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XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE

PRÉ-ALAS BRASIL

04 a 07 de setembro de 2012, UFPI, Teresina-PI

GT04 – EDUCAÇÃO, CULTURA E SOCIEDADE

Educação e Ética para o Diálogo: Relato de Experiência do Programa Novos


Talentos no Pará

Samir Araujo Casseb


Universidade Federal do Pará
samir.acasseb@gmail.com

Kátia Marly Leite Mendonça


Universidade Federal do Pará
veredas@amazon.com.br
Educação e Ética para o Diálogo: Relato de Experiência do Programa Novos
Talentos no Pará

Samir Araujo Casseb1


Kátia Marly Leite Mendonça2

Introdução

Este trabalho é um relato da experiência do Programa Novos Talentos,


organizado pela CAPES, e desenvolvido no Estado do Pará através da UFPA pelo
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais no curso "Ética para o Diálogo".
O Programa Novos Talentos tem por objetivo a inclusão social e o
desenvolvimento da cultura científica por meio de atividades extracurriculares para
alunos e professores das escolas da rede pública, visando ao aprimoramento e
atualização de professores e alunos da educação básica.
Durante o ano de 2011, e prosseguindo em 2012, professores e alunos do
PPGCS da UFPA puderam trocar experiências com professores da rede pública de
ensino sobre a construção dialógica da educação no cotidiano das escolas como
uma iniciativa de prevenção à violência e reflexão sobre o "vazio ético” presente nas
relações entre alunos, professore, gestores e demais funcionários no ambiente
escolar. Ao longo do ano de 2011, o Curso "Ética para o Diálogo", assentado sob a
Sociologia da Ética, mostrou-se um frutífero espaço de construção de propostas de
intervenção pedagógica por parte dos professores que participaram do Programa
Novos Talentos, já que alguns destes professores ingressaram em programas de
pós-graduação da UFPA e desenvolveram projetos educacionais em suas escolas.

1
Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará-UFPA e em Ciências da Religião pela
Universidade do Estado do Pará-UEPA. Especialização em Gestão Hídrica & Ambiental pelo Instituto de
Geociências-IG/UFPA. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFPA-PPGCS. Bolsista
pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior-CAPES.
2
Pós-Doutorado em Ética na Universidad Pontificia Comillas (Madrid/Espanha). Doutorado em Ciência Política
pela Universidade de São Paulo-USP. Professor Associado da Universidade Federal do Pará. Coordenadora do
Projeto de Extensão Universitária Peregrinos da Paz. Coordenadora do Projeto de Formação em Ética para o
Diálogo/Programa Novos Talentos/CAPES na UFPA. Bolsista de Produtividade do CNPQ.
Projeto Ética para o Diálogo: Nossa Proposta e Nossa História3

Em 2004, iniciamos o trabalho de extensão universitária com o Programa


Lótus de Ética Aplicada à Organização. Programa este que em um processo de
educação continuada envolve funcionários técnico-administrativos e docentes da
UFPA através de uma formação voltada para a cultura de paz no ambiente
organizacional e abrangendo diversas áreas do conhecimento (arte, filosofia,
religião, etc.) todas elas integradas e visando a melhoria das relações interpessoais
e intergrupais no campo da instituição. O programa atuou de 2004 a 2007 e atendeu
vários grupos de servidores. Nele foram trabalhados os temas de nossas pesquisas,
em especial a ética para o diálogo (Buber e Levinas) e o personalismo ético
(Mounier e também Paul Ricoeur), temas de nossas aulas e trabalhos na pós-
graduação, foram ministradas com linguagem adequada aos objetivos de um projeto
de extensão e ao público participante.
Em 2005 a UFPA iniciou a educação para ética no campo da pós-
graduação, no Programa de Pós-Graduação e Ciências Sociais diretamente com a
disciplina Ética, Não Violência e Sociedade e transversalmente com o ensino da
disciplina Hermenêutica nas Ciências Sociais, a qual é orientada também pela
discussão entre a hermenêutica como diálogo e existência e a hermenêutica como
método. Ambas as disciplinas são ministradas para alunos de Mestrado e Doutorado
do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais.
Em janeiro de 2006, demos inicio ao Projeto de Extensão Universitária
Peregrinos da Paz, projeto de voluntariado no qual jovens universitários da UFPA,
de diversos cursos de graduação participam de um processo de educação
continuada em ética, cultura de paz e não violência e após isso atuam como
multiplicadores nas escolas do Estado. Paralelamente a isso nestes anos ocorreu
uma produção de TCC’s e projetos de dissertações e teses voltados para o tema.
Esses trabalhos nos diversos campos e voltados para a não violência
mereceram em 2005 a menção honrosa do I Premio Roberto Marinho Cultura da
Paz, promovido pela Fundação Roberto Marinho em parceria com a UNESCO, pelo
pioneirismo da Universidade na conduta desses temas.

3
Essas e outras informações podem ser encontradas em <www.pereginosdapaz.ufpa.br> e
<http://pererinosdapaz.wordpress.com.br>. Ou pelo email peregrinosdapaz@gmail.com
Todos esses trabalhos desenvolvidos têm sua fundamentação filosófica e
teórica na pesquisa envolvendo pensadores do século XX que contribuíram para a
reflexão sobre a paz, seja de forma direta ou indireta, seja analisando o diálogo ou
os motivos de sua impossibilidade, como Martim Buber, Franz Rosenzweig,
Rabindranath Tagore, Leon Tolstoi, Gandhi, Emmanuel Mounier, Emmanuel
Levinas, Paul Ricoeur, etc. Todos, por vias distintas e em diversos campos, tanto na
filosofia, na antropologia, na sociologia ou na literatura, deram sua contribuição para
a reflexão sobre a ética e sobre o diálogo.
Em especial, o Projeto de Extensão Universitária Peregrinos da Paz
(www.peregrinosdapaz.ufpa.br) e agora o Curso Ética para o Diálogo, viabilizado
pelo Programa Novos Talentos da CAPES, tem como objetivo fomentar uma Cultura
de Paz e Não Violência entre os alunos da rede pública de ensino e a capacitação
de professores do ensino público. Ao longo desses anos, com poucos recursos e um
sistema de voluntariado, o projeto fez parcerias com Associação Palas Athena e
com o VIVE-Vivendo Valores na Escola, da Organização Brahma Kumaris. O projeto
surgiu em 2006 e desenvolveu-se até 2009 diretamente com os alunos na capital
paraense, Belém, na Escola Estadual de Ensino Fundamental Tiradentes I e na
Escola de Aplicação da UFPA- NPI, no município de Abaetetuba na Escola São
Francisco Xavier. Em 2009, nos municípios de Tailândia e Moju, o projeto vem
atuando na formação de professores e líderes comunitários multiplicadores.
Atualmente nele atuam como voluntários professores da UFPA, alunos da Pós-
Graduação em Ciências Sociais e alunos da graduação em Ciências Sociais e em
Serviço Social da UFPA. Parte-se do principio da importância da educação na
formação de um caráter humanitário e de uma ética voltada não só para os valores
universais pregados pela UNESCO, mas também de uma ética orientada para o
diálogo.
O despertar da consciência ética é uma diretriz que acompanha um
movimento mundial de cultivo a vida e desarme da violência, visto que, o processo
de mundialização em curso trouxe consigo um aumento vertiginoso da violência,
propagando um vazio ético e uma ruptura dos laços de solidariedade. A educação
para valores, também, apresenta-se como uma nova proposta pedagógica de
aplicação prática em sala de aula, corroborando a emergência de um novo
paradigma que implica na construção de um processo dialógico no qual os alunos e
professores interagem a partir de uma relação de confiança mútua. O projeto é
realizado através de aulas expositivas, oficinas e atividades lúdico-artísticas para os
alunos e professores, tendo como conteúdo não só uma educação voltada para
valores, mas o conhecimento teórico e reflexão sobre as filosofias do diálogo e da
pessoa. Esse trabalho tem tido grande aceitação porque vem proporcionando aos
jovens e aos educadores um contato com as experiências de ideias pacifistas e
humanistas de Martin Buber, Emmanuel Levinas, Emmanuel Mounier, Mahatma
Gandhi, Paul Ricoeur e outros.
Há ainda que acrescentar que várias e constantes palestras são
ministradas pelos membros da equipe, a pedido de diversas escolas e instituições
no interior e na capital.
O referido projeto tem ainda canalizado para a pós-graduação novos
talentos no campo da educação para ética. Atualmente quase que a totalidade da
equipe desta proposta que ora se apresenta está na pós-graduação (Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais, vinculada às várias linhas de pesquisa e
também ao Projeto de Pesquisa Violência e Diálogo: Investigações em torno da
Sociologia da Ética (Produtividade CNPq e Estágio Sênior CAPES 2010). Ao
mesmo tempo, os membros da equipe estão atuando no Projeto Peregrinos da Paz,
tanto na formação de crianças quanto de professores, campo onde vimos atuando
nos últimos tempos.
Foi construída nesses anos uma sólida vinculação da graduação e da
extensão com a pós-graduação através das atividades acima descritas. Neste
momento nossa preocupação é mais com a formação de professores multiplicadores
por dois motivos principais:
- Pelo sucesso que tivemos nas experiências no interior do Pará, atendendo
regiões carentes onde formamos grupos de professores multiplicadores nesta
perspectiva da ética e do diálogo.
- Pela construção no decorrer desses anos, no processo de amadurecimento
e vivência da equipe do projeto, de uma metodologia de abordagem das questões
éticas em que são mesclados conhecimentos filosófico-teóricos com dinâmicas de
grupos, material de vídeo e musica arte, etc. que possam conduzis não só à
reflexão, mas que possam ser usados posteriormente pelos multiplicadores
- Pelas observações consistentes (inclusive com dissertações em andamento)
e com um pós-doutorado em 2007 focalizando o tema do papel fundamental do
professor na formação do caráter do aluno e, portanto, na possibilidade de redução
da violência. Mais do que todos, o professor é aquele que passa a maior parte do
tempo com os alunos em sala, inclusive, mais do que as atividades de extensão, as
quais ocorrem uma vez na semana. Logo, educar o professor para o olhar para a
ética é fundamental.
- Pela possibilidade de junto aos professores estarmos trabalhando
tematicamente o que foi desenvolvido em dois pós-doutorados financiados pela
CAPES (para a coordenação do Projeto em 2007 e 2010) no campo da ética, sendo
que em 2007 foi explicitamente sobre ética e educação.
- Pela possibilidade de todas as pesquisas que estão sendo desenvolvidas
pelos professores-pesquisadores, pelos mestrandos e pelos doutorandos vinculados
ao projeto poderem estar sendo partilhadas junto ao público alvo.

Marcos Teórico-Filosóficos

O campo teórico-filosófico ao qual se filia nosso curso é o da


Hermenêutica. Hermenêutica aqui compreendida de duas formas: como metodologia
das Ciências Humanas e como forma de estar no e compreender o mundo, portanto,
ambas atreladas às relações sociais. Observamos que essas duas dimensões,
embora distintas, não estão separadas uma da outra.
No primeiro caso, nos termos de Mendonça (2011), a hermenêutica
possui uma conotação operacional, já que se trata de um método, já no segundo, a
hermenêutica tem um sentido existencial. No caso de nosso curso, uma ênfase foi
dada o viés pressuposto na segunda concepção, pois, admitindo que a
compreensão do mundo se inscreva na tradição e no cotidiano das relações sociais,
sob esse prisma, a hermenêutica adquire um caráter ético (o cerne de nosso curso)
para além de uma metodologia científica específica.
No entanto, observamos primeiramente a discussão da hermenêutica
enquanto metodologia das Ciências Sociais, já que essa perspectiva abre caminho
posteriormente para a hermenêutica-ética. Nesse sentido, a obra de Max Weber é a
principal referência da sociologia clássica.
Influenciado por William Dilthey, no contexto da Alemanha do século XIX,
Weber aprofunda a diferenciação metodológica e epistemológica constituída pelo
primeiro, ou seja, a de que as Ciências do Espírito (ou Humanas) tem relação de
compreensão paradigmática diferenciada das erigidas pelas Ciências da Natureza
no que diz respeito ao binômio sujeito-objeto; já que os cientistas sociais são
orientados por valores na tentativa de compreensão das ações histórico-sociais.
(PALMER, 1969).
Para Max Weber (2001), a dimensão hermenêutica das ciências humanas
se justifica pelo fato de que as ciências histórico-sociais buscam a compreensão do
sentido das ações por dois vieses: a interpretação e a explicação. Sendo assim, a
sociologia compreensiva weberiana considera que o fato social não é um objeto a
ser esmiuçado já que nas ações sociais há um sentido, ou seja, os seres humanos
atribuem um significado às suas ações – teoria da ação social. Destarte, o
significado das ações em um primeiro momento relaciona-se a si mesmo e
posteriormente ao curso da ação social objetivando-se nas relações sociais.
A partir dessa teoria interpretativa, Weber (2001) constrói os tipos ideais,
considerando serem estes os recursos com os quais os cientistas sociais devem se
aproximar da realidade, mas, sempre tendo em vista a impossibilidade de se explicar
cabalmente os fatos e processos que se pesquisa, pois, o tipo ideal não é um
conceito, mas uma ferramenta metodológica, uma construção intelectual para se
organizar a complexidade que é a sociedade em seus diversos valores,
pensamentos, símbolos, etc., reunindo assim os elementos singulares de um grupo.
Dessa forma, os tipos ideais são um ponto de partida para as pesquisas sociológicas
e em Weber a hermenêutica é um método de compreensão da vida social:

A ciência social que pretendemos exercitar é uma ciência da realidade.


Procuramos entender na realidade que está ao nosso redor, e na qual nos
encontramos situados, aquilo que ela tem de específico; por uma lado, as
conexões e a significação cultural das nossas diversas manifestações na
sua configuração atual e, por outro, as causas pelas quais ela se
desenvolveu historicamente de uma forma e não de outra. Acontece que,
tão logo tentamos tomar consciência do modo como se nos apresenta
imediatamente a vida, verificamos que ela se nos manifesta “dentro” e “fora”
de nós, sob uma quase infinita diversidade de eventos que aparecem e
desaparecem sucessiva e simultaneamente. (WEBER, 2001, p. 124).

Prosseguindo no percurso de definição da hermenêutica com a ética,


consideremos a filosofia de Hans George Gadamer (1997). Para este pensador, a
hermenêutica não estando circunscrita somente a um método e tendo o objetivismo
como uma ilusão, esta assume um caráter ético, pois, considerando a linguagem
construída no tempo (tradição) como função primordial do ser, a hermenêutica se
caracteriza como uma forma de filosofar ligada à atitude compreensiva da qual todo
ser é dotado, neste sentido, a hermenêutica em Gadamer é ontológica, já que o Ser
no seu devir é tomado pela compreensão. Como estamos mergulhados na
linguagem junto com os Outros e sendo o mundo em que o homem habita antes de
tudo o mundo da linguagem, a compreensão é uma condição ontológica, daí
podermos denominar a hermenêutica de Gadamer de hermenêutica-ética, tendo
como importante noção a de que a compreensão em última instancia é sempre a
compreensão de si mesmo, embora exista o distanciamento o qual devemos
perceber.
Em Gadamer (2003), compreender é ser, é realizar o meu projeto (devir
ser) indissociável da percepção e da reflexão sobre meus pré-conceitos. Esta
condição o filósofo denomina-a de “consciência hermenêutica”:

[...]. O modo como vivenciamos uns aos outros, como vivenciamos as


tradições históricas, as ocorrências naturais de nossa existência e de nosso
mundo, é isso que forma um universo verdadeiramente hermenêutico, no
qual não estamos encerrados como barreiras intransponíveis, mas para o
qual estamos abertos. (GADAMER, 2003, p. 35).

Compreender é operar uma mediação entre presente e passado, nesse


sentido, inclui-se o passado do ser já que somos seres dotados de historicidade.
Portanto, a compreensão não é um modo de ser, mas o modo de ser, pois a
consciência hermenêutica exige a escuta no sentido fenomenológico apoiado em
três princípios: respeito à alteridade; renuncia de si mesmo; abertura (MENDONÇA,
2011). Daí o estatuto ético e dialógico que a hermenêutica assume em Gadamer.
Outra referência fundamental é a filosofia do diálogo de Martin Buber (à
qual Gadamer reconhece ter influenciado sua obra). Também inspirado por Dilthey,
e pelo hassidismo4, Buber (2001) assevera que o homem tem duas formas de existir
que se expressam pelas palavras-princípio Eu-Tu e Eu-Isso. Nos dois modelos de
relação, assume-se a perspectiva de que o Eu egótico é mera ilusão, ou seja, não
existe um eu sozinho. O Eu é sempre duplo e pode assumir dois tipos de postura

4
Movimento comunitário místico-judaico surgido na Polônia na primeira metade do século XVIII, teve
como fundador Israel Bem Eliezer, o Baal Schem Tov (Mestre do Bom Nome). Baseado na tradição
do ensinamento religioso espiritual através de narrativas na convivência entre os mestres tzadkins e
seus discípulos, os hassidins.
frente ao homem (interpessoal), ao mundo (natureza) e aos seres espirituais
(Deus(es)):

Uma palavra princípio é o par Eu-Tu. A outra é o par Eu-Isso no qual, sem
que seja alterada a palavra-princípio, pode-se substituir Isso por Ele ou Ela.
Deste modo, o Eu do homem é também duplo. Pois, o Eu da palavra-
princípio Eu-Tu é diferente daquele da palavra-princípio Eu-Isso. As
palavras-princípio não exprimem algo que pudesse existir fora delas, mas
uma vez proferidas elas fundamentam uma existência. As palavras-princípio
são proferidas pelo ser. Se se diz Tu profere-se também o Eu da palavra-
princípio Eu-Tu. Se se diz Isso profere-se também o Eu da palavra-princípio
Eu-Isso. A palavra-princípio Eu-Tu só pode ser proferida pelo ser na sua
totalidade. A palavra-princípio Eu-Isso não pode jamais ser proferida pelo
ser em sua totalidade (BUBER, 2001, p. 53).

Sobre a interpretação, compreensão e conhecimento da realidade, e


considerando a realidade como um texto, assim como em Ricoeur (1990) e Geertz
(2008), Buber (2001) distingue dois tipos de aproximação: a interpretação (Eu-Isso)
e a simples escuta (Eu-Tu). Dessa forma, em termos de teoria hermenêutica, Buber
diferencia-se de Gadamer ao considerar que a noção de linguagem é mais ampla,
ou seja, considera sublinguagens que compreendem gestos, expressões,
movimentos (inclusive os da natureza), e até mesmo o silêncio.
Nesse contexto, tudo é relação, e no que diz respeito ao par de palavras-
princípio, Eu-Isso, esse tipo de relação é o constituído pela racionalidade
instrumental. Buber (2001) considera que o real não é sinônimo de racional, pois
somente é apreendido pelo razão, já que a filosofia, a teologia e as ciências não
esgotam a realidade; há algo na existência para além do que possa ser explicado
pelo raciocínio lógico e instrumental.
Em Buber (2001), tem-se também a noção de receptividade e de inclusão
que contêm em si uma relação de diálogo. A inclusão diz respeito a uma vivência
dialógica atrelada à relação Eu-Tu, sendo assim, para Buber a relação Eu-Tu
permite a Inclusão onde se realiza a Presentificação, sendo esta última a integridade
do Eu no momento em que me faço inteiro, presente face ao Outro. É um processo
dialógico, hermenêutico e relacional, sendo assim, envolve a alteridade. Para
Gadamer e Buber, a alteridade tem como condição primeira o reconhecimento, a
disponibilidade e a abertura do intérprete ao Outro, justamente as características de
uma relação Eu-Tu, diferente do cálculo e da reificação presentes na relação Eu-
Isso.
Vejamos um exemplo de como poderia acontecer uma relação Eu-Tu, ou
seja, uma relação não mediada pela racionalidade instrumental onde a abertura ao
Outro (no caso um ser da natureza, a árvore) instaura uma relação dialógica.
Relação essa quer pode acontecer ou não, já que vivemos, e precisamos viver,
imersos nas relações Eu-Isso, considerando que quando uma relação Eu-Tu
acontece ela logo tende a se tornar Eu-Isso. No entanto, o pensador judeu nos alerta
de que o homem não pode viver sem o Isso, mas aquele que vive somente com o
Isso não é homem.
A relação Eu-Isso é típica da aproximação científica em relação a um
objeto (como na descrição das propriedades da árvore), já a relação Eu-Isso envolve
os aspectos que podem ser apreendidos pela racionalidade instrumental e mais
outras dimensões presentes e perceptíveis no momento de encontro com o Outro:

Eu considero uma árvore. Posso apreendê-la como uma imagem. Coluna


rígida sob o impacto da luz, ou o verdor resplandecente repleto de
suavidade pelo azul prateado que lhe serve de fundo. Posso senti-la como
movimento [...]. Eu posso classifica-la numa espécie e observá-la como
exemplar de um tipo de estrutura de vida. Eu posso dominar tão
radicalmente sua presença e sua forma que não reconheço mais nela senão
a expressão de uma lei [...]. Eu posso volatizá-la e eternizá-la, tornando-a
um número, uma mera relação numérica. A árvore permanece, em todas
estas perspectivas, o meu objeto tem seu espaço e seu tempo, mantém sua
natureza e sua composição. Entretanto pode acontecer que
simultaneamente, por vontade própria e por uma graça, ao observar a
árvore, eu seja levado a entrar em relação com ela; ela não é mais um Isso.
A força de sua exclusividade apoderou-se de mim. Não devo renunciar a
nenhum dos modos de minha consideração. De nada devo abstrair-me para
vê-la, não há nenhum conhecimento do qual devo me esquecer. [...]. Tudo o
que pertence à árvore, sua forma, seu mecanismo, sua cor e suas
substâncias químicas, sua “conversação” com os elementos do mundo e
com as estrelas, tudo está incluído numa totalidade. A árvore não é uma
impressão, um jogo de minha representação ou um valor emotivo. Ela se
apresenta “em pessoa” diante de mim e tem algo a ver comigo e, eu, se
bem que de modo diferente, tenho algo a ver com ela. Que ninguém tente
debilitar o sentido da relação: relação é reciprocidade. Teria então a árvore
uma consciência semelhante à nossa? Não posso experienciar isso. Mas
quereis novamente decompor o indecomponível só porque a experiência
parece ter sido bem sucedida convosco? Não é a alma da árvore ou sua
dríade que se apresenta a mim, é ela mesma. (BUBER, 2001, p. 56-57).

Portanto, para Gadamer e Buber – bem como para Paul Ricoeur (1991)
que considera para além dos Outros que me cercam a existência de um Outro em Si
mesmo – a hermenêutica tem uma dimensão ética, pois compreender o mundo leva
à uma autocompreensão, sendo assim, a compreensão não é uma simples intenção
cognitiva-racional, mas, está marcada na experiência transcendental de cada um
com o(s) Outro(s) e, consequentemente, com o próprio Eu-(Tu/Isso).
Em relação à educação dialógica e ética voltada para uma cultura de paz
e não violência nas escolas, Martin Buber deixou a senda para a compreensão e
vivência de sua filosofia dialógica na faina pedagógica:

Martin Buber sempre se preocupou com a Educação. Já é notória a


influência de seus escritos filosóficos, em particular os relacionados ao
encontro dialógico e diversos ensaios consagrados a questões de educação
moral, educação religiosa, e educação de adultos, sobre os mais diversos
autores que tratam do processo educativo (ZUBEN, 2003, p. 17).

A perspectiva hermenêutica-ética de Buber assentada na dialogia é o


centro da concepção de educação que desenvolvemos no curso Ética para o
Diálogo, pois uma educação que se pretenda construir para enfrentar a violência
cotidiana não pode prescindir, ou negligenciar, que o papel do educador envolve um
compromisso de responsabilidade com a formação ética do caráter de seus alunos,
já que a existência é relação:

La educación digna de esse nombre es esencilamente educación del


caráter, pues el buen educador no solo tiene em cuenta lãs funciones
aisladas de su alumno como quien procua aportarle únicamente
determinados conocimientos o habilidades, sino que há de ocuparse
continuamente com esse ser humano em su totalidad, y ciertamente com
esse ser humano ea su totalidad tanto según su actual realidad, em la que
vive ante ti, como tambiém según su possibilidad, teniendo em cuenta lo
que de el puede llegar a ser desde el mismo. Ahora bien, así considerado
como um todo em realidad y em potencia, a um ser humano se Le puede
estudiar o solo como personalidad, es decir, como esta figura espiritual y
corporal única junto com lãs fuerzas que hay em el, o como carátecter, es
decir, como La relación entre la esencia de este ser único y la secuencia de
sus acciones y actitudes. [...]. No basta com que la educación del carácter
se comprima em uma hora de aprendizaje; tampoco podría camuflarse em
tiempos libres prudentemente estabelecidos al afecto. La educación no
soporta ninguna política. Aunque el alumno no advierta la intención oculta,
la registra em la actuaciín del maestro y le retira la inmediatez que
constituye su poder. Sobre la totalidad del alumno solo influye
verdaderamente la totalidad del educador, su existência toda
espontáneamente. El educador no necesita ser ningún gênio ético para
educar caracteres, pero há de ser um ser humano vitalmente completo el
que se comunica inmediatamente com su alumno: su vitalidad irradia sobre
ellos y lês influye precisamente entonces de la forma más viva y pura,
anque no piense en absoluto em querer influirles (BUBER, 2003, p. 39-40).

Essa perspectiva ética vem orientando produções acadêmicas, cursos de


formação/capacitação e projetos dos pesquisadores ligados ao Grupo de Pesquisa
Violência e Diálogo: Investigações em torno da Sociologia da Ética, vinculado ao
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará,
que desde 2004 vem desenvolvendo ações no campo da educação através da
extensão universitária com o objetivo de fomentar uma cultura de paz e de não
violência como medida de prevenção à violência nas escolas do Estado do Pará
como podemos conferir a seguir.

A experiência do Programa Novos Talentos: Curso de Formação em Ética para


o Diálogo

Em 2011 tivemos o Projeto Educação em Ética para o Diálogo como parte


do Programa Novos Talentos da CAPES. Neste ano formamos uma turma de
professores da rede pública de ensino (18 pessoas), em especial do bairro do
Guamá, entorno da UFPA.
Os resultados desse programa foram excelentes, na medida em que
oportunizou não apenas a abertura de perspectivas para a entrada na pós-
graduação com a efetiva reflexão critica sobre as relações éticas, necessária no
ambiente escolar marcado pela violência na contemporaneidade. O Programa ainda
aprofundou as relações da pesquisa com a extensão com a participação maciça dos
alunos dos Novos Talentos (professores da rede pública) no Seminário Ética e
Sociedade, realizado em maio de 2011, com patrocínio da CAPES e com presença
de pesquisadores locais, nacionais e internacionais.
Finalizamos e estamos em fase de edição do livro voltado para os
professores, VALORES PARA A PAZ, a ser distribuído gratuitamente entre os
professores da rede pública alunos dos Novos Talentos e às escolas. O livro é
produto não apenas dos encontros dos Novos Talentos, mas da pesquisa a qual o
projeto Educação em Ética para o Diálogo se vincula.
Além disso, dos professores atendidos pelo menos quatro estarão se
candidatando à seleção para Mestrado e Doutorado do PPGCS/UFPA, que ocorreu
em outubro/novembro de 2011, o que foi, evidentemente, estimulado pela
participação no Programa Novos Talentos.
De início tivemos um número de 25 professores inscritos, sendo que após
as férias intervalares de julho ocorreu uma quebra na frequência ficando em 18.
Embora os resultados positivos, a cada aula ministrada abria-se espaço para as
críticas e sugestões dos professores envolvidos no curso, sendo assim, o curso foi
construído coletivamente e assim ficou constituído:

a) Carga horária de 80 horas em sala de aula e de 30 horas (total de 110


horas), para acompanhamento e avaliação do curso. O acompanhamento
e a avaliação sistemática tornaram-se imprescindíveis e absolutamente
necessários para o alcance de resultados positivos, até porque os alunos
estarão desenvolvendo atividades relacionadas ao curso em suas escolas,
exigindo de nós um envolvimento mais sistemático.
b) Aulas de caráter teórico–prático no sentido de que após cada módulo,
além da necessária leitura de textos, haverá a realização por parte dos
alunos, como professores da rede pública que são, de atividades
envolvendo o conteúdo trabalhado naquele mês pelo Novos Talentos junto
aos seus alunos e assim estarem criando e adaptando em termos
pedagógicos estratégias de intervenção na realidade de sala de aula (ex.
sobre o tema diálogo em Buber o professor poderá estar usando filmes,
músicas ou recursos instrucionais da arte educação, por exemplo, para
trabalhar com os alunos em sala de aula o que ele apreendeu
teoricamente junto aos Novos Talentos).
c) Os recursos em 2011 foram limitados para a produção de uma cartilha,
que na realidade se transformou em livro didático, com perspectiva de
lançamento de um segundo volume denominado VALORES PARA A PAZ
(livro voltado para o professor) como recurso instrucional a ser usado em
sala de aula.

Dessa forma, em 2012 demos início ao segundo ano do Curso Ética para
o Diálogo com os seguintes módulos:

 Módulo I: Ética, Diálogo e Comunidade da Arte


 Módulo II: Ética, Alteridade e Educação
 Módulo III: Ética, Natureza e Vida
 Módulo IV: Ética, Imagem e Diálogo.
 Módulo V: Ética e Personalismo
 Módulo VI: Ética, Valores e Cidadania
 Módulo VII: Resistência Ética na Educação

Ao final de cada módulo, desenvolve-se uma atividade a partir do


conteúdo trabalhado a fim de que os professores participantes do curso apliquem
em sala de aula com seus alunos uma reflexão sobre os temas trabalhados
relacionados à perspectiva ética que fundamenta nossos projetos. Ao longo do ano,
há um espaço para orientações referentes aos projetos que os professores queiram
desenvolver em suas escolas ao longo do ano letivo a partir da temática da ética.
Como resultado de nosso curso, podemos citar alguns depoimentos de
professores que estiveram no curso no ano de 2011. Os depoimentos seguintes
foram dados por educadores que trabalham em escolas consideradas violentas. A
partir do que foi discutido no curso Ética para ao Diálogo, percebemos algumas
mudanças de atitudes na relação entre professor e aluno no que nos foi relatado.
Esses depoimentos fazem parte da dissertação de mestrado, defendida em 2011, de
autoria de Valber Brito, integrante de nosso grupo desde o começo de nossas
atividades. Percebamos nos depoimentos dos professores as mudanças de
comportamento para atitudes mais amorosas no ambiente escolar e alguns temas
que foram trabalhados ao longo de 2011 em nosso curso, tal como a resistência e o
compromisso ético em ser um educador:

A educação sozinha ela não vai resolver muitos problemas que estão
postos na sociedade e dentro da escola. Mas, por outro lado, a escola e o
educador tem um papel muito importante e fundamental nesse processo,
né, de mudança de perspectiva, né? Então sozinha, com certeza, a escola
isolada, enfim, não vai resolver muitas coisas. Como coisas que acontece
com a colega né, que aconteceu com ela e que acontece com todos nós,
mas... Agente tem um papel aí, né, agente não pode também dizer: Ah! Não
sou eu, né? Agente tem também um papel fundamental, muito importante
na sociedade. (Informante D).

Ano retrasado eu tinha um aluno que ele tinha, assim, uns dezesseis anos,
e sempre era muito difícil agente lidar com ele. Ele era muito envolvido com
uma série de situações de tráfico, de roubos. Todas as vezes em que eu
tentava falar com ele eu não conseguia. Ele me ofendeu algumas vezes,
né? Me mandou pra longe. E teve um dia que ele agrediu... eu sei que ele
agrediu um aluno dentro da escola. E aí quando fui procurar por ele (aluno
agredido) pra gente conversar, esse aluno foi saindo correndo da escola. O
pai do aluno que foi agredido é policial. E quando ele foi saindo ele avistou
uma viatura que ele conhecia os policiais, né. E aí a polícia entrou na escola
e foi atrás dele (aluno agressor), e quando eles pegaram ele, jogaram ele na
parede e então já iam algemar. Aí foi exatamente o momento em que eu
cheguei. E aí ele me olhou tipo assim, né, pedindo socorro, não falou, mas
pedia pra que eu intervisse. E aí me olhou assim com um olhar de pânico,
com muito medo. E aí eu vi que naquele momento ele confiou em mim. Era
eu... era a mim. E aí foi que eu pedi pra ele não algemar até porque ele era
menor de idade, né? E que não era assim. Agente estava dentro de uma
escola, agente ia resolver de uma outra forma. Aí entra todo mundo...
vamos conversar e tudo. E foi solucionado mais ou menos a questão de
uma maneira mais pacífica. É muito interessante, porque, durante o ano
todo, a nossa relação sempre foi muito difícil. Eu não via a hora de terminar
o ano, eu estou falando muito sinceramente. Não via a hora de terminar o
ano, sabe? Porque era muito difícil pra mim. Era o meu limite já. E aí,
quando chega um momento assim, um momento difícil, apesar dele me
ofender, dele, enfim, gritar comigo, sabe, ele pediu socorro pra mim, ali
naquele momento. (Informante B).

Vale registrar ainda o relato de outra educadora, que fez um comentário


logo após o que foi comentado acima:

Que bom que tu socorreste? Porque se tu tivesse quebrado essa


possibilidade de um começo de uma relação ia ser pior? Que bom que tu
interviu, tu acolheste. Então tu deste a ele a oportunidade de saber que,
mesmo que ele tenha te agredido, tu ainda olhava pra ele com um olhar
diferenciado, de ser humano. (Informante H).

Mesmo diante da barbárie, o educador sente que sua presença e sua


influência podem ser fundamentais na mudança de relações de violência para
relações mais fraternas. Nem um aluno, por mais que se aja de forma indiferente ao
professor, não se deixa afetar pelo menos em um pequeno momento de
aproximação com o seu educador. É por isso que Martin Buber chama atenção para
a educação de caráter como algo vivenciado no dia-a-dia das salas de aula, tal com
exposto nos depoimentos a cima.
Além de uma perspectiva ética, no depoimento dos professores podemos
perceber outro tema abordado em nosso curso, a Esperança, que também é uma
forma de estar no mundo e, portanto, incide no comportamento ético para com o
Outro. A esperança aqui é tratada a partir do pensamento de Gabriel Marcel, onde
aquele que espera não sabe se algo dará certo ou dará errado, ele simplesmente
espera, pois a esperança só acontece na plenitude e incertezas da vida diante de
uma situação difícil levando em consideração os imponderáveis de nossa existência,
sendo assim, a esperança em Marcel não admite um cálculo pré-determinado de
certeza futuras, mas apenas a experiência na vida cotidiana que pode ou não mudar
o amanhã:
Hay un aspecto general de la existencia humana según el cual ésta aparece
como cautividad, y que allí donde se presenta según este perfil es donde
precisamente aquella es, si se puede decir, propensa a la esperanza [...]
existe también una posibilidad permanente de degradación de esta
existencia, al término de la cual ésta fatalmente se hace cada vez más
incapaz para la esperanza. Por una paradoja solo sorprendente para un
pensamiento muy superficial, cuanto menos se experimente la vida como
cautividad, menos serpa capaz el alma de ver brillar esta luz velada,
misteriosa, que – ya lo sentimos antes de cualquier análisis – está en el
hogar mismo de la esperanza. (MARCEL, 2005, p. 44).

É essa esperança de um futuro melhor para os seus alunos que os


professores relatam no dia-a-dia das escolas. Mesmo com uma série de dificuldades
pessoais e profissionais (uma influenciando a outra), os professores se mantêm no
papel de educadores sabendo que uma atitude ética pode fazer a diferença no
reconhecimento de si mesmo e do seu aluno por ele mesmo como uma pessoa que
pode vir a ser melhor no futuro. Essa dedicação, essa abertura ao diálogo em sala
de aula é o patamar primeiro para o Amor, que seguramente será uma das melhores
lições que professor deixará na vida de seus alunos:

No momento em que comecei a ensinar eu me deparei com ensino precário,


com situações conflitantes que não eram do meu cotidiano, né, situação de
morte, de invasão de escola, que agente tinha de sair, de evacuar a escola
o mais rápido possível, todo mundo cada um por si, né, e agente sem saber
pra que lado vai né, porque é no centro da linha vermelha e você ou sai
acompanhado ou você se joga naquela situação ali né. Mas graças a Deus
eu tenho uma relação muito bacana com meus alunos. E eles sempre me
conduzem lá por dentro, né, me levam até a parada. As vezes até os pais
dos alunos também, que admiram o meu trabalho, né. O que me salva
ainda é isso. As vezes ninguém me oferece carona a noite, foi todo mundo
já embora e eu saio sozinha a noite daquele lugar. As vezes o aluno que me
ajuda falta naquele dia eu vou logo falando sozinha: dez horas da noite
sozinha... e eu fico lá... Aliás, um avô ou um pai de um aluno que me vê
fica ali do lado, né, me resguardando entendeu. Mas é isso. Você fica
resistindo ali com sua esperança de que com o pouco que você faz você tá
mudando vidas e fazendo a diferença de alguma forma, né... E você
percebe. Isso é o retrato do educador e não do professor. O professor é
aquele que só professa a aula, que tá ali pra passar só conteúdo; mas o
educador vai além, né, se preocupa, conversa, leva o que sente sobre a
vida. (Informante A).

Essa profissão é muito difícil, não é qualquer um que segue. O que faz
agente seguir essa profissão é o amor. Porque se agente não tiver o
amor agente sempre vai esbarrar em obstáculo, dificuldades. Quando eu
entrei e comecei a trabalhar, comecei a trabalhar em escola particular e
depois fui pro Estado. Muita diferença. Estar no Estado, muitas turmas,
muitos alunos; realidade totalmente diferente da escola particular, de
pequeno porte que eu trabalhava. E aí quando eu percebi a importância que
eu tenho pros meus alunos, como qualquer um daqui tem. Eu tenho uma
aluna que ela foi minha aluna na quinta e na sexta, é minha aluna o ensino
médio também lá na escola “D”. Então na quinta-série ela teve um
problema: ela estava sendo abusada sexualmente pelo padrasto dela. Aí
quando eu cheguei na escola, ela estava na frente, ela com as colegas
chorando. Ai eu cheguei... bora falar pro professor de “Y”! Chama ele...,
chama ele..., que ele é bacana... Bora conversar com ele que ele denuncia
teu padrasto. Aí elas chegaram: olha professor venha cá, agente quer falar
com o senhor! Olha a “X” tá chorando! O que foi “X”, quê que tu tens? Ah
professor... eu estava dormindo aí o meu padrasto abusou de mim, quando
acordei... aí o travesseiro... o lençol que era branco estava tudo cheio de
sangue, ele tirou a minha virgindade. Dava pro senhor... eu quero que o
senhor... e chorando assim..., em prantos. Chega dava desespero do
desespero dela: Eu queria que o senhor me ajudasse a denunciar meu
padrasto. Eu disse: não “X”, mas eu temo que; porque se eu denunciar ele
vai me matar ai eu disse: se ele vai te matar ele vai me matar também! Mas
vamos conversar com a diretora. Aí eu levei. Ela relatou que falou pra avó
dela. A avó dela não acreditou nela. Ela disse que ela era uma mentirosa,
queria bater nela. Levei ao conhecimento da diretora. E hoje ela é minha
aluna no ensino médio, ela é... assim, já tá uma moça já; e aí ela me
5
agradece até hoje de eu ter ajudado ela, aquilo ali foi muito importante.
(Informante I)

Então, quando eu pude ver agora, depois dela moça, uma moça já formada,
e ela me agradece até hoje de ter ajudado, eu vi a importância que eu tenho
como professor; como eu posso mudar a vida das pessoas, dos meus
alunos, acreditar que eles tem, quer dizer, todo mundo tem falhas, e que
agente é a direção. Deus sempre me ilumina... as vezes eu saio assim e
vejo colegas falando eu vou fazer concurso pra ser outra coisa, eu não
quero mais ser professor; aquilo me dá um desanimo assim : poxa, será que
eu estou seguindo essa profissão? Será que estou errado mesmo? Eu acho
que vou fazer outra coisa. Quem vai fazer isso, pra ficar igual fulano que já
tem trinta anos olha só como ele tá! Só vive reclamando aí. Tu vais
continuar? Ai eu digo: eu vou continuar porque eu gosto, porque eu tenho
amor. Por mais que eu não ganhe tanto. Eu posso até ficar como fulano,
mas eu gosto. Eu gosto disso! Eu continuo por amor. Por saber da
importância que eu tenho pros meus alunos, como todos nós temos.
(Informante I).

Quando eu cheguei na escola pública, claro que encontrei dificuldade. Tinha


um aluno que era totalmente disperso. Ele se sentava assim (educador
relata com gestos): enquanto os outros sentavam assim de frente, ele
sentava assim de lado, sabe. Eu achei aquilo estranho. E aos poucos assim
eu percebi que agente foi criando uma... a primeira relação que acho que
foi de aversão que ele teve comigo, e eu por ele. Eu olhava pra esse
menino e eu sentia assim uma raiva sabe, daquela agressividade dele,
daquele lado dele de nem querer saber de mim, de me tratar como se eu
fosse um nada ali. Aí depois, aos poucos, eu fui descobrindo ali que aquela
criança era... faltava uma criatividade pra ele. Que estava faltando mesmo
era carinho. Era confiança. Aí ele conversou. Ai agente começou a ter uma
relação. Hoje agente tem uma relação muito boa. Eu gosto muito mesmo
dele. Então ele se sente seguro. Comigo ele mudou. Ele é totalmente uma
outra criança. [...] Eu já percebi, assim: a criança ela tem que se sentir
segura com o professor. Ele tem que confiar. Porque quando ele confia, ele
aprende melhor, e atitudes são mudadas. (Informante F).

Eu tenho esperança no ser humano. Sempre. Eu acho que a criança precisa


muito de alguém pra orientar ela, sabe. E agente como professor as vezes

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Por questão ética, para preservar a identidade dos informantes, as letras “D”, “Y” e “X” foram
colocadas aleatoriamente para representar escola, professor e aluno(a) que eventualmente foram
citados no relato. Não significa as iniciais dos nomes dos mesmos. (BRITO, 2011).
não sabe como agente é importante pra uma criança. Vai saber depois,
depois de muito tempo o como agente foi importante, quanto agente ajudou
positivamente. Eu acho que o que me mantêm, mesmo com toda a
dificuldade da profissão, é a esperança no ser humano. (Informante J).

Eu acredito ainda no ser humano, né. E eu tenho convicção que, no dia em


que eu deixar de acreditar nele, eu deixo também de acreditar em mim e
naquilo que eu faço. Eu gosto do que eu faço. É por isso que ainda eu estou
na educação. (Informante H).

Diálogo, Esperança e Amor, todos esses são componentes de uma


relação ética no ambiente escolar que mesmo envolto na barbárie cotidiana, ainda
sim possui resistências éticas que fazem com que as relações diretas no face a face
com os alunos transformem o cotidiano e quiçá o amanhã de nossos professores e
alunos.

Considerações Finais

O Curso Ética para o Diálogo mostrou o quanto os professores da rede


pública de ensino estão disponíveis em transformar a realidade escolar em que
vivem por meio da reflexão e atitudes éticas para com toda a comunidade escolar
em que estão inseridos. Mesmo em face à dificuldades materiais e em meio à
violência presente nas relações do cotidiano da escola, a ética assentada na
percepção da alteridade da pessoa, na percepção da dignidade do Outro enquanto
pessoa, tendo isso como valor absoluto, faz com que os educadores modifiquem as
relações no âmbito escolar para melhor, mesmo que essas mudanças sejam
pequenas e pontuais diante da grande dimensão das escolas em que atuam.
Fundamental é perceber que esse processo de construção de relações
não violentas, baseadas no amor, no respeito e na paz, por parte dos professores e
gestores que participaram e ainda participam do curso, é um processo envolto na
esperança de que no futuro as relações melhorem e, consequentemente, o caráter
de seus jovens alunos possa ser preenchido com o Bem transmitido no encontro
diário no espaço escolar.
As dificuldades são muitas, mas, para além de soluções imediatas e
objetivas (necessárias), existem as mudanças construídas no dia a dia, no face a
face com pequenos gestos de acolhida, carinho e atenção, que constroem uma
mudança no campo moral e espiritual; dimensões essas que não podem ser
negligenciadas já que fazem parte da existência de cada um enquanto pessoa
digna, dignidade essa sempre possibilitada pelo encontro dialógico com o Outro e
consigo mesma.

Referências

BRITO, Valber Oliveira de. Educação e diálogo: o papel do educador em meio à


esperança. 2011. 125f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal do Pará, Belém.

BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Centauro, 2001.

__________. El camino del ser humano y otros escritos. Tradução de Carlos


Díaz. Madrid: Fundación Emmanuel Mounier, 2003.

GADAMER, Hans-George. Verdade e Método. Vol I. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

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2003.

GANDHI, Mohandas K. Autobiografia: minha vida, minhas experiências com a


verdade. São Paulo: Palas Athena, 1999.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, s/d.

MARCEL, Gabriel. Homo Viator: prolegómenos a una metafísica de la


esperanza. Ediciones Sígueme: Salamanca, 2005.

MENDONÇA, Kátia. Caminhos da sociologia da ética. Seminário Ética e


Sociedade. p. 1-10, 2011.
MOUNIER, Emmanuel. O personalismo. São Paulo: Centauro, 2007.

PALMER, Richard. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 1969.

RICOEUR, Paul. O si mesmo como um outro. Campinas, SP: Papirus, 1991.

TAGORE, Rabindranath. A morada da paz. Campinas, SP: Verus, 2010.

TOLSTOI, Leon. O que é Arte?. São Paulo: Ediouro, 2002.

VON ZUBEN, Newton Aquiles. Martin Buber: cumplicidade e diálogo. Bauru, SP:
EDUSC, 2003.

WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais. São Paulo: Cortez, 2001.

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