TCHÉKHOV
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RESUMO: O presente artigo visa traçar uma análise de A Gaivota (1896), primeira
propostas pelo autor russo que rompem com o sistema dramático tradicional, alterando
escreveu em seu caderno, onde anotava temas, pensamentos e ideias para trabalhos
futuros, que “o público realmente gosta na arte daquilo que é banal e há muito familiar,
escrever para teatro, talvez não o tenha surpreendido, uma vez que Tchékhov tinha
farsas, aos quais estavam acostumados. Também o ritmo proposto por Tchékhov – “[...]
época e que „costurariam‟ toda a obra através de uma linha de ação ininterrupta,
obra “segundo cânones já seus antigos” (LOTMAN, 1978, p. 61), por outro, o autor não
dava a este “a informação de que ele tinha necessidade e para a percepção da qual
espectadores através do mundo fictício da peça, não foi capaz de substituir a unidade de
ação com que estavam acostumados. Por fim, a classificação dada por Tchékhov à obra
Gaivota.
Habituados às peças curtas cômicas que o próprio autor escrevia com grande
sucesso, além dos contos, muitos deles publicados em revistas humorísticas e pelos
Cerejeiras como comédias envolvem certa polêmica, principalmente por suas críticas às
que o autor russo ao denominar as referidas peças como comédias, queria reforçar o
aspecto prosaico das obras, onde eram retratadas pessoas comuns, em situações
tragédia, sugeria que a morte ou a supressão da personagem central não impediria a vida
de seguir seu curso normal (1975, p. 97). As peças de Tchékhov, inclusive, poderiam
acabar no terceiro ato, mas o autor as prolonga, deixando que o fluxo da vida se
sobreponha aos acontecimentos do enredo, fazendo com que as peças se abram para o
símbolo até os dias de hoje é a gaivota, foi o de perceber a relação direta e estreita entre
era algo novo, contagiante. Se até então o palco era tomado por grandes acontecimentos,
embora sufocados por uma realidade apática, eram impulsionados por um apaixonado
que estava „além‟ das palavras, contribuiu decisivamente não só para o sucesso da obra,
Neste, o público não era levado a julgar as personagens, mas antes, “convidado a
campo elétrico entre palco e plateia, espaço „entre‟ altamente fértil, onde espectadores,
2. Fatalidade e isolamento
Se, na tragédia clássica, por exemplo, o destino dos heróis era pré-determinado
pelos deuses, com quem a possibilidade de luta era inexistente, em A Gaivota o destino
das personagens também é determinado por forças que elas são incapazes de superar
(KATAEV, 2002). Mas a fatalidade dos destinos das personagens de Tchékhov revela-
exatamente da mesma maneira que elas, em outras palavras, que há apenas uma
realidade” (1992, p. 29). Desta forma, os problemas de comunicação causados pela falta
de experiências similares que isola cada personagem em seu mundo individual são
agravados pela premissa de que o outro „modela o mundo do mesmo modo que eu‟; tal
afastarem-se definitivamente.
mergulhada em seu universo particular e que levam a uma cadeia geral de infortúnios.
maiores especialistas na poética tchekhoviana, ressalta que não há intenções vis nas
atitudes das personagens, mas apenas distância entre seus propósitos e perspectivas:
Tchékhov, estas se tornam temas, que surgem e reaparecem como ondas, construindo
uma dramaturgia que não está centrada em acontecimentos, mas nos próprios
deixa claro desde os primeiros momentos de A Gaivota a ausência de um „nó‟ que será
formado e desatado. Contudo, como aponta Vladímir Nabókov, Tchékhov “assim como
Ibsen, estava sempre ansioso para se livrar do trabalho de explicação o mais rápido
plateia reunida para assistir A Gaivota depara-se de imediato com outro tablado, cortina
também revela as relações e tensões entre eles. Além disso, a situação típica que se
personagens da peça.
distante das questões artísticas, que povoam a mente e o coração de Tréplev, por quem
Macha é apaixonada. Tréplev, por sua vez, ama Nina Zariêtchnaia, com quem aspira
não só ao amor, mas também à „verdadeira criação artística‟. Nina, encantada pelo
Arkádina.
poderia facilmente ser material para uma das peças cômicas em um ato de Tchékhov,
Tréplev ao final da obra e os acontecimentos com Nina entre o terceiro e quarto ato –
sua vida difícil como atriz em Moscou, o romance com Trigórin, os ciúmes, o
madrasta e pelo pai. Como nota a pesquisadora russa Vera Zubarev, o próprio
sobrenome de Nina, Zariêtchnaia, cuja tradução literal seria „além do rio‟, destaca sua
Se Nina é atraída pela realidade dos artistas bem sucedidos, „como uma gaivota é
atraída para o lago‟, Tréplev por sua vez, abomina-a, horrorizado pelo teatro de „morais
pequeninas e fáceis‟; proclama em seu lugar novas formas, uma nova era na arte.
embora possamos imaginá-los pela narrativa de Tréplev - mas quando esta entra em
175).
brilho da fama, não importando qual o preço a ser pago; parece-lhe que a glória tudo
compensa. No quarto ato, porém, após experimentar as provações que ela mesma
imaginou, Nina conclui que o importante para um artista não é o sucesso, mas a
Tchékhov.
desastres pessoais, leva-a a uma reflexão e reavaliação de sua vida anterior. Se a peça de
Tréplev representada sem cenário, à beira do lago e à luz da lua era para Nina „tão sem
graça‟, „difícil de representar‟, „com pouca ação‟, ela se torna, dois anos depois,
lembrança de uma vida „radiante, afetuosa, alegre, pura‟. Em meio à confusão de suas
últimas réplicas, ao fim do quarto ato, onde mistura citações de Turguêniev (1818-
Tréplev são as únicas de que Nina se recorda com clareza. Se antes eram sem sentido,
„só declamação do começo ao fim‟, as experiências sofridas pela jovem atriz dão agora
Mundo‟.
novas:
TRÉPLEV: [...] Quando a cortina sobe e, à luz da noite, entre as três paredes, esses
talentos formidáveis, os sacerdotes da arte sagrada, representam como as pessoas
comem, bebem, amam, andam, vestem seus casacos; quando, das cenas e das frases
mais banais, tentam desencavar uma moral – pequenina, fácil de entender, útil para
fins domésticos; quando, em mil variantes, me apresentam sempre a mesma coisa,
a mesma coisa e a mesma coisa, então eu fujo correndo, como Maupassant fugia da
torre Eiffel, que lhe oprimia o cérebro com sua vulgaridade.
SÓRIN: É impossível viver sem o teatro.
TRÉPLEV: Precisamos de formas novas. Formas novas são indispensáveis e, se
não existirem, então é melhor que não haja nada [...] (TCHÉKHOV, 2004a, p. 13-
14).
sente-se engolido pela regularidade mediana, vulgar e a questão não está mais na forma:
TRÉPLEV: Cada vez mais me convenço de que a questão não consiste em formas
novas e formas velhas, mas sim em que a pessoa escreva sem pensar em formas,
sejam quais forem, que ela escreva porque isso flui livremente de sua alma (Ibid.,
p. 91).
realizar sua arte. Embora não sofra através da experiência artística transformação radical
como Nina e Tréplev, Tchékhov faz com que o escritor estabelecido, famoso, também
escritor” (Ibid., p. 49). A contestação de Trigórin cria dialética na obra e não permite
Trigórin, assim como o de Tréplev, e que representam visões opostas na arte, demonstra
que “uma contradição única era insuficiente para Tchékhov. Ambas tese e antítese são
vista opostos sem que se chegue a uma síntese é aspecto recorrente na poética dramática
tchekhoviana e sublinha o caráter interrogativo das obras, tantas vezes alvo das críticas
Para ele, a arte exige sacrifício e está acima da vida; esta é antes, material para a arte,
suposição com que modelam cada um a realidade do outro: Nina deseja alcançar a vida
de celebridade de Trigórin, que supõe ser gloriosa. Para o escritor, no entanto, ela é
inverossímil, desagradável:
NINA: [...] E como também é estranho que um escritor célebre, adorado pelo
público, sobre quem todos os jornais escrevem, cujo retrato é vendido em toda
parte, um escritor que já foi traduzido em outras línguas, passe o dia todo pescando
no lago e fique contente por ter apanhado duas carpas [...] (Ibid., p. 43).
entre seus mundos fosse brevemente possibilitado pelo encontro de seus desejos
Arkádina ambas também são indissociáveis, ainda que a devoção ao trabalho seja a fuga
de suas responsabilidades emocionais; Arkádina é a grande atriz, que age na vida como
age no palco – se o filho ou o irmão precisam de dinheiro, ela chora, afirmando não ter
nada; as primeiras réplicas que troca com Tréplev não são de um diálogo natural entre
mãe e filho, mas emprestadas de Gertrudes e Hamlet; por fim, quando no terceiro ato
Gaivota com o fracasso da peça do jovem autor, cujas novas formas apregoadas são
fragilidade dos processos comunicativos entre ambos. Arkádina transfere dos palcos
onde representa para a plateia do teatro do filho seu overacting, enxergando a „nova era
na arte‟ como má índole e afronta pessoal. Tréplev, por sua vez, interrompe
abruptamente a representação, pois pressentia que a mãe estava contra ele, porque
“nesse palco minúsculo, Zariêtchnaia vai brilhar, e não ela” (Ibid., p. 12). Neste sentido,
Tréplev já no início da peça nos dá em detalhes o retrato de sua mãe, „um caso
psicológico muito curioso‟, que pode cuidar dos doentes „como um anjo‟, mas não pode
ouvir alguém elogiar Duse2 em sua frente. Arkádina ama o teatro, é uma diva, suscetível
TRÉPLEV: [...] Vocês são apenas banais, tomaram a arte em seu poder e só julgam
legítimo e autêntico aquilo que vocês mesmos fazem, e quanto ao resto, tratam de
perseguir e sufocar! Não reconheço o valor de vocês! Não reconheço nem a ele
nem a você!
ARKÁDINA: Seu decadente!
TRÉPLEV: Volte para o seu adorado teatro e represente as suas pecinhas
medíocres e lamentáveis!
ARKÁDINA: Nunca, em toda minha vida, representei em peças desse tipo. Deixe-
me em paz! Você não é capaz nem de escrever um reles vaudeville. Seu
burguesinho de Kiev! Parasita!
TRÉPLEV: Sovina!
ARKÁDINA: Seu esmolambado! (TCHÉKHOV, 2004a, p. 63-64).
escritor Trigórin. Arkádina, por sua vez, não reconhece os esforços do filho em tornar-
se um escritor, muito menos, seu desejo por „novas formas‟. A relação de ambos,
sua reação à tentativa de suicídio de Tréplev, quando decide voltar às pressas para
Moscou (no terceiro ato). Ao final da peça, quando Tréplev realmente suicida-se,
Tchékhov não termina a obra com ponto final, mas literalmente em reticências,
personagens. Como assinala Vladímir Nabókov, o que vemos em cena não é a reação de
Arkádina ao que aconteceu de fato, já que Dorn habilmente o disfarça, mas a imitação
da verdadeira reação, evocando a ocasião anterior, dois anos antes (1981, p. 295).
“Não vai ser nada bom se alguém topar com ela [Nina] no jardim e depois contar para
4. Considerações Finais
conhecidos por seu caráter não retilíneo, onde as conversas giram em círculo, sem
inovações propostas pelo autor em seu sistema dramático – uma vez que o conflito
embates ou vontades contrárias, deixa de gerar ação. Ganha relevo o subtexto, aquilo
que está camuflado pelas palavras e os diálogos tendem muitas vezes à superposição de
monólogos.
quarto ato e a repetição dos temas ao longo de toda a obra realçam esta sensação de
inexorável do tempo.
Sórin, por exemplo, que está mais doente, resume sua condição de l’homme qui a
[...] Nos bons tempos, quando era moço, eu queria ser escritor, e não fui; queria
falar bonito, e falava pessimamente [...]. Queria casar, e não casei; queria muito
viver na cidade, e fui acabar minha vida no campo, e assim por diante
(TCHÉKHOV, 2004a, p. 80).
aclamaram... Três corbelhas, duas coroas e ainda por cima isto aqui... (Tira um broche
mesmas aflições que demonstram na primeira cena da peça, como em um beco sem
saída. Apesar de terem se casado, suas almas ainda permanecem „sem pontos de
seu curso, apesar de todas as barreiras; a passagem do Tempo, assim como nas demais
da obra uma grande suspensão, no lugar do ponto final dado pelo sistema dramático
tradicional, a própria fatalidade dos destinos sugere às personagens que nada resta a
ABSTRACT
The present article seeks to analyse The Seagull (1896), the first major play of A.
the characters. The study intends to clarify some of the innovations established by the
author that break with the traditional dramatic system, altering mainly the concepts of
characters shall be analysed within the two main themes in the play – love and art.
ANGELIDES, Sophia. A. P. Tchékhov: Cartas para uma Poética. São Paulo: Edusp,
1995.
LOTMAN, Yuri. A Estrutura do texto artístico. Trad. Maria do Carmo Vieira Raposo e
1981.
RAYFIELD, Donald. Chekhov: the evolution of his art. Plymouth, Elek Books, 1975.
TCHEKHOV, A. A Gaivota. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Cosac & Naify,
2004.