Das pesquisas com crianças à complexidade da infância
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Das pesquisas com crianças à complexidade da infância - Altino José Martins Filho
USP-SP
Diferentes infâncias, diferentes questões para a pesquisa
ZEILA DE BRITO FABRI DEMARTINI¹
Introdução
A pesquisa sobre a infância e as diferentes crianças é talvez o desafio maior que se coloca aos pesquisadores, mesmo os mais experientes: como observar as vivências infantis, tão complexas, procurando captar não as representações e reconstruções científicas dos adultos sobre aquelas, mas o olhar
das próprias crianças?
As respostas podem ser várias, as perspectivas teórico-metodológicas muito diversas, cada uma sugerindo caminhos que podem levar à apreensão de algumas dimensões da realidade social infantil, mas, como sugeriu Florestan Fernandes, todas incompletas, pois a realidade é inexaurível (FERNANDES, 1967).
É, portanto com bastante modéstia que me atrevo a trazer para reflexão algumas questões que considero importantes para a discussão da pesquisa sobre/com crianças; mas são apenas algumas, fruto dos desafios que as pesquisas foram colocando-nos ao longo dos anos. Chamamos a atenção, mais uma vez, para a importância da participação das crianças como sujeitos ativos no processo de pesquisa, discutindo suas contribuições para a obtenção de dados.
Para tanto, retomamos observações já anotadas em outros momentos, mas que julgamos interessante recordar. Estaremos remetendo o leitor a estudos que já realizamos ou que estão em curso, procurando focalizar as possibilidades que as crianças disponibilizaram para a construção de fontes de pesquisa de naturezas diversas.
Já discutimos em outros textos (DEMARTINI, 2002, 2006) a necessária atenção para a questão das várias infâncias, isto é, para a problematização das vivências infantis, levando-se em conta que as crianças são constituintes da realidade social, fazem parte de grupos sociais, sendo impossível pensar em uma criança genérica
, quando pensamos na infância no Brasil, nos dias atuais ou em tempos pretéritos. Mesmo no interior de cada grupo, é possível perceber vários outros elementos que vão aproximando ou afastando crianças que, num primeiro movimento, parecem semelhantes. Levar em conta as diferentes infâncias é, portanto, um ponto de partida necessário para a pesquisa.
É o caso, por exemplo, das crianças que se deslocam de um contexto para outro, ou cujas famílias passam por um processo de mobilidade espacial, e que tomaremos aqui para discussão.
Esse é um aspecto que geralmente não é considerado em grande parte dos estudos: o de que grande parcela das crianças carrega em suas experiências de vida as vivências em diferentes espaços, isto é, em diferentes realidades socioeconômicas e culturais. Perguntamos, então, que implicações os deslocamentos durante esse período de suas vidas e as experiências estabelecidas durante o processo de saída e de inserção em novos contextos podem acarretar para as vivências e culturas de crianças e jovens, e que elementos a análise dessas questões poderiam evidenciar. Observamos que os estudos sobre os deslocamentos populacionais internos ou internacionais (para cá ou para fora) ainda se preocupam pouco com as implicações daqueles junto às crianças; geralmente são analisados os deslocamentos dos grupos como um todo, das famílias, dos trabalhadores, as políticas imigratórias. Os estudos sobre a infância, embora focalizando diferentes contextos e períodos históricos, tratam geralmente das crianças quase que como imobilizadas
em determinados espaços. A maior parte dos estudos sobre migrações e sobre crianças não envolve a problemática dos deslocamentos nacionais e internacionais e suas implicações. Entretanto, grande parcela das crianças carrega as marcas de vários deslocamentos em suas curtas trajetórias, e, com eles, as marcas de encontros e desencontros, de alegrias e tristezas, saudades e esquecimentos, de espaços e vazios, de sítios, vilas e cidades, de diferentes culturas (DEMARTINI, 2006, p. 116).
Se considerarmos que é durante a infância e juventude que os indivíduos vão moldando suas identidades, algumas questões se colocam para a pesquisa: como os que eram pequenos migrantes quando vieram de outros contextos vão constituindo-se nas novas realidades? Em que medida não têm de aprender a conviver com diferentes culturas desde muito pequenos? Como as gerações mais novas, de jovens e crianças, enfrentaram o processo migratório e suas novas vivências? Como as famílias orientaram (ou reorientaram) os projetos futuros dos filhos, considerando o deslocamento para contexto distinto? Que relações as diferentes gerações de cada família estabeleceram no nosso contexto com outros imigrantes da mesma origem? Com quais instituições se relacionam? Como a história familiar é representada pelos diferentes membros familiares, homens e mulheres? Houve alteração nas profissões previstas e nas profissões de família em virtude dos deslocamentos?
A questão que é preciso conhecer, entre outras, é como crianças vivenciam os deslocamentos, as saídas de espaços conhecidos para outras terras, outras sociedades, e em que medida a análise dessas vivências poderá permitir um melhor entendimento das várias infâncias e até das várias identidades que vão constituindo-se através desses processos de deslocamentos e novas inserções.
Florestan Fernandes (1979) abordou em parte tal questão, quando realizou estudo sobre as trocinhas
do Bom Retiro, na década de 1940; chamou a atenção para as relações estabelecidas entre crianças de diferentes origens em suas brincadeiras de rua e as trocas culturais realizadas através das brincadeiras, apontando para a importância das crianças no processo de inserção social dos pais imigrantes no contexto paulistano. Também Kosminsky (2000), por meio da abordagem de um grupo específico (segunda geração de mulheres judias), chamou a atenção para o fato de que a infância é um dos temas mais desprezados pelas ciências sociais, o que se deve à posição de subalternidade ocupada pela criança na sociedade ocidental (KOSMINSKY, 2000, pp. 49-50). Baseada em estudos de outros autores, observou que as redes de relações sociais formais e informais propiciam a criação de oportunidades para os membros da segunda geração, permitindo enfrentar mais facilmente a discriminação e as dificuldades de ascensão social; também notou que a criança é um importante agente social, isto é, contribui ativamente para a mudança e a produção cultural, pois as crianças, filhas de imigrantes, em contato com os seus pares e através de brincadeiras e jogos infantis, tendem a adquirir traços culturais da sociedade abrangente, participando ativamente da introdução dos seus pais ao novo ambiente social (idem, p. 52).
Abordamos, em nossos estudos, as gerações mais jovens, em que entrevistamos a segunda, terceira e quarta gerações de famílias de japoneses, portugueses e africanos que chegaram a São Paulo durante o século XX; trabalhamos com a ideia de que foram várias as experiências vivenciadas pelos pequenos imigrantes em território paulista, e, portanto, pode haver distintas maneiras de a infância ser sentida e relatada, dependendo da forma como tenha ocorrido a inserção do pequeno imigrante no país de acolhida, as vinculações com a população local, com outras crianças e jovens, com a(s) escola(s) frequentada(s) etc. Assim, é possível pensar, também, em diferentes representações de um mesmo tempo e contextos vividos, segundo as distintas experiências do passado (e do presente).
Ao incorporarmos crianças não apenas como objeto de investigação, mas como atores importantes no próprio processo de pesquisa, como já foi sugerido por Martins (1991), podemos, assim, obter informações diferenciadas das que foram produzidas por sujeitos adultos.
Crianças no processo de pesquisa: as entrevistas
A inserção de crianças como atores importantes no processo de pesquisa coloca questões à realização de entrevistas. Em primeiro lugar, pela diferença de idade entre pesquisadores e entrevistados, que, como já constatamos, implica maiores ou menores dificuldades, dependendo das representações que os entrevistados apresentam com relação aos pesquisadores, aspecto que merece atenção especial.
De qualquer modo, consideramos que uma criança de qualquer grupo social, após breves espaços de tempo, já construiu algum tipo de identidade, tem uma memória construída. Os relatos infantis envolvem essa memória, essa identidade (aí está embutida também a questão da linguagem). Michel Pollak (1992) mostra como a construção da identidade é realizada no contexto de um grupo e é feita sempre com relação a um outro
. Na construção da identidade durante o processo de socialização da criança de família migrante, por exemplo, quem seriam os outros
?
Acreditamos que é preciso desvendar a história de cada criança, do grupo ao qual pertence e dos grupos aos quais está ligada no momento da pesquisa para explorar a complexidade de suas vivências.
Podemos também afirmar que a sociologia tem estudado a questão do processo de socialização das crianças, que a preocupa desde suas origens, mas muito há ainda a ser pesquisado, especialmente quanto à criança de famílias que se deslocaram e na perspectiva das próprias crianças. A importância dos relatos das crianças é inegável; Florestan Fernandes (1979), no estudo já citado sobre as trocinhas, chamou a atenção para a importância que representou, para ele, poder ter acesso à observação e ao intercâmbio com crianças. Não só ouvir o que as crianças relatavam, mas ouvir as críticas das crianças às observações que ele fazia. Naquela época, ele recorria às críticas das crianças sobre aquilo que ele estava refletindo. Nós usamos pouco as falas das crianças e menos ainda as críticas das crianças. Também Ole Langested (s.d.) mostra como é fundamental estudar os relatos de crianças; para ela, o pesquisador deve entrevistar as crianças, porque essa é a única maneira que existe para desvendar algumas questões.
Milstein (2008) também discute a importância de incorporar nos estudos antropológicos e sociológicos meninos e meninas na qualidade de informantes, investigadores e autores. A autora aborda estudos que trabalharam essa questão, relatando ainda a experiência que ela própria desenvolveu com crianças de escola argentina, e observa, fundamentalmente, que:
[…] lo que las personas piensan, sienten, perciben e interpretan acerca de la realidad forma la propia realidad. Los ninõs y las niñas por lo general son parte de los grupos sociales que se estudian y, sin duda, integran como grupo la vida social de las escuelas [MILSTEIN, 2008, p. 35].
No tocante às crianças argentinas, há outro estudo que foi realizado sobre famílias e imigração, em que os pesquisadores recorrem a relatos em que vários depoentes tinham 8 anos, 9 anos, 10 anos, e seus relatos estão no mesmo patamar dos outros, dos adultos. Quer dizer, são relatos de crianças, mas que estão sendo considerados no conjunto de um grupo social mais amplo (BARBIERI et al., 1994).
Se há alguma concordância com relação à importância dos relatos infantis, o mesmo não se observa quanto à forma de coletá-los, como já anotamos em outros textos (DEMARTINI, 2002). Suzane Krogh (1996) analisa a questão do julgamento moral de crianças de diferentes idades, mostrando que, conforme a etapa, a idade da criança, tem-se a correspondência de uma formulação de um julgamento moral que ela faz sobre determinados assuntos. Observa que se o entrevistador não conseguir estabelecer com as crianças certo grau de relacionamento, se não conseguir estabelecer certo grau de respeito, de intimidade, para que se crie certa abertura, não vai obter fala nenhuma, não vai obter resposta àquilo que está propondo. Mas a autora anota que ela vai estabelecer uma conversa preliminar, conversar muito tempo
, para depois realizar as entrevistas, […] quando finalmente começam as verdadeiras entrevistas em estudo
. Entretanto, questionamos: o relacionamento deve ocorrer com qualquer sujeito, não só com crianças, e, além disso, o que são as verdadeiras
entrevistas em estudo? Nossa restrição à metodologia proposta é em relação à perspectiva de que as conversas preliminares
desenvolvidas sirvam para só depois realizar as entrevistas; consideramos que toda a situação é importante, tudo deve ser observado e analisado. A autora também afirma que a criança vai apresentar certas respostas, conforme certas idades (KROGH, 1996, p. 187), e, portanto, seria a idade das crianças, mais do que outros fatores, o que criaria diferenças nas respostas; isso, parece-nos, é uma hipótese a ser trabalhada, mais que uma conclusão. Aproximamo-nos da perspectiva de estudiosos que consideram que, de alguma maneira, todas as crianças falam, mesmo quando ficam em silêncio (MARTINS, 1991; MONTENEGRO, 1996; KOSMINSKY, 1999), e que o pesquisador deve ficar atento para os diferentes tipos de criança e de infância; aquelas podem produzir narrativas diferentes, independentemente de suas