Rio de Janeiro
2014
Júlia Jenior Lotufo
Rio de Janeiro
2014
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEH-B
CDU 7.041
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação, desde que citada a fonte.
_____________________________________________ _____________________
Assinatura Data
Banca Examinadora:
_____________________________________________
Profª. Dra. Denise Espírito Santo da Silva (Orientadora)
Instituto de Artes - UERJ
_____________________________________________
Profª. Dra. Eleonora Batista Fabião
Universidade Federal do Rio de Janeiro
_____________________________________________
Profª. Dra. Eloísa Brantes Bacellar Mendes
Instituto de Artes – UERJ
Rio de Janeiro
2014
DEDICATÓRIA
AGRADECIMENTOS
Aos meus irmãos David, André e Gabriel e minhas cunhadas Layza, Dorothee e Leatrice pela amizade
e incentivo.
Aos meus sobrinhos Ian, Max e Vida pelo carinho e alegria compartilhada.
À Denise pela rica contribuição, dedicação, abertura e interesse por essa pesquisa.
À Eleonora Fabião pelas preciosas considerações, pela leitura cuidadosa, pela disponibilidade e pela
generosidade do material cedido.
Ao Coletivo Líquida Ação representado por Evee Ávila, Julia Ariani, Mauricio Lima e Thaís
Chilinque, por tantas águas compartilhadas.
À Ana Emília e João Paulo pelas boas conversas e pelo lar que compartilhamos e que ajudaram a
construir.
Às amigas Ana Lúcia, Camila Duarte, Daniela Moreno, Elisabeth Hess, Elisângela Mira, Gabriela
Martins, Marília Freitas, Mirella Ferraz, Nathalia Gomes pela amizade, pelos projetos e desejos
compartilhados.
Aos amigos Higgor, Jairo e Rodrigo por tornar minha estada no Rio mais doce.
Aos integrantes do coletivo La Pocha Nostra, em especial à Dani D’emilia, Guillermo Gómez Peña e
Roberto Sinfuentes, pela generosidade em compartilhar o processo do La Pocha Nostra, pela
radicalidade do trabalho e pelo desejo de transformação.
Aos professores de graduação Davi Dolpi, Acevesoreno Flores, Clarissa Alcântara , Tristan Castro-
Pozo, Gobira Gobs pelo conhecimento compartilhado e dedicação.
RESUMO
LOTUFO, Júlia Jenior. Método Pocha: práticas de ensino em performance para cruzadores de
fronteiras. 2014. 112 f. Dissertação (Mestrado em Arte, Cognição e Cultura) – Instituto de
Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
ABSTRACT
LOTUFO, Júlia Jenior. Method Pocha: teaching practices in performance for border crossers.
2014. 112 f. Dissertação (Mestrado em Arte, Cognição e Cultura.) – Instituto de Artes,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................ 10
3 PEDAGOGIAS DA PERFORMANCE........................................................... 85
CONCLUSÃO.................................................................................................... 103
10
INTRODUÇÃO
Faço arte...
para deglutir minhas entranhas/para explodir sistemas/para desestabilizar o conhecido/para questionar fronteiras/para ser livre
com o mundo/para provocar, celebrar/para enfrentar medos/ para jogar com possibilidades de mim/ para buscar a
ressurreição/ para reviver/ para me virar ao avesso/ para purgar o ódio/ para cruzar múltiplas dimensões/ para sair de mim/
para ser sendo outro/ para reinventar os objetos do mundo...1
1
Textos poéticos/performáticos gerados por participantes de diferentes workshops do coletivo La Pocha Nostra,
a partir do exercício ‘Poetic exquisite corpse – Mapping new terriotories of inquiery’. (GÓMEZ-PEÑA;
SIFUENTES, 2011, p. 79-81).
2
Atriz, performer, pesquisadora e professora na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Membro da banca de qualificação e defesa dessa dissertação.
3
Diretora, performer e professora no Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Membro da
banca de defesa dessa dissertação.
11
4
Coletivo de artistas, formado em 2006, que realiza performances e intervenções urbanas, sediado no Rio de
Janeiro, com direção artística de Eloísa Brantes. Em seus trabalhos propõe a democratização da arte em lugares
públicos, trazendo como principais matérias de composição de suas obras o corpo, a água e o espaço.
12
Nostra, e fiquei encantada. Apresento aqui uma perspectiva do meu encontro com esse
coletivo, das leituras e questões que me suscitaram e que desejo compartilhar.
Desestabilizar mapas em uso, questionando as delimitações e demarcações vigentes,
desorganizar limites entre os diferentes territórios e seus usos, reinventando cartografias que
dialoguem com as necessidades e características do nosso tempo, são alguns dos objetivos
dessa investigação que busca diluir, borrar e cruzar fronteiras. Cartografia aqui entendida
enquanto escrita experimental que, como Suely Rolnik ressalta, ‘se faz ao mesmo tempo que
os movimentos de transformação da paisagem’:
Para os geógrafos, a cartografia – diferentemente do mapa: representação de um
todo estático – é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os
movimentos de transformação da paisagem. [...] A cartografia, nesse caso,
acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos –
sua perda de sentido e a formação de outros: mundos que se criam para expressar
afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se
obsoletos.” (ROLNIK, 2007, p.23)
possibilidades de diluição das fronteiras entre arte e vida. Enquanto sujeito de múltiplas
identidades, o performer é pensado como experimentador e educador de si. Evidenciando
formações identitárias complexas que aproximam do que Canevacci (CANEVACCI, 2007,
p.108) nomeia como multivíduos, ao dizer sobre estas novas formações dos sujeitos,
dificilmente categorizáveis:
Não sou mais um indivíduo, mas um multivíduo, dificilmente apreensível ou
rotulado a partir das classificações socioantropológicas tradicionais. Não se pode
enquadrar em classificações o que é naturalmente vário, fragmentado. Como fixar
em tabelas o que é móvel e fugidio? Por outro lado, há de se considerar a
emergência das novas identidades diaspóricas, que trazem desafios ao ordenamento
jurídico e administrativo dos estados/cidades e mesmo às culturas estabelecidas. Do
encontro/desencontro cultural surgem as múltiplas formas de hibridismo cultural.
A formação de novas diásporas, não mais referentes aos fluxos migratórios forçados,
mas às ‘deportações voluntárias’, possibilitam o surgimento do multivíduo, enquanto ‘sujeito
diaspórico’, que não se relaciona mais com as identificações fixas, mas sim com hibridismos e
sincretismos culturais. A possibilidade inédita em ‘viver uma multiplicidade identitária’, faz
com que esse sujeito agora possa assumir-se como criador e experimentador de si, transitando
por entre diferentes códigos, culturas, identidades.
A partir de deslocamentos que aproximam, justapõe e mesclam referências diversas,
deslocam-se signos de seus habitats naturais. Performers, em diferentes programas, práticas e
procedimentos, utilizam objetos de diferentes origens e culturas, recriando símbolos, objetos
rituais, misturando elementos iconográficos e fetichistas de locais diversos. Desse modo, se
apropriam e devoram tudo que encontram no caminho.
Tal fusão de imagens, símbolos, mitos e atitudes, a partir de inversões, travestimentos
culturais e subversão de poderes, desestabilizam as noções identitárias hegemônicas.
Identidade que, nesse sentido, já não é mais compreendida como unidade, fixa, coerente, mas
complexa, mutante, móvel, fluída, composição própria e precária a partir de identificações,
apropriações, montagens.
É, nesse sentido, que esses escritos fronteiriços, desrespeitando delimitações
estanques, segregações e demais separatismos, trazem como objeto de investigação a arte da
performance e seus desdobramentos pedagógicas. Tendo como enfoque o coletivo La Pocha
Nostra, o intuito dessa abordagem é compreender a performance enquanto ‘pedagogia
radical’, trazendo o ‘método Pocha’ enquanto metodologia ‘work in progress’ que investiga
possibilidades de formação performática.
O coletivo La Pocha Nostra, sediado em São Francisco – EUA, se estrutura enquanto
uma organização, rede de artistas de diferentes idades, gêneros, etnias, nacionalidades,
16
Assim tento trazer essas ‘nossas impurezas’ como questões que permeiam a presente
investigação, buscando as vozes dissonantes, identidades disruptivas, e questionando padrões
e representações vigentes. São convocados autores que discutem a partir de uma perspectiva
descentrada em relação ao poder estabelecido, e desafiam as cartografias em uso, criando um
percurso que atravessa os estudos culturais e pós-coloniais, a teoria queer e as filosofias da
diferença, na medida em que dialogam com as interrogações pertinentes ao caminho traçado,
diante das fronteiras que se pretende atravessar.
Tomás Tadeu da Silva (2000, p.133), autor que pensa a educação na perspectiva dos
estudos culturais, articulando abordagens sobre identidade/diferença e currículo, aponta que
“cruzar fronteiras significa não respeitar os sinais que demarcam ‘artificialmente’ – os limites
entre os territórios das diferentes identidades”. Cruzar fronteiras aqui se torna pertinente tanto
à proposta estética/ética/política do La Pocha Nostra quanto à abordagem que se busca traçar.
Habitar espaços fronteiriços se mostra enquanto uma opção política em que reinventar
possibilidades de colaboração e diálogo é parte intrínseca do processo artístico. Ao questionar
as demarcações que visam barrar os fluxos e trânsitos livres entre diferentes territórios,
8
Disponível em:<http://www.artpractical.com/feature/interview_with_guillermo_gomez-pena/>. Acesso em:
10/11/2012.
“É essencialmente um neologismo. ‘Pocho/a’ significa um traidor cultural, ou um bastardo cultural. É um termo
cunhado por mexicanos que nunca deixaram o México para articular a experiência mexicana pós-nacional. É um
pouco depreciativo, mas o temos expropriado como um ato de poder. E "Nostra" vem de La Cosa Nostra, a
máfia italiana. Assim, você pode traduzi-lo livremente como o cartel dos traidores culturais, ou há outra tradução
mais poética que significa, essencialmente, ‘nossas impurezas’.” (tradução nossa).
17
9
Disponível em: <http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Geopolitica.pdf>. Acesso em:
12/11/2012.
18
segundo Guillermo Gómez-Peña (2005, p.204), como um locus privilegiado para nômades,
emigrantes, híbridos, desterrados. Um lugar “(...) para artistas, teóricos e rebeldes expulsos
dos campos monodisciplinares e das comunidades separatistas.”. Mostrando-se, por fim,
aberta às experimentações em torno das complexidades próprias do nosso tempo.
Arte da performance
19
cena. As investigações da body art, dos limites e das capacidades do corpo, em que o mesmo
é tomado como a própria obra e não mais apenas como instrumento de sua realização,
deságuam na performance na busca de um maior aprofundamento a respeito dos discursos que
envolvem o corpo.
Enquanto evento que propõe e estabelece um tempo/espaço diferenciado daquele
habitualmente vivido no dia-a-dia, a arte da performance convoca ações corriqueiras, objetos
cotidianos, relações estabelecidas, de modo a serem transfigurados, apropriados,
redimensionados. Propiciando experiências onde nossa percepção usual e compreensão do
que nos cerca e das relações em que estamos inseridos - conosco, com o outro, com os
objetos, com o espaço e com o tempo - são alteradas.
Guillermo Gómez-Peña (2005) em seu texto Em defesa del arte del performance, na
busca de refletir sobre sua prática e reconhecer características que também identifica no
trabalho de outros performers, aponta que na performance o espaço do ponto de vista
fenomenológico é vivido através de um aqui e agora hiperintensificado, de uma presença e
atitude intensificada que se estabelece em relação direta com o espaço ambíguo entre tempo
real e tempo ritual, em oposição ao tempo teatral ou fictício.
Lidiamos con la “presencia” y la actitud desafiante em oposición a la
“representación” o la profundidad psicológica; con el “estar aquí” en el espacio en
oposición al “actuar” o fingir que somos o estamos siendo. Richard Schechner
elabora la siguiente idea: “En el arte del performance la ‘distancia’ entre lo real-
verdadero (social y personal) y lo simbólico, es mucho menor que en el teatro de
drama donde casi todo consiste en fingir, donde incluso lo real (una taza de café, una
silla) se convierte en fingimiento.10 (GÓMEZ-PEÑA, 2005, p.220)
Eleonora Fabião ainda sugere as vantagens de uma perspectiva histórica, que relativiza
a origem da performance, se mostrando mais interessante do que uma compreensão que
11
Disponível em: < http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=652907>. Acesso em: 15 dez. 2012.
21
busca definir em termos limitadores o seu significado. Para que possamos ter um melhor
entendimento de como o gênero é construído, torna-se necessário o reconhecimento do que se
tem feito ser performance, de onde podemos encontrar uma serie de apontamentos, sempre
provisórios, para a questão ‘o que é performance’.
Guillermo Gómez-Peña (2005) ressalta a natureza escorregadia e em permanente
mudança da performance o que torna extremamente difícil definir em termos simplistas o que
seja essa linguagem artística. Aponta ainda a importância de não se estabelecer postos de
controle sobre o mapa da prática performativa. Ao refletir sobre a sua atividade artística, traz
a performance também como uma atitude frente ao mundo.
El performance es una forma de ser y estar em el espacio, frente a/o alrededor de un
público especifico. También es una mirada intensificada, un sentido único de
propósito en el manejo de objetos, compromisos y palabras y, al mismo tiempo, una
“actitud” ontológica hacia todo el universo. Los chamanes, faquires, coyotes y
merolicos comprenden esto muy bien.12 (GÓMEZ-PEÑA, 2005, p.220)
Ao reconhecer essa potência que remete diretamente à vida e nossa relação estética
com o cotidiano, com a alteridade, com nosso corpo, com o espaço, com o tempo, com a
sociedade, a presença de tal linguagem no contexto formativo se faz pertinente ainda em razão
de suas temáticas, frequentemente relativas às experiências de vida e existência humana. Nas
diferentes performances são trazidos temas e questões pessoais relativas à vida do performer
12
A performance é uma forma de ser e estar no espaço, frente a/ou ao redor de um público específico. Também é
um olhar intensificado, um sentido único de propósito no manejo dos objetos, compromissos e palavras e, ao
mesmo tempo, uma ‘atitude’ ontológica com todo o universo. Os xamãs, faquires, coiotes e ‘merolicos’
compreendem isso muito bem.” (tradução nossa)
22
23
13
Disponível em: <http://jolgoriocultural.wordpress.com/entrevistas/> Acesso em: 18/12/2012.
“O objetivo, ou um dos objetivos pedagógicos da oficina, é descolonizar o corpo. Reocupá-lo intelectualmente, politizá-lo e
converte-lo em um lugar de reinvenção permanente da identidade. E para conseguir esse objetivo, precisamos começar a nos
ressocializar. A parar de pensar o corpo em um objeto de desejo erótico. E pensar o corpo como um território, como um
mapa, como a linguagem, como texto aberto, como um instrumento musical, como um veículo para múltiplas identidades,
como metáfora permanentemente mutante, como símbolo; como um artefato estético também.” (tradução nossa)
24
1 LA POCHA NOSTRA
I say, we say:
‘We,’ the Other people
We, the migrants, exiles, nomads & wetbacks
in permanent process of voluntary deportation
We, the transient orphans of dying nation-states
la otra America; l’autre Europe
We, the citizens of the outer limits and crevasses
of ‘Western civilization’
We, who have no government;
no flag or national anthem
We, the New Barbarians
We, in constant flux,
from Patagonia to Alaska,
from Juarez to Ramalla,
todos somos mojados
We, the seventh generation, the fourth world, the third country
We millions abound,
defying your fraudulent polls & statistics
We continue to talk back & make art
[Shamanic tongues]14
14
“Para mentores do nacionalismo paranoico// Eu digo, nós dizemos://"Nós", as outras pessoas//Nós, os
imigrantes, os exilados, nômades e latinos//em permanente processo de deportação voluntária//Nós, os órfãos
transitórios dos moribundos estados-nação//A outra América; a outra Europa//Nós, os cidadãos dos limites
exteriores e das fendas da "civilização ocidental"//Nós, que não temos governo//nenhuma bandeira ou hino
nacional//Nós, os novos bárbaros//Nós, em fluxo constante//da Patagônia ao Alasca//de Juarez para
Ramalla//Todos somos mojados//Nós, a sétima geração, o quarto mundo, o terceiro mundo//Nós milhões
infestamos//desafiando suas votações fraudulentas e estatísticas//Continuamos a falar de volta e fazer
arte//[Línguas xamânicas]” (tradução nossa)
25
capítulo estão: Belidson Dias, Coco Fusco, Eleonora Fabião, Guillermo Gómez-Peña, Homi
Bhabha, Judith Butler, Massimo Canevacci, Maurice Merleau-Ponty, Nestor García Canclini,
Nicolas Bourriaud, Stuart Hall, Tomaz Tadeu da Silva e Suely Rolnik.
hegemônicos. Canclini (1999, p.75) corrobora com essa questão quando diz que “(...) não é
necessário ser migrante indígena para experimentar a parcialidade da própria língua e viver
apenas fragmentos da cidade”. De diferentes formas sentimos as fendas que se abrem diante
da suposta cultura oficial de uma nação.
15
GÓMEZ-PEÑA, 2005, p. 6.
27
O fato é que essa população não para de crescer, sujeitos híbridos, fronteiriços, somos
todos nós. Como podemos constatar, são 35 milhões de mexicanos pós-nacionais, aculturados
(ou chicanizados), juntamente com outros tantos latinos, que vivem em território
estadunidense. Para Gómez-Peña a própria existência dessas múltiplas formações identitárias
demanda uma nova cartografia – uma nação virtual em que latinos, com documento ou não,
possam usufruir os mesmos direitos e privilégios dos cidadãos norte-americanos.
Nesse sentido, ele não sugere apenas uma tolerância liberal, mas propõe uma outra
concepção política a respeito da imigração, em que as diferenças sejam encorajadas e palavras
28
Por outro lado, os Zapatistas traziam as questões indígenas para a discussão das
políticas nacionais. Utilizavam, para tanto, desde alegorias poéticas, cyber comunicados e
estratégias performáticas como procedimentos de ação. Esse movimento exerceu uma forte
influência nos trabalhos e projetos de Gómez-Peña e do La Pocha Nostra.
29
assim uma poética singular numa espécie de interseção entre performance, teoria,
comunidade, novas tecnologias e ativismo político.
O coletivo La Pocha Nostra surge em 1993, fundado por Guillermo Gómez-Peña, Nola
Mariano e Roberto Sinfuentes, na cidade de Los Angeles. Em 1995 transferem sua sede para
São Francisco – Califórnia. Organização artística em constante processo de reinvenção, o La
Pocha Nostra abrange em sua prática artística tanto performances, como também foto-
performances, instalações artísticas, vídeo, rádio, poesia, configura-se enquanto instituto
conceitual de arte híbrida, em caráter transdisciplinar.
Com objetivo inicial de desdobrar as colaborações entre Guillermo Gómez-Peña,
artista mexicano radicado nos EUA, e outros artistas, hoje o La Pocha Nostra envolve um
grande grupo de colaboradores residentes em diferentes localidades. A partir de um núcleo
mais fixo de artistas (número sempre instável) com dedicação mais exclusiva, se reúnem
cerca de cinquenta colaboradores em todo o mundo. A atuação do La Pocha se dá tanto
através de propostas artísticas realizadas individualmente, como também por meio de um
grande número de artistas que se reúnem em comunidades efêmeras.
Além dos integrantes do núcleo mais fixo, e de artistas que integram o grupo de forma
mais esporádica, a colaboração com outras pessoas/artistas pode se efetivar a partir dos
workshops, de colaborações com artistas locais, e da participação de pessoas do público, que
se tornam também cocriadores da obra. Podemos enxergar na proposição de criação de
comunidades efêmeras a possibilidade de ensaiar novas táticas, estratégias e modos de
colaboração no processo criativo.
Durante os cursos e oficinas do La Pocha, os participantes são convidados a
desenvolver ‘personas híbridas’ baseadas em suas próprias complexidades identitárias,
estéticas pessoais e convicções políticas. O emponderamento e a autonomia são objetivos
centrais dos experimentos pedagógicos do La Pocha, a criação de novos modelos de
produção, mais igualitários, sugere a substituição de processos hierárquicos de produção.
Em spanglish o neologismo La Pocha Nostra se traduz como nossas impurezas ou
como cartel de bastardos culturais. Na base do trabalho desse coletivo se assenta a busca
daquilo que não é puro, claro e cristalino, mas que se encontra nesse entre, nos espaços
fronteiriços, entendidos também como espaços de experimentação, de indeterminação, do
disperso – que não pode ser controlado, categorizado.
La Pocha Nostra é um coletivo de artistas, anti-essencialista, que vai contra as
‘políticas do medo’ e a histeria anti-imigrante, dizendo não às censuras, ao patriotismo, às
30
16
Disponível em: < http://revistas.unisinos.br/index.php/ciencias_sociais/issue/view/21>Acesso em: 06 jan.
2013.
“La Pocha Nostra é uma organização transdisciplinar de arte com sede em São Francisco, e conectado a "grupos
de parceiros" em muitas cidades e países. Como sugerido pelo nosso site, nós fornecemos a base para uma rede
informal de artistas rebeldes em diferentes disciplinas, gerações e etnias. Se há um denominador comum, este
seria o nosso desejo de atravessar e apagar fronteiras perigosas e desnecessárias entre a arte e a política, a prática
e a teoria, o artista e o espectador. Nós lutamos para erradicar os mitos modernistas sobre a pureza na cultura, e
dissolver as fronteiras que cercam as noções convencionais de etnia, sexualidade, linguagem e os ofícios
artísticos.” (tradução nossa).
31
17
“Nossos corpos também são territórios ocupados. Talvez o objetivo final da performance, especialmente se
você é mulher, gay ou uma pessoa "de cor" (não- Anglo saxão), é descolonizar o nosso corpo, e deixar claro estes
mecanismos de descolonização para o público, com a esperança de que eles se inspirem a fazer o mesmo por
conta própria.”(tradução nossa).
32
18
Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=XW7tGLeeO80>. Acesso em: 20 jan. 2013.
19
“Ao contrário das fronteiras impostas por um estado/nação, as fronteiras no nosso ‘país da performance’ estão
abertas para os nômades, os migrantes, os híbridos e os desterrados. Nosso país é um santuário temporário para
outros artistas e teóricos rebeldes expulsos dos campos mono-disciplinares e das comunidades separatistas.”
(tradução nossa)
20
Referência ao que Canclini (2001) define como desterritorialização e reterritorialização. “Com isso refiro-me a
dois processos: a perda da relação ‘natural’ da cultura com os territórios geográficos e sociais e, ao mesmo
tempo, certas relocalizações territoriais relativas, parciais, das velhas e novas produções
simbólicas.”(CANCLINI, 2011, p.309)
34
distintos. É nesse viés que aprofundaremos, nos tópicos seguintes, o contágio entre corpos,
objetos, tempos, referências culturais de origens diversas, apontados nas práticas, temáticas e
procedimentos do La Pocha Nostra.
Impossível não se perceber que não se é um – mas vários: pura dispersão, numa sequência aleatória e ilimitada de territórios
finitos e efêmeros. 21
não-homem, não-ocidental. O rótulo de exótico revela uma projeção do outro que ainda
reproduz práticas colonialistas. Os integrantes do La Pocha Nostra, críticos das representações
realizadas por instituições culturais dominantes e pela mercantilização da cultura popular em
situações turísticas, utilizam do humor como estratégia subversiva.
Ao parodiar tais imaginários, expõem não só as representações desse ‘outro’ pela ótica
colonial, como também os desdobramentos e atualizações de tais visões que, ainda hoje,
deturpam e fixam sob estereótipos as diferentes identidades e culturas não-hegemônicas. O
exercício de problematizar e criar fissuras no discurso e imaginário colonial de representação
dos povos não europeus ou anglo-saxões apresenta-se como uma prática de descolonização de
extrema importância ainda hoje.
Durante la última década he estado experimentando con el formato colonial del
"diorama". Mis colaboradores y yo elaboramos "dioramas vivientes"(y agonizantes)
que parodian y subvierten ciertas prácticas de representación que se originaron en la
época colonial, incluyendo a los tableaux vivants etnográficos como los que se
encuentran en los museos de Historia Natural y de Antropología, los freak shows o
monstruos de feria, las curio shops o tiendas de curiosidades fronterizas y las porno-
vitrinas. 23
23
Disponível em: < http://www.pochanostra.com/antes/jazz_pocha2/mainpages/dioramas.htm >. Acesso em:
01/02/2013.
“Durante a última década tenho experimentado com o formato colonial do "diorama". Meus colegas e eu
elaboramos "dioramas vivos" (e agonizantes) que parodiam e subvertem certas práticas de representação que se
originaram na época colonial, incluindo os tableaux vivants etnográficos como os que são encontrados nos
museus de História Natural e Antropologia, os freak shows ou monstros de feira, os curio shops ou tendas de
curiosidades fronteiriças e as pornô-vitrines.”. (tradução nossa)
36
Figura 2 – Coco Fusco e Guillermo Gómez-Peña na performance Two Undiscovered Amerindians Visit the West.
37
Figura 3 - Coco Fusco e Guillermo Gómez-Peña na performance Two Undiscovered Amerindians Visit the West.
Em Two Undiscovered Amerindians Visit the West Coco Fusco e Guillermo Gómez-
Peña eram expostos em uma jaula durante três dias como ameríndios não descobertos de uma
ilha do Golfo do México, nomeada Guatinaui. Enquanto habitantes dessa ilha, os performers
realizavam atividades ‘tradicionais’ do local, desde costurar bonecas vudú, até levantar pesos,
assistir televisão e trabalhar em um computador portátil.
Os visitantes podiam, em troca de uma pequena taxa depositada em uma caixa em
frente à jaula, ver a coreografia realizada por Coco Fusco ao som de rap e escutar ‘autênticos’
relatos ameríndios – falados em uma língua sem sentido. Os dois executavam rituais
‘tradicionais’, dançavam, cantavam e contavam histórias da suposta ilha de Guatinaui, como
também, utilizavam o computador para comunicar-se com o ‘xamã’ da tribo, e assistiam
vídeos de sua terra natal. Os visitantes podiam tirar fotos com os nativos.
Guillermo Gómez-Peña vestia-se como um lutador asteca de Las Vegas e Coco Fusco
se apresentava como uma nativa da ilha. Ambos eram alimentados por dois guias/guardas do
museu, que lhes davam frutas e sanduíches, e eram responsáveis por levá-los ao banheiro
38
24
Como o relato de um membro mais velho da etnia pueblo do Arizona, que disse que a exibição era mais real
que qualquer outra declaração acerca da condição dos povos nativos no museu, ou mesmo de jovens mexicanos
que confidenciaram que a cada dia que passavam na Europa sentiam-se em uma jaula.
39
Néstor García Canclini (2009, p. 161) contribui com importantes apontamentos sobre
a impossibilidade da construção e da representação de culturas nacionais a partir de
iconografias específicas:
Para Coco Fusco a arte da performance intercultural no Ocidente não começou com os
eventos Dadaístas, mas sim nos primeiros dias da ‘conquista’ europeia, momento em que
foram levadas ‘mostras aborígenes’ de povos da África, Ásia e do continente americano, para
25
Disponível em: <http://www.pochanostra.com/antes/jazz_pocha2/mainpages/dioramas.htm.>
Acesso em 18/01/2013.
40
41
Em seu texto intitulado Museums in the Colonial Horizon of Modernity: Fred Wilson´s
Mining the Museum o pesquisador argentino Walter Mignolo (2011, p. 374) aponta que o
museu no mundo moderno/colonial desempenhou um importante papel na colonização de
seres e de conhecimento. Ao pensar a possibilidade de descolonização dos museus, reflete
sobre os possíveis desdobramentos de uma desobediência epistêmica e estética que levassem
à desconstrução do que foram os museus na história moderna/imperial. Nesse sentido,
podemos compreender a performance Two Undiscovered Amerindians Visit the West como
um ato de descolonização que se insere no contexto institucional e subverte-o.
Diferentes estratégias são elaboradas por artistas e curadores na tentativa de repensar,
transfigurar e descolonizar museus e acervos. Uma crítica atual é travada em relação às
diversas formas de fetichização e à acumulação de objetos da alteridade, coleções que
iniciaram com as expedições coloniais. Diversas práticas são atualmente realizadas nesse
sentido, desde o reposicionamento de obras, a investigação da história das coleções dos
museus e dos objetos e documentos de seu acervo e arquivo, até mesmo a repatriação de
objetos ou a criação de museus de grupos, como estratégia de possibilitar a auto-representação
e descentralização.
42
A relação entre corpo e mercadoria é complicada nas formações imagéticas criadas nas
diferentes performances, colocando em jogo relações sociais próprias dos trânsitos
contemporâneos. Em diferentes performances do La Pocha Nostra evidenciam-se jogos de
subversão a partir de desdobramentos entre corpo/objeto/mercadoria que levam ao extremo as
relações aí imbricadas, problematizando-as. Nesse sentido, apontam para a criação de novas
formas e procedimentos que possibilitem romper, acelerar, ralentar e elevar ao extremo as
atuais relações em torno das noções de identidade, corpo, objeto, natureza, cultura, política e
educação.
Problemáticas entre corpo, objetos, mercadorias e dispositivos – enquanto mediadores
da relação dos sujeitos com o mundo – surgem no contexto de propostas artísticas atuais
como um rico material complicador dessas noções. Encontramos em diferentes trabalhos
contemporâneos em dança experimental e performance art uma rica investigação em torno do
uso de objetos e coisas, compreendidos e utilizados de formas diversas. André Lepecki
(2012), em seu artigo 9 variações sobre coisas e performance, traz importantes contribuições
para pensar os desdobramentos do uso de objetos nessas criações artísticas. Para o autor,
diversos artistas vêm trabalhando em uma perspectiva que enxerga o objeto além de sua
função meramente utilitária, de modo que permite a investigação da relação objetiva/subjetiva
da coisa.
“[...] Todo diálogo intercultural ou transfronteiriço surge a partir [dele]. Quais são as implicações de cobri-lo,
descobri-lo, quais são as implicações de um corpo indígena, o corpo nu negro ou de um corpo nu anglo-saxão.
Ou apenas o corpo nu de uma mulher. Eles têm códigos semânticos completamente diferentes.”. (tradução nossa)
45
É um si não por transparência, como o pensamento, que só pensa seja o que for
assimilando-o, constituindo-o, transformando-o em pensamento – mas um si por
confusão, por narcisismo, inerência daquele que vê ao que ele vê, daquele que toca
ao que ele toca, do senciente ao sentido – um si que é tomado portanto entre as
coisas, que tem uma face e um dorso, um passado e um futuro...
Tal compreensão localiza a formação do corpo, do sujeito, nessa rede indivisível entre
senciente e sentido, esse corpo soma-se às demais coisas, que passam a ser para o autor ‘um
anexo ou um prolongamento dele mesmo’, ‘incrustadas em sua carne’. As dicotomias entre
externo e interno, ativo e passivo, sujeito e objeto se tornam pouco significativas para tal
compreensão, que enxerga o sujeito constituído diretamente dentro das relações que
estabelece no/com o mundo.
Na conjuntura da sociedade contemporânea, o intercâmbio entre corpo e tecnologia
implica decisivamente no modo de percepção corpórea. A técnica invade e integra o ser
humano, o que implica em modificações corporais mediante o avanço tecnológico e influencia
diretamente as nossas experiências de mundo. Das camadas mais simples de influências dos
objetos manipulados em nosso dia-a-dia, até a utilização de ferramentas de alta complexidade,
46
se configuram como presenças intrínsecas na configuração de nossa existência atual, seu uso é
determinante na relação de corpo que estabelecemos.
A experiência contemporânea está diretamente relacionada às contaminações entre
corpo e máquina. Orgânico/inorgânico, passivo/ativo, sujeito/objeto, corpo/ciborgue são
categorias que se confundem e questionam o papel do sujeito enquanto único agente
determinador de sua existência. Das formas mais diversas o desenvolvimento científico e
tecnológico tem influenciado cada vez mais na dissolução dessas dicotomias.
Esta gama de interferências maquínicas e tecnológicas na vida dos sujeitos elevam em
alta potencia a já citada contaminação entre corpo e objeto. Próteses, extensões do corpo,
objetos que transferem seus poderes para o sujeito e autômatos surgem como questões
contemporâneas que discutem de maneiras diversas os desdobramentos dessa influência
irreversível entre corpo e tecnologia. Torna-se importante pensar qual estatuto de
corporeidade forma-se nessa nova configuração de corpo.
Assim como nunca foi possível a distinção idealizada entre sujeito e objeto, que por
algum tempo foi defendida por diferentes teóricos, esse sujeito que não mais nomeia, que não
reconhece a si mesmo nem o objeto fora de si, revela-se também enquanto um ser que perde o
que há nele de humano – um corpo esvaziado, solapado de sua existência.
Esse corpo que se confunde e se mistura, se faz enquanto corpo impuro. Corpo
híbrido. Corpo mutante. Corpo que tem a sua posição na sociedade continuamente
questionada. Que carne é essa? Esse corpo que subverte e joga com seu estatuto social de
objeto, de corpo capturado, de corpo invadido evidencia o jogo de relações sociais próprias
dos trânsitos contemporâneos. Tais composições criam, a partir de dissoluções, o que
Canevacci apresenta como práticas ‘onde a dicotomia entre a coisa e a criatura se faz
indistinta, penetrada, alterada’.
Tais alterações entre humano e mercadoria (entre sujeito e objeto) são o reino
decomposto dos novos fetichismos, que desafiam as interpretações procedentes e
conduzem em direção a um além do domínio do ratio dualista e de uma lógica
binária. Os fetichismos contemporâneos, em particular quando configurados pela
47
29
Disponível em: <http://jolgoriocultural.wordpress.com/entrevistas/>. Acesso em: 01/03/2013.
48
49
Fonte: La Pocha Nostra Live Arquive. Site de registro de performances e cursos do La Pocha Nostra.
Disponível em: <http://lapochanostralivearchive.tumblr.com/>. Acesso em: 05 mar. 2013.
50
performers vestido com um uniforme militar e a apontar uma arma em diferentes partes do
corpo do performer. Nessa inserção do público como colaboradores/criadores de uma nova
montagem, as características de cada corpo que compõe com o grupo, sua posição social e de
gênero, alteram a rede de sentidos criada.
Fonte: La Pocha Nostra Live Arquive. Site de registro de performances e cursos do La Pocha Nostra.
Disponível em: <http://lapochanostralivearchive.tumblr.com/>. Acesso em: 05 mar. 2013.
Podemos reconhecer nessa figura que utiliza a farda, no contexto dessa performance,
um guarda da fronteira, que busca estabelecer postos de controle, interromper os fluxos da
hibridização e que teme desterritorializar-se. Representante da força militar, ele se assemelha
ao que Suely Rolnik atenta como o ‘coronel-em-nós’:
(...) por mais caduca que seja sua micropolítica, por mais caduco que sejam seus
territórios - aquilo que chamam de ‘identidade nacional’ – o corenel-em-nós não
suporta miscigenações. Ele estanca o fluxo do desejo: o outro, para ele, é perigo de
51
desagregação, é fluxo que, por arrastá-lo para um além de si, o aterroriza. Tudo o
que ameaça de desmanchamento a máscara mortuária de sua identidade, ele vive
como força diabólica, que deve anular o mais rápido e eficiente possível –
prendendo e até torturando e matando se for necessário. Seu projeto é o de extirpar a
diferença com o bisturi de suas armas, para sobreviver tal e qual; para impor-se,
vitoriosamente igual a si mesmo, eterno em sua mesmice. (ROLNIK, 2007, p.156)
52
Fonte: La Pocha Nostra Live Arquive. Site de registro de performances e cursos do La Pocha Nostra.
Disponível em: <http://lapochanostralivearchive.tumblr.com/post/21736837370/corpo-ilicito-artcena-festival-
tom-jobim>. Acesso em 05 mar. 2013.
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2 MÉTODO POCHA
heterotopia 30
he.te.ro.to.pi.a
1 Deslocamento ou situação anormal de partes ou órgãos. 2 Presença anormal de um tecido em qualquer lugar
do corpo.
No sentido do conceito elaborado por Michael Foucault, o termo reúne hetero (outro) e
topia (espaço). As heterotopias, assim como as utopias, são espaços em que as relações sociais
são suspensas, neutralizadas e/ou invertidas. Porém, enquanto as utopias se encontram sem
lugar real, as heterotopias estão presentes em todas as sociedades. Ainda que fora de todos os
lugares, sua posição geográfica pode ser localizada. Apresentam-se como momentos em que a
relação de temporalidade vivenciada pelos sujeitos é modificada, criando assim ‘certa ruptura
do homem com sua tradição temporal’, reúnem em um só lugar espaços variados.
Segundo Foucault (2009) todas as culturas criam suas próprias heterotopias, que
podem ser divididas em diferentes segmentos: de crise (lugares sagrados, proibidos ou
privilegiados, para onde são levadas as pessoas que estão em crise em relação à sociedade ou
ao grupo em que vivem); de desvio (lugares onde são levados os que desviam em relação ao
padrão e a norma exigida: hospitais psiquiátricos, prisões); de tempo (lugares ligados à
acumulação de tempo: museus, bibliotecas); crônicas (ligadas ao tempo passageiro, precário:
30
Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/>. Acesso em: 15 fev. 2013.
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56
Idealmente o livro foi pensado como uma ferramenta de ensino útil para turmas de
universidades, comunidades e grupos de artistas. Os exercícios mais utilizados ao longo dos
anos de existência do grupo são compartilhados com os leitores, na expectativa de que eles
possam, a partir do livro, reinventar o método e criar seu próprio estilo de realização de
performances rebeldes. Essa obra assume grande relevância como fonte bibliográfica na
presente dissertação que, somada a outras mídias e experiências práticas, possibilitou uma
ampliação do conhecimento e análise sobre o Método Pocha.
31
O conceito de zonas autônomas temporárias pode ser encontrado no livro de Hakim Bey, Temporary
Autonomous Zone.
57
A TAZ é uma espécie de rebelião que não confronta o Estado diretamente, uma
operação de guerrilha que libera uma área (de terra, de tempo, de imaginação) e se
dissolve para se re-fazer em outro lugar e outro momento, antes que o Estado possa
esmagá-la. Uma vez que o Estado se preocupa primordialmente com a Simulação, e
não com a substância, a TAZ pode, em relativa paz e por um bom tempo, "ocupar"
clandestinamente essas áreas e realizar seus propósitos festivos. Talvez algumas
pequenas TAZs tenham durado por gerações - como alguns enclaves rurais – porque
passaram desapercebidas, porque nunca se relacionaram com o Espetáculo, porque
nunca emergiram para fora daquela vida real que é invisível para os agentes da
Simulação. (BEY, 2001, p.16)
É interessante pensar que a liberação de uma área, além de abrir espaços onde novos
modos de organização são possíveis, permite a reinvenção do uso do tempo e da imaginação,
importantes aspectos a serem descolonizados. Semelhantes às táticas zapatistas e de outros
grupos que estilhaçam os meios de ação transformadora, as zonas autônomas temporárias
apostam na descentralização do poder, no levante, na infiltração.
O La Pocha é pensado como uma forma de pedagogia radical, o que nos leva à
possibilidade de enxergar a performance enquanto pedagogia e o ato de ensinar como ato de
performar, perspectiva que confunde os limites entre ambos territórios. Nesse sentido, nos
aproximamos das questões e discussões levantadas por autores que também investigam
intersecções entre pedagogia e performance, porém, a partir de uma abordagem mais ligada
aos processos educativos de modo mais amplo do que à linguagem artística.
58
acontecimento – evento único e irreprodutível – que se torna possível somente pelo conjunto
circunstancial que o determina.
Em via oposta ao benevolente apelo burguês de uma suposta tolerância, e até mesmo à
negação explícita da diferença, cria-se um espaço livre para o encontro entre diferentes, onde
os lugares sociais podem ser confrontados e repensados. Nesse sentido, Gómez-Peña (2005, p.
96) afirma que se a “(...) performance é uma forma de democracia radical então o performer
deve aprender a ouvir outros e ensinar outros a ouvir.”. Prática de fundamental importância
ainda hoje.
59
uma ampla experiência histórica de contato com outras culturas, mas foi um contato
colonial, um contato de desprezo, e por isso silenciaram muitas dessas culturas,
algumas das quais destruíram. (SANTOS, 2007, p.55)
Naquele tempo, aspectos sociais até então menosprezados passaram a fazer parte da
pauta de reivindicações de diferentes segmentos. As chamadas minorias assumiram uma
postura mais crítica em relação a outros modos de opressão, discriminação e exclusão, não
somente ligados à classe, como também ao gênero e à etnia.
Gómez-Peña conta que na época, ao se deparar com uma nova geração bem informada
sobre as políticas de gênero e raça, com afinidade com computadores, mídias globais,
tecnologias interativas e fluente em cultura pop, sentia falta de certa consistência e reflexão
ética. Ao mesmo tempo em que era visível uma forte desconfiança a todo tipo de governo,
corporação, religião formalizada, estado-nação, fronteiras geopolíticas, tais posições
confundiam-se facilmente com questões de estilo.
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62
Os workshops são ministrados, com maior frequência, por dois ou mais integrantes do
La Pocha, o que evidencia a natureza polivocal e a maleabilidade de formatos dessa proposta
pedagógica. Quando dois instrutores estão presentes, o número ideal de participantes é de até
vinte pessoas, já com três ou quatro instrutores podem ser incluídos cerca de trinta partícipes.
A seleção de músicas é feita a partir de uma fusão eclética de Drum and Bass,
eletrônica, rock em espanhol, hip-hop e clássico, além de outros ritmos de diferentes culturas.
Os participantes podem levar seu próprio mix ou lista de músicas. Em alguns momentos Djs e
músicos são integrados ao processo. A utilização da música é alternada com momentos de
silêncio.
Os integrantes do La Pocha Nostra sugerem que o Método Pocha pode ser utilizado
por artistas de teatro, bailarinos, poetas de tradição oral, artistas de instalação, fotógrafos,
artistas de vídeo, ativistas e educadores, e não somente por performers. Segundo Gómez-
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Peña, pessoas interessadas em incorporar o corpo humano como parte integral de sua criação
artística podem se beneficiar dessa prática.
É importante ressaltar que o Método Pocha não é pensado como processo de criação
de trabalhos individuais. Os diferentes jogos e exercícios são feitos em dupla, ou em grupos
maiores, sob o princípio de criações coletivas. Assim como nas performances do La Pocha, os
procedimentos e propostas educativas são realizados em grupos de diferentes tamanhos e os
participantes são incentivados a trabalhar com pessoas que ainda não tenham colaborado. No
momento de divisão das duplas e grupos, convocam-se os integrantes do processo para
escolher seus parceiros de trabalho. O critério de seleção, nesse caso, se dá pela diferença,
pelo estranhamento, pela curiosidade, pelo desafio e não apenas por afinidade imediata ou
identificação.
A proposta de uma vivência intensa faz parte dos cursos do La Pocha. Em busca da
criação de uma comunidade temporária, incentiva-se que sejam extrapolados os momentos em
sala, e que os participantes do curso e os integrantes do La Pocha aprofundem a convivência
entre si, explorando a cidade, fazendo refeições e festejando juntos, estendendo a convivência
para a vida social do grupo. Desse modo, acreditam poder conectar e aprofundar, de maneira
mais informal, o encontro e a troca com o outro, em uma espécie de processo de imersão.
Na primeira sessão são incluídos exercícios práticos, físicos e/ou perceptivos que
facilitam que os participantes possam se reconectar com o próprio corpo, experimentar o
‘modo performativo’, explorar estratégias de colaboração, afiar o senso de performance,
exercitar o olhar performativo e estabelecer um vocabulário coletivo em performance.
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A terceira sessão inclui exercícios criativos que contribuem para que os participantes
possam desenvolver material original em performance e se engajar em diferentes estratégias
de colaboração.
Alguns dos exercícios, jogos e rituais propostos nas diferentes sessões serão
apresentados para que se possa compreender melhor o Método Pocha através de suas
proposições práticas.
No livro Exercises for Rebel Artists os exercícios, com suas possíveis variantes, são
apresentados e descritos. Algumas dessas práticas são propostas realizadas durante todos os
dias, outras somente em um dia, há ainda aquelas que são retomadas em suas diferentes
versões ao longo do processo, de acordo com os objetivos de cada oficina. No final do livro
são apresentadas sugestões de organização do tempo nos diferentes cursos, com as sequências
a serem utilizadas em cada momento, dia-a-dia, de acordo com o tempo disponível.
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Alguns exercícios são apresentados nesse item no intuito de propiciar uma melhor
visualização e compreensão das propostas, táticas, estratégias e procedimentos utilizados pelo
La Pocha Nostra durante seus cursos, oficinas e demais atividades formativas. Durante as
práticas do Método Pocha ressalta-se o cuidado necessário com o corpo do outro. Estabelecer
um espaço de confiança é fundamental para que os parceiros possam se entregar e viver a
experiência de modo intenso, sem maiores medos e receios.
A primeira sessão tem como objetivo ativar a corrente sanguínea e o fluxo energético e
reterritorializar o corpo no espaço, de modo que se ative uma presença conectada ao ‘aqui e
agora’, no acontecimento singular entre os corpos, o tempo e o espaço específico. Nessa
sessão são incluídos exercícios básicos de alongamento e aquecimento, emprestados da dança,
do teatro, do yoga, das artes marciais, do Tae Bo – prática baseada na mistura de boxe, artes
marciais e ginástica aeróbica –, do Pilates, do Tensegrity – prática organizada por Carlos
Castaneda a partir de passes mágicos de xamãs mexicanos – e do riso induzido.
Nesse exercício, formam-se duplas que se posicionam em algum lugar da sala a dois
pés de distância um do outro, mantendo um contato visual contínuo, de modo que estejam
presentes e abertos a receber o outro. Os participantes ao andar pelo espaço devem manter um
contato visual consciente. Depois de alguns minutos a dupla pode conversar sobre o que
observaram e sentiram – suas reações emocionais, sensações físicas e perceptivas.
Durante os dias seguintes podem ser realizadas outras versões do exercício – a partir
da ampliação do campo de visão e dos pontos de contato, da mudança de níveis entre os
parceiros (plano baixo, médio e alto) e da aproximação ou distanciamento dos corpos. Como
última variação une-se, em um mesmo exercício, a combinação de todas essas alterações, de
distâncias, níveis, posições corporais, e pontos de conexão física. A partir desse exercício
surge muito material criativo.
O exercício inicia com os participantes andando pelo espaço até escolher um parceiro,
de preferência alguém com quem ainda não tenham trabalhado e que seja diferente em
aspectos óbvios (raça, gênero, idade, tipo de corpo). Os integrantes da dupla, de frente um
para o outro, a dois ou três metros de distancia, escolhem quem exercerá cada papel – um
deve ser o etnógrafo e o outro a espécie – metáforas que descrevem os papéis executados.
O etnógrafo deve explorar o outro como ‘artefato humano’ e estar realmente aberto a
descobrir sua ‘espécie’. A investigação deve manter alguns cuidados, apesar de ousada, áreas
tabus (seios, genitais, etc.) e possivelmente desconfortáveis (pés, interior da boca, atrás das
orelhas, narinas, joelhos, etc.) podem ser vetadas pela espécie que, apesar de ocupar um papel
mais passivo, deve estar totalmente presente e consciente durante o exercício.
o máximo de informações sociais e culturais sobre a pessoa. Aos poucos são acrescentados os
outros sentidos, um de cada vez, até que todos estejam envolvidos.
Na segunda etapa do exercício os duos devem ser desfeitas para que se realize novas
combinações. Momento em que a manipulação e o manuseio do corpo do outro se efetivam
como uma continuação da parte precedente. A primeira coisa que o etnógrafo deve fazer, ao
encontrar a sua nova espécie, é comparar o seu corpo com o de seu parceiro, observando
altura, membros do corpo, cor de pele, textura do cabelo, cicatrizes, roupas, forma e tamanho
das mãos e dos pés, sua estrutura óssea e muscular e suas articulações. Aos poucos os papéis
transformam-se: de ‘etnógrafo’ para ‘artista’ e de ‘espécie’ para ‘matéria-prima’.
Ao final de dez ou quinze minutos o artista deve escolher uma imagem ou forma
potente e interessante para sua matéria prima que tenha surgido do processo de exploração.
Ele pode se inserir na imagem ou circular observando as outras matérias-primas, e por fim
retorna seu parceiro à posição inicial.
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Nesse exercício um dos performers assume o papel de ‘Dj poético’, sua função é fazer
com que a palavra circule por toda a roda ininterruptamente, de modo que todos possam
participar da feitura desse ‘cântico poético poli-vocal’. No exercício o Dj repete uma
enunciação aberta que deve ser completada com pequenas frases ou palavras poéticas. Sem
racionalizar demais, mantendo a dinâmica rítmica do exercício, os participantes completam a
frase reiterada. Aos poucos se cria um cântico coletivo, em que as frases passam a dialogar
com o sentido anterior de modo orgânico, o poema instantâneo criado pode ser gravado,
transcrito e/ou compartilhado com o grupo, para que posteriormente seja utilizado como
material de criação, ou mesmo como script de uma performance.
Trago aqui alguns exemplos de diferentes frases muito utilizadas por eles nesse
exercício durante os cursos: ‘Performance é...’/ ‘Performance não é...’, ‘Minha comunidade
é...’ / ‘Minha comunidade não é...’, ‘Minha identidade é...’ / ‘Minha identidade não é...’, ‘Eu
faço arte porque...’ / ‘Porque se eu não fizesse...’, ‘Eu tiro a minha força de...’ / ‘Eu luto
contra...’, ‘Eu sou feminina quando...’ / ‘Eu sou masculino quando...’.
Essas frases abertas possibilitam levantar uma gama de material composta de questões
latentes, que surgem não apenas de modo racional, mas que estão aí coladas à pele.
Evidencia-se, desse modo, uma voz que é pessoal, mas também compartilhada, que diz de
cada um, mas também da sociedade em que se vive, tocando questões delicadas de modo livre
e leve. Esse exercício retoma muitas questões conceituais do trabalho do La Pocha.
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diferentes razões, uma ilustração em ato de que nossa identidade é fluida e está em constante
mudança. O exercício é realizado a partir da auto-identificação e auto-percepção e não de
identidades impostas.
A cada dia a instalação de roupas e acessórios deve ser reorganizada de uma nova
maneira de modo que outros objetos e roupas sejam evidenciados e surjam novas ideias de
uso e composição. Eles pedem que as pessoas levem para a construção do banco pop: roupas
confortáveis de ensaio, de preferência preta ou de cor neutra, trajes e objetos únicos da
‘arqueologia pessoal’ – objetos icônicos com significado especial para pessoa – e artefatos
que remetam a temas como religião, guerra, sexualidade, cultura pop, etnicidade, turismo, ou
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mesmo adereços, talismãs, objetos fetichistas, perucas, chapéus, roupas, tecidos, maquiagem,
sapatos, máscaras.
No exercício Criando quadros vivos duas instruções importantes são dadas antes de
iniciar o exercício, primeiro que sejam abandonados o óbvio e o simplista – incluindo os
clichês, estereótipos, e significados literais – e que a palavra não seja utilizada para direcionar
o parceiro, outro tipo de comunicação deve ser estabelecida.
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Fonte: La Pocha Nostra Live Arquive. Site de registro de performances e cursos do La Pocha Nostra.
Disponível em: <http://lapochanostralivearchive.tumblr.com/>. Acesso em: 5 dez. 2013.
Fonte: La Pocha Nostra Live Arquive. Site de registro de performances e cursos do La Pocha Nostra.
Disponível em: <http://lapochanostralivearchive.tumblr.com/>. Acesso em: 5 dez. 2013.
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75
profissão, idade, ou outros parâmetros. Eles sugerem alguns temas para criar o museu vivo:
contradições culturais, fetiches interculturais, celebridades decadentes, monstros sagrados,
novos bárbaros, selvagens artificiais, tecno-primitivos, identidades estranhas, monstros
culturais, apocalipse ocidental.
O exercício Altar humano: dioramas vivos e mortos aprofunda a noção de sagrado, é
uma prática que envolve um grupo grande de pessoas criando a partir de um só corpo. Pode
ser realizado ao som de músicas religiosas de diferentes religiões – para ajudar a fortalecer a
experiência. Segundo eles, essa é uma versão pós-moderna e pós-colonial da antiga prática de
performance ritual em que o corpo humano se torna peça central de um altar coletivo. Nos
mais diversos lugares pessoas construíram elaborados altares em volta dos corpos dos
membros falecidos de sua comunidade.
Fonte: La Pocha Nostra Live Arquive. Site de registro de performances e cursos do La Pocha Nostra.
Disponível em: <http://lapochanostralivearchive.tumblr.com/>. Acesso em: 5 dez. 2013.
Após escolhido o tema, um voluntário assume o papel de peça central do altar, o grupo
é dividido em duas equipes: estilistas do corpo e designers do altar. Enquanto uns ficam
responsáveis em vestir e decorar o corpo, os outros escolhem o local do altar e montam a
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instalação ritual – o ambiente sagrado que vai conter o corpo – utilizando para isso objetos,
peças e tecidos. Quando o corpo/cadáver está pronto deve ser inserido nessa instalação ritual,
de modo que esteja estendido no chão, em uma mesa, em um nicho, ou mesmo sentado em
uma cadeira.
Após a preparação do altar e da peça central, os dois grupos devem unir ambas as
partes como uma obra única. Escolhe-se então um título para a imagem. O altar deve ser
ativado com uma ação ritual performática simples. Uma possível variação pode ser realizada
com dois voluntários. Eles sugerem algumas tipologias para a criação dos altares humanos,
figuras como: um trabalhador imigrante, um membro da comunidade imigrante local que
morreu fora de seu país, uma celebridade decaída, uma estrela pornô, um soldado americano
que retornou do Iraque ou do Afeganistão ou uma madona dos cruzadores de fronteiras.
‘Trípticos de composição – lidando com movimento, localização e composição em
performance’ é o primeiro exercício criativo em estúdio em que os participantes ficam de
olhos abertos e tomam suas próprias decisões performáticas. Esse exercício foi ensinado pelo
performer Alisson Wyper e adaptado pelo La Pocha, o objetivo é colocar em prática a
inteligência performativa ao tomar decisões de composição em um contexto da live art.
Uma área de cerca de 5 metros por dois é demarcada em algum lugar da sala, o grupo
deve sentar-se em frente a esse espaço. Uma linha imaginária, ou marcada com fita, separa a
‘zona de performance’ da ‘zona civil’. Alguém entra na zona performática e cria uma imagem
simbólica com seu corpo e o congela, alguns instantes depois que a imagem está estabelecida
outra pessoa entra na área, acha um lugar, cria uma segunda imagem e congela, uma terceira
pessoa entra e compõe o trio, então retornam para a zona civil, e outras imagens em trio vão
sendo formadas. Um aspecto importante do exercício é atentar para a potencialização da
imagem: quando e como entrar, como ocupar o espaço total e não somente uma parte dele,
como estabelecer conexões entre as imagens, como usar os diferentes planos e a as variações
de ritmos entre as diferentes ações.
Eles apresentam algumas variações possíveis para alterar o exercício:
- acrescentar mobiliário – cadeira, pequenas plataformas, cubos, escada – para ampliar as
possibilidades de jogo de níveis e planos;
- adicionar movimento, uma das pessoas do trio pode criar uma imagem em movimento,
realizando gestos ou ações repetitivas;
- utilizar adereços e vestuários;
- manter uma das imagens, que seja potente, durante vários trios;
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- aumentar o número de participantes até que metade do grupo esteja na zona de performance.
A quarta sessão leva o nome de As infames Pocha jam sessions, segundo o La Pocha
nesse momento abandona-se o terreno da metodologia e adentra-se no campo da experiência
de total autonomia artística. Nessa sessão eles mostram algumas das estratégias e
procedimentos que utilizam nos processos de improvisação performática. Existem diferentes
formas de se integrar às jam sessions, aqueles que não querem performar em determinado dia
podem contribuir com intervenções na iluminação, no som ou na organização do banco pop.
O primeiro exercício Jam session básica – começando a deixar a metodologia foi
desenvolvido pelo La Pocha e é utilizado por eles a cerca de quinze anos. Conforme salienta o
La Pocha, a riqueza das imagens e das ações performáticas criadas nesse exercício surge a
partir da combinação entre decisões estéticas individuais dos performer, justaposições
acidentais e intervenções externas.
Para esse exercício podem ser utilizadas cadeiras, cubos, escadas e/ou plataformas.
Com exceção da ‘zona de performance’ e da estação de roupas e acessórios, que devem estar
iluminadas, o restante do espaço se mantém escuro. Sugere-se que seja utilizado um tema não
muito especifico, mas que sirva como um pano de fundo para diferentes entradas, algo como
‘imagens de medo e esperança’, ‘imagens de sonhos e pesadelos’, ‘cabaré de fronteira’,
‘flexão étnica e de gênero’, ‘o fim da civilização ocidental’.
As Jam sessions são introduzidas em várias etapas pedagógicas:
- durante a primeira etapa os participantes escolhem um ou dois adereços ou roupas
para utilizar no exercício.
- na segunda, todos com suas roupas e adereços em mãos devem ficar de frente para a
área delimitada. O exercício inicia com uma sessão avançada de ‘composições trípticas’,
porém alguém sempre deve estar de fora da zona trocando um de seus objetos, roupas ou
acessórios.
- na terceira etapa após a primeira pessoa entrar na ‘zona de performance’, a próxima
pode escolher alterar levemente a primeira imagem e/ou somente se posicionar em relação a
ela, e assim também a terceira.
- na quarta etapa as pessoas que estão fora da zona de performance devem estar
preparadas não só para entrar a qualquer momento, integrando a imagem, como também para
contribuir com pequenas alterações na posição ou direção dos corpos na imagem, mudar sua
localização, trocar alguma peça de roupa ou adereço.
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- na quinta etapa uma das pessoas deve permanecer na zona performática enquanto as
outras duas são alteradas.
- na sexta etapa entra uma quarta pessoa, duas das imagens mais potentes permanecem
enquanto as outras saem, entra então uma quinta pessoa, e três pessoas permanecem enquanto
as outras saem, assim por diante até que tenham sete pessoas na zona de performace.
- na sétima etapa os participantes podem escolher fazer uma intervenção rápida e sair,
decidindo quando entram e quanto tempo permanecem na zona performática.
Nesse exercício é possível perceber como pequenas mudanças transformam a
dinâmica e a multiplicidade de significados da composição e da iconografia formada. O La
Pocha ainda sugere algumas possibilidades que são desdobradas em outras sessões de
improviso, como a possibilidade de ter um microfone ao lado da zona de performance, onde
os participantes podem realizar intervenções sonoras – a partir de textos falados, som, música,
poema, instruções, texto teórico ou do roteiro poético inicial. Um Dj ou musico local pode ser
convidado para uma participação especial, pode-se acrescentar instrumentos musicais à mesa
de adereços e roupas e adicionar projeções.
A jam session final – agindo em múltiplas zonas é a última prática da quarta sessão,
nesse momento são estabelecidos duas ou três zonas performáticas, de diferentes formatos,
uma delas em frente a uma parede, outra em um círculo no meio da sala e a outra próxima a
algum detalhe interessante da arquitetura. Podem ser utilizadas plataformas de diferentes
tamanhos, pedestais, cubos, andaimes e escadas para modelar o espaço. Cada zona
independente é ocupada por um número diferente de performers, de acordo com as
características próprias de cada lugar. Desde que a sessão começa todos os espaços devem
estar ativos o tempo todo, criando múltiplos focos.
A quinta sessão intitulada Preparando a performance pública registra-se no modo
ensaio, e objetiva desenvolver melhor as personas híbridas escolhidas a partir do repertório
surgido no curso. Os exercícios realizados visam prepara-las para serem apresentadas em
público, momento em que todos se engajam na construção de um projeto global de
apresentação que seja excitante e potente.
No exercício Criando estratégias para a performance final e discutindo a natureza do
material da performance eles ressaltam a importância da discussão da qualidade, pertinência e
impacto das imagens e personas criadas durante o processo. Nesse momento, os quadros e os
temas mais fortes e potentes são escolhidos para entrar na performance final. Os participantes
devem rever seus diários e escolher entre as imagens que viu e vivenciou aquelas que deseja
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retomar. Uma pessoa deve ficar responsável por anotar e ler a lista das imagens e personas
que foram retomadas, para que os colegas possam escolher da lista as mais potentes.
Ativando sua persona performática é um exercício importante para que o corpo todo
esteja envolvido no modo performativo. Esse exercício tem como propósito o
desenvolvimento de uma serie de ações icônicas, uma estrutura ritual que pode ser utilizada
durante a performance pela persona criada.
Esse processo acontece em três etapas. Na primeira Internalizando a imagem e o
movimento, os participantes já vestidos devem aos poucos ‘incorporar suas personas’,
trazendo primeiramente sua figura somente para o rosto, incorporando movimentos nos
músculos faciais (boca, nariz, testa, bochechas e língua), aos poucos levam a exploração do
movimento para o pescoço, para os ombros, e então para os braços e mãos, para o torso, para
a pélvis e depois para as pernas, e então para os pés, e assim o corpo inteiro está ativado no
‘modo performance’, somente nesse momento devem abrir os olhos.
Na segunda etapa intitulada Desenvolvendo um vocabulário para suas ações e frases
de movimentos, os participantes devem retomar ou desenvolver três ações, formadas como
uma frase de movimento, e repeti-la até que se torne parte de sua memória recente. Pequenas
transformações do movimento são investigadas a partir de mudanças do ritmo, da intenção, da
alteração na ordem das ações. Após esse momento, é criada uma estrutura ritual que será o
material performativo a ser utilizado na ação final.
Na terceira etapa o instrutor faz algumas sugestões para que se transforme a
velocidade, o comprimento, o ritmo e o estilo de entrega, experimentando intenções diversas.
Cada um deve selecionar para si as modificações consideradas mais relevantes que
potencializem o material que será utilizado por ele.
Uma das possibilidades de apresentação final é o Salão de performance: abertura do
processo para a comunidade local. Se o workshop durou cerca de duas semanas e se as
condições são favoráveis, pode se realizar uma Jam session aberta para um pequeno grupo de
convidados que compartilharão suas impressões.
Ao fim do workshop o La Pocha geralmente realiza uma performance mais elaborada
para a comunidade em geral, momento que acontece em um espaço de arte ou museu local,
são as chamadas mega-jam session. Primeiramente deve ser pensada a natureza da
participação de cada um na performance final. São criadas duas equipes, a equipe da
performance e a equipe de projeto interdisciplinar. Os dois grupos podem alternar as funções,
nesse momento o foco dos participantes passa a ser dirigido para o modo produção e ensaio.
80
Turner tomou a liminaridade num sentido maior, empregando-a para situar tudo o
que é/está betwixt and between – entre, em transição, no limiar, em condição
passageira - no âmbito social, para além dos ritos de passagem, caracterizando
estados transitórios ou transitivos que acometem os indivíduos. Nesse ambiente, tais
indivíduos são “marginais”, isto é, encontram-se numa condição inter-estrutural,
quando entendemos que toda sociedade articula e vive dentro de uma estrutura,
quando pensados os quadros estáveis que a compõem e nela atuam.
Complementarmente a essa grande configuração, é preciso lembrar que entre o útero
materno e a sepultura – os únicos lugares fixos que um indivíduo efetivamente
conhece em sua existência -, um ser humano está sempre em trânsito, entrando e
saindo de ritos sociais os mais diversos (nascimento, puberdade, casamento,
trabalho, morte etc.), todos eles aquinhoados com alguma parcela de liminaridade.
(MOSTAÇO, 2012, p.148)
82
performativo’, sendo esse um modo ritualizado de desempenho, que retoma outro nível de
complexidade para os performers e a audiência.
popular, do nacional e do estrangeiro, são mônadas32 que narram parte das contradições de
nossa formação cultural.
32
O uso nesse contexto remete ao conceito de Walter Benjamin, pensada como uma unidade simples que contém
em si a complexidade do todo.
84
coletivas são realizadas a partir das condições especificas entre tempo e espaço, na relação
singular estabelecida por aquela comunidade temporária.
A urgência do improviso instiga o descondicionamento de respostas automáticas e
previamente pensadas. Dessa forma, a alteração do modo de funcionamento habitual revela
possibilidades e reações surpreendentes. O modo performativo é ativado e os participantes
permanecem em estado alerta de criação. Em vários exercícios do La Pocha trabalha-se com a
noção de ritual – ‘rituais para descolonizar o corpo’ são jogos que possibilitam a
desmecanização do corpo e o questionamento de estereótipos, representações, e papéis
sociais.
A proposta de finalização do workshop com uma performance aberta ao público, a partir
de um salão para convidados e/ou de uma sessão de grande amplitude, é entendida apenas
como uma parte do processo. O objetivo pedagógico mais amplo dos cursos é criar
coletivamente e experimentar novos modos de colaboração. Dessa forma, as mostras não são
compreendidas como fim último, mas como possibilidade de compartilhar com o público.
Essas sessões abertas são como um ritual compartilhado, e trazem o elemento da festa, que é
muito presente nas práticas do La Pocha.
85
3 PEDAGOGIAS DA PERFORMANCE
Tendo em vista seu caráter de obra aberta, que evidencia o intervalo entre o signo e o
significante, a performance potencializa a brecha existente entre emissão e recepção. Ainda
nesse sentido, é possível verificar que o descolamento das imposições da linguagem e da
lógica pela qual fomos educados desde a infância, permite que a performance desprenda-se
das convenções dominantes, se mostrando aberta à experimentação e ao aprofundamento das
ações pré-linguísticas. Desse modo seu caráter polimorfo e polissêmico é afirmado, tendo em
vista que seu sentido e significado são formados a partir do encontro único entre performers e
espectadores. Valentín Torrens evidencia esse processo.
33
Palavra-conceito criado pela autora, inspirada no texto de Deleuze e Guatarri, Como Criar Para Si Um Corpo
Sem Órgãos.
86
desconstrução do estabelecido. Questões de grande valia para uma formação que se pretende
significativa e criadora.
87
possível aprender a trilhar o próprio caminho se cada um assume para si seu percurso pessoal,
e nele se envereda enquanto atividade criadora.
Ninguém pode construir em teu lugar as pontes que precisarás passar para atravessar
o rio da vida, ninguém exceto tu, somente tu. Existem, por certo, inúmeras veredas,
e pontes, e semideuses que se oferecerão para levar-te do outro lado do rio; mas isso
te custaria a tua própria pessoa: tu te hipotecarias e te perderias. Existe no mundo
um único caminho, por onde só tu podes passar. Para onde ele leva? Não perguntes,
segue-o. (NIETZSCHE apud DIAS, 2003, p.71)
Rosa Maria Dias (2011, p.20), em uma rica investigação em torno do tema ‘vida como
obra de arte’, explicita na obra de Nietzsche a relação entre arte e vida. A arte, nessa
perspectiva, assume sentido enquanto afirmadora da existência. O experimentador aciona em
sua própria vida sua ‘vontade criadora’, e, dessa forma, também a “(...) arte de criar a si
mesmo como obra de arte, isto é, de sair da posição de criatura contemplativa e adquirir os
hábitos e os atributos do criador, ser artista de sua própria existência”. O que requer outra
atitude em relação à arte, entendida nesse contexto não como produção de objetos/obras
artísticas, mas como uma atividade criadora frente ao mundo.
Inquietações latentes no campo da performance, a aceitação e o desejo da
impermanência inerente à existência, são atualizadas na visão nietzscheana. Tal compreensão
contraria uma metafísica que tende a humilhar a realidade em função de um ideal
inalcançável, que não aceita o imprevisto e o perecível, características próprias da vida. No
prisma dessa outra perspectiva a realidade é compreendida a partir do eterno devir, da
mudança como única realidade, do desejo do presente e do inesperado. Será possível preparar-
se para estar aberto, disponível e vulnerável ao transitório?
Diante da impossibilidade e da falta de sentido em estabelecer um manual de ensino
em performance art, que descreva as técnicas, as estratégias e os procedimentos necessários
para a formação do performer, a experimentação de si, a desestabilização de certezas, a
invenção de novos modos de estar e se relacionar com a vida e com o mundo surge como uma
interessante possibilidade de ampliar os domínios e espaços da arte. Lucio Agra sugere que
88
um ‘modo de existir’ talvez seja a única forma de proporcionar ao performer que mantenha
seu corpo treinado.
Ao que parece, no artista da performance, um modo de existir seria a única coisa que
garantiria o corpo treinado deste artista. Então seria preciso repensar os modos de
existir. E não somente a ideia de corpo e de arte que, de resto, são ambas formações
de nossa civilização.Trata-se então de buscar modos de existência que sejam
produtivos para estados de invenção.Se não houver nenhuma certeza quanto a esses
modos, ao menos podemos afirmar que, desde já, devem ser, eles mesmos,
invenções. (AGRA, 2012, p.3)
Nietzsche corrobora com essa questão, ao preconizar um tipo de artista, que será
experimentado, ao longo do século XX, nos diferentes movimentos que tentaram unir arte e
vida. Sendo ‘mestre e escultor de si mesmo’ ‘o homem não é mais artista, torna-se obra de
arte’. Na compreensão de Nietzsche (NIETZSCHE, apud DIAS, 20011, p.97), deve-se
aprender com o artista, mas ser mais sábio do que ele, tendo em vista que sua perspectiva
estética se encerra onde termina a arte e começa a vida, “nós, no entanto, queremos ser os
poetas-autores de nossas vidas, principiando pelas coisas mínimas e cotidianas.”.
O performer se aproxima dessa concepção ao buscar em seu processo artístico criar a
si mesmo como obra de arte. Para o surgimento de novas possibilidades, é necessário que o
estabelecido seja destronado, que sejam desconstruídas imagens pré-concebidas de si, que se
reinventem modos de ser/estar, de sentir, de se relacionar, de pensar e de existir – uma nova
forma de vida que priorize a experimentação como única via do ser. Esse sujeito aceita a
inconstância e a impermanência, aproximando da ‘lógica desidentificadora da invenção’ que
Jorge Larrosa (LARROSA, 2009, p.57) aponta em Nietzsche. Sem identidade real ou ideal o
sujeito se apresenta como forma a compor.
É nesse sentido que aparece o performer do qual tentamos ao longo dessa dissertação
abordar, o sujeito do exílio, estrangeiro, no sentido literal do termo, mas não somente.
Incluindo também seu sentido metafórico, enquanto pessoa que cria suas próprias
desidentificações, seus territórios de desentendimento, que se constrói na estranheza e
desencontro de si.
Assim "tornar-se o que se é" nada tem a ver com o saber, o poder e a vontade como
atributos de um sujeito que sabe o que é e o que quer; é, ao contrário, um
desprender-se de si, uma coragem para lançar-se no sentido do proibido, uma
travessia, uma experimentação. Como mostra Jorge Larrosa, na idéia de
experimentação está o "ex" do exterior, do exílio, do estranho, do êxtase, contém
também o "per" de percurso, do passar através, da viagem, de uma viagem em que o
sujeito da experiência se prova e se ensaia a si mesmo. Em suma, a experiência é,
nessa compreensão, um passo, uma passagem. (DIAS, 2003, p.130)
Tendo em vista que existem tantas definições de performance como praticantes, torna-
se inviável pensar em um manual de ensino de performance, enquanto uma seleção de práticas
a serem utilizadas em qualquer contexto e situação. Desse modo, a gama de práticas
pedagógicas se multiplica e passamos a falar em pedagogias da performance, já que os
diferentes praticantes fazem usos de fontes e procedimentos diversos na construção de suas
propostas metodológicas.
Valentín Torrens desenvolveu um importante trabalho em torno de pedagogias da
performance, o que incluiu a investigação e compilação de diferentes proposta e programas
pedagógicos de professores universitários e performers. Em seu livro Pedagogía de la
Performance podemos encontrar esse material que abrange diferentes enfoques, temas,
exercícios e táticas utilizadas, o que o torna uma referência importante para a área. Sua
abordagem, porém, é prioritariamente formada por referências europeias e norte-americanas.
O autor aponta a importância que teve a inserção da performance no currículo de
algumas universidades e institutos de arte norte-americanas nos anos 70 para o
desenvolvimento das investigações em torno da linguagem e de seu ensino. Somente na
década seguinte é que passa a ser mais amplamente incluída em países europeus, e nos 90
amplia seu alcance através de cursos e oficinas em países latino-americanos e asiáticos.
Renato Cohen (2002, p.42), porém, aponta que a Bauhaus, escola de design, artes e
arquitetura sediada na Alemanha, foi a primeira instituição de arte a organizar workshops de
performance. Após seu fechamento, em 1933, durante o período nazista, as investigações em
torno da performance no contexto europeu diminuem a sua intensidade. Muitos de seus
professores transferem-se então para a Black Mountain College, na Carolina do Norte – EUA,
lugar que assume um papel importante no desenvolvimento da formação em performance.
Na primeira parte de seu livro, o autor apresenta alguns precursores de questões caras
à temática, aproxima discussões de performance, criatividade e jogo, como fatores relevantes
para compreensão dos processos de formação performativos. Nesse sentido, ressalta
importantes características próprias à performance, como sua natureza comunicativa. Por fim,
aborda as especificidades da pedagogia da ação, e analisa de modo histórico, obras,
pesquisadores, performers e eventos importantes para a constituição da área.
O livro é divido nos seguintes capítulos: Sobre esse livro, A ação, A performance, a
live art, Raízes, micélios e rizomas da performance, Criatividade em ação, A performance
como jogo, Natureza comunicativa da performance, Pedagogia da ação, Estudos sobre a
pedagogia de ação, O ensino da performance na universidade, na oficina. Na segunda parte
do livro, em que são compilados os planos pedagógicos, incluem-se propostas de cursos em
universidades e em oficinas. No final do livro podem ser encontradas ainda breves biografias
dos performers, educadores e pesquisadores que integram a publicação, além de uma extensa
bibliografia sobre psicologia/pedagogia da criatividade e sobre performance, um rico material
de pesquisa.
publicado na revista High Performance34 em 1981. Nesse texto é possível ter acesso a
entrevistas de dez professores de performance. Entre eles estão Allan Kaprow, Eleonor Antin,
Chris Burden, Cheri Gaulke, Charles Garoian, Michel Meyers, Suzanne Lacy e Linda
Montano. Valentín Torrens ressalta que, já nesse período, havia o receio de uma codificação
da performance em um conjunto de técnicas e regras dentro do mundo universitário.
Outro livro importante para a área é o livro de Charles Garoian Performing Pedagogy:
toward an art of politics, livro que surge a partir das discussões do Simpósio Arte da
performance, cultura, pedagogia organizado em 1966 na Universidade Estatal da Pensilvânia,
instituição em que o autor lecionava. O Simpósio reuniu arte-educadores, críticos culturais,
historiadores, performers e professores no intuito de discutir o significado histórico, teórico e
experimental da arte performática como forma emergente de educação artística. Entre outras
questões, foi discutido o desenvolvimento de uma pedagogia crítica através da performance, o
discurso cultural que a performance promove dentro das comunidades e a investigação dos
métodos interdisciplinares utilizados pelos diversos participantes presentes. Entre os
partícipes estavam Allan Kaprow, Charles Garoian, Henry Giroux, Guillermo Gómez-Peña,
James Luna, Peggy Phelan, Roberto Sifuentes e Suzanne Lacy.
Ainda é difícil encontrar bibliografia sobre o tema traduzida para a língua portuguesa,
a grande maioria desses livros está em inglês. Porém, é visível o aumento do número de
pesquisas, artigos e publicações sobre a temática em âmbito nacional. É possível identificar
alguns performers, pesquisadores e professores brasileiros que atualmente investigam a
34
High Performance #13 Vol. IV, No. 1, 1981
35
“Ethno-Techno – Writings on performance, activism, and pedagogy” (tradução nossa)
36
“Performativität erfahren Aktionskunst lehren – Aktionskunst lernen”
93
questão, de modo prático e teórico, entre eles destaco Bia Medeiros, Christina Fornaciari,
Eleonora Fabião, Eloísa Brantes, Lúcio Agra, Mara Lucia Leal, Marcos Bulhões, Tânia Alice
e Thaíse Nardim.
94
´ Dessa forma, a abordagem da presente dissertação tem em vista uma prática educativa
que requer que os integrantes do processo estejam abertos a perder seu território de segurança
e a vivenciar lugares desconhecidos de si, dos outros, dos objetos, do espaço, do tempo. A
descoberta de novos afetos e de novas possibilidades abre diante de nós um mundo a ser
recriado e ressignificado permanentemente.
Os diferentes cursos e oficinas de performance se aproximam do que Turner sugere
como liminar, como espaço de reinvenção e transformação. O termo é utilizado para referir-
se a um lugar de transformação e de indeterminação dentro dos processos culturais e rituais,
como um espaço oco e vazio. Nesse sentido, o liminar implica em uma etapa de
transformação em que surgem novas formas de identidade e relação.
95
estranhas em relação ao sentido e a lógica dominante. Torrens sugere como marca dos mais
diversos procedimentos performáticos, a geração de novas ideias em vez de explicações.
Através da utilização de táticas que potencializam a divergência, que ampliam as opções e que
proporcionam pausas e rupturas no sentido, a fim de desafiar o conhecido, propõem-se
alternativas em ato, provocando a dissolução de padrões mentais apreendidos.
96
A importância da mudança ressaltada por Renato Cohen (2002), ‘do what para o how
(do que para o como), que ocorre na performance é por conseguinte um ponto muito
trabalhado nos cursos em performance, o modo de feitura de uma ação, nesse contexto, diz
tanto ou mais do que seu significado.
O performer pode ser pensado como um relator, como sugere Renato Cohen (2002)
em seu livro Performance como Linguagem, ou como um cronista de nosso tempo, como
indica Gómez-Peña (2005). Sujeito que capta questões latentes e pertinentes para si e para
outras pessoas. A percepção do performer é trabalhada em diferentes abordagens educativa de
modo que contribua para que ele possa reconhecer e transformar em obra/ato/processo, temas,
questões e desejos contemporâneos.
No livro de Valentín Torrens é possível ter acesso a uma serie de programas de cursos
e oficinas realizadas em contexto acadêmico ou fora dele. Investigaremos, a partir desses
37
“A performance é a aula da classe onde as duas dimensões do pintor encontram as três do bailarino, onde o
cartaz do ativista encontra a marionete do escultor, onde o ritual do etnógrafo encontra o ensaio do ator e onde as
palavras do estudante encontram o corpo do performer.” (tradução nossa)
97
Nos cursos que ressaltam a teoria são trazidos manifestos de artistas, documentos
históricos, ensaios, revistas de arte e catálogos, as leituras são incentivadas como via de
ampliar o conhecimento histórico e criar um vocabulário teórico próprio, de modo que
contribuam para a participação ativa dos alunos durante as discussões. Em alguns cursos são
realizados seminários com apresentações de trabalhos. É ressaltada ainda a importância de
situar essas leituras em uma genealogia artística e teórica mais ampla. Diante desse contexto
passa a ser ressaltada a importância de estimular os alunos a procurar de forma autodidata
outras referências em performance.
98
O enfoque dos cursos varia muito, porém, em sua maioria, incentivam que os
participantes possam explorar uma gama de estratégias performativas, a partir de exercícios e
tarefas que visam trabalhar pontos específicos da performance. A abordagem baseada em
problemas e tarefas a serem resolvidas, é realizada em sala, ou mesmo através de projetos que
os alunos têm várias semanas para desenvolver, eles são estimulados a explorar uma
variedade de gêneros e de formas.
99
outra gente puede encontrar em esta articulación algo conectado com ellos sin
exactamente ‘hablar’ sobre eso.38 (FOJTUCH apud TORRENS, 2007, p. 219)
No final dos cursos, na grande maioria das vezes, são realizadas mostras dos trabalhos
feitos durante o processo, em espaço externo ou interno, para convidados ou para um público
mais amplo. Além dessas mostras feitas ao final, costumam ser regularmente realizadas em
sala apresentações dos trabalhos seguidas de debate. Em muitos casos o professor propõe que
o artista comece descrevendo sua intenção inicial na elaboração de sua performance, suas
preocupações e os temas que o motivaram. Ao falar sobre como foi projetada a ação, o que
queria que os espectadores experimentassem e o que mudaria ao realizá-la novamente, o
artista pode refletir sobre o que pensou e o que sucedeu, além de ouvir dos espectadores o que
a obra os fez sentir e pensar.
38
“A performance oferece a todo mundo encontrar uma forma de falar, encontrar a sua própria linguagem e
expressar-se com todas suas peculiaridades pessoais.
A performance tem o simpático poder de ser honesto no que está fazendo, porque este ‘meio’ ajuda a transformar
um ‘problema’ privado em público, onde as pessoas podem encontrar nessa articulação algo conectado a eles,
sem exatamente "falar" sobre o assunto.” (tradução nossa)
100
trabalho prioriza o movimento espontâneo, além da consciência das emoções, das percepções,
dos fluxos emocionais, dos bloqueios, das resistências e dos limites mentais e físicos.
101
102
103
CONCLUSÃO
Nesse momento uma etapa é finalizada para que novos caminhos possam se abrir. A
amplitude das temáticas – ensino em performance e práticas performáticas transculturais –
sugere a possibilidade de muitas e novas incursões. Entre as diversas abordagens possíveis o
Método Pocha se mostrou uma metodologia que aponta questões necessárias e urgentes, bem
como a proposta artística do La Pocha revelou-se extremamente pertinente em relação à
complexidade contemporânea.
Os meios de se territorializar são os mais diversos, ainda mais nos dias correntes. É
importante lembrar que repensar signos e valores, reinventar identidades, recriar
nomenclaturas, categorias, rótulos, identificações e representações faz parte de um processo
de descolonização.
As coisas estão mais confusas agora. Um disco arranhado berra o hino nacional
norueguês por um alto-falante da Casa do Marinheiro, no penhasco acima do canal.
O navio-container, ao ser saudado, desfralda uma bandeira de convivência das
Bahamas. Ele foi construído por coreanos que trabalham por longas horas nos
estaleiros gigantes de Uslan. A tripulação mal paga e insuficiente, poderia ser
salvadorenha ou filipina. Apenas o capitão ouve uma melodia familiar. (SEKULA
apud Bhabha, 2005, p. 28).
Nesse caso apenas o capitão escuta uma melodia familiar, quais são as melodias
familiares da morada ou da referência de lar e aconchego desses outros tantos que estão à
deriva? As identidades oficiais, aquelas bem quistas, por quantas pessoas são compartilhadas?
A partir de quanto sangue, hipocrisia e dominação foram forjadas as identidades nacionais? ‘É
melhor ser bi que mono’, e é assim que somos. E, nesse sentido, torna-se necessário, como
40
“Coleciono figuras, lembranças, talismãs e vestuários inusitados, objetos relacionados simbolicamente com
minha "cosmologia pessoal", que remonta ao dia em que nasci. Com ela, onde quer que eu vá, construo altares
efêmeros para ancorar-me, e ‘reterritorializar-me’, como dizem os acadêmicos. Esses altares são tão ecléticos e
complexos quanto minha própria estética e minhas múltiplas identidades sincréticas.” (tradução nossa)
105
nos diz Walter Benjamin, ‘escovar a história a contra pelo’, e rever as figuras complexas de
identidade e diferença, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão que nos
configuram.
En este sentido, nuestros "salvajes artificiales" encarnan los más profundos temores
y deseos de los norteamericanos contemporáneos con respecto a los inmigrantes y la
llamada equivocadamente "gente de color," y funcionan como una suerte de espejo
invertido para que los visitantes observen los reflejos distorcionados de sus propias
quimeras psicológicoas, eróticas y culturales.41
Ao longo da história, diversos encontros interculturais não foram marcados pela escuta
e sim pela dominação e pelo silenciamento, herança de uma violência matricial e das
cicatrizes coloniais que ainda vigoram na construção da sociedade contemporânea.
41
Disponível em: <http://www.pochanostra.com/antes/jazz_pocha2/mainpages/dioramas.htm> Acesso em: 23
nov. 2013.
106
Desconstruir esses lastros coloniais é de suma importância para pensarmos uma nova
cartografia.
107
Figura 12 – Registro da oficina La Pocha Remix: Psycho-Magic Actions Against Violence ministrada por
Guillermo Gómez-Peña, Dani D´Emilia e Roberto Sinfuentes no Festival Internacional de Teatro de São José do
Rio Preto. Performers: Júlia Lotufo e Ronaldo Zaphás.
Fonte: La Pocha Nostra Live Arquive. Site de registro de performances e cursos do La Pocha Nostra.
Disponível em: <http://lapochanostralivearchive.tumblr.com/>.
108
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