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Erro e alienação
Bento Prado Jr.
Pequena obra-prima
Mas não falo apenas dos dois grandes livros
sobre "Kant e o Fim da Metafísica" e "A
Paciência do Conceito". Minha grande surpresa
foi redescobrir um pequeno artigo traduzido e
publicado por Rubens Rodrigues Torres Filho
sob o título de "Do Erro à Alienação" (4), que
ainda está inédito em francês. Trata-se de uma
pequena obra-prima, consagrada ao novo
estatuto atribuído por Kant à idéia de "erro",
em contraponto a toda a tradição do
pensamento clássico. O ponto de partida é a
reflexão 3.707, sobre a "Certeza e Incerteza do
Conhecimento em Geral".
A idéia central é a de que não se pode derivar a
possibilidade do erro do simples
reconhecimento da "incerteza objetiva" ou da
finitude de nosso conhecimento. "Se o diâmetro
aparente de uma estrela é conhecido, mas sua
distância desconhecida, a verdadeira grandeza
dessa estrela permanece incerta ainda que
dessa incerteza por si só não possa nascer
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nenhum erro".
Lebrun interpreta o texto kantiano colocando-o
sobre o fundo da história do processo de
exorcismo do erro, desde o "Teeteto" e "O
Sofista" de Platão até as "Meditações" de
Descartes. A empresa do "Teeteto" termina em
aporia: Sócrates impõe a seu interlocutor a
espinhosa escolha: "Ou não há falsa opinião, ou
é possível não saber o que se sabe. Qual dos
dois você escolhe? Você propõe uma escolha
embaraçosa, Sócrates. E no entanto o
argumento periga conservar os dois" (196 c-d).
Essa dificuldade é, todavia, contornada por
Platão, que acaba por dar estatuto ao erro,
embora esvaziando-o de toda "positividade". E
isso através da distinção entre "constatação" e
"juízo" ou entre conteúdos atômicos do
pensamento e seu entrelaçamento no "logos".
"Com o "logos" predicativo, abre-se o espaço no
qual os absurdos não são mais ontologicamente
impensáveis e onde as distorções de sentido
não são mais alucinações: com o benefício do
jogo entre conteúdo representativo e
julgamento, pode-se "dizer", sem ser louco,
aquilo que não se "verifica'" (5).
O erro, como a verdade, ocorre apenas no
interior do juízo. É bem essa mesma operação
que será reativada pelo Descartes da Quarta
Meditação: não há, no entendimento, como
simples faculdade de representação, lugar para
o erro; nenhuma idéia, tomada em si mesma, é
falsa; só com a intervenção do livre-arbítrio,
que opera o julgamento, torna-se possível o
erro. A vontade, infinita, pode negligenciar a
finitude do entendimento, fazendo-me "formular
um juízo sobre uma coisa, quando não a
concebo com suficiente clareza e distinção".
Positividade do erro
Mas, voltando à reflexão 3.707, de que
partimos, Lebrun mostra que o problema de
Kant é justamente o de remover a base sobre a
qual repousa o "otimismo epistemológico" do
pensamento clássico, que só dá direito de
cidadania ao erro sob a condição de reduzi-lo a
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Dura crítica
Mas que não nos enganemos: ao percorrer aqui,
como alhures, a formação da crítica da ilusão
metafísica, Lebrun não o faz inspirado por
qualquer forma de "positivismo"; a
"epistemologia" não é necessariamente o "télos"
último da Crítica. Pelo contrário, consagrou, ao
livro de Piaget sobre "Sabedoria e Ilusões da
Filosofia", uma dura crítica que visava
justamente a ingenuidade de seu positivismo. A
mesma inspiração será encontrada no livro
consagrado a Hegel (9), em que a Dialética será
compreendida menos à luz do Saber Absoluto
(apressadamente interpretado como retorno ao
dogmatismo, como doutrina ou "Theoria"
infinita, como a "visão em Deus" dos clássicos)
do que como a dissolução sistemática dos
pressupostos e das ilusões da representação e
do entendimento finito. Como se a antifilosofia
de Nietzsche (explorada em "O Avesso da
Dialética", Companhia das Letras) já estivesse
embutida na própria dialética hegeliana.
Libertação do olhar
Liberta do império da Representação ou da
verdade-em-si dos clássicos, a dialética
hegeliana é uma nova prática nada dogmática
do discurso, "... sem decidir inscrevê-la a priori
nas oscilações da práxis humana ou na linha de
alguma história do Ser (10), e deixando essas
peripécias da linguagem como que suspensas
entre céu e terra. Mas essa libertação do olhar,
que pode muito bem não conduzir a nada e de
que alguns textos de Wittgenstein dão uma
idéia muito justa, é insuportável, é claro, para
os espíritos religiosos" (11).
Genealogia
A obra de Lebrun, como historiador da filosofia,
é toda ela animada por uma mesma
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