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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades


Instituto de Artes

Júlia Jenior Lotufo

Método Pocha: Práticas de Ensino em Performance para Cruzadores de


Fronteiras

Rio de Janeiro
2014
Júlia Jenior Lotufo

Método Pocha: Práticas de Ensino em Performance para Cruzadores de Fronteiras

Dissertação apresentada, como requisito parcial


para obtenção do título de Mestre, ao Programa de
Pós-Graduação em Artes, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração:
Arte, Cognição e Cultura.

Orientadora: Profª. Dra. Denise Espírito Santo

Rio de Janeiro
2014
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEH-B

L884 Lotufo, Júlia Jenior.


Método Pocha: práticas de ensino em performance para
cruzadores de fronteiras / Júlia Jenior Lotufo. – 2014.
112 f.: il.

Orientadora: Denise Espírito Santo.


Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, Instituto de Artes.

1. Performance (Arte) – Teses. 2. Figura humana na arte


– Teses. 3. Pocha Nostra – Teses. 4. Pocha, Método – Teses. 5.
Arte moderna – Séc XXI – Teses. I. Espírito Santo, Denise. II.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Artes.
III. Título.

CDU 7.041

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação, desde que citada a fonte.

_____________________________________________ _____________________
Assinatura Data
 
 

Júlia Jenior Lotufo

Método Pocha: Práticas de Ensino em Performance para Cruzadores de Fronteiras

Dissertação apresentada, como requisito


parcial para obtenção do título de Mestre, ao
Programa de Pós-Graduação em Artes, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Área de concentração: Arte, Cognição e
Cultura.

Aprovada em 17 de março de 2014.

Banca Examinadora:

_____________________________________________
Profª. Dra. Denise Espírito Santo da Silva (Orientadora)
Instituto de Artes - UERJ

_____________________________________________
Profª. Dra. Eleonora Batista Fabião
Universidade Federal do Rio de Janeiro

_____________________________________________
Profª. Dra. Eloísa Brantes Bacellar Mendes
Instituto de Artes – UERJ

Rio de Janeiro
2014

 
 
 
 

DEDICATÓRIA

A todos pochos e cruzadores de fronteiras.

 
 
 
 

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais por todo apoio, pelo exemplo e inspiração.

Aos meus irmãos David, André e Gabriel e minhas cunhadas Layza, Dorothee e Leatrice pela amizade
e incentivo.

Aos meus sobrinhos Ian, Max e Vida pelo carinho e alegria compartilhada.

Ao Daniel, pelo companheirismo, pela parceria e beleza do amor construído.

À Roseni por todos os cuidados de segunda mãe que se tornou.

À Tia Martha, minha madrinha.

À Denise pela rica contribuição, dedicação, abertura e interesse por essa pesquisa.

À Eleonora Fabião pelas preciosas considerações, pela leitura cuidadosa, pela disponibilidade e pela
generosidade do material cedido.

Ao Aldo Victorio pela leitura e considerações feitas para a qualificação.

À Mara Leal pela generosidade em ceder o livro ‘Pedagogia de la Performance’.

À Eloísa Brantes por tantas portas abertas e inquietações semeadas.

Ao Coletivo Líquida Ação representado por Evee Ávila, Julia Ariani, Mauricio Lima e Thaís
Chilinque, por tantas águas compartilhadas.

À Ana Emília e João Paulo pelas boas conversas e pelo lar que compartilhamos e que ajudaram a
construir.

Às amigas Ana Lúcia, Camila Duarte, Daniela Moreno, Elisabeth Hess, Elisângela Mira, Gabriela
Martins, Marília Freitas, Mirella Ferraz, Nathalia Gomes pela amizade, pelos projetos e desejos
compartilhados.

Aos amigos Higgor, Jairo e Rodrigo por tornar minha estada no Rio mais doce.

Aos integrantes do coletivo La Pocha Nostra, em especial à Dani D’emilia, Guillermo Gómez Peña e
Roberto Sinfuentes, pela generosidade em compartilhar o processo do La Pocha Nostra, pela
radicalidade do trabalho e pelo desejo de transformação.

 
 
 
 

Aos professores de graduação Davi Dolpi, Acevesoreno Flores, Clarissa Alcântara , Tristan Castro-
Pozo, Gobira Gobs pelo conhecimento compartilhado e dedicação.

Aos professores e funcionários do PPGARTES -UERJ.

À Capes, pelo financiamento dessa pesquisa.

 
 
 
 

RESUMO

LOTUFO, Júlia Jenior. Método Pocha: práticas de ensino em performance para cruzadores de
fronteiras. 2014. 112 f. Dissertação (Mestrado em Arte, Cognição e Cultura) – Instituto de
Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

A presente dissertação – Método Pocha: Práticas de Ensino em Performance para


Cruzadores de Fronteiras – é uma reflexão sobre possibilidades educativas em performance
art. Pesquisa que tem como enfoque o Método Pocha – metodologia de ensino em
performance desenvolvida pelo coletivo La Pocha Nostra. Nesse sentido, busca-se identificar
as propostas metodológicas, procedimentos, temáticas, apontamentos conceituais que
sustentam as práticas pedagógicas do La Pocha Nostra, e investigar o processo
formativo/educativo por vias da arte da performance. O recorte da presente abordagem
prioriza performances que habitem interstícios e espaços fronteiriços. Compreende o
performer como um cronista do seu tempo/espaço, que reflete e problematiza os fluxos,
formações e composições contemporâneas. As práticas, procedimentos e conceitos
desenvolvidos nos programas performativos do coletivo La Pocha Nostra são pensados no
contexto da pesquisa enquanto modo de descolonizar nossos corpos e criar complicações em
torno de representações vigentes, ampliando noções de identidade e diferença em seu lugar de
trânsito: o corpo.

Palavras-chave: Arte da Performance. ‘Método Pocha’. Pedagogia da Performance.

 
 
 
 

ABSTRACT

LOTUFO, Júlia Jenior. Method Pocha: teaching practices in performance for border crossers.
2014. 112 f. Dissertação (Mestrado em Arte, Cognição e Cultura.) – Instituto de Artes,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

This dissertation – Method Pocha - Teaching Practices in Performance for Border


Crossers - is a reflection on educational possibilities in performance art” . Research that has
as focus the ' Pocha Method' - performance in teaching methodology developed by the
collective La Pocha Nostra . In this sense we seek to identify the methodological proposals ,
procedures, thematic , conceptual notes that support the pedagogical practices of La Pocha
Nostra , and investigate the training / education process by way of performance art. The
outline of this approach prioritizes performances that inhabit interstices and border areas.
Understands the performer as a chronicler of his time / space that reflects and discusses flows
formations and contemporary compositions. Practices, procedures and concepts developed in
performative programs La Pocha Nostra collective are thought in the context of research as a
way to decolonize our bodies and create complications around existing representations ,
expanding notions of identity and difference instead of transit: the body .

Keywords: Performance art. Pocha Method. Pedagogy of Performance.

 
 
 
 

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Guillermo Gómez-Peña na performance The Loneliness of the


Immigrant ........................................................................................... 27

Figura 2 – Coco Fusco e Guillermo Gómez-Peña na performance Two


Undiscovered Amerindians Visit the West……................................... 36

Figura 3 – Coco Fusco e Guillermo Gómez-Peña na performance Two


Undiscovered Amerindians Visit the West……................................. 37

Figura 4 – Roberto Sifuentes na performance Corpo/Illicito: The Post-Human


Society 6.9 ………………………………………………………….. 49

Figura 5 – Guillermo Gómez-Peña na performance Corpo/Ilicito: The Post-


Human Society 6.9 ………………………………………………… 50

Figura 6 – Dani d'Emilia em Corpo/Ilicito: The Post-Human Society 6.9........... 52

Figura 7 – Violeta Luna em Corpo/Ilicito: The Post-Human Society 6.9............ 52

Figura 8 – Imagem da capa do livro ‘Exercício para Artistas Rebeldes’.............. 55

Figura 9 – Registro do exercício Criando quadros vivos..................................... 73

Figura 10 – Registro do exercício Criando quadros vivos..................................... 73

Figura 11 – Registro do exercício Altar humano.................................................... 75

Figura 12 – Registro da oficina La Pocha Remix: Psycho-Magic Actions Against


Violence ministrada por Guillermo Gómez-Peña, Dani D´Emilia e
Roberto Sinfuentes no Festival Internacional de Teatro de São José
do Rio Preto. Performers: Júlia Lotufo e Ronaldo Zaphás ................. 107

 
 
 
 

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................ 10

1 LA POCHA NOSTRA ...................................................................................... 24

1.1 Representações e imagens de identidades/diferenças .................................... 34

1.1.1 Dois ameríndios não descobertos visitam o Ocidente ....................................... 36

1.2 Corpo Pocho/a ................................................................................................... 42

1.3 Corpo/Ilicito: The Post-Human Society 6.9 .................................................... 48

2 MÉTODO POCHA ........................................................................................... 53

2.1 Breve histórico do Método Pocha .................................................................... 59

2.2 Método Pocha – exercícios, rituais e jogos....................................................... 61

2.2.1 Procedimentos e exercícios do Método Pocha .................................................... 66

2.3 Procedimentos e temáticas abordadas............................................................. 80

3 PEDAGOGIAS DA PERFORMANCE........................................................... 85

3.1 Arte e Vida: Corpo, presença e experimentação............................................. 86

3.2 Pedagogias da performance.............................................................................. 89

3.3 Programas de formação em performance........................................................ 93

CONCLUSÃO.................................................................................................... 103

REFERÊNCIAS ................................................................................................ 108

 
 
10 
 

INTRODUÇÃO

Faço arte...
para deglutir minhas entranhas/para explodir sistemas/para desestabilizar o conhecido/para questionar fronteiras/para ser livre
com o mundo/para provocar, celebrar/para enfrentar medos/ para jogar com possibilidades de mim/ para buscar a
ressurreição/ para reviver/ para me virar ao avesso/ para purgar o ódio/ para cruzar múltiplas dimensões/ para sair de mim/
para ser sendo outro/ para reinventar os objetos do mundo...1

Lembro-me da insistência de Eleonora Fabião2 ao me instigar a refletir e escrever


sobre meu processo até chegar ao tema e enfoque dessa pesquisa, me perguntando os porquês
da escolha feita. Eloísa Brantes3, ainda nas aulas de graduação, perguntava ‘O que move o seu
desejo?’, é sobre essa questão que tentarei abordar nesse pequeno texto. Pensando o lugar
onde eu me encontro, de encontro pessoal e intransferível com essa pesquisa, com essa
proposta artística, com o La Pocha, como ‘pocha’ que talvez sempre fui, sou, estou. Como
‘pochos’ que talvez todos nós sejamos, assumindo, querendo, ou não.
Sou/estou filha de uma mãe alemã, de um pai paulista descendente de italiano, a irmã
mais nova dos quatro filhos, nascidos entre Kassel - Alemanha, Porto Nacional (TO) e
Goiânia (GO) - Brasil. O atravessamento de fronteira sempre esteve presente na minha
formação e recriação de ser quem sou/estou. Como imaginário ou vivência esses territórios
sempre me habitaram.
Opto por criar algumas pequenas crônicas do tempo, lastros de memória sobre passos
dados que parecem ter contribuído em muito no meu percurso e escolhas feitas até chegar
nesse momento.
A primeira delas faz parte da infância, é sobre uma coleção de livros alemães que eu
passava horas folheando, sem entender uma única palavra, via as imagens de salas de aulas e
escolas dos sonhos, fotografias de lugares educacionais muito distintos das salas sem graça a
que estava acostumada. Espaço de leitura, plantas, brinquedos, janelas grandes, pequenos
grupos de mesas e carteiras, quadros, cores, a professora não se posicionava à frente, mas
passava por entre as mesas, aquilo ali tudo me encantava, e eu desenhava esboços e mais
esboços de projetos para outras salas de aula e escolas que sonhava em um dia criar.

                                                            
1
Textos poéticos/performáticos gerados por participantes de diferentes workshops do coletivo La Pocha Nostra,
a partir do exercício ‘Poetic exquisite corpse – Mapping new terriotories of inquiery’. (GÓMEZ-PEÑA;
SIFUENTES, 2011, p. 79-81).
2
Atriz, performer, pesquisadora e professora na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Membro da banca de qualificação e defesa dessa dissertação.
3
Diretora, performer e professora no Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Membro da
banca de defesa dessa dissertação.
 
 
11 
 

Enquanto filha de professores, críticos do atual modelo de educação e inquietos em


investigar propostas diferenciadas de educação, me lembro de dois dos primeiros livros que
comprei, ainda adolescente, que marcaram minha trajetória. Um deles é o livro de Augusto
Boal, Jogo para Atores e Não-atores e outro Liberdade sem Medo, livro sobre a lendária
escola libertária Sumerhill, escrito por Alexander Neill. O meu desejo em investigar outras
formas de educação, mais instigantes, que incluíssem o corpo, os desejos e as histórias dos
alunos no processo educativo, se desdobrou no enamoro e estudo sobre escolas democráticas
e libertárias e na escolha do curso universitário ao qual me formei: Artes Cênicas –
licenciatura.
Ao terminar o Ensino Médio e tentar reencontrar a parte alemã que de certo modo
parecia fazer parte de mim mudei-me para Kassel, ali pude confirmar que sempre seria
estrangeira, onde quer que eu estivesse. Enquanto imigrante não usufruía de meus direitos, já
que portava uma suposta cidadania alemã, e como cidadã do país eu não possuía os requisitos
necessários, como língua e conhecimentos culturais, era uma alemã muito pouco autêntica por
sinal.
Ao sair de minha cidade natal, radicalizava a experiência de viver esse cruzamento de
fronteiras, de vivenciar situações culturais das mais diversas, me deparando com essa incrível
possibilidade de me reinventar, apropriar e partilhar de experiências de diferentes referências
e fontes possíveis. Descobrir-me ainda mulher é sempre um exercício em meio a uma
sociedade que prescreve modos e condutas a serem cumpridas como pré-requisito de uma
identidade feminina. Por aí começo parte de minha trajetória.
Em 2011 me mudo para o Rio de Janeiro e me torno professora de artes da rede
municipal de ensino e da rede estadual de educação – contexto em que pude atuar em duas
escolas localizadas no Complexo Penitenciário de Gericinó. Convidada por uma amiga e
colega de graduação participei de um workshop do Coletivo Líquida Ação4, que desenvolve
práticas em performance e intervenção urbana, e acabei me integrando ao grupo. Foi da
experiência que vivi em meu corpo, de sensibilização e potencialização em relação a sua
própria presença, ao espaço e ao corpo do outro, que iniciou de forma mais clara minha
vontade em investigar pedagogias da performance. A primeira versão do projeto era mais
ampla, e não focava nenhuma prática específica. Parecia um pouco genérica demais, foi
quando pesquisando me deparei com as propostas pedagógicas e artísticas do La Pocha

                                                            
4
Coletivo de artistas, formado em 2006, que realiza performances e intervenções urbanas, sediado no Rio de
Janeiro, com direção artística de Eloísa Brantes. Em seus trabalhos propõe a democratização da arte em lugares
públicos, trazendo como principais matérias de composição de suas obras o corpo, a água e o espaço.
 
 
12 
 

Nostra, e fiquei encantada. Apresento aqui uma perspectiva do meu encontro com esse
coletivo, das leituras e questões que me suscitaram e que desejo compartilhar.
Desestabilizar mapas em uso, questionando as delimitações e demarcações vigentes,
desorganizar limites entre os diferentes territórios e seus usos, reinventando cartografias que
dialoguem com as necessidades e características do nosso tempo, são alguns dos objetivos
dessa investigação que busca diluir, borrar e cruzar fronteiras. Cartografia aqui entendida
enquanto escrita experimental que, como Suely Rolnik ressalta, ‘se faz ao mesmo tempo que
os movimentos de transformação da paisagem’:
Para os geógrafos, a cartografia – diferentemente do mapa: representação de um
todo estático – é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os
movimentos de transformação da paisagem. [...] A cartografia, nesse caso,
acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos –
sua perda de sentido e a formação de outros: mundos que se criam para expressar
afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se
obsoletos.” (ROLNIK, 2007, p.23)

O ‘desmanchamento de certos mundos’ e o surgimento de outros, de novos sentidos e


usos, se faz em meio ao conflito necessário e incessante entre o estabelecido e o surgimento
do novo, motor das transformações do mundo. Novos esboços são traçados na tentativa
sempre provisória de abarcar a complexidade do/no tempo. Desterritorializando papéis sociais
e questionando representações até então vigentes. Diante das novas configurações
geográficas, políticas e culturais da atualidade, a tentativa de um todo – uno, indivisível,
coerente e semelhante entre si – se dissolve perante a ruína de determinados mundos e o
levante de outros, mais híbridos e interconectados.
As tentativas unificadoras de forjar um ‘ser nacional’ soam como mentiras contadas
para manutenção de um corpo social. Nestor García Canclini (1999, p.103), aponta para a
necessária implosão dessa estória narrada sobre as nações e seus concidadãos. “Nesta segunda
metade do século XX, esse simulacro das monoidentidades se torna inverossímil e explode,
com particular evidência, nas grandes cidades.”
Ao passo que o mercado global assume um alcance de transnacionalização nunca antes
visto, pulverizam-se e disseminam-se referências, símbolos, mercadorias, através de uma
indústria cultural que atravessa fronteiras. A dissolução das monoidentidades, e a mudança de
status e peso das culturas tradicionais/locais, também decorrentes de algum modo desse
processo mercantilista, possibilitam, por outro lado, uma maior liberdade na formação de
novas composições identitárias, mais abertas a experimentações.
Faz parte dessa investigação que busca construir pontes, mesmo que precárias,
instáveis, e tampouco decisivas, aproximações entre práticas de artistas que utilizam como
 
 
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linguagem a arte da performance, pensadas à luz de teóricos que abordam as formações


sociais da atualidade. Autores como Maurice Merleau-Ponty, Suely Rolnik, Massimo
Canevacci, Nestor García Canclini, Homi Bhabha, Stuart Hall, compõem, nesse sentido, a
bibliografia da presente dissertação, juntamente com outros pensadores que refletem e nos
ajudam a pensar sobre as configurações contemporâneas.
A arte da performance mostra-se como um modo ‘bom para pensar’ a
contemporaneidade. Nesse contexto, como sugere Guillermo Gómez-Peña5, o performer se
apresenta como um cronista do seu contexto imediato6, que reflete e problematiza os fluxos,
formações e composições contemporâneas. Diluir, borrar e cruzar fronteiras faz parte desse
percurso.
As diversas diásporas, sincretismos e demais formações e trânsitos sociais e culturais,
que não se restringem à construção de comunidades unificadas, são marcas dos diversos
encontros transfronteiriços de nosso tempo. Em meio às metrópoles, à intensidade do fluxo de
mercadorias e informações, à proliferação de temporalidades e à sobreposição de espaços
comunicacionais, dilui-se a unidade tempo/espaço supostamente compartilhada, fragmentando
ainda mais as experiências do sujeito com seu meio. As complexas redes próprias da era
digital pulverizam os locais de emissão e fala, descentralizando e complexificando formas
monológicas de comunicação.
Compreendemos assim, como aponta Dwight Conquergood, que ‘o local é algo que
vaza’. O espaço físico é informado por imaginários, culturas e estórias, sua materialidade é
maleável, tomando formas e significações diversas, que carregam consigo os diferentes
itinerários e fluxos que o compõem e alteram. A ideia de localização se amplia quando
percebemos a serie de sobreposições de espaços, trajetórias, memórias, que constam, de certo
modo, implicadas em cada lugar.
A boundary is more like a membrane than a wall. In current cultural theory,
‘location’ is imagined as na itinerary instead of a fixed point. Our understanding of a
‘local context’ expands to encompass the historical, dynamic, often traumatic,
movements of people, ideas, images, commodities and capital. [...] We are now
keenly aware that the ‘local’ is a leaky, contingent construction, and that global
forces are taken up, struggled over, and refracted for site-specific purposes.
(CONQUERGOOD apud GÓMEZ-PEÑA, 2005, p. xxv) 7.
                                                            
5
Artista chicano, nascido no México e residente nos EUA.
6
Disponível em: <http://idanca.net/o-artista-da-performance-e-um-cronista-do-seu-contexto-imediato/>. Acesso
em: 08 mar. 2012.
7
“Uma fronteira é mais parecida com uma membrana do que com um muro. Na teoria cultural corrente, a
‘localização’ é mais imaginada como um itinerário, do que como um ponto fixo. Nossa compreensão de
‘contexto local’ expande para envolver o histórico, dinâmico, frequentemente traumático, movimento das
pessoas, ideias, imagens, mercadorias e capital. [...] Nós estamos agora cientes que o local é algo que vaza,
construção contingente, e que as forças globais são retomadas, lutam por e são refratadas para fins específicos
locais.” (tradução nossa)
 
 
14 
 

O nomadismo característico desse tempo demonstra quão impraticável é a esperança


de manutenção de uma identidade cultural pura, estável e contínua. Massimo Canevacci
(2009), em sua abordagem em torno dos trânsitos culturais contemporâneos,
transculturalidades, interculturalidades e sincretismos, reflete sobre a mudança que decorre da
diluição das cidades industriais, que se desfazem no ar, um ‘ar de pixels’. É desse contexto
que estamos falando, em que noções de identidade, cultura, pertencimento, tornam-se bem
mais complexas, e o movimento contínuo de reinvenção e negociação de sentidos e valores
parece reinar na terra.
A abordagem proposta em torno de performances transculturais possibilita a
problematização de representações culturais do ‘outro’. Em um momento em que a auto-
representação se torna mais evidente e reivindicada, ressalta-se a importância de repensarmos
os processos de representatividade. Quem representa quem? Quem é representado? Como e o
que é representado?
A presente dissertação, traçada a partir da prática artística do performer Guillermo
Gómez-Peña e do coletivo La Pocha Nostra, traz como enfoque os projetos, procedimentos e
conceitos que marcam os programas em performance desses artistas. O jogo de formações
imagéticas, próprio desse trabalho, questiona e subverte imaginários em torno do ‘outro’, do
estrangeiro, do imigrante, do ‘traidor cultural’.
A abertura de sentido, própria da linguagem performática, permite em meio a desvios,
desacordos, dissonâncias, não encaixes e contradições, a criação de composições feitas a
partir da fragmentação, da descontinuidade, da interrupção e da rachadura no sentido. Questão
que possibilita aos performers experimentar modos de auto-representação, de paródia, de
montagem, que subvertem, sem ter que dar respostas definitivas, os padrões vigentes de
representação.
Ao trazer questões de extrema importância para pensar o consumo, os diversos
fetichismos e hibridizações, tais propostas artísticas não negam esses fluxos, ou sua presença
na constituição das subjetividades contemporâneas, em razão de uma suposta pureza cultural a
ser alcançada, mas tendem a complexificar tais relações. Dessa forma, questionam como
apropriamos e podemos apropriar dessas questões, problematizando essas relações, onde
objetos, mercadorias, pessoas, representações sociais, estereótipos e interesses de mercado, se
confundem.
O performer, como sujeito diaspórico, transita por entre diferentes culturas. A
performance como atitude frente ao mundo, presença intensificada, traz como questão as
 
 
15 
 

possibilidades de diluição das fronteiras entre arte e vida. Enquanto sujeito de múltiplas
identidades, o performer é pensado como experimentador e educador de si. Evidenciando
formações identitárias complexas que aproximam do que Canevacci (CANEVACCI, 2007,
p.108) nomeia como multivíduos, ao dizer sobre estas novas formações dos sujeitos,
dificilmente categorizáveis:
Não sou mais um indivíduo, mas um multivíduo, dificilmente apreensível ou
rotulado a partir das classificações socioantropológicas tradicionais. Não se pode
enquadrar em classificações o que é naturalmente vário, fragmentado. Como fixar
em tabelas o que é móvel e fugidio? Por outro lado, há de se considerar a
emergência das novas identidades diaspóricas, que trazem desafios ao ordenamento
jurídico e administrativo dos estados/cidades e mesmo às culturas estabelecidas. Do
encontro/desencontro cultural surgem as múltiplas formas de hibridismo cultural.

A formação de novas diásporas, não mais referentes aos fluxos migratórios forçados,
mas às ‘deportações voluntárias’, possibilitam o surgimento do multivíduo, enquanto ‘sujeito
diaspórico’, que não se relaciona mais com as identificações fixas, mas sim com hibridismos e
sincretismos culturais. A possibilidade inédita em ‘viver uma multiplicidade identitária’, faz
com que esse sujeito agora possa assumir-se como criador e experimentador de si, transitando
por entre diferentes códigos, culturas, identidades.
A partir de deslocamentos que aproximam, justapõe e mesclam referências diversas,
deslocam-se signos de seus habitats naturais. Performers, em diferentes programas, práticas e
procedimentos, utilizam objetos de diferentes origens e culturas, recriando símbolos, objetos
rituais, misturando elementos iconográficos e fetichistas de locais diversos. Desse modo, se
apropriam e devoram tudo que encontram no caminho.
Tal fusão de imagens, símbolos, mitos e atitudes, a partir de inversões, travestimentos
culturais e subversão de poderes, desestabilizam as noções identitárias hegemônicas.
Identidade que, nesse sentido, já não é mais compreendida como unidade, fixa, coerente, mas
complexa, mutante, móvel, fluída, composição própria e precária a partir de identificações,
apropriações, montagens.
É, nesse sentido, que esses escritos fronteiriços, desrespeitando delimitações
estanques, segregações e demais separatismos, trazem como objeto de investigação a arte da
performance e seus desdobramentos pedagógicas. Tendo como enfoque o coletivo La Pocha
Nostra, o intuito dessa abordagem é compreender a performance enquanto ‘pedagogia
radical’, trazendo o ‘método Pocha’ enquanto metodologia ‘work in progress’ que investiga
possibilidades de formação performática.
O coletivo La Pocha Nostra, sediado em São Francisco – EUA, se estrutura enquanto
uma organização, rede de artistas de diferentes idades, gêneros, etnias, nacionalidades,
 
 
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disciplinas, gerações, dispostos a cruzar e questionar fronteiras entre arte/vida, teoria/prática,


arte/política, artista/espectador. A compreensão de uma colaboração artística que se dá através
de uma rede solta, maleável, de encontros e parcerias, diz sobre a forma disforme em que se
dá tais encontros. A maleabilidade e o constante processo de reinvenção do grupo é marca
importante de seus projetos educativos e performáticos.
O La Pocha Nostra se apresenta como um ‘cartel de bastardos culturais’, trazendo
‘nossas impurezas’ como material a ser experimentado, engajado, transfigurado em seu lugar
de trânsito, o corpo. Enquanto neologismo que subverte uma expressão a princípio
depreciativa – pocho remete ao traidor cultural, aquele que sai de seu território natal – o nome
do grupo trás como pauta a experiência de vida e existência pós-nacional.
It’s essentially a neologism. “Pocho/a” means a cultural traitor, or a cultural bastard.
It’s a term coined by Mexicans who never left Mexico to articulate the post-national
Mexican experience. It’s slightly derogative, but we have expropriated it as an act of
empowerment. And “Nostra” comes from La Cosa Nostra, the Italian mafia. So you
can translate it loosely as the cartel of the cultural traitors, or there is another more
poetic translation that essentially means “our impurities.”8

Assim tento trazer essas ‘nossas impurezas’ como questões que permeiam a presente
investigação, buscando as vozes dissonantes, identidades disruptivas, e questionando padrões
e representações vigentes. São convocados autores que discutem a partir de uma perspectiva
descentrada em relação ao poder estabelecido, e desafiam as cartografias em uso, criando um
percurso que atravessa os estudos culturais e pós-coloniais, a teoria queer e as filosofias da
diferença, na medida em que dialogam com as interrogações pertinentes ao caminho traçado,
diante das fronteiras que se pretende atravessar.
Tomás Tadeu da Silva (2000, p.133), autor que pensa a educação na perspectiva dos
estudos culturais, articulando abordagens sobre identidade/diferença e currículo, aponta que
“cruzar fronteiras significa não respeitar os sinais que demarcam ‘artificialmente’ – os limites
entre os territórios das diferentes identidades”. Cruzar fronteiras aqui se torna pertinente tanto
à proposta estética/ética/política do La Pocha Nostra quanto à abordagem que se busca traçar.
Habitar espaços fronteiriços se mostra enquanto uma opção política em que reinventar
possibilidades de colaboração e diálogo é parte intrínseca do processo artístico. Ao questionar
as demarcações que visam barrar os fluxos e trânsitos livres entre diferentes territórios,
                                                            
8
Disponível em:<http://www.artpractical.com/feature/interview_with_guillermo_gomez-pena/>. Acesso em:
10/11/2012.
“É essencialmente um neologismo. ‘Pocho/a’ significa um traidor cultural, ou um bastardo cultural. É um termo
cunhado por mexicanos que nunca deixaram o México para articular a experiência mexicana pós-nacional. É um
pouco depreciativo, mas o temos expropriado como um ato de poder. E "Nostra" vem de La Cosa Nostra, a
máfia italiana. Assim, você pode traduzi-lo livremente como o cartel dos traidores culturais, ou há outra tradução
mais poética que significa, essencialmente, ‘nossas impurezas’.” (tradução nossa).
 
 
17 
 

estabelecendo postos de vigilância e controle das fronteiras, procura-se desestabilizar as ainda


vigentes ‘políticas do medo’, compactuadas com a manutenção do status quo das classes
dominantes.
A presente abordagem, em via contrária a tais medidas segregacionistas, que anseiam
por uma pretensa pureza, evidencia a compreensão contemporânea de descentramento do
sujeito cartesiano, de descrédito da noção de uma possível agência individual, independente e
autossuficiente. Essa crítica ao regime identitário de subjetivação nos leva a uma
compreensão que retoma um sujeito que, encontrando-se entre as coisas, passa a não ser
compreendido como centro a partir do qual se organiza o mundo. O modo de subjetivação
herdado da modernidade, e sua política identitária sofre um abalo sísmico.
Modo de subjetivação este que, como Suely Rolnik (2006) ressalta, requer o
‘constrangimento de nossa vulnerabilidade às forças do mundo em sua irredutível alteridade’.
Vulnerabilidade que nos permite apreender a alteridade em sua condição de campo de forças
vivas que nos afetam, diluindo a distinção entre sujeito/objeto. Sendo esta uma questão de
grande relevância para práticas artísticas, já que a vulnerabilidade “(...) é condição para que o
outro deixe de ser simplesmente objeto de projeção de imagens pré-estabelecidas e possa se
tornar uma pessoa viva.” 9.
[...] só na medida em que anestesiamos nossa vulnerabilidade ao outro é que
podemos manter uma imagem estável de nós mesmos e do outro, ou seja nossas
supostas identidades. Sem essa anestesia, somos constantemente desterritorializados
e levados a redesenhar nossos contornos e nossos territórios de existência.
(ROLNIK, 2006, p.2)

A descentralização desse sujeito é acompanhada pela busca de uma desierarquização


das inteligências, desorganização das dicotomias que sobrepõe a mente ao corpo, a teoria à
prática, separação entre corpo e mundo, complicando as noções de verdade e mentira, bem e
mal.
O movimento de desterritorialização em curso e a liquidez de nossa era apontam para
a necessidade de compreender e aceitar o efêmero e o disperso como condição da
subjetividade atual. O nomadismo característico desse tempo demonstra quão impraticável é a
esperança de alcançar um ponto último de chegada, um fundo a ser encontrado ou uma
verdade última a ser descoberta.
Encontramos na arte da performance uma opção estética que permite que as
contradições, ambiguidades e os paradoxos do nosso tempo sejam investigados. Apresenta-se,

                                                            
9
Disponível em: <http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Geopolitica.pdf>. Acesso em:
12/11/2012.
 
 
18 
 

segundo Guillermo Gómez-Peña (2005, p.204), como um locus privilegiado para nômades,
emigrantes, híbridos, desterrados. Um lugar “(...) para artistas, teóricos e rebeldes expulsos
dos campos monodisciplinares e das comunidades separatistas.”. Mostrando-se, por fim,
aberta às experimentações em torno das complexidades próprias do nosso tempo.

Arte da performance

O termo performance é utilizado por teóricos de diferentes disciplinas, se referindo a


práticas relativamente diversas. Em abordagens derivadas das ciências sociais, tanto a
linguagem, aspectos da cultura e interações sociais são analisadas como performance.
Segundo Richard Schechner (2003, p.39), a performance pode ser compreendida em oito tipos
de situações: na vida diária, nas artes, nos esportes, nos entretenimentos populares, nos
negócios, na tecnologia, no sexo, na brincadeira e nos rituais – sagrados e seculares, podendo
ser combinadas ou vividas separadamente. Nesse sentido, o enfoque dessa investigação
refere-se à performance no campo artístico, a ‘arte da performance’, termo cunhado, segundo
Schechner, “(...) como um guarda-chuva para obras que, de outro modo, resistiram à
categorização.”.
A arte da performance, enquanto arte experimental marcada pelo encontro híbrido
entre diferentes linguagens artísticas, se mostra como gênero aberto a diferentes disciplinas e
materiais, em que o corpo assume papel central no processo de criação e as fronteiras entre
arte e não-arte são amplamente investigadas. De matéria fluida e difícil definição, a
performance, ainda hoje, instiga diferentes abordagens teóricas que buscam estabelecer
semelhanças entre suas diversas manifestações, no intuito de melhor compreender o que une
tais acontecimentos artísticos sob um mesmo campo conceitual.
A performance como gênero artístico se desenvolve ao longo do século XX.
Encontramos marcos inaugurais da performance, como a compreendemos hoje, localizados
nos anos 50. Seus traços iniciais, porém, podem ser vistos já nos happenigs, na body art, e
nas demais vanguardas artísticas do início do século XX. Propostas que alavancaram a
dissolução da separação entre arte e vida, em que a presença do artista, dissociada da
representação e da ilusão, passa a ocupar papel central na constituição da obra e as fronteiras
entre as diversas artes são questionadas e diluídas.
Os desdobramentos da compreensão do ato criador como tema de arte e o processo de
criação como parte integrante da obra levaram a presença do corpo do artista para o centro da

 
 
19 
 

cena. As investigações da body art, dos limites e das capacidades do corpo, em que o mesmo
é tomado como a própria obra e não mais apenas como instrumento de sua realização,
deságuam na performance na busca de um maior aprofundamento a respeito dos discursos que
envolvem o corpo.
Enquanto evento que propõe e estabelece um tempo/espaço diferenciado daquele
habitualmente vivido no dia-a-dia, a arte da performance convoca ações corriqueiras, objetos
cotidianos, relações estabelecidas, de modo a serem transfigurados, apropriados,
redimensionados. Propiciando experiências onde nossa percepção usual e compreensão do
que nos cerca e das relações em que estamos inseridos - conosco, com o outro, com os
objetos, com o espaço e com o tempo - são alteradas.
Guillermo Gómez-Peña (2005) em seu texto Em defesa del arte del performance, na
busca de refletir sobre sua prática e reconhecer características que também identifica no
trabalho de outros performers, aponta que na performance o espaço do ponto de vista
fenomenológico é vivido através de um aqui e agora hiperintensificado, de uma presença e
atitude intensificada que se estabelece em relação direta com o espaço ambíguo entre tempo
real e tempo ritual, em oposição ao tempo teatral ou fictício.
Lidiamos con la “presencia” y la actitud desafiante em oposición a la
“representación” o la profundidad psicológica; con el “estar aquí” en el espacio en
oposición al “actuar” o fingir que somos o estamos siendo. Richard Schechner
elabora la siguiente idea: “En el arte del performance la ‘distancia’ entre lo real-
verdadero (social y personal) y lo simbólico, es mucho menor que en el teatro de
drama donde casi todo consiste en fingir, donde incluso lo real (una taza de café, una
silla) se convierte en fingimiento.10 (GÓMEZ-PEÑA, 2005, p.220)

Dessa forma, são ativados diferentes modos possíveis de vivenciar e estabelecer a


relação corpo/tempo/espaço como alternativas de experienciar, experimentar e ler a realidade.
De maneira que provocam deslocamentos, tanto no que diz respeito aos performers quanto
aos espectadores que nesse contexto assumem diferentes posições e níveis de interação.
Em seu livro introdutório A arte da Performance (2006) a autora RoseLee Goldberg
reconhece nas Vanguardas Europeias a faísca disseminadora do surgimento da performance.
Aponta ainda, mesmo reconhecendo a dificuldade de uma definição precisa, que em suas
variáveis:
A obra pode ser apresentada em forma de espetáculo solo ou em grupo, com
iluminação, música ou elementos visuais criados pelo próprio performer ou em
colaboração com outros artistas, e apresentada em lugares como uma galeria de arte,
                                                            
10
“Lidamos com a ‘presença’ e a atitude desafiante em oposição à ‘representação’ ou à profundidade
psicológica; com o ‘estar aqui’ no espaço em oposição ao ‘atuar’ ou fingir que somos ou estamos sendo. Richard
Schechner elabora a seguinte ideia: ‘Na arte da performance a ‘distância’ entre o real-verdadeiro (social e
pessoal) e o simbólico, é muito menor que no teatro de drama onde quase tudo consiste em fingir, onde inclusive
o real (uma taça de café, uma cadeira) se converte em fingimento.” (tradução nossa)
 
 
20 
 

um museu, um “espaço alternativo”, um teatro, um bar, um café ou uma esquina. Ao


contrário do que ocorre na tradição teatral, o performer é o artista, raramente um
personagem, como acontece com os atores, e o conteúdo raramente segue um enredo
ou uma narrativa tradicional. A performance pode ser uma serie de gestos íntimos ou
uma manifestação teatral com elementos visuais em grande escala, e pode durar de
alguns minutos a muitas horas; pode ser apresentada uma única vez ou repetida
várias vezes, com ou sem um roteiro preparado; pode ser improvisada ou ensaiada
ao longo de meses. (GOLDBERG, 2006, p.VIII)

De forma geral, a autora ainda ressalta o frequente uso de diferentes disciplinas e


mídias como material de performance, na tentativa de ampliar os meios de expressão,
reduzidos muitas vezes na época à pintura e à escultura, e o desejo de sair dos espaços
outorgados dos sistemas de arte: museus e galerias.
A presença viva, a importância e centralidade do corpo do artista na obra, foram
imprescindíveis para o que se configurou então como performance art. No entanto, a despeito
de uma tentativa de conceituação, cada artista cria uma definição própria de performance a
partir dos desdobramentos de seu processo artístico. Disso ressaltamos a importância de
consultar esses documentos e escritos do artista, manifestos e diários, para compreensão de
suas práticas.
Em entrevista concedida ao jornal ‘Diário do Nordeste’ Eleonora Fabião (2009)
corrobora com a ideia da impossibilidade e falta de sentido em se criar uma definição fechada
sobre o que vem a ser performance. Para ela “Definir performance é um falso problema” 11.
Mesmo reconhecendo alguns traços comuns entre as diversas práticas, sugere a existência de
uma a grande variedade entre os diferentes programas, procedimentos e propostas em
performance:
Enquanto gênero, a performance não fixa formas espaciais ou temporais, não utiliza
mídias ou materiais específicos, nem estabelece modos de recepção ou critérios de
documentação. Alguns performers trabalham em espaços públicos, outros em
galerias ou demais espaços destinados à fruição artística, outros em seus próprios
estúdios ou casas, enquanto outros preferem espaços rurais. O mesmo sobre a
temporalidade da performance: há peças com duração de um ano enquanto outras
duram horas, minutos ou mesmo segundos. Quanto às mídias e materiais utilizados
pelos artistas, a diversidade também é grande. Quanto à recepção da performance,
também impera a indeterminação: alguns artistas performam para espectadores (que
tornam-se cúmplices ou testemunhas de seus feitos), outros com os espectadores
(que tornam-se assistentes e até mesmo co-realizadores do evento), e outros sem
espectadores (e optam por documentar ou não as ações realizadas). Há também
aqueles artistas que criam proposições para serem realizadas não por eles, mas pelos
próprios “espectadores”. Ou ainda, numa versão radicalmente diferente, aqueles que
contratam e pagam pessoas para performar suas propostas.

Eleonora Fabião ainda sugere as vantagens de uma perspectiva histórica, que relativiza
a origem da performance, se mostrando mais interessante do que uma compreensão que

                                                            
11
Disponível em: < http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=652907>. Acesso em: 15 dez. 2012.
 
 
21 
 

busca definir em termos limitadores o seu significado. Para que possamos ter um melhor
entendimento de como o gênero é construído, torna-se necessário o reconhecimento do que se
tem feito ser performance, de onde podemos encontrar uma serie de apontamentos, sempre
provisórios, para a questão ‘o que é performance’.
Guillermo Gómez-Peña (2005) ressalta a natureza escorregadia e em permanente
mudança da performance o que torna extremamente difícil definir em termos simplistas o que
seja essa linguagem artística. Aponta ainda a importância de não se estabelecer postos de
controle sobre o mapa da prática performativa. Ao refletir sobre a sua atividade artística, traz
a performance também como uma atitude frente ao mundo.
El performance es una forma de ser y estar em el espacio, frente a/o alrededor de un
público especifico. También es una mirada intensificada, un sentido único de
propósito en el manejo de objetos, compromisos y palabras y, al mismo tiempo, una
“actitud” ontológica hacia todo el universo. Los chamanes, faquires, coyotes y
merolicos comprenden esto muy bien.12 (GÓMEZ-PEÑA, 2005, p.220)

Enxergando o potencial educativo da performance e de deslocamento do conhecido,


seu caráter provocativo e desestabilizador, é que busco investigar práticas pedagógicas em
performance. Acreditando que possam, como aponta Eleonora Fabião (2008, p.236), turbinar
‘a relação do cidadão com a polis; do agente histórico com seu contexto; do vivente com seu
tempo, o espaço, o corpo, o outro, o consigo’, podendo efetivar um importante papel
formativo.
Penso que estas práticas alargam, que estes programas oxigenam e dinamizam
nossas maneiras de agir e de pensar ação e arte contemporaneamente. Esta é, a meu
ver, a força da performance: turbinar a relação do cidadão com a polis; do agente
histórico com seu contexto; do vivente com o tempo, o espaço, o corpo, o outro, o
consigo. Esta é a potência da performance: des-habituar, des-mecanizar, escovar à
contra-pêlo. Trata-se de buscar maneiras alternativas de lidar com o estabelecido, de
experimentar estados psicofísicos alterados, de criar situações que disseminam
dissonâncias diversas: dissonâncias de ordem econômica, emocional, biológica,
ideológica, psicológica, espiritual, identitária, sexual, política, estética, social,
racial...

Ao reconhecer essa potência que remete diretamente à vida e nossa relação estética
com o cotidiano, com a alteridade, com nosso corpo, com o espaço, com o tempo, com a
sociedade, a presença de tal linguagem no contexto formativo se faz pertinente ainda em razão
de suas temáticas, frequentemente relativas às experiências de vida e existência humana. Nas
diferentes performances são trazidos temas e questões pessoais relativas à vida do performer

                                                            
12
A performance é uma forma de ser e estar no espaço, frente a/ou ao redor de um público específico. Também é
um olhar intensificado, um sentido único de propósito no manejo dos objetos, compromissos e palavras e, ao
mesmo tempo, uma ‘atitude’ ontológica com todo o universo. Os xamãs, faquires, coiotes e ‘merolicos’
compreendem isso muito bem.” (tradução nossa)
 
 
22 
 

ou da coletividade a qual pertence, de modo a vivenciar, expor, redimensionar, ressignificar


tais relações.
Na perspectiva da trajetória escolhida para o desenvolvimento dessa pesquisa, tais
práticas de pedagogia em performance parecem possibilitar que os integrantes do processo
possam a partir de formações, composições, colagens, justaposições, próprias da linguagem
performática, trazer suas questões, biografias, corpos, subjetividades, observações, de modo a
investigar, ressignificar, recriar suas relações e leituras da realidade. Sendo experimentados,
assim, diferentes modos de ser, estar e se relacionar, possibilitando aos participantes se
apropriar de modo próprio, significativo e criativo de suas existências, o que contribui para
uma formação humana, ética, política e estética e ampliação das referências sensíveis,
sensoriais e reflexivas dos mesmos.
Questões, que remetem às narrativas e discursos relativos às construções identitárias e
processos de pertencimentos culturais, emergem como material quando se pretende partir e
levar em consideração a realidade dos participantes. Descortinam-se assim relações de poder
que envolvem dominações, segregações, barreiras e fronteiras, e estabelecem os modelos
identitários reconhecidos e validados e os modos de vida bem sucedidos. Além de oportunizar
espaços de recriação e investigação da subjetividade, referências diversas são combinadas e
novas formas de associação e agrupamento podem ser ensaiadas e experimentadas.
O enfoque no aspecto pedagógico da arte da performance aponta para a necessidade de
investigar como diferentes performers tem lidado com a questão em suas práticas formativas
em performance. Nesse sentido, se faz importante pesquisar quais abordagens e propostas
metodológicas têm sido utilizadas e quais procedimentos e programas são desenvolvidos, no
intuito de elucidar a prática e a compreensão do aspecto educativo da/na performance. O
coletivo La Pocha Nostra encontrou na pedagogia um aspecto primordial de sua atividade, no
momento em que buscava repensar sua prática e reconfigurar sua cartografia poética, para
‘inventar um mapa mais inclusivo para expressar/falar’.
Na tentativa de reunir, organizar, compilar as práticas e procedimentos utilizados ao
longo de sua trajetória, em seus workshops e processos formativos, o La Pocha Nostra
desenvolveu o que é nomeado como ‘Método Pocha’. Essa proposta metodológica, em
processo permanente de reinvenção, é formada por exercícios, jogos e práticas desenvolvidos
ao longo dos anos, em colaboração com performers e pessoas que passaram durante a
trajetória do coletivo, e também apropriados de diferentes fontes, práticas e exercícios
clássicos da performance.

 
 
23 
 

Em seu senso de urgência a metodologia desenvolvida se mostra inteiramente aberta


às mudanças in situ, relativas às necessidades do momento e do grupo com quem estão
trabalhando, apresentando-se enquanto um ‘método vivo para práticas de performance art em
tempos de crise’. Para isso apropriam-se de diferentes meios para mantê-lo em movimento
continuo de transformação. A utilização das novas tecnologias, e das possibilidades que
oferecem, surge como meio para manter o método vivo, aberto e interativo.
Os procedimentos e temáticas presentes nas oficinas e práticas pedagógicas realizadas
pelo grupo trazem importantes apontamentos para uma prática pedagógica em performance
transcultural. Nesse sentido, a investigação e a complicação das noções de identidade e
diferença, vistas de modo a não fixá-las ou essencializá-las, aponta para uma metodologia da
diferença, trabalhada em seu lugar de trânsito – o corpo. Exemplos dessa relação encontram-
se explícitos nos objetivos de uma de suas oficinas.
El objetivo, o uno de los objetivos pedagógicos del taller, es descolonizar el cuerpo.
Reocuparlo intelectualmente, politizarlo, y convertirlo en un sitio de reinvención
permanente de la identidad. Y para lograr este objetivo tenemos que empezar a
resocializarnos. A dejar de pensar el cuerpo en un objeto de deseo erótico. Y pensar
el cuerpo como territorio, como mapa, como lenguaje, como texto abierto, como
instrumento musical, como vehículo de identidades múltiples, como metáfora
permanentemente mutante, como símbolo; como artefacto estético, también.13

Desse modo, chegamos ao propósito último dessa dissertação: identificar as propostas


metodológicas, procedimentos, temáticas, apontamentos conceituais que sustentam as práticas
pedagógicas do coletivo La Pocha Nostra, e investigar o processo formativo/educativo por via
da arte da performance. É trazido para esse processo as implicações éticas, estéticas e
políticas da performance, sua potência em alargar as noções de identidade e diferença,
descolonizar nossos corpos, reinventar modos de colaboração, atravessar e questionar
fronteiras, deslocar e dissecar estereótipos, símbolos e protótipos.

                                                            
13
Disponível em: <http://jolgoriocultural.wordpress.com/entrevistas/> Acesso em: 18/12/2012.
“O objetivo, ou um dos objetivos pedagógicos da oficina, é descolonizar o corpo. Reocupá-lo intelectualmente, politizá-lo e
converte-lo em um lugar de reinvenção permanente da identidade. E para conseguir esse objetivo, precisamos começar a nos
ressocializar. A parar de pensar o corpo em um objeto de desejo erótico. E pensar o corpo como um território, como um
mapa, como a linguagem, como texto aberto, como um instrumento musical, como um veículo para múltiplas identidades,
como metáfora permanentemente mutante, como símbolo; como um artefato estético também.” (tradução nossa)

 
 
24 
 

1 LA POCHA NOSTRA

To the Masterminds of Paranoid Nationalism

I say, we say:
‘We,’ the Other people
We, the migrants, exiles, nomads & wetbacks
in permanent process of voluntary deportation
We, the transient orphans of dying nation-states
la otra America; l’autre Europe
We, the citizens of the outer limits and crevasses
of ‘Western civilization’
We, who have no government;
no flag or national anthem
We, the New Barbarians
We, in constant flux,
from Patagonia to Alaska,
from Juarez to Ramalla,
todos somos mojados
We, the seventh generation, the fourth world, the third country
We millions abound,
defying your fraudulent polls & statistics
We continue to talk back & make art
[Shamanic tongues]14

Somos ‘nós’ os bastardos, migrantes, exilados, nômades e imigrantes ilegais, em


permanente processo de deportação voluntária, os sem governo, sem bandeira e sem pátria os
grandes agentes dessa história escovada a contrapelo. Indo contra as versões oficiais da
história e possibilitando que discursos não outorgados sejam escutados. A prática do La Pocha
Nostra busca a ampliação dos locais de emissão de fala e escuta das referências diversas.
Estão interessados nas fissuras, nas fendas e dissoluções de fronteiras, nesses campos
indeterminados, da hibridização e da impureza cultural, por onde o novo entra no mundo,
desestabilizando as cartografias em uso.
Esse primeiro capítulo pretende investigar a prática performativa do coletivo La Pocha
Nostra, em relação à sua proposta artística, aos temas e procedimentos abordados. Nesse
sentido, algumas de suas performances foram analisadas a partir do contexto apresentado,
relacionando-as com questões relevantes para essa temática, como as fronteiras atravessadas e
as impurezas que se pretende habitar. Entre os autores que fundamentam teoricamente esse

                                                            
14
“Para mentores do nacionalismo paranoico// Eu digo, nós dizemos://"Nós", as outras pessoas//Nós, os
imigrantes, os exilados, nômades e latinos//em permanente processo de deportação voluntária//Nós, os órfãos
transitórios dos moribundos estados-nação//A outra América; a outra Europa//Nós, os cidadãos dos limites
exteriores e das fendas da "civilização ocidental"//Nós, que não temos governo//nenhuma bandeira ou hino
nacional//Nós, os novos bárbaros//Nós, em fluxo constante//da Patagônia ao Alasca//de Juarez para
Ramalla//Todos somos mojados//Nós, a sétima geração, o quarto mundo, o terceiro mundo//Nós milhões
infestamos//desafiando suas votações fraudulentas e estatísticas//Continuamos a falar de volta e fazer
arte//[Línguas xamânicas]” (tradução nossa)

 
 
25 
 

capítulo estão: Belidson Dias, Coco Fusco, Eleonora Fabião, Guillermo Gómez-Peña, Homi
Bhabha, Judith Butler, Massimo Canevacci, Maurice Merleau-Ponty, Nestor García Canclini,
Nicolas Bourriaud, Stuart Hall, Tomaz Tadeu da Silva e Suely Rolnik.

Em 1978 Guillermo Gómez-Peña, aos 22 anos de idade, muda-se da Cidade do


México para a Califórnia para estudar arte. Sob o peso da pressão das prescrições de como ser
mexicano, ainda muito ditadas pela cultura oficial, pelas noções de território e idioma
nacional, ele decide deixar o país. A identidade mexicana entendida como direito daqueles
que, morando no país, pertenciam à cultura local e tinham o espanhol como única ou principal
língua não deixava, segundo Gómez-Peña (2005, p.5), muitos caminhos para reinventar o que
era ser mexicano.

A complexidade própria da formação do ‘povo mexicano’, latino, e de outros povos


que passaram pelo processo de colonização é marca das culturas nacionais desses países
enquanto culturas híbridas. Historicamente as insistentes retomadas de nacionalismos e
narrativas unificadoras, responsáveis pela manutenção da nação enquanto pretensa unidade
coesa, tentaram apagar o dinamismo da cultura e as muitas misturas que compõem e
recompõem continuamente as identidades nacionais, e que resistem a tais tentativas
homogeneizantes.

A colonização nos diferentes países latino-americanos deixou marcas profundas na


constituição destes países, os lastros são feridas não cicatrizadas, presentes em sua formação,
imaginário social, mobiliário urbano, memórias e constituição social. No México, segundo
Gómez-Peña, o povo indígena, os originários ‘proto-mexicanos’ são representados de modo
infantilizado, como se fossem viventes de um tempo e espaço paralelo e mítico da história e
da sociedade, processo que também podemos reconhecer no Brasil.

No contexto social do país as tradições e imagens indígenas são reconhecidas e


utilizadas de modo folclorizante. Artefatos de sua cultura são vendidos e expostos em
situações turísticas e de curiosidade cultural, enquanto seus problemas – desemprego,
alcoolismo – se avolumam. A situação dos povos indígenas, na maioria dos países que se
configuram como ex-colônias, se mostra enquanto um nervo exposto dos problemas que
envolvem a formação dessas nações.

A relação de pertencimento à cultura oficial de um país demonstra a sua precariedade


não somente entre os povos indígenas, como também em diferentes grupos sociais não
 
 
26 
 

hegemônicos. Canclini (1999, p.75) corrobora com essa questão quando diz que “(...) não é
necessário ser migrante indígena para experimentar a parcialidade da própria língua e viver
apenas fragmentos da cidade”. De diferentes formas sentimos as fendas que se abrem diante
da suposta cultura oficial de uma nação.

Guillermo Gómez-Peña e outros tantos, que por motivos variados atravessaram a


fronteira, passam a ser considerados diante da cultura oficial como traidores, mexicanos
inautênticos e bastardos: Pochos. Segundo Gómez-Peña, a partir do momento em que a
fronteira é cruzada inicia-se o irreversível processo de pocho-ização ou de des-
mexicanização.
Na verdade eu opto pelo "fronteiriço" e assumo a minha conjuntura: vivo justo na
fenda de dois mundos, na ferida infestada, a meio quarteirão do fim da civilização
ocidental e a quatro milhas do princípio da fronteira do México com os Estados
Unidos de América, no ponto mais ao norte da América Latina. Na minha multi-
realidade-fraturada, ainda realidade, co-habitam duas histórias, linguagens.
cosmogonias, tradições artísticas e sistemas políticos drasticamente opostos (a
fronteira é o enfrentamento contínuo de dois ou mais códigos referenciais)[...]. Nós
nos desmexicanizamos para mexicompreender-nos, alguns sem vontade, outros
desejando. E um dia a fronteira se converteu na nossa casa, laboratório, Ministério
da Cultura (ou contra-cultura). (GÓMEZ PENA, 2002, p. 48 apud CABALLERO,
2011, p.50).

Ao chegar aos E.U.A. Gómez-Peña passa a conviver com chicanos e escrever em


spanglish – a língua dos Pochos – e refletir a respeito da natureza cultural híbrida
compartilhada por eles, excluída pelas duas nacionalidades. Ele utiliza a fita de Moebius como
metáfora dessa condição de desterritorialização inevitável após o cruzamento da fronteira.
Sempre que se tenta o retorno, acaba-se do outro lado, como se estivesse andando sobre a fita.
Desse modo, ao caminhar sobre a fita, o percurso traçado não se encontra localizado em uma
parte ou em outra, mas em trânsito.
Desde a primeira performance realizada por Gómez-Peña – The Loneliness of the
Immigrant – seis meses depois de sua chegada em Los Angeles, é possível identificar como
temática as questões do imigrante, do corpo estrangeiro, invisibilizado em meio às grandes
cidades15. Nessa performance ele permanece durante 24 horas em um elevador público
embrulhado em um tecido indiano amarrado com cordas, impossibilitado de mover ou
comunicar verbalmente, abandonado à completa vulnerabilidade e anonimato. A partir dessa
ação Gómez-Peña percebe que a performance poderia ser um meio muito interessante para
inserir os dilemas existenciais e políticos na esfera social.

                                                            
15
GÓMEZ-PEÑA, 2005, p. 6.
 
 
27 
 

Figura 1 – Guillermo Gómez-Peña na performance The Loneliness of the Immigrant.

Fonte: Site do Museu de Arte Contemporânea - MOCA, Los Angeles.


Disponível em: <http://sites.moca.org/blacksun/2011/09/27/guillermo-gomez-pena-the-loneliness-of-the-
immigrant-19792011>. Acesso em: 08 fev. 2013.

A fronteira entre México e Estados Unidos aparece no contexto da política


internacional como território que deve ser protegido e vigiado desse indesejável encontro com
o ‘outro’ – suposta ameaça da pureza de sua cultura. Nesse sentido, assentam-se políticas anti-
imigração, há tempos em curso, com seus muros e cercas que pretendem dificultar e barrar o
trânsito de imigrantes, cuja influência cultural e política é decisiva em ambos os países.

O fato é que essa população não para de crescer, sujeitos híbridos, fronteiriços, somos
todos nós. Como podemos constatar, são 35 milhões de mexicanos pós-nacionais, aculturados
(ou chicanizados), juntamente com outros tantos latinos, que vivem em território
estadunidense. Para Gómez-Peña a própria existência dessas múltiplas formações identitárias
demanda uma nova cartografia – uma nação virtual em que latinos, com documento ou não,
possam usufruir os mesmos direitos e privilégios dos cidadãos norte-americanos.

Nesse sentido, ele não sugere apenas uma tolerância liberal, mas propõe uma outra
concepção política a respeito da imigração, em que as diferenças sejam encorajadas e palavras

 
 
28 
 

como ‘estrangeiro’, ‘imigrante’, ‘minoria’, ‘diáspora’, ‘fronteira’ e ‘americano’ se tornem


inúteis para explicar a condição das novas formações identitárias.

A partir do histórico 11 de setembro acirrou-se o fechamento das fronteiras,


justificando a subsequente ‘guerra ao terror’, marcada pela cultura da intolerância, pelo
patriotismo, pela paranoia e isolamento social, sintomas decorrentes do medo exasperado que
se alastrou pela vida privada e pública nos EUA. O país, em estado de alerta máximo, tornou
os negros/não brancos suspeitos, investindo em um patrulhamento da fronteira muito
intensificado e feroz. Essa nova situação exerceu uma forte influência na cartografia
performática de Gómez-Peña.

Por outro lado, os Zapatistas traziam as questões indígenas para a discussão das
políticas nacionais. Utilizavam, para tanto, desde alegorias poéticas, cyber comunicados e
estratégias performáticas como procedimentos de ação. Esse movimento exerceu uma forte
influência nos trabalhos e projetos de Gómez-Peña e do La Pocha Nostra.

Podemos perceber a dificuldade em mapear de maneira precisa a complexidade


contemporânea dos atuais atravessamentos culturais. Paralelamente à diluição das fronteiras e
aos fluxos contínuos entre diferentes culturas, o fortalecimento de barreiras, nacionalismos e
fundamentalismos também marca o cenário geopolítico internacional contemporâneo.

Diante do contexto global e específico dos EUA, da ‘guerra de culturas’ instaurada, do


culto popular das novas tecnologias e da cultura da globalização, Guillermo Gómez-Peña e
Roberto Sifuentes sentiram a necessidade de repensar em sua prática artística noções de
identidade e comunidade. Movidos por questões que começavam a mobilizar cada vez mais a
atenção da sociedade – discussões e investigações em torno de raça, gênero, nacionalidade,
ideologia, novos paradigmas culturais e noções de pertencimento – os dois performers se
unem na busca de fomentar colaborações artísticas e ensaiar novas estratégias de criação de
comunidades temporárias de rebeldes.
A busca de novos paradigmas culturais e o novo senso de pertencimento, em um
tempo em que todas as certezas estavam amolecidas, derretidas, dissolvidas, é o contexto de
surgimento do La Pocha Nostra. Nesse sentido, através de sua prática performativa,
pretendiam fomentar colaborações artísticas como uma forma de ‘diplomacia-cidadã’ e
promover estratégias para o desenvolvimento de comunidades temporárias de rebeldes. Surge

 
 
29 
 

assim uma poética singular numa espécie de interseção entre performance, teoria,
comunidade, novas tecnologias e ativismo político.

O coletivo La Pocha Nostra surge em 1993, fundado por Guillermo Gómez-Peña, Nola
Mariano e Roberto Sinfuentes, na cidade de Los Angeles. Em 1995 transferem sua sede para
São Francisco – Califórnia. Organização artística em constante processo de reinvenção, o La
Pocha Nostra abrange em sua prática artística tanto performances, como também foto-
performances, instalações artísticas, vídeo, rádio, poesia, configura-se enquanto instituto
conceitual de arte híbrida, em caráter transdisciplinar.
Com objetivo inicial de desdobrar as colaborações entre Guillermo Gómez-Peña,
artista mexicano radicado nos EUA, e outros artistas, hoje o La Pocha Nostra envolve um
grande grupo de colaboradores residentes em diferentes localidades. A partir de um núcleo
mais fixo de artistas (número sempre instável) com dedicação mais exclusiva, se reúnem
cerca de cinquenta colaboradores em todo o mundo. A atuação do La Pocha se dá tanto
através de propostas artísticas realizadas individualmente, como também por meio de um
grande número de artistas que se reúnem em comunidades efêmeras.
Além dos integrantes do núcleo mais fixo, e de artistas que integram o grupo de forma
mais esporádica, a colaboração com outras pessoas/artistas pode se efetivar a partir dos
workshops, de colaborações com artistas locais, e da participação de pessoas do público, que
se tornam também cocriadores da obra. Podemos enxergar na proposição de criação de
comunidades efêmeras a possibilidade de ensaiar novas táticas, estratégias e modos de
colaboração no processo criativo.
Durante os cursos e oficinas do La Pocha, os participantes são convidados a
desenvolver ‘personas híbridas’ baseadas em suas próprias complexidades identitárias,
estéticas pessoais e convicções políticas. O emponderamento e a autonomia são objetivos
centrais dos experimentos pedagógicos do La Pocha, a criação de novos modelos de
produção, mais igualitários, sugere a substituição de processos hierárquicos de produção.
Em spanglish o neologismo La Pocha Nostra se traduz como nossas impurezas ou
como cartel de bastardos culturais. Na base do trabalho desse coletivo se assenta a busca
daquilo que não é puro, claro e cristalino, mas que se encontra nesse entre, nos espaços
fronteiriços, entendidos também como espaços de experimentação, de indeterminação, do
disperso – que não pode ser controlado, categorizado.
La Pocha Nostra é um coletivo de artistas, anti-essencialista, que vai contra as
‘políticas do medo’ e a histeria anti-imigrante, dizendo não às censuras, ao patriotismo, às
 
 
30 
 

fronteiras, ao estado-nação, à ideologia. Críticos do medo instaurado nos EUA pós-11 de


setembro, promovem a representação de uma América multicultural e diversificada. Ao jogar
com iconografias, estereótipos, desdobrar modos de representação da diferença, investigar
possibilidades identitárias e de travestimentos, abre-se um campo de experimentação onde as
complexidades são aceitas e estimuladas e as relações de poder tornam-se objeto de
investigação.
Exploram em seus diferentes projetos a interface entre globalização, migração,
identidades híbridas, culturas de fronteira e novas tecnologias. Tais temáticas são traçadas a
partir da investigação em torno do atual estado de segurança nacional, da política de exclusão,
dos fluxos migratórios, dos conflitos étnicos e territoriais, dos meios de comunicação em
massa, do medo e da violência utilizados como modo de segregar, dominar, e subjugar o
outro.
No texto La Pocha Nostra: um manifesto em constante processo de reinvenção
Guillermo Gómez-Peña, ressalta o caráter transdisciplinar, anti-essencialista, anti-
nacionalista, trans-cultural do grupo:
La Pocha Nostra es una organización trans-disciplinaria de arte, radicada en San
Francisco, y conectada a “grupos asociados” en muchas ciudades y países. Como lo
plantea nuestro sitio electrónico, proveemos las bases para una red informal de
artistas rebeldes en diferentes disciplinas, generaciones y etnias. Si existiera un
común denominador, éste sería nuestro deseo de cruzar y borrar fronteras peligrosas
e innecesarias entre el arte y la política, la práctica y la teoría, el artista y el
espectador. Luchamos por erradicar los mitos modernistas sobre la pureza en la
cultura, y por disolver las fronteras que rodean a las nociones convencionales de la
etnicidad, la sexualidad, el lenguaje y los oficios artísticos.16

Em processos performativos, ao cruzar fronteiras e desrespeitar as delimitações


institucionais sobre os territórios, são dissolvidas tentativas de manutenção de supostas
purezas – arte e vida se unem de modo particularmente político. O performer, nesse sentido, é
um cruzador de fronteiras artísticas, nacionais, geracionais e de gênero. A criação de espaços
utópicos temporários parte da ideia de que cruzar fronteiras na galeria é meio passo para

                                                            
16
Disponível em: < http://revistas.unisinos.br/index.php/ciencias_sociais/issue/view/21>Acesso em: 06 jan.
2013.
“La Pocha Nostra é uma organização transdisciplinar de arte com sede em São Francisco, e conectado a "grupos
de parceiros" em muitas cidades e países. Como sugerido pelo nosso site, nós fornecemos a base para uma rede
informal de artistas rebeldes em diferentes disciplinas, gerações e etnias. Se há um denominador comum, este
seria o nosso desejo de atravessar e apagar fronteiras perigosas e desnecessárias entre a arte e a política, a prática
e a teoria, o artista e o espectador. Nós lutamos para erradicar os mitos modernistas sobre a pureza na cultura, e
dissolver as fronteiras que cercam as noções convencionais de etnia, sexualidade, linguagem e os ofícios
artísticos.” (tradução nossa).
 
 
31 
 

cruzá-las em âmbito mais amplo. Nessa zona ‘utópica/distópica’ temporária e desmilitarizada,


um dos objetivos é descolonizar nossos corpos.
Nuestros cuerpos también son territorios ocupados. Quizá la meta última del
performance, especialmente si eres mujer, gay o persona “de color” (no
anglosajona), es descolonizar nuestros cuerpos; y hacer evidentes estos mecanismos
descolonizadores ante el público, con la esperanza de que ellos se inspiren y hagan
lo mismo por su cuenta. (GÓMEZ-PEÑA, 2005, p.205)17

O corpo do performer em sua rede de relações – implicações semióticas, políticas,


etnográficas e mitológicas – é levado ao centro do altar, de onde o jogo de inversão de
estruturas sociais, étnicas, de gênero se dá como parte intrínseca desse processo de
descolonização. Ao descolonizar esse corpo, entendido também como ‘território ocupado’, em
frente ao público, acreditam poder despertar questionamentos que por vezes podem extrapolar
o momento da performance. Fica a esperança de que a potência das imagens e dos rituais
criados durante as performances possam retornar, rondar e povoar o público, em seus sonhos
e em seu cotidiano, detonando um processo de reflexão, que o inspire também a agir em seu
cotidiano.
Na abordagem de Eleonora Fabião (2009, p. 63), em torno dos temas e procedimentos
presentes em programas de diferentes performers, são enumeradas diversas práticas que,
conforme sustentamos, também podem ser identificadas nas performances do coletivo La
Pocha Nostra:
1) o deslocamento de referências e signos de seus habitats naturais; 2) a
aproximação e fricção de elementos de distintas espécies, naturezas e esferas
ontológicas; 3) acumulações, exageros e exuberâncias de todos os tipos; 4) aguda
simplificação da forma e condensação de materiais e idéias; 5) a aceleração e des-
aceleração da noção de identidade até o seu colapso; 7) a recusa de performar
personagens fictícios e o interesse em explorar características próprias (etnia,
nacionalidade, gênero, especificidades corporais), em exibir seu tipo ou estereótipo
social; 8) o investimento em dramaturgias pessoais, por vezes biográficas, onde
posicionamentos e reivindicações pessoais são publicamente performados; 9) o
curto-circuito entre arte e não-arte; 10) o estreitamento entre política e estética; 11)
agudez conceitual; 12) o encurtamento ou a distensão da duração até os limites
extremos; e 13) a ampliação dos limites psicofísicos do performer e de sua
audiência.

Ao transitar por entre as práticas performáticas elencadas pela autora, podemos


reconhecer nas propostas do La Pocha Nostra praticamente todas elas. O uso de objetos de
diferentes origens e culturas – a partir de deslocamentos e justaposições que mesclam e
deslocam as referências e os signos de seus habitats naturais – possibilita a recriação de

                                                            
17
“Nossos corpos também são territórios ocupados. Talvez o objetivo final da performance, especialmente se
você é mulher, gay ou uma pessoa "de cor" (não- Anglo saxão), é descolonizar o nosso corpo, e deixar claro estes
mecanismos de descolonização para o público, com a esperança de que eles se inspirem a fazer o mesmo por
conta própria.”(tradução nossa).
 
 
32 
 

símbolos e objetos rituais, misturando elementos iconográficos de locais diversos. Desse


modo os performers ‘se apropriam e devoram tudo que encontram no caminho’.
O jogo de imagens criado a partir das noções de identidade/diferença traz o corpo do
performer – em suas diversas implicações, características, marcas, cicatrizes – como potência
que evidencia as complicações e interrupções das construções imagéticas vigentes. Nesse
sentido, os estereótipos relativos às supostas identidades culturais não hegemônicas são
investigados e questionados. A partir da criação coletiva de imagens busca-se recriar essas
relações sociais.
A fusão de imagens, símbolos, mitos e atitudes, a partir de inversões, travestimentos
culturais e subversão de poderes, desestabiliza as noções hegemônicas de identidade.
Estreitam-se assim as relações entre política e estética, arte e vida. A busca em habitar as
fronteiras como espaço de experimentação e como lugar de interseção de realidades múltiplas
se mostra como uma possibilidade fértil de ensaiar novas formas de colaboração. Essa opção
estética, que cruza e questiona fronteiras – criando, atravessando e habitando espaços
fronteiriços – pretende construir outros mundos possíveis.
O aspecto que estreita os laços entre a política e a estética nas performances do La
Pocha Nostra parece se aproximar do que Homi Bhabha (2005, p. 20) ressalta como uma
busca necessária de construção de subjetividades articuladas a partir das diferenças culturais,
nos ‘entre-lugares’, onde novos signos, relações identitárias e modos de colaboração podem
ser traçados.
O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de passar
além das narrativas de subjetividades originarias e iniciais e de focalizar aqueles
momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais.
Esses “entre-lugares” fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de
subjetivação - singular ou coletiva - que dão início a novos signos de identidade e
postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de
sociedade.

A posição do grupo de não dissociar política e estética, presente em seus manifestos e


práticas artísticas, desdobra-se em suas atividades educativas. Nesse contexto, se dá
continuidade à busca de abrir espaços para explorar as construções imagéticas em torno de
identidades e diferenças. Nesse intuito, são realizadas complicações e interrupções das
identidades e referências hegemônicas – responsáveis por atribuir significados, valorar e
estabelecer os incluídos e os excluídos. Possibilita-se, desse modo, um descentramento dos
locais de emissão e das referências vigentes, o que acarreta na multiplicação das vozes de
representação encontradas na sociedade atual. A abordagem proposta em torno de
performances transculturais problematiza as representações culturais do ‘outro’.
 
 
33 
 

Massimo Canevacci, em aula inaugural do Programa de Pós-Graduação em


Comunicação da Uerj18, aponta a importância de repensarmos os processos de representação
realizados por antropólogos, pesquisadores, em suas incursões de encontro ao outro. Questões
como: quem representa quem, quem é representado, como e o que é representado, surgem
como problematização que visa repensar esse modus operandi. Em um momento em que os
meios e possibilidades de auto-representação são muito mais acessíveis, os métodos de
pesquisa precisam ser repensados.
Atravessar e cruzar fronteiras, habitar espaços fronteiriços, questionar os postos de
controle e outras patrulhas, despistar as vigilâncias fronteiriças, abrir buracos nos muros,
cercas e demais barreiras, é parte do trabalho do performer na prática do La Pocha Nostra.
Para Gómez-Peña, no país da performance há espaço para todos os deportados e os sem
documentos, não é preciso passaporte:
A diferencia de las fronteras impuestas por un estado/nación, las fronteras en nuestro
“país del performance” están abiertas a los nómadas, los emigrantes, los híbridos y
los desterrados. Nuestro país es un santuario temporal para otros artistas y teóricos
rebeldes expulsados de los campos monodisciplinarios y las comunidades
separatistas.19 (GÓMEZ-PEÑA, 2005, p. 204)

No intuito de possibilitar a existência de melhores cruzadores de fronteira, ‘desertores


da ortodoxia’ e criaturas intersticiais, é de grande relevância política habitar espaços
fronteiriços, ainda não mapeados. O estímulo à colaboração entre pessoas que confrontam
pontos artísticos, culturais, éticos e políticos diversos, torna possível o encontro entre
diferentes, mostrando-se uma questão importante em meio a uma sociedade onde a
segregação é estratégia política vigente. A fronteira no ‘país da performance’ é entendida
como espaço de experimentação, como lugar de interseção de realidades múltiplas.
É importante enxergar o sentido que a fronteira ocupa no trabalho do La Pocha Nostra:
os seus integrantes, em grande parte sujeitos fronteiriços, imigrantes, desterritorializados e
reterritorializados20, encontram nos espaços híbridos da fronteira uma condição intrínseca de
seu trabalho. Nesses espaços híbridos, formados através do diálogo intercultural e trans-
fronteiriço, confundem-se e misturam-se referências de tempos, culturas, gêneros e lugares

                                                            
18
Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=XW7tGLeeO80>. Acesso em: 20 jan. 2013.
19
“Ao contrário das fronteiras impostas por um estado/nação, as fronteiras no nosso ‘país da performance’ estão
abertas para os nômades, os migrantes, os híbridos e os desterrados. Nosso país é um santuário temporário para
outros artistas e teóricos rebeldes expulsos dos campos mono-disciplinares e das comunidades separatistas.”
(tradução nossa)
20
Referência ao que Canclini (2001) define como desterritorialização e reterritorialização. “Com isso refiro-me a
dois processos: a perda da relação ‘natural’ da cultura com os territórios geográficos e sociais e, ao mesmo
tempo, certas relocalizações territoriais relativas, parciais, das velhas e novas produções
simbólicas.”(CANCLINI, 2011, p.309)
 
 
34 
 

distintos. É nesse viés que aprofundaremos, nos tópicos seguintes, o contágio entre corpos,
objetos, tempos, referências culturais de origens diversas, apontados nas práticas, temáticas e
procedimentos do La Pocha Nostra.

1.1 Representações e imagens de identidades/diferenças

Impossível não se perceber que não se é um – mas vários: pura dispersão, numa sequência aleatória e ilimitada de territórios
finitos e efêmeros. 21

Na prática performática e pedagógica do La Pocha Nostra nossas supostas identidades


são interrogadas. Práticas coletivas de construções imagéticas colocam em jogo complicações
e interrupções de identidades e diferenças, em busca da multiplicação das vozes de
representação. Nesse sentido, tal prática performativa se mostra enquanto projeto político
urgente, em que encorajar pessoas a cruzar fronteiras se mostra crucial, em meio aos
nacionalismos paranoicos e ao medo do outro/da alteridade que ainda se efetivam como
discurso vigente.
Os exercícios e práticas propostos confrontam diferentes e controversas questões
artísticas, culturais, éticas e políticas, desafiando a ainda atual ‘política do medo’, que vem
sido afirmada nos diferentes meios de comunicação e posições geopolíticas hegemônicas. Na
prática performativa do La Pocha, questões, desafios pessoais, problemáticas artísticas,
imaginários sociais, são trabalhados em ato.
Os fluxos migratórios decorrentes do atual contexto de globalização possibilitam
figuras complexas de identidade e diferença, processos de formação subjetiva que articulam
os diferentes pertencimentos culturais. Imagens da diferença, enquanto construções
discursivas fixas são construídas, muitas vezes, na tentativa de dominar o disperso, o que não
pode ser controlado, categorizado. O estereótipo nesse sentido estigmatiza as diferenças.
O estereótipo é uma simplificação falsa de representação de uma dada realidade
porque é uma forma presa, fixa, de representação que, ao negar o jogo da diferença,
constitui um problema para a representação do sujeito nas relações sociais. O
estereótipo requer, para uma significação bem-sucedida, uma cadeia contínua e
repetida de outros estereótipos. Sempre as mesmas histórias devem ser contadas
sobre um determinado elemento da identidade cultural, para garantir sua eficácia.22

A partir da problematização do processo de representação do outro, são questionados


modos folclorizantes da alteridade cultural, que tendem, sob uma visão hegemônica,
eurocêntrica e anglo-saxã, estigmatizar o outro, entendido neste contexto como não-branco,
                                                            
21
ROLNIK, 2007, p.186.
22
Disponível em: <http://www.ip.usp.br/laboratorios/lapa/versaoportugues/2c82a.pdf>. Acesso em: 25/01/2013.
 
 
35 
 

não-homem, não-ocidental. O rótulo de exótico revela uma projeção do outro que ainda
reproduz práticas colonialistas. Os integrantes do La Pocha Nostra, críticos das representações
realizadas por instituições culturais dominantes e pela mercantilização da cultura popular em
situações turísticas, utilizam do humor como estratégia subversiva.
Ao parodiar tais imaginários, expõem não só as representações desse ‘outro’ pela ótica
colonial, como também os desdobramentos e atualizações de tais visões que, ainda hoje,
deturpam e fixam sob estereótipos as diferentes identidades e culturas não-hegemônicas. O
exercício de problematizar e criar fissuras no discurso e imaginário colonial de representação
dos povos não europeus ou anglo-saxões apresenta-se como uma prática de descolonização de
extrema importância ainda hoje.
Durante la última década he estado experimentando con el formato colonial del
"diorama". Mis colaboradores y yo elaboramos "dioramas vivientes"(y agonizantes)
que parodian y subvierten ciertas prácticas de representación que se originaron en la
época colonial, incluyendo a los tableaux vivants etnográficos como los que se
encuentran en los museos de Historia Natural y de Antropología, los freak shows o
monstruos de feria, las curio shops o tiendas de curiosidades fronterizas y las porno-
vitrinas. 23

Práticas artísticas que extrapolam fronteiras nacionais, situadas em contextos


interculturais, trabalhos de artistas que abordam questões de fronteira, identidade nacional,
estéticas da transitoriedade, trazem importantes apontamentos para reflexão sobre as criações
estéticas contemporâneas desterritorializadas de nossa época.
O forte intercâmbio intercultural em nosso tempo extrapola o diálogo entre pessoas de
diferentes nacionalidades, incluindo múltiplas trocas, absorções e influências entre culturas
distintas, além dos diversos sincretismos que estão presentes na formação das culturas. Fato
que nos leva à inviabilização do plano de uma pretensa pureza cultural e à dissolução de
monoidentidades étnicas ou nacionais. A arte da performance, nesse sentido, é entendida
como um território rico para pensarmos formas contemporâneas que colocam em evidencia
nossas múltiplas formações identitárias, migrantes, poliglotas, híbridas.

                                                            
23
Disponível em: < http://www.pochanostra.com/antes/jazz_pocha2/mainpages/dioramas.htm >. Acesso em:
01/02/2013.
“Durante a última década tenho experimentado com o formato colonial do "diorama". Meus colegas e eu
elaboramos "dioramas vivos" (e agonizantes) que parodiam e subvertem certas práticas de representação que se
originaram na época colonial, incluindo os tableaux vivants etnográficos como os que são encontrados nos
museus de História Natural e Antropologia, os freak shows ou monstros de feira, os curio shops ou tendas de
curiosidades fronteiriças e as pornô-vitrines.”. (tradução nossa)
 
 
36 
 

1.1.1 Dois ameríndios não descobertos visitam o ocidente

A performance realizada por Guillermo Gómez-Peña e Coco Fusco intitulada Two


Undiscovered Amerindians Visit the West, foi criada em 1992 em resposta às comemorações
dos 500 anos de ‘descobrimento’ da América. Configura-se enquanto um trabalho elucidativo
das discussões sobre representação, identidade/diferença preconizadas no trabalho de Gómez-
Peña. Enquanto críticos das representações realizadas por instituições oficiais e pela
mercantilização da cultura popular em situações turísticas, eles utilizam do humor como
estratégia subversiva. A performance relembra e joga com as exposições de seres humanos
realizadas nos EUA e na Europa, desde o século XVII até o início do século XX.

Figura 2 – Coco Fusco e Guillermo Gómez-Peña na performance Two Undiscovered Amerindians Visit the West.

Fonte: Site oficial da performer Coco Fusco.


Disponível em: <http://www.thing.net/~cocofusco/performance/amerindian/amerindian1.htm>. Acesso em: 14
fev. 2013.

 
 
37 
 

Figura 3 - Coco Fusco e Guillermo Gómez-Peña na performance Two Undiscovered Amerindians Visit the West.

Fonte: Site oficial da performer Coco Fusco.


Disponível em: <http://www.thing.net/~cocofusco/performance/amerindian/amerindian1.htm>. Acesso em: 14
fev. 2013.

Em Two Undiscovered Amerindians Visit the West Coco Fusco e Guillermo Gómez-
Peña eram expostos em uma jaula durante três dias como ameríndios não descobertos de uma
ilha do Golfo do México, nomeada Guatinaui. Enquanto habitantes dessa ilha, os performers
realizavam atividades ‘tradicionais’ do local, desde costurar bonecas vudú, até levantar pesos,
assistir televisão e trabalhar em um computador portátil.
Os visitantes podiam, em troca de uma pequena taxa depositada em uma caixa em
frente à jaula, ver a coreografia realizada por Coco Fusco ao som de rap e escutar ‘autênticos’
relatos ameríndios – falados em uma língua sem sentido. Os dois executavam rituais
‘tradicionais’, dançavam, cantavam e contavam histórias da suposta ilha de Guatinaui, como
também, utilizavam o computador para comunicar-se com o ‘xamã’ da tribo, e assistiam
vídeos de sua terra natal. Os visitantes podiam tirar fotos com os nativos.
Guillermo Gómez-Peña vestia-se como um lutador asteca de Las Vegas e Coco Fusco
se apresentava como uma nativa da ilha. Ambos eram alimentados por dois guias/guardas do
museu, que lhes davam frutas e sanduíches, e eram responsáveis por levá-los ao banheiro

 
 
38 
 

amarrados em coleiras de cachorro. Os guardas também assumiam a função de falar com os


visitantes, já que os dois guatinauis ‘não compreendiam’ o idioma dos visitantes.
Ao lado da jaula havia uma cronologia de exibições de pessoas no ocidente e um mapa
(falso) com a localização da ilha. Em grande parte, as realizações da performance foram
exibidas em museus de história natural, fora do contexto da arte, e não anunciados como tal.
Segundo os performers, grande parte das pessoas que se deparavam com a exposição
acreditava tratar realmente de nativos da dita ilha.
A apropriação de um modelo de prática colonialista, que é subvertido, coloca em
questão relações em torno das imagens coloniais da alteridade. Ao parodiar tais imaginários
são evidenciadas as representações desse ‘outro’ pela ótica colonial. Os desdobramentos e as
atualizações de tais visões, ainda hoje, deturpam e fixam sob estereótipos as diferentes
identidades e culturas não-hegemônicas. Nessa perspectiva, os espectadores são convidados a
participar e se posicionar frente a jogos extremos – repletos de implicações pós-coloniais e
questionamentos éticos. No uso da paródia surgem possibilidades de inversão das relações de
poder e do status quo estabelecido.
Em uma perspectiva pós-colonial, incitando ao reconhecimento dos limites culturais
e políticos nos espaços sociais, Bhabha (2002, p. 141) realça a hibridez como
"inversão estratégica do processo de dominação" e a define como uma exibição do
deforme, como "estratégias de subversão que devolvem o olhar do discriminado ao
olho do Poder" (BHABHA, 2002, p. 141). Esta perspectiva transgressora e de certo
modo carnavalizada da hibridez - lugar do ambíguo, do duplo - será crucial para ler
a obra de alguns artistas. (CABALLERO, 2011, p.50)

Como exercício de uma ‘antropologia inversa’, a ênfase na reação do público


desavisado, é reveladora acerca do imaginário hegemônico sobre o primitivo e selvagem,
evidenciando imagens colonialistas internalizados, que formam as bases de temores, desejos e
fantasias acerca do ‘outro cultural’. O jogo entre ficção e realidade, entre história e
representação dramática, tornava possível, no contexto da performance interativa, visualizar
os diversos modos de leitura da situação.

A reação dos latinos residentes nos EUA e na Europa, ao se deparar com a


performance, mediante o hibridismo da jaula, era na maioria das vezes de certa identificação
com o que viam24. Ao contrário, os estadunidenses e os europeus mostravam-se muito mais
apegados à coerência do que era mostrado. Nesse sentido, questionavam a utilização de
computadores, óculos de sol, tênis e o consumo de cigarros, tendo como base uma imagem

                                                            
24
Como o relato de um membro mais velho da etnia pueblo do Arizona, que disse que a exibição era mais real
que qualquer outra declaração acerca da condição dos povos nativos no museu, ou mesmo de jovens mexicanos
que confidenciaram que a cada dia que passavam na Europa sentiam-se em uma jaula.
 
 
39 
 

supostamente autêntica que buscavam encontrar. Como se houvesse a vontade de assegurar o


‘verdadeiro primitivo’, identificável visualmente.

Néstor García Canclini (2009, p. 161) contribui com importantes apontamentos sobre
a impossibilidade da construção e da representação de culturas nacionais a partir de
iconografias específicas:

A pretensão de construir culturas nacionais e representá-las através de iconografias


específicas é desafiada em nossos tempos pelos processos de transnacionalização
econômica e simbólica. Arjun Appadurai agrupa esses processos em cinco
tendências: a. os movimentos de populações imigrantes, turistas, refugiados,
exilados e trabalhadores estrangeiros; b. os fluxos produzidos pelas tecnologias e
pelas corporações transnacionais; c. os intercâmbios das financeiras multinacionais;
d. os repertórios de imagens e informações distribuídos por todo o planeta pelos
jornais, revistas e canais de televisão; e. os modelos ideológicos representativos do
que se pode chamar de modernidade ocidental: conceitos de democracia, liberdade,
bem-estar e direitos humanos, que transcendem definições de identidades
particulares.

Segundo o autor, muitos artistas latino-americanos colaboram com a elaboração de um


novo pensamento visual que mais se aproxima do panorama cultural contemporâneo, sem
dedicar-se à nostálgica ‘busca de uma tradição inexistente’.
A performance Two Undiscovered Amerindians Visit the West foi inspirada nas
práticas europeias e estadunidenses, populares em algumas épocas, de exibir pessoas do
continente africano, asiático e americano em zoológicos, parques, tabernas, museus, shows de
fenômenos (freak shows) e circos. Em diferentes exposições etnográficas de seres humanos,
que aconteceram ao longo dos séculos, pessoas foram exibidas e obrigadas a vestir-se
segundo a concepção eurocêntrica sobre os vestuários tribais, desempenhando tarefas
supostamente representativas de sua realidade cultural.

Las infames exhibiciones pseudo-etnográficas de seres humanos que fueron tan


populares en Europa y los Estados Unidos desde el siglo XVII hasta principios del
XX. En todos los casos la premisa era la misma: los "primitivos auténticos" eran
exhibidos contra su voluntad como especimenes míticos o "científicos", tanto en
contextos populistas (tabernas, jardines, salones y ferias), como en museos de
Etnografía y de Historia Natural. Junto a estos "especimenes" humanos había
frecuentemente un muestrario de la supuesta flora y fauna del lugar de origen. Los
"salvajes" eran obligados a vestir trajes y utilizar artefactos rituales diseñados por el
propio empresario, y que poco o nada tenían que ver con su realidad cultural.25

Para Coco Fusco a arte da performance intercultural no Ocidente não começou com os
eventos Dadaístas, mas sim nos primeiros dias da ‘conquista’ europeia, momento em que
foram levadas ‘mostras aborígenes’ de povos da África, Ásia e do continente americano, para
                                                            
25
Disponível em: <http://www.pochanostra.com/antes/jazz_pocha2/mainpages/dioramas.htm.>
Acesso em 18/01/2013.
 
 
40 
 

contemplação estética, análise científica e entretenimento na Europa. Essas pessoas eram


frequentemente mostradas juntamente com uma serie de outros ‘estranhos’ fenômenos,
pessoas que apresentavam deformidades físicas, etc.

A necessidade de repensar as implicações entre poder e construção de conhecimento e


de discutir criticamente as noções de representação aponta para uma questão contemporânea
latente: o direito de autodefinição. Homi Bhabha (2002) sugere a liminaridade como espaço
para a representação da diferença cultural. Nesse sentido, em Two Undiscovered
Amerindians Visit the West são abertos interstícios no espaço institucional, onde se forja
possibilidades de discutir a hibridez cultural, sua condição fronteiriça e suas inevitáveis
traduções culturais. Guillermo Gómez-Peña reflete sobre essa opção e condição fronteiriça.
Na verdade eu opto pelo "fronteiriço" e assumo a minha conjuntura: vivo justo na
fenda de dois mundos, na ferida infestada, a meio quarteirão do fim da civilização
ocidental e a quatro milhas do princípio da fronteira do México com os Estados
Unidos de América, no ponto mais ao norte da América Latina. Na minha multi-
realidade-fraturada, ainda realidade, co-habitam duas histórias, linguagens.
cosmogonias, tradições artísticas e sistemas políticos drasticamente opostos (a
fronteira é o enfrentamento contínuo de dois ou mais códigos referenciais)[...]. Nós
nos desmexicanizamos para mexicompreender-nos, alguns sem vontade, outros
desejando. E um dia a fronteira se converteu na nossa casa, laboratório, Ministério
da Cultura (ou contra-cultura). (GÓMEZ PENA, 2002, p. 48 apud CABALLERO,
2011, p.50).

Dessa maneira, criam-se formas para reconfigurar e reparar danos de anos de


colonização, uma difícil tarefa que requer repensar bases geográficas, econômicas, simbólicas
que ainda estão em vigor. Nesse caso, a performance assume a complexidade enquanto
desejada, problematizando os tabus vigentes.
São apresentadas temáticas e problematizações que englobam desde o processo de
representação colonialista, enquanto construções discursivas, que fixam estereótipos e
estigmas, até os modos folclorizantes da alteridade cultural, que tendem, sob uma visão
hegemônica, eurocêntrica e anglo-saxã, estigmatizar o ‘outro cultural’. A performance Two
Undiscovered Amerindians Visit the West problematiza a exibição e representação de culturas
estrangeiras no continente europeu.
Enquanto instituição historicamente criada e localizada em contexto ocidental, os
museus surgem como parte de uma cosmovisão e configuração geopolítica específica de uma
época. Ao longo dos séculos configurou-se uma divisão dos museus em duas abordagens e
enfoques (MIGNOLO, 2011, p. 377), que os separou entre aqueles relacionados à construção
da história interna e da identidade europeia e os que focavam a história externa à Europa, das

 
 
41 
 

colônias e dos povos estrangeiros. Nesses museus de história natural, materiais de


arqueologia, etnografia, ciências e história eram reunidos em um mesmo acervo.
No contexto da performance de Guillermo Gómez-Peña e Coco Fusco e de outros
artistas que problematizam o museu enquanto instituição histórica e geograficamente
localizada, são questionados os modos de exposição, classificação, apropriação e
deslocamento de objetos, obras e artefatos de outras culturas por essas instituições.
James Clifford (2011, p. 152) retoma a discussão de Susan Stewart em torno da ficção
narrada por museus que, tomando uma parte pelo todo, apresentam alguns elementos de uma
cultura como se representassem o conjunto da mesma. Nesses casos é questionável que uma
determinada seleção, conjunto restrito de obras/peças/objetos não sejam apresentados como
resultados de uma escolha, posicionada – colagem de ‘pedaços cortados de cultura’ – e sim
como substituição de um todo.
Stewart mostra como as coleções, principalmente nos museus, criam a ilusão de
serem representações adequadas de um mundo, começando por retirar objectos de
contextos específicos (culturais, históricos ou intersubjectivos) e tornando-os
‘representativos’ de todos abstractos – uma ‘máscara bambara’, por exemplo, tornar-
se-ia uma metonímia etnográfica da cultura bambara. De seguida, é elaborado um
esquema classificativo para armazenar e expor o objecto para que a realidade da
própria colecção, a sua ordem coerente, ultrapasse histórias específicas da produção
e apropriação do objecto.

Em seu texto intitulado Museums in the Colonial Horizon of Modernity: Fred Wilson´s
Mining the Museum o pesquisador argentino Walter Mignolo (2011, p. 374) aponta que o
museu no mundo moderno/colonial desempenhou um importante papel na colonização de
seres e de conhecimento. Ao pensar a possibilidade de descolonização dos museus, reflete
sobre os possíveis desdobramentos de uma desobediência epistêmica e estética que levassem
à desconstrução do que foram os museus na história moderna/imperial. Nesse sentido,
podemos compreender a performance Two Undiscovered Amerindians Visit the West como
um ato de descolonização que se insere no contexto institucional e subverte-o.
Diferentes estratégias são elaboradas por artistas e curadores na tentativa de repensar,
transfigurar e descolonizar museus e acervos. Uma crítica atual é travada em relação às
diversas formas de fetichização e à acumulação de objetos da alteridade, coleções que
iniciaram com as expedições coloniais. Diversas práticas são atualmente realizadas nesse
sentido, desde o reposicionamento de obras, a investigação da história das coleções dos
museus e dos objetos e documentos de seu acervo e arquivo, até mesmo a repatriação de
objetos ou a criação de museus de grupos, como estratégia de possibilitar a auto-representação
e descentralização.

 
 
42 
 

A inversão dos postos de poder, que coloca os grupos minoritários enquanto


protagonistas, se mostra como uma opção política em que são ensaiadas novas formas de
colaboração. Homi Bhabha (2005), refletindo sobre as possibilidades da performance, sugere
a importância de evidenciar esses grupos minoritários em detrimento de uma lógica da arte
estabelecida enquanto mundial: “(...) tendo em vista a invisibilidade de certos setores na arte
tida como mundial, se torna necessário voltar a performance como possibilidade de auto-
biografar a experiência de vida de sujeitos localizados em grupos minoritários.”. No contexto
do La Pocha as minorias étnicas ocupam sempre uma posição de poder. As fronteiras culturais
são alocadas no centro, enquanto o suposto mainstream é marginalizado e colocado como
exótico e estranho. O espectador exerce a incomoda posição de estrangeiro ou minoria.
Dessa forma são confundidos papéis, hierarquias e posições sociais. Ao desconfigurar
a ordem dominante, a prática do La Pocha possibilita uma maior vulnerabilidade ao outro. Em
seus diferentes trabalhos as inversões étnicas e de gênero, o travestimento cultural e a
subversão de poderes, são meios de levar ao centro as culturas híbridas e às margens o
suposto mainstream, tratado como exótico e estranho. Na visão do La Pocha Nostra, ao
assumir a personalidade de outras culturas, problematizar o processo de representação do
outro, fazer-se passar pelo outro, invertendo papéis sociais, surge a possibilidade de
estabelecer, através da performance, uma forma de ‘antropologia inversa’.
No intuito de desabituar, deslocar e criar estranhamentos nas relações de dominação
estabelecidas o La Pocha realiza questionamentos em ato. Os papéis sociais desempenhados
por cada suposta identidade cultural no discurso hegemônico, anglo-saxão, europeu e
colonizador, são descentrados. Nesse sentido, a premissa é “(...) asumir un centro ficticio, y
empujar a la cultura Anglo-sajona dominante hacia los márgenes. Tratarla como exótica; "des-
familiarizarla," para así convertirla en un objeto de estudio antropológico.”26 Assim, a
inversão dos poderes torna-se reveladora das estruturas reinantes, e atenta o observador mais
distraído para o reconhecimento das estruturas que tentam subjugar e mapear o disperso.

1.2 Corpo Pocho/a

A importância do corpo na performance, convocado para o centro da cena, sugere a


insubordinação do corpo ao discurso e à visão, abordagem que se configura em oposição a
                                                            
26
Disponível em: < http://www.pochanostra.com/antes/jazz_pocha2/mainpages/dioramas.htm >. Acesso em:
25/02/2013
“(...) Assumir um centro fictício, e empurrar a cultura anglo-saxônica dominante para as margens. Tratá-lo como
exótico, ‘desfamiliarizá-la’, para torna-la um objeto de estudo antropológico.” (tradução nossa).
 
 
43 
 

uma concepção de ser humano que prioriza a racionalidade em detrimento da corporeidade.


Nos diferentes programas em performance, desdobra-se a presença do corpo de modo bastante
singular, ao testar seus limites, questionar estereótipos exibidos e expor fragilidades e
imperfeições. Esse corpo, colocado muitas vezes em situação de risco, é um corpo real – que
possui peso, sangue, cheiro, suor, excreções e enfermidades – e efetiva a sua carnalidade
como matéria de criação. Por vezes, submetem-no a intervenções cirúrgicas, interferências
físicas, mutilações, próteses.
O corpo, nos projetos do La Pocha, assume grande importância, torna-se matéria
prima, ‘ícone central do altar’. Tendo em vista que o corpo passa a ser entendido como obra
de arte, esse mesmo corpo se abre a diversas interpretações, que envolvem implicações
semióticas, políticas, etnográficas e mitológicas. Apresenta-se enquanto símbolo e metáfora,
desdobrado enquanto território em permanente processo de reinvenção – a ser marcado,
decorado, pintado, repolitizado. O corpo surge como um território de questionamentos acerca
de nossas identidades, de fenômenos sociais e políticos:
(...) el cuerpo humano, nuestro cuerpo, y no el escenario, es nuestro verdadero sitio
para la creación y nuestra verdadera materia prima. Es nuestro lienzo en blanco,
nuestro instrumento musical, y libro abierto; nuestra carta de navegación y mapa
biográfico; es la vasija para nuestras identidades en perpetua transformación; el icono
central del altar, por decirlo de alguna manera.27 (GÓMEZ-PEÑA, 2005, p.204)

Dessa forma, é um corpo que se reinventa, se ‘autoconstrói’ constantemente, em meio


aos interstícios da sociedade. Ao investigar as diversas implicações do corpo em suas
diferentes interfaces, características, gêneros, etnias, transgêneros, travestimentos e levar ao
extremo o questionamento em torno dos códigos, valores e modos de representação validados,
o La Pocha aponta aspectos políticos e pedagógicos de grande importância.
Nas proposições do La Pocha Nostra o corpo aparece como sede de oposições
culturais, em sua imensa complexidade, coberto de implicações políticas, inserido em
contexto social mais amplo. Nesse sentido, investigar os códigos dos diferentes corpos é parte
de uma estratégia utilizada pelo coletivo, que consiste em questionar papéis sociais,
representações identitárias, em busca da descolonização:
[…] Todo diálogo intercultural o transfonterizo surge a partir [de éste]. Cuáles son las
implicaciones de cubrirlo, descubrirlo, cuáles son las implicaciones de un cuerpo
indígena, de un cuerpo desnudo negro, o de un cuerpo desnudo anglosajón. O
simplemente el cuerpo desnudo de una mujer. Tienen códigos semánticos totalmente
distintos. 28
                                                            
27
“(...) O corpo humano, o nosso corpo, e não o palco, é o nosso verdadeiro local para a criação e nossa
verdadeira matéria prima. É nossa tela em branco, nosso instrumento musical, e livro aberto, nossa carta de
navegação e mapa biográfico, é o vaso para nossas identidades em perpétua transformação, a peça central do
altar, de alguma maneira.”(tradução nossa).
28
Disponível em: <http://jolgoriocultural.wordpress.com/entrevistas/>. Acesso em: 24/02/2013.
 
 
44 
 

A relação entre corpo e mercadoria é complicada nas formações imagéticas criadas nas
diferentes performances, colocando em jogo relações sociais próprias dos trânsitos
contemporâneos. Em diferentes performances do La Pocha Nostra evidenciam-se jogos de
subversão a partir de desdobramentos entre corpo/objeto/mercadoria que levam ao extremo as
relações aí imbricadas, problematizando-as. Nesse sentido, apontam para a criação de novas
formas e procedimentos que possibilitem romper, acelerar, ralentar e elevar ao extremo as
atuais relações em torno das noções de identidade, corpo, objeto, natureza, cultura, política e
educação.
Problemáticas entre corpo, objetos, mercadorias e dispositivos – enquanto mediadores
da relação dos sujeitos com o mundo – surgem no contexto de propostas artísticas atuais
como um rico material complicador dessas noções. Encontramos em diferentes trabalhos
contemporâneos em dança experimental e performance art uma rica investigação em torno do
uso de objetos e coisas, compreendidos e utilizados de formas diversas. André Lepecki
(2012), em seu artigo 9 variações sobre coisas e performance, traz importantes contribuições
para pensar os desdobramentos do uso de objetos nessas criações artísticas. Para o autor,
diversos artistas vêm trabalhando em uma perspectiva que enxerga o objeto além de sua
função meramente utilitária, de modo que permite a investigação da relação objetiva/subjetiva
da coisa.

O autor, ao repensar o estatuto do objeto em sua relação com o corpo, retoma a


abordagem foucaultiana de dispositivo e a compreensão de objetos-dispositifs de Giorgio
Agamben – que determinariam a subjetividade contemporânea. Agamben amplia a
compreensão de dispositivo de Michel Foucault, incluindo em seu domínio não somente as
‘prisões, os manicômios, o Panóptico, as escolas, a confissão, as fábricas, as disciplinas, as
medidas jurídicas’, mas também ‘a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o
cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares’. Objetos que controlam gestos,
hábitos, desejos e movimentos, capturando e modelando comportamentos.
Chamarei de dispositivo literalmente qualquer coisa que tenha de algum modo a
capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar ou
assegurar os gestos, comportamentos, opiniões ou discursos dos seres viventes
(AGAMBEN, 2009, p. 14 apud LEPECKI, 2012, p.94)

                                                                                                                                                                                          
“[...] Todo diálogo intercultural ou transfronteiriço surge a partir [dele]. Quais são as implicações de cobri-lo,
descobri-lo, quais são as implicações de um corpo indígena, o corpo nu negro ou de um corpo nu anglo-saxão.
Ou apenas o corpo nu de uma mulher. Eles têm códigos semânticos completamente diferentes.”. (tradução nossa)

 
 
45 
 

A abordagem de André Lepecki sobre as relações entre corpo e objeto, parece se


aproximar mais do modo como essas contaminações são trabalhadas na cena contemporânea.
A compreensão do objeto como mercadoria, dispositivo, é desdobrada a partir da noção de
devir-coisa, como outro modo possível de enxergar essas imbricações, onde as noções de
sujeito e objeto são deslocadas. Aponta-se assim, para a possibilidade de ativação de uma
força ‘despossessiva’, em que sujeitos e objetos possam se tornar menos sujeitos e menos
objetos e mais coisa, mais livres de utilitarismo, significação e dominação.
Perante tal sistema, talvez a contra-força dos objetos (sua resistência) resida
exatamente em ser e querer ser mera coisa. Proponho que objetos, quando libertos
de utilidade, valor de uso, valor de troca e significação revelam a sua capacidade
liberadora, a sua capacidade de escapar totalmente de dispositivos de captura.
Livres, objetos deveriam ganhar outro nome próprio: não mais “objeto”, não mais
“dispositivo”, não mais “mercadoria”, não mais “lixo” mas simplesmente coisa.
(LEPECKI, 2012, p.96)

Partimos da ideia de contaminação, de um corpo instável, que se faz em meio ao


mundo, na relação direta com o seu contexto, no interstício, onde corpo e objeto se
confundem. A divisão entre objeto-passivo e sujeito-ativo, manipulador das coisas ao seu
alcance, passa a ser questionada. Assim, como Merleau-Ponty (2004, p. 17) aponta,
enxergamos aqui o corpo enquanto vidente e visível, que se constitui por confusão, ‘tomado
entre as coisas’.

É um si não por transparência, como o pensamento, que só pensa seja o que for
assimilando-o, constituindo-o, transformando-o em pensamento – mas um si por
confusão, por narcisismo, inerência daquele que vê ao que ele vê, daquele que toca
ao que ele toca, do senciente ao sentido – um si que é tomado portanto entre as
coisas, que tem uma face e um dorso, um passado e um futuro...

Tal compreensão localiza a formação do corpo, do sujeito, nessa rede indivisível entre
senciente e sentido, esse corpo soma-se às demais coisas, que passam a ser para o autor ‘um
anexo ou um prolongamento dele mesmo’, ‘incrustadas em sua carne’. As dicotomias entre
externo e interno, ativo e passivo, sujeito e objeto se tornam pouco significativas para tal
compreensão, que enxerga o sujeito constituído diretamente dentro das relações que
estabelece no/com o mundo.
Na conjuntura da sociedade contemporânea, o intercâmbio entre corpo e tecnologia
implica decisivamente no modo de percepção corpórea. A técnica invade e integra o ser
humano, o que implica em modificações corporais mediante o avanço tecnológico e influencia
diretamente as nossas experiências de mundo. Das camadas mais simples de influências dos
objetos manipulados em nosso dia-a-dia, até a utilização de ferramentas de alta complexidade,

 
 
46 
 

se configuram como presenças intrínsecas na configuração de nossa existência atual, seu uso é
determinante na relação de corpo que estabelecemos.
A experiência contemporânea está diretamente relacionada às contaminações entre
corpo e máquina. Orgânico/inorgânico, passivo/ativo, sujeito/objeto, corpo/ciborgue são
categorias que se confundem e questionam o papel do sujeito enquanto único agente
determinador de sua existência. Das formas mais diversas o desenvolvimento científico e
tecnológico tem influenciado cada vez mais na dissolução dessas dicotomias.
Esta gama de interferências maquínicas e tecnológicas na vida dos sujeitos elevam em
alta potencia a já citada contaminação entre corpo e objeto. Próteses, extensões do corpo,
objetos que transferem seus poderes para o sujeito e autômatos surgem como questões
contemporâneas que discutem de maneiras diversas os desdobramentos dessa influência
irreversível entre corpo e tecnologia. Torna-se importante pensar qual estatuto de
corporeidade forma-se nessa nova configuração de corpo.

Assim como nunca foi possível a distinção idealizada entre sujeito e objeto, que por
algum tempo foi defendida por diferentes teóricos, esse sujeito que não mais nomeia, que não
reconhece a si mesmo nem o objeto fora de si, revela-se também enquanto um ser que perde o
que há nele de humano – um corpo esvaziado, solapado de sua existência.

Em diferentes performances do La Pocha Nostra os objetos invadem, deformam e


integram a constituição do corpo, alteram sua uniformidade. Esses objetos/coisas são
acoplados e redimensionam sua estrutura, constituindo novos corpos que se encontram no
limiar entre o orgânico e o inorgânico, o animal e o humano, o sujeito e o objeto, figuras
híbridas que colocam os dilemas contemporâneos em ato.

Esse corpo que se confunde e se mistura, se faz enquanto corpo impuro. Corpo
híbrido. Corpo mutante. Corpo que tem a sua posição na sociedade continuamente
questionada. Que carne é essa? Esse corpo que subverte e joga com seu estatuto social de
objeto, de corpo capturado, de corpo invadido evidencia o jogo de relações sociais próprias
dos trânsitos contemporâneos. Tais composições criam, a partir de dissoluções, o que
Canevacci apresenta como práticas ‘onde a dicotomia entre a coisa e a criatura se faz
indistinta, penetrada, alterada’.
Tais alterações entre humano e mercadoria (entre sujeito e objeto) são o reino
decomposto dos novos fetichismos, que desafiam as interpretações procedentes e
conduzem em direção a um além do domínio do ratio dualista e de uma lógica
binária. Os fetichismos contemporâneos, em particular quando configurados pela

 
 
47 
 

cultura digital, estão sempre mais materiais/imateriais. Como as mercadorias visuais.


Como a metrópole comunicacional. (CANEVACCI, 2008, p.13)

São construídos, em diferentes performances do La Pocha Nostra, jogos de subversão


entre corpo, objeto e mercadoria, que levam ao extremo tais relações, problematizando-as. Em
diversas práticas performáticas do coletivo a criação a partir de material já pronto, possibilita
que novos sentidos sejam atribuídos. Ao jogar com códigos, símbolo, ícones e justapor
elementos dispares disponíveis na sociedade, o performer assemelha-se ao Dj:
De alguna manera, nosotros nos planteamos como dj´s inter o transculturales. Y
nuestras estrategias son las mismas [...]: sampleo, scratch & mix, yuxtaposiciones
abruptas, la conexión internacional–local, creación de estructuras alternativas […]
en donde pueda acontecer una especie de locura contenida, espacios paganos de
liberación. Esta definición es la definición del género. Cada vez nos interesa menos
ser concebidos como generadores de imágenes […] Ya no es necesario generar
imágenes y objetos.29

O performer através de colagens, justaposições e reciclagens utiliza os produtos


culturais disponíveis, sobrepondo referências díspares e produtos de diferentes procedências,
criando novas conexões representativas de nosso tempo. O artista como Dj e programador
utiliza a montagem e o sampleamento de repertórios em uso, criando assim novos sentidos.
Nicolas Bourriaud, em seu estudo sobre ‘pós-produção’, reflete sobre os usos que não
remetem mais à criação de imagens e objetos, mas aos modos como são apropriados e
reinseridos em novas roupagens:
Dito em outros termos: como produzir singularidades, como elaborar sentidos a
partir dessa massa caótica de objetos, de nomes próprios e de referências que
constituem nosso cotidiano? Assim, os artistas atuais não compõem, mas
programam formas: em vez de transfigurar um elemento bruto (a tela branca, a
argila), eles utilizam o dado. Evoluindo num universo de produtos à venda, de
formas preexistentes, de sinais já emitidos, de prédios já construídos, de itinerários
balizados por seus desbravadores, eles não consideram mais o campo artístico (e
poderíamos acrescentar a televisão, o cinema e a literatura) como um museu com
obras que devem ser citadas ou ‘superadas’, como pretendia a ideologia modernista
do novo, mas sim uma loja cheia de ferramentas para usar, estoques de dados para
manipular, reordenar e lançar. (BOURRIAUD, 2009, p.13)

A criação, a partir de material pronto e carregado de significado, traz como matéria-


prima, nas práticas do La Pocha, tanto objetos da arqueologia pessoal dos participantes
relacionados às mitologias e iconografias de cada um, como também artefatos rituais,
vestimentas e adereços étnicos, militares e fetichistas. Tais materiais possibilitam explorar
significados e contra-significados, reinventar e recontextualizar signos e símbolos
convencionados – criando choques, conexões que podem revelar aspectos importantes dessas
relações.

                                                            
29
Disponível em: <http://jolgoriocultural.wordpress.com/entrevistas/>. Acesso em: 01/03/2013.
 
 
48 
 

1.3 Corpo/Ilicito: The Post-Human Society 6.9

Podemos reconhecer um intenso intercâmbio entre os diferentes projetos do La Pocha


Nostra. Ações e situações são retomadas em diferentes contextos, o que torna difícil uma
definição precisa de cada trabalho. Nesse sentido, podemos reconhecer que, a cada realização
de uma performance do grupo, atualiza-se uma nova versão da obra. Eventualmente os
performers são outros ou incluem-se pessoas integradas através de workshops, novas ações
são incorporadas ou excluídas.
Retoma-se em diferentes trabalhos e atualizações das performances, imagens e
procedimentos criados na relação direta com o espaço/tempo específico em que se realiza.
Como estrutura aberta, sessão de improvisação – live jam session – a cada vez que acontece a
performance recria-se de uma nova maneira. Na busca de não descolar teoria e prática opto
por analisar uma performance em específico do La Pocha Nostra.
A performance Corpo/Ilicito é uma performance de grande escala – a terceira da série
Mapa/Corpo – que investiga o corpo como lugar contínuo de espiritualidade radical,
memória, penitência, ativismo e reinvenção corporal. O fim da era Bush se apresenta como
referência contextual da obra. Corpo Ilicito configura-se enquanto uma abordagem em torno
do período de mudança global, de incerteza e esperança que marcou uma época. Com duração
de cerca de uma hora e trinta minutos, a performance é realizada em um espaço amplo, os
espectadores podem circular em torno de duas ou três plataformas, onde as ações acontecem
alternadamente.
A criação de um ambiente em que não existe separação entre palco e plateia possibilita
uma interação real e significativa entre ambos. O espaço é organizado de modo que as pessoas
possam circular e escolher seu percurso entre os diferentes quadros vivos com forte potencial
simbólico. A criação de um espaço ritual, ‘que emerge para fora das ruínas da civilização
ocidental’, ganha força na potência das imagens que, ao investigar as implicações do corpo,
em suas diversas relações e desdobramentos, estabelece um espaço reflexivo repleto de
interrogantes e implicações sociais, éticas, políticas e estéticas.
A potência simbólica das ações realizadas pode ser vista, por exemplo, na ‘acupuntura
política’ realizada em frente ao público durante a performance. Perfuram-se agulhas de
acupuntura, com pequenas bandeiras de países imperialistas, em diferentes partes do corpo de
um dos performers. O público é convidado a descolonizar esse corpo, auxiliando na retirada
das agulhas. A performance/instalação realizada pelo La Pocha Nostra, como ‘oferenda

 
 
49 
 

poética’ e ‘ritual interativo’, explora as relações neocoloniais e as possíveis formas de


descolonização desse corpo.

Figura 4 – Roberto Sifuentes na performance Corpo/Illicito: The Post-Human Society 6.9

Fonte: La Pocha Nostra Live Arquive. Site de registro de performances e cursos do La Pocha Nostra.
Disponível em: <http://lapochanostralivearchive.tumblr.com/>. Acesso em: 05 mar. 2013.

O estabelecimento dessas plataformas como altares e templos performativos traz o


sagrado e o profano como forma de discutir as etnias contemporâneas. Nesse contexto, os
performers do La Pocha se transformam em ‘santos vivos’ e ‘madonas de causas não-
populares’. Essas figuras performáticas trazem para a cena os cruzadores de fronteiras, os
imigrantes sem documentos, os prisioneiros, os enfermos e os demais invisíveis da sociedade.
A performance Corpo/Ilicito: The Post-Human Society 6.9 retoma o corpo
performático como lugar de reinvenção política e profecia poética. Dessa forma, explora-se o
legado do medo do outro, a criminalização do corpo mestiço pela administração Bush e a
cultura de esperança, imaginação e luta que se desenvolveu em resposta a essa ordem de
mundo estabelecida.
O público é inserido como coautor dessa mudança simbólica. Em um determinado
momento da performance, pessoas do público são convocadas a inverter de papel com um dos

 
 
50 
 

performers vestido com um uniforme militar e a apontar uma arma em diferentes partes do
corpo do performer. Nessa inserção do público como colaboradores/criadores de uma nova
montagem, as características de cada corpo que compõe com o grupo, sua posição social e de
gênero, alteram a rede de sentidos criada.

Figura 5 – Guillermo Gómez-Peña na performance Corpo/Ilicito: The Post-Human Society 6.9

Fonte: La Pocha Nostra Live Arquive. Site de registro de performances e cursos do La Pocha Nostra.
Disponível em: <http://lapochanostralivearchive.tumblr.com/>. Acesso em: 05 mar. 2013.

Podemos reconhecer nessa figura que utiliza a farda, no contexto dessa performance,
um guarda da fronteira, que busca estabelecer postos de controle, interromper os fluxos da
hibridização e que teme desterritorializar-se. Representante da força militar, ele se assemelha
ao que Suely Rolnik atenta como o ‘coronel-em-nós’:
(...) por mais caduca que seja sua micropolítica, por mais caduco que sejam seus
territórios - aquilo que chamam de ‘identidade nacional’ – o corenel-em-nós não
suporta miscigenações. Ele estanca o fluxo do desejo: o outro, para ele, é perigo de
 
 
51 
 

desagregação, é fluxo que, por arrastá-lo para um além de si, o aterroriza. Tudo o
que ameaça de desmanchamento a máscara mortuária de sua identidade, ele vive
como força diabólica, que deve anular o mais rápido e eficiente possível –
prendendo e até torturando e matando se for necessário. Seu projeto é o de extirpar a
diferença com o bisturi de suas armas, para sobreviver tal e qual; para impor-se,
vitoriosamente igual a si mesmo, eterno em sua mesmice. (ROLNIK, 2007, p.156)

Desse modo, somos convidados a extirpar esses guardas da fronteira de plantão, e


questionar o poder que lhes é assegurado. Na performance, a abertura para esse corpo ilícito,
que se confunde e se mistura entre diferentes referências, promove um corpo impuro.
Enquanto corpo híbrido, mutante, que tem a sua posição na sociedade continuamente
questionada, os diferentes corpos, criados em meio à performance, atualizam as contradições
contemporâneas. Corpo estatuto de objeto, corpo capturado, corpo que se submete, corpo
invadido, corpos que resistem, corpo animal, corpos que lutam, corpo-máquina, descartável,
produto, corpo estrangeiro, corpo mestiço – são imagens que povoam o espaço ritual criado
durante a performance. Essas figuras que se convulsionam, se exibem, celebram, questionam
e denunciam, interrogam nosso corpo e atitude frente aos complexos trânsitos
contemporâneos.
Durante a performance, projeções de discursos políticos de diferentes líderes do
mundo, de imagens de medo e de esperança, retirados de meios de comunicação em massa e
de momentos da política contemporânea, colocam em choque e problematizam imagens
complexas. Através de procedimentos de montagem evidencia-se, sem dar respostas, a
complexidade de nosso tempo, instigando assim reflexões radicais.

 
 
52 
 

Figura 6 - Dani d'Emilia em Corpo/Ilicito: The Post-Human Society 6.9

Fonte: Blog oficial da performer Dani D´Emilia.


Disponível em: <http://dani-demilia.blogspot.com.br/2011/04/somarts-cultural-center-presents-la.html>. Acesso
em 05 mar. 2013.

Figura 7 - Violeta Luna em Corpo/Ilicito: The Post-Human Society 6.9

Fonte: La Pocha Nostra Live Arquive. Site de registro de performances e cursos do La Pocha Nostra.
Disponível em: <http://lapochanostralivearchive.tumblr.com/post/21736837370/corpo-ilicito-artcena-festival-
tom-jobim>. Acesso em 05 mar. 2013.
 
 
53 
 

2 MÉTODO POCHA
heterotopia 30
he.te.ro.to.pi.a
1 Deslocamento ou situação anormal de partes ou órgãos. 2 Presença anormal de um tecido em qualquer lugar
do corpo.

A presente abordagem se baseia no estranhamento, nas dissonâncias, na heterotopia


para a construção de seu percurso. A partir do que foge à definição e desestabiliza mapas em
curso, confundem-se papéis, funções sociais e usos do espaço. Ao ir além dos repertórios
vigentes e procedimentos reconhecíveis se recriam os modos estabelecidos de ser/estar em
esfera pública. As heterotopias, de diversos modos, apresentam nas diferentes culturas,
momentos de suspensão do sentido e uso cotidiano do espaço. Possibilitando, por vezes, um
respiro em relação às ‘leis da moral e dos bons costumes’.

Há também, provavelmente em todas as culturas, em todas as civilizações, espaços


reais – espaços que existem e que são formados na própria fundação da sociedade -
que são algo como contra-sítios, espécies de utopias realizadas nas quais todos os
outros sítios reais dessa dada cultura podem ser encontrados, e nas quais são,
simultaneamente, representados, contestados e invertidos. Este tipo de lugares está
fora de todos os lugares, apesar de se poder obviamente apontar a sua posição
geográfica na realidade. Devido a estes lugares serem totalmente diferentes de
quaisquer outros sítios, que eles reflectem e discutem, chamá-los-ei, por contraste às
utopias, heterotopias. (FOUCAULT, 2009, p. 415)

No sentido do conceito elaborado por Michael Foucault, o termo reúne hetero (outro) e
topia (espaço). As heterotopias, assim como as utopias, são espaços em que as relações sociais
são suspensas, neutralizadas e/ou invertidas. Porém, enquanto as utopias se encontram sem
lugar real, as heterotopias estão presentes em todas as sociedades. Ainda que fora de todos os
lugares, sua posição geográfica pode ser localizada. Apresentam-se como momentos em que a
relação de temporalidade vivenciada pelos sujeitos é modificada, criando assim ‘certa ruptura
do homem com sua tradição temporal’, reúnem em um só lugar espaços variados.

Segundo Foucault (2009) todas as culturas criam suas próprias heterotopias, que
podem ser divididas em diferentes segmentos: de crise (lugares sagrados, proibidos ou
privilegiados, para onde são levadas as pessoas que estão em crise em relação à sociedade ou
ao grupo em que vivem); de desvio (lugares onde são levados os que desviam em relação ao
padrão e a norma exigida: hospitais psiquiátricos, prisões); de tempo (lugares ligados à
acumulação de tempo: museus, bibliotecas); crônicas (ligadas ao tempo passageiro, precário:
                                                            
30
Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/>. Acesso em: 15 fev. 2013.
 
 
54 
 

festas, feiras, cidades de veraneio) e de purificação (ligadas às atividades de purificação: casas


de banho, saunas).

A práxis pedagógica do La Pocha Nostra, efetivada em seus cursos e oficinas, é


pensada como heterotopia, onde tempo/espaço se alteram mutuamente, provocando
interstícios, fendas em seu sentido/uso. São trazidos para o jogo em cena desde espaços
sagrados e proibidos, tabus, comportamentos desviantes, bem como a sobreposição de tempos
e lugares. Ainda assim, é um espaço de reinvenção de relações entre mestre e aprendiz, de
emponderamento, de descolonização, de repolitização do corpo e de escuta das diferentes
vozes. Tais momentos, mesmo que efêmeros, podem reverberar no decurso da vida.

Nesse capítulo, a performance é investigada como pedagogia radical. Um breve


histórico do surgimento do ‘Método Pocha’ – proposta pedagógica do La Pocha – é traçado
no contexto do grupo. As temáticas, os pressupostos, os conceitos e os objetivos presentes na
proposta educativa do La Pocha são pensados à luz de questões como pedagogia, política,
estética, arte, vida e ativismo em interlocução com autores como Coco Fusco, Diana Taylor,
Elaine Peña, Guillermo Gómez-Peña, Nestor García Canclini, Roberto Sifuentes, entre outros.

Somado ao material bibliográfico, outras fontes assumiram grande importância para


minha compreensão e reflexão em torno das metodologias de ensino do La Pocha e para o
desenvolvimento desse capítulo, o que inclui os registros em vídeo e fotografia de diferentes
cursos, os relatos dos participantes e de modo singular minha experiência prática em um dos
workshops do La Pocha chamado La Pocha Remix: Psycho-Magic Actions Against Violence,
ministrado por Guillermo Gómez-Peña, Dani D´Emilia e Roberto Sinfuentes no Festival
Internacional de Teatro de São José do Rio Preto em 2012.

A proposta artística/performativa do La Pocha está diretamente relacionada à sua


prática pedagógica, e vice-versa. A pedagogia do La Pocha é parte intrínseca de sua proposta
artística e compreensão de arte. Através de um projeto educativo que se baseia em modelos
formativos abertos, experimentais e democráticos, se reconfiguram cartografias para inventar
um mapa mais ‘inclusivo para expressar/falar’, por meio de práticas pedagógicas em
performance.

Compartilhar a metodologia utilizada nos processos de criação do grupo, através de


cursos, workshops, bibliografias, demonstra uma opção política de democratização do
conhecimento e da informação. De modo radical, disponibilizam-se as ferramentas de
 
 
55 
 

trabalho/criação, possibilitando o acesso e o aprofundamento da experiência estética dos


participantes.

O Método Pocha é pensado para rebeldes, críticos, experimentais, teóricos,


pesquisadores de raça e gênero, híbridos, queers, imigrantes, outsiders, desterritorializados,
artista de performance ou live art, obsecados com o cruzamento de fronteiras de todos os
tipos. No livro Exercises for Rebel Artists – Radical Performance Pedagogy, escrito por
Guillermo Gómez-Peña e Roberto Sinfuentes, além de reunir textos de base do método, é
possível encontrar uma compilação dos procedimentos utilizados por eles ao longo dos anos.
Os autores apresentam nesse livro a estrutura dos cursos e workshops, jogos, exercícios,
ilustrações, temáticas e fotos de diferentes processos realizados. Mostra-se como um
importante material de apoio para qualquer pessoa e grupo que deseje criar/produzir material
em performance radical.

Figura 8 – Imagem da capa do livro ‘Exercício para Artistas Rebeldes’

Fonte: Liminalities – Um Jornal de Estudos da Performance.


Disponível em: <http://liminalities.net/9-3/rebelartists-rev.html> Acesso em: 27 jul. 2013.

 
 
56 
 

Idealmente o livro foi pensado como uma ferramenta de ensino útil para turmas de
universidades, comunidades e grupos de artistas. Os exercícios mais utilizados ao longo dos
anos de existência do grupo são compartilhados com os leitores, na expectativa de que eles
possam, a partir do livro, reinventar o método e criar seu próprio estilo de realização de
performances rebeldes. Essa obra assume grande relevância como fonte bibliográfica na
presente dissertação que, somada a outras mídias e experiências práticas, possibilitou uma
ampliação do conhecimento e análise sobre o Método Pocha.

As propostas metodológicas apresentadas pelo La Pocha devem ser adaptadas e


repensadas junto ao grupo de participantes e em relação ao lugar específico onde se realiza,
respondendo às especificidades culturais do local e aos desafios in situ. A proposta de
utilização das novas tecnologias, como meio de atualizar a metodologia, permite que o
método mantenha-se vivo, em processo de constante reinvenção, enquanto ‘método vivo para
a prática de performance art em tempos de crise’. Diferentes meios: blog, mídias sociais,
fóruns no site do La Pocha surgem no intuito de facilitar esse diálogo, espaços virtuais onde
podem ser compartilhados relatos, sugestões, e ainda incluir novos textos, referências,
imagens, vídeos.

A criação de uma ‘zona desmilitarizada’, de uma ‘comunidade temporária’, onde é


possível a realização de convivências utópicas, altamente politizadas, anti-autoritárias,
interdisciplinares, multiétnicas, de múltiplas gerações e gêneros, facilita o surgimento de um
espaço multi-, poli-, cross-. A proposta de estabelecer um lugar livre e seguro para a
experimentação, onde as diferenças não são somente aceitas, mas encorajadas, promove uma
área onde os envolvidos são convidados a investigar suas questões, limites e idiossincrasias de
modo radical.

Enquanto comunidades temporárias, os workshops e cursos do La Pocha se


assemelham as propostas de zonas autônomas temporárias (TAZ31). Nesse sentido, são
entendidos enquanto espaços que se propõem livres para a reinvenção de modos de
colaboração e novas formações identitárias e relacionais. O Método Pocha pretende, assim
como essas zonas, ocupar esses interstícios que escapam à ordem vigente, construindo
alternativas dentro de um sistema extremamente controlador.

                                                            
31
O conceito de zonas autônomas temporárias pode ser encontrado no livro de Hakim Bey, Temporary
Autonomous Zone.
 
 
57 
 

A TAZ é uma espécie de rebelião que não confronta o Estado diretamente, uma
operação de guerrilha que libera uma área (de terra, de tempo, de imaginação) e se
dissolve para se re-fazer em outro lugar e outro momento, antes que o Estado possa
esmagá-la. Uma vez que o Estado se preocupa primordialmente com a Simulação, e
não com a substância, a TAZ pode, em relativa paz e por um bom tempo, "ocupar"
clandestinamente essas áreas e realizar seus propósitos festivos. Talvez algumas
pequenas TAZs tenham durado por gerações - como alguns enclaves rurais – porque
passaram desapercebidas, porque nunca se relacionaram com o Espetáculo, porque
nunca emergiram para fora daquela vida real que é invisível para os agentes da
Simulação. (BEY, 2001, p.16)

É interessante pensar que a liberação de uma área, além de abrir espaços onde novos
modos de organização são possíveis, permite a reinvenção do uso do tempo e da imaginação,
importantes aspectos a serem descolonizados. Semelhantes às táticas zapatistas e de outros
grupos que estilhaçam os meios de ação transformadora, as zonas autônomas temporárias
apostam na descentralização do poder, no levante, na infiltração.

O La Pocha é pensado como uma forma de pedagogia radical, o que nos leva à
possibilidade de enxergar a performance enquanto pedagogia e o ato de ensinar como ato de
performar, perspectiva que confunde os limites entre ambos territórios. Nesse sentido, nos
aproximamos das questões e discussões levantadas por autores que também investigam
intersecções entre pedagogia e performance, porém, a partir de uma abordagem mais ligada
aos processos educativos de modo mais amplo do que à linguagem artística.

Pensa-se aqui, a performance como posicionamento performativo, como ação


expressiva – e não como linguagem, muito embora também isso seja conveniente –,
da qual se pode depreender um sentido e uma pedagogia. Dito de outro modo,
pensa-se a pedagogia como performance, pedagogia cuja justificação será dada pela
performance. Isso porque, supõe-se que a performance permita materializar na
palavra o que nela supostamente, como signo, como abstração, se ausentaria, a coisa
mesma, a matéria, o sentido dado (a sensação) do sentido na palavra produzido (o
significado). (PEREIRA, 2010, p.2)

Tal abordagem busca reinserir o corpo no ato de ensino/aprendizagem, ao enxergar a


importância de extrapolar o entendimento da educação como informação e transmissão de
conceitos. Nesse sentido, o não dito e o não verbal – materializado na carne da palavra, no
gesto, no ato performativo de ensinar e aprender – surge de modo singular.

Assim, são retomados outros órgãos de sentido e inteligências que historicamente


foram menosprezados na área da educação, afirmando a importância de trazer o corpo e a
presença para o centro desse processo. Dessa forma, o reconhecimento da presença
performativa dos agentes envolvidos requer o ato de escuta, de enxergar-se em ato, no

 
 
58 
 

acontecimento – evento único e irreprodutível – que se torna possível somente pelo conjunto
circunstancial que o determina.

No projeto pedagógico do La Pocha o processo, independente de resultar em


performance pública ou não, é valorizado em seu caráter transformador, vivenciado pela
comunidade temporária que se propõe a experienciar de modo radical com seus corpos. Nesse
espaço as diferenças políticas, raciais, de gênero, estéticas e espirituais são negociadas,
possibilitando o encontro entre pessoas de diferentes origens, referências e convicções.

Diante de um mundo fortemente marcado pela divisão social e pelas diversas


segregações – que estratificam a sociedade em grupos que convivem paralelamente sem
interagir realmente –, o encontro entre diferentes possibilita uma fenda que permite a revisão
de uma serie de relações pré-estabelecidas.

Em via oposta ao benevolente apelo burguês de uma suposta tolerância, e até mesmo à
negação explícita da diferença, cria-se um espaço livre para o encontro entre diferentes, onde
os lugares sociais podem ser confrontados e repensados. Nesse sentido, Gómez-Peña (2005, p.
96) afirma que se a “(...) performance é uma forma de democracia radical então o performer
deve aprender a ouvir outros e ensinar outros a ouvir.”. Prática de fundamental importância
ainda hoje.

No projeto artístico/pedagógico do La Pocha, incentivar pessoas a cruzar fronteiras se


mostra como um projeto político de extrema importância em um tempo marcado por
nacionalismos paranoicos, pelo medo do outro e da alteridade. Um dos objetivos dos cursos é
proporcionar aos participantes que se tornem melhores cruzadores de fronteiras, em múltiplos
territórios. As divisas ultrapassadas durante as práticas do Método Pocha, inspiram os
participantes a extrapolar os limites para além dos terrenos que a arte produz.

Nesse sentido, o Método Pocha está interessado na produção de material performativo


enquanto agente de transformação social, que proporciona experiências negadas dentro de
uma sociedade de controle, fortemente administrada e segregada. É importante ressaltar que a
opção pela diferença se faz em desacordo ao silenciamento sistemático realizado
cotidianamente nas mais diferentes sociedades – pelas relações de poder e pelos rituais de
coesão e coerção social – formas de contato interpessoal baseadas na opressão.

Há dois problemas teóricos muito importantes: o do silêncio e o da diferença. O


silêncio é o resultado do silenciamento: a cultura ocidental e a modernidade têm

 
 
59 
 

uma ampla experiência histórica de contato com outras culturas, mas foi um contato
colonial, um contato de desprezo, e por isso silenciaram muitas dessas culturas,
algumas das quais destruíram. (SANTOS, 2007, p.55)

Fruto de um colonialismo ainda vigente, a ação de diminuição do ser humano


demonstra uma relação que tenta transformar o outro em objeto e não em agente de criação de
cultura. De diferentes modos deslegitimam-se os saberes que não são os hegemônicos.
Boaventura de Sousa Santos (2007) sugere que essa relação está diretamente ligada ao não
reconhecimento do outro como igual, sentimento de semelhança necessário, nesse caso,
enquanto ponto de partida e não como ponto de chegada. Nesse sentido, torna-se necessário
construir a emancipação a partir desse duplo movimento: o respeito à igualdade e o
reconhecimento da diferença.

2.1 Breve histórico do Método Pocha

Enquanto desdobramento da prática performática do La Pocha Nostra, o Método


Pocha surge em meados de 1990, a partir da necessidade de aprofundar a investigação em
torno de uma metodologia pedagógica condizente com a proposta artística e prática do grupo.

O primeiro workshop organizado por Guillermo Gómez-Peña e Roberto Sifuentes –


The Brown Shep Project – recebeu grande influência das ideias e estruturas de organização
zapatista. Movimento que surge em 1994 no México, o zapatismo causa um forte impacto no
mundo, na sociedade mexicana e nos modos de se fazer política. O uso da internet, a
abordagem e importância dada à política simbólica e às ações performáticas, características de
sua prática contestatória, apontaram para uma nova perspectiva de atuação política.

Naquele tempo, aspectos sociais até então menosprezados passaram a fazer parte da
pauta de reivindicações de diferentes segmentos. As chamadas minorias assumiram uma
postura mais crítica em relação a outros modos de opressão, discriminação e exclusão, não
somente ligados à classe, como também ao gênero e à etnia.

O questionamento da realidade monocultural de certas correntes contestatórias


indicou a necessidade de reinvenção dos modos de se fazer política. Boaventura de Sousa
Santos (2007) corrobora com essa questão ao apontar a necessidade de uma ecologia de
saberes mais condizente com o reconhecimento da nossa realidade intercultural, de modo que
sejam ampliadas as bases epistemológicas vigentes, incluindo outras formas de conhecimento,
não ocidentais e hegemônicas. Novos modos de organização política surgem no cenário
mundial.
 
 
60 
 

Gómez-Peña conta que na época, ao se deparar com uma nova geração bem informada
sobre as políticas de gênero e raça, com afinidade com computadores, mídias globais,
tecnologias interativas e fluente em cultura pop, sentia falta de certa consistência e reflexão
ética. Ao mesmo tempo em que era visível uma forte desconfiança a todo tipo de governo,
corporação, religião formalizada, estado-nação, fronteiras geopolíticas, tais posições
confundiam-se facilmente com questões de estilo.

De forma espetacular, figuras como o Che Guevara e o Subcomandante Marcos


estavam estampados em camisetas do mesmo modo que astros da música, tornando assim
mais um estilo de vida do que uma convicção política. Diante dessa questão, Gómez-Peña
sentia a necessidade de investigar uma metodologia pedagógica ao mesmo tempo engajada,
sexy, altamente performativa e também com forte sentido ético, de modo que falar de ética e
compromisso pudesse não soar como hipócrita e antiquado.

Algumas etapas podem ser reconhecidas na criação e no desenvolvimento da


metodologia pedagógica do La Pocha, ciclos que marcam o processo do Método Pocha desde
meados de 1990 até os dias de hoje. Esse primeiro workshop realizado – The Brown Sheep
Project –, inspirado diretamente nas ideias e estruturas de organização zapatista e nas técnicas
ecléticas do trabalho de performance do La Pocha, teve como objetivo principal auxiliar
jovens artistas rebeldes a aprimorar sua experiência artística e ativista.

Ao realizar ‘workshops nômades’ em diferentes lugares, eles começaram a se


perguntar como o método se transformava ao atravessar diferentes fronteiras, quais exercícios
sobreviviam a esse cruzamento cultural, e investigaram como seria possível desenvolver uma
‘metodologia de fronteira’ adaptável ao contexto cultural específico de cada lugar.

Paralelo a esse curso o experimento pedagógico Re-group foi realizado enquanto um


laboratório de performance, que aconteceu em São Francisco em resposta direta ao ‘11 de
setembro de 2001’. Esse projeto teve como objetivo e temática ‘reconquistar a liberdade
artística existente apesar da administração Bush’. Tornou-se, naquela época, um espaço onde
comunidades chicanas, latinas e árabe/americanas podiam se encontrar e refletir sobre a
situação política de então e as perseguições recorrentes ao corpo moreno/mestiço. Após ‘11
de setembro’ a comunidade imigrante nos EUA passou a sofrer forte perseguição e as
fronteiras entre México e Estados Unidos foram duramente fortalecidas.

 
 
61 
 

O desdobramento desse laboratório foi o primeiro Performance Summer School,


realizado em 2005, na cidade de Oaxaca - México, um curso anual, que acontece ainda hoje,
reunindo pessoas de diferentes países. Com duração mais longa, os cursos de verão permitem
um maior aprofundamento no Método Pocha e nas trocas entre essa comunidade temporária,
que é formada por pessoas de diferentes países, etnias, gerações e experiências artísticas.

Em razão das complicações do cenário geopolítico mexicano no ano de 2005,


especialmente no estado de Oaxaca, diante da crise de governabilidade, da insurreição dos
professores seguida de amplo apoio popular e das retaliações e repressões sofridas, o La
Pocha opta por transferir o curso de verão para Tucson, em função de uma preocupação com a
segurança dos inúmeros participantes advindos de vários países. Iniciam, a partir de então, o
Tucson Summer School, no Museum Tucson of Contemporary Art (MOCA), baseados na
proposta de reunir artistas locais e internacionais para engajar-se na troca de arte radical, de
novos vocabulários e linguagens rituais e estéticas. Atualmente o La Pocha continua
realizando os anuais cursos de verão e inverno e workshops em diferentes países.

2.2 Método Pocha’ – exercícios, rituais e jogos.

Nesse item, o ‘Método Pocha’ é analisado de modo estrutural, a partir da organização


do tempo e das metodologias utilizadas. Nesse intuito alguns jogos, exercícios e rituais,
propostos nos workshops do La Pocha Nostra, são apresentados de modo mais descritivo. A
partir da identificação dos procedimentos utilizados busca-se refletir sobre a metodologia
proposta em relação aos objetivos e práticas do grupo. No Método Pocha, a partir do material
performativo criado, investiga-se questões espinhosas e delicadas – latentes tanto entre o
grupo de participantes e a comunidade em que está inserido, quanto em relação à sociedade de
um modo geral. Emergem-se assim problemas e tensões pertinentes e urgentes.

Enquanto metodologia eclética, o Método Pocha inclui exercícios de performance,


rituais e jogos – inventados, emprestados e adaptados de diferentes disciplinas e culturas. No
desenvolvimento de sua prática pedagógica, os integrantes do La Pocha, se apropriam de
referências de fontes diversas – do teatro experimental (Boal, Grotowski), da dança, do
contato improvisação, de performances rituais e das práticas xamânicas. Ao experimentar
essas diferentes propostas metodológicas, desenvolveram novos exercícios e realizaram
adaptações, criando assim outras versões para as práticas vivenciadas.

 
 
62 
 

Os workshops são ministrados, com maior frequência, por dois ou mais integrantes do
La Pocha, o que evidencia a natureza polivocal e a maleabilidade de formatos dessa proposta
pedagógica. Quando dois instrutores estão presentes, o número ideal de participantes é de até
vinte pessoas, já com três ou quatro instrutores podem ser incluídos cerca de trinta partícipes.

No Método Pocha as distinções entre instrutor/facilitador e participante se encontram


diluídas. Porém, a importância de um olhar externo é ressaltada, por mais que se possa variar
a pessoa que assume esse papel. Repensar modelos de interação entre artista e comunidade,
mentor e aprendiz, que não reproduzam relações coloniais, nem condescendentes, é um dos
propósitos do projeto pedagógico do La Pocha.

Os integrantes do La Pocha ressaltam a importância de que a convocação para os


cursos circule em diferentes lugares e comunidades, para que assim o grupo de participantes
possa ser o mais interessante, interdisciplinar, eclético e rico possível. Eles estão
particularmente interessados em artistas e teóricos rebeldes, com identidades complexas, com
idade entre 18 e 80 anos ou mais.

A relação com o espaço assume um papel importante no desenvolvimento dos cursos


do La Pocha, podem ser realizados em museus, galerias, teatros, universidades, centros
comunitários, etc. Durante o processo tanto a ocupação do espaço quanto o uso da luz são
utilizados como material de criação e composição. A duração de cada processo varia de
acordo com a proposta de cada projeto específico, podendo durar desde um dia até várias
semanas, com cerca de 5 a 8 horas de trabalho por dia.

Iluminação e som devem estar acessíveis, no intuito de que os próprios participantes


possam manipulá-los e regulá-los, criando os efeitos desejados. A iluminação assume um
papel importante na criação da atmosfera performativa, para tanto o espaço deve oferecer
diferentes possibilidades de iluminação. Devem ser utilizadas luzes de intensidade regulável,
de fácil operação e manipulação, que possam ser modificadas a partir de materiais simples,
como o uso de gelatinas de cores diferentes, por exemplo.

A música exerce uma grande importância no Método Pocha, efetuando múltiplas


funções nesse contexto. É utilizada na criação de ambientes, no jogo de colagens feito a partir
de códigos distintos e conteúdos culturais específicos ou mesmo no aumento e mudança do
humor e sentido da ação. Durante o processo criativo, a música tem o poder de potencializar a
imagem, de criar contradições e estranhamentos ou mesmo de modificar o seu conteúdo.
 
 
63 
 

A seleção de músicas é feita a partir de uma fusão eclética de Drum and Bass,
eletrônica, rock em espanhol, hip-hop e clássico, além de outros ritmos de diferentes culturas.
Os participantes podem levar seu próprio mix ou lista de músicas. Em alguns momentos Djs e
músicos são integrados ao processo. A utilização da música é alternada com momentos de
silêncio.

Os participantes são convidados a levar para os cursos do La Pocha, artefatos e


vestuários que carregam um forte significado pessoal, cultural, político ou espiritual, para que
seja criado o ‘banco pop de arqueologia pessoal’. Podem ser incluídos também figurinos,
talismãs, itens fetichistas, máscaras, perucas, chapéus, sapatos, peças de roupa ou tecidos. Se
algum dos participantes não tiver seus próprios objetos pessoais, pode pegar emprestado ou
comprar em uma ‘loja barata de performance art’ – o que para o La Pocha inclui lojas
beneficentes, lojas de segunda mão, lojas de souvenir nos vizinhos locais étnicos/folclóricos e
lojas de fetiche e de ferramentas. É fundamental que se reserve uma área para dispor esses
acessórios e vestuários, espaço que pode ser criado com duas ou três mesas de trabalho e uma
arara para pendurar as roupas.

A proposta de intercalar ação, contemplação e reflexão de modo complementar é uma


marca da metodologia do La Pocha. Os participantes devem levar o seu próprio diário,
material que pode ser utilizado para registrar pensamentos, observações, exercícios e imagens
descobertas durante o processo, que queiram utilizar novamente. Essa documentação pode ser
feita através de anotações escritas ou mesmo a partir de desenhos.

Durante a realização dos cursos a questão do registro assume um papel importante


dentro do processo, em termos de política de documentação. A discussão sobre a importância
e o risco que acompanha a documentação fotográfica e videográfica introduzida no processo é
muito importante, especialmente em nossa era digital. A rapidez e a falta de limite da
produção e reprodução imagética atingiu um nível de tal alcance, que se perde o domínio de
uso das imagens. A tentativa de assegurar um espaço de livre experimentação, em que haja
certa proteção dos integrantes para que não sejam expostos sem seu consentimento, corrobora
com essa discussão.

Os integrantes do La Pocha Nostra sugerem que o Método Pocha pode ser utilizado
por artistas de teatro, bailarinos, poetas de tradição oral, artistas de instalação, fotógrafos,
artistas de vídeo, ativistas e educadores, e não somente por performers. Segundo Gómez-

 
 
64 
 

Peña, pessoas interessadas em incorporar o corpo humano como parte integral de sua criação
artística podem se beneficiar dessa prática.
É importante ressaltar que o Método Pocha não é pensado como processo de criação
de trabalhos individuais. Os diferentes jogos e exercícios são feitos em dupla, ou em grupos
maiores, sob o princípio de criações coletivas. Assim como nas performances do La Pocha, os
procedimentos e propostas educativas são realizados em grupos de diferentes tamanhos e os
participantes são incentivados a trabalhar com pessoas que ainda não tenham colaborado. No
momento de divisão das duplas e grupos, convocam-se os integrantes do processo para
escolher seus parceiros de trabalho. O critério de seleção, nesse caso, se dá pela diferença,
pelo estranhamento, pela curiosidade, pelo desafio e não apenas por afinidade imediata ou
identificação.

A proposta de uma vivência intensa faz parte dos cursos do La Pocha. Em busca da
criação de uma comunidade temporária, incentiva-se que sejam extrapolados os momentos em
sala, e que os participantes do curso e os integrantes do La Pocha aprofundem a convivência
entre si, explorando a cidade, fazendo refeições e festejando juntos, estendendo a convivência
para a vida social do grupo. Desse modo, acreditam poder conectar e aprofundar, de maneira
mais informal, o encontro e a troca com o outro, em uma espécie de processo de imersão.

No livro Exercises for Rebel Artists – Radical Performance Pedagogy, dedicado ao


Método Pocha, são apresentadas cinco sessões, que aparecem separadas para fins
pedagógicos, mas que durante o workshop encontram-se entrelaçadas de maneira orgânica.
Nesse livro clarifica-se o desejo do La Pocha de que o/os facilitador/es dos exercícios se
sintam livres para adaptar a linguagem pedagógica descritiva do livro, utilizada para
simplificar o entendimento. Dessa forma, devem recriar o método a partir de sua própria voz e
do estilo de ensinar, assim como das necessidades específicas do local, da comunidade e das
pessoas com quem estão trabalhando. Segue uma apresentação dessas sessões.

Na primeira sessão são incluídos exercícios práticos, físicos e/ou perceptivos que
facilitam que os participantes possam se reconectar com o próprio corpo, experimentar o
‘modo performativo’, explorar estratégias de colaboração, afiar o senso de performance,
exercitar o olhar performativo e estabelecer um vocabulário coletivo em performance.

 
 
65 
 

A segunda sessão é mais dedicada a exercícios conceituais e poéticos utilizados no


intuito de aprimorar a habilidade analítica e retórica dos participantes e mapear novos
territórios temáticos.

A terceira sessão inclui exercícios criativos que contribuem para que os participantes
possam desenvolver material original em performance e se engajar em diferentes estratégias
de colaboração.

Já a quarta sessão descreve as sessões de improviso, a ‘infame Pocha Jam session’,


que coloca todos os exercícios anteriores em prática.

A quinta e última sessão inclui procedimentos utilizados para a realização de


apresentações públicas do material produzido. Principalmente nos cursos mais longos, com
mais dias de trabalho, são realizadas, ao final do processo, dois tipos diferentes de mostras: os
‘salões abertos de performance’ e as ‘apresentações de grande escala’.

Alguns dos exercícios, jogos e rituais propostos nas diferentes sessões serão
apresentados para que se possa compreender melhor o Método Pocha através de suas
proposições práticas.

O dia de trabalho, durante a realização dos workshops, divide-se preferencialmente em


dois períodos de quatro horas, separados por um intervalo reservado para água, descanso,
alimentação, anotações. A primeira parte do dia é dedicada aos exercícios físicos, perceptivos,
conceituais e poéticos – práticas da primeira e da segunda sessão – já o segundo momento é
reservado para os exercícios criativos – da terceira sessão.

Os exercícios das sessões um e dois são de extrema importância, principalmente nos


primeiros dias, para que o grupo possa conquistar um alto nível de confiança, adquirir um
vocabulário em comum e conhecer um pouco mais das experiências e limites de cada um.

No livro Exercises for Rebel Artists os exercícios, com suas possíveis variantes, são
apresentados e descritos. Algumas dessas práticas são propostas realizadas durante todos os
dias, outras somente em um dia, há ainda aquelas que são retomadas em suas diferentes
versões ao longo do processo, de acordo com os objetivos de cada oficina. No final do livro
são apresentadas sugestões de organização do tempo nos diferentes cursos, com as sequências
a serem utilizadas em cada momento, dia-a-dia, de acordo com o tempo disponível.

 
 
66 
 

No sentido de tornar possível aos participantes radicalizar o nível de experimentação,


é de extrema importância que se estabeleça uma ética compartilhada. Além disso, reserva-se
aos integrantes do processo o direito de não realizar algum exercício que lhe seja incômodo.
O La Pocha tem consciência de que algumas práticas mexem com camadas de significação
que ativam memórias corporais delicadas tanto positivas quanto negativas, assim como
podem gerar situações embaraçosas a partir da ótica de dada cultura.

2.2.1 Procedimentos e exercícios do Método Pocha

Alguns exercícios são apresentados nesse item no intuito de propiciar uma melhor
visualização e compreensão das propostas, táticas, estratégias e procedimentos utilizados pelo
La Pocha Nostra durante seus cursos, oficinas e demais atividades formativas. Durante as
práticas do Método Pocha ressalta-se o cuidado necessário com o corpo do outro. Estabelecer
um espaço de confiança é fundamental para que os parceiros possam se entregar e viver a
experiência de modo intenso, sem maiores medos e receios.

A primeira sessão tem como objetivo ativar a corrente sanguínea e o fluxo energético e
reterritorializar o corpo no espaço, de modo que se ative uma presença conectada ao ‘aqui e
agora’, no acontecimento singular entre os corpos, o tempo e o espaço específico. Nessa
sessão são incluídos exercícios básicos de alongamento e aquecimento, emprestados da dança,
do teatro, do yoga, das artes marciais, do Tae Bo – prática baseada na mistura de boxe, artes
marciais e ginástica aeróbica –, do Pilates, do Tensegrity – prática organizada por Carlos
Castaneda a partir de passes mágicos de xamãs mexicanos – e do riso induzido.

O exercício O olhar - descobrir os outros “outros” tem duração de cerca de 5 a 7


minutos. Seu objetivo é investigar as diferentes conotações que o contato visual, intenso e
prolongado, assume entre duas pessoas de culturas distintas. Esse exercício é apontado por
Gómez-Peña e Roberto Sifuentes como uma das práticas xamânicas mais antigas que temos
conhecimento. Em sociedades como a nossa, que perderam esse costume, tal experiência pode
ser profundamente radical, reveladora e transformadora.

O olhar configura-se enquanto um aspecto de extrema importância para a investigação


da presença. Ao afirmar a noção de ser/estar em oposição à ideia de atuação evidencia-se o
estar ‘aqui e agora’. O olhar prolongado aproxima as pessoas do reino do tempo ritual. Essa
noção é apontada como um aspecto muito importante no desenvolvimento das ações e
estruturas rituais e criação das personas performáticas.
 
 
67 
 

Nesse exercício, formam-se duplas que se posicionam em algum lugar da sala a dois
pés de distância um do outro, mantendo um contato visual contínuo, de modo que estejam
presentes e abertos a receber o outro. Os participantes ao andar pelo espaço devem manter um
contato visual consciente. Depois de alguns minutos a dupla pode conversar sobre o que
observaram e sentiram – suas reações emocionais, sensações físicas e perceptivas.

Durante os dias seguintes podem ser realizadas outras versões do exercício – a partir
da ampliação do campo de visão e dos pontos de contato, da mudança de níveis entre os
parceiros (plano baixo, médio e alto) e da aproximação ou distanciamento dos corpos. Como
última variação une-se, em um mesmo exercício, a combinação de todas essas alterações, de
distâncias, níveis, posições corporais, e pontos de conexão física. A partir desse exercício
surge muito material criativo.

O exercício ‘Etnografia Poética’ é um exercício de exploração e manipulação


multissensorial do corpo humano. Essa proposta foi desenvolvida pelo La Pocha em meados
de 1990 e aperfeiçoada desde então. Segundo eles, esse é possivelmente o mais famoso e
arriscado dos exercícios do La Pocha Nostra. Tendo em vista a necessidade de negociar
fronteiras delicadas entre cuidado e ousadia, eu e o outro, negociação de limites que precisam
ser feita pela dupla. O exercício é realizado em duas partes, a primeira de exploração
multissensorial do corpo humano, e a segunda de manuseio e manipulação do corpo no modo
performativo.

O exercício inicia com os participantes andando pelo espaço até escolher um parceiro,
de preferência alguém com quem ainda não tenham trabalhado e que seja diferente em
aspectos óbvios (raça, gênero, idade, tipo de corpo). Os integrantes da dupla, de frente um
para o outro, a dois ou três metros de distancia, escolhem quem exercerá cada papel – um
deve ser o etnógrafo e o outro a espécie – metáforas que descrevem os papéis executados.

O etnógrafo deve explorar o outro como ‘artefato humano’ e estar realmente aberto a
descobrir sua ‘espécie’. A investigação deve manter alguns cuidados, apesar de ousada, áreas
tabus (seios, genitais, etc.) e possivelmente desconfortáveis (pés, interior da boca, atrás das
orelhas, narinas, joelhos, etc.) podem ser vetadas pela espécie que, apesar de ocupar um papel
mais passivo, deve estar totalmente presente e consciente durante o exercício.

De olhos fechados as espécies são examinadas pelos etnógrafos, primeiramente


através da visão, a partir de diferentes perspectivas, ângulos e distâncias, de modo que tenham
 
 
68 
 

o máximo de informações sociais e culturais sobre a pessoa. Aos poucos são acrescentados os
outros sentidos, um de cada vez, até que todos estejam envolvidos.

Quando o olfato é adicionado deve-se buscar o máximo de detalhes, o cheiro do


cabelo, da face, das mãos, das roupas, do perfume, etc. Ao acrescentar a audição os mais
suaves sons devem ser ouvidos, desde a respiração, o batimento cardíaco, a digestão e outros
sons que emanem do corpo do outro. O último sentido somado é o tato, o etnógrafo pode
sentir as texturas das roupas, da pele, dos músculos, da estrutura óssea, do cabelo, das
diferentes temperaturas, etc. Cada novo sentido deve ser acrescentado sem que sejam
esquecidos os outros.

Depois de todos os sentidos ativados, o etnógrafo segue observando as marcas, sinais e


símbolos específicos da espécie que a diferenciam – marcas interessantes, características
idiossincráticas (cicatrizes, poros, veias, tatuagens, joias, marca de roupa, cor do cabelo,
maquiagem, perfume, esmalte). Passados quinze minutos, o etnógrafo retorna a espécie para a
sua posição neutra inicial. Após se inverterem os papéis, a dupla troca rapidamente
impressões e descobertas feitas.

Na segunda etapa do exercício os duos devem ser desfeitas para que se realize novas
combinações. Momento em que a manipulação e o manuseio do corpo do outro se efetivam
como uma continuação da parte precedente. A primeira coisa que o etnógrafo deve fazer, ao
encontrar a sua nova espécie, é comparar o seu corpo com o de seu parceiro, observando
altura, membros do corpo, cor de pele, textura do cabelo, cicatrizes, roupas, forma e tamanho
das mãos e dos pés, sua estrutura óssea e muscular e suas articulações. Aos poucos os papéis
transformam-se: de ‘etnógrafo’ para ‘artista’ e de ‘espécie’ para ‘matéria-prima’.

Durante a investigação do peso e da gravidade do corpo do parceiro é importante


perceber o peso das diferentes partes de seu corpo e a alteração de seu centro de gravidade –
através da manipulação desse corpo ainda é possível explorar as singularidades do movimento
do outro. A matéria-prima deve colaborar mantendo um papel ativo, permitindo que
transformações e posições inesperadas e interessantes possam surgir.

Ao final de dez ou quinze minutos o artista deve escolher uma imagem ou forma
potente e interessante para sua matéria prima que tenha surgido do processo de exploração.
Ele pode se inserir na imagem ou circular observando as outras matérias-primas, e por fim
retorna seu parceiro à posição inicial.
 
 
69 
 

O exercício Poetic exquisite corpse – Mapeando novos territórios de investigação,


integra a segunda sessão, mais voltada aos exercícios conceituais e poéticos. Essa prática foi
inspirada no jogo surrealista ‘Cadáver Esquisito’ – exercício ‘cego’ de desenho coletivo – e
nos exercícios utilizados no hip-hop para desenvolver material poético. É apresentado
enquanto um bom exercício introdutório à gnosis poética – uma forma de conhecimento
diferenciada não puramente racional – que ainda se mostra enquanto uma ferramenta útil no
levantamento de questões importantes para a comunidade envolvida.

Nesse exercício um dos performers assume o papel de ‘Dj poético’, sua função é fazer
com que a palavra circule por toda a roda ininterruptamente, de modo que todos possam
participar da feitura desse ‘cântico poético poli-vocal’. No exercício o Dj repete uma
enunciação aberta que deve ser completada com pequenas frases ou palavras poéticas. Sem
racionalizar demais, mantendo a dinâmica rítmica do exercício, os participantes completam a
frase reiterada. Aos poucos se cria um cântico coletivo, em que as frases passam a dialogar
com o sentido anterior de modo orgânico, o poema instantâneo criado pode ser gravado,
transcrito e/ou compartilhado com o grupo, para que posteriormente seja utilizado como
material de criação, ou mesmo como script de uma performance.

Trago aqui alguns exemplos de diferentes frases muito utilizadas por eles nesse
exercício durante os cursos: ‘Performance é...’/ ‘Performance não é...’, ‘Minha comunidade
é...’ / ‘Minha comunidade não é...’, ‘Minha identidade é...’ / ‘Minha identidade não é...’, ‘Eu
faço arte porque...’ / ‘Porque se eu não fizesse...’, ‘Eu tiro a minha força de...’ / ‘Eu luto
contra...’, ‘Eu sou feminina quando...’ / ‘Eu sou masculino quando...’.

Essas frases abertas possibilitam levantar uma gama de material composta de questões
latentes, que surgem não apenas de modo racional, mas que estão aí coladas à pele.
Evidencia-se, desse modo, uma voz que é pessoal, mas também compartilhada, que diz de
cada um, mas também da sociedade em que se vive, tocando questões delicadas de modo livre
e leve. Esse exercício retoma muitas questões conceituais do trabalho do La Pocha.

Outra prática interessante para grupos de pessoas aparentemente muito diferentes


intitula-se Espectro – Comunidades múltiplas e identidades fluidas. Esse exercício salienta os
territórios compartilhados e a construção de comunidades, evidenciando a complexidade das
diferentes identidades e a desconstrução de estereótipos. Pode contribuir ainda para a
percepção das múltiplas comunidades ao qual fazemos parte, em diferentes tempos e por

 
 
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diferentes razões, uma ilustração em ato de que nossa identidade é fluida e está em constante
mudança. O exercício é realizado a partir da auto-identificação e auto-percepção e não de
identidades impostas.

Os participantes imaginam uma linha onde devem se posicionar a cada categoria


binária, na sequência de um a dez. Alguns exemplos desses dois pontos extremos da linha
são: culturalmente e artisticamente tradicional x total iconoclasta, mono-racial x multi-racial,
100 % apolítico x 100 % politizado ou militante, puramente estético x artista socialmente
engajado, individualista x comunitário, religioso x ateu ou agnóstico, 100 % masculino x
100% feminino, racista x absolutamente não racista ou ‘pós-racista’, sexista x absolutamente
não sexista, nunca foi censurado x sempre é censurado. Após essa etapa os participantes
podem começar a sugerir outras oposições binárias. Uma possibilidade interessante, sugerida
pelo La Pocha, é que se retome o exercício ao final do curso, para que se perceba as
transformações ocorridas durante o processo.

Ainda nessa sessão acrescenta-se, enquanto exercício, a discussão sobre as


implicações da documentação em vídeo e fotografia durante a oficina. Em seus diferentes
cursos, o La Pocha prioriza que todos discutam a introdução da documentação no processo.
Dessa forma, as questões suscitados se referem à escolha dos momentos que serão
documentados e à destinação dos documentos produzidos.

A terceira sessão, chamada Exercícios para gerar material em performance e imagens


vivas introduz as práticas mais voltadas para a criação de material performativo. O ‘Banco
pop de arqueologia pessoal’ assume um papel muito importante nessa sessão e no Método
Pocha como um todo. Uma das práticas da sessão é justamente organizar esse banco pop.
Dispõem-se duas ou três mesas de trabalho e uma arara em frente a uma parede, onde são
colocadas as roupas, objetos e acessórios trazidos pelos participantes, separados em diferentes
sessões para facilitar o uso.

A cada dia a instalação de roupas e acessórios deve ser reorganizada de uma nova
maneira de modo que outros objetos e roupas sejam evidenciados e surjam novas ideias de
uso e composição. Eles pedem que as pessoas levem para a construção do banco pop: roupas
confortáveis de ensaio, de preferência preta ou de cor neutra, trajes e objetos únicos da
‘arqueologia pessoal’ – objetos icônicos com significado especial para pessoa – e artefatos
que remetam a temas como religião, guerra, sexualidade, cultura pop, etnicidade, turismo, ou

 
 
71 
 

mesmo adereços, talismãs, objetos fetichistas, perucas, chapéus, roupas, tecidos, maquiagem,
sapatos, máscaras.

As pessoas residentes na cidade em que acontece o curso ficam responsáveis em levar


peças maiores como plataformas e cubos, suportes ou mobília, manequins inteiros ou partes
de manequins, animais empalhados, ou outras coisas não usuais, como ferramentas de jardim
ou construção, partes de máquinas quebradas, placas de circuitos e tecnologias antigas,
materiais de loja de ferragens, como cordas, papel alumínio, filme plástico e fita adesiva, ou
mesmo objetos que são de difícil transporte como réplicas de armas, próteses e instrumentos
médicos. Além disso, solicitam que os participantes levem um mix de músicas de sua coleção
pessoal. O banco pop deve ser constantemente reformulado ao longo do workshop, elementos
podem ser acrescentados, ou mesmo retirados, de acordo com a necessidade do grupo,
pequenas mudanças podem gerar novas combinações e ampliar as possibilidades de jogo.

No exercício Criando quadros vivos duas instruções importantes são dadas antes de
iniciar o exercício, primeiro que sejam abandonados o óbvio e o simplista – incluindo os
clichês, estereótipos, e significados literais – e que a palavra não seja utilizada para direcionar
o parceiro, outro tipo de comunicação deve ser estabelecida.

O exercício é dividido em duas partes, na primeira Um por um: Construindo uma


imagem viva em alguém o ‘artista performer’ cria a partir do corpo do parceiro e dos
acessórios que ele está utilizando no momento: roupas, joias, óculos, cinto, sapatos, somente
depois é que são acrescentados os objetos do banco pop. Esse é um exercício que surgiu
durante os ensaios do La Pocha Nostra nos anos 90 e é a base para a criação da maior parte
das imagens do grupo, segundo eles funciona como uma espécie de caderno de desenho ou
laboratório para a criação de imagens vivas. O objetivo é criar imagens originais de
performance e metáforas vivas que articulem a complexidade de nosso tempo e de nossa
psique.

O exercício inicia com os participantes andando pelo espaço até encontrar um


parceiro, uma das pessoas assume o papel de ‘artista performer’ e o outro de ‘matéria-prima’
ou ‘artefato humano’. A dupla deve manter entre si três passos de distância e, após a divisão
de papéis, o artefato humano deve fechar os olhos. Realizam rapidamente o exercício
‘etnografia poética’ para tornar mais familiar o corpo do outro, após essa etapa o ‘performer’
começa a construção de imagens a partir de sua matéria-prima.

 
 
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As roupas e acessórios do parceiro são utilizados para a criação de uma imagem


singular baseada em sua própria estética pessoal. Quando o performer achar que sua imagem
está pronta, pode circular observando as outras imagens, e propor pequenas alterações nas
outras criaturas. Desse modo, a noção de autoria/propriedade de uma imagem se perde e se
estabelece uma relação colaborativa e multicêntrica de criação. As matérias-primas são
cuidadosamente retomadas a posição inicial e os papéis são trocados. A proposta é que
construam imagens originais que gostariam de ver no mundo, imagem de sonhos, de reinos
metafóricos e simbólicos.
Eles sugerem algumas variações para esse exercício, que adicionam outras camadas de
significado, como:
- propor um ou dois temas conjuntamente, como moda e religião, guerra e drogas, crime e
sexo, sagrado e profano;
- incorporar adereços e roupas;
- acrescentar um movimento simples à imagem, uma pequena ação, repetitiva, obsessiva,
enigmática, contraditória;
- pensar o corpo como uma tela ou texto em branco, utilizando maquiagem, materiais de arte e
pintura corporal para marcar, decorar, desenhar e escrever no corpo da matéria-prima
palavras, frases poéticas, desenhos, formas, símbolos;
- inserir o corpo do ‘artista performer’ na imagem;
- explorar a sintaxe e a conexão entre as diferentes imagens, aproximando-as, colocando-as
em uma relação espacial particular, ou as conectando fisicamente de alguma forma, com
corda, tecido ou fita;
- experimentar com a iluminação disponível – focos de luz, luzes de teto, luminárias portáteis,
iluminação natural – pensando a luz como um elemento performativo importante;
- jogar com a relação entre a imagem e a arquitetura da sala, utilizando os recursos
arquitetônicos disponíveis para compor as imagens;
- investigar as consequências de estabelecer um título para a imagem, fato que pode alterar,
expandir ou identificar o significado do conjunto imagético.
Eles sugerem ainda alguns temas que podem ser utilizados para esses quadros vivos
(tableaux vivants): o corpo humorístico, estranho, demonizado, grotesco, historicizado,
mitológico, midiatizado, fetichizado, queer, militante/ativista, torturado, cyborg, temas que
exploram os diferentes desdobramentos possíveis do corpo em seus diversos agenciamentos.

 
 
73 
 

Figura 9 – Registro do exercício Criando quadros vivos

Fonte: La Pocha Nostra Live Arquive. Site de registro de performances e cursos do La Pocha Nostra.
Disponível em: <http://lapochanostralivearchive.tumblr.com/>. Acesso em: 5 dez. 2013.

Figura 10 – Registro do exercício Criando quadros vivos

Fonte: La Pocha Nostra Live Arquive. Site de registro de performances e cursos do La Pocha Nostra.
Disponível em: <http://lapochanostralivearchive.tumblr.com/>. Acesso em: 5 dez. 2013.

 
 
74 
 

A segunda parte desse exercício chamada de ‘Quadros vivos colaborativos’ é uma


continuação da proposta anterior. Assim como os outros, deve ser realizado sem o uso da fala,
utilizando a ‘inteligência performativa’, de modo que as decisões não sejam feitas somente
racionalmente, mas com o corpo inteiro em ação. Nesse exercício colaborativo, é importante
que se preste muita atenção às propostas estéticas do parceiro, buscando uma interação mais
intuitiva.
Nessa segunda parte do exercício são divididos grupos de quatro pessoas, duas pessoas
criam a imagem a partir das outras duas. O tema é introduzido, e cada um da dupla de artistas
fica responsável por uma matéria-prima. A imagem criada deve estar relacionada com a do
parceiro, mas não necessariamente em sentido literal, juntas devem funcionar como um
díptico. Todo o material disponível deve ser usado nessa etapa da criação, tanto o que a
matéria prima está utilizando no momento quanto o que está disposto no banco pop de
arqueologia pessoal. Deve-se levar ainda em consideração aspectos da arquitetura, da
iluminação e da posição espacial dos corpos. Após a imagem estar terminada, os artistas
circulam pela sala e podem propor pequenas alterações, tirar ou colocar detalhes nas outras
imagens. Invertem-se os papéis e reinicia-se com o mesmo tema. Eles sugerem como variação
que aos poucos se aumente o número de pessoas de cada grupo – primeiro seis, depois oito, e
assim por diante, até que todos os participantes estejam divididos entre dois grupos.
A terceira etapa do exercício, Criações grupais: ‘museus vivos’ instantâneos, é de
ritmo mais rápido e contribui no despertar de um senso de criação instantânea. Todos os
participantes são divididos em dois grupos um de ‘artistas performers’ e outro de ‘matérias-
primas’ e criam coletivamente uma performance/instalação única. Cada artista manipula,
manuseia e veste uma matéria-prima. Como nos outros exercícios, os artistas podem
contribuir, modificando detalhes nas figuras criadas por outros, para que se garanta que todas
as imagens estejam fortes e conectadas.
Os artistas posicionam suas criaturas, atentos ao espaço, à iluminação, à mobília,
podendo utilizar ainda módulos e plataformas para alterar o nível de sua imagem. Devem
cuidar para que o espaço inteiro seja utilizado e não se reduza à sua frontalidade. Nesse
sentido, é importante que tentem enxergar a imagem completa de várias perspectivas,
distâncias e níveis para que, se for preciso, possam alterar posições e direcionamentos de
qualquer uma das imagens.
Uma variação sugerida por eles é a divisão dos grupos em critérios específicos:
homens/mulheres, gays/heteros, moradores locais/estrangeiros, por nacionalidade, raça,

 
 
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profissão, idade, ou outros parâmetros. Eles sugerem alguns temas para criar o museu vivo:
contradições culturais, fetiches interculturais, celebridades decadentes, monstros sagrados,
novos bárbaros, selvagens artificiais, tecno-primitivos, identidades estranhas, monstros
culturais, apocalipse ocidental.
O exercício Altar humano: dioramas vivos e mortos aprofunda a noção de sagrado, é
uma prática que envolve um grupo grande de pessoas criando a partir de um só corpo. Pode
ser realizado ao som de músicas religiosas de diferentes religiões – para ajudar a fortalecer a
experiência. Segundo eles, essa é uma versão pós-moderna e pós-colonial da antiga prática de
performance ritual em que o corpo humano se torna peça central de um altar coletivo. Nos
mais diversos lugares pessoas construíram elaborados altares em volta dos corpos dos
membros falecidos de sua comunidade.

Figura 11 – Registro do exercício Altar humano.

Fonte: La Pocha Nostra Live Arquive. Site de registro de performances e cursos do La Pocha Nostra.
Disponível em: <http://lapochanostralivearchive.tumblr.com/>. Acesso em: 5 dez. 2013.

Após escolhido o tema, um voluntário assume o papel de peça central do altar, o grupo
é dividido em duas equipes: estilistas do corpo e designers do altar. Enquanto uns ficam
responsáveis em vestir e decorar o corpo, os outros escolhem o local do altar e montam a

 
 
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instalação ritual – o ambiente sagrado que vai conter o corpo – utilizando para isso objetos,
peças e tecidos. Quando o corpo/cadáver está pronto deve ser inserido nessa instalação ritual,
de modo que esteja estendido no chão, em uma mesa, em um nicho, ou mesmo sentado em
uma cadeira.
Após a preparação do altar e da peça central, os dois grupos devem unir ambas as
partes como uma obra única. Escolhe-se então um título para a imagem. O altar deve ser
ativado com uma ação ritual performática simples. Uma possível variação pode ser realizada
com dois voluntários. Eles sugerem algumas tipologias para a criação dos altares humanos,
figuras como: um trabalhador imigrante, um membro da comunidade imigrante local que
morreu fora de seu país, uma celebridade decaída, uma estrela pornô, um soldado americano
que retornou do Iraque ou do Afeganistão ou uma madona dos cruzadores de fronteiras.
‘Trípticos de composição – lidando com movimento, localização e composição em
performance’ é o primeiro exercício criativo em estúdio em que os participantes ficam de
olhos abertos e tomam suas próprias decisões performáticas. Esse exercício foi ensinado pelo
performer Alisson Wyper e adaptado pelo La Pocha, o objetivo é colocar em prática a
inteligência performativa ao tomar decisões de composição em um contexto da live art.
Uma área de cerca de 5 metros por dois é demarcada em algum lugar da sala, o grupo
deve sentar-se em frente a esse espaço. Uma linha imaginária, ou marcada com fita, separa a
‘zona de performance’ da ‘zona civil’. Alguém entra na zona performática e cria uma imagem
simbólica com seu corpo e o congela, alguns instantes depois que a imagem está estabelecida
outra pessoa entra na área, acha um lugar, cria uma segunda imagem e congela, uma terceira
pessoa entra e compõe o trio, então retornam para a zona civil, e outras imagens em trio vão
sendo formadas. Um aspecto importante do exercício é atentar para a potencialização da
imagem: quando e como entrar, como ocupar o espaço total e não somente uma parte dele,
como estabelecer conexões entre as imagens, como usar os diferentes planos e a as variações
de ritmos entre as diferentes ações.
Eles apresentam algumas variações possíveis para alterar o exercício:
- acrescentar mobiliário – cadeira, pequenas plataformas, cubos, escada – para ampliar as
possibilidades de jogo de níveis e planos;
- adicionar movimento, uma das pessoas do trio pode criar uma imagem em movimento,
realizando gestos ou ações repetitivas;
- utilizar adereços e vestuários;
- manter uma das imagens, que seja potente, durante vários trios;

 
 
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- aumentar o número de participantes até que metade do grupo esteja na zona de performance.
A quarta sessão leva o nome de As infames Pocha jam sessions, segundo o La Pocha
nesse momento abandona-se o terreno da metodologia e adentra-se no campo da experiência
de total autonomia artística. Nessa sessão eles mostram algumas das estratégias e
procedimentos que utilizam nos processos de improvisação performática. Existem diferentes
formas de se integrar às jam sessions, aqueles que não querem performar em determinado dia
podem contribuir com intervenções na iluminação, no som ou na organização do banco pop.
O primeiro exercício Jam session básica – começando a deixar a metodologia foi
desenvolvido pelo La Pocha e é utilizado por eles a cerca de quinze anos. Conforme salienta o
La Pocha, a riqueza das imagens e das ações performáticas criadas nesse exercício surge a
partir da combinação entre decisões estéticas individuais dos performer, justaposições
acidentais e intervenções externas.
Para esse exercício podem ser utilizadas cadeiras, cubos, escadas e/ou plataformas.
Com exceção da ‘zona de performance’ e da estação de roupas e acessórios, que devem estar
iluminadas, o restante do espaço se mantém escuro. Sugere-se que seja utilizado um tema não
muito especifico, mas que sirva como um pano de fundo para diferentes entradas, algo como
‘imagens de medo e esperança’, ‘imagens de sonhos e pesadelos’, ‘cabaré de fronteira’,
‘flexão étnica e de gênero’, ‘o fim da civilização ocidental’.
As Jam sessions são introduzidas em várias etapas pedagógicas:
- durante a primeira etapa os participantes escolhem um ou dois adereços ou roupas
para utilizar no exercício.
- na segunda, todos com suas roupas e adereços em mãos devem ficar de frente para a
área delimitada. O exercício inicia com uma sessão avançada de ‘composições trípticas’,
porém alguém sempre deve estar de fora da zona trocando um de seus objetos, roupas ou
acessórios.
- na terceira etapa após a primeira pessoa entrar na ‘zona de performance’, a próxima
pode escolher alterar levemente a primeira imagem e/ou somente se posicionar em relação a
ela, e assim também a terceira.
- na quarta etapa as pessoas que estão fora da zona de performance devem estar
preparadas não só para entrar a qualquer momento, integrando a imagem, como também para
contribuir com pequenas alterações na posição ou direção dos corpos na imagem, mudar sua
localização, trocar alguma peça de roupa ou adereço.

 
 
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- na quinta etapa uma das pessoas deve permanecer na zona performática enquanto as
outras duas são alteradas.
- na sexta etapa entra uma quarta pessoa, duas das imagens mais potentes permanecem
enquanto as outras saem, entra então uma quinta pessoa, e três pessoas permanecem enquanto
as outras saem, assim por diante até que tenham sete pessoas na zona de performace.
- na sétima etapa os participantes podem escolher fazer uma intervenção rápida e sair,
decidindo quando entram e quanto tempo permanecem na zona performática.
Nesse exercício é possível perceber como pequenas mudanças transformam a
dinâmica e a multiplicidade de significados da composição e da iconografia formada. O La
Pocha ainda sugere algumas possibilidades que são desdobradas em outras sessões de
improviso, como a possibilidade de ter um microfone ao lado da zona de performance, onde
os participantes podem realizar intervenções sonoras – a partir de textos falados, som, música,
poema, instruções, texto teórico ou do roteiro poético inicial. Um Dj ou musico local pode ser
convidado para uma participação especial, pode-se acrescentar instrumentos musicais à mesa
de adereços e roupas e adicionar projeções.
A jam session final – agindo em múltiplas zonas é a última prática da quarta sessão,
nesse momento são estabelecidos duas ou três zonas performáticas, de diferentes formatos,
uma delas em frente a uma parede, outra em um círculo no meio da sala e a outra próxima a
algum detalhe interessante da arquitetura. Podem ser utilizadas plataformas de diferentes
tamanhos, pedestais, cubos, andaimes e escadas para modelar o espaço. Cada zona
independente é ocupada por um número diferente de performers, de acordo com as
características próprias de cada lugar. Desde que a sessão começa todos os espaços devem
estar ativos o tempo todo, criando múltiplos focos.
A quinta sessão intitulada Preparando a performance pública registra-se no modo
ensaio, e objetiva desenvolver melhor as personas híbridas escolhidas a partir do repertório
surgido no curso. Os exercícios realizados visam prepara-las para serem apresentadas em
público, momento em que todos se engajam na construção de um projeto global de
apresentação que seja excitante e potente.
No exercício Criando estratégias para a performance final e discutindo a natureza do
material da performance eles ressaltam a importância da discussão da qualidade, pertinência e
impacto das imagens e personas criadas durante o processo. Nesse momento, os quadros e os
temas mais fortes e potentes são escolhidos para entrar na performance final. Os participantes
devem rever seus diários e escolher entre as imagens que viu e vivenciou aquelas que deseja

 
 
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retomar. Uma pessoa deve ficar responsável por anotar e ler a lista das imagens e personas
que foram retomadas, para que os colegas possam escolher da lista as mais potentes.
Ativando sua persona performática é um exercício importante para que o corpo todo
esteja envolvido no modo performativo. Esse exercício tem como propósito o
desenvolvimento de uma serie de ações icônicas, uma estrutura ritual que pode ser utilizada
durante a performance pela persona criada.
Esse processo acontece em três etapas. Na primeira Internalizando a imagem e o
movimento, os participantes já vestidos devem aos poucos ‘incorporar suas personas’,
trazendo primeiramente sua figura somente para o rosto, incorporando movimentos nos
músculos faciais (boca, nariz, testa, bochechas e língua), aos poucos levam a exploração do
movimento para o pescoço, para os ombros, e então para os braços e mãos, para o torso, para
a pélvis e depois para as pernas, e então para os pés, e assim o corpo inteiro está ativado no
‘modo performance’, somente nesse momento devem abrir os olhos.
Na segunda etapa intitulada Desenvolvendo um vocabulário para suas ações e frases
de movimentos, os participantes devem retomar ou desenvolver três ações, formadas como
uma frase de movimento, e repeti-la até que se torne parte de sua memória recente. Pequenas
transformações do movimento são investigadas a partir de mudanças do ritmo, da intenção, da
alteração na ordem das ações. Após esse momento, é criada uma estrutura ritual que será o
material performativo a ser utilizado na ação final.
Na terceira etapa o instrutor faz algumas sugestões para que se transforme a
velocidade, o comprimento, o ritmo e o estilo de entrega, experimentando intenções diversas.
Cada um deve selecionar para si as modificações consideradas mais relevantes que
potencializem o material que será utilizado por ele.
Uma das possibilidades de apresentação final é o Salão de performance: abertura do
processo para a comunidade local. Se o workshop durou cerca de duas semanas e se as
condições são favoráveis, pode se realizar uma Jam session aberta para um pequeno grupo de
convidados que compartilharão suas impressões.
Ao fim do workshop o La Pocha geralmente realiza uma performance mais elaborada
para a comunidade em geral, momento que acontece em um espaço de arte ou museu local,
são as chamadas mega-jam session. Primeiramente deve ser pensada a natureza da
participação de cada um na performance final. São criadas duas equipes, a equipe da
performance e a equipe de projeto interdisciplinar. Os dois grupos podem alternar as funções,
nesse momento o foco dos participantes passa a ser dirigido para o modo produção e ensaio.

 
 
80 
 

O objetivo dessa apresentação final é combinar espetáculo e processo, não existem


bastidores, apresenta-se enquanto um work-in-progress. O público vivencia uma parte do
processo, um pouco do universo em confecção criado pelos participantes. São utilizados nessa
apresentação final palcos simultâneos, divididos entre tablado central e as plataformas de
diferentes formatos.

2.3 Procedimentos e temáticas abordadas

Nesse item os conceitos, os pressupostos e os procedimentos utilizados no Método


Pocha são investigados enquanto pilares para a compreensão dessa proposta de metodologia
de ensino em performance. Presença hiperintensificada, sessão de improvisação, jam session,
antropologia inversa, rituais para descolonizar o corpo, espaço utópico/distópico, zona
desmilitarizada, arqueologia pessoal, mitologia e iconografia dos participantes, objetos
fetichistas e étnicos, comunidade, são temáticas e apontamentos que ao longo da prática
educativa/performativa do grupo assumem grande importância.

No meio/entre (in between) é deliberadamente a zona que eles habitam. Aprofundam


dessa forma a experiência da instabilidade, dessa zona liminar, onde a transformação
permanente é aceita e desejada, onde as estruturas, papéis e divisões sociais tornam-se
embaçadas ou suspensas. Victor Turner, importante autor dos Estudos da Performance,
pesquisador de estruturas e antiestruturas rituais, aborda a liminaridade nesses processos,
conceito que nos ajuda a pensar as práticas pedagógicas do La Pocha enquanto espaços
liminares.

Turner tomou a liminaridade num sentido maior, empregando-a para situar tudo o
que é/está betwixt and between – entre, em transição, no limiar, em condição
passageira - no âmbito social, para além dos ritos de passagem, caracterizando
estados transitórios ou transitivos que acometem os indivíduos. Nesse ambiente, tais
indivíduos são “marginais”, isto é, encontram-se numa condição inter-estrutural,
quando entendemos que toda sociedade articula e vive dentro de uma estrutura,
quando pensados os quadros estáveis que a compõem e nela atuam.
Complementarmente a essa grande configuração, é preciso lembrar que entre o útero
materno e a sepultura – os únicos lugares fixos que um indivíduo efetivamente
conhece em sua existência -, um ser humano está sempre em trânsito, entrando e
saindo de ritos sociais os mais diversos (nascimento, puberdade, casamento,
trabalho, morte etc.), todos eles aquinhoados com alguma parcela de liminaridade.
(MOSTAÇO, 2012, p.148)

Ao aprofundar a experiência da instabilidade e da inversão dos papéis sociais vigentes,


os participantes podem, em meio ao jogo, se reinventar nessa zona incerta. Dessa forma, são
 
 
81 
 

questionadas e investigadas as distinções entre gêneros masculino e feminino, noções que se


transformam ao longo do tempo. Um dos objetivos do La Pocha é criar condições durante o
processo para que os participantes possam desdobrar seus muitos eus performativos – ousar
tornar-se herói, santo, sagrado, xamã, sexy, infantil, lunático, incorporar bruxas, santos
pagãos, monstros culturais e revolucionários estilizados. As figuras criadas trazem as
contradições sociais latentes e mesclam desejos e sentimentos distintos em um único corpo,
de modo que a complexidade do nosso tempo surge metaforizada.
As personas criadas nos cursos do La Pocha são colagens das contradições e
preocupações políticas, religiosas, sexuais, sociais do grupo, tornando-se ‘metáforas vivas’,
‘artefatos humanos’, ‘cyborgs culturais’, que colocam em cena justaposições imagéticas
surpreendentes. Eles sugerem que essas personas combinam em sua composição algo como
‘um quarto de estereótipos’, ‘um quarto de projeções públicas’, ‘um quarto de artefato
estético’ e ‘um quarto de monstro pessoal/social imprevisível’. As imagens são criadas a
partir de um conjunto de fatores, dos momentos descobertos durante o processo, da relação
estabelecida entre os participantes e suas personas, das preocupações sociais e políticas do
grupo, do lugar onde está sendo realizado o workshop e de questões atuais urgentes.
Na prática do La Pocha, como aponta Sara Jane Bailes (apud GÓMEZ-PEÑA;
SINFUENTES, 2011, p. 3), o corpo é o caminho do pensamento e o pensamento intelectual
pode ser uma prática criativa. A dissociação entre teoria e prática, distinção entre intelectual e
corporal, não faz sentido na prática do grupo. A compreensão de um corpo que pensa e do
pensamento que é corpo pode ser enxergada claramente nos escritos de Gómez-Peña, que
emergem de sua prática performática.

Na prática do La Pocha evidencia-se uma inteligência performativa, nesse sentido o


pensamento surge a partir do envolvimento corporal como um todo e não apenas da razão que
medita sobre um tema. O corpo desenvolve sensibilidades próprias ao campo da performance,
da criação em tempo real e do improviso. Esse tipo de pensamento não se encontra mais
ligado ao modelo de razão cartesiano.

O modo performativo– ‘performance mode’ – é compreendido pelo La Pocha como a


consciência intensificada do tempo presente, somada a um senso de corpo performativo total.
Uma ‘presença hiperintensificada’ que coloca o corpo inteiro em estado de atenção, um corpo
que pensa em movimento. Ações enfadonhas ou cotidianas devem manter-se fora do ‘modo

 
 
82 
 

performativo’, sendo esse um modo ritualizado de desempenho, que retoma outro nível de
complexidade para os performers e a audiência.

O corpo assume, nos workshops do La Pocha, papel central, descolonizar e repolitizar


nossos corpos faz parte da proposta de torná-lo lugar para ativismo e teoria incorporada, para
memória e reinvenção. Investigar uma nova estética híbrida e interdisciplinar, que reflita o
espírito, as tribulações de nosso tempo e as preocupações de cada participante, corrobora
nesse sentido. A criação dessas ‘personas híbridas’, imagens e estruturas rituais baseiam-se
em nossas próprias identidades complexas, estéticas pessoais e preocupações políticas.

No decorrer das propostas práticas do Método Pocha emergem-se temas que


perpassam questões como etnicidade, sexualidade, religião, guerra, cultura pop, subculturas
urbanas, turismo, gênero e identidades étnicas flexíveis. A complexidade e os modos de
acessar esses temas são ativados de maneiras diversas. Desconstruir os estereótipos e os
pensamentos simplistas sobre os temas, de modo que as contradições se tornem aparentes e as
diferentes perspectivas sejam evidenciadas, é uma proposta de grande importância para que as
diferentes vozes sejam escutadas e a relativização dos pontos de vista seja praticada.

Gómez-Peña (2005, p.245) atenta para o cuidado necessário em relação ao


esvaziamento das questões abordadas. Performances de identidade extrema são apropriadas de
modo simplista nos programas midiáticos que utilizam como recurso uma fascinação
superficial em relação à temática. Programas como esses reúnem em um mesmo balaio
imagens de ‘comportamento extremo’, de violência e sexualidade explícita, de revolução
como estilo, de hibridismo estilizado e de transculturas superficiais.

Nesse sentido, na busca de radicalização e de aprofundamento das questões e


implicações das imagens criadas, é de suma importância o questionamento sobre as temáticas
realmente urgentes e vitais para o grupo de envolvidos, inquietações relativas ao âmbito
pessoal, social e comunitário, que discutam temas realmente pertinentes.

No banco pop de arqueologia pessoal objetos fetichistas e étnicos encontram-se ao


lado de artefatos da cultura pop, do consumo turístico e de tecnologias ultrapassadas. Essa
mistura possibilita que colagens sejam feitas, explicitando a complexidade da gama de
referências transnacionais que narram a nossa história. Em diferentes países, em especial em
ex-colônias, como o Brasil e o México, podemos encontrar a coexistência explícita de objetos
de tradições indígenas e da indústria comunicacional, do local e do global, do culto e do
 
 
83 
 

popular, do nacional e do estrangeiro, são mônadas32 que narram parte das contradições de
nossa formação cultural.

Várias décadas de construção de símbolos transnacionais criaram o que Renato Ortiz


denomina uma ‘cultura internacional-popular’, com uma memória coletiva feita com
fragmentos de diferentes nações. Sem deixar de estar inscritos na memória nacional,
os consumidores populares são capazes de ler as citações de um imaginário
multilocalizado que a televisão e a publicidade reúnem: os ídolos do cinema
hollywoodiano e da música pop, os logotipos de jeans e cartões de crédito, os heróis
do esporte de vários países e os do próprio que jogam em outro compõem um
repertório de signos constantemente disponível. (CANCLINI, 1999, p.63)

Assumir um papel saudosista e desejar o retorno a um passado de culturas tradicionais


puras não parece uma opção interessante nem mesmo possível. Torna-se mais viável, nesse
sentido, investigar essa complexidade de referências que compõe cada um de nós,
multiculturais que somos, do que querer retomar um estado de pureza.

Nas práticas pedagógicas do La Pocha abre-se um espaço para os sujeitos pós-


nacionais reinventarem territórios. Lugar não mais relativo à nação, mas aberto a outras fontes
de identificação transnacionais e coletividades pós-nacionais. Articulam práticas de
descolonização que invertem as arcaicas divisões entre norte e sul, centro e periferia, colônia
e metrópole. Segue-se construindo pontes invisíveis entre passado e futuro, Norte e Sul,
memória e identidade, América indígena e alta tecnologia, arte e política.

Nesse sentido, a figura do cartógrafo experimental evidencia a possibilidade de


reinventar lugares e territórios, de redesenhar e cruzar fronteiras, de aproximar áreas e
disciplinas distintas, reconfigurando um mapa aparentemente estabelecido. Na prática artística
e pedagógica do La Pocha, questões de cultura de consumo, política global, noções de
identidade, comunidade e criação artística são questionadas em ato. Surge assim uma nova
cartografia em que as fronteiras entre teoria e crônica, questões pessoais e sociais são
constantemente cruzadas e as implicações entre umas e outras são assumidas e investigadas.
Criam-se crônicas simbólicas e polivocais sobre o nosso tempo, utilizando nesse intuito da
ambivalência.

As sessões de improvisação jam session, inspiradas nas improvisações musicais do


jazz, do blues e do rap, possibilitam a criação de um rico material performativo. Composições

                                                            
32
O uso nesse contexto remete ao conceito de Walter Benjamin, pensada como uma unidade simples que contém
em si a complexidade do todo.
 
 
84 
 

coletivas são realizadas a partir das condições especificas entre tempo e espaço, na relação
singular estabelecida por aquela comunidade temporária.
A urgência do improviso instiga o descondicionamento de respostas automáticas e
previamente pensadas. Dessa forma, a alteração do modo de funcionamento habitual revela
possibilidades e reações surpreendentes. O modo performativo é ativado e os participantes
permanecem em estado alerta de criação. Em vários exercícios do La Pocha trabalha-se com a
noção de ritual – ‘rituais para descolonizar o corpo’ são jogos que possibilitam a
desmecanização do corpo e o questionamento de estereótipos, representações, e papéis
sociais.
A proposta de finalização do workshop com uma performance aberta ao público, a partir
de um salão para convidados e/ou de uma sessão de grande amplitude, é entendida apenas
como uma parte do processo. O objetivo pedagógico mais amplo dos cursos é criar
coletivamente e experimentar novos modos de colaboração. Dessa forma, as mostras não são
compreendidas como fim último, mas como possibilidade de compartilhar com o público.
Essas sessões abertas são como um ritual compartilhado, e trazem o elemento da festa, que é
muito presente nas práticas do La Pocha.

 
 
85 
 

3 PEDAGOGIAS DA PERFORMANCE

Nesse capítulo o ensino da performance é analisado a partir de uma perspectiva mais


ampla. Questões pertinentes aos processos de formação em performance são investigadas
através de práticas educativas, métodos e metodologias utilizadas por diferentes
performers/educadores, no intuito de compreender as diferentes abordagens realizadas. O
potencial educativo e transgressor da performance é afirmado em diálogo com autores como
Antonin Artaud, Charles Garoian, Coco Fusco, Eleonora Fabião, Friedrich Nietzsche,
Guillermo Gómez-Peña, Jacques Rancière, Lúcio Agra, Michel Foucault, Roberto Machado,
Rosa Maria Dias, Valentín Torrens.

Tendo em vista seu caráter de obra aberta, que evidencia o intervalo entre o signo e o
significante, a performance potencializa a brecha existente entre emissão e recepção. Ainda
nesse sentido, é possível verificar que o descolamento das imposições da linguagem e da
lógica pela qual fomos educados desde a infância, permite que a performance desprenda-se
das convenções dominantes, se mostrando aberta à experimentação e ao aprofundamento das
ações pré-linguísticas. Desse modo seu caráter polimorfo e polissêmico é afirmado, tendo em
vista que seu sentido e significado são formados a partir do encontro único entre performers e
espectadores. Valentín Torrens evidencia esse processo.

Imagens deslocadas de seus propósitos e finalidades que geram emoções também


não usuais submergidas na incerteza de não poder aplicar reações e experiências
prévias nem convocar a memória que nos ajude a voltar ao conhecido, e catalogar a
experiência. Sentindo que se trata mais desse processo de derivas que ao produto
mental a que tende e não alcança. (TORRENS, 2007, p.40)

Ele ainda acrescenta que ao contrário da convenção que promove o pertencimento


grupal aglutinador e coercitivo, a performance cria uma atração individual emancipadora.
Essa experiência gera um sentido de desagregação do sistema simbólico constitutivo de uma
cultura, em relação ao seu conjunto de valores, imagens e visões de mundo e à sua função de
controle de conduta.

Nesse sentido, Eleonora Fabião aponta os performers como ‘complicadores culturais’.


Ao sugerir a performance enquanto programa33 – entendido como ‘motor de experimentação’
e ‘ativador de experiência’ – a autora identifica uma potência latente de descondicionamento e

                                                            
33
Palavra-conceito criado pela autora, inspirada no texto de Deleuze e Guatarri, Como Criar Para Si Um Corpo
Sem Órgãos.
 
 
86 
 

desconstrução do estabelecido. Questões de grande valia para uma formação que se pretende
significativa e criadora.

Ao agir seu programa, desprograma organismo e meio. A inspiração para a inserção


da palavra-conceito “programa” na teoria da performance vem do texto “Como Criar
Para Si Um Corpo Sem Órgãos” de Gilles Deleuze e Félix Guattari, onde se propõe
que o programa é “motor de experimentação” (Deleuze & Guattari, 1999, p. 12). Um
programa é um ativador de experiência. Longe de um exercício, prática preparatória
para uma futura ação, a experiência é a ação em si mesma. (FABIÃO, 2008, p.237)

A importância da experimentação no campo da performance não pode ser perdida em


sua abordagem pedagógica. A questão do ensino em performance aproxima-se das discussões
em torno de processos de criação, de treinamento e de formação do performer. Os diferentes
performers compartilham em seus cursos parte dos procedimentos que eles próprios utilizam
em seu processo de criação, como é o caso do La Pocha Nostra. Schechner aponta a proto-
performance como um ‘conjunto de preparativos’ do acontecimento, o que varia
enormemente de acordo com cada prática.
Um destes entendimentos pode nos remeter ao próprio processo de preparação para
a performance, acepção pela qual Schechner entende a idéia de proto-performance.
Segundo este, a proto-performance pode abarcar todo o conjunto de preparativos
para um evento de performance, sejam estes ensaios, rituais, treinos corporais
(respiratórios, musculares etc) e até mesmo o conjunto de coisas que se vê, lê, ouve
e tudo mais que numa lógica tradicional se chamava inspiração (AGRA, 2008,
p.248)

Nesse sentido, torna-se evidente a necessidade de compreender a multiplicidade das


propostas e processos de preparação e criação encontrados por diferentes performers. Diante
das temáticas, das propostas políticas, sociais e estéticas de cada processo as diferentes
abordagens selecionam os procedimentos utilizados. Alguns autores tentam reconhecer entre
as diversas perspectivas, pontos em comum compartilhados por esses processos educativos.
Dessa forma, nesse capítulo é realizada uma aproximação entre a evidente variedade de
percursos. É também nesse intuito que se faz uma abordagem histórica da questão.

3.1 Arte e Vida: Corpo, presença e experimentação

É tema recorrente entre performers e pesquisadores a discussão a respeito da


possibilidade de se ensinar performance. Para refletir sobre a questão, é necessário antes de
qualquer coisa, questionar sobre o tipo de processo educativo do qual estamos falando.
Partindo do princípio de que, em sentido estrito, ninguém ensina nada a ninguém, passamos a
compreender o processo de aprendizagem como processo ativo. Assim como na vida, só é

 
 
87 
 

possível aprender a trilhar o próprio caminho se cada um assume para si seu percurso pessoal,
e nele se envereda enquanto atividade criadora.

Ninguém pode construir em teu lugar as pontes que precisarás passar para atravessar
o rio da vida, ninguém exceto tu, somente tu. Existem, por certo, inúmeras veredas,
e pontes, e semideuses que se oferecerão para levar-te do outro lado do rio; mas isso
te custaria a tua própria pessoa: tu te hipotecarias e te perderias. Existe no mundo
um único caminho, por onde só tu podes passar. Para onde ele leva? Não perguntes,
segue-o. (NIETZSCHE apud DIAS, 2003, p.71)

Nesse sentido, o performer é pensado como experimentador e educador de si. A


performance enquanto atitude frente ao mundo, presença intensificada, sugere como questão
as possibilidades de diluição das fronteiras entre arte e vida, próprias do gênero. Autores
importantes para essa discussão são trabalhados no intuito de refletir sobre conceitos como
vida como obra de arte e como fenômeno estético. Retoma-se assim algumas imbricações
entre performance como procedimento pedagógico e o artista/performer como educador.

Rosa Maria Dias (2011, p.20), em uma rica investigação em torno do tema ‘vida como
obra de arte’, explicita na obra de Nietzsche a relação entre arte e vida. A arte, nessa
perspectiva, assume sentido enquanto afirmadora da existência. O experimentador aciona em
sua própria vida sua ‘vontade criadora’, e, dessa forma, também a “(...) arte de criar a si
mesmo como obra de arte, isto é, de sair da posição de criatura contemplativa e adquirir os
hábitos e os atributos do criador, ser artista de sua própria existência”. O que requer outra
atitude em relação à arte, entendida nesse contexto não como produção de objetos/obras
artísticas, mas como uma atividade criadora frente ao mundo.
Inquietações latentes no campo da performance, a aceitação e o desejo da
impermanência inerente à existência, são atualizadas na visão nietzscheana. Tal compreensão
contraria uma metafísica que tende a humilhar a realidade em função de um ideal
inalcançável, que não aceita o imprevisto e o perecível, características próprias da vida. No
prisma dessa outra perspectiva a realidade é compreendida a partir do eterno devir, da
mudança como única realidade, do desejo do presente e do inesperado. Será possível preparar-
se para estar aberto, disponível e vulnerável ao transitório?
Diante da impossibilidade e da falta de sentido em estabelecer um manual de ensino
em performance art, que descreva as técnicas, as estratégias e os procedimentos necessários
para a formação do performer, a experimentação de si, a desestabilização de certezas, a
invenção de novos modos de estar e se relacionar com a vida e com o mundo surge como uma
interessante possibilidade de ampliar os domínios e espaços da arte. Lucio Agra sugere que

 
 
88 
 

um ‘modo de existir’ talvez seja a única forma de proporcionar ao performer que mantenha
seu corpo treinado.
Ao que parece, no artista da performance, um modo de existir seria a única coisa que
garantiria o corpo treinado deste artista. Então seria preciso repensar os modos de
existir. E não somente a ideia de corpo e de arte que, de resto, são ambas formações
de nossa civilização.Trata-se então de buscar modos de existência que sejam
produtivos para estados de invenção.Se não houver nenhuma certeza quanto a esses
modos, ao menos podemos afirmar que, desde já, devem ser, eles mesmos,
invenções. (AGRA, 2012, p.3)

Nietzsche corrobora com essa questão, ao preconizar um tipo de artista, que será
experimentado, ao longo do século XX, nos diferentes movimentos que tentaram unir arte e
vida. Sendo ‘mestre e escultor de si mesmo’ ‘o homem não é mais artista, torna-se obra de
arte’. Na compreensão de Nietzsche (NIETZSCHE, apud DIAS, 20011, p.97), deve-se
aprender com o artista, mas ser mais sábio do que ele, tendo em vista que sua perspectiva
estética se encerra onde termina a arte e começa a vida, “nós, no entanto, queremos ser os
poetas-autores de nossas vidas, principiando pelas coisas mínimas e cotidianas.”.
O performer se aproxima dessa concepção ao buscar em seu processo artístico criar a
si mesmo como obra de arte. Para o surgimento de novas possibilidades, é necessário que o
estabelecido seja destronado, que sejam desconstruídas imagens pré-concebidas de si, que se
reinventem modos de ser/estar, de sentir, de se relacionar, de pensar e de existir – uma nova
forma de vida que priorize a experimentação como única via do ser. Esse sujeito aceita a
inconstância e a impermanência, aproximando da ‘lógica desidentificadora da invenção’ que
Jorge Larrosa (LARROSA, 2009, p.57) aponta em Nietzsche. Sem identidade real ou ideal o
sujeito se apresenta como forma a compor.
É nesse sentido que aparece o performer do qual tentamos ao longo dessa dissertação
abordar, o sujeito do exílio, estrangeiro, no sentido literal do termo, mas não somente.
Incluindo também seu sentido metafórico, enquanto pessoa que cria suas próprias
desidentificações, seus territórios de desentendimento, que se constrói na estranheza e
desencontro de si.
Assim "tornar-se o que se é" nada tem a ver com o saber, o poder e a vontade como
atributos de um sujeito que sabe o que é e o que quer; é, ao contrário, um
desprender-se de si, uma coragem para lançar-se no sentido do proibido, uma
travessia, uma experimentação. Como mostra Jorge Larrosa, na idéia de
experimentação está o "ex" do exterior, do exílio, do estranho, do êxtase, contém
também o "per" de percurso, do passar através, da viagem, de uma viagem em que o
sujeito da experiência se prova e se ensaia a si mesmo. Em suma, a experiência é,
nessa compreensão, um passo, uma passagem. (DIAS, 2003, p.130)

O performer se coloca em jogo para experimentar-se no tempo e espaço presente, na


relação direta das presenças que lhe atravessam. A performance se apresenta como um elogio
 
 
89 
 

da transitoriedade, da materialidade e da corporeidade. O performer tem como matéria seu


próprio corpo – que se faz na relação com o mundo –, corpo sempre incompleto, inacabado e
provisório.

É possível reconhecer alguns artistas que colaboraram intensamente com essa


ampliação dos limites da arte, de modo a diluir as fronteiras entre arte, educação e vida.
Pessoas que conseguiram enxergar o potencial educativo da arte, não entendida somente como
objeto, mas enquanto ações, recortes e enquadramentos estéticos da realidade, do espaço
urbano e de acontecimentos cotidianos. Podemos ressaltar entre eles Allan Kaprow, Joseph
Beuys e os Situacionistas, que de diferentes modos diluíram as fronteiras entre arte e não-arte.
Hans Ulrich-Gumbrecht (2010, p.9), em seu livro Produção de Presença, critica a
herança deixada pelo cogito cartesiano, que marca a modernidade promovendo um excesso de
valor atribuído ao sentido e à interpretação. De ‘vocação hermenêutica’ essa abordagem
estabelece dicotomias entre espírito e matéria, mente e corpo, profundidade e superfície,
significado e significante, hierarquizando o sentido espiritual e a interpretação em relação à
corporeidade e à materialidade. O autor em uma perspectiva ampliada diz que a “(...) presença
refere-se, em primeiro lugar, às coisas que, estando à nossa frente, ocupam espaço, são
tangíveis aos nossos corpos e não são apreensíveis, exclusiva e necessariamente, por uma
relação de sentido.”. A presença é a base das mais diferentes abordagens em torno da
performance.

A arte da performance é marcada por esses momentos de intensidade da presença, que


afirmam a dimensão corpórea e temporal da existência. Nesse sentido, a investigação da
presença e de seu estado de intensificação surge enquanto um aspecto importante a ser
trabalhado nos cursos e oficinas de performance, a partir de diferentes procedimentos e
propostas. A investigação da presença aparece em contraponto às práticas de representação,
que retomam o real através da repetição e da imitação. Em performance a obra se apresenta
enquanto acontecimento, encontro único entre presenças, evidenciando as distinções entre
presentificação e representação.

3.2 Pedagogias da performance

Nesse item um panorama sobre o ensino da performance é traçado, baseado em


teóricos e artistas que discutem a questão, no intuito de refletir sobre como tem sido realizado
e compreendido o ensino de performance e a formação do performer.
 
 
90 
 

Tendo em vista que existem tantas definições de performance como praticantes, torna-
se inviável pensar em um manual de ensino de performance, enquanto uma seleção de práticas
a serem utilizadas em qualquer contexto e situação. Desse modo, a gama de práticas
pedagógicas se multiplica e passamos a falar em pedagogias da performance, já que os
diferentes praticantes fazem usos de fontes e procedimentos diversos na construção de suas
propostas metodológicas.
Valentín Torrens desenvolveu um importante trabalho em torno de pedagogias da
performance, o que incluiu a investigação e compilação de diferentes proposta e programas
pedagógicos de professores universitários e performers. Em seu livro Pedagogía de la
Performance podemos encontrar esse material que abrange diferentes enfoques, temas,
exercícios e táticas utilizadas, o que o torna uma referência importante para a área. Sua
abordagem, porém, é prioritariamente formada por referências europeias e norte-americanas.
O autor aponta a importância que teve a inserção da performance no currículo de
algumas universidades e institutos de arte norte-americanas nos anos 70 para o
desenvolvimento das investigações em torno da linguagem e de seu ensino. Somente na
década seguinte é que passa a ser mais amplamente incluída em países europeus, e nos 90
amplia seu alcance através de cursos e oficinas em países latino-americanos e asiáticos.

Renato Cohen (2002, p.42), porém, aponta que a Bauhaus, escola de design, artes e
arquitetura sediada na Alemanha, foi a primeira instituição de arte a organizar workshops de
performance. Após seu fechamento, em 1933, durante o período nazista, as investigações em
torno da performance no contexto europeu diminuem a sua intensidade. Muitos de seus
professores transferem-se então para a Black Mountain College, na Carolina do Norte – EUA,
lugar que assume um papel importante no desenvolvimento da formação em performance.

Valentín Torrens investiga no livro em questão a transmissão de conhecimento sobre o


ensino de performance, área que na visão do autor aponta muitas controvérsias, em função da
subjetividade que lhe é inerente e do questionamento sobre a conveniência e possibilidade de
seu ensino.

A prática performativa é incompatível com o papel coercitivo e com a função de


reprodução social próprias ao sistema educativo dominante. Segundo Valentín Torrens, a
desestabilização dos padrões de pensamento possibilita que as práticas formativas em
performance sejam atravessadas por ambiguidades, contradições e incertezas. O autor inclui
tais práticas de ensino no contexto da pedagogia humanista, que situa o indivíduo e seus
 
 
91 
 

interesses no centro do processo educativo. Desse modo, os programas e planos de curso em


performance são, em sua maioria, criados a partir das especificidades do grupo de
participantes, do local e do tempo de duração.

O livro de Valentín Torrens Pedagogía de La Performance, é uma das poucas


publicações acessíveis que se esforça no intuito de cartografar de modo mais amplo o ensino
da performance. Sua abordagem, claramente mais centrada em oficinas e cursos realizados em
contexto europeu e norte-americano, inclui metodologias e práticas utilizadas por artistas e
acadêmicos, dentro e fora da universidade, trazendo planos de aula e propostas metodológicas
de vários artistas/professores/performers.

Na primeira parte de seu livro, o autor apresenta alguns precursores de questões caras
à temática, aproxima discussões de performance, criatividade e jogo, como fatores relevantes
para compreensão dos processos de formação performativos. Nesse sentido, ressalta
importantes características próprias à performance, como sua natureza comunicativa. Por fim,
aborda as especificidades da pedagogia da ação, e analisa de modo histórico, obras,
pesquisadores, performers e eventos importantes para a constituição da área.

O livro é divido nos seguintes capítulos: Sobre esse livro, A ação, A performance, a
live art, Raízes, micélios e rizomas da performance, Criatividade em ação, A performance
como jogo, Natureza comunicativa da performance, Pedagogia da ação, Estudos sobre a
pedagogia de ação, O ensino da performance na universidade, na oficina. Na segunda parte
do livro, em que são compilados os planos pedagógicos, incluem-se propostas de cursos em
universidades e em oficinas. No final do livro podem ser encontradas ainda breves biografias
dos performers, educadores e pesquisadores que integram a publicação, além de uma extensa
bibliografia sobre psicologia/pedagogia da criatividade e sobre performance, um rico material
de pesquisa.

Entre os autores importantes para a formação da área da Pedagogia da performance,


Valentín Torrens situa Robert Filliou, ex - integrante do movimento Fluxus, que publicou em
1970 Teaching and learning as performing arts. Livro em que reconhece nas táticas da
performance habilidades para o ensino e a aprendizagem, propondo um mundo de artistas, em
que a vida torna-se poética.

Outra publicação importante para a discussão do ensino da performance, que é


evidenciada por Torrens, é o artigo de Janet Frye McCambridge, Ten from Academe,
 
 
92 
 

publicado na revista High Performance34 em 1981. Nesse texto é possível ter acesso a
entrevistas de dez professores de performance. Entre eles estão Allan Kaprow, Eleonor Antin,
Chris Burden, Cheri Gaulke, Charles Garoian, Michel Meyers, Suzanne Lacy e Linda
Montano. Valentín Torrens ressalta que, já nesse período, havia o receio de uma codificação
da performance em um conjunto de técnicas e regras dentro do mundo universitário.

Outro livro importante para a área é o livro de Charles Garoian Performing Pedagogy:
toward an art of politics, livro que surge a partir das discussões do Simpósio Arte da
performance, cultura, pedagogia organizado em 1966 na Universidade Estatal da Pensilvânia,
instituição em que o autor lecionava. O Simpósio reuniu arte-educadores, críticos culturais,
historiadores, performers e professores no intuito de discutir o significado histórico, teórico e
experimental da arte performática como forma emergente de educação artística. Entre outras
questões, foi discutido o desenvolvimento de uma pedagogia crítica através da performance, o
discurso cultural que a performance promove dentro das comunidades e a investigação dos
métodos interdisciplinares utilizados pelos diversos participantes presentes. Entre os
partícipes estavam Allan Kaprow, Charles Garoian, Henry Giroux, Guillermo Gómez-Peña,
James Luna, Peggy Phelan, Roberto Sifuentes e Suzanne Lacy.

O livro de Guillermo Gómez-Peña Ethno-Techno – Escritos sobre performance,


ativismo, e pedagogia35, de 2005, também exerce um papel pioneiro no contexto das
pedagogias da performance, livro em que, além de sua prática artística com o La Pocha
Nostra, Gómez-Peña discute amplamente sua prática pedagógica.

Em 2006, Marie-Louise Lange publica como editora o livro Descobrir a


performatividade. Ensinar arte de ação – Aprender arte de ação36. Livro que apresenta
programas, exercícios e comentários sobre os objetivos, os procedimentos pedagógicos e os
conteúdos teóricos de diferentes práticas pedagógicas em performance, publicação que segue
acompanhada por um DVD com imagens de alguns exercícios.

Ainda é difícil encontrar bibliografia sobre o tema traduzida para a língua portuguesa,
a grande maioria desses livros está em inglês. Porém, é visível o aumento do número de
pesquisas, artigos e publicações sobre a temática em âmbito nacional. É possível identificar
alguns performers, pesquisadores e professores brasileiros que atualmente investigam a
                                                            
34
High Performance #13 Vol. IV, No. 1, 1981
35
“Ethno-Techno – Writings on performance, activism, and pedagogy” (tradução nossa)
36
“Performativität erfahren Aktionskunst lehren – Aktionskunst lernen”

 
 
93 
 

questão, de modo prático e teórico, entre eles destaco Bia Medeiros, Christina Fornaciari,
Eleonora Fabião, Eloísa Brantes, Lúcio Agra, Mara Lucia Leal, Marcos Bulhões, Tânia Alice
e Thaíse Nardim.

3.3 Programas de formação em performance.

Nesse item a pedagogia da performance é analisada a partir de propostas formativas,


programas de cursos e workshops de diferentes performers, na tentativa de uma visão mais
panorâmica do tema. Questões que permeiam as diversas abordagens e que parecem
pertinentes para uma compreensão mais ampla da relação entre ensino e performance. Nesse
intuito, serão investigadas abordagens pedagógicas relevantes à questão, além de
metodologias, técnicas, experiências, procedimentos e programas utilizados na formação do
performer, e na criação de material performativo.

É possível reconhecer na intensificação da experiência um aspecto de fundamental


importância para diferentes abordagens educativas em performance. Jorge Larrosa reflete
sobre o processo de interrupção necessário para que se mobilize a experiência em nosso
corpo, experiência essa geradora de conhecimento. Para que algo

aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase


impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar
para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar
para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião,
suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a
atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece,
aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter
paciência e dar-se tempo e espaço. (LARROSA. 2002, p.24)

A partir do gesto de interrupção é possível desmecanizar e descondicionar ações,


hábitos e atitudes. A criação de outra relação entre tempo/espaço, em que o corpo se faz
matéria central, abre para os performers e para os espectadores a possibilidade de vivenciar a
ação enquanto ‘rito de passagem’. Nas mais diferentes práticas educativas em performance o
caráter transformador é evidente. Transformação que, de modo geral, está muito ligada a uma
transformação micropolítica. Nesse sentido, Félix Guatarri (GUATARRI; ROLNIK,
2000) sugere que a questão da micropolítica é relativa à maneira de como reproduzimos (ou
não) os modos de subjetividade dominantes. Reinventar novas formas e usos, novos modos de
estar e relacionar, é uma questão de grande importância política. Nesse sentido, Eleonora
Fabião retoma Victor Turner:

 
 
94 
 

Em Do Ritual ao Teatro, o antropólogo Victor Turner entrelaça diferentes linhas


etimológicas do vocábulo “experiência” e esclarece: etimologicamente a palavra
inclui os sentidos de risco, perigo, prova, aprendizagem por tentativa, rito de
passagem. Ou seja, uma experiência, por definição, determina um antes e um depois,
corpo pré e corpo pós-experiência. Uma experiência é necessariamente
transformadora, ou seja, um momento de trânsito da forma, literalmente, uma trans-
forma. As escalas de transformação são evidentemente variadas e relativas, oscilam
entre um sôpro e um renascimento. (FABIÃO, 2009, p.237)

´ Dessa forma, a abordagem da presente dissertação tem em vista uma prática educativa
que requer que os integrantes do processo estejam abertos a perder seu território de segurança
e a vivenciar lugares desconhecidos de si, dos outros, dos objetos, do espaço, do tempo. A
descoberta de novos afetos e de novas possibilidades abre diante de nós um mundo a ser
recriado e ressignificado permanentemente.
Os diferentes cursos e oficinas de performance se aproximam do que Turner sugere
como liminar, como espaço de reinvenção e transformação. O termo é utilizado para referir-
se a um lugar de transformação e de indeterminação dentro dos processos culturais e rituais,
como um espaço oco e vazio. Nesse sentido, o liminar implica em uma etapa de
transformação em que surgem novas formas de identidade e relação.

Nos estudos de cultura e mudança, Victor Turner, em “Anthropology of


performance”, sugere que, na condição do liminar, um indivíduo abandona sua velha
identidade para experimentar um estado liminar de ambiguidade, abertura e
indeterminação. Em virtude da experimentação deste estado ou processo, o
indivíduo pode entrar em novas formas de identidade, relação, na vida diária de sua
cultura. O liminar é um ponto de transformação, um estado temporal, um reino
transformador que conduz a algo mais. Termos como não identidade ou auto
abandono são usados para descrever essa experiência. Porém, o liminar também
pode ser o lugar permanente onde morar, mantendo-o como um lugar para a prática
criativa. (TORRENS, 2007, p.31)

Valentín Torrens nota que diferentes propostas de cursos/oficinas iniciam com a


tentativa de romper alguns bloqueios que dificultam a experiência em performance. Tais
entraves são gerados, muitas vezes, pela ordem social vigente, pela alta especialização, pelo
racionalismo extremo, pela experiência enfraquecida e por uma vivência superficial. São
apresentados ainda como fatores a ser trabalhados no inicio dos cursos a falta de confiança, a
baixa motivação, a falta de escuta, o respeito excessivo à autoridade e os espíritos acríticos e
pouco observadores.

Os métodos e metodologias em performance são compreendidos como propostas


abertas, que se fazem na relação direta dos encontros entre os diferentes integrantes do
processo, na interação do educador com os participantes, na situação e espaço especifico em
que ocorrem. Diferentes práticas de ensino em performance promovem a criação de situações

 
 
95 
 

estranhas em relação ao sentido e a lógica dominante. Torrens sugere como marca dos mais
diversos procedimentos performáticos, a geração de novas ideias em vez de explicações.
Através da utilização de táticas que potencializam a divergência, que ampliam as opções e que
proporcionam pausas e rupturas no sentido, a fim de desafiar o conhecido, propõem-se
alternativas em ato, provocando a dissolução de padrões mentais apreendidos.

A performance enquanto linguagem artística – ação em tempo presente, que evidencia


presença, tempo e espaço como centralidade da criação – exige que o performer esteja aberto
para adaptar-se rapidamente às situações surgidas, de modo que adapte as suas experiências
anteriores ao novo conjunto situacional. Valentín Torrens aponta como característica
compartilhada entre diferentes propostas em performance a fluidez – manifestada na
capacidade de produzir e associar ideias novas sobre um dado conceito, objeto ou situação.
Ao lidar com o tempo presente e com a originalidade em ver as coisas de forma única e
diferente, os campos discursivos preexistentes são redefinidos e aproveitados para fins
completamente novos.

O autor reconhece três tipos de bloqueios que surgem frequentemente entre os


participantes dos diferentes cursos em performance – bloqueios emocionais, culturais e
perceptivos. O primeiro, relativo ao aspecto emocional, evidencia o medo do ridículo, do
equívoco, e de uma autocrítica negativa; já os perceptivos são fruto de uma ótica reduzida e
limitada em relação ao mundo; e os culturais evidenciam uma visão estreita, marcada pelos
condicionamentos das normas sociais.

Desfazer esses bloqueios e estabelecer uma confiança no grupo de participantes são


fatores essenciais para o desenvolvimento de práticas educativas em performance, esses
aspectos costumam ser trabalhados durante as práticas e exercícios iniciais. Valentín Torrens
ressalta a importância dos comentários e debates ao final das práticas, momento em que
muitas ideias surgem espontaneamente.

Lembramos novamente que não se trata aqui de trazer um conjunto de regras, ou um


manual sobre como ensinar performance, mas de retomar alguns aspectos recorrentes em
diferentes abordagens que parecem pertinentes ao seu ensino. Na criação das personas
performáticas atravessam-se noções de real e fictício de modo que parecem ser estilhaçadas as
distinções entre natureza e artifício. Descobrir a veracidade dos fatos passa a não fazer mais
sentido nesse contexto.

 
 
96 
 

É matéria do processo criativo e da estética de diferentes performers sua mitologia


pessoal, constituída a partir da reunião de acontecimentos vividos e imaginados, escolhas,
desejos e identificações pessoais, questões recorrentes, materiais, objetos, símbolos, talismãs,
deuses, rituais, mitos e ficções – apropriados, colados, ressiginificados – que marcam a
poética do performer. A investigação e a criação de tais mitologias pessoais são pontos em
comum em diversos cursos e oficinas.
Historicamente o corpo no teatro foi sendo condicionado sob as leis da frontalidade, o
palco italiano, a famosa caixa preta – em que espectadores são alocados em frente ao palco –
é uma concepção que ainda hoje influencia a formação dos atores. As práticas
contemporâneas em torno de um teatro performativo somam à performance na investigação
de um corpo expressivo em sua totalidade, integrado, corpo que assume sua
tridimensionalidade, que se dispõe a ser observado de vários ângulos e que investiga outros
sentidos e sensibilidades. Despertar esse outro corpo faz parte da criação de uma inteligência
performativa. Laura Levin, no programa de seu curso em performance, ressalta os encontros
próprios das arte performática que caracterizam o diferencial da linguagem.
La performance es el aula de clase em donde las dos dimensiones del pintor
encuentran las três del bailarín, donde el cartel del activista encuentra la marioneta
del escultor, donde el ritual del etnógrafo encuentra el ensayo del actor y donde las
palabras del estudiante encuentran el cuerpo del performista37. (LEVIN apud
TORRENS, 2007, p.181)

A importância da mudança ressaltada por Renato Cohen (2002), ‘do what para o how
(do que para o como), que ocorre na performance é por conseguinte um ponto muito
trabalhado nos cursos em performance, o modo de feitura de uma ação, nesse contexto, diz
tanto ou mais do que seu significado.
O performer pode ser pensado como um relator, como sugere Renato Cohen (2002)
em seu livro Performance como Linguagem, ou como um cronista de nosso tempo, como
indica Gómez-Peña (2005). Sujeito que capta questões latentes e pertinentes para si e para
outras pessoas. A percepção do performer é trabalhada em diferentes abordagens educativa de
modo que contribua para que ele possa reconhecer e transformar em obra/ato/processo, temas,
questões e desejos contemporâneos.
No livro de Valentín Torrens é possível ter acesso a uma serie de programas de cursos
e oficinas realizadas em contexto acadêmico ou fora dele. Investigaremos, a partir desses
                                                            
37
“A performance é a aula da classe onde as duas dimensões do pintor encontram as três do bailarino, onde o
cartaz do ativista encontra a marionete do escultor, onde o ritual do etnógrafo encontra o ensaio do ator e onde as
palavras do estudante encontram o corpo do performer.” (tradução nossa)

 
 
97 
 

programas, pontos em comum relevantes para a compreensão das práticas de ensino em


performance.
Em universidades, os cursos tendem a ter duração mais longa, possibilitando um maior
desenvolvimento e aprofundamento dos diferentes temas abordados. Além disso, a parte
teórica recebe uma carga maior de importância, costuma-se cobrar a realização de seminários,
artigos e leituras teóricas sobre performance. Já nas oficinas não acadêmicas, os grupos
tendem a ser mais heterogêneos e advir de linguagens e disciplinas de interesses diversos,
tendo duração mais curta – entre cinco e quarenta horas – em sua maioria são pautadas em
experiências práticas. Em ambos os casos é dada importância que o professor esteja aberto e
preparado para reagir às demandas do grupo, e alterar no que for necessário o programa do
curso. O corpo (presença), o espaço, o tempo e a ação são questões de primeira ordem
retomadas nas diferentes práticas e abordagens.
Há tantos cursos de performance como performers, porém é possível ressaltar nas mais
diferentes propostas a importância dada ao desenvolvimento da escuta, tanto pessoal, quanto
social e política. A identificação de questões urgentes, importantes e vitais é fonte de criação
na performance. As questões e as inquietações pessoais são o foco de diversas abordagens que
ainda priorizam o processo artístico de cada aluno e o desenvolvimento de um vocabulário
performativo próprio baseado nas inclinações pessoais de cada um.

Nos cursos que ressaltam a teoria são trazidos manifestos de artistas, documentos
históricos, ensaios, revistas de arte e catálogos, as leituras são incentivadas como via de
ampliar o conhecimento histórico e criar um vocabulário teórico próprio, de modo que
contribuam para a participação ativa dos alunos durante as discussões. Em alguns cursos são
realizados seminários com apresentações de trabalhos. É ressaltada ainda a importância de
situar essas leituras em uma genealogia artística e teórica mais ampla. Diante desse contexto
passa a ser ressaltada a importância de estimular os alunos a procurar de forma autodidata
outras referências em performance.

Os alunos são incentivados a assistir e vivenciar diferentes performances. Esse contato


se dá por vezes através de vídeo, DVD, slides, web sites de artistas e registros de
performances históricas e atuais. Quando possível promovem encontros com artistas para
dialogar sobre seu trabalho. A análise das performances é feita a partir de diferentes aspectos:
do espaço, da sonoridade, do tempo, do corpo (ação, presença), do visual (a imagem), do
conceito, da relação entre duas ou mais performances estudadas e a partir de algum texto

 
 
98 
 

teórico, de modo que é ressaltada a importância de aprender a ler performances. Em alguns


casos encorajam-se os participantes dos cursos a mostrar imagens de seu trabalho, falando de
suas motivações e das problemáticas que o movem.

O enfoque dos cursos varia muito, porém, em sua maioria, incentivam que os
participantes possam explorar uma gama de estratégias performativas, a partir de exercícios e
tarefas que visam trabalhar pontos específicos da performance. A abordagem baseada em
problemas e tarefas a serem resolvidas, é realizada em sala, ou mesmo através de projetos que
os alunos têm várias semanas para desenvolver, eles são estimulados a explorar uma
variedade de gêneros e de formas.

Em muitos casos abordagens mais práticas se baseiam em questões e/ou conteúdos


contemporâneos como: identidade/corpo, eu/objeto, temporal/efêmero, autobiografia, ritual,
site-specific, espetáculo, temas políticos e sociais, ou mesmo temáticas escolhidas pelos
participantes como sua história, sua gênese e suas memórias. Essas questões costumam ser
desenvolvidas a partir de performances e exercícios realizados individual ou coletivamente.

Em algumas práticas a cidade assume grande importância no desenvolvimento do


curso – o espaço urbano passa a ser investigado e exercícios são propostos em lugares
públicos e fora da sala fechada. Um exemplo é o exercício em que os participantes vão a
lugares cotidianos usando um figurino/vestimenta não convencional. Esse exercício prioriza a
observação das mudanças de percepção, a níveis sensoriais, psicológicos e sociais, tanto dos
próprios participantes quanto de quem os encontra pela cidade.

A Criação a partir de uma performance já existente, a chamada reperformance,


também é uma prática utilizada em diferentes programas. Nesse caso, o aluno após escolher a
performance que deseja reconstruir, deve utilizar – como partitura ou roteiro – a descrição da
ação, criando sua própria versão da obra e recontextualizando assim o trabalho.

Alguns cursos são realizados em forma de retiro ou imersão. Os processos de criação


em performance possuem uma gama muito grande de variação. A performance possibilita que
cada um encontre seu modo particular de falar sobre as questões que lhe interessa.

La performance ofrece a todo el mundo encontrar uma forma de hablar, encontrar su


proprio lenguaje y expresarse com todas sus particularidades personales.
La performance tiene el simpático poder de ser honesto en ló que estás haciendo,
porque este ‘medio’ ayuda a transformar um ‘problema’ privado em público, donde

 
 
99 
 

outra gente puede encontrar em esta articulación algo conectado com ellos sin
exactamente ‘hablar’ sobre eso.38 (FOJTUCH apud TORRENS, 2007, p. 219)

No final dos cursos, na grande maioria das vezes, são realizadas mostras dos trabalhos
feitos durante o processo, em espaço externo ou interno, para convidados ou para um público
mais amplo. Além dessas mostras feitas ao final, costumam ser regularmente realizadas em
sala apresentações dos trabalhos seguidas de debate. Em muitos casos o professor propõe que
o artista comece descrevendo sua intenção inicial na elaboração de sua performance, suas
preocupações e os temas que o motivaram. Ao falar sobre como foi projetada a ação, o que
queria que os espectadores experimentassem e o que mudaria ao realizá-la novamente, o
artista pode refletir sobre o que pensou e o que sucedeu, além de ouvir dos espectadores o que
a obra os fez sentir e pensar.

Nos cursos de performance apresentados no livro de Valentín Torrens o corpo e a


presença/ausência são elementos de primeira importância. Nesse sentido, busca-se reconhecer
e trabalhar a percepção corpórea. O corpo é investigado como suporte da poética proposta,
como matéria moldada por fenômenos sociais, como objeto e sujeito da obra, como
mensagem viva, como imagem, como instrumento e como signo.

Os dilemas do corpo são explorados enquanto corpo sofrido, enfermo, organizado,


estranho, velho, modificado, negado, esquecido. Investiga-se ainda, nesse contexto, a voz
enquanto materialidade, as coisas como prolongamento de si, a reconexão com o próprio
corpo e com o do outro, os seus discursos e os seus limites, bem como a sua relação com os
aparatos tecnológicos.

Entre as tarefas propostas nos cursos, a criação de performances autobiográficas


assume um papel importante durante os diferentes processos. As memórias, as histórias
pessoais, os objetos, os desejos e os medos dos participantes surgem como material de
criação. A investigação da maneira particular que temos de fazer as coisas, a consciência do
estado momentâneo, das tensões, impulsos, movimentos involuntários, dores e temperaturas
do corpo tornam-se propostas importantes na tomada de consciência de si. Nesse sentido, o

                                                            
38
“A performance oferece a todo mundo encontrar uma forma de falar, encontrar a sua própria linguagem e
expressar-se com todas suas peculiaridades pessoais.
A performance tem o simpático poder de ser honesto no que está fazendo, porque este ‘meio’ ajuda a transformar
um ‘problema’ privado em público, onde as pessoas podem encontrar nessa articulação algo conectado a eles,
sem exatamente "falar" sobre o assunto.” (tradução nossa)

 
 
100 
 

trabalho prioriza o movimento espontâneo, além da consciência das emoções, das percepções,
dos fluxos emocionais, dos bloqueios, das resistências e dos limites mentais e físicos.

Em diferentes programas realizam-se exercícios com os olhos vendados, além de


exercícios de autoconhecimento, de respiração, de autocontrole, de exaustão, trabalhos sobre
os próprios limites físicos e psíquicos. Nesse sentido Bartolomé Fernando (2007, p.82) traz,
em seu programa de ensino, alguns pensadores que ampliam essa discussão. Entre outros ele
retoma Gina Pane, que dizia que no sofrimento o corpo fala de maneira especifica de si, e
também Spinoza, que afirmava que não sabemos do que o nosso corpo é capaz.
Rocío Boliver (apud TORRENS, 20007, p.275) em seu programa sugere que a palavra
que melhor descreve o método de ensino é expor-se – a novas sensações, códigos, conceitos,
estruturas de pensamento, comportamentos – é, nesse sentido, que caminham muitas das
propostas educativas em performance.
Ainda são abordadas, a partir do corpo, questões sociais de extrema importância,
diluindo fronteiras entre particular e político. Desse modo, são questionadas e investigadas
relações de dependência e oposição entre gêneros, além da influencia da mídia e do
consumismo contemporâneo, de modo que são experimentadas possibilidades de extrapolar
tais convenções.
A linguagem falada e escrita é questionada em diferentes práticas, nesse caso
valorizam-se linguagens não orais, que utilizem outros códigos, estímulos e sensações. Uma
premissa em muitos cursos em performance é desconfiar das possibilidades do pensamento
científico, lógico ou histórico para explicar a realidade, romper com os códigos impostos,
modelos tradicionais e valores morais, políticos, e/ou religiosos, de modo que a performance
aparece como método de conhecimento de nossas práticas históricas, sociais, e culturais.
Nesse sentido, examinam-se, reescrevem-se e questionam-se os códigos culturais a
partir das inscrições culturais do corpo, de modo que os performers possam decifrar a si
mesmo como mensagens vivas e reconhecer sua identidade como construção.
Outro aspecto muito trabalhado nos cursos e oficinas é a relação do corpo com os
objetos. Nesses exercícios o objeto adquire um grau elevado de importância que, utilizado de
maneira não habitual, em grandes quantidades, a partir de seu significado pessoal ou mesmo
como prótese, potencializa, anula ou resignifica o corpo. Esses objetos podem estar ligados à
infância dos participantes, conter um grande significado na construção do sujeito, ter sido
encontrados ou mesmo ser objetos simbólicos e rituais.

 
 
101 
 

A relação entre o uso de materiais específicos e seu sentido simbólico – a partir do


qual são criadas as performances – incluem o uso de excreções do corpo como material de
criação: sangue, urina, suor, excremento, lagrimas, sangue menstrual, saliva, vomito, sêmen.
A investigação de outras mídias e tecnologias está presente em diferentes propostas.
Realizam-se exercícios a partir do uso de projeção, slides, retroprojetores, videoprojeções,
imagens da televisão, sombras, fotos. Os exercícios e performances que utilizam objetos e
materiais como questões centrais apontam ainda a possibilidade de utilizar os rastros ao
terminar a obra como instalação, investigando a ressignificação espacial resultante da obra.
O espaço é um aspecto de grande importância na performance e logo nos exercícios e
propostas dos cursos, nesse sentido, todo espaço pode ser entendido como lugar para criação.
Performance site-specific, a desconstrução de espaços – de modo formal, funcional e
estrutural –, a ação do espaço sobre o movimento, as diferenças entre locais fechados e rua,
performance-instalação, psicogeografias e a criação de situações na cidade são questões que
aparecem em torno do espaço nos diferentes cursos.

O tempo é outro aspecto muito trabalhado em processos de investigação em


performance, introduzido nos cursos a partir de exercícios de contagem e de percepção
temporal. Aparecem como elementos compositivos tanto o tempo interno quanto o tempo
perceptivo, físico e psicológico. São propostos exercícios a partir da repetição da ação em
velocidades e ritmos diferentes, de ações cíclicas, da criação de pausas e tempos suspensos, de
resistência e duração, da investigação de ritmo, velocidade e impulso e da tradução do tempo
em imagem. O tempo performativo, em alguns casos, é marcado por ações cujo início e o fim
são definidos por processos orgânicos (ex. o gelo que se derrete, as formigas comendo o
açúcar, a água que ferve e a vela que derrete).

O olhar nesses programas assume grande importância, surge como tentativa de


aprender a observar as coisas de outra maneira, de tentar retomar, ainda que de modo breve e
pontual, uma forma de ver sem condicionamentos prévios. A partir de exercícios que
transformam o modo habitual de ver e observar, a experiência é transformada em um
descobrimento contínuo, redefinindo o ordinário. Desse modo, evidencia-se a percepção de
detalhes ou de insignificâncias e a ruptura da rotina. O corpo observado e observador, a
visibilidade e a invisibilidade, a ampliação do campo perceptivo e a privação da visão,
assumem o papel de investigar outros sentidos possíveis.

 
 
102 
 

O som é matéria propulsora da criação de diferentes performances e programas de


ensino. Entre algumas propostas de ação, que têm como eixo o som, utilizam-se sons
produzidos (executados em tempo real), reproduzidos (sons gravados e transferidos em
tempo/espaço) e editados (composições a partir de gravação de sons variados, de instrumentos
e de voz).

A questão do registro ainda causa muito debate no campo da performance. Como


manter a vitalidade do processo performático através de outras mídias? Nos programas em
ensino de performance essa questão também é evidenciada, são propostos trabalhos com
tecnologia de gravação, montagem de emissora de radio para transmitir performances sonoras
e o uso das possibilidades oferecidas pela internet. Também se investigam formas de
documentação a partir de outras linguagens: fotografias, escrita, maquetes, objetos resultantes,
de modo que possam ser encontrados modos de registrar além dos convencionais.

Os participantes dos cursos e oficinas costumam registrar em diários o processo


pessoal durante o percurso, a partir de escritas e desenhos. Nos diários de performance são
registradas as experiências do performer, os conceitos, as motivações, as reflexões e as ideias
que o movem. Em alguns casos é sugerido o uso de blogs, com escritas semanais, entendidos
como diários autopublicados, usados para compartilhar seus pensamentos e sua perspectiva
crítica das leituras realizadas, a escrita automática compõe também o acervo de possibilidades
a ser utilizado em alguns processos.

 
 
103 
 

CONCLUSÃO

Nesse momento uma etapa é finalizada para que novos caminhos possam se abrir. A
amplitude das temáticas – ensino em performance e práticas performáticas transculturais –
sugere a possibilidade de muitas e novas incursões. Entre as diversas abordagens possíveis o
Método Pocha se mostrou uma metodologia que aponta questões necessárias e urgentes, bem
como a proposta artística do La Pocha revelou-se extremamente pertinente em relação à
complexidade contemporânea.

A proposta artística de Gómez-Peña, de construção de um novo mapa, desafia as


barreiras, os muros, as patrulhas e os guardas da fronteira, priorizando o trânsito livre entre
territórios não somente geográficos, mas também entre as áreas de interesse e linguagens
investigadas. O reconhecimento desses limites e demarcações estabelecidas é de grande
importância para que possamos ultrapassá-los e assim reconstruir nossa cartografia pessoal.

Por meio dos mais diversos mecanismos, historicamente construídos, e, reafirmados


na atualidade, nos encerramos em áreas limitadas. Por medo do imprevisível, do diferente, do
inesperado, são criadas inúmeras formas, utensílios, mecanismos para separar, segregar,
delimitar e dividir. Sob o medo da dissolução da farsa de sua identidade, o já mencionado
coronel-em-nós constrói em torno de si grades, muros e cercas que impedem sua livre
circulação, pensa estar finalmente livre do perigo de desagregação, porém esquece que ele
mesmo já não pode mais usufruir de sua liberdade.

Como representante do status quo, do estabelecido, da tradição, o coronel-em-nós


parece reinar no ainda atual sistema de ensino. A educação bancária39 ignora o corpo, ‘aquele
que vibra’, o movimento inerente de reinvenção do corpo no/com o mundo, as novas misturas
e agenciamentos. É de suma importância reinventar postos inovadores de colaboração, afirmar
o corpo em sua potência, desafiar as ‘centrais distribuidoras de sentido e valor’ e investigar
novos afetos.
                                                            
39
Referência ao conceito de Paulo Freire, nesse sentido educação bancária é compreendida como um
instrumento de opressão, em que o professor deposita conteúdos alheios à experiência do educando, a serem
decorados e reproduzidos. Nesse contexto a educação baseia-se no ato de depositar e transferir valores e
conhecimentos, do educador para o educando.
“Falar da realidade como algo parado, compartimentado e bem comportado, quando não falar ou dissertar sobre
algo completamente alheio à experiência existencial dos educandos vem sendo, realmente, a suprema
inquietação desta educação. A sua irrefreada ânsia. Nela, o educador aparece como seu indiscutível agente, como
o seu real sujeito, cuja tarefa indeclinável é ‘encher’ os educandos dos conteúdos de sua narração. Conteúdos que
são retalhos da realidade desconectados da totalidade em que se engendram e em cuja visão ganhariam
significação. A palavra, nestas dissertações, se esvazia da dimensão concreta que devia ter ou se transforma em
palavra oca, em verbosidade alienada e alienante.” (FREIRE, 1987, p.33).
 
 
104 
 

A criação de novos modos de reterritorialização, de criação de novas áreas –


desmilitarizadas, desierarquizadas, colaborativas e livres para a experimentação – e a
invenção de altares que celebrem nossa mitologia pessoal, são formas utilizadas para criar
novos territórios, onde possam ser reinventadas maneiras de significar, contestar, conviver e
festejar. Gómez-Peña cria sua própria coleção que integra seus rituais de reterritorialização:
[...] colecciono figuras, souvenirs, talismanes y vestuários poco usual; objetos
relacionados simbolicamente a mi ‘cosmologia personal’, la cual se remonta al día
que nací. Con Ella, donde quiera que vaya, construyo altares efímeros para
anclarme, y ‘re-territorializarme’ como dícen lós acadêmicos. Estos altares resultan
tan ecléticos y complejos como mi propria estética y mis múltiples identidades
sincréticas.40 (GÓMEZ-PEÑA, 2005, p.214.)

Os meios de se territorializar são os mais diversos, ainda mais nos dias correntes. É
importante lembrar que repensar signos e valores, reinventar identidades, recriar
nomenclaturas, categorias, rótulos, identificações e representações faz parte de um processo
de descolonização.

A possibilidade de autobiografar a experiência de vida de sujeitos localizados em


grupos minoritários, de rever a história oficial e as diversas histórias reprimidas, interrogar a
suposta hegemonia e sua política de identificação do imaginário, identificar os ecos das vozes
emudecidas permite a reconstrução de uma sociedade extremamente desigual e apartada.
Homi Bhabha traz em seu livro uma crônica de Alan Sekula, fotógrafo, escritor e crítico
norte-americano de origem polonesa, que faz uso do porto como lugar privilegiado para
observar as problemáticas dos trânsitos contemporâneos.

As coisas estão mais confusas agora. Um disco arranhado berra o hino nacional
norueguês por um alto-falante da Casa do Marinheiro, no penhasco acima do canal.
O navio-container, ao ser saudado, desfralda uma bandeira de convivência das
Bahamas. Ele foi construído por coreanos que trabalham por longas horas nos
estaleiros gigantes de Uslan. A tripulação mal paga e insuficiente, poderia ser
salvadorenha ou filipina. Apenas o capitão ouve uma melodia familiar. (SEKULA
apud Bhabha, 2005, p. 28).

Nesse caso apenas o capitão escuta uma melodia familiar, quais são as melodias
familiares da morada ou da referência de lar e aconchego desses outros tantos que estão à
deriva? As identidades oficiais, aquelas bem quistas, por quantas pessoas são compartilhadas?
A partir de quanto sangue, hipocrisia e dominação foram forjadas as identidades nacionais? ‘É
melhor ser bi que mono’, e é assim que somos. E, nesse sentido, torna-se necessário, como
                                                            
40
  “Coleciono figuras, lembranças, talismãs e vestuários inusitados, objetos relacionados simbolicamente com
minha "cosmologia pessoal", que remonta ao dia em que nasci. Com ela, onde quer que eu vá, construo altares
efêmeros para ancorar-me, e ‘reterritorializar-me’, como dizem os acadêmicos. Esses altares são tão ecléticos e
complexos quanto minha própria estética e minhas múltiplas identidades sincréticas.” (tradução nossa)

 
 
105 
 

nos diz Walter Benjamin, ‘escovar a história a contra pelo’, e rever as figuras complexas de
identidade e diferença, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão que nos
configuram.

Na performance, e por conseguinte em seu ensino há uma maior valorização dos


modos de feitura das coisas. Essa vitória do gesto sobre a coisa, do uso em relação ao
significado, ressalta o ‘como’ e não apenas o ‘o quê’. Em tempos de excesso de imagens, de
objetos, mercadorias, informação, uma educação que prioriza o uso, o modo de utilização e a
particularidade do gesto, aponta para uma via alternativa ao consumismo niilista por qual a
sociedade parece estar passando.

A reciclagem aparece no trabalho do La Pocha Nostra como principal modus operandi,


as instalações-performances surgem como colagens das patologias culturais da globalização,
como um espaço cerimonial, onde participantes e espectadores podem pensar sobre as
complexas redes de dominação, investigar seu próprio racismo em relação às culturas
subalternas e seus temores e desejos interculturais. Através da antropomorfização desses
estereótipos o La Pocha Nostra materializa os monstros presentes no imaginário hegemônico
sobre outras culturas.

En este sentido, nuestros "salvajes artificiales" encarnan los más profundos temores
y deseos de los norteamericanos contemporáneos con respecto a los inmigrantes y la
llamada equivocadamente "gente de color," y funcionan como una suerte de espejo
invertido para que los visitantes observen los reflejos distorcionados de sus propias
quimeras psicológicoas, eróticas y culturales.41

Desse modo, buscam explorar os espaços mais ensombrecidos da psique ocidental em


relação às chamadas culturas minoritárias e subalternas. Essas comunidades efêmeras, zonas
intersticiais, espaços de reflexão e interrupção são criadas no intuito de extrapolar as
fronteiras da galeria e alcançar os âmbitos sociais e políticos mais amplos, causando
incômodos e irrupções em terrenos delicados. Guillermo Gómez-Peña, ao pensar a
performance como democracia radical, aponta a necessidade do performer aprender a ouvir os
outros e ensinar os outros a ouvir.

Ao longo da história, diversos encontros interculturais não foram marcados pela escuta
e sim pela dominação e pelo silenciamento, herança de uma violência matricial e das
cicatrizes coloniais que ainda vigoram na construção da sociedade contemporânea.

                                                            
41
Disponível em: <http://www.pochanostra.com/antes/jazz_pocha2/mainpages/dioramas.htm> Acesso em: 23
nov. 2013.
 
 
106 
 

Desconstruir esses lastros coloniais é de suma importância para pensarmos uma nova
cartografia.

Os coiotes aparecem no contexto do La Pocha como guias da travessia dos imigrantes


ilegais, como metáfora de atravessadores de fronteiras, nesse sentido, os performers surgem
como coiotes e poderíamos dizer que também os professores/formadores no contexto da
performance. O educador aqui é entendido como um mediador, um problematizador, um
complexificador, um atiçador e talvez um guia da travessia. A performance não pode perder
sua natureza idiossincrática e anárquica, seria impossível ensinar performance de modo
tacanho. Assim como na performance, o educador no contexto performativo provoca
dissonâncias, contribui para a construção de situações estranhas em seu sentido e em sua
lógica.

A pedagogia do La Pocha se estrutura em forma de pentágono, cujos vértices são a


comunidade, a educação, a política ativista, as novas tecnologias e a estética experimental. Na
oficina já mencionada La Pocha Remix: Psycho-Magic Actions Against Violence, que tive a
oportunidade de participar, eles instigaram os participantes a pensar como seria um outro
mundo, criado por artistas, a partir da questão a ser completada ‘Em um mundo criado por
artistas...’. André Stitt (STITT apud TORRENS, 2007, p.101) sugere a importância de que
cada pessoa se faça criadora, escultora ou arquiteta do organismo social. As práticas do La
Pocha parecem direcionar para esse sentido.

Por meio de práticas pedagógicas em performance são reinventados mundos e


experimentadas novas formas de lidar consigo, com o outro e com o espaço. São incentivadas
pedagogias de confronto, disruptivas, contrárias às pedagogias de assimilação, de concórdia e
reprodução. E isso me parece de fundamental importância para construção de uma outra
globalização, de outros modos de organização, de subjetivação, de autopoiese, aspectos que
deveriam ser caros a qualquer processo educacional.

 
 
107 
 

Figura 12 – Registro da oficina La Pocha Remix: Psycho-Magic Actions Against Violence ministrada por
Guillermo Gómez-Peña, Dani D´Emilia e Roberto Sinfuentes no Festival Internacional de Teatro de São José do
Rio Preto. Performers: Júlia Lotufo e Ronaldo Zaphás.

Fonte: La Pocha Nostra Live Arquive. Site de registro de performances e cursos do La Pocha Nostra.
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