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REFORMADOS PELA

PALAVRA

APRESENTAÇÃO

A Secretaria de Educação Cristã coloca à disposição das igrejas uma


revista que se fazia urgente e necessária. Reformados pela Palavra deseja ser uma
“revista de cabeceira” para todos nós presbiterianos independentes. É um olhar
sobre o que de melhor há em nossa tradição reformada. Leva-nos a questionar
quem somos e para onde vamos. Chama-nos a assumir uma identidade que
tem raízes profundamente históricas. Coloca-nos lado a lado com homens de
Deus que “gastaram” suas vidas com o propósito de agradar a Deus.
Esta revista traz uma contribuição importante para o estudo do tema a
que se propõe: “Reformados pela Palavra”.
Ressaltando a soberania de Deus e enriquecendo com detalhes da his-
tória da Reforma, mostra como Ele, agindo por intermédio de pessoas, revela-se
ao mundo como o “Todo Poderoso”.
Brinda-nos com informações sobre a vida dos antigos reformadores
Zuínglio, Farel, Calvino, entre outros, possibilitando uma forte identificação com
o cristão de hoje.
Favorece a orientação para o diálogo sobre temas até certo ponto polê-
micos, resgatando uma parte da história do desenvolvimento da igreja no Brasil,
trazendo à tona temas como: “O testemunho na política”, “Pentecostalismo” e
“A doutrina da eleição” (predestinação).
Se há uma coisa que os cristãos presbiterianos independentes não podem
dispensar em sua prática de vida, é a necessidade de renovação constante. Esse
tem sido o lema sustentado desde os reformadores: Igreja Reformada sempre
se Reformando. Uma bandeira a ser levada e sustentada como indicação de
uma identidade e de uma missão.

Rev. Luiz Alexandre Solano Rossi


Coordenador das Revistas “A Semente”
Rev. José Carlos Volpato e “O Luzeiro” da Secretaria de Educação
Secretário de Educação Cristã Cristã

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 1


Índice

Apresentação 1
Introdução 3

Lição 1 . ULRICO ZUÍNGLIO, REFORMADOR PIONEIRO 4


Lição 2 . GUILHERME FAREL, EVANGELISTA INTRÉPIDO 8
Lição 3 . JOÃO CALVINO LUTA COM DEUS 13
Lição 4 . JOÃO CALVINO, TESTEMUNHA DE JESUS CRISTO 17
Lição 5 . A ORDEM NA IGREJA 22
Lição 6 . GOVERNO E PRINCÍPIOS PRESBITERIANOS 26
Lição 7 . A DISCIPLINA NA IGREJA 30
Lição 8 . A BÍBLIA E O TESTEMUNHO DO ESPÍRITO SANTO 35
Lição 9 . A SOBERANIA DE DEUS 39
Lição 10 . ELEITOS EM NOSSO SENHOR JESUS CRISTO 43
Lição 11 . A LITURGIA REFORMADA 47
Lição 12 . UM NOVO ESTILO DE VIDA 52
Lição 13 . A UNIÃO COM CRISTO 56
Lição 14 . O ESPÍRITO SANTO 60
Lição 15 . TESTEMUNHANDO NA POLÍTICA 65
Lição 16 . EM BUSCA DA UNIDADE 71
Lição 17 . SEMPRE SE REFORMANDO 76
Bibliografia 80

Publicada com a devida autorização e


com todos os direitos reservados pela
Associação Evangélica Literária Pendão Real
Rua Rego Freitas, 530 Loja O - Consolação
01221-010 - São Paulo - SP

1a edição
julho/2002

.
2 REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS
Introdução

Há muito que sentimos a necessidade de estender às igrejas,


de modo mais amplo e para reflexão, o ensino dos reformadores
e da nossa tradição reformada.
Com as lições aqui apresentadas para estudo a cada domingo,
poderemos alcançar, pelo menos em parte, esse objetivo.
Os diversos textos desta revista que preparamos com muito cari-
nho têm a ver com a história da tradição reformada, mas buscam,
principalmente, os desafios que ela nos apresenta. Nesse ponto,
procuramos, algumas vezes, ir aos detalhes.
Também julgamos importante retomar temas e doutrinas que
são parte fundamental da nossa compreensão da fé e da vida
cristã. Compreendê-los em um novo tempo, pensando nas novas
gerações, pode ser algo muito válido.
Pensamos também nos professores. Isso nos fez incluir, no final,
uma bibliografia que poderá ser útil e valiosa para aprofundamento
por parte daqueles que se interessarem.
Que o trabalho aqui apresentado possa servir para a glória do
Senhor Jesus no tempo e no mundo em que vivemos!

Rev. Eduardo Galasso Faria, professor do Seminário Teológico


de São Paulo da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 3


ULRICO ZUÍNGLIO,
REFORMADOR
PIONEIRO
Lição 1

U lrico Zuínglio (1484-1531) foi, an-


tes de João Calvino e ao lado de
Martinho Lutero, o iniciador da reforma
podiam e deviam estar unidas, ao contrário
de Lutero que as tratava separadamente
como dois reinos quase separados, um de
religiosa que ocorreu na Suíça de fala Deus e outro dos seres humanos. Enca-
alemã. Sua obra está na base da tradição minhado para o sacerdócio, estudou em
reformada/presbiteriana, distinta da lutera- Berna, Viena e na Universidade de Basiléia.
na e também da anabatista e com a qual se Aos quatorze anos, em Berna, começou a
identificaram também outros reformadores receber a influência do movimento huma-
como Martinho Bucer, em Estrasburgo, nista que, mostrando-se insatisfeito com
Guilherme Farel e João Calvino em Gene- o que ocorria na Igreja, ajudou a abrir o
bra, João Knox, na Escócia. Reformador caminho para a Reforma.
intrépido, descobriu nas Escrituras a Palavra
do Deus vivo e pessoal que o cativou e im- O Humanismo
pulsionou para buscar a transformação da
igreja e da sociedade, segundo os moldes Os humanistas tinham um ideal de
do evangelho. Ao lado de Lutero, iniciou o sociedade que se espelhava na história an-
movimento protestante na Europa. tiga dos gregos e romanos - a antiguidade
A Suíça nessa época era formada por 13 clássica. Dentro do cristianismo, eram in-
cantões que gozavam de grande liberdade telectuais insatisfeitos com a igreja, críticos
e eram governados como repúblicas inde- dos teólogos escolásticos e desejosos de ir
pendentes. Seu espírito livre não permitia a ao encontro do verdadeiro evangelho de
submissão às imposições da Igreja de Roma Jesus Cristo nas “fontes”, ou seja, nos textos
há muito tempo e isso favoreceu o movi- originais da Bíblia. Falavam sobre a auto-
mento da Reforma. Zuínglio nasceu na vila ridade única das Escrituras, da justificação
de Wildhaus, na região alemã da Confede- pela graça e do perdão de Deus, que vem
ração Suíça, nos Alpes. Era o terceiro filho por meio de Jesus Cristo e não pela compra
de uma família que estava acostumada a de indulgências. Erasmo de Roterdã foi o
desempenhar funções políticas na cidade grande inspirador dos humanistas e editou
e seu pai era magistrado. Talvez por isso, o Novo Testamento grego, influenciando o
em sua atuação como reformador, relacio- movimento da Reforma. Zuínglio conviveu
nava com facilidade a fé aos problemas da com ele e a sua maneira de compreender
comunidade local. a fé cristã traz as marcas desse convívio.
Para ele, as áreas do estado e da igreja Como Erasmo, ele queria a reforma do

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cristianismo e, para isso, começou a estudar idéias entre os paroquianos que viviam
os pais da igreja e a Bíblia, tornando-se desse comércio levou-o a deixar Glarus,
um crítico das superstições e da teologia depois de dez anos de trabalho ali.
escolástica então predominante. Em 1516,encontrava-se em Einsiedeln,
Zuínglio foi influenciado também pe- um mosteiro que servia como santuário
los escritos de Lutero e o admirava, mas de peregrinação. Foi uma providencial in-
gostava de se mostrar independente com terrupção para a sua formação teológica.
relação a ele e, de modo especial, com Com Calvino, aconteceria praticamente a
relação ao seu pensamento sobre a ceia do mesma coisa em Estrasburgo, em 1539.
Senhor: “Não aprendi minha doutrina com Com o tempo que lhe sobrava, Zuínglio
Lutero, mas na própria Palavra de Deus”, se tornou um estudioso dedicado dos clás-
dizia. A influência de Agostinho sobre ele sicos, aproveitando também para estudar
foi muito grande, como aconteceria tam- a edição grega do Novo Testamento de
bém com Calvino, e isso fez com que, ao Erasmo, o que lhe possibilitou aumentar
compreender a profundidade do pecado o seu amor pelas Escrituras. Foi quando
que corrompe o ser humano, ele acabas- copiou do grego, fazendo anotações, as
se por abandonar parte da influência das epístolas de Paulo, que memorizou, e foi
idéias de Erasmo. Chegou a dizer: “Diri- também quando começou a perceber me-
gido pela Palavra e pelo Espírito de Deus, lhor como a igreja se desviara dos ensinos
vi a necessidade de deixar de lado todos do evangelho.
esses (ensinamentos humanos) e aprender
a doutrina de Deus diretamente de sua
própria Palavra.” Em Zurique

Em Glarus Em 1518, por sua fama de bom prega-


dor, foi chamado para a famosa catedral
Quando foi ordenado sacerdote, em de Zurique, onde passou a ser chamado de
1506, aos vinte e dois anos, foi designado “sacerdote do povo”. Em 1º de janeiro de
para a paróquia de Glarus. Como capelão, 1519, abandonando a forma tradicional
pregando e aconselhando, acompanhou da missa, iniciou suas originais pregações
seus paroquianos na condição de solda- expositivas, começando pelo evangelho de
dos mercenários, em lutas na Itália. Logo Mateus. A presença dos paroquianos au-
notou quão prejudicial e desumana era a mentava a cada dia, para ouvir a Palavra
situação de seus compatriotas, lutando e de Deus.
arriscando a vida por dinheiro, a serviço Nesse tempo, a cidade foi atingida por
de outros países. Agindo como profeta, uma epidemia que matou milhares, inclu-
denunciou esse comércio como um pecado sive um seu irmão. Sua dor foi enorme e
que devia ser extirpado do meio do povo: ele passou, então, por uma intensa expe-
“O que aconteceu à Confederação (suíça) riência religiosa. Sentiu a morte de perto
para que seus filhos e filhas devessem ser e a dependência de Deus, escrevendo:
vendidos assim? Desgraça... pecado...! Ó “Ajuda-me, Senhor, força e rocha minha...
Deus, concede-nos a paz!” Ergue teu braço... que venceu a morte, e
O desconforto provocado por suas livrou-me.”

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Contra a imposição eclesiástica das ataque frontal à Igreja com o seus ensinos
práticas de jejum na quaresma, ele de- sobre a penitência, o celibato clerical - ele
fendeu, de maneira ousada em 1522, a mesmo se casou -, o purgatório, o caráter
idéia de que, para os cristãos, a única coisa sacrificial da missa. Defendeu suas idéias
obrigatória era o conhecimento da Bíblia, e as expôs em 67 Artigos (a primeira Con-
o que provocou grande atrito com o bispo. fissão de Fé Reformada) que destacavam
Seguiram-se, então, as famosas disputas a autoridade exclusiva das Escrituras como
de Zurique em que o povo comparecia e princípio fundamental.
Zuínglio enfrentava os clérigos que, pela Negou a missa como ato sacrificial, a
influência de Roma, se opunham às suas salvação pelas obras, a intercessão dos
idéias. santos, o purgatório e afirmou a salvação
Mesmo assim, o Conselho dirigente da pela fé e Cristo como único cabeça da igre-
cidade praticamente endossou e defendeu ja. Em 1525, o conselho da cidade aboliu a
suas posições contra o bispo. Com esse missa e, em seu lugar, passou a existir um
apoio, ele iniciou um programa de educa- culto simples, com destaque para o sermão.
ção popular da cidade, algo revolucionário Zurique tornou-se uma cidade reformada.
para o seu tempo. Para os pastores e estu- Com relação ao culto, Zuínglio pensava
dantes de teologia, instituiu o que seria o que só devia ser autorizado aquilo que es-
germe de um seminário - a Profecia - uma tivesse explícito nas Escrituras e, nesse sen-
hora diária reservada ao estudo de exegese tido, foi mais radical que Lutero. Eliminou
e interpretação da Bíblia. as imagens e, embora fosse exímio músico,
desautorizou o uso do órgão na igreja. Por
A descoberta da Bíblia quê? Para que somente a Palavra fosse
pronunciada e plenamente ouvida. Para
A descoberta da Bíblia pode ser conside- a organização e governo da nova igreja,
rada o eixo central da reforma zuingliana. criou o Sínodo, cabendo a Calvino, mais
Com ela, Zuínglio deixou de ser um simples tarde, o organizar o Consistório (Conselho).
humanista para falar do seu encontro com Preocupou-se com alterações de alcan-
Deus. Passou a se devotar inteiramente às ce social para a cidade, como a destinação
Escrituras, chegando ao ponto em que, de rendas da igreja para o atendimento aos
“guiado pela Palavra e pelo Espírito de pobres. Voltou-se para os marginalizados
Deus, vi a necessidade de colocar de lado e condenou o seu abandono dizendo, ao
todas essas coisas e aprender da doutrina combater as falsas imagens, que havia
de Deus diretamente de sua própria Pala- muitas imagens verdadeiras de Deus no
vra. Então comecei a pedir luz a Deus e as mundo que definhavam: “Pelo amor da
Escrituras tornaram-se muito mais claras glória de Deus, alguém deveria vestir as
para mim.” imagens viventes de Deus, os cristãos po-
Outros importantes passos ocorreram bres, e não ídolos de madeira e pedra.”
em sua vida. Em 1520, aos 36 anos, Com isso, Zuínglio se mostrou um crítico
dispensou a pensão papal que recebia e, das desigualdades e injustiças, clamando
em 1523, sua atuação em Zurique era um pela justiça divina.

6. REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


Igreja e Estado sempre buscou uma estreita cooperação
com o governo civil em uma espécie de
Zuínglio concordava em muitos pontos ação conjunta entre estado e igreja, para
com os ensinos de Lutero, mas teve uma a construção de uma verdadeira comuni-
discordância básica com ele. No Colóquio dade, à semelhança do que fez mais tarde,
de Marburgo em 1528, uma tentativa feita Calvino, em Genebra. Para ele “a ética po-
pelo imperador para que fosse selada a lítica de Lutero, a doutrina dos Dois Reinos,
união entre protestantes alemães e suíços, lhe eram estranhas.” O importante era que
enquanto Lutero defendia a presença física a a salvação tivesse um alcance maior que
de Cristo no pão, para Zuínglio, as palavras a nossa vida interior.
de Jesus, “isto é o meu corpo” queriam Como Calvino, Zuínglio desejava que as
dizer apenas “isto significa o meu corpo”. autoridades, com seu governo civil, pudes-
Essa idéia quase memorialista da Ceia e sem atuar ao lado da igreja. Em 1525 foi
não a posição conciliatória e muito mais formado em Zurique um grupo de teólogos
feliz de Calvino, enfatizando a presença e membros do Conselho para estabelecer
real mas mística de Cristo na ceia, aca- um código de moral que pudesse ser
bou, infelizmente, predominando entre os obedecido pelos habitantes, buscando uma
reformados em quase todo o mundo, até aliança entre estado e igreja. Falava do
os dias de hoje. magistrado como servo de Deus e da neces-
A experiência religiosa de Zuínglio sidade de ambas essas esferas trabalharem
também foi bem diferente e muito mais no sentido de promover o reino de Deus.
tranquila que a de Lutero. Além disso,
discordavam quanto ao modo de com- Conclusão
preender o evangelho em sua aplicação à
sociedade. Zuínglio via com naturalidade a Com exceção em um ou outro ponto,
possibilidade e a necessidade da aplicação a teologia de Zuínglio não prosperou mui-
da vontade de Deus aos empreendimentos to. Uma explicação está sem dúvida, na
humanos, enquanto os luteranos eram grandeza de Lutero, seu contemporâneo,
pessimistas com relação a isso. e a outra, na maneira genial como Calvi-
Para ele, a atividade redentora de Cris- no, que veio logo depois, elaborou a sua
to não podia se limitar à igreja, embora teologia. Além disso, a morte prematura
estivesse ciente das limitações do estado: desse importante servo de Deus, lutando
“Se as autoridades ajudarem, então o vício na batalha de Kappel, contra cantões suíços
pode ser expelido com maior paz, mas, se católicos, em 1531, com apenas 47 anos, foi
não ajudarem, o pastor tem de arriscar a fator determinante para impedir um alcance
pele e esperar apenas a ajuda e a liberta- maior para as suas idéias.
ção de Deus.” Para ele, como para Calvino Finalizando, é bom lembrar algumas
mais tarde, lei e evangelho se completavam palavras suas que, segundo um de seus
na prática da vida cristã já que “Cristo não biógrafos (Timothy George), sintetizam sua
deixará que seu povo seja indolente.” energia e sua espiritualidade inspiradoras:
Em sua atuação, Zuínglio, que juntava “Faça algo corajoso por amor a Deus”.
as qualidades de cristão com as de patriota,

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 7


GUILHERME FAREL,
EVANGELISTA
INTRÉPIDO
Lição 2

D ificilmente alguém que tenha se in as coisas erradas ao seu redor. É também


teressado pela figura de João chamado de “o reformador de Neuchatel,”
Calvino deixou de saber do papel que cidade à qual dedicou grande parte de sua
desempenhou em sua vida o reformador vida, como pastor.
francês de barba ruiva, chamado Gui-
lherme Farel. Está lá na memória aquele De cidade em cidade
homem inflamado que, conversando com
Calvino em uma hospedagem, à luz de Guilherme Farel nasceu em Gap, na
uma vela, se exalta e, apontando o dedo França, em 1489. Pertencia a uma família
para o alto, fala: “Digo-te, em nome de aristocrática e os pais queriam que ele
Deus todo-poderoso, que estás apresen- seguisse a carreira militar. Ele, entretanto,
tando teus estudos como pretexto. Deus te escolheu um outro destino. Jovem ainda,
amaldiçoará, se não nos ajudares a levar a leitura do Novo Testamento o fez decidir-
adiante o seu trabalho!...” -se pela causa da Reforma. Aos vinte anos
Foi, então, que o jovem tímido, vinte estava estudando em Paris, onde recebeu
anos mais novo, se decidiu: “Senti... como grande influência do reformador e huma-
se Deus estivesse estendido a sua mão do nista LeFèvre d´Etaples, um estudioso das
céu em minha direção... Fiquei tão atemo- Escrituras e professor da Universidade de
rizado que interrompi a viagem que havia Paris, que mais tarde influenciaria Calvino
encetado. ... Guilherme Farel me reteve também.
em Genebra.” Como pensador, LeFèvre antecipou
Quem era mesmo esse homem? Como algumas idéias de Lutero, como a salva-
foi que veio pregar o evangelho em Ge- ção somente pela graça. Traduziu o Novo
nebra? Testamento para o francês, mas foi expulso
Por certo suas relações com Calvino da Universidade e seus escritos, condena-
não pararam no que vimos aí. Qual a sua dos em 1525. Para alguns ele foi a Estrela
história? É o que vamos procurar conhecer, d´Alva da Reforma. Foi com ele que Farel
mas é preciso saber desde já que estamos ouviu, pela primeira vez, sobre a verdadeira
diante de um dos mais decididos e atuan- fé. Os humanistas conheciam os escritos de
tes reformadores do século XVI. São suas Lutero e queriam a reforma da igreja, mas
marcas a humildade, o espírito serviçal, poucos abandonaram a Igreja Católica.
a erudição, uma fé fervorosa, um firme Assim, fora da Alemanha e especialmente
caráter e um espírito inconformado com na França, diz-se que a Reforma chegou de

8. REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


mãos dadas com o humanismo. Berna, aliada de Genebra
Perseguido e sem poder continuar na
França, Farel foi para Basiléia (1524), na A região da Suíça, possuia traços pró-
Suíça, onde se reuniu a um pequeno grupo prios, bem característicos, não só pela suas
de refugiados franceses. Pensava em uma geografia. Formava uma confederação
reforma da igreja a partir de dentro da com 13 cantões praticamente independen-
igreja (“eclesiola”). Elaborou 13 artigos tes, possuindo seu povo um forte espírito de
de fé e os enviou à Universidade que, no independência. Muitos desses cantões ha-
entanto, recusou-se a discuti-los. viam se libertado do domínio de senhores
Embora humanista, desentendeu-se e reis, e seus cidadãos exerciam o governo,
com o famoso Erasmo de Roterdã, tendo de forma democrática. Era grande a sua
de abandonar a cidade. Isso não o impediu resistência contra quaisquer intromissões e
de continuar peregrinações evangelísticas, principalmente contra os impostos papais.
por diversos lugares, como Estrasburgo Berna era a cidade mais forte no sul,
(1525), Neuchatel e Berna (1526). Muitas enquanto no norte era Zurique, onde
vezes, pelo seu temperamento e ousadia ao Ulrico Zuínglio desenvolveu sua obra
pregar o evangelho, provocava tumultos reformadora a partir de 1522. Tendo se
por onde passava. juntado à causa da Reforma, Zurique se
Em Estrasburgo tornou-se amigo de tornou na Suíça do norte o valente cantão
Martinho Bucer, o reformador que tanta protestante - representado por um urso
influência exerceu sobre Calvino. Em Berna, em sua chancela - defensor das cidades
apesar dos distúrbios que provocou, conse- e vilas que se decidissem, como ela, pelos
guiu o apoio das autoridades. Muitas vezes reformadores. Também Berna tinha essa
Farel foi maltratado, sofrendo ataques preocupação. Como acontecia comumente
pessoais, saindo machucado, correndo naquele tempo, as questões religiosas es-
risco de vida e sendo expulso das cidades tavam quase sempre misturadas com as
onde anunciava o evangelho. Em um de- questões políticas.
bate que ocorreu em Berna, em 1527, sua Berna disputava contra os duques de
participação foi muito importante e ele foi Sabóia, da região da Itália, o domínio dos
considerado um dos mais importantes te- territórios de fala francesa que estavam
ólogos presentes, tendo contribuído muito junto ao lago de Genebra, próximo dali.
para o seu êxito. Para o Conselho que governava a cidade,
Era comum naquele tempo os reforma- Farel era o homem ideal para a tarefa de
dores participarem dessas grandes disputas evangelizar as cidades que falavam francês
religiosas com o clero, como aconteceu e estavam sob domínio papal.
com Zuínglio. Em geral, os ataques à ido- A ele não faltava coragem e ousadia,
latria e à missa como repetição do sacrifício como aconteceu certa feita, ao tomar, das
de Cristo ocupavam o centro da discussão. mãos de um padre, na procissão, algumas
Muitas pessoas eram atraídas e, em alguns relíquias e jogá-las no rio. Em outra oca-
casos, os cidadãos e as autoridades, no sião, em uma igreja de Roma, passou a
final, decidiam adotar a Reforma. A cidade gritar mais alto que o padre, provocando
de Berna, por exemplo, decidiu-se pela mais um tumulto.
Reforma em 1528.

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 9


Farel atuou como pastor e evangelista lação. Desta vez, foi enviado juntamente
em diversas cidades suíças como Aigle, Mo- com outro pregador, chamado Viret. Berna
rat, Neuchatel, Lausanne, mas, por causa insistia em que se fizesse um debate público
de seu espírito inquieto, impetuoso e até com os padres e os pregadores reformados
ingênuo, foi algumas vezes aconselhado conseguiram grande vitória diante do povo.
a moderar discretamente a sua coragem. O duque de Sabóia, sentindo que a cidade
Para realizar sua obra evangelística orga- escapava ao seu domínio, preparou um
nizou também escolas, mas preferia as ataque armado cercando-a com grande
viagens missionárias e, sendo um pregador número de soldados.
de sucesso, com um púlpito portátil que Os preparativos para a luta começa-
levava consigo, logo envolvia as pessoas, ram e, enquanto Farel e Viret animavam
onde quer que estivessem aglomeradas. o povo, os debates prosseguiam. Farel era
Tornou-se, então, líder de um grupo de aclamado a ponto de ser carregado pelo
missionários e, em 1532, compareceu a um povo na rua. Pregou então, pela primeira
sínodo dos valdenses ( movimento religioso vez, na igreja de São Pedro. Convocado
do século XII, que buscava a simplicidade e para comparecer perante o Conselho
pureza de vida aliadas a uma espiritualidade dirigente da cidade, pleiteou o reconheci-
profunda), conseguindo que muitos aceitas- mento oficial da fé protestante. “Nós nos
sem as idéias da Reforma. Nesse mesmo ano submeteremos alegremente à morte em
esteve, pela primeira vez, em Genebra. Aí vossas mãos, disse Farel, se for provado
falou a uma multidão, mas foi barrado por que pregamos qualquer coisa contrária às
dezenas de padres, tendo que fugir. Sagradas Escrituras” (Thea Halsema).
Genebra era uma cidade comercial E assim, por um edital de agosto de
cobiçada pelo poderoso duque de Sabóia. 1535, a religião de Genebra deixou de
Seu governo era partilhado, de um lado, ser a de Roma e a missa não foi mais ce-
pelos cidadãos, que lutavam pelos direitos lebrada. Fortalecido em sua atuação pelas
da cidade, e, do outro, pelo duque e pelo autoridades e pelo povo, Farel passou a
bispo, que era seu aliado. Um ataque ar- tomar conta das igrejas de São Pedro e
mado do duque, em 1530, quase fez dos Madalena, que foram esvaziadas de suas
genebrinos seus súditos. A ajuda de Berna, imagens. Um convento foi transformado em
já protestante, foi decisiva para que Gene- escola, outro em hospital e muitos padres
bra mantivesse sua liberdade. Assim, aos e freiras preferiram abandonar a cidade.
poucos, as idéias da Reforma conseguiam As pressões aumentavam por parte
maior simpatia na cidade e muitos se de- do duque e a fome começou a rondar a
cidiam pela causa evangélica. cidade até que as tropas de Berna, em
fevereiro de 1536, livraram a cidade da
Farel volta a Genebra destruição. Convocado pelos Conselhos, o
povo compareceu à igreja de São Pedro e,
Mesmo com uma primeira experiência finalmente, diante dos três pregadores - Fa-
negativa em Genebra, Farel retornou em rel, Froment e Viret - jurou, em 21.5.1536,
1533, com o apoio de Berna. Falou ao com as mãos erguidas, viver conforme o
povo sobre as falsas relíquias e milagres evangelho e a Palavra de Deus, deixando
feitos pelos padres para enganar a popu- a igreja do papa.

10. REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


A chegada de Calvino e as Genebra. Farel, amigo verdadeiro, fez de
dificuldades tudo para defender Calvino, mas pouco
conseguiu.
A vitória parecia alcançada, mas Os pregadores foram obrigados a se
Farel podia perceber o quanto havia para retirar. Era o ano de 1538. Pela segunda
ser realizado. Uma reforma religiosa não vez, o pregador destemido de barba ruiva,
se faz apenas com o gesto de levantar as tinha de deixar a cidade, ameaçado pela
mãos simplesmente. Farel enfrentava, ges- população. Desta vez, em companhia de
ticulava, bradava, infundia ânimo, podia Calvino e dos outros pregadores. Um novo
apanhar como já acontecera, mas sabia destino e novas tarefas o aguardavam.
de suas limitações. Para tanto trabalho, era Calvino foi acolhido em Estrasburgo por
preciso inteligência e dedicação para que Bucer e Farel seguiu para a cidade que
uma obra duradoura pudesse ser realizada. anos atrás evangelizara: Neuchatel. Seria
Aí deparamo-nos com uma de suas o seu pastor.
grandes qualidades. Reconhecido, então, Mas as lutas e os problemas continua-
como o mais importante teólogo de fala ram. E também as peregrinações. Em 1542,
francesa, não teve dúvidas em prestigiar ele ficou por alguns meses na cidade de
um moço que, por certo, o suplantaria. Para Metz. Em 1549, após a morte de Idelete,
ele, João Calvino conhecia as Escrituras a esposa de Calvino, Farel insistiu com ele
como ninguém e podia ensiná-las ao povo. para que fosse ao encontro do reformador
As lutas de Farel prosseguiam, Bullinger, em Zurique. O resultado foi a pre-
com a participação do companheiro que sença dos dois naquela cidade participando
se tornou seu amigo para toda a vida. de colóquios que resultaram na assinatura
Agora, a cidade de Lausanne ia ter o seu do Consensus Tigurinus ou Consenso de
grande debate público. Para lá seguiu Zurique, uma afirmação de fé assinada
Farel, acompanhado de Calvino. Pregou por seguidores de Calvino e de Zuínglio,
o sermão inicial e apresentou 10 teses em unindo-os na questão polêmica acerca da
um debate que prosseguiu por vários dias. Ceia do Senhor.
Calvino, chamado a participar, mostrava o Em 1553, acompanhou Teodoro Beza,
seu grande conhecimento não só das Es- sucessor de Calvino, em sua missão à
crituras, mas dos grandes teólogos cristãos Alemanha, ano em que, já velho, casou-
da antiguidade, entre os quais Agostinho. -se nascendo-lhe um filho único. Em 1564,
Mesmo assim, em Genebra, os voltou a Genebra para acompanhar os
descontentamentos por parte da população últimos dias de Calvino. Faleceu em 1565,
logo surgiram. Primeiro dos nacionalistas, um ano depois de Calvino, aos 76 anos.
contra os pregadores que eram franceses.
Depois, por causa de seu excesso de zelo na O grande amigo e irmão
aplicação da Palavra de Deus à vida diária
e também da proibição na participação da Farel teve com Calvino uma profunda
ceia pelos indignos. Uma outra dificuldade amizade que é atestada pelas inúmeras
foi a posição de Calvino contra as imposi- cartas que os dois reformadores trocaram
ções litúrgicas de Berna para a igreja em entre si. Apesar de terem uma diferença

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 11


de vinte anos, um sentimento de profun- a ponto de quase romper nossa amizade?”.
da afeição e respeito cresceu entre eles. De fato, temeroso de voltar a Genebra,
Quando Calvino enfrentou calúnias, como Calvino chegou a dizer que “não há lugar
no caso das acusações de heresia por parte sob o céu do qual tenho maior receio” para
de Pedro Carolli, Farel estava do seu lado afinal responder: “quando pondero que não
lutando, sendo acusado também. Em um sou meu, ofereço meu coração como um sa-
momento muito difícil para Calvino, por crifício ao Senhor... Entrego minha alma em
ocasião do julgamento de Miguel Serveto obediência a Deus, acorrentada e presa.”
e sua condenação à morte, lá estava Farel Na verdade, Farel foi o grande in-
para apoiá-lo. terlocutor entre o Conselho da cidade e
Além das questões de igreja, que en- Calvino, fazendo o possível e o impossível
frentavam, partilharam inúmeras confi- para que o seu colega voltasse à cidade de
dências e algumas vezes o relacionamento onde haviam sido expulsos e para a qual
entre os dois chegou a ser áspero. Calvino estava certo que Deus o havia convocado
escreveu de forma dura para Farel de- e que não podia ficar abandonada. Por
saprovando o seu casamento com uma isso e muito mais, Calvino podia escrever
jovem. Isso, entretanto, não prejudicou a para Farel, dizendo: “meu melhor e mais
amizade que sempre cultivaram. Quando, digno irmão”.
muito antes, Calvino pensou em se casar,
em Estrasburgo em 1539, quis que o amigo Conclusão
fizesse a cerimônia: “Peço-lhe que me asse-
gure que você virá. Prefiro você a qualquer Guilherme Farel exerceu sobre a
outra pessoa.” Reforma na Suíça uma profunda influência.
Consultavam-se continuamente nas Dotado de grande intrepidez, deixou a
decisões importantes a tomar. Quando marca de uma notável eloquência popular
Calvino hesitou em atender aos apelos e revolucionária. Infatigável em seu traba-
da cidade de Genebra para voltar, Farel lho, mais prático que teórico, possuía um
escreveu-lhe com palavras incisivas - “Você grande coração a que aliava um espírito
está porventura esperando que as pedras de tolerância. Lutou pela unidade entre os
clamem?” - contra o que retruca o amigo, protestantes na Europa e exerceu grande
quase ofendido: “Os raios que você tão influência sobre seus contemporâneos.
estranhamente lança sobre mim, por razões Deixou profunda impressão a sua atuação
que desconheço, encheram-me do maior como evangelista que sofreu duras perse-
terror e consternação. Você sabe que tenho guições pela causa do evangelho de Jesus
receado esta convocação, mas que não Cristo. Hoje ainda chamam a atenção suas
tenho permanecido surdo diante dela. Por qualidades e dedicação a uma causa que
que, então, atacar-me com tanta violência nunca abandonou.

12. REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


JOÃO CALVINO
LUTA COM DEUS

Lição 3

O fato de fazermos parte de uma


dentre as muitas igrejas pres-
biterianas em todo o mundo e de levarmos
em pedra, em um magnífico trabalho artís-
tico, as estatuas de Guilherme Farel, João
Calvino, Teodoro Beza e João Knox. Eles são
o nome de reformados ou presbiterianos reconhecidos como os pais do movimento
indica que, dentre os seguidores de Jesus reformado/presbiteriano, que alcançou o
Cristo em todo o mundo, constituímos uma restante do mundo, inclusive a América e
família. Essa família, formada por igrejas o Brasil. Por isso, é necessário conhecê-los
que se originaram no movimento da Refor- melhor. Com o texto de hoje, vamos apreciar
ma protestante, é como uma grande árvore a vida de Calvino até o momento em que,
frondosa, com galhos que se estendem sentindo-se chamado por Deus, passou
por inúmeros países, cujas raízes estão no pela experiência da conversão, que mudou
século XVI, época em que a América e o a sua vida.
Brasil acabavam de ser descobertos.
A Reforma teve como preocupação I
máxima, diante dos desvios apresentados João Calvino nasceu na cidadezinha
pelo cristianismo medieval, retornar aos de Noyon, a menos de cem quilômetros
fundamentos da fé cristã vividos pela Igreja de Paris, na região da Picardia, na França,
Primitiva, conforme o testemunho do Novo em 10.6.1509. Ele fez parte da segunda
Testamento. geração de reformadores, que sucederam
Como toda família, a presbiteriana ou Lutero, vinte e seis anos mais velho que
reformada também é marcada pelo que ele. Quando o reformador alemão apre-
herdou dos primeiros pais, seus ensinos sentou suas 95 teses contra as indulgências
e exemplo de vida. Os luteranos, por e o papado, em 1517, em Wittenberg,
exemplo, têm até hoje grande apreço por na Alemanha, Calvino tinha apenas oito
Martinho Lutero, pela sua vida, seus escritos anos. Seu pai, pertencia à classe burguesa
e o que ele representou, da mesma forma em ascenção naquela época, mas estava
que os metodistas têm por João Wesley. O ligado, como sua mãe Jeanne, ao clero e
mesmo ocorre conosco. É natural que quei- à nobreza. Por causa disso, podemos dizer
ramos saber mais da vida do reformador que ele recebeu, em sua formação, muita
João Calvino, da sua importante obra e influência da cultura dessas duas classes
dos seus escritos inspiradores. sociais francesas
Quem visita Genebra, na Suíça, pode ver Com a morte de sua mãe, quando ele
junto aos muros de sua universidade o belo era ainda criança, passou a viver na casa
Monumento à Reforma. Lá estão esculpidos de uma família aristocrática, os Hangest,

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 13


com quem partilhou uma educação nobre II
e refinada. Por causa dessa educação e
também de sua personalidade, ele era uma No tempo que esteve na capital francesa,
pessoa polida e reservada. ele conheceu as idéias do padre humanista
A intenção de seu pai era que ele se Lefèvre d´Étaples, da Universidade da Sor-
tornasse um sacerdote. Sendo secretário bonne, de quem também Farel foi aluno e
do bispo de Noyon, conseguiu para o filho que entre os seus ensinos dizia que a salva-
uma espécie de bolsa para que ele fosse ção só podia ser alcançada pela graça de
continuar os estudos em Paris. Foi assim Deus. Ele havia traduzido o Novo Testamen-
que ele, embora jovem, passou a receber to para o francês e ensinava a Bíblia para o
os benefícios de um cargo eclesiástico (ca- povo. Por causa disso, acabou sendo expulso
pelão), como era o costume naquele tempo. da Universidade pelo rei Francisco I.
Com esses recursos, começou a estudar Calvino o visitou já velhinho e conversou
no famoso Colégio de la Marche, onde com ele. Seu pensamento era reformar a
aprendeu latim, filosofia, artes. Depois, Igreja de Roma estando dentro dela. Pelo
estudou por três anos no colégio Montaigu, seu testemunho e pela influência que exer-
por onde passaram outros estudantes que ceu sobre os reformadores na França, ele
se tornaram homens famosos, como Inácio se tornou o inspirador do protestantismo
de Loyola e Erasmo de Roterdã. Aí estudou francês.
lógica e teologia. Outra influência importante na vida de
Depois, com o mestre M. Cordier apren- Calvino foi a amizade que desenvolveu com
deu a escrever em latim clássico, bem como seu primo Roberto Olivétan, que já estava
usar a língua francesa com “direitura, clare- percorrendo os caminhos da nova fé. Com
za, precisão, vivacidade e elegância” como ele tinha conversas frequentes. Quando
escreveu o rev. Vicente Themudo Lessa. Se- Olivétan fez uma tradução da Bíblia para
gundo outros, Calvino escrevia com grande o francês, Calvino escreveu, em 1535, um
estilo, de forma austera, correta e castiça. prefácio dirigido “A Todos os que Amam o
Nos quatro anos que estudou em Paris, Senhor Jesus Cristo e seu Evangelho”.
Calvino se revelou um estudante inteligente, Ao término desse curso de filosofia e
perspicaz, dedicado e obsessivo, lendo até teologia, seu pai Gerard, que havia se de-
altas horas da noite e levantando de ma- sentendido com o bispo de Noyon, mudou
drugada, apesar de suas frequentes dores de propósito quanto à carreira que o filho
de cabeça e do estômago. devia seguir “ao ponderar que a profissão
Ao estudar a teologia escolástica passou jurídica comumente promovia aqueles que
a criticá-la como faziam os humanistas. saíam em busca de riquezas,” como diz
Considerava-a “sofisticada, tortuosa e o próprio Calvino ao narrar parte de sua
enigmática”. Também foi aí que entrou experiência, em sua dedicatória ao comen-
em contato com as idéias de Lutero, que tário sobre livro dos Salmos.
seus mestres ortodoxos procuravam refutar. Aos vinte anos deixou Paris e iniciou,
Na cidade, por intermédio dos colegas de na cidade de Orléans, os novos estudos.
Noyon, conheceu e fez amizade com o Aprofundou-se no conhecimento dos clás-
médico do rei, o humanista Guilherme Cop. sicos antigos. Aí aperfeiçoou o seu domínio

14 . REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


da língua grega com o mestre Wolmar, um Por outro lado, pela sua formação ca-
homem simpático às idéias de Lutero. tólica, ao se deparar com as novas idéias
Esse período deu a Calvino um preparo religiosas, sentia problemas interiores e
para compreender as leis, sua estrutura dúvidas com as quais vinha lutando há
e suas aplicações na prática, o que foi algum tempo. “Confesso que, no princípio,
muito importante quando mais tarde, em resisti com energia e irritação; porque ... foi
Genebra, teve de cuidar das leis para o go- com a maior dificuldade que fui induzido
verno da cidade, bem como preparar uma a confessar que, por toda minha vida, eu
constituição para a igreja (livro de ordem). estivera em ignorância e erro”, escreveu.
Continuava como estudante dedicado, Sabemos também que ele conheceu o
evitando muitos divertimentos e festas e pensamento do reformador suíço Ulrico
se dedicando aos estudos. Depois de um Zuínglio e leu diversos escritos do grande
ano, mudou-se para a cidade de Bourges reformador alemão Lutero, por quem nutria
onde foi aluno de um famoso professor de profundo respeito e admiração e a quem
direito, chamado Alciati. chamaria mais tarde de “ilustre mestre” e
Em 1531, Calvino volta à sua cidade “meu pai sempre honrado”. Além disso, o
natal para atender ao pai, muito doente contato com as idéias do velho professor
e que veio a falecer. Com isso, um novo e humanista Lefèvre e a amizade com o
ciclo começou em sua vida. Decidiu então primo Olivétan contribuíram para o seu
seguir o seu destino e os sonhos de uma esclarecimento, de forma a prepará-lo para
vida dedicada não à igreja, nem à busca de ter a sua própria experiência religiosa.
dinheiro com a advocacia, mas à literatura Outras coisas também estavam aconte-
e à vida acadêmica. cendo. Vimos como ele fizera amizade com
Alugou um quarto em Paris, onde assis- Cop, o médico do rei. Pois bem, esse médi-
tia a conferências literárias nas faculdades, co, que foi nomeado reitor da Universidade
estudava mais grego e latim e iniciava o de Sorbonne em Paris pelo próprio rei, em
estudo do hebraico. Aos vinte e três anos, 1533, pronunciou um discurso em que
em 1532, publicou o seu primeiro livro - So- estavam presentes as novas idéias evan-
bre a Clemência - um comentário sobre um gélicas, proclamando Cristo como único
livro do filósofo romano Sêneca. Embora mediador entre Deus e os seres humanos.
repleto de qualidades literárias, o livro foi Tal fala, pelo seu caráter revolucionário,
um fracasso de vendas. causou escândalo entre os professores. A
notícia que correu foi de que, na redação
III do discurso, Cop havia sido orientado por
Por esta época, houve um acontecimen- Calvino.
to muito importante na vida de Calvino e Perseguidos, tanto o reitor como Calvino
sobre o qual não existe muita informação. tiveram de escapar da cidade às pressas,
Trata-se de sua conversão, que ele diz ter disfarçados. Calvino desceu os muros da
ocorrido de maneira súbita. Uma das di- cidade por uma corda e, vestido como cam-
ficuldades para se conhecer esse fato está ponês, fugiu. Nesse momento ele era um
justamente no caráter tímido e retraído de homem caçado pelas autoridades. Teve de
Calvino, que pouco falava de si mesmo. usar disfarces e nomes fictícios para poder

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 15


sobreviver. Tinha novas idéias, uma nova subjugou e trouxe minha mente a uma
maneira de viver e por isso pagava um disposição suscetível...” “Não tardou que
preço. Muito mais do que isso. Agora era eu percebesse, como se uma luz houvesse
um homem com um coração convertido. raiado sobre mim, o monturo de erros
Em 1534, aos vinte e cinco anos, ele se em que eu havia me emaranhado. Com
apresentou diante do clero de Noyon, sua grande temor e medo da miséria em que
cidade natal, para dizer que não seria mais eu havia caído, e ainda mais receoso do
padre e que, doravante, não queria mais os que me ameaçava, a possibilidade da
benenfícios que até então vinha recebendo morte eterna, não podia fazer outra coisa
da Igreja. Nesse ano, mesmo perseguido, senão seguir o Teu caminho, condenando
entrou em Paris novamente para logo viajar o meu passado com não poucas agonias
para outras cidades. e lágrimas.”...
Nos arredores da cidade de Poitiers algo “Tendo recebido alguma experiência
extremamente importante e surpreendente e conhecimento da verdadeira piedade,
aconteceu. Leiamos o que diz Thea Hal- imediatamente me senti inflamado de
sema: “Ali Calvino palestrava e ensinava um desejo tão intenso de progredir nesse
num bosque e, mais tarde, numa caverna novo caminho que, embora não tivesse
iluminada pela luz de archotes. Dizem que abandonado totalmente os outros estudos,
nesta caverna Calvino celebrou a Ceia do me ocupei deles com menos ardor....Pos-
Senhor pela primeira vez, usando uma suidor de uma disposição um tanto rude
pedra chata como mesa. Fê-lo com sim- e tímida, o que me levava sempre a amar
plicidade, citando as palavras de Cristo, a solidão e o isolamento, passei, então, a
sem a pompa da missa católica-romana.” buscar algum canto isolado onde pudesse
(Thea Halsema, p. 39). furtar-me da opinião pública... Em suma,
enquanto meu único e grande objetivo era
viver em reclusão, sem ser conhecido, Deus
IV me guiava através de crises e mudanças,
Bem mais tarde, na dedicatória ao de modo a jamais me permitir descansar
comentário sobre o livro dos Salmos em lugar algum.”
(1557) um dos poucos escritos em que Foi assim que um homem que buscava
abriu o seu coração, ele também relatou o seu próprio caminho e fugia de Deus, por
um pouco do que aconteceu quando, Ele foi chamado e (depois de muita luta)
depois de muita resistência, se entregou se entregou: “Não podia fazer outra coisa
a Deus: “Por uma súbita conversão, Deus senão seguir o Teu caminho...”

16. REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


JOÃO CALVINO,
TESTEMUNHA DE
JESUS CRISTO
Lição 4

C omo já vimos, falar da condição de


crentes reformados/presbiterianos
é procurar, antes de tudo, descobrir as raí-
do mundo. Foi notável a sua contribuição
para o estabelecimento de uma consciência
evangélica que, com o passar do tempo,
zes que nos inserem na grande árvore que moldou uma forma cristã de viver (ethos)
é a igreja de Jesus Cristo no tempo e no e acabou marcando, de muitas maneiras,
espaço. Uma das formas de se fazer isso a cultura ocidental.
é procurar conhecer, em primeiro lugar, Para compreender melhor quem foi
os personagens que estiveram no centro Calvino, é importante e muito interessante
do movimento que resultou na Igreja Re- nos determos na experiência original que ele
formada, que tem sua origem na Suíça do teve como um novo converso ao evangelho
século XVI e que se espalhou por diversas de Jesus Cristo. Para dar o passo que mu-
partes do mundo. dou sua vida, por certo enfrentou dúvidas
Na verdade, as pessoas são e serão pessoais com as quais teve de lutar. Como
sempre agentes históricos que, ao dar os foram solucionadas essas dúvidas? Depois
primeiros passos em uma caminhada que vieram as cobranças e acusações das pesso-
hoje também pode ser a nossa, nos inspi- as ao seu redor. Como podia abandonar a
ram e ensinam sobre o que somos e como religião a que ele e os seus tradicionalmente
podemos dar continuidade a uma causa pertenciam? Como justificar essa mudança
da qual fazemos parte, como herdeiros. em sua vida?
Sobre Calvino já sabemos de sua voca- Ao contrário de Lutero, que possuia
ção e decisão em favor da causa de Jesus um temperamento muito mais expansivo e
Cristo. Também já ouvimos como Deus comunicativo, Calvino falou pouco de sua
usou o francês Guilherme Farel para que própria experiência e algumas vez, quan-
Calvino desse um passo decisivo na direção do o fez, foi de maneira indireta. Mesmo
de um caminho que não era bem o que ele assim, é por demais importante conhecer
planejava para sua vida (ser um escritor fa- essa experiência na forma em que ele a
moso, mais ou menos descompromissado). expressou, para poder utilizá-la talvez como
Podemos nos lembrar de sua luta para um espelho que nos permita comparar com
não ceder diante do chamado de Deus e a experiência que temos como seguidores
de como, ao ser vencido por Ele, logo se de Jesus Cristo nos dias de hoje. É valioso
envolveu em uma aventura que se iniciou também conhecer um pouco da situação
em Genebra e se espalhou por toda a Eu- histórica em que ele viveu e na qual esses
ropa, depois para a América e pelo resto acontecimentos se deram.

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 17


A situação histórica de ele procurou, ao lado de Farel, fazer da
Genebra cidade uma comunidade exemplar, que
testemunhasse na prática a verdade do
A cidade de Genebra possuía, como evangelho de Jesus.
vimos, uma história de lutas pela liberdade, Em um documento elaborado em
fazendo tudo o que estivesse ao seu alcance conjunto, eles apresentaram ao Conselho
para não se submeter ao domínio do bispo dirigente da cidade suas recomendações
católico, aliado do duque de Sabóia. Em acerca do culto e da ceia, bem como so-
1535, a missa não era mais celebrada lá. bre uma prática de vida disciplinada pela
A cidade de Berna se decidira antes, em Palavra de Deus. Prepararam um catecismo
1528, por influência de Zuínglio e estava e também um credo, que deveriam ser
disposta a fortalecer Genebra para que assinados e acatados por todos, o que
seguisse o mesmo caminho, propondo-lhe gerou descontentamento e oposição entre
uma aliança política. Escolheram então a população.
uma pessoa especial para realizar essa Passado algum tempo, outros proble-
tarefa: o missionário francês, Guilherme mas surgiram e dessa vez foi com as im-
Farel. posições das autoridades de Berna no que
No desempenho de sua missão, Farel se refere a ritos e normas litúrgicas a serem
fazia o que podia, com o auxílio de alguns obedecidas no culto. A opinião de Calvino,
companheiros da nova fé: pregava em no entanto, era de que, em tais coisas, a
praça pública, participava de debates com igreja devia atuar independentemente das
os padres para defender a fé verdadeira, autoridades e do Estado.
visitava as pessoas. Por causa de tudo isso, Foi assim que, no ano de 1538, Calvi-
muitas vezes era perseguido e maltratado. no, Farel e o companheiro cego, Courault,
Foi assim que, após um grande debate com foram expulsos da cidade de Genebra. Sem
os padres na igreja de São Pedro, em que saber o que fazer a princípio, Calvino foi
Farel foi aclamado pelo povo, o Conselho logo acolhido em Estrasburgo pelo grande
da cidade, em 1535, resolveu abandonar companheiro e reformador naquela cidade,
Roma e adotar a nova fé. Martinho Bucer. Ali ele haveria de passar
As imagens foram retiradas das igrejas, cerca de três anos, pastoreando uma co-
um mosteiro foi transformado em escola e munidade de refugiados franceses e ali
outro, em hospital. Uma nova liturgia, pre- haveria de encontrar sua esposa, a viúva
parada por Farel, passou a ser praticada e Idelete van Buren. Genebra ficara para trás.
em 21.5.1536 os genebrinos, em público,
ergueram as mãos sob o juramento de não A Carta de Calvino ao cardeal
mais se submeter aos desígnios de Roma, Sadoleto
para viver conforme a Palavra de Deus.
Por influência de Farel, Calvino, de Com a saída dos pregadores, muitos
passagem pela cidade, mudou o rumo católicos na França perceberam que seria
de sua vida para ali permanecer. Desde o o momento oportuno para trazer de volta
início de seu trabalho, primeiro como pro- a cidade de Genebra à antiga fé romana.
fessor de Bíblia e depois como pregador, Os papistas sentiam a perda de prestígio

18. REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


da igreja e de milhares de fiéis, que acei- A certa altura de sua carta, Calvino
taram as idéias de Lutero e dos outros responde a uma pergunta do cardeal,
reformadores. Pensaram em alguém que que havia sido endereçada a um jovem
pudesse recuperar o rebanho perdido. romanista que se convertera à nova fé: o
Ninguém melhor do que o cardeal Jacó que diria ele no juízo final ao ser indagado
Sadoleto, possuidor de um saber notável e sobre a razão por que se separara da igreja
bem intencionado, de “profunda piedade “verdadeira” para seguir a reforma? E o
e fervor religioso.” pecado contra a unidade da igreja? Como
Empenhado em sua tarefa e preocupa- se justificaria?
do com a sua igreja e os prejuízos que vinha Na resposta está o que diria um jovem
sofrendo, Sadoleto escreveu aos cidadãos reformado, que aceitara as novas idéias,
de Genebra uma elaborada carta, procu- para justificar a sua mudança de fé. Através
rando convencê-los. Pedia-lhes que reconsi- desse recurso literário, Calvino expressou
derassem o erro cometido ao abandonar a indiretamente, todo o calor da nova fé que
Igreja Católica e falava-lhes da necessidade acalentava em seu próprio coração.
de se manterem fiéis àquela que era a única Essa carta foi escrita com tal maestria
igreja verdadeira, capaz de lhes garantir a que o próprio Lutero notou o seu valor e,
bem-aventurança da vida eterna. para muitos, ela se tornou a mais clari-
Apelando à tradição, reafirmava as vidente manifestação da fé evangélica,
doutrinas contra as quais os reformadores que se espalhava rapidamente por toda a
lutavam: o culto aos santos, a missa, a Europa. Por meio dela Calvino expressou,
confissão auricular, o purgatório, a oração de maneira simples e breve, o sentido da
pelos mortos e a salvação pelas obras, fé reformada.
ameaçando com o juízo de Deus os que Nesta Epístola o nosso reformador
as negassem. colocou a sua própria experiência. É uma
Foi a própria igreja de Berna, aliada humilde confissão feita por um jovem ao
de Genebra e da nova fé, que, não vendo apresentar-se ante o tribunal de Deus. Ve-
outra pessoa à altura para responder, so- jamos alguns dos seus trechos.
licitou a Calvino que o fizesse. Este, apesar
de tudo que lhe sucedera em Genebra, Uma humilde confissão e um
ainda tinha essa igreja no coração e não forte testemunho
poderia deixar de responder.
Na Epístola ao Cardeal Sadoleto, escrita - Fui acusado de heresia porque me
em 1539, quando tinha apenas 30 anos, atrevi a reclamar contra os dogmas aceitos
Calvino usa de toda a sua capacidade entre eles (os romanos). Mas que outra coi-
de síntese e clareza para defender a fé sa podia eu fazer? Dos teus lábios, ó Deus,
evangélica. Ao contrário de Sadoleto, que ouvia que não há outra luz de verdade para
escreveu de modo genérico, repetindo as dirigir nossas almas no caminho da vida
velhas idéias sem muita convicção, o jovem além da que foi acesa pela tua Palavra.
reformador se expressou de modo direto e - A ti consideravam o único Deus, mas
reflexivo, baseado em um profundo conhe- aquela majestade que só para ti reservaste
cimento da Bíblia e de seus ensinos. transferiram-na para outro.

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 19


- Para que eu, Senhor, pudesse per- - Tu sabes, Senhor, e isso foi testemu-
ceber essas coisas, iluminaste-me com nhado pelos homens, que a única coisa que
a claridade do teu Espírito; para que eu eu desejei foi dirimir todas as controvérsias
compreendesse como era o ímpio e o per- com a tua Palavra, para que, assim, ambas
nicioso, tu trouxeste para mim a luz da tua as partes pudessem, com um só pensa-
Palavra e para abominá-los, preparaste a mento, lutar para o desenvolvimento do
minha alma. teu reino; mesmo com perigo para a minha
- Tudo o que aprendi da tua boca eu quis vida, fiz todo o possível para devolver a paz
transmitir fielmente à tua Igreja. à igreja.
- Quanto aos que costumam me acusar - Eu, Senhor, sempre professei a fé cristã
de haver abandonado a Igreja, de modo desde a minha infância, mas a tua Palavra
particular a consciência de nada me acu- que, como lâmpada deveria resplandecer
sa, a não ser que se considere desertor para todo o povo, nos foi tirada e ocultada
aquele que, vendo os soldados dispersos e uma luz maior só poderia ser buscada por
e confusos, abandonando as fileiras, toma uns poucos. Para os demais não convinha
o estandarte e os chama à devida ordem. um conhecimento maior, além do necessá-
- Ó Senhor, cabe a ti decidir de quem é rio para se manterem submissos à igreja.
a culpa. Eu sempre testemunhei tanto por - Meus primeiros conhecimentos eram
palavras como por atos o quanto desejei tão rudimentares que sequer permitiam
a unidade. Mas, para mim, a unidade da saber do culto legítimo que a ti é devido,
Igreja é aquela que se inicia e termina em ti. nem quais eram os deveres da vida cristã.
Se eu desejasse estar em paz com aqueles Por ignorar a verdadeiro motivo de minha
que se orgulham de ser os dirigentes da adoração, logo me desviava.
Igreja e colunas da fé, eu teria de negar a - Ao povo cristão era pregada a tua
tua verdade. Não considerei que me afas- clemência, mas apenas para os que fossem
tava de tua Igreja por estar em luta com dignos e essa dignidade estava na justiça
aqueles líderes. das obras e não da graça. Para obter a tua
- Diante de meus olhos estavam os salvação era preciso confessar os pecados
exemplos dos profetas que mostravam ao sacerdote, praticar boas obras, fazer
as dissidências dos sacerdotes e profetas sacrifícios. Diante de um juiz tão severo,
de seu tempo. Todavia, teus profetas não ordenavam que devíamos buscar primeiro
são considerados cismáticos ao ver a de- os santos que intercediam por nós para
cadência da religião e não cederem aos obtermos o teu favor.
que lhes resistiam com a violência. Eles - Mesmo realizando tudo isso, jamais
permaneceram na unidade da Igreja, em- encontrava descanso, tão longe me sentia
bora condenados à perdição por iníquos de uma consciência seguramente tranquila.
sacerdotes. Fortalecido pelo seu exemplo, - Quantas vezes, ao contemplar o meu
eu me mantive firme. ser, sentia um profundo horror, impossível
- Eu tinha plena consciência do intenso de ser apaziguado com obras piedosas. A
zelo que me consumia pela unidade da consciência me acusava com fortes agui-
Igreja, uma vez que o vínculo da concórdia lhoadas de modo eu não tinha outro alívio
fosse a tua verdade. a não ser esquecer a mim mesmo. Por não

20 . REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


ter outro caminho melhor, continuava no sido iluminado, em que lodaçal me havia
mesmo. envolvido e com quantas imundícies e males
estava manchado.
Um ensino diferente - No que se refere a mim, estava cons-
ternado com a miséria em que havia caído
- Surgiu, entretanto, um ensino muito e, muito mais, pela morte eterna que me
diferente, que não nos separava da pro- ameaçava. De tal forma que nada me
fissão cristã, mas que a fazia retornar à pareceu mais necessário que, uma vez re-
fonte original e limpa de sujeiras, em sua pudiada minha vida anterior, com lágrimas
pureza. Todavia eu, ofendido pela novida- e gemidos, entregar-me e render-me a ti.
de, apenas lhe dei atenção e, a princípio,
confesso, a ela resistia vigorosamente. E Conclusão
assim, por causa daquela contumácia que
os homens têm por reter aquilo que um Foi assim que o jovem Calvino, incum-
dia receberam, não estava nem um pouco bido de defender a fé protestante que se
disposto a admitir que toda minha vida iniciava em Genebra, viu-se desafiado a
até então tinha sido consumida no erro e uma tarefa difícil, mas que desempenhou
na ignorância. com grande habilidade. O intelectual com
- Quanto à igreja e à necessidade de sonhos de ser um grande literato falou de
manter sua unidade, não era possível to- dentro do seu coração e expressou aquilo
lerar por mais tempo aquela tirania com que hoje consideramos uma jóia preciosa
que se governava o povo de Deus, se é que e testemunho vivo da fé em Jesus Cristo.
quiséramos conservar a salvo e incólume Acima de tudo, se pronunciou habil-
entre nós o reino de Cristo. mente em um momento religioso difícil para
- A conclusão evidente era que se dis- os que eram obrigados a viver a sua fé em
torcera a verdadeira ordem da igreja; as silêncio. Sem grandes argumentações teo-
chaves com que se mantinha a disciplina lógicas elaboradas, mas na simplicidade de
foram adulteradas; a liberdade cristã des- uma fé pessoal intensa e primitiva, Calvino
truída e o reino de Cristo fora derrubado falou, e até hoje nos fala, do motivo central
com o principado do papa. Quando meu da mudança que o evangelho provocou em
espírito resolveu prestar atenção, percebi sua vida. E, assim fazendo, nos mostrou a
instantaneamente, como que se tivesse sua alma.

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 21


A ORDEM NA
IGREJA

Lição 5

Se há uma preocupação sempre presen- se organizar e organizar o seu ministério.


te na vida da igreja é aquela relacionada Quando Calvino chegou a Genebra em
com a sua organização, a fim de cumprir 1536, encontrou uma igreja que abando-
o propósito para o qual ela foi criada: nara, sob a liderança de Guilherme Farel,
anunciar ao Senhor Jesus. Antes de pro- a Igreja de Roma, mas que engatinhava
curarmos saber qual sistema de governo hesitante na busca de um novo caminho
eclesiástico seria o mais certo - congrega- de seguimento a Jesus Cristo.
cional, episcopal ou presbiterial - cabe-nos Quando, bem antes, os genebrinos
indagar como, na vida pessoal ou coletiva, resolveram aceitar a religião reformada
podemos nos organizar para colocar em como religião oficial da cidade, muita coisa
prática os ensinos de nosso Senhor Jesus havia por se fazer. Farel logo percebeu que
Cristo e cultuá-lo verdadeiramente. Como o francês que estava de passagem pela
nos organizar e disciplinadamente agir cidade era a pessoa que poderia, com
para que a vontade de Deus seja colocada competência, conduzir como ninguém esse
em primeiro lugar? Qual forma de igreja empreendimento.
Deus desejaria para o seu povo? E como Uma vez convencido a permanecer,
fazer com que essa forma seja coerente aquele que seria o grande reformador de
com o ensino das Escrituras? Genebra colocou as mãos no trabalho.
No livro de Atos é fácil acompanhar Com a sua formação de advogado e o
como os primeiros cristãos, espalhados chamado inequívoco de Deus no cora-
por diversos lugares pelas perseguições, ção, Calvino, mais do que qualquer outro
começaram a organizar a igreja em diver- reformador, se preocupou em buscar no
sas localidades e, diante das primeiras difi- Novo Testamento o modelo para a nova
culdades, resolveram se reunir no concílio organização da igreja, do culto e até do
de Jerusalém (cap. 15) para discuti-las e modo de viver da cidade.
resolvê-las. Aí se manifestaram os primeiros Com esse propósito, procurou estabele-
sinais de uma organização para a igreja cer aquilo que ele chamou de uma ordem
nascente. Ali eles “foram recebidos pela para a igreja. Os presbiterianos brasileiros
igreja, pelos apóstolos e pelos presbíteros” costumam chamar de constituição. Na ver-
(15.4) e então resolveram escolher entre dade, seria mais adequado chamar de Livro
eles alguns homens e mandá-los a Antio- de Ordem, como fazem os presbiterianos
quia com Paulo e Barnabé (15.22). norte-americanos.
Com o passar do tempo, a igreja cristã Como igreja e cidade estavam intima-
foi procurando desenvolver as formas de mente ligados, ele buscou uma organização

22 . REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


em que a Palavra de Deus fosse praticada se organizaram as igrejas que vieram da
em atividades tanto religiosas como civis. Reforma em todo o mundo. Foi uma espé-
Aproveitando seus conhecimentos como le- cie de código civil e eclesiástico pelo qual
gislador e teólogo e com o auxílio de Farel, a igreja desenvolveu a idéia de corpo e
ele apresentou um primeiro trabalho que de comunidade responsável por diversos
foi apreciado e aprovado pelo Conselho aspectos da vida das pessoas. Eram um
administrativo da cidade em 1537. Eram aperfeiçoamento dos Artigos de 1537.
os Artigos sobre o Governo da Igreja, que Nas Ordenanças, Calvino afirmou que
tratavam não apenas da forma do culto, Cristo instituiu em sua igreja quatro ofícios:
mas também dos costumes a serem prati- pastor, professor, presbítero e diácono,
cados pelo povo. explicando a função de cada um desses mi-
Esses Artigos traziam instruções também nistérios. O consistório ou Conselho, como
acerca da celebração da ceia do Senhor, chamamos hoje, formado por pastores e
do cântico dos hinos, do casamento e do presbíteros em condição de igualdade, era
ensino para crianças. Pela disciplina que o centro desse sistema que mais tarde veio
impunham, esses artigos sofreram grande a ser chamado de presbiteriano.
resistência por parte do povo e acabaram Com o presbiterato e o diaconato
se tornando um dos motivos pelos quais Calvino fez uma nova e extremamente
os reformadores foram expulsos da cidade importante contribuição, inexistente na
pelas autoridades, em 1538. Igreja de Roma, ao colocar os leigos como
Calvino viveu então um providencial autoridade na Igreja. Pela importância des-
exílio na cidade de Estrasburgo em com- se primeiro livro de ordem que sustentou a
panhia do reformador Martinho Bucer, que estrutura das igrejas presbiterianas em todo
o acolheu. Ali pastoreou uma comunidade o mundo, vamos reproduzir alguns dos seus
de refugiados franceses e se casou. Foi um pontos mais importantes, conforme apare-
tempo muito útil para complementar a sua cem no livro do rev. Joãozinho Thomaz de
formação como teólogo e prepará-lo para Almeida, “Calvino e sua Herança”:
a grande tarefa que haveria de ser a sua.
Ordenanças Eclesiásticas
O retorno a Genebra
“Em nome do Deus todo-poderoso, nós,
Quando as autoridade genebrinas o síndicos do Pequeno e Grande Conselho,
chamaram de volta e ele retornou às ati- juntos com o nosso povo reunido em as-
vidades em 1541, uma de suas primeiras sembléia... resolvemos que este assunto é
tarefas foi a elaboração de um anteprojeto digno de recomendação antes de todos os
de lei para regulamentar as atividades outros e que a doutrina do santo Evangelho
religiosas e civis da comunidade e que foi de nosso Senhor deve ser preservada em
aprovado com o nome de Ordenanças toda a pureza; que a Igreja deve mantê-la,
Eclesiásticas da Igreja de Genebra. que os jovens devem ser fielmente prepara-
Esse documento não foi importante dos para o futuro, que o hospital deve ser
apenas para a Igreja de Genebra, mas bem administrado para ajudar os pobres,
constituiu-se no fundamento sobre o qual o que não acontecerá se não houverem

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 23


regras e regulamentos bem definidos para apresentação do segundo sermão. Para
que cada um possa compreender os deve- os propósitos da instrução catequética e
res do seu cargo. administração dos sacramentos... devem
Por estas razões nos pareceu bem que ser observados os limites das paróquias...
seja observado entre nós o governo espiri- Nos dias de trabalho... haverá pregação
tual que nosso Senhor ensinou e instituiu em três vezes por semana, sendo os sermões
sua Palavra. E, por isso, temos ordenado apresentados em uma hora mais cedo, de
e decretado que... os regulamentos que se modo que se encerrem antes que o dia de
seguem sejam observados e guardados, trabalho comece.
considerando como nos parece que foram O dever próprio dos mestres é instruir
eles tirados do Evangelho de Jesus Cristo. aos fiéis na doutrina correta, a fim de que a
A respeito dos pastores... é dever deles pureza do Evangelho não seja corrompida,
o proclamar a Palavra de Deus bem como seja pela ignorância ou pelas más opini-
instruir, admoestar, exortar e reprimir; ões... com auxílios e instruções necessárias
administrar os sacramentos e exercer a para preservar a doutrina divina e conser-
disciplina fraternal na companhia dos var a Igreja de tornar-se desolada por falta
presbíteros e comissionados... de pastores e ministros.
O exame do candidato ao ministério As exigências mais estreitas para o
consistirá de duas partes, sendo a primeira ministro e mais diretamente ligada ao
relacionada com a doutrina para ver se ele governo da igreja é a do entendimento da
possui um bom e correto conhecimento das teologia, em cujo ofício será bem incluído
Escrituras. E, então, se ele pode de modo o ensino do Velho e do Novo Testamentos.
conveniente e próprio comunicar a mesma Mas desde que é impossível ter proveito em
para a edificação do povo. Deve-se certi- tais instruções sem primeiro ser instruído
ficar se o candidato não sustenta alguma em línguas e em humanidades, e também
opinião perigosa... A segunda parte refere- desde que é necessário criar sementes
-se à sua vida, para ver se ... sempre se contra o futuro a fim de que a Igreja não
conduz de modo tal a permanecer fora de fique deserta de seus filhos, é necessário
qualquer reprovação. A regra a seguir é a estabelecer uma escola para instruí-los e
que está tão bem delineada por São Paulo. prepará-los, não somente para o ministério
A fim de que se mantenha a pureza e mas para o governo civil....
harmonia de doutrina entre nós, haverá
uma determinação para que todo os mi- Presbíteros e diáconos
nistros se reunam em um dia conveniente
da semana para estudarem juntos as Escri- A terceira ordem, é a dos presbíteros,
turas.... Para evitar conduta escandalosa, isto é, aquela que é comissionada ou apon-
será bom ter regulamentos para orientar o tada para o Consistório, pelas autoridades.
ministro a fim de que ele seja reverenciado Este ofício é para estar vigilante sobre a vida
e a Palavra de Deus não seja desonrada de todos, admoestar em amor aqueles que
pela má reputação ou má conduta... eles vêem errar por conduzirem suas vidas
Cada domingo, ao amanhecer ha- de modo desordenado e, se necessário,
verá sermão... Às três da tarde... haverá comunicar ao Consistório para que seja

24. REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


determinado se fazerem correções frater- Se alguém formular opiniões contrá-
nais colaborando com os outros nessas rias na aceitação das doutrinas, ele será
correções. convidado a comparecer.... Se alguém é
Se a Igreja julga isto sábio, eleições po- negligente em comparecer à adoração de
dem ser feitas na seguinte base:... homens tal modo que uma visível desobediência é
honestos de vida exemplar, sem reprovação evidente, ou se alguém se mostra insolente
e livres de qualquer suspeita, além de tudo diante da disciplina eclesiástica, ele será
tementes a Deus e possuidores de um jul- admoestado e, se ele se tornar obedien-
gamento bom e espiritual. te, será perdoado em amor. Se persistir,
Havia sempre duas ordens de diáconos passando de mal a pior, após ter sido ad-
na Igreja Primitiva, uma estando encarre- moestado três vezes, será excomungado e
gados de receber, distribuir e guardar os a matéria será reportada às autoridades.
bens dos pobres, suas possessões, rendas Para a correção de faltas dentro da vida
e pensões tanto quanto das ofertas diárias; de cada um, é necessário proceder de acor-
a outra, para cuidar e proteger os doentes, do com as ordenanças de nosso Senhor....
e administrar os recursos para os pobres.... aquele que menosprezar as admoestações
Porque alguns negligenciam encontrar particulares será admoestado por sua vez
consolo na Palavra de Deus em tempos de pela Igreja e, se ele não voltar à razão e
doenças e, como uma consequência, têm nem reconhecer seus erros, quando ele
morrido sem admoestação ou instrução está convencido, será ordenado se abster
na doutrina (a qual é para o homem mais da comunhão até que altere suas atitudes...
salutar em tais tempos do que nos outros), até que seja evidente que tenha mudado
isto será bom e por esta causa nós avisamos seu modo de vida.
e ordenamos que ninguém pode permane- No entanto, todas essas medidas de-
cer doente de cama mais do que três dias verão ser aplicadas com moderação. Não
sem notificar os ministros. Qualquer um deverá haver um tal rigor que alguém seja
será livre para chamar os ministros se ele expulso para longe, porque todas as cor-
assim o desejar... E, sobretudo, pais, irmãos reções são medicinais, para trazerem de
e responsáveis não precisam esperar até volta pecadores ao nosso Senhor.
que a pessoa esteja à beira da morte, pois DEUS SEJA LOUVADO!”
em tal situação pouco consolo se obterá!
Vale a pena examinarmos o texto
A disciplina acima e pensar um pouco nas mudanças
que, desde o século XVI, têm ocorrido
Os comissários designados se reunirão na forma de governo em nossas igrejas
junto com os ministros uma vez por mês, presbiterianas. Ou no seu abandono. O
a saber, na manhã de quinta- feira, para que significam essas mudanças? Será que
tomar conhecimento se há alguma irregu- sua intenção inicial permaneceu apesar
laridade na Igreja e decidir em Assembléia de tudo? Elas são um desafio para nós
quais os remédios que são necessários... ainda hoje?

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 25


GOVERNO E PRINCÍPIOS
PRESBITERIANOS

Lição 6

C omo vimos, as Ordenanças Eclesi


ásticas de 1541, elaboradas por
Calvino para a cidade de Genebra e que
muito significativa. Aos diáconos cabia o
“ministério da compaixão”, pelo qual os
desempregados e abandonados, como os
depois serviram como modelo em todo o mendigos da cidade, recebiam o cuidado
mundo reformado, constituíram um impor- da comunidade de forma realmente eficaz.
tante documento com vistas à organização
da igreja como corpo de Cristo dentro das O Conselho e a disciplina
limitações do mundo e das circunstâncias
em que vivemos como cristãos. Nesse sistema, era muito importante
Relembrando, podemos resumir seus o lugar do Consistório (Conselho). Dele
princípios básicos como segue. A igreja faziam parte os pastores e presbíteros,
de Jesus Cristo possui quatro ofícios fun- com a responsabilidade de zelar para que
damentais. Os pastores, que cuidavam da houvesse uma congregação disciplinada
pregação da Palavra, dos sacramentos, pelo conhecimento da fé cristã, pela par-
da instrução e, com os presbíteros, da ticipação nos cultos e por uma conduta
disciplina na igreja. Deles eram exigidas exemplar. Como escreve John Leith (p.
“integridade e competência” e suas funções 254-255) “a intenção de Calvino era a de
eram muito importantes na condução de que a igreja fosse o que ela afirmava ser,
uma igreja fiel a Jesus Cristo. Os mestres isto é, o povo de Deus. A disciplina nunca
ou doutores eram os responsáveis pela foi um fim em si mesmo.
preleções de teologia e também cuidavam A igreja se empenhava em manter a
do ensino nas escolas. disciplina com uma tríplice finalidade:
A importância da instrução catequética 1. para que a glória e a honra de Deus
era fundamental para Calvino, uma vez pudessem ser reafirmadas;
que a igreja devia possuir conhecimento 2. para que o que é mau não corrom-
real dos fundamentos da fé cristã e de suas pesse o que é bom;
implicações para a vida. Eram “instruções 3. para que aqueles que houvessem
necessárias para preservar a doutrina caído em pecado fossem reconduzidos
divina e conservar a igreja para não se à integridade. Calvino evitou a severa
tornar desolada.”Os diáconos tinham sob disciplina dos anabatistas, que buscavam
sua responsabilidade o cuidado dos po- uma igreja pura e separada, e nunca
bres e dos doentes. A inovação de Calvino tornou a existência da igreja dependente
ao introduzir na igreja o diaconato foi da disciplina.”

26. REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


Forma e essência Formas Provisórias

Ao tratar da questão da ordem e da O presbiterianismo, que se firmou como


forma de governo na igreja, não podemos sistema de governo ainda no século XVI
deixar de lado uma questão de fundo, mui- com John Knox na Escócia, através de sua
to importante e que pode ser destacada na história tem evoluído e se diferenciado em
seguinte pergunta: será que a forma que a alguns pontos das Ordenanças Eclesiásticas
igreja possui corresponde à sua essência, de Calvino. Isso porque é da sua própria
ou se aproxima dela? natureza evoluir e se modificar uma vez
Sim, a questão ainda hoje é se a forma que nenhuma forma, por melhor que seja,
assumida pela igreja é aquela desejada pode ser perfeita ou definitiva. O próprio
por Deus para o seu povo se conduzir. Ou Calvino diz que “a organização da Igreja
seja, como é que a ordem (governo) por nós admite e até requer, de acordo com as
estabelecida pode levar a uma disciplina condições variadas dos tempos, diversas
de vida e de culto que nos assegure que a mudanças” (Leith, 252). E nós devemos
vontade de Deus esteja em primeiro lugar? ter a liberdade que nos é concedida no
Para o mais importante teólogo refor- Espírito para, na comunhão com os irmãos
mado do século XX, Karl Barth, a igreja é a e conforme a necessidade de cada época,
“forma terrestre da existência de Jesus Cris- modificarmos, recuarmos ou avançarmos
to” (Leith, 248). A responsabilidade nossa no que for preciso, tendo em vista princi-
é grande e o desafio maior sempre será palmente o desempenho da missão que a
como fazer com que a forma adotada tenha igreja recebe e que tem a desempenhar.
sustentação na doutrina que professamos. Em nossa própria constituição eclesi-
Os reformados/presbiterianos sempre ástica isso tem acontecido várias vezes, o
enfatizaram que a essência da igreja não que nos aproxima de um magno princípio
está em si mesma ou na sua estrutura, como reformado que sempre deve nos servir de
muitas vezes sustenta a Igreja Romana (hie- guia: “Igreja Reformada, sempre se Refor-
rarquia de bispos), mas na existência de um mando”. E isso também tem possibilitado
povo para o qual Jesus Cristo é o Senhor. que o presbiterianismo conviva com a
A estrutrua da igreja existe não como diversidade dentro de sua unidade.
fim em si mesmo, mas para ser “serva
da comunidade de Cristo, que a capacita Definições de Presbiterianismo
para realizar suas funções de maneira
eficaz, cumprindo assim a missão que lhe Mesmo reconhecendo a fragilidade das
foi confiada por Deus, permanecendo sob formas que a igreja pode assumir, temos na
a soberania de Jesus Cristo.” Ou seja, a herança reformada/presbiteriana princípios
forma assumida pela igreja é decorrência fundamentais que, pela sua validade atra-
do princípio do sacerdócio universal dos vés da história, são fundamentos básicos
crentes, sustentado pela Reforma, pelo qual que sustentam uma experiência eclesiástica
“todos são iguais diante de Deus, gozam que devemos reafirmar. Sigamos o prof.
dos mesmos privilégios e participam das Leith (p. 256 ss) nos resultados de sua
mesmas responsabilidades.” (Leith, 168) pesquisa.

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 27


Para ele, por exemplo, o famoso teólo- dos ministros nos assuntos em discussão
go do século XIX, Charles Hodge, professor e votação.
do Seminário de Princeton nos Estados Uni-
dos, ao definir o presbiterianismo, firmou Princípios fundamentais
diversos pontos importantes:
• os atributos e prerrogativas da A partir dessas definições, temos quatro
igreja são as mesmas do Espírito de Deus princípios básicos do presbiterianismo:
e este está ,em primeiro lugar, com o povo
e não apenas com os clérigos; 1. A autoridade das Escrituras. Para
• o que determina os métodos de justificar sua forma de governo o presbite-
organização da igreja são, em primeiro rianismo tem recorrido à Bíblia. Era claro
lugar “os princípios delineados na Palavra para Calvino que essa era a forma pela
de Deus” seguidos pela sua liberdade de qual o Senhor desejava que sua igreja fosse
escolha; governada. Mesmo assim, ele achava que
• os princípios fundamentais do siste- isso não significava uma obediência servil
ma presbiteriano são: a igualdade do clero; à prática da Igreja Primitiva.
o direito do povo a uma ampla participação Se, por um lado, convinha que na con-
no governo da igreja; a unidade da igreja, gregação dos fiéis as coisas fossem feitas
sendo que uma pequena parte está sujeita com decência e ordem, conforme o con-
a uma maior e a maior ao todo. selho de Paulo (1 Co 14.40), por outro, é
Já o importante historiador do presbite- preciso discernir que as tradições não são
rianismo no século XX, James Moffat, disse necessárias para a salvação.
que o “presbiterianismo é o nome dado Não se deve mudar as coisas a cada
à crença na Igreja católica e apostólica, passo e sem motivo sério, apressadamente.
governada por presbíteros.” Seus princípios O amor será a melhor forma de julgar o
são: a) a igualdade dos presbíteros; b) o que prejudica e o que edifica e, se per-
direito do povo, através de seus represen- mitirmos que ele nos guie, tudo irá bem.
tantes ou presbíteros leigos, de participar O importante nesse ponto, é a afirmação
do governo da igreja; c) a unidade da igre- da soberania de Deus também no que se
ja, não simplesmente na fé e ordem, mas refere ao governo da igreja.
em uma sucessão graduada de tribunais Para os presbiterianos, a questão funda-
eclesiásticos que expressam e exercitam mental é reconhecer que o seu sistema de
a autoridade geral da igreja como uma governo é bíblico, mas não que a sua ou
sociedade divina. outra forma de governo seja considerada
Para o escocês G.D.Henderson, o necessária para a existência da igreja.
presbiterianismo é definido como uma
forma de governo eclesiástico... na qual a 2. O segundo princípio refere-se à uni-
principal característica é o controle por uma dade da igreja manifesta através dos con-
sucessão graduada de conselhos dirigentes, selhos formados por presbíteros eleitos pelo
cujos membros são ministros ordenados e povo. Ao contrário dos congregacionais,
leigos presbíteros, todos ministros tendo a congregação local não é independente,
igual “status” e todos os presbíteros tendo mas está sob a autoridade dos concílios
os mesmos direitos e responsabilidades superiores e, ao contrário dos episcopais,

28 . REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


sua unidade não depende dos bispos. Perguntas
Quanto a isso a idéia de Calvino é Diante do que vimos expondo se faz
que o conselho representativo permite um necessário confrontarmos não só a forma
governo comum e não de indivíduos. O de governo que aplicamos na igreja como
governo também não deve ser exercido só toda a nossa política eclesiástica, de forma
por pastores. Calvino temia um governo mais ampla. Por certo, descobriremos dife-
tirano e individual, da mesma forma que o renças entre o que faz parte dos princípios
governo pela massa do povo, que, no seu presbiterianos e o que ensinamos e prati-
entender, não estava preparada para tomar camos em nossas congregações, conselhos,
as decisões na vida da igreja. presbitérios e demais concílios.
Serão práticas pertinentes que resulta-
3. O terceiro tem a ver com a paridade ram de adaptações necessárias conforme
do ministério. Calvino não apreciava o sugere o próprio Calvino, ou são outra
princípio hierárquico e era contra a idéia coisa? Poderiam ser resultantes de nosso
de principado, domínio monárquico, etc. desconhecimento daquilo que, em essên-
No governo presbiteriano, portanto, nin- cia, enfatiza a nossa herança?
guém está acima do outro, nem tem maior Será que nossa prática não estaria
autoridade. O que dirige deve ser como o mais voltada para o estilo congregacional,
que serve. Os pastores têm todos a mesma com a imposição ao presbitério da von-
autoridade. As decisões são tomadas em tade de uma ou outra igreja e, portanto,
Assembléia. O Senhor absoluto e soberano distanciando-nos do sistema presbiterial
sobre todos é Jesus Cristo. ou federativo, que fortalece a democracia
e nossa união como igreja?
4. O quarto princípio é o direito do Ou resultaria muito mais do desprezo
povo convidar e eleger oficiais e o pastor. estratégico de idéias e atitudes que, às
O ministro não deve ser escolhido só pelos vezes, seriam custosas, levando-nos àqui-
seus colegas ou pela indicação de uma lo que consideramos mais fácil ou “mais
pessoa sozinha. Para Calvino, a escolha prático”, como se diz? Será que as atitudes
de um ministro é legítima quando os que que negam a aplicação na vida da igreja
parecem idôneos são investidos com o con- da forma de governo e da fé presbiterianas
sentimento e a aprovação do povo. revelam que não fizemos o dever de casa?

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 29


A DISCIPLINA NA IGREJA

Lição 7

F alar de nossa prática como cristãos


reformados é falar também, mais
detidamente, sobre a disciplina com que
ou detiveram. Também não é difícil des-
cobrir os efeitos desastrosos para aqueles
que têm repelido sistematicamente qualquer
vivemos a nossa fé em Cristo. Não é muito disciplina.
fácil falar desse assunto que, no mínimo, Em nosso caso, como igreja, a disciplina
nos parece antipático. Tratar de disciplina resulta da fé que professamos e somente
na sociedade, escola, lar ou igreja tem sido nela repousa nossa motivação. Não resulta
sempre uma tarefa desagradável. de uma análise comparativa com aqueles
Para as crianças e os jovens, ela quer que a utilizam para alcançar sucesso e,
dizer principalmente imposição e repressão então, fazermos uma aplicação estratégica
e muitos adolescentes encontram até uma para conseguirmos resultados satisfatórios
forma simpática de repeli-la: “Não regula, semelhantes.
professor!” ou “Vai regular, pai?”. É prová- Disciplina na igreja tem a ver com a
vel que essa repulsa instintiva à disciplina fidelidade com que atendemos o chamado
tenha muita razão de ser, o que é um motivo de nosso Senhor Jesus Cristo. Mais com
a mais para repensarmos essa questão. fidelidade do que com “êxito”. Como diz
Repensar, e não abandonar... Calvino, “assim como não há sociedade
Inicialmente, é preciso lembrar a im- nem casa, por pequena que seja a família,
portância da disciplina. Dificilmente um que possa subsistir em bom estado sem
projeto sério de vida, por mais simples que disciplina, muito mais necessária será na
seja, mesmo para as pessoas muito bem Igreja que deve se manter perfeitamente
dotadas, foi concretizado sem disciplina. O ordenada.” (Institutas, IV, XII, 1)
mesmo tem acontecido com as empresas,
as instituições ou as nações fortes. Mesmo Igreja e corpo de Cristo
entre grupos políticos, muitas vezes malvis-
tos entre nós, essa medida tem sido funda- Disciplina é uma palavra que está liga-
mental para a sua consolidação como força da a “discipulado”. A cada dia podemos
respeitável atuando no cenário de qualquer viver o desafio de conformar a nossa vida
país. Ou seja, não é possível transigir com pessoal ou em sociedade com aquilo que
tudo, mesmo em política. Jesus Cristo deseja para cada um e para
Também no campo artístico, é fácil cada situação. Não descuidar desse dever
descobrir como os melhores “talentos” se de fidelidade é resultado da visão em
fizeram e alcançaram a posição que detêm profundidade dos efeitos perniciosos do

30. REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


pecado sobre a vida do ser humano e da que se firma nas Escrituras e que é a de
sociedade em que ele vive e que constrói. nunca desvincularmos a fé que professa-
Apesar do que Cristo opera em nós e da mos do viver que praticamos.
ação do Espírito, resvalamos sempre para Para o reformador genebrino, a discipli-
os nossos próprios caminhos, na maioria na, aliada ao cuidado pastoral, é um meio
das vezes marcados pelo egoísmo, que de graça, dever da verdadeira igreja de
nos distancia dos caminhos de Deus. Esses Jesus Cristo, bem próximo de suas marcas
efeitos se fazem sentir na igreja que, pela características: a pregação da Palavra e
disciplina, procura se apresentar como a celebração dos sacramentos. Quando
corpo sadio, para a glória de Jesus Cristo. temos uma igreja em que a pregação, o
A idéia da igreja como corpo de Jesus cuidado pastoral, o ensino em todos os
Cristo é uma das que corroboram o ensino níveis, a assistência e a disciplina existem
sobre a disciplina. Calvino diz que “assim concretamente, aí temos a igreja desejada
como a doutrina salvadora de Cristo é a e ordenada por Deus.
alma da Igreja, a disciplina é como os seus A idéia de Calvino era que a obra re-
nervos e por meio dela os membros do alizada pelo Espírito Santo em nós fosse
corpo se mantêm cada um em seu devido acompanhada de esforço e vigilância para
lugar.” No corpo, temos os membros que vivermos a carreira cristã. O fato de o ser
atuam obedecendo ao centro de comando, humano ser, ao mesmo tempo, justo e
para o bom funcionamento de todos. pecador, levou-o a enfatizar o aspecto de
Em um corpo sadio, entretanto, pode luta contínua da vida cristã.
ocorrer que algum órgão venha a se in- Enquanto outras tradições se conten-
feccionar prejudicando os demais e, na- tavam em aguardar uma manifestação
turalmente, trazendo sofrimento a todos. espontânea de vida cristã, os reforma-
É um momento doloroso e difícil, exigindo dos entendiam que a novidade de vida
cuidados especiais e atendimento carinho- é construída pela ação de Deus em nós,
so. Após tratamentos seguidos, pode ser levando-nos a atuar conforme o seu querer.
que surja a necessidade de um tratamento Calvino entendia que a graça de Deus se
mais incisivo, talvez cirúrgico. Embora seja torna eficaz em nós pela prática da sua lei.
medida penosa para o corpo, é uma insen- De nossa parte, existe uma lentidão
satez querer evitá-la. Os danos acumulados para com as coisas de Deus e, assim, pre-
podem ser fatais. Esse é o único remédio cisamos estar atentos para, com disciplina,
que Cristo nos ensinou, diz Calvino. Por confirmar a sua vontade em nós. Ao mesmo
isso, não ter cuidado para que o povo viva tempo que somos eleitos para uma vida
em disciplina “é o princípio certo de uma nova, nos aplicamos para construir esse
grande desgraça para a Igreja.” viver. E, nesse contexto, a renúncia é um
Falar de disciplina, pois, é referir-se à elemento muito importante.
preocupação de João Calvino em construir
uma igreja fiel ao Senhor Jesus, vivendo o As Instruções de Calvino
máximo possível a realidade do reino de
Deus, nas mais variadas circunstâncias. São diversos os pontos destacados por
Nesse seu zelo para com a pureza da igre- Calvino ao tratar do assunto. Eles podem
ja, ele acabou desenvolvendo uma tradição esclarecer muitas questões importantes,

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 31


como a forma de aplicar a disciplina. “Todo para os filhos especialmente - o Senhor cor-
procedimento,” diz ele, “além de contar rige a quem ama - e não para os bastardos
com a invocação do nome Deus, deve (Hb 12.4-13), mas é também para todos,
mostrar a seriedade que dê a conhecer a pois ninguém está isento da disciplina. Os
presença de Deus, de tal maneira que não príncipes estarão submetidos a ela porque
haja dúvida de que ele preside o julga- procede de Cristo, “a quem, por justiça, to-
mento.” (Institutas, IV,XII,7) “Porque sempre dos os cetros e coroas devem se submeter.”
se deve levar em conta, como ordena o Os reis não devem tomar como afronta o
apóstolo, que aquele que é corrigido não prostrar-se humildemente diante de Cristo,
seja consumido por excessiva tristeza” (2 o rei dos reis. É melhor que os sacerdotes
Co 2.7) “porque de outro modo, o remédio não lhes perdoem para que Deus os perdoe
se converte em ruína” (Institutas, IV,XII,8). (Institutas, IV, XII,7).
“A aplicação da disciplina deve ser feita
pelos presbíteros, que não devem agir so- Ensino do Novo Testamento
zinhos, mas com o conhecimento da igreja
e com a sua aprovação. Deve-se evitar que Como disciplinar? Com mansidão e cle-
alguém venha participar de sua aplicação mência, e não com extremo rigor (Institutas,
por um capricho pessoal.” Deve-se ater IV, XII,9) para que o amor ao pecador seja
mais à sentença do juízo de Deus, para confirmado (2 Co 2.8). Com sentimento,
que ao se arrancar o joio não se arranque sem ser áspero (2 Co 2.4-5). Como pai (1
com ele o trigo também (Mt 13.29). Co 4.14-15). Sem provocar a ira (Ef 6.4).
Ninguém pode se arrogar a autoridade Com humildade, sem vanglória, buscando
de julgar, a não ser que se queira limitar o a união (Fl 2.1-4). Com dedicação (Rm
poder de Deus e ditar leis para a sua mise- 12.8). Em particular (Mt 18.15). Em nome
ricórdia, pois, sempre que quer, Ele muda do Senhor Jesus (1 Co 5.4). Com tolerância
e transforma os mais perversos em santos (Jo 8.1-11; Mt 18.21-22).
e recebe na igreja os que são estranhos Como receber a disciplina? Com apreço
a ela. “E assim o Senhor faz para frustrar para com os que admoestam (1 Ts 5.12).
a opinião dos homens e reprimir a sua Quem admoesta? Não só o pastor e os
temeridade, a qual, se não for reprimida, presbíteros, mas todos (Rm 15.14; Hb
atreve-se a atribuir maior autoridade do 3.13). Para Calvino, esta autoridade não
que aquela que lhes compete” (Institutas, está na mão de uma só pessoa, mas no
IV, XII, 9). conselho dos anciãos (presbíteros). Mas
São inúmeros os textos bíblicos que quem nos disciplina verdadeiramente é o
servem de fundamento a este ensino. Sua Senhor Jesus (1 Co 11.32). Deus disciplina
base está em Mateus 18.15-18; 16.19; (Hb 12.10).
João 20.23. O poder das chaves, como é Por que disciplinar? Para não sermos
chamado, e que estava sujeito aos abusos endurecidos pelo engano do pecado (Hb
da Igreja de Roma, vem da pregação da 3.13). Para que ninguém pereça (2 Pe 3.9).
Palavra, da qual os homens são feitos mi- Para produzir mais fruto (Jo 15.2). Para par-
nistros por Cristo (Institutas, IV. XI,2). ticipar da santidade de Deus (Hb 12.10).
A quem cabe a disciplina? É do Senhor Para edificação (2 Co 13.10).

32 . REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


Calvino mostra que são vários os objeti- que encontramos nas Escrituras.
vos da disciplina: em primeiro lugar, evitar Outros problemas podem estar ligados
os escândalos. Depois, para que não sejam à prática da disciplina. Um deles talvez seja
profanadas a Igreja e a Ceia, para que os a tendência de se estabelecer determinados
bons não sejam corrompidos e para que padrões de comportamento ou lista redu-
os pecadores, envergonhados do seu pe- cionista de pecados, que pouco tem a ver
cado, comecem a se arrepender (Institutas, com o ensino bíblico.
IV, XII,5). Também “porque toda regra de Outros se aproximam de uma moral
disciplina eclesiástica sempre deve levar que reflete mais a prática de algum grupo
em conta a união do espírito e o vínculo social e seus interesses. Um outro desca-
da paz, os quais o Apóstolo manda-nos minho seria confundir os ensinos de Jesus
observar “suportando-nos uns aos outros” com atitudes e ensinos moralistas apenas.
(Institutas, IV, XII, 11). Lembremo-nos que a ética pessoal de Jesus
Cristo está muito distante dos moralismos,
Dificuldades que têm como característica a hipocrisia.
Por isso, muitos na igreja não querem
É preciso que reconheçamos as muitas tocar nesse assunto. Temendo o surgimen-
dificuldades que temos quando pensamos to de uma igreja autoritária e sem amor,
na aplicação da disciplina na igreja hoje. muitos preferem negligenciar esse ensino.
Já mencionamos a antipatia com que Ou, então, só utilizam a disciplina para
essa questão é vista e, muitas vezes, não casos extremos.
sem razão. E há outras tantas razões para Se com as dificuldades expostas nos
temermos o uso indevido da disciplina. sentimos em um dilema, não devemos
Em muitos lugares, em épocas diferentes, permitir que ele nos paralise e nos faça
a aplicação da disciplina criou situações negligentes. Temendo os extremos indese-
penosas e muito constrangedoras. jáveis, a igreja perde, não favorecendo a
A Bíblia não ensina que devamos nos existência de um ambiente de verdadeiro
constituir em uma espécie de detetives, crescimento cristão.
farejando especialmente os pecados dos Da mesma forma como o amor dos pais
outros, com espírito acusador, bisbilhoteiro não permite que os filhos se encaminhem
ou hipócrita. Também não dá margem para desavisadamente para o sofrimento inútil,
que se negligencie essa matéria. assim devemos agir ao vivenciarmos a
Nos textos acima, o que temos são fé com os irmãos. É preciso favorecer a
referências a uma aplicação amorosa da existência de uma comunidade em que
disciplina e as palavras têm a ver com man- a responsabilidade e o amor mútuo se
sidão, tolerância, ação de um pai amoroso, completem.
espírito de brandura, visando a unidade do
Espírito e o vínculo da paz. Elas estão muito Disciplina, Hoje
distantes de palavras com sentido forense
como convocação, testemunha, processo, É preciso que a igreja recupere a prática
promotor, sanção, depoimento, etc. que, e o sentido bíblico da disciplina. São mui-
na verdade, distoam muito do tratamento tos os irmãos que têm consciência de sua

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 33


importância e vivenciam a auto-disciplina transparência e perdão, que aprendemos
cristã, ora se ausentando mesa do Senhor, na escola de Jesus. Nesse aprendizado,
ora, em espírito de contrição, procurando acabaremos por descobrir que a verda-
se corrigir e libertar daquilo que eles mes- deira disciplina pode brotar livremente da
mos sentem como prejudicial para a a sua consciência que a igreja, atenta à prática
fé e para o testemunho de Jesus Cristo na da imitação de Cristo, possa ter de sua ne-
comunidade. cessidade. Só assim, a disciplina deixará de
Assim, podemos afirmar que um impor- ser um elemento estranho na vida da igreja.
tante traço da disciplina na igreja hoje é Mesmo com esse cuidado, ainda pode-
justamente sua auto-aplicação, como fruto mos ter situações mais difíceis, como a do
de arrependimento sincero, com o apoio da irmão faltoso que não tenha consciência do
comunidade. Para que isso ocorra mais e pecado ou não queira reconhecê-lo. Pode
mais, já que o pecado é uma realidade tão ser um caso de constrangimento geral, em
presente em nós, a igreja teria de criar as que todo o corpo se ressente disso. Então,
condições para o cultivo dessa prática do um trabalho cuidadoso e pastoral, rechea-
viver cristão em obediência a Jesus Cristo. do de amor e humildade, poderá apontar o
Procurando fugir dos sentimentos de melhor caminho para que a disciplina seja
orgulho pessoal e hipocrisia no relaciona- aplicada, e o efeito desejado, alcançado.
mento sincero com o irmão, poderíamos O próprio Senhor Jesus nos mostra como
dar lugar ao espírito de humildade orante, fazer isso em Mateus 18.15-17.

34. REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


A BÍBLIA E O
TESTEMUNHO DO
ESPÍRITO SANTO
Lição 8

“ Lâmpada para os meus pés é a tua Lutero, na Alemanha, no século XVI, expe-
palavra e luz, para o meu caminho.” rimentou uma grande confiança no poder
(Sl 119.105). Assim é que o salmista se soberano da Palavra de Deus.
refere aos frutos de sua experiência com Para ele, as reformas que a igreja ne-
o livro de Deus, livro precioso, indescritível cessitava seriam feitas quando a Palavra
em seu valor. Nele está a palavra preciosa pudesse agir livremente. Avaliando mais
que conforta, alegra, mostra o caminho a tarde o que havia acontecido em sua luta
seguir, conduz à salvação. Nesse salmo, o com as autoridades eclesiásticas e como
poeta e servo de Deus não se cansa de ten- Deus o usara, ele disse: “Mesmo quando eu
tar, incontáveis vezes, com novas palavras dormia, essa Palavra fez mais para abalar o
e imagens, descrever a sua experiência com papado do que todo o mal que lhe tenham
a Palavra viva. “Quanto amo a tua lei! É a causado os príncipes e imperadores. Não fui
minha meditação, todo o dia” (Sl 119.97). eu quem o fez; tudo foi feito pela Palavra”
O seu valor? É maior do que o ouro, “mais (Strohl, 73).
do que o ouro refinado” (verso 127). Zuínglio o primeiro grande pregador
Através dos séculos, essa experiência de linha reformada/presbiteriana, depois
maravilhosa tem se repetido na vida das de se dedicar como humanista ao estudo
pessoas. O reconhecimento das Escrituras da literatura clássica e da filosofia grega,
como o livro por excelência, que fala dos ficou maravilhado com a superioridade da
planos de Deus para a salvação do ser Bíblia. E foi com ela que iniciou a Reforma
humano e do seu cuidado para com ele, em 1522, em Zurique, na Suíça. Queria
tem se confirmado sempre. Bem antes da chegar à fonte da verdadeira fé cristã. Por
Reforma, João Wyclif (1328-1384), na In- isso, a Bíblia teve lugar central em sua obra.
glaterra, ficou tão encantado com a Bíblia, Em sua própria conversão ele sentiu
que passou a traduzi-la na linguagem do isso: “Cheguei ao ponto em que, pela Pala-
povo, para que todos a conhecessem e vra e pelo Espírito de Deus, vi a necessidade
soubessem que o único cabeça da igreja de colocar de lado todas aquelas coisas e
era Jesus Cristo e não o Papa. aprender a doutrina de Deus diretamente
Os reformadores também sentiram o de sua Palavra. Então comecei a pedir luz
grande poder das Escrituras em suas vidas a Deus e as Escrituras tornaram-se muito
e falaram sobre as suas maravilhas. Tive- mais claras para mim” (Timothy, 126). Foi
ram o seu pensamento dirigido por elas e assim que ele abandonou os outros ensinos
fizeram uma revolução no mundo religioso. para ouvir a verdadeira Palavra de Deus e

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 35


anunciá-la. O povo comparecia em massa é testemunhada pelos profetas e apóstolos.
à igreja para ouvir suas exposições sobre Nesse ponto, Lutero foi radical e ainda
o Novo Testamento, começando com o hoje é um marco para nos orientar e tran-
evangelho de Mateus. quilizar. Para ele, Jesus Cristo é o Senhor
Calvino também deu às Escrituras um das Escrituras. A canonicidade de um livro
lugar fundamental em seu ensino. Para ele, depende de seu caráter cristocêntrico, ou
o testemunho que a natureza dá de seu seja, do fato de anunciar a Cristo. E, assim,
criador não é suficiente para nos instruir a autoridade dos escritos bíblicos depende
e levar ao verdadeiro conhecimento de da presença de Cristo para a qual eles
Deus. Por essa razão, Deus acrescentou a apontam.
luz que vem de sua Palavra para que, por Por outro lado, a questão da autoridade
meio dela, pudéssemos obter a salvação da Bíblia se manifesta quando se indaga
e o nosso conhecimento viesse a alcançar, se tudo o que se encontra nela é digno de
com clareza, o verdadeiro Deus (Institutas confiança. Ou, então, como se pode saber
I,VI,1). Não só do Deus criador, mas tam- que ela é a palavra segura da parte de Deus
bém do Deus redentor, na pessoa do único para o homem e a sua salvação? Essas
mediador, o Senhor Jesus Cristo. questões, que podem até parecer indignas
de serem consideradas por um crente, na
As dificuldades verdade ainda hoje são pertinentes.
O próprio Lutero, como vimos acima,
Isso, entretanto, não tem impedido que, já estava lidando com elas e procurando
na leitura da Bíblia e no seu estudo, nos respondê-las. Ele mais do que ninguém
deparemos com dificuldades. A maneira sabia do valor das Escrituras e confiava na
de interpretá-la, por exemplo, tem levado ação do Espírito Santo quando, em oração,
aos mais diversos caminhos e provocado busca-se compreendê-las, mas isso não o
divisões entre os diversos grupos religiosos. impedia de considerar essas dificuldades.
Uma outra questão, que está relacionada a Uma desses problemas advém da dis-
esta e que aparece em algumas discussões tância que existe entre nós e aqueles que,
teológicas, é a que se refere à sua autori- no passado, inspirados, escreveram os
dade. Por que a consideramos única em textos bíblicos. Às vezes são dois mil anos
seu valor para nós? que nos separam de um escritor, para não
No tempo da igreja medieval, antes dos falar na diferença entre o ambiente cultural
reformadores, o sentido da Escritura era em que ele viveu e o nosso.
fixado pelos Concílios que, sob o controle Quase sempre a visão de mundo que o
do papa, estabeleciam uma regra de fé escritor possui é bem diversa da que temos
a ser aceita por todos. Os que divergiam hoje, e nem é necessário dizer como o tem-
dessa interpretação eram ameaçados. Os po e a cultura transformam os costumes, as
reformadores se rebelaram contra isso e, idéias e as formas de se expressar. Daí o
em lugar da autoridade papal para confir- trabalho minucioso dos historiadores, lin-
mar a interpretação que era dada à Bíblia, guistas, arqueólogos e principalmente dos
apelaram para a autoridade do próprio exegetas, que têm se debruçado sobre a
Senhor Jesus, que nela se encontra e que Bíblia para melhor entender o seu sentido.

36 . REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


Será que ao tratar dessas questões pode para Cristo não devia ser considerado
ocorrer que venhamos a nos sentir insegu- apostólico. A partir daí, ele manifestou a
ros em nosso relacionamento com o livro da sua preferência, em primeiro lugar, pelo
vida, pelo qual temos acesso a Jesus, nosso Evangelho de João e, em seguida, pela
Senhor? Será que poderíamos continuar Epístola aos Romanos.
a aceitá-la como temos feito, sem perder Por sua vez, Calvino, o nosso reforma-
a confiança? Ou não seria o caso de, ao dor, também notou que o valor dos diversos
levar em consideração essas questões, nos livros na Bíblia era diferente. Ele percebeu
acharmos em condições de dar as razões também algo que é uma coisa maravilho-
da nossa fé e de melhor compreender o sa, ou seja, que a Palavra de Deus vem a
recado que a Bíblia tem para as pessoas nós através das linguagem e das palavras
nos dias de hoje? humanas, mesmo com toda a sua fragili-
Diante de tais questionamentos sempre dade. Por causa de nossa ignorância ou
se sentiu a necessidade de compreender incapacidade de compreender os seus
melhor o que é a Bíblia e de explicá-la mistérios - ensinou ele - Deus se adapta
para os que a questionam. Nesse ponto, (se acomoda) à nossa maneira de falar,
os reformadores tiveram e têm hoje uma para que a sua Palavra seja compreendida.
palavra que merece ser mais e mais lem- Assim, sendo a Bíblia um livro divino,
brada. A teologia dos tempos da Reforma não deixa de ter, como se pode ver pela
girou em torno da Palavra de Deus e com diferença de estilos literários de seus escri-
ela podemos aprender muito do verdadeiro tores, traços humanos. Por perceber esse
sentido das Escrituras, mesmo que tantos caráter divino e humano das Escrituras,
séculos tenham se passado. em seus comentários, referindo-se à trans-
missão de uma certa palavra ou texto, ele
A palavra dos reformadores podia reconhecer, sem maiores problemas,
por exemplo, que ali, por engano, “um erro
Voltemos, em primeiro lugar, novamente havia sido cometido pelo copista”.
a Lutero. Ele possuia uma maneira muito
interessante de considerar a Bíblia. Para O testemunho interno do
ele, os diversos escritores bíblicos tinham Espírito
modos diferentes de experimentar a fé e
de expressá-la e isso é visível quando, ao Mais importante, entretanto, foi a ma-
escrever, eles deram o seu testemunho nas neira como Calvino respondeu à questão
Escrituras. Dessa forma, ele podia perceber sempre levantada, sobre a maneira pela
a diferença de estilos entre eles. Ao compa- qual podemos saber, com segurança, que
rar o ensino sobre a justificação pela fé no a Bíblia é a Palavra de Deus. Para ele, ao
Novo Testamento, ele notou diferença entre contrário dos teólogos que vieram depois
Paulo, escrevendo aos Romanos, e Tiago, (e que, de certa forma, modificaram o seu
que lhe parecia ensinar a justificação pelas ensino) e que queriam provar por argu-
obras. Preferiu valorizar mais Paulo. mentos racionais que a Bíblia é a Palavra
Além disso, no seu entender, um escri- de Deus, a questão devia ser compreendida
to que não fosse bem claro em apontar de modo diferente e, portanto, ter uma res-

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 37


posta diferente. lhes foi determinado pelo Espírito Santo”
Do mesmo modo que Lutero e Zuínglio (Institutas, I, VII, 5).
a palavra viva de Deus é, em primeiro lugar Deus na verdade cuidou para que esses
e acima de tudo, a própria pessoa de Jesus escritos desempenhassem o seu papel no
Cristo, nosso Senhor. E também que a única que se refere à nossa salvação inspirando
forma de reconhecer a Palavra de Deus nas os que os redigiram. Assim, “a Escritura
Escrituras era pela ação do Espírito Santo: nos alcança de fato quando confirmada
“o testemunho dado pelo Espírito Santo é em nossos corações pelo Espírito Santo...
muito mais excelente que qualquer outro Iluminados pela ação do Espírito, cremos
argumento”, dizia. que a Escritura é de Deus, e isso porque,
Calvino também destacou em seu ensi- para além de todo juízo humano, é-nos
no que a única maneira de confirmarmos dado conhecer, com absoluta certeza, que
a Palavra de Deus em nosso coração se a Escritura nos vem dos próprios lábios
dá pelo testemunho interno do Espírito de Deus, por intermédio do ministério dos
Santo e não por “argumentos e disputas homens... (Strohl, 85). “É mister que o Es-
inúteis.” Para ele é “preciso que o mesmo pírito inspirador da Palavra entre também
Espírito, que falou pela boca dos profetas, em nossos corações fim de iluminá-los” e
penetre em nossos corações e os toque por essa falta é que muitos permanecem
eficazmente para persuadí-los de que os incrédulos e recusam o evangelho. Só assim
profetas disseram com fidelidade o que Deus pode ser conhecido.

38. REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


A SOBERANIA
DE DEUS

Lição 9

A soberania de Deus está entre os te-


mas destacados e facilmente
perceptíveis na Escritura, especialmente na
elas, para elas e sobre elas tudo quanto
quiser” (Cap. II, 2).
O testemunho bíblico sobre o poder e
vida do povo de Israel e da igreja. Deus é a majestade de Deus pode ser encontra-
o senhor de todas as coisas. Em sua ma- do em muitos livros da Bíblia. No Antigo
jestade, Ele controla o mundo de forma Testamento, livro dos Salmos, temos: “Ó
absoluta e, em seu agir, não depende de Senhor, Senhor nosso, quão magnífico em
nenhum outro poder. Em qualquer área toda terra é o teu nome! Pois expuseste nos
da existência do ser humano e do mundo, céus a tua majestade” (8.1) ou “O Senhor
Deus é tudo em todas as coisas. é a minha luz e a minha salvação; de
Para os reformadores do século XVI e, quem terei medo? O Senhor é a fortaleza
de modo especial, para João Calvino e os da minha vida; a quem temerei?” (27.1),
seus seguidores, essa doutrina mereceu ou ainda “Os céus proclamam a glória de
e tem merecido um lugar de destaque. Deus, e o firmamento anuncia as obras das
É uma crença básica para os cristãos de suas mãos.... por toda a terra se faz ouvir a
linha reformada/presbiteriana. Para muitos sua voz e as suas palavras, até aos confins
teólogos reformados, se há um dado que do mundo” (19.1).
pode ser considerado o eixo central no sis- O que vemos com clareza atestado nas
tema presbiteriano/reformado e em torno Escrituras é que Deus é o Senhor todo-po-
do qual gira tudo o mais, é este. deroso e único no mundo: “Ó Senhor, quem
é como tu entre os deuses? Quem é como
I tu, glorificado em santidade, terrível em
Referindo-se a esse assunto, ao tra- feitos gloriosos, que operas maravilhas?”
tar de Deus e da Santíssima Trindade, a (Ex 15.11). Em sua presença os ídolos são
Confissão de Fé de Westminster diz assim: lançados fora (Is 31.7). Ele é o primeiro e o
“Há um só Deus vivo e verdadeiro, que é último e julga a terra e todas as nações (Is
infinito em seu ser e perfeição... Deus tem 82.8). Não existem outros deuses (Is 43.10).
em si mesmo, e de si mesmo, toda a vida, Ele é o Senhor de toda a terra, da natureza
glória, bondade e bem-aventurança. Ele e também do ser humano (Am 4.13). Por
é todo suficiente em si e para si... Ele é a isso, Ele é o Senhor de toda a história (Is
única origem de todo o ser: dele, por ele e 45.21; 46.9).
para ele são todas as coisas, e sobre elas No Novo Testamento, é Paulo quem
tem ele soberano domínio para fazer com mostra essa verdade a Timóteo: “Exorto-

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 39


-te... que guardes o mandato imaculado... implicações dessa doutrina para a vida do
até a manifestação de nosso Senhor Jesus cristão. Vivemos em um mundo e desde os
Cristo; a qual há de ser revelada pelo primeiros passos, embora protegidos no lar,
bendito e único Soberano, Rei dos reis e sentimos muita insegurança. E muitas vezes
Senhor dos senhores; o único que possui somos dominados por essa insegurança
imortalidade, que habita em luz inacessível, que nos cerca. Ficamos ansiosos com as
a quem homem algum jamais viu, nem é incertezas ao nosso redor.
capaz de ver. A ele honra e poder eterno. Às vezes somos colocados em uma si-
Amém” ( (1Tm 6.13-16). tuação de solidão ou abandono, também
Muitos hinos dos nossos hinários, de sem poder compreender o que está ocor-
origem reformada, falam da grandiosi- rendo. Temos dificuldades com as novas
dade de Deus e de seu poder soberano: situações a serem enfrentadas e muitas
“Ao Deus de Abrão louvai, do vasto céu vezes nos desesperamos. Existem os proble-
Senhor, Eterno e poderoso Pai e Deus de mas naturais como as catástrofes, doenças
amor” (SH 232); “Santo, santo, santo, Deus e até a morte. Temos problemas humanos
onipotente” (SH 247) ou “A Deus, supremo de preconceito, incompreensão, desajustes,
benfeitor, anjos e homens dêem louvor” sentimentos humanos incontroláveis, etc.
(Doxologia, SH 227). Enfrentamos também os problemas
Isso, entretanto, não quer dizer que, em oriundos do tipo de sociedade que cons-
seu poder e majestade, Ele seja um Deus truímos. Em um mundo globalizado, com
distante, abstrato e impessoal como às marcas fortes do egoísmo nas estruturas
vezes é descrito. Ao contrário, ele é acima familiares, sociais, econômicas e políticas,
de tudo, Deus presente entre nós (Deus sentimos as desigualdades, o desemprego,
conosco) e amoroso. Ele se relaciona com a violência cotidiana, as injustiças, as ex-
Israel e o elege, bem como com a igreja, clusões, o desprezo pela vida humana. Isso
para ser o seu povo (Mc 12.26-27). Como não acontece só conosco. Calvino se referiu
diz o apóstolo Paulo, “nós somos santuário a essas coisas que ele e seus contemporâ-
do Deus vivente, como ele próprio disse: neos viveram também, mas mostrou, acima
Habitarei e andarei entre eles; serei o seu de tudo, o governo providencial de Deus
Deus, e eles serão o meu povo” (2 Co 6.16). sobre nós e tudo o que estava acontecendo
A maneira jovem de louvar a Deus nas e como ele nunca nos abandona.
igrejas, através do cântico de “corinhos”, Se há algo que sempre preocupou o
também tem encontrado formas de ma- ser humano, foi a questão do seu destino
nifestar essa grande verdade, tão cara a e de sua salvação. Muitos são os desvios
Calvino e aos reformadores. Eis alguns pelos quais a humanidade tem buscado
exemplos: “Ao único que é digno de receber uma tábua de salvação a que se agarrar.
a honra e a glória, a força e o poder” ou, No tempo dos reformadores, o ser humano
“Tu és soberano sobre a terra, sobre o céu preservava a mente ligada a uma série de
tu és Senhor, absoluto...” superstições e ensinos religiosos muito dis-
tantes do caminho proposto nas Escrituras.
II A mensagem da salvação pelas obras, o
É fácil de perceber que são muitas as esforço para conseguir méritos e as indul-

40. REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


gências deixavam as pessoas insatisfeitas Jesus Cristo pela nossa salvação, além de
e aumentavam a sua insegurança. experimentar, na vivência do Espírito Santo,
A descoberta de um caminho diferen- a nova vida concedida por Deus. Também
te, através dos escritos de Paulo sobre a podia flar como Deus cuida da salvação
justificação pela fé, constituíram elemento das pessoas, tomando a iniciativa de se
fundamental para que Martinho Lutero, o achegar a elas com sua graça e libertando-
grande iniciador da reforma na Alemanha, -as da inútil preocupação com as boas
pudesse encher o seu coração de satisfação obras meritórias. Não é difícil imaginar
pessoal e alegria com a salvação. O seu como essa verdade soou altissonante para
hino ainda hoje ressoa em nossos ouvidos: as muitas pessoas que, vindo da igreja
“Castelo forte é nosso Deus”. medieval, se sentiam sobrecarregadas com
Também para Calvino, a descoberta o fardo das boas obras, das penitências ou
dessa verdade libertadora foi maravilhosa. da compra das indulgências.
Ao falar do senhorio de Jesus Cristo na obra Talvez a maior implicação da vivência
da redenção, sua palavra foi muito clara: dessa verdade de libertação e confiança no
“Tudo quanto concerne à nossa salvação Senhor soberano, que cuida de todas as
está compreendido em Jesus Cristo” (Inst. coisas e também da nossa salvação, tenha
II, XVI, 19). Ele, diferentemente de Lutero, sido justamente as pessoas poderem se
expressou essa verdade falando sobre a sentir livres para cuidar de outras preocu-
providência e a predestinação, meios pe- pações. Estavam agora libertas para, com
los quais Deus, soberanamente, cuida de gratidão, se dedicarem ao serviço a Deus
nossa vida e da nossa salvação. e, principalmente, ao próximo.
O assunto da eleição em Cristo tem sido
tratado muitas vezes como uma discussão III
complicada, cheia de becos sem saída e Outras verdades são decorrentes do
sem muito valor prático para a igreja. Mas, que vimos acima. A soberania de Deus
para Calvino, não era assim. Ele não estava está ligada também e de modo direto ao
preocupado em dizer quem haveria de se cuidado de Deus para com o mundo em
salvar ou não, nem estava curioso para que vivemos, com a criação e com a histó-
poder desvendar todos os dilemas de um ria humana. Em Atos 14.15, os apóstolos
enigma filosófico sobre o destino humano, podiam testemunhar isso: Senhores, nós
como os teólogos vieram a fazer depois. “vos anunciamos o evangelho para que
O que foi importante para ele e pode ser dessas coisas vãs vos convertais ao Deus
para nós também foi saber que ali estava vivo, que fez o céu, a terra, o mar e tudo o
um anúncio claro sobre como Deus gover- que há neles”. E a confissão de fé dos pri-
na esse mundo e a nossa vida, e como tem meiros cristãos, logo no começo da igreja
um plano cheio de misericórdia para nos primitiva, tinha muito a ver com isso: “Jesus
alcançar, mesmo na nossa rebelião contra é o Senhor”.
Ele. Essas foram as boas novas descobertas Para João Calvino, no século XVI, em
e anunciadas por ele. meio a uma série de novas descobertas
Em conseqüência, ele podia sentir tra- marítimas e mudanças que estavam ocor-
quilidade na ação redentora realizada por rendo na vida das pessoas na Europa, tal

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 41


mensagem representou muita coisa. Essa para todos?
compreensão totalmente nova de Deus e Existem outras formas de encarar a
seu modo de dirigir o mundo foi funda- vida e a história. Os gregos, por exemplo,
mental para direcionar a vida de muitos, tinham uma compreensão da história que
que se achavam desorientados diante do é chamada de cíclica, ou seja, no seu de-
que estava acontecendo. senrolar está em um eterno retorno. Nada
Em muitas ocasiões, na história do muda. Os acontecimentos são os mesmos
protestantismo na França e em outros e apenas se repetem.
países, os reformados enfrentaram duras Outros povos acreditam na fatalidade
perseguições políticas e a morte, e tiveram do destino e, em geral, não contam com
de pegar em armas contra os seus inimi- uma perspectiva transformadora. Os cris-
gos. Perseguidos e maltratados, feridos de tãos, no entanto, refletem o ensino bíblico
morte, sentiam a mão poderosa de Deus sobre uma história linear, que tem um co-
ao seu lado e se animavam para cantar o meço e caminha para o alvo estabelecido
salmo 68: “Levanta-te Deus; dispersam-se por Deus de “fazer convergir nele todas
os seus inimigos; de sua presença fogem as coisas” e na qual somos chamados a
os que o aborrecem”. nos envolver.
Também nos dias de hoje, somos muitas Como manter firme a compreensão na
vezes céticos e pessimistas, perdendo a ação soberana de Deus, que tem todas as
visão orientadora que nos vem da fé cristã. coisas em suas mãos e as conduz para um
Muitas vezes, ficamos desanimados com o propósito amoroso e salvador? Será que
que vemos e não conseguimos perceber podemos testemunhar aos outros essa fé? O
o sentido do que acontece. Os problemas salmista dizia: “O Senhor está comigo; não
são enormes, nos intranquilizam e fazem temerei. Que me poderá fazer o homem?...
desanimar. Como encarar, por exemplo, Empurraram-me violentamente para me
problemas tão corrosivos como o desem- fazer cair, porém o Senhor me amparou”
prego na proporção em que está existindo? (118.6,13).
Ou o abandono das crianças nas grandes Por sua vez, Calvino escrevia: “Nosso
cidades? Ou a fome, a miséria e a morte consolo, pois, está na compreensão de que
dos povos da África? Ou a pobreza na o Pai celestial tem todas as coisas subme-
América Latina e Caribe? Como ficamos tidas ao seu poder de uma tal forma, que
diante disso, ao saber que a soberania de nada do que existe ocorre que não seja pelo
Deus se caracteriza por santidade e justiça seu querer” (Institutas, I,XVII, 11).

42. REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


ELEITOS EM
NOSSO SENHOR
JESUS CRISTO
Lição 10

I mpossível seria falar da nossa fé refor


mada sem tratar, e com bastante
carinho, do tema da eleição ou predesti-
feitos herança, predestinados... (1.4-11).
Outras palavras eloquentes podemos
encontrar no Antigo Testamento, no livro
nação. Na Bíblia, ele aparece como uma dos Salmos: “Senhor, tu me sondas e me
verdade maravilhosa, a ser contemplada conheces... Graças te dou, visto que por
com gratidão. Paulo, ao tratar da eleição modo assombrosamente maravilhoso me
do povo de Israel e dos gentios na epístola formaste; as tuas obras são admiráveis...”
aos Romanos, nos capítulos 9-11, conclui: (139.1,14). Sim, desde a eternidade Deus
“ Ó profundidade da riqueza, tanto da sa- está pensando em nós. Como disse o notá-
bedoria como do conhecimento de Deus! vel teólogo reformado suíço, Emil Brunner,
Quão insondáveis são os seus juízos, e a nossa existência pessoal é levada a sério e
quão inescrutáveis, os seus caminhos!... por isso temos dignidade. Temos um destino
Porque dele, e por meio dele, e para ele eterno e Deus nos olha com amor.
são todas as coisas. A ele, pois, a glória Com isso, Deus providencia a nos-
eternamente. Amém!” (11.33,36). sa salvação e aguarda que, pela fé,
Sim, Deus está no centro das nossas respondamos amorosamente a Ele. Ele
vidas e do nosso destino e é o Senhor so- nos busca, nos agarra e nos persegue
berano de todas as coisas. Nada há que de forma irresistível e, pela sua graça,
ocorra sem que primeiro contemplemos a opera em nós a sua salvação. A eleição
Ele, pois por trás de tudo o que acontece trata da vontade misericordiosa de Deus
estão a sua vontade e os seus propósitos que é somente graça para conosco, como
para conosco. nos revelam a vida e os atos de Cristo em
Como temos em Efésios, Deus “nos es- nosso favor. A sua graça é o seu cuida-
colheu, nele, antes da fundação do mundo, do amoroso pelo qual, sem possuírmos
para sermos santos e irrepreensíveis pe- mérito, somos acolhidos como seus filhos
rante ele; e em amor nos predestinou para hoje e para sempre.
ele, para a adoção de filhos, por meio de Por isso tudo, João Calvino falava da
Jesus Cristo.. no qual temos a redenção... eleição como um indizível conforto “na
desvendando-nos o mistério da sua von- noite escura da alma”. Conforto para os
tade, segundo o seu beneplácito que pro- que, vivendo a vida cristã, pela ação do
pusera em Cristo, de fazer convergir nele, Espírito, vivenciam o cuidado de Deus para
na dispensação da plenitude dos tempos, com eles. Sem dúvida, um assunto para
todas as coisas, tanto as do céu como as acolhermos com gratidão e humildade, e
da terra; nele, digo, no qual fomos também nunca com presunção.

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 43


As dificuldades os que haveriam de ser salvos e os que
seriam condenados.
É impossível deixar de mencionar o Já para os unversalistas, no pólo oposto,
que lamentavelmente tem acontecido no Deus ama e tem misericórdia para com to-
trato com esse ensino e sua interpretação dos. Quer que todos se salvem. Para outros
na igreja: os mal-entendidos. Uma igreja ainda, o amor de Deus se manifesta para
evangélica neo-pentecostal chegou a pu- com todos, mas só vale para aqueles que
blicar em seu jornal, na primeira página, o buscam e obedecem e têm condições de
as doze razões porque essa é uma doutrina realizar a sua parte (pelagianismo).
diabólica! E mesmo entre nós, reformados/ Questões emaranhadas em meio à
presbiterianos, pode-se perceber como curiosidade humana foram levantadas: se
o assunto é tratado com reticências e até tudo foi estabelecido desde a eternidade,
evitado. não há lugar para a liberdade do ser hu-
Poucos gostariam de ministrar uma aula mano; se uns foram predestinados para
de escola dominical sobre isso. Para alguns, a salvação e outros preordenados para a
parece difícil e complexo, e para outros, tal perdição, como temos no ensino da dupla
estudo traz confusão para a mente das pes- predestinação, então Deus não ama igual-
soas e não edifica. É necessário, no entanto, mente a todos e nem há necessidade de
que, com uma nova abordagem, redescu- arrependimento; se alguns foram rejeitados
bramos essa verdade bíblica e reformada desde o princípio, Deus estaria preso a uma
em todo o seu significado para nós. lógica estabelecida desde a eternidade e
Na verdade, após os reformadores, dela não pode fugir, praticamente perden-
um certa forma de abordar esse tópico da do a sua soberania; se alguns são eleitos,
teologia acabou sendo responsável por outros são condenados e, portanto, estão
isso. Marcada por um tratamento racional excluídos.
e pouco bíblico desse tópico, a ortodoxia Ademais, se tudo está predeterminado -
protestante do século XVII, após os reforma- salvação ou perdição - não há o que fazer.
dores, tornou o assunto praticamente uma Qualquer decisão tomada seria uma ilusão.
discussão filosófica em torno do destino do E, além disso, será que tudo foi decidido
ser humano e de sua liberdade. A eleição sem que as pessoas tivessem uma partici-
tornou-se uma teoria geral sobre decretos pação, por pequena que seja?
estabelecidos por Deus antes da criação do
mundo, da qual se deduzem uma série de O ensino da Escritura
princípios teóricos.
Idéias contraditórias surgiram e grupos É evidente que uma tal problemática
religiosos se formaram, defendendo pontos tem feito com que os vários teólogos e a
de vista diferentes: os defensores de uma teologia se dediquem ao assunto, de forma
dupla predestinação passaram a ensinar a alcançar uma resposta mais satisfatória e
que Cristo morreu apenas pelos eleitos. que esteja de acordo com o ensino bíblico.
Como todos são pecadores, Deus pode Para Emil Brunner(1889-1966), impor-
conceder a sua graça para alguns, e, para tante teólogo reformado suíço da Escola
os demais, aquilo que todos merecem, isto Dialética, ao tratarmos dessa questão de-
é, a condenação. Além disso, antes da vemos levar em consideração os seguintes
fundação do mundo, Deus decidiu sobre pontos:

44 . REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


1. Na Bíblia, a fé é sempre um dado Cristo, pois Ele é a pedra eleita posta por
importante, dependente do relacionamento Deus (1 Pe 2.6). Ele é, pois, o mediador da
pessoal do ser humano com Deus e nunca nossa eleição. Ele é que elege (Jo 15.16).
fé em alguma declaração geral ou dedução Portanto, onde está o Filho há eleição, e
de algum princípio abstrato ou doutrina. onde Ele não está, ela não existe. Nós so-
Assim, a eleição se baseia na fé que ocorre mos eleitos nele (Ef 1.11). Como no Novo
no encontro com Jesus Cristo. Deus nos Testamento o Filho só está onde há fé, os
chama para uma relação pessoal, Eu-Tu. A eleitos são os que crêem. A eleição está no
fé será sempre o elemento fundamental na âmbito do amor de Deus na cruz e é “para
eleição eterna e nunca a dedução a partir todos os que crêem”(Rm 3.22,26).
de um plano pré-estabelecido de modo Do mesmo modo como na antiga
impessoal e neutro. aliança Israel recebeu a eleição de Deus,
2. A eleição de Israel foi uma escolha na nova aliança “vamos ao encontro da-
feita por Deus que veio ao encontro do quele que nos chama em amor”. Eleito é
seu povo (Dt 14.2) e se baseia exclusiva- aquele que é chamado e aceita a filiação
mente nele e no seu amor, sem qualquer de Deus. Ou seja, somos “eleitos, segundo
mérito por parte de Israel. Israel sabe que a presciência de Deus Pai em santificação
depende totalmente da graça de Deus e do Espírito para a obediência... (l Pe 1.2).
que, desobedecendo, será rejeitado (Os Por isso, a eleição “não é uma decisão
5.5). Na aliança que Deus fez com Israel, fingida, onde tudo já tenha sido decidido
há uma exigência de correspondência por de antemão”. Por isso também, a eleição
parte do povo. não pode ser tratada da forma como faz o
Por outro lado, a eleição pode ser es- universalismo (todos serão salvos - no fim
tendida a outras nações (Is 49.6). Deus tem tudo dá certo), nem na forma como ensi-
total liberdade de eleger e o ser humano nam os adeptos da dupla predestinação
está condicionado à obediência para não (tudo já está determinado, tanto para os
ser rejeitado. E o único critério para a se- que se salvam como para os que se perdem
leção é Jesus Cristo. “Crer em Cristo e ser - para que se preocupar?).
eleito é uma e a mesma coisa.”
3. A eleição ocorre como resultado do Dupla predestinação?
amor de Deus que se manifesta pessoal-
mente no chamado que aguarda uma de- Brunner considera a dupla predestina-
cisão pessoal em resposta de obediência e ção um mal-entendido, uma interpretação
fé a Jesus Cristo, por meio de quem viemos errônea, na qual o próprio Calvino teria
a receber graça (Rm 1.5). Mesmo sendo deslizado e que tem trazido consequências
receptáculo da graça como dom de Deus, desastrosas para a compreensão da dou-
o ser humano não é passivo e permanece trina da eleição. Talvez por causa da idéia
responsável. Se a fé é uma dádiva, também de um julgamento final, em que alguns
a liberdade o é. O ser humano permanece ganham a vida eterna enquanto outros
como pessoa diante de Deus e a relação são destruídos, “não foi difícil atribuir esse
pessoal nunca é desprezada ou substituída resultado duplo à vontade toda-poderosa
por qualquer determinismo. de Deus e, dessa forma, deduzir-se a dupla
Na verdade, só podemos falar em elei- predestinação”.
ção tendo diante de nós a pessoa de Jesus Essa também é a idéia do rev. Alfredo
REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 45
Borges Teixeira, ao condenar esse ensino Paulo, ainda no capítulo 11 de Roma-
em sua Dogmática Evangélica (p. 227). nos, diz que temporariamente os judeus
Para ele, Calvino, só por uma injunção foram rejeitados mas que, se se arrepen-
lógica, indo além dos limites da Bíblia, derem e se converterem, serão restaurados,
chegou a ensiná-la na Instituição da Re- ressaltando essa relação pessoal com o
ligião Cristã (Institutas). Na forma como Deus vivo que está sempre presente na pre-
tem sido ensinada a doutrina da eleição destinação. Deus pode até encerrar alguém
muitas vezes, mais parece uma obrigação na desobediência sim, mas para ter miseri-
a que Deus está sujeito, tendo que fazer córdia desse alguém, como aconteceu com
uma seleção prévia, sem poder manifestar Israel e com os gentios (Rm 11.32).
o seu amor e a sua liberdade absoluta. Em Assim, no Filho de Deus que foi anun-
verdade, se examinarmos bem, não existe ciado entre nós, sempre houve o sim, diz
na Bíblia um plano de rejeição e o propó- Paulo (2 Co 1.19). Finalmente, Brunner
sito de Deus é fazer convergir nele todas diz que a idéia de um duplo decreto leva
as coisas (Ef. 1.10). a consequências que estão “em oposição
Ainda quanto à dupla predestinação, absoluta e direta às declarações centrais da
Brunner afirma que, embora tenhamos Bíblia.” Ou seja, em lugar das boas novas
com clareza a eleição para a salvação, da salvação em Cristo possivelmente um
não há na Bíblia “qualquer menção a um “horrível decreto”.
decreto de rejeição.” Embora Deus possa
endurecer o coração para seus propósitos, Conclusão
como fez com faraó em Gn 4.21, “esta ati- Se para falar de predestinação temos
vidade não é atribuída a um decreto eterno que ter diante de nós a pessoa histórica de
e nem como sendo algo irrevogável”. No Jesus Cristo como Deus encarnado, nosso
caso de Judas, que traiu a Jesus, o texto senhor e salvador, e se o tratamento do tema
diz apenas que assim aconteceu para que deve ser cristocêntrico, sempre equacionan-
“a Escritura fosse cumprida”. O mais são do eleição com o estar “em Cristo”, então
deduções. Também no caso da ira de Deus, deixam de ter sentido os questionamentos
ela não se baseia em um decreto eterno, que costumeiramente fazemos ao tratar
só permanecendo se alguém “se mantém do assunto.
rebelde contra o Filho” (Jo 3.36). Questões como liberdade e responsa-
No caso dos vasos que o oleiro faz para bilidade, predestinação ou determinação,
honra ou desonra, não se pode esquecer escolha e liberdade, a participação do ser
que Paulo, em 2 Tm 2.21, diz que “se al- humano, a justiça de Deus e outros estão
guém a si mesmo se purificar destes erros, fora das preocupações dos autores do
será utensílio para honra”. O famoso texto Novo Testamento. Também poderemos
em que Paulo cita a rejeição de Esaú (Rm estar livres de uma discussão especulativa
9.13) também não justifica a idéia de um e ociosa para, com confiança e gratidão,
duplo decreto, mas trata simplesmente da sentirmos a maravilha de sermos alcança-
“liberdade de Deus e sua ação na história dos pela graça de Deus e, assim, termos
da salvação”, ou seja, Deus escolhe os as condições necessárias para nos dedicar
instrumentos de sua ação redentora como ao serviço do reino de nosso Senhor Jesus
lhe apraz, agindo soberanamente. Cristo.

46. REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


A LITURGIA
REFORMADA

Lição 11

O tempo da Reforma no século XVI


exigiu dos reformadores a gigan-
tesca tarefa de reconstruir a igreja e con-
ele permaneceu três anos muito enrique-
cedores para a sua vida e sua formação
teológica. Pastoreando uma congregação
duzir o povo de Deus às fontes verdadeiras de refugiados franceses, Calvino colocou
do evangelho, conforme a prática do Novo em prática a liturgia utilizada por Bucer
Testamento, que havia sido abandonada nas congregações de fala alemã. Uma re-
na Idade Média. Por isso, nem tudo na forma litúrgica vinha acontecendo ali, e do
igreja podia ser reformulado de forma rito romano utilizado no período medieval
completa. De certa modo, à liturgia não foi foi tirado tudo que lembrasse a doutrina
dada toda a atenção que seria necessária. romana do sacrifício de Cristo.
Mesmo assim, isso não foi obstáculo sufi- A confissão passou a ser feita pela con-
ciente para impedir que João Calvino, em gregação, o vernáculo passou a ser utiliza-
Estrasburgo e Genebra, se dedicasse com do, o altar foi substituído pela mesa com
afinco ao tratamento da questão do culto a “ceia do Senhor”, o sacerdote passou a
e louvor a Deus. se chamar ministro, as vestes foram subs-
Sabemos como o reformador francês, tituídas pela toga preta, o sermão ganhou
aos 27 anos, em viagem para Estrasburgo, destaque, a eucaristia para o povo passou
se deteve em Genebra e ali foi convencido a ser celebrada semanalmente na catedral
por Guilherme Farel a permanecer na cida- e o cântico congregacional foi estimulado
de. No entanto, seu trabalho como mestre com o cântico dos salmos. Calvino viu na
no ensino das Escrituras começou a sofrer reforma litúrgica que Bucer vinha colocan-
resistências e menos de dois anos depois, do em prática uma expressão legítima do
em 1538, ele e Farel tiveram de deixar a culto praticado na Igreja Primitiva. Quando
cidade, expulsos pelas autoridades. em 1541 voltou a Genebra, ele tinha em
Um dos motivos foi justamente o fato de mente, com clareza, o trabalho a ser rea-
não quererem aceitar as intromissões da ci- lizado nessa área.
dade de Berna, impondo seus ritos à liturgia
da Igreja de Genebra, e a não aceitação, Calvino e Lutero
por parte das autoridades genebrinas, da
celebração semanal da ceia do Senhor. Na liturgia calvinista a grande ênfase é
Exilado, o destino de Calvino foi a encontrada na consciência da infinita ma-
cidade de Estrasburgo, onde recebeu a jestade de Deus e de sua transcendência,
acolhida do reformador Martinho Bucer. Ali que despertam no ser humano a adoração

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 47


humilde. Diante da manifestação da glória a liturgia calvinista incorporou ênfases te-
de Deus e de sua graça o ser humano, em ológicas muito bem fundamentadas e que
sua pequenez, é convidado a prestar-lhe constituem parâmetro para a prática do
honra e obedecê-lo. Não existe diferença culto verdadeiro.
entre honrar a Deus (latria) e servi-lo (dou- Em sua estrutura básica, conforme nos
lia), como afirmavam alguns, mas as duas ensina J.H. Nichols (“A Tradição Litúrgica
coisas estão entrelaçadas no verdadeiro das Igrejas Reformadas”), o culto tem a
culto. Se queremos adorar ao único Deus - palavra lida e pregada, unida à celebração
escreve Calvino nos primeiros capítulos das dos sacramentos, além do louvor, medi-
Institutas - devemos obedecê-lo e guardar tação e silêncio. Sua ênfase notória é a
os seus mandamentos. Dessa adoração adoração e o temor ao Deus vivo, cuja pre-
obediente resulta o andar conforme a Pa- sença se celebra, seguida da confissão de
lavra de Deus a cada momento, no viver pecados, que lembra a fragilidade humana
diário. Culto e vida estão intimamente diante do Deus santo e todo-poderoso.
ligados. Assim, a grandeza e majestade de Deus,
Enquanto para Lutero, no culto, o ser manifestadas na criação e na salvação, são
humano culpado sente, acima de tudo, celebradas com gratidão.
a segurança e alegria da justificação, Na liturgia de Knox, utilizada pela igreja
para Calvino o que importa é a absoluta da Escócia e depois espalhada pelas igrejas
soberania de Deus e a obediência, acima reformadas em todo o mundo, assim apa-
dos sentimentos. A segurança do adora- rece: “Ó Deus, eterno e misericordiosíssimo
dor não depende das emoções: “Vive-se Pai, nós confessamos e reconhecemos aqui,
e morre-se seguro”. O que conta para os diante de tua majestade divina, que somos
eleitos é a glória a Deus unicamente. Daí a miseráveis pecadores, concebidos e nasci-
importância da adoração em comunidade, dos em pecado e iniquidade, de tal modo
como povo de Deus e não como indivíduos. que em nós não há bondade alguma.” Em
Considerado algumas vezes como sen- seguida, vêm as palavras de perdão.
do pobre, o culto calvinista se preocupa Um traço fundamental do culto refor-
em evitar que a palavra humana substitua mado é a busca do equilíbrio entre Palavra
a Palavra de Deus. Para Calvino, o que e sacramentos. Calvino sabia que nos dois
importa é o culto simples, que vem do sinais - auditivo e visual - podemos discernir
coração e que não se esgota no momento a presença do Senhor, uma vez que serí-
de adoração. Por isso, as formas são se- amos incapazes, em nossa limitação, de
cundárias. Com relação à celebração da contemplar a plenitude de sua majestade.
ceia, enquanto Zuínglio procurou separá-la Embora elementos materiais, eles garantem
da pregação para enfatizar esta, Calvino uma presença que os transcende, apon-
fez o contrário: o culto completo a cada tando, pela ação do Espírito Santo, para o
domingo, devia incluir a ceia, e por esse mistério da encarnação.
ponto lutou até o final de sua vida. No culto reformado, Palavra e sa-
cramentos são os modos de Cristo se
O culto de Calvino aproximar de nós. Pelos sacramentos
temos preservado o lado misterioso e
Embora Calvino não estivesse muito supra-racional de Cristo. A palavra lida e
preocupado com a forma do culto em si, explicada esclarece os sacramentos, assim

48 . REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


como estes esclarecem a pregação. Ambos Deus, sem se perder em desvios. Também
estão ligados e, sem o sacramento, a Pa- a arquitetura dos templos deve expressar
lavra corre o risco de ser palavra humana. esse pensamento e evitar a ostentação de
Com o sacramento, o ser humano pode certos estilos, como o gótico ou o rococó.
ser alcançado de forma mais completa, no
seu intelecto e em seus sentidos. A Música
Outras ênfases têm sido lembradas,
como faz John Leith no livro “A Tradição Outro traço significativo da liturgia cal-
Reformada”. Para ele o culto reformado vinista é a música congregacional. A inten-
possui uma integridade teológica que ad- ção inicial foi utilizá-la não como trabalho
vém de sua integridade bíblica. Tudo na profissional pago, mas como ação de toda
liturgia - sentimentos, estética, ordem - é a congregação. Com esse objetivo, Calvino
submetido ao teste teológico. A criatividade, preparou, em 1539, um manual de culto
por exemplo, tem o seu lugar no preparo com 17 salmos, o Credo e o Cântico de
do culto e é muito importante, mas não Simeão, que eram cantados regularmente
devemos nos dar ao luxo de utilizá-la de na igreja. Mais tarde, passou a ter mais
forma aleatória ou como simples novidade, de uma centena de melodias, com grande
desconsiderando suas diretrizes bíblicas e qualidade musical.
teológicas. Grandes poetas franceses, como Marot,
Outro traço é a clareza de expressão, ou e músicos, como Louis Bourgeois, foram
seja, o culto realizado de forma compreen- chamados a colaborar e compuseram
sível, na linguagem do povo. A pregação melodias famosas como a “Doxologia” ou
não deve ser feita para impressionar, mas “Ao Deus Supremo Benfeitor”, que ainda
para levar ao aprendizado para a vida temos em nossos hinários. Os visitantes em
cristã. Deve conduzir à edificação, não no Genebra ficavam admirados de ver como o
sentido de um intelectualismo estéril, como povo cantava os salmos. Para Calvino, os
veio a ocorrer muitas vezes (o sermão sendo cânticos devem vir do coração que busca
transformado em aula), mas à vivência em o entendimento. E é bom compreender a
comunidade do amor a Deus e ao próximo, letra que se canta já que a inteligência deve
da confiança e lealdade como expressões seguir o coração e as emoções.
de verdadeira comunhão (koinonia). É certo que os reformadores tiveram
Uma outra característica é a sua simpli- reservas com relação à música até então
cidade. Pouca cerimônia, muita dignidade usada na igreja. Acontece que seu interesse
e clareza. Como diz Calvino, “Para que as não estava simplesmente na música, mas
cerimônias nos sirvam de exercício de pie- na liturgia toda. Calvino não era contra a
dade, é preciso que nos levem diretamente música, mas contra as apresentações corais
a Cristo” (Institutas, I,IV,29). No batismo ou ou de órgão, chamativas em si, ocupando
na ceia, a pompa pode desviar a mente o lugar do canto congregacional. A prio-
do povo. Os gestos ou movimentos devem ridade era que todos cantassem. Queria
ser poucos e apropriados. É preciso que que as crianças, primeiro, aprendessem a
haja uma congregação disciplinada, em melodia dos salmos, para então, em coro,
condições de dialogar diretamente com ensiná-las à congregação.

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 49


Tinha restrições ao órgão e preferia meios de graça são dois, Palavra e sacra-
o cântico em uníssono como forma mais mentos, e que o ministro não deve apenas
apropriada de louvar a Deus. Também para pregar, mas também celebrar a ceia toda
Karl Barth, teólogo reformado do século semana.
XX, quem canta no culto é a comunidade Suas palavras sobre isso são expressi-
e não uma sociedade coral. Para ele, os vas: “Em verdade, este costume que susten-
instrumentos que acompanham o cântico ta que os homens devem comungar uma
muitas vezes “só servem para suprir a fra- só vez no ano, certamente é intervenção do
queza com que a comunidade desempenha diabo. A ceia do Senhor deveria celebrar-se
o ministério da voz humana” e não para na congregação cristã pelo menos uma vez
fortalecê-la. Para esse famoso teólogo, o por semana.” Quando voltou a Genebra
que deve ser observado fundamentalmente em 1541, ele concordou em que a ceia fos-
no culto é sua base teológica e não consi- se celebrada apenas trimestralmente “por
derações sociais, estéticas ou psicológicas. enquanto” e “por amor à paz”. Alguns anos
A partir da Reforma imprimia-se manu- antes de sua morte, ele ainda escreveu:
ais de culto contendo salmos metrificados e “Preocupei-me em deixar claro que o nosso
orações litúrgicas para serem usados pela costume é defeituoso, de modo que os que
congregação. Manuais só para pastores venham depois de mim possam corrigi-lo
começaram a ser feitos após a Assem- com maior liberdade e facilidade” (W.D.
bléia de Westminster, no século XVII, e não Maxwell, El Culto Cristiano).
representam a prática dos reformadores. A forma zuingliana de culto foi, em
Hoje, os boletins com a liturgia do culto grande parte, responsável pela quebra
têm patrocinado essa volta à prática dos do equilíbrio proposto por Calvino em
dias da Reforma. Genebra. O pensamento de Zuínglio, que
interpretava a ceia principalmente como
Distorções memorial, tão reduzida em seu sentido
bíblico e teológico, acabou predominando
Contudo, o desenvolvimento histórico e levando ao abandono da teologia euca-
da Reforma apresentou um quadro diferen- rística de Calvino. A prática levou à ênfase
te daquele almejado por Calvino. Rompeu- na pregação, sendo a ceia celebrada oca-
-se o equilíbrio entre Palavra e sacramentos sionalmente ou então mensalmente.
para, em seu lugar, surgir uma a igreja Outros fatores provocaram distorções
quase que somente da Palavra pregada. no culto calvinista. Temerosos com relação
A prática da ceia do Senhor praticamente ao formalismo e buscando simplicidade, os
desapareceu da maioria dos cultos nas puritanos, no século XVIII, nos Estados Uni-
igrejas hoje. Desenvolveu-se uma hipertrofia dos, desenvolveram idéias anti-litúrgicas
da pregação. contra os escoceses, abandonando o uso
O propósito de Calvino foi restaurar a do Credo, a leitura da Bíblia, as orações
leitura da Bíblia (sem esquecer da original litúrgicas e a comunhão. Também o evan-
oração por iluminação que a precede) com gelismo reavivalista americano, reduzindo
a pregação e a celebração da comunhão tudo à busca da conversão, abandonou a
semanal. Ele estava convicto de que os celebração dos sacramentos, dando lugar

50. REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


à preocupação subjetivista com o emo- deviam ser “acomodadas”, tendo em vista
cionalmente excitante e a uma pregação o espírito de união que devia prevalecer.
principalmene moralista. O fato de muitas coisas não estarem
prescritas nas Escrituras mostrava justamen-
Sempre se reformando te que elas não eram necessárias para a
nossa salvação e também que muitas delas
A liturgia de Calvino se espalhou por “devem ser adaptadas para a edificação
diversos países como a Holanda, Hungria, da Igreja conforme os costumes de cada
Itália (com os valdenses) e tem sido am- nação, convindo, de acordo com a neces-
plamente utilizada nas igrejas reformadas. sidade, mudar e abolir o que é passado e
Foi levada para a Escócia por John Knox regulamentar outras novas.”
e, na Inglaterra, foi utilizada no Livro de A segunda refere-se ao cuidado de
Oração Comum anglicano, pelo trabalho Calvino em trabalhar as questões litúrgicas
do arcebispo Cranmer. para que estivessem fundamentadas nas
Hoje, temos diante de nós, no mundo Escrituras. Embora esteja clara a preocupa-
evangélico, a influência de um quadro ção em também regulamentar coisas novas
histórico-religioso totalmente diferente, conforme a necessidade da igreja, sem
com práticas de adoração extremamente dúvida o critério da integridade teológica
variadas. Elas têm influenciado o culto nas para elas era imprescindível. Ou seja, a
igrejas reformadas e provocado discussões criatividade e as mudanças tão necessárias
ora sobre o louvor e os corinhos, ora sobre se pautam pela análise bíblica consistente
a renovação da música, conforme a cultu- e a reflexão teológica dela decorrente.
ra em que ela esteja inserida. Com tantas Nada se deve fazer sem que haja razões
formas de culto existentes e o esforço em notórias, sejam elas bíblicas, teológicas ou
compreender a herança litúrgica que vem de conformidade histórica.
de Calvino, somos levados a refletir e pelo Finalmente, temos de ter consciência do
menos duas coisas importantes podem ser caráter reformável do culto e de seus vários
ser lembradas. elementos. Karl Barth escreve que “embora
A primeira delas tem a ver com a forma enfatizando o caráter único do culto, ele
do culto. Calvino pensava que as formas é ação humana como resposta à livre e
em si eram secundárias e que o cristianis- soberana Palavra de Deus.” Como tal, não
mo não se define por práticas cerimoniais. existe uma ordem divinamente estabelecida
E nesse ponto a tolerância era importante para suas partes. Quanto ao mais, como
para que a comunhão entre os crentes não disse Calvino, “A caridade decidirá perfei-
ficasse prejudicada. No convívio dos refor- tamente o que prejudica e o que edifica; se
mados com os luteranos, ele era de opinião permitirmos que ela governe, tudo irá bem”
que questões como sinos, altares ou velas, (Institutas, IV, X, 30).

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 51


UM NOVO ESTILO
DE VIDA

Lição 12

O Novo Testamento fala como


Cristo habita em nós e como, a
partir dessa experiência, podemos sentir
ou huguenotes (França) - se expressou de
maneira bastante visível em sua história.
Vamos delinear aquilo que seria, conforme
a realidade de um novo viver através diversos estudiosos da tradição reformada,
daquilo que chamamos de regeneração as características do estilo de vida presbite-
e santificação. Nesse processo, ocorre em riano/reformado.
nós a mortificação do velho ser humano e o
surgimento de uma nova criatura. Será que Fundamentos
essa experiência pessoal marcante pode
se tornar uma experiência partilhada pela Mais importante que as idéias, tradição,
comunidade em que vivemos ? Será que ela instituições, doutrinas e ensinos confessio-
pode alcançar uma expressão coletiva com nais de uma tradição religiosa são os seus
características visíveis próprias, facilmente fundamentos básicos para o seguimento
identificáveis? de nosso Senhor Jesus Cristo. Em nosso
O nosso assunto tem a ver com a res- caso, isso tem a ver primeiramente com o
posta a essas perguntas e também com encontro pessoal e insubstituível que o ser
a expressão histórica que, através dos humano tem com Deus. Na sua peque-
tempos e em diferentes lugares, os cristãos nez, o ser humano responde àquele que
reformados/presbiterianos assumiram, é, nada mais nada menos, que o Senhor
testemunhando perante as pessoas que os todo-poderoso, que nos alcança com sua
cercavam um modo de viver diferente, uma graça e misericórdia e nos chama para que
forma de vida própria, derivada dos ensi- a Ele respondamos em fé.
nos das Escrituras. A essa maneira de ser, Esse encontro está acima de qualquer
que incorpora o fundamental na fé cristã compromisso com uma igreja ou credo e
e que consegue muitas vezes se expressar, nada pode substituí-lo. O nosso Deus é
inclusive culturalmente, damos o nome de aquele que, em sua majestade, quer se
estilo de vida cristão próprio. relacionar com o ser humano, mas não
Muitas vezes esse estilo de vida pode está sujeito a ele nem às suas manipula-
existir como costume de uma determinada ções. Sua definição é “Eu sou o que sou”.
cultura ou raça. Em nosso caso, pensamos Misterioso, só podemos contemplá-lo de
em uma forma de viver que resulta da maneira imperfeita. Com isso, torna-se inú-
ação de Deus através do Espírito Santo na til a tentativa tantas vezes feita pelos seres
vida da igreja e que entre os calvinistas - humanos de quererem se assenhorear dele,
sejam reformados, puritanos(Inglaterra) seja pela sua “piedade”, seja de alguma

52 . REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


outra forma. a ver com discussões abstratas sobre o
Nenhuma igreja pode querer ser a única destino humano ou sobre os que serão ou
representante desse Deus, nem querer falar não serão salvos. Ela nos leva diretamente
com exclusividade em seu nome. O mesmo à busca de uma vida santa em meio aos
é verdade para qualquer instituição respei- acontecimentos com que me acho envol-
tável ou teologia. A esse Deus magnificente vido. Estamos a serviço do Deus todo-
e único, devemos lealdade e submissão. -poderoso que nos escolhe em Cristo e nos
Um segundo fundamento está relacio- convoca para o seu trabalho no mundo em
nado com uma doutrina que tem caracteri- busca do seu reino. Para Calvino, uma vida
zado os presbiterianos em todo o mundo: a santificada no mundo era o atestado da
doutrina da eleição. Falar de calvinismo é, eleição. E, nesse programa, somos susten-
pois, lembrar o ensino, tantas vezes preju- tados pelo Espírito Santo que nos habilita
dicado, como já vimos, sobre a predestina- à luta contra o pecado e nos dá o dom da
ção. Muito do que Calvino ensinou sobre a perseverança.
vida do cristão está relacionado com o seu
ensino sobre a eleição ou predestinação. Salvos para obedecer
Para o nosso reformador, isso quer dizer
principalmente que Deus, pela sua atuação Em conseqüência desse chamado e
amorosa, nos alcançou e cuidou da nossa confiança, somos levados a nos dedicar de
salvação mediante Cristo mesmo antes da forma irrestrita somente a Deus e aceitar
fundação do mundo, como diz o apóstolo responsabilidades “aparentemente” desa-
Paulo na carta aos Efésios. Não precisamos gradáveis e antes inaceitáveis. Podemos
nos preocupar com a nossa salvação por- lembrar o que aconteceu com Calvino, ao
que o Senhor cuida disso. se deparar com a insistência de Guilherme
Podemos confiar de tal forma em sua Farel para que abandonasse seus projetos
graça misericordiosa que não precisamos particulares e permanecesse em Genebra,
colecionar méritos ou ir à igreja ansiosos a fim de realizar a obra de Deus.
em busca de uma religiosidade que acalme Os planos para sua vida eram bem ou-
o nosso coração ou com a qual busquemos tros: queria se tornar um dedicado escritor,
uma troca interesseira com Deus. A glória freqüentar os meios literários da Europa
de Deus e seus propósitos no mundo são renascentista e publicar os seus livros. De-
mais importantes que a nossa salvação sejava ser um intelectual que, em sossego,
Tal fato é por demais significativo e dedicasse o seu tempo aos estudos apenas.
marca a vida do cristão. Sendo Deus o No entanto, sua pretensão de se tornar um
senhor absoluto da minha vida pessoal e “scholar” foi transformada no árduo traba-
da minha salvação, posso estar livre de pre- lho de organizar uma igreja, se dedicar à
ocupações, ansiedades e da conseqüente política civil e eclesiástica.
insegurança com relação ao meu futuro. Vejamos o que ele próprio disse: “De
Deus cuida de mim e já não pertenço a mim minha parte, afirmo que não tenho outro
mesmo, como diz Calvino. Por isso, posso desejo senão o de que, abandonando qual-
ser agradecido e me dedicar ao seu serviço. quer consideração pessoal, buscar somente
Assim sendo, a eleição não tem tanto o que é mais importante para a glória de

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 53


Deus e o progresso da Igreja. Estou bem convêm, bem como desejos imediatos que
consciente, contudo, que tenho de me de- podem ser postergados, para conseguirmos
frontar com Deus, diante do qual astuciosas um bem maior mais tarde. Por isso, a disci-
justificativas não podem ser sustentadas.... plina não deve ser uma carga pesada que
Mas, quando me lembro de que não per- carregamos, mas deve uma escolha livre.
tenço a mim mesmo, eu ofereço meu co- Uma vida de simplicidade, como já vi-
ração apresentando-o como em sacrifício mos, também faz parte desse estilo vivido
ao Senhor. ... submeto a minha vontade e por Calvino e muitos dos seus seguidores.
meus sentimentos, vencido e subjugado, à Quando um ilustre prelado católico o visitou
obediência de Deus.” em sua casa em Genebra, pareceu-lhe ina-
Tal postura dá condições de perseguir- creditável que aquela casa simples, onde
mos os objetivos que temos sem vacilar ou funcionava o correio da cidade, fosse a
nos perder em desvios secundários. Em de Calvino. Enquanto os bispos católicos
meio à caminhada, podemos estar firmes viviam em palácios, o homem que estava
sem que atalhos oportunistas e atrativos entre os mais famosos da igreja protestante,
do momento ou de interesses menores de quem se esperava que tivesse servos ao
nos façam perder o alvo maior. Pode ser seu dispor, foi quem atendeu o visitante à
até que, por isso, sejamos considerados porta. Na verdade, Calvino era um homem
esquisitos ou “loucos” e tenhamos de sem recursos, pobre.
renunciar, por algum tempo, ao conforto Calvino achava que o cristão devia ser
de ser compreendidos. simples e direto, sem rodeios ou redun-
Aqui já estamos falando de uma outra dâncias, que podem constituir uma forma
característica desse estilo de vida, que é de ocultar a verdade ou dissimulá-la. Sua
uma vida pessoal disciplinada pela Pa- palavra devia ser, como disse Jesus, sim,
lavra de Deus. O conceito reformado de sim e não, não. Devia ser autêntico e sin-
disciplina tem a ver com o “uso deliberado cero e tudo que escondia a verdade devia
e econômico das energias para a busca ser evitado. Como escritor, ele sentiu a
da lealdade a Deus e ao avanço de seus importância dessa qualidade e procurou
propósitos no mundo.” valorizá-la.
É bom esclarecer, no entanto, que, com Em seu comentário à Epístola aos Ro-
relação à disciplina, sempre aparecem os manos, preocupado com a forma melhor
mal-entendidos. Os reformados puritanos, de interpretar as Escrituras, considerou que
exagerando muitas vezes, acabaram con- seu colega “Bucer é por demais prolixo para
tribuindo para uma visão negativa acerca ser lido com rapidez” e que seu desejo era
da vida e de seus prazeres. Em verdade, ser compreendido “pelos leitores de inte-
não estamos proibidos de participar do ligência mediana”. Para ele, a “brevidade
mundo que Deus criou, distanciando-nos lúcida constituia a peculiar virtude de um
das diversões e tudo que é bom e saudá- bom intérprete.”
vel ao nosso redor. Não somos ascetas. O próprio Paulo tinha um estilo simples,
Pelo contrário, partilhamos com gratidão rude e direto que utilizou contra ministros
da grande alegria da vida, mas também de Corinto, preocupados em demonstrar
aceitamos que existem coisas que não nos sabedoria humana. A única restrição é

54. REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


que ser simples não é ser ingênuo, pois cionários, preocupados com a legitimação
devemos ser simples como as pombas, do direito dos reis. Também aqui aparece
mas prudentes como as serpentes, no dizer a diferença dos reformados diante de uma
de Jesus. certa negligência luterana justificada pela
idéia de uma separação entre o reino de
Transformando o mundo Deus e o reino deste mundo.
A preocupação dos puritanos persegui-
Podemos naturalmente ver nesse estilo dos que chegaram à Nova Inglaterra (hoje
de vida também uma preocupação com a EUA) no século XVII era a de estabelecer o
transformação do mundo em que vivemos. reino de Cristo na nova terra. O mesmo
Ou seja, o cristão é um “ser responsável” ocorreu com os puritanos na Inglaterra que,
pelo seu mundo. A idéia de missão que liderados por Oliver Cromwell, enfrentaram
prioriza a “salvação da alma” pode ser uma um rei despótico e o destituiram
distorção de um propósito muito bem defini-
do que quase sempre existiu na comunidade
reformada. A espiritualidade calvinista não Conclusão
se reduz a um evangelismo centrado na
piedade individual. Hoje, como em outros tempos, somos
O próprio Calvino tinha muita consci- desafiados a tornar realidade para nós,
ência da necessidade de transformar as onde quer que nos encontremos, as possi-
estruturas de sua cidade e assim conduziu bilidades de um estilo de vida firmado nos
a sua prática ali. Procurou resolver os ensinos do Novo Testamento e que alcance
problemas da cidade e viver um espírito o mundo ao nosso redor. É uma construção
de solidariedade, especialmente com os a longo prazo, uma herança em parte es-
mais necessitados. Por isso atuou como quecida mas que, pelo seu valor, costuma
legislador e organizador das suas institui- ressuscitar como possibilidade sanadora
ções eclesiásticas, com profundos reflexos em um mundo tantas vezes perdido e sem
na sociedade civil. Da mesma forma atuou rumo face aos inúmeros problemas que o
John Knox na Escócia, abalando o poderio corroem.
da rainha a quem enfrentou com a sua É claro que não podemos simplesmente
palavra pro-fética. repetir o estilo de vida dos puritanos. Po-
Com isso, o calvinismo na Europa se rém, o ideal que os inspirava pode servir
mostrou pioneiro na luta pela implantação como nosso sonho utópico de transforma-
da democracia contra os setores mais rea- ção do mundo em que vivemos.

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 55


A UNIÃO COM CRISTO

Lição 13

O tema que trata da nossa união com


Cristo e que foi muito enfatizado
no ensino de João Calvino está intimamente
É por meio de nossa união com Cristo,
efetuada continuamente pela ação do Es-
pírito Santo, que recebemos os benefícios
relacionado com a espiritualidade cristã, ou que nos vêm do Pai. Somos alcançados
seja, com a participação que o crente tem, pela obra de Cristo quando ele habita em
pela fé, nos benefícios da obra de redenção nós (Institutas, III,I,1) e é pela fé que somos
realizada por Jesus Cristo em nosso favor. unidos a Cristo.
Ele está também amplamente sustentado Quando nos afastamos dele, deixa-
pelo ensino da Escritura. mos de receber os benefícios da obra da
Tal união de Cristo com o pecador é redenção. Ao mesmo tempo que sentimos
efetuada de modo misterioso, pela ação a força pessoal dessa união de cada um
do Espírito Santo em nós, e é também com Deus, é preciso saber que ela é uma
chamada de “união mística”. É por ela que experiência que nos alcança no relaciona-
passamos a receber bênçãos espirituais mento com o próximo, sendo pois vivida
como a regeneração e a santificação, para em comunidade.
podermos ser uma nova criatura e vivermos No mundo, marcado pela separação e
a vida cristã plena. desentendimento, testemunhamos o poder
Calvino diz que fomos escolhidos para da reconciliação que Deus opera em nós.
estar unidos a Jesus e o laço dessa nossa Por isso, não se trata de uma experiência
união com Deus é a santidade (Institutas, ou exercício de comunhão mística individual
III,VI,2). Pela graça que nos alcança através isolada. Assim esse tema foi tratado e vivido
do Espírito Santo, somos incorporados em principalmente no período medieval.
Cristo e dele passamos a receber os frutos Sabemos também que os benefícios
dessa contínua dependência. dessa união não são endereçados exclu-
Assim como Cristo participou da vida da sivamente a nós como igreja, a não ser
humanidade, sofrendo com ela e por ela, como primícias da obra de Deus para com
do mesmo modo nós passamos a participar a humanidade, objetivo da missão.
da sua vida, ter comunhão com ele e dele Também nós, como velhas criaturas,
receber bênçãos. O selo que autentica essa vivíamos separados de Deus para sermos,
união é o batismo, pelo qual passamos a depois, alcançados pela ação renovadora
levar o nome de Jesus, e é por meio da de Cristo, pois “aprouve a Deus que nele
ceia do Senhor que ela é sustentada em residisse toda a plenitude e que, havendo
nós (Jo 6.56). feito a paz pelo sangue da sua cruz, por

56 . REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


meio dele reconciliasse consigo mesmo assim, habite Cristo no vosso coração, pela
todas as coisas, quer sobre a terra, quer fé, estando vós arraigados e alicerçados
nos céus” (Cl 1.19-20). em amor” (Ef 3.17). Ou: “Rogo-vos...
que andeis de modo digno da vocação a
Sem mim, nada podeis fazer que fostes chamados, com toda a humil-
dade e mansidão, com longanimidade,
Sendo assim, falar da união com Cristo suportando-vos uns aos outros em amor,
é tratar de uma verdade que se relaciona esforçando-vos diligentemente por pre-
com a nossa vivência cristã da salvação, servar a unidade do Espírito no vínculo da
como servos dependentes do nosso Senhor. paz” (Ef.4.1-3).
Ou seja, nossa salvação está em relação No entanto, a perseverança dos eleitos
direta com Deus, por meio de Cristo: “so- nessa união e a sua sustentação depen-
mos salvos por estar em união com Cristo dem de Jesus: “As minhas ovelhas ouvem
e só permanecemos salvos porque estamos a minha voz; eu as conheço, e elas me
em união com Ele”. É o que temos nas seguem. Eu lhes dou a vida eterna; jamais
Escrituras. perecerão, e ninguém as arrebatará da
O evangelista S. João diz: “permanecei minha mão” (Jo 10.27-28).
em mim, e eu permanecerei em vós. Como No ensino de Paulo aparece ainda,
não pode o ramo produzir fruto de si mes- com força, a idéia de que nós somos um
mo se não permanecer na videira, assim, com Cristo e, pelo poder do Espírito, ele
nem vós o podeis dar, se não permane- nos comunica sua vida e todas as bênçãos
cerdes em mim. Eu sou a videira, vós, os que recebeu do Pai. Dessa forma, a união
ramos. Quem permanece em mim, e eu, com Cristo leva-nos também à união com
nele, esse dá muito fruto; porque sem mim o Pai. E ela existe no poder do Espírito, ou
nada podeis fazer” (Jo 15.4-5). seja, de forma trinitária.
Por sua vez, Paulo declara: “assim, se Uma outra figura usada por Paulo para
alguém está em Cristo, é nova criatura; falar dessa união é a referência à relação
as coisas antigas já passaram; eis que se de Cristo com a igreja, à semelhança do
fizeram novas” (2 Co 5.17). Ou ainda mais: relacionamento do homem com a mulher
“logo, não sou quem vive, mas Cristo vive no casamento. A união com Cristo envolve
em mim; e este viver que, agora, tenho na o corpo em uma só carne (Ef 5.31). Na
carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que verdade, a nossa união com Cristo é maior
me amou e a si mesmo se entregou por do que a do esposo com a esposa. Por isso,
mim” (Gl 2.20). Paulo refere-se a ela como sendo um mis-
Também está claro que essa união é a tério. E essa união intensa, que esperamos
base da salvação e não resulta de qualquer ver sempre ampliada em nós, é a base para
mérito da nossa parte. “Aquele que não a certeza da fé. Uma fé que devemos muito
conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; mais viver do que procurar compreender.
para que, nele, fôssemos feitos justiça de
Deus” (2 Co 5.21). Estar fora de Cristo
Pensando na permanência dessa união
com Cristo, Paulo orava pelos efésios: “e, Uma outra forma de se analisar esse

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 57


fundamento da espiritualidade enfatizada compreendermos a nossa salvação. Aí
por Calvino é observar o que o apósto- temos o outro lado da moeda. Nós, que
lo Paulo fala sobre o “estar em Cristo.” estávamos “fora”, em rebeldia, passamos
Podemos acompanhar Lewis B. Smedes a viver nele, reconciliados com Deus. Ele
(Grandes Temas da Tradição Reformada), morreu por nós, para que possamos viver
observando, em primeiro lugar, o que Pau- para ele. A separação foi vencida em nós
lo descreve como sendo a nossa situação e “o mundo todo que Deus criou, o mundo
“fora de Cristo”. que as pessoas afastam do amor de Deus,
Para o apóstolo, estar fora de Cristo é o mundo que Deus continua a amar...” - é
estar “na carne”, no sentido negativo de o objetivo da reconciliação efetuada através
se possuir uma “identificação fatal com o de Jesus Cristo.
mal”, ou ter a mente controlada por ele, Essa nova criatura a que Paulo se re-
de tal forma que os frutos produzidos são fere é muito mais do que uma situação a
o oposto dos frutos do Espírito, pois “O que se pode chegar algum dia no futuro,
pendor da carne dá para a morte, mas o progressivamente, com esforço pessoal.
do Espírito, para a vida e paz” (Rm 8.6). Paulo fala de uma nova criação que Deus
A lei também pode ser o outro inimigo opera e que aparece “onde quer que Cristo
do estar em Cristo, já que com ela op- é conhecido, confessado e servido como o
tamos pela força das coisas velhas que Senhor da vida.” Foi “a lei do Espírito da
se passaram, enquanto tudo se fez novo vida, em Cristo Jesus”, que te livrou da lei
nele. O cumprimento da lei, que pode ser do pecado e da morte” (Rm 8.2).
muito importante para o viver como cristão, Isso acontece na igreja e pode ocorrer
também pode ter a função perniciosa de individualmente, mas “não é, primariamen-
nos distanciar da confiança na graça de te, uma experiência moral subjetiva nem
Cristo para confiarmos em nossos próprios uma experiência mística, mas uma existên-
méritos. cia dentro de uma situação radicalmente
O apego a ela como forma de nos justi- nova, na contínua confusão da história
ficar gera o orgulho e a justiça própria que humana.” Ocorre principalmente “na co-
nos distanciam do irmão, especialmente munidade em que a reconciliação de Cristo
para querer julgá-lo. Pode ser fonte de é pregada e vivida”, mas ocorre também
hipocrisia e desumanidade. É a letra que na história humana, onde Deus atua para
mata, quando o Espírito vivifica (2 Co 3.6). a salvação, trazendo a nova criação como
Estar fora de Cristo significa também viver o elemento conciliador e aglutinador, do
voltado para o pecado, em rebelião contra qual somos chamados a participar.
Deus. Em tal situação, somos dominados
por uma força que é estranha a Deus e que Conclusão
impede a nossa comunhão com ele.
O problema é que, ao nos depararmos
Estar em Cristo com a realidade que nos cerca, sentimos
pouco a presença desse novo ambiente e
“Se alguém está em Cristo, é uma nova da nova criação de que Paulo fala. As ve-
criatura” (2 Co 5.17) - aí está a chave para lhas coisas estão muito presentes diante de

58. REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


nós e nos chocam. Alguns podem até que- Vivemos os sinais da nova criação e da
rer fugir em busca uma experiência mística reconciliação em meio à lei do pecado e do
individualista, entre quatro paredes, numa mal, uma ambiguidade que muitas vezes
“ilha da fantasia”. Paulo, no entanto, tem nos desespera! Nem sempre sabemos o
uma outra forma de encarar essas coisas. que fazer.
Primeiro, reconhece essa realidade e Em segundo lugar, é preciso ter consci-
fala com clareza que a história humana ência de que, se ainda não alcançamos o
está debaixo dos poderes das trevas: “Por- novo dia, nem superamos nossa condição
que bem sabemos que a lei é espiritual; eu, pecaminosa, podemos enxergar com os
todavia, sou carnal, vendido à escravidão olhos da fé, que o fundamental já ocorreu
do pecado... pois não faço o que prefiro e na cruz e, depois, na ressurreição, com a
sim o que detesto” (Rm 7.14-15). Depois, vitória de Jesus Cristo sobre a inimizade, a
sente que essa situação em que vivemos, separação, a morte e a destruição. Isso sig-
marcada pelo conflito entre o velho e o nifica, acima de tudo, que os poderes das
novo - “vejo, nos meus membros, outra trevas estão subjugados. Portanto, podemos
lei que, guerreando contra a lei da minha viver a esperança de um novo dia e uma
mente, me faz prisioneiro da lei do peca- nova criação no Espírito. Essa esperança
do” - gera frustração e desânimo a que tem a ver com a nova criatura que está em
ele próprio estava sujeito: “desventurado Cristo, para a qual “as coisas antigas já
homem que sou!”. passaram; eis que se fizeram novas.”
De nossa parte, também sentimos isso. Concluamos com a certeza que Paulo
Face a tanta separação, violência, injustiça pode nos inspirar: “Porque eu estou bem
e sofrimento, somos levados a indagar: certo de que nem a morte, nem a vida,
onde estão as coisas novas e a nova criatu- nem os anjos, nem os principados, nem as
ra? Como podemos partilhar dos benefícios cousas do presente, nem do porvir, nem os
da união com Cristo? E isso nos angustia e poderes, nem a altura, nem a profundida-
nos faz sentir frustrados. de, nem qualquer outra a criatura poderá
Como resposta, precisamos, em primei- nos separar do amor de Deus, que está em
ro lugar, reconhecer a inevitabilidade dessa Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm 8.38-39).
condição ansiosa e de agonia, mesmo Se esse conforto por vezes pode induzir
participando dessa nova realidade do estar alguns à acomodação, por outro nos con-
em Cristo. Como disse Paulo, “sabemos duz para a frente, como temos em Gl 5.5:
que toda a criação, a um só tempo, geme “Porque nós, pelo Espírito, aguardamos a
e suporta angústias até agora” (Rm 8.22). esperança da justiça que provém da fé.”

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 59


O ESPÍRITO
SANTO

Lição 14

S e há algo que no mundo todo tem


chamado a atenção e de maneira
especial a atenção da igreja, é a manifes-
um testemunho semelhante a esse por
perto de nós.
Nas igrejas tradicionais, muitas vezes
tação surpreendente do Espírito Santo na evita-se tratar do Espírito Santo e de sua
vida de muitas pessoas em nosso tempo. obra. Fala-se muito de Deus, Jesus Cristo
Acontecimentos sucessivos, desde o início e a igreja, mas não do Espírito, que parece
do século XX em muitos países, levaram a ficar reduzido ao âmbito individual, como
igreja a presenciar o crescimento espontâ- algo escondido. Os excessos e problemas
neo dos adeptos do movimento pentecostal do movimento pentecostal fizeram com o
que, em ondas sucessivas, foi se ampliando que o assunto fosse visto sempre a partir
de maneira geométrica em todo o mundo. de uma posição de retaguarda.
Pessoas secularizadas, às vezes indife- Na teologia, que procura uma reflexão
rentes ou então avessas à religião, passa- mais intensa sobre a Palavra Deus em re-
ram a ter, de forma inexplicável e quase lação com essa situação, muitos têm perce-
desconhecida, uma experiência com Deus. bido também uma certa ausência. Embora
Para muitos, isso foi suficiente para trans- tenham surgido muitos estudos de caráter
formar as suas vidas e mudar o seu ponto sociológico para analisar o fenômeno pen-
de referência com relação aos valores tecostal, a teologia sistemática tradicional
religiosos que antes cultivavam. tem dado pouca atenção à doutrina do
Muitos confessam o domínio e o poder Espírito Santo (pneumatologia).
de Deus em sua existência. Tornaram-se O teólogo Antonio Carlos Melo Maga-
leitores da Bíblia, que passou a falar aos lhães, do curso de Ciências da Religião da
seus corações. Experimentaram a prática UMESP, diz que esta é a “principal lacuna”
da oração e falam do batismo do Espírito da teologia cristã ocidental e que as experi-
Santo. Passaram a freqüentar reuniões de ências religiosas atuais com o Espírito Santo
culto e testemunhar, com fervor, o poder do nos desafiam “à reformulação de nossa
Espírito em seu viver. teologia... É preciso superar o papel mar-
Essa experiência, que faz parte das ginal do Espírito na construção do método
igrejas pentecostais, carismáticas e neo- teológico”. Para ele, não é possível deixar
pentecostais, tem sido estendida também, de se perceber “como estes movimentos
de alguma forma, às igrejas protestantes têm o seu alcance social, sua repercussão
históricas - luteranas, presbiterianas, epis- na vida concreta das pessoas”, renovando
copais, metodistas - e até mesmo católicas, vidas, reconstruindo caminhos e criando
há já bastante tempo. Não é difícil ouvir novas relações.

60 . REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


Também o teólogo reformado holan- promovido vários encontros em busca de
dês Hendrikus Berkhof diz que “as igrejas diálogo com representantes do movimento
históricas não estão dispostas a colocar no pentecostal. Suas conclusões ainda que
centro a obra do Espírito Santo e, com isso, provisórias, também poderão nos ajudar,
a fé corre o perigo de se transformar em como veremos.
algo intelectual, tradicional e institucional”
(La Doctrina del Espiritu Santo, p. 9). Ênfases diferentes
Essas novas afirmativas com relação
ao Espírito Santo e seu lugar na igreja e O teólogo reformado norte-americano
na teologia nos questionam e nos levam John Hesselink, fazendo uma análise com-
a indagar como ficamos. Na situação de parativa das ênfases dos reformados/pres-
igreja reformada, o que temos a dizer? É biterianos e dos pentecostais/carismáticos
certo que o relacionamento tido no passado (Grandes Temas da Tradição Reformada,
com os movimentos pentecostais e o que se p.337), observa suas semelhanças e di-
sabe deles deixou muitos setores da igreja ferenças: enquanto uns se orgulham da
prevenidos e em alerta. teologia, confissões, catecismos e da pura
Hoje, diante da reconsideração desse doutrina, outros gabam-se das curas e
assunto pela igreja em diversas partes do experiências de êxtase; uns tendem a ser
mundo, a pergunta talvez seja se não se cerebrais, frios e analíticos, os outros estão
faz necessário uma nova abordagem des- cheios de entusiasmo e sentimentos caloro-
sa questão, mesmo sabendo que muitos sos; uns pensam na igreja como o lugar em
problemas continuam. que a palavra é corretamente pregada, os
Em primeiro lugar, devemos estar cien- sacramentos ministrados adequadamente
tes de que essa discussão não é nova entre e a disciplina é exercida, enquanto os ou-
nós. Por mais de uma vez, em sua história, tros se preocupam mais com o batismo do
as igrejas tradicionais têm se deparado em que com a ceia e pensam na igreja como
suas fileiras com problemas relacionados “comunidade informal, com limites fluídos
com o movimento pentecostal e seus desdo- e exigências doutrinárias mínimas”, sem
bramentos. Em algumas vezes, o tratamen- distinção entre clérigos e leigos, com líderes
to dado chegou a soluções satisfatórias, auto-indicados, sem responsabilidade para
mas, em outras ocasiões, presenciou-se com concílios superiores.
lutas desleais entre irmãos e até divisões. Enquanto os reformados exaltam a pre-
Isso, entretanto, não deve impedir que gação e querem fazer tudo com “decência
retomemos um assunto que, na verdade, e ordem”, para os carismáticos “o estudo
jamais deixou de permanecer em pauta. informal da Bíblia e a exortação não estru-
Muitos estudiosos da Bíblia vêm lutando turada tomam o lugar da pregação mais
com essa problemática em busca de uma formal e a informalidade e a espontanei-
palavra atual para a igreja. Vamos acom- dade são premiadas.” Para os reformados,
panhá-los na abordagem que faremos do os milagres, falar línguas, curas dramáticas
assunto nesse estudo. Também a Igreja e profecias praticamente deixaram de ser
Reformada mundial, preocupada com a considerados na prática.
questão e tentando quebrar barreiras, tem Se, por um lado, os reformados/

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 61


presbiterianos correm o risco de se tornar verdadeira vida cristã. Todos os benefícios
intelectualizados, com uma visão de igreja da obra de Cristo em nossa vida resultam
mais institucionalizada, por outro, os pen- da ação do Espírito. Não só a regeneração
tecostais/carismáticos e neopentecostais como a santificação resultam da união
estão ligados quase que somente a uma mística do crente com Cristo. E mais. Sem
busca mais emocional, individualista e a obra do Espírito, “o mundo logo se trans-
extravagante do Espírito. formaria num caos e a espécie humana
Enquanto para uns, na vidas cristã só degeneraria para a bestialidade. Tudo o
há regeneração e santificação, para outros que é bom, verdadeiro e belo - mesmo en-
há um terceiro elemento que seria o ba- tre os pagãos e ateus - é devido ao Espírito
tismo ou a plenitude do Espírito Santo. Se de Deus (Institutas, II.2.12-20).”
os reformados se sentem fortes na ordem, Ninguém pode falar realmente sobre
enfatizando “manifestações contínuas” do a autoridade da Escritura sem falar do
Espírito, os carismáticos se sentem fortes na testemunho interno do Espírito Santo, que
liberdade, destacando os aspectos indivi- Calvino tão apropriadamente enfatiza.
duais e espontâneos da obra do Espírito. Tanto a palavra escrita (Escrituras) como
a falada (pregação) dependem, em sua
Posições Incompatíveis? eficácia, desse testemunho do Espírito.
Esses ensinos e muito mais demonstram
Diante de tais divergências e ênfases, a posição equilibrada de Calvino que,
vem a pergunta: seriam, de fato, incompatí- depois do século XVI, ficou esquecida,
veis essas duas tradições de fé? Berkhof diz principalmente entre os reformados, com
que “cada uma das partes vive das faltas e algumas marcantes exceções. H. Berkhof,
dos erros da outra, o que lhes dá um bom que pronunciou suas palestras sobre a
pretexto para não verem o que lhes falta doutrina do Espírito Santo no Seminário
e no que erraram ou a verdade bíblica Presbiteriano de Princeton (EUA) em 1964,
representada pela outra parte.” diz que o ensino de Calvino constitui uma
Na verdade, tanto os pentecostais como riqueza ainda não descoberta pelas igrejas
os reformados querem enfatizar a pessoa reformadas.
e o poder do Espírito Santo e pode ser até
que os reformados tenham possibilidade de Diálogo com os Pentecostais
alcançar uma compreensão mais profunda
do ensino sobre o Espírito Santo. No século John Hesselink, referido acima, afirma
XVI, tanto Lutero como Calvino tiveram suas que entre os teólogos reformados jamais
teologias marcadas pelo poder do Espírito. deixou de haver interesse pelo estudo e a
A Calvino tem sido dado o título de “o obra do Espírito Santo, mas que os pente-
teólogo do Espírito Santo” e, para muitos, costais clássicos, que vieram mais tarde,
saber disso é uma surpresa! O fato é que, “merecem o crédito pela introdução de
na obra mais conhecida de Calvino, A uma nova consciência a respeito dos dons
Instituição da Religião Cristã (Institutas), (“charismatha”)”. A tradição reformada,
é mais do que evidente o lugar dado ao diriam os pentecostais, “tem mostrado
Espírito como o poder que cria e sustenta a pouco conhecimento prático ou experiência

62 . REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


do poder do Espírito, especialmente como Em 1999, a reunião que se realizou na
se manifesta nos dons espirituais extraor- Coréia teve boa participação dos presbite-
dinários” (p. 342). rianos independentes e foi presidida pelo
Assim, “é provável que aos pentecostais rev. Abival Pires da Silveira. Em maio de
esteja faltando uma compreensão bíblica 2000, a IPI do Brasil e a la. IPI de São Paulo
adequada da obra do Espírito” e, por isso, hospedaram mais um desses encontros.
“a coexistência e não uma guerra quen- Tais reuniões têm possibilitado a
te - ou mesmo fria - parece-nos ser uma comunicação entre as igrejas históricas
resposta lógica e feliz à nossa situação”. e as pentecostais e, embora as tensões
Nessa difícil questão do relacionamento sejam visíveis, os resultados parecem com-
com os pentecostais, são significativas as pensadores. O objetivo tem sido a busca do
palavras do rev. Alfredo Borges Teixeira diálogo internacional entre representantes
que, por certo, têm muito a nos ensinar: dessas tradições religiosas diferentes, a fim
“Podemos discordar deles (os pentecostais) de que se estabeleça compreensão mútua
como discordam entre si, em muitos pontos e respeito de uma para com a outra.
secundários... mas não podemos deixar Partindo do diálogo em torno de di-
de reconhecer que são nossos irmãos em versos pontos teológicos, esses grupos
Cristo. Mais do que isso, a sua presença e o procuram levar às suas comunidades a
seu maravilhoso progresso, sob a bandeira preocupação de desenvolver um testemu-
do Paráclito são um sinal de que o Espírito nho evangélico em comum. De todos esses
não está contente com o estado ou vida encontros procurou-se coletar o material
de nossas Igrejas históricas e nos incita a discutido e, em São Paulo, foi elaborado um
um sério despertamento” (“Protestantismo relatório apresentando diversas conclusões
Místico” em Caderno de O Estandarte, sobre os temas mais importantes. Abaixo
dez. 1954). apresentamos alguns trechos desse relató-
Outros teólogos como o Dr. João rio comum que procura orientar as igrejas
Mackay, que trabalhou como missionário dessas duas tradições:
presbiteriano na América Latina por muitos
anos, se interessou pelo pentecostalismo 1. Se, por um lado, se nota que a ênfase
como uma força em expansão em todo o da família reformada é colocada na Pala-
mundo, com dimensões de pensamento vra, enquanto a ênfase da família pente-
e vida que as igrejas protestantes deviam costal está no Espírito, por outro, se observa
redescobrir. a necessidade de uma correção, uma vez
Por outro lado, a Aliança Mundial de que ambas consideram Jesus Cristo como
Igrejas Reformadas (AMIR), que fala em o critério para se compreender a obra do
nome das igrejas reformadas/presbiteria- Espírito Santo.
nas em todo o mundo, em 1989, tomou a 2. Confessar que “A obra do Espírito
iniciativa de realizar um primeiro encontro Santo é muito mais ampla do que imagina-
de diálogo com os pentecostais. Desde mos,” como foi feito, implica em reconhecer
então, diversas outras reuniões têm sido que o Espírito Santo está presente e ativo
realizadas, inclusive com a participação de na história humana e em várias culturas.
presbiterianos brasileiros. 3. Enquanto os reformados afirmam

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 63


a centralidade da Bíblia e da pregação, atuação do Espírito Santo para a cura do
os pentecostais sustentam, junto com a nosso mundo.
proclamação do evangelho, as profecias, 5. Embora os dons sejam associados
a cura de enfermos e o enfrentamento dos com os pentecostais, os reformados re-
poderes demoníacos como parte da mani- conhecem que “a igreja é estabelecida e
festação do poder de Deus.Por seu turno, mantida pela graciosa presença do Espí-
os reformados lembram, em sua tradição, rito, que concede dons ao povo de Deus.”
a importância de viver em obediência à Afirmando enfaticamente que os dons são
Palavra, sendo capacitados como igreja a concedidos por Deus, reconhecem uma
dar seu testemunho profético, opondo-se lista mais ampla que a de 1 Co 12.8-10
em qualquer lugar, “em nome de Deus, a e que o importante é que “os dons são
todas as situações de opressão.” Embora o diversos, mas o Espírito é o mesmo.” Não
Espírito fale na Bíblia, é bom lembrar que deixam de confessar entretanto, que as
“ele não está restrito ao texto bíblico.” igrejas “algumas vezes são bastante super-
4. Quanto à manifestação dos dons e ficiais em sua busca e recepção dos dons
maravilhas do Espírito na igreja, reconhece- do Espírito.”
-se que, nos primeiros tempos da Reforma, Como pode ser observado, os pontos
eles foram considerados restritos aos tem- ressaltados mostram áreas de atrito, afir-
pos apostólicos, mas que, hoje, tal posição mação de posições, sinceridade ao tratar
não é mais sustentável. No entanto, com delas, desejo de reconhecer os elementos
Paulo, não se pode privilegiar os dons bíblicos e positivos de cada compreensão,
sobrenaturais como a cura e o falar em confissão de erros e a busca da unidade
línguas (glossolália). acima de tudo. Dessa experiência de en-
Muita coisa vista como natural, como contro para diálogo e compreensão mútua
a busca da igualdade entre homens e mu- com vistas ao testemunho do evangelho,
lheres e a luta contra as armas que fazem em humildade e amor, também podemos,
a destruição em massa, deve ser vista como além de refletir, participar e orar: VEM,
milagre. Nesses esforços pode ser vista a ESPÍRITO CRIADOR!

64. REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


TESTEMUNHANDO NA
POLÍTICA

Lição 15

S empre que tocamos na palavra polí


tica e principalmente quando
a relacionamos com fé, precisamos nos
Muitos podem sentir a igreja como uma
área de vivência da fé que está muito dis-
tante do âmbito das questões econômicas,
explicar. É que o seu sentido pejorativo, sociais e políticas. Por esse raciocínio, pare-
associado ao mau uso que dela se faz, ce até que ela não tem o direito de ultrapas-
ligado quase sempre à corrupção, logo sar o que se chama de “seus limites” para
aflora. Tanto o dinheiro como a política penetrar em um outro domínio, muito mais
corrompem e, por isso, os cristãos muitas adequado aos economistas talvez, como se
vezes se viram na necessidade de fugir dos essa fosse uma área independente, fora da
perigos que eles representam. Para alguns, ação soberana de Deus. À igreja caberia
existe até uma incompatibilidade entre a apenas sustentar a ordem política e social
política e a fé. existente, cuidando da piedade individual e
Na verdade, a política tem a ver com a da evangelização, que busca a conversão
boa organização, seja no governo de uma individual e a moral pessoal.
casa, seja no governo da sociedade. Os Em nossa tradição reformada, temos
que lidam com a política realizam a im- uma longa história de relacionamento po-
portante tarefa de articular os meios pelos sitivo com a política como mais um lugar
quais a sociedade pode funcionar adequa- onde testemunhar o nome de Jesus Cristo.
damente para atender às necessidades e John Leith (A Tradição Reformada) diz que,
aprimoramento da vida dos cidadãos. De pelo fato de Deus atuar na história, pode-
uma forma mais ampla, a política pode ser -se dizer que ele é político (Paul Lehmann)
compreendida como “a forma de realizar e que o objetivo de Deus “não é simples-
uma tarefa com precaução, sagacidade mente a salvação de almas, mas também
e tática, visando alcançar determinado o estabelecimento de uma comunidade
objetivo.” santa e a glorificação do seu nome em toda
Por se preocupar e se organizar com a terra” (p. 116). Ou seja, Deus atua na
vistas ao bem comum, a política pode ser história e convoca o seu povo para tornar
um importante campo de atuação para real a proposta do seu reino aqui na terra.
o cristão e não são poucos os que a têm Alguns historiadores têm notado que o
levado a sério, certos de que com ela estão calvinismo e não o luteranismo tem sido
servindo ao próximo e ao próprio Deus. o responsável, dentro do protestantismo,
Entendem-na como uma vocação que lhes pelo desenvolvimento de uma perspectiva
foi dada por Deus. política e social que está por detrás da de-

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 65


mocracia ocidental. Calvino e não Lutero foram criadas todas as coisas, nos céus
foi o inspirador para que o protestantismo e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis,
fosse um elemento de transformação da sejam tronos, sejam soberanias, quer prin-
sociedade e da cultura. Apesar de insistir cipados, quer potestades. Tudo foi criado
na maldade da vontade humana, Calvino por meio dele e para ele. Ele é antes de
mostrou que o cristão é chamado para todas as coisas. Nele, tudo subsiste.”
realizar o propósito divino no mundo. O que temos nesse trecho do apóstolo
Todos são responsáveis diante de Paulo é que Deus cuida e zela pelas coisas
Deus, que não faz acepção de pessoas. do mundo que ele criou. Ou seja, Deus
Com esse pensamento, Calvino lutou por não abdica de qualquer área de sua cria-
reformar a cidade de Genebra conforme ção para que seja dominada por qualquer
a Palavra de Deus. Também os puritanos, outro poder. Tudo tem a ver com a sua
que já mencionamos, saíram perseguidos Palavra e qualquer setor de atividades, seja
da Europa para criar na Nova Inglaterra econômico, social ou político, está e estará
(hoje Estados Unidos) uma sociedade que sob a sua ação redentora, não se limitando
tivesse como fundamento a fé cristã. esta à vida ou à devoção pessoal. Esta é a
Michael Walzer, um estudioso da política mensagem que a igreja tem a proclamar
e do calvinismo, observou pessoas que, a partir das Escrituras.
sentindo-se como instrumentos nas mãos Por outro lado, sabemos como os pro-
de Deus, desempenharam “um papel cria- fetas se empenharam em mostrar como
tivo no mundo político, destruindo a ordem todos os aspectos da vida do povo de Israel
vigente e reconstruindo a sociedade segun- deviam estar relacionados com a obediên-
do a Palavra de Deus”. Ao inspirar esse tipo cia a Deus, mas que, na verdade, estavam
de atuação, Calvino não pensava como um ameaçados pela prática da iniquidade. É
político simplesmente, mas como um servo o que diz o profeta Isaías (1.10-18): “De
de Deus. O que ele buscava também não que me serve a mim a multidão de vossos
era a realização de um ideal humanitário sacrifícios? - diz o Senhor. Estou farto de
apenas, mas a glória de Deus em meio aos holocaustos... não continueis a trazer ofer-
seres humanos. tas vãs... não posso suportar iniquidade
associada ao ajuntamento solene. ... lavai-
Bases bíblicas -vos, purificai-vos, ... cessai de fazer o mal.
Aprendei a fazer o bem; atendei à justiça,
Em primeiro lugar, é preciso tenhamos repreendei ao opressor; defendei o direito
claro o ensino bíblico sobre a plena so- do órfão, pleiteai a causa da justiça.” O
berania de Deus sobre o mundo criado e que o profeta, falando em nome de Deus,
não apenas sobre a igreja. Assim é. Não especialmente condena é o pecado social e
existe setor de atividade humana que não a imoralidade política, que contaminavam
esteja, de alguma forma, sujeito à ação de a verdadeira adoração.
Deus. É o que Paulo mostra, por exemplo, Mais à frente, o profeta fala com du-
em Colossenses 1.15-17, com referência a reza aos governantes do povo: “Os teus
Cristo: “Ele é a imagem do Deus invisível, o príncipes são rebeldes e companheiros de
primogênito de toda a criação; pois, nele, ladrões; cada um deles ama o suborno e

66. REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


corre atrás de recompensas. Não defendem Para Calvino, a restauração da socie-
o direito do órfão, e não chega perante eles dade ocorre em parte pela comunidade
a causa das viúvas” (v. 23). Outros profetas, dos crentes, a igreja, que testemunha a
como Amós, têm mensagem semelhante e obra renovadora de Cristo. Mas mesmo
falam da necessidade de se buscar o bem a igreja ainda é prisioneira da realidade
e não o mal, “para que vivais”. do pecado e incapaz de barrar as forças
No entanto, apesar de todas as mazelas malignas que estão presentes no ser hu-
e infidelidades do povo, o profeta Jeremias mano e na sociedade. Por esse motivo e
fala de uma Nova Aliança firmada entre para evitar a desordem e o caos, Deus
Deus e Israel: “Eis aí vêm dias, diz o Se- estabelece uma ordem provisória que é a
nhor, em que firmarei nova aliança com a ordem política. É provisória porque no final,
casa de Israel e com a casa de Judá. Não ao ser estabelecida a ordem de Deus, ela
conforme a aliança que fiz com seus pais, será desnecessária.
no dia em que os tomei pela mão, para Para alcançar o objetivo para o qual
os tirar da terra do Egito; ... Porque esta Deus a criou, essa ordem deve representar
é a aliança que firmarei com a casa de ao máximo a ordem de Deus. Por seu turno,
Israel, depois daqueles dias, diz o Senhor: a igreja é indispensável como elemento
Na mente, lhes imprimirei as minhas leis, regenerador da sociedade, da política e
também no coração lhas inscreverei; eu da economia, na medida em que ela se
serei o seu Deus, e eles serão o meu povo” submete à Palavra de Deus. Como o Es-
(31.31-34). tado não está submisso à Palavra, ele só
atingirá o objetivo que Deus lhe determinou
João Calvino pela ação da igreja como uma espécie de
consciência sua.
O que vimos acima mostra que no Assim sendo, os cristãos devem contri-
Antigo Testamento havia uma interação buir de alguma forma para a regeneração
entre a casa de Israel e o Estado. E o da sociedade e da ordem política. E deve
mesmo podemos dizer de João Calvino ser mantido entre Estado e igreja um re-
em Genebra, que tentou muitas vezes um lacionamento crítico e criativo. Nada da
relacionamento positivo entre a igreja e o igreja se identificar com o Estado ou perder
governo da cidade em busca do bem co- a sua independência - ela tem, diante de
mum. Calvino entendia que o Estado podia Deus um papel a desempenhar, ou seja,
auxiliar a igreja a conduzir as pessoas para quanto mais fiel ao evangelho mais ela
viverem a vida cristã. Ao contrário dos ana- estará em condições de prestar um serviço
batistas, que contestavam a legitimidade do verdadeiro à sociedade.
poder civil, ele considerava que a igreja e
o Estado, cada um em seu papel, haviam Ação Política e Testemunho
sido estabelecidos por Deus para o bem
do gênero humano. O Estado é necessário Em muitas ocasiões, os cristãos reforma-
para manter a ordem no mundo marcado dos se viram em situações que clamavam
pelo pecado. Com isso ele pode ser até um por um pronunciamento político claro,
instrumento da providência. em nome de Jesus Cristo. Foi assim com

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 67


Zuínglio em Zurique, protestando contra Deus?... Se a religião, portanto, que pro-
o comércio de mercenários. O mesmo fessas, condena o cativeiro, escolhe entre
aconteceu com Calvino em Genebra, en- ela e os escravos que possuis.”
frentando ora o Conselho da cidade ora Na Holanda, um pastor-estadista que
os banqueiros com sua prática de juros foi primeiro ministro, Abraham Kuyper
abusiva. E o mesmo se deu com João Knox (1837-1920), fundou um partido de pro-
enfrentando a rainha Maria, da Escócia. jeção nacional e uma Universidade Livre,
E algo semelhante veio a acontecer em entre outras coisas. Seu objetivo era o de
outras situações e locais, em outros tempos. levar os cristãos reformados a abrirem os
Em muitos momentos, os calvinistas olhos e atuarem contra o secularismo libe-
sentiram a sua participação na política ral pernicioso a fim de se voltarem para a
como o chamado do próprio Deus para justiça social em seu país.
um testemunho corajoso. Em Genebra, isso Lutou em favor dos direitos dos traba-
aconteceu de forma muito concreta. Mas lhadores e imigrantes, atuando decisiva-
Calvino procurou alcançar outros rincões mente em um ambiente pluralista. Dizia
também. Quando, em 1555, os franceses que não existe sequer uma polegada de
estabeleceram uma colônia no Rio de nossa vida humana que não seja recla-
Janeiro, a preocupação dos pastores hu- mada por Cristo, Senhor soberano, como
guenotes era de que naquela comunidade sendo sua.
“todos os membros deviam viver em pé de Na Alemanha nazista, os cristãos da
igualdade, no espírito do Evangelho”. Igreja Confessante alemã, liderados por
Ali, a questão que estava em jogo era Karl Barth e Dietrich Bonhoeffer, que de-
a escravização do indígena, que foi de- pois foi enforcado por Hitler, elaboraram
nunciada pelo cristianismo reformado. As a Confissão de Barmen (1934). Por ela,
palavras de Calvino quando à escravidão eles proclamavam a soberania única de
foram muito claras: “Subtrair a liberdade nosso Senhor Jesus Cristo em uma situação
a um homem, equivale a matá-lo.” Assim, histórica marcada pelos abusos de poder
não podia partilhar as idéias existentes em daquele que se tornou, mais tarde, o gran-
seu tempo sobre a colonização e a escra- de ditador alemão.
vização dos que eram dominados (Biéler,
1999, p. 101). A mocidade presbiteriana
No Brasil, muito mais tarde, em 1886,
durante o movimento abolicionista, o rev. No Brasil, algumas vezes, a mocidade
Eduardo Carlos Pereira sentiu-se no dever presbiteriana se sentiu no dever de se levan-
de se manifestar sobre questão semelhante, tar em nome do evangelho pela busca da
ou seja, a escravização do negro. Escreveu justiça social e de uma ordem política mais
um livreto sobre A Religião Cristã em suas conforme com as exigências da Palavra
Relações com a Escravidão. Nele dizia: de Deus. Na década de 1930-40, o rev.
“Pode o cristão, sem perder o direito a esse Eduardo Pereira de Magalhães, neto do rev.
nome sagrado, conservar conscientemente Eduardo Carlos Pereira, dedicou grande
em sua casa, sob qualquer pretexto, uma parte de seus esforços ao fortalecimento
cousa pecaminosa, desagradável a seu do trabalho da mocidade evangélica e à

68. REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


busca de um testemunho cristão frente aos questionar os valores tradicionais e a mo-
problemas do nosso país. cidade presbiteriana partilhou esse momen-
Um dos resultados desse despertamento to, vivendo uma fase de intensa atividade
dos moços foi a presença de Loide Bonfim, e amadurecimento. O jornal presbiteriano
que atuou como missionária durante toda Mocidade exercia grande influência sobre
a sua vida, juntamente com seu esposo, os jovens das igrejas em todo o Brasil. Nes-
rev. Orlando de Andrade, entre os índios se momento a IPB passa a contar em seus
na Missão Caiuá(IPB/IPI), no Mato Grosso. quadros com a presença do missionário
Em 1939, este líder da mocidade falava presbiteriano Richard Shaull, que atuou
sobre os “princípios bíblicos que poderiam no Brasil entre os anos 1952-1965. Ele
transformar a sociedade de seu tempo” vinha de uma experiência de perseguição
(Hélerson Silva, p. 27). Seu ideal havia religiosa na Colômbia e passou a lecionar
surgido de “um coração angustiado com no Seminário de Campinas.
os sofrimentos das massas”. Sentia que o Entre os jovens, ele passou a colaborar
maior mal de seu tempo era, por um lado, a escrevendo no jornal Mocidade e atuando
pobreza e, por outro, a riqueza exagerada. como conferencista em seus congressos.
Analisando as propostas de solução Ao sentir a desorientação dos moços
apresentadas pelo comunismo e o fas- diante da situação do país, ele escreveu
cismo (integralismo), apontava para uma em 1953: “A Bíblia nos orienta para uma
outra alternativa: “A mocidade evangélica vida interessante, dinâmica e positiva, que
deveria, se quisesse uma nova sociedade, deve ser dedicada inteiramente à obra
estudar nos evangelhos os princípios sociais de Jesus Cristo no mundo e na igreja.”
de Jesus.” Para ele, constava do programa Os problemas do Brasil com a terra ou a
de evagelização a salvação da “sociedade concentração do poder na mão de poucos
em que vivemos proclamando o evangelho podiam ser atacados por uma ação política
social e renovando-a de modo que ela se consciente. “Nós, como cristãos, temos de
transforme no reino de Deus e de seu Cris- agir dinamicamente na política para ga-
to”. Para tal missão, conclamava as demais rantir a existência de governos com certa
juventudes evangélicas. orientação e influência cristãs.”
Na década de 50 e 60, o nosso país Revolução para ele não era uma palavra
vivia novamente um período de muita para ser utilizada apenas pelos comunis-
agitação política e incoformismos diante tas e da qual se devia ter medo. Para ele,
da injustiça social reinante. A inflação des- “cada mocidade podia abrir um centro
locava a mão-de-obra do nordeste para as de evangelização num bairro de operários
grandes cidades, aumentando a pobreza. A e dirigi-lo”, incluindo “um programa de
terra estava nas mãos de uns poucos e era serviço social, assistência médica, escolas
intocável. Com o governo JK, aumentara a de alfabetização, etc.”
inflação e a distância entre ricos e pobres. Foi a partir daí que Shaull preparou,
Havia muita fome, miséria e exploração. a pedido da Confederação da Mocidade
Alguns setores do país buscavam o cami- Presbiteriana (CMP), um livreto que serviu
nho do desenvolvimento. para o IV Congresso Nacional da Mocidade
A juventude universitária começava a Evangélica do Brasil realizado em fevereiro

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 69


de 1956, em Salvador. Seu título é sugestivo: Conclusão
Somos uma Comunidade Missionária - oito
estudos de preparação para o testemunho. A situação para a qual o nosso país
Ali escrevia como líder da mocidade: caminhou no período da ditadura militar
“para cumprir a sua missão, a igreja tem e o desenrolar dos acontecimentos nos
de fazer o que Cristo fez: entrar na vida anos que se seguiram mostrou também
do homem e do mundo”. Como união da o lado difícil que o testemunho frente à
mocidade, “somos chamados para dar política enfrenta sempre. Incompreensões
testemunho de Cristo entre os homens.” e perseguições surgiram.
Caminhando nessa linha de ação proféti- O mesmo se deu com os profetas, fa-
ca, em 1962, a Confederação Evangélica lando em nome de Deus e denunciando
do Brasil, através do seu Departamento de os descaminhos do povo diante da sua
Igreja e Sociedade, realizou em Recife, uma vontade santa. Por isso, o desafio da ação
das regiões mais sofridas do continente, a política como testemunho de fé perma-
Conferência do Nordeste, quando as igre- necerá sempre. A política é um campo
jas evangélicas se reuniram para discutir o de ação importante para o qual Deus nos
tema “Cristo e o Processo Revolucionário chama, a fim de testemunhar a boa nova
Brasileiro”. do seu reino como comunidade verdadeira
em meio à sociedade humana.

70 . REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


EM BUSCA DA
UNIDADE

Lição 16

O h! Como é bom e agradável vive-


rem unidos os irmãos! (Sl 133.1)
na doutrina dos apóstolos e na comunhão,
no partir do pão e nas orações... Todos os
que creram estavam juntos e tinham tudo
Quem dentre nós ainda não sentiu o em comum” (At 2.42,44).
encanto e o refrigério que nos transmitem Quando os problemas começaram a
essas palavras do salmista? Pois bem, fa- ameaçar a igreja - em Corinto surgiram
lar da unidade cristã não é tratar apenas contendas em torno da liderança de Apolo
de uma doutrina importante. Mais do que e Paulo - o apóstolo mostrou o risco que os
isso, é anunciar a imprescindível verdade seus membros corriam: “Acaso Cristo está
evangélica da união que Jesus cria entre dividido?”. Fala, então, o pastor que exorta
as pessoas e pela qual sempre devemos em amor: “Rogo-vos, irmãos, pelo nome de
orar junto ao Pai. nosso Senhor Jesus Cristo, que faleis todos
São inúmeros os textos que, nas Escri- a mesma cousa e que não haja entre vós
turas, mostram o anseio de Jesus e dos divisões; antes sejais inteiramente unidos...
apóstolos para que a verdade da reconci- (1 Co 1.13,10).
liação e da comunhão tenham expressão Em Efésios, Paulo fala da importância de
real entre nós. Eu sou o bom pastor - diz conservar essa unidade para que o gran-
Jesus - conheço as minhas ovelhas e elas de alvo seja alcançado: “Rogo-vos, pois,
me conhecem a mim, ... elas ouvirão a que andeis de modo digno da vocação
minha voz : então, haverá um rebanho e a que fostes chamados... esforçando-vos
um pastor (Jo 10.11,16). diligentemente por preservar a unidade
Na oração sacerdotal, ele intercede por do Espírito no vínculo da paz; ... há um só
nós: “Pai santo, guarda-os em teu nome, Senhor, uma só fé, um só batismo; ... até
que me deste, para que eles sejam um, que todos cheguemos à unidade da fé e do
assim como nós.” “Não rogo somente por pleno conhecimento do Filho de Deus, à
estes, mas também por aqueles que vierem perfeita varonilidade, à medida da estatura
a crer em mim, por intermédio da sua pala- da plenitude de Cristo” (Ef 4.1-3,5,13).
vra; a fim de que todos sejam um; e como Palavras tão expressivas acerca da uni-
és tu, ó Pai, em mim e eu em ti, também dade, no entanto, só nos fazem lembrar
sejam eles em nós; para que o mundo creia enfaticamente como nos distanciamos da
que tu me enviaste” (Jo 17.11,20-21). vontade de Deus para a sua igreja. Sim,
Essas palavras fortes do Senhor Jesus fo- a cada passo, olhando ao nosso redor,
ram vivenciadas pela igreja logo após a ex- vemos essa vontade contrariada pelas con-
periência do Pentecostes: “E perseveravam

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 71


sequências do nosso pecado e egoísmo. século passado, as grandes religiões como
Precisamos reconhecer: as dificuldades são o budismo e o islamismo vêm crescendo
enormes. continuamente no mundo.
Para Paulo, embora o espírito de divi-
Dificuldades são e rivalidade fosse uma realidade na
igreja de Corinto, ele não poderia ser
De uma certa forma, por causa do aceito como natural, nem tolerado. Por
denominacionalismo, entre outros fatores, isso, exortava: “Havendo entre vós ciúmes
já nos acostumamos com a presença da e contendas, não é assim que sois carnais
desunião e do desentendimento, seja em e andais segundo o homem? ... Portanto,
nossa vida pessoal, no convívio com os ninguém se glorie nos homens; porque
demais ou na vida da igreja. Muitas vezes, tudo é vosso: seja Paulo, seja Apolo, seja
“naturalmente,” passamos a enxergar be- Cefas, seja o mundo ... tudo é vosso, e vós
nefícios na separação e até a justificá-la. de Cristo, e Cristo, de Deus” (1 Co 3.3,
As denominações seriam benéficas por 21-22).
trazerem a competição entre os grupos Outras vezes, a dificuldade aparece
religiosos e, conseqüentemente, o cresci- quando se menciona a palavra ecumenis-
mento do número de membros nas igrejas, mo. Para muitos, o ecumenismo implicaria
pensam alguns. em abandonar pontos fundamentais da
Em conseqüência, cada grupo passa doutrina cristã ou esconder as divergências
a viver a sua vida, despreocupado com ou ainda ter que aceitar uma super-igreja.
a unidade e sem pensar nos demais. Ou, Ou que deveremos ter obrigatoriamente
então, passa a considerá-la como algo uma mesma e única confissão de fé, como
para a igreja invisível, como se existisse a se a unidade exigisse o abandono da liber-
possibilidade de separar igreja visível de dade e da diversidade.
invisível. Na verdade, o ecumenismo tem a ver
Acontece que os efeitos dessa postura com um estado de ânimo criado pelo Es-
têm constituido uma pedra de tropeço para pírito Santo e manifesto quando as pessoas
o testemunho cristão e a evangelização. As vivem a comunhão com Cristo e com os
pessoas, ao redor, percebem que a mensa- irmãos, gerando o amor ao próximo. Ele
gem cristã está debilitada. Como podemos pode muito bem estar expresso na manei-
falar do amor de Cristo que nos reconcilia ra como Jesus viu e tratou as pessoas “de
uns com os outros, se somos incapazes de fora”, como a mulher samaritana, com
praticar essa verdade no convívio com os quem um judeu não devia conversar (Jo 4),
“irmãos”? ou a mulher que sofria de uma hemorragia
Como falar de Cristo como o príncipe e era considerada impura e que foi curada
da paz ou como a base do ministério da por ele (Mc 5.25), ou, ainda, quando aten-
reconciliação para o mundo? (2 Co 5.18- deu ao centurião romano, elogiou a sua fé
19) Por esse motivo, a mensagem evangé- e curou seu empregado (Mt 8.5-13).
lica tem sido vista, infelizmente, como uma Faz parte do verdadeiro ecumenismo
entre as outras apenas. Provavelmente aí todo esforço para a construção de uma
esteja uma das razões porque, desde o unidade fundamental que respeite a diver-

72. REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


sidade e o direito de divergir, mas, acima do da divisão. Lembremos o que ele disse:
de tudo, que permita crescer em amor, a “Eu sempre testemunhei tanto por palavras
fim de que seja testemunhada a natureza como por atos o quanto desejei a unida-
solidária existente no relacionamento entre de. Mas, para mim, a unidade da Igreja
Pai, Filho e Espírito Santo. é aquela que se inicia e termina em Ti....”
Assim, “o movimento ecumênico é uma No século XVI, o arcebispo anglicano
expressão do crescente reconhecimento Cranmer queria promover encontros com
pela Igreja, de que Deus está pedindo que os demais reformadores para que as divi-
recebamos d´Ele o dom da unidade, a sões que o corpo de Cristo sofria fossem
fim de que possamos ser servos mais fiéis superadas. A resposta de Calvino foi: “é
à sua missão.” Mais ainda, o “movimento preciso reconhecer como um dos maiores
ecumênico, promovido pela ação do Espí- males do nosso século o fato de que as igre-
rito Santo, que leva igrejas a se renovarem jas estejam assim separadas umas das ou-
e cristãos a converterem o coração, visa, tras... estando assim os membros dispersos,
através da oração e atividade concreta e o corpo da Igreja sangra... Esse problema
organizada, restaurar a unidade da co- me importa tanto que, se alguém julgue de
munhão visível da igreja”. alguma utilidade a minha presença a esse
Evidentemente que a busca da unidade encontro, estaria disposto a atravessar 10
implica em oração e diálogo, bem como mares para ir até lá...” (carta de 1552).
no reconhecimento de que as divergências No livro IV das Institutas, quando o re-
entre os cristãos existem e são várias. Em formador de Genebra trata da eclesiologia,
tal situação, será que devemos condicio- citando Filipenses 3.15 sobre o mesmo
nar o primeiro passo a que tenhamos um sentimento de perfeição que deve haver
consenso doutrinário para podermos nos na igreja, diz: “Isto é o que importa. Se,
encontrar e dialogar? Ou não seria o caso porém, temos divergências sobre questões
de nos deixarmos envolver pela presença secundárias, (Deus) nos esclarecerá a seu
de Cristo, que nos chama à unidade e, tempo... não sendo assim necessárias, elas
confiados na ação do Espírito, procurar não devem ser matéria de separação...”
compreender diferenças teóricas para
chegar a uma posição que nos permita A unidade e os presbiterianos
caminhar juntos e testemunhar o poder de
Deus em nosso meio? John Leith (A Tradição Reformada, p.
61) diz que, desde o início, os reformados
A Unidade e Calvino definiram a igreja não em termos de es-
truturas ou de doutrina correta, mas por
Sabemos como foi difícil para os refor- sua ação no mundo e pelo sacramento, o
madores enfrentarem a problemática de que lhes permitiu aceitar outros membros
uma separação na igreja. Não era intenção e outros ministérios cristãos. Principalmente
nem de Lutero nem de Calvino organizar entre si, os reformados têm encontrado
uma outra igreja. Quando analisamos a uma certa disposição para se unir, como
Epístola ao Cardeal Sadoleto, pudemos aconteceu com os dois grandes ramos do
sentir a angústia de Calvino face ao peca- presbiterianismo norte-americano (norte e

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 73


sul) que, em 1983, formaram uma só Igreja O erudito pastor presbiteriano Erasmo
Presbiteriana dos Estados Unidos (PCUSA). Braga (1877-1932) foi uma delas. Tendo
Além disso, grandes personalidades participado do Congresso do Panamá
presbiterianas têm se destacado na lide- (1916), ele foi um dos criadores da Co-
rança dos esforços mundiais pela união das missão Brasileira de Cooperação, que
igrejas na evangelização e no testemunho buscava uma ação conjunta por parte das
social. É o caso do teólogo reformado denominações evangélicas em nosso país.
holandês Willem A. Visser´t Hooft (1900- Por sua vida, dedicada à causa da união
1985), que dedicou grande parte de sua das igrejas, ele foi chamado pelo rev. Júlio
vida a esse trabalho e esteve à frente do Andrade Ferreira de “O Profeta da Unida-
Conselho Mundial de Igrejas como seu de”. Foi ele quem liderou a organização da
secretário geral durante quase 20 anos Federação Evangélica do Brasil, mais tarde,
(1948-66). Confederação Evangélica do Brasil (1934).
Uma outra personalidade dedicada à O rev. Epaminondas Melo do Amaral,
tarefa da reconciliação entre as igrejas, pastor da IPI, foi também uma dessas
bastante conhecida entre nós pela sua atu- ilustres personalidades. Atuou como se-
ação como missionário na América Latina, cretário geral da Confederação Evangélica
foi o Dr. João Mackay (1989-1983), um do Brasil e denominava o problema da
pastor presbiteriano escocês, que se tor- divisão do protestantismo como O Magno
nou presidente do Seminário Presbiteriano Problema. Com esse título publicou um
de Princeton. Ele não só fundamentou em livro em 1934, chamando a atenção para
educação teológica o Ecumenismo como a questão e conclamando os evangélicos
uma “ciência da Igreja Universal”, como a se unirem. Ele foi um seguidor das idéias
desempenhou um papel muito importante do rev. Erasmo Braga.
para que os presbiterianos dos E.U.A., Para o rev. Epaminondas, “bem po-
afinal, concretizassem a sua união, o que deríamos aplicar as palavras do Mestre à
ocorreu no ano de sua morte, em 1983. nossa atual situação - “não foi assim desde
Outros presbiterianos de renome no mundo o princípio”, e foi a dureza dos corações
e em nosso país têm lembrado a necessida- que causou os males do presente... Nem
de de nos dedicarmos à unidade da Igreja no princípio da Igreja Cristã, nem do da
pelo testemunho de Jesus Cristo. Reforma foi assim... mas causas diversas...
chegaram à espantosa divisão de nossos
No Brasil dias.”
E estes que mencionamos são apenas
No presbiterianismo brasileiro, ti- alguns dos que não se conformaram com
vemos também ilustres personalidades as separações na igreja.
que dedicaram sua vida ao sonho com Afinal, vale a pena relembrar as pala-
a união das igrejas cristãs. Mais de uma vras do rev. Alfredo Borges Teixeira, um dos
vez fomos lembrados da importância de fundadores da IPI do Brasil, sobre a questão
nos dedicarmos à unidade da igreja para da união dos presbiterianos no Brasil. Em
um verdadeiro testemunho de Jesus Cristo 1953, por ocasião da comemoração dos
perante o mundo. 50 anos da separação da Igreja Presbite-

74. REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


riana, falando como único sobrevivente tuímos em Igreja Independente erramos
daquele episódio histórico e olhando-o também em termos apresentado a questão
à distância, revelou uma profunda since- de modo ameaçador... e em termos nos
ridade e consciência da importância da retirado... Aí vem o centenário do Pres-
unidade para a igreja de Cristo. biterianismo... Ambas as igrejas têm o
Sonhando com a reconciliação entre direito de celebrá-lo e quão belo seria
presbiterianos e independentes, suas pala- que fizessem unidas! Eu que sou o último
vras ainda hoje nos impressionam: “errou representante do Sínodo de 1903... teria
o Sínodo em não fazer justiça às idéias grande alegria de ver essa união antes
nacionalistas... e nós, os que nos consti- da minha partida.”

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 75


SEMPRE SE
REFORMANDO

Lição 17

S e há uma coisa que os cristãos re-


formados/presbiterianos não
podem dispensar em sua prática de vida
onde aparecem muitos outros servos de
Deus que viveram pela fé. E, assim, tem
ocorrido com muitos cristãos através dos
é a necessidade de renovação constante. tempos.
Esse tem sido o lema sustentado desde Martinho Lutero por certo foi um deles
os reformadores no século XVI: Igreja Re- quando, no século XVI, teve de iniciar uma
formada Sempre se Reformando. É, pois, jornada totalmente nova e provavelmente
uma bandeira a ser levada e sustentada representando muitas incertezas para ele.
como indicação de uma diretriz e de uma Ao invés de se acomodar, face a tantos
identidade. obstáculos impostos pelas autoridades da
Apesar disso, como acontece com igreja, foi em frente sem saber exatamen-
os caminhos já conhecidos, percorridos te o que haveria de acontecer. Passado
sempre com muita facilidade, eles são os muito tempo, ao pensar sobre as coisas
preferidos. As resistências sempre apare- prodigiosas que haviam acontecido por
cem quando se trata de procurar um novo seu intermédio, dizia confiante: “Não fui eu
percurso. Em geral, os velhos caminhos quem fez. Enquanto eu dormia, a Palavra
oferecem segurança e passam a ser esti- de Deus agia”.
mados pelos que neles caminham. Uma outra dificuldade no esforço para
A caminhada da fé, entretanto, costu- se levar a sério esse princípio reformado
ma ser marcada pelo desconhecido. Para é o fato de que nem sempre as pessoas
alguns, ela é uma caminhada de aventura. querem ver com olhos críticos aquilo que
Nela as pessoas são conduzidas não pelo são ou fazem. Elas se sentem inseguras e
seu próprio conhecimento nem por suas desconfortáveis com isso, preferindo uma
próprias seguranças, mas por aquilo que atitude mais condescendente que, no en-
Deus estabelece e para que chama o seu tanto, pode ser menos transparente.
povo. Por certo, se faz necessário um espírito
Foi o que aconteceu com Abrão, quando de bom senso ao tratarmos dessa questão.
chamado por Deus. “Ora, disse o Senhor a Renovação não significa acatar todas as
Abrão: Sai da tua terra, da tua parentela e “novidades” que aparecem. Pode signifi-
da casa de teu pai e vai para a terra que te car, isto sim, uma abertura para práticas
mostrarei; de ti farei uma grande nação...” e caminhos novos que Deus nos indica e
(Gn 12.1-2). Partiu sem saber para onde ia, que podem exigir o abandono dos cami-
como diz o cap. 11.8 do livro de Hebreus, nhos batidos. Mas isso deve ser feito com

76. REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


convicção cristã e não de qualquer forma, em mente sempre o seu caráter relativo e
sem uma razão clara para isso. Também temporário.
podemos estar atentos para que essas Sem o traço absoluto que às vezes se
“razões” e bom senso não constituam des- pretende dar a essas confissões, fica claro
culpas para nos mantermos na indecisão que elas devem estar sempre sob juízo
ou resistência. e sujeitas a reformas. O fato mesmo de
No caso dos reformadores, houve existirem uma centena delas já indica o
a percepção de que a fé precisava ser seu caráter localizado e provisório. Ou
renovada e que a tradição da igreja era seja, elas foram elaboradas para que, em
um obstáculo para isso. Romperam então determinado contexto histórico, os cristãos
com ela e estabeleceram como princípio reformados/presbiterianos pronunciassem
a Escritura somente (Sola Scriptura). Não com clareza, a partir da Palavra de Deus,
era bem uma rejeição da tradição, como o sentido da fé cristã para suas vidas e
às vezes se pensa, mas o estabelecimento comunidades. Com esse espírito elas fo-
de um critério para utilizá-la. ram elaboradas em muitos lugares como
Calvino sabia que existia uma verdadei- a França (Confissão Galicana), Escócia
ra tradição e outra falsa, e que era preciso (Confissão Escocesa), na Alemanha (Cate-
distinguir entre elas. Em sua Instituição cismo de Heidelberg), nos Estados Unidos
da Religião Cristã (Institutas), ele mostra (A Confissão de 1967).
constantemente como teve que fazer isso, Nenhuma dessas confissões pode inuti-
mas, ao mesmo tempo, estar voltado para lizar as outras ou ser considerada a única
uma nova maneira de compreender e in- válida. Todas elas constituem tentativas fei-
terpretar a fé. tas pelas igrejas e seus representantes nos
concílios, a fim de interpretar as Escrituras
As Confissões novamente para a sua situação, uma tarefa
Em nosso caso, como reformados, ao que nunca estará terminada.
contrário de outros grupos religiosos, temos Esse trabalho de revisão constante e
uma tradição religiosa que, muitas vezes, correção tem o seu lugar “porque todas
sem sabermos direito, é responsável por as confissões são obras de seres humanos
muito daquilo que conhecemos sobre Jesus e igrejas limitados, falíveis e pecadores”
Cristo, a nossa salvação e missão no mun- como escreve o Dr. Guthrie, em capítulo
do. De certa forma, muito dessa tradição dedicado ao Relativismo Religioso da Tradi-
está incorporado nas inúmeras confissões ção Reformada (p. 43 ss.). Para ele, as con-
de fé reformadas que existem e das quais fissões elaboradas pelos concílios são de
a Confissão de Westminster é um exemplo. extrema importância, mas não são regras
Essas confissões foram elaboradas em fixas e sim “ajuda” tanto para compreender
muitos países e épocas diferentes, e pres- a fé como para viver prática dessa fé.
taram o importante serviço de ser uma Esse relativismo tem a ver principalmen-
espécie de balize orientadora da igreja a te com o fato de que essas declarações de
fim de testemunharmos o nome de Jesus fé, como tudo o mais na vida, são condicio-
Cristo. Por isso, elas são apreciadas e nadas “histórica e culturalmente.” Esse re-
valorizadas. Mesmo assim, é preciso ter conhecimento da sua natureza relativa, no

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 77


entanto, em nada diminui o seu valor. Com sociedade de seu tempo, procurando
elas se pretende que “a igreja testemunhe responder a eles. Um deles foi a sua per-
aquilo que as promessas e as exigências do cepção acerca do lugar que os burgueses
evangelho significam para o nosso tempo, tinham na sociedade medieval e na sua
à luz do moderno conhecimento científico economia, sendo muitas vezes incompreen-
e filosófico, em resposta ao mundo plura- didos e mal vistos. Esses comerciantes eram
lista multi-religioso e multi-culural, no qual condenados pela igreja por uma atividade
temos de aprender o que significa para nós que gerava lucros e cobrava juros.
ser cristão” (p. 55). Os teólogos, firmados no ensino do fi-
Essa compreensão da fé que constan- lósofo Aristóteles, admitiam o lucro apenas
temente se renova tem muito a ver com no caso do trabalho que produzia algo.
a sua contemporaneidade e relevância Para eles, dinheiro não poderia gerar di-
para cada época. Assim tem acontecido nheiro. E os juros eram condenados como
em muitos momentos da vida da igreja. sendo o pecado da “usura”. Como fazer?
Tomemos mais uma vez o caso dos refor- O prof. Richard Shaull, na década de
madores. Se eles conseguiram expressar a 60, mostrou a importância das pesquisas
fé de um novo modo, que alcançou grande de André Biéler, sobre o papel que Calvino
reconhecimento por parte das pessoas, foi desempenhou na mudança desse qua-
por causa de sua atualidade. Para eles, a dro. Para ele, o reformador de Genebra
mensagem bíblica devia poder responder demonstrou, através do estudo exegético
às questões que as pessoas enfrentavam de textos do Antigo Testamento e de sua
em seu tempo. releitura, que uma coisa eram os juros
cobrados de um camponês que, por causa
Fé contemporânea de uma tormenta, perdera os seus bens
Uma questão de fundo, que ampliou o e necessitava de dinheiro. Bem outra, era
alcance da obra de João Calvino na Europa emprestar um capital para que uma pessoa
no século XVI, foi a compreensão que este o utilizasse na produção e, por meio dela,
reformador teve das angústias e perplexi- obtivesse lucros. Neste último caso, os juros
dades que as pessoas estavam vivendo. Já cobrados não só eram legítimos, como
vimos como, em meio às transformações justos. Além disso, Calvino ressaltou como
que vinham ocorrendo e que geravam os empreendedores burgueses podiam ter
grande insegurança, o povo pôde sentir o seu trabalho com uma vocação de Deus
o conforto que o ensino bíblico sobre a para o serviço aos demais e à construção
soberania de Deus trazia. Calvino deixou do reino na terra.
claro como Deus em sua graça, cuidava Na atualidade, a igreja muitas vezes tem
da salvação das pessoas, do mundo e da sido chamada a tomar posições pioneiras
história humana. E, acima de tudo, que e renovadoras com relação a determi-
as pessoas podiam confiar nesse cuidado nadas questões. Em 1999, a Assembléia
amoroso da parte do criador e de sua Geral da IPI achou por bem, após anos
providência. de discussões e debates, com estudos de
Mas Calvino também tentou compre- aprofundamento, aprovar o ministério fe-
ender problemas específicos vividos pela minino para o presbiterato e o pastorado.

78 . REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS


Fez isso depois de várias igrejas reformadas valer adequadamente dela. Os seres hu-
em todo o mundo. manos, muitas vezes personagens ilustres,
Sobre isso e a posição de Calvino sobre que nas mãos de Deus têm sido utilizados
o assunto, é interessante a posição da pro- através da história e que nos servem de ins-
fa. Jane Dempsey Douglas, do Seminário piração, são pessoas falhas marcadas pelo
de Princeton. Para ela, “Calvino foi o único pecado em suas vidas, como acontece com
reformador do século XVI a perceber que a todos. Só fazendo esse dimensionamento
proibição de admissão de mulheres nos mi- poderemos apreender adequadamente o
nistérios da igreja não se fundamenta nos que foi rememorado da tradição reformada
decretos eternos de Deus, mas no costume e que nos serve de material para reflexão.
social humano.” Em último lugar, é preciso deixar claro
que nem mesmo o mais importante re-
Conclusão presentante dessa tradição, nosso mestre
João Calvino, está fora dessa avaliação.
Ao chegar ao final desse nosso traba- Ele também foi marcado pelas limitações
lho, não podemos deixar de mencionar as que a condição humana impõe a todos
armadilhas a que ele está sujeito. Ao fazer e era muito consciente delas. Lembrá-lo,
um recenseamento de uma série de tópicos mais uma vez, nos faz pensar em como
referentes ao estilo de vida reformado e olhamos para ele e, pensando nisso, as
suas idéias, acabamos chamando atenção palavras do teólogo mais importante do
para a nossa tradição. Se, por um lado, século XX, Karl Barth, seguidor de Calvino,
buscamos compreendê-la no sentido de vêm a propósito:
revitalizá-la para que nos leve a servir “Reconhecemos em Calvino um
melhor a Jesus Cristo, por outro, podemos exemplo e um modelo na medida em
ser levados pelo que é secundário, ou seja, que ele mostrou à Igreja de seu tempo,
o orgulho vão. de maneira inesquecível, o caminho da
O que mencionamos acima e que se obediência, obediência no pensamento
aplica muito bem aqui é que ele só pode e nos atos, obediência na vida social
nos valer se a utilizarmos de modo auto- e política. Um verdadeiro discípulo de
-crítico. É lembrando de suas fragilidades Calvino, pois, só pode fazer o seguinte:
como as de um andaime, que é utilizado na obedecer, não a Calvino, mas àquele
construção de um prédio, que podemos nos que foi o mestre de Calvino.”

REFORMADOS PELA PALAVRA DE DEUS . 79


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Reformados pela Palavra

Editada pela Associação Evangélica Literária Pendão Real

Rev. José Carlos Volpato


Secretário de Educação Cristã
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Rev. Luiz Alexandre Solano Rossi


Coordenador das Revistas “A Semente” e “O Luzeiro” da Secretaria de Educação Cristã

Colaborador
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Revisão
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