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INCOMPREENSÕES NO AMOR E NA ARTE: A GAIVOTA DE A.

TCHÉKHOV

Priscilla Herrerias (Mestranda em Literatura e Cultura Russa, USP)

priscillaherrerias@hotmail.com

RESUMO: O presente artigo visa traçar uma análise de A Gaivota (1896), primeira

grande peça de A. Tchékhov (1860-1904), a partir dos paradoxos de comunicação

existentes entre as personagens. O estudo pretende esclarecer algumas das inovações

propostas pelo autor russo que rompem com o sistema dramático tradicional, alterando

principalmente os conceitos de ação, diálogo e conflito. As impossibilidades de

compreensão entre as personagens serão analisadas dentro do que entendemos como os

dois principais temas da obra – amor e arte.

Palavras-chave: A. Tchékhov, Teatro Russo, Drama Moderno, Literatura Russa.

1. Duas estreias muito diferentes

Em algum momento entre os anos de 1892 e 1904, A. Tchékhov (1860-1904)

escreveu em seu caderno, onde anotava temas, pensamentos e ideias para trabalhos

futuros, que “o público realmente gosta na arte daquilo que é banal e há muito familiar,

aquilo com que eles se acostumaram” (2004b, p. 25). O fracasso da estreia de A

Gaivota, em 1896, no Teatro Alexandrínski, em São Petersburgo


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, embora tenha decepcionado profundamente o autor, que prometera nunca mais

escrever para teatro, talvez não o tenha surpreendido, uma vez que Tchékhov tinha

plena consciência da nova proposta contida na dramaturgia da obra.

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O que os espectadores veriam no palco estava longe das estruturas

aristotelicamente encadeadas dos textos clássicos, comédias de costume, vaudevilles e

farsas, aos quais estavam acostumados. Também o ritmo proposto por Tchékhov – “[...]

comecei-a forte e terminei em pianíssimo” (in ANGELIDES, 1995, p. 192) –

contradizia as regras clássicas da dramaturgia, que demandavam um andamento

crescente, rumo ao clímax e desenlace da peça. Por fim, a ausência de heróis ou

heroínas, que possibilitariam a interpretação marcante dos grandes atores e atrizes da

época e que „costurariam‟ toda a obra através de uma linha de ação ininterrupta,

contribuiu para a incompreensão entre autor e público.

Instaurava-se, portanto, um paradoxo - se por um lado o público tentava decifrar a

obra “segundo cânones já seus antigos” (LOTMAN, 1978, p. 61), por outro, o autor não

dava a este “a informação de que ele tinha necessidade e para a percepção da qual

estava preparado” (op. cit.). As situações cotidianas e os diálogos pronunciados em

linguagem comum e tom conversacional soavam monótonos e desprovidos de caráter

artístico; a falta de grandes acontecimentos refletida na inação das personagens era

incomum e perturbadora; a ação interior, que deveria sugerir ao público os

pensamentos, desejos e emoções das personagens, guiando e conduzindo os

espectadores através do mundo fictício da peça, não foi capaz de substituir a unidade de

ação com que estavam acostumados. Por fim, a classificação dada por Tchékhov à obra

- uma comédia em quatro atos – confundiu ainda mais o público da estreia de A

Gaivota.

Habituados às peças curtas cômicas que o próprio autor escrevia com grande

sucesso, além dos contos, muitos deles publicados em revistas humorísticas e pelos

quais Tchékhov já era amplamente conhecido e premiado, o público definitivamente

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não pôde compreender uma comédia que não suscitava o riso, onde a intriga estava

ausente e com um suicídio no suposto desenlace feliz.

Os motivos de Tchékhov em classificar tanto A Gaivota como O Jardim das

Cerejeiras como comédias envolvem certa polêmica, principalmente por suas críticas às

encenações posteriores do Teatro de Arte de Moscou. De qualquer maneira, fica claro

que o autor russo ao denominar as referidas peças como comédias, queria reforçar o

aspecto prosaico das obras, onde eram retratadas pessoas comuns, em situações

cotidianas, vidas sem grandes acontecimentos. Para Donald Rayfield, importante

estudioso da poética tchekhoviana, comédia significava para Tchékhov o oposto de

tragédia, sugeria que a morte ou a supressão da personagem central não impediria a vida

de seguir seu curso normal (1975, p. 97). As peças de Tchékhov, inclusive, poderiam

acabar no terceiro ato, mas o autor as prolonga, deixando que o fluxo da vida se

sobreponha aos acontecimentos do enredo, fazendo com que as peças se abram para o

infinito e deixando ao leitor/espectador uma sensação de inacabamento.

Foi precisamente a compreensão das inovações da dramaturgia tchekhoviana na

prática da cena o grande acerto de Stanislávski e Nemiróvitch-Dântchenko quando, dois

anos depois da malograda estreia em São Petersburgo conseguem convencer o autor e

estreiam A Gaivota em Moscou. O sucesso da montagem do Teatro de Arte, cujo

símbolo até os dias de hoje é a gaivota, foi o de perceber a relação direta e estreita entre

as personagens e a plateia. O público moscovita pôde reconhecer-se por completo nos

pensamentos, desejos, anseios e insatisfações das personagens, detalhadamente

concretizados pelos atores dirigidos por Stanislávski (incluindo-se o mesmo, também

intérprete). O alto grau de memória comum partilhado entre personagens e espectadores

era algo novo, contagiante. Se até então o palco era tomado por grandes acontecimentos,

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distanciados do espectador pela interpretação de atores comprometidos com o estrelato,

a dramaturgia de Tchékhov inaugurava na Rússia o drama de indivíduos comuns, que

embora sufocados por uma realidade apática, eram impulsionados por um apaixonado

desejo de viver. A encenação de Stanislávski, privilegiando o ensemble ao destaque de

interpretações individuais e compreendendo efetivamente a importância do subtexto, do

que estava „além‟ das palavras, contribuiu decisivamente não só para o sucesso da obra,

mas para o nascimento e concretização de um novo teatro.

Neste, o público não era levado a julgar as personagens, mas antes, “convidado a

responder em um nível emocional aos sentimentos que as personagens

experimentavam” (PITCHER, 1985, p. 9). Tchékhov instaura, por assim dizer, um

campo elétrico entre palco e plateia, espaço „entre‟ altamente fértil, onde espectadores,

atores e autor, compartilham a mesma experiência.

2. Fatalidade e isolamento

Embora A Gaivota apresente inúmeras rupturas com a dramaturgia clássica, a

comédia de Tchékhov guarda com ela uma importante semelhança: a inevitabilidade

dos destinos das personagens.

Se, na tragédia clássica, por exemplo, o destino dos heróis era pré-determinado

pelos deuses, com quem a possibilidade de luta era inexistente, em A Gaivota o destino

das personagens também é determinado por forças que elas são incapazes de superar

(KATAEV, 2002). Mas a fatalidade dos destinos das personagens de Tchékhov revela-

se antes, como consequência de uma série de desentendimentos entre elas, isoladas em

seus mundos e pontos de vista particulares.

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Assim é formado o universo de A Gaivota, como um grande mosaico onde cada

personagem representa uma constelação única, incompreensível para as demais. O

diálogo, ao invés de troca e/ou comunhão, reflete consequentemente a distância e a

impossibilidade do contato. Para a pesquisadora holandesa Jenny Stelleman, as

personagens tchekhovianas assumem que “o outro modela o mundo ou a realidade

exatamente da mesma maneira que elas, em outras palavras, que há apenas uma

realidade” (1992, p. 29). Desta forma, os problemas de comunicação causados pela falta

de experiências similares que isola cada personagem em seu mundo individual são

agravados pela premissa de que o outro „modela o mundo do mesmo modo que eu‟; tal

proposição possibilita aparente entendimento, como se as realidades se tocassem breve e

harmoniosamente, assim como as pedras de um caleidoscópio, para em seguida

afastarem-se definitivamente.

A fatalidade dos destinos de Tréplev e Nina é determinada, portanto, por uma

série de incompreensões para a qual contribuem as ações de cada personagem

mergulhada em seu universo particular e que levam a uma cadeia geral de infortúnios.

Vladímir Katáiev, professor de literatura russa na Universidade de Moscou e um dos

maiores especialistas na poética tchekhoviana, ressalta que não há intenções vis nas

atitudes das personagens, mas apenas distância entre seus propósitos e perspectivas:

As personagens de Tchékhov tornam-se os autores dos infortúnios de outras


pessoas „simplesmente‟ porque estão tentando realizar suas próprias ideias de
felicidade, amor, arte, como conduzir as coisas, etc. Ser o autor dos infortúnios de
outras pessoas não é a sina de indivíduos particulares que são maus, cruéis e
imorais. Cada pessoa está sujeita a isso. Ter uma visão pessoal das coisas, estar
preocupado com esta visão e ser incapaz de entender a „verdade‟ das outras pessoas
– isso é o que leva aos infortúnios e vidas arruinadas em Tchékhov (2002, p. 178).

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Desta maneira, assim como na tragédia clássica, não há culpados. As personagens

tchekhovianas não se apresentam como heróis ou vilões, mas são tridimensionais e

seguem obstinadamente suas „verdades‟, suas inclinações; aguçadas pela pena de

Tchékhov, estas se tornam temas, que surgem e reaparecem como ondas, construindo

uma dramaturgia que não está centrada em acontecimentos, mas nos próprios

movimentos de alma de suas personagens.

3. Da (im)possibilidade de compreensão no amor e na arte

Se, no sistema dramático tradicional o primeiro ato deve apresentar ao público a

exposição de um problema, a ser desenvolvido e resolvido até o último ato, Tchékhov

deixa claro desde os primeiros momentos de A Gaivota a ausência de um „nó‟ que será

formado e desatado. Contudo, como aponta Vladímir Nabókov, Tchékhov “assim como

Ibsen, estava sempre ansioso para se livrar do trabalho de explicação o mais rápido

possível” (1981, p. 282). O primeiro diálogo da peça, portanto, já antecipa os

desentendimentos na arte e no amor, presentes em toda a obra. Quando se abre o pano, a

plateia reunida para assistir A Gaivota depara-se de imediato com outro tablado, cortina

baixada, anunciando a metalinguagem, o teatro dentro do teatro. Macha e o professor

Miedviediênko entram de volta de um passeio:

MACHA (olhando para o tablado): O espetáculo vai começar daqui a pouco.


MIEDVIEDIÊNKO: Sim. Zariêtchnaia vai se apresentar e a peça é uma obra de
Konstantin Gavrílovitch. Os dois estão apaixonados e hoje suas almas vão se unir
na aspiração de criar uma representação artística única. Mas entre a minha alma e a
sua não existem pontos de contato. Amo a senhorita e, de tanta saudade, não
consigo ficar em casa, percorro seis verstas a pé todos os dias para vir aqui, outras
seis para voltar e, da sua parte, só encontro indiferença. Mas eu compreendo.

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Tenho poucos recursos, minha família é grande... Qual mulher vai querer um
homem que mal consegue ter o que comer?
MACHA: Bobagem. (Aspira rapé) O seu amor me comove, mas não consigo
corresponder, só isso. [...] (TCHÉKHOV, 2004a, p. 9-10).

Tchékhov, além de apresentar já na primeira cena o tema de cada interlocutor,

também revela as relações e tensões entre eles. Além disso, a situação típica que se

estabelece entre Macha e Miedviediênko – o amor não correspondido, que floresce a

despeito da impossibilidade de contato entre seres que não compartilham as mesmas

experiências, em um universo marcado pelo desencontro - será espelho para outras

personagens da peça.

Ligado à realidade cotidiana, à luta pela sobrevivência, Miedviediênko está

distante das questões artísticas, que povoam a mente e o coração de Tréplev, por quem

Macha é apaixonada. Tréplev, por sua vez, ama Nina Zariêtchnaia, com quem aspira

não só ao amor, mas também à „verdadeira criação artística‟. Nina, encantada pelo

mundo do estrelato, apaixona-se por Trigórin, escritor bem sucedido, amante de

Arkádina.

Desta forma, estabelece-se no primeiro ato da peça o alicerce em que se

estruturam as relações entre as personagens - um círculo vicioso, onde as rejeições

amorosas que causam e sofrem ligam-nas umas às outras:

Miedviediênko ► Macha ► Tréplev ► Nina ►Trigórin

O círculo de paixões não retribuídas em que as personagens se encontram, aliás,

poderia facilmente ser material para uma das peças cômicas em um ato de Tchékhov,

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tão ao gosto do público da época, ou de um melodrama, cuja base - „A ama B que ama C

que ama D‟ – é a mesma de A Gaivota.

Tchékhov, no entanto, distancia ao máximo sua obra do melodrama – todos os

elementos considerados altamente „dramáticos‟ acontecem nos bastidores: o suicídio de

Tréplev ao final da obra e os acontecimentos com Nina entre o terceiro e quarto ato –

sua vida difícil como atriz em Moscou, o romance com Trigórin, os ciúmes, o

nascimento e morte de seu bebê. Essa excelente “coleção de incidentes” (KATAEV,

2002, p. 175), que poderia fazer a felicidade de autores melodramáticos, na peça de

Tchékhov, entretanto, transforma-se em narrativa, transferindo à imaginação do

espectador todos os grandes acontecimentos.

Jovem aspirante à carreira de atriz, Nina encanta-se com o mundo de fama de

Arkádina e Trigórin, completamente diferente da realidade da jovem oprimida pela

madrasta e pelo pai. Como nota a pesquisadora russa Vera Zubarev, o próprio

sobrenome de Nina, Zariêtchnaia, cuja tradução literal seria „além do rio‟, destaca sua

condição de „estrangeira‟ na propriedade de Sórin, onde „só há boêmios‟ (1997, p. 52).

Se Nina é atraída pela realidade dos artistas bem sucedidos, „como uma gaivota é

atraída para o lago‟, Tréplev por sua vez, abomina-a, horrorizado pelo teatro de „morais

pequeninas e fáceis‟; proclama em seu lugar novas formas, uma nova era na arte.

Ambos Nina e Tréplev, no entanto, no decorrer da peça transformam-se através

das experiências que sofrem. Este é precisamente o grande acontecimento de A Gaivota.

Se no sistema dramático tradicional as grandes ações se desenvolvem aos olhos do

espectador, no drama tchekhoviano estas são omitidas, mas afetam significativamente o

comportamento das personagens; não vemos os infortúnios de Nina em Moscou,

embora possamos imaginá-los pela narrativa de Tréplev - mas quando esta entra em

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cena no quarto ato, contemplamos concretamente as consequências das transformações

internas que sofreu.

Para Vladímir Katáiev, Nina e Tréplev passam por descobertas, como se

partissem no início da peça de sensações e elucubrações – „parece-me que‟ - para

chegarem ao fim da obra com a verdade da experiência – „verificou-se que‟ (2002, p.

175).

Nina, no começo de A Gaivota, sonha com a arte vislumbrando a celebridade, o

brilho da fama, não importando qual o preço a ser pago; parece-lhe que a glória tudo

compensa. No quarto ato, porém, após experimentar as provações que ela mesma

imaginou, Nina conclui que o importante para um artista não é o sucesso, mas a

persistência, a constância, „a capacidade de suportar‟ – a visão artística do próprio

Tchékhov.

A transformação sofrida por Nina através da experiência teatral e também dos

desastres pessoais, leva-a a uma reflexão e reavaliação de sua vida anterior. Se a peça de

Tréplev representada sem cenário, à beira do lago e à luz da lua era para Nina „tão sem

graça‟, „difícil de representar‟, „com pouca ação‟, ela se torna, dois anos depois,

lembrança de uma vida „radiante, afetuosa, alegre, pura‟. Em meio à confusão de suas

últimas réplicas, ao fim do quarto ato, onde mistura citações de Turguêniev (1818-

1883), ideias de Trigórin e confissões do passado e do presente, as palavras escritas por

Tréplev são as únicas de que Nina se recorda com clareza. Se antes eram sem sentido,

„só declamação do começo ao fim‟, as experiências sofridas pela jovem atriz dão agora

às palavras do jovem escritor peso e significação, a solidão devastadora da „Alma do

Mundo‟.

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Ao contrário de Nina, a trajetória de Tréplev começa com a recusa à arte

comercial, personalizada por Arkádina e Trigórin e a questão concentra-se em formas

novas:

TRÉPLEV: [...] Quando a cortina sobe e, à luz da noite, entre as três paredes, esses
talentos formidáveis, os sacerdotes da arte sagrada, representam como as pessoas
comem, bebem, amam, andam, vestem seus casacos; quando, das cenas e das frases
mais banais, tentam desencavar uma moral – pequenina, fácil de entender, útil para
fins domésticos; quando, em mil variantes, me apresentam sempre a mesma coisa,
a mesma coisa e a mesma coisa, então eu fujo correndo, como Maupassant fugia da
torre Eiffel, que lhe oprimia o cérebro com sua vulgaridade.
SÓRIN: É impossível viver sem o teatro.
TRÉPLEV: Precisamos de formas novas. Formas novas são indispensáveis e, se
não existirem, então é melhor que não haja nada [...] (TCHÉKHOV, 2004a, p. 13-
14).

Com o passar do tempo, Tréplev estabelece-se no meio profissional literário, mas

sente-se engolido pela regularidade mediana, vulgar e a questão não está mais na forma:

TRÉPLEV: Cada vez mais me convenço de que a questão não consiste em formas
novas e formas velhas, mas sim em que a pessoa escreva sem pensar em formas,
sejam quais forem, que ela escreva porque isso flui livremente de sua alma (Ibid.,
p. 91).

O jovem autor queima todos os seus manuscritos e suicida-se, desacreditado da

arte e também do amor, rivalizado nas duas instâncias por Trigórin.

Escritor profissional e experiente, Trigórin desenvolveu técnicas e métodos para

realizar sua arte. Embora não sofra através da experiência artística transformação radical

como Nina e Tréplev, Tchékhov faz com que o escritor estabelecido, famoso, também

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questione sua própria arte: “Eu nunca agradei a mim mesmo. Não gosto de mim como

escritor” (Ibid., p. 49). A contestação de Trigórin cria dialética na obra e não permite

que nenhuma personagem torne-se „porta-voz‟ do autor. Para A. P. Tchudakhov,

considerado um dos maiores especialistas na poética tchekhoviana, o questionamento de

Trigórin, assim como o de Tréplev, e que representam visões opostas na arte, demonstra

que “uma contradição única era insuficiente para Tchékhov. Ambas tese e antítese são

questionadas mesmo por seus defensores” (1983, p. 193). A exposição de pontos de

vista opostos sem que se chegue a uma síntese é aspecto recorrente na poética dramática

tchekhoviana e sublinha o caráter interrogativo das obras, tantas vezes alvo das críticas

de uma época que privilegiava respostas.

O profissionalismo de Trigórin por vezes confunde-se com indiferença e cegueira.

Para ele, a arte exige sacrifício e está acima da vida; esta é antes, material para a arte,

razão pela qual justifica sua aproximação de Nina:

TRIGÓRIN: [...] Tenho poucas oportunidades de conhecer moças jovens e


interessantes, até já esqueci como são e não consigo imaginar com clareza como
elas se sentem aos dezoito ou dezenove anos; por isso, nos meus contos e nas
minhas novelas, as mocinhas em geral parecem falsas. Eu adoraria poder ficar no
lugar da senhorita, ainda que fosse só por uma hora, para saber como pensa e tudo
o mais (TCHÉKHOV, 2004a, p. 45).

Os universos distintos de Nina e Trigórin tornam-se ainda mais distantes pela

suposição com que modelam cada um a realidade do outro: Nina deseja alcançar a vida

de celebridade de Trigórin, que supõe ser gloriosa. Para o escritor, no entanto, ela é

inverossímil, desagradável:

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TRIGÓRIN: [...] „O que o senhor anda escrevendo? Com que nos brindará a
seguir?‟ Sempre a mesma coisa, sempre a mesma coisa, e fico com a impressão de
que essa atenção de meus conhecidos, os elogios, a admiração, tudo isso é uma
mentira, tenho a sensação de que estão me enganando, como fazem com uma
pessoa doente [...] (Ibid., p. 47- 48).

O escritor famoso preza a natureza e as coisas simples, para o espanto de Nina,

que se choca com a atitude do artista:

NINA: [...] E como também é estranho que um escritor célebre, adorado pelo
público, sobre quem todos os jornais escrevem, cujo retrato é vendido em toda
parte, um escritor que já foi traduzido em outras línguas, passe o dia todo pescando
no lago e fique contente por ter apanhado duas carpas [...] (Ibid., p. 43).

Desta maneira, a comunicação entre Nina e Trigórin é frágil, como se o contato

entre seus mundos fosse brevemente possibilitado pelo encontro de seus desejos

(paradoxalmente opostos): Nina modela o mundo de Trigórin pela beleza da fama e do

estrelato, Trigórin interessa-se pela pureza, inocência e ingenuidade de Nina. O grande

choque ocorre no encontro entre a realidade „verdadeira‟ de cada personagem e a

realidade „projetada‟ pelo outro.

Se para Trigórin arte e vida se misturam, a segunda servindo à primeira, para

Arkádina ambas também são indissociáveis, ainda que a devoção ao trabalho seja a fuga

de suas responsabilidades emocionais; Arkádina é a grande atriz, que age na vida como

age no palco – se o filho ou o irmão precisam de dinheiro, ela chora, afirmando não ter

nada; as primeiras réplicas que troca com Tréplev não são de um diálogo natural entre

mãe e filho, mas emprestadas de Gertrudes e Hamlet; por fim, quando no terceiro ato

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tem ciúmes de Trigórin ajoelha-se aos seus pés, como provavelmente o faria em A

Dama das Camélias ou em outra personagem-título tuberculosa.

O primeiro choque entre Tréplev e Arkádina já se evidencia no começo de A

Gaivota com o fracasso da peça do jovem autor, cujas novas formas apregoadas são

ironizadas pela mãe:

ARKÁDINA: Sinto cheiro de enxofre. Será mesmo necessário?


TRÉPLEV: É, sim.
ARKÁDINA (ri): Ah, é um efeito especial.
TRÉPLEV: Mãe!
NINA: Ele se entendia, sem ninguém...
POLINA (para Dorn): O senhor tirou o chapéu. Cubra-se, ou vai se resfriar.
ARKÁDINA: O médico tirou o chapéu porque está diante do diabo, o pai da
matéria eterna.
TRÉPLEV (com raiva, erguendo a voz): A peça acabou! Chega! Baixem a cortina!
(Ibid., p. 22-23).

O desentendimento entre Arkádina e Tréplev dá-se pela oposição e inflexibilidade

de seus pontos de vista, de tendências artísticas contrárias e de gerações distintas. As

reações exageradas, tanto de Tréplev como de Arkádina, também demonstram a

fragilidade dos processos comunicativos entre ambos. Arkádina transfere dos palcos

onde representa para a plateia do teatro do filho seu overacting, enxergando a „nova era

na arte‟ como má índole e afronta pessoal. Tréplev, por sua vez, interrompe

abruptamente a representação, pois pressentia que a mãe estava contra ele, porque

“nesse palco minúsculo, Zariêtchnaia vai brilhar, e não ela” (Ibid., p. 12). Neste sentido,

podemos notar o contraste entre os ciúmes de Tréplev em relação a Trigórin, escritor

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bem sucedido e talentoso e os ciúmes da atriz consagrada para com a aspirante, que

apenas sonha com a carreira artística.

Tréplev já no início da peça nos dá em detalhes o retrato de sua mãe, „um caso

psicológico muito curioso‟, que pode cuidar dos doentes „como um anjo‟, mas não pode

ouvir alguém elogiar Duse2 em sua frente. Arkádina ama o teatro, é uma diva, suscetível

a humores extremos, vaidosa e avarenta.

Embora ambas as vidas estejam profundamente ligadas ao amor e à arte, mãe e

filho são incapazes de compreender e aceitar a verdade de cada um e os constantes

escândalos entre ambos, tornam-se “abusos mútuos” (ZUBAREV, 1997, p. 46):

TRÉPLEV: [...] Vocês são apenas banais, tomaram a arte em seu poder e só julgam
legítimo e autêntico aquilo que vocês mesmos fazem, e quanto ao resto, tratam de
perseguir e sufocar! Não reconheço o valor de vocês! Não reconheço nem a ele
nem a você!
ARKÁDINA: Seu decadente!
TRÉPLEV: Volte para o seu adorado teatro e represente as suas pecinhas
medíocres e lamentáveis!
ARKÁDINA: Nunca, em toda minha vida, representei em peças desse tipo. Deixe-
me em paz! Você não é capaz nem de escrever um reles vaudeville. Seu
burguesinho de Kiev! Parasita!
TRÉPLEV: Sovina!
ARKÁDINA: Seu esmolambado! (TCHÉKHOV, 2004a, p. 63-64).

Tréplev indigna-se com o sucesso das „velhas formas‟ do teatro da mãe e do

escritor Trigórin. Arkádina, por sua vez, não reconhece os esforços do filho em tornar-

se um escritor, muito menos, seu desejo por „novas formas‟. A relação de ambos,

portanto, existe no embate, na demonstração de forças contrárias. Os poucos momentos

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onde isto não ocorre são aqueles em que Tréplev se lembra da infância, onde o simples

contato permitia o entendimento entre ambos.

A fuga de Arkádina de suas responsabilidades exemplifica-se principalmente em

sua reação à tentativa de suicídio de Tréplev, quando decide voltar às pressas para

Moscou (no terceiro ato). Ao final da peça, quando Tréplev realmente suicida-se,

Tchékhov não termina a obra com ponto final, mas literalmente em reticências,

deixando à imaginação do público as reações de Arkádina e de todas as outras

personagens. Como assinala Vladímir Nabókov, o que vemos em cena não é a reação de

Arkádina ao que aconteceu de fato, já que Dorn habilmente o disfarça, mas a imitação

da verdadeira reação, evocando a ocasião anterior, dois anos antes (1981, p. 295).

As últimas palavras de Tréplev, entretanto, mostram sua preocupação com a mãe:

“Não vai ser nada bom se alguém topar com ela [Nina] no jardim e depois contar para

mamãe. Isso pode deixar mamãe transtornada...” (TCHÉKHOV, 2004a, p. 97).

4. Considerações Finais

Os processos comunicativos entre as personagens das peças de Tchékhov são

conhecidos por seu caráter não retilíneo, onde as conversas giram em círculo, sem

encontrar um objetivo, cheias de rodeios.

Tchékhov desenvolve a dramaturgia de A Gaivota como se cada personagem

fosse um instrumento dentro da orquestra, introduzindo, desenvolvendo ou repetindo

seu tema ao longo da obra. Tal procedimento acentua a singularidade de cada

personagem, evidenciando o isolamento de seus mundos e a dificuldade em se

comunicarem. Ao mesmo tempo, este procedimento mostra-se como consequência das

inovações propostas pelo autor em seu sistema dramático – uma vez que o conflito

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concentra-se muito mais no interior do que no exterior, o diálogo deixa de expressar

embates ou vontades contrárias, deixa de gerar ação. Ganha relevo o subtexto, aquilo

que está camuflado pelas palavras e os diálogos tendem muitas vezes à superposição de

monólogos.

Se as vidas de Tréplev e Nina são profundamente alteradas por suas experiências

pessoais e artísticas, as outras personagens, ao contrário, permanecem mergulhadas nas

mesmas aflições, desejos e preocupações. O intervalo de dois anos entre o terceiro e

quarto ato e a repetição dos temas ao longo de toda a obra realçam esta sensação de

„continuidade‟, ou mesmo o agravamento deste estado, sublinhando a passagem

inexorável do tempo.

Sórin, por exemplo, que está mais doente, resume sua condição de l’homme qui a

voulu, manifesta desde o início da peça:

[...] Nos bons tempos, quando era moço, eu queria ser escritor, e não fui; queria
falar bonito, e falava pessimamente [...]. Queria casar, e não casei; queria muito
viver na cidade, e fui acabar minha vida no campo, e assim por diante
(TCHÉKHOV, 2004a, p. 80).

Arkádina continua sendo a grande diva da província: “Os estudantes me

aclamaram... Três corbelhas, duas coroas e ainda por cima isto aqui... (Tira um broche

do peito e o joga sobre a mesa)” (Ibid., p. 88).

Macha e Miedviediênko, aparentes exceções, também permanecem imersos nas

mesmas aflições que demonstram na primeira cena da peça, como em um beco sem

saída. Apesar de terem se casado, suas almas ainda permanecem „sem pontos de

contato‟, não há escuta, como se fossem surdos um ao outro:

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MACHA: Você é um estorvo. No início, só queria saber de filosofar e agora só fala
do bebê e de ir para casa, do bebê e de ir para casa... não se ouve outra coisa da sua
boca.
MIEDVIEDIÊNKO: Vamos para casa, Macha!
MACHA: Vá você sozinho.
MIEDVIEDIÊNKO: O seu pai não vai me emprestar os cavalos.
MACHA: Vai, sim. É só você pedir que ele empresta.
MIEDVIEDIÊNKO: Por favor, eu imploro. Então, amanhã você virá para casa?
MACHA (aspira rapé): Está bem, amanhã. Mas que coisa enjoada... (Ibid., p. 76).

A estrutura circular de A Gaivota nos deixa a impressão de que a vida continua

seu curso, apesar de todas as barreiras; a passagem do Tempo, assim como nas demais

peças do metatexto dramático tchekhoviano, torna-se protagonista da obra.

Se o suicídio de Tréplev parece negar tal afirmação ao provocar justamente no fim

da obra uma grande suspensão, no lugar do ponto final dado pelo sistema dramático

tradicional, a própria fatalidade dos destinos sugere às personagens que nada resta a

fazer e o único caminho é prosseguir.

ABSTRACT

The present article seeks to analyse The Seagull (1896), the first major play of A.

Chekhov (1860-1904), through an approach to the communication paradoxes between

the characters. The study intends to clarify some of the innovations established by the

author that break with the traditional dramatic system, altering mainly the concepts of

action, dialogue and conflict. The impossibilities of understanding between the

characters shall be analysed within the two main themes in the play – love and art.

Keywords: A. Chekhov, Russian Theatre, Modern Drama, Russian Literature.

Nº 10 | Ano 9 | 2010 | Artigos (8) p. 17


REFERÊNCIAS

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Nº 10 | Ano 9 | 2010 | Artigos (8) p. 18


1
Cabe lembrar do contexto da estreia da peça em São Petersburgo. A maior parte da plateia era formada
por admiradores da atriz cômica Levkêieva, que seria homenageada por uma comédia logo após a obra de
Tchékhov. O público, como ressalta Rubens Figueiredo no posfácio de sua tradução de A Gaivota,
“ansioso para rir de suas personagens burlescas” (2004, p. 104), provavelmente esperava algo similar da
comédia de Tchékhov.
2
Eleonora Duse (1858-1924), atriz italiana.

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