9 a 12 de julho de 2019
UFSC - Florianópolis, SC
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Quando fazer estado é produzir ordem: um estudo dos projetos sociais
conduzidos por policiais na Cidade de Deus-RJ1
A proposta deste texto é refletir sobre os contornos da gestão estatal do conflito urbano
contemporâneo - cujo cerne de sua figuração é a violência. A ancoragem empírica é
bastante precisa: uma pesquisa etnográfica realizado na Cidade de Deus-RJ onde
acompanhei a rotina de policiais-professores cedidos da UPP local para conduzirem
projetos sociais. A partir de sua leitura do problema social, amparada em suas categorias
para ler o mundo e no uso da linguagem estatística, esses policiais-professores explicam
e esclarecem as distinções que fazem entre os diferentes perfis sociais da comunidade,
ao mesmo tempo demonstrando o conhecimento que possuem daquela realidade e,
assim, sustentando, validando e legitimando suas intervenções no local. Nesse sentido,
analisar suas práticas, representações, engajamentos e afetos nos permite argumentar
que, ao agirem, os policiais-professores transformam suas intervenções em saber estatal,
prática estatal, estado. Com efeito, a rotina dos policiais-professores revela o estado
sendo produzido em ato, com todas as tensões, representações e discursos sobre
pobreza e violência que atravessam as práticas, mas são também produzidos por elas.
Nessa perspectiva, etnografar essas práticas nos possibilita ver como fazer estado e
produzir ordem se confundem num só sentido, numa só lógica, em que o objetivo último
dessas intervenções é conter e prevenir a violência que decorreria da pobreza e
emanaria das periferias e favelas.
1 - Introdução
A literatura sobre as periferias urbanas argumenta que, nas últimas três décadas,
o conflito urbano teve seu cerne radicalmente deslocado do problema da
integração das classes trabalhadoras das periferias urbanas para a questão da
violência que emanaria desses espaços (FELTRAN, 2011; 2014; MACHADO DA
SILVA, 2010; 2011; MISSE, 1993). A violência passa a figurar como cerne do
problema da pobreza urbana; o conflito social se traduz em conflito criminal. Tal
deslocamento tem implicado uma radicalização da alteridade, na medida em que
a pobreza e os pobres passam a ser entendidos e representados como sinônimo
de marginalidade, criminalidade e fonte da violência (FELTRAN, 2014).
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empírico específico: os projetos2 conduzidos por policiais militares cedidos da
Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Cidade de Deus, os quais acompanhei
em pesquisa etnográfica. Seguindo a rotina desses policiais-professores3 no
Prédio do Centro de Referência da Juventude (CRJ) da Cidade de Deus - ao
longo de 4 meses em 2014, quando residi nesta favela, e em incursões de campo
ao longo do ano de 2016 - pude acompanhar suas atividades, os problemas que
enfrentavam, os dilemas que viviam, as reflexões que construíam acerca dos
problemas das favelas e sua suposta relação com a violência urbana e como
poderiam incidir sobre isso.
2Utilizo em itálico o termo projetos por ser o modo como os policiais-professores se referiam ao
seu trabalho. Vale lembrar que o termo remete a projetos sociais, muito comuns em favelas e
periferias.
3 Utilizo o termo policial-professor para me referir aos policiais que ministram aulas no âmbito do
Programa do CRJ porque, em suas falas, eles sempre frisavam que o policial sempre estava
presente em sala de aula; apesar de serem professores, eles eram, antes de tudo, policiais. Por
isso a utilização do termo policial antes do termo professor.
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pronto. As ações feitas em nome do Estado [...] constroem o próprio
Estado” (SOUZA LIMA, 2002, p. 54). Em outras palavras, o Estado aqui é tomado
como uma realidade concreta e situada, não uma abstração ou entidade neutra
(FASSIN, 2013). Vale destacar que isso não significa obliterar o “efeito
Estado” (MITCHELL, 1999), mas reconhecer que a força da ideia de que o Estado
é um conjunto de estruturas reificadas e desencarnadas é um efeito das próprias
práticas do Estado.
É nesse sentido que Veena Das (2004; 2008) propõe uma reflexão do Estado a
partir de suas manifestações, figurações e presenças concretas. A proposta
analítica é distanciar-se “da imagem consolidada do Estado como forma
administrativa de organização política racionalizada que tende a debilitar-se ou
desarticular-se ao longo de suas margens territoriais e sociais” (DAS; POOLE,
2004, p. 19), para, assim, refletir “como as práticas e políticas de vida nas
margens moldam as práticas políticas de regulação e disciplinamento que
constituem aquilo que chamamos ‘o Estado” (Ibid., p. 22). Nessa perspectiva,
olhar para o Estado a partir de suas margens, advertem Das e Poole (2004),
significa abster-se da ideia de que práticas de agentes estatais nesses espaços e
junto a essas populações seriam falhas, uma disfunção, algo externo ao Estado
ou uma exceção. Ao contrário, o pressuposto é que há uma heterogeneidade de
maneiras de o Estado administrar a vida, e essas práticas e processos estatais
nas margens são parte constitutiva dessa ordem, pressupostos necessários do
Estado (DAS e POOLE, 2004).
Na linha do que autores como Scott (1998) e Das (2004) propuseram, é possível
perceber que, no esforço de gestão e contenção do conflito urbano, os agentes
estatais, sobretudo na implementação de políticas, produzem e reproduzem
legibilidades, classificações e triagens em relação a essas populações
consideradas vulneráveis. Para transformar seria preciso, antes de tudo,
classificar a favela e sua cultura, esquadrinhando para identificar os grupos que o
crime pode contaminar. E todo esse esforço de tornar legível a realidade na qual
intervêm é perpassado por sentimentos, afetos, preconceitos e moralidades que
vão muito além das prescrições e normativas. Entretanto, atentar para a
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dimensão das relações e interações mais diretas não significa ignorar a questão
de fundo que orienta a gestão das populações pobres: a produção da ordem. Ao
contrário, é o embricamento entre relações, afetos e desejo de ordem que faz do
cotidiano da gestão algo mais complexo e cheio de nuances.
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2- Os policiais-professores do Centro de Referência da Juventude da Cidade
de Deus
4No primeiro semestre de 2014, dos nove professores, seis eram policiais cedidos da UPP. Em
maio de 2016, no segundo momento da pesquisa, dos onze professores, cinco eram policiais,
sendo que outros quatro cursos ou atividades eram ministrados por moradores da comunidade
voluntariamente, sem nenhum contrato, contrapartida, ajuda de custo ou remuneração.
5 Vale esclarecer que durante o período da pesquisa, entre 2014 e 2016, o governo do estado do
Rio de Janeiro entrou em uma crise fiscal que implicou, em um primeiro momento, na redução dos
recursos para projetos e políticas, chegando a atrasos no pagamento de salários do funcionalismo.
6 Para uma descrição da história das UPPs ver Menezes, 2015.
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pico. Além da expansão acelerada da política das UPP, a premissa de que, para
consolidar um novo modelo de policiamento, era preciso renovar a polícia também
impulsionou a contratação de policiais. Não é coincidência, portanto, que todos os
policiais com os quais tive contato no CRJ tenham ingressado na polícia nesse
momento (entre 2009 e 2012) e tenham sido enviados diretamente ou poucos
meses depois para as Unidades de Polícia Pacificadora recém instaladas,
exatamente na esteira da ideia de que, para pacificar comunidades, era preciso,
antes, “pacificar a polícia” (como declarou Mariano Beltrame, Secretário Estadual
de Segurança à época), o que só aconteceria com a renovação dos quadros e
interrupção da cultura de corrupção da polícia.
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Nesse cenário, os projetos de policiais das Unidades ganham destaque,
compondo um esforço de aproximar polícia e comunidade. Apesar de não
estarem previstos formalmente, os projetos estavam presentes em todas as UPP,
conforme pude observar em buscas na internet e informações de policiais-
professores do CRJ. Portanto, os projetos dos policiais-professores estão
inseridos em um contexto bastante específico, marcado por um esforço de mudar
a imagem e a prática da política de segurança pública no Rio de Janeiro. De fato,
esperava-se que os projetos conduzidos pelos policiais possibilitassem a
aproximação entre polícia e comunidade – um dos principais nós para a
implementação de uma polícia de proximidade – e incidissem sobre a prevenção
e o combate à violência. Não era fortuito, portanto, que as falas dos policiais-
professores do CRJ da Cidade de Deus fossem marcadas por afirmações de que
estavam ali para disputar as crianças e jovens com o tráfico; que estavam ali para
mudar a cultura da comunidade, plantando uma semente através de seus alunos;
que pretendiam formar cidadãos, ensinando respeito, disciplina e valores; que
estavam ali na mesma guerra que seus colegas policiais na rua, porém lutando
com outras armas. Nessa lógica, as atividades dos cursos em si eram vistas como
uma “ponte” para chegar aos alunos e ensinar valores e disciplina, para mudar a
cultura da comunidade e, assim, enfraquecer o crime.
Nesse esforço, uma das questões centrais era conhecer a realidade, conhecer os
jovens e suas famílias, entender os problemas da comunidade, para, assim,
lidarem com a heterogeneidade. Lidar com a heterogeneidade significa conhecer
para diferenciar e classificar, e, desse modo, estabelecer estratégias
correspondentes a cada perfil. Nesse esforço cotidiano e nem sempre
sistematizado, vemos como o par “policial mais professor” permite uma série se
classificações associadas ora ao trabalho de policial, ora ao trabalho de professor,
ora a uma combinação deles.
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3 - Lidar com a heterogeneidade dos vulneráveis
Ter que lidar com tudo isso fazia com que a realidade na qual deviam intervir
ganhasse contornos de um caos, tendo em vista os problemas da população, os
próprios discursos sobre esses problemas e sobre as formas de resolvê-los. Parte
do trabalho seria, então, ordenar o caos; por isso entendê-lo, classificá-lo, torná-lo
legível é um imperativo, uma condição para intervir melhor, de modo mais
eficiente e eficaz – o que significava, por exemplo, se dedicar mais a um jovem
identificado como dedicado ou não “perder tempo” com um jovem que se mostra
“sem vontade” ou “acomodado”.
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conhecemos quem são esses jovens, conhecemos os diferentes perfis. Somos
nós, diziam os policiais-professores, que estamos lá “na ponta” disputando os
jovens com o tráfico.
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nome da categoria aparece entre aspas, ao passo que expressões nomeadas por
mim aparecem sem nenhum sinal. Utilizo um espectro de cores que vai do
vermelho ao verde, passando pelo laranja e pelo amarelo, remetendo ao senso
comum de que essas cores se referem à passagem de algo problemático,
interdito e perigoso a algo positivo. Assim, os diferentes tons da cor vermelha são
utilizados para identificar os perfis de jovens considerados mais vulneráveis. Os
tons de laranja, de acordo com a intensidade, são associados aos perfis vistos
como intermediários, mas que requerem atenção considerável, pois ainda estão
próximos dos perfis mais perigosos. O amarelo é utilizado para identificar os perfis
considerados intermediários, que requerem alguma atenção, mas não demandam
tanta preocupação. E, por fim, os tons de verde identificam os perfis considerados
ideais, aqueles bastante positivados e exaltados. Temos, assim, do vermelho ao
verde, uma hierarquização decrescente dos níveis de vulnerabilidade.
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O primeiro aspecto a ser mencionado em relação às classificações construídas
pelos policiais-professores acerca dos jovens vulneráveis é o fato de elas serem
fortemente orientadas e marcadas pelo fato de integrarem uma instituição
específica, a Polícia Militar. A forma como olham para a comunidade é orientada
pelo pressuposto de que principal função da polícia é promover e garantir a ordem
e a segurança da sociedade, prevenindo e combatendo a violência. Inseridos
nessa lógica, os policiais-professores classificam os jovens baseados nas duas
formas principais de intervenção que devem colocar em prática: a prevenção,
vinculada a práticas e ações denominadas e adjetivadas pelos policiais-
professores de social ou sociais, de um lado, e o combate ou repressão, de outro.
Nessa perspectiva, os diferentes perfis de jovens demandam diferentes tipos de
ação, a repressão e a gestão via ações sociais, que podem se distinguir
radicalmente ou se combinarem.
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Como última observação acerca das classificações dos jovens feitas pelos
policiais-professores, é importante destacar que as classificações eram, ao
mesmo tempo, formas de tornar legível a realidade complexa e caótica sobre a
qual os policiais-professores deviam intervir, mas elas não eram imutáveis, com
categorias e critérios rígidos. As classificações, baseadas em regularidades e
recorrências, eram suporte para o trabalho cotidiano e não diretrizes a engessar a
prática. Havia recorrências identificadas, perfis traçados e ações aplicáveis a cada
perfil, mas isso poderia sempre ser colocado em suspensão pela experiência, o
contato mais próximo, o vínculo e o felling, para que prevalecesse uma avaliação
mais precisa, mais afetiva e menos objetificada.
5 - Considerações finais
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ambiguidade de se fazer gestão da pobreza “na ponta”, conter o conflito urbano e
prevenir a violência, produzindo ordem.
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muitas relações entre poder e subjetividade não são da ordem do
constrangimento ou de repressão da liberdade do indivíduo, mas e mais da ordem
da estimulação da subjetividade para promoção de auto inspeção e modulação
dos desejos.
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alvo, possibilitando-nos, a partir de recorrências e linearidade, delinear contornos
da intervenção estatal para além de casos específicos. A rotina dos policiais-
professores do CRJ revela o Estado sendo produzido em ato, com todas as
tensões, representações e discursos sobre pobreza e violência que atravessam
as práticas, mas são também produzidos por elas. Nessa perspectiva, etnografar
essas práticas nos possibilita ver como fazer estado e produzir ordem se
confundem num só sentido, numa só lógica, em que o objetivo último dessas
intervenções é conter e prevenir a violência que decorreria da pobreza e emanaria
das periferias e favelas (MOTTA, 2017).
Bibliografia
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SCOTT, J. Seeing like a state: how certain schemes to improve human condition
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