam a honra de carregar, formigava o res�o da mul·
tidão na ânsia de se chegar o mai s perto possível do
corpo da martir.
Os sinos dobravam cadenciados no ar cheio do
perfume dos campos e das flores que atapetavam o
caminho. O povo rezava, alternando os Salmos de pe·
nitência com as "Ave Marias" do Rosário. Foi assim
que, entre preces e cânticos, o cortejo chegou ao Ce-
mitério. '
Na área, que a Prefeitura deu gratuitamente�
foi aberta a sepultura. Aí desceram o corpo da Vir­
gem Mattir e para defendê-lo foi erguida uma Cruz
monumental à cuja sombra descansaria durante lon�
gos vinte e seis anos.
Em 28 de julho --de 1929, os preciosos despojos�
exumados e honradamente fechados numa urna, fo­
ram transferidos para a igreja de N. Senhora das Gra·
ça s, repetindo-se, nesta ocasião, o mesmo triunfo do
dia do entêrro.
Mas o nome de Maria Goretti era agora um no­
me conhecido por toda parte. As pequenas biografias�
que os Rev.dos Padres Passionistas espalharam por
toda a Itália e o mundo inteiro, despertaram o entu·
siasmo do povo que reclamava a glorificação de tão
santa criatura. E não era apenas o povo que se sentia
arrebatado. O próprio Santo Padre Pio X não duvi.
dava em apontar Maria Goretti como modelo de vida
e de: heroismo. Mais tarde Pio XI solicitava dos pos-

88
tuladores que apressassem a causa de Beatificação e,
finalmente, em 25 de março de 1945, S. Santidade
Pio XII aprovava o martírio de Maria Goretti.
Aos 27 de abril de 1947, na Igreja de S. Pedro
em Roma o mesmo Papa Pio XII, diante de uma mul­
tidão inumerável reconhecia oficialmente o martírio
desta pequena camponesa que, em seus feitos, repro­
duzira o heroismo das grandes perseguições.
E o livro do Martirológio continuava aber-
to . . .
O caminho de Damasco

"Se o grão de trigo não cair em terra e morrer,


fica a sós consigo ; mas se morrer produzirá muito
fruto" (S. João XII, 24) . O grão de trigo contém um
germe secreto de renovação e fecundidade. Mas até
quando não se desagregar no sulco, permanecerá so­
zinho na esterilidade. Pelo contrário, uma vez atirado
ao solo, e aí apodrecer, retomará a plenitude da vida
e produzirá muitos frutos. Porventura, não seriam as
palavras do Divino Mestre· o mais oportuno elogio da
morte trágica de Marieta? Seus restos mortais, dissol­
vendo·se pouco a pouco no túmulo transformaram-se
em fonte de vida. Quantos desalentados econtraram à
beira da sepultura dessa jovem martir o ânimo para as
lutas, quantos enfêrmos a saúde, e, acima de tudo,
quantos pecadore�:� a sua regeneração !
A mais impressionante foi, sem dúvida, a do pró­
prio assassinQ. Digna de um Agostinho arrependido, a
conversão desse infeliz constitui, ao lado do martirio,
a mais fúlgida glória a aureolar a fronte de Santa Ma­
ria Goretti. Não será fora de propósito refazer-nos até
aquele doloroso dia de 5 de julho de 1902 e acampa·
nhar o pobre Alexandre até os baixios onde se enlame­
ara, para que mais apareça a ação maravilhosa da gra­
ça a reerguê-lo até os cimos da regeneração.
Após o crime, Alexandre fechara-se no seu quar­
to, e jogando o ferro ensa�uentado atrás de um cai­
xote, estendera-se na cama, aguardando os aconteci­
mentos. Era esta a atitude dos heróis dos seus roman·
ces, quando nada mais lhes restava a fazer . . .
A chegada dos Carabineiros não o assustou. Não
se levantou para recebê-los quando o chamaram, mas
preferiu deixar que arroubassem a porta. Isto pare­
cia-lhe mais digno de sua façanha. Foi, então, alge­
mado. Entretanto, os soldados não se arriscaram a le­
vá-lo. A multidão ardia de ódio contra o assassino.
Queria linchá-lo a todo custo. Foi preciso, portanto,
esperar os socorros da polícia a cavalo. E quando, fi·
nalmente, Alexandre apareceu entre os guardas rom­
peu uma explosão de ira. Entre o agitar-se das foices
e dos facões reboavam os gritos de : "Morra o assas·
sino !" Aquele povo parecia uma malta de revoltosos
sedentos de justiça� não já os piedosos cristãos que,
minutos antes, murmuravam orações. Não foi peque­
no o trabalho da polícia, porém, com habilidade e
com ameaças, conseguiu abrir caminho e por a salvo
o criminoso.
No processo o réu demonstrou o mais revoltante
cinismo· Confessou friamente o crime, e não se pejou
de revelar abertamente suas torpes intenções. Foi, en·
tão, pronunciada a sentença :
91
"Os jurados declaram Alexandre SereneHi cul­
pado do homicídio premeditado para conseguir a rea·
lização de outro crime . . . A côrte estabelece que seja
�plicada a Alexandre Serenelli a pena máxima e o
condena à prisão de trinta anos; e à vigilância especial
da Pública Segurança por três anos; e à interdição
perpétua de todo serviço público".
Em seguida, foi transferido para a cidade de No­
to, na Sicília, a fim de lá expiar a pena merecida. O
ambiente não parecia o mais propício para resipis­
cências, e, de fato, os primeiros anos de reclusão não
acusaram mudança alguma: sempre o mesmo cinismo
e o mesmo desprêzo.
Entrementes, o sangue da sua vítima implorava
misericórdia. " Quero vê-lo perto de mim no céu", dis­
sera na hora de manifestar pUblicamente o seu per­
d�o, e aquelas derradeiras palavras continuavam a e·
coar diante do trono de Deus como uma súplica infa-
lível. . ,

Certa vez S. Excia. D. Blandini, Bispo do lugar


em visita às prisões, manifestou o desejo de avistar-se
com Alexandre Serenelli. Levado à cela foi por ele a·
colhido com a -mesma indiferença com que encarava
toda espécie de autoridade. Que lhe viria contar esse
Padre? Já o imaginava. Ele, porém, não era homem
de tremer diante das ameaças do invisível. Assim co­
mo desacatara a justiça humana, assim também ele
não temia a própria justiça divina . . . Qual foi, ao in­
vés, a sua admiração quando viu aquele Bom Pastor
sentar-se-lhe ao lado, interessar-se por ele, indagar da

92
saúde, da vida que levava na prisão e, ainda, pronti­
ficar-se para diminuir-lhe a pena. Como era diferente
esse Padre real das vulgaridades com que seus jornais
o descreviam ! Como lhe calavam na alma aquelas pa·
lavras afetuosas ! Como feriam aquele. coração que
nunca experimentara os carinhos maternos.
Ao despedir-se, S. Excia. deixou-lhe, para dis­
trair-se, algumas publicações católicas, livros e revis­
tas e, também, uma pequena biografia de Maria Go­
retti. Maria Goretti ? ! Oh ele devia conhecê-la muito
bem essa menina ! Que se diria aí que ele não souhes·
se ! Levado aparentemente pela curiosidade, e mais a- .
certadamente pela graça, abriu então aquele livrinho
e começou a ler, de início com desplicência, depois
com interesse, e depois . depois com o ·arrependi­
.· .

mento a erguer-se impiedoso naquele coração de pe­


dra. Foi na leitura das Epístolas de S. Paulo que o pe­
cador Agostinho encontrou o caminho da conversão.
Foi na leitura da vida dos santos que o soldado Iná­
cio de Loiola iniciou sua regeneração. E Alexandre
Serenelli, que na leitura dos jornais perversos preci­
pitara-se no abismo, avistava, nas páginas que narra­
vam o heroismo de sua vítima, a escada que o ajuda­
ria a sair das !Suas misérias. A virtude da pequena
tnartir fulgurou-lhe em todo o seu esplendor e o cri­
me por ele perpetrado em toda a sua hediondez. Co­
meçou, então, a compreender que era realmente "um
monstro" e pela primeira vez, depois de l9ngos anos,
·

Alexandre chorou . . .
E' neste momento que ele inicia a subida ao Cal-

93
vário, em cujo cimo expiará ao lado do Divino Salva­
dor, junto ao Bom Ladrão, todo o horror do seu cri·
me. Dia e noite a lembrança do passado avivava-se­
lhe na mente; e o delito, que parecia não ter deixado
outro rastro afora o tormento físico da prisão, rasga·
va-lhe agora na alma um sulco profundo. Ninguém
mais o reconhecia. Aquele cinismo revoltante muda­
ra-se em nuvens de tristeza que o deixavam abatido.
Não era difícil adivinhar o novo drama que se ini­
ciava naquela pobre alma. A angústia daquele arre­
pendimento deixava suspeitar um desfêcho precipita­
do, e, talvez, teriamos um novo Judas, se uma suave
Advogada do céu não lhe arredasse. as pedras de tro­
peço . . .
Data deste tempo um sonho que veio reanimá­
lo. "Parecia-me estar - conta ele próprio - num
jardim cheio de lírios. De repente, vi aparecer Marie·
ta, que, toda vestida de branco, colhia daquelas flores
e, passando-as para as minhas mãos, dizia-me : Toma.
Eu aceitava-as e assim que as beijava com grande de­
voção, transformavam-se em chamazinhas cintilan­
tes". E conclui : "Tenho esperança de salvar-me, pois
tenho uma Santa no Paraíso que reza por mim".
Não permitia que lhe diminuíssem a culpabili­
dade. Não, não havia atenuantes. Ele só era o respon­
sável, pois "sabia perfeitamente o que estava fazen.
do". Por que apelar para discutidas enfermidades
mentais derivadas dos parentes? "No dia do crime,
insistia, eu estava com pleno con�ecimento de tudo".
Não lhe bastava no entanto, arrepender-se e re-

94
cr1mmar-se. Sentia a necessidade de urna reparação,
df" uma confissão pública que o cobrisse de humilha­
ções e que exaltasse até o céu a sua vítima. Auxiliado
por um companheiro, dirigiu ao mesmo Bispo que o
vjsitara uma carta, em que não sabemos se mais ad­
mirar a coragem com que se declara culpado ou o lou­
vor com que enaltece sua vítima. " . . . Detesto - es­
creve - e abomino um homicídio tão bárbaro, que
hoje amargurado lamento, por saber que tirei a vida
a uma pobre inocente, a qual até o último momento
quis conservar a sua honra, preferindo morrer tão ce­
do, antes que render-se aos meus vís desejos e cuja re­
sistência me levou a dar um passo tão horrível quão
lamentável. Publicamente detesto a minha vil ação e
peço perdão a Deus, à infeliz e desolada família da
vítima, do enorme pecado que cometi ; e espero que
eu também poderei obter o perdão, como tantos ou­
tros nesta miserável vida o obtiveram . . . e paz . . . e
até as bênçãos da nobre extinta . . . "
Outra reparação, e esta de muito maior enverga­
dura, ser-lhe-ia pedida. A voz do povo que exaltava
o martírio de Maria Goretti começou a interessar à
Cúria Romana. Alheia a toda precipitação, a Igreja,
tal como não regateia louvores merecidos, assim tam­
bém não exalta senão depois de maduras reflexões.
Em que se fundava esse clamor popular? Era preciso
ouvir testemunhas. Os depoimentos de D. Assunta, as­
sim como das outras pessoas que viveram com Marie­
ta mereciam, sem dúvida, todo acatamento. Mas se
o próprio assassino se prontificasse a dar uma rela-

95
ção sincera e conpleta dos fatos, certamerte os tra­
balhos tomariam um andamento mais rápiCo e mais
garantido. Mas quem haveria de obrigar o assassino
a um depoimento de tal natureza? Redundando, em­
bora, na glória de uma criatura não o pouparia a de­
clarações humilhmtes. Entretanto, não foi preciso in­
sistir. Interrogado se estaria disposto a depor a ver­
dade nos process"s da Beatificação de Maria Goretti,
Alexandre respondeu simplesmente: "E' meu dever".
Se hoje possuímos detalhes preciosos deste mar­
tírio, somos gratos à generosa reparação de Alexan­
dre Serenelli.
* * *

Véspera de Natal do ano do Senhor de 1937.


Trinta e cinco anos são decorridos daquela tar­
de ensoalhada da Campanha Romana, em que uma •

camponezinha de doze anos escreveria para sempre o


seu nome entre as virgens que acompanham o Cor­
deiro Divino.
Dia gélido nas terras italianas. O coração do in­
verno. Em Corinaldo, assim como em todas as alde·
ias da Itália, as famílias dos lavradores recolhem-se
nos estábulos, aquecendo-se com o calor dos animais.
Raros transeuntes atravessam as ruas. Só um homem
arrasta-se vagarosamente como que alheio a toda es­
sa onda de frio. Cinquenta e cinco anos. Mal vestido.
Um tanto curvo. Segue passo a passo para a casa de
D. Assunta.
- Quem quer falar com ela? perguntam-lhe.
- Alexandre Serenelli.

96
D. Assunta não tarda a aparecer. Forte ainda, a­
peear dos seus setenta anos, o cabelo branco a aureo­
lar-lhe o rosto sulcado de rugas, o pobre homem a
reoonhece perfeitamente. A cena é rápida. Sem mes­
mo cumprimentá-la, atira-se-lhe aos pés e suplica:
- D. Assunta, perdoe ! Pode perdoar-me?
Não imaginemos cenas romanescas, lutas ínti­
mas a preceder a hora final, o coração a bater vio­
lentamente. O povo dos campos é o povo simples e a
reEposta é igualmente simples.
- Como qão perdoar? Perdoou o Senhor. Per­
doou-lhe' minha filha. ComQ. não hei de per�oar eu?
Na manhã seguinte D. Assunta e Alexandre Se­
renelli ajoelhavam-se um ao lado do outro, na mesma
mesa Eucarística.
O penitente Alexandre vive hoje seus dias colllo
jardineiro do Convento dos Padres Capuchinhos em
Ascoli Piceno. Totalmente integrado na família divi­
na, separado do mundo, marcha em passos largos no
caminho da regeneração mais completa.
1 Quando D. Assunta era interrogada no Processo
dt> Beatificação de sua filha se estava disposta a con­
ceder o perdão ao assassino, não hesitou em respon­
·
der afirmativamente. Mas o público protestou : "Nós,
porém, não lhe perdoaremos". Retrucou, então aque­
la verda deira cristã : "E se o Senhor não perdoasse a
nos ?".

, Porque, pois, negar o abraço fraternal a êsse fi­


lho pródigo, para o qual já nosso Pai Celeste mandou
preparar o banquete festivo?

97
Bem-aventurado

o ventre que te trouxe

A conversão de Alexandre Serenelli foi, sem dú­


vida, a maior graça que �anta Maria Goretti dera
no mundo. Entretanto, as primícias de sua poderosa -
intercessão seriam reseTVadas à sua família.
De fato, os trágicos acontecimentos que lhe arre­
bataram a vida, enquanto levaram ao conhecimento de
todos sua heróica virtude, revelaram, ao mesmo tem­
po, o estado precário de sua família, tão pobre que
até mesmo um simples pedaço de pão lhe falhava pa­
ra matar a fome. A compaixão natural que tal situa­
ção despertava e, mais ainda, o desejo de privar com
os parentes de uma santa, estimularam muitas almas
bondosas a se interessarem por aquela jovem viúva e
por aquelas cinco crianças tão necessitadas. O pão
não mais faltou . . .
Saindo de Ferriere, D. Assunta transferiu-se
para Corinaldo. Amorosamente acolhida pelo Vigário
do lugar, o Rev. P. Allegrini, encontrou aí honesta
pousada. Ercília, a penúltima de suas' filhas, foi acei­
ta no Instituto das ••zoccolette", e · Teresa no Colégio

9EJ
das Madres Missionárias de Crota Ferrata. Hoje, to­
dos os irmãos da Martir são honradamente casados,
�;.ceto Ercília, que, chamada a um estado superior,
vestiu o hábito das suas educadoras com o nome de
Soror Maria de Sto. Alfredo.
Mas que seriam todas essas graças comparadas
com a glória que coroa o nome de D. Assunta? Ao la­
do daquelas grandes mães cristãs, que a Igreja inscre­
veu no catálogo dos santos, figura hoje essa campone­
sa de Corinaldo.
Duas humildes criaturas assombraram o mundo
nestes últimos tempos : D. Margarida a formar o co­
ração sacerdotal de seu filho : S. João Bosco e D. As­
sunta a formar o coração virginal de sua filha : San­
ta Maria Goretti. Ambas analfabetas, sua pedagogia
não nasceu dos livros da ciência humana. Iniciadas
à escola do Evangelho, souberam transmitir a seus fi­
lhos os dois grandes princípios geradores de virtude
e de santidade : o temor de Deus como início, e o amor
de Deus como têrmo final de perfeição.
Quando, em 27 de abril de 1947, um mar de lu­
zes inundou a imagem dé Marieta a resplandecer na
"Glória de Bernini" os olhos de uma imensa multi­
tidão levantaram-se para contemplar aquela visão ce­
le--ste. Em seguida, baixaram sobre uma velhinha to­
da encolhida em suas pobres vestes de camponesa nu­
ma galeria do templo. Depois da mãe de S.ta Catari­
na de Sena e de São Luís Gonzaga, D. Assunta era a
primeira a ver sua filha elevada a tamanha glória.
A cena do Evangelho ocorreu prontamente à

99
memória de todos. Ouvindo os admiráveis ensinamen·
tos do Divino Salvador, uma das mulheres presentes
ergueu o mais belo encômio a N. Senhora. Muitos sé­
culos depois, naquele memorável dia 27 de abril, o
mesmo grito de entusiasmo rompeu espontâneo doe
corações de milhares de peregrinos : "Bem-aventura­
do o ventre que te trouxe !" "Bem-aventurado o ventre
que te trouxe'' ecoavam das históricas abóbadas da J.
greja de S. Pedro aos ouvidos daquela criatura que
se via envolvida no glória de sua filha e que imitando
a Mãe de Jesus ocultava-se, contentando-se em dizer :
"quia respexit hf!,militatem ancillae suae, Deus olhou.
para a baixeza de sua escrava".

] ()()
Na glória dos santos

Três anos haviam decorrido da Beatificação e


quarenta e oito da morte de Marieta, quando S. S. Pio
XII inscrevia a menina dos pântanos na glória dos
santos.
Pela primeira vez em 20 séculos, a praça .da Ba·
sílica de S. Pedro assistiria a um espetáculo inegualá­
vel. Uma simples carnponezinha, de cuja existência
apenas reduzido número de pessoas tivera conheci·
mento, atraira tamanha multidão que o Papa viu-se
obrigado a alterar o lugar tradicional de uma das
maiores cerimônias da Igreja. A canonização de Ma·
ria Goretti, não se realizaria, como sempre se fizera,
no interior do templo e, sim, em pública praça.
Uma enorme multidão, avaliada em quinhentas
mil pessoas, agiomerava-se desde as primeiras horas
do memorável dia 24 de junho de 1950, entre os bra­
ços da colunata de Bernini. E lá, sob o sol abrasador
dQ verão esperou o desenrolar-se das cerimônias.
Nota. Duas sio as canonizações que a histórlà registra em pllbli·
ca praça ; nenhuma, porém, em Roma. A primeira em junho de 1228,
quando o Papa Gregório IX Franclseo õe As·
elevou aos altares S.
sls na praça fronteira à. baslllea que traz o nome do Santo � e a lle­
gunda, em 1.232, por ocaslio da canonização de Santo AntOnio de Li11·
boa, em Spoleto.

101
Quem haveria de dizer que tão grande área seria
insuficiente para conter a multidão? Na Rua da Con·
ciliação (que precede a praça) , nas janelas, nos terra·
ços e até no longínquo Monte Gianícolo formigavam
e&pectadores, curiosos e devotos.
Parecia renovar-se o milagre de Pentecostes.
Grupos de peregrinos, lá chegados de todos os qua­
drantes da terra, falavam línguas diferentes, comen·
tavam, rezavam e cantavam em voz alta hinos religio­
sos. O vociferar alegre daquel� mar de povo asseme·­
lhava-se ao ruido das ondas.
Diante do portão central da Basílica erguia-se o
trono papal, encimado pelo quadro da Santinha, ain·
da coberto à espera do momento solene em que, des­
cerrando-se, aparecesse em todo o seu esplendor.
Em dado momento, como que obedecendo a uma
ordem, cessam os cânticos e a praça inteira mergulha
no silêncio. Os olhares de todos voltam-se para uma
janela dos Sácros Palácios, de onde se destaca uma
cabecinha branca, meio coberta de um véu preto. E' a
mãe de Maria : D. Assunta Goretti. Seus 85 anos não
lhe impediram de se chegar até lá para ver com seus
próprios olhos o que no êentro da Cristandade se fa­
zia para a sua pequenina Maria. Aquela veneranda
anciã talvez não ouvisse o aplauso com que o povo
cristão a saudava : sua memória aprofundava-se na
lembrança daqueles acontecimentos passados que nes­
se dia reavivavam-se . . .
Aquela camponesa, analfabeta e alquebrada pe·
los anos, despertaria inveja nas próprias rainhas.

102
Mas a hora da histórica cer1 moma aproximava•
se. A procissão papal começa a desfilar. Ordens r�li­
-giosas, monges em seus hábitos peculiares, alunos dos
vários Colégios e Seminários, os Cabidos das Basíli·
cas Romanas, oficiais da Cúria passam entre a mul­
tidão, de velas acesas, ao canto das ladainha dos San­
tos. O povo une-se e responde em côro. O desfile pa­
rece interminável e· monótono, mas o canto não esmo·
rece. Quando, porém, o estandarte da Santinha apa·
rece, precedido do P. Mauro da Imaculada, o incansá·
vel Passionista que tanto lutara para o advento deste
dia, e ladeado pelos irmãos de Marieta, o povo não
mais contém os entusiasmos. Como dominar-se? Um
insopitável aplauso sobe ao céu espontâneo e irresis­
tível, cobrindo as vozes dos monges que salmodiavam.
O desfile já está quase terminando e o topo da
escadaria fronteira ao templo está agora repleto. A
guarda Nobre Pontifícia, os Cardeais, as altas paten·
tes das Congregações Religiosas, o Presidente da Re·
pública Italiana e as autoridades civís aguardam a
chegada de S. Santidade.
Seriam precisamente as 19, 22 hs., quando o
som argentino das trombetas anuncia o aparecimento
do Papa. Sob o pálio, na sua Sedia gestatoria, envol·
te. no pluvial vermelho, como exige o rito dos márti·
res, S. S . .Pio XII sai dos portões do Vaticano. Milha·
res e milhares de lenços levantam-se como o vôo de
-�ândidas pombas e um grito de "hosana" ecoa mil
vezes repetido pela multidão eletrizada. E o Papa a·
vança, tendo na esquerda uma vela acesa e com a di·

103
reita abençoando seus fil�os. A Capela Sistina res·
ponde l�nçando no ar as notas do ''TU , ES PETRUS".
Inicia-se a cerimônia. Sentado no seu Trono, ·o,.
Papa recebe a "obediência dos Cardeais", que desfi·
Iam, um após outro, osculando o · anel de Pedro. Em
seguida o Emmo . . Card. Prefeito dos Ritos suplica o
Santo Padre se digne proceder à canonização da Bem·
aventurada Maria Goretti. O Secretário dos Breves
aos Príncipes responde em nome do Sumo Pontífice,
c.onvidando o povo a invocar antes o Divino Espírito
Santo. Instantes depois, ouve-se a voz do Papa a en·
toar o hino do "Veni Creator Spiritus" que a Capela
Sistina retoma e continua em côro.
Aproxima-se agora o momento solene. Após o
hino Sua Santidade senta-se no trono e na sua quali·
dade de Doutor Supremo e lnfalível da Igreja, pro­
nuncia em latim a consagraçã<1 definitiva das virtu­
des heroicas de Maria Goretti.
"Em lwnra da Santíssima Trindade,
pela exaltação da Fé Católica e para o au­
mento da Religião Cristã, pela autoridade
de N. S. Jesus Cristo, dos Bem-aventurados
Apóstolos Pedro e Paulo e pela nossa, N'ós
decretamos e definimos Santa e inscreve·
mos no Catálogo dos Santos a Bem-aventu­
rada Maria Goretti, estabelecendo que se­
ja celebrada todos os anos com piedosa de­
voção na Igreja Universal o dia 6 de jullw".
Incontinente, cai o pano que cobria o quadro da
·

Santa, e sobre a suave figura da camponezinha de

104
Ferriere chove um jato de luz. Um frémito perpassa
por toda aquela multidão. Os olhos enchem-se de lá·
grimas, os corações de todos pulsam com o mesmo
ritmo de violência. Finalmente, um aplauso fragoro­
so e indescritível irrompe pela praça inteira.
· A velhinha de cabeça branca sem nada ouvir o­
lhava extasiada para a figura daquela camponezinha,
sua filha, que outrora ela vira banhada em sangue e
que agora contemplava envolta em · tanta luz e tama·
nha glória.
Após o ''TE DEUM" entoado pelo Papa e acom­
panhado de meio milhão de vozes, seguiu-se a Homi­
lia que vamos transcrever na íntegra como o melhor
epílogo destas páginas.

105
H o m il ia

pronunciada por Sua. Santidade Pio XII


a.o presidir aa cerymania8 da canonua.çao
dfl Santa. Maria GoretH Virgem e Mamr

Veneráveis irmãos e amados filhos :


Por amoroso desígnio da Divina Providência, a
suprema exaltação de uma humilde filha do povo foi
celebrada neste brilhante crepúsculo com uma sole•
nidade sem paralelo e de forma até agora única nos
anais da Igreja.
Foi celebrada na amplitude e majestade deste
lugar de mistério, convertido em templo sagrado a·
berto ao firmamento que canta as glórias do altíssi·
mo, um templo que, mais do que disposto por nós,
foi desejado por todos vós, e que se enche de incon·
tável número de fiéis, como jamais se viu em canoni·
zação alguma. E' sobretudo um templo como que exi,
gido pelo deslumbrante brilho e arrebatadora fra·
grância deste Lírio vestido de púrpura, cujo nome
nós inscrevemos com íntima alegria no album dos
Santos : a doce e pequena martir da pureza, Maria
Goretti.
Porque, amados filhos, haveis acudido em tal
multidão à sua glorificação? Porque se vos comooe o
coração até às lágrimas ao ouvirdes a história de sua
curta vida, tão semelhante às narrativas do Evange·

106
lho pela simplicidade de suas Jinhas, o colondo de
seu ambiente e a violência cruel de sua morte? Por·
que vos roubou Maria Goretti tão ràpidamente o co·
ração, a ponto de converter-se em vossa amada e fa·
vorita? E' porque existem neste mundo, aparente·
mente desordenado e submerso no hedonismo, não
um escolhido g�upo de eleitos do céu que buscam o ar
puro, senão multidões, imensas multidões, para as
quais o perfume sobrenatural da pureza cristã exer·
ce um fascínio promissor e irresistível. Sim, promis­
sor e certamente consolador.
E' certo que no martírio de Maria Goretti brilhou
em primeiro plano e sobre todas as coisas, a pureza ;
não obstante, nela e com ela triunfaram também ou­
tras virtudes cristãs. Porque nessa pure� existia a
primordialíssima e significativa virtude do completo
domínio do espiritual sobre o material. Em seu supre­
mo heroismo, que não foi improvisado, houve um a­
mor terno e dócil, obediente e ativo, para com os seus
pais. Havia em suas duras tarefas quotidianas, um
constante sacrifício, uma pobreza aceita de modo e­
vangélico e alentada pela fé na providência do céu.
Ali estava a religião professada com profunda con­
vicção, sempre com o desejo de melhor entendê-la, ti­
da como tesouro da vida e constantemente alimentada
pela chama da oração. Abrigava-se naquele peito o
ardente desejo de Jesus Eucarístico. Finalmente, abri·
.
gava Maria a coroa da caridade, do heróico perdão,
' concedido a seu assassino. Isso tudo constitui aque}e
ramo de flores do campo, rústicas, porém tão queri·

107
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br

Impresso na tip. da Pia Soe. Filhas de S. Paulo


Rua DomingoS de Morais 642
Festa de S. Fabiano e S. Sebastião
Janeiro de 1951
INDICE

PRIMEIRA PARTE

Tarde de sangue

1. Dois pobres no mesmo caminho . . . . . . . • . .... . 15

�.. Sem pai . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • . . . . . . . • . . . .. . 21


3 Uma pequena dona de casa .................... 27
4. Marieta . . . .. .. .. .... .. . . . . .. .. ... .. . . .. . . . . . 33
,5. Alma puríssima . . . . . . . . . . . . . . . . • . ......... . 41

SEGUNDA PARTE

Q Martfriq

1. Preparação para o holocausto ..... .. .. .... .. . 47

2. Veneno mortal ..................... ...... . 55


3 O heroismo de uma criança .................. 6J ,
4. Ascende-se uma estrela no céu . ............... 73

TERCEIRA PARTE

Seq�ncia de glória

1. Sepulcro glorioso . .. ............ .. .. ...... .. . 85


2. , O caminho de Damasco . .... .... .......... .. . 90
3. Bem-aventurado o ventre que te trouxe 98
4· . Na glória dos santes . ........ .... .... .. ....... 101

:!;i. Homilia • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • ............... 106

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