Anda di halaman 1dari 180

rDo..u.d... )t.1,,.,. 7..,.,.., cL.t )µ_,,.

,
OC/ l,,l O"'j

Os filhos da
flecha do tempo
Pertinência e
Rupturas

1la Marques de Moraes


Profa. ora.~~l).fUB \013102
..~\N EOIREOOOll
flltU\.O~E O tiAASILIA. f0lUn6
UtU"ERS\OM>~ O~
Brasília, 2000
©2000 Roberto A. R. de Aguiar
Todos os direitos desta edição reservados

Letraviva Editorial Ltda.


SDS- BI. O- Ed. Venâncio VI - Lj. 27
Telefone (061) 224-4607-Fax (061) 225-8494
CEP 70393-900

Preparação: Reivaldo Vinas


Capa: Branco Medeiros
Ilustrações: detalhes do Livro de Cabeceira, de Chico Guil, originalmente em cores
Editoração eletrônica: Cia. Projecto Editorial

A tese de que aflecha do tempo é apenas


AGUIAR, Roberto A. R. de. fenomenológica torna-se absurda. Não somos nós que
Os filhos da flecha do tempo: pertinência e rupturas. Brasília : Letraviva, 2000.
geramos aflecha do tempo. Muito pelo contrário)
Ilustrada. somos seus filhos.
357p.
Ilya Prigogine
ISBN 85.87374-21-4

1. Filosofia. 2. Ética. 3. Ecologia. 4. Teologia. 5. Humanidade - Mensagem - 1.


Título.

CDD 170 Para Wa'!}a) Leonardo eJúlia)


meus parceiros de jornada.
Introdução ...................................................................................................................... 9
1. A 1núsica do mundo ................................................................................................. 15
2. Um olhar sobre os olhares ...................................................................................... 25
3. Pressupostos e crenças ............................................................................................ 35
4. Mapeando rupturas e suas manifestações ............................................................... 41
Introdução aos temas ............................................................................................... 41
5. A história ................................................................................................................. 45
6. Temporalidades ....................................................................................................... 71
7. O tempo paradoxal da contemporaneidade ............................................................. 77
8. A cartografia de algumas tendências contemporâneas ........................................... 85
A rapidez - o tempo instantâneo ............................................................................. 85
A tecnologia: produção, qualificação, informação e comunicação ............................ 89
A complexificação .................................................................................................... 97
A nova revolução científica .................................................................................... 1O1
A estrutura dramática do universo ......................................................................... 102
A lógica da complementaridade .............................................................................. 104
Probabilidade, determinismo e caos ....................................................................... 107
As certezas ............................................................................................................. 107
A causalidade ......................................................................................................... 108
As conexões necessárias ......................................................................................... 109
A verdade e a falsidade ........................................................................................... 109
Os limites da consciência ....................................................................................... 111
A ordem e a desordem ............................................................................................ 118
O mesmo e a diferença ........................................................................................... 121
Probabilidade, determinismo e caos: enfeixando as questões ................................. 123
A unidade constitutiva do cosmos ......................................................................... 125
Convivendo com o mistério ................................................................................... 126
A impossibilidade do acaso constituinte ................................................................ 131
9. Pressupostos e crenças transformadores na contemporaneidade ........................ 137
A possibilidade da transformação .......................................................................... 137
A não-linearidade e a dimensão criativa ................................................................. 139
O micro interferindo no mega ................................................................................. 140
O sonho como expressão do universo interior ....................................................... 141
A integração do ser humano com o outro, a TeITa e o cosmos ............................... 142
O futuro presentificado .......................................................................................... 143
A união sistémica da diversidade ........................................................................... 144
A fragmentação e o declínio da globalização .......................................................... 145
A mundialização em oposição à globalização ......................................................... 157
O renascimento do ser humano .................................. .": .......................................... 161
A existência de um universo interior tão complexo quanto o cosmos .................... 166
A responsabilidade mineral, vegetal, animal e social dos seres humanos ............... 169
l!)

~
.ao.. Transformação: o desejo e a subjetividade ............................................................. 174
2 A presença e a incognoscibilidade do mistério ....................................................... 176
(j,)
O reconhecimento e a solidariedade entre os seres humanos ................................. 178
ro
'ü A contribuição de todas as culturas vivas, atuais, passadas ou tradicionais .......... 181
e
<(j,)
e Os caminhos gnosiológicos da ciência, da arte e da tradição .................................. 183
~ 10. A necessidade de superação das dualidades paralisadoras ................................ 187
(j,)
o..
Razão e paixão ..................................................................................................... 193
o Técnica e ética ...................................................................................................... 196
o..
E Inferior e superior ................................................................................................ 201
2
o Utopia e topia ...................................................................................................... 203
u
ro Regularidade e irregularidade ................................................................................ 206
..e
u
(j,)
Semelhança e diferença ......................................................................................... 209
<;::
Homem e natureza ................................................................................................ 212
ro
u Ciência e arte ........................................................................................................ 216
l!)
o 11. A aposta nos valores da construção .................................................................... 219
..e
li= 12. A radicalidade da ação ........................................................................................ 225
l!)
o 13. O transitório como caminho para o permanente ................................................ 229
14. A alegria revolucionária ...................................................................................... 231
15. As crianças como o philum do cosmos ................................................................ 233
16. A mulher: ostracismo e não-poder ...................................................................... 237
17. A vida-morte como instrumento da vida ............................................................. 241
18. A ordem mais profunda: transcendendo o acaso e a necessidade ...................... 247
19. A religiosidade para além das religiões .............................................................. 249
20. Possibilidades abertas pelo novo olhar ............................................................... 253
Convivência entre a luz e a sombra ...................................................................... 253 Este livro origina-se de um mal-estar perante os modelos
A construção da liberdade .................................................................................... 254 explicativos do ser humano e da natureza dominantes no senso
O amor ................................................................................................................. 255
O respeito ao corpo do outro ............................................................................... 256 comum dos cientistas e dos leigos. O resultado dessa compreen-
A humanidade como solo fértil para a paz ........................................................... 257 são e desses modelos foi este mundo brutal, competitivo, des-
A reinserção dos velhos como expressão da história e do acúmulo de experiências ... 258
21. Contradição e complementaridade ...................................................................... 261 truidor e suicida em que vivemos. Esse complexo de facetas re-
22.. A política pelo avesso .......................................................................................... 263 sultou no exílio do ser humano e em sua insignificação, num ente
23. Invertendo parâmetros ........................................................................................ 267
24. O uno, o sublime e o terrível na constituição do universo .................................. 273
que rompeu todo elo de pertinência com qualquer contexto divi-
25. A espécie humana: destruição ou salto para o mais-ser? ................................... 277 no, natural e social.
Admissão da diferença como necessária à totalidade ........................................... 290
O ser humano tornou-se um ser que tem como único senti-
Atendimento prévio das demandas de sobrevivência ........................................... 291
Abandono das abstrações alienantes como nortes da existência .......................... 293
do a disputa, o combate e a guerra de aniquilação de seu inimigo,
Superação da linearidade evolutiva ....................................................................... 295 seja ele pessoal, político, étnico ou comercial. A vida é embate
26. A democracia: planeta, corpo, gênero e interioridade ........................................ 299 mortal. A crueldade, a maldade e o extermínio são naturais, até
27. A dignidade humana ............................................................................................ 321
porque se entende que as análises devem ser mais quantitativas
28. A ingenuidade como atitude ................................................................................. 325
Notas .................................................................................................................... 328
que qualitativas. A exclusão e as desigualdades não emocionam.
Elas poderão ter algum efeito se o impacto sobre o mercado for
grande, ocasionando diminuição de lucros. No mais, nenhum
Bibliografia ........................................................................................................... 345
sentimento, nenhuma compaixão.
;:o
VJ o
(::'. CT
(D
.3o.. A natureza é considerada fonte inesgotável de recursos pre- universo, seu papel de ~~~.~~.~J da linguagem auto-explicativa do ;:::\-
º
2 '?'
Q) dada racionalmente pelo ser humano, por via do trabalho e da uruverso.
ro ~
'Li
e exploração, pois o mundo do homem se define pelo domínio da Tudo isso repercute no entendimento da sociedade, da o..
(D
<Q)
e
~ naturalidade, que é separada dele, e nada tem a ver com sua exis- política, da economia, da ética e da própria dignidade humana, )>
lO
e
Q)
o.. õ:i'
tência ou configuração social.Já se disse que se a espécie humana como será visto. --.
o
o..
E direcionar sua liberdade para esses tipos de pensamentos e ações, Para tratar desses temas e para enveredar pelos caminhos
2
o
'D
o caminho de maior probabilidade é o do suicídio, uma vez que novos pavimentados pela ciência contemporânea, pelos cami-
ro
..e
u
desse ser de ruptura constituído não se pode esperar condutas nhos tradicionais e pelas sendas que a multidisciplinaridade e a
Q)
;:;::
éticas, condutas de respeito ou de reconhecimento. Por que re- transdisciplinaridade abrem, desenvolvemos este trabalho da
ro
'D
VJ
o
conhecer e amar um ser, ou dele ter compaixão, se ele é resulta- forma a seguir apresentada.
..e
<;:: do de uma falta de higiene da crosta terrestre? Introduzimos metaforicamente este livro, comparando o
VJ
o A razão instrumental iluminista, marcada por sua preten- universo e seus seres com a polifonia musical, com a música sin-
são à neutralidade, esvaziou o talento inventivo da humanidade fônica, com sua dinamicidade e variedade de níveis e de relações,
' encerrando esta parte com breve análise dos olhares que incidem
dirigindo-o para as tecnologias e os artefatos, cindindo a razão e
a emoção, separando a cabeça do coração, e exilando o ser hu- sobre o mundo.
mano de si mesmo. Daí nossa preocupação com o resgate da A parte seguinte está dedicada aos limites do conhecimen-
razão cordial, da razão da compaixão e do cuidado. to, à dificuldade em estabelecer teorias completas e axiomatiza-
A ciência, que antes reduzia os objetos e separava o obser- das e à necessidade de admitir crenças primárias para dar susten-
vador do observado, caminha hoje para a abertura de seus con- tação aos pensamentos mais complexos. Daí termos desenvolvi-
ceitos. Ela, que havia, na Antigüidade, lançado as bases da lógica do um trabalho de mapeamento das rupturas que o ser humano
da identidade, teve, a partir do século XVIII, de engendrar a ló- sofreu no decorrer de sua história.
gica da contradição, traduzida pela dialética idealista de Hegel, O passo seguinte foi refletir sobre o tempo paradoxal da
seguida da dialética materialista de Marx, já na segunda metade contemporaneidade e a cartografia de algumas tendências con-
do século temporâneas. Nesta parte do livro, são tratados temas como a
Os fenômenos quânticos e as novas teorias da física obri- rapidez, a tecnologia, a complexificação,* a Revolução Científi-
garam a ciência a construir uma outra lógica: a da complementa- ca as certezas a causalidade, os limites da consciência e a convi-
' '
ridade, que revoluciona os estudos da própria ontologia dos se- vência com o mistério, para citar alguns.
res. Ademais, a até então indiscutível separação entre sujeito e
objeto é superada hoje por dois pólos interdependentes e reci- *Optamos, neste trabalho, pela utilização da palavra complexifica-
procamente relacionados e condicionados. ção, que não é de uso comum na língua portuguesa, mas presente nas
obras de Teilhard de Chardin, nas traduções de seus trabalhos em portu-
Tudo isso invade o conceito de ser humano e impele-nos a guês e em trabalhos de análise de sua obra. Teilhard criava esses neolo-
admitir sua dependência da natureza, sua participação nela como gismos, como amorização, por exemplo, para dar conta de expressar seu
um ser natural, sua dimensão de arquivo cósmico e histórico do rico e polimorfo pensamento.
(/)

~
.a
Q. Na seqüência, procuramos navegar pelo terreno dos pres- livro afunila-se no tratamento da espécie humana e sua
2
Q)
supostos e das crenças transformadores na contemporaneidade, capacidade de saltar para sínteses mais complexas ou se encami-
ra

e
<Q)
em que temas como a não-linearidade, o sonho, a união da nhar para a destruição, e identifica temas como a admissão da
e
~
Q)
diversidade, a mundialização em oposição à globalização e os interioridade humana, a compaixão e a solidariedade, o fim do
Q.
caminhos gnosiológicos da ciência, da arte e da tradição foram monopólio dogmático da ciência, a questão da múlti e da trans-
oQ.
E tratados. disciplinaridade, a razão cordial, a ética da vida e a repactuação
2
o
"O
Continuamos procurando identificar as dualidades e oposi- com a natureza, dentre outros.
fU
..e
u ções que paralisam nosso pensamento, empobrecem nossos mode- Este trabalho termina com o tratamento da democracia,
Q)
<:;::
ra
los e condicionam os preconceitos. Assim, as oposições razão-pai- englobando as dimensões do planeta, corpo, gênero e interiori-
"O
(/)
o xão, técnica-ética, inferior-superior, utopia-topia, regularidade-ir- dade, acrescido de dois temas, que são o da dignidade humana,
..e
tE regularidade, semelhança-diferença, homem-natureza e ciência-arte agora capaz de ser recuperada, a partir das visões aqui trazidas e
(/)
o pelo levantamento da ingenuidade, em seu sentido mais profun-
foram tratadas em busca dos caminhos de sua superação.
Os capítulos seguintes vão tratar dos problemas do conhe- do, como atitude humana diante do mundo e de si mesmo.
cimento e da ética contemporâneos. A questão da aposta retor-
na, para visualizarmos se os valores da construção poderão ou
não sobreviver nos rumos que a história está tomando. A radica-
lidade da ação é trazida para resgatar as raízes a partir das quais
a intervenção no mundo se dá. O problema da permanência e da
transitoriedade é tratado na parte seguinte, acompanhado do tra-
tamento de questões como a alegria, as crianças, a mulher e uma
ordem mais profunda, para além do acaso e da necessidade, e a
religiosidade para além das religiões.
Com os subsídios dados pelas reflexões desenvolvidas, tor-
na-se possível chegar a outro passo, para detectar a amplitude e
os valores do novo olhar da contemporaneidade, de modo a
abarcar um leque de perspectivas, como a convivência entre a luz
e a sombra, a construção da liberdade, o amor, o respeito ao
corpo do outro, a paz, e a inserção dos velhos.
A partir da comparação entre a contradição e a comple-
mentaridade, estuda-se nos capítulos subseqüentes a inversão de
parâmetros na política e nas outras dimensões da vida, até culmi-
nar no desenvolvimento do tema do uno, o sublime e o terrível
na constituição do universo.

1 ')
minha infância, eu tinha certas preferências, certos gos-
tos que, diga-se passagem, permaneceram até hoje e cuja sig-
nificação desvelei há pouco tempo. Sempre fui um apaixonado
pela música, devido até mesmo à presença cotidiana de pais ar-
tistas em casa. Mas não era qualquer música que me despertava
empatia. As que me sensibilizavam tinham de ser complexas em
sua estrutura, entretecidas em suas diversas vozes, ricas em sua
diversidade rítmica, de timbres, de nuances e, evidentemente, bem
interpretadas, ao menos sem desafinações gritantes ou gargarejos
de trompas (minhas velhas adversárias auditivas, neste aspecto).
Também sempre fui um leitor ansioso, que procurava ler
romances, novelas, contos e poesias quase que com uma unção
mística. Tentava ver no texto o que ele dizia e o que eu pensava
Ul
~
.ao.. que ele queria e, o que eu 1magmava que a
2
Q) escondendo. cer, um pouco, muito mais tarde.
(\)

e
<Q)
Sentia uma diferença fundamental entre o texto musical e o Essa música que eu conhecia proporcionava várias atitu-
e
fQ)
da linguagem escrita: a minha possibilidade de perceber vozes des: ora eu tentava ouvir a massa de sons, como se olhasse a
o..
o
diferentes, concomitantes e autônomas na música e a minha trama geral de um tapete, para perceber seus desenhos, sua tex-
o..
E incapacidade de percebê-las com a mesma rapidez nos textos tura, seu tamanho e seus efeitos no ambiente; ora eu tomava um
.8
o
"D
apresentados linha a linha. só naipe de instrumentos e ouvia um movimento ou peça intei-
(\)
..e
u
Era-me difícil fazer uma comparação entre a polifonia de ros, só a desvendar a trajetória desses instrumentos; ora eu to-
Q)
<;:::
(\)
Bach com um enredo, ainda que complexo, como a Comédia Hu- mava as melodias em seu entretecer, ou as melodias isoladamen-
"D
Ul
o
mana de Balzac. Havia uma linearidade maior no texto ~~~-~~~-~ te (isso era agradabilíssimo em Bach); ora eu ouvia apenas para
..e
<;::: até mesmo comandada pelo movimento dos olhos a acompa- sentir o crescer e diminuir da massa de sons; ora eu me dedicava
Ul
o nhar as linhas. Minhaf imaginação ficava entretecendo enredos, aos timbres - da acidez dos trombones ao lamento dos oboés;
em inúmeros textos paralelos, mas ainda sem alcançar a veloci- ora eu me dedicava a desvendar as interpretações, que, para mim,
dade de sentimentos e percepções que a música me causava. sempre eram quase outra obra, tal a diversidade que apresenta-
Quando comecei a ler poesias, adentrei numa linguagem vam; ora eu me deixava embalar, sem maiores atenções, enquan-
que me deixava mais solto para criar, recriar, rever, repensar e to aquele fluxo complexo de sons ensejava evocações, quadros,
observar o texto poético de várias maneiras. poesia, para mim, situações e desejos. O que desde criança dei como certo é que a
não tinha a finalidade de contar nada, nem mesmo a de passar linguagem musical continha mensagens que poderiam ser tradu-
sentimentos. A poesia, para mim, era um enigma a ser decifrado, zidas de várias maneiras e que despertavam pensamentos e emo-
para cuja solução era necessário criar novos enigmas. Ela era som, ções, sem que se soubesse o porquê disso. Havia um Andante de
palavras e apresentação gráfica. Eu gostava de vê-la como man- um quinteto de Schumann que sempre me fazia chorar, não sei se
cha no papel. Às vezes até mesmo como cheiro. Eu gostava de pelo timbre do violoncelo, que dominava, não sei se pela singele-
sentir aquele aroma de papel dos livros. Havia épocas em que eu za da melodia, ou pela combinação de timbres daquele quarteto
preferia o odor dos livros da Brasiliense; noutras, o dos livros da acrescido de piano. De alguma forma, aquela construção, supos-
Aguilar. A poesia aguçava meus sentidos e sempre deixava uma tamente matemática e abstrata, suscitava em mim forte emoção.
sensação de não-resolvido que me era estimulante. Mais tarde, sofistiquei a audição musical, pois passei a ou-
A música trazia-me sensações diferentes. A linguagem vir música com partitura nas mãos. Aí, novas leituras passaram a
sonora, por não pretender dizer alguma coisa em particular, abria ser feitas. Não somente eu ouvia, das maneiras já descritas, como
a possibilidade de dizer tudo. Era um campo imponderável onde também eu lia as parti~ras e os desenhos que as melodias faziam
tudo era possível, onde todas as sensações· poderiam se dar e nos pentagramas. A música sinfônica, principalmente Beethoven,
onde eu podia perceber várias camadas de dados, concomitante- guardava para mim a contribuição polifónica do barroco, com o
mente. A minha formação musical foi o inverso da de outras acréscimo de uma orquestra mais densa, com um tratamento onde
pessoas. Eu vivi a música em casa. Era a música erudita. havia mais inesperados, já que os ouvidos, acostumados ao

1 '7
(/)

~
.3o. barroco, previam as construções e soluções sonoras em muitas dodecafonismo, a música a música aleatória,
2 experiências do silêncio como música, como no caso de
Q) ocasiões. A partir de um certo aprofundamento no estudo de
ro
·u Beethoven, compreendi que as sinfonias, por sua riqueza, com- deram a mim um panorama da riqueza e complexidade da cria-
e
<Q)
e
plexidade, possibilidades interpretativas e aberturas para audi- ção musical. Há sempre um norte do compositor, há sempre
t'.
Q)
o.
ções novas eram sempre obras abertas: estabeleciam parâmetros indicações, muitas vezes estritas e rigorosas, mas, a cada execu-
o
o.
E melódicos e indicações interpretativas. O jogo de probabilida- ção, há uma recriação, uma deformação, uma releitura que man-
2 tém a unidade da obra, mesmo quando falamos das composi-
o
-o
des era grande, uma vez que sua execução envolvia tantas pesso-
ro
.e as, como os instrumentistas das orquestras, o maestro, os ouvin- ções aleatórias, que, em princípio, têm a orientação no sentido
u
Q)
q::
tes, os momentos em que a apresentação se dava, os estados de do tratamento musical lúdico.
ro
-o
(/) espírito dos executores e a dos destinatários, a umidade repenti- A música me mostrou que o mundo observável, apesar da
o
.e
\;::: na que poderia desafinar o piano, a falha técnica na construção pretensão de harmonia que intentamos a ele atribuir, é sempre mo-
o
(/)

da palheta de um oboé, os lábios flácidos de um trompista, a vimento, contradição, probabilidade, acontecimentos, relações, im-
conjuntura histórica, as tensões sociais do momento, as relações previsões e caos, e apresenta uma dimensão criativa que permite a
interpessoais entre os músicos e as destes com o maestro a ima- ele se autoconstituir, subdividir-se em cenários não concebidos.
' Mas, apesar de todas essas características, existe uma certa direção
gem da orquestra e o tão decantado gosto dos ouvintes em rela-
ção ao compositor da partitura executada. Uma sinfonia é um de fundo, uma intenção, que sempre está presente, mesmo na hi-
mundo de variáveis, de contradições, de indizíveis, de inespera- pótese de maior desvio. Essa intenção é tão distante, tecida com
dos, de efeitos previsíveis pela teoria da informação e por conse- outras tantas manifestaçõ~s, que é difícil perceber sua natureza e
qüências que não podem ser controladas, até mesmo por sua sin- seu processo. Basta lembrar a colisão de entendimentos entre os
gularidade. intérpretes que pretendem recriar a música em função de sua sub-
Os barrocos e os românticos povoaram minhas experiên- jetividade, de seu sentimento e análise da obra, como no caso de
cias musicais até os treze anos, quando comecei a me interessar Pogorelich ou Glenn Gould, e os que desejam interpretar o que o
pelo estranhamento da construção musical de Debussy, pela for- autor determinou como tal, não dando espaço para a subjetivida-
ça contida e domada da obra de Ravel e pelo impacto emocional de reinterpretar. No fundo, tanto uns quanto outros estão dialo-
que me causava Wagner, no meu entender, o ápice da construção gando com a intenção citada, afirmando-a ou negando-a, sem sa-
tonal, tanto na inovação harmônica, quanto na montagem ampli- ber bem que intenção é essa, já que o autor não consegue passar
ada da orquestra romântica. Foi Mahler que me mostrou, junto para os pentagramas suas íntimas prospecções e os desejos emer-
com o Schoemberg da primeira fase, o prenúncio do fim do to- gentes de seu ato de criar. O próprio autor, muitas vezes, não sabe
nalismo, justamente quando ruíam as últimas luzes do século a dimensão do que pretende, ou mesmo se pretende alguma coisa,
europeu. As sinfonias de Mahler e peças como Noite tranifi,gurada, além da expressão da linguagem sonora, sem intenções outras que
de Schoemberg, indicavam para mim que era possível fazer mú- a de apresentar significantes para suscitar significados, de ampliar
sica fora de cânones absolutos, para além do manual de Rinsky- o vocabulário sonoro para desvelar dimensões apenas intuídas,
Korsakov. não refletidas ou objetivamente desejadas por ele.

1 ()
Ul ;o
~ o
::J CJ"
b. A condição humana tem muito dessas características levan- As relações entre os violoncelos e as violas na orquestra
(1)
;:.1-
2 0
Q) tadas em relação à música. O fato de o ser humano nascer data- podem não determinar o desenho da peça executada, porém sem ?
<O
·o do e situado possibilita a apropriação dos saberes, valores e prá- !1
e
<Q)
elas o desenho não existirá. Assim também são a dimensão pes- o..
(1)
e
t'. ticas anteriores, mas também constitui limitação temporal que soal, a qualidade pessoal, a ética pessoal, a trajetória pessoal, di- )>
lO
Q) •
Q. e
lhe dá a oportunidade de participação em curto prazo. Ele passa mensões esquecidas pelos pensamentos da coletividade, que di- ...õj"
oQ.
E pela Terra com grande velocidade, desenvolvendo uma trajetó- luem o ser humano dentro de grupos, retirando qualquer possi-
2
o
"O
ria curta. bilidade de autenticidade, diferença e contribuição individual.
<O
..e
u
Essas datações e situações circunscrevem-no, se encarado Todos os pensamentos generosos têm como finalidade dar prer-
Q)
q::
<O
individualmente. Se olharmos de modo mais cuidadoso, vere- rogativas iguais aos seres humanos, a fim de que eles possam exer-
"O
Ul
o
mos que ele faz parte de uma espécie que transmite as experiências cer suas diferenças, aptidões e criatividade. igualdade não é
~
<;:: para as gerações vindouras muito mais pela cultura do que pelos uma questão geométrica, e sim uma busca de reconhecimento
Ul
o instintos. Os elos que atam os seres humanos coletivamente, entre os seres humanos.
transcendem o tempo e o espaço. Há l,lllla acumulação contradi- Pensar a humanidade com as contribuições que a ciência e
tória e tensa de experiências no decorrer das várias manifesta- o conhecim~nto atuais proporcionam implica abandonar qual-
ções históricas. quer pretensão geometrizadora do mundo, concepções de har-
As gerações e as culturas, como se fossem naipes dessa or- monias preestabelecidas, imaginários que dêem a precedência da
questra universal, dialogam todo o tempo, senão por via dos su- idéia sobre a matéria, ou cfesta sobre a primeira. Em uma gênese
jeitos vivos, pelo menos por intermédio das criações, das experi- universal, da qual o homem participa, suas condutas, práticas e
ências, das vivências e dos modelos de organização social, que relações são influenciadas pela externalidade. A própria externa-
são entretecidos sincrónica e diacronicamente. As culturas, os lidade sofre a interferência humana, e participa dessa relação.
grupos sociais, as relações entre os homens, o mundo da produ- totalidade cósmica também caminha, porque o ser humano é
ção e as questões econômicas não transitam em um campo de habitante e parte deste universo.
seres iguais. Os seres humanos são diferentes (o que não significa Voltando à música, observamos que o compositor cria,
dizer que tenham direitos diferentes), o que abre a oportunidade mas infinitas recriações são perpetradas tantas vezes quantas sua
de incontáveis formas de produção de relações sociais, políticas, peça for executada, ouvida ou simplesmente rememorada. Vári-
econômicas e culturais, apesar de podermos categorizá-las den- as ordens se entrecruzam: a das partituras, a dos movimentos, a
tro de certas delimitações. da execução dos diversos instrumentos, ao dos condutores das
O pessoal, a alienação de cada um e a sensibilidade tam- orquestras, a das cabeças dos músicos, a das competências técni-
bém entram no processo de produção da própria humanidade. cas dos executantes e a da percepção dos ouvintes. As conjuntu-
A história de um povo não se esgota em sua trajetória coletiva. ras dentro das quais essas ordens se dão, que delineiam limites e
A ela se somam os caminhos dos entretecimentos individuais que aberturas para a leitura e a interpretação da obra, e os meios
estão referenciados ao todo, que guardam especificidades e que pelos quais a execução é reproduzida fecham um conjunto de
também ocasionam mudanças, dramas e avanços. condições de expressão musical. Ora, se uma sinfonia pode ser

')()
vista sob esse enfoque, o que dizer das relações entre os seres
outro. As ciências, a partir do século apenas trabalhavam
humanos e as destes com a natureza. Não há possibilidade de
Q)

ro
com o observável, com o positivado, com aquilo que poderia
'Li nos fecharmos em esquemas definitivos, pois não somente a hu-
e
<Q) ser observado e experimentado por nossos sentidos e por nos-
e
t'. manidade cria o seu pensamento e sentimento, como também o
Q) sas técnicas disponíveis. A partir da mudança dos modelos da
Cl.
universo está se autogestando com a participação humana. Tan-
o física, da astronomia do desvelamento dos aspectos micro e
Cl.
E tos são os caminhos e lados desse movimento, que não há possi-
2 macro do mundo do dado, as ciências construíram enfoques que
o bilidade de reduzir a questão a uma lógica binária, a uma ética
-o se distanciaram dos saberes do século passado. As questões so-
ro
..e binária, a uma política binária ou a uma física binária. A seme-
u
Q)
bre o humano, que, por algum tempo, suscitaram avanços em
;;::: lhança e a identidade caminham de mãos dadas com a contradi-
ro
-o
relação ao modelo naturalista então vigente, progressivamente
ção e a diferença. A regularidade se transmuda fractalmente em
(/)
o
..e
transitaram para limites aquém das atuais perguntas e respostas
iE caos, para se reconstruir mais adiante. O sublime de um tempo
(/) do conhecimento contemporâneo. A ética, a política, as relações
o ou lugar será o hediondo de outro. Por outro lado, há certas
sociais, a história e a produção, que haviam se libertado do mun-
criações, conquistas ou atos históricos que transcendem seu tem-
do ptolomaico, não conseg;.uiram se desvencilhar do positivismo
po e lugar e vão se somar ao acervo da própria condição huma-
e de uma ingenuidade epistêmica que marcaram o conhecimento
na. Não são meras manifestações culturais, eles têm um eixo ou
científico do século
eidós que os empurra para as gerações vindouras, para as culturas
vantagem da música é trabalhar no universo do periferi-
do futuro. De alguma forma, eles dizem de algo que tece a huma-
camente indizível. Suas significações têm de ser procuradas em
nidade, ou de marcas do próprio ser dos homens. Nesse caos
estratos mais profundos, em abstrações, percepções e sentimen-
aparente, que indica fragmentação, irracionalismo, consumismo
tos que não pertencem às evidências empíricas, ao estritamente
e alienação, um philum pouco reconhecível ata os seres humanos.
observável. O homem e seu mundo também têm como substra-
Esses mesmos seres que se destroem e se dilaceram em disputas
to relações e significações que devem ser arduamente construí-
estéreis ou em torno de ortodoxias primárias também tecem uma
das por um ser efêmero no interior de um contexto de idade
trama a contrapelo dessa entropia. Não é um movimento linear,
astronômica. Os experimentos, que eram prova prévia de um
nem mesmo parece ser uma espiral ascendente. Talvez seja mul-
conceito posterior, tornam-se comprovadores de construções
tilinear, com linhas não percebidas ainda, com faixas de onda
abstratas que vieram à luz antes de qualquer experimento e para
ainda não escutadas. É nessa complexa música do universo que o
além dos limites imediatos das sensações e percepções. Para tan-
ser humano está, não como contemplador, mas como copar-
to, basta lembrar a fundamental questão da temporalidade no
ticipante da abertura ou da entropia, ou ainda das duas ações, ao
cosmos. Toda a física clássica está baseada na sincronicidade tem-
mesmo tempo.
poral dos fenômenos, isto é, na reversibilidade do tempo.
O entendimento literal da afirmação filosófica de que nada
teorias atuais da física do não-equilfürio já aceitam a assincronia
está no intelecto que não tenha passado pelos sentidos levou a
temporal, a irreversibilidade do tempo có~mico, a flecha do tem-
um paradoxo representado pela alta abstração lógico-matemáti-
po, o que significa dizer: a historicidade do universo, que sai da
ca, de um lado, e pelo realismo ou materialismo empírico, de
categoria de ordem a ser contemplada, de harmonia a ser
desvendada, para adentrar na dimensão processo complexo
Q)
em construção, do qual o homem participa como parte integran-
ro
·u
e
te e não mais como contemplador. ser humano é parte e fruto
<Q)
e
·-e de um processo infinitamente mais amplo, participa de uma to-
Q)
o.. talidade muito mais abrangente e diz respeito a dimensões que
o
E
Q.
transcendem o meramente observável, os limites das tecnologi-
2
o as disponíveis. O universo também se constrói pelas elaborações
"D
ro
..e:
u
humanas a seu respeito. As construções conceituais sobre o cos-
Q)
q::
mos são também a imagem que o homem faz si mesmo, pelo
ro
"D
Vl fato de que o ser humano é parte dele, uma parte que produz
o
..e:
(;::: conhecimentos e saberes, em suma, uma parte consciente. Isso
Vl
o não significa aderir a um panteísmo simplista. Os panteísmos estão
ligados à visão de um universo predeterminado, com leis fixas,
representando submissão a seus comandos. A questão aqui le-
vantada diz respeito a um universo infterz~ do qual o homem par-
ticipa em sua caminhada, como seu elemento constitutivo e como
manifestação de consciência de si. O turbilhonante universo tam-
bém se pensa e se cria, pelo pensamento e criação humanos.

A linearidade e o geometrismo presidem a herança que re-


cebemos da ciência do século XIX. Nossas percepções procu-
ram regularidades, tendências, leis, permanências, ordens está-
veis e harmonias escondidas na fragmentação cotidiana e nas
rupturas e contradições do mundo em que vivemos. Há até mes-
mo o risco de os pensadores dialéticos, que têm de fundamentar
suas reflexões e práticas no movimento, na instabilidade e na rup-
tura, tornarem-se arautos de uma harmonia e estabilidade futu-
ra, padrão e norte para a compreensão e a intervenção no pre-
sente. Sem que eles queiram, passam a assumir o combatido po-
sitivismo que rejeitam.
Essa ciência taxonômica e de semelhanças gerou um olhar ana-
lítico sobre recortes que foi se desenvolvendo diante do mundo do
Ul
;x:i
~ o
.ao. dado. Tais recortes foram denominados objetos. A constituição CY
íll
2 transcende, em muito, seu uso corriqueiro. Esta palavra ;::\.
o
dos objetos possibilitou grande repercussão operatória, que se ?>
ro do latim venturus, particípio futuro do verbo venio, que significa
·u traduziu pelo avanço da tecnologia e pelo aumento evidente do ~
e
<Q)
e
vir, avançar, atacar, crescer, brotar, caber em sortes ou cair em o.
íll
:e rigor no tratamento teórico dos objetos construídos. O proble-
Q)
o.
sorte, suportar, sofrer, caminhar vagarosamente, mostrar-se, )>
lCl
e
ma que esse olhar trouxe foi o de não mais perceber a totalidade ~·
o
o.
vir ao mundo, dentre outros sentidos. Como adjetivo, tem o
E do dado. Os recortes estavam bem analisados, as repercussões
2 significado de futuro que virá. Enquanto substantivo femi~no,
o práticas estavam sob controle e serviam à produção, mas estava
-o está ligada ao latim ventura, que tem o sentido de fado, destm~,
ro
..!:: instaurada a impossibilidade de se construir a globalidade do
u
Q) sorte e fortuna. A composição do prefixo ad com o substanti-
;:;:::
dado que foi recortado para constituir o objeto de determinada
ro
-o vo ventura gerou no latim a palavra adventura, que tem mais uma
Ul ciência.
o
..!::
existência hipotética nos dicionários etimológicos do que do-
<;::: O efeito dessa visão foi devastador para o pensar humano
Ul cumentação nos textos da língua, e que significa coisas que es-
o e para a própria ação humana no mundo. Quando o pensamento
tão por vir. Em português, abarca os sentidos de empresa, en:i-
pretendia elaborar percepções globalizantes, necessitava lastre-
preendimento, experiência arriscada, perigosa ou ~comu~, CUJO
ar-se em determinada ciência, que hipertrofiava um recorte do
fim ou decorrências são incertas, acontecimento 1mprev1sto ou
mundo do dado. Logo, corria o risco de ler o mundo sob uma
surpreendente, acaso, sorte e fortuna, conforme as lições do
óptica parcial, ou de tornar o parcial manifestação da totalidade.
dicionário Aurélio.
Ora a economia era o chão a partir do qual a cosmogonia se
A significação de aventura tem como base os sentidos de
constituía, ora a psicologia lastreava essa construção, ora a polí-
inesperado, de ação, de possibilidade e de acaso. Subjac.ente a
tica, e assim por diante. Desse modo, no lugar de se abarcar a
essa palavra, também percebemos a imbricação do sentido de
complexidade da tessitura do dado, fazia-se uma leitura generali-
futuro, de construção, de risco para construir um itinerário. A
zadora a partir de um objeto metodologicamente reduzido. As
palavra aventura é a negação da linearidade, mas é a afirmação
repercussões práticas também foram nefastas, pois a conduta
do movimento, do enfrentamento, do mergulho no desvenda-
humana passou a ser compartimentada, mesmo quando preten-
mento do desconhecido, da busca do melhor, do plenificador.
dia ser um agir transformador.
Daí a expressão bem-aventurado, isto é, aquele que, por sua ação,
Ligando-se a busca das regularidades e a linearidade do
conduta ou natureza, é aquinhoado com a boa sorte, com a sal-
pensamento com o reducionismo necessário para a constituição
vação e com a diferenciação dignificante. A aventura também é
das ciências, o movimento, os acontecimentos, as irregularida-
uma forma de nascimento, de vir à luz, de enfrentamento interior
des, as diferenças, a criatividade, os imaginários, por não se eri-
e exterior, de modificação, se tomarmos sua origem verbal lati-
, quadrarem em categorias fixas e predeterminadas, não respon-
na. A aventura não cabe em previsões lineares, nem pode ser
diam ao modo geométrico e regular que respaldava esse olhar.
circunscrita por modelos esquemáticos ou prefiguradores. Ela
Poderíamos dizer que o olhar científico do século passado
não se adeqüa aos universos previsíveis, não se acomoda aos con-
não dava conta da aventura humana. Uma análise da palavra aven-
ceitos prontos, nem pode lançar suas bases em certezas acomo-
tura poderá introduzir sua multiplicidade de sentidos, que
dadoras. A aventura é a negação do posto, do conservador e do

26
U1
~
.ao. seguro. Ela é risco, imprevisibilidade e salto para o desconheci- perde a totalidade do ícone. Ele tem de ser visto com lentes de
2
QJ do. Ela é atitude de desvendamento, busca de luz ao final de um aumento para detectar suas dimensões pequenas, com telescópios
ro

e túnel, que leva a outros túneis, desafio constante, questionamen- para desvendar suas macrorrealidades e com os olhos de artista
<QJ
e
t'.QJ to permanente, surpresa a cada passo e crescimento a partir das para captar suagestalt. Mas não basta olhá-lo, não basta aperfei-
o..
experiências que proporciona. A aventura traduz avanço, cresci- çoar os procedimentos técnicos ou metodológicos; é preciso per-
o
o..
E mento e construção de destinos, a se tomar sua raiz latina. cebê-lo com os sentidos da paixão, com os instrumentos do afe-
2J
o
"O
Contemporaneamente, os novos modelos científicos que to, que também são ferramentas desvendadoras do processo de
ro
..e
u
procuram dar conta da diferença introduziram na reflexão esse construção desse ser.
QJ
q::
ro
problema, que, em termos fenomênicos, recebe o nome de acon- A aventura humana não cabe em modelos restritivos, o que
"O
U1
o
tecimento, de fato ou ser único. Ao nível da condição humana, significa dizer que a linearidade, as utopias curtas e as visões re-
::!::
te esse fenômeno pode ser denominado aventura. A característica dutoras não podem desvelar esse caminho mutável e contraditó-
U1
o central da trajetória humana é a aventura, pois o desconhecido rio da aventura peculiar que vai constituindo seus objetivos, à
permeia a existência da humanidade e o desvendamento do mun- medida que caminha. O futuro, outro aspecto da aventura, é cons-
do é uma aventura intelectual, afetiva, existencial e operatória. truído pelos seres humanos, mas também é desviado e redirecio-
Essas aventuras são coletivas e pessoais e, em função da própria nado pelos fenômenos que independem de sua ação, já que, ape-
consciência crescente do ser humano, engendram problemas cres- sar de não gostar disso, o ser humano vai abandonando seu sen-
centes, a cada superação de problemas anteriores. timento de onipotência, transitando da posição de imagem e se-
Existir é uma aposta coletiva e individual, que tem o risco melhança de Deus para a de habitante de um cosmos pouco co-
de todas as situações aleatórias, em que variáveis imprevisíveis nhecido e que exige seu desvendamento para definir a própria
testam e desafiam a aposta feita. As apostas existenciais têm um condição humana e subsidiar sua trajetória enquanto ser indivi-
componente essencialmente ético. Além de o ser humano ser de dual e coletivo.
uma espécie que tem a peculiaridade de rir, como entende certa A lógica e a matemática, que se apresentavam como instru-
escola italiana, essa espécie tem a especificidade da construção mental validador do contexto de descoberta das ciências, insur-
social da ética. As bases de sua conduta participam de um com- gem-se contra essa posição e passam a ser instrumentos de aber-
plexo de facetas que vai do hereditário ao social, do social para o tura fenomenológica, de kerigma das descobertas científicas. Es-
animal, do animal para o orgânico e do orgânico para o mineral, sas linguagens, que eram fator de certezas, transmudam-se em
isso sem tratar das questões históricas e culturais e sem conside- instrumentos de uma incerteza criativa, que tem servido para
rar as contradições econômicas, produtivas, grupais e interiores transpor dicotomias anteriormente excludentes, como no caso
pelas quais suas existências passam. da luz, que é considerada corpo e onda, ou como no caso da
Para enfrentar essa teia, o olhar da ciência positivista é astrofísica, que considera o universo finito, mas ilimitado, além
míope, havendo necessidade de se conceber uma cartografia da descontinuidade trazida pelo fenômeno dos quanta. 1
transdisciplinar para dar conta desse ser que tem várias entradas A história do ser humano transcende o que foi imaginado a
para sua leitura e vários lados para serem olhados. O olhar parcial respeito dele. Sua existência potencial já estava inscrita nos
;:o
ll1 o
~ cr
(1)
.3o. minerais e já era provável quando a primeira célula recebeu a essa tendência, todo conhecimento humano é relativo, assim como ~
o
2
Q) classificação de organismo monocelular. Ele pertence a uma his- os valores variam segundo o tempo, culturas, sociedades e cir- '?'
m 2°

e tória que não se restringe ao tempo de duração de sua espécie, cunstâncias, e não tem qualquer sentido substancial. o.
(1)
<Q)
e
:e mas lança suas raízes nos tempos cósmicos, geológicos e bioló- A visão do relativismo pretende negar o absoluto, isto é, )>
lO
Q)
e
o. "aquilo que tanto no pensamento como na realidade não depen- ~·
gicos. Não é a Terra seu único habitat, mas o universo é seu oikos. 2
o
o.
E A ascensão do relativismo, outra das características da ci- de de nenhuma outra coisa e traz em si mesmo a sua razão de
2 ser", no entender de Franck, ou o não-coordenado, o que está
o
'"O
ência do século XIX, contrapõe antidogmas aos dogmas daquilo
m
.e que era considerado metafísico. O relativismo não é a negação fora de toda a relação, como queria J. J. Gourd, em sua Filosofia
u
Q)
\;::
dos dogmas, é a afirmação de novos. O ser humano, em sua aven- da Religião. 3 Na teoria do conhecimento, pode ser considerado
ro
'"O
ll1 tura, não pode ser abordado em separado do cosmos que habi- como a coisa em si, o ser tal como existe em si mesmo, indepen-
o
.e
t2: ta, do qual veio e do qual tira seu sustento. Nem o cosmos pode dentemente da representação que dele possamos ter, conforme
ll1
o ser desvendado sem a participação do ser humano. O que sabe- Liard. A possibilidade humana, para os relativistas, restringe-se
mos dele é saber humano sobre ele. O cosmos é um construto ao f enomênico, e nunca pode atingir a coisa em si, o absoluto, o
da inteligência humana, aliás, da inteligência da Grécia clássica. perfeito, o acabado, vale dizer, o noumenon.
Foi a partir das sucessivas rupturas já analisadas que o ser huma- Spencer e os positivistas vão estabelecer os dogmas do re-
no baixou seu olhar para a imediatidade que o cerca, ou à sua lativismo, que já tinham sido expostos anteriormente pelos em-
existência encarada como enclausurada e solitária, ou ainda, à piristas e criticistas, como lembra Abbagnano. 4 Eles eram a rela-
história dos vencedores, mas pobres vencedores, que são onto- tividade do conhecimento humano e a incognoscibilidade do
logicamente encarados como uma excrescência da crosta de um Absoluto. O conhecimento se dava a partir dos fenômenos e suas
planeta secundário de uma estrela decadente. relações e destes com o sujeito cognoscente. Não havia uma ver-
Urge, nessa aventura humana, restaurar esse diálogo maior dade absoluta, nem mesmo uma verdade racional, já que a essên-
e resgatar a dignidade, do âmbito mineral ao animal, desse ser, cia- das coisas, se existisse, não poderia ser tocada pela inteligên-
em lugar de exilá-lo da totalidade cósmica que o faz partícipe do cia humana. As verdades seriam relativas. Spengler, em sua Deca-
universo, a partir da configuração dinâmica de sua própria car- dência do Ocidente, levou à máxima radicalização o relativismo,
ne, de suas próprias células, além de lhe conferir um papel essen- quando afirmou: "cada cultura tem seu próprio critério, cuja va-
cial na aventura cósmica: a de ser a consciência em construção, o lidade começa e termina com ele. Não existe qualquer moral
criador de valores na contemporaneidade. Ele é o tempo pre- humana universal".
sente. O relativismo e, em especial sua manifestação positivista,
Por isso, podemos dizer que o homem é um ser universal, exilou o ser humano do mundo do dado que o cerca. Sujeito
um ente para além das fronteiras, das idiossincrasias e com múl- cognoscente e objeto conhecido mantém uma relação intelectual
tiplas pertinências, que não se restringem a contextos que se exau- na qual os dois pólos estão bem delimitados e se relacionam pe-
rem no tempo ou nos olhares ortodoxos da razão instrumental, rifericamente. Nunca o ser humano poderá chegar à essência das
que manieta a aproximação desse complexo fenômeno. Segundo coisas, isto é, à sua própria essência. Epistemologicamente, o ser
humano, com o relativismo, apartou-se do fenômeno, para ser busca dessa verdade implicava uma duplicidade de contextos: o
<V um observador de fora, ou um interventor operatório externo. contexto de descoberta, domínio das técnicas cada vez mais ade-
(Q

e O relativismo também propiciou clivagens úteis para a produ- quadas para dar conta dos fenômenos, e o contexto de valida-
<<V
e
~ ção, mas deletérias para o pensar e o agir éticos. É preciso lem- ção, domínio da lógica e da matemática, linguagens dedutivas
<V
o.
brar que o relativismo não é uma corrente ou uma escola, ele é sofisticadas, que têm como escopo validar o que é descoberto.
o
o.
E um substrato, um modo de olhar, um subsolo que permeia várias No entender dessa corrente de pensamento, o método que vali-
2
o
"O
manifestações filosóficas, científicas e artísticas. Não pode ser da a descoberta é um só: o hipotético-dedutivo. É a partir desse
(Q
..e:
u
considerado uma corrente, por permear várias posições perife- olhar que o mundo dos fenômenos é encarado como eterno e à
<V
;:;::
(Q
ticamente contraditórias; nem uma ideologia, por fundamentar espera do aperfeiçoamento das armadilhas técnicas e lógicas para
"O
(/) tanto pensamentos e práticas transformadoras, quanto reacioná- poder explicá-lo. Não há lugar para valores (que são ideológi-
o
..e:
~ rias. Não existe um pensador relativista, mas centenas de pensa- cos, ou integram o campo do dever-ser da moral) e não existe
(/)
o dores com fundamentos e subsolos relativistas. espaço para o acontecimento, para o singular, para o pontual,
O positivismo e, em especial, o neopositivismo lógico trou- para o que brilha como uma centelha, para nunca mais retornar.
xeram uma contribuição paradoxal para o pensamento humano. São essas mesmas tendências que vão reintroduzir a visão
De um lado, propiciaram maior rigor para o mundo da teoria e de um mundo harmônico, no qual a contradição e os conflitos
das técnicas, mas, de outro, com a hipertrofia do mito da neutra- são exceção. Procura-se a regularidade, as semelhanças, o rigor
lidade, introduziram a não-valoração como caminho para a ver- do objeto, tendo como recorte o imaginário segundo o qual só o
dade. Tal verdade não se confunde com o sentido religioso, nem experimentável, o dedutível, e o validável podem ser objetos do
mesmo faz referência ao sentido testemunhal: nem a emunah he- conhecimento verdadeiro. Tudo mais é sentimento perfumaria
' '
braica, nem a veritas latina estão no horizonte da verdade positi- folclore, primitivismo ou metafísica. Chegou-se assim à assepsia
vista. A verdade positivista é uma radicalização da alétheia grega: total.
a verdade racional, a verdade demonstrada, a verdade experi-
mentalmente comprovada. Para eles, a verdade não está nos f e-
nômenos, mas naquilo que dizemos sobre os fenômenos, vale
dizer que ela é atributo de sentença.
Foi esse aspecto de neutralidade que possibilitou a cliva-
gem entre a produção de ciência e a ética, aspecto essencial para
o aumento da eficiência dos cientistas, que alienaram suas ques-
tões éticas para os governantes e os políticos que iriam aplicar de
forma melhor ou pior o que havia sido descoberto nas pesqui-
sas. Para o produtor de conhecimento, bastava a verdade racio-
nal, que significava a adequação racional de suas linguagens ao
fenômeno que estava sendo estudado. Para os neopositivistas, a
Para construirmos nosso imaginário 5 e nossos modelos de
explicação e compreensão dos fenômenos interiores e exteriores,
temos de trabalhar com pressupostos gnosiológicos, epistemoló-
gicos, ontológicos e valorativos, que vão se constituindo processo
de conhecimento e trajetória existencial coletiva e pessoal.
Não há, evidentemente, uma precedência temporal, mas
construções que vão sendo urdidas pela experiência, pelo apro-
fundamento e pelas próprias modificações, avanços e rupturas
da consciência. De certa forma, necessitamos crer. Há sempre
algo que devemos admitir que não passa pelas validações meto-
dológicas da ciência, nem pelas técnicas de experimentação. Para
haver ciência, é preciso, ao menos, crer em nossas sensações, na
possibilidade de desenvolvermos linguagens racionais, em uma
VJ ;:i::i
~
o
cr
.a
Cl. razão que verifica a consistência de nossas linguagens, em nossa As crenças sempre pressupõem uma cosmovisão, um pano ro
ri-
o
2
(IJ existência objetiva, e também em que este mundo não é um so- de fundo, ou mesmo um subsolo que não está devidamente com- '!>
ro !l

e nho, mas expressa algum dado fora de nós. Sem esse mínimo de provado, e nem mesmo, em muitos casos, poderá sê-lo. Esse Cl.
<CIJ ro
e
~ crenças, não haverá possibilidade de conhecimento. subsolo é construído por consensos, por aceitações comuns que )>
lO
(IJ
Cl.
e
A palavra crença não significa só o reconhecimento de pres- orientam nossos saberes e embasam nossas condutas. No âm- õ:i"
...,
o
Cl.
E supostos metafísicos, mas a aceitação de axiomas ou constru- bito da ciência, isso é chamado de paradigma, em um sentido
2
o
"O
ções a priori para dar sentido e coerência a noções, conceitos e bem mais restrito, conforme a conceituação de Kühn. A pala-
ro
.e
u
teorias. O complexo problema da incompletude6 está ligado a vra paradigma 8 pode ter um sentido bem mais amplo e abran-
(IJ
q::
ro
essa questão. gente, pois não se restringe a modelos e padrões da produção
"O
VJ
o
Crença é uma palavra polissémica que admite várias semias. científica, mas diz respeito a entendimentos mais profundos que
:!::
te Ela pode ser entendida como expressão de fé religiosa, como o ser humano tem de si, do outro e do cosmos, não se limitan-
VJ
o aquilo no qual se crê, como convicção íntima, como opinião ado- do ao campo do conhecimento científico, invadindo os cam-
tada com fé e convicção, como no caso de crenças políticas, ou pos político, econômico, social, ético, pessoal, artístico, filosó-
como forma de assentimento que é objetivamente insuficiente, fico e religioso.
embora subjetivamente se imponha com grande evidência, no Os paradigmas, como toda produção social, vão se trans-
dizer do Aurélio. formando no decorrer da história, vão sofrendo rupturas e, a
Sempre há um aspecto cinza, uma zona de mistério ou uma partir de novas experiências humanas e de novos problemas
lacuna que devemos admitir para construir nosso pensamento. que emergem, são contestados, modificados ou abandonados
Temos de acreditar na comunicabilidade de nossas idéias e senti- e substituídos por outros mais adequados às novas demandas
mentos, pelo menos minimamente, porque só assim o conheci- do mundo.
mento se reproduz e é testado coletivamente. Se formos céticos Vivemos um período de transição considerado por alguns
ao aceitar a incomunicabilidade de nossas idéias, seja pelos limi- como a época pós-moderna; por outros, o final da modernida-
tes de nossas consciências, seja pelos obstáculos conotativos, seja de, sem contar aqueles que ainda persistem em entender estar-
pela presença de ruídos, estaremos negando as condições para a mos ainda vivendo em pleno Iluminismo. 9 A ciência, a política, a
produção do conhecimento. economia, a tecnologia e as novas perversidades sociais desafiam
Também precisamos resgatar o entendimento segundo o os subsolos antigos, desmontam as crenças ingênuas, subvertem
qual toda ontologia está interimplicada com uma gnosiologia. 7 as lógicas de superfície, põem em cheque não somente conceitos
As matrizes de explicação do mundo, da história, do cosmos, do e práticas sociais, mas também invadem o campo dos axiomas
tempo e do saber condicionam a compreensão que temos de nós que os sustentam.
mesmos e das condutas que devemos seguir. O modo de conhe- A crise se acentua quando tentamos dar conta dos novos
cer constitui o ser e o ser imaginado constitui o modo de conhe- fenômenos por via de modelos antigos e,-.às vezes, estamos tão
cer, seus limites, formas válidas, estendendo esse complexo para presos a essas visões pretéritas que nem mesmo vislumbramos o
os valores morais, éticos e sociais. surgimento dessas questões diferentes.

17
;o
UJ o
~ 10 O'
íll
:J

o.
Certas práticas sociais, ou técnicas de ortopedia social, cosmos de hoje já não é o universo mecanicista que valia ;::i.
o
2
Q)
como queria Foucault, até hoje ainda não participaram do sub- até o século O ser humano de hoje não é um conjunto ex- '!>
IU ~

e
solo que recebeu o nome histórico de "questão social", emer- terno que responde, por suas condutas e comportamentos, aos o.
<QJ íll
e
t gente no século XIX. Com esse pano de fundo, tais técnicas são estímulos da sociedade. A natureza de hoje não é mais aquele )>
l.O
Q) e
o. insuficientes para fazer frente aos problemas contemporâneos, ente ainda não tocado pelo ser humano e dele absolutamente QJ
--.
o
o.
E que aparecem ligados não somente à questão social, mas a novas separado. A tecnologia de hoje tende a superar o mecânico e a
2
o formas de donúnio que necessitam ser explicadas e enfrentadas. adentrar o automático e o eletrônico. O Estado de hoje já não é
"O
IU
..e
O mesmo pode ser dito dos valores, da conduta e dos com- aquela unidade soberana, limitada e discreta, com território e
u
Q)
4= portamentos que devem ser estudados e/ ou assumidos a partir povo. Os poderes já não mais se preocupam com as hierarquias
IU
"O
UJ
de uma outra compreensão do ser humano, em relação a si mes- verticalizadas, mas constituem redes onde a informação, a velo-
o
..e
ti::
mo, ao outro, ou ao meio ao qual pertence, no qual interfere e do cidade e os resultados são seus objetivos .
UJ
o qual depende. A realidade virtual, antes inexistente, invade com suas téc-
Um conjunto de novas experiências, lutas, conceitos e pro- nicas a intimidade das pessoas. A humanidade não tem as certe-
blemas se soma aos anteriormente existentes (pois ainda não fo- zas européias da ciência do século XIX. Os determinismos são
ram resolvidos), desafiando as idéias e as práticas que desenvol- postos em xeque pelas visões probabilísticas, sistêmicas e do caos.
vemos, e os próprios fundamentos que as respaldam. A pobreza encarada como fruto de desajustes ou inferioridades
Esse mundo onde medram idéias como a do fim da histó- culturais foi substituída pela exclusão que povoou o mundo com
ria, o fim do socialismo, a parusia do mercado, a insensibilidade milhões de seres humanos pré-mortos, evidenciando a crua ex-
com os seres humanos e a profunda e exasperada preocupação ploração econômica e o descarte dos seres humanos das priori-
com as finanças, onde o ceticismo e a desesperança tomam as dades do mercado e das relações internacionais.
consciências, as distâncias sociais explodem em várias formas de A visão revolucionária engendrada originariamente pelas
exclusão a razão instrumental coloca o ser humano na Lua ou, revoluções burguesas está em crise. As utopias lineares e inatin-
'
com os seus artefatos, para além do sistema solar, mas não dá gíveis já não mais mobilizam. O deus-mercado está redivivo e os
conta de aprofundar, senão mecanicamente, o auto-entendimen- mitos da mão invisível voltam a operar na história como se fos-
to do próprio ser humano. Esse mundo necessita desentranhar sem reguladores sociais e promotores da justiça. A ciência refaz
novos subsolos para que possa deslindar essas questões, superar os cenários do cosmos, do ser humano, do macro e do micro,
esses problemas e saltar para novas sínteses. descobrindo novas epistemes e novas lógicas. A continuidade
Esparsamente, o novo subsolo aparece aqui e ali, mas de- foi substituída pela descontinuidade. A física, mesmo sem o de-
vemos mapear seus conceitos, confrontá-los com os aceitos e sejar, tem de trabalhar com hipóteses de meta-realidade. A intui-
urdir novos saberes e explicitar novos sentires. É o que preten- ção e a sincronicidade são reavaliadas, o que vem na contra-mão
demos bosquejar aqui, a fim de que essa crueldade impessoal e da razão instrumental. O ser humano avança no sentido de inter-
insossa que se estabeleceu nas relações não nos retire o último de ferir geneticamente em si mesmo e nos artefatos quase naturais
nossos direitos: o de sonhar. que cria. A espécie humana tem a possibilidade de avançar ou se
Vl
~
.ao. suicidar pelo uso descontrolado de seus equipamentos nuclea-
2
CJ) res. O cansaço da razão iluminista e da modernidade racionalista
cu

e engendra a pesquisa de novos padrões de pensar e de organizar
<(])
e
t'.CJ) relações.
o.
o
o.
E
1l
o
'O
cu
..e
u
CJ)
<i=
cu
'O
Vl
o
..e
<;::::
Vl
o

Grandes discussões são travadas em torno dos conceitos


de determinação, indeterminação, determinação em última ins-
tância ou sobredeterminação. Tais pendências se referem ao con-
texto dentro do qual os seres humanos existem e sempre estão
vinculadas ao pressuposto de uma totalidade que abarca as rela-
ções desses seres entre si e com o que lhes é exterior.
Logo, os conceitos citados dependem do entendimento de
totalidade que preside as determinações. ·A questão da totalida-
de como referencial tem sido alvo de críticas pesadas atualmente,
já que pode significar totalitarismo, isto é, tornar as relações hu-

Li{) A '1
lfl
~
.3 manas subordinadas a um todo que expressa valores, movimen-
Q. é essencialmente diferente e apartado. fundo, uma excrescên-
2
QJ tos e direções estioladores da liberdade, da criatividade e do cres- cia episódica na temporalidade imensurável e apática do universo.
cu

e cimento humano. Assim, para fugir ao totalitarismo de uma cosmogonia de-
<QJ
e
t'.QJ Tais críticas estão fundadas em três referenciais históricos: terminista e justificadora de opressões, o pensamento contem-
Q.
a totalidade hegeliana, que pode ser confundida com o Estado porâneo tende a dissolver o ser humano na insignificação, dei-
oQ.
E alemão onipresente e racionalizador da verdade na história, con- xando para ele a grandiosa e trágica missão de construir o seu
2
o
"O
forme certa interpretação do pensamento desse filósofo; a expe- mundo ilusório, com o fito de dar algum sentido à sua transitória
cu
.s::
u
riência dos socialismos reais, em que o conceito de totalidade foi existência.
QJ
.,::
cu
um dos elementos justificadores de práticas ditatoriais e de agres- Os pensamentos referenciados à totalidade estão em crise
"O
lfl
o
são à liberdade dos cidadãos; a onipotência, como desvio da tanto pelo viés idealista, quanto pelo lado materialista. O primei-
.s::
(;::: personalidade, sob a óptica psicanalítica, que significa a visão e a ro, por se referir a uma história una e inexorável, que mesmo
lfl
o conduta de alguém que pretende controlar a totalidade do mun- dentro de seus avanços e recuos tem uma linha predeterminada,
do que o cerca, atributo político dos ditadores e dos psicóticos. que vai desembocar em uma parusia antevista. Isso significa con-
Esse conjunto de objeções vindas principalmente do pen- tar a história pelo lado inverso, como já lembrava Marilena Chauí.
samento francês contemporâneo gerou a completa erradicação Além disso, as cosmogonias idealistas pagam tributo a certa ra-
da totalidade como referencial da conduta humana. O ser huma- cionalidade dos séculos XVIII e XIX, quando uma razão onipo-
no tornou-se um animal simbólico que vive em um mundo frag- tente e conhecida presidia o processo cósmico. O segundo, deu
mentado e sem sentido e que transita no mundo inventando sua como totalidade aquilo que era parcial.
existência, já que ele não pertence a nada, salvo às ilusões, símbo- O desenvolvimento das ciências no século XIX e dos proce-
los, estruturas e significados que cria. dimentos experimentais geraram uma episteme que dava como
Estamos perante o máximo de desterro humano. O ser hu- fenômeno tão-somente aquilo que era mensurável, experimentá-
mano está só, dentro de um universo sem significado, indiferente vel, quantificável e classificável. Todo o resto nada mais era que
aos eventos humanos. O homem sofre, o céu continua azul e os perfumarias dos pensamentos fantasiosos, ou resquícios da fase
pássaros cantam. As bases para uma ética, para opções políticas, mágica ou teológica tão combatida pelos positivistas. Uma totali-
para escolhas produtivas ou para pautas de futuro se circunscre- dade, para ter o status de referencial da conduta humana, necessita-
vem ao imaginário, e não têm qualquer correlação com o que va ter a cientificidade segundo os modelos de entendimento da
está fora da consciência individual e social. Aliada a isso está a época. Acresça-se a isso a evidente contribuição que a ciência trou-
importante contribuição de Derrida, Foucault e Liotard, com a xe para elucidar um conjunto de conceitos e problemas até então
introdução da diferença como categoria do pensar. Se de um insolúveis e a importância de sua expressão tecnológica.
lado essa categoria aguça a percepção e amplia os domínios da Com a divisão das ciências em humanas e naturais e com as
ciência; de outro, elimina qualquer referência extra-humana na subdivisões em ramos e especialidades de conhecimentos, em
reflexão sobre o antropológico. Ao homem cabe inventar sua função da busca rigorosa de objetos e métodos, bem ao gosto da
existência social e individual no interior de um mundo no qual ele perspectiva kantiana, o mundo do homem se separou do mundo da

A....,
(f)

~
.2o.. natureza e o único fio de ligação que se manteve entre eles foi o da
2
atividade transformadora do homem, traduzida pelo trabalho. Era
ílJ

e
<(])
por via dele que a humanidade criava seu mundo, transubstanciando
e
:e
(])
a natureza em bem humano, construindo sentidos para a matéria
o..
o
neutra que era tocada pela atividade laboral do homem. Ora, se esta
o..
E era a forma de o ser humano estar no mundo, outra alternativa não
2
o
"O
havia senão a de considerar como totalidade as relações sociais ad-
ílJ
.e
u
vindas da produção, daquela busca do ser humano em sobreviver e
(])
q::
ílJ
constituir novas formas de se relacionar com a matéria e com os
"O
(f)
o
outros homens, tendo em vista a apropriação, formas de produzir e
.e
<;::: modos de distribuir o que era produzido.
(f)
o Essa totalidade era abrangente para a época. Era o que ha-
via de mais abarcante. Sobre ela e em função dela penderam,
para um e outro lado, as posições idealistas e materialistas. As
discussões sobre a determinação ou não do homem pelas rela-
ções de produção, a precedência da matéria sobre a idéia, ou
desta sobre a primeira, tinham como referencial essa divisão cla- O viés mais comum de se encarar a história, talvez por um
ra entre o mundo do homem e o mundo da natureza, e tinham vezo do pensamento burguês do iluminismo, é identificá-la com
como pano de fundo uma totalidade que se esgotava na história o progresso. Há uma compreensão segundo a qual ela é um ca-
e nas relações de produção que a constituíam. O próprio evolver minho de avanço do ser humano para conquistas cada vez maio-
da história já tinha proporcionado rupturas que propiciaram esse res. Tais conquistas são essencialmente tecnológicas e organizaci-
entendimento do homem e do mundo, em que as totalidades ti- onais. O critério de evolução histórica é o desenvolvimento ma-
nham o caráter parcial e a história, muito mais que plural, era um terial e a consistência da organização política e social. A questão
caminho unidirecionado em determinado sentido, quando não ética, por exemplo, é dada mais como um epifenômeno de supe-
era um suceder de acasos determinado por homens iluminados, restrutura, ou um conjunto de valores oriundos de uma peculiar
na visão mais atrasada da época. forma de produzir e se relacionar de uma dada sociedade.
As questões relativas à determinação ou à indeterminação Os valores, o crescimento pessoal, a dimensão da interiori-
transitam nos limites demarcados por totalidades parciais, ou na dade humana e de sua conduta não se colocam como critérios
dissolutora fragmentação da humanidade, encarada como um dessa evolução. Ou o avanço ético é fruto do aperfeiçoamento
conjunto de seres e seus símbolos, todos exilados do universo, da distribuição dos bens, ou eles são elaborações culturais e soci-
sem referenciais que não sejam suas criações ilusórias, ou suas ais, em função de peculiaridades organizativas. O ser humano é
atividades tópicas de sobrevivência. histórico, cultural, econômico e social, mas está enclausurado em
uma antropologia que o destaca do mundo natural e o coloca

AI""
;:o
(/) o
~ O'"
ro
.3o. como um agressor necessário que, por essa agressão, constitui o do ser. exemplo, o ser humano behaviorista é totalmente ;::J.
o
2 '!>
(jJ seu mundo. diverso do ser humano da psicanálise. Por isso, são constituídos
ro 2Cl
Ti
e Tomando a terminologia grega, poderíamos dizer que o saberes teóricos e técnicos completamente diversos. O primeiro o.
ro
<(j)
e
t'. mundo humano é o reino do nomos, enquanto o da natureza é o lastreado na externalidade do homem e o segundo em sua inter- )>
lQ
(jJ
e

o.
do logos. 11 Só que a interimplicação grega entre esses dois mun- nalidade. Mas esses entendimentos opostos estão baseados nas
o
o.
E dos já não existe. Logos e nomos são dois reinos separados que não práticas e nas intervenções dessas correntes opostas. É impossí-
2
o se tocam. O reino de nomos só se relaciona com o de logos para vel pensarmos na caixa de Skinner12 em termos psicanalíticos,
\J
ro
..e utilizá-lo como substrato de um sentido que é dado separada- assim como não podemos falar das práticas de análise no âmbito
u
(jJ
q::
mente pelos seres humanos. comportamentalista. No fundo, as duas correntes operam com
ro
\J
(/) As culturas e a história apresentam uma grande gama de seres humanos diversos, com métodos diferentes, que constitu-
o
::!::
ti= cosmogonias e de autoconceitos que os seres humanos desen- em e reforçam essas mesmas concepções antropológicas anta-
(/)
o volveram. Tais representações estão profundamente ligadas à or- gônicas.
ganização política, social e econômica dos grupos humanos. Per- Nas sociedades tradicionais, o ser humano tende a ser per-
cebendo o mundo sob a óptica ocidental contemporânea, vere- tencente a um cosmos de espíritos ou de almas, ao qual ele refere .
mos que os problemas aqui levantados têm uma trajetória. As toda sua vida, condutas e práticas de sobrevivência e relaciona-
sociedades humanas, para se fragmentar e para isolar os homens, mento social. Ele é um ser integrado, milenarmente estruturado
sofreram sucessivas rupturas em suas concepções e em suas prá- para ser seguro no interior de uma sociedade que se relaciona
ticas político-econômicas. Não é um caminho linear nem um com a anima das coisas, dos animais, dos homens, dos deuses e
' dos heróis. Essa concepção sustenta um conjunto de práticas que
movimento inexorável. Essas mudanças são muito mais indica-
dores de uma construção antropológica que desemboca nas per- reforça essa pertinência. As rivalidades não se constituem em
plexidades contemporâneas e na perda da dimensão multifacéti- torno de classes sociais, pois as sociedades tradicionais tendem a
ca do processo de constituição das concepções do ser humano serem unas, enquanto grupo social. As rivalidades podem ser
sobre si mesmo. individuais, podem ser familiares ou clânicas, mas a sociedade é
O primeiro aspecto que deve ser analisado refere-se ao sen- um todo, que complexamente se divide em grupos, que não guar-
timento de pertinência. Tal sentimento assegura ao ser humano a dam diferenças econômicas e que disputam prestígio em outro
segurança de pertencer a algo e, a partir desse sentimento, ele patamar das relações.
constrói sua própria auto-imagem. Construindo sua auto-ima- Podemos dizer que as sociedades tradicionais não têm uma
gem, ele pode constituir, concomitantemente, suas formas de economia tal qual a entendemos hoje. Especialistas em econo-
conhecer, já que a estrutura ontológica do sujeito está interimpli- mia primitiva13 mostram que elas, em suas relações de apropria-
cada com sua própria gnosiologia. Não há ontologia que não ção e distribuição, não dispõem dos seus excedentes para gerar
tenha sido estabelecida por uma certa gnosiologia, assim como as atividades econômicas, tais como hoje-as entendemos. A eco-
não há gnosiologia que não se funda com certa ontologia. O ser nomia tradicional é a negação da economia contemporânea. Os
sabe o que ele é, por um saber que se funda no próprio entendimento excedentes podem ser consumidos em festas ou mesmo em

A'i
li)

~
.3o. demonstrações de generosidade ou prestígio, como no caso do isto é, um determinado ponto da história em que as minorias
2
Q) potlatch14 estudado por Mauss. empalmaram o poder e romperam a unidade social, estabelecen-
Ct1
·o
e
Essa estrutura una de pertinência anímica não comporta a do formas crescentes de dominação e controle. São os Estados
<Q)
e
t'. possibilidade do Estado. Não há como existir Estado numa so- nascentes, não com as características que hoje conhecemos, mas
Q)
o.
ciedade em que as normas milenarmente estão fixadas e onde o já com uma similitude essencial: o poder das minorias sobre as
o
o.
E poder de auto-organização delas dimana. Clastres 15 chega a afir- maiorias e a conseqüente necessidade de criação de estruturas
2
o mar que tais sociedades (ele tratava das sociedades indígenas sociais de defesa dessas minorias e de controle das maiorias. É aí
"'CJ
Ct1
..e amazônicas) eram não somente sem Estado, mas também contra que os organismos de poder se complexificam e que os guerrei-
u
Q)
;:;:: o Estado, isto é, urdiam normas para que nunca o chefe detives- ros, que eram membros da sociedade que a defendiam, passam à
Ct1
"'CJ
li) se o comando. Ora, o corolário dessa pertinência anímica é que a categoria de soldados para defender as minorias que detêm o
o
..e
ti= coletividade grupal detém o poder, vale dizer, que o comando poder.
li)
o está nas mãos dessa entidade, que hoje denominamos povo. Ao mesmo tempo, as cosmogonias originárias são trinca-
Tais sociedades se caracterizam por serem unas, não apre- das. Não mais os deuses do povo, mas os deuses que traduzem
sentarem Estado, pugnando para que ele não apareça; têm o po- os desígnios dos poderosos. É o caso do deus popular dos po-
der localizado nas coletividades e produzem uma cosmogonia vos incaicos, Inti, sendo substituído pelo deus do Estado imperi-
anímica que dá segurança para seus membros e estabilidade para al, Viracocha, como nos mostra Clastres.
as relações sociais e políticas. A grande marca da pertinência é A cosmogonia, que era a totalidade que sustentava os po-
traduzida pela ausência de rupturas. As sociedades tradicionais vos tradicionais, foi destruída pelo Estado emergente. A socie-
estão integradas. O ser humano está em paz consigo e com seu dade sofre uma ruptura em sua própria sustentação quando a
saber e seguro de sua origem e finalidade. fertilidade é derrogada pela força e a unidade do grupo é perdi-
Muitos desses grupos humanos se organizam segundo um da, pois a sociedade, que era formada, em sua origem, por ho-
sistema matrilinear no qual o feminino, por sua dimensão de fer- mens livres e iguais, passa a ser formada por dominadores e do-
tilidade e de continuidade do ser humano, impõe-se como fun- minados.
damento cosmogônico e princípio de organização social. Logo, Os denominados impérios orientais, além da dialética he-
mais importante que as lutas, guerras ou disputas é a preservação geliana do senhor e do escravo e do modo de produção asiático
do grupo, que expressa a pertinência a uma totalidade que o trans- marxista, 16 desenvolveram uma visão de mundo marcada pela
cende. Bachofen, em seu Direito materno, chega a dizer que todas exclusão. O patamar divino era faculdade e até mesmo atributo
as sociedades tradicionais foram, originariamente, matriarcais. dos dirigentes. Os reis ou eram seres diferenciados, que tinham
O mito da fertilidade ainda não tinha sido substituído pelo mito um canal de comunicação com os deuses, ou eles mesmos, como
da força. A força, como elemento sustentador da ordem social, no caso do Egito, eram deuses. Os seres humanos passaram a ser
só aparece na história a partir da hegemonia masculina. categorizados como expressão da divindade na Terra ou como
É no momento em que a força passa a sustentar as relações meros contempladores e obedecedores dos comandos divinos
sociais que acontece aquilo que La Boétie denominou ma/encontro, traduzidos pela vontade dos dirigentes. Havia uma cosmogonia

AO AO
Vl ;;u
o
~ cr
.a
Cl. sustentadora que afirmava serem alguns eleitos dos deuses; ou- de reprodutora, de ser menor, feita um LJ'-'--'ª""'~
CD
;::\.
o
2
(]) tros contempladores da ordem e obedientes ao poder, e ainda corpo do homem, a se tomar a narração bíblica. ~
cu ('

e aqueles pertencentes a uma categoria inferior, que não tinham A Grécia traz para a questão aqui tratada fundamental con- Cl.
<(]) CD
e
t'.(]) nem mesmo o direito à humanidade, eram coisas, res, como cha- tribuição. É nela que veremos, progressivamente, emunah ser subs- )>
lQ
e
Cl.
mavam os latinos. Esses seres, que tinham a forma humana sem tituída por alétheia. A transição dos tempos homéricos para a épo- õi'
-,
o
Cl.
E serem humanos, eram os escravos. As sociedades se rompiam ca do esplendor do pensamento grego é um caminho que vai do
2
o
"O
para garantir a produção, a economia passava a ter algumas ca- mito para a racionalidade, da religião para a filosofia, das teocraci-
cu
.e
u
racterísticas da economia contemporânea, já que os excedentes as para a democracia ateniense. A verdade revelada para as teste-
(])
4=
cu
passaram a ser trocados, negociados e, mais tarde, comprados e munhas privilegiadas, como Tirésias, na tragédia edipiana, passa a
"O
Vl
o
vendidos por dinheiro. ser a verdade racional, demonstrada, argumentada, dialogada, cuja
.e
li= Os deuses se exilaram da Terra. Eram para ser adorados, base não está mais em fundamentos olímpicos, mas na indução a
Vl
o louvados, temidos e adulados, não mais pertencendo ao mundo partir dos dados e na dedução a partir dos princípios.
terreno. Podiam até mesmo ter sentimentos e defeitos humanos, A cultura helênica laiciza o saber. Os deuses saem de cena
mas eram pacificados por oferendas, por sacrifícios ou pela in- para dar lugar a um princípio necessário: a causa não causada, o
termediação da categoria sacerdotal, que se confundia com o motor não movido, a origem lógica, o pressuposto a partir do
próprio poder dominante. O resultado dessa sociedade de ho- qual é possível admitir os outros seres. Esse deus preside o cos-
mens servis e desiguais foi o da instauração da desigualdade eco- mos. É o demiurgo que retira o cosmos do caos ou é o interme-
nômica, da constituição da propriedade absoluta como marca e diário pelo qual o mundo das idéias se faz mundo dos fenôme-
sinal de "domínio". A totalidade é hierarquizada e a religião é nos. O universo é um todo harmônico regido por leis necessárias
um tipo de mercancia intermediada pelos sacerdotes. Os seres e imutáveis e essa harmonia universal é o espelho no qual a hu-
humanos eram pertencentes a uma ordem que tinha dono, eram manidade deve se mirar para criar suas normas e para construir
os servidores dos senhores, os cumpridores das determinações os princípios de sua conduta. Nomos será tanto mais perfeita,
do poder. Ao homem comum cabia as migalhas das benesses quanto mais se aproximar de Logos. O critério de justiça, de ética,
divinas que se derramavam sobre os senhores. de equilíbrio e de conduta moral tem como fundamento as leis
As conseqüências dessas práticas foram a radicalização do universais que regulam o cosmos.
absolutismo imperial, a eliminação de qualquer papel decisivo O ser humano, dentro dessa ordem já pronta, tem um pa-
dos povos na determinação de seus destinos, a correlação entre pel pouco significativo. Sua missão é compreendê-la e procurar
propriedade e poder, para destacar alguns aspectos dessas soci- reproduzi-la na sociedade. Em termos estéticos, como o cos-
ed~des. O panteon divino não é mais comandado pelas deusas da mos é a suprema harmonia, busca-se na criação o esplendor da
fertilidade, substituídas pelos deuses masculinos, que representa- forma, como expressão do belo já predefinido na grande ordem
vam as virtudes e os defeitos dos homens dominadores. A mu- abrangente.
lher, que nas sociedades tradicionais podia ter um papel tão sig- Mas os gregos não foram apenas racionalidade demonstra-
nificativo ou até mesmo maior que o dos homens, passa à categoria tiva. Eles foram paixão, desvario, criatividade, fantasia e ousadia.
li)
;;o
~ o
o-
B Parece-nos que a leitura posterior dos gregos, principalmente a ro
o._ vamos encontrar a diferença entre os cidadãos, portadores de ;::i.
o
2
<lJ partir da era cristã, deu um tom asséptico ao ser e pensar gregos, direitos e privilégios definidos como legais e legítimos, e as gen- "?'
ro
·u como se as tragédias não fossem da essência da vida grega e como !1
e
<<!J
tes, os moradores de periferia, os estrangeiros ou os bárbaros, o._
e CD

~ se a arte não fosse uma de suas expressões mais fortes e histori- com nenhum direito, ou com direitos menores do que aqueles )>
<lJ \O
o._ e
camente significativas. A laicização da cultura caminhou junto consignados para os cidadãos. Roma vai formalizar essa cliva- Qj"
.....
oo._
E com a retradução dos velhos mitos homéricos em obras de arte gem, por via do ius civile e do ius gentium.
2
o
"D
fundamentais para a humanidade. Urge a recuperação de um olhar É nessa Grécia polimorfa que as grandes questões sobre o
ro
.e
u
mais quente dos gregos, e isso parte da leitura de sua poesia, de homem e o universo são postas e onde as primeiras respostas
<lJ
i:i:: sua escultura, de sua dramaturgia, de suas narrativas, de sua ar- sistemáticas são axiomatizadas. A base da episteme ocidental está
ro
"D
li)
o
quitetura. Os leitores necessitam ser mais Safo e Sófocles do que construída na c1:1-ltura helênica. Basta lembrar, apenas para ilus-
.e
iE Platão e Aristóteles, só assim o sangue, a carne, os conflitos e a tração, já que tratamos do problema da determinação e da perti-
li)
o cultura gregas poderão emergir sob outro viés, que não seja a nência neste texto, que a contenda entre Parmênides e Heráclito,
leitura sistemática dos filósofos entronizados como tais pela tra- em torno dos problemas da permanência ou da mudança, funda
dição posterior. todas as questões aqui levantadas. Parece claro que optamos pela
Ao isolamento proporcionado pelo papel contemplativo posição do segundo filósofo.
da ordem cósmica, a Grécia antepôs intensa experiência política, As culturas helênica e helenística, após o crepúsculo do
pela organização de diversas formas de governo em suas cida- Império Romano do Ocidente, enclausuram-se nos mosteiros e
des-estado e pela substituição do exílio cósmico pela participa- nas poucas universidades e ~ó passarão a ter significação pública
ção cidadã. É na Grécia que a palavra Estado passa a ter uma a partir do Renascimento, quando são retomadas como padrão
conotação mais próxima da atual. É nela também que o Estado- para o pensar e o agir dos novos grupos que emergem na histó-
cidade passa a ter em seu habitante, o cidadão, a base da legitimi- ria, marcados pelo urbanismo e pela atividade mercantil.
dade de seu poder. A experiência ateniense, principalmente na A episteme romana foi a antepassada remota do modo de
época de seu apogeu, por volta de 429 a.C., constituiu a primeira ser burguês. Isso explica a retomada das práticas romanas, a par-
democracia na história. Era uma democracia direta, oligárquica tir da ascensão dessa classe. O romano, que estabeleceu uma es-
e plutocrática: uma democracia de cidadãos, em uma cidade onde trutura política e econômica de duração milenar, tinha como
os cidadãos eram minoria formada pelos membros das familias valores fundamentais o patrimônio, o respeito às obrigações con-
nobres mais ricas, uma organização política na qual o que se pre- traídas, a honestidade nas relações entre as pessoas, a segurança
tendia era a participação, mais que a eficácia. Tratarmos da de- de Roma, que significava a segurança dos negócios, para citar
mocracia grega representa analisar um fenômeno bem peculiar alguns. Roma foi uma cultura que teve forte característica opera-
daquela cultura. tória. Os valores e as discussões gregas passaram a informar ou a
O sentido de cidadania, se de um lado promoveu o habi- ser retraduzidos pelas práticas romanas. Essas práticas anteci-
tante qualificado de uma cidade-Estado, de outro, cindiu mais pam os valores que serão base de conduta dos burgueses da fase
uma vez os membros da sociedade. É a partir da Grécia que mercantil e principalmente dos burgueses da Primeira Revolução
UJ ;o
o
~ o-
ro
.3a. Industrial, que se servirão da experiência romana para traduzir escala inferior na sociedade romana. Como escravo, apesar ;::i.
o
2
<lJ sua forma de ser política e social. Basta lembrar que o documen- poder cultuar os deuses de seus senhores e apesar de poder se ?>
ro !!

e to legal mais importante que emergiu da Revolução Francesa foi tornar até preceptor dos filhos do senhor, tal categoria sempre a.
<<lJ rD
e
t'.<lJ o Código de Napoleão, de 1804, que se constituiu uma atualiza- era res, isto é, coisa, não participando nem mesmo da natureza )>
lCJ
e
a. humana.
ção do Corpus Iuris Civilis Romanorum, de Justiniano. É evidente a ~·
o
a.
E importância dos romanos para a elaboração das técnicas de exer- Por mais que se diga que os romanos foram benevolentes
.8
o
"O
cício de poder da burguesia emergente. com seus escravos, o que é uma opinião discutível, essa categoria
ro
..e A pertinência romana era pragmática. Questões cosmoló- social era alijada dos direitos fundamentais que a sociedade ro-
u
<lJ
<;::: gicas só entravam na discussão para embasar posições éticas ou mana consagrava. Outro recorte desenvolvido pelos romanos
ro
"O
UJ morais. Assim, as considerações cosmológicas dos estoicos ou era o de considerar bárbaros todos os povos que não fossem
o
..e
iC dos epicuristas funcionavam mais como pano de fundo para jus- romanos. Quem não pertencia ao Império, não se subordinasse
UJ
o tificação de entendimentos sobre as condutas humanas. Perten- às normas romanas, não se submetesse à Pax Romana, era bár-
cer, em Roma, era fazer parte do Império Romano; ser sui iuris baro, um out sider no mundo romano: era um diferente, e a dife-
conforme as normas romanas; participar das riquezas advindas rença, nesse aspecto, não era admitida por Roma, que só supor-
da ampliação bélica dos territórios romanos; aumentar o poder tava a diferença inclusiva. Aquela que impossibilitava a inserção
pessoal; e cultuar os deuses manes, não porque se acreditasse ne- de alguém no Império constituía agressão, por ser inconcebível a
cessariamente neles, mas porque tal culto identificava a partici- negação de tal honra. Esse padrão de diferença só tinha sentido
pação de alguém em alguma família patrícia de importância. A se partisse de mentes primitivas, de povos com condutas incivili-
pertinência romana estava ligada à conquista, à propriedade, à zadas, em suma, de bárbaros.
segurança, à riqueza, ao poder e aos valores que expressavam a A Idade Média feudal continuou a aceitar o entendimento
grandeza e a glória romanas. As práticas religiosas tinham cará- da função contemplativa do ser humano perante o cosmos. Só
ter ritual e mercantil, muito mais denotador de posições e hierar- que duas mudanças fundamentais foram introduzidas na auto-
quias, do que uma efetiva crença da qual dimanassem normas de concepção dos seres humanos: o cosmos passa a ter dono e a ser
conduta social e pessoal. divino. A pertinência é reduzida e fragmentada, em termos polí-
Os estrangeiros não foram romanos, por longo tempo. A tico-sociais. As leis naturais são relações e determinações que estão
partir da necessidade de exercer um controle efetivo sobre os subordinadas a comandos divinos de um Deus pessoal. O uni-
territórios ocupados, Roma iniciou uma política de ampliação verso é a manifestação da vontade divina e suas leis a conseqüên-
da cidadania às colônias que aceitavam o jugo romano sem gran- cia desses ditames maiores. O universo se diviniza, não há lugar
des resistências. Esse processo culmina com Caracala, que esten- para os panteísmos, que são combatidos como feitiçaria. O uni-
de a cidadania para todos os territórios do Império Romano. verso é ordem harmônica a serviço de Deus e a única forma de
Desse modo, em Roma, o ser humano era encarado sob vários dialogar com ele é pela mediação dos sacerdotes da Igreja, que
rgcortes. Se era de família cidadã, tinha direitos claros e defini- detêm o privilégio da verdade e a faculdade de sacralização das
dos. Se escravo liberto, tinha direitos menores e se situava em relações e da legitimação dos poderes.
;;o
Ul
o
O'
~ CD
.3o. Por outro lado, a cidadania, que havia se originado na Gré- outros critérios. nessas feiras que os servos da gleba vão tomar ;::i.
o
2
cia e que tinha sido um instrumento de controle e de ampliação contato com não-cristãos, que tinham uma vida econômica livre, '!>
(j)
!'
ro
·u de direitos em Roma, é diluída com a fragmentação feudal. Já podiam lucrar, ganhar ágios e trocar moedas, atividades vedadas o.
e CD
<(J)
e
não se é pertencente a um Império, mas suserano, vassalo, servo aos cristãos e, por isso mesmo, realizadas por mouros e judeus. )>
LO
t'. e
õi'
(j)
o.
da gleba ou escravo, no interior de um feudo, ou dentro das arti- As feiras, que eram locais precários de desenvolvimento de ativi- ..,
o
o.
culações escalonadas de poder que definiam as relações entre os dades comerciais, vão se tornando estáveis e permanentes, trans-
E
2 formando-se, com o tempo, em vilas.
o
"C1
feudos.
ro Roma, que cultuava seus territórios como fonte de suas Nessas vilas, que mais tarde se tornarão burgos, está a ori-
..e
u
(j)
<;:: riquezas, é substituída por uma organização econômica que tem gem da burguesia, à época, mercantil. Esse grupo social traz uma
ro
"C1
na terra seu valor fundamental. Logo, na hierarquia feudal, era nova forma de ver o mundo. A estabilidade da terra é substituí-
Ul
o
:E
superior o nobre que dispusesse de mais terra. O maior proprie- da pelo risco do lucro. A aventura, a busca de mercados a otimi-
li= '
o
Ul
tário rural tinha o nome de rei. A vida se fragmenta. Os seres zação das vantagens financeiras, a constituição de grandes com-
humanos transitam na microrrealidade dos feudos e de suas rela- panhias comerciais, a evolução das práticas bancárias, dentre
ções. Não há cidadania, pois os senhores são absolutos em seus outros aspectos, vão possibilitar a emergência de um outro cris-
feudos. Não há participação, já que a organização dos feudos era tão, de um outro ser humano, que não é mais contemplativo, mas
autocrática e voluntarista. Sobrava apenas a Igreja, que unificava se propõe a ser transformador.
as visões sob sua égide e regulava as relações do homem com o Aqueles salteadores e menestréis dos primeiros tempos pas-
universo divinizado, visto que avocava para si o privilégio do saram a comprar sua liberdade e a se estabelecer nas feiras e vi-
controle, salvação e danação na vida pos-mortem. las. Com seu enriquecimento, transformaram-se em financiado-
A Idade Média feudal representa o fim das possibilidades res dos empreendimentos bélicos dos senhores feudais, que viviam
justificadoras do universo que só admitia a atitude contemplati- em atrito e necessitavam de mercenários para defender seus do-
va do homem. Os cristãos correm o risco de não participar das mínios. Esses financiamentos enriqueciam ainda mais a classe
transformações sociais e econômicas que aconteciam na Euro- emergente, que, finalmente, dá o golpe de misericórdia no feu-
pa. Os servos da gleba, vivendo sob duplo jugo - o de seu se- dalismo, quando passa a subsidiar as campanhas dos reis feudais
nhor e o da Igreja-, no decorrer da história vão tomando uma para a unificação dos feudos sob seu comando único.
série de atitudes no sentido de sua desvinculação dos feudos. De É o momento de radical mudança no conceito que o ser
início, fogem dos feudos e passam a ser salteadores, jograis, se- humano tem de si mesmo. Ele sai da órbita da contemplação e,
gréis e menestréis. O pouco que produziam e que não era confis- de modo crescente, vai realizar a rotação do teocentrismo para
cado pelos senhores, eles trocavam nas feiras que se situavam nas o antropocentrismo. O mundo não é mais aquela harmonia fixa
fronteiras entre os feudos. e predeterminada por desígnios divinos. Ele é o campo para as
Nessas feiras, os servos da gleba vão experimentar um novo conquistas, é o dado bruto, que pode ser transformado em mer-
tipo de relação político-econômica. Lá, o que valia era o dinhei- cadoria, é o desconhecido que se esconde em civilizações distan-
ro, e não mais a terra. A hierarquia passa a ser estabelecida com tes, é o potencial infinito de riquezas e mercados a serem
(/)

~
.ao.. conquistados. É um mundo que se abre para as conquistas, é um os direitos fundamentais dos cidadãos. Esses movimentos, a Glo-
2
()) universo que pode ser moldado pela interferência da ação huma- rious R.evolution, na Inglaterra, em 1688; a Independência Ameri-
C\J

e na. A partir daí o mundo do homem se constitui pelo contato cana, em 1776, e a Revolução Francesa, em 1789, trouxeram para
<())
e
:e operoso com o mundo da natureza. O universo só passa a ter o campo político, jurídico e econômico essas práticas e concep-
())
o..
significação quando tocado pelo espírito humano. Deus, aos pou- ções emergentes.
o
o..
E
())
cos, vai se retirando para uma dimensão distante, já que a visão É preciso também lembrar que as novas práticas econômi-

o
-o
ptolomaica perde espaço por força dos imperativos da tecnolo- cas demandavam por aperfeiçoamentos tecnológicos, para au-
C\J
.!:
u
gia de navegação que se desenvolvia na época. mentar a produção e barateá-la. Assim, as revoluções burguesas
())
\;:::
C\J
Uma nova aliança é concretizada na história: a da burgue- caminham em paralelo com a Primeira Revolução Industrial. É a
-o
(/)
o
sia, que detinha o poder mercantil, e a do rei, que administrava o partir da descoberta de novas máquinas que o ser humano des-
.!:
\;::: poder político e assegurava para si certos monopólios rentáveis. cobre sua capacidade de intervir profundamente na natureza e
(/)
o Essa situação foi conveniente por cerca de três séculos, enquanto dela não somente retirar sua sobrevivência, mas também maxi-
os burgueses acreditavam que a origem da riqueza estava na in- mizar lucros.
termediação das mercadorias. O ser humano da Primeira Revolução Industrial precisava
Quando as práticas burguesas passaram a indicar outros ser conceituado, pois novas situações apareciam, que não pode-
caminhos para a obtenção de riqueza, essa aliança tornou-se ina- riam ser administradas com os velhos entendimentos do huma-
dequada. Quando a burguesia começou a perceber que era a pro- no. O mundo europeu caminhava para estruturas políticas mais
dução de bens a fonte das riquezas, deixou de ser possível a con- adequadas às conquistas da burguesia. Os agora cidadãos nacio-
vivência com os monopólios reais e vislumbrou-se a conveniên- nais viviam sob a égide de um Estado moderno, salvo em algu-
cia da separação do poder político do poder econômico. O Es- mas regiões da Europa. Mas a pertinência estava politicamente
tado nacional absolutista já se esgotava perante as novas deman- comprometida, uma vez que, na óptica liberal da época, os cida-
das dos setores mais avançados da burguesia na época. Era pre- dãos ou eram capitalistas, ou nobres cooptados, ou sacerdotes,
ciso desvestir o Estado da origem divina de seu poder. Criar um ou trabalhadores urbanos e rurais. O mundo social se divide en-
poder que não participasse da atividade econômica, mas que tre capital e trabalho, entre aqueles que financiam e lucram com a
controlasse o equilíbrio da concorrência capitalista, retirando do produção e aqueles que vendem sua força de trabalho como for-
rei sua faculdade de dizer a lei, subordinando-o a normas que se ma de sobrevivência.
situariam acima de sua autoridade. Era preciso garantir prerro- Para que os trabalhadores fossem controlados, era neces-
gativas e direitos para os indivíduos, a fim de que eles pudessem sário inculcar uma nova auto-imagem no ser humano, enfraque-
agir na ordem econômica e política em igualdade de condições. cendo seu senso de organização e participação, a fim de que não
Estão aí citadas as pautas mínimas que vão constituir os viesse a perturbar a produção, seja pela greve, pela violência,
diversos movimentos burgueses, que visaram à conquista do pela apropriação indevida da matéria-prima, do estoque ou dos
poder político e criaram cartas, declarações e códigos que cons- produtos, ou pela danificação das máquinas. Esses receios tinham
tituem os princípios dos Estados contemporâneos e a base para fundamento em uma situação absolutamente nova nas relações
Ul
;:o
o
~ CJ"
.ao. de trabalho. Pela primeira vez, o trabalhador ia para seu local de desembocou no estado gendarme. Os seres humanos só vão per-
ro
;::i.
o
2
QJ trabalho sem nada que era seu. Nem mesmo a ferramenta de tra- tencer à sociedade enquanto átomos, já que não mais se vinculam "?'
ílJ !'
·o
e balho era levada. Ora, trabalhando em local com tais caracterís- a Deus, ao cosmos, às organizações temporais e a questão das o.
<QJ ro
e
:e ticas, evidentemente sua periculosidade aumentava, pelo fato de classes sociais e das contradições entre elas é escamoteada a par- )>
l.Cl
QJ e
o. ~·
estar em contato com bens que não eram seus, daí a criação da tir de um entendimento que dava a sociedade como essencial-
o
o.
E figura da periculosidade do direito penal francês e o aparecimento mente harmônica, ficando para o Estado, para o Direito e para
2
o
"O
das ciências humanas, como saberes de controle, como bem res- as armas o papel de mantê-la assim, enfrentando toda e qualquer
ílJ
.e
u
salta Foucault. movimentação que quebrasse tal harmonia.
QJ
q::
Para que os seres humanos que vendiam sua força de traba- O ser humano é só, dentro de um mundo concorrencial. A
ílJ
"O
Ul lho pudessem agüentar as violências que seus corpos sofriam nas sobrevivência do mais forte, princípio presumido da seleção na-
o
.e
ti= máquinas repetitivas e agressivas em termos de acidentes, para tural, passa a reger as condutas sociais e econômicas. A vida é
Ul
o que suas mentes suportassem o paradoxo de serem considera- uma guerra cotidiana. Ao lado disso, novas rupturas são neces-
dos trabalhadores livres, sem que tivessem a liberdade de esco- sárias. A primeira delas é com os próprios valores defendidos
lher seu trabalho, e para que pudessem absorver um conceito de pela burguesia, em sua fase revolucionária.
liberdade que nada mais era senão uma expressão para justificar Quando a transformação produtiva erigiu a ciência como
a concorrência e a força, era preciso que os últimos vínculos de seu instrumento fundamental e delegou a ela o papel de desco-
pertinência humana fossem desconectados. bridora, validadora e constituidora dos fenômenos e da verda-
O cidadão, embora pertencendo a um país, era considera- de, também dividiu o saber em duas ordens separadas: a da ciência,
do um indivíduo. A sociedade era constituída por uma soma de em que os processos, explicações e conclusões eram neutros; e a
indivíduos, e não por grupos ou classes sociais. O ser humano da conduta, em que os processos poderiam se referir a valores.
contava tão-somente com ele mesmo para abrir sua trajetória no Assim, nem mesmo o saber e a verdade deveram ter a participa-
mundo. Sua liberdade terminava onde começava a liberdade do ção do homem em sua inteireza e diversidade. O saber e a verda-
outro. Ora, se o outro era mais forte, evidentemente o espaço de de eram buscados por procedimentos denotativos e racionais,
sua liberdade era maior; logo, sua liberdade será exercida até que se utilizavam das técnicas para descobrir e controlar os fenô-
onde a força da alteridade lhe permitir. Além disso, esse cidadão menos e da matemática e da lógica para metodologicamente va-
só possuía um discernimento traduzido por sua vontade. Essa lidar o que foi descoberto. O trabalho do cientista era neutro,
vontade era também livre e era uma faculdade que, ao lado da não tinha qualquer compromisso ético. O bom ou o mau uso das
razão, possibilitava a conduta humana em sociedade. Vontade, descobertas científicas era problema de conduta dos políticos e
razão, liberdade e trabalho, eis os fundamentos do trabalhador daqueles que as utilizavam para determinados fins.
da primeira fase da Revolução Industrial. Do lado do capital, As descobertas geológicas e astronômicas sobre o tempo
outros fundamentos são construídos: o da propriedade como mostraram um universo com uma idade imensa, além de indicar a
direito fundamental, o da concorrência livre, como base da eco- presença da espécie humana praticamente no último segundo de
nomia capitalista, o que, em termos de estrutura política, existência cósmica. O tempo evangélico e o tempo bíblico não

f\{)
U)
;;o
o
r:'. cr
(D
.3o. tinham mais significação. Adão passou à categoria de mito judai- transcendência imbricada na influência básica que sofreu do ;:::i.
o
2
Q) co. Mesmo as avaliações dos astrônomos renascentistas, que ti- alismo alemão, principalmente por via de Hegel. marxismo é ~
Cíl ?"
·u
e
nham enfrentado a mão pesada da igreja, não chegavam a essa uma cosmogonia do relativismo. Ele confirma a ciência mecani- o.
(D
<OJ
e
:e imensidão temporal. A Terra não mais era o centro do universo cista do século XIX, ao mesmo tempo que a contesta, em seus )>
lO
Q) e
o.
e o sol, que poderia sê-lo, nada mais era que uma decadente es- instrumentos lógicos, opondo o princípio da contradição ao prin- ~·
o
o.
E trela de grandeza inferior. O infinitamente grande e o infinita- cípio da identidade. De certa forma, Marx e os positivistas atua-
1l
o mente pequeno assombravam cientistas e filósofos. O homem lizam a velha contenda entre Heráclito e Parmênides. Os marxis-
"O
Cíl
..e passou a ser um epifenômeno no cosmos; uma desprezível cria- mos são obras abertas, até porque, sendo dialéticos, podem ser
u
Q)
q:: tura que habitava, precariamente, um pequeno planeta dentro de analisados triadicamente pela mesma dialética.
Cíl
"O
U)
o
um sistema estelar decadente. Seus valores poderiam até ser úteis É evidente o caráter simplificador das afirmações aqui de-
..e
~ para a convivência cotidiana, mas nada tinham de transcenden- senvolvidas. O século XIX, assim como o início do século XX
U)
o tes, de definitivos, pois os critérios de mal ou bem eram, muito europeu, foram períodos de muita criatividade conceitua!, artís-
mais, um problema cultural e de interesses. Chegamos, no início tica, filosófica e científica. Há uma grande força do pensamento
do século XX, com o ser humano completamente desgarrado de do século anterior, que avança para o início dos novecentos, que
uma pertinência maior. vai esmaecer nos novos tempos, após o final da primeira grande
Onde ele poderia encontrar algum sentido para sua rápida guerra mundial. Assim, sou daqueles que acreditam ter o século
e transitória existência neste pequeno cisco cósmico? Ou reto- XIX terminado em 1918. É um torvelinho de correntes, de des-
mando a dimensão nacionalista, reconstruindo os absolutismos, cobertas e de novas concepções. Mas apesar de tudo isso, o pro-
agora pelo viés fascista, ou supervalorizando a história, como cesso de desterro do ser humano estava evidente e a condição
um caminho predeterminado, imposto pelas leis necessárias da humana foi encarada como isolamento, perplexidade e nadifica-
natureza, desembocando nas lutas de libertação e de aceleração ção, apesar de correntes contrárias a esse entendimento. Tais cor-
dos entendimentos parusíacos do tempo humano. Desse modo, rentes, como, por exemplo, o pensamento católico, ainda esta-
o início do século XX oferece a neutralidade científica trabalha- vam vinculadas a uma dimensão medieval do mundo, mesmo
da pelo neopositivismo lógico, as teorias fascistas, racistas e de quando se tratava de pensadores avançados para a época, como
direita, representadas por pensamentos como os de Gobineau e é o caso de Jacques Maritain.
Hitler, e os da tradição conservadora européia e o marxismo, O pensamento católico só vai ter força na história do sé-
em suas várias vertentes, evidentemente a mais generosa e mais culo XX quando passa a assumir a ciência contemporânea como
consistente das cosmogonias atreladas à visão científica do sécu- base para suas reflexões, como na síntese de Teilhard de Char-
lo XIX. din, 17 ou quando abandona a ortodoxia tomista e envereda pelo
Os marxismos conseguem ser instrumentos de transfor- diálogo profícuo com correntes inovadoras. Exemplo filosófi-
mação, análise, mobilização e criação de novas realidades, a par- co e político fundamental é expresso pelo-.pensamento perso-
tir de uma visão relativista, mas profundamente marcada pelos nalista de Emanuel Mounier, 18 que tece um pensamento exis-
valores de mudança dos socialistas libertários e pela tencialista cristão mais ousado que o de Gabriel Marcel, 19 que
Vl ;:o
o
~ o-
.a
Q.. também cruzara a tradição cristã com o existencialismo contem- positivistas que enfrentaram questões mais complexas ro
;::i.
o
2
Q) porâneo. ram de abandonar as bases fundamentais desse enfoque para '?'
ro ?J

e
No mais, a ciência já tinha sacralizado um determinado poder dar conta dos fenômenos que enfrentavam. Exemplo mar- Q..
<Q) CD
e
t'. tipo de procedimento para produção do saber. Mesmo quan- cante é o de Albert Einstein. )>
lQ
Q) e
Q..
do o homem era objeto de uma ciência, o observador teria de O mundo dos homens; complexo, rico, contraditório e di- ~·
oQ..
E ser neutro distante embora houvesse identidade entre este e o fícil é um mundo dos seres exilados, que necessitam criar símbo-
2 ' '
o observado. A sociologia do conhecimento demonstrou o evi- los e significados para atribuir algum sentido às suas existências
"O
ro
.e dente caráter ideológico de qualquer saber, enquanto a concep- precárias. O ser humano não tem contato com mais nada, a não
u
Q)
;:;:: ção dominante de ciência reafirmava a posição de aceitação da ser com a cotidianidade sincrônica e diacrônica de sua cultura e
ro
"O
Vl
neutralidade como pressuposto para a produção do conheci- história, e tira seu sustento de seu trabalho coletivo, explorando
o
.e
t;::: mento. e dominando a natureza para tal fim. Ele está impedido de saber
Vl
o A questão da ciência, de seu objeto e de seu método foi porque está aqui, quais suas finalidades últimas, para onde vai, ou
equacionada segundo a interpretação que o Círculo de Viena deu se vai, após sua morte. O mundo natural nada tem a ver com a
ao pensamento kantiano. As ciências, para ter essa estatura, ne- humanidade. Ele é o dado bruto, a espera de antropomorfiza-
cessitam de objeto e método definidos, sem os quais não têm ção pelo trabalho humano. O tecido da humanidade é criado
lugar no complexo dos saberes científicos. A busca da pureza por ela mesma, com os elementos culturais, históricos e econô-
científica, do isolamento dos campos e procedimentos de cada micos de que dispõe. A humanidade é uma ilha, que procura a
uma delas foi preocupação que marcou o pensamento dominan- melhor forma de viver, de governar e de ser governada, de dis-
te, até os idos de 1950, mesmo com a fundamental contribuição tribuir suas rendas, de respeitar seus direitos fundamentais, de
da fenomenologia para reunificar sujeito e objeto em um todo conviver com as diferenças recíprocas, de buscar a melhor for-
relacional representado pela consciência intencional em suas di- ma de apropriação da natureza, de proporcionar o crescimento
mensões noéticas e noemáticas. 20 No mesmo sentido, os marxis- coletivo e pessoal de seus componentes. O resto é externalidade,
mos, quando contextualizam os sujeitos, situam suas produções é indiferença, é matéria a ser explorada, enigma a ser decifrado,
e apontam para as alienações e ideologias, estão também optan- problema a ser controlado, lucro a ser otimizado, bem a ser apro-
do pela síntese, pela interdisciplinaridade e pela negação da neu- priado. O fora do homem é a neutralidade disponível e apática.
tralidade. O pensamento contemporâneo tem radicalizado essa con-
O tratamento positivista da ciência tornou-se hegemônico cepção. Quando os imaginários totalizadores são atacados, tal
por sua operatividade, descobertas, rigor em descobrir e validar posição é tomada em nome de um anti-autoritarismo, um com-
o descoberto, criação tecnológica e poder de análise. Isso não bate ao totalitarismo. Em nome dessa liberdade, que enfrenta
pode ser negado. Mas a visão positivista tem limites claros. Sua todos os mecanismos de tutela, desvela-se um mundo opaco e
concepção de ciência é necessariamente reducionista e seu trata- sensaborido. Esse mundo fragmentário já não mais qual-
mento dos fenômenos mais complexos tende a ser ingênuo, já quer movimento totalizador. Seu cotidiano é a diferença, o tópi-
que as teias mais densas não se submetem à linearidade da lógica. co, a sensação de receber, sem a obrigação de devolver. Um
;:o
{/) o
rr
~ <D
.3o. mundo dominado pela indústria cultural, que plasma não somente cognitivo, tão bem estudada por Piaget, que afirmava serem a ;::i.
o
2 cognição e a afetividade duas faces de uma mesma moeda, foi "?'
OJ
os gostos, mas também a opinião e os temas em torno dos quais
!1
ro
"ü as opiniões divergem. Basta lembrar a questão da pena de morte esquecida, e a inteligência passou a ser encarada como algo frio, o.
e <D
<OJ
e levantada por uma emissora de TV do Brasil. Há posições con- complexo e articulado, que transcende a afetividade, aspecto )>
l.O
t'.OJ e
õi"
o. tra e a favor, produzindo notícias para os meios de comunica- menor da condição humana. --,

o
o. ção. Mas, a grande questão é que o tema foi levantado a partir de A arte, que é um dos mais eficazes instrumentos de cogni-
E
23 ção do mundo e de criação de novos fenômenos, é estudada como
o crimes recentes, à época. Tal tema já havia sido encerrado com a
u
ro
..e
Constituinte, até porque a questão brasileira não é a da institui- criatividade, como originalidade, como expressão estética, e só
u
OJ
\;:: ção da pena de morte, mas a do combate à pena de morte que é há pouco tempo passou a ser vista como uma ferramenta epistê-
ro
u
{/)
indiscriminadamente aplicada pelas autoridades policiais. Ade- mica de desvelamento e questionamento do mundo. A ruptura
o
..e
q:: mais, como é sabido, a punibilidade brasileira tem endereço cer- entre o racional e o afetivo mais uma vez fragmenta o ser huma-
o
{/)
to: só os explorados, os oprimidos, os desassistidos são apena- no, que, além de se exilar de seu meio circundante, passa a se
dos. Se a pena de morte fosse instituída, certamente só os pobres alienar de si mesmo.
seriam mortos, em nome da segurança dos grupos superiores da Há um paradoxo contemporâneo que não pode ser esque-
sociedade. Mas, apesar dessas evidências, é a lógica da televisão, cido: o da descorporificação do ser humano concomitante à pla-
que impôs essa discussão, que domina as refações entre os netarização dos problemas e conquistas da humanidade. O cor-
cidadãos. po dos homens cada vez mais se torna um campo onde os pode-
Outro ponto interessante que deve ser discutido, nesse pro- res são exercidos. Ele é hierarquizado, explorado pelo trabalho,
cesso de isolamento e ruptura dos seres humanos, é o da radical eclipsado, a fim de que não tenha sensibilidade perante os atos
separação entre razão e afetividade. Estas facetas do ser huma- que o destroem, e transformado em objeto de consumo, o que
no, tão claras e interimplicadas, foram deliberadamente separa- propicia uma estética mercantilista; ou é, ainda, o campo do gozo
das, em prol de uma sociedade mais organizada, mais controla- permitido. O corpo é o lugar do exercício do poder, do marke-
da e mais previsível. Como se separa conhecimento de valor, ting e da exploração. Ele é um ente fora dos seres humanos, é algo
também se distancia racionalidade de afetividade. O assustador para ser admirado, usado, "interferido", medido, pesado e estu-
é que todas as grandes modificações em qualquer campo das so- dado. Ele está fora dos seres humanos, hipostasiou-se como um
ciedades foram movidas pela paixão. O problema é a sua incon- ser "fora". Os corpos humanos passaram a ser uma externalida-
trolabilidade. A paixão é o antípoda da linha de produção. O de com a qual os homens se relacionam. Desse modo, os seres
operário apaixonado não vai nela comparecer com regularida- humanos alienaram-se de seus corpos, tornaram-se "donos" de
de. A paixão deve ser erradicada de seu imaginário, sob pena de seus corpos, ou seus escravos, pela exploração do trabalho. Seus
comprometimento da produção. Esse entendimento invadiu a corpos já não são mais a sua expressão, o seu modo de ser
própria cognição. O ato de conhecer é racional, neutro, distante, concreto no mundo, a sua identificação. Seus corpos se trans-
rigoroso, enquanto as dimensões da conduta são apaixonadas, formaram numa instância de mediação entre as necessidades
afetivas ou odientas e destruidoras. A integralidade do processo criadas e as condutas a serem seguidas. A intimidade tornou-se
;:o
Ul o
~ rr
.ao.. pública, o gozo passou a ser objeto de receitas, planejamentos, dimensão internacional, apesar de significar importante
CD
;::::i.
o
2
(JJ mensurações e sugestões mecânicas. É surpreendente perceber avanço histórico na compreensão do ser humano, estava presa '"?'
co !l

e que tudo isso é desenvolvido para que os seres humanos não ainda a fronteiras. Os Estados nacionais eram considerados or- o..
CD
<(JJ
e
~ percebam o quanto suas vidas são sofridas ou opacas, o quanto ganismos opressores, que deveriam ser eliminados, por repre- )>
LO
(JJ e
o..
seus corpos são dilacerados pela produção vigente, o quanto sentar a racionalização de interesses das classes dominantes. ..,Qj'
o
o..
E sua participação na construção de suas próprias existências é A contemporaneidade vai urdir problemas que ultrapas-
2
o
'O
pequena. sam as dominações de classe e atingem a humanidade como um
co
..e
u
A produção, o consumo, a indústria cultural e o marketing, todo, ameaçando sua própria existência. Basta lembrar da amea-
(JJ
4= aliados a um exercício de poder castrador e diminuidor da di- ça atômica, hoje estilhaçada em vários focos de poder, após a
co
'O
Ul mensão cidadã, exilou o ser humano de seu corpo, retirando-lhe crise do Leste Europeu. Do mesmo modo, os problemas ambi-
o
..e
ti= a possibilidade de autopercepção e sentimento de si mesmo, o entais oriundos de uma produção fáustica que se estruturou no
Ul
o que leva a uma perda progressiva de seus próprios sentidos. A mundo ensejam situações que atingem toda a humanidade, inde-
perda dos sentidos é ensejadora de uma percepção cada vez mais pendentemente de sexo, cor, religião ou classe social. Minorias e
pobre do mundo, de um imaginário cada vez mais ralo e do en- maiorias são atingidas, opressores e oprimidos podem desapa-
fraquecimento simbólico dos seres humanos. recer, irmãos e inimigos podem sofrer iguais efeitos destruido-
Ao lado desse exílio de sua própria concretude, os proble- res desses novos problemas, que têm como característica funda-
mas da humanidade passam por um processo de amplificação. mental sua dimensão planetária.
Na história humana, os problemas dos primeiros grupos ou eram As questões, as dúvidas, as perguntas e as respostas não
individuais, ou diziam respeito aos próprios grupos. O horizon- têm mais fronteiras, nem pátria, nem solidariedade internacio-
te de compreensãó e de problemas se esgotava no âmbito das nal, em termos de poderes governamentais instituídos. A condi-
necessidades e das explicações que os grupos elaboravam. À ção humana há de ser pensada em termos planetários, para além
medida que as sociedades passaram a se organizar por etnias ou dos poderes formais, para além das fronteiras políticas. A soli-
por impérios que reuniam várias etnias, as questões sobre o ser dariedade para resolver esses problemas não se restringe a indi-
humano passaram a ser tratadas no âmbito mais amplo. Tal ca- víduos ou grupos, não se limita pelas fronteiras nacionais, nem
racterística torna-se marcante a partir da formação dos Estados mesmo se reduz à colaboração transformadora entre os grupos
nacionais na Europa. A denominada questão social emergente internacionalmente dominados. A nova solidariedade se funda
das relações desiguais do capitalismo quebrou os limites nacio- nas necessidades, problemas e perspectivas da própria condição
nais dos problemas. Eles eram internacionais, já que, por exem- humana neste planeta. No momento em que este novo olhar
plo, o proletariado não era uma classe nacional, mas um agrupa- emerge, um novo e grave problema nos é posto: o de tentar re-
mento humano, fruto das relações capitalistas, estivessem elas conceituar o ser humano.
onde estivessem. Os temas do humano passaram de um contex-
to grupal para um contexto nacional, e deste para horizontes
internacionais.
Quando Napoleão, para aumentar o entusiasmo de suas
tropas, apontando para as pirâmides do vale do Gisé, exclamou:
"Quarenta séculos de história vos contemplam", estava tradu-
zindo um certo modo de encarar a humanidade. O ser humano é
histórico e sua pertinência é traduzida por seu poder de ser seu
sujeito. O ser humano está em um processo de construção de seu
mundo, de suas conquistas, de seus avanços e de suas revoluções.
Ele é pertencente a esse complexo, que se constitui como tempo
dos homens, para além do tempo das coisas e da natureza. Hoje,
olhando a mesma cena com os olhos da ciência, veremos que
não só quarenta séculos de história contemplavam os soldados
franceses, mas também milhões de anos de minerais que compu-
nham as pirâmides e que se espalhavam como areia no vale de-
sértico. Os soldados franceses também eram observados pela
configuração multitemporal do céu naquele instante, e todos ani-
mais macro e microscópicos ali estavam presentes, dentro e fora

71
(/) ;:u
e o
o-
.3o. dos conquistadores, além das plantas que vicejavam fracamente reprimidos, de nossas alegrias esmaecidas, nossos projetos políti-
ro
~
2 o
<lJ nos pequenos nichos onde era possível esse tipo de vida. A cena cos conscientes e inconscientes, de nossas ideologias e idiossincrasi- ;r>
cu !l
·u ia da história para o cosmos, dos microorganismos para os ani- as, de nosso senso estético, de nossos sonhos, de nossa auto-ima-
e o.
<<IJ <D
e
~ mais ali presentes, do mineral para o orgânico, do orgânico para gem, de nossa história e do conteúdo que pensamos estar comuni- )>
\.O
<lJ
o. e
o social, do social para o cultural, do cultural para o religioso, do n;·
o
cando denotativamente. ....
o.
E físico para o químico, do químico para o biológico. Bilhões de Além de tudo isso, estamos dentro de uma sala construída
2
o
"D
anos do universo contemplavam Napoleão e seus soldados no pelas mãos dos homens, com pedra, cal, areia, cimento e ferro.
cu
_e
u
momento em que ele os exortava com aquela conclamação. Esse nicho que nos guarda das intempéries e que nos isola de
<lJ
q:::
cu
Quando damos aula, o mesmo acontece. Estamos traba- outros nichos tem uma data de construção, mas seus materiais
"D
(/)
o
lhando com signos, estamos trocando linguagens, reproduzindo têm milhões de anos e estão presentes em nossa existência. Eles
_e
(i:: e produzindo conhecimentos, refletindo dentro de quadros refe- passaram a ter vida curta, em virtude de se terem transformado
(/)
o renciais elaborados pela cultura, pela filosofia, pela ciência, ou em mercadoria. No lugar da gênese e do crescimento, nós os
mesmo pelo senso comum. Nesse quadro de princípios e de olhamos como objetos de compra, bens valorizáveis, e com isso
mensagens implícitas, escondem-se outras significações não ex- tiramos sua temporalidade e os incorporamos à produção hu-
pressas, mas operantes, que, sem aparecer, também configuram mana recente. A areia é a que vem de caminhão para compor a
as mensagens que estão sendo trocadas na sala de aula. argamassa com o cimento e o cal. Os ovos são aqueles artefatos
A condição humana é cercada de indizíveis: os inconscien- nutritivos que são apresentados em caixinhas pelos supermerca-
tes, os ideológicos, os éticos, os íntimos, os das perplexidades dos. A criação artística é aquele bem que eu compro para enfei-
amedrontadoras, o indizível do nascimento, o da morte e o da tar minha sala, para ouvir displicentemente, para especular, para
esperança. Tudo isso também é passado, de forma oblíqua, de não estar fora da onda, para dar a impressão de que entendo, se
tal forma que as mensagens que pareciam lineares e davam a im- tomarmos a óptica de consumo da pequena burguesia, por exem-
pressão de clareza são complexas, cheias de escaninhos escuros, plo. Às vezes, a produção artística serve de catarse para vidas
ambíguas, mostrando muito mais uma cor intermediária do que opacas e vazias. É o momento vicário de sublimidade.
as cores puras ou fundamentais. O cinza é dominante. Por terem se transformado em mercadoria, os bens perde-
Ao lado dessas mensagens oralmente passadas, estamos dan- ram sua duração. Sua existência se esgota no momento presente
do outra aula, de reforço ou negação do conteúdo, com nosso cor- de seu consumo, ou de sua compra. Não temos sensibilidade
po, com a entonação de nossa voz, com a movimentação que faze- para perceber que, em uma simples sala de aula, o universo não
mos, com a gestualidade que utilizamos, com os olhares que troca- somente nos contempla, mas está presente e interagindo em to-
mos. Só nessa primeira nesga da relação entre um professor e seus dos os patamares de nossa existência, já que somos feitos dele e
alunos, uma gama imensa de espelhos incide na comunicação. Pela dele somos parte.
fala, estamos participando do conhecimento oficial, do conhecimento Outro ponto que levou ao distanciamento do ser humano
popular, dos padrões de nossas culturas, de nossa biografia, de nos- da totalidade que o abrange é o da especialização científica, que,
sa história, das frustrações de nosso infância, de nossos desejos a bem do rigor, fragmentou o mundo do dado, construindo

73
Ul ;xJ
~
o
rr
ro
.3o._ fenômenos necessariamente parciais. A partir dessa prática, ini- de outros animais, cria valores, conquista concretizações deva- ;::4-
0
2
(j) ciou-se um processo de absolutizar e totalizar o pardal, como se lores, descobre e desvela o mundo do dado e, urdindo o imagi- '?'
(\J
?J

e
o ser humano pudesse ser explicado pela economia, pela socio- nário, cria, dentro do universo, um universo virtual, tão consis- o._
<<IJ ro
e
f'. logia, pela antropologia ou pela psicologia. Hoje há um salutar tente e tão envolvente quanto aquele que desvela. Essa criação se )>
l.O
(j) e
o._
movimento de aproximação multi e transdisdplinar, mas é pre- chama arte.
ãi'
.....
oo._
E ciso atentar que ele começa e ainda enfrenta pesadas resistências Já se disse que o grande subversivo é o poeta, em virtude
2
o dos cientistas "clássicos". de ele criar linguagens, reunir palavras, esculpir ícones plasmá-
'D
(\J
..e Assim, aquele homem que era tão-somente histórico, passa veis por infinitas leituras, que poderão construir individual ou
u
(j)
q:: a ser uma intersecção dos micro e macrofenômenos. Sua essên- socialmente novas realidades. O ser humano é um animal que
(\J
'D
Ul
cia é mineral, orgânica e espiritual. Sua trajetória é uma aventura sonha, antecipa, mentaliza futuros, e prevê novos tempos. Ele é
o
..e
t;:::: dentro de um universo aberto, que não tem leis deterministas, 0 universo se desdobrando, se abrindo em infinitas opções e em
Ul
o mas direções probabilísticas. O ser humano não depende de leis miríades de problemas e desafios. Ele, como já foi dito, partici-
deterministas e imutáveis que regem o universo. Ele participa de pa e interage nas várias camadas do devir aberto. Ele está pre-
um universo que se abre para imponderáveis prováveis. E o ser sente nesse tecido que desenha seus próprios padrões, à medida
humano, sendo parte desse universo, é agente dessa abertura: que se trama.
aventura de autoconstrução cósmica. Depois de Teilhard de A questão colocada inicialmente sobre a determinação ou
Chardin, que considerou o mineral como pré-vida, depois de indeterminação é superada quando percebemos a existência de
Prigogine, que toma como hipótese para o universo a existência uma totalidade móvel e aberta, que também é construída pelo
de um tempo irreversível, as afirmações aqui feitas não têm qual- homem. Isso não significa ignorar as necessidades, a sobrevivên-
quer cunho de mistificação, mas pretendem mostrar a necessida- cia desse ser, as espoliações, as dominações, as reificações e as
de de as ciências humanas e a própria filosofia assumirem a dis- desigualdades. Também não significa virar as costas à ambigüi-
cussão desses novos olhares, sob pena de chegarmos a um mo- dade humana, à aposta da vida contra os impulsos da morte. A
mento em que a física, a astrofísica e a astronomia terão mais grandeza desse ser está justamente nesse leque de opções, que ele
contribuições a dar para o entendimento do ser humano do que mesmo vai tecendo no decorrer do tempo. É uma espécie trági-
as ciências ditas humanas. ca, a única que poderá se suicidar, a única que, voluntariamente,
O ser humano é um ser que participa e interage em várias poderá inviabilizar o ambiente em que vive, e matar semelhantes,
direções e facetas. Ele é parte de um grande todo aberto e pro- sem razões plausíveis.
babilístico, no qual ele se perfaz. A integralidade do ser humano É justamente por esse lado escuro presente no próprio ser
está nessa participação-processo, nessa obra aberta em que não do homem que a sua trajetória é mais rica: ele tem de cantar o
existem determinações intransponíveis. O ser humano é também hino à vida tendo a morte dentro de si, tem de construir valores
um criador do universo. Ele é, por enquanto, o único criador de '
para abrir novos espaços existenciais, produtivos e culturais, ten-
símbolos conhecido, produtor de cultura e irradiador de consci- do a repressão tanática se instilando nas formas de sua conduta.
ência. É um peculiar ser do universo, que ri, para além do choro Ser contraditório, sublime e mesquinho, opressor e oprimido,

74 75
(/)

e
.aCL apaixonado e odiento, brilhante e medíocre, capaz de se alçar
2
QJ aos altos cumes da criação ou se perpetuar na repetição burocrá-
m

e tica, como forma de garantir uma segurança que o estiola, mas
<QJ
e
t'.QJ lhe dá a sensação de conforto.
CL
Peculiar ser que constrói sua liberdade no processo de ser
o
CL
E mais, de tornar-se autônomo, de se livrar das dominações, mas
2
o
"'O
que é capaz de ser menos, de ser destruidor, de ser voluntaria-
m
..e
u
mente servil, de ser um perpétuo dependente, com medo de ex-
QJ
;;:::
m
perimentar a liberdade, com medo de construir nova sociedade,
"'O
(/)
o
na qual a submissão seria erradicada. Será referindo-se a essa to-
..e
tE talidade mais ampla, da qual ele participa e que também é por ele
(/)
o construída, que esse ser poderá constituir um novo conceito de
si, um conceito que se alarga, quanto mais se alargam seus conhe-
cimentos e quanto mais seus valores vibrem no diapasão da gran-
de aventura universal.

O tempo é o enigma tantálico que transparece, como pano


de fundo, em todas as manifestações e pensamentos humanos.
Ele é existencial, social, cósmico e orgânico. Ora linear, circular,
espiralado, pontual, processual, regular, irregular, finito, infinito,
duração; ora um mero constructo cultural sem significação.
A tematização do tempo parte da própria condição huma-
na: momento de consciência entre dois mistérios - o do nasci-
mento e o da morte, um momento de tempo existencial entre
dois extremos de não-tempo.
O tempo não suscitava angústia quando ele era encarado
dentro de uma ordem fixa, presidida por um Logos ou por uma
Divindade que seriava o suceder das coisas e inseria esse su.ceder
dentro de um cosmos definido, onde tudo possuía uma trajetória

76 77
(/) ;o
o
~ CJ
.ao. pré-determinada, que terminava, por sua reinserção na origem, temporalidade cristã, presa a um curto espaço tempo '"''--''J~Á_,_....
,_,'V'
(D
::l-
o
2
em um grande círculo eterno que se fazia e refazia perante o olhar e humano. "!>
<O ~
"Li
e contemplativo dos seres humanos. Esses seres viviam segundo A temporalidade oriental hindu, por exemplo, é circular, o.
(D
<(IJ
e
~ regras de entendimento e de conduta que os faziam prever seu mas se desenvolve segundo uma trajetória espiralada ascenden- )>
lO
<lJ e
o.
futuro transensorial e seu passado pré-nascimento. Era um tem- te, como se todo o universo caminhasse para a plenitude e, de- ~·
o
o.
E po da ordem, do retorno eterno, da contemplação do edifício pois, nada tendo a evoluir mais naquele nível, fosse recriado e
2
o
"O
divino, da obediência, da hierarquia e da sedimentação das exis- reiniciasse um novo patamar superior. Shiva, a mulher, a fêmea,
<O
..e
u
tências conforme as exigências de Logos ou de Deus. é o ponto nodal que destrói a criação e propicia a síntese nova
<lJ
q::
<O
Os seres humanos tinham a serenidade dos animais perante entre ela e Brama, representada por Vichnu. O caminhar existen-
"O
(/)
o
a morte. A tragédia cotidiana deveria ser vivida e aceita, na espe- cial também é seguro, pois a metempsicose 21 - a transmigração
f:
i.C rança da paz da dissolução, ou da paz da recompensa, duas for- das almas - assegura a caminhada descendente ou ascendente
(/)
o mas de reinserção no Todo. Era o tempo que engendrava a ne- nessa temporalidade espiralada. Também lá o tempo é ético, so-
cessidade ética, o imperativo de os seres humanos urdirem mo- cial e político. Basta perceber sua força para garantir um sistema
dos de se relacionar, a fim de antecipar o que seria vivido pós- social de castas por milênios, sem que houvesse quebras signifi-
mortem. Da mesma forma, em sentido retroativo, o tempo anterior cativas nessa ordem. Um tempo com tal complexidade e dura-
ao nascimento impunha normas de ser e relacionar-se, a partir ção, um tempo que se coloca como suspiros da eternidade, força
das familias, das tradições, dos costumes e das crenças acumula- os seres humanos a procurar a sua interioridade, a entender seus
das. O ser humano tinha a segurança do antes e a do depois, por estratos mais profundos, a desenvolver práticas de criar pontes
sentir-se participante de uma ordem maior que o envolvia em com o universo, por via do eu profundo. Está aí uma das dimen-
sua imutabilidade e eternidade. sões estimuladoras dos vários procedimentos meditativos.
Não trataremos aqui do tempo anímico, já resvalado em A linearidade do tempo tem raiz hebraica, ratificada pelo
parte anterior deste livro. Dele apenas podemos dizer que se ex- cristianismo. Segundo essa tradição, a circularidade e o retorno
pressa como o eterno presente. O espírito dos seres humanos não existem no tempo. A história divina e a humana transcorrem
mortos e vivos se relaciona com os espíritos dos animais, das no interior de uma linha representada pelo tempo da plenitude,
coisas e dos deuses, em um drama perpétuo em que a vida nunca que é limitado pelo momento da Criação, de um lado, e pelo da
cessa de estar presente. Passado, presente e futuro se amálga- Queda, de outro. Após isso, a humanidade vive o Tempo da Es-
mam no topos do presente e pelo presente têm seu significado. pectação, no aguardo do Messias, que viria redimi-la do ônus do
Também podemos perceber nas cosmogonias orientais a decaimento. Tal período vai da Queda até a vinda do Messias, do
presença de um tempo espiralado, conectado a uma dimensão Esperado, do Cristo, para o Novo Testamento, ou continua até
de sursum, de ser mais, de evolução, não no sentido contemporâ- hoje para o judaísmo, que ainda aguarda a vinda do Salvador.
neo da palavra, mas de conquista da plenitude do ser. Tal con- Após esse tempo, a humanidade vive o Tempo da Redenção,
cepção de tempo antecipa, em alguns pontos, a duração do tempo propiciado pela vinda do Filho de Deus, ele mesmo uma face da
cósmico e geológico que, ria sua descoberta, tanto chocou a tripla dimensão divina. Tal tempo é o de hoje, e vai findar na

78 79
Ul
~
.3Cl. Parusia, momento em que os bons se salvarão e os maus se Bifurcam-se os caminhos: a temporalidade torna-se uma
2
QJ perderão, terminando o drama cósmico-divino, quando todos dimensão antropológica, enquanto ao cosmos foi deixada a
ro

e os justos entrarão na Glória de Deus. A temporalidade é um ca- eternidade. Inicia-se o descolamento do ser humano do univer-
<QJ
e
t'.QJ minho único rumo à salvação ou à perdição. É um tempo unili- so, onde as regularidades são eternas, deixando para os habi-
Cl.
near que se inicia com a Criação e termina com a parusia, mo- tantes da Terra a construção linear da temporalidade. Esse
o
Cl.
E mento terminal da temporalidade, reino do eterno presente. entendimento traz à tona uma versão laica de nomos e logos, só
2
o A Idade Média foi o momento histórico de simbiose entre que, desta vez, sem a subsunção do primeiro ao segundo. No-
-o
ro
..e o tempo circular clássico e a temporalidade linear cristã. Santo mos é autônomo e depende da ousadia humana, que abre novos
u
QJ
;:;::: Tomás de Aquino uniu a visão aristotélica com os padrões cris- tempos por seus projetos, por sua curiosidade e pela busca de
ro
-o
Ul
tãos. O resultado temporal dessa união foi a manutenção da cir- novas riquezas.
o
..e
li= cularidade em termos cósmicos, bem exposta pela concepção A linearidade do tempo marca o pensamento e o cotidiano
Ul
o ptolomaica, complementada pela inserção da linearidade cristã até o início do século XX. Mesmo quando se tenta entender o
na trajetória das condutas dos homens. Há um cosmos presidido tempo e a história como manifestações de uma Razão constitu-
pelo Logos divino, em que a tragédia e a ressurreição de Cristo, inte, como no caso de Hegel, ele é linear, um caminho para o
ato redentor cósmico, ilumina os caminhos de cada um que bus- mais, um movimento evolucionário, onde quem está depois é
ca nessa ordem a salvação pelas boas obras ou pela fé. Deus, pela mais avançado do que quem está antes. Dedutiva ou dialetica-
sua graça, salva os homens, predestinando-os ou não à salvação, mente, tudo caminha para o mais, o mundo é um caminho tem-
como em Santo Agostinho, ou os salva, considerando sua con- poral para o progresso e a temporalidade é uma linha, que pode
duta fiel e suas obras amorosas. Dois tempos coexistem: o que ter recuos, mas é única, como nos velhos tempos bíblicos.
evita a angústia humana, pois além das leis inexoráveis da ordem Essa concepção de tempo cai como uma luva na Europa
universal, a presença da divindade mostrava o caminho, a verda- expansionista. A conquista das novas colônias representa o en-
de e a vida, nesta existência e na outra, e o do Paraíso, que é a contro entre os tempos mais evoluídos com os estágios mais atra-
antecipação individual da parusia coletiva final. sados, das culturas mais avançadas com os modos primitivos de
Será com a emergência da laboriosa e esperta burguesia ser e produzir. Evidentemente que, nesses casos, cabia aos mais
mercantil que a linearidade do tempo passa a falar mais de per- adiantados converter os inferiores, impor seu entendimento de
to às existências humanas. A busca do lucro, das novas merca- mundo aos atrasados, explorá-los ao máximo, seja por eles te-
dorias e dos novos mercados, que vai dar aos europeus ociden- rem sentimentos inferiores, não darem valor às suas vidas, ou
tais o entendimento de que o tempo se perfaz pelas ações dos porque seus próprios chefes negociavam seus súditos como mer-
seres humanos: ter mais, lucrar mais significam ser mais, refle- cadoria para a escravatura, além de não saberem explorar suas
tindo a abertura de novos tempos pela ação humana. O Tempo próprias riquezas; a ordem natural das coisas indica a necessida-
adquire, gradualmente, o caráter de progresso e conquista, en- de de domínio dos mais evoluídos sobre··os menos evoluídos.
tendimento que será definitivamente consolidado na Primeira As próprias igrejas cristãs assumem esse conceito de tempo, ca-
Revolução Industrial. sando o sentido agostiniano de predestinação com a visão

80 81
ll1 ;;u
~ o
O""
.3o. evolucionária de tempo, o que levou, por exemplo, à implanta- a passividade da recepção. Sobre essa questão candente, vale a ro
;:::i.
2 o
(lJ ção do apartheid na África do Sul, a partir de colonizadores for- pena compulsar os trabalhos de Paul Virilio. 24 ?>
ro ?:J

e mados no interior da Igreja Episcopal holandesa. A contemporaneidade apresenta esta dialética, traduzida o.
<Cl! ro
e
:e No século XX, dá-se uma revolução no entendimento da pelo conflito de descobertas e teorizações que podem propiciar )>
lO
(lJ
e
o.
o
o.
temporalidade: o tempo se amálgama ao espaço, a partir de Eins- a construção de uma nova auto-imagem da humanidade, crian- ..
õi"

E tein; o tempo interior e não percebido é trazido à luz por Freud; do, concomitantemente, tecnologias que impedem o ser humano
2
o
-o
a atemporalidade do inconsciente coletivo é desvelada por Jung; de transitar para uma visão mais abrangente e transformadora
ro
..e
u
a duração interior é desvelada por Bergson; a unicidade da histó- de si e do mundo, dado o substrato estritamente econômico que
(lJ
q::
ria é substituída pela pluralidade da história, principalmente a informa essas práticas tecnológicas.
ro
-o
ll1
partir dos trabalhos de Lefort; e as dimensões utópicas da mo-
o
..e
tE dernidade apresentam uma crise de seu papel de centro atrator
ll1
o do tempo existencial e histórico.
Como contraponto a esse desvelamento do tempo ou dos
tempos, instalam-se ordens sociais e técnicas de comunicação e
informação que aniquilam o tempo e o espaço. Pela televisão,
pela informática, pelos satélites artificiais, o tempo e o espaço
já não mais existem, sendo fruídos instantaneamente entre as
paredes das casas e escritórios. Não se olha mais a paisagem
pelas janelas, mas pelo écran dos televisores e computadores. O
que acontece a milhares de quilômetros está dentro de sua casa
on fine. Isso provoca a sensação de participação, sub-repticia-
mente imobilizando o ser humano, pela avalanche des-hierar-
quizada e desordenada de dados transmitidos com a mesma
ausência de emoção, ou plasmados por uma emoção mercanti-
lista, que transforma os fatos em faits divers, 22 mostrados como
cenas, como mininovelas, criando a sensação e a comoção pas-
sageiras, exaurindo-se aí. A humanidade assistiu ao ataque dos
americanos ao Iraque pela CNN 23 como se 1osse ~
um vz'deogame,
participando do jogo, cujas regras eram tramadas por quem
transmitia as mensagens.
O tempo e o espaço instantâneos geram informações dire-
cionadas, ao mesmo tempo que, por sua quantidade e uniformi-
dade emocional, imobilizam o espectador, que se compraz com

82 83
Há um romance de Milan Kundera, A lentidão, que mostra
bem a diferença de atitudes, valores e rituais entre o século XVIII
e a atualidade, tendo como critérios comparativos a lentidão e a
velocidade. No século XVIII, os tempos e modos eram outros,
as histórias eram diferentes, os raciocínios e os afetos desenvol-
viam-se de forma diversa e um requinte rococó perpassava as
condutas da aristocracia européia. Hoje, a velocidade impõe a
fruição imediata, os contatos passageiros, a superficialidade, a

85
Vl
~
.ao. ostentação e o cênico sem significação mais profunda ou, ao Fossem só esses os efeitos da velocidade, ficaríamos
2 zes. Mas a velocidade também traz o acúmulo de informações
(J) menos, cuidadosa.
m
'ü Essa velocidade, que atingiu a intimidade das pessoas, eri- que, em lugar de aumentar as consciências, por saturação as em-
e
<(J)
e
giu-se em critério de "evolução": é mais evoluído um país ou um bota, levando à paralisia e à impotência do telespectador.
t'.(J)
o.
povo que produz mais rapidamente, que armazena e processa Além disso, as informações velozmente divulgadas o são
o
o.
informações mais velozmente e que responde, imediatamente, dentro de um processo absolutamente des-hierarquizado, em que
E
2 notícias, cenas e fatos se sobrepõem uns aos outros sem qualquer
o
-a
aos estímulos e desafios que lhes são postos. Logo, velocidade é
m
poder. 25 juízo crítico, mudança de tom, significação ou sentido. A indife-
.r::
u
(J)
<;:: Por outro lado, essa velocidade é necessária para manter a rença ética é o resultado, o que implica cidadania controlável.
m
-a
consistência e a lógica que presidem as relações internacionais sub- A velocidade eletrônica também traz o controle invisível
Vl
o
.r::
tE metidas a um constante processo de guerra pelo domínio e sobrevi- do cidadão, pelas câmaras de TV das seguranças dos prédios,
o
Vl
vência e pelo lucro e poderes otimizados. Daí Virilio ter encarado a pelos bancos de dados de clientes, que os recortam em categorias
velocidade como uma característica da militarização do social. 26 complexas, para serem fruídos por empresas, pela informatiza-
Se a velocidade é marca da guerra entre poderes político- ção de pagamentos de tributos, de inadimplência, de processos
econômicos, ela também é uma formadora e informadora de cíveis e criminais, de fichas cadastrais, de perfis de consumo, dentre
subjetividades, com evidentes efeitos de ordem psicológica, so- outras formas. Assiste-se a um duplo processo de desvendamen-
cial e política, na medida em que, por via do cênico, faz da vida to e paralisação, o que leva ao isolamento, à apatia e à considera-
do cidadão comum um suceder de espetáculos des-hierarquiza- ção da vida como um suceder de cenas mais ou menos fortes
'
dos, que só geram o comodismo, a paralisação e a indiferença. 27 mais ou menos ensejadoras de emoções ou realizações virtuais
Essa velocidade acelerada é sintoma da presença de uma de desejos.
tecnologia eletrônica e telemática que superou a artesania e a tec- Outro ponto a ser ressaltado é o da relação entre a veloci-
nologia mecânica. A velocidade contemporânea destruiu, no co- dade e o consumo. A velocidade está ligada também à produção
tidiano, o sentido do tempo e do espaço. Hoje, assistimos pela de artefatos alimentadores de criação de necessidades. As coisas
televisão a um fato acontecer no mesmo tempo em que se desen- perdem seu valor histórico e sua durabilidade e valem como
rola e a distâncias dantes inconcebíveis. moda, como último modelo, para serem consumidas em curto
Lembro do ataque das forças americanas contra o Iraque, espaço de tempo, independentemente de sua utilidade. Logo, a
transmitido pela CNN, como se fosse um videogame, onde bolas velocidade é um instrumento de manutenção e crescimento do
de fogo caíam ou não sobre os alvos determinados, sem que se mercado. Isso implica eliminar a dimensão histórica das pessoas
soubesse quantas vítimas eram feitas e quais as devastações reali- e a criação de valores tópicos e intantâneos para as mercadorias,
zadas. Isso acontec~u instantaneamente e a realidade de um país além de acelerar as tarefas produtivas dos consumidores, que
distante adentrava, pelo écran de nossas televisões, nas salas de necessitam trabalhar mais para adquirir os bens aceitos, pois suas
nossas casas. Tempo instantâneo e distâncias eliminadas. Espaço- posições sociais e identidades são dependentes desses sinais ve-
tempo instantâneos. 28 lozes de aggiornamento.

86 87
(/) ;;o
o
~ O"
íll
.3o. Mas, se a velocidade potencia a alienação, ela também en- distância entre as práticas sociais como o direito e as ;::i.
o
2
(j) gendra um efeito contraditório, por disseminar dados instantâ- questões aqui tratadas é enorme. direito, agora, está entrando, '?'
f\J !1

e
neos em todos os recantos do mundo, o que pode ensejar efeitos timidamente, na era da informática, criando bancos de dados, o.
<Q) íll
e
t'.(j) contrários identificados por atitudes de resistência e de união de processando textos e agilizando decisões. O mais grave é que os )>
lO
e
o.
seres humanos que, antes, nunca poderiam se conhecer. A resis- problemas aqui tratados ainda não são tematizados juridicamen- ~·
o
o.
E tência, a busca de novas alternativas, conceitos e práticas e novos te, pois esta face do saber humano ainda se assenta na artesania,
2
o padrões civilizatórios saltam as fronteiras e urdem outros tipos ou, no máximo, na produção mecânica, ainda se referenciando a
"O
f\J
..e de organização e disseminação de valores diferenciados. Basta um cenário do passado, não sendo apto para perceber e operar
u
(j)
i:;::: aqui, como exemplo, ressaltar o papel da Internet na formação de em quaisquer dos lados da velocidade e, muito menos, interferir
f\J
"O
(/) redes de pensadores, cientistas, artistas, filósofos e políticos, que nas conseqüências deletérias dos aspectos perversos dessa dimen-
o
..e
li= buscam alternativas para o mundo em crise . são fundamental da sociedade contemporânea.
(/)
o O outro efeito dialético da velocidade tecnológica é o da A forma, o rito, os tempos e os procedimentos do direito
negação da massificação. Chega a ser paradoxal perceber que são, no máximo, do século XIX e, assim, ele não tem condições
tecnologias que se originaram da procura do atendimento e in- nem de reproduzir os aspectos sombrios da velocidade, nem de
fluência em massa levaram, pela saturação das ofertas, ao apare- elaborar contra-discursos e contra-práticas, apropriando-se do
cimento de nichos diferenciados que vão emergindo. Esses ni- instrumental tecnológico para isso.
chos são identificados por seus gostos, crenças e práticas, o que As redes, a des-hierarquização e a desformalização ainda
leva à necessidade de produção de informação para eles, signifi- não são o forte do direito contemporâneo, pois a velocidade
cando o engendramento de redes diferenciadas, que se opõem à não tem fronteiras e o direito tem. A velocidade não tem ritos e
massa amorfa, enriquecendo não somente o individualismo nar- o direito os cultua. A velocidade constitui fatos e problemas e o
císico, mas também tornando consistentes as teias de relações direito os acompanha à grande distância, com muita resistência.
que servem a interesses coletivos alternativos. Esse fenômeno,
certamente, vai engendrar contracorrentes opostas a uma socie-
dade massificada e desigual que procura controlar seus compo-
nentes pelo estímulo à apatia.
A velocidade do mundo contemporâneo também nos traz Perante a tecnologia e seu papel na contemporaneidade, não
novidades desnorteantes. Os aviões e mísseis são as facetas mais podemos assumir uma posição maniqueísta, nem exorcizá-la como
observáveis pelo senso comum. Os estudos sobre a luz, os acele- um monstro que domina, devora e impessoaliza, nem entroni-
radores de partículas desvendam velocidades incríveis e indicam zá-la como a panacéia para a superação dos problemas da hu-
novas naturezas e relações dos fenômenos, exigindo novas lógi- manidade.
cas, novas dimensões da matéria, que suscitam a quebra de en- Como todo ser, ela tem seu lado luminoso e seu lado escuro.
tendimentos e epistemes que tradicionalmente sustentavam nos- preciso não confundir ciência com tecnologia, pois esta é des-
sa visão de mundo. dobramento concreto daquela, em diálogo com as necessidades,

88
;o
U)
o
O'"
~
(D

.3D. demandas e relações das sociedades. A tecnologia desenvolve representado pelos artefatos tecnológicos. Há um fosso de en- ;:::\.
o
2
uma relação dialética com a ciência, dá suporte a ela, mas não é tendimento entre o mundo do dever-ser jurídico e a ciranda es- ":!>
<lJ ti
ro
'ü ciência. A visão que funde a ciência à tecnologia é fruto de uma tonteante da tecnologia. D.
(D
e
<<lJ
e perspectiva primária de evolução, que desemboca no cientificis- Ela presta serviços, elabora instrumentos de resolução de )>
l.Cl
t'. e

<lJ
D.
mo enquanto culto do relativo absolutizado. problemas, constrói novas relações entre os seres humanos, au-
o
D.
Falar sobre tecnologia abarca um conjunto de facetas, prin- menta a velocidade das informações, torna os cidadãos mais pas-
E
2
cipalmente se abandonarmos a visão linear do mundo e o deter- sivos, faz emergir novas ideologias e imaginários, urde novas for-
o
-o
ro minismo tão caros àqueles que desejam simplificar o observado mas de dominação e concretiza práticas iatrogenéticas que, para
.e
u
<lJ
t;::
e o vivido. atender a uma demanda, criam em sua esteira um rol de proble-
ro
-o
Para nos aproximarmos do tema, temos de abandonar o mas ainda mais graves. Podemos, por isso, dizer que a tecnologia
U)
o
~ senso comum dos técnicos e mesmo o de certos cientistas que é construção e destruição, resolução e criação de problemas, atra-
t;::

o
U)

encaram a tecnologia como neutra, a depender seu bom ou mau so e avanço, liberdade e repressão, igualdade e exclusão. Como
uso dos decisores que a utilizam. o próprio ser humano, ela é como Janos, apresentando dois ros-
A tecnologia está dentro de um sistema que abrange di- tos, duas faces contraditórias e antitéticas, que caminham junta-
mensões produtivas, de mercado, de culturas e de imaginários. mente com as transformações das sociedades.
Logo, ela não pode ser neutra, pois é expressão de um conjunto Não há como negá-la. Ela é um dado do mundo com o
de relações móveis que giram e se readeqüam em função das qual temos de conviver, no qual devemos interferir e que deve-
mudanças operadas nas diversas partes desse sistema. A tecno- mos reorientar, coibir, potenciar e, principalmente, conhecer.
logia está assentada nas relações concretas, não pode ser consi- Outro aspecto que temos de levantar é o de que a tecnolo-
derada neutra ou avalorativa. Ela expressa poderes, valores, en- gia se instaurou no ambiente, com suas obras, interferências e
tendimentos de mundo, concepções antropológicas, econômi- detritos. Quando tratamos de meio ambiente, precisamos ob-
cas e científicas de determinados momentos da história. servar níveis de naturalidade, pois é raro encontrar um ambiente
Por isso, não podemos a prio,ri ser a favor ou contra ela, absolutamente natural. Em qualquer lugar a antropia29 está pre-
nem julgá-la de fora, como se a ética fosse normatizá-la externa- sente por seus artefatos ou pelos efeitos de seus artefatos, o que
mente. A questão tecnológica, em seus aspectos éticos, políticos, suscita problemas ainda mais complexos a serem resolvidos.
ambientais ou sociais deve ser tratada por dentro, por quem a Além disso, não sabemos se é mais conveniente tratar a
cria, opera e recebe seus efeitos. Enquanto isso não for feito, as tecnologia no singular, como uma tendência humana de criar ar-
regras sociais consideradas boas não atingirão a produção tec- tefatos para facilitar a vida ou para resolver problemas, ou ainda,
nológica, porque a linguagem cotidiana não tem interface com a para preencher demandas criadas em imaginários, uma vez que
linguagem tecnológica no que ela tem de fundamental. Os instru- ela se apresenta, concomitantemente, de modos diversos, mais
mentos jurídicos, muitas vezes referenciados a um mundo de tec- ou menos complexos, mais ou menos agregadores.
nologias ultrapassadas ou esgotadas, não conseguem operar nes- Em países como o Brasil, convivem, ao mesmo tempo, tec-
se mundo mutável, de curtas existências e de velocidade crescente, nologias agrárias primitivas, tecnologias industriais mecânicas e

90 91
Vl ;;o
~ o
O"
.3Cl.. tecnologias eletrônicas e telemáticas contemporâneas. Elas não deve ser substituída pela produção orientada
(1)
ri-
2 o
<lJ só traduzem modos produtivos diversos, mas concepções e en- f erenciados. p
flJ
!1

e tendimentos de mundo diferenciados. Se observarmos a UDR, Os conceitos acima expressos levam, necessariamente, à dis- Cl..
<<JJ (1)
e
~ hoje rediviva, veremos que associações como essa têm um modo cussão sobre o tema da globalização. Como a discussão envolve )>
\Q
<lJ e
Cl..
de ver o mundo, o poder, a propriedade e as relações humanas acirrados discursos, é preciso tratá-la com cuidado, para evitar ca- õi'
o
Cl..
'
E diferente, por exemplo, do modo de ver do ex-ISEB, 30 que re- rimbos desnecessários. Assumiremos uma dialética da complemen-
2
o
"O
presentava o desenvolvimentismo, a crença na industrialização taridade para analisar o problema. Não mais uma lógica da identi-
flJ
..e
u
nacional e no Estado salvo pelas chaminés, a se usar a expressão dade, nem uma lógica da contradição linear, mas um entendimen-
<lJ
;:;::::
flJ
de Toffler. Se encararmos a concepção de mundo de uma em- to dos fenômenos como apresentando, concomitantemente, mais
"O
Vl
o
presa criadora de softwares, veremos que ela trabalha em outra de uma natureza, assim como a luz, que é ao mesmo tempo cor-
..e
;;::: freqüência e velocidade, sob outros fundamentos, com outras púsculo e onda, podendo ser experimentada, medida e controla-
Vl
o fronteiras e concepções de produção. Essas três facetas tecnoló- da sob um ou outro lado, continuando a ser a mesma luz. Apro-
gicas convivem tensamente neste país, que Cardoso de Mello um fundaremos mais esta questão em outra parte deste livro.
dia chamou de Belíndia. A globalização é um fenômeno de aproximação entre gru-
A primeira forma tecnológica está plantada na pura exclu- pos humanos que engendram relações produtivas, econômicas,
são, quando crê firmemente na propriedade absoluta, na desi- financeiras e políticas, a partir de interesses complementares de
gualdade entre os seres humanos, na hierarquia de gêneros, na dominação ou cooperação. Quando a tecnologia permite a co-
violência como forma de preservação de privilégios encarados municação instantânea e a informação, por todo o globo terres-
como direitos. tre, potencializa a presença de grupos econômicos em todo o
A segunda forma tecnológica está assentada sobre uma vi- mundo, que objetivam lucros, investimentos, vantagens perenes
são de progresso constante, numa clivagem radical entre o mun- ou momentâneas, interferências políticas, introdução de novas
do antropológico e o mundo da natureza, na linearidade absolu- práticas ou pressões em favor de seus interesses.
ta da história, na divisão do mundo entre capitalistas e trabalha- Essa forma de globalização, evidentemente, é deletéria. Ela
dores, no mercado como a mão invisível que vai regular as rela- nada mais é que a hipertrofia do monopólio dos grupos econô-
ções econômicas, sociais e políticas. Esta visão se origina na Pri- micos metropolitanos em seu afã de homogeneizar o mundo de
meira Revolução Industrial e é, ainda, dominante. acordo com seus interesses. globalização, assim entendida,
A terceira forma tecnológica expressa outras visões: o co- abrange dois aspectos essenciais: a hegemonia e a uniformiza-
nhecimento é poder, a informação vale mais que a propriedade ção. Ora, se a globalização se traduzir tão-somente como forma
de coisas, a sociedade é complexa e entretecida de interesses e de ordenar o mundo segundo projetos hegemônicos, ela é a ne-
modos de viver diferentes, as fronteiras políticas clássicas não gação da globalização, já que a constitui como uma imposição
existem, a qualidade do trabalhador pode se tornar o capital mais de um novo provincianismo dominador, que não somente im-
importante, a velocidade e as redes é que possibilitam nichos de põe uma prática econômica desigual, como também comete, em
sobrevivência e crescimento da produção, a produção em massa nível planetário, um etnocídio global.

92 93
VJ ;o
~ o
O"'
.3o.. Em essência, é o mesmo antigo liberalismo potenciado pela (j)
alguns que essa movimentação é pequena. _,_,.._,L.._._'-_._V'.._, ;:i.
o
2
Q) velocidade tecnológica. De global, somente resta a reprodução volvidos demonstram o crescimento vertiginoso troca '!>
ro !1

e das táticas e estratégias semelhantes de dissolução de diversida- conhecimentos e práticas, tendo como valor fundante a humani- o..
<QJ (j)
e
t'.Q) des e de identidades em todo o planeta, culminando em uma dade, ente uno mas diversificado, que abarca culturas da externa- )>
u::i
o.. e
pastosa e insípida cultura global, que nada mais é que o moldar lidade, da interioridade, da agressão e da solidariedade, práticas ~·
o
o..
E dos cidadãos no sentido _de um desenraizamento cultural e de de ódio e de compaixão. Essa nova onda é o subproduto cons-
2
o
"'Cl
um egotismo alienado que o torna um consumidor e um ser ple- trutivo das interferências neocoloniais da globalização e, por isso
ro
.r:
u
no de expectativas de ter e de viver os sonhos vendidos pelas mesmo, poderá ser um dos instrumentos para sua superação.
Q)
;:;:::
ro
províncias hegemônicas. O mundo contemporâneo avançou para limiares decisivos,
"'Cl
VJ Usando da mesma lógica da complementaridade, só pode- que demonstram uma saturação de complexidade. Essa satura-
o
.r:
ti= mos pensar a unidade planetária se respeitarmos a diversidade, ção pode levar a um salto para um patamar novo de relações
VJ
o pois só podemos entender unidade como uma composição sis- entre o ser humano consigo mesmo, com os outros, com a Terra
têmica da variedade, a unidade de um só, no mínimo, é totalita- e com o universo, ou pode levar a uma implosão da própria es-
rismo. pécie. A tecnologia está nesse limite: ou ela dialoga com a natu-
Mas essa mesma globalização apresenta uma outra faceta. reza, ou inviabilizará crescentemente a vida humana. Ou ela se
De qualquer modo, ela propicia o conhecimento maior entre os direciona para a paz, ou um acidente técnico ou conflito primiti-
povos, a consciência dos problemas do globo. Mesmo limitada vo levará a um enfrentamento nuclear não esperado, mas com
pelas técnicas de desmobilização dos meios de comunicação, ela maior risco, neste mundo pluripolar em que vivemos.
propicia o estabelecimento de pontes entre os diferentes, os in- Nossas cabeças, principalmente as jurídicas, estão no cená-
surgentes, os novos adeptos de uma outra contra-cultura hoje rio mecânico dos ordenamentos nacionais, em uma conjuntura
emergente. Isso é facilitado pela tendência do mercado a se seg- em que emergem novos poderes, dominações e modos de seme-
mentar, especializar-se, tornar-se interativo, por meio de novas ar a transformação. É interessante notar que a tecnologia, que
tecnologias. direcionou a velocidade segundo uma curva assintótica, no qua-
Essa aproximação, mesmo conflitiva, dos seres humanos dro das relações e transformações do mundo, é efêmera. ar-
aponta para a possibilidade de uma mundialização, de uma apro- tefatos tecnológicos assumem a mesma velocidade na duração
ximação pacífica, diversificada e tão veloz quanto os instrumen- de suas existências e se tornam obsoletos e sucateados rapida-
tos hegemônicos. Essa aproximação não tem fronteiras e está mente. A economia da tecnologia de ponta contemporânea é de
para além das instituições oficiais, mas surpreendentemente agrega alta disputa e de curta vida, há produtos que têm seu pique de
aqueles que estão pensando e problematizando o conhecimento interferência apenas por semanas.
de fronteira, a possibilidade de outros padrões civilizatórios, o Para nós, que vivemos na periferia, o impacto econo-
diálogo transdisciplinar, a paz e a urdidura de novos saberes. mia é brutal. A nova tecnologia não mais ·requer mão obra
São teias, redes ou, como querem alguns, neblinas que vão se barata, ela exige conhecimento e qualificação. Produzir conheci-
construindo, usando da tecnologia para saltos em outras direções. mento e saberes-poderes não demanda grande concentração

94
;;o
VJ o
~ o-
ro
3o.. quantitativa de recursos humanos, mas equipes concisas e alta- ;::i.
o
2 "!>
(lJ mente treinadas para tanto.
?':l
C1J
·u Não basta dizer que a periferia deve investir em educação. Lastreada nos séculos e a inteligência cotidiana o..
e (1)
<(lJ
e preciso uma discussão rigorosa sobre qual a educação que deve do Ocidente vislumbra a matéria sob o ângulo do infinitamente )>
lQ
t'.(lJ e
o.. ser ministrada. Enquanto as escolas forem uma reprodução da grande e do infinitamente pequeno, Dido isso regido pela Segunda Qj"
..,
o
o.. linha de montagem e não forem interativas, no sentido de traba- Lei da Termodinâmica. Assim, nem a humanidade nem a Terra
2
E ' '
o lhar com as aptidões diferenciadas de seus estudantes, elas, no nem o Sistema Solar podem ter esperanças. Haverá uma crescente
-o
C1J máximo, formarão pessoas incriativas, que podem ter alguma perda de energia, que levará o cosmos à entropia, à nadificação.
..e
u
~
(lJ
possibilidade de viver na atual configuração sociopolítico-eco- Essa visão gerou uma concepção mecânica do universo,
C1J
-o
nômica, mas não terão oportunidade de saber criar e ousar neste com rígidas leis matemáticas que o regiam de modo determinis-
VJ
o
..e
<.;::: mundo em velocíssima transformação. ta. Como as ciências humanas hauriam das naturais seus modelos
o
VJ
A teia planetária democratiza as informações e possibilita e métodos, além dos cenários dentro dos quais a espécie humana
o cultivo da diversidade nos países periféricos. Isso significa in- transitava, a realidade, para elas, estaria submetida a leis históri-
vestir, em âmbito local, em experiências novas que reflitam o cas inexoráveis, que impeliriam, pelas suas forças) as sociedades
modo de viver das comunidades, estimulem a cooperação e a em determinadas direções (ou direção). Para que essas leis ope-
solidariedade e possibilitem uma prática concreta de cidadania. rassem, era preciso trabalhar com poucas variáveis, muitas delas
O Estado-nação tende ao enfraquecimento, quanto mais se verdadeiras, mas que, se generalizadas para o todo, incidiriam
mantiver centralizador, quanto mais acreditar ser fonte onipo- em graves deformações interpretativas.
tente de regras e políticas para todo seu território. Isto não é Autores como Teilhard de Chardin e Ilya Prigogine, cada
nenhum anarquismo romântico, mas a tendência de uma nova um a seu modo, indicaram um outro movimento da matéria em
'
racionalidade político-econômica que tenha a flexibilidade sufi- contraposição à entropia: sua capacidade de se organizar em sín-
ciente para estimular as habilidades regionais e a prontidão de teses cada vez mais complexas e cada vez mais conscientes. Esse
respostas para enfrentar a velocidade das transformações do processo não é linear, ele pode dar errado, recuar, bifurcar-se ou
mundo. mesmo implodir.
Podemos dizer que a tecnologia, a se usar a terminologia Por isso, quando tratamos da sociedade contemporânea,
psicanalítica, é tanática e erótica, vida e morte, construção e des- da planetarização, da velocidade, não é mais possível assumir
truição, avanço e recuo, consciência e alienação, e é riqueza e ex- um modelo determinista superficial e linear, pois operamos com
clusão. sistemas interimplicados, mutáveis, que saltam ou se dissolvem.
Cabe a nós agirmos em uma direção ou outra. Se cultuar- complexidade crescente é característica fundamental, fenôme-
mos a tecnologia como um novo deus, o resultado será a exclu- no perante o qual devemos aguçar nossos modelos, ou até ter
são ou o fim da humanidade. Se potencializarmos suas habilida- alguma previsibilidade perante as estruturas caóticas.
des em outra direção, estaremos propiciando uma reorientação Ora, as sociedades contemporâneas tendem a se comple-
para a humanidade. xificar cada vez mais, e não temos condição de explicar o todo

9
por processos de ajustamento, por lutas de grupos ou classes patamares cada vez mais complexos, nos quais há um diálogo cada
(jJ sociais, apesar da importância desses métodos para o entendi- vez mais intenso entre os elementos que os compõem. desse diá-
ro

e
mento de fenômenos parciais, pois a teia de relações-informa- logo que a consistência do sistema e sua sobrevivência emergem. Se
<(JJ
e
t'.(jJ ções transcende as explicações mecânicas ou generalizantes. as partes se ajustam dinamicamente, os sistemas tenderão à maior
o.. Há necessidade de abandonarmos a linearidade para expli- complexidade e à maior consciência, nos limites do conjunto, mas
o
o..
E car o mundo do dado. A visão cotidiana de tempo, história e su- se as partes não forem aptas a se relacionar nessa complexidade cres-
2
o cessão reúne em um só philum fenômenos que se transformam, cente, a tendência, no limite, é a implosão do sistema.
"O
ro
..e saltam, implodem ou se plenificam, dimensões que interferem umas Os sistemas do universo, seja em que nível de complexida-
u
(jJ
<;:: nas outras, mas guardam suas especificidades. O mundo é mais de estejam, vivem, em seus limites, uma bifurcação, ou se com-
ro
"O
{/)
uma rede ou redes superpostas do que uma linha evolutiva única. plexificam consistentemente ao máximo de suas potencialidades
o
..e
~ Além disso, para compreender os fenômenos, devemos e, no limiar, saltam para novas ordens mais complexas e qualita-
{/)
o olhar com cuidado para a questão da continuidade, que, embora tivamente mais abrangentes, ou, por conterem atritos irredutí-
presente em certos nichos da vida natural e social, não é padrão veis ou arestas intransponíveis, no limiar, implodem e se nadifi-
nem fundamento para a explicação de dimensões mais abran- cam, deixando para outros sistemas o reinício dos caminhos para
gentes. No fundo, hoje, com o conhecimento que amealhamos, sínteses mais conscientes.
podemos dizer que a natureza dá saltos e, se não os desse, não Estas considerações repercutem na humanidade, que es-
mais existiria, o mesmo pode ser dito das sociedades humanas, queceu, pela leitura da racionalidade ocidental, que é formada
nas quais detectamos saltos completamente inesperados, a se usar por seres da natureza que têm um papel a cumprir no movimen-
o instrumental epistemológico clássico. to cósmico, e que a divisão entre mundo natural e antropológico
Outro conceito que está em jogo é o da causalidade, como é mais didática que ontológica. O humano não é um acidente ou
conexão perpétua entre causas e efeitos, que liga a primeira causa um acaso fortuito. Ele é fruto de uma complexificação que ge-
não causada até o último efeito antes da entropia final ou da pa- rou um ser que pensa, que cria linguagens; em suma, um ser que é
rusia. Assim como percebemos relações acausais no mundo o próprio cosmos se autodesvelando.
quântico, também podemos encontrá-las nos fenômenos sociais Esse ser não somente desvela, como também cria, e suas
e naturais em nível macroscópico. A informação, a sincronicida- criações ocupam o espaço intermediário entre o natural não to-
de e o caos apontam para os limites do uso da causalidade para cado e o humano. São artefatos que fazem parte do meio. A con-
dar conta dos fenômenos que nos são postos. Em certo nível de cepção de meio ambiente não abrange somente a natureza, mas
complexidade, a articulação lógico-causal faz sentido. Em níveis também a natureza recriada pelos artefatos humanos. A relação
mais complexos, temos de trabalhar com instrumentos epistê- homem-natureza tem de levar em conta a relação homem-artefa-
micos que podem ou não usar da causalidade, ou podem, con- tos-natureza, em tudo o que isso possa implicar de perverso ou
forme a situação, negá-la. de transformador. 31
De qualquer forma, o que a ciência nos tem mostrado é A complexidade, desse modo, ainda é maior, pois os seres
que, ao lado da entropia, os sistemas tendem a se organizar em humanos criam mediações e interferências na natureza da qual

98
(/) ;;a
o
~ O'
.3o. participam e engendram mediações lingüísticas, comunicacionais, com fronteiras, com dados que nunca nos serão desvelados, o que
CD
;:+
o
2
políticas, tecnológicas e simbólico-financeiras nas relações com significa dizer que o mistério é uma presença constante e ele pode !>
ro ?J

e os outros seres humanos. aparecer como absurdo, acaso e non sense, ou como a probabilidade o.
<(!J CD
e
t'.Q) As contradições entre essa complexidade e as estruturas de outras ordens, conexões e dimensões às quais não temos acesso. )>
l.O
e
o.
institucionais que pretendem regulá-la podem ser delineadas da É a partir deste quadro que devemos tentar encontrar algum ~·
o
o.
E seguinte forma: a complexidade é uma teia, uma bruma volátil, caminho e veredas de sentido para dar conta de nossa situação.
2
o
'D
enquanto as estruturas institucionais são hierárquicas; a primeira
ro
..e
u
é descontínua, as segundas pretendem a continuidade; a primeira
Q)
r;:: é caótica, as segundas têm a pretensão de ser geométricas; a pri-
ro
'D
(/) meira é pro babilistica (e até mesmo não provável), as segundas A ciência, que se tornou o intrumento das certezas e da
o
..e
tE se entendem como determinadas e determinantes; a primeira é segurança da modernidade, vai se transformando no instrumen-
(/)
o causal e acausal, as segundas operam segundo os princípios da to da negação desse entendimento de senso comum, que é a base
causalidade; a primeira é totalizante, as segundas são parciais, ideológica para relações concretas entre os seres humanos, na
embora com pretensões totalizantes. óptica dominante.
A questão da totalidade, quase sempre, foi vista sob o ân- O ufanismo arrogante do cientificismo do século XIX foi
gulo do externo, do fora, do infinitamente grande ou pequeno, substituído pela posição de perquirição de novos fenômenos, de
sem grandes preocupações com a internalidade dos seres que abstrações e relações que reaproximam as ciências da filosofia. 33
aparecem. Internalidade que vai se ampliando, seja como arqui- A compartimentação entre os saberes científicos, tão cara aos
vo das tentativas materiais de complexificação seja como arqui- neopositivistas lógicos, dá lugar ao diálogo entre as diversas ci-
vo de experiências vivenciais e não vivenciais que vão integrar a ências. É hoje prática comum o tratamento multidisciplinar de
psique humana. O ser humano é encarado como uma máquina temas. As questões e os desafios propostos são de tal profundi-
orgânica complexa e uma tabula rasa interior que se renova em dade, que estão exigindo práticas transdisciplinares, com rigor e
cada existência. Há outro viés a ser tratado nessa complexidade: respeito às especificidades dos campos. 34
a do universo inconsciente, das acumulações atávicas, das som- Os conceitos clássicos, a lógica clássica, a temporalidade
bras e da luz que subjazem na profundidade da história cósmica, clássica, a geometrização clássica, a previsibilidade indiscutí-
presente em cada um dos seres humanos. vel, o materialismo sensorial, a epistemologia positivista, a li-
O mundo do dado que está à nossa frente abarca a comple- nearidade, a continuidade, o evolucionismo unidirecionado, o
xidade do sistema natural, a complexidade do exterior ao ho- determinismo, o acaso e a necessidade são rediscutidos por sua
mem, a complexidade dos artefatos criados e a complexidade insuficiência em explicar uma fenomenologia complexa, sistê-
da interioridade humana. mica, interimplicada, construtiva e destrutiva, nadificadora e
Tudo isso ainda está envolto por mais um complicador: os plenificadora.
limites da racionalidade e da consciência humanas. Os denomi- As certezas da ciência iluminista são confrontadas com no-
nados limites de Planck32 demonstram que temos de trabalhar vos dados, que forçam a modificação dos pontos de vista, o

100 101
Vl ;;o
~
o
CT
.3o.. avanço para imaginários paradoxalmente ligados à retomada de despedaçamento de uma harmonia solitária anterior, uma auto-
(!>
;::).
o
2
(]) certas percepções tradicionais. A historicidade do conhecimen- parição traumática, uma mudança de essência. momento '?'
ro ti

e to se amplia para frente e para trás. traumático, o que é expelido, desde as partículas mais simples, o..
<(]) (!>
e
~ O observador neutro é abandonado pelas contribuições apresenta uma dupla natureza: a de se informar e organizar e a )>
lCl
(]) e
o..
que a sociologia do conhecimento nos legou nesse sentido. Mais de desagregar e morrer. ãi'
-,
o
o..
E ainda, tematiza-se, por razões experimentais, a interferência do Esse momento originário dá à energia e à matéria a faculda-
2
o
'O
sujeito no objeto observado, para além das contribuições mar- de de se entropizar, de se esvanecer, segundo o que convenciona-
ro
..e
u
xistas35 e fenomenológicas. 36 mos chamar de Segunda Lei da Termodinâmica, 41 e a de se
(])
q::
Uma nova unidade sujeito-objeto se constituiu. O sujeito organizar em sínteses mais complexas e qualitativamene mais
ro
'O
Vl e o objeto são seres da natureza e da cultura, interimplicando-se conscientes.
o
:!::
ti=: reciprocamente em níveis conscientes e inconscientes. Seres da Perscrutando a questão sob o ângulo teológico, podería-
Vl
o natureza, pelo fato de tanto o observador como o observado mos dizer que a criação, muito mais que um momento positivo, é
pertencerem ao mesmo cosmos; seres da cultura, por ambos se uma queda, o paroxismo da suprema solidão de Deus, que rom-
desvendarem pelos instrumentos cognitivos que eclodem pelas pe seu fechamento simétrico e ensimesmado e cria seu espelho
transformações culturais e científicas. 37 no cosmos. 42 A partir daí, todos os entes são contraditórios, não
As teorias dos sistemas 38 e a dialética da complementarida- somente por terem a possibilidade de saltar para sínteses mais
de39 revolucionam o sentido do ens. altas ou se desenvolver, como também por apresentar facetas
Para compreender melhor o que é aqui afirmado, pontua- que, embora aparentemente contraditórias, são complementares
mos algumas revelações desse novo modo de ser-pensar que emer- e constituem sua natureza. A contradição não mais se põe entre
ge da contemporaneidade do saber. ser e não ser, mas entre ser e outro ser no mesmo ser, como a luz,
que é corpúsculo e onda, sendo a mesma luz, olhada sob um
ângulo ou outro.
Teologicamente, os seres necessitam de Deus e Deus ne-
Tomando por base as hipóteses astrofísicas contemporâ- cessita dos seres, a fim de que Ele tenha a experiência da alterida-
neas, o cosmos conhecido surge contraditório, caminhando no de, para que Ele aprenda a se relacionar com o que está fora
sentido do ser e do não-ser, da simetria e da assimetria, da cons- Dele. Ao tomarmos essa visão como ponto de partida, o cos-
trução e da destruição, do sublime e do terrível, em um contexto mos é um aprendizado de Deus. Aí, Ele vai experimentar o con-
de equihbrio instável e dinâmico, no qual a mudança de uma cons- fronto, as relações, manifestando sua natureza sublime e terrível,
tante poderá desmoronar o todo. 40 como ressalta Jung. 43
O momento inicial não acessível à nossa cognição é um O cosmos, por esse entendimento, é um confronto, uma
momento de desequihbrio, de desarmonia: algo anterior, simé- aposta rumo a sínteses que possibilitem seu autodesvelamento,
trico, bastante em si mesmo, sofre um abalo e explode, sai de si, complexidades que o levam a falar, explicar a si mesmo e saltar
expressando-se num grito infinitamente pungente que traduz o para níveis de autoconsciência maior.

102 103
Vl ;;o
~ o
O'
.ao.. Logo, o universo é um risco, uma tensão permanente rumo contribuições de Boole, com a emergência da denominada
(D
;:i.
o
2
(]) à consciência de si ou à desagregação. Essa tensão se torna mais simbólica ou lógica matemática e a aplicação dessa linguagem ?>
ro ?O

e dramática quando os graus de complexificação e cerebralização ficial em campos novos, como o da norma, tratada pela lógica o..
<(]) (D
e
t'.(]) atingem níveis do saber e do saber que se sabe. Nessa esfera, deôntica. 45 Os pensadores do Círculo de Viena elevam a lógica, )>
l.O
e
o..
chamada por Teilhard de noosfera ou esfera do espírito, 44 os sal- por seu rigor e aprofundamento dos estudos lingüísticos, a instru- ãi'
'
o
o..
E tos rumo à maior consciência dependem da liberdade e descor- mento apto a chegar à verdade ou falsidade das asserções, ou à
~
o
u
tino dos seres dessa esfera, que poderão, por suas condutas his- impossibilidade de certas asserções serem objeto de uma verifica-
ro
..e
u
tóricas, pôr a perder todo o caminho trilhado até eles, o que sig- ção lógica.
(])
;:;:::
nifica o recuo e a implosão desse sistema, ou fazer a humanidade Paralelamente, a partir das preocupações e buscas da Filo-
ro
u
Vl saltar para aberturas maiores, que são aberturas do próprio uni- sofia da Natureza e da Filosofia da História, principalmente no
o
..e
li= verso, avanços rumo a sua autocompreensão. No âmbito do que que se referia ao movimento e à mudança, outros fundamentos
Vl
o é hoje conhecido, a transformação cósmica, em termos de cons- aparecem traduzidos pelo princípio segundo o qual todo ser já
ciência, depende do ser humano, pois só ele faz o cosmos falar e traz dentro de si o seu não-ser, a sua contradição, gerando a de-
se autocompreender, o que significa novos saltos no sentido da nominada lógica dialética, de grande significação nos caminhos
abertura das consciências. do mundo. O ser não é mais idêntico a si mesmo. Sua natureza
Essa visão recoloca no cenário o problema da ética, pois imersa no tempo e/ ou história expressa nesse processo dinâmi-
serão nossas condutas que vão possibilitar ou não a sobrevivên- co sua própria aniquilação. Tal aniquilação não é nadificadora,
cia da humanidade e, como conseqüência, a plenificação ou não pois o ser está dentro de um cosmos teleológico que avança, que
de um philum que nos engendrou, além de atrasar, no âmbito do caminha para sínteses mais altas, conforme as determinações ou
conhecido, o autodesvelamento do universo. sobredeterminações da necessidade. Assim, da antítese destrui-
dora sempre emergirá uma síntese, que é fruto da relação con-
traditória entre a tese e a antítese e que, segundo o princípio dia-
lético da passagem da quantidade para a qualidade, localizar-se-
Outra contribuição trazida pela ciência toca na lógica. A ló- á em patamar qualitativo superior.
gica clássica é construída segundo o princípio da identidade, con- Se, de um lado, essa lógica não pode ser aplicada em fenô-
forme o qual um ser não pode ser e não ser ao mesmo tempo e menos menos complexos, de outro, ensejou avanços no pensa-
sob o mesmo aspecto. O ser é idêntico a si mesmo. Sob a égide mento histórico, econômico e político, principalmente a partir
desse princípio, a lógica trilhou seu caminho de aprofundamento, de Marx, que enovelou nessa metodologia o idealismo alemão,
tornando-se, com a matemática, o instrumento mais valioso da os economista ingleses e as utopias construídas pelos pensado-
validação metodológica, seja por não conter semias ou poder abran- res libertários de seu tempo. Foi essa a forma que Marx encon-
ger todas elas, seja por ser dedutiva, o que impede a introdução de trou para dar um cunho científico às lutas no sentido da constru-
qualquer variável fática ou superveniente em seus procedimentos. ção histórica das utopias igualitárias e às construções conceituais
Essa lógica da identidade vai se sofisticando a partir das e explicativas para viabilizá-las.

1 105
;:o
o
O"
ro
A contradição presidiu o princípio histórico da luta de clas- ;:::i.
o
(jJ ses, que é a expressão dessa lógica universal, que, na visão origi- '?'
ílJ
·c; "!!
e nal, abarcava a natureza e a sociedade. Para tratarmos deste tema, precisamos evidenciar alguns Cl..
<CIJ ro
e
:e Com o tempo, esse instrumento tendeu a se retirar da natu- de seus aspectos: as certezas, a causalidade, as conexões necessá- )>
LO
(jJ e
Cl..
reza, transitando da ontologia para a gnoseologia, quando, mais rias, a verdade e a falsidade, os limites da consciência, a ordem e i.ii'
...,
o
Cl..
E do que o definidor das relações entre as coisas, tornou-se um a desordem, o mesmo e a diferença.
3
o
"O
método para explicá-las.
ílJ
..e
u
A ciência contemporânea, principalmente a física, enuncia
(jJ
q::
um outro tipo de princípio para presidir outra lógica: o ser é um
ílJ
"O
Vl e outro em sua unidade, isto é, o ser tem características ontológi- O universo teológico clássico trabalha com certezas. A ori-
o
~
t,:: cas diferentes, dependendo de como o abordamos, sem perder gem, os processos e as finalidades estão claros, o que torna segu-
Vl
o sua unidade fenomênica. A luz, ontologicamente, é onda e cor- ras as derivações antropológicas, políticas e éticas.
púsculo e pode ser estudada, medida e experimentada tanto en- Para ter essas certezas, três caminhos nos são apresenta-
quanto onda, quanto como corpúsculo. Ela tem duas identida- dos: ou cremos na plenitude da razão, como espelho da mente
des complementares que não são excludentes. de Deus, ou a julgamos tão ínfima que o absurdo do mundo des-
Esse entendimento pressupõe alguns conceitos prévios: o vela a necessária ordem que não conseguimos vislumbrar, tor-
da unidade sujeito-objeto para constituir o fenômeno em recí- nando as certezas fruto de puro ato de fé, ou, aceitando os limi-
proca interferência; o da característica probabilística do mundo tes da razão, lançamos mão de uma fé que não resvale dos limites
do dado; o da organização sistêmica dos fenômenos. do razoável.
Isto significa a superação da linearidade, a contraposição a De qualquer modo, seja qual for a posição que escolhermos,
um evolucionismo simplificado e a admissão de que o mundo para ter certezas, necessitamos de crenças e axiomas, precisamos
do dado é bem mais complexo, com dimensões e processos que nos estribar em algum imutável ou incontestável. Além disso, de-
são infensos a lógicas lineares e a epistemes deterministas. vemos crer na existência de uma ordem explícita, que sinalize, ao
Os seres são multifacéticos, apresentam naturezas plúrimas, menos pontualmente, facetas dessa organização ou processo.
que são desveladas pelo olhar diverso que os atravessa. Além Em nível científico, o mesmo acontece. Para aceitar uma
disso, eles estão imersos em relações não lineares, informacio- ciência que seja apta a chegar a juízos verdadeiros dentro do re-
nais, plenas de fraturas e indeterminação, o que implica constan- lativo, é preciso que acreditemos nos instrumentos epistêmicos e
te risco de saltos para sínteses mais complexas e qualitativamen- tecnológicos que constituem seu aparato e precisamos crer que
te mais conscientes ou implosões que desconstituem os sistemas os fenômenos observados ou que sofrem interferência se dão a
de relações. conhecer em maior ou menor grau.
Esse entendimento ratifica o caráter dramático do cosmos As certezas, para serem admitidas, necessitam de um certo
e a significação de cada elemento na realização de caminhos em grau de geometrização, regularidade e ordem dos fenômenos,
um contexto caótico. uma consistência oriunda da repetição e do controle das variáveis.

106 107
;o
Ul o
~ o-
ro
.ao.. As certezas religiosas transitam no campo da fé e as certe- da causalidade foram circunscritos em seus limites, tanto no se ;::\.
o
2
QJ zas científicas estão sempre postas em xeque, pela natureza mes- refere à natureza dos problemas e fenômenos onde eles são efica- '!>
ro ?J

e ma das ciências, que contestam suas próprias leis, explicações, zes, como também quanto à complexidade do que é tratado. o..
(D
<QJ
e
t'.QJ tecnologias e sua própria episteme. )>
lO
e
o.. ~·
Logo, é a incerteza o marco de nosso tempo. Essa incerte-
o
o..
E za é ratificada pela observação do mundo, que mostra que ela
2 A admissão da existência de um único philum que presida o
o
"O
não se situa somente na forma de nos aproximarmos dos fenô-
ro
..e menos, mas também nos próprios fenômenos, como no caso movimento de certos fenômenos, implica a crença em conexões
u
QJ
.;::
paradigmático do Princípio de Incerteza de Heisenberg. 46 necessárias, como na causalidade. Acontece que os fenômenos
ro
"O
Ul O saber contemporâneo não admite certezas dogmáticas, mais parecem turbilhões do que linhas, apresentando facetas com-
o
:f
q:: cosmovisões acabadas ou explicações definitivas. plementares, naturezas díspares e camadas de profundidade va-
Ul
o riável, o que os torna probabilísticos ou até mesmo singulares e,
raramente, necessários e determinados. Dadas certas condições,
eles podem acontecer, têm maior ou menor probabilidade de
O conceito de causalidade está ligado a uma temporalida- vir à tona, mas nunca certeza, nunca determinação absoluta.
de que antepõe a causa à conseqüência, ou a uma antecedência O universo dos fenômenos é probabilístico e pleno de ines-
lógica da causa em relação à conseqüência. perados, fraturas e acontecimentos singulares. Ele não é homo-
Essa concepção linear que ligava, por um elo necessário, gêneo, é heterogêneo; ele não pode ser, em sua totalidade, cir-
uma causa a uma conseqüência, passou a sofrer erosões vindas cunscrito por categorias globalizantes baseadas na semelhança,
de vários lados: da informática, quando passou a desenvolver pois ele é sempre o outro e pode ser o diferente e o atípico.
sua lógica baseada nos processos de jeed-back, em que a Enquanto estivermos pagando alto preço à lógica das seme-
conseqüência retroagia à causa para corrigi-la; da física e da pró- lhanças e às totalizações típicas do saber do século XIX, não con-
pria epistemologia, quando foram observados fenômenos de seguiremos trabalhar com as diferenças, que são condição para a
bifurcação, onde uma causa poderia gerar dois ou mais cami- própria unidade dos sistemas de fenômenos, pois é a complemen-
nhos ou conseqüências diferentes; da psicologia analítica, quan- taridade das diferenças que dá coesão aos sistemas estudados.
do passou a estudar as conexões acausais, sob a denominação de
sincronicidade;47 e da teoria dos sistemas, quando identificou as
relações entre seus elementos, dando a eles valores informacio-
nais que transcendiam a causalidade, já que expressos em redes A história da verdade indica três direções para esse concei-
pluricomunicantes. to, representadas pelas palavras emunah, alétheia e veritas. Cada uma
A linearidade encadeada da causalidade foi substituída por delas quer dizer verdade, mas seus sentidos são bem diferentes.
teias comunicantes, que, para enfrentar a dinâmica de seus con- Emunah, do hebraico, representa a verdade como revelação,
textos, urdiam as mais variadas relações. A partir daí, os princípios desvelamento vindo da dimensão divina, diretamente ou por

108 109
Ul
~
.3o. Essa dimensão do humano que abrange as probabilidades humana em relação ao seu habitat, um
2
(J) de sentir, perceber, conhecer, conhecermo-nos, explicar, compre- dor de consciências, tanto no que se refere à acumulação m-
ro

e ender, descobrir, validar, descortinar novos imaginários, criar, des- formações e experiências, quanto à pouca duração individual de
<(J)
e
:e truir, fecharmo-nos, abrirmo-nos, chorar e rir, tudo isso tendo quem se informa e experimenta. Logo, um ser novo tem muito a
(J)
o.
como pano de fundo a presença tatuada da vida e da morte, é o percorrer em sua trajetória coletiva.
o
o.
E que impele a humanidade para sua plenificação ou nadificação. O segundo limite é traduzido pelas culturas, que com suas
2
o Não podemos colar essa teia multitramada a um linearis- criações podem estabelecer padrões de relações entre os seres
"O
ro
.e
u
mo economicista, ou a uma determinação pela necessidade, até humanos e destes com o seu meio não antrópico e com o antró-
(J)
i:;::
porque o universo externo não é linear e o universo interior das pico, desencadeadoras de saltos para mais consciência ou para
ro
"O
Ul vivências humanas não obedece a qualquer geometria. recuos ou estagnações.
o
:!:: As situações adversas, em termos sociais, políticos e cultu-
ti:: Podemos, isto sim, dizer que em certas condições a consci-
Ul
o ência tende a se expandir, e em outras ela tende a se reduzir, sem rais, muitas vezes exercem efeitos contrários aos que pretendem
que haja entre as condições e as produções da consciência um produzir. Visões libertárias foram concebidas em momentos de
necessário elo de causa e efeito, ou de estímulo-resposta. Dada a totalitarismo; práticas e produções contestadoras, em momen-
condição A, as respostas poderão ser de B a Z, a se tomar o tos de opressão e repressão; descobertas sobre a interioridade
alfabeto como um universo completo. humana, em momentos de controle intenso das condutas e das
Isso significa que, em condições absolutamente adversas à concepções em torno da natureza e do destino humano. Os limi-
consciência, pode haver produções individuais ou coletivas no tes externos à consciência humana podem ter efeitos díspares e
sentido de sua expansão, até mesmo por um processo de contra- diferenciados nos caminhos de sua construção.
dição que faz a história dos seres humanos saltar. Há um diálogo O terceiro limite invade o âmbito psicológico, embora a
polifónico entre a consciência humana e as condições que lhe são consciência seja uma teia individual e coletiva, em constante mu-
impostas, relação multifacética e polifónica que pode desembo- tação, criando-se e recriando-se, o que impede localizões tópicas
car no perifericamente esperado, no possível, no provável e, seguras para tratá-la, o que não obsta, entretanto, a avaliação dessa
mesmo, no improvável. questão sob o viés da ciência atual.
Apesar disso, as condições tendem a ter uma relação redutora A primeira evidência que podemos encontrar é a de que a
ou plenificadora das consciências em nível do provável, conforme a normalidade psicológica nem sempre é um caminho fértil para o
experiência social e existencial da humanidade tem mostrado. crescimento da consciência, até porque esse conceito está muito
Encontramos limites para a consciência, não como frontei- ligado à produtividade, à aceitação dos padrões dominantes em
ras rigorosamente estabelecidas, nem como lindes intransponí- dada sociedade, ao viver segundo os valores vigentes, que quase
veis, salvo em uma condição, que será tratada mais adiante. sempre não são os mais saudáveis. Desse modo, os avanços de
O primeiro limite é o tempo que preside a duração das consciência ocorrem sempre enfrentandO"·resistências, seja por
existências individuais e coletivas. A temporalidade das vidas, seu conteúdo ou pelos efeitos que poderão gerar, seja pelas
das culturas, das hegemonias, além da pouca idade da espécie pessoas ou grupos que se orientam segundo novos padrões.

112 113
(/)

~
.3Q. Podemos um grande elenco de "anormais" que fize- do que foi enumerado, a atitude
2
a; ram avançar a consciência do mundo: os profetas bíblicos, que normal tende a ser reprodutora e, por isso mesmo, pouco esti-
ro
·o não conheciam seu lugar e que se insurgiam contra os reis, deso-
e
<Q)
muladora dos avanços da consciência. A normalidade é media-
e
~ bedeciam a eles publicamente e davam recomendações e ordens na, é pouco ousada, tende a ser conformista, opera com hori-
a;
Q.
aos seus comandantes formais; Jesus Cristo, que pregava por zontes curtos e, por isso mesmo, engendra a sensação de felici-
o
Q.
E parábolas, quando os textos religiosos eram escritos e lidos no dade, a ilusão da pertinência e a colocação embaixo do tapete
23
o
"'O
interior dos templos, que se dizia rei mas não tinha exércitos, que das questões fundamentais da condição humana.
ro
..e
u
se insurgia contra a sacralidade do Império Romano, mostrando A consciência, para avançar, necessita do diferente, do novo,
a;
4= outro Deus como constituidor do Reino, o que significava a des- do outro olhar e sentir. Isso sempre acarreta a resistência, o pre-
ro
"'O
(/) legitimaçao das autoridades romanas e das autoridades religio- conceito e a inaceitaçao. O que desinstala, fere.
o
..e
t;:: sas judaicas, que pregava o amor, o resgate do viés feminino de Os poderes também exercem, por suas relações com as
(/)
o ver e participar do mundo, em um momento absolutamente consciências, influências de abertura e fechamento. Os pode-
macho da história, em que a força e a dominação eram os sinais res, exercidos em todos os escaninhos da vida social, consti-
de legitimidade; Jacob Boehme, que sem uma formação sistemá- tuem-se saberes, como já afirmava Foucault. Esses saberes-
tica vislumbrou em seus textos herméticos as mais avançadas poderes contribuíram para o desvelamento do ser humano,
construções da astrofísica contemporânea; Giordano Bruno, que na medida em que conheciam para controlar e para estabele-
por seu trabalho, por suas pesquisas e por seu espírito místico cer novas relações e contribuíam para limitar a consciência
deu a lume um pensamento tão importante e contestatório que humana, em função de suas faculdades de permitir, obrigar,
terminou por ser justiçado pela Igreja, que não permitia a here- proibir, punir e premiar.
sia a ousadia e a densidade desconstrutora. Mas também nesse âmbito devemos ter em mente a possi-
'
No campo das artes, os exemplos se derramam, até porque bilidade da insurgência, o surgimento de comportamentos e pen-
os artistas são detentores de uma episteme antecipadora que des- samentos desviantes da ordem. O mesmo comando que oprime
vela o mundo do dado antes que o conhecimento oficial o faça. Os vai gerar a atitude que o enfrenta. Mas os dependentes, os nor-
artistas têm fama de desajustados, de fora do mundo, de poetas no mais, os dominados, os fruidores, os reprodutores de ordens, os
sentido perverso do termo. autoritários, os subservientes, os ocos, os reprimidos e os covar-
A verdade é que a arte pode ser a grande subversão e a poe- des certamente obedecerão aos comandos destruidores, pois eles
sia a única linguagem absolutamente livre e polissémica, assim como são agentes da morte física e da morte das consciências, da desi-
a música é o instrumento que atinge as dimensões mais profundas gualdade de oportunidades, do atraso individual e coletivo das
do ser, as camadas não lingüísticas, os estratos simbólicos, o in- consciências, da destruição das tênues estruturas que sustentam a
consciente em suas representações individuais e coletivas. Lem- condição humana. De outro lado, a vida, com sua riqueza criati-
bremos Safo,Jeronimus Bosch, Gesualdo, Michelangelo, Schumann, va, com sua caótica capacidade de engendrar novas soluções e
Beethoven, Brahms, Baudelaire, Rimbaud, Picasso, Miró, para ci- estruturas resiste, no interior desta aposta cósmica, rumo a for-
tar mínima amostra. mas mais complexas, mais conscientes e mais solidárias.

114 1
Vl ;a
~
o
cr
.3o.. Produzir, produção e trabalho são as palavras mais usa- Os limites da consciência.são dados pelos limites do uni- <D
;:::i.
o
2
das hoje, até porque a produção está em fase de transição e o verso, isto é, em sentido lato, são desconhecidos. preciso res- '?'
ro ?J

e trabalho é cada vez mais escasso. As formas produtivas con- saltar que o caminho das consciências rumo à sua complexifica- o..
<(j) <D
e
t'.Q) temporâneas tendem a exigir, cada vez menos, a mão-de-obra ção passa pela transgressão. O conhecimento maior, a compre- )>
lO
e
o..
coletiva e de menor qualificação. A tendência é de uma produ- ensão mais clara, o descortino de novos horizontes só poderão ~·
o
o..
E ção onde o saber e a alta qualificação se tornam o capital nego- ser atingidos pela desconstrução/reconstrução, e esse é um ca-
2
o
"O
ciável. A conseqüência disso é o desemprego crescente, o dis- minho transgressional.
ro
.e
u
tanciamento entre os países ditos desenvolvidos e os menos Tanto isso é verdade que a norma sempre está presente nas
Q)
<;:: desenvolvidos, o surgimento de grandes hordas de seres huma- relações humanas: normas religiosas, morais, éticas ou jurídicas,
ro
"O
Vl nos sem qualquer direito e excluídos de qualquer benefício da etc., que exercem um papel orientador, regulador, coator e san-
o
.e
ti:: sociedade organizada. Esse tipo de produção, se não forem cionador, no sentido da discriminação entre as condutas boas e
Vl
o criados instrumentos para uma mudança de rumos, vai realizar más, entre os pensamentos bons e maus. As normas exercem papel
no concreto o entendimento nazista que dividia a humanidade indicativo das condutas adequadas em certo espaço-tempo his-
em homens e infra-homens (untermeschen), estes últimos a ser eli- tórico, ao mesmo tempo que se situam como condição desenca-
minados, pelos prejuízos étnicos, sociais e morais que traziam deadora da transgressão de seus mandamentos.
para os primeiros. A norma, como expressão de um momento da consciên-
Nos países que caminham para a chamada terceira onda de cia, um estágio de consistência das relações históricas entre os
produtividade, percebemos o ressurgimento do racismo, do fe- seres humanos, controla a conduta humana segundo seus valores
chamento de fronteiras, da previsão de direitos diferentes para e finalidades e enseja a possibilidade de sua negação, na medida
os de raça superior e inferior, e da demissão dos empregados de em que suscita em seus destinatários a reação da contraprática e
raça inferior. Essa perspectiva é mais assustadora quando está do antidiscurso. A norma é perifericamente freio, mas profunda-
evidente o crescimento dos partidos racistas na França e na Itá- mente liberdade, até porque, sendo linguagem, sofre todo tipo
lia, por exemplo, com possibilidade de se alçarem ao poder. Na de interpretação, que pode, até mesmo, desfigurar totalmente seu
Aústria, eles já compõem a coligação governamental. sentido originário. É o peculiar caso da lex contra legem, onde um
A consciência, como parte do universo, produto de sua procedimento legítimo e formalmente aceito transgride o senti-
constituição, guarda a possibilidade de plenificar-se ou dissol- do original da norma, a pretexto de atualizá-lo, ou de colocá-lo
ver-se, de saltar ou implodir, bem dentro dos marcos cosmoló- em uma nova conjuntura, dentre outras hipóteses.
gicos da entropia ou complexificação, processo que acontece nas Essa consciência tem limites. Ela não pode atingir o que
estruturas dissipativas. está do outro lado do que se convencionou chamar de limites de
Assim, a consciência se apresenta como outra faceta do Planck. A partir daí, é o desconhecido, o incognoscível e irreme-
universo, a faceta interior, a faceta subjetiva, a faceta intersubjeti- diavelmente ignoto. Em suma, o mistério, o que não se dá a co-
va e coletiva, tão ou mais cheia de meandros e camadas do que o nhecer, por ser o limite da consciência, o limite da energia, o
mundo externo a ela. limite da percepção. O resultado disso é que o mistério torna-se

116 117
;:o
Ul o
~ O'
.3o. um companheiro cotidiano do nosso pensamento, desafiando ordem corre o ser ....,,~_. . . . ou
u .... "-'- ..... -'-L-L'--1."' '--'-'-'U''--'--'-'-'-'-'.l..!..l
rD
;:i.
o
2
C]) nossas concepções antropocêntricas positivas ou negativas. As não-ordem: ordens que não tenham as características aceitas '!>
ro ?C1

e
positivas são as que encaram o ser humano como o eixo do uni- são assim consideradas. que dizer do acontecimento único e o.
<(]) rD
e
t'.C]) verso e as negativas são aquelas que encaram o ser humano como singular? Ele, por não ser regularmente observável, isolado, não )>
l.O
e
o.
tão ínfimo e insignificativo que nada tem influência sobre ele, a pertencer a nenhum constructo ordenador e não ser significativo Qj'
'
o
o.
E não ser sua própria vida e circunstância. na regularidade pretendida, é descartado.
2 As regularidades instantâneas do mundo microfísica ou as
o Sobram duas alternativas: somos absolutamente limitados
-o
ro
.e e não temos possibilidade de perceber a ordem implícita ou o regularidades extensíssimas do mundo macrofísico também es-
u
C])
<:;::: caos implícito que aparecem no interior do cosmos e em nossos capam a essa visão de ordem. A primeira, por dizer respeito a
ro
-o
Ul
interiores, 49 ou temos capacidades não utilizadas para captar ou- um mundo instável; e a segunda, por se referir a tempos tão lon-
o
.e
t;:: tras dimensões, outras configurações não perceptíveis pelo atual gos que não podem ser objeto de ordenações perceptíveis.
Ul
o estágio da racionalidade e do conhecimento, conforme revelam As camadas da existência material e espiritual se tornam
as mais recentes experiências sobre estados alterados de consci- cada vez mais indecifráveis, quanto mais nos aprofundamos, não
ência ou de consciência expandida, que procuram, no fundo, re- se subsumindo a ordenações superficiais ou de curta temporali-
encetar o caminho percorrido pelos conhecimentos tradicionais dade. Por outro lado, as ordens são mutáveis. Elas necessitam
acumulados pela humanidade. A segunda alternativa citada po- ser assim para ter alguma eficácia na manutenção de sistemas.
deria imergir no mistério e trazer algum conhecimento para além Logo, captar a mutabilidade fractal dos fenômenos é difícil para
desses limites. Mas isso ainda está em discussão... quem fechou o mundo em regularidades e direções únicas.
Não há limite claro entre a ordem e a desordem, pois isso
pode ser apenas limite entre ordens diferentes, de grandezas dís-
pares. A regularidade não é mais o sinal da ordem. Existem f e-
Somos marcados por um entendimento de ordem que apre- nômenos que não apresentam nenhuma regularidade aparente,
senta um fundo geométrico, regular, repetitivo, linear, necessari- mas que, observados de modo mais aprofundado, vão indicar
amente ascendente e que tem como ponto de partida a sobrevi- tendências e probabilidades e até espaços para o improvável.
vência material. Sempre a economia precede as outras facetas do Não são os atratores regulares que movimentam o mundo. São
humano, enquanto necessidade e mercado. os atratores estranhos 50 que puxam os sistemas e as estruturas.
No âmbito da natureza, nossa visão privilegia as semelhan- O diferente, o atípico, o singular, o irrepetível deve ter lu-
ças e as regularidades, descarta os acontecimentos e o inespera- gar na reflexão científica, sob pena de trabalharmos com regula-
do e trabalha com uma taxonomia dedutiva, lastreada principal- ridades artificiosas, negadoras do mundo do dado.
mente na física, o que faz com que enxerguemos os fenômenos Só poderemos pensar em ordem na contemporaneidade
naturais como distantes, materiais, assépticos e indiferentes. se a essa palavra dermos a conotação de clinamicidade, de ten-
Os fenômenos nada mais são que pólos de relações mate- dência, de relação integradora ou desintegradora, de estrutura-
máticas. ção sistémica não geométrica, de seriação complexa e muito mais

118 119
;;o
o
Ul c:r
~ (j)

.ao. espaçada no tempo-espaço, além da admissão do não-provável, desordem é o atentado à necessária liberdade, solidariedade e ri-
o
2
do inesperado, do singular, no interior do mundo probabi- complexificação, que direcionam as tendências dos caminhos or- ?
QJ
?J
ru denadores. o.

e lístico. <D
<QJ
e A teoria do caos e a dos sistemas mostram essas caracterís- Apesar de tudo o que foi dito, Bohm traz à reflexão uma )>
lQ
:e e
QJ
o. ticas das ordens no conhecimento de hoje. De outra parte, a físi- ordem implícita tão profunda e magnífica, que orienta todo o ~·

o
o.
ca, a química e a biologia nos mostram que, apesar desse turbi- mundo do dado sem que apareça de modo explícito, mas estan-
E
2
lhão caótico, o universo é feito do mesmo material, das mesmas do presente em tudo. É a rede holográfica que ata desde as par-
o
"'O
ru energias, das mesmas composições, o que indica uma unidade tículas elementares entre si, até os incomensuráveis processos cós-
.!:
u
QJ
q:: subjacente em todo o cosmos e expressa a unidade substancial micos, passando pelo fenômeno humano, que é uma seta da ten-
ru
"'O
de toda a humanidade, como parte desse caos unitário universal. dência universal à complexificação.
Ul
o
.!:
li= É possível dizer que as ordens ou são sistemas que se man-
Ul
o têm e podem saltar para estruturas mais complexas, ou são siste-
mas que não se mantêm e tendem à implosão. Essa manutenção
As questões da totalidade e da diferença permeiam a filo-
está na razão direta da harmonia relacional entre os elementos
sofia desde os seus primórdios. Como já foi dito no texto intro-
constituidores de um sistema e nos espaços existentes para as
dutório, chegou-se a pensar esses conceitos como antípodas, na
transformações e o crescimento dos elementos e subsistemas que
medida em que a totalidade foi encarada como linearidade e uni-
fazem parte do sistema maior organizador. Para que as ordens se
formidade e a diferença como fragmentação em partículas inco-
mantenham, é necessário que as partes tenham liberdade para
municáveis.
crescer e relacionar-se, assim como pressupõe uma solidarieda-
O pensamento ligado à totalidade foi sempre entendido
de entre os elementos que possibilite o salto qualitativo para ou-
como cosmogonias aharcantes, cujo philum apontava para uma
tras ordens, quando se chegar ao limite de sua possibilidade de
direção necessária, o que significava o trilhar de um só caminho
relação. Essa é a bifurcação essencial que faz uma ordem saltar
para todos os seres e o passar por todos os estágios, a fim de se
para a abertura, que engendra uma teia de relações mais rica ou
atingir o final dessa via previamente construída pela necessidade
dissolve a ordem, que se nadifica, recomeçando-se o caminho de
ou pelo Espírito.
complexificação por meio de novas experiências do cosmos.
O pensamento da diferença está ligado à libertação dos gran-
Todos os sistemas são apostas, são jogos, são vida e morte,
des sistemas, entre eles o da confirmação da relatividade do ser
prosseguimento ou paralisação, existência ou não-existência, ca-
humano e de seu isolamento dentro do absurdo ou do incompre-
minho da plenitude ou da destruição. Tais sistemas sobrevivem
ensível, o que possibilita o exercício de sua única faculdade para
ou não pela diferença de seus elementos e pela solidariedade de
entender-se: criar seus imaginários dentro da transitoriedade das
suas relações.
existências e das culturas, significar o mundo, quase que de forma
A desordem é o conjunto de condutas das partes constitu-
lúdica, a fim de que as experiências tenham alguma significação e a
intes de uma ordem que dificulta a transgressão criadora, a soli-
vida humana algum prazer. Epistemologicamente, o pensamento
dariedade entre elas e o crescimento da teia de relações. A

120
;o
l/l o
~ O"'
(])
.3o.. da diferença, além de trazer eficaz crítica aos totalitarismos cons- diferença, que muitas vezes foi considerada sinônimo ~
o
2 desigualdade, nada mais é que expressão de identidade. direi- '!>
<lJ truídos a partir das visões da unidade, também contribuíram
ro !!
·o
e
para a superação do pensamento da semelhança e da continui- to à identidade é praticamente tão importante quanto o direito à o..
íll
<<lJ
e
dade que lastreava o saber científico, introduzindo a diferença vida, pois sem uma identidade que tenha a liberdade de se auto- )>
lO
t'.<lJ e
construir não há como ocorrer qualquer manifestação ôntica. õi'
..,
o..
e a descontinuidade como categorias dessa produção de co-
o
o..
E nhecimento. que deve ser ressaltado é a necessidade de preceitos que garan-
2 tam a igualdade de os diferentes se plenificarem, de se organiza-
o A totalidade pensada a partir de uma visão generalizadora
"O
ro
_e de uma faceta do mundo instaurava o paradoxo de uma totalida- rem em totalidades que, individual e coletivamente, permitam
u
<lJ
q:: de parcial, uniforme, linear e geometrizada, na qual os processos relações mais fluidas, solidariedade entre os componentes e in-
ro
"O
l/l
transcendiam os elementos envolvidos e na qual eles não tinham tensificação do compartilhar das contribuições, a fim de que o
o
_e
ti= grande probabilidade de se manifestar, até porque estavam jun- sistema total seja consistente e resguarde seus elementos para o
l/l
o gidos à disjuntiva do acaso e da necessidade, isto é, não tinham momento do salto para o mais complexo, quando se dissiparem
qualquer margem de escolha, ou melhor, viviam em um reino as possibilidades daquela totalidade.
onde o inesperado único não tinha vez. O mesmo e o diferente são duas facetas de uma totalidade
'
A diferença radicada na admissão da absoluta impossibili- que se complementam para instituir, transformar e movimentar
dade de comunicação entre os seres humanos e na deformação os universos externos e internos ao ser humano.
das consciências pelos meios culturais de massa faz surgir um
pensamento de certo modo autista, em que os processos feno-
menológicos são auto-referentes, uma vez que a diferença é a for-
madora da identidade e a identidade não é comunicável e muito
menos adicionável a outras identidades. Por isso, a visão da dife- Pelo que foi visto até aqui, não há como considerar o mun-
rença ganhou a fama de ser a expressão do individualismo estio- do fenoménico como fruto de determinações ou mesmo de so-
lador, da morte do pensamento e da alienação do mundo globa- bredeterminações. Vislumbramos sentidos, contradições, com-
lizado. plexificações, interações, sistemas e subsistemas, ordens crescen-
A questão é que, pelas contribuições epistêmicas da atuali- tes e decrescentes, momentos limítrofes de salto ou dissolução,
dade, nem a totalidade nem a diferença podem ser consideradas interrelações informacionais ou indicativos da existência de or-
separadamente uma da outra. A totalidade, para ser total, há de dens ou dimensões muito mais profundas, não perceptíveis pe-
reunir todas as diferenças que se relacionam em seu interior. A los conhecimentos atuais, ou impossíveis de se perceber a partir
totalidade, por ter a característica de abarcar, há de abraçar to- da própria condição humana, pressuposto para a construção dos
das as diferenças para poder ser total. Do mesmo modo que a saberes.
riqueza de uma totalidade só pode vir pela admissão de diferen- Cai a geometria superficial, a regulariqade previsível, a li-
ças, a significação e a identidade das diferenças só poderão exis- nearidade segura e se adentra um mundo de ordens mais profun-
tir se referenciadas a totalidades. das, alcançáveis ou inalcançáveis, que perpassam o observável.
Além disso, o próprio ser humano é constituidor de ordens, cri- Probabilidade e caos não significam a negação de . . . . . . ;. . . . ....,.,__._,...,.!
ador de sistemas, estruturas e ordenações, por sua interferência as, de caminhos. Apenas acirram nossa responsabilidade
ro
·o
e antrópica. Significa dizer que o ser humano também cria "leis lar o mundo do dado e de desenvolver condutas que contribuam
<(IJ
e
:e naturais", além das de sua convivência, por via de sua interface para a plenificação do ser humano, da Terra e do cosmos.
(IJ
o.
com as outras facetas ambientais. O ser humano não somente se
o
o.
E relaciona com o meio ambiente. Ele é parte do meio ambiente.
2:l
o Ele é meio ambiente para outros seres. Sua presença e seus arte-
1J
ro
.J:: fatos o levam necessariamente para essa posição. O pensamento moderno exilou o ser humano do universo.
u
(IJ
4= Apesar dessa complexidade, dessa aparente confusão, não Isolou-o de tal forma que ele passou a se considerar um ente
ro
1J
Ul podemos afirmar que o acaso preside o universo. As teorias as- autônomo do todo e insignificante diante da imensidão. Esse en-
o
.J::
<;::: trofísicas contemporâneas mostram que, se determinadas corre- tendimento o levou a paradoxos peculiares: o ser humano se or-
Ul
o lações matemáticas finas fossem alteradas minimamente, simples- gulha em ser nada e cultua o relativo como um novo deus.
mente o universo não existiria, ou a matéria não subsistiria em Essa atitude implicou o surgimento da sensação da onipo-
sua atual estrutura, ou mesmo não haveria a possibilidade da tência, ao mesmo tempo que alimentou a indiferença e a constru-
vida. 51 ção de valores assumidamente comprometidos com o mundo re-
A probabilidade é a marca do mundo do dado. Não há presentado por um perpétuo jogo de interesses, por uma disputa
certezas necessárias nem determinações irrecorríveis, mas há pa- pela vantagem e/ ou lucros maiores, não havendo espaço para a
râmetros de relações que limitam o âmbito do provável. gratuidade e a solidariedade, até porque não existe fundamento
Por outro lado, a Teoria do Caos não é uma construção para a ética. Ela é contratual, no máximo tolerância, já que nada
negadora da ordem, mas a sofisticação de armadilhas epistêmi- dignifica o ser humano, a não ser sua capacidade de manter-se e
cas, no sentido de perceber as tendências, as ordens escondidas avançar no sentido da conquista de novas vantagens organizativas,
em camadas mais profundas, a regularidade do aparentemente econômicas, políticas e sociais. mundo é uma guerra entre pe-
irregular, o papel dos atratores estranhos, que nada mais são que quenas formigas sem significação, que devem dar algum sentido às
núcleos ectópicos de interferência nos fenômenos. Ectópicos suas vidas por via das conquistas e das lutas pela sobrevivência ou
porque fora dos lugares esperados, das regularidades pressenti- dominação. Essa visão, além de isolacionista da espécie humana, é
das, das conseqüências previstas, e descentrados das construções comprovadamente machista, pois tem como mito sustentador e
axiomatizadas. Podemos dizer que o universo marcha, avança, unificador da explicação das relações entre os seres humanos a
move-se por ações aparentemente caóticas, mas que indicam a força, o controle e a necessária dominação.
presença de ordens não percebidas na superficialidade. No nível A separação do ser humano do cosmos tem um efeito mul-
do humano, podemos dar o exemplo da arte, que como o kerigma tiplicador. Segundo essa visão, conhecer é separar, explicar é re-
bíblico, quebra ordens, subverte certezas, mas anuncia a possi- duzir. A fundamental relação de gênero, que. poderia ser traduzi-
bilidade de novas ordens estéticas, técnicas, existenciais e an- da como união, aliança e celebração, transformou-se em domi-
tropológicas. nação, disputa e cizânia. 52 Além disso, os seres humanos se

124 125
(/)
;o
o
~ cr
(D
.3o. separam por países, por religiões, por crenças políticas, por idi- ;:::i.
o
2
QJ ossincrasias, negando não somente sua unidade enquanto f enô- ginário, denominando mistério, como o con- "!>
cu :xi

e meno do mundo, mas também sua participação enraizada no pla- junto de doutrinas e cerimônias conhecidas e praticadas o.
<QJ (D
e
t'. neta Terra. Nem mesmo seu habitat é reconhecido. Apesar do era iniciado. mesma esteira, a palavra mistério pode ser sinô- )>
(,()
QJ
o.
o
o.
conhecimento científico acumulado, a humanidade ainda age nima de incognoscível, de inatingível, do só explicável por dog- .e
õi'

E como se a Terra, essa frágil espaçonave, fosse inesgotável e eter- mas religiosos ou inexplicável por ser inalcançável à razão huma-
~
o na. É a grande alienação da separação que faz da política a arte na. O conceito aproxima-se do sentido de enigma, oculto, secre-
"CJ
cu
.e da guerra e da disputa, e do direito, a regração do contencioso to, desconcertante, estranho e imponderável.
u
QJ
;:;:: tatuado no interior dos sujeitos. O mistério designa o que está velado e, por isso mesmo, é cultu-
cu
"CJ
(/) O ser humano é composto pelas mesmas substâncias da Ter- ado, temido, conhecido por poucos ou simplesmente inacessível.
o
.e
li= ra, vive segundo os princípios e tendências de seu planeta, que lhe Lalande, em seu Vocabulário da filosrjia, encontra cinco senti-
(/)
o garante a vida e a subsistência, além de apresentar-lhe dos riscos e dos para a palavra mistério: o de conjunto de práticas, ritos e doutri-
desafios. O corpo humano, após o ciclo da vida, reintegra-se ao nas das religiões antigas, de natureza secreta e reservados a inicia-
regaço da Terra e torna-se condição para a sobrevivência de ou- dos; na teologia cristã, dogmas revelados nos quais o fiel deve crer,
tros seres. Essa Terra vive em equiHbrio dentro do sistema solar mas que não pode compreender; o de sentido oculto sob um sím-
e participa das relações complexas de todos os planetas com o bolo, conforme o entendimento de Pascal; dificuldade à qual se deve
Sol. A matéria terrestre é a matéria do sistema solar e a do siste- procurar a solução, como em Malebranche; e dado inexplicável, pro-
ma solar é a do universo. Há uma unidade físico-química do uni- blema insolúvel, como em De Maistre. Em observação posterior-
verso, como se tudo fosse constituído da mesma carne, partici- mente aditada à obra, por M. Blondel, é trazida uma outra conota-
pante da mesma origem e viajante dos mesmos sentidos. 53 ção à palavra mistério, no âmbito da teologia, conforme a Constitutio
A recuperação da pertinência do ser humano em relação ao Vatic, Fide Denziger, n. º 1. 796, que prescreve: ratio fide illustra-
outro, à Terra e ao universo é condição para desenvolvermos pra- ta) aliquam mysteriorum intelligentiam eamque fructuosissimam assequitur... ,
xis e reflexões lastreadas em nova concretude. Não mais a concre- isto é, que o mistério não pode ser considerado tão-somente uma
tude imediata dos sentidos, a concretude reduzida da ciência posi- noite negra incognoscível e infensa à razão, já que existem na fé as-
tivista, a concretude necessária das histórias previstas, mas a con- pectos que a meditação e a experiência esclarecem parcialmente.
cretude viva de seres imersos em complexas relações prováveis ou Proust, a respeito do mistério, traz à nossa reflexão outros
caóticas, que em liberdade crescente constroem seus saltos para o caminhos para dele nos aproximarmos, que introduzem concei-
mais-ser ou se dissolvem nessa imensidão inter-relacionante. tos novos em nosso pensamento predominantemente apolíneo,
._._u._._ .... ,_,_'""' afirma:
'--1

"Não é apenas a arte que põe encanto e mistério nas coisas mais
A palavra mistério é rica de significações. O seu sentido inicial insignificantes; esse mesmo poder de relacioná-las intimamente conos-
grego, mystérion, é fechar, estar fechado, fechar os olhos ou a boca. co é reservado também à dor" .54

1
(/) 7.J
o
~ o-
ro
.3o.. A experiência pessoal da dor e da criatividade, o duto da Se enfocarmos a interioridade humana, a mutabilidade hu- ri-
o
2
(]) sensibilidade tateiam o mistério escondido nas menores coisas e mana, a profundidade complexa desse ser vivo, que pode ser '!>
ro ' ?=1

e nos mais cotidianos símbolos. autoconsciente, deparamo-nos com uma segunda camada de o..
<(]) ro

t
e
Henriqueta Lisboa, em seu poema Flor da Morte, inverte a mistério, que tem como característica mudar a cada vez que é )>
\O
(])
o..
o
o..
questão do mistério, ligado no senso comum à questão da mor- desvelada, apresentar estratos mais profundos, quanto mais mer- .
e
ãi'

E te, da outra vida, quando ele está permeando o hoje de nossas gulhamos, além de transformar o próprio cognoscente estudan-
2
o consciências e as teias de nossas vidas e de toda a vida: te em objeto estudado. Esta é uma categoria de mistério que pode
"'O
ro
..e ser parcialmente desvelada, mas que sempre apresentará um eidós
u
(])
;:;::: "Na morte, não. Na vida. mutável, mais profundo e mais complexo, a cada descoberta,
ro
"'O
(/) Está na vida o mistério uma vez que o sujeito que se apreende é o mesmo que é apreen-
o
..e
ç Em cada afirmação ou dido e é um outro, após a apreensão.
(/)
o abstinência. Há mistérios incognoscíveis, que não são perceptíveis pelo
Na malícia ser humano, seja por sua condição, seja por estar imerso na tem-
das plausíveis revelações, poralidade, seja porque não conseguimos ontologicamente to-
no suborno car a dimensão onde ele se dá. Guitton, quando procura a possí-
das silenciosas palavras". 55 vel compatibilidade entre a teologia e a astrofísica, apresenta um
texto que demonstra a grandiosidade desse mistério:
Existem camadas de mistério. Há aqueles que se adeqüam
à visão positivista, formados por incognoscíveis que se desvela- "Antes da Criação reina uma duração infinita. Um tempo total, ines-
rão quanto mais nossas armadilhas epistêmicas e tecnológicas se gotável, que ainda não foi aberto, dividido em passado, presente e
aguçarem. Assim podemos dizer da natureza dos fenômenos futuro. A esse tempo, esse tempo que ainda não foi separado numa
macro e microcósmicos que vão sendo observados e desvenda- ordem simétrica cujo duplo espelho é o presente, a esse tempo absoluto
dos, que eram um mistério para as gerações humanas anteriores. que não passa, corresponde a mesma energia total, inesgotável. O
A ciência é uma complexíssima e contraditória novela de deteti- oceano de energia ilimitada é o Criador. O que levou o Criador a
ve que transcorre no tempo histórico. engendrar o universo tal como o conhecemos? Antes do tempo de
Hoje, 90% da matéria cósmica não é conhecida por não Planck é o reino da Totalidade intemporal, da integridade perfeita, da
ser sensível à luz. Prevemos que no futuro haverá a possibilidade simetria absoluta; só o princípio original está ali, no nada, força infini-
de captar e explicar esse mistério. A despeito de a nossa matéria ta, ilimitada, sem começo nem fim. Nesse momento primordial, essa
sensível ser faceta menor da matéria, tendo em vista o avanço do força alucinante de poder e de solidão, de harmonia e de perfeição,
conhecimento e o inesperado das descobertas, nada tira de nós a talvez não tenha a intenção de criar o que quer que seja. Basta-se a si
esperança de explicação. mesma. Depois, alguma coisa vai acontecer. Um suspiro de nada.
É um mistério que espicaça, desafia e nos move no sentido Talvez uma espécie de acidente do nada, uma flutuação do vácuo: em
de seu desvelamento. um instante fantástico o Criador, consciente de ser aquele que É na

129
Ul
~
.ao.. totalidade do nada, decide criar um espelho para sua própria existên-
2
QJ
cia. A matéria, o universo: reflexos de sua consciência, ruptura defini-
ílJ
"ü tiva com a bela harmonia do nada original. Deus, de certo modo,
Quando Deus foi exilado da reflexão cosmológica, o pro-
e
<QJ
blema de sua origem e de sua causa eficiente continuou a existir.
e
t'.QJ acaba de criar uma imagem de si mesmo". 56
o.. O modo mais lógico encontrado para enfrentar essa questão foi
o
o..
Na mesma camada de mistério se encontra a ordem implí- o de retornar à filosofia grega e entender o universo como fruto
E
2:l
cita de David Bohn, teoria hoje em discussão na astrofísica. Para do acaso e da necessidade, como queria Demócrito.
o
-o
Esta frase de Demócrito abre a famosa obra de Jacques
.e
ílJ ele, a matéria, a consciência, o tempo, o espaço e o próprio uni-
u
QJ Monod: 58
;:;::::: verso são ínfimos se os compararmos à imensa atividade do pla-
ílJ
-o
Ul
no subjacente, que, por sua vez, como ratifica Guitton "provém
o
.e "Tudo o que existe no universo é fruto do acaso e da necessidade".
te de uma fonte eternamente criadora, situada além do espaço e do
Ul
o tempo".
As teorias holográficas hoje em circulação também procu- No mesmo sentido, Monod, na abertura de seu texto cita
'
O mito de Sísijo, de Albert Camus:
ram mostrar a ordem implícita e incognoscível que permeia to-
das as coisas, pois parece que estamos submetidos aos limites de
"Nesse instante sutil em que o homem se volta para sua vida 1 Sísifo 1
Planck, que nos impedem de ir mais longe, que impõem uma
regressando a seu rochedo, contempla essa seqüência de ações sem
barreira clara de ordem espaço-temporal entre nós e o que não
ligação que se torna seu destino, criado por ele, unido sob o olhar de
pode ser conhecido. 57 De certa forma, somos, como dizia Bergson,
sua memória, e logo selado por sua morte. Assim persuadido da ori-
a assimetria de uma simetria perdida, a fratura de uma harmonia
gem totalmente humana de tudo o que é humano, cego que deseja ver
perdida, um espelho fraturado, um "gesto cadente".
e que sabe que a noite não tem fim, ele está sempre em marcha. O
Isso quer dizer que o fundamental não é conhecido, como
rochedo ainda rola. Deixo Sísifo no sopé da montanha! A gente sempre
no caso de fenômenos que indicam haver uma ordem que não é
reencontra seu fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade superior que nega
desvelada, por exemplo, o de partículas que são detectadas em
os deuses e levanta os rochedos. Ele também julga que tudo está bem.
dois lugares ao mesmo tempo.
Esse universo doravante sem senhor não lhe parece nem estéril nem
Logo, temos de conviver com o mistério, com o inexperi-
fútil. Cada um dos grãos dessa pedra, cada clarão mineral dessa mon-
mentável, com o que se está ordenando a partir de profundida-
tanha cheia de noite, por si só basta para plenificar um coração de
des insuspeitadas, com os limites de nossas consciências, com o
homem. Cumpre imaginar Sísifo feliz".
ignoto do nosso universo interior e do universo exterior, que
sempre são o mesmo e o outro.
Com isso, o primeiro movimento que devemos fazer é o Os seres vivos, para Monod, são mera contingência no uni-
de abandonar nossa arrogância assentada em um humanismo verso. Em suma, eles não têm significação alguma e a consciência
auto-suficiente e nos dedicarmos à construção da humanidade dessa situação é que deve orientar a humanidade para buscar,
com a consciência de nossas pertinências e nossos limites. como no texto de Camus, a felicidade na contingência e na

130
(fJ ;o
o
~ o-
.3Q. ro
insignificação, a alegria fugaz nessa noite mineral eterna que ex- pois o denominado materialismo dialético é haurido dessa mes- ~
o
2
(]) pressa o universo. ma fonte. "!>
ro ?J
·u
e Percebe-se que a obra de Monod é a última e poderosa Assim, qualquer busca de conexão entre o humano e o não- Q.
<(]) (j)
e
f síntese do pensamento do século XIX, assentada na radical divi- humano, entre o vivo e o não-vivo, só pode ser vista como uma )>
l.O
(]) e
õi.
Q.
são entre mundo da natureza e mundo humano, nada tendo a ver contingência, um acidente, sem qualquer ligação necessária, sem ..,
o
Q.
E o segundo com o primeiro. O mundo da natureza é concebido qualquer preparação prévia, sem qualquer lógica, pois essas co-
2
o
"O
como existência objetiva e o mundo humano como mero fruto nexões são frutos do acaso e da necessidade, da contingência
ro
..e
u
contingencial da imaginação e da memória desses seres exilados aleatória ou da necessidade de sobrevivência.
(])
;:;:::: que somos nós. O não-humano tem sentido; o humano, uma sig- O universo prevalentemente físico caminha pela noite eter-
nificação dinâmica, criada mais para fugir ao sentido trágico de na, às vezes tendo a seu flanco seres acidentais, que certamente
sua condição humana, à sua impossibilidade de saber alguma coisa desaparecerão sem deixar qualquer marca ou sinal. Qualquer busca
(fJ
o de si e do cosmos, com um conhecimento tão precário e ilusório. de integração do ser humano com o cosmos vai ser atacada como
Ao trabalhar com as conquistas científicas mais atuais da "ilógica" ou fruto de visão "animista" ou "vitalista".
época em que escreveu sua célebre obra, ano de 1970, em parti- É interessante observar que a imaginação humana conse-
cular a biologia molecular, Monod destaca o objetivo de seu tra- gue observar regularidades no universo, tendências em seus pro-
balho, da seguinte maneira: cessos e movimentos, mas não tem nenhuma condição de perce-
ber ligações entre o universo e esses seres, a não ser pelo viés do
"A tese que apresentarei aqui é a de que a biosfera não contém uma acidente, do inesperado, do aleatório, em suma, do acaso.
classe previsível de objetos ou de fenômenos, mas constitui um aconte- Atualmente, as crenças que lastrearam o trabalho de Mo-
cimento particular, de certo compatível com os primeiros princípios, nod estão em xeque a partir de dados científicos. Em verdade,
mas não deduzível desses princípios. Portanto essencialmente imprevi- tendo em vista a necessidade de relações finas entre os fenôme-
sível" .59 nos, é preciso admitir a existência de algum ordenador não per-
ceptível ainda, que as mantém, sob pena da impossibilidade on-
Desse modo, Monod combate todas as formas explícitas tológica deste universo. Mesmo com a teoria do caos, vamos
ou implícitas de vitalismo, nele englobando tanto o que ele cha- perceber que sempre, na suposta imprevisibilidade, existe o cons-
mou de "vitalismo metafísico", como o "vitalismo cientificis- trangimento do que os adeptos dessa teoria denominaram "atra-
ta". 60 Bergson foi situado na primeira classificação, Driesch, tor estranho", que impele os fenômenos a determinada direção.
Elsasser e Polanyi e Niels Bohr na segunda. Por outro lado, o "sensorialismo" que marcava o entendi-
Também assestou suas armas contra aqueles que trabalha- mento da matéria, desapareceu a partir das novas concepções
ram com visões animistas ou ligadas ainda à velha aliança, 61 e correntes da microfísica. Contemporaneamente, as partículas ele-
situou Leibnitz e Hegel como representantes desse pensamento. mentares são consideradas como resultado provisório de intera-
Enxerga o animismo dentro do progressismo cientista de Teilhard ções incessantes entre "campos" imateriais, como diz Grichka
de Chardin e mesmo dentro dos trabalhos de Marx e Engels, Bogdanov. 62 Elas não são objetos, são relações. Quando as

132 133
;o
o
partículas elementares da matéria eram encaradas como sólidas, constantes universais, como a constante gravitacional, a
O"
(!)
;:::\.
o
Q) desprovidas de informação e interações entre si e com os cam- dade da luz ou a constante de Plank. Como lembra Igor Bogda- '?'
CIJ
·u pos, caberia dizer que o ser vivo e o ser humano nada tinham a ~
e
<Q) nov, se uma delas tivesse sido submetida, na origem, a uma alte- o_
e (!)

~ ver com sua existência, este mero fruto provisório e passageiro ração ínfima, o universo não abrigaria seres vivos e inteligentes; )>
Q) lO
o_ e
do universo. Mas se encararmos os conhecimentos atuais, vere- talvez nem mesmo existisse. 65 ãi"
...,
o
o_
E mos que as teses passadas, de absoluta impossibilidade de exis- Na visão antiga do universo, ele tinha uma ordem explícita,
2
o
-o
tência de potencialidades de complexificação da matéria, já não uma hierarquia, uma origem e ligação divinas. Quando novas con-
CIJ
..e
u
têm espaço para viger. cepções passaram a ser construídas pela ciência, o ser humano
Q)
q::
De certo modo, dois aspectos da ciência atual se chocam foi se afastando tanto das grandiosas distâncias quanto dos aba-
CIJ
-o
(/} com os fundamentos da obra de Monod: a idade do universo fantes tamanhos. O universo deixou de ter uma ordem hierarqui-
o
~
;;::: não daria para que os fenômenos que conhecemos fossem urdi- zada, transformando-se em um caos aleatório, povoado de sin-
(/}
o dos pelo acaso. Qualquer mudança de certas correlações perma- gularidades pensantes e apartadas.
nentes no universo levaria necessariamente à sua destruição. 63 O Agora, o universo complexo é concebido com camadas de
acaso não tem a possibilidade de criar os seres hoje conhecidos, ordens cada vez mais profundas e até mesmo incognosdveis, que
por mero probabilismo, em função do curto espaço de tempo presidem as direções, processos e tendências cósmicas, como nos
para as probabilidades acontecerem, se considerada a complexi- casos aqui trazidos.
dade dos fenômenos. Retoma-se o conceito de ordem, não mais linearmente, não
Grichka Bogdanov, exemplificando o que foi dito, escreve: mais como um caminho necessário para determinada direção,
mas como um grande drama que espelha a luta complementar
"Tomemos um exemplo, entre outros: para que a agregação dos nucle-
entre as forças de destruição e entropia, e as forças de complexi-
otídeos conduzisse 'por acaso' à elaboração de uma molécula de ARN
ficação e organização.
utilizável, teria sido preciso que a natureza multiplicasse às apalpadelas as
Nesse nível de compreensão, as teses de Monod, apesar de
tentativas durante pelo menos l O (elevado à potência 15) anos, ou seja,
sua importância histórica, já não podem mais vicejar, em virtude
durante cem mil vezes mais tempo que a idade total de nosso universo.
de seu universo, embora complexo, partir de pressupostos refe-
"Outro exemplo: se o oceano primitivo tives.se engendrado todas as
ridos a um outro estágio das transformações científicas.
variantes (isto é, todos os isômeros) susceptíveis de serem elaborados
Há não somente probabilidade no universo. Observa-se
'por acaso' a partir de uma só molécula que contivesse algumas cen-
até mesmo o inesperado nele, mas tudo isso está referido a estra-
tenas de átomos, isto nos teria conduzido à construção de mais de l O
tos profundos, que traduzem uma ordem implícita que não po-
(elevado à potência 80) isômeros possíveis. Ora, o universo inteiro
demos ainda perceber, ou até mesmo estamos ontologicamente
contém, sem dúvida, menos 19 (elevado à potência 80) átomos". 64
inabilitados para dela nos acercar.

Problema ainda mais grave para questionar os fundamen-


tos de Monod situa-se na questão das denominadas grandes
Alguns pressupostos devem ser levantados para vislum-
brarmos as mudanças do mundo, as novas formas de entendê-lo,
os novos valores emergentes, as experiências e relações que hoje
são urdidas e o papel dos seres humanos em relação a si mesmos
e ao meio que os circunda e do qual fazem parte.

Há uma grande diferença entre mudar e transformar. As


próprias raízes etimológicas dessas palavras são diferentes. Mudar,

137
IJl
;;o
~ o
.3Cl. do latim mutare, significa pôr em outro lugar, dispor de outro O"
(D

2 Neste momento do mundo, em que sonhar é out e construir ri-


o
(]) modo, remover ou deslocar. Também pode expressar o sentido utopias não tem sentido, pois a história já terminou e chegou a ?>
f1J
'ü de tirar para pôr outro ou substituir. Alterar ou modificar é ou- ?CJ
e
<(]) seu ápice por via de uma sociedade de mercado globalizada, nós, Cl.
e (D

·-e tro sentido desse verbo. Fazer apresentar-se sob outro aspecto,
(]) que apostamos em um mundo mais justo, devemos nos espelhar )>
tCl
e
Cl.
remover, deixar, sofrer alteração, ou mesmo transformar e con- õi'
o
Cl.
no próprio movimento do cosmos, de suas partículas elementa- -,

E verter reúnem algumas das muitas semias dessa palavra. res até seus macrofenômenos, no próprio movimento da vida e
2
o Em alguns casos, o verbo mudar é usado como sinônimo
"O do espírito humano, todos eles marcados pela probabilidade,
f1J
..e de transformar. Seu sentido mais comum está ligado a remover,
u
(])
todos eles esperando pela participação dos componentes de sis-
4= substituir, deslocar, alterar, isto é, um movimento linear dos temas e subsistemas para saltar no sentido de sínteses mais altas
f1J
"O
objetos, uma remoção de lugar, uma substituição pelo mais efici-
IJl
o
..e
ou implodir pela incompatibilidade entre seus componentes.
~ ente ou adequado, um deslocamento. Raramente se refere a um Ter como fundamento a transformação, o movimento e a
IJl
o salto de natureza, a uma mudança de fundamento (como neste necessária vinculação de tudo isso com nossa ação, por perten-
caso aqui expresso). cermos essencialmente a uma unidade substancial da Terra e do
Já o verbo transformar, do latim tran.iformare tem o sentido
cosmos, abre a oportunidade de anteciparmos visões de futuro
de dar nova forma, feição ou caráter; tornar diferente do que
no presente. Isso nos leva à rejeição de todas as concepções que
era; alterar, modificar, transfigurar e metamorfosear. imobilizam o cidadão, estiolam o ser humano e clivam o mundo
Percebe-se que esse verbo, apesar de guardar sinonímia com
e as sociedades entre os que devem viver e fruir e os que devem
mudar abarca um sentido de meta-forma, de transfiguração, de
' morrer e ser gastos. A aceitação da transformação como consti-
trans-formar, o que significa adquirir outra forma, saltar para
tuinte físico, social e espiritual da humanidade retira a dimensão
outro estado ou até mesmo mudar de natureza. Daí porque a
paralisadora e alienadora de uma organização impessoal, abstra-
crença na possibilidade de transformação, e não de simples mu-
ta e negadora do humano.
dança, adequa-se melhor a um cosmos hoje considerado in fieri,
em constante movimento e modificação.Já não há mais uma tem-
poralidade circular, nem uma linearidade retilínea e de determi-
nação perceptível, mas uma flecha provável que caminha, como A ordem explícita não retrata as relações, eventuais regula-
uma aposta, rumo a complexidades crescentes ou dissoluções. ridades e movimentos que impelem as coisas. Nem a linearidade,
O luminoso e o sombrio sempre estão presentes, em ten- construída para amarrar a sucessão em encadeamentos retilíneos,
são e diálogo, em direção a sínteses mais complexas, mas sempre consegue fazer frente à complexidade das teias fenomenais. Essa
no risco da dissolução, o que engendrará o aparecimento de ou- linearidade de superfície não existe.
tros sistemas para tentar novos caminhos. De qualquer forma, Os determinismos ingênuos, que encaram os fenômenos
um otimismo trágico, no dizer de Teilhard de Chardin, impele como fruto de relações no interior de um ·universo mecânico,
nossa conduta à transformação expressa pelos saberes, pelas lin- perderam sua importância científica em virtude de trabalhar com
guagens, pela ação e pelo desvelamento ético. bases de conhecimento ultrapassadas. Os que ainda crêem em

138 139
;;o
Ul o
~ CJ
(j)
.3o. um universo aleatório, no qual os fenômenos são o produto do no caso das sociedades humanas, verificamos que os modelos ;::i.
o
2
QJ acaso ou da necessidade, têm de aceitar as mais recentes desco- abrangentes e as teorias da transformação geral podem até dar ?>
ro ?J
"(J
e bertas da astrofísica, que encontraram um conjunto de relações conta da explicação de certos fenômenos, mas falham quando o.
(j)
<QJ
e
~ matemáticas rigorosas, cuja quebra inviabilizaria o próprio cos- tentam prever ou intervir em determinada direção. )>
lO
QJ
e
o.
mos e todas as outras ocorrências de fenômenos. Pela idade cós- Por outro lado, experiências sociais localizadas ou insights ~·
o
o.
E mica, há uma impossibilidade estatística de o acaso constituir o pontuais exercem sobre o todo social influências devastadoras
2
o que hoje é observado e desvelado. ou transformadoras. O pequeno e o grande, o abrangente ou o
-o
ro
..e A onipotência da ciência do século XIX deu lugar a uma localizado podem ter, em termos de qualidade, papéis de mes-
u
QJ
t;:::: radicalização da dúvida e a um aumento da curiosidade. Os no- ma significação. A partir do que foi dito, podemos afirmar que o
ro
-o
Ul vos instrumentos e conceitos científicos assumiram que a flecha que é local também pode ser universal, assim como o que se pre-
o
~
ti= da transformação caminhava na profundidade e não era pré-de- tende universal pode ser meramente provinciano.
Ul
o terminada na superfície.
A linearidade profunda, que pressentimos, ou que nos é
incognoscível, manifesta-se, no âmbito do observável, por sal-
tos qualitativos e por criações. Surpreendentemente, é pelo salto Alguns teóricos afirmam que a visão do universo seria outra
e pela criatividade de superfície que a flecha submersa da trans- se o ponto-de-partida, em vez da física, fosse a biologia. Eu acres-
formação avança. Os fenômenos são interimplicados e co- cento mais: o estudo do universo avançará mais se o universo inte-
criativos. Não há isolamentos, nem eterna repetição. rior do sujeito cognoscente também for estudado em maior pro-
Só a solidariedade, a diferenciação cooperante e o olhar fundidade. O ser humano, além de nominar o mundo do dado, a
deslocado da criatividade promovem o avanço do uno e o salto ele pertence, sendo o ente, até agora conhecido, que desempenha
transformador para outro patamar mais complexo e mais apto. o papel de falar pelo universo, de ser o universo que se desvela.
O universo interior é presente e projeto. É antecipação e so-
nho. Os sonhos humanos expressam não somente as construções
prefiguradoras oriundas da condição humana presente, mas um pas-
Nem sempre é a grande prática que gera as grandes interfe- sado mais remoto, que diz respeito às facetas minerais, vegetais, ani-
rências ou soluções. Basta atentar para o mundo físico para con- mais e espirituais que estão inscritas na condição humana.
firmar esse entendimento. Nos fenômenos complexos da mete- A utopia é própria da condição humana. Confundiu-se com
orologia, são pequenas variações, diminutas interferências que o irrealizável por uma distorção do sentido do tempo. Ela não é
causam os efeitos da chuva, do sol e das tempestade~. A comple- sonho a ser realizado em futuro imprevisível, mas o sonho que
xidade é tão grande e o nível de acerto das previsões tão peque- ilumina as realizações do presente.
no, que levou a meteorologia a criar novos modelos de explica- Matar o sonho é matar a condição humana, é apagar o su-
ção e previsão lastreados na Teoria do Caos. Quando nos depa- jeito cognoscente e eliminar a possibilidade do conhecimento e
ramos com fenômenos qualitativamente mais complexos, como da expressão autodesveladora do cosmos.

140 141
;:i::i
o
O"
(D
isso acontecer, é a implosão, a destruição da flecha do tem- ;::i.
o

O)
po e do que foi tecido. concorrência predatória é a morte '!>
?J
ílJ
'ü das estruturas físicas, biológicas e sociais. a solidarieda- e.
e (D
<O)
e Entendo que o darwinismo social perpassa essa nova onda de, mais que um valor metafísico, é o instrumento de sobrevi- )>
:e \O
O)
e.
o
que recebe a imprecisa denominação de globalização. Alguns va- vência das estruturas e, por que não dizer, da humanidade .
e
OJ

e. lores perversos, em nome de uma pseudociência, tornam-se cor- como espécie.


E
2l rentes nas obras de administração, política e no discurso dos Essa solidariedade ou integração não se dá tão-somente
o
'"O
ílJ
..e
donos do poder. Em verdade, procura-se, sob a égide da mo- com outros seres semelhantes, com outros da mesma espécie,
u
O)
;:;::: dernização, inculcar contravalores que objetivam construir a fal- mas com o que nos nutre, que é o ambiente, formado por obje-
ílJ
'"O
sa concretude de um sistema financeiro abstrato. Prega-se ades- tos naturais e quase naturais, no sentido de Atlan. 66 É o desvelar
Vl
o
..e
t;::
regulamentação e a livre concorrência para facilitar a vida dos do universo fora e dentro do ser humano, que nos instrumentali-
o
Vl
oligopólios. Desenvolvem-se idéias segundo as quais o ser hu- za a entender as tendências e os modos de nos compreendermos
mano é um ente essencialmente concorrente e predador, caben- e aos nossos limites, à nossa pequenez e à nossa grandeza.
do ao mais forte e mais apto os louros do sucesso e da vitória. É assim que percebemos, em nível mais profundo, o senti-
Estimula-se o individualismo como única forma de sobrevivên- do da dignidade de tudo, em especial a dos seres humanos, que
cia. Um pobre individualismo que se traduz pelo gozo solitário sobrevivem, crescem e saltam para o mais pela cooperação e
do mesmo, do imposto e do desagregador. O isolamento e a pela solidariedade do ser e do saber.
alienação se tornam ideais de vida, como se isso fosse o sumo
em uma sociedade onde a história morreu e as utopias são jurás-
sicas. Ser idiota e fruir são as grandes metas da vida.
Esse biologismo primário e opaco verte das bocas dos exe- O tempo é estranho. Ele pode até ser considerado agosti-
cutivos e dos teóricos da moda, que freneticamente constroem nianamente como um conceito sobre um não-objeto. Falar dele
imaginários para a conquista do lucro e do sucesso. A vida, para sempre é nos referirmos a um esvaimento, a uma lenta hemorra-
ter significado, necessita de ser exciting. gia. O passado já se foi, o presente se esvai e o futuro ainda não
Em mão contrária, a ciência atual mostra que a sobrevivên- é. Fica apenas para nós o instante, o agora, que é o único mo-
cia emerge da solidariedade, como nos trabalhos de Prigogine. mento perceptível e no qual podemos interferir. É o presente a
Não uma solidariedade harmônica, mas uma aposta entre aquilo morada do ser e nossas condutas ou ações só têm sentido se se
que a física chama de entropia e as denominadas estruturas dissi- desdobrarem nele. Futuros remotos não ensejam grandes trans-
pativas que se organizam, complexificam e cooperam até o mo- formações. Para sonhar, para construir, temos de imaginar o fu-
mento de poderem saltar para sínteses qualitativamente mais turo com as mãos no presente. Não tenho o direito de sacrificar
complexas. A desagregação e a destruição dessas estruturas ocor- gerações para a construção de um futuro do qual não conheço as
rerão se suas partes constituintes concorrerem, se elas impedi- variáveis, os desvios e as rotas. Nossa previsibilidade ainda é curta
rem que seus elementos complementares exerçam seus papéis. e a velocidade permeia os fenômenos.

142 143
Ul
;;o
o
~ c:r
<D
.3o. Podemos imaginar o passado, o presente e o futuro. Tentar Por outro lado, a astrofísica caminha no sentido da admis- ;::\.
o
2
QJ prevê-lo, embora com as pernas curtas. Mas é o teste do presen- são de uma única composição do universo, que apresenta os ?
fO 2°

e te, a ação e o pensamento atuais que verificam a validade de meus mesmos elementos em todos os quadrantes hoje conhecidos. o.
<QJ <D
e
~
sonhos, projetos ou previsões. As utopias só têm valor se estive- A Terra, nosso planeta, pertence a esse universo, vivendo )>
l.O
QJ e
o. ãi'
rem sendo gestadas e realizadas agora, neste momento em que sob as relações que a regulam e com a composição comum ao ""l

o
o.
E somos com os outros e a Terra. cosmos.
2
o
"O
Temos de inverter a ordem do tempo em nossas cabeças, Dentro dela estamos nós, habitantes deste universo, com-
fO
..e
u
imaginar o passado, prefigurar o futuro, mas realizar a síntese ou postos dos mesmos elementos, participantes e dependentes des-
QJ
;;:::
a superação hoje. sa estrutura planetária, com características comuns, enquanto es-
fO
"O
Ul Prever e sonhar só têm significado com a presentificação pécie e trazendo, em nossos corpos e mentes, a história anterior
o
..e
\;::: do futuro, com efeitos, conflitos, movimentos e realizações hoje . que nos construiu, o presente que ora somos e o futuro como
Ul
o pro habilidade.
O ser humano é uma aposta entre o luminoso e o sombrio.
A questão é que, até agora, a constituição do padrão civilizatório
A tendência contemporânea de entender os fenômenos é a se deu com a prevalência do sombrio, do macho, da competição
da hipertrofia do acaso e a da fragmentação como seus constitu- e do maior poder de destruição. Esse padrão perverso mostra,
tivos. À medida que os grandes sistemas totalizantes entram em no reverso da medalha, que o ser humano pode instituir funda-
crise e passam a ser contestados, a eles se opõem não-sistemas mentos de condutas profundas que transcendem regimes políti-
ou simples cartografias de fragmentos. O papel de quem pensa é cos e estruturas econômicas e que marcam as atitudes básicas
o de compreender estilhaços, de desvendar o pontual, pois para das relações oriundas de projetos aparentemente conflitantes.
esse viés é impossível articular correlações mais amplas. É claro Daí a necessidade, para a reintegração do ser humano a si
que, a partir desse ponto-de-vista "pós-moderno", não há fun- mesmo e ao ambiente, de haver um redirecionamento no senti-
damentos nem para as utopias, nem para os sonhos, uma vez que do da pertinência e da solidariedade, para ressituar a humanida-
tudo ultima ratio é um non sense. O mesmo pode ser dito da ética de nessa unidade móvel, complexa e em constante transforma-
que, no máximo, avança para regras de tolerância entre os diver- ção, que dá significado e fundamento para o existir de todos os
sos, de convivência suportável entre os diferentes. Não há me- seres.
lhor ou pior, apenas emerge a relação mais suportável nesse ca-
minho existencial do nada para lugar algum.
O que é esquecido é o fato de existirem "formas" comuns
e necessárias, que se iniciam pelas próprias correlações matemá- A construção de mitos, no sentido perverso do termo, ga-
ticas que viabilizaram a existência do universo. A mudança ínfi- nha mais força neste mundo de tempo e espaço instantâneos, no
ma de uma delas (e são tantas!) impediria a existência física do qual todos podem saber de tudo, ao mesmo tempo em que os
cosmos. fatos ocorrem.

144
mito apresenta-se com o sentido da ideologia. não é
roupagens. Estranha roupagem que dá ao mercado a qualidade
OJ uma verdade, mas é vivido como tal. Ele não é um conceito, é
ro ética de resolver, para melhor, as condições materiais humanas

e mais uma vivência. Ele não é para ser compreendido, mas segui-
<OJ
e
envolvidas pela economia. Aí reside a grande contradição: o mer-
t'.OJ do e até mesmo adorado. Ele não é aberto ao diálogo. Ele exclui
o.
cado é ávido por natureza, é impessoal, transnacional e especulati-
aqueles que nele não acreditam ou o criticam. Ele se põe em um
o
o.
vo, viabilizado por instrumentos tecnológicos que potencializam
E patamar para além da razão, pois se configura como um instru-
~ sua ação e fazem com que os capitais, velozmente, entrem ou
o mento de estimulação atitudinal, de movimentação de condutas
-o saiam de países em função de bolsas favoráveis ou desfavorá-
ro
.!: e de obediência ativa. Finalmente, como substituto de crenças
u
OJ
veis, ou mesmo por meio de intervenções especulativas acelera-
q::
mais profundas, ele é dado como definitivo, como o topo da
ro
-o das pela tecnologia, o que pode, em horas, arrasar uma econo-
Ul evolução, da fé ou da história, não devendo, por isso, ser contes-
o
.!:
mia não metropolitana.
li= tado pelos atrasados ou infiéis .
Ul O mercado é um ente sensível e nervoso, cuja instabilida-
o A globalização é o mito de hoje. O problema é que muitos
de leva à oscilação, quedas e crises, que se reproduzem nas eco-
de seus críticos, ao contestá-la, constroem contramitos, como
nomias emergentes e periféricas. O mercado desregulado é pre-
certos estatalistas que acreditam no estado como entidade per-
datório e, no mínimo, aético.
manente, benfaseja e autônoma.
A globalização, tal como é entendida pelo senso comum, cons-
Não podemos negar que a contribuição tecnológica, da in-
titui-se grande provincianização. Os modelos econômicos, políticos
formática e da automação trouxeram o aumento da comunica-
e culturais das metrópoles são exportados para o resto do mundo,
ção e da interferência dos seres humanos entre si. Talvez esteja-
pasteurizando as culturas, indiferenciando as regiões, estandardizan-
mos caminhando para a grande tribo de McLuhan.
do os consumos e dilacerando os processos produtivos.
Também está claro que o impacto tecnológico na produ-
Mas esse fenômeno, como todos os fenômenos sociais, não
ção está levando à diminuição dos empregos e à necessidade pre-
é uno. Ele é pleno de contradições internas. A mesma velocidade
mente de profissionalizar o que antes não era profissional.
que proporciona os lucros especulativos é a que engendra movi-
Além disso, essa socialização da informação caminha em
mentos de resistência. A mesma sofisticação produtiva que ori-
duas direções opostas. De um lado, isola as pessoas umas das
gina grandes empresas é a que cria grupos pequenos, de alta con-
outras, pela intermediação de artefatos tecnológicos; de outro,
centração de saber, aptos a demolir as grandes plantas produti-
estimula diálogos e reconhecimentos entre seres que, em outros
vas internacionais. A mesma mobilidade de capitais gera o enfra-
tempos, nunca poderiam se comunicar, levando à emergência de
quecimento das fontes de lucro e a crise de capitalização.
movimentos sociais com recortes imprevisíveis, com repercus-
Se enxergarmos a globalização como fenômeno uno, ca-
sões ainda não mensuradas, em termos políticos, econômicos ou
minharemos para um mundo de poucos incluídos e muitos ex-
culturais. É um paradoxal fenômeno de alienação e desalienação
cluídos, como já vem acontecendo aceleradamente.
proporcionado pelos mesmos novos meios de comunicação.
A globalização está assentada em crenÇas paradoxais:
O mito da globalização vem baseado em outra crença: a da
- a da inter-relação de todo o globo, mas com a prevalên-
onipotência do mercado. A velha "mão invisível" ganha novas
cia hegemónica de poucos;

146
147
VJ ;;o
o
~ 0-
.3Q_ - a do mercado como "mão invisível" reguladora da soci- humanos em relação aos problemas do mundo e engendra cabe-
(IJ
;:::i.
o
2
QJ edade, mesmo que ele seja absolutamente aético, especulativo e ças sem ontem nem amanhã, sem o outro e sem sonhos, a não ser '!>
('()
!1
'Li
e atraído pelo lucro otimizado; o de ter e o de conseguir, de qualquer forma, dinheiro para con- Q_
<QJ (D
e
t'.QJ - a da prevalência da cultura da~ metrópoles sobre a diversi- sumir, ou simplesmente sobreviver e envolver-se na ilusão fugaz )>
lO
e
Q_
dade de manifestações das sociedades, só que isso mata a criativida- de força e eternidade; õi'
-,
o
Q_
E de e as contribuições plurais que a própria economia pode receber; - a da educação pragmática, para o mercado, para a desi-
2
o - a da informação on fine, instantânea, para todo o globo, gualdade, para a elisão do ético, do sensível, do passado, da Ter-
"O
('()
.e mas uniformizante e indutora de seus consumidores; ra, da diferença, o que facilita a dominação, a manipulação dos
u
QJ
t;:::
('()
-a da "civilização do conhecimento", que significa avanço desejos e o ocultamento da situação real de cada um;
"O
VJ tecnológico, mas também exclusão, desemprego, dilaceração de - a da predominância da "opinião pública'', que é mais um
o
.e
iE países e enfraquecimento da humanidade como um todo; constructo induzido de opiniões, desejos, crenças e perspectivas
VJ
o - a da globalidade das crises, que devem ser internacional- criadas pelas tecnologias de mídia e orientadas por gostos, ne-
mente resolvidas, mas que envolvem países e sociedades que po- cessidades criadas e imagens virtuais obscurecedoras de consci-
deriam viver por si, sem essa perversa participação; ências, a retirar das pessoas a concretude da cidadania e a trans-
- a do fim da história, por ter a humanidade chegado ao formá-las em consumidores abstratos.
seu ponto final de "evolução", o que faz restar aos seres huma- Esses poucos aspectos paradoxais levantados já mostram
nos tão-somente seu sucesso ou seu fracasso individual; a fragilidade deste momento econômico-político e seu caráter
- a do realismo político, econômico e social, significando transitório, a orientar os rumos da ação daqueles que prenunci-
o fim do direito de sonhar e prever; am, no presente, o que pode ser construído no sentido de um
- a da disputa e a do combate como motores dos avanços outro futuro.
da sociedade, o que mata toda possibilidade de solidariedade, A inter-relação humana no mundo pode ser redirecionada
considerada como atitude "romântica"; no sentido da admissão da participação de todos, respeitadas as
- a da religião como freio ou estimulação de práticas pre- suas ricas diferenças. A mesma internet que facilita compras, que
conceituosas ou discriminatórias, já que a verdade e a salvação acelera mercados, pode ser arma poderosa para movimentos
são problemas individuais de "escolhidos", impedindo o amor, formados por pessoas que nunca se conheceram ou se conhece-
visto tão-somente como uma afirmação retórica; rão pessoalmente. É o uso da rede com sinal contrário, visando a
- a da "natural desigualdade" de oportunidades entre os objetivos opostos às tendências hoje vigentes.
seres humanos, o que cliva a humanidade em seres superiores e O mercado aético gera contradições. A cada dia há mais
inferiores e resgata o lado perverso das velhas doutrinas da pre- exclusão, a cada momento explodem crises fulminantes que invi-
destinação, além de ressuscitar, de forma sofisticada, os recentes abilizam sociedades em questão de horas. A negação da existên-
horrores históricos do fascismo e do nazismo; cia do mercado, ou do impedimento de su.à existência, é uma
- a do consumo como instrumento da realização humana, atitude, ao menos, historicamente ignorante. A questão séria é a
o que ocasiona evidente desligamento e alienação dos seres de considerá-lo a marca e o paradigma para nossa vida social.

148 149
U)

~
3o. de uma sociedade-espetáculo para uma que trabalha
O mercado só estará domado a partir de alguns movimen-
2 com os dados reais; de trabalhar pelo renascimento da palavra
(lJ tos opostos, como o de abandonar a distinção rigorosa entre o
ro
·o eclipsada pela imagem passageira; de reintroduzir o complexo
e público e o privado, com o abertura de um terceiro setor no qual
<<U
e em oposição a uma pseudosimplicidade estioladora, combaten-
~
a cidadania assuma funções públicas, sem o mero objetivo de
(lJ
o. do a mediocrização, que é necessária para que nós compremos
lucro; como o da criação de novos empregos que nunca existi-
o
o. sem precisar, não nos preocupemos com o sentido da vida e
E ram antes, pois relacionam-se a atividades antes consideradas
2 façamos de nosso conhecimento mais uma mercadoria no cená-
o voluntárias e naturais de mulheres ou de homens. Além disso,
"O
rio. A velocidade na informação não pode continuar a ser uma
ro
..e
u
impõe-se a criação de impostos internacionais para atendimento
(lJ manobra diversionista para exilar o ser humano do mundo do
<;:::: dos famintos, com seus frutos direcionados à distribuição de bens
ro
"O dado que o cerca e de si mesmo.
U) e gêneros, treinamentos de produção e educação no mundo; o
o
..e A chamada "civilização do conhecimento", a "terceira
{E perdão progressivo das dívidas externas dos países; a modifica-
o
U)
onda", nada mais é do que a posse de conhecimentos tecnológi-
ção de natureza e função de organismos internacionais como o
cos, de concepção, produção e administração para aumentar a
FMI; a radicalização das democracias, com a emergência de no-
racionalidade de obtenção de lucros. Logo, esse tipo de conheci-
vos canais de participação e decisão; a criação de entidades in-
mento é avesso ao humanismo, à história, à artesania e às formas
ternacionais para a reflexão e a ação sobre o problema do esque-
produtivas menos sofisticadas. Essas formas, para as atuais con-
cimento do ser humano na política e na economia e a elaboração
cepções, constituem-se folclore, desde que elas mesmas setor-
de formas e movimentos para essa inversão de caminho são
nem rentáveis no mercado consumidor. Esse é um modo exclu-
mudanças de rota que deverão ser implementadas.
dente de encarar o trabalho.
O ser humano se perde quando perde seu chão, seu céu,
Não podemos negar os avanços tecnológicos nem cercear a
seu grupo e seus valores. A diversidade da inserção humana é a
liberdade de pesquisa, mas tudo isso só pode ter validade se esti-
garantia da unidade e da compreensão entre nós. Os pacotes, os
ver voltado para a melhoria da qualidade de vida da humanidade e
importados, os standards televisivos, informáticos, teóricos e
para o desvendamento do mundo fenoménico. A produção do
ideológicos não devem correr mundo como verdades, como
saber só tem sentido nessa direção. Por mais que se diga que as
one best wqy. É preciso que se trabalhe cultural e educacional-
guerras possibilitam avanços, é preciso sempre lembrar que a vida,
mente na diferença, no amor à história, à terra e ao céu, ao
a vida com dignidade mínima é pré-condição para a própria pro-
lugar em que nascemos, no respeito ao que nos dá identidade,
dução do saber. Não há jeito: por mais que se proclame ser a ciên-
sem que isso signifique chauvinismo ou nacionalismo de direi-
cia neutra, ligada a ela, por essência, está a ética, que não orienta
ta. A cultura das metrópoles existe para que dialoguemos com
somente a conduta dos aplicadores das conclusões científicas mas
ela, mas não como padrão ao qual as outras culturas devem '
a dos próprios pesquisadores em seu labor criativo.
acríticamente se submeter.
O saber, por sua natureza, só pode ser- excludente? Não é
A informação instantânea é útil, mas há de ser analisada,
possível a produção de conhecimento que inclua os seres humanos
para não se tornar fator de desmobilização da cidadania, de in-
econômica, política ou espiritualmente?
dução de individualismos isolacionistas. Temos de mudar o eixo

150
1
;o
l/l
o
cr
~ ro
.3o.. O conhecimento só pode ser produzido por uma casta para Significa assumir uma linearidade empobrecedora na compreen- ;:i.
o
2
beneficiar outra? são do fenômeno humano. Significa aceitar que a Razão deu sua "?

C1J
·o É da essência do saber, como se fosse um mundo ontologi- ordem final, ao construir e recortar um mundo livre e comercial o..
e ro
<Q)
e camente darwiniano, a negação do outro, a indução da desigualda- para uns e letal e escravagista para outros. Pobre razão... )>
lO
~ e
Q)
Além disso, que pobre humanidade que já não mais tem o õi'
o.. de e a necessária apartação para se manter um tipo de ordem? -,

o direito de sonhar, nem de prefigurar utopias no hoje. Vivemos a


o.. O ideal desse tipo de saber é o do conhecimento para pou-
E
2 cos e 0 da ilusão para muitos. Não estaria aí o novo rumo das mesmice exasperada do mercado, os sofrimentos dos embates
o
"O
C1J desigualdades, dominações e opressões? "naturais", pois solidariedade, paz, respeito ao outro e ao ambi-
.e
u
Q)
;:;:: As crises econômico-políticas são globais. Como vírus sem ente são facetas enfraquecedoras dessa espécie zoológica que só
C1J
"O controle, elas, quase em tempo instantâneo, eclodem em todo o vive e sobrevive se sua razão tiver dentes para morder e sangue
l/l
o
.e mundo desestabilizam economias, balançam governos, matam em suas garras. Temos de apostar no risco de construir coletiva-
iE ' .
o
l/l
investidores, empobrecem populações e sempre são combatidas mente a história, morta para alguns, que com isso só querem o
por remédios receitados pelos próprios geradores de crises, que monopólio da anti-história para os grupos hegemônicos.
assim reúnem em suas mãos a patologia e a cura, que é também Realismo e pragmatismo são duas palavras da moda. De-
patológica. A •
senvolver uma política realista e uma economia pragmática trans-
O reverso das crises é o sucesso do modelo economico- formou-se em ideal para a felicidade do mundo. A inevitabilida-
político hegemônico. Se de um lado a crise se universaliza;. de de do perverso fez com que aguçássemos nosso sentido de so-
outro 0 sucesso se localiza. O sucesso é localizado, estreito, brevivência, admitindo nossa impotência perante a realidade.
'
monopolista e ensejador de desigualdades entre seres humanos, Realismo de uma só realidade, de cuja construção não participa-
produtores, governos e Estados. A máxima é: crise para todos, mos, da qual não somos beneficiários, com a qual resistimos em
sucesso para poucos. Recebimento para poucos, pagamento para conviver, por sua crueldade e mediocridade. É ela única, onipo-
muitos. tente e determinadora, e cresce para nos esmagar ontologica-
Só a quebra dessa lógica poderá fazer surgir uma humani- mente.
dade mais feliz. E isso acontecerá no momento em que a eviden- Essa visão, de um determinismo primitivo, engendrou um
te destrutividade desse modelo passar a inviabilizar a vida da realismo deformado que descrê de que o ser humano possa in-
espécie humana, sua continuidade e preservação. A "s~leç~o n~a­ terferir nessa realidade inexorável. Esse senso comum suicida e
tural" intra-humana é mortal, enquanto as relações amma1s nao mascarador impõe a construção de uma nova visão de realida-
admitem a morte no interior das espécies, salvo em casos especi- de. Esse neorrealismo não pode ser passivo, objeto e marionete
ais. A disputa tem limites no mundo animal, mas não tem peias de regras que são aceitas acriticamente como naturais. É preciso
entre os seres humanos, dentro do atual padrão civilizatório. uma dose de desatino, uma pitada (para não dizer uma colher)
Crer no fim da história, outro esteio dos mitos contempo- de paixão, para não nos transformarmos em exércitos de clones
râneos, significa crer no fim do tempo-espaço, o que, no mínimo, caminhando para a dissolução. A pergunta é a seguinte: somos
é um absurdo. Significa crer no fim da criatividade humana. realistas de que realidade?

152 153
;o
U) o
O"
~ CD
.ao.. mesma direção está o pragmatismo. É a prática de uma dízimo ao alfange, da lavagem cerebral ao extermínio, das salva- ;:::\.
o
2 ções suicidas à aniquilação. '!>
QJ conduta conformista, que joga para ganhar nos estritos limites ~
ro
'ü das regras do jogo, que são incontestáveis, mas que não foram As religiões institucionalizadas só terão lugar em uma so- o..
e CD
<QJ
e
urdidas por nós, destinatários de seus teores. É a admissão quase ciedade mais saudável se trabalharem no sentido da solidarie- )>
lCl
t'.QJ e
o.. dade, da paz e do diálogo. Se assim não o fizerem, entrarão na ~·
que maniqueísta de que o ser humano é mau e destrutivo, a quem
o
o..
resta como única opção matar ou morrer. É a busca incessante voragem destrutiva da disputa mercadológica e até mesmo
E
2 bélica, onde existem empresas mais competentes, que irão ma-
o
"'CJ
de resultados e sucessos, independentemente do que eles signifi-
ro
..e quem, ou do dano que possam causar. A transposição dos esco- nipulá-las, deformá-las e, mais tarde, substituí-las por ilusões
u
QJ
;;::
lhos representados por esses conceitos de realismo e pragmatis- mais prazerosas.
ro
"'CJ
U) mo redundará num salto ético, tecnológico e de produção que Para manter essa crença no valor salvífico da globalização,
o
..e
tE poderá estabelecer novos eixos e paradigmas para as relações foi preciso desenterrar a velha crença da desigualdade natural
o
U)

entre os seres humanos e não humanos. entre os seres humanos. Foi preciso continuar com a releitura
Toda essa concepção globalizadora adentrou nas religiões perversa de Agostinho, concedendo a graça divina para alguns
não somente por via dos ritos televisivos e das igrejas eletrôni- em detrimento de outros, independentemente dos méritos ou
cas, mas por uma perversa lógica de mercado que invade as prá- das boas obras. Assim, sempre haverá justificativas para explicar
ticas religiosas, acirrando uma antiga contradição: a da pregação as injustiças e as desigualdades. Sempre haverá motivos para se
do amor que salva e do ódio aos que não pertençam ao rebanho. compreender as conquistas, as intervenções e o extermínio dos
Ao lado disso, as instituições religiosas começam a funcionar sob não-agraciados, o que propicia, em mão inversa, o perdão pré-
uma lógica bancária, disputando fiéis, idéias, dinheiro e merca- vio das crueldades cometidas em nome da concorrência da dis-
'
dos, como qualquer empresa em exercício. As mensagens se tor- puta e da ordem mundial estabelecida pelos mais fortes. Crer na
nam individualistas, de salvação pessoal, de sucesso amoroso e desigualdade original é a base da justificação de um padrão des-
financeiro, a retirar o tradicional sentido da palavra religare) 67 que trutivo, letal e desagregador, "pós-moderno" para alguns.
sempre marcou as religiões. O consumo é o grande rito daqueles que têm alguma posi-
Esse mesmo padrão de relacionamento, que desenvolveu ção nessa nova religiosidade medíocre. Faz lembrar a expressão
práticas excludentes e homogeneizadoras, estimula o aparecimen- de Mounier: le bourgeois ne fait que vouloir avoir pour eviter d)être. As
to de fanatismos religiosos, que são reações perversas à exclusão grandes igrejas da globalização são os shopping centers da salvação
social, econômica, política e cultural. mercantil. Lá as pessoas comparecem não somente para comun-
uma prática de religiões anti-ecológicas e isolacionistas, gar da hóstia do mercado, que é a compra, mas para se relacio-
que negam a própria essência das religiões, que propiciam con- nar, sentir a ilusão de compartilhar com outras pessoas, saber
dutas discriminatórias, homicidas e anti-humanas, pois se torna- das novidades, que embora não possam ser adquiridas, são estí-
ram, como qualquer empresa, donas do capital verdade, num mulo para que se trabalhe mais e se economize mais para atingir
mercado cruel em que as vidas podem ser ceifadas em nome da o êxtase da aquisição. É interessante notar que o grande prazer
vida verdadeira. Nesse campo de disputa, tudo é válido, do está na aquisição, pois a fruição das mercadorias é rápida, na
;;o
l/l o
o-
~ ro
.3o. medida em que o foco de atenção passa fugazmente, via propa- nos grandes centros urbanos para evidenciar sua outra ponta sel- ;:+
o
2 ?>
QJ ganda e mídia, para outros bens. vagem.
cu ~
·o Como toda religião, o shopping center é excludente. Os que Daí toda a crise educacional, que mostra a existência de o.
ro
e
<QJ
e
não têm, os que não podem comprar, os que não usam as modas instituições medíocres para aqueles que não devem saber demais, )>
lO
t'.QJ e
o. e os desleixos programados das vestes, não têm como entrar. pois não são os eleitos do poder; devem receber instruções prag- ..,õ:i'
o
o.
E Seguranças guardam os templos a fim de garantir a presença dos máticas que treinam os indivíduos para a adequação às exigências
~
o eleitos do deus-mercado. dos mercados e desenvolver suas aptidões técnicas de forma acrí-
"O
cu
.e Como todo templo religioso, os shoppings têm a pretensão tica e especializada. Elas trabalham no sentido da preparação
u
QJ
q:: à universalidade. Por isso, estejam onde estiverem, têm o mes- para a disputa, para a concorrência, para a visualização do outro
cu
"O
l/l
mo aspecto, a mesma arquitetura teleologicamente concebida como competidor, ou do outro como uma presa a ser caçada,
o
.e
\;:: para vender e proporcionar lucros, os mesmos altares de con- conquistada e consumida, sem qualquer reflexão histórica, cultu-
l/l
o sumo representados pelas marcas e estabelecimentos internacio- ral ou ética mais aprofundada. Os destinatários de suas ações são
nais e os mesmos objetivos de atração de fiéis, ou melhor, con- marionetes muito bem treinadas.
sumidores. Estas breves considerações mostram que a globalização,
Os shoppings representam a ortodoxia do mercado contra a tal como hoje é entendida e praticada, marcada pela importação
heterodoxia da fome. São lugares de proteção, ilhamento, alum- de matrizes metropolitanas, apresenta contradições sérias que
bramento e alienação. São centros de fantasia, de desejos, de dis- levarão à necessidade de sua substituição, sob pena da inviabili-
putas e jogos, de concorrências e conquistas, de impressão de zação da humanidade. Certamente, com os mesmos meios tec-
felicidade, de pretensão à paz entre as famílias, pela mediação nológicos, já existem grupos de cidadãos trabalhando nessas evi-
das mercadorias. dentes fissuras, que mostram a necessidade da construção de
Os adeptos dessa religião têm a crença na eternidade do outros patamares de relações entre os seres humanos e entre es-
mercado, sem considerar a finitude do mundo e a exasperação tes e a natureza. É questão de sobrevivência e de resgate de uma
de seus problemas. O consumo é entrópico. A cada momento, ontologia perdida.
menos matéria-prima existe. É preciso investir mais na virtuali-
dade para criar novas ilusões aquisitivas. Mas isso tem limites
materiais e econômicos. Não há um crescimento de outras es-
truturas com o consumo, não há "estruturas dissipativas" que A globalização é o estágio mais avançado de um padrão
urdam novos saltos. O consumo se esgota no ato aquisitivo, civilizatório marcado pelo patriarcalismo, pela guerra, pela com-
não cria mais nada. É, como prática e crença sustentadora, en- petição, pela divisão do ser humano em relação à natureza, pela
trópico. desigualdade social, pela clivagem de gêneros e pela crescente
Logo, está fadado a ser substituído como modo de vida exclusão.
fundante, seja por razões materiais, seja pelas contradições e Não devemos negar, em função dos aspectos perversos da
exclusões que gera. Basta associar o consumo com a violência globalização, que a humanidade comprimiu-se. Mesmo

156
(f)

~
.3D.. geograficamente distante, ela, pelos meios de comunicação, pela
2 uma estrutura loteada, na qual o é e se
(lJ internet e por outros recursos, tem conhecimento do que aconte-
fU
em sua internalidade, um campo de disputa econômica entre
"ü ce deformadamente ou não, em todo o mundo.
e
<(])
e ' pos, o que, no âmbito político, propicia a construção de credenda e
t'.(lJ Negar isso é cegueira. Negar que existe a possibilidade de
D..
de linguagens retóricas que têm como finalidade dar significado
interferência recíproca em todos os quadrantes é, no mínimo,
o
D..
público a consensos econômicos ou a mensagens sociais que ape-
E rejeitar uma evidência. nas refletem a hegemonia momentânea de certos grupos. Esta-
2
o O problema é que esses fenômenos estão ligados a uma or-
u do, por essas ambigüidades, torna-se um instrumento em crescen-
fU
..e dem econômica mundial absolutamente perversa e destruidora,
u
(lJ
te descrédito, por não traduzir poder algum, por abdicar de sua
<;:::
cujas práticas são movidas pela disputa sem quartel pela sobrevi-
u
fU competência originária e por perder progressivamente sua legiti-
vência mediante o domínio e o extermínio do concorrente.
(f)
o
..e ' midade, seu reconhecimento e a força de seus comandos, que se
q:: Daí uma certa leitura ingênua de negação dos eventuais as-
(f) desvestem de sua imperatividade, condição para a eficácia.
o pectos positivos que essa situação mundial permite. O pressu-
No mundo globalizado, a sociedade se fragmenta em um
posto dessa posição é o de que a globalização é um bloco único
neofeudalismo no qual o Estado perde a força e a sociedade se
e sólido, quando ela é, por sua natureza, um fenômeno fragmen-
atomiza em grupos econômicos conflitivos e em corporações
tário, um constante conflito, com a prevalência daqueles que de-
que lutam pelos interesses de seus associados sem levar em conta
têm os cordéis econômicos do mundo.
0 prejuízo ou os problemas que possam causar, o que diminui a
A leitura que aceita a inexorabilidade da globalização tam-
própria significação de seus membros, que perdem a riqueza de
bém está assentada sobre um entendimento dual da sociedade.
seu espaço multifacético para se moldar à abstração que é deno-
De um lado, aparecem os Estados com suas funções; de outro,
minada de categoria.
os particulares, que se organizam em entidades privadas que pro-
O povo, a cultura popular ·e a tradição histórica são elidi-
curam concretizar seus interesses.
dos da reflexão e se transformam em opinião pública, conceito re-
Há um pressuposto de egoísmo de base para essa concep-
ativo que responde aos estímulos das induções dos institutos de
ção de organização social: a sociedade só se organiza em função
pesquisa, que representam, e tentam moldá-los na cabeça cada
de interesses direta ou indiretamente particulares, e nunca pode
um, os interesses, produtos, idéias e pseudovalores de grupos
desenvolver atividades econômicas senão em busca de lucros ou
econômicos, políticos, ideológicos ou religiosos. cidadania não
vantagens, razão de ser de qualquer atividade econômica.
é mais pergunta, ela é resposta, a partir da indução e dos ""''-'·"'"~·~. .
Também é ingenuidade virar as costas para o mercado, não
tos prévios dos que supostamente pesquisam. Não é mais ativa,
como um deus solucionador de conflitos e construtor da felici-
mas é mais determinante, mas derivada.
dade, mas como um ente econômico que é constituinte das eco-
abstração se torna concreta. Ela exerce um
nomias contemporâneas que superaram o escambo e o consumo
roso que constrói, destrói, dilacera ou trama. não
em festas das práticas econômicas primitivas.
são dinheiro visível (que já é um meio de troca abstrato), mas
O espaço público do Estado vive uma crise. O Estado se
eletrônico, em quantidades, movimentos e
confunde com a própria atividade privada e caracteriza-se como
absolutamente ininteligíveis para o cidadão comum.
Vl ;;o
~ o
0-
.a
Q. O impacto tecnológico revoluciona a produção e cria um detentores de direitos iguais; das mudanças atitudinais que tornem
(ll
;:::\-
2 º
Q) paradoxo: baratearia os produtos em uma ponta e retiraria a ca- o econômico um instrumento de plenificação humana, e não um "?'
ro ~

e pacidade de compra dos consumidores na outra, pela ausência determinante inexorável contra o qual não podemos lutar; de se Q.
<Q) (lJ
e
t'. crescente de empregos. O consectário desse fenômeno é o cami- considerar a interioridade humana como um espaço tão comple- )>
lQ
Q)
Q.
e
nhar destruidor das crises econômicas e políticas pelos países e a xo quanto o cosmos, e, por isso mesmo, o berço de toda a criativi- ãi'
'"1
oQ.
E crescente concentração de renda, que aumenta a distância social dade, de tudo o que é novo, do maravilhoso e do perverso, sede
2
o
\J
em cada país e a distância econômica entre países, radicalizando da liberdade e da servidão, da autonomia e da resistência às coa-
ro
..e
u
hegemonias e desigualdades. ções, opressões e coerções; de entender que a riqueza da humani-
Q)
q::
ro
Os movimentos transformadores ainda não captaram as dade está na diversidade de suas criações culturais, com o abando-
\J
Vl
o
modificações do mundo e não aceitaram enfrentar com serieda- no de uma linearidade evolutiva, hoje negada pela própria biolo-
..e
;.;:: de a questão da globalização, ora propondo soluções de ontem, gia; da construção de uma relação ser humano/ natureza que parta
Vl
o ora admitindo a inexorabilidade desse fenômeno. Em suma, per- do pressuposto de que o primeiro é um ser da natureza, e não um
deram o fundamental: sua dimensão utópico-revolucionária. sujeito que a domina para construir seu mundo, donde decorre a
Revolução ainda permaneceu um conceito armado, uma to- necessidade da construção de uma sociedade humana em que a
mada violenta do aparelho de Estado, e não uma reviravolta em sustentabilidade e o diálogo cultura/ natureza sejam a base do es-
conceitos, práticas e valores, já que os transformadores ainda não tabelecimento das relações humanas, da produção, da política e
tiveram a coragem de interferir nos valores e conceitos de base do próprio auto-entendimento do ser humano.
que os movem, que são, infelizmente, os mesmos que impelem à Esse. movimento pode ser chamado de mundialização e
globalização: a disputa, a concorrência, a destruição do inimigo, pode utilizar-se revolucionariamente dos meios tecnológicos, da
a negação do outro, a manipulação ou a negação dos desejos, a informática, da automação, da mídia, da administração e da com-
categorização dos seres humanos, a crença segundo a qual é o pressão da humanidade que hoje existe, para práticas desenvol-
econômico que direta ou indiretamente determina a vida social, vidas com sinal trocado, tanto do ponto de vista ético, quanto
a não-consideração da interioridade humana, o desrespeito à di- do ponto de vista político.
versidade cultural, a radical separação entre o ser humano e a Há de se construir, neste momento limítrofe de um novo
natureza. Renascimento, ou de recuo para a velha barbárie, uma movimen-
O conflito se estabelece entre adeptos da globalização e tação mundial que redirecione os caminhos paradigmáticos do mun-
adversários da globalização. Todos municiados com as mesmas do. É a oportunidade de sobrevivência e de salto qualitativo da
armas, partindo dos mesmos pressupostos. humanidade e o estabelecimento da abertura para novos caminhos.
Por isso, o sentido revolucionário nesse complexo mundo
deve tematizar as possibilidades políticas da solidariedade, da
aceitação do outro, do diferente, do de outro gênero; da aceita-
ção dos desejos como instrumentos de avanço nas relações entre O ser humano não é mais encarado como obra divina, nem
os seres humanos; da real isonomia entre eles, entendidos como como culminância da criação. Nem mesmo é entendido como

160
;;o
Vl o
~ cr
ro
.3o.. 68
individua substantia rationalis naturae. Nem é habitante de um es- ou metafísicas, como quis o positivismo francês, de tão grande ;:i.
o
2 influência no Brasil.
<lJ paço privilegiado no cosmos. Nem é predestinado a nenhuma ""?'
ro !1

e
missão. Perdeu sua alma, sua ligação com as divindades, seu elo O mensurável e o experimentável tornaram-se critérios de o..
<<IJ ro
e
com os outros, sua finalidade e sua honra em ser escolhido para verdade. Não mais uma verdade revelada, como a emunah he- )>
t'.<lJ LO
e
o..
algum papel. Tornou-se um ser relativo de um planeta periférico, braica, nem uma verdade testemunhal, como a veritas latina, mas ~-
o
o..
E ligado a uma estrela decadente, uma centelha dentro de uma ga- um sentido estrito e recortado da alétheia grega, que a entende como
2 atributo de sentença: verdadeira ou falsa é a afirmação que é feita
o láxia dentre bilhões de galáxias. A morte é o fim de tudo e o ser
"D
ro
..e humano nada mais é que um animal mais apto. sobre determinado fenômeno. O noumenon, o que não é filtrado
u
<lJ
t:;:: Esta é a concepção básica, apesar dos esforços religiosos, por nossas sensações e percepções, é incognoscível, ou mesmo
ro
"D
Vl
das reações fundamentalistas e das visões da nova era. inexistente. Outras considerações para além disso correm o risco
o
~
t;:: O resultado disso é a busca de alguma significação neste de ser consideradas meras perfumarias de mentes primárias.
Vl
o momento passageiro de semiconsciência que constitui nossas vi- Assim, uma ciência da externalidade se constitui de tal for-
das. As implicações éticas desse entendimento são sérias. Se o ser ma que, no âmbito do humano, chegou-se ao "behaviorismo",
humano é um acidente que nada tem a ver com sua imensidão que encara o ser humano como um feixe de estímulos e respos-
indiferente do cosmos, nada obsta que ele faça da dominação de tas, como externalidade comportamental.
seu pequeno mundo o fulcro de seu existir. Como não existem O máximo que se admite é a determinação genética, con-
peias metafísicas ou naturais, não há limites à conquista, nem obs- gênita ou química, pois, com a especialização científica, o ser hu-
táculos para a "sobrevivência dos mais fortes". A disputa, a con- mano é esquadrinhado em compartimentos, dividido em limites
corrência e a aniquilação do mais fraco são manifestações "natu- traçados pelo campo de incidência de cada ciência, pelos seus
rais". Até mesmo as religiões foram imbuídas desse entendimen- objetos, como é dito.
to, quando o calvinismo abandona a identificação do cristão com Esse entendimento abdica de tratar o ser humano como
a pobreza e torna a riqueza um sinal da graça divina, ao criar a totalidade ou profundidade, até porque isso é uma forma acien-
teoria da mordomia. tífica de encarar o fenômeno humano. Logo, também o ser hu-
sentido da razão passa a ser analítico, instrumental e ci- mano não pode ser conhecido, já que a totalidade e a internalida-
entífico, o que proporciona avanços explicativos, teóricos e tec- de não são mensuráveis ou repetíveis.
nológicos, mas cria o paradoxo da confiança religiosa em um Mesmo quando a interioridade desse ser é tematizada ela
'
conhecimento que, por muito tempo, caminhou em mão contrá- sempre paga alto tributo a uma ciência especial originária, como
ria à da religião. no caso da psicanálise, que tem sua origem e conceitos fundantes
ser humano usou da grandiosidade de sua mente para na biologia, o que permite sua grandeza e '"''--'''"'""'-1--'-'-'V"''--'-'-'-""'-'-''"'·
reafirmar, a cada momento, a sua própria insignificação. também impõe limites seus
O caminho dessa nova religiosidade laica foi marcado pela
arrogância da negação dos conhecimentos anteriormente pro-
duzidos, lançando-os na vala comum de produções fetichistas

162
;AJ
Vl o
~ c:r
ro
.3o. transcender o biológico e levar o instrumental analítico para ca- tradicionais, respeitadas as suas especificidades; a da quebra das ;::i.
o
2 lógicas clássicas, que ainda têm importância fundamental, mas '?'
(])
madas mais profundas do ser humano, sem temer as intersecções
ro ?J
·o com a filosofia, com as religiões, com a mitologia e com os co- que têm de conviver com novos instrumentos epistêmicos, como o.
e ro
<(])
e
nhecimentos tradicionais. o da dialética da complementaridade, tão cara e útil para a micro )>
:e
(])
lO
e
e a macrofísica contemporâneas; a da redescoberta da eficácia õi'
o. Mesmo o marxismo, que emerge como um humanismo ra- '
o
o.
E
dical e que expressa uma cosmovisão com implicações em todos de práticas antes consideradas não científicas ou atrasadas; a da
2 revalorização do ético como componente essencial da cidada-
o os âmbitos do humano, paga um preço à economia política, que
-o
ro
.i::
desvelou um mundo relacional, viabilizou o uso do instrumental nia; a da consideração do ser humano como aquele que, no uni-
u
(])
;;::: dialético materialista, mas empobreceu o tratamento do humano, verso até agora conhecido, dá significação às coisas, chama o
ro
-o
Vl
que é considerado determinado ou sobredeterminado, sem possi- universo de universo e é o sujeito que, como elemento cósmico,
o
.i::
;.;:::: bilidade de transcender o econômico, capaz apenas de contradito- o faz falante e autodesvelador, o que torna esse sujeito essencial e
Vl
o riamente estabelecer uma outra estrutura econômica libertadora. portador de uma dignidade que deve ser respeitada e preserva-
Essa questão das relações entre infra-estrutura e superestrutura da; a descoberta de que não vivemos na linearidade, mas no mundo
ganhou mais liberdade e abertura a partir do século XX, com as das possibilidades e de que elas dependem de nós, seja para sal-
69
contribuições de Gramsci e Poulantzas, por exemplo. tar para sínteses mais complexas e conscientes, seja para implo-
A ciência ainda não encaminhou a solução de problemas bá- dir esse caminho; a da constatação de que as regularidades estão
sicos da humanidade, que permanece como uma infra-humanida- se dando em extratos mais profundos, e não na superfície dos
de, por não reunir as condições necessárias para exercer suas po- fenômenos observados; a de que a matéria, em sua constituição
tencialidades. A fome, a disparidade de distribuição de riquezas, mais simples, é vazio e informação; a de que as enormes distâncias
as guerras, as desigualdades de gênero, os totalitarismos, os des- cósmicas não significam alheamento, mas inter-relação e interfe-
respeitos às diferenças, o desenvolvimento não sustentável, o aban- rência entre fenômenos de mesma natureza; a da admissão de
dono das crianças, a violência e a exclusão não tiveram encaminha- que não há como o ser humano desconsiderar a existência do
mentos práticos e coletivos. O mesmo pode ser dito sobre as ques- mistério, a partir dos limites de sua própria condição.
tões de saúde, educação e liberdade. Isso tudo está dependendo Tudo isso nos leva à necessidade de rever nossa concepção
de mudanças valorativas, de transformação na compreensão que do ser humano, reavaliar seu papel, desvelar o universo de sua
temos de nós mesmos, de intervenções no campo da interioridade interioridade e recuperar sua dignidade, o que quer dizer um re-
humana, que é negada quando tratamos de macroproblemas. A encaminhamento da humanidade a partir de novos entendimen-
introdução do desejo na reflexão política já foi um avanço, mas ~ tos que a própria ciência, hoje mais humilde, e por isso mesmo
preciso também tratar do amor, da paixão, dos afetos, da ética. E mais grandiosa, está a nos apresentar.
preciso resgatar o lado luminoso da paz e da solidariedade, em O maravilhoso, o misterioso, o inesperado, que buscáva-
contraposição à faceta sombria da guerra e da disputa. mos longe de nós, em nossa imaginação e nas crenças institucio-
Existem algumas transformações que não podem ser des- nalizadas, estão ao nosso lado, no cotidiano; no movimento dos
prezadas: a da aproximação da ciência dos conhecimentos fótons desta mesa em que escrevo; no ato de eu poder escrever;

164 165
Ul
;;:o
~ o
:J

o. na capacidade de tematizarmos a nós mesmos e o mundo; na o da psicologia analítica, embora enfrentando polêmi-
O'"
CD
;:::\.
2 o
QJ energia que podemos ter para sonhar e construir, no presente, cas, desde dua origem herética em relação à psicanálise. ~
ro
"ü um mundo mais solidário; no ímpeto transformador que pode- ?O
e
<QJ A divisão do homem em relação à natureza complicou a o.
~
e
mos apresentar; e na consciência dessa nova fase tão perigos~ em questão, pois sua natureza mineral migrou para a química e a me-
CD
)>
QJ lCl
o.
suas perversões e depravações, mas tão rica em instru~entais de dicina; sua natureza biológica dividiu-se entre a biologia e ames-
e
o ...,Qj"
o.
E modificação radical dessa espécie cósmica que faz o uruverso fa-
2 ma medicina; e sua natureza espiritual clivou-se entre a psicolo-
o lar criar e se autodesvelar. gia, a sociologia, a antropologia, a história, a etnologia, a econo-
"O
ro
'
.e
u
QJ
mia e a ciência política. O ser humano foi fragmentado de tal
i:i::
ro
"O
forma que é quase impossível recompô-lo como entidade una.
Ul
o
.e
Não há mais um grande olhar sobre ele. Vários olhares tópicos
tE
atravessam-no sob ângulos diferentes e de difícil inter-relação.
o
Ul
Já foi dito que a concepção de universo seria difer.ente .se
As atuais e necessárias experiências multidisciplinares tentam res-
no lugar do ponto de partida de seu estudo estivesse a biologia,
gatar os temas em sua complexidade e unidade, mas têm, ainda,
e não a física.
um grande caminho a percorrer.
Poderíamos acrescentar, de modo mais radical, que a con-
O ser humano é história. E uma história bem mais comple-
cepção de universo seria outra se o ponto de partida fosse a psi-
xa e profunda do que aquela que consideramos e estudamos. Ele
cologia, em sentido lato. .
traz a memória do cosmos em sua estrutura anátomo-fisiológi-
Estabeleceu-se um cenário no qual a externalidade predo-
ca. Nele estão presentes os primeiros movimentos de distinção
minou e a internalidade exercia um papel explicador, a partir das
da matéria, tão bem tratados por Max Planck. Também nele en-
várias linhas das teorias do conhecimento. Todo o conhecimento
contram-se as inúmeras partículas dos átomos, as moléculas e as
humano só tinha sentido para explicar o que estava fora dele ou
informações de cada uma delas que constituem o movimento
0 como essa exterioridade influenciava ou determinava o sujeito
que dá a aparência de concretude do material. Aí estão a liberda-
cognoscente. A interioridade humana era can:ipo da filosofia e
e a possibilidade dessas partículas. Suas células respiram o
da religião até há bem pouco tempo. O conhecimento voltava~se
ambiente daquela primeira "sopa" que possibilitou a vida. Seu
para explicar as relações entre os seres humanos ou p~ra criar
interior está marcado pelas reações e pelos estados primitivos
modelos que ora distinguiam o corpo da alma, ora aceitavam a
do engendramento da vida. Sua experiência de consciência se
tríade corpo, alma e espírito, ora encaravam o ser humano co~o
inicia no organismo monocelular. Sua protoconsciência ali já es-
mera matéria pensante (o pensamento visto como uma excreçao
tava nascendo.
do cérebro); ou ainda como um ser criado por
Ele contém do mundo mineral sua estrutura de base, sua
mesmo absolutamente heterônomo. Assim, seja para '-'-'-""·L~L~~~
' primeira organização mais complexa. Ele exibe em seu organis-
seja para colocá-los em seu devido lugar, seja para
mo a profunda relação infra-atômica e quântica do mundo físico.
. . . ~,,..,~L~, os seres humanos suas . . . v .........._,......_... ,~~,~~~
o ......

Assim, no que é mais simples e mais misterioso de sua constitui-


ção, ele já porta a possibilidade de se transformar e de saltar e

1 167
;:o
(/) o
~ O'
(D
.ao.. carrega a sombra do mistério de uma situação que precede a consciente que parece guardar na profundidade do cosmos huma- ;::i.
o
2 no a essência da experiência coletiva da humanidade. "!>
(j) diferenciação entre os seres e a emergência da temporalidade.
ro ~
'ü Dentro dele também está presente o salto da vida, o mo- Todas essas experiências estão a se relacionar em cada ser o..
e (D
<(j)
e mento em que as sínteses minerais foram tão complexas que cul- humano, a engendrar novas experiências e compreensões, a rei- )>
lO
~ e
(j)
terar problemas, a renascer por intermédio das dores, a reavi- ~·
o..
minaram em outra categoria de ser, com faculdade de gerar ou-
o
o..
E tro semelhante. ventar ações heróicas, a reperçutir sofrimentos ancestrais, a rees-
2 crever velhas dominações e medos vetustos, a recriar antigas his-
o Ele porta em si os avanços e tenteios do caminho vegetal e
-o
ro
..e animal, rumo à maior consciência. Em seu interior estão as vio- tórias, a expressar sofrimentos antes indizíveis, a sonhar velhos e
u
(j)
4= lências cometidas, as mortes perpetradas, os saltos das espécies, novos sonhos, a soltar ou reprimir imaginações e desejos, aman-
ro
-o
(/)
a fome, a dor, a saciedade, a sede, a maternidade, a paternidade, do, disputando ou auxiliando, jogando ou puramente doando,
o
..e
4= o desejo, a violência, os cuidados, as transformações e o crescen- construindo no hoje o que se prefigura para o amanhã.
(/)
o te desvelamento do mundo e o aproveitamento de suas caracte- Esse cosmos é história consciente e inconsciente, é projeto,
rísticas para manter a cadeia da vida. é pessoal e coletivo. É aposta de uma espécie que pode se aniqui-
Esse ser humano tem em sua carne o mistério das relações lar ou caminhar para os mais impensados caminhos.
cósmicas, os momentos imediatamente posteriores ao big bang, a O cosmos da interioridade humana, caótico, turbilhonan-
intuição de uma anterioridade indiferenciada e pré-condiciona- te, aberto e pleno de escaninhos escuros, participante da história
dora. Na sua memória celular estão inscritas as transformações cósmica, deve ser mais bem assumido e compreendido, pois ele
nervosas, neuroniais e fisiológicas que, conflitiva e amorosamen- é cognição, emoção, sentimentos, destruição e construção.
te, construíram o caminho da denominada evolução. Ele tem a O universo interior do homem tem uma ponte com o uni-
paciência vegetal, a crueldade dos carnívoros, a rapidez dos her- verso exterior a ele, com o qual interage e ao qual pertence. Ele
bívoros, os ovos dos mais simples seres vivos. Ele é geológico, fala, conceitua e se expressa por um sem-número de linguagens.
biológico e cósmico. Sua memória estrutural se perde em tem- Dos seres até hoje conhecidos, é o que nomina o universo exterior
pos imemoriais e até mesmo antes da temporalidade. e o interior. Ele é a linguagem desveladora do cosmos.
Ao passar nestes tempos por uma experiência exclusiva, o
ser humano é retirado do campo zoológico e lançado na abertu-
ra das probabilidades existenciais. Ele se cerebra de tal forma
que adquire a consciência de si e de sua finitude, conhece o co-
nhecimento e, crescentemente, tem a noção do pior e do melhor O ser humano, que porta a história do universo inscrita em
e internaliza o outro como parte de sua existência subjetiva. sua corporeidade e em sua interioridade, foi exilado de suas raí-
A partir desse momento, um novo patamar de memória nas- zes e origens por uma razão instrumental que o separou de tudo
ce: a memória do próprio caminhar humano, dos fatos, dos mitos, que o cerca. Reduziu-se sua incidência ao mundo da sociedade
da tradição, das lendas, dos deuses, heróis e demônios que povoam e da cultura. Apequenou-se seu mundo por via de métodos e
o consciente desses seres. Ela também informa uma memória in- técnicas eficazes, rigorosos, mas excludentes e redutores. Em

168 169
;;o
o
cr
suma, sua totalidade foi esquecida, em função de uma razão de reivindicar direitos para os dominados, tinham como escopo
(D
;:+
o
<lJ
ruptura na qual a emoção e a profundidade pairam nos campos mudar a ordem econômica, o que, automaticamente, levaria à ;i>
ro ?O
·u
e
das crenças, da imaginação e dos pensamentos desarticulados. modificação humana: o homem novo seria um novo homo o.
<<lJ (D
e
t'.<lJ
Ser humano é ser abstrato, é pertencer a categorias, é reduzir-se aeconomzcus. )>
lO
e
o. a modelos explicativos que dão conta dos invólucros e de suas A concretude do mundo mostrou uma outra realidade: a ~-
o
o.
E relações. Costurar as rupturas para encontrar o humano é tare- mudança de padrões econômicos por via de revoluções deixava
2
o fa fundamental para mudar o subsolo do relacionamento entre a marca das utopias, dos sonhos e dos ideais nas primeiras gera-
"O
ro
..e
u
os nós. ções. Essas marcas iam se esmaecendo nas posteriores, pois as
<lJ
q:: A desigualdade, a opressão, as repressões e toda forma de interioridades humanas não eram tocadas pelas lutas heróicas das
ro
"O
Ul
violência estão embasadas no estranhamento do outro, na não- transformações econômico-políticas.
o
..e
ti= aceitação da igualdade originária, na negação da história profun- Há um outro viés que esse paradigma criou: a revolução é
Ul
o da comum, no esquecimento da participação comum no drama sempre contra o Estado, para estabelecer outro, com contorno
cósmico e social, no encurtamento das origens pela interferência diferenciado, representando interesses opostos, o que desembo-
das nacionalidades artificiais, na criação de tradições inexistentes caria na eliminação desse Estado.
e no surgimento de etnias recentes, nos conflitos destruidores do No fundo, a revolução era uma justa substituição de pode-
passado e do presente, e na disputa hegemônica em termos polí- res dentro de um mesmo Estado. Esse Estado que deveria desa-
ticos, sociais e econômicos, que traduz uma visão suicida de fun- parecer sempre teve instrumentos para sua perpetuação, recur-
do. A fragmentação e a desigualdade tornaram-se naturais; ades- sos lúdicos para vestir com novas roupas os comandos velhos e
truição do mais fraco pelo mais forte, um imperativo das leis da levar o sonho de sua negação para as distâncias de horizontes
natureza. O ser humano não pertence a nada. A condição huma- inatingíveis. Assim, o binômio das responsabilidades revolucio-
na é o isolamento frente à indiferença do outro e à do meio. Ele nárias se cingiam ao poder e ao Estado sob a égide da economia
é um acidente passageiro em um universo apático. Sua memória e lançavam a política na esfera subsidiária das conseqüências ou
é curta como curtos são os seus pensares. reflexos, representada, quase sempre, por um partido único.
No fundo, dentro desse paradigma, o ser humano é artificial. Desse modo, as revoluções dos séculos XVII, XVIII, XIX
Tudo o que ele cria é seu, sem ligação com o meio que o circunda. e XX tiveram o condão de aperfeiçoar os Estados, melhorar a
Essa compreensão de si e do mundo gerou a errônea con- distribuição de renda, racionalizar a produção e consignar pro-
cepção básica de que o mundo natural está aí para ser dominado, gramaticamente novos direitos. Mas o cotidiano da cidadania
como se fosse uma despensa eterna. Em termos éticos, destruir continuou difícil e mesmo grandes avanços de conquistas cida-
outro ser humano ou se apropriar predatoriamente do mundo dãs foram quebrados por crises e/ ou modificações políticas dos
não gera nenhum efeito pessoal ou coletivo, pois o mundo não detentores do aparelho do Estado.
pune ninguém, a não ser que seja fraco ou pouco ardiloso. Nunca se pensou na Revolução como.lnstrumento de trans-
É essa ética da ruptura que sobrelevou o econômico como formação das próprias práticas políticas, de transformação radi-
base fundamental da existência humana. As revoluções, mais que cal das relações entre os seres humanos sem a necessária "tomada"

170 171
~
o
O"
do poder estatal, a partir de uma nova concepção coletiva do ser a da cidade, nem a do Estado, nem a do internacionalismo beli- (D
;::i.
o
QJ humano e de suas relações. gerante, mas do mundo, tecido complexo e complementar entre '!>
co ?C1

e Pensar e construir essa transformação impõe considerar o objetos naturais, quase naturais, culturais e espirituais. o.
<QJ (D
e
~ ser humano como um ente dialógico, com o tudo que o cerca e o Essa movimentação transformadora é possível dentro deste )>
\O
QJ e
o.
compõe. É preciso relembrar que uma pequena mudança das mundo do tempo instantâneo em que vivemos, no qual a veloci- õi"
-,
o
o.
E relações matemáticas entre os fenômenos físicos poderia invia- dade, uma de suas marcas, pode ser desmilitarizada, no sentido
2
o bilizar a própria existência do universo. No âmbito da comple- de servir ao encontro e à compreensão entre os seres humanos,
\J
co
..e xidade humana, o mesmo pode ser dito: qualquer relação quími- não a partir de comandos valorativos abstratos, mas com ori-
u
QJ
li=: ca, física ou biológica que possa ser mudada pela interferência gem na necessidade de sobrevivência, crescimento e abertura de
co
\J
Vl humana pode inviabilizar a vida, o substrato da vida e, em parti- possibilidades para o humano e para o mundo natural que marca
o
~
t;::: cular, a própria vida humana. O padrão da disputa e do domínio sua própria organicidade e do qual a humanidade depende para ser.
Vl
o é destrutivo para a totalidade do sistema físico, químico, bioló- Essas transformações são ao mesmo tempo moleculares e mun-
gico e social. dializadas. No atual estágio de compressão da humanidade, por via
A revolução não é mais uma questão de tomada de poder, dos meios de comunicação e da informática, toda molécula pode
mas de sobrevivência humana, para manter as pré-condições para percorrer a totalidade, assim como a totalidade pode interferir nas
saltos futuros da humanidade. Não há perspectiva de sobrevi- moléculas sociais. Nada é isolado. Toda resposta situada e local tem
vência e crescimento para uma espécie suicida. o potencial de se mundializar; toda resposta a problemas situados
O diálogo ambiental não é a negação do avanço da socie- pode se reproduzir em outras situações análogas, onde serão reela-
dade, nem de seu crescimento. Ele implica profundas modifica- boradas, recriadas e devolvidas para o todo social.
ções econômicas na produção, nas relações de produção, nas O Estado que hoje está enfraquecido, por não exercer po-
práticas políticas que devem transitar da guerra para o diálogo, deres reais nos setores mais sensíveis da vida social tem de cons-
'
do poder para o não-poder, das facções beligerantes para os gru- truir parcerias com esses cidadãos mundiais, a fim de facilitar e
pos cooperantes, do conflito das diferenças para a complemen- implementar essas ações sob novos signos. Isso o levará a ser
taridade entre elas, do ódio destrutivo para a paz construtiva, da outro, de outra natureza, e não mais central, pois a nacionalida-
exclusão assassina para a inclusão oportunizadora. de, que é seu fundamento, não será mais razão suficiente para
A política, mais do que um conjunto de estratégias e táticas justificar sua existência e suas práticas. Ele mesmo terá de se mun-
para alcançar o poder, deve ser um conjunto planejado de práti- dializar, de se cidadanizar e de mudar sua estrutura burocrático-
cas visando à sobrevivência da espécie humana, ao respeito às administrativa, orientá-la para outros fins abrir suas fronteiras
' '
suas diferenças, à preservação do mínimo necessário ao exercí- não para a dominação mas para a cooperação, já que elas não
cio de sua humanidade e à possibilidade crescente da unidade terão tanto significado. É a revolução que vem de baixo e que
humana dentro de sua diversidade. Essa política deve ser exerci- não tem a pretensão de estar no topo.
da para além de Estados, de nacionalidades, de tradições criadas Este não é um caminho feudal ou fechado, mas a via da
artificialmente, centrada em uma nova cidadania que não é mais emergência de organizações humanas coerentes com a

172 173
l/l
~
.aa.. contemporaneidade e aptas a dialogar com as velozes transfor- configuração subjetiva, tão LL'--'-·'-'-'-'--1..l\....la\..ta uma outra quanto suas
2
mações de um mundo mundializado. impressões digitais.
Q)

ro
·u esquecimento fez com que as soluções estruturais apre-
e
<Q)
e sentadas não preenchessem as expectativas geradas pela paixão e
t'.
Q)
a.. pelas utopias revolucionárias e tornou os cidadãos números em
o
a.. As grandes transformações políticas pelas quais o mundo um processo ideológico de construção político-econômica.
E
2 passou, mesmo quando pretenderam proporcionar felicidade Mas é preciso resgatar o entendimento de que toda trans-
o
-o
cu para os seres humanos, sempre propuseram soluções em que eles formação social tem como escopo proporcionar o bem-estar, a
.!::
u
Q)
<;:: não eram considerados enquanto entes desejantes ou subjetivi- melhor qualidade de vida e a felicidade, entenda-se isso como
ro
-o dades singulares. Aliás, falar em subjetividades singulares levanta for. Se isso não acontecer no presente, mesmo diante de dificul-
l/l
o
.!::
;.;:::
a lebre do individualismo e até mesmo do perigo de um hedonis- dades e obstáculos, se o bem-estar mínimo não for sentido na
o
l/l
mo social. carne de cada um, não haverá técnica de propaganda capaz de
O ser humano, nessa compreensão de mudança, é um dado, convencer, seja para defender princípios, seja para radicalizar ain-
um pólo de relações perversas e opressoras, mas um pólo com- da mais sua conduta revolucionária.
portamental, que reage, que resiste, não se sabe bem por que, No tempo das relações mundializadas, a transformação
talvez por sua coragem, têmpera, heroísmo ou desalienação em deve apresentar frutos presentes, até porque, na velocidade em
condições objetivas propícias. Ele não tem identidade, salvo a que vivemos, não há condições para aguardos, nem para a espe-
de classe, nem desejos particulares, o que pode ser considerado rança de felicidade remota para futuras gerações que não conhe-
para muitos como um componente burguês. ceremos.
Quando as revoluções se institucionalizam, o presente é O desejo é urgente, necessita de respostas, nem que sejam
morto. Todas as atitudes, todos os esforços são dirigidos para a pequenas, mas que apresentem concretude e atinjam a cotidiani-
construção do futuro. Sofre-se hoje para a felicidade dos póste- dade dos cidadãos.
ros, sacrifica-se agora para a construção de um porvir imprevisí- Nessa cultura de desemprego crescente, chamada de civili-
vel. Isso, como já foi dito, leva as gerações posteriores que fize- zação do conhecimento, que concentra o saber qualificado em
ram a revolução à perda de seu ímpeto transformador e ao viver poucas pessoas e cria artefatos tecnológicos que exigem poucos
rotineiro, dentro das estruturas criadas pelo movimento revolu- profissionais para operar, é preciso entender que o amor pró-
cionário. prio e a dignidade dos cidadãos se traduz pelo reconhecimento
Acontece que os seres humanos são concretos, plenos de da importância de seu papel, seja ele qual for. O amor próprio, a
contradições, de amores, ódios, paixões, razões e desrazões, ne- auto-imagem positiva só se constrói a partir de um lugar reco-
cessidades, níveis de expectativa, culpas, frustrações e realizações. nhecido, de uma atividade que tenha aceitação. Por isso, temos
Para que eles caminhem, é preciso que a transformação dialogue de passar por um processo de substituição de empregos e tornar
com esse ser multifacetado, que transita movido por desejos e atividades remuneradas aquelas que hoje são "naturais" de mu-
deixa sua marca e sinal na sociedade a partir de sua peculiar lheres, de homens, de parentes, de famílias, de entidades

174 175
;;u
(/)
o
~ cr
(J)
.3o. beneficentes, de voluntariado ou de filantropia. As tecnologias Após Max Planck, a ciência confrontou-se com seus limi- ~
o
2
QJ sofisticadas podem resolver muitos problemas, mas as de pa- tes, que, no fundo, representavam os limites do conhecimento '!>
ro !3

e drão médio têm o condão de resolvê-los com o emprego de humano. Há um patamar de indiferenciação a partir do qual não o.
(J)
<QJ
e
:e mais recursos humanos com menos qualificações específicas. é mais possível conhecer. Antes da individuação das coisas, antes )>
lO
QJ e
o. Qj'
A subjetividade não pode ser tolhida. O seu exercício nos da discriminação dos objetos, não havia sujeito cognoscente e obje- -.
o
o. to conhecido, como também não havia temporalidade. Essa era do
E leva necessariamente a considerar como padrões rrúnimos a ques-
2
o tão da incolumidade do corpo, da livre expressão do pensamen- indiviso é ignorada pelo ser humano e nem pode ser conhecida.
-o
ro
..e to, e a do direito de ir e vir, como garantias basilares. Ela se Existem coisas (não podemos nem falar de fenômenos) ou
u
QJ
;;::
realizará plenamente a partir da isonomia no trato das diferenças números, mas eles não podem ser objeto de conhecimento. A
ro
-o
(/) e da eliminação das censuras a todos os atos, condutas e com- isso podemos chamar de mistério, que está presente, mas não é
o
..e
\;::: portamentos que não firam o livre exercício de outras subjetivi- passível de conhecimento. A própria situação e a condição hu-
(/)
o dades. manas impõem esses limites. Como o mistério é incognoscível,
Não há crescimento do ser humano na censura ou na limi- não pode ser objeto da ciência. Vai para o campo especulativo
tação de seus direitos fundamentais. Não se faz transformação ou para os vôos da imaginação. Sob a óptica religiosa, encami-
dos seres humanos aniquilando-os em suas pré-condições de ser. nha-se para Deus, que é um ser atingível pela fé, por transcender
O sujeito humano só participará dessa dialética local/ mun- a cognoscibilidade.
dial se tiver a oportunidade de exercer suas potencialidades, seus Por isso, o limite do conhecimento nos persegue. As hipó-
desejos e sua identidade. Ele aprenderá que isso é uma constru- teses metafísicas tentam explorar o incognoscível, sem atingir a
ção coletiva e que esse exercício só será possível quando ele ad- profundidade dessa região infensa a nossa compreensão. De qual-
mitir que o outro exerça sua diferença em prol dos objetivos quer modo, o mistério e sua admissão estão presentes nos pró-
comuns. prios desdobramentos fenoménicos.
Dessa afirmação, inferimos os limites de nossos saberes e
também aceitamos que o campo do conhecimento é bem mais
complexo e não admite linearidades evolutivas únicas, categori-
O caminho do conhecimento científico foi o da humildade zações simplificadoras ou determinações de superfície, em quais-
para a arrogância e o desta para uma crescente humildade. quer de suas manifestações. As leis eternas e imutáveis estão em
No auge da arrogância, a ciência partia do pressuposto de xeque; a exatidão matemática é contestada pela própria matemá-
que os fenômenos eram eternos e estavam ali à espera da sofisti- tica; as regularidades só podem ser encontradas em extratos muito
cação das armadilhas científicas para ser desvendados. mais profundos e ainda em pesquisa; as lógicas passam por cri-
Depois descobriu-se que a ciência não tinha lugar para o vos de sua própria validade, principalmente na microfísica; a
acontecimento, para aqueles fenômenos singulares que não ad- perplexidade assalta os pesquisadores a cada dia e mostra que a
mitiam a repetição experimental e que deveriam ser por ela abor- concepção mecanicista do mundo é inapta para dar conta dos
dados. fenômenos ora sob estudo.

176 1
Podemos dizer que existem ordens e manifestações incog- para sua salvação ou perdição.
(}) noscíveis que estão na origem dos fenômenos observáveis. isso é o grande princípio explicador da existência e da trajetória
m
·o não é metafísica, é aceitação de limites.
e
<(}) humanas.
e
~ Hoje percebemos a aceitação acadêmica de fenômenos de É necessário que reflitamos sobre a condição humana sem
(})
o..
difícil observação, de teorias que só serão comprovadas posteri- cair na falácia da sua bondade originária, nem em um contratua-
o
o..
E ormente, ou de hipóteses de tormentosa verificação, fato não lismo simplificador.
2
o
"O
encontrado nas universidades quando a arrogância e a ortodoxia A verdade é que o universo é dramático. um lado, te-
m
..e
u
científica ainda imperavam. Basta citar o inconsciente coletivo mos as tendências entrópicas; de outro, as tendências organiza-
(})
;:;:::
m
junguiano ou a hipótese da pluralidade de universos. doras, sem as quais nem poderíamos entender o complexo fenô-
"O
(f)
o
A convivência com o mistério é algo que vai se impor ao conhe- meno da vida. Estamos em um jogo entre caminhos para a mais-
..e
~ cimento como normal e natural, o que já vem ensejando discretos consciência e as tendências dissolutoras de perda de energia .
(f)
o diálogos entre ciência e religião, respeitadas as especificidades de cada Em qualquer patamar físico, químico ou biológico, para
uma, e dá início a uma tateante e desconfiada prática transdisciplinar. que um sistema se constitua, sobreviva e chegue a seu limite,
situação que o impele a saltar para sínteses mais complexas, a
condição essencial é a da cooperação e a da complementarida-
de dos elementos que o formam. A degradação, a simples per-
da de energia e a não-cooperação levam à implosão de qual-
Há uma tradição do pensamento ocidental que une cientis-
quer sistema e o retorno a formas menos elaboradas e menos
tas, filósofos e teólogos: a de que, no fundo, o ser humano é mau,
complexas.
seja porque decaído pelo pecado original, seja porque, para es-
A cooperação é condição básica para a sobrevivência e para
calar a cadeia da evolução, teve de exercer a esperteza, a força e
saltos na direção da maior complexidade. Aqui ainda não esta-
a crueldade, com suas garras e dentes, seja porque não tem qual-
mos tratando de valores, mas de fenômenos e atitudes que arti-
quer significado maior e sua vida é um trajeto no sentido inexo-
culam a coexistência mediada por uma organicidade que seba-
rável da morte, que é o fim irrecorrível de tudo. Assim, a solida-
seia na complementação cooperante.
riedade só sensibiliza aqueles aquinhoados pela graça divina, os
No nível do humano, onde um novo padrão de consciên-
sonhadores que caminham nas nuvens, sem atentar para o prag-
cia emerge, a cooperação sai da dimensão de prática irrefletida
matismo hostil da realidade, ou os loucos que, por não reconhe-
para se constituir valor refletido. Torna-se impossível organizar-se
cerem no outro o concorrente ou o inimigo, engendram mundos
sem que haja cooperação, mesmo que ela seja voltada para a eli-
particulares alienados.
minação de inimigos.
O comum dessas concepções é a aceitação de que o ser
Quando tomamos ciência de que pertencemos a uma cate-
humano é um ente entrópico, que dissipa sua energia para chegar
goria de seres que povoa toda a Terra e que tem as mesmas ca-
a nada, isto é, ao seu esgotamento vital, ou que transita para ou-
racterísticas ônticas, observamos que não basta tratarmos só de
tra dimensão, na qual sua maldade e pecados serão avaliados,
nossos problemas situados, mas devemos pensar na totalidade

178 179
;;o
(/) o
~ O'
ro
.3a. desses seres, em suas relações recíprocas e em suas relações com que a guerra armada ou "pacífica" é o modo de existir do ser ;::i.
o
2
(j)
o meio que nos dá as condições de existência. humano; enquanto investirmos mais nas tecnologias da morte '?'
ro ?3

e
No nível do humano, a cooperação que era fenômeno físi- no que nas da vida, certamente estaremos trilhando a via entró- a.
<<JJ
ro

~
e co ou químico e a cooperação biológica que ocorria nas vidas pica que nos levará ao desaparecimento. )>
LO
(j) e
ãi'
a. menos complexas transmutam-se em solidariedade. A solidarie- Como a humanidade tem, ao lado de sua faceta sombria, '
o
a.
E
dade não é um valor passageiro, não é um sentimento momentâ- uma outra luminosa, resta-nos apostar com todas as forças e es-
2
o neo, nem uma imposição exógena de crenças que prometem re- peranças na sobrelevância do lado luminoso da solidariedade e
"O
ro
..e compensas para isso. É um princípio permanente de respeito à do reconhecimento, a fim de estimular o crescimento do homem
u
(j)
;:;::: vida, à diferença e o reconhecimento de que devemos conviver, enquanto pessoa e coletividade e propiciar a continuidade dessa
ro
"O
(/)
trabalhar e servir com quem tem habilidades, crenças, culturas e espécie que tem o condão de fazer o universo infletir sobre si
o
..e
ti= posições sociais diversas das nossas . mesmo.
(/)
o Para o exercício da solidariedade, é preciso reconhecer o
outro - e esse reconhecimento não se restringe à edição de co-
mandos formais de respeito, mas se traduz pelas práticas de in-
tercâmbio, inter-auxílio e trabalho complementar entre grupos
humanos -; procurar sempre evitar e combater a opressão, a re- Quando, por longo tempo, concebemos a história como
pressão, a escravização do corpo e do espírito em todas as suas um saber reconstitutivo elaborado por um espectador privilegi-
dimensões, o genocídio, o etnocídio e todas as formas que impe- ado, que sempre se colocava em um locus especial e supostamen-
çam a vida e a plenificação do outro. Com a solidariedade e o te mais "evoluído" para recontar e interpretar o passado à luz de
reconhecimento, constitui-se a alteridade justa, pressuposto para critérios e métodos presentes, passamos a ter uma atitude de re-
o avanço material e espiritual da humanidade. jeição às relações, práticas, saberes e explicações de tempos e
Isso é possível, mas não é necessariamente certo. Pode acon- lugares que não fossem os nossos. Esse sentido de desprezo ge-
tecer ou não, a depender dos próprios seres humanos. Para en- rou até a expressão folclore, que tem o tom de inusitado, original,
frentar os jacts oJ God que acontecem em nosso planeta, só mes- diferente, mas não significativo para a realidade atual, senão como
mo uma humanidade rica em diferenças e a mais unificada em acervo e memória.
termos de solidariedade, o que implicará tecnologias comparti- Culturas diferentes não são só atos, fatos e conclusões dife-
lhadas, alimentos compartilhados, saúde compartilhada e educa- rentes. Elas são, principalmente, métodos, técnicas, cosmogonias,
ção para a aceitação do outro e de sua história. antropologias e epistemes diferentes. Não se pode entender a
O mesmo pode ser dito no encaminhamento dos proble- cultura de certos grupos indígenas amazônicos admitindo que
mas internos da própria espécie humana. Enquanto não voltar- suas cabeças se organizam taxonomicamente, apreendendo os
mos às raízes das diferenças e permanecermos ligados afetiva- fenômenos pelos procedimentos indutivo·s e dedutivos. Seu sa-
mente a critérios artificiais, criados para dividir, acobertar hege- ber opera segundo os eixos da contigüidade e da similaridade
monias, instigar disputas entre interesses; enquanto pensarmos para dar conta do mundo do dado. Os semiólogos e antropólogos

180 181
(/)

~
.ao. como Jacobson e Lévy-Satrauss 71 já visualizaram há tempos essa mesmo pode ser dito nas quais 1--'-'-'J,_JJ,-...._.__.__._ª
0

2 éticos, angústias humanas, tragédias pessoais e sociais, limites


Q) outra organização do conhecimento.
ro
·o A condição humana permitiu o surgimento pluriforme de poder temporal, idéias sobre o cosmos e a temporalidade estão
e
<Q)
e
culturas, no decorrer da história. Daí a necessidade do respeito a presentes em seus ensinamentos de forma apolínea ou até mes-
t'.
Q)
o.
cada uma delas, que contêm ensinamentos e olhares importantes mo dionisíaca.
o
o.
para a compreensão do ser humano. A contribuição dos conhecimentos tradicionais não pode
E
2 ser desprezada, sob pena de jogarmos debaixo do tapete uma
o Por isso corremos o risco de assumir um evolucionismo pri-
"O
ro mitivo, que acredita na constituição linear dos saberes, do menos experiência humana de muito maior duração que a nossa.
..e
u
Q)
<;:::: complexo para o mais complexo, sem rupturas, a culminar nos nos- Hoje, por necessidade mercadológica, de direitos a paten-
ro
"O
sos saberes, por suposto os melhores, mais adequados e mais ricos. tes e de resolução de problemas, como os de saúde, desenter-
(/)
o
..e
A questão aparece na atualidade quando tratamos do diá- ram-se, com a sacralização do experimento científico, práticas
l2
o
(/)

logo de culturas de raízes próximas, mas com pouca interferên- de fitoterapia, técnicas de parto, terapias e técnicas psicológicas
cia recíproca e, mais ainda, quando tratamos das relações dessas até há pouco tempo consideradas crendices. A vantagem para o
culturas com as manifestações culturais ágrafas ou de culturas mundo atual é que essas contribuições podem ser negociadas no
que já se dissiparam no tempo. mercado, enquanto, originariamente, eram atividades transeco-
O problema ainda mais se acirrou quando se estabelece- nômicas.
ram relações excludentes entre ciência, mitologia e religião. A A tendência contemporânea é a da revalorização dessas ex-
ciência poderia, de fora, desenvolver uma linguagem alética ex- periências e a de sua consideração como contribuições impor-
plicativa72 sobre a religião, o mesmo acontecendo com os mitos tantes para a compreensão material, social e existencial da huma-
que, por muito tempo, foram tratados sob um viés positivista, nidade.
como na obra paradigmática de James Fraser: O ramo de ouro. 73 O diálogo entre as cosmogonias tradicionais e as atuais des-
Mito e religião foram considerados conhecimentos atrasados, cobertas da cosmologia propiciam novos caminhos de interliga-
pertencentes a fases anteriores da evolução da humanidade. Como ção das diferenças complementares das culturas e saberes.
um conhecimento científico evoluído, mais rigoroso e constituti-
vo de um novo mundo poderia haurir experiências e conclusões
de criações fetichistas ou metafísicas?
Acreditamos que os sentimentos e as paixões humanas, as
As inegáveis contribuições da razão instrumental e o culto
lutas e os procedimentos políticos, as formas jurídicas de resolu-
à ciência como único instrumento para chegar à verdade relativa
ção de conflitos, as relações e os problemas familiares, os amo-
fizeram com que a arte se circunscrevesse ao campo da criativi-
res proibidos, os atos heróicos, a crueldade e a aventura huma-
dade, da originalidade, da suprar-realidade,-.da pesquisa de sons,
nas estão mais presentes nos textos mitológicos e na arte que se
formas e estruturas, ou mesmo, para os mais clássicos, a uma
construiu em torno deles do que em muitos textos científicos
busca do belo, uma manifestação do gosto ou uma relação
que tematizam essas questões.

182 183
;AJ
Vl
o
~ cr
CD
.3o.. empática. Assim a estética se refere mais à beleza ou aos proces- ou explicações não são "certas", expressam modos de A-v-
10
+-· 0
.,...·
01
;:i.
o
2
QJ sos de sua criação ou contemplação. as e os olhares se organizarem. Além disso, é preciso lembrar ?>
ro ?J
·u
e
Esse mesmo enfoque enviou os conhecimentos tradicio- que certos conceitos básicos do conhecimento tradicional só fo- o..
<QJ CD
e
:e nais para o campo das crenças ou crendices, ou, até mesmo, para ram aceitos depois de a ciência percorrer toda uma trajetória )>
l.O
QJ e
o..
a esfera da artesania, dos costumes ou expressões culturais mais por sendas menos confiáveis. De se lembrar a questão da tempo- ..,ru·
o
o..
E atrasadas. ralidade geológica e cósmica, só admitida em meados do século
2
o É concedida à literatura a função do desvendamento da XIX europeu, quando era ponto de partida para o pensamento
"O
ro
.e natureza humana em seus vários matizes, da memória histórica e hinduísta.
u
QJ
;:;::::: de momentos históricos das sociedades, no caso das narrativas, Outra manifestação não aceita é a do conhecimento pela
ro
"O
Vl
considerando-se a poesia como marco mais alto da expressão via mística. O misticismo, após o positivismo, foi colocado no
o
.e
tE lingüística, na medida em que ela se apresenta mais como um rol das crendices ou mistificações. Apesar de tantos filósofos da
Vl
o ícone que pode ser lido sob vários ângulos, um dizer estranhado contemporaneidade terem admitido a intuição e a ciência ter re-
que tangencia o indizível. conhecido os insights, o conhecimento místico nunca foi aceito
Em nosso entender, é preciso, sem negar esses aspectos, como produtor de conclusões úteis, salvo nos campos da fé, da
considerar a arte como um dos mais rigorosos instrumentos de moral ou da ideologia.
conhecimento que, muitas vezes, por via de manifestação sintéti- Os astrônomos, os psicólogos e os antropólogos cada vez
ca verbal, sonora ou plástica, consegue expressar facetas interio- mais se debruçam nos textos místicos; lá encontram, muitas ve-
res e exteriores do humano que são dificilmente enfrentadas pe- zes, prefigurações de conceitos e modelos que seriam desenvol-
los atuais instrumentos da ciência. Por detrás de toda descoberta vidos muitos séculos depois. Evidentemente não queremos con-
científica há um pano de fundo da poesia ou da música. fundir o místico com o científico, nem desenvolver interpreta-
A poesia e a música tentam expressar o indizível, tentam, ções superficiais que tenham pretensão de os unir, mas respeita-
por suas manifestações, dar conta desde as superfícies epidérmi- das as suas incidências, impõe-se uma leitura intertextual dos dois
cas dos sentimentos, atitudes e relações, desde o olhar mais ingê- campos, com todo rigor possível.
nuo diante do mundo até os escaninhos mais profundos da alma Por isso tudo, acreditamos que a busca das explicações,
humana, que estão imersos nos abismos do inexpressável ou das compreensões e de novos modelos para dar conta dos fenô-
manietados nas cadeias das repressões ou opressões. O saber menos pertence à ciência, ao saber místico, à tradição e aos vários
artístico não precisa de comprovação. Ele está sempre presente modos de expressão artística.
e traz para nós revelações renovadas, sem necessidade de se legi- A ciência, por imposição do rigor e do método, não pode
timar: ele é autovalidador. Como os ritos, ele celebra sua própria tratar do indizível, do não-expressável e do transmatemático. Para
existência e significação cada vez que é renovado pela contem- além das abstrações, existe uma zona de dados que o ser humano
plação, leitura ou escuta de cada um de nós, humanos. toca eventualmente, pelos instrumentos da poesia e principal-
Os conhecimentos tradicionais espelham a experiência hu- mente da música. Quando a palavra cessa, começa a música.
mana mais antiga, mais longa; e mesmo quando suas conclusões Quando a narração se dá por impotente, emerge a poesia. Quando

184 185
Ul
~
.ao.. a ciência se cala, a arte e a mística declaram. Quando os limites
2
QJ de Planck se impõem, parece que existem inconformados que
<O

e tentam bater em outras portas para transcender a própria condi-
<QJ
e
·-e ção humana. Nos artistas e nos místicos, a carga da história cós-
(lJ
o..
mica e humana se expressa sem peias ou repressões, atingindo
o
o..
E aquilo que acreditamos não ter a possibilidade de conhecer.
2
o
"O
A música tem uma peculiaridade que faz com que ela ex-
<O
..e:
u
presse, pelos sons, ritmos, timbres, harmonias e silêncios sincró-
QJ
q::
nicos ou diacrônicos, isolados ou entretecidos, o magma indivi-
<O
"O
Ul so presente em nós e no mundo. Essa peculiaridade é traduzida
o
..e:
<;::: pelo fato de a música ser um tecido cambiante de diálogo e con-
Ul
o flito entre várias mensagens. A tessitura de uma peça sinfônica é
a expressão una de várias mensagens emitidas por instrumentos
ou naipes de instrumentos, pela totalidade da massa sonora de
uma orquestra, ou pelo som isolado de um instrumento, que,
por sua manifestação sincrónica e sucessiva, cria uma supramen-
sagem sonora que é fruto único dessas diversas mensagens que
se entretecem. Mas a música não trabalha só com os sons e tim-
bres dos instrumentos. Ela apresenta movimentos, ritmos, ten-
sões e serenidades. Ela dá expressão aos sons e aos silêncios. Ela
admite várias leituras em vários momentos: a leitura de quem
cria, as várias leituras de quem interpreta e as leituras polimorfas
de quem escuta. música é a única expressão artística que per-
Um conjunto de dualidades compromete a percepção mais
mite a expressão sincrónica de várias linguagens dialogantes.
clara do mundo e de nós mesmos. São categorias que, por sua
conhecimento humano, em suas várias manifestações e
natureza, clivam, separam e desfiguram sensações, conceitos e
por seus vários canais, é que dá oportunidade para a significa-
sentimentos, levando-nos à negação da complexidade cósmica e
ção de nossas existências e para a compreensão do outro e do
mundo.
momento histórico em que o ser humano perdeu sua
inteireza e ontológica e moralmente em corpo e alma,
cortou-se a possibilidade uma percepç~o una
humano,

186
(/) ;o
o
~ c:r
.a
Q_ bondade (também, em alguns casos, confundida com espírito). A reinserção do presente na temporalidade, do instante ro
;::+
o
2
QJ Perdeu-se a riqueza da psiquê humana, perdeu-se a significação atual como momento de construção de nossos sonhos, da pre- '!>
ro !l

e fundamental da carne como memória histórica do cosmos infun- sentificação das metas futuras, em que as utopias futuras se reali- Q_
<QJ ro
e
:e dida em cada um de nós. zem no presente em que vivemos, permitirá a vivificação dos )>
l.Cl
QJ e
sonhos, a retomada da dimensão mobilizadora das utopias, que õi'
Q_
Uma visão maniqueísta é instilada na conceituação do -,
oQ_
E humano, carreando uma carga negativa de valores para a car- se transformarão em topias, em sonhos futuros que só serão pos-
2
o ne e um conjunto de valores bons para a alma. A dualidade síveis se realizados agora. o futuro, em termos políticos, éticos,
-o
ro
..e humana estava expressada pelo drama entre seu espírito bom sociais e econômicos, só tem sentido se se confundir com o pre-
u
QJ
\;::
e sua carne má. sente por meio de sua concretização crescente. Precisamos se-
ro
-o
(/) Essa clivagem desviou o ser humano de seu próprio auto- mear o amanhã para colher no hoje.
o
..e
<;:: conhecimento, pois, separado e antitético, ele se transformou em A separação entre a modernidade e a tradição também tem
(/)
o ser vicário, que sempre depende da externalidade para praticar o causado problemas para o avanço do conhecimento, pois aí pe-
bem ou o mal. Ele não é uno em sua frágil estrutura, ele é toma- netrou um certo conceito de evolução, que considerou mais avan-
do pela maldade do mundo ou pela bondade de Deus, na medi- çado o conhecimento posterior e científico do que toda a experi-
da em que hipertrofia a alma ou o corpo carnal. ência anteriormente acumulada pela humanidade. Isso impediu,
Se encararmos o corpo e a alma como um só ser, como por muito tempo, um diálogo rigoroso entre a ciência e a tradi-
facetas interimplicadas, que existem uma em função da outra, cer- ção, entre as descobertas atuais e as anteriormente feitas, respei-
tamente haverá possibilidade de se perceber a grandeza humana, tadas as especificidades de cada conhecimento. Essa divisão en-
os limites desse ser, suas luzes e sombras que acontecem una- tre o saber moderno transformador e o saber pré-moderno atra-
mente e abarcam corpo e alma, carne e espírito. Só assim vislum- sado, surpreeedentemente, tem dificultado o avanço da ciência e
braremos a tragédia humana, as possibilidades e limites de inter- das práticas transdisciplinares.
ferência em seu destino, em sua história e em sua provável reali- Quando os Estados são considerados como entes, ou de
zação enquanto espécie e pessoa. origem divina, ou de raiz racional, ou ainda absolutamente ne-
As utopias entraram em crise por trabalhar com uma no- cessários para se evitar o caos da sociedade, que não pode viver
ção de tempo que se constituía um contínuo fluir, no qual não sem sua tutela e que sempre tem interesses que colidem com os
havia lugar para o hoje, para o instante, que representava o pre- do Estado, a sociedade é rompida e os verdadeiros conflitos que
sente que é apenas o momento de luta para construir o futuro. se dão em nível de classes e gêneros são escamoteados por naciona-
Esperava-se dos cidadãos a generosidade, a doação e a coragem lidades, esferas públicas e conflitos de competência. O mesmo
para a construção do amanhã; hoje cabia tão-somente a luta e a acontece quando a atividade pública torna-se monopólio do Es-
esperança. O presente não contava para os sonhos, pois estes tado, a decretar a minoridade da cidadania e a fazer emergir uma
sempre se referenciavam ao futuro; não mais um futuro depois peculiar democracia que estimula o fascismo dentro das unida-
da morte, mas um futuro incerto e com pouca previsibilidade des produtivas e que não permite aos cidadãos o uso e o gozo de
temporal, que praticamente se assemelhava ao primeiro. prerrogativas jurídicas previstas nas constituições. Falta muito

188 189
para pensarmos em uma democracia que leve a um Estado legí- imposição pensamentos e ...,~L.. ~.._,..,.,~.
(]) timo e a uma participação transformadora da ddadania. O Esta- identidade quando a pluralidade é mais um -'-'-'.LlV'.U.... ....,...._.'--'
rtJ
·u do só tem sentido se for um articulador de espaços públicos, um
e
<(])
que quantifica somando semelhanças e
e
:e garantidor das prerrogativas dos cidadãos, um promotor da fe- diferentes e as diferenças. As sociedades plurais e sem norte ca-
(])
Cl..
licidade coletiva. minham para a dissolução, para a inflexão dos indivíduos em si
o
Cl..
E Outra dificuldade para o avanço do conhecimento é a deli- mesmos e para a perda do sentido da história, do projeto pesso-
2
o
"D
mitação estrita que se dá entre correntes materialistas e metafísi- al e das utopias. Só a convivência da unidade na variedade, da
rtJ
.J::
u
cas. De certa forma, o evolver das próprias ciências tem esvane- totalidade com as diferenças poderá constituir sistemas unos,
(])
;:;:::: cido esses limites, já que os problemas que hoje ela enfrenta re- porém dinâmicos e mutáveis, e manter seu sentido de complexi-
rtJ
"D
(/) metem, a cada passo, a questões que eram do âmbito da metafí- ficação e de possibilidade de saltos para patamares mais avança-
o
.J::
~ sica. Contemporaneamente, surge uma fenomenologia mais am- dos de ser.
(/)
o pla, na qual questões metafísicas fazem parte do cotidiano dos A divisão intransponível entre a vida e a morte é outro
cientistas. A discussão sobre o conceito de matéria invade, cada fator de empobrecimento de nossos saberes. A morte é um mis-
vez mais o domínio metafísico e retira o fundamento da velha tério, e como outros tantos mistérios, envolve a condição huma-
'
distinção positivista que ainda caracteriza cientistas ou pensado- na. mesmo podemos dizer do nascimento, do universo, da
res tradicionais. mente humana, da nossa origem. morte é um dentre outros
A ciência, para dar conta dos fenômenos, necessita traba- mistérios com os quais convivemos. Ela nos toca porque é o nosso
lhar com linguagens, imaginários e modelos metafísicos. A meta- fim e nos atinge direta e inapelavelmente. outros fins, os ou-
física, para ter alguma credibilidade no mundo de hoje e para tros grandes riscos não nos apavoram pela grandeza de seus pra-
aprofundar seus conceitos, fundamentos e teses, tem de se louvar zos de eclosão. fim do sistema solar e a entropia do universo,
da ciência para com ela dialogar. A impossibilidade de diálogo exemplo, não nos tocam, embora signifiquem o fim nossa
entre a ciência e a metafísica, entre o físico e o metafísico é um memória e a dissolução do suporte de significação de tudo. Morte
obstáculo que empobrece a produção do conhecimento. são facetas cíclicas de um movimento universal. sao
O absolutismo dos Estados nacionais, os totalitarismos que fenômenos excludentes, mas complementares.
até pouco tempo vivemos, as ditaduras ainda dispersas no mun- isso, enquanto vivos, devemos procurar construir uma
do fazem com que separemos cuidadosamente a unidade da plu- ética da vida em oposição à morte, encarada, neste caso, como a
ralidade. A unidade aparece como sinônimo de autoritarismo, ensejadora da banalização do mal, da crueldade, da indiferença e
de totalitarismo, enquanto a pluralidade é entendida como o opressões. viver plenificando a vida poder
uma morrer a verdadeira morte, que é digna, respeitosa e participan-
te de ordens ainda não aprofundadas. A morte como caminho
para o mais ser, ou para o caminho para o não-ser, ser um
momento que guarde uma história respeitada, uma busca ple-
nitude, um rol de circunstâncias felizes, oportunidades de

191
Ul
;;o
~ o
-3o.. o-
solidariedade, de sobrevivência e de amor. Patamar final ou tér- externalidade sobre a internalidade, do sobre o agir, do útil ro
;::\.
2 o
(lJ mino definitivo da vida, a morte só tem razão de ser como mo- sobre o estético, do comportamento sobre o inconsciente, do !>
ro
'ü mento de plenificação da vida. :;o
e
<(lJ
virtual sobre o concreto, do cômodo sobre o árduo, do produto o..
e <D
t'. Como será visto em todo este trabalho, outra dualidade sobre a concepção, do eletrônico sobre o corporal, da imagem )>
(lJ lQ
o.. e
perigosa é a de separar a razão do afeto, a partir do reconheci- teletecnológica sobre o dado bruto, do tempo instantâneo sobre õi'
o ""l
o..
E mento da racionalidade como um processo neutro e higiênico, a duração, da distância imediata sobre os horizontes, a se usar
2
o
"O
que explica e teoriza, mas nada tem a ver com valores. É claro outras dualidades que também se interimplicam.
ro
..e
u
que a sociologia do conhecimento já demonstrou à sociedade a A razão analítica geometrizou o mundo e o tornou antissép-
(lJ
q::
ro
inexistência de uma razão neutral, mas a razão instrumental im- tico. Ele é dividido em espaços delimitados, bastantes em si mes-
"O
Ul
o
pôs-se, a partir de seu sucesso, como descobridora científica e mos e infinitos na possibilidade de subdivisão. O que sustenta essa
~
4'.: criadora de artefatos tecnológicos. A razão, para poder servir à estrutura aparentemente absurda são dualidades fundantes que têm
Ul
o humanidade, para poder criar condições de felicidade, necessita o papel de critérios para exclusão ou inclusão de temas em deter-
ser iluminada pelo coração, pelo cuidado e pela compaixão. Isso minado espaço. No fundo, a constelação de dualidades traduz a
é uma pré-condição à abertura de um novo caminho para expli- cosmovisão implícita que preside o seccionamento do mundo e
car os fenômenos e cuidar do mundo. dos saberes. A realidade construída é o universo das divisões.
Como já foi mostrado, no pensar humano germinam clas- Devemos explicitar um pouco mais algumas delas.
sificações duais oriundas de razões cosmológicas, religiosas, pro-
dutivas, epistemológicas ou ideológicas, que dispõem o que de-
veriam compor, separam o que deveriam unir, além de deslocar
o olhar do mundo do dado bruto e das construções conceituais A atitude experimentalista e o sucesso tecnológico propi-
mais ricas e ousadas. Certamente elas têm uma função. Não são ciaram o desigual conforto humano, mas engendraram o des-
gratuitas. Sustentam um certo modo de ver, construir e manter conforto para o conhecimento, que impôs a si mesmo limites
um imaginário que opera. metodológicos e restrições de incidência que o paralisaram em
Essas dualidades exerceram e ainda exercem papéis funda- campos onde o experimento não pode operar. Nesses campos, a
mentais para a perda do sentido da totalidade, para o enfraque- ciência cotidiana não entra e os considera o limbo da metafísica,
cimento do novo no pensar e para a cristalização de concepções o exagero da imaginação artística e a perfumaria opressora dos
preconceituosas e pouco transformadoras no cotidiano da soci- mitos superados.
edade e na própria produção do conhecimento: será essa mesma ciência que vai, a partir da razão ana-
Acresça-se a isso a contribuição da razão analítica, que apre- lítica, perceber que novos fenômenos não são mais explicáveis
sentou inegáveis sucessos no campo da tecnologia. Sucessos tão pelas "armadilhas metodológicas". caminho de superação é
marcantes no imaginário social, que levaram o pensamento do- ascender para uma razão abrangente e comunicativa. É necessá-
minante a entender que o philum da evolução era direcionado rio que as barreiras dos saberes sejam derrubadas em um movi-
pelo caminho das conquistas tecnológicas. É o triunfo da mento de síntese absolutamente necessário para dar conta dos

192 1
Vl ;;o
~
o
O"
.ao.. fenômenos novos. No interior da própria ciência, a razão se au- Afastar a razão da paixão é útil para efetivar uma domina-
(ll
;::i.
o
2
QJ totematiza. ção sutil: a dominação que estimula a produção com a diminui- "!>
C(J
!!

e Mas, no cotidiano, a opacidade continua. Há um mundo do ção de angústias e tensões; a dominação dos controles mais fá- o..
<QJ (ll
e
:e drgâ-vu que convive com o simulacro e a alienação crescente. Esse ceis, dada a previsibilidade dos seres com sentimentos pequenos )>
lCl
QJ e
o..
mundo é operatório. Dá conta dos interesses e racionaliza as cor- e pouco intensos; a dominação da criação de necessidades para ~-
o
o..
E relações de força vigentes. Mantém e justifica as disparidades. Aqui- amortecer dúvidas e tecer existências lineares, que procuram se
2
o
-o
eta as consciências. Cria virtualidades consoladoras e simulacros apropriar de mercadorias em si desnecessárias. É a calma das
C(J
..e
u
generosos. Galvaniza as atenções e os esforços. Dá, com seu sem- pequenas existências que fazem da política e da economia artes
QJ
q::
C(J
sentido, sentidos para as vidas. Saber clivar é poder. aptas para dominar, incentivando. A regularidade geométrica do
-o
Vl Para um mundo limpo, tão limpo como as máquinas, cuja cosmos pode propiciar uma ordem, apesar da aparente confu-
o
..e
li= sujeira é permitida por não ter o odor e a organicidade dos são; uma estabilidade, apesar das exclusões; uma serenidade de
Vl
o seres vivos, uma razão limpa, sem as instabilidades do afeto e viver, apesar dos constantes comandos tanáticos.
os riscos da paixão. Para que essa razão analítico-instrumental Nessa teia de poderes, estabeleceu-se nova dualidade: o
sobrevivesse, era preciso separá-la do afeto. A inteligência mais amor, de um lado, e a paixão, de outro. Para o amor foram carre-
alta é aquela que tem a eqüidistância dos eunucos e a limpidez adas todas as qualidades superiores: o amor é construtivo, o amor
da água destilada. Uma muralha foi construída entre a razão e a é solidário, o amor é doação, o amor é o sentimento da união
paixão, entre a cognição e a afetividade, a se tomar a termino- serena e estável. À paixão foram reservados os estigmas do des-
logia piagetiana. Os ossos limpos são mais respeitados que as controle, da traição, da agressividade, da infelicidade, da impre-
carnes vivas. visão e da destruição. Assim, a paixão se tornou fonte de atos
O mundo do dado, como se insurgindo, não cansou, na perigosos, como, no âmbito penal, o homicídio passional.
história, de mostrar que onde a razão brilha, há uma coexistência A dualidade exposta apresenta um estrato mais profundo,
com a paixão, onde ela desvela, ali está morando o afeto. Isso ligado à necessidade de sermos mantidos mornos. Não é o amor
pode ser observado tanto individual, quanto coletivamente. que se opõe à paixão, mas é o sentimentalismo que se opõe ao
há Einstein sem a paixão pelo universo, nem Mozart sem a pai- amor apaixonado ou à paixão amorosa. Essa dualidade traduz
xão pela música, nem Marx sem a paixão pelos desvalidos, nem outra, representada pela oposição entre reprodução e transgres-
Picasso, sem a paixão pela forma, cor e textura, nem movimen- são. O sentimentalismo é curto. Chora com o imediato, extrava-
tos sociais sem a paixão pela transformação. sa emoções de acordo com os padrões e etiquetas vigentes. Mas
A jaça na razão neutral, que tanto preocupou os neopositi- tem vida curta, porque está ligado umbilicalmente ao espetáculo,
vistas lógicos, é o próprio motor que aguça a descoberta, enri- à carga forte e passageira da cena que assoma, emociona e se vai.
quece o método e desatavia a criatividade. neutral, se houver, Não deixa marcas. É uma concessão momentânea ao emocional.
só poderá existir no grau zero do conheçimento, como no satori uma descarga que, ultrapassada, possibilita o retorno à vida
zen budista, ou na meditação. Quando a razão começa a operar, comum com uma sensação de bonança após a borrasca. Nada é
ela está comprometida. modificado. Nenhum valor é questionado e nenhuma ação

194 1
Vl 7J
o
~ O"'
(\)
.3Cl. conseqüente deriva dessa medíocre novela interior. Apesar dis- Com o avanço da tecnologia, o sentido de técnica passou a ;:4-
0
2
Q) so, exerce útil papel catártico, propicia a passageira sensação de ocupar um espaço separado, um espaço turbilhonante, veloz, ple- ?>'
ro !l

e dignidade, engendra, até mesmo, uma certa aura de glória, que no de novidades e estimulador de tentações. Esse espaço, basi- Cl.
<Q) (\)
e
~ hipertrofia os egos batidos pelo cinzento das repetições e pelo larmente ligado ao consumo, à transitoriedade planejada, ao con- )>
LO
Q) e
Cl.
absurdo dos pequenos assassinatos de cada dia. É o sentimento forto e à criação de necessidades, cada vez se complexifica mais. õi'
-,
o
E
Cl.
possível no horror e é o permitido. Isso porque, se de um lado ela propicia conquistas, de outro gera
2
o O amor-paixão que move o ser humano para pontos cruci- problemas e danos que devem ser corrigidos pelos instrumentos
"'CJ
ro
..e ais, que o lança para os abismos, ou que o abre para iluminações, é da própria técnica.
u
Q)
;;:: entrega plenificadora ou destruidora. É luz e treva, nunca penum- Várias contradições perpassam a técnica. Ela liberta e apri-
ro
"'CJ
Vl bra. Seu sentido plenificador ou destruidor está dependente do siona. Avança, entropizando. Distribui e concentra. E, a cada
o
..e
<;::: valor, está ligado aos projetos, está demarcado por trajetórias in- passo para o maior conforto, engendra a crescente dependência .
Vl
o dividuais, sociais ou culturais. Ele é demasiadamente humano. Por isso, A tecnologia não somente transforma corações e mentes e redi-
é perigoso para a sociedade de controle. 74 Ele tende a ser abran- reciona condutas: ela cria novos mundos, que não se cingem àque-
gente, mesmo que individualizado, por refletir a corporeidade in- les das "conquistas", mas aos paraísos artificiais das virtualida-
teira de quem ama e por ter a intensidade experiencial que trans- des e simulacros. Por sua força, o virtual se torna concreto e o
gride as previsões estatísticas sobre os comportamentos humanos. simulacro, original para aqueles com ela envolvidos.
Há uma unidade paixão-amor, inextricavelmente ligada à A tecnologia testa e traduz o novo das concepções científi-
razão criativa, à razão que descobre, à razão que ousa; e há o cas, porém aprisiona as cabeças em uma sensação de onipresen-
risco de os sentidos da paixão, a partir da trajetória destruidora ça e paralisação. Onipresença oriunda do sentimento de se saber
ou transformadora que a move, incidirem fortemente sobre a tudo o que está acontecendo em todo lugar. Paralisação pelo sen-
ordem, trincando-a ou fragmentando-a e à falsa calma que ali- timento de impotência em relação à carga multifacética e a-hie-
menta a crueldade escondida, as desigualdades mortais e a capitis rárquica de fatos e acontecimentos impossíveis de ser processa-
diminutio dos seres humanos. É a encruzilhada entre o mais ser e dos e receber a interferência de quem os tenta decodificar. a
o menos ser. É o que move. É o que permite o corte do círculo paralisia do bombardeio da informação.
vicioso do cênico e do simulacro. Por isso deve ser sopitada, por A tecnologia opera como se tivesse via e vida próprias,
se constituir incontrolável contra-poder e construir inusitados dentro desse universo cômodo que classifica o turbilhão das coi-
contra-saberes. sas em gavetas meticulosamente arranjadas. Ela é entendida como
um processo que dá sentido à história, que transcende a ética e
que marca e aponta os horizontes da evolução.
O desenvolvimento tecnológico está ligado, originariamen-
O pano de fundo para sustentar o modus vivendi do que se te, a uma transformação no mundo, quand0, por demandas pro-
convencionou chamar sociedade ocidental não poderia ter eficácia dutivas e de lucro, a técnica assume uma dimensão coletiva: uma
se outra dualidade de base não o respaldasse: técnica versus ética. coletividade de produtos fabricada por uma coletividade de seres

196 197
Ul :;o
o
~ 0-
.3o. humanos, para serem consumidos por uma coletividade de des- espetáculo, consumo, esperança, temor e horror.
(j)
;::\-
2 º
tinatários. Além de tudo, essa produção coletiva, que emerge na isso pode ser visto sob a óptica do lucro, seja para promovê-la, "?
ro !1

e 1.ª Revolução Industrial, cliva o mundo em duas outras coleti- evitá-la, escamoteá-la, hipertrofiá-la, para o deleite ou para a dor, o.
<QJ (lJ
e
·-e vidades: a dos que têm e a dos que não têm acesso aos produtos para afastá-la ou trazê-la, seja para estratégias de combate ou de )>
lO
QJ e
o. Qj'
e a seus lucros. superação. A morte tornou-se mercadoria cotidiana consumida -,
o
o.
E Por outro lado, conforme a tradição marxista, o produto- com avidez. Ela é uma das dimensões do cênico que alimenta a
2
o
"O
mercadoria ultrapassa o papel de atendimento das necessidades opacidade das vidas humanas.
ro
..e
u
básicas e, por uma lógica própria, passa a criar necessidades para As considerações éticas em torno da técnica são sempre
QJ
;;::: suscitar novas demandas, assim realimenta o circuito do lucro e desenvolvidas de fora. A técnica, em si, é considerada sem ética.
ro
"O
Ul aprofunda a alienação humana. Está aí o gérmen do simulacro, a Portanto, os juízos de valor só podem se cingir à sua aplicação.
o
..e
<.:: origem não só do consumismo, mas das mentes opacas que pas- A ordem do ser não pode sofrer a interferência da ordem do
Ul
o sam a vida correndo atrás de coisa alguma, batalhando em torno dever-ser. Só depois do produto, artefato ou tecnologia prontos
de símbolos ocos e dilapidando sua força de trabalho para ali- é que se tornam objeto de considerações éticas. A produção, o
mentar esse circuito infernal que leva a lugar algum e preenche as processo produtivo e a eleição da pesquisa originária são aéti-
existências vazias com quinze minutos de glória. Tanto isso é ver- cos, são neutros. Nem mesmo as correntes que se pretendem li-
dade que, dentre as cinco marcas mais vendáveis do mundo, es- bertárias tocam nas opressões no interior das unidades produti-
tão uma fábrica de água com açúcar (Coca-Cola) e outra de fu- vas e na escolha do que deve ser pesquisado. O avanço tecnoló-
maça (Marlboro). gico é um dado. A partir dele, reflete-se e age-se eticamente.
Toda uma simbologia nova aparece, que se sobrepõe ao Com essa atitude, está constituída a separação entre o téc-
produto: é a da marca e a da etiqueta. Consomem-se marcas, nico e o ético e o entendimento segundo o qual a tecnologia tem
vestem-se etiquetas, pois a tecnologia não é somente o caminho dinâmica própria, carente de valor. O resultado disso é que o
da evolução como também o sinal do status. mundo adquire a crença na inevitabilidade da entropia, enquanto
Não é demais lembrar que a lógica da tecnologia é militar, o ser humano domina, pela tecnologia, a natureza, para criar o
é implícita e explicitamente guerreira. Implicitamente, por via mundo antropológico. Caminha-se, pois, em contrita conforma-
do combate em torno dos mercados e do know-how, explicita- ção, rumo à dissolução, com o consolo de minutos de conquis-
mente, por investir muito mais na guerra do que na paz. É por tas, para preencher a inexorabilidade das mortes individuais, da
isso que se diz ser a guerra uma ótima ocasião para avanços tec- morte do planeta, da morte do sistema solar e do colapso final
nológicos que serão, posteriormente, aplicados na paz, entendi- do universo. Em suma, viver segundo esses padrões é participar
da como um estado de beligerância mais branda. É também por uma caravana de tolos.
isso que um enorme mercado paralelo de armas age no mundo, A tecnologia opôs o ser humano à natureza. Isolou o mun-
a alimentar conflitos de toda natureza, a fim de manter comple- do antropológico do mundo natural. Estabeleceu como única
xos industriais e empregos nos países produtores. A morte, na via de relação entre os dois a dominação do segundo pelo pri-
tecnologia contemporânea, tornou-se mercadoria. Ela é objetivo, meiro. A natureza é para ser explicada, consumida, administrada

198 1
U)
(:'.
B
o.. e controlada. É um ser fora do homem. aquilo que ainda não problemas globais, nem equacionar minhas tensões íntimas.
2
QJ foi tocado pelas mãos humanas. É a mercadoria potencial. A cidade é o mesmo que consumo e prazer, por isso devo me con-
C\J
·u antropia que destrói é a mesma que possibilita a evolução huma- formar às regras vigentes para obtê-la.
e
<QJ
e
t'.QJ na. O ser humano, nessa concepção, está condenado a destruir Essa ética cotidiana garante a via separada da tecnologia.
o..
para se construir, até o momento em que terá de se destruir, por Em momento algum o cidadão comum questiona sobre a di-
o
o..
E não ter mais com que se construir. Tudo isso é assumido com mensão libertadora ou não da tecnologia, ou sobre a subordina-
2
o
-o
muita resignação, já que há uma leitura inversa da tradição agos- ção desta a interesses que agridem qualquer possibilidade de bem-
C\J
..e
u
tiniana e calvinista: estamos todos predestinados a desaparecer. estar da humanidade. Ninguém pergunta nos foros políticos so-
QJ
q::
C\J
Tudo é transitório, inclusive o universo. Logo, a ética é uma pre- bre a possibilidade de uma tecnologia que propiciasse a autono-
-o
U)
o
tensão secundária dos metafísicos, expressos ou não. mia, no lugar da heteronomia. Ninguém se preocupa com o in-
..e
<.;:: O resultado dessas práticas e entendimentos é expresso pela vestimento maior sobre a morte do que sobre a vida. O interior
U)
o já citada separação entre a técnica e a ética e pela redução do cam- da técnica é dado como infenso a estas discussões. É assim que
po da própria ética aos estritos limites da conduta paratecnológi- deve ser, dizem.
ca. A ética se torna um anel protetor em torno da tecnologia, para
garantir a reprodução de sua lógica. Essa ética, baseada no dever,
tem como fundamento o contrato e opera algumas consignas fun-
damentais: pacta sunt servanda; as dívidas devem ser pagas; a liber- Outra sutil dualidade que também contribui para tornar
dade é um jogo de espaços de poder traduzido pela máxima "mi- opacas as possibilidades da imaginação é a dualidade que opõe o
nha liberdade termina onde começa a liberdade do outro"; o po- inferior ao superior. À primeira vista, poderia parecer que esta-
der deve ser respeitado; para todo ato existe um culpado; a vonta- mos tratando de preconceitos, de racismos, de idiossincrasias
de é livre; a consciência individual determina nossas existências; culturais, ideológicas ou políticas. Mas não é isso. Esses fenôme-
deve haver um respeito maior ou menor na proporção direta da nos são apenas uma das manifestações de um arquétipo constru-
importância socioeconômica do respeitado. ído que se manifesta de forma multifacética.
A rigidez de princípios deve ser aplicada entre iguais, uma Quando o evolucionismo tomou conta da ciência, seu mo-
vez que os diferentes, por essa razão, não têm a mesma qualidade delo foi transposto para a história e para o entendimento do pró-
contratual. Todos são iguais perante a lei, mas desiguais perante prio universo. Isso significou a história como um caminho do
os fatos. Lucro honesto é aquele obtido por transações lícitas, inferior para o superior e a concepção do universo como deten-
independentemente dos antecedentes e conseqüentes. Homens e tor de forças primitivas e incontroláveis, que necessariamente
mulheres são iguais no consumo, no trabalho, no controle, mas governam as condutas humanas com mãos invisíveis. O que de-
desiguais nos salários, na corporeidade e nas obrigações. Minha termina o ser humano são suas necessidades biológicas, seu ins-
liberdade, eu a dou para meus chefes, pois isso me dá segurança tinto de sobrevivência. A história é um caminho dos seres inferi-
e paz. Minhas lutas são corporativistas, enlaçadas com meus inte- ores que, constantemente se aperfeiçoam para chegar ao nível
resses imediatos, já que eu não tenho a capacidade de resolver os presente de perfeição do estudioso que a está pesquisando.

201
ffl
~
.a
o_ certa forma, o entendimento do evolucionismo reproduz
2
QJ a visão anatematizadora de certas religiões dominantes, aliada a um
m

e mecanicismo que compreende o universo como um dado bruto de No senso comum, utopia significa lugar algum, sonho, vi-
<QJ
e
~ massas e movimentos, um espaço físico inferior, que deve ser do- são de futuro, idéia-força que move condutas, quimeras que im-
QJ
o_
minado pelos seres que são superiores. O problema é que o univer- pulsionam os lunáticos e subversivos e premonições que empur-
oo_
E so abrange diferenças, patamares, que são essencialmente diversos, ram as existências dos out siders. Em termos sociais, as utopias
2
o
"'O
mas não necessariamente superiores e inferiores. Há uma interação fizeram história, construíram modelos de pensamento, engen-
m intrínseca entre os elementos do universo. Tal interação não nos pa- draram princípios morais e éticos, propiciaram fanatismos des-
..e
u
QJ
q::
m
rece linear, nem muito menos exatamente previsível e determinada. truidores, foram amalgamadoras e clivadoras, libertadoras e es-
"'O
ffl
o
A imprevisão e a indeterminação são formas de apareci- cravizadoras, em suma, constituíram-se phila pelos quais as histó-
..e
t;:: mento de fenômenos que podem refletir uma ordem não identi- rias foram construídas.
ffl
o ficada por nossas percepções e conceitos. Afirmar que o ser hu- Uma visão da pós-modernidade, que aliou a fragmenta-
mano não é superior, mas pertencente a um todo que o envolve ção ao neoliberalismo, deu como mortas as utopias, uma vez
e dele participa, não significa dissolvê-lo pura e simplesmente que a vida humana não tem significação e as condutas devem-se
em uma dimensão panteísta. O ser humano tem um papel, uma cingir ao hoje e ao particular, às moléculas e ao instante. O fu-
identidade, manifestados pela sua consciência, pela sua ação pre- turo, o horizonte e a totalidade são eliminados, direcionando-
sente e pelos valores que constrói em sua trajetória. Ele é apre- se as condutas e os conhecimentos para a fruição e a absorção
sença consciente no universo. do instante, dadas as limitações da vida e o seu sem-sentido
Diante disso, o discurso da superioridade e da inferiorida- essencial.
de perde o sentido. Cabe a nós perquirir sobre o nosso lugar, o Atitudes como essa eliminam o futuro e hipertrofiam o pre-
nosso papel, a nossa especificidade cósmica, que se perfaz na sente; impedem qualquer sonho de futuro mais abrangente. O
concretude do presente, na construção social e ética no hoje, na hoje e o aqui esgotam a natureza do ser. Pensar assim significa
aceitação das diferenças. Essa visão dinâmica da cosmogênese elidir a história e as utopias como categorias, como condições
não admite a linearidade evolutiva, que resgata o preconceito, a do projetar e como elementos constituidores de valores, avan-
negação do diferente, a indiferença com a vida que não tenha o ços ou transformações. É a opacidade absoluta do mecanicis-
sinal humano, a relação dominadora com os seres minerais e ve- mo: um ser sem sentido imerso em um mundo cósmico indife-
getais, a não-solidariedade com os oprimidos e o estabelecimen- rente. O resultado é o esgarçamento do tecido social, a dissolu-
to de níveis de conhecimento superiores ou inferiores, que têm ção de direções éticas e, acima de tudo, é situar a morte como
como critério classificatório a mens tecnológica, a racionalidade fundamento essencial, já que ela se torna o fim de tudo, e não um
operatória e os saberes oficiais. fenômeno de destruição-criação no processo cósmico. Além dis-
Sem a superação dessa dualidade, o pensamento humano so, a vida é um acidente em uma totalidade· mineral, uma fagulha
não poderá caminhar para a construção de novos paradigmas tênue que vai desaparecer, assim como os dinossauros um dia,
que venham a responder às demandas hoje correntes. como espécie, foram erradicados da crosta terrestre.

202 203
li) :;o
o
~ O""
.3o.. ro
Se, de um lado, esse modo de pensar e agir desagrega o ser Perànte as demandas da contemporaneidade, as utopias ;::i.
o
2
(lJ humano, empurrando-o por um caminho aético, por outro, intro- construídas só serão factíveis se respeitada sua faceta onírica, ?
(1J
~

e duz a necessidade da consideração do presente como categoria se se derem sem as amarras de uma linearidade colonizadora o..
<(IJ ro
e
:e gnosiológica e sociopolítica. O problema das grandes utopias foi que marcou o século passado, e se forem traduzidas no presen- )>
lO
(lJ e
o.. õi"
o de sacrificar o presente em nome de um futuro que não chegou. te, no aqui, no momento em que o futuro é sonhado. O sonho ..,
o
o..
E De sacrificar vidas e gerações em nome de projetos futuros que utópico só tem razão de ser se for tópico, se sair de sua dimen-
2
"O
o vão se esvaindo com o decorrer do tempo. Assim, essas deforma- são de lugar algum e for semeado no mundo que nos cerca.
(1J
.!:
u
ções sacrificiais introduziram a necessidade de reconsiderarmos a Toda liberdade de sonhar obriga o sonhador à realização pre-
(lJ
;:;:::::
(1J
topia como o espaço-tempo onde tudo se dá. O futuro só pode sente de seus sonhos.
"O
li)
o
ter sentido se for realizado hoje, ou iniciado agora. Se assim não entendermos a utopia, ela corre o risco de se
.!:
<;:: Daí emerge a possibilidade de pensarmos uma nova unida- tornar justificadora de atrasos, em nome da realização de um
li)
o de conceitua!, que poderíamos chamar de utopias-topias, ou de futuro remoto. Somos ditadores hoje, em nome de uma demo-
realização presente do futuro, de concreção do amanhã no interior cracia futura. Somos discriminadores hoje, em nome de uma igual-
das demandas atuais. A contemporaneidade não se esgota nem no dade no porvir. Mantemos a desigualdade gritante na distribui-
presente sem sentido, nem se constitui a partir de um futuro que, ção presente das riquezas, em nome da prosperidade no amanhã.
como a linha do horizonte, distancia-se de nós, a cada passo à fren- Reprimimos hoje, para garantir a liberdade de amanhã. Torna-
te que damos. A contemporaneidade clama pelo futuro hoje. A mos o homem presente o lobo que enfrenta outros lobos, para
dialética passado/ futuro tem como síntese o presente. fundamentar a conquista da solidariedade futura. Essa tradução
Só assim poderemos viver dentro de uma obra aberta, que das utopias é justificadora do pior caminho para a sua realização.
vai sendo estruturada visivelmente, e não no interior de um pro- É a própria negação de seus projetos futuros, em nome de táti-
jeto perenemente inacabado, que a cada geração vai perdendo cas e estratégias que nada mais fazem senão vestir de pobre retó-
suas características, até seu exaurimento, ou sua manutenção por rica a feroz disputa de poderes, de espaços de influência, de mer-
instituições totalitárias, que também, mesmo depois de longo cados, ou de regiões geopolíticamente importantes, nas constan-
tempo, virão a ser destruídas. tes tordesilhas que trincham o planeta.
As utopias surgem na medida em que as relações e os Realizar o amanhã no hoje é o modo plenificador de cons-
saberes se modificam. Por isso, não podemos delas retirar sua truir a história e dar sentido à interioridade humana, que não
dimensão onírica. Quando vestimos as utopias com a científici- pode ter sua grandeza limitada por determinismos, ainda, de
dade do século XIX, amarramos o sonho, matamos a liberda- raízes positivistas.
de, burocratizamos as perspectivas e bitolamos a visão do fu- As utopias são elementos necessários para uma vida huma-
turo dentro de uma linearidade determinista, que nega a natu- na com significação. Não há vida humana florescente e fertiliza-
reza da história, do ser humano e, hoje, da própria natureza dora sem que haja a dimensão utópica em termos coletivos ou
dos fenômenos materiais, se tomarmos as modernas concep- existenciais. Sem ela, a vida humana se estiola por não ter para
ções da própria ciência. onde correr, por não ter razão para continuar e por não haver a

204 205
Ul ;o
(:'. o
.ao.. possibilidade de relações, seja entre os seres humanos, seja destes essa abordagem o conhecimento é o mun-
O"
(!)
;:i.
2 o
Q) com a natureza, a não ser de disputa, dominação, opressão e isola- do da regularidade, do controle e da previsão. Tanto as posições ?
cu
?J
"(J
e mento. Mas o problema é que, se de um lado as utopias são elemen- conservadoras, quanto as posições transformadoras são toma- o..
<Q) (!)
e
t tos que dinamizam a conduta humana, de outro podem ser freios das pelo absolutismo, pelo autoritarismo, pelas verdades pron- )>
l.O
Q)
o.. e
para as realizações presentes, em nome de um futuro remoto. tas, pelas cautelas em tomar decisões que impliquem riscos não ili'
o
o.. '
E previsíveis, o que significa tornar oficiais os poderes e os saberes.
2
o
"O
Nesse quadro, só poderia medrar uma concepção deter-
cu
..e
u
minista da história, do ser humano, da sociedade, da economia,
Q)
4= Regularidade e irregularidade, com os seus consectários do planeta e do cosmos. Basta compulsar desde o antigo positi-
cu
"O
Ul
de semelhança e diferença, aliados ao problema do acontecimen- vismo comtiano, passando pelo neopositivismo lógico, pelo
o
..e
li= to, aparecem como dualidade que deve ser analisada. marxismo, pelo comportamentalismo e pelo funcionalismo, para
Ul
o O mecanicismo que subjaz nos pensamentos construídos a citar algumas das correntes em várias áreas que expressam de
partir da modernidade iluminista tem na regularidade, na repeti- modo explícito ou implícito este subsolo aqui analisado.
ção e na geometrização as características que modelam o pensa- Serão as próprias perguntas formuladas por essa visão me-
mento hegemônico. Se de um lado essas concepções trouxeram canicista, perante fenômenos novos, que vão desafiar os funda-
inegável contribuição para o avanço tecnológico e para a expli- mentos e os modelos que a respaldam. A ciência tem necessida-
cação de certo nível de fenômenos, de outro, seu próprio cresci- de de trabalhar com a probabilidade, a indeterminação, com os
mento e complexificação propiciaram desafios que põem em xe- limites tênues entre sujeito e objeto no mundo dos microfenô-
que não somente um conjunto de conclusões, mas também os menos, com a busca de uma ordem implícita perante dados caó-
próprios modelos que informam essas práticas científicas. ticos, com a interioridade do ser humano, a reconceituação da
As repercussões das condutas mecanicistas e regularistas vida e de sua extensão, com as grandes questões colocadas pela
se espalharam em todas as facetas do saber e engendraram uma astronomia, pela astrofísica e pela mecânica quântica.
visão linear e evolutiva da história, concebendo o ser humano Os biólogos têm de suportar hipóteses ousadas como a de
como um exilado do cosmos, como uma excrescência passagei- Gaia, ou a dos campos morfogenéticos de Sheldrake, ou con-
ra de um planeta insignificante. É delas o entendimento da sepa- frontar-se com as teses de Maturana e Varella. Já não é mais um
ração radical do homem em relação à natureza; do mundo das mundo pronto ou dinâmico, mas regido por leis eternas. É um
finanças e das coisas como mais significativo do que o mundo cosmos no qual a irregularidade, a imprevisão, a diferença e o
dos homens; das relações homem-homem ou homem-natureza acontecimento devem ser enfrentados pela ciência. Em suma, os
globalmente entendidas como de trabalho, disputa e consumo. fenômenos são regulares e irregulares; não existe uma linha rigo-
É essa mesma repetição que considera a autonomia humana um rosa que separa o sujeito do objeto, nem objetos puros, tão ao
mal, passando as sociedades a ser cada vez mais dependentes gosto do Círculo de Viena. A totalidade se amplia e deixa de ser
dos grupos que detêm o saber-poder das tecnologias materiais e um conjunto de fatores conhecidos. Ela é um todo dinâmico que
das tecnologias de poder. se constrói, destrói e reconstrói de modo muito mais complexo

206
;;o
U) o
~ O"
(D
.2a. do que o que entendiam as visões mecanicistas. Parece que vários cosmos, e sim leis que o próprio cosmos, suas ;::\-

2 º
Q) saltos ou criações são procedidos no universo, gerando esferas tações, vai criando para reger os processos É '?'
ro ?O

e comunicantes, mas singulares, como as do mineral, as da vida e preciso lembrar que o cosmos não é somente repetição e hábito, a.
(D
<Q)

~
e
as do espírito humano. mas também criação. Criação que se processa a todo tempo, rom- )>
lCl
Q) e
õi'
a.
No campo das denominadas ciências humanas, tão marca- pendo com os hábitos e constituindo novos patamares. busca -,
o
a. da regularidade deve transitar pelo caminho desses diversos tipos
E das pelo cientificismo natural do século XIX, surgem demandas
2
o de fenômenos como a planetarização dos problemas, a fome e a de irregularidades, para desvelar uma outra regularidade que este-
"O
ro
..e degradação do meio ambiente, a instantaneidade do tempo e do ja situada por detrás de todas essas manifestações da criatividade
u
Q)
ti:: espaço, proporcionada pela tecnologia da comunicação, a crise universal. Logo, a questão aqui ferida está relacionada a uma tota-
ro
"O
U) do socialismo e do capitalismo, a verificação da pluralidade da lidade bem mais ampla e complexa do que a costumeiramente uti-
o
..e
<;::: história, as provocações estimulantes da visão junguiana, para lizada pelas visões humanistas vigentes.
U)
o citar algumas poucas. Tudo isso trinca os modelos das regulari-
dades absolutas, da previsibilidade dos seres humanos e da pos-
sibilidade do controle do futuro. Há que se dar um salto, para
dar conta da contemporaneidade. Semelhança e diferença são outra dualidade a ser descrita.
Não há mais forma de percepção de regularidades explíci- Para tanto, é preciso destacar que o saber ocidental, até bem
tas, que emergem de evidências, o que diminui as condições de pouco tempo, desenvolveu-se segundo o paradigma da seme-
previsões e de raciocínios lineares seguros. A ordem, se houver, lhança. A ciência classifica, organiza e explica os fenômenos, agru-
deverá ser buscada em estratos mais fundos, em regularidades no pando-os segundo sua hierarquia e semelhança. A ciência é um
caos, em regiões implícitas que não se desvelam com facilidade, recorte classificatório que organiza o mundo de seu objeto se-
nem se enquadram nos modelos mecanicistas e geométricos que gundo uma ordem de semelhança e de verticalidade hierárquica.
ainda subjazem na cabeça de muitos produtores de conhecimento. A taxonomia é um exemplo desse procedimento. Sem dúvida, a
A irregularidade aparece em vários níveis, que de certo modo ciência não poderia avançar sem ele, mas também é verdade que
obrigam a uma outra conceituação de regularidade. Ela aparece ele não consegue dar conta da complexidade do mundo do dado,
pela diferença entre os fenômenos, por sua complexidade e pelos que se apresenta sem essas regularidades imaginárias, constituin-
detalhes peculiares de cada um. Ela se apresenta também pelos do-se, de fato, em manifestações únicas e diferentes. As regulari-
patamares diferentes em que se situam tais fenômenos, que cla- dades, os hábitos, as repetições podem, em nível genérico, ser
mam por outras construções conceituais, dadas as especificidades abarcadas por uma lógica das semelhanças, mas o fluir dos f enô-
e papéis nos sistemas universais. Definitivamente, não é possível menos do mundo, em suas especificidades, não pode ser capta-
explicar o mais complexo a partir do menos complexo. do por ela.
Essa mesma irregularidade também vem à luz pela modifi- A máxima de Heráclito segundo a qual ninguém se banha
cação dos conceitos e das leis que pretendem explicar os f enô- duas vezes no mesmo rio, além de tocar no problema da perma-
menos. Não existem leis imutáveis que eternamente regem o nência ou da mudança, evidencia que cada rio é um rio, cada rio

208 209
VJ ?O
~ o
CT
.2o. é um rio uruco. não impede o desenvolvimento da hidráuli- ([)

o irrepetível fazem parte e ;:::+


o
2
(lJ ca; mas não consegue dar conta da totalidade do fenômeno rio. mento. "!>
ro ~

e Diriam alguns que tais outras qualidades do rio são secundárias e A terceira é de ordem ideológica. Tanto os coletivistas quan- o.
<(IJ ([)
e
:e desprezíveis para seu estudo, mas isso não é verdade, pois a iden- to os individualistas aceitam a organização do mundo segundo )>
lO
(lJ
e
o.
o
o.
tidade do rio não se esvai nas afirmações hidráulicas sobre ele, já as semelhanças. Os coletivistas pretendem o bem da coletivida- ..
Qj"

E que ele é único. Assim, a questão da diferença sempre esteve im- de e o tratamento coletivo dos problemas humanos, na medida
2
o
-o
plicitamente imbricada com a ciência, como um fantasma que em que acreditam na interferência coletiva, na conduta individu-
ro
..e
u
mostra os limites desse saber. Contemporaneamente, Liotard, al e na determinação ou sobredeterminação do interior das sub-
(lJ
q::
ro
Derrida, Foucault, Guatari e tantos outros trabalharam e vêm jetividades. Os individualistas procuram sair da semelhança, opor-
-o
VJ
o
trabalhando com esse tema. Aqui ele, singelamente, vai ser trazi- se a ela por suas condutas individuais, mas isso sempre é acom-
..e
<.::: do como uma preocupação com as dualidades que paralisam o panhado por profunda angústia, em virtude de não crerem no
VJ
o pensamento cotidiano. potencial de reprodução de seus pensamentos e na criação de
Ver o mundo à luz das semelhanças suscita um conjunto de outras diferenças, pois aceitam que seu projeto está na contra-
conseqüências graves. A primeira é a de lidar com categorias co- mão e não tem muito significado perante uma ordem coletiva
letivas de forma hipostasiada, como se fossem seres concretos, e que coage e uniformiza. Por isso, a angústia, a desesperança e a
não constructos úteis para a explicação provisória de fenôme- entropia subjazem em seus pensamentos e em suas condutas. Há
nos. Com isso, vai-se acumulando uma franja residual cada vez uma dificuldade nodal de eles entenderem que os seres são úni-
maior, que distancia o fenômeno do discurso explicativo até tor- cos e, por isso mesmo, precisam se relacionar para confirmar
ná-lo inexplicável. Não queremos aqui menosprezar a imagina- suas identidades e crescer em suas especificidades.
ção e a criatividade, aspectos sobrelevados em outras partes deste A diferença e a identidade não são geradoras de culpas,
trabalho. O que estamos lembrando é o risco de se tomar o sím- nem ensejadoras de isolamentos. É a dessemelhança que possibi-
bolo pela coisa, ou o símbolo pelo fato. lita ver o mundo de modo mais rico e de nele agir de forma mais
A segunda é a da inadmissão do único como importante justa e diversa, na construção de novos olhares. A igualdade so-
para o pensamento. O mundo do dado apresenta acontecimen- cial é a plenificação das diferenças a partir da justiça nas oportu-
tos diferenciados, em um só instante ou atípicos perante os mo- nidades. A isonomia não é a dos seres, mas a do tratamento dos
delos explicativos. Tais fenômenos tendem a ser minimizados ou seres. O mesmo pode ser dito quanto aos fenômenos de outra
não considerados científicos, dada a sua exclusividade e impossi- ordem. Se não pudermos observar as totalidades encerradas nos
bilidade de repetição ou experimentação. Mas eles existem, es- seres únicos, sempre iremos tratá-los como meros pertencentes
tão aí e devem ser tratados pelo conhecimento. Não adianta agu- a categorias, isto é, a constructos que os empobrecem. Assim,
çar nossas armadilhas técnicas ou metodológicas como se os não chegaremos nem às coisas, nem aos fatos, a se tomar como
fenômenos fossem eternos e sempre estivessem aguardando a referencial Wittgenstein.
sofisticação do conhecimento para se dar a conhecer. O único, A quarta conseqüência é a do empobrecimento da visão
o acontecimento, o diferente, o exclusivo, o inexperimentável e cósmica e a da compreensão das totalidades como se fossem

210 211
{/)

(2'. ;;o
o
.3Q. totalitários sistemas envolventes, e não dinâmicas relações maio- cr
(D

2 agressões serão posteriormente corrigidas pela própria tecnologia ;::l.


o
GJ res mutáveis em seus efeitos e mutáveis em suas leis. As totalida- que cria os problemas. interessante nesta observação é que ;t>
ro '

e des, em seus processos de contínuo devir, influenciam, orientam, tanto um lado quanto o outro acreditam na divisão essencial en- ?:J
<GJ Q.
e
:eGJ interferem e transformam a si próprias, criando novos padrões e tre natureza e humanidade.
(D

)>
Q. lD
"hábitos" que se transmudarão mais à frente para permitir a so-
oQ.
brevivência delas mesmas.
A natureza admite vários conceitos, de acordo com o olhar .
e
Ui"

E
2 e o local de onde é vista. A palavra natureza pode se confundir
o
"O
É preciso também ressaltar que os seres únicos, os seres com cosmos; significar totalidade religiosa; ser a ordem do mun-
ro
..e
u
diferentes, também se constituem totalidades que se relacionam do; traduzir as forças incontroláveis externas ao ser humano;
GJ
<;:::
ro
com outras de modo explícito, como hoje é já admitido pela ser o que não é ou não pode ser tocado pelo trabalho humano;
"O
{/)
o
ciência; e de modo implícito, sob formas que ainda nem sonha- ser a mãe fértil que dá origem a todos os seres e a mãe piedosa
..e
12 mos existir, pois a lógica da semelhança castra nosso imaginário que os recolhe depois de suas mortes; ser eterna ou criada, evo-
{/)
o e dissolve nossos sonhos. A totalidade, para ser una, necessita lutiva gradualmente ou vivendo aos saltos. Ora a natureza é
relacionar elementos que são únicos e diferentes. benfaseja, ora cruel, ora referenciada à humanidade, ora indife-
rente. Com ela temos uma relação de dominação ou de conví-
vio. Só nas velhas tradições místicas ou panteístas ela está den-
tro de nós, aspecto, atualmente, retomado por alguns físicos e
A dualidade homem-natureza, imposta, principalmente, a biólogos.
partir do pensamento cartesiano, dividiu o mundo do dado em
Como um constructo polissêmico, a natureza guarda entre
duas esferas separadas, que entre si guardam relações de utilida-
suas semias uma analogia a ser desvendada para enfrentarmos o
de, consumo e dominação. O mundo antropológico tornou-se
problema da superação da dualidade, comumente aceita até por
uma faixa separada, essencialmente artificial, e o mundo da natu-
aqueles que se consideram "ecológicos".
reza uma realidade bruta, não tocada pelo homem, que existe
A natureza é um conceito que cresce à medida que as fron-
para ser transubstanciada pelo trabalho humano, ou contempla-
teiras do conhecimento se ampliam. Enquanto o saber se restrin-
da com êxtase pelos artistas e místicos. A separação conceitua!
gia à observação do mundo circundante, a natureza era o céu, o
desses dois mundos é tão grande que, hoje, nos conflitos ecosso-
mundo vegetal, a força de seus elementos, os humores dos ma-
ciais, existem adeptos de duas correntes: os defensores da natu-
res, a fertilidade da terra, a variedade dos animais, a beleza das
reza e os defensores do ser humano. Para os primeiros, talvez a
paisagens, a fúria de suas reações e o mistério de suas condutas
partir de uma herança protestante, o homem é um ser intrinseca-
inesperadas. Ela, assim considerada, levava o ser humano a sen-
mente mau e toda a sua ação é destruidora. Para eles, a presença
tir-se dependente de sua vontade, apenas riscando tenuemente a
do ser humano é uma excrescência na Terra, que viveria melhor,
superfície de seus elementos. Tão forte era a presença da nature-
não fosse a antropia que a destrói. Os defensores do ser humano
za na vida desses homens, que ela mesma ·se confundia com os
acreditam que a natureza está aí para servir aos projetos de de-
deuses ou com Deus, sendo a divindade em ação ou os intru-
senvolvimento, lucro e tecnologia, com seus recursos. As eventuais
mentos de que Deus ou os deuses dispunham para a tradução de

212 213
(/)

~
.3Cl. suas vontades. Ela era perfeita: logos que se opunha ao kaos e que o ponto mais avançado evolução planetária, passaria a ser o
2
(]) subsidiava nomos, as imperfeitas leis humanas. hospedeiro mais sofisticado dos verdadeiros guardiães da
cu

e Confundia-se com o cosmos clássico por estar inserida em os seres vivos ou quase vivos do mundo microscópico. Essa na-
<(])
e
t uma ordem harmônica, prevista, hierarquizada, centrada na Terra, tureza pode ser encarada como fonte atual ou potencial inesgo-
(])
Cl.
vertical e eternamente a mesma. A mandala do círculo cósmico tável de tudo o que os seres vivos, em particular o ser humano,
o
Cl.
E circunscrevia o círculo do tempo e o do eterno retorno. O ser necessitam. Esta é a visão dominante, a partir da ciência do sécu-
2
o
"O
humano, perante uma ordem pronta, outra alternativa não tinha lo XIX, que a entende como um ser inesgotável. Mesmo que um
cu
.e
u
senão a de contemplar a glória da natureza e a onipotência de Deus, elemento ou substância desapareça, o engenho humano encon-
(])
i;::
que a governava. O ser humano era um ser da natureza, mas um trará outro para substituí-los no interior de um processo perpé-
cu
"O
(/) ser sem papel em sua construção, já que devia seguir seus ditames tuo de decisões.
o
.e
i2 e usar como padrões os princípios de sua constituição. O ser humano perante a natureza pode ser concebido como
(/)
o A natureza pode ser considerada como oponente. Aquela o ponto alto do processo evolutivo; um dos representantes dos
que opõe obstáculos para a sobrevivência e dificuldades para a vários phila da evolução; uma excrescência ocasional na eternida-
obtenção do necessário para os grupos humanos se manterem. de cósmica; um predador da natureza; um partícipe da natureza;
Assim, ela assume uma dimensão ambígua: de um lado, oferece, a consciência do próprio cosmos ou o microcosmo dentro do
mas de outro, cria óbices para a obtenção do que oferece. Ela se cosmos. A especificidade do ser humano, que tem consciência
torna uma grande estimuladora do engenho humano, que deverá moral e que ri, foi confundida com o isolamento da natureza.
criar armadilhas, explicações e táticas para conseguir os seus in- Embora ele tire seu sustento da natureza, embora sua sobrevi-
tentos. Ela é a que dá, mas cobra os erros; a que fornece, mas vência esteja por ela condicionada, o mundo antropológico foi
pune; a que não é graciosa, cobrando até mesmo com a morte considerado algo à parte, uma construção artificial, que nada tem
àqueles que são imprudentes, descuidados ou desobedientes aos a ver com o universo circundante, que aí está para ser usado,
seus preceitos. A natureza, como Nêmesis, impõe ao homem o combatido ou ignorado, de acordo com as circunstâncias.
ônus do conhecimento e o gérmen da ciência futura. Como toda Em oposição a essa concepção do século XIX, e a partir
mãe, ela é ambígua em seu amor-ódio pelos seus filhos. de um novo enfoque, passou-se a afirmar que o ser humano é um
A natureza também pode ser encarada como objeto de êx- ser da natureza. Um ser especial que pode se entender, que com-
tase, como descortinadora de novas dimensões, como estimula- preende e explica o que o circunda, desenvolvendo condutas res-
dora da espiritualidade, como um ser misto, que oscila entre o paldadas em decisões emanadas de sua consciência; que se orga-
estético e o místico, entre o desvelado e o misterioso, entre o niza em sociedades mais ou menos complexas e disputa os espa-
infinitamente grande e o infinitamente pequeno, que está dentro ços sociais; que é ético e anti-ético e que pode, pela primeira vez
e fora de nós, que muda, a depender de nosso olhar. Ela pode ser na história natural, destruir-se enquanto espécie. Tudo isso é o
a totalidade que nos rege, sem que saibamos os fundamentos dessa ser humano, e tudo isso se dá no interior dê um complexo pro-
regência. Ela pode ser a sede dos microorganismos, que geraram cesso cósmico, que engendra constantemente sistemas novos e
e mantêm a vida. O ser humano, que poderia ser encarado como leis novas, na medida em que se transforma. O homem é um ser

214 215
Ul
~
.ao. tão diferenciado e complexo pelo fato de a natureza ter-lhe dado persistência experimental. Outros ligam a arte à moda e a ....,Á,,_,Á_._ ____,""
2
QJ condições genéticas, morfológicas e neurofisiológicas para que à utilidade, ao rigor metodológico. Levando em consideração as
ílJ

e ele pudesse constituir sua autonomia em relação à externalidade observações aqui delineadas, tem-se a impressão de que arte e
<QJ
e
:e não humana. Logo, aceitar e até mesmo admirar a especialíssima ciência são quase antípodas, a ter como elo tão-somente o fato
QJ
o.
condição humana não significa negar o substrato natural neces- de serem manifestações humanas dentro de determinados estí-
o
o.
E sário para tanto e nem proclamar a onipotência fugaz dessa es- mulos das culturas.
2
o
"O
pécie, que tudo poderia fazer com suas técnicas e seu imaginário, Essa dualidade enfraqueceu a possibilidade de se entender
ílJ
..e
u
num esforço dilacerante de superar a inexorabilidade da morte e a arte como uma forma de conhecer e a ciência como fruto da
QJ
q::
ílJ
a ausência de sentido e significação de sua trajetória individual e criatividade. Além disso, foi esquecida a dimensão cognitiva que
"O
Ul
o
coletiva. ambas apresentam. Tanto a arte como a ciência são manifesta-
..e
\;::: ções do conhecimento humano. Tanto uma quanto outra preten-
Ul
o dem desvelar o mundo do dado. As duas necessitam da criativi-
dade para conceber seus objetos, necessitam deslocar os olhares,
Os mundos da arte e da ciência parecem trilhar caminhos desfocar as percepções para constituir novas "verdades" e no-
divergentes. À primeira vista, a ciência é apolínea e a arte dionisí- vas "belezas". Tanto uma como outra criam e usam técnicas con-
aca. Mas esta afirmação é enganosa. Além disso, consideram al- '
cebem métodos para validar suas descobertas e criações e, inces-
guns que a arte trabalha com os sentimentos, com as sensações, santemente, estão experimentando.
enquanto a ciência opera com a razão e com a demonstração. A temática de uma e de outra se assemelham, embora uma
Querem outros afirmar que a ciência atinge verdades (mesmo possa, em certas áreas, ser mais metafórica que outra. É verdade
que internas dentro de um sistema) e a arte procura o belo, o que a lógica e a matemática impõem à ciência um certo compro-
êxtase. Além do mais, a ciência teria uma carga de utilidade e misso com a dedutividade, enquanto a arte está mais próxima da
operacionalidade, que lhe daria um papel preeminente na cons- metáfora e da metonímia, da similaridade e da contigüidade nd
trução da sociedade, enquanto a arte seria um plus que só flores- trato de seus temas. Mas isso não é uma verdade absoluta: a mú-
ceria a partir de um certo grau de atendimento das necessidades sica, por exemplo, é expressão matemática de sons, ritmos, tim-
humanas. No fundo, ela seria periférica, por não poder propiciar bres e volumes.
o desenvolvimento, a produção e os jogos das diversas guerras Quando separamos a arte da ciência, sem considerar que
que se dão nas sociedades humanas. O papel da arte seria glorifi- elas se tangenciam, que pertencem ao mesmo saber humano, que
car os vencedores ou ser por eles financiada, em resumo, um expressam as transformações e as tensões momentos
subproduto dos poderes. ricos nos quais são produzidas, estamos contribuindo o es-
Outros, ainda, recortam o mundo da produção artística tiolamento da ciência, não considerá-la apta a trabalhar com
entre arte propriamente dita e arte popular. A depender da posi- a criatividade, com a intuição e até mesmo- com o instinto, en-
ção política, estarão de um lado ou de outro da contenda. Exis- quanto, por outro lado, estaremos condenando a arte a um papel
tem os que aproximam a arte da criatividade e a ciência da secundário, decorativo e periférico nas culturas da humanidade,

216
U1
e
.ao. a partir da admissão de que a razão humana tem pouca participa-
2
OJ ção nela.
l1J

e Acredito que ciência e arte são formas de conhecer. Acre-
<OJ
e
~
dito que suas metas são descrever, recriar e explicar a riqueza
OJ
o.
dos mundos objetivo e subjetivo, que também se entrelaçam sem
o
o.
E limites rígidos e sem fronteiras definidas. São diferentes, mas não
2
o
-o
são excludentes, usam de dutos diversos e procuram, ambas, dar
l1J
..e
u
um sentido para a condição humana, construir mundos simbóli-
OJ
q: cos, quebrar e redefinir imaginários, enfrentar os abismos da in-
l1J
-o
U1 terioridade e os mistérios de tudo o que nos cerca.
o
..e
\.;::: Nem se há de dizer que a ciência é rigorosa, regular e repe-
U1
o tidora, enquanto a arte é aberta, irregular e inesperada. Ambas
podem ser uma coisa ou outra. Se tomarmos a teoria do caos,
veremos que a ciência, nesse campo, pretende dar conta do irre-
gular, do mutável, do que escapa, daquilo que, mesmo parecen-
do caminhar para uma direção, desvia-se para outra. O f enôme-
no do caos, graficamente representado, aproxima-se muito mais
do que chamamos, em senso comum, de arte do que da idéia
corrente de ciência. Tomemos, em contrapartida, a obra de Mon-
drian. Existe algo mais regular, geométrico, despojado, assépti-
co e proporcional que seu trabalho? Mas, mesmo assim, lá está Já não é mais possível admitir uma linearidade no cosmos e
presente a criatividade, tanto quanto na concepção da Teoria do na história, nem um determinismo primário que retira qualquer
Caos. A diferença está no fato de a arte querer descobrir a har- papel dos seres envolvidos no drama cósmico e societário. Cada
monia da distribuição plástica e a ciência uma ordem implícita vez mais nos afastamos da hipótese de as transformações físicas
dentro do caos aparente. Ambas são ciência e arte, ambas de- e biológicas serem fruto do acaso.
vem constituir o conjunto de saberes transdisciplinares que vão Vivemos um momento de revolução do conhecimento, em
dar conta da complexidade do mundo do dado. que fica cada vez mais explícita a natureza multifacética e com-
plementar de todos os seres, do infra-atômico ao macrocósmi-
co, guardando todos eles possibilidades de configurar suas des-
tinações, na medida da complexidade de suas consciências e das
conjunturas de seus meios.
Todo ser guarda dentro de si o seu não-ser; todo ser guar-
da em si outro ser que é ele mesmo; todo ser só é ele por estar

218 21
(/)

~ ;;o
o
.3o.. com outro e estar se opondo a esse outro; todo ser, quanto mais cr
2 Temos assumir uma visão no (D
;::i.
o
complexo, mais camadas profundas abarca, que dele fazem par-
qual seres com múltiplas possibilidades se relacionam ~~-~~~·-­
QJ
ro '!>
·o te e das quais ele pouco sabe. Todo ser é uma singularidade ne- ~
e
<QJ
e
mesmos e com o ambiente, oscilando entre a construção e ades- o..
fQJ cessária em um sistema coletivo e complementar, podendo sal- truição, o luminoso e o sombrio, a sanidade e a doença, o subli-
(D

)>
o.. lO
tar para o mais ser ou, arrastando outros, desconstituir seu cami- e
o
o..
me e o terrível, o controlável e o incontrolável, o heroísmo e a õi'
-.
E nho, rumando para o não-ser.
2 mesquinhez, o amor e o ódio, a aceitação e o preconceito, a soli-
o
"O
Logo, não são o acaso ou a determinação que movimen- dariedade e a exclusão, a guerra e a paz.
ro
..e tam as trajetórias dos seres e não é apenas a necessidade que dá
u
QJ
Se não há uma predeterminação de superfície, se não há
<;:::
sentido às suas existências. Eles transitam no campo das pro-
ro
"O
certezas a serem seguidas, cabe a nós escolher o lado de nossas
(/) babilidades e possibilidades, sem que isso signifique a negação
o
..e posições: ou somos pela disputa destruidora do inimigo, ou
<e de direções em camadas mais profundas, conhecidas e desco-
(/) somos pela solidariedade criativa; ou somos pela paz, ou so-
o nhecidas.
mos pela guerra; ou somos pela construção e pela sobrevivên-
Não se pode mais admitir a leitura do darwinismo, que
cia, ou somos pela destruição e pela aniquilação. Estas são apos-
preconiza que sempre é o mais forte que sobrevive e que os
tas necessárias neste mundo em crise em que vivemos. Por isso,
avanços da evolução são ocasionados por lutas, disputas e des-
perante esse ser humanos luminoso e sombrio, temos de apos-
truição do contendor ou inimigo. Essa visão se esquece da co-
tar no luminoso e saber jogar com o sombrio, a fim de que ele
operação, da complementaridade e mesmo da solidariedade não nos engula.
como instrumentos básicos da sobrevivência e do crescimen-
Não podemos correr o risco das hipocrisias éticas, políti-
to. Um sistema qualquer no qual a luta e a dominação são sua
cas e ideológicas, que falam de paz usando instrumentos e con-
base significa um sistema com grande possibilidade de se dis-
ceitos de guerra, que encaram a política como a arte da realiza-
solver, pois é a cooperação, aliada a disputas não mortais, que
ção do bem comum, mas a praticam como instrumento de dis-
consegue reunir energias para as situações limítrofes de um sis-
putas de interesses que são a negação desse mesmo bem co-
tema ou coletividade.
mum. Devemos afastar as falácias éticas, que pregam valores
Essa leitura guerreira é datada e situada e emerge ideologi-
de respeito e de promoção da dignidade dos homens e do
camente junto com a ascensão do macho como dominador nas
mundo, mas, na prática, desenvolvem ações que destroem e
sociedades humanas. Se o ser humano só consegue sobreviver negam esses princípios.
em sociedades onde existem guerras de gênero, de classes e de
Precisamos crer, considerando esse quadro de possibilida-
grupos dominantes, a natureza só pode operar dessa maneira,
des, que o caminho daqueles que acreditam na sobrevivência da
pois foi ela que impôs essa "naturalidade" em nós. É o fim da
humanidade é o da aposta nos valores da solidariedade, da coo-
fertilidade, da maternidade, da pertinência ao feminino e o início
peração e do amor entre os seres da natureza.
de uma cosmovisão em que a guerra, a dominação e a opressão
Isso é traduzido, em termos de práticas sociais, por rota-
são os únicos instrumentos aptos a organizar as sociedades e
ções políticas, econômicas, culturais e valorativas. Precisamos,
constituir os poderes.
em termos políticos, abandonar os totalitarismos conceituais e

220
1
Vl ;:o
~ o
rr
.3o.. práticos. As visões que se acreditam explicadoras de todo pro- opera e que é imutável, pois o ser é -----u·u~ (])
ri-
2 o
OJ cesso político, em sua história, fases e técnicas de mudança de dor por natureza. esse realismo, oponho outro p
fU
poderes, devem ser abandonadas, por se constituírem ideologias !1
Ti
e grave: queremos ou não queremos a continuidade da o..
<OJ (])
e
tOJ que não captam os fenômenos políticos, nem instrumentalizam Com os atuais padrões, certamente estamos a caminhar o )>
lQ
o.. e
as práticas delas decorrentes. fim da espécie e do meio que a sustenta. é utopia em seu ili'
o
o..
'
E Na humanidade multifacética, não há como se admitir uma sentido de irrealização, é instinto de sobrevivência.
1l
o só solução, um só caminho. A riqueza da libertação está na plura- Daí a aposta no lado luminoso da humanidade, que avan-
-o
fU
..e lidade de seus caminhos. As sínteses mais complexas que impe- çará no sentido de compreender a necessidade de mudança de
u
OJ
e;:: lem o ser humano para sua própria humanidade são concretiza- padrões e de formas de administração das relações humanas e
fU
-o
Vl
das por capilaridades diferenciadas e complementares. Logo, dos seres humanos com a natureza. Essa aposta também é pelo
o
::!::
li:: totalitarismo não se refere apenas aos Estados que detêm o po- abandono da luta política como tomada do aparelho do Estado,
Vl
o der total, mas conceitos, teorias ou doutrinas que têm a preten- entendida como único acesso ao poder, em favor da procura de
são de dar conta da totalidade. soluções dos complexos problemas pela cooperação, pela soli-
As experiências políticas são invenções contextuais depen- dariedade, por conflitos mediados e pela aceitação dos diferen-
dentes de padrões civilizatórios vigentes nas sociedades. Nossas tes, que são nosso contraponto e nossa confirmação. resulta-
experiências estão assentadas em padrões de disputa, de destrui- do disso será o surgimento de um novo perfil de Estado, trans-
ção dos inimigos, de predominância do mais forte, de isolamen- cendendo o modelo nacional, mas com respeito às particularida-
to do ambiente e do realismo político que, para a conquista do des culturais e à diversidade humana, ou mesmo sua desaparição
poder, abre mão dos valores que pretendia defender antes da e substituição por outras entidades político-administrativas.
conquista do Estado. Assim, como já foi estudado desde o sécu- A economia vive sob o mesmo padrão, não mais o consu-
lo XVIII, política é a face pacífica da guerra, ou melhor, uma mo dos excedentes em festas, como nas denominadas socieda-
guerra mitigada. Seu único objetivo é a conquista do poder e o des primitivas, nem os escambos primeiras fases econômi-
poder é representado pelo Estado e pelas organizações privadas cas. Não se considera mais a terra como produtora riqueza e
que se estruturam ao seu redor. posição social, como no feudalismo europeu, nem a U'-L.LLU,JuU.'-J

A rotação de sentido da política começa pela admissão da do comércio como origem da prosperidade particular e pública,
falência do padrão suicida da guerra e da destruição do inimigo. como no mercantilismo.
Tal padrão de origem, evidentemente machista e patriarcal, deve As grandes plantas de produção industrial como Ã~~~,_, ~·,ui~
ser substituído por padrão de igualdade de gêneros, de coopera- nadoras dos enriquecimentos, tal qual nas duas
ção, de reconhecimento do outro, de conflito orientado e não triais, são substituídas por um modo fragmentado
destrutivo e de respeito e promoção da vida, em contraposição em que, mais que os produtos, o que interessa é a detenção do
ao culto da morte que hoje embasa nossa organização social. saber produtivo, que pode ser negociado. capital ~Ã~""-~·-~~-Ã~
Alguns poderiam não aceitar estas ponderações, tachando-as ganha assim autonomia da produção, com vida e auto-
de utópicas ou ingênuas, pois a que está aí é o real bruto, que nomia simbólica e destrutiva própria, completando o
Vl
(:'.
.3o.. erradicação do ser humano de qualquer pertinência, pois a eco-
2
Q) nomia trabalha com quantidades e análises qualitativas de quanti-
ro

e
dades, sem qualquer ligação com o ser humano concreto, ou com
<Q)
e
t'. os resultados deletérios que as operações econômicas gerem na
Q)
o..
vida natural ou humana.
o
o..
E É uma luta abstrata, de ordem financeira, entre grandes
.8
o centros hegemónicos, que está levando a humanidade a distâncias
-o
ro
.i:::
sociais e econômicas irrecuperáveis e ao surgimento de condi-
u
Q)
4= ções suicidas da espécie, ou de um novo arianismo, que dividirá
ro
-o
Vl
o mundo, sob o signo de uma nova escravatura, entre os que
o
.i:::
<;:: podem viver, usufruir e se defender e os que deverão morrer ou
Vl
o ser eliminados, por não se enquadrarem nos modos de ser e pro-
duzir desse modelo tanático.
Apesar disso, ainda é possível apostar em mudanças desse
modelo, a partir das visíveis contradições que apresenta e dos
indicadores de resultados problemáticos para aqueles que, por
via da desigualdade, ganham e lucram nesse processo de hege-
monização. Em suma, é tal a distância, é de tal forma explorató-
ria a dominação econômica que, apesar dos lucros fabulosos que
O pensar só tem razão de ser se for radical. Se estiver, em
propicia, começa a inviabilizar mercados, pois o sangramento
suas origens, conectado com as raízes da questão que trata e se
foi tanto que as atividades econômicas das metrópoles passam a
for grávido de intervenções transformadoras em sua aplicabili-
ter prejuízos por ausência de quem compre suas mercadorias.
economia, para ter uma contribuição construtiva para a dade. Pensar e agir são dois lados de uma mesma atividade, de
humanidade, necessita fazer dois movimentos fundamentais: pos- um mesmo processo de constituição do mundo. A separação
entre o pensar e o agir gerou a autonomia do fazer e a emergên-
sibilitar alimentação digna para todos os seres humanos e educar
cia da neutralidade e da indiferença nas intervenções no mundo,
todos os seres humanos. alguns que isso é sonho, mas
que passaram a ser geridas por lógicas independentes, de tal for-
'"'"'"li-''-'-'--'-'-'_.__._,_,,_,"'" têm sido desenvolvidas que mostram a viabilidade
ma influentes que chamaram para si a condição de serem natu-
orçamentária dessas medidas. Elas teriam um radical papel pe-
rais, de serem expressão da natureza das coisas.
dagógico, pois obrigariam o ser humano a pensar-se sob outro
ângulo e a tecer novas prioridades para a sobrevivência e a reali- Com isso, o agir humano passou a ser entendido como um
fazer refletido, limitado ou deformado peJas determinações do
zação humanas.
fazer puro, ou expressão das leis naturais necessárias. Desse modo,
o agir, a práxis, embora considerados fundamentais para a
(/) ;::o
~ o
O"
.3o.. conceituação e a inserção humanas, remetiam-nos a uma certa eixo do olhar, das práticas sociais e da inserção no mundo social ro
ri-
2 o
Q) metafísica que se situava abaixo de nossos pés, que presidia nos- e ambiental, tendo em vista a construção de novos padrões civi- '?'
(Q
!1

e sas ações, limitava nossas condutas ou nos libertava, se conhe- lizatórios em que a solidariedade, a compaixão e o cuidado se- o..
<Q)
ro
e
~ cêssemos seus mandamentos. jam a base do ser, do agir e do fazer. )>
lCl
Q)
o.. e
A radicalidade era disputada no âmbito da política, da reli- Essa visão de radicalidade não está ligada a um pacifismo Qj'
-.
o
o..
E gião e da economia. Ela se aproximava do sentido de exacerbação, edênico, nem a visões retroativas de sociedade, que reclamam
2
o
"'O
pois a defesa das verdades econômicas, políticas ou religiosas só pela volta do estado natural. Essa visão parte de uma profunda
(Q
..e
u
poderia ser feita por discursos e práticas impositivos, ou, como que- indignação ética, de uma busca de reorientação da conduta civi-
Q)
4=
(Q
riam, radicais, o que os tornava retóricos e ideológicos. lizatória do gênero humano, e pode usar de meios criativos, inu-
"'O
(/)
o
Com o pensar clivado da ação, com a ação considerada sitados e fortes para conseguir seus desígnios. Não é uma radica-
..e
q:: como determinação ou sobredeterminação das relações sociais lidade de fracos, é um grito conflitivo da diversidade humana em
(/)
o de produção, a unidade práxis-consciência tornou-se uma ilusão, torno da unidade e da dignidade, uma prática da compaixão,
levando a paradoxos de práticas opressoras para traduzir pensa- · mas não de uma compaixão pusilânime. A radicalidade tem a
mentos libertadores, de pensamentos reacionários urdidos a partir força e a exigência do amor.
de práticas libertadoras.
A radicalidade da ação passa hoje por alguns pressupos-
tos: a raiz não pode se referir tão-somente a um lado dos fenô-
menos. É problemático partirmos de uma ciência especializada_
que, por princípio, é uma redutora do mundo, para a localizar
como desveladora da raiz última do mundo, da consciência ou
dos fenômenos. Para enfrentarmos a raiz dos problemas, temos
de mergulhar nos abismos das redes, nos dramas dos sistemas
dissipativos, nas consciências que se constroem sobre bases flui-
das e misteriosas do inconsciente, nas tessituras sociais e ambien-
tais e nos mistérios imbricados na condição do homem e do
mundo.
radicalidade nos remete necessariamente a revisões
de condutas sociais, a colocar em xeque padrões epistemológi-
cos e axiológicos, a nos aprofundar no "mal-estar" de nossa
lização e a procurar um entendimento mais profundo da própria
condição humana.
radicalidade é sempre revolucionária, entendendo-se essa
palavra de um modo mais amplo, que significa a mudança do
Se assumirmos a aceitação da flecha do tempo, como grande
parte dos cosmólogos, e se aceitarmos o drama cósmico vivido pela
tensão entre as forças de organização e de complexificação e as ten-
dências entropizantes, não podemos aceitar o universo, e nós dentro
dele, como meros frutos de acasos e necessidades, nem podemos
admitir que os saltos e as transformações sejam movimentos sem
qualquer sentido.
De certa forma, esse processo dinâmico, que vai das partí-
culas subatómicas ao inconsciente humano, acumula, ao longo
do tempo, sínteses mais complexas e socializadas, o que significa
a permanência de certos sistemas que são- pré-condição para a
emergência de outros. O complementar, o aparentemente con-
traditório, o acontecimento, o caótico, em sua profundidade,

229
(/)

e
.3o.. traduzem um processo de acumulação de permanências que pos-
2
Q) sibilita novos avanços. A leitura da história humana, mesmo in-
ílJ
·o dependendo da escola histórica que se esteja lendo, demonstra
e
<QJ
e
:e essas afirmações. Ora, se nós somos seres do cosmos, se somos a
Q)
o..
voz deste universo, também em nós essa dialética entre provisó-
o
o..
E rio e permanente acontece.
2
o
""O
ílJ
.e
u
Q)
;:;::
ílJ
""O
(/)
o
.e
(C
(/)
o

A sociedade de controle que se estabeleceu a partir da Pri-


meira Revolução Industrial impôs, definitivamente, em nossa so-
ciedade, o padrão da civilização do trabalho. o trabalho que
dignifica o ser humano. É com o suor de seu rosto que ele vai
proporcionar o sustento de si e dos seus, mesmo que isso seja
uma enorme falácia, se cotejarmos essa afirmação com os fatos.
outro lado, o padrão civilizatório do trabalho obrigou
os seres humanos subsumidos a ele a abandonar a possibilidade
da alegria, pois ela, junto com a paixão, são desagregadoras dos
horários, padrões e condições do trabalho abstrato que se disse-
minou a partir segunda metade do século
Assim, somos homens sérios, predadores circunspectos, guer-
reiros responsáveis, assassinos planejados, ~bedientes e covardes
racionais, viajando filosoficamente em torno do eixo de nossos
pobres umbigos. Tudo isso dá a impressão de responsabilidade,

1
Ul
~
.a
Q. de probabilidade de reprodução, para as gerações vindouras,
2
dessas condutas de dominação da natureza para a criação do
ro

e mundo antropológico, que é separado, aético e acima de tudo
<(])
e
t'.QJ triste, sem paixão, sem alegria, sem o tônus vital que possibilita
Q.
ao ser humano perceber o perigo da armadilha que urdiu para si
oQ.
E mesmo. Os riscos são evidentes: de um lado, a devastação do
2
o
'O
meio ambiente; de outro, a devastação do próprio gênero huma-
ro
.e
u
no pelo genocídio. A cobrir tudo isso, a devastação da interiori-
QJ
;:;::
ro
dade humana pelo etnocídio em escala mundial e pela elimina-
'O
Ul
o
ção das essenciais diferenças entre os seres, pré-condição para
.e
<;:: uma real unidade entre todos eles.
Ul
o A atitude revolucionária e transformadora na contempo-
raneidade deve ter, entre outros, o objetivo da restauração da
alegria, que nada mais é do que a adequação do mundo para pro-
porcionar a felicidade de todos os seres que habitam ou vão ha-
bitar a nossa imensa e esgotável casa.

Nossa civilização, por seus valores e processos produti-


vos, por suas estratégias de poder e por sua necessidade de con-
sumo, deixa de lado dois seres importantes do gênero humano:
as crianças e os velhos. O politicamente correto seria dizer ido-
sos, uma palavra sem emoção, distanciada, com um certo odor
de categoria de pesquisa de opinião. A palavra velho tem a carga
do afeto positivo e negativo, carrega a trajetória da experiência e
das circunstâncias vividas. Nunca vou me referir ao meu idoso
pai ou simplesmente meu idoso (seria uma farsa). Sempre vou
falar de meu velho pai, ou meu velho, com uma carga de amor,
respeito e cumplicidade. Pior ainda se chamarmos nossos entes
queridos de participantes da terceira idade ...
Esse velho vive uma posição semelhante à das crianças: am-
bos não contam, por não serem úteis ao processo produtivo. Os

233
IJl
~
.3o. velhos, por já terem produzido e estarem, pelo menos no enten- com as crianças, nem lugar para eles nas cidades que foram
2
QJ dimento dominante, inaptos para produzir; as crianças, por ain- tas para dar guarida a adultos trabalhadores com empregos ou
ro

e
<QJ
da não terem a idade mínima para vender sua força de trabalho, que estão na situação de exército industrial de reserva, como
e
:e embora sofram a,invasividade cruel da exigência do trabalho in- dizia Marx. Seres fora da produção, como crianças, velhos e
QJ
o.
fantil, para não dizer escravo. excluídos, não têm nem espaço, nem tempo nessas sociedades
o
o.
E A entrega do mundo, a traditio da cultura e das civilizações, contemporâneas.
2
o
"O
da continuidade do gênero humano, do fluxo de sentimentos, As espécies só continuam com o cuidado de suas crias, com
ro
.e
u
emoções, conhecimentos, impressões, arquétipos e sensibilidade a instrução de seus filhotes, com o desvelo de seus grupos mais
QJ
<;:::
ro
é feita por gerações anteriores para as crianças das gerações sub- velhos. Nós, humanos, não estamos desenvolvendo essas tarefas
"O
IJl
o
seqüentes. O philum do mundo passa pelas relações de uma gera- naturais e por isso, corremos o risco de comprometer as próxi-
.e
{E ção com suas crianças. O mesmo pode ser dito das perversida- mas gerações em termos materiais, existenciais e espirituais, pois
IJl
o des, preconceitos, ódios, dominações, discriminações e desigual- estaremos interrompendo o andamento desse drama que consti-
dades. A criança é o ponto de mutação de uma geração para tui a história da humanidade. Não as estamos preparando para
outra, ou é pura e simplesmente mera continuidade das qualida- criar novos caminhos e estamos destruindo o mundo em que
des e problemas de seus coevos mais velhos. irão viver.
A indiferença e a abstração que dominam nosso tempo dei-
xam as crianças de lado, não investem nelas, tratam-nas como
pequenos adultos nas classes oprin]idas e como potenciais do-
minadores nas classes mais altas. Jogam-nas no trabalho duro com
pouca idade, ou passam decênios preparando os que irão man-
dar. Com isso, apenas estamos reproduzindo as velhas opres-
sões, perdendo a oportunidade de saltos para o melhor nas gera-
ções posteriores.
Um fenômeno que tem sido observado é o de que a atual
nova geração, no Brasil, é a primeira que vai viver com menos
utopias, com menos sonhos e com menos empregos. Estamos
trilhando o caminho inverso, pois a cada nova geração, a tendên-
cia é aumentar o coeficiente de desesperança.
Talvez a sociedade necessite resgatar os valores da mater-
nidade, os valores dos cuidados com aqueles que vão dar conti-
nuidade ao gênero humano. O impedimento da concretização
dos valores femininos, as relações baseadas na disputa, na guerra
e na destruição do inimigo fazem com que não haja preocupação

234 235
Quando tratamos da lógica da complementaridade, ressal-
tamos a importância da interimplicação dos diferentes para a ur-
didura da unidade. Os seres humanos pertencem à mesma espé-
cie, mas, sendo homem ou mulher, têm funções diferenciadas e
essenciais para a configuração da humanidade. Para que possam
exercer suas faculdades, devem ter igualdade de oportunidades,
respeito a suas peculiaridades e direitos iguais a se plenificarem,
não podendo nenhum dos gêneros ser objeto de preconceito ou
discriminação.
O gênero feminino da espécie humana sempre teve sua di-
ferença notada, seja por se considerar a mqlher um ser inferior,
por julgá-la estranha, demoníaca e perigosa, seja para estimulá-la
a competir dentro dos padrões masculinos. Assim, a mulher bem

237
(/)
;o
~ o
.ao. sucedida é aquela que se aproxima dos ideais masculinos de com- partir do término da Segunda Mundial, a ~~~A.~~,~~
o-
ro
;:::\-
2 º
OJ portamento profissional. extinção da humanidade ficou clara. ser humano, por seus ?>
ílJ
Os padrões da disputa, da guerra, da concorrência, dara- ~

e
<OJ
artefatos nucleares, poderia dar cabo da espécie a que pertence. o.
e CD

~
cionalidade aética, da criação de necessidades desnecessárias são Para fazer frente a esse problema, a solução que foi encontrada )>
lO

.
OJ
o. e
típicos do modo de ser masculino, que desbancou a matrilineari- foi a da exacerbação do machismo, isto é, o estabelecimento da õi'
o
o.
E dade e implantou um padrão civilizatório de elisão dos valores e corrida armamentista, das disputas pelo maior poder letal, fato
2
o modos de ser da mulher, o que significa dizer que vivemos um que ficou denominado com o peculiar epíteto de Guerra Fria.
-o
ílJ
..e momento aleijado da história, onde o destino de dois modos de Para resolver a ameaça da morte da espécie, a solução foi au-
u
OJ
;:;::: ser é dirigido por um deles, impedindo a humanização do todo. mentar a capacidade de destruição, dentro de uma lógica da dis-
ílJ
-o
(/)
O poder real, formal e simbólico é exercido segundo pa- puta bélica, econômica e tecnológica.
o
..e
ti= drões masculinos. Mais ainda, a própria configuração e entendi- Essas soluções que só aumentam o poder destrutivo ad-
(/)
o mento de poder é de raiz masculina. Podemos, saindo de nosso vêm da desconsideração da contribuição feminina, que foi sufo-
círculo macho de entendimento político, perguntar se não seria cada no decorrer da história. Vivemos num mundo sem desvelo
possível o exercício da política sem disputa de poderes. Podemos '
sem a aceitação do espontâneo, da carnalidade, que é origem do
questionar sobre a possibilidade de uma sociedade anárquica, na ser de cada um de nós. Vivemos padrões que se chocam com o
qual a cooperação e a não-disputa fossem sua base. Essas pergun- sentimento ímpar da maternidade, que implica cuidado, compai-
tas, até mais que suas respostas, só poderão ser feitas a partir de xão e doação, facetas dessa mesma fertilidade que foram violen-
uma episteme constituída por homens e mulheres que têm iguais tamente erradicadas de nossa convivência.
direitos para exercer suas diferenças e suas complementaridades. Mas não bastou a substituição traumática de paradigmas
A questão que aparece no fundo é a do mito da fertilidade, de fundo da sociedade. Era preciso, a cada passo, impedir que
em conflito com o da força. Segundo os pressupostos do mito da esses valores anteriores pudessem reemergir. Assim, a mulher
força, é impossível haver sociedade organizada sem a presença do passou a ser agredida, objetivada, inferiorizada, marcada fisica-
poder, que regula as relações entre os seres, nos grupos mais com- mente pelo ônus da menstruação e tendo sua dignidade aferida
plexos. Não há como conceber o ser humano sem a presença do pela presença de uma membrana.
Estado, com suas estratégias armadas, burocráticas e jurídicas. Quando as mulheres começaram a se organizar para sacudir
Partidos só existem para representar partes, para entrar esse jugo milenar, a estratégia mudou. Ela se tornou bem-vinda no
em batalhas, para aniquilar o inimigo e para estabelecer, em mundo dos homens, ela passou a ser aquela que, além dos homens,
termos de poder, hegemonias. O pressuposto é o de que os melhor poderia exercer o papel dos homens. Isso chegou a criar
seres humanos estão de tal modo divididos, que nossas lutas só uma ilusão na cabeça de certas mulheres e até mesmo nos movimen-
podem se desenvolver a partir de nações, transnações, classes, tos feministas, mas no real, grande parte dessa conquista de merca-
interesses econômicos e hegemonias políticas. Não há, segun- do se deu pelo empobrecimento das famílias; que obrigou a mulher
do esses padrões, nenhuma abertura para a luta em favor de a sair para trabalhar fora, além de continuar a exercer as "obriga-
todo o gênero humano. ções domésticas", que são consentâneas com sua "natureza".

238 239
Vl
~
.a
o_ A civilização só poderá avançar se integrar esses dois seres
2
ClJ complementares, se suas marcas e sinais puderem ser deixados
co

e no trajeto da historicidade, agora sim demarcada pela totalidade
<C!J
e
t'.ClJ de uma espécie. A partir dessa integração, será possível falar con-
o_
cretamente de uma política sem disputa mortal e sem guerras, de
oo_
E relações políticas que, surpreendentemente, não visam à tomada
2
o
'O
de poderes, até porque a assimetria comando-obediência, que é
co
..e
u
da natureza do poder, já não terá razão de ser.
ClJ
4=
co
'O
Vl
o
..e
;;:::
Vl
o

Quando clivamos o mundo em dualidades estioladoras, que


criam obstáculos para sua compreensão, nós estamos reprodu-
zindo em vários níveis a grande dualidade que nos faz tremer:
vida e morte.
Não conseguimos conviver com o sentimento de finitude,
embora tudo que vivemos e todos os lugares e meios dos quais
dependemos sejam finitos. Somos na escala universal o último
segundo da temporalidade. Somos novos enquanto espécie e ig-
norantes da anterioridade imensa e portentosa que possibilitou
nosso aparecimento. A finitude e a ignorância nos atingem tanto
no ontem como no amanhã existenciais.
A questão se torna mais espinhosa quando enfrentamos o
problema da sobrevivência ou não do ser após a morte. Aí está

240 241
Ul
~
.3o_
toda discussão religiosa, a esfera da fé e da aceitação categorial, artefatos ligados direta ou indiretamente à guerra ou à ilusão.
2
(IJ sem possibilidade de enfrentamento por saberes exteriores a esse Isso nos leva a rejeitar a sociedade, sentimento que, se não ilumi-
(Q
'Li
e
<(IJ
campo. Mas a dúvida, essa santa dúvida que marca o trabalho nado por utopias ou sonhos, tende a empurrar as pessoas para o
e
~
(IJ
científico, toda hora vai visitar os cientistas crentes perguntando: mais primário individualismo.
o_

oo_
será que é verdade? Não contente, visita os religiosos para ques- A Terra é sinônimo de vida, tal qual a conhecemos. Ainda não
E tionar: será que toda a sua vida não está assentada em uma tre- foi vislumbrada em outros planetas a presença de vida, apesar dos
2
o
-o
menda ilusão? discutidos fragmentos de meteoritos com possibilidade de vida. Ela
(Q
..e
u
morte nos assusta também pelas formas como ela se dá: é um projeto que caminha, de modo dinâmico, conflitivo e comple-
(IJ
q::
(Q
a morte cruel que nos indigna; a morte por omissão de uma soci- mentar, no sentido da concretização crescente de sistemas cada vez
-o
Ul
o
edade apática; a morte por doenças ainda não tratadas e a morte mais solidários e complexos, e não necessariamente mais fortes.
~
t;:: por doenças tratáveis, mas que não foi conveniente ou lucrativo Essa vida observável, se vista por lentes míopes, é dizima-
Ul
o tratá-las; a morte coletiva e anônima que choca os sensíveis, mas da pela morte que atinge, de várias formas, os seres viventes. Se
se torna pura consideração quantitativa para a mídia e para os nossos óculos forem mais ampliados, veremos que a morte é um
que se enquadram no alienante sistema social no qual vivemos; a aspecto da vida, uma renovação para sua recriação e continuida-
morte das crianças; a morte no ventre das mães; as mortes per- de. Mesmo sob o ponto de vista meramente perceptivo, a morte
petradas pelos que não nos deixam pensar; as mortes pela po- é continuidade e condição para avanços da própria vida. Ela não
breza ou pela miserabilidade; e a morte pelos maus tratos ou é sua negação, mas outra faceta do mesmo fenômeno.
pela tortura. Manifestações que nos impelem a ter horror desse Como já foi tratado, trazemos em nós uma memória ancestral
fenômeno inexorável que atinge a todos nós. pouco explicitada conscientemente, que resgata a história, os dra-
Temos receio da morte, por duas vias: uma, pelo corte da mas, os símbolos da humanidade como coletividade. Em nossas
continuidade existencial; outra, pela forma como se morre e po- células, portamos a história física, química e biológica do cosmos, o
deremos morrer. Essa reação à morte ainda é mais aguçada por que nos faz repositório de informações, processos e mistérios, a maior
uma cultura tanática que faz da sociedade uma organização mor- parte absolutamente ignorados por nossa mente consciente, isso sem
tal, isto é, uma estrutura de radicalização da disputa, das guerras contar o que é impossível de ser conhecido por nós.
e das violências como modo de viver e de conseguir lugares na Essas memórias aparecem episodicamente, sob certas te-
sociedade. Já morremos em vida, em termos de nosso corpo, rapias, por iluminações ou por estados místicos. Elas estão den-
idéias, sonhos e de símbolos e signos que nos sustentam. Por tro de nós, mas pensamos que somos indivíduos, que nascemos
isso, a morte que nos assusta não é a que atinge a coletividade, ou em determinada data e nada temos a ver com essa coletividade
o modo de pensar e agir no cotidiano, mas a nossa morte perso- diacrônica formada por nossos ancestrais, por seus caminhos,
nalíssima. conflitos e superações, e que fomos e estamos sendo constituí-
Na esfera da economia e da produção, percebemos que os dos das mais elementares partículas da matéria até sua mais com-
investimentos fundamentais deste mundo globalizado estão vol- plexa organização e ainda estamos participando como agentes
tados para a guerra do capital especulativo e para a criação de da tessitura do drama cósmico.

242 243
IJl
e
.3o. O passado, embora nebuloso, já nos conta, sem qualquer
2 não esgotam a significância ou insignificância de um ente no cos-
(j) interferência religiosa, que pertencemos a um universo, que so- mos. A complexidade, a auto-reflexão, a linguagem e a consciên-
(\J
'Li
e
<Q)
mos constituídos por ele, que essa organização cósmica, tanto cia são diferenciais da mais alta importância, que resgatam a dig-
e
~
(j)
em rúvel mineral, como vegetal e animal, obedece a correlações nidade do ser humano, tão recente, tão pequeno e em tão pouca
o.
o
tão exatas que, se fossem desobedecidas, implicariam a inexis- quantidade.
o.
E tência do cosmos. Estamos ligados a todo esse processo descrito, no passado
2
o
"'O
Atrás de nós, a história da vida que se traduziu em tantos e no presente; temos a carne feita com os mesmos elementos;
(\J
..e
u
saltos para organismos mais complexos manifestou-se também desempenhamos importante papel na significação do cosmos;
(j)
q::
(\J
por uma sucessão de nascimentos e mortes que deram condições vivemos a liberdade de avançar para patamares mais conscientes
"'O
IJl
o
ao surgimento de espécies e de transformações rumo à sobrevi- ou de nos dilacerarmos pelo suicídio de nossa espécie. Essa morte
..e
te vência de seus grupos. É a vida que dá significação à morte, e coletiva, que os seres humanos dizem não desejar, contraditoria-
IJl
o não o contrário. mente, por suas condutas, a cada dia, parecem buscá-la. Dessa
Com algumas pálidas noções das condições pretéritas que morte coletiva, não existe um grande medo, pois, para as mentes
desembocaram em nós, cabe agora perguntar: por que estamos mais pragmáticas, seus interesses imediatos, seus pequenos pro-
aqui? Temos algum papel nesse cosmos? Somos apenas um epi- jetos e suas ambições rasas não são atingidos. Que paradoxo!
fenômeno sem sentido nessa imensidão incompreensível? Essas Enquanto elementos físicos e químicos, sabemos que per-
perguntas estão ligadas à questão da morte, pois nelas estão im- tencemos ao tecido do cosmos. Como seres vivos, temos consci-
bricadas as dúvidas sobre a continuidade. ência de pertencer à Terra, que, por suas características, deu con-
Nossa mente separadora, que distancia o ser humano da dições à vida. Sendo seres que falam, pensam e constroem uma
natureza, também constitui uma concepção de ser humano liga- consciência de qualidade diferenciada da dos outros seres vivos,
do ao fim do processo cosmogenético, seja porque nada tem somos a voz do universo. Ora, se temos presente, passado e fun-
direção, sendo fruto do mero acaso, seja por entender que o ser ções no interior desse drama, evidentemente teremos futuro, até
humano é a culminância do processo evolutivo, não havendo mais porque ele é a antecipação que fazemos no presente. Assim, seja
caminho para ser trilhado. Acontece que o cosmos continua a ser da forma que for, o ser humano sempre terá um papel nessa di-
parido. A criação ou evolução continua a se dar e nós temos, nâmica e tensa movimentação cósmica, pois se observarmos a
como espécie, um fundamental papel para exercer. cosmogênese, ela se dá, por ensaios e erros, por tenteios, por
Como já foi dito, nós somos a linguagem do cosmos, sua articulações sistémicas mais ou menos solidárias, sempre no ca-
auto-reflexão. Nosso papel é fazer o cosmos desvelar-se, dar conta minho da maior complexidade, da maior consciência.
de si mesmo, entender-se. Mesmo que assumamos uma posição A morte, nesse sentido, oferece duas alternativas para o ser
religiosa, nós somos aqueles que contribuem para superar agi- humano: ou ele se dissolve, retornando às suas substâncias ele-
gantesca solidão de Deus. Nós somos sua alteridade. mentares, continuando a participar, sem identidade, no caminho
A humanidade que vive aplastrada diante da grandeza e coletivo do cosmos, rumo a sínteses mais complexas, ou ele vai
quantidade no universo, passa a perceber que essas duas dimensões dar mais um salto qualitativo, para outro e?tado, que não

244 245
(/)

~
.3o. conhecemos, onde vai exercer funções ainda mais importantes
2
(!) para a cosmogênese. Desse modo, ele estaria repetindo, em ou-
cu

e tro nível, a mesma situação traumática pela qual ele já passara à
<(!)
e
:e época em que morrera para a segurança da vida uterina e nascera
(!)
o.
para a vida aeróbica, para a vida relacional, social e humana, o
o
o.
E que representou um salto qualitativo, um rito de passagem, uma
2
o
-o
abertura para outras dimensões.
cu
..e
u
A morte é uma ponte entre vidas, uma passagem de estado
(!)
<i::
cu
voltada para a realização e a plenificação da vida. A cultura da
-o
(/)
o
morte é que deve ser combatida, pois representa a inversão des-
..e
<;::: se processo natural que prioriza a vida. É a vida que deve ser
(/)
o cuidada, e quando a morte chegar, que não se dê por violência,
crueldade, preconceito, opressão, descaso ou negação da digni-
dade do ser humano, mas que seja um elo no caminho para a
mais-vida.

O abandono da linearidade, da regularidade superficial, da


geometrização dos fenômenos e o entendimento segundo o qual
os fenômenos são dinâmicos, nunca necessariamente previstos,
mas essencialmente prováveis, pode dar a impressão de que as
atuais concepções científicas são adeptas da desordem, o que
resgataria a visão de Monod do acaso e da necessidade como
determinantes do mundo.
Quando trabalhamos com a teoria do caos, com seus frac-
tais, não estamos nos comprazendo com as reverberações caóti-
cas, mas procurando regularidades mais profundas, probabilida-
des mais seguras e exatidão maior no mapeamento dos fenôme-
nos estudados.

246
Vl
~
.3a. Isso significa o reconhecimento de uma desordem aparente,
2
(IJ uma irregularidade de superfície. Entretanto, é possível encontrar-
(IJ
·u mos, nos estratos mais profundos, regularidades e previsibilidades
e
<(IJ
e
~ que eram atribuídas a camadas mais superficiais dos fenômenos. A
(IJ
a.
partir das contribuições da teoria do caos, a meteorologia, que é
o
a.
E atravessada por centenas de variáveis, tornou-se mais segura em
2
o
"O
suas previsões, trabalhando em níveis mais profundos, onde existe
(IJ
.e
u
maior probabilidade de acerto das previsões.
(IJ
t;::
(IJ
A ciência, quando começa a aceitar a flecha do tempo, pro-
"O
Vl curando (ainda sem sucesso) as teorias de tudo, objetiva se de-
o
.e
{E sembaraçar da visão tópica e reducionista que foi imposta prin-
Vl
o cipalmente pelos cânones do século XIX e começa a perscrutar
as ordens que subjazem no fundo dos fenômenos e indicam um
caminho provável a cada um deles e ao cosmos, como um todo.
O ser humano, um ser da natureza, também está imerso nessa
ordem (ou ordens), dela fazendo parte, nela influindo e nela exer-
cendo seu papel desvelador, explicador e doador de sentido.

A dualidade entre materialismo e espiritualismo tende cres-


centemente a diminuir. A matéria, algo tão concreto e perceptí-
vel à época do iluminismo, se "desmaterializa", tornando-se mais
um conjunto de vazios e informações, de probabilidades de con-
figuração, de conjunto de partículas que se desdobram em ou-
tras, a revelar um microcosmo volátil e mutável, tão rico e com-
plexo quanto o cosmos que pretendemos desvelar.
A espiritualidade passou, a partir da modernidade, por um
processo de afastamento da natureza, de criação de doutrinas que
se referiam tão-somente às relações dos seres humanos em sua in-
terioridade ou no aspecto de sua alteridade ..As religiões hipertro-
fiaram elementos que já tinham em sua formação: o da moralida-
de, o dos mandamentos, o das ordens e o dos comandos.

248
religiosidade perdeu sua dimensão de religação, de duto teocentrismo com o antropocentrismo sem qualquer mediação
<lJ para reconduzir o ser humano para a comunhão com sua origem da natureza e sem nenhuma pertinência humana a essa ordem
ro

e e transformou-se em instituição de amálgama de pessoas em tor- que o sustenta.
<QJ
e
t'.<lJ no de condutas e de comportamentos prescritos, com a conse- O sagrado, o sacro e o sacrifício, no caminhar histórico,
Cl.
qüente punição ou premiação em caso de inobservação ou de mudaram de rumo. Das alturas divinas se instalaram nas bandei-
o
Cl.
E obediência. ras, nas nacionalidades, na intocabilidade dos reis e dos ditado-
2
o
"'Cl
Esses caminhos do materialismo e do espitualismo, apa- res, nos ritos de distanciamento criados para vestir de pompa e
ro
.e
u
rentemente divergentes, levaram a ciência e a religião a se aproxi- circunstância os senhores da opressão, para criar tradições que
<lJ
<;:::
ro
mar e a necessitar uma da outra, diante de problemas que ambas não foram trazidas, mas construídas cenicamente para conseguir
"'Cl
Vl
o
hoje têm de enfrentar. Os cientistas, no âmbito de seus conheci- o efeito de legitimação virtual. O sagrado é o laico e o profano
.e
~ mentos específicos, foram obrigados a admitir certas hipóteses com vestes rituais de uma sacralidade passada. Assim, as pessoas
Vl
o que tinham marca metafísica, o que era uma heresia para a reli- anseiam por sacralizar o que as impele na origem, o que as aco-
gião da relatividade. lhe, procurando instalar em suas vidas a convivência com o mis-
As religiões, lastreando suas concepções em bases absolu- tério, que sempre está a apontar para nossa pequenez e limites e a
tamente negadoras das descobertas científicas, que fazem parte mostrar nossa possibilidade de ser mais e de desvelar novos sa-
do cotidiano da vida social, enfrentam o descrédito, a desconfi- beres e dimensões.
ança e a negação de suas doutrinas e práticas atrasadas, que arro- Essa nova religiosidade recomeça a inserção do ser huma-
gam para si o privilégio de verdade absoluta. Isso as leva a esta- no no cosmos, a mudança de olhar em relação ao outro, que dei-
belecer um diálogo novo com a ciência, sob pena de as institui- xa de ser uma referência quantificada em gráficos, transforman-
ções religiosas perderem sua aceitabilidade e autoridade. do-se em ser concreto, com os mesmos direitos e com as mes-
Criou-se uma zona cinzenta limitada pela ciência, que não mas necessidades de cuidados e desvelos. No mesmo sentido,
desejava operar com pressupostos ou hipóteses metafísicos, e essa religiosidade recupera o papel da mulher e dos valores fe-
pela religião, que resistia em reconhecer explicações, compreen- mininos nos homens, apontando para o sonho de uma sociedade
sões e teorias científicas. ciência sentia necessidade de se liber- de paz e de solidariedade.
tar de seus grilhões epistemológicos e a religião, de suas algemas A corporeidade tão atacada e negada pelas religiões tradi-
mandamentais e artesanais. cionais torna-se a marca de nossa identidade, a expressão de nossa
Nessa lacuna, surge uma reavivação da religiosidade para pertinência em relação ao cosmos, o escrínio onde nossa interio-
além das instituições religiosas, fiel ao velho desígnio de religação ridade transcorre, expressando um mundo tão complexo, lumi-
ser humano com seu meio e com sua origem. Essa religiosida- noso e sombrio como o grande universo exterior que podemos
de, mais adequada ao mundo probabilístico em que vivemos, não contemplar.
se assenta nos dogmas, mas na busca do reencantamento do mun- Reencanta-se a natureza, resgata-se a pertinência perdida,
do, perdido pela intervenção de uma razão neutra e pela prática sacraliza-se o corpo, que é expressão una da matéria e do espíri-
de religiões que extraíram o ser humano da Terra, entrelaçando o to, retoma-se o feminino como dimensão reprimida na história
humana, o que a empobreceu e a tornou presa fácil da violência e
(]) do suicídio da espécie.
ro
·u O sagrado é material, espiritual, corporal, pessoal, vital,
e
<(])
e
~
natural e cósmico, o que significa o surgimento de uma ética que
(])
o.
vai se construindo a partir desses pressupostos, embasada no
o
o.
E respeito à Terra, ao corpo, ao diferente, ao despossuído, redun-
2
o
"O
dando em posições políticas de respeito aos direitos da cidada-
ro
..e
u
nia e por uma ordem política efetivamente justa. É assim que
(])
q::
vemos essa religiosidade que vai se instilando nas redes de seres
ro
"O
Vl humanos que estão preocupados com o estado em que o mundo
o
~
(,:: se encontra e as concepções, idéias, consignas e práticas que leva-
Vl
o ram-no a tal situação.

Se olharmos o mundo de modo diferente, um conjunto de


possibilidades serão abertas.

A primeira delas é a da convivência entre nossa luz e nossa


sombra. Temos de admitir que, nas acumulações de nossa ances-
tralidade, trazemos heranças luminosas que estimularam o avan-
ço das espécies que nos antecederam e o da nossa própria espé-
cie. Também portamos camadas sombrias de nossas violências
pretéritas, de nossas garras e dentes agressivos e destruidores. É
a nossa natureza in fieri.
Apostamos na vida, na complexificação e no salto dos sis-
temas dissipativos, e reconhecemos que essas heranças vivem

252 253
(/) ;;o
~
o
0-
.3o.. dentro de nós. Tais marcas deverão ser entendidas, analisadas e redamos da vida, com a com os
(]J
;:::+.
o
2
QJ canalizadas, mas não negadas pura e simplesmente, pois isso só obstáculos que nos enclausuram em relação aos outros seres ?
ro !1

e serviria para aumentar a tensão e o drama interior de cada um aos outros seres humanos, em especial, o medo do '-'"''L,' ' · " · ' ' , o..
<QJ (])
e
:e dos seres humanos. É sempre bom lembrar que a sombra nos liberdade, do sentimento da liberdade e do conceito existencial )>
lO
QJ e
o..
acautela sobre nossos problemas, nos indica caminhos, nos ad- de liberdade é ultrapassado, podendo assim ser pavimentado o õi"
-,
o
o..
E verte, sendo parte de nós. caminho para uma sociedade democrática, a partir de práticas
2
o A visão maniqueísta que se instalou na modernidade fez de raiz efetivamente livres.
"O
ro
..e dos seres humanos criminosos ou santos, puros ou devassos, ge-
u
QJ
li:: nerosos ou mesquinhos. Infelizmente, convivemos com essa am-
ro
"O
(/) bigüidade da condição humana, que, reconhecida por nós, pode-
o
..e
~ rá ser de grande valia para saltarmos rumo a processos mais avan- A visão bíblica do pecado original foi radicalizada pela
(/)
o çados de coesão. A convivência com a sombra é um aprendiza- forma Protestante, que concebeu o ser humano como intrinseca-
do necessário. mente mau, marcado que era pelo pecado original. ciência do
século XIX, as leituras que fizeram de Darwin, acrescentaram a
esse entendimento os conceitos de disputa, de beligerância e de
sobrevivência do mais forte, o que tornou a humanidade uma
A liberdade como possibilidade de ser, como abertura para teia de confrontos, de erradicação de inimigos e de disputa de
a tomada de decisões em todos os níveis da existência, como poderes. resultado disso foi a interdição do amor ao ser hu-
consciência da natureza e do mundo, com repercussões atitudi- mano, no sentido de ser solidário com o outro. máximo, ad-
nais, embora decantada em prosa e verso e retoricamente deseja- mite-se o amor dentro da familia, dentro mesmos
da, pelos riscos que impõe, pelos compromissos éticos que im- sociais, mas não há como tratar disso entre etnias, classes,
plica e pela solidariedade que desencadeia, é algo que amedron- ões ou grupos de interesses.
ta que desinstala retirando a comodidade da liberdade aliena- amor se tornou uma ilusão carnal, ou um idealismo ro-
' '
da, a mornitude das decisões delegadas, e a feliz apatia de quem mântico em relações são essencialmente conflitivas,
não deseja tomar consciência do que é o mundo e do que nele <lindo-nos de transcender essas cargas de nossa natureza.
acontece. o utópico uma outra civilização e a ,..,, --nr-.... ""'°' ......
1

O medo à liberdade, como dizia Fromm,75 é um dos em- são entre os seres humanos foram erradicados do J.J.'L)'_L.LL.•~,,..._LLL.
pecilhos para o exercício democrático, é uma venda ideológica as
em nossos olhos, a fim de que não vejamos o novo, libertando- componentes a manutenção e a
nos dos preconceitos, das idéias prontas e das instituições car- ção das espécies botânicas e zoológicas foram os
comidas. de entre seus componentes e o às diferenças,
Quando vivemos iluminados pelo uma mitia a tessitura unidade pela união complementar
um os renciados. 76
;;o
o
O"'

O afeto, o amor, o cuidado e o respeito vão, em cada nível crescimento espiritual, a um lugar para se abrigar, a não ser ex- ((l
;::j.
o
Q) de complexificação, manifes,tando-se, no âmbito da consciência plorada, oprimida, estuprada, assassinada ou escravizada. não ':!>
ro :;o

e de cada momento de transformação. Retirarmos essa faceta cós- atentarmos para o corpo dos seres humanos, certamente nossas Cl..
<Q) ((l
e
:e mica da vida, seqüestrando-a dos seres humanos, os mais consci- pregações de respeito aos direitos humanos, de liberdade e reco- )>
lCl
Q) e
Cl..
entes até agora conhecidos, significa dizer que estamos obstando nhecimento, morrerão no nascedouro, pois a elas falta a dimen- ~·
o
Cl..
E o caminho para saltos rumo à mais-consciência, desconsideran- são originária, que é a do reconhecimento da corporeidade, que
2
o do a dimensão afetiva, que dá o norte para a solidariedade. em suas relações recíprocas dá a base para outros patamares de
'D
ro
..e O amor entre os humanos não é apenas um pensamento construção social da liberdade e da consciência.
u
Q)
4:: desejante, como querem os norte-americanos, mas a admissão
ro
'D
Ul da continuidade de processos e relações para o caminhar das
o
..e
~ espécies na Terra e condição necessária para os novos saltos que
o
Ul

terão de vir. A mesma visão darwinista, o mesmo padrão civilizatório


macho e disputante gera nos poderes constituídos e nos poderes
que pretendem se constituir a visão segundo a qual no mundo
não há condições para a paz, mas sim de armistícios mais ou
O maniqueísmo implícito em nossas ideologias políticas, menos longos. A política é encarada como disputa de poder por
morais e religiosas deixou para o corpo o lado sombrio, pecami- métodos pacíficos nos períodos de não beligerância ou pela guer-
noso, ou simplesmente desprezível. ra, como sua continuidade natural. Assim entendendo, percebe-se
O corpo passou a ser objeto de fruição e de dominação, que a política nada mais é que a guerra mitigada em alguns perí-
em termos de trabalho, de sexo, gostos, modas, destruição e des- odos ou exacerbada em outros.
cuido. Justamente a corporeidade, que é o fator distintivo entre Sem a mudança de padrões, não há possibilidade de paz.
os humanos e fruto de toda uma história de transformações pré- Sem a erradicação, em um processo crescente, das disputas, das
biológicas e biológicas, a expressar em sua anatomia, fisiologia e divisões, das concorrências predatórias, das nacionalidades f e-
linguagem essa síntese imperfeita, que ainda está se criando e pro- chadas, das pseudo-universalizações, que nada mais são do que
curando se perfazer. novas formas de dominação, divisão e guerra, não poderemos
tendência, hoje, é a de procurar reencantar a natureza, falar em paz.
não para ser adorada ou antropomorfizada, mas para ser consi- A paz não se constrói por dominações. Não se pode falar
derada nossa casa, o húmus a partir do qual emergimos, o ali- em uma novapax romana, desta vez com a substituição de Roma
mento que nos sacia, as estimulações que nos levam a desvelar a pelos Estados Unidos, ou pela entrada de novos organismos in-
nós próprios e ao mundo do qual fazemos parte. ternacionais absolutamente ilegítimos, como é o caso da OTAN,
Democracia, liberdade, respeito à dignidade das coisas e que nada mais é que a gendarmerie americana na Europa. Não se
do ser humano se iniciam pelo reconhecimento da corporeida- pode considerar como paz as situações de países que calam seu
de, de seus direitos à sobrevivência, à alimentação, à saúde, ao povo pelo silêncio dos cemitérios. Não é racional aceitarmos a
l/l 7J
o
~ O"
.a
Cl.. paz dos sistemas políticos de uma só idéia, ou de uma só têm de se localizar no futuro, ou estar prenhes dele, mesmo que
ro
;:::i.
o
2
<lJ religião. nos impeçam de sonhar e de trazer para o hoje as imagens do '!>
ro !1

e
Apesar disso, cremos existir hoje, pela nova natureza de amanhã. Cl..
<<lJ ro
e
t'.<lJ problemas que a humanidade está enfrentando, pelas novas cons- Como os mais idosos podem trazer reflexões que não mais )>
lO
e
Cl..
ciências que florescem, pela criatividade técnica e ética que vai se se coadunam com a cultura visual atual, como eles têm mais vo- ..,õi'
o
Cl..
E alastrando, haver acumulação de experiências no sentido da di- cabulário e experiência macerada que os adultos, eles estão fora
2
o minuição da beligerância, do estabelecimento de processos de de lugar, como também, pela mão inversa do tempo, guardam
"O
ro
..e paz que não sejam fruto da dominação, mas do reconhecimento alto potencial subversivo dentro de sociedades absolutamente
u
<lJ
;:;::: negociado entre diversidades culturais, nacionais e econômicas, conformistas, que acreditam ter chegado à fase final da humani-
ro
"O
l/l
que por isso necessitam ser complementares, e não disputantes. dade; um anticlímax de descrença e de rotação das visões funda-
o
..e
4:: Acontecendo esse fenômeno, certamente a humanidade terá mentais para o individual, para uma tênue busca de sentido tran-
l/l
o dado um grande salto qualitativo em termos coletivos e enquan- sitório em existências ontologicamente sem sentido.
to espécie. Apesar disso, se as sociedades, por seus movimentos, assu-
mirem novos olhares e nova ética, até mesmo a partir do ele-
mentar sentimento de sobrevivência, o papel dos velhos ganhará
outra cor. Eles poderão desenvolver atividades que religuem o
futuro ao passado, ser uma categoria social conselheira no coti-
O trabalho na contemporaneidade é mais uma unidade de diano, a fonte de afeto para os que não têm família, ou que têm
tempo do que uma obra a ser entregue pronta. A velocidade dos nesse grupo a origem de sua carência. Os mais velhos são os
fatos, a fragmentação produtiva, a transnacionalização dos pro- mais talhados para o magistério de profissões necessárias ao an-
cessos produtivos e a prevalência do capital especulativo ,em ní- damento do ser humano e desempenham um papel paradigmáti-
vel mundial fazem com que a sociedade e o mercado encarem a co em circunstâncias limítrofes, ser de serenidade diante da agi-
questão do emprego e da ocupação como temporalidade útil, tação imatura, elo histórico dentro de uma sociedade do tópico
ou período em que alguém pode vender sua força de trabalho e do instante e raiz em um mundo erradicado.
com um mínimo de eficácia e eficiência, ou como tempo sufici- Essa possibilidade é também reintegradora de uma cate-
ente para se ter um substituto sempre pronto para tomar o lugar goria de seres que, junto com as mulheres, as crianças e os dife-
de trabalhadores insurgentes, a preço mais aviltado. rentes, perfaz maioria esmagadora do mundo, que não têm voz
Como já foi dito, os que ainda não podem produzir e os ou vez, pois o problema das contradições não se situa só nas
que já produziram não interessam a essa sociedade de adultos. classes sociais, mas invade o campo da hegemonia na doação de
Logo, os velhos, que poderiam ser a memória da sociedade, são significados ao mundo. O sentido do mundo é dado pelos ho-
encaminhados para situações que se configuram como ante-sala mens adultos que produzem. Todos os outros seres humanos
da morte. Pela velocidade da tessitura de ilusões do mundo, não deverão se enquadrar a essa cartilha limitadora de suas identida-
há mais lugar para a retrospecção lenta da idade. As histórias des e de suas funções.

258
(/)

~
.3a. A participação dos velhos na vida social, cultural e econô-
2
(lJ mica da sociedade é um dos caminhos para considerar o conjun-
ro

e to humano como humanidade, e não como o tecido eventual de
<(IJ
e
t'. semelhanças que une grupos absolutamente díspares e isolados,
(lJ
a.
que têm como traço absolutamente comum o fato de serem bí-
o
a.
E pedes implumes.
2
o
"CJ
ro
..e
u
(lJ
q::
ro
"CJ
(/)
o
..e
<;:::
(/)
o

Entre a lógica da identidade e a lógica dialética, há um abis-


mo de contradição. Parece não haver instância intermediária, uma
articulação que transcenda essa antítese básica. Se não cairmos no
erro da busca de cosmogonias baseadas nas lógicas, o que foi uma
tentação dos cientistas e filósofos dos séculos XVIII e XIX e dos
neopositivistas deste século, salta aos olhos a importância de cada
uma dessas aproximações do mundo por seu papel no avanço tec-
nológico, científico e por suas reflexões sobre o mundo.
Os neopositivistas, em sua busca por uma principiologia
única do conhecimento, ou o entendimento de certo pensamen-
to ortodoxo marxista no qual a dialética não era um instrumento
epistemológico, mas a expressão da natureza das coisas, de suas
leis necessárias, enviou a discussão para o plano da luta ideológi-
ca e das construções cosmogônicas, mesmo quando as pretensões
fossem a negação das cosmogonias e a chegada a um conheci-
mento desprendido da metafísica.

260 261
UJ
~
.3o. explicação e a compreensão dos fenômenos parecem, na
2
OJ proporção em que eles se tornam mais profundos ou mais com-
m

e plexos, exigir um instrumental mais fino, uma ontologia constru-
<OJ
e
t'.OJ ída com outros pressupostos epistemológicos, de outras lingua-
o.
gens de descoberta e validação.
o
o.
E Quando encaramos o universo como manifestação line-
2
o
Ll
ar, em que o observável se dá na superfície, basta utilizar a
ílJ
..e
u
lógica da identidade para conseguir embasar significativos
OJ
;:;::: avanços do conhecimento dos fenômenos. Quando nos depa-
ílJ
Ll
UJ ramos com a manifestação humana em seu aspecto relacional,
o
~
<;:: conflitos e desigualdades, em sua luta por espaços e hegemo-
UJ
o nia, na constante tensão em torno de direitos, privilégios eco-
nômicos e conquista de poder, não podemos esgotar a com-
plexidade desses fenômenos pelo uso da lógica da semelhan-
ça, o que nos obriga a lançar mão da lógica da contradição,
que capta os momentos e os modos de enfrentamento do ser
com o não-ser e as sementes de superação que o fluir do mun-
do humano apresenta.
Quando se percebeu, principalmente com as contribuições Política é luta pelo poder. Poder é relação entre comando e
da mecânica quântica, que o olhar do observador dialoga com o obediência, em redes conflitantes, que transitam do macropoder
observado, com ele estabelecendo uma unidade dinâmica, que para o micropoder. Se a política é luta pelo poder, ela é, no míni-
atinge tanto um quanto o outro, surgiu a oportunidade de tratar mo, jogo e, no máximo, guerra. Esse é um resumo grosseiro da
os fenômenos considerando a multiplicidade e a complementa- explicação vigente de política.
ridade de sua própria natureza. É, como já foi dito, o caso da Embora a ciência política desenvolva sua teorização anali-
luz, que é corpúsculo e onda, a depender do olhar de quem a sando essa teia de relações descrita, as abordagens filosóficas ou
considera. Para dar conta desse fenômeno, tenho de admitir um econômicas, explícita ou implicitamente, esperam por um mo-
instrumental epistemológico que transcenda a identidade e a con- mento em que as sociedades estarão de tal forma transformadas,
tradição e considere essa multiplicidade de naturezas como com- seja pela mão invisível do mercado, seja pela revolução, que não
plementares e constituidoras da unidade do fenômeno. haverá mais lugar para esses jogos, estratégias e táticas. Todos
Desse modo, não somente captamos uma unidade que está têm uma nostalgia da não-política, do não-jogo e da não-guerra.
localizada em estratos mais profundos, como também enlaçamos A sociedade sem classes é um típico sonho nesse sentido. No
observador e observado como pertinentes ao mesmo mundo e di- fundo, com todos os conflitos, a política está prenhe de uma ou-
alogantes, interdescobrindo-se. tra política, que é sua contradição e superação.
;:i::i
o
O"
([)
A política, nos moldes atuais, é a tradução mais explícita natureza, co-criadores do cosmos e privilegiados pela complexi- ;:::\-
º
QJ do padrão civilizatório da competição, do entrechoque de inte- ficação biológica como portadores de linguagem, de percepção ?
(\) ~
·u resses e da crença na inviabilidade da solidariedade no gênero de finitude, de capacidade de criação de modelos explicativos e o._
e ([)
<QJ
e
t'.QJ humano. Os seres humanos, naturalmente, são divididos e não compreensivos dos fenômenos que se passam em sua interiori- )>
l.O
e
o._
conseguem transcender sua situação grupal e seu papel na hierar- dade e exterioridade, faces da mesma totalidade. QJ
--.
oo._
E quia grupal. A política é um desenfreado processo de luta pela Com essas novas concepções, a política admitirá novas prá-
2
o
"'O
hegemonia, pela conquista de espaços, que culmina no exercício ticas de discussão, de reflexão ou de concitação, ganhará novas
(\)
.e
u
do poder. dimensões, pois não será disputa mortal, entrechoque irredutível
QJ
q::
(\)
Além de traduzir o que foi descrito, essa política expressa de interesses, mas convergências cujas conveniências serão parti-
"'O
Ul
o
uma compreensão da sociedade e do papel de seus componentes lhadas pela mediação entre as posições relativas ao teor, proce-
.e
;,;:: muito própria. Para ela, os seres humanos são diferentes, mas essa dimentos e formas de resolução.
Ul
o diferença, que poderia ser símbolo de riqueza e de surgimento de Nesse momento, a publicidade da política se radicalizaria e
unidades mais densas, é considerada um empecilho para a realiza- o espaço público ganharia outra significação, pois seria o lugar
ção de um certo tipo de ordem, que confunde segurança com ho- da convergência, o locus da expressão coletiva, a oportunidade
mogeneidade, diferença com risco e identidade com perigo. da participação direta, a desnecessidade da hierarquização de
A grande meta metropolitana é reduzir o mundo a uma poderes e o caminho para uma polis autogestionada e atravessa-
cultura pasteurizada única, com orientação mercadológica seme- da por todas as variáveis que dinamicamente constituem o espa-
lhante, com os mesmos gostos e fruições, salvo no que tange à ço existencial do humano.
divisão internacional do trabalho e aos níveis de exclusão social.
Nessa óptica de separação e hierarquia, de uniformização
e homogeneidade, o sentimento mais alto a que se pode chegar,
o valor mais significativo a ser atingido é o da tolerância, isto é, o
da aceitação compulsória daquele que é meu diferente e, quase
sempre, inferior, enganado ou evolutivamente atrasado. Todos
os outros valores ou afetos não conseguem ter sustentação no
interior dessa visão de relações entre os humanos.
Só com a inversão dos fundamentos das relações entre os
seres humanos vai ser viável praticar outro gênero de política,
embasada no reconhecimento como valor que identifica as rela-
ções dentro de nossa espécie e que se expressa por igualdade de
direitos, mesma dignidade de todos os seres, aceitação da di-
mensão criativa da diferença, complementaridade e respeito entre
os gêneros, e como afeto, cuidado entre seres pertinentes à mesma

264 265
As distâncias sociais, as explorações e as opressões tendem
a ser radicalizadas nesse momento de globalização que diminui
drasticamente a oferta de empregos e redireciona a divisão inter-
nacional do trabalho, estabelecendo uma pesada e difícil situa-
ção de in.justiça planetária.
É evidente que as classes estão em conflito. É claro que
entre elas existem contradições emergentes das relações de ex-
ploração que dão a razão de ser produtiva de quem oprime e de
quem é oprimido. A prática econômica vigente é predatória de
seres humanos. A disputa e a guerra se instalam no cotidiano
produtivo, não somente dando a lume mercadorias, mas idéias,
conceitos e preconceitos que sustentam a continuidade dessa in-
justiça.
A questão do conflito entre as classes é política, conceitual,
estratégica, tática e produtiva. Para enfrentar esse problema, é

267
Ul
~
.3o.. preciso observar pressupostos que têm um certo caráter metafí- ser humano e natureza, ao culto da moeda e de suas correlações, à
2
sico de fundo, embora, por princípio, neguem essa dimensão. O criação de necessidades ou ao não-atendimento das necessidades
ílJ

e
<(JJ
primeiro deles é o de que são as relações sociais de produção reais e a uma visão de desenvolvimento que significa maior riqueza
e
:e que formam nossa consciência. Isso constitui um sujeito heterô- para os homens, em proporção à maior pobreza da natureza.
(JJ
o..
nomo e determinado, cujas transformações de consciência só Além de tudo isso, o igualitarismo não atingiu as unida-
o
o..
E poderão acontecer pela mudança de suas condições objetivas de des de produção, onde vigem, como normas, a desigualdade,
2
o
-o
vida. Essa afirmação é verdadeira, quando percebemos no mun- o autoritarismo e a ditadura do trabalho. A mudança econô-
ílJ
..e
u
do a existência de milhões de seres em situação infra-humana, mica revolucionária tem de ser de fundo, de compreensão
(JJ
;;::::
ílJ
não se podendo deles esperar grande consciência de si ou do básica dessa atividade, sob pena de resgatarmos o mesmo,
-o
Ul
o
mundo, pois todas as oportunidades lhes foram negadas, a co- depois dos processos revolucionários que pretendem a trans-
..e
te meçar pelo seu direito de sobreviver. formação.
Ul
o Mas as revoluções que pretenderam transformar o mundo As opressões, as exclusões e as repressões ainda são fre-
e o ser humano pela superação das contradições econômicas qüentes no mundo. O denominado processo de globalização ten-
puderam observar que o ímpeto revolucionário não se assentava de a acirrar as distâncias sociais e a resgatar a dimensão internaci-
nas leis necessárias de transformação da sociedade, e sim na sede onal dessas desigualdades, conforme bem havia ressaltado Marx.
de transformação, no ímpeto de implantação da justiça, que, com Salta aos olhos a continuidade do conflito entre as classes. Mas a
todos os excessos, traduzia um dever-ser ético e axiológico, an- resolução "objetiva" dessa questão não tem o condão de evitar a
tes de ser expressão científica das necessidades. volta a novas dominações, com outras roupagens ou com o sinal
O problema mais grave se deu na própria continuidade do trocado.
espírito revolucionário, que ainda deveria ser maior quando vá- A transformação da sociedade se dá pela mudança de fun-
rias medidas de socialização econômica foram tomadas. Elas, iso- damento, compreensão e prática da economia, pois ela deve se
ladamente, não estimularam o acirramento do fervor revolucio- voltar para o atendimento das necessidades, para a distribuição
nário, não criaram o homem novo, porque o ético, o político e a das riquezas, para a realização da felicidade humana, que se mos-
mudança de base do Estado e da cidadania não foram imple- tra por seu bem-estar material, pessoal e espiritual.
mentados. Para que isso aconteça, é preciso realizar transformações
As mudanças econômicas são fundamentais, embora não radicais na política e na ética, conforme já tratamos anteriormente.
resumam a história, nem a transformem enquanto sentido e sis- Tais transformações só serão realizáveis quando, dolorosamen-
tema de relações. São passo fundamental, embora não determi- te, abandonarmos a metafísica do materialismo dialético e acei-
nem ou condicionem outras modificações tão importantes quan- tarmos que a consciência, a ética e a política precedem a econo-
to as econômicas. mia, isto é, a constituem ou destituem. Não são as leis da neces-
Agravam-se os problemas com essas mudanças, pelo fato sidade que determinam as relações sociais.de produção e estas as
de a economia, apesar de procurar melhor distribuição de bens consciências humanas, mas a teia dinâmica do político, do ético e
nas sociedades planejadas reais, continuar presa à divisão entre do econômico, em constante relação, é que vai permitir o

268 269
(/)

~
.ao.. aparecimento de novos processos produtivos, novas práticas neutra e impassível, que não reage aos dramas ou tragédias desta
2
Q) econômicas e novas doutrinas justificadoras dessas práticas. espécie tão nova e insignificante.
ro

e Para esse materialismo concorrencial, a sociedade é natu- Com essa visão assentada na guerra, na economia e na do-
<Cli
e
:e ralmente guerreira, o mundo é visto como perpétua luta e dispu- minação, o caminho das sociedades é o da destruição, pois a
Q)
o..
ta, regido por um Estado mínimo, que mitiga o sangue da dispu- predação de fundo que está por detrás desses três conceitos inviabi-
o
o..
E ta e diminui para limites toleráveis as mortes necessárias e exem- liza crescentemente a relação entre os humanos, fragmentando-os
2
o
""O
plares desse processo. Esse imaginário e essa forma de interven- cada vez mais, criando uma antropologia solipsista e engendran-
ro
..e
u
ção no mundo nunca gerará transformação, pois a economia pela do o último movimento de ruptura com o meio ambiente, con-
Q)
<;:::
ro
economia nunca ensejará grandes saltos qualitativos nas socieda- dição para um suicídio coletivo apático e alienado.
""O
(/)
o
des, salvo um improvável recuo para o paradigma primitivo, que Para ainda podermos pensar em transformação e mesmo
..e
(C é a negação da economia vigente, conforme já foi visto. em revolução, precisamos ter como base um outro tripé: a ética,
(/)
o É a compreensão do mundo e do ser humano, o convívio isto é, a rotação de valores da disputa destruidora para a solida-
agressivo ou não com a natureza e os valores daí decorrentes que riedade, do isolamento para o compartilhamento, da apatia para
vão engendrar práticas político-econômicas libertadoras ou de- o cuidado, da ciência para a consciência, do desamor para a com-
sagregadoras da espécie humana. paixão, da morte para a vida; o direito considerado o fruto nor-
O econômico é instância fundamental de nossa vida, mas mativo formal ou não formal que se cristaliza no decorrer das
não é o determinante da totalidade social, direta, ou indireta- conquistas da cidadania e da humanidade, à luz dessa ética que se
mente. Ele está imbricado em tudo, está dialogando com as ou- decanta nas lutas, nos jogos e nos debates e abre espaços de mais-
tras dimensões da sociedade e da história, mas dentro de um ser na sociedade; a política como o instrumento de indução, refle-
sistema de relações, de uma teia de articulações na qual outros xão, negociação, mediação, incitação, organização e pressão no
fatores o precedem. sentido da reinserção humana na Terra, na sociedade e no cos-
Vivemos práticas sociais apoiadas em um tripé de idéias mos, e tradutora no cotidiano da ética e dos direitos consigna-
sobre o mundo: a da irremediável impossibilidade da solidarie- dos e a consignar.
dade entre os seres humanos, o que faz da guerra o instrumento Só essa transição ensejará real mudança no mundo. A sim-
cotidiano de resolução dos problemas humanos, em todos os ples mudança de conceitos secundários, ou as grandes mudanças
níveis; a da economia enquanto prática concorrencial e criadora de internas das teorias e práticas, sem o deslocamento dos pressu-
imaginários, necessidades, vencedores e vencidos, o conjunto de postos, representam movimentos de Sísifo que, antes de ser trans-
conhecimentos e práticas que melhor demonstram o espírito da formação, transformam-se em condenação.
guerra, considerado como único possível neste mundo que ope-
ra segundo a lógica do mais forte, considerada pelos hegemôni-
cos como natural na Terra e nos homens; a da dominação como
expressão dessa naturalidade desigual, de convivência entre for-
tes dominadores e fracos dominados, dentro de uma natureza

270 271
Temos de admitir uma anterioridade à existência do uni-
verso, se aceitarmos a flecha do tempo, apesar das dificuldades
que cercam o seu estudo. Há uma pré-condição, seja ela um va-
zio, um ente, ~u um estado de equilibrio que foi quebrado, da
qual o cosmos ou conjuntos de universos surgiram.
O universo conhecido tem em sua origem um momento de
desequilibrio, de solidão que se rasga em alteridade, de quebra
de uma harmonia prévia, de um grito de algo que desconhece-
mos. Um grito trovejante, que traz a capacidade latente de reu-
nir, amalgamar e sintetizar, ao lado do potencial de desagregar e
entropizar. Desde o momento originário, a grande aposta cós-
mica estava lançada: de um lado, o potencial de organização e

2
;;o
o
o-
complexificação; de outro, o caminho contraditório da destrui- Assim já havia no povo um ,~
'-'U' ..L.1. ..L'-'-''-'-1..... _._ ... ..... _._,_'"'
ro
;::i.
o
(]) ção. Tudo isso presente em todos os elementos do cosmos, unos dupla face divina, o que significa dizer da dupla mo- ?>
ro
'ü em sua origem, próximos em suas estruturas físico-químicas, mas ?D
e
<(])
mento originário que constrói e destrói. visão é repetida o_
(])
e
·-e portando em si essa complementaridade de luz e de sombra que em outras religiões orientais, como no hinduísmo e em certas )>
(]) lO
o. e
faz parte inerente à natureza de tudo o que pertence ao universo. manifestações mais recentes da cabala judaica. ~·
o
o.
E Podemos dizer que o universo, ou os universos, são a alte- O universo que conhecemos tem, pelo que foi dito, uma
23
o
"O
ridade de um outro que desconhecemos, de um outro destacado estrutura dramática, que pode ser percebida em seu nível mine-
ro
J::
u
no momento originário e de um outro presente dentro de cada ral, vegetal, animal e humano, na qual as tendências à organiza-
(])
q::
partícula. Este universo que conhecemos é a oportunidade de ção, complexificação, socialização e amorização convivem com
ro
"O
Vl essa entidade, ou condição originária, vivenciar a existência de seus opostos da inorganização, entropização, recuos organizató-
o
J::
li= um outro lado que dela faz parte, mas que dela é destacado. Essa rios e destruição. São os seres do universo, nós em particular,
Vl
o é a oportunidade de aquele ente originário, por via da quebra de que temos de apostar, por nossas atitudes, saberes e organiza-
sua solidão, poder experimentar junto com o cosmos a dimen- ção, na vida, na continuidade e no avanço dos seres de nosso
são ética, que necessita de um outro para se dar. De certa forma, mundo, ou aderir às tendências contrárias.
o cosmos educa o que veio anteriormente ao big bang, ao mesmo Aí está a base para a edificação do processo de libertação e
tempo que é iluminado, constituído e destruído pelo que esse de elaboração de uma ética de respeito à vida, ao outro, ao dife-
ente ou essa situação nele inscreveu. rente, pois detrás de tudo isso estão presentes o princípio com-
A ciência contemporânea tem, cada vez mais, reforçado a plexificador da natureza dentro de uma unidade substancial.
concepção da unidade substancial do universo, além de mostrar Podemos dizer que no interior de todos os seres, no inver-
essa duplicidade oposta e complementar que dá à matéria o po- so interno de sua aparência, há uma interioridade representada
tencial de saltar para sínteses mais altas, ou de se entropizar, dis- pelo vazio e pela informação, pelos fótons, glúons, prótons, nêu-
solvendo-se. Os textos bíblicos mostram esse mesmo modo de trons e elétrons na matéria que se expressa pela diversidade de
ver implícito do divino, quando descrevem um Deus que é amor, entes. Mas, na medida da complexificação, há uma interioridade
compaixão e doação, ao mesmo tempo que mostram um Deus crescente dos seres, que são mais organizados e profundos, além
terrível, vingador e provador dos judeus, como no texto de J ó. de portarem em sua trajetória toda a história cósmica, natural e
Jung, em seu magnífico texto Resposta aJó, destaca essa experiên- social que os precedeu e que ainda está se dando. Isso também
cia terrível e sublime, esse contato com o inefável consolador e faz parte do universo e continua a repercutir como uma vibração
vingador a que o fundador da psicologia analítica deu o nome de daquele momento originário, que pode caminhar para a mais-
experiência do numinoso. No fundo,Jó, com seu sofrimento, passou liberdade, de acordo com as apostas que os seres, em suas ins-
por todas as perdas e todas as circunstâncias que o levaram a ser tâncias, fizeram e farão na história cósmica.
aprovado no teste brutal que Deus lhe impôs. J ó homenageou a
Deus com o conhecimento da adesão, do amor e da fidelidade,
mesmo nas mais terríveis provações.

274 275
O momento contemporâneo contribui para o crescimento
do ceticismo e da desesperança diante do ser humano. As guer-
ras, as crueldades, a fome e as desigualdades ratificam essa idéia,
que vai levando os sistemas políticos a aumentar seus aparatos
de controle e coerção, diante do pressuposto de que a natureza
humana é má, seja pelo pecado original, seja por sua estrutura
genética. Assim, a espécie humana se torna um animal dentre ou-
tros, pleno de garras e dentes e pronta para destruir outras espé-
cies e a sua própria.
A condição humana parte da potencialidade desse ser que,
por sua complexidade neurológica e por seu nível de consciência,

277
(j}

~
.a
D. detém as faculdades opostas de avançar rumo a sínteses mais A espécie se impôs, na denominada civilização ocidental,
2
(]) altas, ou destruir essa possibilidade, infletindo a agressividade um exílio do outro e do mundo que se inicia pelo exílio si
ro
«J
e para a própria espécie e para o meio ao qual ela pertence. mesmo. Isso porque optou por uma razão voluntarista, que pro-
<(])

~
e
A consciência de si, da finitude, do poder e da capacidade cura transformar o mundo pelo trabalho e pelo conhecimento,
(])
D.
de criar imaginários deu ao ser humano um raio de ação, um po- dentro de seus parâmetros metodológicos, desprezando tudo o
o
D.
E tencial de interferência que nenhuma espécie anteriormente teve. que não pode ser explicado por essa categoria de saber.
J:l
o Esse arco de condutas e comportamentos, para alguns chamado Como a interioridade humana é muito rica, com uma com-
"O
ro
.e de livre arbítrio e para outros de liberdade, aumenta o poder de plexidade e profundidade para além dos controles da vontade
u
(])
<;::: coesão, solidariedade, cooperação e socialização, mas também abre humana consciente, abrangendo aspectos que não são perceptíveis
ro
"O
(j} a consciência humana para a divisão, a disputa, a opressão, a des- pelos cânones científicos, ela é abandonada, como se não existisse
o
.e
t;:: truição e o tratamento desigual. Quando dissemos que o universo na espécie humana. Hoje é essa mesma ciência que, dialeticamente,
(j}

o é uma aposta entre as tendências à entropização e as de organiza- vai reassumindo essas preocupações, que ainda não foram absor-
ção, sendo a espécie humana habitante do cosmos, ela, no nível de vidas pelo senso comum quotidiano das ciências aplicadas e das
sua complexidade, também reúne essa dicotomia. práticas tecnológicas, políticas, psicológicas, morais, e sociais.
O ceticismo quanto à nossa espécie é fundamentado em Diante dessa visão de conhecimento, com seus necessários
alguns pressupostos de uma razão rigorosa, mas externa, que consectários ontológicos, caiu-se no relativismo primitivo, no qual
tornou o ser humano sujeito por via de seus comportamentos e não existe nenhuma base para aceitar o respeito ao ser humano,
ações, sem considerar a internalidade de cada um dos membros chegando-se, como já foi visto, no máximo, à tolerância. O ser
da espécie, ou as identidades arquetípicas, inconscientes e sim- humano é raso, sem nenhum sinal que indique sua dignidade, sua
bólicas que se expressam para além da vontade humana, embora necessidade de ser respeitado, ou seu papel em sua rápida traje-
fazendo parte de sua históriamais profunda. tória individual, coletiva ou histórica. É um ser fruto do acaso e
Quando o ser humano separou-se de si mesmo, renegando da necessidade, é um guerreiro que disputa para ganhar espaço,
suas camadas mais profundas, pelo fato de elas não serem cientí- para sobrepujar os outros e para dominar os mais fracos. Uma
ficas, estava criando um imaginário paradoxal, que afirma como tradução deformada de raiz darwiniana marca a vida econômi-
inexistente, ou fruto da criação de imaginações delirantes, tudo ca, a divisão internacional do trabalho, com suas práticas políti-
o que não pode ser explicado pela ciência oficial. cas e ideológicas.
Os critérios de quantidade, repetição e experimentação; os Por essas concepções, a tendência humana é a de entropi-
instrumentos tecnológicos sofisticados que esquadrinham o ser zação e de fracasso da espécie, que não cria condições para um
humano em suas diversas partes, dentro de uma óptica organi- amálgama interior maior e para uma interface mais solidária com
cista, mais não fizeram senão tratar cada pedaço humano como o meio do qual faz parte. Esses antivalores, essa visão suicida e
objeto da ciência, resgatando a dualidade sujeito-objeto e frag- dissolutora faz a balança pender para o lado da desagregação.
mentando o ser humano por via dos objetos puros de cada ciência, Para saltar para sínteses mais altas, para fazer avançar a es-
conforme as concepções kantiana e neopositivista. pécie, alguns padrões devem ser repensados:

278 279
Vl ;;u
~ o
O"
.ao.. a as pesqmsas o a ciên- ro
;::i.
o
2
e os movimentos do conhecimento têm privilegiado a externali- cia é fundamental para o avanço do saber humano, mas ela não '!>
ro ~

e dade, o que está fora do ser humano, esquecendo-se de que a pode ser considerada como padrão único de verdade para o senso CI..
ro
<Q)
e
t externalidade é construída pela percepção humana que é inteifen·- comum. A característica fundamental da ciência é duvidar de suas )>
lO
Q) e
o.. ~·
da, em contrapartida, por esse mundo dado como exterior. próprias conclusões. Este é o motor de sua transformação e aper-
o
o..
E A complexidade, os meandros, as estruturas caóticas, as feiçoamento.
2
o
"O
camadas da história profunda dessa espécie, que pode resgatar O interessante é que, quando esse tipo de conhecimento é
ro
.e
u
seus patamares minerais, biológicos e espirituais, ainda está para tomado de fora, torna-se dogma, transforma-se em justificador
Q)
<;::
ro
ser enfrentada, pois o universo interior do ser humano, além de de atitudes e práticas sociais e econômicas, como se fosse dog-
"O
Vl
o
fazer parte de um todo único, pode indicar os caminhos para um ma, negando a natureza do próprio processo de sua criação e
~
<.::: crescimento da humanidade, que vai repercutir na tematização servindo de base para interferências úteis ou perversas na ordem
Vl
o política, econômica e social. Não se faz política, não se constrói das sociedades. A ciência é um dos canais para explicar e com-
justiça, nem se elabora uma ética passando por um ser humano preender os fenômenos, e seus resultados são expressos por téc-
que só existe da pele para fora, como se fosse máquina neuronial nicas e modelos palpáveis, com resultados comprováveis, mas
que responde a estímulos. não é o único canal. Torna-se necessário resgatar a função gnosio-
25.2. a compaixão e a solidariedade: o padrão de dispu- lógica da arte, das religiões, dos conhecimentos tradicionais, além
ta e de aniquilação do concorrente, que surgiu com a ascensão do papel fundamental da filosofia e das linguagens icónicas da
do patriarcalismo, deve sofrer uma rotação para que efetivamen- poesia.
te os direitos de gênero sejam respeitados, redundando na assun- 25.4. a multidisciplinaridade e a transdisdplinaridade:
ção dos padrões de compaixão, cuidado e solidariedade, que, o vezo científico nos levou a retalhar o mundo do dado e perder
certamente, reporão sob outra óptica a questão da desigualdade o sentido de sua totalidade. Os saberes se encastelaram em terri-
social, da miséria, da política e da consideração da humanidade tórios recortados, que foram considerados "ciências puras" pela
como uma espécie planetária. circunscrição de seu objeto estritamente definido e seu método
Os esforços e as lutas para eliminar a opressão só poderão de enfrentá-lo, ou, como queriam outros, pelas técnicas de en-
ter êxito se evitarmos o retorno aos padrões de concorrência e frentá-lo, já que consideravam o método como único: o lógico-
disputa, que inviabilizam os avanços da humanidade. A centração matemático.
das ações tão-somente no campo econômico-político só vai dei- O diálogo no âmbito do conhecimento, científico inicia-se
xar aberto o flanco para a reentrada dos valores de disputa, como por imposição dos fenômenos, que não mais se adequavam aos
a história recente nos mostrou com a experiência do socialismo modelos científicos circunscritos. A Psicologia e a Sociologia, a
real. É necessária a mudança de paradigmas valorativos para sedi- Física e a Química, a Astrofísica e a Geologia, a Antropologia e
mentar os resultados dos movimentos emancipadores. Centrar os a Biologia, por exemplo, têm de dialogar para dar conta dos
avanços sociais no trabalho já traz a semente da opressão e da fenômenos que surgem ou dos problemas surgidos das próprias
destruição do meio ambiente em sua matriz constituinte. descobertas levadas a efeito pelas ciências.

280 281
Ul
~
.3o.. Essa nova relação no âmbito das ciências ainda excluía a uma racionalidade supostamente neutra. só
2
QJ admissão do diálogo da ciência com outros saberes, que eram vir para a busca da melhor explicação, da teoria mais """'"-l\J.!. ..Ll.UW.

ro

e considerados atrasados, primitivos, rrúticos ou simplesmente não zada, da otimização de lucros e resultados, tornando-se presa
<QJ
e
:e comprováveis pelos instrumentos científicos. Acontece que es- fácil de pressupostos destruidores, de negação da dignidade hu-
QJ
o..
ses saberes reúnem pesada carga da experiência histórica do ser mana e ratificadora de dominações e opressões.
o
o..
E humano e são um repositório fundamental do saber que a huma- Como afirma Leonardo Boff, 77 ratificando o pensamento
2
o nidade tem de si mesmo e de suas relações com o meio. de Heidegger, temos de resgatar a razão do cuidado e do desve-
"O
ro
..e Evidentemente as conclusões dos conhecimentos tradicio- lo, que não significa a negação romântica das conquistas da razão
u
QJ
;:;:::
nais não foram obtidas pelos métodos hoje aceitos pela ciência, instrumental, mas seu uso segundo outros fundamentos, o que
ro
"O
Ul daí a necessidade de um diálogo rigoroso, respeitador das espe- levaria a uma rotação radical da teleologia do agir humano, da
o
..e
te cificidades de cada um deles, mas tendo como pressuposto a natureza da ação política e da modificação da base sobre a qual
Ul
o admissão de que tanto um lado como o outro guardam grandes se assentam as atividades econômicas.
verdades que devem se interimplicar, constituindo as novas prá- O consectário mais revolucionário dessa prática de uma
ticas transdisciplinares. Para entender o mundo contemporâneo, outra razão é o da eliminação da disputa destruidora, da guerra
a multidisciplinaridade e a transdisciplinaridade são instrumen- e da concorrência predatória nas relações sociais e socionaturais,
tos indispensáveis, quebrando-se assim o monopólio das ciênci- já que a construção desse novo paradigma eliminaria essas con-
as enclausuradas e dos objetos puros redutores. tradições que formam a base para o desentendimento humano e
a razão a razão instrumental é um pensa- para as atitudes coletivas e individuais que fazem essa espécie
mento da disputa, da descoberta, da interferência, da guerra e da caminhar rumo à entropia, seja por seus problemas internos, seja
velocidade. Ela hipertrofia a externalidade o resultado eficaz a por sua intervenção destruidora no meio ambiente.
' ' A compaixão, o cuidado, o desvelo e a solidariedade tanto
explicação útil, jogando o ser humano num papel de ferramenta,
de curiosidade ou de objeto, não considerando seu papel de su- em relação aos nossos iguais, quanto a tudo que nos cerca que,
jeito e destinatário de tudo o que é racionalmente concebido e franciscanamente, abarca os seres que são nossos irmãos, levariam
concretizado. a humanidade a um salto radical, rumo ao mais ser. É a ratificação
Assim, mais evoluído é quem tem artefatos mais rápidos, da idéia segundo a qual não é a disputa, a vitória e a sobrevivência
independentemente dos efeitos interiores que essas criações exer- do mais forte que levam os sistemas a sobreviver e a dissipar a
çam nos humanos e nos efeitos destruidores do meio ambiente. entropia, mas a solidariedade e o cuidado que esse sistema expres-
Essa razão neutral separou a explicação do cuidado, abandonou sa, do ser humano em relação aos seus iguais e ao meio que o
os afetos e o desvelo, cingindo seu campo às explicações e à cri- circunda e do qual faz parte.
ação de artefatos, independentemente dos efeitos em seus com- a razão instrumental, que é macha e
panheiros de jornada, fossem eles naturais ou humanos. não dá lugar para o feminino, nem considera a subjetividade e a
No humano e na natureza, não basta a mera aplicação de interioridade humanas, abriu seu flanco para a elaboração de uma
uma racionalidade despida de compaixão e de solidariedade, de ética da morte, na qual vigoram os valores do orgulho, da

282
lf)

(:'.
.3o. superioridade, da eliminação do inimigo e do "embate natural" O individualismo da sobrevivência do mais forte é substi-
2
Q) entre os humanos. Assim, ser mais desenvolvido é ter o potenci- tuído pela compaixão coletiva, que dá condições para a sobrevi-
ílJ
·u al mortífero maior, ter o aparato mais veloz para interceptar o vência coletiva e individual. A agressão ao meio ambiente, que
e
<Q)
e
:e concorrente, para eliminar o adversário, ou para destruir os que produz os seres que mantêm e dão condições à vida em geral e à
Q)
o.
se opõem a hegemonias opressivas. O resultado disso é a con- vida humana em especial, é abandonada e substituída por uma
o
o.
E centração de poder e de renda, é a utilização desigual dos produ- convivência respeitosa em seu interior.
2
o
"O
tos, o que significa, em termos práticos, a fome, o descuido, a A dignidade dos seres e a peculiar posição do ser humano,
ílJ
..e
u
guerra e a morte por carência de grande parte da humanidade, por ser um desvelador do universo, têm de levar nossas condu-
Q)
;;::
ílJ
num momento em que nunca houve na história tanta produção. tas a um respeito à vida e à vida humana, que, se for destruída,
"O
lf)
o
O respeito à vida não pode ser uma afirmação retórica, frustrará todo o movimento complexo que engendrou esse f e-
..e
\;::: nem ser consigna da normatividade jurídico-formal. A vida é nômeno único de inflexão do universo sobre si mesmo e de ex-
lf)
o um salto cósmico que levou bilhões de anos para ser engendra- pressão lingüística dessa experiência dramática. Cai o entendi-
do. É uma criação da história do universo, tênue, sensível e de- mento segundo o qual a dignidade humana é fruto de um con-
pendente de um conjunto de relações minerais, vegetais, cósmi- senso, de uma convenção, de um pacto da sociedade, pois ela se
cas, especificamente de nosso planeta Terra. A vida humana, que lastreia em uma participação muito mais funda dos seres vivos e
mostra outro salto, é consciente, é linguagem, é abismo de interi- dos humanos em uma totalidade complexa, caótica e paradoxal,
oridade, é a própria Terra e o universo que falam e que se auto- em que a entropia e a dissipação se antepõem, embora ambas
desvelam. Essa vida de seres que significam, que dão sentido e sejam necessárias para a continuidade universal.
têm a consciência do infinito e da finitude deve ser preservada Não possui nenhuma significação afirmar que devemos des-
para o avanço do conhecimento que os humanos têm de si mes- truir para manter a nossa vida. A vida só será mantida e seu cres-
mo e do universo, sua morada misteriosa. cimento estimulado se ela for cuidada, se a sua preservação for
A ética da vida é um conjunto de valores relacionais lastrea- condição primeira para qualquer tomada de posição ética.
do no respeito concreto aos seres que vivem, aos seres que man- 25. 7. a política como caminho pacífico: as concepções de
têm a vida e aos seres que dão condição à vida e à sua plenificação. política oscilam entre as que têm como fundamento as finalidades
Esse complexo de valores não somente põe em xeque a e as que têm como objetivo desvendar os processos de exercício.
racionalidade pretensamente neutra, como também vai no cami- Alguns enxergam a política como a arte de instituir o bem comum
nho contrário dos seus valores, antepondo a solidariedade à dis- na sociedade; outros, como um conjunto de estratégias, táticas e
puta; a compaixão ao desprezo e o cuidado ao descuido. É a medidas para a conquista e a manutenção de poderes. Embora
tradução de uma racionalidade da pertinência, de diálogo entre enfocando a questão de modos diferentes, os dois entendimentos
os seres e de respeito a todos os entes que participam dessa jor- têm em comum o fato de encarar a política como disputa, jogo ou
nada cósmica. É uma ética da união, da admissão das diferenças guerra para atingir a hegemonia em tela de poder.
e, acima de tudo, da promoção da sobrevivência e da realização Atualmente, o realismo político domina a cena, reforçan-
de todos os sistemas que se interimplicam. do a explicação dessa atividade como jogo, como equilíbrio

284 285
U1
~
.3o. instável de interesses, chegando a transbordar para a negociação movimento: ser a orientadora da e não seu
2
QJ de princípios para a manutenção de uma ordem que garanta os Deve mudar seu rumo no sentido de ter como objetivo a
ru

e
poderes constituídos e os poderes reais controladores. Em tem- não a guerra ou a disputa. terceiro movimento é o de cessar de
<QJ
e
~
pos de morte do direito de sonhar, a frágil estabilidade imediata tratar os humanos como abstrações ou como coisas e reinstaurar
QJ
o.
é o grande objetivo. Não há o que sonhar, a política, em sua o princípio segundo o qual o destinatário de suas ações são os
o
o.
E prática, deve tratar do instável aqui e agora. humanos, portadores de uma dignidade e pertencentes a uma
2
o Alguns parâmetros dessa concepção devem ser ressalta- espécie de alto risco quanto à sua sobrevivência.
-o
ru
.e dos: os seres humanos só se reúnem para competir, a partir de Essa mudança paradigmática pode vir por deliberações po-
u
QJ
~ interesses divergentes ou contraditórios; a política só tem senti- líticas, a partir de novos princípios, ou necessariamente virá quan-
ru
-o
U1
do como conjunto de medidas para o atingimento dos poderes e do a humanidade estiver ameaçada pela fome, pela dizimação,
o
.e
~ sua manutenção; os humanos, no âmbito político, ou são adver- pelo exaurimento dos recursos naturais ou por sua própria dinâ-
U1
o sários, ou são amigos, podendo também se transformar em ini- mica interna de destruição, quando houver uma grande movi-
migos; a solidariedade é circunstancial, no máximo alianças táti- mentação dos excluídos contra a minoria de incluídos.
cas ente grupos adversários ou divergentes; o objetivo da políti- A necessidade de uma nova maneira de desenvolver a polí-
ca é vencer, não havendo lugar para perdedores, que são os mais tica também é exigida pelo fenômeno da planetarização dos pro-
fracos economicamente, como organização ou no que se refere à blemas, que não podem mais ser resolvidos por alguns Estados,
manipulação de idéias-força, já que nem mesmo, hoje, há lugar ou por organizações internacionais que se dobram a essa frag-
para ideologias muito sistematizadas ou articuladas; a política mentação de interesses. Os casos de Kosovo e do Iraque são
procede por via de estruturas fragmentárias que procuram ter o paradigmáticos, para não dizer da fome que atinge grande parte
monopólio de interesses ou consignas econômicas, nacionais, da humanidade e dos problemas ambientais que causam prejuí-
religiosas, de interesses menores, ou mesmo de simples espaços zos incalculáveis para a vida, em sentido lato, e para o bem-estar
para jogos de interesses menos claros. Em suma, poderes e ini- da humanidade.
mizades são os fulcros das atividades políticas. poder ainda é entendido como um espaço a ser tomado,
Essas concepções são o fruto sazonado de um padrão bélico como uma coisa a ser apropriada, e não como uma relação entre
que perpassa toda a sociedade e de práticas quotidianas de opres- quem comanda e quem obedece. A política e o poder são enca-
são, indiferença e repressão, que se manifestam de modo variado rados como problemas dos poderosos, quando os problemas
nas sociedades. Enquanto a indiferença ao sofrimento do outro for são dos obedientes, que voluntariamente se submetem à servi-
a marca registrada de nossa civilização, enquanto a política for uma dão, como diria Boétie. Essas relações instáveis estabelecem,
arte de disputas pela hegemonia e enquanto a economia tiver como dos modos mais simples aos mais sofisticados, padrões, \,_,_L\..,J.J.\.,."::~0.
objeto tão-somente o lucro, as moedas estáveis e a submissão aos obediências, compreensões do mundo, auto-imagens do ser hu-
mandamentos descontrolados do mercado, nada mudará. mano, alianças, mesquinharias, medo, terror e esperanças, sem-
Para que a política tenha um papel organizador, socializa- pre sob a égide da continuidade, pois os poderes, mesmo que
e articulador nas sociedades, ela deve fazer um primeiro durem dias, têm a pretensão à eternidade.
Vl ;o
(:'. o
.aa. Mesmo que as práticas se fundamentem em discursos igualitários, outro e a natureza. Poder, se houver, terá outro perfil, final-
CJ
CD
;::i.
2 o
(IJ vão se formando grupos dc;m1inantes ou elites, como querem outros, mente público, pacífico e permeado pelos cidadãos. '!>
ro
'ü ?J
e
<(IJ
que desigualmente lutam para implantar uma igualdade retórica. A se É preciso ressaltar que esta proposta é a da política pelo a.
e CD

~
(IJ
manter esse modo de ver a política, ela sempre será um freio para a avesso, uma política que tem como grande objetivo, em seu pro- )>
lO
a. e
o
liberdade, uma ferramenta interessada e parcial de controle e domina- cesso, o atingimento do não-poder. Pretende-se trabalhar com a Qj'
...,
a.
E ção nas sociedades, o que entra em contradição com seus objetivos paz e o respeito aos humanos e à natureza, a partir dos pressu-
~
o
"'O
expressos, que constam de declarações e de cartas constitucionais. postos já citados, a fim de que não nos limitemos tão-somente a
ro
.e
u
A política só poderá ser melhor estudada e melhor pratica- chegar, entre os humanos, aos valores e sentimentos da tolerân-
(IJ
c;::
ro
da quando se aceitar que o avanço das sociedades deverá vir do cia, que é a aceitação contida e reservada do diferente, do desi-
"'O
Vl
o
compartilhamento dos problemas, a partir dos princípios da sa- gual, do divergente em relação às nossas posições, sem que haja a
.e
tr= cralidade da vida e da dignidade do ser humano, e que isso não permeabilidade, o diálogo em camadas mais profundas. É mais
Vl
o se desenvolve por disputas mesquinhas, nem por via tla coisifica- uma etiqueta do que uma ética. O reconhecimento, vindo de uma
ção ou da abstração do ser humano. Ela só contribuirá se visar à outra racionalidade, de outros objetivos sociais e existenciais, é
paz, à sobrevivência, ao crescimento dos seres humanos e ao de- o diálogo profundo, produtivo e unificador entre as diferenças,
saparecimento progressivo dos poderes, tais como hoje os veri- o que constituirá uma humanidade mais rica e coesa, mais liberta
ficamos, transitando para sociedades de parcerias e reconheci- e menos opressora e repressora.
mento entre seus membros, e de pertinência em relação à Terra. 25.8. a repactuação com a natureza: os pactos que visa-
Isso é uma revolução que surgirá para viabilizar os saltos qualita- ram às possibilidades de poder e à criação de sistemas sociais
tivos que a humanidade tem de dar. que levem em conta a natureza humana, seja ela corrompida pela
Essa antevisão poderá ser encarada como anarquismo. Creio sociedade, seja ela naturalmente má e agressiva, sempre se de-
que existe um certo grau de verdade nisso. A generosidade ética ram no interior de uma moldura humana isolada, na qual o ser
que marcou o marxismo vinha do socialismo libertário, vinha da- humano procura resolver suas questões no interior das organiza-
queles que optaram pelos oprimidos e denunciaram as estruturas ções, sem levar em conta o fato de pertencer a um mundo exterior
iníquas que criavam e ratificavam as dominações. As organizações a suas criações sociais e os artefatos quase naturais criados pela
que irão permanecer serão aquelas que dizem respeito à sobrevi- humanidade. O pacto é estritamente social e, por isso mesmo,
vência, ao crescimento, à criatividade e à afirmação das diferenças limitado, por não abranger outras facetas humanas que são igno-
como fundamentadoras do tratamento isonômico. radas no interior desse cenário que destaca o ser humano da na-
O Estado está se modificando por um pacto de cúpula, tureza e da semi-natureza representada pelos seus artefatos.
sob a égide do mercado. Chegou o momento de iniciar sua trans- É necessário repactuar com a natureza para preservar a
formação, tendo como base as demandas difusas, as necessárias espécie humana; estabelecer normas de relação entre o mundo
afirmações originárias, como as do feminino, as novas ações po- natural e o antropológico, aceitando a visão segundo a qual o
líticas, que transcendem um partidarismo tacanho, a mundializa- antropológico é parte do natural, do cosmológico. Urge definir-
ção dos problemas e dos projetos da humanidade, e a paz com o mos o papel e os limites dos objetos quase naturais que o ser

288 289
UJ ;;o
~
o
CJ
.a
o._ humano cria, que são colados no mundo natural, ora plenificando, se
íll
ri-
o
2
(].) ora complementando, ora dilacerando esse mundo. É preciso que e gnosiológicas das sociedades. "!>
ro ?V

e reflitamos sobre uma nova ética que incorpore a participação na pacificamente essas tendências aparentemente díspares dos seres o._
<(].) íll
e
:e natureza, as atitudes de respeito aos insumos que condicionam nos- humanos, mas que são a expressão maior de sua riqueza e de seu )>
lO
(].)
o._
e
sa existência e que fazem parte integrante de nós, tanto no aspecto potencial para sua tarefa co-criadora do mundo. QJ

'
oo._
E físico, orgânico e psicológico, quanto na constituição de nossas mentes O problema das visões de mundo que são iluminadas pelas
2
o
"O
e de nossa espiritualidade consciente, que nos diferencia de outros visões guerreiras explícitas ou implícitas é o de encarar as dife-
ro
..e
u
seres, mas abre nossa inserção nesse todo complexo e misterioso. renças como qualidades irredutíveis, que devem ser eliminadas
(].)
4= Temos de levar em consideração a Terra e seus elementos, para o atingimento da unidade humana.
ro
"O
UJ não como seres involuntários, inanimados ou meramente semo- Essas diferenças também podem ser encaradas como mar-
o
..e
<;::: ventes, mas como sujeitos essenciais a nosso viver, assim como cas do inimigo ou como acirradoras de concorrências, rivalida-
UJ
o nós somos necessários para a significação desses seres, pelas lin- des ou guerras, esquecendo-se que a solidariedade entre os dife-
guagens. É um pacto de iguais, um pacto entre seres com ames- rentes é o meio de atingirmos totalidades orgânicas e avanços
ma dignidade; um contrato natural, no dizer de Michel Serres. sociais, éticos, políticos e econômicos.
Por ele poderemos rever os conceitos sobre nossa espécie e per- Daí podermos dizer que um dos direitos fundamentais da
ceber a complexidade e a profundidade do humano, vislumbran- humanidade é o de exercer livremente suas diferenças, desde que
do nesse processo seus papéis, suas tendências e os caminhos nenhuma faculdade seja subtraída e nenhum direito seja denega-
para sua constante auto-superação. do, em termos materiais ou espirituais. Esta afirmação não signi-
fica, em absoluto, a aceitação da desigualdade econômica, da
exclusão social ou da dominação. Acreditamos que as diferenças
só poderão ser exercidas quando todos tiverem o mínimo neces-
sário para viver com dignidade e liberdade.
A peculiar perspectiva evolutiva que preside nossa forma Tendo como base o que foi afirmado anteriormente, po-
de ver as sociedades é movimentada pelo embate entre projetos deremos dizer que os seres humanos são semelhantes, por neces-
uniformizadores conflitantes. Um elo forte ata a visão liberal à sitarem todos das pré-condições mínimas de sustentação, liber-
compreensão estatalista: ambas, cada uma a seu modo, propõem dade e educação, fundamentais para o exercício da diferença e
soluções globais de eliminação das diferenças. por conseqüência da unidade real entre a humanidade e seu meio.
O paradoxal é que ambas desejam atingir a unidade, com-
por uma totalidade segundo a iluminação de um projeto, e am-
bas fracassam, pois não há como instituir um sistema uno e total
reunindo elementos sem diferenças. Os elementos indiferencia-
das tendem a competir e a quebrar a unidade desejada. Logo, os Não é recente a preocupação com as relações entre o exer-
projetos de liberdade humana, de felicidade social e existencial cício da virtude e as condições necessárias para isso. Tomás de

290 1
(/)
7.J
~ o
o-
.3Cl.. Aquino tratou da questão, para citar um dos pensadores funda- desenvolvida em várias frentes, desde a tradicional frente das ro
;:::\.
2 o
(lJ mentais de nossa história. O que podemos inferir das afirmações políticas institucionais, até os boicotes de empresas e resistências '!>
l1J
·u 2°
e
<(IJ
filosóficas sobre essa questão pode ser assim resumido: o ser civis a medidas e práticas que têm a desumanidade como base e Cl..
e ro
t'.(lJ humano, sem ter o mínimo para uma vida decente, tem pouca o lucro descolado do social como objetivo. )>
lD
Cl.. e
probabilidade de exercer a virtude; o ser humano que dedica sua A força dos mitos de destruição e dos fundamentos tanáti- n;·
-,
o
Cl..
E vida para a obtenção e fruição de bens não necessários, também cos é tão grande que nossos protagonistas não enxergam o po-
2
o
'"O
não terá respaldo existencial para o exercício da virtude. tencial econômico nas grandes políticas de prestação de serviço
l1J
.e
u
Infelizmente, a economia, em termos internacionais, cami- às comunidades, dos grandes investimentos nos bens que for-
(lJ
i:i::
cu
nhou no sentido do engendramento desses dois seres, que são mam a base mínima do sustento material e espiritual do ser hu-
'"O
(/)
o
ineptos para o exercício da virtude: os que, por carência, não mano. A velocidade do lucro impede a análise de uma atividade
.e
;.;::: têm as condições e os que, por procurar o que não é necessário que terá retorno mais lento, seja em termos estatais, seja em ter-
(/)
o para seu crescimento, não podem, por sua alienação e separação mos empresariais, seja em termos de qualificação da cidadania.
do mundo, exercer sua própria humanidade. Se os Estados não compreenderem isso, se os empresários
A atual estruturação político-econômica do mundo impe- não mudarem as pautas de suas atividades, se a sociedade não se
de o exercício das virtudes humanas, na medida em que desvia o sensibilizar e se movimentar rumo à mudança das prioridades
ser humano de seu caminho para o mais-ser, pela carência, ou políticas e econômicas, certamente será a própria Terra quem
pelo supérfluo. Só a mudança de fundamentos da política e da reclamará, mostrando as entranhas de suas carências e as vingan-
economia poderão ensejar ao ser humano a retomada de sua gran- ças naturais que essa intervenção predatória propicia.
deza esfacelada por esse sistema suicida.
As análises econômicas mostram que os gastos com ali-
mentação, saúde, educação e habitação, por exemplo, que são
necessários para um mínimo de sobrevivência digna, represen-
tam, proporcionalmente, um valor sensivelmente menor que os É estranha a sociedade em que vivemos, na qual as grandes
gastos com armamentos, supérfluos e objetos inúteis oriundos batalhas, as mortes, as glórias, as derrotas e vitórias se dão em
das práticas de criação de necessidades. Em suma, o fundamen- torno de abstrações não palpáveis, signos não compartilhados e
tal para uma vida humana digna é barato. É a mentalidade darwi- constructos mentais não observáveis. O grande móvel de nossa
nista social, da competição desenfreada pela lucratividade mais sociedade é o dinheiro, a moeda, sua posse, venda, compra e
fácil, que desvia o ser humano de sua própria humanidade e ori- ágio. A moeda sempre foi um símbolo, um rótulo aritmético de
enta seu investimento para setores que só servirão para aumen- uma relação econômica, um meio de troca que foi se abstraindo
tar os riscos de vida da espécie. no decorrer da história econômica, culminando no dinheiro vir-
Uma atitude revolucionária se inicia com a movimentação tual da era da informática.
social para a reorientação dos investimentos, tanto dos estados Mas é ele, em sua abstração e volatilidade, que engendra
como dos particulares. Essa é uma luta justa que pode ser crises ferozes nos países periféricos; é ele que, por turbações de

292 293
Ul ;:u
~ o
o-
.3o. ro
todo gênero, atinge outra abstração determinante do mundo, que confecções, de remédios e de drogas para manter a forma do ;::\.
o
2
QJ são as bolsas, centros fictos de economia que oscilam o valor momento, de cosméticos, para exacerbar a beleza ou aumentar a '!>
ro 2°
·u virtual de ações virtuais, latreadas em uma sensibilidade doentia voluptuosidade, de todas as formas de utilização de manufatura-
e o.
<QJ <D
e
~ e ciclotímica, embasada na força presumida das metrópoles e na dos e de mercadorias para evidenciar o status, o sucesso, a superio- )>
lCl
QJ e
o.
fraqueza indefesa dos países mais pobres. Disso emergem índices ridade e a beleza. ..,n;·
o
o.
E que sobem ou descem em cotações abstratas e ininteligíveis para O corpo se torna uma etiqueta polimorfa de si mesmo e de
2
o
"'O
os mortais comuns e até mesmo para os especialistas, mas que todos os artefatos dos quais depende. Até mesmo a sexualidade
ro
.e
u
levam pessoas jurídicas ou físicas à gloria ou ao fracasso. se torna uma disputa e um jogo de enfrentamento de mercadori-
QJ
;:;::: Quando o gênero humano é fragmentado em nações, et- as. Os homens necessitam apresentar um certo nível de desem-
ro
"'O
Ul nias, culturas e ideologias que não podem ser compreendidas penho, quantificável e mensurável, sob pena de serem considera-
o
.e
t;:::: na óptica da disputa que preside as relações humanas, o resulta- dos fracos ou pouco viris.
Ul
o do é uma permanente preparação para a guerra, para o enfren- O sexo necessita cada vez mais da intermediação da indús-
tamento das ameaças, para a demonstração de força diante da- tria da pornografia, pois os corpos naturais, os corpos sem arte-
queles que podem sentir o poder potencial de destruição de fatos já não mais atraem e nem têm condições de alimentar fanta-
cada facção. sias cada vez mais virtuais. A sexualidade virtual tenta substituir
Assim, a guerra é preparada e deflagrada em torno de abs- a sexualidade real, por se configurar como uma atividade sem
trações, de hegemonias simbólicas ou de garantias de mercados riscos, sem problemas, consumível e sem envolvimento: o ideal
e transações que também transitam no âmbito das abstrações. para o mundo das abstrações.
Com essas práticas, os seres humanos passaram a se entender Os bens de consumo diário perdem sua origem e passam a
separados de tudo, exilados da natureza, entes artificiais em um ser considerados produtos de supermercados, de lojas. Já não
universo natural, pois seu mundo é o das abstrações e dos sím- mais são das árvores, do campo, das galinhas, mas pacotes abs-
bolos que os movimentam. tratos que são identificados pela cor, textura e peso. O mundo se
Por um outro lado, a abstração também atinge a própria torna consumível e fungível.
essência da humanidade, porque as pessoas perdem sua concre- O retorno à concretude é um movimento neces~ário para
tude e se tornam tão-somente respondedoras de perguntas indu- reassumirmos o mundo, pois ser concreto na atualidade significa
toras dos poderes políticos e econômicos. O ser humano não é viver a pertinência intersistêmica do mundo, ao mesmo tempo
mais pessoa, nem povo; ele foi transformado em uma média que que isso nos obriga a abandonar a visão sensorialista e primitiva
tem a denominação de opinião pública, ou é visto simplesmente da materialidade.
como massa a quem as idéias e mensagens devem ser transmiti-
das sem qualquer esperança de resposta, salvo o consumo de
certas mercadorias materiais, pessoais ou espirituais.
A corporeidade, ela mesma tornou-se mercadoria, um es- O determinismo e a compreensão do mundo como uma
paço tridimensional em que são aplicadas tecnologias têxteis, de série causal concatenada levou-nos a encarar o mundo como

294 295
l/J 7J
~ o
0-
.3o.. unidirecionado, como uma linha que unia um fato relevante a íll

2
ser humano só pode ser sujeito quando existem ;:::\.
o
QJ outro, tudo isso direcionado para uma culminação necessária. bilidades de caminhos, quando há aberturas para escolhas, quan- ?
ro
?:J

e Essa culminação, de acordo com o olhar de quem a expli- do o ser e o não-ser dependem dos valores e das condutas de o..
<QJ íll
e
t'.QJ cava, poderia ser entrópica ou plerômica, isto é, o universo esta- cada um, quando a história não é mecânica, mas urdida em teias )>
lO
o.. e
ria caminhando para a perda de energia, para a nadificação da e redes, que se bifurcam em outras probabilidades, a partir do ~·
o
o..
E Segunda Lei da Termodinâmica, ou estaria caminhando para sua próprio agir humano.
2
o
"'O
plenitude, para sua realização. Não mais a linearidade una, mas, ao menos, a frondosa ra-
ro
..e
u
O papel do humano nesse processo sempre se restringiu magem das árvores, ou as espirais do DNA, ou as infinitas com-
QJ
;:;:::::
ro
ao periférico, pois a razão absoluta, as leis da necessidade ou a binações desdobrantes do espírito humano.
"'O
l/J
o
sobrevivência do mais forte estariam empurrando os fenômenos
~
t;:: em direção a um fim pré-estabelecido. Determinado ou sobre-
l/J
o determinado, o ser humano só pode ser um sujeito contingencial
nesse processo rigorosamente articulado. Ora, nesse sentido, as
transformações, as revoluções, as mudanças e os embates só têm
por finalidade a aceleração ou a desaceleração do que já está ins-
crito na natureza das coisas, de forma idealista ou materialista.
Sem que se negue a provável existência da flecha do tem-
78
po, os fenômenos do mundo operam segundo os princípios
das probabilidades, trilhando um caminho não linear, mas de-
pendente da própria consistência, solidariedade e diversidade das
estruturas por eles formadas. Logo, qualquer fenômeno natural
ou social não pode ser necessariamente previsto, mas provavel-
mente vislumbrado, dentro de certas condições de participação
dos elementos que o formam.
É nesse contexto que o papel do ser humano na constru-
ção de sua identidade e na definição permanente de seu papel no
mundo ganha significação. A antropia, a intervenção do ser hu-
mano no mundo, não depende de leis determinantes, mas da li-
berdade dos humanos, de suas opções, dos caminhos de suas
existências coletivas e individuais. Assumindo essa concepção,
podemos admitir que o ser humano é sujeito de sua história, como
também é sujeito co-construtor da cosmogênese, e não uma con-
tingência dependente de determinações não modificáveis.

296 297
A radicalidade da democracia tem sido um tema em discus-
são na atualidade. No mesmo diapasão está a questão da demo-
cracia como valor universal. Tenho a impressão de que devemos
tratar do pano de fundo dessas práticas ou dessses conceitos de
democracia, ou, como hoje é dito, dos cenários em que ela se dá.
No decorrer da história, a democracia não somente sofreu
modificações doutrinárias e práticas, como também alargou o
âmbito de sua incidência. Exercida originariamente na polis, isto
é, nos limites de um Estado que se cingia à cidade, caminhou
conflitivamente para seu exercício nos Estadós nacionais e, após
os grandes conflitos mundiais do século XX, passou a ser pauta

299
(/) ;;o
~ o
0-
.ao_ internacional estimulada pelas organizações transestatais e assu- democráticos estão referenciados ao Estado, como se ele fosse a
(j}
;::1.
2 o
QJ mida pelas lutas cidadãs e pelas organizações das sociedades ci- única instância legitimadora de qualquer participação, além de '?'
ro ?J

e
<QJ
vis. É interessante observar que a democracia sempre trabalhou demonstrar a crença em que a tomada do Estado, compartilhada o_
(j}
e
~ com a externalidade, com as relações entre os cidadãos, com a ou não, é a razão de ser da democracia. )>
lO
QJ e
o_

oo_
igualdade entre eles e com sua participação no kratós. A interna- Ainda sob o ângulo da participação, pode-se ver que, ape- ..
üi'

E lidade, a corporeidade e o desejo dos cidadãos não são o campo sar desses avanços na área das formalidades democráticas, pou-
2
'D
o do exercício democrático. co pode ser observado no campo econômico. Nele, talvez este-
ro
..e
u Ao mesmo tempo, a hipótese de um poder com maior jamos caminhando para a mais perversa e perigosa desigualdade
QJ
t;::
ro
grau de solidariedade também não é sua preocupação: os con- e injustiça na humanidade. A participação mínima nos bens pro-
'D
(/)
o sensos são alianças táticas passageiras para a composição pre- duzidos, nas rendas obtidas, nos empregos, na alimentação, na
..e
<.;:::
(/)
cária de interesses em conflito. Além disso, assumiu-se a incon- habitação, na saúde e na educação não é garantida para a maioria
o esmagadora da população humana, ceifando o valor democráti-
ciliabilidade humana como fundamento, já que os cidadãos só
podem se organizar em instituições conflitantes, no interior das co em sua base concreta, em suas pré-condições de exercício.
quais as lutas contra os outros interesses podem ser racionali- A participação democrática é inviabilizada por uma do-
zadas e realizadas. minação de base oriunda do atual padrão civilizatório: a desi-
Os partidos políticos e os sindicatos são expressões dessa vi- gualdade de gênero. Enquanto homens e mulheres não forem
são. Isso não significa que estamos negando o papel histórico dessas considerados seres humanos de mesmo nível, portadores da
entidades sociais na história das lutas democráticas, mas a complexi- mesma dignidade e com os mesmos direitos de participação
dade de hoje abre perspectivas para abrirmos o campo de incidên- e de crescimento pessoal, não será possível tratar de forma
cia democrática, sem que isso negue a existência de partidos e de honesta a questão da democracia. Enquanto mulheres forem
sindicatos, que terão de se transformar no decorrer da história, sob exploradas, violentadas, estupradas, enquanto a elas os salári-
pena de se tornarem obsoletos valorativa e operacionalmente. os atribuídos forem menores, enquanto o acesso aos poderes
Se tratarmos da democracia sob o ângulo da participação, políticos não admitirem a participação feminina, tratar da ques-
salta aos olhos o fato de a participação política ter aumentado tão democrática é mera retórica, pois a maioria da população
no extrato da formalidade: a universalização dC? direito de votar do mundo está elidida da construção democrática. A luta pela
e de se associar, o direito formal do devido processo legal, a igualdade dos direitos dos gêneros é pré-condição para a con-
elegibilidade de todos os cidadãos, dentro das condições legais, vivência democrática.
a precedência do público sobre o privado nos conflitos sociais e O ser humano e os outros seres sensíveis se apresentam
judiciários, dentre outros direitos formais e políticos, demons- para o mundo por via de sua corporeidade, que é sua expressão
tram a concretização desse valor democrático nessa área da re- primeira frente à sensação dos observadores. Nossa corporeida-
tórica, da formalidade e dos pesos e contrapesos políticos. de e nossa carnalidade são constituidoras de nossa identidade.
Por outro lado, a democracia ainda paga alto preço a uma interessante disso está no fato de a corporeidade não ser consi-
visão imperialista do mundo, pois todos os jogos e invenções derada na reflexão democrática. Participação, igualdade e

300 301
(/) ;;o
f:: o
O'
.3Cl. reconhecimento são quimeras se não refletirmos e agirmos so- (D
Estados formalmente democráticos não passam de garantidores ;:::\.
o
2
OJ bre a corporeidade humana. de interesses empresariais de diversas procedências. Como '!>
(\)
·u !l
e
<OJ
A corporeidade foi situada em outros campos do saber e Chomsky, 79 admito que as empresas transnacionais, além de sua Cl.
(D
e
~ das práticas sociais. A corporeidade é econômica, é biológica, é fome por lucros, apresentam organizações fascistas, ditatoriais e )>
l.Cl
OJ
Cl. e
anatômica, é fisiológica e é estética. Poucos, como Foucaul, per- dominadoras, pouco se importando com outros aspectos a não Qj'
o
Cl.
'
E ceberam que a corporeidade é política, é campo de exercício de ser o auferimento de vantagens financeiras e econômicas.
~
o
'D
poderes e, o que é mais grave, é ponto de partida para a constru- Os Estados democráticos, como os Estados Unidos, nada
(\)
..e
u
ção da liberdade democrática. Não estamos aqui tratando so- mais são do que estruturas de garantia de organizações fascistas
OJ
c;::
(\)
m~nte dos corpos famintos e violentados, dos corpos destruí- que desenvolvem uma ação predatória e antidemocrática no mun-
'D
(/)
o
dos e explorados, mas do cotidiano dos corpos que são contro- do, seja pela marginalização social, seja pelos prejuízos aos países
..e
<;:: lados, ritmados, modelados e disciplinados, a fim de serem úteis periféricos, seja pelos danos ao meio ambiente, seja por conside-
(/)
o à realização dos comandos dos poderes. rar o mundo como formado por seres humanos de categorias di-
Em suma, as pessoas não dispõem de seus corpos e, como ferentes e que, por isso mesmo, devem ser tratados de modo di-
conseqüência, de suas próprias identidades. O corpo se torna he- verso, em termos de seus direitos, de sua possibilidade de vida e
terônomo, dependendo não somente de comandos morais, mas de sua dignidade. A democracia formal corre o risco de ser a mais
principalmente das imposições econômicas e produtivas, que o atroz das ditaduras, pois aparece, no mínimo, com uma face de
transformam em mercadoria como qualquer outro bem, que é despotismo esclarecido, escondendo, por via da mídia e de outras
explorada não somente por terceiros, mas pelo próprio portador formas de propaganda, a real motivação para seus atos.
desse corpo, que o trata como um alterum) e não como o que lhe dá Como decorrência desse pacto paradoxal, no qual as es-
significado, diferença e meios para transitar no mundo. truturas formais parecem estimular a maior participação, mas
Enquanto a corporeidade for sinônimo de mão-de-obra, no fundo estão a serviço de organizações que, por suas finalida-
de espaço de experimentos, de campo laboratorial, de fonte de des e métodos, são ditatoriais e anti-humanas, os instrumentos
energia laboral, de superfície onde transitam as modas, de enti- democráticos se tornam fracos ou ambivalentes. Podemos per-
dade separada do se!f, de abstração que deve repor energias para guntar o porquê de os Estados Unidos, tão rico e diversificado,
continuar produzindo, em entidade em relação à qual podemos ter somente dois partidos que realmente operam politicamente
cometer todas as violências, todas as sevícias e desigualdades, ·com probabilidade de êxito eleitoral.
em mecanismo que deve ser disciplinado para a realização de As organizações não governamentais ainda não encontra-
uma ordem que o agride, a democracia corre o risco de se trans- ram seu real papel, em função da força que esse sistema político-
formar em conceito retórico superficial, pois não considera a econômico dispõe e que as transforma, aos poucos, em entida-
base dos seres humanos, que é a sua corporeidade, além de divi- des lucrativas, ou meros penduricalhos dos Estados, o que des-
di-la em corpos hierarquizados por sexo, idade e função. virtua seu sentido original. A verdade é que os trabalhadores or-
Ao lado dos problemas anteriormente citados, uma nova ganizados e os excluídos são combatidos em virtude da contra-
questão aparece quando tratamos da "democracia real": os dição entre a lógica do lucro e da tecnologia com a lógica do

302 303
;:o
UJ o
~ O"
.ao.. emprego e da sobrevivência. Como os partidos que representam cidadã, que forma estudantes absolutamente alienados dos
(])
;:::\.
o
2
os trabalhadores acabam por sucumbir à lógica de uma legislação blemas do país e de seus próprios problemas. que a ?>
cu ~

e que favorece os detentores do capital; como os sindicatos, repro- cação brasileira tem como objetivo a formação de medíocres, o..
(])
<Q)
e
t'. duzindo a mesma lógica, fecham-se em seu corporativismo cate- com o intuito da perpetuação das dominações históricas. )>
\O
Q) e
o.. ~-
gorial, não mais assumindo uma visão mais abrangente, perdendo Assim, nosso país permaneceu sem história para as novas
o
o..
E com isso a solidariedade que era o elo de ligação e a força transfor- gerações. Mitos e padrões massificantes são repassados como
2
o madora dessas organizações; como a educação política é privilé- verdades em nossas salas de aulas. Ademais, a matemática, a ló-
-o
cu
..e gio de quem tem o papel de controlar e dominar, a democracia gica e o raciocínio são desenvolvidos como se fossem atividades
u
Q)
q::
real se torna algo fraco e formal, sem força para fazer valer os repetitivas da mente, o que torna nossos cidadãos sem condi-
cu
-o
UJ princípios que levaram à sua institucionalização. ções de refletir. O impacto da televisão e da informática pro-
o
..e
ç: Democracia quer dizer mudança de eixos valorativos, de gressivamente vai retirando do mundo a civilização das palavras
UJ
o fundamentos dos conceitos sobre as sociedades e a humanidade, e substituindo-a pela da imagem, o que faz com que as pessoas já
e de surgimento de novas práticas sociais igualitárias que partam não tenham vocabulário para exprimir seus pensamentos e senti-
do reconhecimento das necessidades mínimas de sobrevivência mentos. Como se não bastasse, nenhuma habilidade é desenvol-
do ser humano e atinjam a liberdade e a abertura para o cresci- vida de modo rigoroso, o que leva à formação de profissionais
mento individual e coletivo na humanidade. desqualificados, sem condições de sobrevivência. Infelizmente,
A democracia começa com a negação de todas as práticas enquanto a educação for uma farsa, estamos com um óbice in-
e teorias que separem, que distingam para dominar. Tem de de- transponível para a concretização da democracia.
senvolver lutas para proporcionar a distribuição de bens de for- Também é um non sense tratarmos de democracia com a
ma a impedir a morte dos corpos humanos; tem de ser uma es- fome, a escravatura, a negação da vida como fenômenos cotidi-
trutura política a serviço da vida, e não da morte; tem de ser anos.Acresça-se a isso a importação de idéias, personagens, este-
uma atitude que não esconda sua própria antítese, que são a dita- reótipos e gostos das metrópoles, embasados em intenso traba-
dura, o domínio econômico e o totalitarismo. lho de mídia, que praticamente dissolve as produções culturais
A democracia não pode prosperar sem a complementaridade brasileiras, em nosso caso.
de gênero, sem a compreensão da corporeidade, sem a admissão da Mais mortal ainda é a total insensibilidade do sistema edu-
paz como fundamento da sociedade. A democracia é um conjunto cacional para a arte. Ela, que abre nossos sentidos, mentes e co-
de práticas e de conceitos que abarca a complexidade e a riqueza do rações para a criatividade, para a constituição de imaginários,
ser humano e do meio em que este se insere. Sem isso, ela corre o para a experimentação de sentimentos e novos valores, é deixa-
risco de se tornar um esqueleto abstrato, uma fumaça de participa- da de lado como atividade secundária e como perfumaria. O
ção numa sociedade desigual e dominadora, e uma justificativa para Golpe de 64 nos legou um civismo não civil e acrítico que matou
a sua própria negação, ou uma estratégia de dominação. a consciência de gerações.
Em nosso país, os obstáculos à democracia iniciam-se com Com a substituição do sistema de governo pela democra-
o próprio sistema educacional, pouco politizado, sem consciência cia formal, o que aconteceu foi o puro e simples abandono do

304 305
Ul
~
.3o.. amor à terra, do estudo crítico de nossas tradições, do respeito a os
2
QJ atitudes históricas de civismo e coragem. Tudo se dissolveu numa veis de organização e pessoas. a po-
ro
"(J
e pasta amorfa e inodora, que atingiu em cheio a ética, a moral deres tão radicados, só grandes movimentos da humanidade, mais
<QJ
e
~ pessoal e a consciência da situação humana de nossos cidadãos. fortes que as armas e tão sutis e eficazes como as técnicas da
QJ
o..
O resultado já está aí: cidadãos individualistas, aéticos, in- mídia a serviço das elites.
o
o..
E sensíveis, sem história, com sentimentos não resolvidos, com vo- Outro aspecto importante é o surgimento necessário de
2
o
"O
cabulário pobre, sem consciência política e medíocres profissio- outras instâncias de espaço público. Os partidos mais partem do
ro
..e
u
nalmente. Com esse tipo de ser humano, não há possibilidade de que reúnem; os sindicatos se corporativizam, perdendo sua seiva
QJ
~

ro
avanços democráticos significativos. mais generosa, que tinha como pano de fundo a sociedade como
"O
Ul
o
Escola qualificada para todos é um investimento que deve um todo e a categoria como um elemento. As alternativas para
..e
t;:: ser feito, sob pena de perecimento econômico, político e social isso são a transformação das universidades em entidades de dis-
Ul
o da humanidade. Enquanto a educação for encarada como custo cussão dos grandes problemas com a sociedade. Enquanto as
e gasto, certamente a lógica do lucro vai imperar e nada de mais universidades privadas continuarem a ser a extensão instrucional
sério será feito. Cabe a nós pressionar no sentido da formação da loja da esquina, isso será inviável. É preciso desenvolver uma
de um sistema educacional democrático e qualificado, seja nas pressão dura para que elas possam ser cobradas e exercer a fun-
universidades, seja nos poderes formais do Estado, seja pela ção de catalizadoras dos debates nacionais e internacionais.
mobilização popular para exigir esse mínimo para a concretiza- As universidades públicas sofrem grave ataque do próprio
ção da democracia. Estado que as mantêm. Tudo é feito para que sejam privatizadas,
Essa civilização da velocidade, do tempo instantâneo e da que instituam como elemento importante de seu orçamento as
alta tecnologia configura o momento de nos utilizarmos desses contribuições privadas, que cobrem anuidades e que tenham um
meios para lutas mais humanas. Hoje, em grande parte, a instan- controle de qualidade menos rígido. No momento em que as
taneidade é usada para vender, embair, lucrar e movimentar ca- empresas privadas se transformarem em grandes financiadoras
pitais. Cumpre-nos usar desses mesmos meios para unir aqueles das universidades públicas, podemos abandonar qualquer pre-
que nunca se conhecerão pessoalmente, mas que, por viver situa- tensão de desenvolvimento de pesquisas básicas, já que o interes-
ções, problemas e perspectivas análogas, podem tecer movimen- se dessas empresas guarda uma certa imediatidade mercadológi-
tos mundiais para o enfrentamento de problemas e para o amál- ca que impõe outro tipo de pesquisa. No Brasil, as universidades
gama de setores sociais, além de exercer forte pressão política e públicas ainda são as grandes produtoras de conhecimento e,
ética nas autoridades formais dos Estados das organizações trans- talvez por isso mesmo, devem ser degradadas por aqueles que
nacionais. querem deixar o Brasil como mero comprador de conhecimen-
Em oposição à globalização provincianizadora e bélica, há tos, patentes ou know-how das grandes empresas metropolitanas.
condições para a montagem de redes de mundialização com ob- Comida na mesa, escola para todos, liberdade e participa-
jetivos de paz e de universalização de reflexões e práticas. Pode- ção não são bens caros. Devemos buscar a liberdade do corpo
mos formar grandes movimentos mundiais, para além da pq,ra ter a potencialidade de ser, a liberdade da mente para poder

306 307
{f)
;;o
~ o
.3D.. pensar, sentir, refletir e agir, e a liberdade de participar igual- o-
ro
2
ser o campo da liberdade, do crescimento e da descoberta . ;::+
o
QJ mente, como condição para a formação de cidadãos que não corporeidade é complexa, é presente e histórica, é caoticamente '!>
ro

e sejam massa de manobra, nem escravos do trabalho e do consu- dinâmica e é polissistêmica, é orgânica, telúrica e é o espaço da 2°
<QJ D..
e \ mo, com potencial de enxergar o outro e com ele desenvolver ro
fQJ inteligência e da espiritualidade. )>
D.. \ uma atitude solidária, que é a base da convivência democrática. lO
e
o Quando as democracias reais desvestem de concretude o ser ãi'
..,
D..
E A disputa democrática é um acidente em uma sociedade desi- humano, impedem que ele participe integralmente da vida em so-
2
o
-o
gual. Se o ser humano cultivar esses novos valores e criar estru- ciedade, que é mediação criadora e plenificadora de cada um de
ro
.e
u
turas nas quais a solidariedade seja a base, certamente a disputa seus membros. Quando a corporeidade é negada, deixando de ser
QJ
q::
perderá o sentido, já que o poder já não será o objetivo. A de- considerada como elemento constituidor do ser de cada um dos
ro
-o
{f) mocracia é o caminho para o não-poder, assim como deve ser o seres humanos, a democracia real passa a tratar suas questões por
o
.e
<.:: instrumento da erradicação de todas as dominações. intermédio do constructo denominado opinião pública, que nada
{f)
o Embora o âmbito de incidência democrática tenha cresci- mais é que a opinião manifesta pelos cidadãos por via de consultas
do, seja por se referir a entidades geopolíticas maiores, seja por e pesquisas que já recortam o que deve ser objeto das opiniões,
envolver maior quantidade de pessoas, a democracia ainda está além de induzir as respostas, estimuladas por fatos impactantes
sendo pensada em termos da relação do cidadão com sua exter- atuais ou por idéias vendáveis e aliciadoras.
nalidade, não levando em conta a questão da participação do ser A substituição de povo por opinião pública lançou acida-
humano em si mesmo. dania democrática no campo da virtualidade, das relações medi-
Todas as lutas democráticas têm como sentido a conquista adas pela informática, induzidas pelas televisões e divertida pe-
da liberdade, da igualdade e da inserção dos cidadãos, além de los jogos eletrônicos e pelos espetáculos de rápida fruição. As
caminhar para o atendimento das necessidades de sobrevivência necessidades de cada um, seus interesses peculiares, sua criativi-
e de um mínimo de dignidade para cada um dos participes da dade, originalidade e níveis de expectativa não são considera-
sociedade. Percebe-se que a democracia não atinge a interiorida- dos, pois esses atributos só são permitidos aos donos do poder.
de das pessoas, não enfrenta os obstáculos que impedem os seres A corporeidade é negada pelo fato de a democracia real
humanos de se conhecer e infletir sobre si mesmos, construindo estar assentada sobre uma desigualdade radical, que hierarquiza
suas próprias identidades. os corpos e indica quais deles devem viver ou morrer, em função
O ser humano sofre obstáculos para a realização de seus dos interesses produtivos ou de consumo. Em verdade, existem
corpos, de sua sexualidade, de seus desejos, de seus sonhos, de corpos que devem usufruir, corpos que devem trabalhar, corpos
sua complexa constituição íntima, de sua inteligência, de sua saú- que devem ser espetáculo, corpos que devem ser fruídos segun-
de, de sua emocionalidade e de sua sanidade psicossomática. do as regras estéticas e eróticas da moda vigente, corpos que
A corporeidade humana é a expressão mais evidente da devem morrer e corpos que apenas podem repor suas energias
identidade, da diferença e da condição humana. É o dado mais para amanhã.
evidente da humanidade, tanto para o outro, quanto para o pró- A hierarquização de corpos também se dá por etnias. Exis-
prio corpo. Daí que, como estrutura ou sistema originário, deveria tem exclusões unilaterais ou recíprocas clivando o gênero humano

308 309
l/l
~
.a
D. entre corpos escolhidos e corpos excluídos. Não bastasse isso, o caráter bifacial da experiência humana. Com o estabelecimento
2
Q) os corpos são hierarquizados por sua antigüidade. A estrutura do poder patriarcal, do padrão sumeriano,80 da sociedade como
ro

e
urbana é exemplo pungente desse fato. Nela não existe lugar nem locus da disputa, da concorrência e da guerra, a relação entre os sexos
<Q)
e
~
para crianças e nem para velhos, pelo simples fato de os primei- só poderia ser de disputa e de dominação, o que implica dizer a
Q)
D.
ros não produzirem e os segundos terem perdido sua capacida- imposição da superioridade de um sexo em relação ao outro, oca-
o
D.
E de de produzir. Os corpos novos das crianças, ou estão em pre- sionando efeitos em todas as facetas das relações humanas.
2
o paração, no caso de pertencerem à categoria dos corpos que devem Desse modo, a sexualidade que institui necessária forma de
"O
ro
.e usufruir, ou são abandonados, se pertencerem à categoria dos cor- complementaridade é abandonada na história, para dar lugar à
u
Q)
;:;:: pos que devem morrer ou simplesmente repor suas energias. hegemonia de um dos sexos, que passa a ditar todas as regras
ro
"O
l/l
Os corpos idosos devem ser encostados, por não serem sociais, políticas, econômicas, morais, religiosas, filosóficas e de
o
.e
<.:: mais úteis para a produção. Toda a experiência acumulada neles, constituição do saber. Um mundo macho corresponde a um
l/l
o toda a história vivida, todos os conhecimentos sedimentados são poder macho, a uma moral macha, a estruturas econômicas e de
ignorados, a partir do entendimento de que corpos antigos são produção machas, a uma moralidade macha, que ratifica a supe-
superados, além de representarem um peso para os mais novos e rioridade do masculino sobre o feminino, a religiões machas, que
um atraso para a sociedade. A democracia real ainda não pensou masculinizam Deus e impedem a participação da mulher, a uma
em criar estruturas participativas nas quais os corpos de várias filosofia sem brechas para a originalidade feminina e para a epis-
idades possam conviver em equiHbrio e em constante crescimen- teme feminina, que são impedidas de se expressar sob as mais
to. A partir desse fenômeno de concretude originária, a partici- variadas justificativas, a saberes e práticas sociais masculinos que
pação democrática é negada, pois os seres humanos, em sua ins- levaram as sociedades a se destacar da Terra e a perder a sua
tância básica, já estão clivados e destinados a viver, morrer, ser identidade como habitantes do cosmos.
superiores ou inferiores, em razão de seus próprios corpos. A A democracia real, por abstrair os corpos e por ser cons-
consideração da concretude humana é pré-condição para a reali- truída por valores e conceitos masculinos, alija as mulheres, alija
zação democrática. Enquanto estivermos trabalhando com abs- o sexo feminino, em sua dimensão maior de constituinte e insti-
trações, enquanto o ser humano for considerado um ente que tuinte da humanidade, o que vem, mais uma vez, a impedir a
responde aos estímulos dos poderes, haverá uma negação de base inserção rica e polimorfa de mais da metade dos seres humanos.
ontológica que impedirá a vida democrática. A democracia real peca por não considerar a natureza dos
A sexualidade é outro aspecto que deve ser considerado seres que devem se relacionar nesse equilibrio instável que propi-
quando tratamos de democracia. Falar de sexualidade significa cia maior igualdade, maior participação solidária e construção cres-
transcender o caráter meramente genital, mesmo com seus con- cente da liberdade humana. Em verdade, quando as realidades
sectários psicológicos. A sexualidade é um aspecto que marca mais comezinhas da ontologia humana são ignoradas, vê-se que
nossa trajetória no mundo. Em termos ideais, homem e mulher estamos perante um paradoxo, pois aperfeiçoamos nossas estru-
teriam de se complementar, pois seus modos de ver, suas experi- turas para beneficiar seres que não conhecemos. Esses seres so-
ências diferenciadas, suas intuições e seus papéis naturais mostram mos nós mesmos.

310 311
;o
Ul o
O"
~ CD
.3Q_ Enquanto o conhecimento arquetípico for considerado feiti- segunda linha, que não é dono de suas opções e nem o ;:i.
o
2 porquê de seu consumo; um cidadão cujos gostos são plasma- p
Q) çaria ou forma inferior de saber; enquanto as mulheres, para se so- ?V
(CJ
·u bressaírem em nossa sociedade democrática real, necessitarem mas- dos pela mídia, cujos afetos correspondem aos padrões veicula- Q_
e CD
<Q)
e
culinizar seus saberes e condutas; enquanto o senso telúrico que move dos, cuja moral é a de sua majestade, o vizinho, representada por )>
lO
t'. e
Q)
Q_
os seres do sexo feminino for negado, direcionando a sociedade todas as agências de massificação da opinião pública. O político ..
ili'

o
Q_
para uma civilização artificial, que desconecta os seres humanos en- é abandonado para ele, já que pensar o político representa admi-
E
2 tir a alteridade, atitude impossível para quem é adestrado a se
o
"O
tre si e do meio ambiente; enquanto a interioridade humana profun-
(CJ
da e complementar não for objeto de um tratamento político, a de- voltar para si mesmo e a ter seu umbigo como centro do mundo.
.e
u
Q)
q::
mocracia ainda vai ser mais um rótulo, um conjunto de formalida- Assim, a economia regula os lucros abstratos emergentes de de-
(CJ
"O
des que propiciam a ilusão da decisão participada. mandas abstratas, tendo como base excedentes criados em ins-
Ul
o
.e
li= No sentido aqui tratado, sexualidade guarda sinonímia com tâncias desconectadas do processo social real.
o
Ul
gênero. Mas a palavra gênero tem um certo odor taxonómico e Por razões políticas, os corpos se congregam em países, es-
não traduz essa diferença ontológica complementar que os sexos truturam-se em Estados, dividem-se em fronteiras, sendo que tais
apresentam. A democracia só pode caminhar se forem conquis- fronteiras não representam as divisões significativas entre eles, oriun-
tados iguais direitos de crescimento e influência para ambos os dos de culturas diferenciadas. As fronteiras são artificiais os Esta-
'
sexos complementares. dos sobrepujam as diversidades culturais complementares e insta-
Os corpos se opõem por razões econômicas, políticas e lam uma ordem artificial e concorrente que agrega os corpos para
religiosas. Por razões econômicas, essas oposições se dão classi- além de sua profunda e longa história cultural originária.
camente pela detenção do capital, de um lado, e pelo ofereci- Daí a dificuldade de os países instilarem amor às construções
mento do trabalho, de outro. Hoje podemos dizer que existem artificiais, aos símbolos criados, às tradições forjadas para justificar
corpos que não estão presentes em nenhum desses pólos: são os legitimidades e poderes. As nacionalidades estatais são a negação
excluídos. das nacionalidades culturais, são expressão de hegemonias unifor-
Há um outro movimento importante nestes tempos de glo- mizadoras e empobrecedoras. Estão na contramão da diversidade
balização: as relações econômicas, que na história se haviam ini- na unidade. Expressam a uniformidade na desunião. As democraci-
ciado pela concretude do escambo, hoje se artificializam de tal as estatais, na medida em que excluem outros corpos, seja porque
forma que prescindem das necessidades das pessoas, renegam a são estrangeiros, seja porque são de cores diferentes, seja por segui-
concretude da vida social e a de cada um dos membros da soci- rem religiosidades diferentes, nada mais expressam que práticas ex-
edade, abstraindo os corpos e as identidades, implantando um cludentes, discriminatórias e preconceituosas, que são a negação dos
sistema econômico esterilizante, no qual o comando está nas de- próprios princípios da democracia. O surpreendente é que suas de-
mandas de mercado, e as demandas de mercado são criadas pela clarações, suas regras e suas leis, a todo tempo, estão afirmando di-
imposição dos lucros das grandes corporações econômicas. reitos e princípios opostos a essas práticas.
Quem é estimulado para consumir e tem capacidade finan- A questão imbricada nesse problema é a de que o Estado,
ceira para tanto, pode ser chamado de cidadão, um cidadão de tal como hoje nós o vivenciamos, talvez seja, ainda, o último grito

312 313
Ul ;;J
~
o
rr
.3o.. da violência patriarcal, o último hausto de uma sociedade de sú- morreu, o socialismo morreu, uma na
<D
ri-
o
2
QJ ditos, na qual a cidadania ainda é uma abstração e a concretude qual o mercado é deus, a livre (embora '?'
ctJ ?D
'Ci
e humana ainda não é tratada, pelo fato de o ser humano, em sua ta) é a mão invisível que regula e harmoniza a sociedade e o ser o..
<QJ <D
e
~ constituição básica, não ser sua preocupação ou finalidade, uma humano já não tem mais papel se não se inserir nessa ordem que )>
lO
QJ e
o..
vez que a democracia ainda está baseada na concorrência e na detém todo o logos e todo o universo de felicidade. Qj'
-,
o
o..
E disputa de poderes, de modo equilibrado e não ditatorial. Voltamos à Idade Média, quando a cosmovisão que enten-
2
o
"O
Como pensarmos em democracia, quando os desejos hu- dia o cosmos como pronto e acabado deixava ao ser humano
ctJ
.!:
u
manos são deformados, lapidados e estruturados no sentido da tão-somente o papel de contemplador da ordem divina, obede-
QJ
;:;:::
negação das pulsões de demandas básicas dos seres humanos? O cendo aos seus mandamentos. Contemporaneamente, como é o
ctJ
"O
Ul
o
desejo que impele o ser humano a escrever sua existência, que mercado que dita as regras, como é de uma abstração que gera
.!:
~ guarda uma originalidade personalíssima, é sopitado e amorteci- ou destrói a riqueza das nações e cidadãos, como estamos em
Ul
o do pela sua substituição por falsos objetos de demanda, por bens tempos de fim da história, cabe ao cidadão obedecer a ordens
cuja simbologia representa falsos preenchimentos de vontade de tão distantes e desconhecidas, semelhantes às da harmonia divi-
poder, dominação, e status, de consumo, contemplação narcísica, na medieval, além de nos satisfazermos com a contemplação
onipotência e formas abstratas de participação social. De certa dessa ordem última e definitiva para as sociedades.
forma, os cidadãos não têm caminhos construídos por eles mes- Tal posição é a negação da cidadania e o abandono dopa-
mos, coletiva ou individualmente, daí não haver identidade para pel do ser humano como contrutor da história, emergente no
expressar, ou densidade para reivindicar e lutar por aquilo que Renascimento europeu. Sem sonhos e sem papel transformador,
seja essencial ou de profundidade. Como pensar em democracia o ser humano perde seu significado e se torna um fruidor sem
sem a identidade de seus cidadãos? rumos ou um marginal sem esperanças.
A democracia só tende a ser universal se a capacidade de A constituição íntima do ser humano deve ser considerada
sonhar dos cidadãos é mantida e estimulada. Sem sonhos, não há na construção democrática. Os elementos de uma sociedade de-
o potencial de inventar, prever, prefigurar e antecipar. Não há mocrática real são considerados como se não tivessem interiori-
condições para o salto rumo a sínteses mais complexas e huma- dade, como se não fossem universos ricos e paradoxais que com-
nas. Sem sonhos, o caminho é o da entropia e o da estagnação, põem a sociedade. Os seres humanos que compõem a relação
que resgatam os velhos padrões de dominação arcaica que teri- democrática são concebidos como uma tabula rasa, que aprende
am sido superados pela democracia. com a convivência, tem valores emprestados da sociedade, sem
Para melhor deformar o cidadão, no sentido de tornar o que haja qualquer componente do interior humano que faça par-
consumo sua razão de viver e treiná-lo na substituição de seus te da política democrática.
desejos pela imposição ilusória do mercado, há todo um pensa- O que foi dito acima ratifica a idéia de que a democracia é
mento sendo formado que expressa a inutilidade de sonhar, a um jogo, o mais limpo possível, de luta pelo poder, a fim de que
insignificância de prefigurar sociedades e dimensões mais justas, os interesses externos dos cidadãos sejam contemplados de for-
mundos interiores mais felizes. O argumento é tanático: a história ma justa, dentro da conjuntura. Metade do ser humano é alijado

314 3
Vl
;a
o
~ o-
ro
.3o. do processo democrático, com os problemas de desrespeito de da maior tecnologia, da ciência mais avançada e da economia ;:i.
o
2
Q) gênero, que ainda persistem nas sociedades. Metade de cada ser mais rica. Esses temas devem voltar à tona, pois só construire- ?>
ro !1
·u humano é alijado desse processo pela desconsideração da interi- mos na história a universalidade democrática quando tematizar- o.
e
<Q.J ro
e
~ oridade humana nas relações democráticas. mos a vida, a felicidade, a realização pessoal, a solidariedade e a )>
lO
Q) e
o.
Democracia, ainda, é considerada um sistema de controle, compaixão entre os seres humanos. ..,õi'
o
o.
E uma ordem representativa formalizada institucionalmente, que Democracia não significa participação em sistemas pirami-
2
o
"O
controla os cidadãos, de forma a estabelecer um relacionamento dais necessariamente institucionalizados ou em vetores controla-
ro
..e
u
mais harmônico e menos desigual. Nessa sociedade de controle dos hierarquicamente. Democracia é informalidade, é movimen- /
Q)
ti::
ro
em que vivemos, as delegações, muitas vezes, são alienações de tação social, é rede que se bifurca em cada instante, levando men-i
"O
Vl
o
liberdade, abandono de responsabilidades para terceiros e para- sagens, transformando textos e contextos, criando identidades,/
~
\;::: lisação da cidadania, o que vem a negar os pressupostos básicos forçando as portas, unindo e desunindo, tecendo e descosturan-\
Vl
o da teoria democrática. do, vislumbrando outros horizontes e dando aos antigos outras \
É preciso retornar às origens históricas do ser humano, aos significações, urdindo novos valores, empurrando os lentos, sen-(
arquétipos e símbolos que o movem e com o qual ele convive, é sibilizando os apáticos, dando carne aos que não a tem, espírito
\
preciso sondar o inconsciente coletivo que vai se forjando desde aos que se assumem como ocos, desregrando os poderes e cons- \
tempos imemoriais, para desvendar melhor esse ser que a demo- truindo antipoderes, indo ainda mais longe, vislumbrando novas
cracia pretende servir e a quem busca resgatar a concretude per- práticas democráticas de não-poder.
dida, a interioridade negada e os desejos ignorados. Democracia é o caos participativo a caminho do não-poder e
A apreensão do mundo clivado e a separação radical do do reconhecimento do outro como igualdade e diferença. Demo-
ser humano de seu meio circundante, seja humano ou natural, fez cracia é o universo das práticas de liberdade que se manifesta por via
com que se desenvolvesse uma inteligência analítica, dual e des- de uma rede anárquica que parece ser controlada pelas instituições
construtora, que gerou todo o nosso avanço científico-tecnoló- formais, mas que escapa a esse controle e vai fazendo surgir os no-
gico. Na criação de artefatos, nas investigações científicas, nas vos seres humanos e as novas formas de relação entre eles.
descobertas fenomenais, a inteligência assim adestrada está em Essas redes tendem à convergência, ao tangenciamento e
seu campo. O problema se põe quando tratamos de assuntos às novas formas de contato entre seres humanos que nunca po-
como a democracia, em que, por detrás das práticas, estão algu- deriam antes se aproximar. Elas são a defesa e o risco. Defen-
mas consignas que não são objeto da ciência oficial: a questão da dem os cidadãos das práticas formais de dominação, mas abrem
vida, da felicidade, da identidade, do bem-estar, do amor e da as portas para novas e velozes urdiduras do autoritarismo eco-
solidariedade. nômico e político. As novas práticas democráticas guardam o
Tudo isso é jogado para o campo da filosofia, da religião germe da renovação e do não'-poder, mas convivem com sua
ou da teologia, como se fossem temas de menor significação para contradição, que é o aproveitamento de sua·velocidade e infor-
os portadores dessa inteligência da externalidade, que mede a malidade para resgatar as mais costumeiras práticas de
chamada evolução humana segundo os parâmetros da velocidade, dominação.

316 317
li)
;;o
(::'.
o
rr
CD
.3o. des-hierarquização, junto com a desformalização, ades- pelo sedentarismo que, por via de meios de transportes e práti- ;:::i.
o
2
Q) centralização e a deslegalização, levantadas por Boaventura de cas de trabalho, encurta as distâncias juntamente com as vidas. '?'
ro ?J

e Souza Santos, mostram as tendências da contemporaneidade na Essas características de vida condicionam o aparecimento o.
<QJ CD
.~
tQ) busca de dar conta de suas novas demandas, em termos éticos, de um ser humano heterônomo e dependente, presa fácil da pro- )>
l.O
e
o. õi.
políticos, econômicos e jurídicos. Não serão mais as velhas hie- paganda, da venda de serviços, das idéias mais cômodas e das -.
o
o.
E rarquias, que têm como pretensão serem permanentes, que vão figuras políticas que menos exijam dele, em termos existenciais,
2
o responder ao mundo contemporâneo, mas as novas formas de de esforço ou pagamento para sua categoria. A democracia bur-
"O
ro
.i:::: relação, que procuram unir os de mesmas idéias, os diferentes ou guesa engendrou seres que acreditam na liberdade, mas a alie-
u
Q)
q::
aqueles que se complementam na ação e na reflexão em torno de nam com a maior facilidade se ela for trocada pela comodidade
ro
"O
li) questões que incomodam ou desafiam alguma sociedade. e por serviços que são desconhecidos tecnicamente por esses
o
.i::::
li= A abrangência democrática ou a das lutas para sua implan- mesmos cidadãos.
li)
o tação ou avanços atinge o planeta. Não mais podemos vislum- Ora, democracia e heteronomia não podem conviver, sob
brar a democracia como algo da cidade, da nação, do Estado, ou pena de as democracias se constituírem farsas ou ilusões que ven-
mesmo da internacionalidade mediada por estruturas estatais an- dem a impressão de liberdade. Tal problema ainda é radicaliza-
tigas. Os problemas do mundo tendem a ser os do planeta, trans- do pelas estruturas de trabalho onde vigem, como foi visto, o
cendem as fronteiras e atingem a humanidade. Logo, a dimensão mais violento autoritarismo e a evidente negação dos valores
democrática é essencial para a constituição real da própria hu- democráticos tão defendidos.
manidade. Assim, o caminho democrático, além das redes e da des-
Esse conjunto de seres só ganhará identidade se passar a hierarquização, deve urdir práticas econômicas e políticas que
dialogar em seu interior, respeitando os direitos e peculiaridades possibilitem a autonomia dos cidadãos, a fim de que eles não
de seus componentes, e a desbordar essa prática para o planeta, sejam massa de manobra nas disputas no interior das elites anti-
em seus interimplicados aspectos naturais e humanos. A demo- gas, ou sejam neoescravos dentro das regras de produção.
cracia, além de ser um conjunto de práticas humanizadoras, tam-
bém é instrumento para a instauração de relações igualitárias com
a natureza, com o planeta e mesmo com o cosmos.
O conceito e as perspectivas das democracias estão sem-
pre embasados em noções variadas de liberdade. Elas sempre
procuram tutelar a liberdade do empreendimento, da palavra,
do pensamento, da associação e da não-submissão a abusos esta-
tais. Mas o cotidiano dos cidadãos mostra que, cada vez mais,
eles se tornam seres dependentes dos artefatos quase naturais,
das entidades que oferecem serviços essenciais para suas existên-
cias, das comodidades mercantis a seu dispor, imobilizando-os

318 319
A dignidade humana, a cada momento, torna-se menos atin-
gível, em função das crueldades cotidianas que a esfacelam e pela
crescente falta de respaldo teórico para seu exercício. Como o
ser humano foi isolado do cosmos, da Terra, do ambiente e do
outro, não há mais base crível para assentar o conceito de digni-
dade humana.
O ser humano é digno por quê? Se ele é uma excrescência
do cosmos, uma falta de higiene da crosta terrestre, não tendo
qualquer significação a não ser na interioridade de sua espécie,
que valor tem sua vida, seu corpo, sua integridade e sua liberda-
de? Nesse sentido, o máximo a que se pode chegar é à tolerância,
isto é, a uma forma de viver suportável entre adversários, a um
armistício precário entre animais carnívoro~. Dignidade intrín-
seca do ser humano é uma perfumaria metafísica que não serve
para nada.

321
Ul
~
.ao.. Ser digno significa ser merecedor, ser respeitável, mas essa
2 não, de elaborar um mundo no qual as riquezas são e
Q) respeitabilidade e merecimento só podem ter sentido se forem a pobreza aumentada, superando o "estado natureza" e im-
ro

e
<Q)
ligados à natureza do ser a quem isso é atribuído. Se o sentido plantando um mundo que pode se autodestruir, justamente pela
e
~
Q)
desse ser for desprezível, se à sua existência pouco ou nenhum negação da dignidade da natureza e da dignidade humana. Essas
o..
o
valor é dado, se esse ser for um epifenômeno descartável, que formas de produzir e os relacionamentos daí decorrentes infor-
o..
E respeito teremos dele, que dignidade ele pode portar? mam e influenciam o modo de ser dos humanos, de tal forma
2
o
""O
A dignidade do ser humano não pode ser atribuída pelo fato que ainda existem os que julgam que essa relação é uma determi-
ro
.e
u
de ele ser fruto de divindade ou divindades, nem pode ser entendi- nação necessária.
Q)
li::
ro
da como decorrência de sua racionalidade ou sociabilidade. Essa Esse ser tem a capacidade de elaborar um mundo simbóli-
""O
Ul
o
questão é complexa e deve ser vista sob vários ângulos. co, que procura expressar as suas existências, explicar e compre-
~
t;:: O ser humano tem uma peculiar função nos mundos co- ender os fenômenos e dar conta da vida de cada um pelas cren-
Ul
o nhecidos: ele dá significação às coisas e, pelo conhecimento, te- ças, pressupostos e sonhos. Esse papel de "falador" do universo
matiza criticamente o próprio conhecimento. Ele é o universo dá a ele a dignidade de ser o único porta-voz conhecido do cos-
que fala, o cosmos que se autodesvela e auto-refere. Para desem- mos o único até agora que faz o universo infletir sobre si mes-
penhar esse papel, o ser humano apresenta várias facetas. ' ' '
mo e se autodesvelar, o único que cria culturalmente suas nor-
Ele expressa a história mineral, vegetal e animal do cos- mas éticas, suas estruturas de poder e sua arte, tudo isso dentro
mos, apresentando em sua constituição heranças e estruturas ad- de uma clave de aposta entre a dissolução e a construção rumo a
vindas dessas camadas da história do cosmos e da Terra. Ele traz sínteses mais complexas, vale dizer, entre o desrespeito e o res-
em sua memória inconsciente partilhada as condutas animais, suas peito à sua própria dignidade.
técnicas de sobrevivência, sua agressividade e ternura, suas gar- A crise de aplicação dos direitos humanos, formalmente
ras e dentes e seus instintos acrescidos de toda a história humana, reconhecidos em quase todas as constituições do mundo, está
todas as experiências, medos, dominações, soluções e criações baseada nesse pressuposto de negação da dignidade, pois um ser
que a temporalidade da espécie propiciou. Ele traz a entropia e a sem significado não merece respeito, no máximo indiferença, pois
superação presentes em sua condição. ele é banal e banal é a violência exercida sobre ele.
Em tern:Íos individuais, ele carrega ainda sua história pessoal Assim, por razões étnicas, culturais, religiosas, econômicas
marcada pelos grupos familiais a que pertence, pelas pertinências ou políticas ele é massacrado, morto, torturado, esfomeado, es-
maiores ou menores existentes em seus grupos sociais, além dos tuprado, violentado, tudo em nome de abstrações, tendo como
sentimentos, desejos, perspectivas e projetos históricos diversos agentes ativos ou passivos seus iguais, isto é, aqueles que acredi-
que tocam sua individualidade. Ele ainda constrói, sem saber, uma tam na insignificância humana e por isso não têm pejo de matar e
história escondida e velada, formada pelos seus desejos não atin- de deixar morrer, já que a vida humana nada mais é do que pre-
gidos, por seus sentimentos proibidos, suas afeições e desafeições. sença ou ausência dentro de quadros estatísticos, cada ser huma-
Outra marca desse ser é a sua capacidade de modificação no é apenas um produtor ou desempregado potencial, e a huma-
produtiva, de criar novas relações com a natureza, perversas ou nidade só terá sentido quando se submeter à lógica perversa da

322 323
Vl
~
.3o. dominação de poucos grupos, que acreditam, ou dizem acredi-
2
QJ tar, que a salvação do mundo está na otimização de seus lucros, na
co

e concentração de seus saberes e na eliminação de seus inimigos e
<QJ
e
:e daqueles que não têm capacidade de se enquadrar nessa ordem
QJ
o.
totalitária e desumanizadora.
o
o.
E As práticas políticas e suas doutrinas justificadoras aceitam
2
o
"'O
esses mesmos pressupostos desumanizadores. A política é guer-
co
..e
u
ra, é disputa entre interesses colidentes, é internacional economi-
QJ
q::
camente e nacional na interioridade dos Estados. A soberania
co
"'O
Vl tão decantada é uma ilusão: os países são mais ou menos sobera-
o
..e
<;::: nos em função de sua capacidade bélica, de sua força econômica
Vl
o e de seu saber concentrado. A soberania é um atributo, distribuído
desigualmente, o que a torna mero constructo ideológico, sem
força no que se refere às relações entre desiguais.
A dignidade humana impõe o entendimento da reformula-
ção do eixo da política, de um sentido de guerra para um sentido
de paz, de uma representação baseada em interesses para a parti-
cipação real dos diferentes, sob a égide da solidariedade, que A palavra ingenuidade está ligada, em seu sentido mais co-
não é mera chamada moral para as pessoas melhorarem, mas um mum, a inocência, a ausência de malícia, a pureza, e a singeleza, mas
imperativo de sobrevivência da própria humanidade e de seu também, por sua etimologia, veremos que sua origem vem de inge-
meio, a partir da admissão do papel e do merecimento do ser nuus, que tem o sentido de livre de nascença. Os filhos de escravos
humano e do papel e da significação do meio ambiente, com que nasciam livres tinham o nome de ingênuos.
seus objetos naturais e quase naturais. Podemos dizer que nossa razão está cativa. Ela sofre um
bombardeio de estereótipos, uma imposição de modelos que vão
do consumo e da moda até formas de pensar e de agir, passando
por dimensões teóricas e práticas sociais. Neste mundo da velo-
cidade, do tempo instantâneo, da saturação de informação, da
guerra como valor comercial, industrial, financeiro e militar, não
se pode falar de uma razão livre, ou com um território livre para
pensar e criar. As cabeças já nasceram escravas e os olhos já sur-
giram com lentes preestabelecidas.
Se encararmos o significado dessa palavra no inglês, vere-
mos que um outro sentido aparece para ingenuiry: o de

324 325
engenhosidade, engenho ou inventividade. palavra ingenuous esse olhar despojado e curioso, simples e humilde, por
Q)
compreende as significações de ingênuo, franco, cândido, sim- não ter orgulho de qualquer conhecimento, como pede a boa
ílJ

e ples, inocente e sincero, além das conotações antigas de nobre e ciência, que pode perscrutar os novos subsolos do conhecimen-
<Q)
e
f generoso. to, as novas direções da humanidade e os caminhos de sobrevi-
Q)
Q.

A ingenuidade na cultura ocidental sempre esteve ligada à vência e crescimento dos seres de Gaia.
oQ.
E inocência, à simplicidade e até mesmo à simploriedade. Em um
2
D
o outro sentido, essa palavra está ligada à ignorância e à alienação,
ílJ
..e
u principalmente por aqueles que estão mais comprometidos com
Q)
;:;::::
ílJ
a norma culta dos saberes.
D
Ul
o Mas a ingenuidade também está ligada ao despojamento, à
..e
<;:::
Ul
liberdade originária da mente humana de não admitir a imposição
o
de modelos prontos, a de perguntar sem patrulhas, à de imaginar
sem peias, à de propor sem receio de censuras políticas e/ ou aca-
dêmicas. Ser ingênuo não é ser apenas naif, como são chamados os
pintores ditos primitivistas; ser ingênuo não é somente uma atitu-
de atribuída às mulheres românticas de uma certa literatura· ser
'
ingênuo não é ser alienado, mas ter a coragem de questionar o que
é admitido como incontestável; ser ingênuo é a atitude que pode
levar ao risco da agressão pelos donos das verdades; ser ingênuo é
cultivar a liberdade originária da emancipação.
O deslocamento do olhar só pode ser feito por aqueles
que tenham a coragem de abandonar as crenças vigentes em
qualquer âmbito, perguntar, criar e descobrir outros caminhos,
outras explicações e outras compreensões. Não seria possível a
emergência da lógica da complementaridade, que enfrenta os
fenômenos micro físicos, sem a ingenuidade de deixar de lado a
lógica clássica; não seria possível a admissão do inconsciente
coletivo se não houvesse uma ingenuidade que abandonasse o
biologismo de superfície e as fronteiras entre a ciência e a mito-
logia. Isso quer dizer que a ingenuidade não significa ignorân-
cia, mas humildade livre, olhar novo e radicalidade nas pergun-
tas, atributo de quem é simples e não necessita dar satisfações
para se sentir consistente.

326
Ul
~
.3o.. 1 Para conceituar gnosiologia, aceitamos o ensinamento de M. Ran-
2 zoli 1 em seu Dicionário, p. 86: "Quella parte importantissima dei la filosofia
QJ
ílJ che tratta della dottrina della conoscenza, vale a due deli' origine della

e natura, dei valore e dei limiti della nostra facoltà di conoscere".
<QJ
e s Paradigma, para este trabalho, tem um sentido próprio, que pode
:eQJ ser assim expresso: é o subsolo comum da produção humana, que se
o..
transforma na medida das mudanças da compreensão que o ser humano
o
o.. tem de si mesmo, da natureza, do outro, da história e do cosmos.
E
2 9 o iluminismo pode ser considerado como a linha filosófica carac-
1
o A questão dos quanta é assim tratado por Heisenberg: "Nas teori-
"O terizada pelo empenho de estender a crítica e o guia da razão a todos os
as clássicas a interação entre o objeto e o observador era considerada ou
ílJ
..e campos da experiência humana, comportando uma tripla dimensã~ inter-
u como pequena até o descuramento ou como controlável, de modo a po-
QJ
;:;:::
ligada: a extensão da crítica a toda e qualquer crença e conhec1ment~
der eliminar a influência por meio de cálculos. Na física atômica, no en-
ílJ sem exceção; a realização de um conhecimento que, para ser aberto a
"O tanto, tal admissão não é possível fazê-la porque, a causa da descontinui-
Ul crítica inclua e organize os instrumentos para a própria correção; e o seu
o dade dos acontecimentos atômicos, toda interação pode produzir varia-
..e uso efetivo em todos os campos do conhecimento para melhorar a vida
<;:::: ções parcialmente incontroláveis e relativamente grandes. Esta circuns-
Ul
associativa dos homens. (N. Abbagnano. Dicionário de filosofia. São Pau-
o tância tem como conseqüência o fato de que, em geral, as experiências
lo: Mestre Jou, 1962, pp. 509-510).
executadas para determinar uma grandeza física tornam ilusório o co-
10 Sob a denominação de ortopedia social, Foucault reunia os sabe-
nhecimento de outras grandezas obtidas precedentemente; elas de fato
res que "soldavam" e remendavam as sociedades, a fim de que as fratu-
influenciam o sistema sobre o qual se opera de maneira incontrolável,
ras não comprometessem as práticas dos poderes. Exemplos desses sa-
portanto os valores das grandezas precedentemente conhecidas resul-
beres são o serviço social e o direito.
tam alterados. Se tratarmos esta perturbação em modo quantitativo, ve-
11 Logos é a razão enquanto substâficia ou causa do mundo, podend.o
rifica-se que em muitos casos existe, pelo conhecimento contemporâneo
admitir o sentido de pessoa divina. Heráclito afirmava que "todas as leis
de diferentes variantes, um limite de exatidão finito, que não pode ser
humanas se alimentavam de uma só lei divina, porque esta domina tudo o
superado." ln Die physicalíschen prinzipien der quantentheorie, I, § 1.
2
que quer, basta a tudo e prevalece a tudo. (Fr 114). Em Filã~ ~e Alexa~dr~a,
Em grego, a palavra oikos significa casa, abrigo. Assim, ecologia
Logos é um ente intermediário entre Deus e o mundo, o tramite da cnaçao
pode ser entendida como a ciência que estuda a nossa casa, o nosso
divina (Leg. All. III, 31). Nomos significa legislação, leis humanas que~ pelo
habitat, aquilo que nos abriga e sustenta e que faz parte de nós.
3
entendimento greco, teria sua justiça verificada pela sua adequaçao ou
Conforme o Vocabulário técnico e crítico da filosofia de André
não a logos, padrão de julgamento dessas leis terrenas. , .
Lalande, Porto: Rés Editora, s. d. v. II, pp. 412-413.
12 A caixa de Skinner é a expressão mais clara das tecn1cas com-
4
Conforme Dicionário de filosofia de Nicola Abbagnano. São Paulo:
portamentalistas, pois seu papel é estimular o aprendizado de ratos, seja
Mestre Jou, 1962. pp. 812-813.
5
O sentido de imaginário aqui escolhido é o que G. Bachelard ex-
por estímulos positivos, seja por estímulos aversivos. Quando .ª ~strut~ra
psicológica dos seres se restringe a comportamentos mensurave1s, a in-
pressou no seguinte texto: "O vocabulário fundamental que corresponde
ternalidade é abandonada e os seres passam a existir por seus comporta-
à imaginação não é imagem, é imaginário. O valor de uma imagem se
mentos, pelo feixe de interações e estímulos recíprocos. A tr~nsposição
mede pela extensão de sua auréola imaginária. Graças ao imaginário, a
desses experimentos com animais para os seres humanos esta expressa
imaginação é essencialmente aberta, evasiva. Ela é no psiquismo huma-
em seu trabalho O mito da liberdade, editado pela Bloch, em 1973, no
no a própria experiência da abertura, a própria experiência da novidade".
qual a tese central é a de que não temos liberdade há muito tempo,
(L 'air et les songes. Paris: Corti, 1943, p. 7).
devendo ela ser substituída por um controle sobre a conduta e a cultura
Esse sentido é complementado por G. Durand, que afirma ser o
dos homens.
imaginário "o conjunto das imagens e das relações de imagens que cons-
13 A economia primitiva, também chamada por alguns de economia
titui o capital pensado do homo sapiens (apud Dicionário de Ciências Soci-
natural é uma prática não monetária, baseada na produção agrícola e/ou
ais. Rio de Janeiro: FGV/MEC, 1986, p. 574).
coleta 'com 0 objetivo de atender ao autoconsumo. Tal economia não
pode ~er confundida com a de subsistência, mas ela é de abu.ndânci~.
6
O drama das teorias é não poder explicar todos os seus termos,
não ter todos os seus momentos comprovados. Eles sofrem de incomple-
seus excedentes são consumidos prioritariamente em festas e ntos, nao
tude, isto é, da impossibilidade de serem totalmente axiomatizados. Sem-
havendo negociação deles. No máximo, encontramos práticas de escam-
pre resta algo como suposto, como sentença não provada ou como ad-
bo. Podemos dizer que essa economia é a negação da contemporânea,
missão sem provas.
na medida em que não negocia os excedentes, condição fundamental

328
UJ ;o
~ o
rr
.3o. para a constituição da economia, tal qual hoje a entendemos. Para apro- Bottomore. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar (D
;:::\.
2 fundar essa noção, indicamos a leitura de Clastres, Pierre (Arqueologia Editor, 1988, pp. 348-349). o
QJ da violência. São Paulo: Brasiliense, 1982) e Sahlins, M. (Economia y 17 '!>
Pierre Teilhard de Chardin talvez seja o pensador católico que
ü
flJ
sociedad. México: Fondo de Cultura Económica, 1974). ~
e mais se apropriou dos avanços científicos e mais ousou em termos meto- o.
<Q) 14 o verbete potlatch do Dicionário de Ciências Sociais do Instituto (D
e dológicos. Sua visão fenomenológica procurava realizar uma síntese entre
t'.Q) de Documentação da Fundação Getúlio Vargas (Rio: Editora FGV, 1986, p. a ciência, a filosofia e a teologia. A oposição entre criação e evolucionismo
)>
\Q
o. e
949) conceitua: "No sentido mais amplo do termo, um potlatch era um foi superada quando esse autor encarou o universo como um processo in ãi'
..,
o complexo de atividades, inclusive festas, danças, representações dramá-
o. fieri: Deus colocou na matéria primordial a possibilidade de ser vida e
E ticas, proclamações públicas e o empréstimo, a doação e a destruição de
1l consciência reflexiva. O ser humano ·é a ponta dessa evolução, que se dá
o propriedades entre as tribos indígenas que habitavam a costa noroeste segundo o processo de complexidade-consciência, no qual os seres cami-
"'CJ
flJ
da América do Norte, desde o Estado de Washington até o Alasca Meridi- nham para a complexificação, o que significa maior consciência, liberdade,
..e
u
Q)
onal. A essência e o clímax das atividades, no entanto, era a distribuição inteligência e aptidão e mais sociabilidade, amor e unidade nos seres. A
;:;::::
de bens reunidos pelo anfitrião para aquela ocasião por meio de econo- esses movimentos, Teilhard denominou de amorização, socialização e cons-
flJ
"'CJ mia, doação e empréstimo". cientização. O ser humano, por essa visão, torna-se co-criador do cosmos
1s o papel de Pierre Clastres no desvelamento das culturas indíge-
UJ
o rumo à sua plenitude, que é o ponto Ômega, o reencontro cósmico com
..e
te nas amazônicas, é fundamental para a antropologia e para o conheci- Deus, que iniciou esse processo. Mas esse caminho não é determinista,
UJ
o mento de outras formas de viver, produzir, relacionar-se e se organizar, nem de êxito pré-construído. Ele é uma tragédia entre a possibilidade de
possibilitando o afastamento de um positivismo evolucionista nocivo para saltos rumo ao mais-ser, ou de recuos a patamares menos complexos, em
a compreensão de nossa própria história. Duas obras significativas do função do mau uso da liberdade crescente, engendrada nos seres em evo-
autor estão citadas na bibliografia deste trabalho. lução. O ser humano, de maior liberdade, é aquele que pode plenificar esse
16 Para Hegel, o senhor é a autoconsciência do servo e o servo o
caminho preparado até ele, ou se suicidar enquanto espécie. Para aprofun-
instrumento que elabora os objetos, a fim de que o senhor frua deles e a damento nessas noções, sugerimos a leitura das obras de Teilhard de
fim de que, desse modo, ele próprio participe, por mediação, na fruição Chardin constantes da bibliografia deste trabalho.
do objeto como o senhor participa, por mediação, na produção dele. (Fe- 18
Emanuel Mounier foi um importante filósofo cristão que procurou
nomenologia do Espírito, I, IV). construir uma ponte entre o cristianismo e o existencialismo, principalmente
Para Marx, a formação social, isto é, a realidade social concreta é em sua principal obra, O personalismo/ editada em São Paulo pela Livraria
apropriada pelo pensamento como articulação de modos de produção. Os Duas Cidades, em 1964. Na mesma época, e pela mesma editora, foi tradu-
modos de produção são as articulações estruturadas das instâncias soci- zido e publicado no Brasil seu outro trabalho, Introdução aos existencialis-
ais que podem ser distinguidas na sociedade: econômica, ideológica e mos. Foi o criador da revista Esprit, de muita importância na vida intelectual
jurídico-política. Marx e Engels, a partir de 1853, passaram a se interes- francesa, até hoje. Foi lutador da Resistência Francesa, tendo sobre ela es-
sar pelas sociedades asiáticas, mais especificamente pelo modo de pro- crito um trabalho de muita densidade humana, sob o título Reflexões sobre
dução asiático. Tendo como fonte James Mill, François Bernier e Richard um ato frágil. O cristianismo progressista recebeu forte influência de seu
Jones, passaram a afirmar que "a ausência da propriedade privada, nota- pensamento que, junto com Teilhard de Chardin e Pe. Henrique de Lima Vaz,
damente da propriedade privada da terra, nas sociedades asiáticas, era a de luminosa obra, constituiu o tripé teórico que iria impulsionar originaria-
causa básica da estagnação social. As mudanças periódicas da organiza- mente a JUC, a AP e até mesmo as comunidades eclesiais de base.
ção política das sociedades asiáticas, determinadas por lutas dinásticas e 19 Gabriel Marcel é outro pensador existencialista cristão que tratou

por conquistas militares, não provocaram modificações radicais na orga- de temas teológicos sob outro olhar. Para ele, a Realidade Absoluta só se
nização econômica, porque a propriedade da terra e a organização das revela pelo mistério que a circunda. Diante dela, o ser humano só pode
atividades agrícolas continuavam nas mãos do Estado, que era o verda- ter duas atitudes: a fidelidade e o amor. Esse pensamento foi manifestado
deiro proprietário da terra. A natureza estática da sociedade asiática apoi- em obras como Journal métaphysique; Être et avoir e Du refus à
ava-se igualmente na consistência da velha comunidade de aldeia que, l'invocation.
combinando agricultura e artesanato, era economicamente auto-suficien- 20 Para a Fenomenologia de Husserl, noesis é o aspecto subjetivo da

te. Tais comunidades eram, por motivos geográficos e climáticos, depen- experiência vivida, formado pelas percepções, compreensões, lembran-
dentes da irrigação, que, por sua vez, exigia um aparelho administrativo ças e imaginação, dentre outros. Já o noema é o aspecto objetivo da
centralizado para coordenar e desenvolver obras hidráulicas de grande experiência vivida, a saber, o objeto considerado pela reflexão em seus
escala. o despotismo e a estagnação explicavam-se, dessa forma, pelo diversos modos de ser dado. Tanto noesis como noema fazem parte da
papel dominante do Estado no que diz respeito às obras públicas e pela experiência vivida pela consciência, que não existe em estado puro, mas
auto-suficiência e isolamento das comunidades aldeãs" (apud Tom sempre é intencional, voltada para algum fenômeno.

330 1
(J) ;;a
~
o
o-
.3o.. 21
A metempsicose é uma crença de origem oriental que admite a 29
Denominamos antropia a toda interferência ou presença humana ro
;:::).
o
2 transmigração das almas de um corpo para outro, em cadeias de reen- em seu meio, que pode plenificar, corrigir ou destruir o ambiente. A antro-
(])
carnação. pia tem uma dúplice manifestação: ou ela aparece para aperfeiçoar ou
?>
ra 22 ?O
"ü Na França, denominam-se faits divers às notícias curtas publica- manter dado fenômeno do ambiente, ou ela é instrumento de morte ou
e Q_
<(])
e das principalmente em jornais, marcadas pelo inusitado, o diferente e o degradação desse meio. (D

)>
~ inesperado, mas sem maior importância. 30
O Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) teve importân- LO
(]) e
o.. 23 ~-
A transmissão em tempo instantâneo também veio a público nos cia crucial na história brasileira, formando os pensadores e economistas
o
o.. conflitos entre a Sérvia e a Bósnia. que participaram do esforço de desenvolvimento nacional que culminou
E 24
Para melhor esclarecimento sobre as v1soes de Paulo Virilio, re-
2 no período juscelinista.
o metemos o leitor à leitura das obras constantes da bibliografia deste tra- 31
Os artefatos criados pelos seres humanos são, como querem
u
ra balho. alguns, quase naturais, por fazerem parte do cotidiano de suas vidas,
.e 25
u
(])
O pensamento de Giddens se reveste de maior importância hoje, tendo a mesma importância dos objetos naturais. Desse modo, não pode-
q::
quando ele se torna um dos principais ideólogos do Novo Trabalhismo mos falar de meio ambiente sem nos referirmos a esses artefatos criados
ra
u inglês, reunido sob a denominação de Terceira Via. pela ciência e pela tecnologia.
(J)
o 26
Diz Paul Virilio, em seu livro Guerra Pura (São Paulo: Brasiliense, 32
O tempo zero, há cerca de quinze bilhões de anos, é um muro
.e
iE 1984), o seguinte: "A velocidade é o lado desconhecido da política, e que constitui os denominados limites de Planck. Nesse momento, tudo o
(J)
o sempre o foi, desde o início; isso não é novo. Em política, o aspecto que o universo contém estava resumido numa "singularidade" microscó-
riqueza foi focalizado há muito tempo. Agora, foi um erro - que eu mo- pica, inimaginavelmente pequena. Uma mera centelha no vácuo, como
destamente estou tentando corrigir - esquecer que a riqueza é um aspec- nos ensinam Guitton e o casal Bogdanov, em seu Deus e a ciência/ citado
to da velocidade ... A história como extensibilidade do tempo - do tempo na bibliografia deste trabalho. Continuando a explicação sobre esses limi-
que dura, que é fragmentado, organizado, desenvolvido - está desapare- tes, os autores prelecionam: "Efetivamente, os físicos não têm a menor
cendo em prol do instante; como se o fim da História fosse o fim da idéia daquilo que poderia explicar o aparecimento do universo. Podem
duração em prol da instantaneidade e, evidentemente, da ubiqüidade ... retroceder até 10-43 segundos, mas não passam daí. Esbarram então no
Tal instantaneidade está ligada ao centro, e o centro é o poder nuclear" famoso 'limite de Planck', assim chamado porque o célebre físico alemão
(pp. 49-52). foi o primeiro a assinalar que a ciência era incapaz de explicar o compor-
27
Sobre essas questões, vale a pena trazermos um texto de Paul tamento dos átomos em condições em que a força da gravidade se torna
Virilio, constante de seu trabalho A arte do moto0 citado na bibliografia extrema. No minúsculo universo inicial, a gravidade ainda não se exerce
deste trabalho: "Que pode restar além do absurdo e da derrisão em uma sobre nenhum planeta, nenhuma estrela ou galáxia; no entanto, essa
ociosidade encoberta por ocupações inúteis mas, sobretudo, o que resta força já está ali, interagindo com as partículas elementares submetidas
da razão sã que era a arte de produzir uma razão e controlar a espera às forças eletromagnética e nuclear. É precisamente isso o que nos impe-
pelo que chega, uma vez que produzir velocidade é justamente suprimir a de de saber o que se passou antes de 10-43 segundos: a gravidade ergue
espera e a duração? Ao deslocar a alma, desta vez do cérebro para o uma barreira intransponível a toda investigação; além do 'limite de Plan-
motor, libertar-se-á o homem de uma apreensão do futuro que não tem ck', é o mistério total" (pp.29-30). Os mesmos autores, para ainda mais
mais razão de ser, já que tudo já se encontra dado, aqui e agora, de uma destacarem essa dimensão misteriosa, louvam-se dos trabalhos de David
só vez presente e desaparecido no apocalipse instantâneo das mensa- Bohm, também constantes da bibliografia, declarando na mesma obra:
gens, das imagens, na boa brincadeira do fim de um mundo!" (p. 83). "O físico David Bohm considera que a matéria e a consciência, o tempo, o
28
A humanidade se tribaliza. Tudo o que acontece pode ser disse- espaço e o universo representam um 'marulho' ínfimo, comparado à imensa
minado para todos, se for conveniente. A transmissão de notícias em atividade do plano subjacente que, por sua vez, provém de uma fonte
tempo instantâneo, os dados enviados on fine são exemplos desse tem- eternamente criadora, situada além do espaço e do tempo" (p. 31).
po-espaço instantâneo, que caracteriza nosso modo de viver e que nos 33
O diálogo entre a ciência e a filosofia é expresso por obras como
condiciona a curiosidade, a insensibilidade e o comodismo, que se com- Física e filosofia e A imagem da natureza na física moderna/ de Werner
prazem em fruir notícias movidos por pura necessidade de fruição e pra- Heisenberg, e Física atômica e conhecimento humano/ de Niels Bohr, to-
zer passageiro. Por outro lado, o tempo-espaço instantâneo é a mais das constantes da bibliografia deste trabalho. Heisenberg, em sua primei-
sofisticada manifestação dessa velocidade que perpassa militarmente toda ra obra, trata de questões como o desenvolvimento das idéias filosóficas
a nossa vida, pois está a serviço da obtenção de informações, da interfe- após Descartes, em comparação com a nova situação da teoria quântica,
rência econômica em mercados e bolsas, em antecipações estratégicas linguagem e realidade na física moderna e o papel da física moderna na
nos conflitos cotidianos que se desenvolvem no mundo, urdindo hegemo- evolução atual do pensamento humano, dentre outras. O mesmo autor,
nias e mantendo relações assimétricas de poder. na segunda obra indicada, trata de temas como a imagem da natureza na

332
(/)
;;o
~ o
.3o.. c:r
física moderna, física atômica e lei causal, relações entre a cultura huma- 37
Quando Maturana trata da autopoiesis, assim preleciona em seu CD
;:::i.
2 nística, ciência e ocidente, o início das ciências naturais modernas, o nas- livro A ontologia da realidade, citado na bibliografia: "Há uma classe de o
Q)
cimento da imagem mec;:anicista e materialista do universo e a crise da ;i>
.~
sistemas dinâmicos que são realizados, como unidades, como rede de
u concepção mecanístico-materialista. Bohr, no trabalho indicado, trata de ?O
e produções (e desintegrações) de componentes que: a) participam recur- o_
<Q)
e temas como luz e vida, filosofia natural e culturas humanas, além de um sivamente, através de suas interações, da realização da rede de produ- CD
~ debate com Einstein sobre problemas epistemológicos na física atômica, )>
Q)
o..
ções (e desintegrações) dos componentes que os produzem; e b) reali- tO
e
a unidade do conhecimento, os átomos e o conhecimento humano e a zando suas fronteiras, constituem essa rede de produções (e desintegra- (lJ

o '
o.. ciência física e o problema da vida. No mesmo sentido é o trabalho de ções) de componentes como uma unidade no espaço que eles especifi-
E
2 Wolfgang Pauli, também citado, sob o título Escritos sobre ffslca y ftloso- cam e no qual eles existem. Francisco Varela e eu chamamos tais siste-
o fla, no qual encontramos temas como o significado filosófico de la idea de mas de sistemas autopoiétlcos, e sua organização de organização auto-
"D
ílJ complementaridad, ciencia y pensamiento occidental, ideas dei inconsci- poiétlca (Maturana e Varela, 1972). Um sistema autopoiético que existe
J::
u
Q)
ente desde el punto de vista de la ciencia natural y de la epistemologia e no espaço físico é um sistema vivo (ou, mais precisamente, o espaço
q::
la influencia de las ideas arquetípicas en las teorías científicas de Kepler, físico é o espaço que os componentes dos sistemas vivos especificam e
ílJ
"D
para citar alguns deles. no qual eles existem [Maturana, 1975] ), p.134. Wolfgang Pauli, na obra
(/)
o 34
Exemplo notável dessa prática transdisciplinar está no trabalho
J:: citada, p. 46, assim se manifesta sobre a questão: "En microfísica, sin
li= de Basarab Nicolescu, sob o título Ciência,. sentido e evolução: a cosmo- embargo, cada observación es una interferencia de extensión indetermi-
(/)
o logia de Jacob Boehme, citado na bibliografia, no qual o autor procura nable tanto com los instrumentos de observación como con el sistema
estabelecer diálogo a partir de uma base comum entre ele, um físico observado, e interrumpe la conexión causal entre fenómenos preceden-
contemporâneo e Jacob Boehme, um visionário renascentista, como lem- tes y subsiguientes a la misma. La interacción indeterminable entre ob-
bra Joscelyn Godwin no prefácio à obra. Sobre esse diálogo, preleciona servador y sistema observado en cada medida hace impossible !levar a
o autor: "Como o físico moderno, Jacob Boehme é perseguido pela idéia buen término la concepción determinista de los fenómenos postulada en
da invariança dos processos cósmicos e pela paradoxal coexistência de la física clásica".
unidade e diversidade. Tudo é movimento, em criação e aniquilação con- 38
As diversas abordagens da questão dos sistemas sempre têm
tínuas, numa gênese perpétua em que nada é estável e permanente. como fundamento uma unidade dinâmica formada de elementos diferen-
Porém, esse movimento não é caótico, anárquico; é estruturado e orga- tes mas interligados, que, pela natureza de suas relações, ou levam o
nizado, em função de uma ordem cuja natureza é certamente complexa sistema a se aperfeiçoar, ou o direcionam para seu desaparecimento. O
e sutil, e no entanto perceptível. Como Boehme nos diz incessantemen- Vocabulário técnico e crítico da filosofia, de Lalande, v. II, p. 508, citado
te: 'mesmo Deus é engendrado por esse movimento; Ele nasce não no na bibliografia, assim considera sistema: "Conjunto de elementos, mate-
Mundo, mas com o Mundo"'. E continua Nicolescu: "A ausência de um riais ou não, que dependem reciprocamente uns dos outros de maneira a
sistema de valores adaptado à complexidade do mundo moderno pode formar um todo organizado". Esse entendimento pode ser mais comple-
conduzir-nos à destruição de toda a nossa espécie. A formulação de xo, se a ele aditarmos o conceito de autopoiesis.
uma nova Filosofia da Natureza parece-me, nesse contexto, de imediata 39
A dialética da complementaridade será tratada mais adiante nes-
urgência. Jacob Boehme está entre nós nessa busca: ele é nosso con- te trabalho.
temporâneo" (p. 34). 40
Igor Bogdanov, comentando Prigogine em sua obra Deus e a
35
Para Marx, o conhecimento estava ligado à questão da consciên- Ciência, elaborada com Jean Guitton, citada na bibliografia, declara: "Na
cia. Ele estabeleceu, desde o início, uma distinção entre a situação obje- origem de suas pesquisas encontra-se uma idéia muito simples: a desor-
tiva de uma classe e a consciência subjetiva dessa situação, isto é, entre dem não é um estado 'natural' da matéria, mas, ao contrário, um estado
a condição de classe e a consciência de classe ... A consciência de esta- que precede a emergência de uma ordem mais elevada" (p. 44). Seu
mento é fundamentalmente diferente da consciência de classe. Pertencer ponto de partida foi a experiência de Bénard com os líquidos, o que sus-
a um estamento é uma norma hereditária, claramente evidente a partir citou a pergunta de Guitton, na mesma obra: "Não haveria, na origem da
dos direitos e privilégios que encerra, ou da exclusão de tais direitos e vida, no seio do caldo primitivo, um fenômeno de auto-estruturação com-
privilégios. Pertencer a uma classe, porém, depende de conhecer sua parável àquele que se observa na água aquecida?" (p. 45). Para Prigogi-
própria posição dentro do processo de produção. Por isso, muitas vezes ne, no dizer de Bogdanov, "o que é possível na dinâmica dos líquidos
essa condição permanece escondida por uma orientação nostálgica volta- também deve sê-lo na química ou na biologia. Para melhor compreender
da para o velho sistema de estamentos, em particular no caso das 'cama- seu raciocínio, é preciso reconstituir suas principais etapas. Para come-
das intermediárias' burguesas, pequeno-burguesas e camponesas (Tom çar, é inevitável constatar que as coisas que se encontram à nossa volta
Bottomore. Op.cit. p. 76). se comportam como sistemas abertos,. o que quer dizer que trocam perpe-
36
Vide nota n. o 16 deste trabalho. tuamente matéria, energia e - o que é mais importante - Informação com

334 335
Ul
~
.3o.. seu meio. Em outras palavras, esses sistemas em movimento perpétuo va- Depois, 'alguma coisa' vai acontecer. O quê? Não sei. Um suspiro
2 riam regularmente no tempo e devem ser considerados como flutuantes. de Nada. Talvez uma espécie de acidente do nada, uma flutuação do
(lJ
Ora, essas flutuações podem ser tão importantes que a organização em que vácuo: em um instante fantástico, o Criador, consciente de ser aquele que
ro

e
se. baseiam se torna incapaz de tolerá-las sem se transformar. A partir desse É na Totalidade do nada, decide criar um espelho para sua própria exis-
<(lJ
e patamar crítico, há duas soluções possíveis, descritas em detalhes por Prigo- tência. A matéria, o universo: reflexos de sua consciência, ruptura defini-
:e
(lJ
gine: ou o sistema é destruído pela amplitude das flutuações, ou chega a tiva com a bela harmonia do nada original. Deus, de certo modo, acaba
o..
uma nova ordem interna, caracterifada por um nível superior de organiza- de criar uma imagem de si mesmo.
o
o.. ção. Estamos no âmago da descoberta de Prigogine: a vida repousa sobre Foi assim que tudo começou? Talvez a ciência nunca vá dizê-lo
E
2 estruturas dinâmicas, a que ele chama de 'estruturas dissipativas', cujo pa- diretamente; mas, em seu silêncio, ela pode servir de guia para as nos-
o pel consiste precisamente em dissipar o influxo de energia, de matéria e de sas intuições" (pp. 33-34).
-o
ro informação responsável por uma flutuação (pp.45-46). 43 A experiência divina do sublime e do terrível está expressa na
..e 41
u
(j)
Sobre o denominado Segundo Princípio da Termodinâmica, Ilya obra de Jung, Resposta a Já, citada na bibliografia. Ele inicia esse trabalho
<;::
ro
Prigogine e Isabelle Stengers, em seu trabalho A nova aliança, citado na dizendo: "O Livro de Jó constitui um dos marcos miliários que assinalam a
-o bibliografia, assim prelecionam: "Thomson executou assim o salto verti-
Ul
longa caminhada da evolução de um drama divino. Na época em que o
o ginoso da tecnologia dos motores para a cosmologia. O mundo laplaciano livro surgiu, já havia testemunhos de várias espécies: fora traçada uma
..e
te era um mundo conservativo e eterno, à imagem da máquina simples imagem contraditória de Javé, imagem de um Deus excessivo em suas
Ul
o ideal. Como a cosmologia de Thomson não é somente a imagem da nova emoções, e que sofria por causa desses excessos, um Deus que reconhe-
máquina térmica ideal, mas encarna também as conseqüências da propa- cia a cólera e o ciúme que o corroíam, o que lhe era doloroso. A percep-
gação irreversível do calor num mundo onde a energia se conserva, esse ção existia ao lado da falta de percepção, a bondade ao lado da crueldade
mundo será descrito como uma máquina no seio da qual a conversão do e a força criadora ao lado da vontade destruidora. Tudo havia nesse Deus,
calor em movimento não pode fazer-se senão à custa de um desperdício e uma coisa não impedia a outra. Semelhante estado de coisas só é con-
irreversível, de uma dissipação inútil de uma certa quantidade de calor. cebível quando não há uma consciência reflexa ou a reflexão constitui um
As diferenças produtoras de efeitos não cessam de diminuir no seio da dado real, um fator concomitante impotente e inoperante. Uma situação
natureza; o mundo, de conversão em conversão, esgota suas diferenças de tal natureza não pode ser designada senão como amoral. (p. 7)
e se dirige para o estado final definido por Fourier, o estado de equilíbrio 44 A evolução, para Teilhard de Chardin, presidida pela lei de com-

térmico ontle não subsiste mais diferença alguma que pudesse produzir plexidade-consciência, caminha da litosfera, ou esfera mineral, para a
um efeito" (p. 94). Este é o sentido original de entropia. biosfera, ou esfera da vida, e, finalmente, para a noosfera, ou esfera do
42
Guitton, na obra :itada (pp.33-34), assim trata a criação: "Mas espírito, momento em que há a emergência da consciência reflexiva e da
então: de onde vem essa colossal quantidade de energia na origem do mais alta complexidade, socialização e amorização. Para estudo desse
big bang? Tenho a intuição de que aquilo que se esconde por trás do tema, sugerimos compulsar a bibliografia deste trabalho.
'limite de Planck' é bem uma forma de energia primordial, de uma 4s A questão das lógicas se torna crucial para procurarmos dar con-

potência ilimitada. Creio que antes da Criação reina uma duração infi- ta dos fenômenos que nos são dados. Em verdade, a lógica da identidade
nita. Um Tempo Total, inesgotável, que ainda não foi aberto, dividido clássica teve um papel fundamental de sistematização do pensamento,
em passado, presente e futuro. A esse tempo, esse tempo que ainda de veritação das sentenças e proposições e da movimentação das ativi-
não foi separado numa ordem simétrica cujo duplo espelho é o presen- dades tecnológicas. Mas essa lógica necessitava entrelaçar-se com a
te, a esse tempo absoluto que não passa, corresponde a mesma ener- matemática para se constituir um contexto de validação rigoroso para as
gia, total, inesgotável. O oceano de energia ilimitada é o Criador. Se técnicas científicas. Assim, a lógica algébrica ou matemática entrou em
não podemos compreender o que se encontra atrás do limite, é porque cena, possibilitando a realização desse desejo. Tanto a lógica clássica,
todas as leis da física perdem o pé diante do mistério absoluto de Deus como a lógica matemática ou simbólica, são instrumentos dedutivos refe-
e da Criação. ridos a proposições.
Por que o universo foi criado? O que levou o Criador a engendrar o Essas linguagens artificiais dedutivas tiveram de enfrentar outra
universo tal como o conhecemos? Tentemos compreender: antes do 'tempo forma de organizar o mundo e enfrentar os fenômenos: a lógica da con-
de Planck', nada existe. Ou melhor: é o reino da Totalidade intemporal, da tradição, a dialética idealista de Hegel e a dialética materialista de Marx.
integridade perfeita, da simetria absoluta; só o princípio original está ali, os seres não se definem mais por sua identidade a si mesmos, mas pelas
no nada, força infinita, ilimitada, sem começo nem fim. Nesse 'momento' constradições que apresentam, que o movimentam no sentido de sua
primordial, essa força alucinante de poder e de solidão, de harmonia e de destruição e superação, em sínteses mais avançadas.
perfeição, talvez não tenha a intenção de criar o que quer que seja. Bas- Mas a dialética que se propunha a dar conta de problemas mais
ta-se a si mesma. complexos, como o do ser humano e o da sociedade, tem de conviver

336 7
(/)

~
.3Q_ com outra lógica que não é mais a da contradição, mas a da complemen- assim se expressa: "Vimos que no contexto 'quântico' a ordem em cada
2 taridade, que parte do pressuposto verificável de que os seres apresen- aspecto imediatamente perceptível do mundo deve ser considerada como
(IJ

(()
tam vários e concomitantes modos de se apresentar e que essas várias originária de uma ordem implicada mais abrangente, onde· todos os as-
·u naturezas não são excludentes, podendo ser tratadas cientificamente, pois pectos finalmente se fundem no indefinível e imensurável lholomovimento"
e
<(IJ
e é o olhar que dirigimos para os fenômenos que vai definir a natureza que (p. 208).
:e
(IJ
se apresentará. 50 A origem do termo atrator estranho é assim contada por Edward
Q_
46
Com o Princípio de Incerteza, de Heisenberg, cessa a possibilida- Lorenz, em sua obra A essência do caos/ constante da bibliografia: "A
oQ_
de de encararmos a matéria como determinada e como fruto de relações palestra de Ruelle era um artigo que ele e Floris Takens haviam acabado
E
2 mecânicas. Ela é uma dinâmica de vazio, informações e probabilidades. de publicar com o título Sobre a natureza da turbulência/ que, pela primei-
o Ela é muito mais "espiritual" do que o conceito condillaquiano pretendia. ra vez, continha a expressão 'atrator estranho', e que, como o tratado de
"O
(() Bogdanov, na obra citada (p. 143), comentando esse princípio, pre- Smale sobre sistemas dinâmicos, se tornou um dos artigos citados com
.e
u leciona: "Atingimos aqui uma idéia análoga ao 'princípio da incerteza', de
(IJ maior freqüência no campo do caos. No artigo eles usavam o mapeador
~

(()
Heisenberg. Nele, está implícito que nós não observamos o mundo físico: solenóide - o que produziu a Figura 42 como um exemplo ilustrativo, e
"O
(/)
participamos dele. Nossos sentidos não estão separados do que existe 'em descreviam o movimento turbulento como sendo 'caótico' (p. 168).
o si', mas estão intimamente implicados num processo complexo de feedba- 51 O descobridor do ADN, Francis Crick, afirma que um homem
.e
<;:::
(/)
ck cujo resultado final é, efetivamente, criar o que é 'em si'. Segundo a sensato, com os saberes de que dispõe hoje, teria de afirmar que a ori-
o nova física, sonhamos o mundo. Nós o sonhamos como algo durável, mis- gem da vida parece atualmente dever-se a um milagre, tantas são as
terioso, visível, onipresente no espaço e estável no tempo. Além dessa condições a reunir para viabilizá-la. Grichka Bogdanov (op. cit. p. 49),
ilusão, todas as categorias do real e do irreal se esvaem. Assim como não refletindo sobre o problema, assim preleciona: "Tomemos um caso con-
podemos mais considerar que o gato de Schrõdinger está vivo ou morto, creto: uma célula viva é composta de uns vinte aminoácidos que formam
também não podemos perceber o mundo objetivo como existente ou não uma cadeia compacta. A função desses aminoácidos depende, por sua
existente. O espírito e o mundo formam uma única e mesma realidade. vez 1 de cerca de duas mil enzimas específicas. Continuando o mesmo
47
Marie-Louise Von Franz, em seu Adivinhação e sincronicidade: a raci ocínio, os biólogos foram levados a calcular que a probabilidade de
psicologia da probabilidade significativa, constante da bibliografia, assim que um milhar de enzimas diferentes se aproximem de um modo ordena-
se manifesta sobre o tema: "Em seu estudo sobre sincronicidade, Jung do até formar uma célula viva (ao longo de uma evolução de muitos
enfatiza que, como os domínios físico e psíquico coincidem dentro do evento bilhões de anos) é da ordem de 10 elevado à milésima potência contra
sincronístico, deve existir em algum lugar, ou de algum modo, uma reali- um ( ... ) o que equivale a dizer que essa chance é nula", comenta Guitton.
dade unitária uma realidade dos domínios físico e psíquico, para a qual Mais adiante, à p. 52, continua Grishka Bogdanov:
ele usou a expressão latina unus mundus, o mundo uno, conceito que já "É preciso insistir mais uma vez: nenhuma das operações evoca-
existia na mente de alguns filósofos medievais. Esse mundo, diz Jung, das acima pode ter sido efetuada por acaso. Tomemos um exemplo, en-
não pode ser visualizado por nós e transcende, por completo, a nossa tre outros: para que a agregação dos nucleotídeos conduzisse 'por acaso'
apreensão consciente (p. 117). à elaboração de uma molécula de ARN utilizável, teria sido preciso que a
Jung, em seu trabalho Sincronicidade, citado na bibliografia, afir- natureza multiplicasse às apalpadelas as tentativas durante pelo menos
ma: "Os fenômenos sincronísticos são a prova da presença simultânea de 10 elevado à décima quinta potência anos, ou seja, durante cem mil ve-
equivalências significativas em processos heterogêneos sem ligação cau- zes mais tempo que a idade total do nosso universo. Outro exemplo: se o
sal; em outros termos, eles provam que um conteúdo percebido pelo oceano primitivo tivesse engendrado todas as variantes (isto é, todos os
observador pode ser representado, ao mesmo tempo, por um aconteci- isômeros) susceptíveis de serem elaborados 'por acaso' a partir de uma
mento exterior, sem nenhuma conexão causal. Daí se conclui: ou que a só molécula que contivesse algumas centenas de átomos, isto nos teria
psique não pode ser localizada espacialmente, ou que o espaço é psiqui- conduzido à construção de mais de 10 elevado a 80 isômeros possíveis.
camente relativo. O mesmo vale para a determinação temporal da psique Ora, o universo inteiro contém, sem dúvida, menos de 10 elevado a 80
ou a relatividade do tempo. Não é preciso enfatizar que a constelação átomos".
deste fato tem conseqüências de longo alcance" (p. 94). 52 Riane Eisler, em seu O cálice e a espada, constante da bibliogra-
48
"Ao desmaterializarem o próprio conceito de matéria, os físicos fia, resgata a questão do feminino e do direito de gênero, reinterpretando
nos ofereceram, ao mesmo tempo, a esperança de uma nova via filosófi- a história e tratando de temas como jornada a um mundo perdido: os
ca: a do meta-realismo, via de um certo além, aberta à última fusão entre primórdios da civilização; mensagens do passado: o mundo da Deusa; as
matéria, espírito e realidade" (Guitton. Op. cit. p.136). trevas como resultado do caos: do cálice à espada; lembranças de uma
49
Sobre a ordem implicada, David Bohm, em seu A totalidade e a era perdida: o legado da Deusa, dentre outros. É obra fundamental para
ordem implicada: uma nova percepção da realidade, constante da bibliografia, o entendimento da questão de gênero.

338
Ul
~
.3Cl.. 53
Ken Wilber organizou uma coletânea de ensaios sob o título O tensões sociais e culturais; somos espectadores e atores, não mais dis-
2 paradigma holográfico e outros paradoxos, citado na bibliografia. Em sua tanciados do objeto, mas constituindo o mundo que se perfaz pelas inte-
(lJ
p. 11 há uma síntese apertada do que significa essa teoria emergente dos rações e elaborando uma ciência que é sempre humana, ciência feita por
ílJ
"ü pensamentos do neurocientista Karl Pribam e do físico David Bohm: "A homens, que ocupa a posição singular de escuta poética da natureza, no
e
<(!J
e teoria, num resumo: Nossos cérebros constroem matematicamente a re- sentido etimológico de que o poeta é um fabricante; a admissão da natu-
~ alidade 'concreta/ interpretando freqüências provenientes de outra dimen- reza turbulenta da qual fazemos parte como companheiros e partícipes, e
(lJ
Cl..
são/ um domínio de realidade primária/ significativa e padronizada/ que não como estranhos; uma ciência aberta, sem dogmatismos, admitindo a
o
o. transcende tempo e espaço. O cérebro é um holograma interpretando um morte e o ressurgimento de problemas em outras instâncias, no decorrer
E
2 universo holográfico/~ A síntese dessa visão está na já citada obra de da história das ciências; a interrogação científica que tematiza a própria
o
"O
Bohm, A totalidade e a ordem implicada. ciência; a metamorfose da natureza, que corresponde à metamorfose da
54
ro A fugitiva. Trad. De Carlos Drummond de Andrade, apud Paulo própria ciência, o que não significa ruptura, mas diálogo com os saberes
..e
u Ronai. Dicionário universal Nova Fronteira de citações. Rio de Janeiro: e práticas antigos. pp. 203-226.
(lJ
4::
ílJ
Nova Fronteira, 1985, p. 626. 62
Jean Guitton et alli. Op.cit. p. 75.
"O 55
Op.cit. p. 626. 63
Vide nota n. 0 32.
Ul
o 56
Jean Guitton et alii. Op.cit. pp.33-34. 64
Jean Guitton et alii. Op.cit. pp. 52-53 .
..e
<;::
Ul
57
"Quantum de ação", mais conhecido como Constante de Planck = 65
Idem. p. 55.
o 6,625 X 11-34, representa a menor quantidade de energia em nosso mundo 66
São denominados objetos quase naturais os artefatos humanos
físico. Comprimento de Planck - menor intervalo possível entre dois obje- que fazem parte do meio ambiente como necessários e fundamentais
tos aparentemente separados. Tempo de Planck - menor unidade de tempo para o cotidiano dos seres humanos. Desse modo, o meio ambiente pas-
possível. Para além do limite de Planck, é o mistério. É interessante con- sa a ser natural e cultural. Um exemplo de objeto quase natural é a luz
siderar que o ser humano tem como papel o desvelamento do universo, elétrica.
função reservada a ele pelo próprio evolver cósmico. Mas também é ver- 67
O sentido originário de religião estava na busca de uma religação
dade que nem todo o desvelamento pode ser procedido por esse ser, ern com o cosmos, com a divindade. Os ritos, sacrifícios e cerimônias tinham
virtude dos limites de sua condição. Logo, nesse universo tão rico, há o intuito de relacionamento com os deuses, de busca de elos do ser hu-
grande probabilidade de existirem outros níveis ou dimensões de seres mano com suas origens. Na medida em que ele se exila crescentemente
que desempenhem esse papel de modo mais ou menos profundo e com- do cosmos, o que significa exilar-se de si mesmo, as religiões vão se
plexo. tornando apenas pautas morais punitivas ou premiadoras.
58 68
O acaso e a necessidade, de Jacques Monod, também citado na Substância individual de natureza racional.
bibliografia, é o trabalho que melhor espelha o exílio do ser humano em 69 Para Antonio Gramsci (1891-1937), a revolução socialista só po-

relação ao cosmos. A abertura de seu texto vai traduzir bem essa obser- deria ser possível na Itália, por via "de um movimento nacional-popular e
vação: "Entre as ciências, a biologia ocupa um lugar ao mesmo tempo una aliança entre a classe operária e o campesinato. Não aceitava a idéia
marginal e central. Marginal, no sentido em que o mundo vivo constitui ortodoxa de que a revolução só se daria com o pleno desenvolvimento
apenas parte ínfima e bastante 'especial' do universo conhecido, de sorte das forças capitalistas de produção. Para ele, a transformação socialista
que o estudo dos seres vivos parece que jamais deve revelar leis gerais, da sociedade define-se, em toda a sua obra, como expansão do controle
aplicáveis fora da biosfera. Mas, se a ambição última de toda ciência é, democrático pelas massas ... O único meio de destruir a velha sociedade e
como penso, a de elucidar a relação do homem com o universo, então sustentar o poder da classe trabalhadora era começar por construir uma
devemos reconhecer à biologia um lugar central, pois ela é, entre todas nova ordem. Desse modo, as raízes do conceito de hegemonia, de Gra-
as disciplinas, a que tenta penetrar mais diretamente no cerne dos pro- msci, podem ser encontradas nesse período" (Tom Bottomore. Op. cit.
blemas que devem ser resolvidos antes mesmo que possa ser colocado o pp.165-167), e o conceito de bloco histórico e suas reflexões sobre o
da 'natureza humana' em termos diferentes dos da metafísica". papel dos intelectuais e os problemas do socialismo na Europa, além de
59
Jacques Monod. Op. cit. p. 54. seu enfrentamento ao fascismo, que o forçou a escrever grande parte de
60
Idem. p. 37. sua obra no cárcere, vindo a falecer logo após sua libertação, procedida
61
A nova aliança, título da obra de Ilya Prigogine, constante de por conveniência, já que ele estava gravemente doente. Trabalhos como
nossa bibliografia, caracteriza essa nova visão de ciência, essa nova ali- Os intelectuais e a organização da cultura/ Maquiavel/ a política e o estado
ança, pelas seguintes marcas: o reencantamento do mundo, o que signi- moderno e Cartas do cárcere, publicados no Bràsil peía Civilização Brasi-
fica o fim da tentação de qualquer onisciência; o tempo reencontrado, isto leira, são obras que demonstram a riqueza de seu pensamento e a ampli-
é, a admissão da multiplicidade dos tempos em oposição a uma história tude dos termas tratados. Gramsci foi talvez o mais atuante dos intelectu-
da ciência que nega o tempo e foi, como ressalta o autor, uma história de ais orgânicos, categoria teórica que ele mesmo criou. Nikos Poulantzas foi
;;a
o
rr
um pensador socialista que se insurgiu contra o dogmatismo e a ortodo- 75 Erich Fromm teve um papel importante no desvelamento das re- CD
;::i.
o
xia do marxismo oficial, assestando precisas críticas contra o stalinismo, lações na sociedade capitalista, além de desenvolver uma releitura do
apesar das diferenças intransponíveis entre vários anti-stalinistas. Esse
!>
QJ marxismo a partir de uma aproximação com Freud. Seus trabalhos, como
<O !1
'ü autor também desenvolveu consistente trabalho de crítica ao economicis- Meu encontro com Marx e Freud; O conceito marxista do homem; Psica- Q_
e CD
<QJ
e
mo e ao historicismo, duas vertentes interpretativas do marxismo. De- nálise da sociedade contemporânea e O medo à liberdade, dentre outros,
)>
~ senvolve uma interpretação própria do Estado capitalista e da luta de são importantes contribuições para essa leitura intertextual entre o mar- l.O
QJ
Q_

oQ_
classes. Principalmente em seu Poder político e classes sociais, editado
em São Paulo pela Martins Fontes, em 1977, uma de suas significativas
xismo e a psicanálise, tarefa que será também desenvolvida por Marcu-
se. As temáticas de Fromm: a ciência do homem, a concepção de univer-
.
e
õi'

E obras. Rudolf Bahro também desenvolveu importante crítica ao socialis- so, o homem universal e singular, a teoria do caráter, o homem produtivo
2
o mo oficial, ou real, como ele o chama, em sua obra A alternativa para reexaminado, o prazer e a felicidade, a sociedade enferma, a condição
-o
<O
uma crítica do socialismo real, no Brasil editada pela Paz e Terra, em moderna, a alienação, o desajuste, o socialismo comunitário e a organi-
.J::
u 1980. zação do trabalho, aspectos tratados no livro intitulado O mundo de Erich
QJ
4= 70 Vide nota n. 0 41. Fromm, de John H. Schaar, editado em 1965 pela encerrada Zahar Edito-
<O
-o 11 Os trabalhos de Jacobson voltados para a semiótica identificaram res.
(/)
o as outras formas de se organizar o mundo, como a da similaridade e a da 76
Prigogine, em A nova aliança, assim trata a questão, na p. 144:
.J::
li:: contigüidade, que apareciam nos textos literários, isto é, o mundo era "No fim do século XIX, a irreversibilidade era associada aos fenômenos
(/)
o organizado em categorias de seres ou coisas que fossem semelhantes ou de fricção, de viscosidade e de aquecimento; estava na origem das per-
estivessem perto. Lévy Strauss vai estender esse modo de ver a episte- das e do esbanjamento de energia contra os quais os engenheiros luta-
me para as sociedades indígenas, para o que ele chamou Pensamento vam; podia ser sustentada a ficção de que não se tratava de um fenôme-
selvagem, título de um de seus muitos e importantes trabalhos. Os indí- no secundário, ligado à imperícia das nossas manipulações, à rudeza das
genas também organizavam seu mundo por esses dois eixos, e não como nossas máquinas, e de que, fundamentalmente, a natureza era reversível
os ocidentais, que o apreendem segundo os eixos da indutividade e da como pretendia a dinâmica. Mas essa ficção torna-se doravante insusten-
dedutividade, conforme a concepção cartesiana. tável: os processos irreversíveis desempenham um papel construtivo; os
n As linguagens indicativas ou demonstrativas são consideradas processos da natureza complexa e ativa, nossa própria vida, só são pos-
pela lógica como linguagens aléticas, isto é, que admitem a atribuição de síveis por serem mantidos longe do equilíbrio pelos fluxos incessantes
verdade ou de falsidade a suas asserções. que os nutrem".
n O ramo de ouro é um trabalho paradigmático da antropologia 77 Em sua obra Ter cuidado, constante da bibliografia, Leonardo

positivista inglesa. Nele, os mitos são estudados com riqueza de detalhes Boff trabalha com a necessidade de substituição da razão neutral e instru-
e significações, o que o torna uma obra-prima. Mas seu modelo fundante mental pela razão cordial, a razão da compaixão, a razão que é instru-
ainda é o da evolução do primitivo para o avançado, do ontem fetichista mento de cuidado e respeito.
78
para o hoje positivista e científico. Ilya Prigogine, em seu trabalho O fim das certezas: tempo, caos
74 Com a emergência da Primeira Revolução Industrial, outros tipos e as leis da natureza, citado na bibliografia, assim entende a questão da
de controle devem ser exercidos sobre os seres humanos, sobre os de- temporalidade em sua concepção de universo: "Como acabamos de ver,
nominados trabalhadores livres, que vendiam sua força de trabalho para os processos irreversíveis descrevem propriedades fundamentais da na-
seus patrões e se dirigiam para seus empregos sem nenhuma ferramenta tureza. Eles nos permitem compreender a formação de estruturas dissi-
ou instrumento de trabalho que fossem seus. Assim, o pressuposto era o pativas de não-equilíbrio. Esses processos não seriam possíveis num mun-
de considerá-los perigosos, pelo potencial de desorganização produtiva do regido pelas leis reversíveis da mecânica clássica ou quântica. As es-
que carregavam, seja pela possibilidade de greve, furto de insumos, des- truturas dissipativas exigem a introdução de uma flecha do tempo. É im-
vio de produtos ou danificação de máquinas. Essa nova realidade gerou o possível compreender o aparecimento delas por aproximações que intro-
aparecimento das ciências humanas, originariamente ciências de contro- duziríamos em leis reversíveis em relação ao tempo" (p. 77). No mesmo
le, a figura dos peritos que foram os precursores desses novos saberes, a trabalho, acrescenta: "A irreversibilidade não aparece mais apenas em
aplicação de penas privativas da liberdade, o panopticismo das prisões, fenômenos tão simples. Ela está na base de um sem-número de fenôme-
hospitais, escolas e fábricas, e o disciplinamento dos corpos para supor- nos novos, como a formação dos turbilhões, das oscilações químicas ou
tarem a tortura dos trabalhos repetitivos nas linhas de montagem. Isso da radiação a laser. Todos esses fenômenos ilustram o papel construtivo
tudo caracteriza a sociedade de controle, termo que Foucault usa para fundamental da flecha do tempo. A irreversibilidade não pode mais ser
reunir esses novos fenômenos de poder que aparecem no século XIX. identificada como uma mera aparência que desapareceria se tivéssemos
Vigiar e punir; A verdade e as formas jurídicas e Microfísica do poder são acesso a um conhecimento perfeito. Ela é condição essencial de compor-
algumas das obras desse autor que tratam do tema. tamentos coerentes em populações de bilhões de moléculas. Segundo
lfl ;;o
e: o
o-
.ao.. uma frase que gosto de repetir: a matéria é cega ao equilíbrio ali onde a ro
;::::).
2 flecha do tempo não se manifesta; mas quando esta se manifesta, longe o
(])
do equilíbrio, a matéria começa a ver! Sem a coerência dos processos '!>
ro ?l:l

e
irreversíveis de não-equilíbrio, o aparecimento da vida na Terra seria o..
<(])
e inconcebível. A tese de que a flecha do tempo é apenas fenomenológica CD
)>
~ torna-se absurda. Não somos nós que geramos a flecha do tempo. Muito l..O
(])
o..
o
o..
pelo contrário, somos seus filhos" (pp. 11-12).
79
Os trabalhos de Noam Chomsky são de dupla importância: no
.
e
n;·

E
2 campo da lingüística, promoveram vários avanços para a compreensão
o
-o
desse fenômeno; do lado social, cidadão e político, está escrevendo vasta ABBAGNANO, Nicola. Dicionário defilosefia. São Paulo: Mestre
obra de análise e crítica ao padrão ocidental de relações sociais, políticas
flJ
..e Jou, 1982.
u
(])
e econômicas, centrando sbla análise nos Estados Unidos.
<e
so Augusto de Franco em O complexo de Darth Vader, analisando o ABRAHAM, Ralph, MC et alli. CaoSy criatividade
ro
-o padrão sumeriano, assim preleciona, à p. 75: "O que permanece para nós
lfl eo retorno do sagrado: triálogos nas fronteiras do ocidente. São Pau-
o como algo definitivamente desconcertante e, ao mesmo tempo, revela-
..e
{E
dor, é o fato de ter sido ensaiado na Suméria, pelo menos entre 3.800 e lo : Cultrix/Pensamento, 1994.
lfl
o 1.800 a.e. (para ficarmos dentro dos limites do tempo histórico), um modelo ADORNO, Theodor W., HORKJ-IEIMER, Max. Dialética does-
social patriarcal, sacerdotal-militar e monárquico, de cuja gênese não se
tem nenhum tipo de informação". clarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro : Jorge
Zahar Editor, 1985.
ANDERSON, Perry. Los fines de la historia. 2. ed. Barcelona :
Editorial Anagrama, 1997.
_ _ . O fim da história: de Hegel a Fukuiama. Rio de Janeiro :
Jorge Zahar Editor, 1992.
APEL, Karl-Otto. Estudos de moral moderna. Petrópolis, RJ : Vozes,
1994.
ARENDT, Hannah. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar.
Rio de Janeiro : Relume Dumará, 1992.
Henri. Entre o cristal e afumaça: ensaio sobre a organiza-
ção do ser vivo. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1992.
AUDO UZE, Jean, CASSÉ, Michel et alli. Conversas sobre o invisível:
especulações sobre o universo. São Paulo : Brasiliense, 1991.
BACHELARD, Gaston. O direito de sonhar. São Paulo: Difel, 1985.
__ dialética da duração. São Paulo : Ática, 1994.
_ _ .A epistemologia. Lisboa : Edições 1984.
BALANDIER, Georges. A desordem:dogio do movimento. Rio
de Janeiro : Bertrand Brasil, 1997.
_ _ .O dédalo: para finalizar o século Rio de Janeiro: Ber-
trand Brasil, 1999.
({) ;:o
~ o
O"
-3Q. CD

2
BARRAL, I. Éléments du bâti scientifique teilhardien. Monaco : Física atômica e conhecimento humano. ri-
o
OJ Éditions du Rocher, 1964. Contraponto, 1995. "?'
(IJ
'ü !1
e
<OJ
BARROW,John D. Teorias de tudo: a busca da explicação final. Rio Dênis O novo paradigma Q.
CD
e
t'.OJ de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1994. holístico: ciência, filosofia, arte e mística. São Paulo : Sum- )>
lO
e
Q.

o
_ _ .A origem do universo. Rio de Janeiro: Rocco, 1995. mus, 1991.
Q.
E BASAGLIA, Franco, OLGA. Los crimenes de la paz. México : Siglo BROCKMAN,John. Einstein) Gertrude Stein) Wittgenstein eFrankens-
2
o
"O
XXI, 1981. tein: reinventando o universo. São Paulo : Companhia das
(IJ
.e
u BATESON, Gregory. Mente e natureza: a unidade necessária. Rio Letras, 1988 .
OJ
4:::
(IJ
de Janeiro: Francisco Alves, 1986. BRONOWSI<l,Jacob. O olho visionário. Brasília: Editora Univer-
"O
({)
o BAUD RILLARD, Jean. A transparência do mal: ensaio sobre fe- sidade de Brasília, 1998.
.e
<;:::
({)
nômenos extremos. Campinas : Papirus, 1990. _ _ . As origens do conhecimento e da imaginação. Brasília: Editora
o
BAUMAN, Zygmunt. Ética pós-moderna. São Paulo: Paulus, 1997. Universidade de Brasília, 1985.
_ _ . Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro : BROWN, Norman O. Vida contra morte. Petrópolis, RJ: Vozes,
Jorge Zahar Editor, 1999. 1972.
_ _ . O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Martin. Eu e tu. São Paulo : Editora Moraes, s.d.
Editor, 1998. BURT, Edwin A. As bases metafisicas da ciência moderna. Brasília:
BERLINGUER, Giovanni.Questões de vida: ética, ciência e saúde. Editora Universidade de Brasília, 1991.
São Paulo : Hucitec, 1993. CALDER, Nigel. O universo de Einstein. Brasília: Editora Univer-
BLOCH, Ernst Lepnncipe espérance. Paris: Gallimard, 1991. t. 1, Ia III. sidade de Brasília, 1994.
BOBBIO, Norberto, BOSSETTI, Giancarlo et alli. La isquierda en CAPRA, Fritjof. A teia da vida. São Paulo : Cultrix, 1997.
la era dei karaoke. Buenos Aires : Pondo de Cultura Econó- _ _.O ponto de mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emer-
mica, 1997. gente. São Paulo : Cultrix, 1988.
BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda. São Paulo : Editora da _ _ .Pertencendo ao universo: explorações nas fronteiras da ciência
Universidade Estadual Paulista, 1995. e da espiritualidade. São Paulo : Cultrix, 1993.
BOÉTIE, Etienne. Discurso da servidão voluntária. São Paulo: _ _ . S abedon·a incomum. São Paulo : Cultrix, 1990.
Brasiliense, 1986. CASTELS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo : e Terra,
BO FF, Leonardo. Saber cuidar. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. 1999.
_ _. Pnncipio-terra: a volta à terra como pátria comum. São Paulo : ciência eo
Editora Ática, 1995. imaginán·o. Brasília : Editora Universidade de Brasília, 1994.
_ _ .Ética da vida. Brasília: Letraviva, 1999. CHARDIN, Pierre Teilhard de. O fenômeno humano. São Paulo :
_ _ .Nova era: a civilização planetária. São Paulo: Ática, 1994. Cultrix, 1989.
BOHM, David. A totalidade e a ordem implicada: uma nova _ _ . L'énergie humaine. Paris : Éditions du Seuil, 1962.
percepção da realidade. São Paulo : Cultrix, 1992. _ _ . L'activation de l'énergie. Paris : Éditions du Seuil, 1963.
(f)

~ ;;o
o
.3o. _ _. L'apparition de l'homme. Paris : Éditions du Seuil, 19 56 . o-
ro
2
Sobre el tiempo. Madrid : Pondo de Cultura ;::i.
o
QJ _ _ .La vision du passé. Paris: Éditions du Seuil, 1957. nómica, 1989. "!>
ro

e _ _ .Laplace de !'homme dans la nature. Paris: Éditions dus Seuil, ENCICLOPÉDIA 18. NATUREZA, ?=1
o.
<QJ
e ro
~ 1956. CO /EXOTÉRICO. Lisboa: Imprensa Nacional- Casa da )>
QJ lD
o. e
o
o.
_ _ . L'avenirde l'homme. Paris: Éditions du Seuil, 1959. Moeda, 1990. ..
QJ

E CLASTRES, Pierre. Arqueologia da violência. São Paulo : Brasilien- _ _. 29 TEMPO/TEMPORALIDADE. Lisboa: Imprensa
2
o
-o
se, 1982. Nacional- Casa da Moeda, 1993.
ro
..e
u
_ _ . A sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro: Francisco Al- EZCURRA, Ana María. Qué es el neoliberalismo? Buenos Aires :
QJ
q::
ro
ves, 1984. Lugar Editorial, 1998.
-o
(f)
o
COMBLIN,José. Vocação para a liberdade. São Paulo: Paulus, 1998. FEATHERSTONE, Mike (org.). Cultura global: nacionalismo,
..e
t;:: _ _ . Cristãos rumo ao século XXI. São Paulo : Paulus, 1996. globalização e modernidade. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1994.
(f)
o DAMÁSIO, Antonio R. O erro de Descartes: emoção, razão e o FERGUSON, Marilin. A conspiração aquariana: transformações
cérebro humano. São Paulo : Companhia das Letras, 1996. pessoais e sociais nos anos 80. Rio de Janeiro : Record, 1994.
DAVIES, Paul. O enigma do tempo: a revolução iniciada por Eins- FERRIS, Timothy. O despertar na Via Láctea. Rio de Janeiro : Cam-
tein. Rio de Janeiro : Ediouro, 1999. pus, 1990.
_ _ . Deus e a nova ftsica. Lisboa : Edições 70, 1988. FINK.IELI<RAUT, Alain. A derrota do pensamento. Rio de Janeiro
DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. O que é aftlosefia? Rio de : Paz e Terra, 1988.
Janeiro : Editora 34, 1992. Viviane. O horror econômico. São Paulo : Editora
DRUCKER, Peter. Sociedadepós-capitalista. São Paulo: Pioneira, 1993. da Universidade Estadual Paulista, 1997.
ECO, Humberto. Kant e o ornitorrinco. Rio de Janeiro : Record, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro : Graal,
1998. 1979.
EDINGER, Edward F. criação da consciência: o mito de Jung _ _ . Vigiar epunir. Petrópolis, RJ: Vozes, 1977.
para o homem moderno. São Paulo: Cultrix, 1988. _ _ .As palavras e as coisas. Lisboa: Portugalia Editora, s. d.
_ _ . Ego e arquétipo. São Paulo : Cultrix, 1992. Augusto de. O complexo de Darth Vader. Brasília:
_ _ . O encontro com o se!f. um comentário junguiano sobre as llenium, 1998.
"ilustrações do Livro de Jó" de William Blake. São _ _ . A nova geração. São Paulo : Thomé das Letras, 1990.
Cultrix. 1991. _ _ .Ação local: a nova política da contemporaneidade. Brasília
EHRENFELD, David. Arrogância do humanismo. Rio de Janeiro : : Instituto Política/FASE/ÁGORA, 1995.
Campus, 1992. Marie-Louis e. Adivinhação e sincronicidade: a
EISLER, Riane. O cálice e a espada: nossa história, nosso futuro. cologia da probabilidade significativa. São Paulo : Cultrix,
Rio de Janeiro: Imago, 1989. 1987.
ELIADE, Mircea. O sagrado e oprofano: a essência das religiões. A obra do artista: uma visão holística do universo.
Lisboa: Edição "Livros do Brasil", s.d. São Paulo : Editora Ática, 1995.

348
Ul
~
.3o. FRO MM, Erich. O coração do homem. Rio de Janeiro : Zahar Edi- HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo : Edições Loyo-
2
GJ tores, 1977. la, 1992.
ílJ
'Li
e
FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS INSTITUTO DO- HEIDEGGER, Martin. Introdução à metajfsica. Rio de Janeiro:
<GJ
e
t'.GJ CUMENTAÇÃO. Dicionário de ciências sociais. Rio de Janeiro Tempo Brasileiro, 1966.
o.
: FGV, 1986. HEISENBERG, Werner. A imagem da natureza na física moderna.
o
o.
E GALBRAITH,John Kenneth. A sociedade justa. Rio de Janeiro: Lisboa : Edição "Livros do Brasil", s. d.
2
o
"'O
Campus, 1996. _ _ . Física efilosofia. Brasília : Editora Universidade de Brasília,
ílJ
..e GARDNER, Martin. El universo ambidiestro: simetrías y asimetrí- 1987.
u
GJ
;:;:: as en el cosmos. Barcelona: Editorial Labor, 1993. HENDERSON, Hazel. Transcendendo a economia. São Paulo : Cul-
ílJ
"'O
Ul
GAY, Peter. O cultivo do ódio: a experiência burguesa da rainha trix, 1995.
o
..e
li= Vitória a Freud. São Paulo : Companhia das Letras, 199 5. HIRSCHMAN, Albert. O. A retórica da intransigência. São Paulo :
Ul
o GELL-MANN, Murray. O quark e ojaguar. as aventuras no sim- Companhia das Letras, 1992.
ples e no complexo. Rio de Janeiro : Rocco, 1996. HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX, 1914-
G LEI CK, James. Caos: a criação de uma nova ciência. Rio de 1991. São Paulo : Companhia das Letras, 1995.
Janeiro : Campus, 1990. H OLLANDA, Heloísa Buarque de. (organização). Pós-moder-
GOSWAMI, Amit. O universo autoconsciente: como a consciência nismo epolítica. Rio de Janeiro : Rocco, 1991.
cria o mundo material. Rio de Janeiro : Record : Rosa dos HORGAN,John. O fim da ciência: uma discussão sobre os limites
Ventos, 1998. do conhecimento científico. São Paulo : Companhia das Le-
GOULD, Stephen Jay. Seta do tempo) ciclo do tempo. São Paulo : tras, 1998.
Companhia das Letras, 1991. HÜBNER, Kurt. Crítica da razão científica. Lisboa: Edições 70,
GROF Christina STANISLAV. A temnestuosa busca do ser. São 1993.
' ' 'I'
Paulo : Cultrix, 1994. HUXLEY, Aldous. A filosofia perene. São Paulo : Cultrix, 1991.
GUATTARI, Félix. Revolução molecular: pulsações políticas do IN G LIS, Brian. Coincidências: mero acaso ou sincronicidade. São
desejo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981. Paulo : Cultrix, 1994.
GUITTON,Jean, BOGDANOV, Grichka et. alli. Deus e a ciência. INGRAM, David. Habermas e a dialética da razão. Brasília: Edito-
Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1992. ra Universidade de Brasília, 1987.
HABERMAS, Jürgen. Dialética e hermenêutica: para a crítica da JACOB, François. Eljuego de lo posible. Barcelona: Grijalbo Mon-
hermenêutica de Gadamer. Porto Alegre : L&PM, 1987. dadori, 1997.
_ _ . Conhecimento e interesse. Rio de Janeiro : Guanabara, 19 87. JAEGER, Werner. Paideia: los ideales de la cultura griega. Méxi-
_ _ . O discurso filosr!fico da modernidade. Lisboa : Publicações Dom co : Pondo de Cultura Económica, 1946.
Quixote, 1990. JAMBET, Christian. La lógica de los orientales: Henry Corbin y la
HARMAN, Willis. Uma total mudança de mentalidade. São Paulo: ciencia de las formas. México : Pondo de Cultura Económi-
Cultrix/Pensamento, 1994. ca, 1989.

350 1
li)
;;o
o
~ 0-
.ao.. Robert. A arquitectura do universo: dos astros, vida, 1996.
(])
;::i.
o
2
<lJ dos homens. Lisboa: Edições 70, 1981. Michel. As árvores de conhecimentos. '?
fO ?'!

e Carl Gustav. O espírito na arte e na ciência. Petrópolis, RJ : Paulo : Editora Escuta, 199 5. o..
(])
<<lJ
e
t'.<lJ Vozes, 1987. LINDHOLM, Charles. Carisma: êxtase e perda de identidade na )>
lO
e
o.. n;·
_ _ .Aspectos do drama contemporâneo. Petrópolis, RJ : Vozes, 1990. veneração ao líder. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993. ..,
o
o..
E _ _ .A vida simbólica. Petrópolis, RJ : Vozes, 1998. LINHARES, Célia Frazão, GARCIA, Regina Leite (orgs.). Dile-
2
o
"O
_ _ .A natureza da psique. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991. mas de um final de século: o que pensam os intelectuais. São
fO
..e
u
_ _ .Civilização em transição. Petrópolis, : Vozes, 1993. Paulo : Cortez Editora, 1996.
<lJ
<;::
_ _ . Resposta a ]ó. Petrópolis, RJ : Vozes, 1990. LORENZ, Edward N. A essência do caos. Brasília: Editora Uni-
fO
"O
li) _ _ . Sincronicidade. Petrópolis, RJ : Vozes, 1990. versidade de Brasília, 1996.
o
::!::
<.;:: _ _ . Aion: estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Petrópo- LOVELOCK, James. As eras de gaia: a biografia da nossa terra
li)
o lis, RJ : Vozes, 1990. viva. Rio de Janeiro : Campus, 1991.
_ _ . O eu e o inconsciente. Petrópolis, RJ : Vozes, 1991. MARGEM/Faculdade de Ciências Sociais da Pontifícia Univer-
_ _ . Realidad dei alma. Buenos Aires : Editorial Losada, s.d. sidade Católica de São Paulo. n. 3 (dez. 1994). Condição pla-
KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Lisboa: netária. São Paulo: EDUC, 1994.
Gradiva Publicações, s.d. MARTIN, Hans-Peter, SCHUMANN, Harold. A armadilha da
_ _. Études dJhistoire de lapenséephzlosophique. Paris : Galimard, 1971. globalização. São Paulo: Editora Globo, 1997.
KRISHNAMURTI, J., BOHM, David. O futuro da humanidade. MATURANA, Humberto, VARELA, Francisco. A árvore do co-
São Paulo : Cultrix, 1992. nhecimento. Campinas: Editorial Psy, 1995.
KÜN G, Hans. Prqjeto de ética mundial.- uma moral ecumênica em MATURANA, Humberto. A ontologia da realidade. Belo Hori-
vista da sobrevivência humana. São Paulo : Paulinas, 1993. zonte: Editora da Universidade Federal de Minas Gerais,
LABORIT, Henri. Deus nãojoga dados. São Paulo : Trajetória Cul- 1997.
tural, 1988. _ _ . Da biologia à psicologia. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
LASCH, Christopher. Rebelião das elites e a traição da democracia. MCGUIRE, William, HULL, R. F. C. C. G. Jung. entrevistas e
Rio de Janeiro: Ediouro, 1995. encontros. São Paulo: Cultrix, 1982.
LALAND E, André. Vocabulário técnico e critico da filosofia. Porto : MERMOD, Denis. A moral em Teilhard de Chardin. Petrópolis, RJ
RÉS Editora, s.d. : Vozes, 1969.
LASZLO, Ervin. Nas raízes do universo. Lisboa: Instituto Piaget, s.d. MOLES, Abraham. As ciências do impreciso. Rio de Janeiro: Civili-
LEFORT, Claude. Pensando opolítico: ensaios sobre democracia, zação Brasileira, 1995.
revolução e liberdade. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1991. MONOD,Jacques. O acaso e a necessidade. Petrópolis, R.J: Vozes,
_ _ . Asformas da história. São Paulo : Brasiliense, 1979. 1971.
LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamen- MORIN, Edgar. Os meus demónios. Mem Martins: Publicações
to na era da informática. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993. Europa-América, 1995.

353
;x:J
Ul o
~ CT"
íll
.ao.. _ _ . O problema epistemológico da complexidade. Mem Martins : _ _ . Cot!Jecturas e refutações. Brasília : Editora Universidade ;::1-
0
2 ;t>
QJ Publicações Europa-América, s.d. Brasília, 1982.
ro ?J

e _ _. ParasairdoséculoXX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. PRIGOGINE, Ilya, STENGERS, Isabelle.A nova aliança. Brasí- o.
íll
<QJ
e
:e MOURÃO, Laís. Ofuturo ancestral tradição e revolução científica lia: Editora Universidade de Brasília, 1991. )>
l.O
QJ
e
õi'
o..
no pensamento de C. G. Jung. Brasília: Editora Universida- _ _ . Entre o tempo e a eternidade. São Paulo : Companhia das '
o
o..
E de de Brasília, 1997. tras, 1992.
2
o NICOLESCU, Basarab. Ciência) sentido e evolução: a cosmologia de PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da
-o
ro
..e: Jacob Boehme. São Paulo : Attar Editorial, 1995. natureza. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Pau-
u
QJ
;:;:::: PARENTE, André (Org.). Imagem máquina: a era das tecnologias lista, 1996.
ro
-o
Ul do virtual. Rio de Janeiro : Editora 34, 1993. REEVES, Hubert. A hora do deslumbramento: o universo tem um
o
..e:
i.C PAULI, Wolfgang. Escritos sobre física y filosofia. Madrid : Editorial sentido? São Paulo : Martins Fontes, 1988.
Ul
o Debate, 1996. ROSNAY, Joel de. O macroscópio: para uma visão global. Vila
PESSIS-PASTERNAK, Guitta (Org.). Do caos à inteligência artifici- Nova de Gaia: Estratégias Criativas, 1995.
al.· quando os cientistas se interrogam. São Paulo : Editora RUSSEL, Peter. O despertar da Terra: o cérebro global. São Paulo :
da Universidade Estadual Paulista, 1993. Cultrix, 1991.
PELBART, Peter Pál. O tempo não-reconciliado. São Paulo: Pers- SADER, Emir (Org.). O mundo depois da queda. São Paulo: Paz e
pectiva : FAPESP, 1998. Terra, 1995.
PENA-VEJA, Alfredo, NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do SANFORD,John A. Mal: o lado sombrio da realidade. São Pau-
(Orgs.). O pensar complexo: Edgar Morin e a crise da moder- lo : Paulinas, 1988.
nidade. Rio de Janeiro : Garamond, 1999. _ _ . (Org.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado
PENROSE, Roger. O grande) opequeno e a mente humana. São Paulo : democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
Fundação Editora da UNESP, 1998. SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução a uma ciência pós-moder-
PETER DRUCKER FOUNDATION. A comunidade do futuro: na. Rio de Janeiro: Graal, 1989.
idéias para uma nova comunidade. São Paulo : Futura, 1998. _ _ . Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernida-
PETERS, Ted. O eu cósmico. São Paulo : Siciliano, 1993. de. São Paulo : Cortez Editora, 1995.
PETITFILS,Jean-Christian. Os socialismos utópicos. Rio de Janeiro: SARTORI, Giovanni. Homo videns: la sociedad teledirigida. Bue-
Zahar Editores, 1978. nos Aires : Taurus, 1998.
PIETTRE, Bernard. Filosefi,a e ciência do tempo. Bauru, SP: EDUSC, SCHOTT, Robin. Eros e os processos cognitivos: uma crítica da obje-
1997. tividade em filosofia. Rio de Janeiro : Record : Rosa dos
POPPER, Karl. Sociedade aberta) universo aberto. Lisboa: Publica- Tempos, 1996.
ções Dom Quixote, 1991. SCHRÔDINGER, Erwin. O que é vida?: o aspecto físico da célu-
_ _ . O universo aberto: pós-escrito à lógica da descoberta la viva seguido de mente e matéria e fragmentos autobio-
científica. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1988. v. 2. gráficos. São Paulo : Fundação Editora da UNESP, 1997.

354 355
SEGRE, Emilio. Dos raios x aos quarks: físicos modernos e suas Alvim, Criando uma nova civilização: a políti-
descobertas. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1987. ca da terceira onda. Rio de Janeiro : Record, 199 5.
ro

e
<OJ
SERRES, Michel. Filosofia mestiça: le tiers- instruit. Rio de Janeiro: _ _ . Guerra e anti-guerra: sobrevivência na aurora do terceiro
e
~ Nova Fronteira, 1993. milênio. Rio de Janeiro : Record, 1994.
OJ
Q.

o
_ _ . Le contrat naturel. Paris: Éditions François Bourin, 1990. TOURAINE, Alain. O pós-socialismo. Porto: Edições Afronta-
Q.
E _ _.Hermes: uma filosofia das ciências. Rio de Janeiro: Graal, 1990. mento, 1981.
2
o
"O
SHARP, Daryl. Léxico junguiano: dicionário de termos e concei- _ _ . Critica da modernidade. Petrópolis, RJ : Vozes, 1994.
ílJ
..e
u
tos. São Paulo : Cultrix, 1993. TURNER, Frederick. O espírito ocidental contra a natureza: mito,
OJ
ti=
ílJ
SHELDRAKE, Rupert. O renascimento da natureza: o refloresci- história e as terras selvagens. Rio de Janeiro : Editora Cam-
"O
({)
o
mento da ciência e de Deus. São Paulo : Cultrix, 1993. pus, 1990.
..e
~ SHORE, William H. (Org.). Mistérios da vida e do universo. Rio de VIRILIO, Paul.A inércia polar. Lisboa: Publicações Dom Quixo-
({)
o Janeiro : Campus, 1994. te, 1993.
SIEBENEICHIER, Flávio Beno. Jürgen Habermas: razão comuni- _ _. Velocidade epolítica. São Paulo : Estação Liberdade, 1996.
cativa e emancipação. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. _ _ . O espaço critico. Rio de Janeiro : Editora 34, 1993.
SILVEIRA, Nise da. Jung: vida e obra. RJ : Paz e Terra, 1994. _ _ . A arte do motor. São Paulo : Estação Liberdade, 1996.
SMART, Barry. A pós-modernidade. MemMartins: Publicações VIRILIO, Paul, LOTRINGER, Sylvere. Guerra pura: a militari-
Europa-América, 1993. zação do cotidiano. São Paulo : Brasiliense, 1984.
SMULDERS, Peter.A visão de Tezlhard de Chardin. Petrópolis, RJ: WAINWRI G HT, Hilary. Uma resposta ao neoliberalismo: argumen-
Vozes, 1965. tos para uma nova esquerda. Rio de Janeiro : Jorge Zahar
SODRÉ, Nelson Werneck. A farsa do neoliberalismo. Rio de Janei- Editor, 1998.
ro: Graphia, 1995. WEBER, Felix. A dança do cosmos: do átomo dos gregos às tra-
STEVENS, Anthony. Jung: vida e pensamento. Petrópolis, RJ : vessuras dos quarks. São Paulo : Pensamento, 1990.
Vozes, 1993. WILBER, Ken (Org.). O paradigma hologr4ftco e outros paradoxos:
STEWART, Ian. Será que Deusjoga dados?: a nova matemática do explorando o flanco dianteiro da ciência. São Paulo : Cul-
caos. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1991. trix, 1991.
STOCKIN G ER, Gottfried, FENZL, N orbert. A inversão dos tem- WILI<IE, Tom. Prqjeto genoma humano: um conhecimento perigo-
pos: o movimento inteligente. Belém: CEJUP, 1991. so. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1994.
SZACHI,Jerzy. As utopias. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972.
THOMPSON, William Irwin (Org.). Gaia: uma teoria do conhe-
cimento. São Paulo : Gaia, 1990.
TALBOT, Michael. O universo hologr4ftco: uma perturbadora con-
cepção da realidade como um holograma gigante gerado
pela mente. São Paulo : Editora Best Seller, s.d.

357

Anda mungkin juga menyukai