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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ


CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE LETRAS VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA

PATRÍCIA SOUSA ALMEIDA DE MACEDO

ANÁLISE DA ARGUMENTAÇÃO NO DISCURSO: UMA PERSPECTIVA


TEXTUAL

FORTALEZA
2018
1

PATRÍCIA SOUSA ALMEIDA DE MACEDO

ANÁLISE DA ARGUMENTAÇÃO NO DISCURSO: UMA PERSPECTIVA TEXTUAL

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Linguística da Universidade
Federal do Ceará, como parte dos requisitos
para obtenção do título de Doutora em
Linguística. Área de concentração: Linguística.

Orientadora: Profa. Dra. Mônica Magalhães


Cavalcante.

FORTALEZA
2018
2
3

PATRÍCIA SOUSA ALMEIDA DE MACEDO

ANÁLISE DA ARGUMENTAÇÃO NO DISCURSO: UMA PERSPECTIVA TEXTUAL

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Linguística da Universidade
Federal do Ceará, como parte dos requisitos
para obtenção do título de Doutora em
Linguística. Área de concentração: Linguística.

Aprovada em: __/__/____.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________
Profa. Dra. Mônica Magalhães Cavalcante (Orientadora)
Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________________
Prof. Dr. José Américo Bezerra Saraiva
Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________________
Profa. Dra. Mariza Angélica Paiva Brito
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB)

_________________________________________________
Profa. Dra. Suzana Leite Cortez
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

_________________________________________________
Prof. Dr. Valdinar Custódio Filho
Universidade Estadual do Ceará (UECE)
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À Democracia, bastião da Liberdade e das


Retóricas.

A Mônica Magalhães Cavalcante, pela singular


capacidade de conjugar Ciência e Amor.
A Penélope, minha verdade inconteste.
A Gilmar, meu esposo e parceiro.
A minha família.
5

AGRADECIMENTOS

À minha mãe, Lúcia, pelo apoio, pela presença, por ser minha mãe e por admirar meu desejo
constante de crescer.
Aos meus irmãos, Lamberto e Lucianna (in memoriam), por contribuírem no duro exercício de
tornar meu coração mais nobre.
Às minhas amadas sobrinhas, Dayanne e Rayssa, por serem a presença física da ausência que
ao mesmo tempo pesa e fortalece.
Ao meu pai, Ney, pelo amor particular.
À minha cunhada-irmã, Patrícia, pelo apoio, pela admiração e pelo amor que me dispensa.
Ao meu esposo, Gilmar, pelo franco desejo de me ver conquistar o título de doutora, pela singela
admiração de minhas capacidades e pelo apoio irrestrito e indispensável.
À minha pequena filha, Penélope, por me ensinar (e me desafiar) a ser mãe.
À minha mãe preta, Lucy, pelo apoio e pelo amor incondicional.
Aos meus queridos tios Telma e Ofir, prima Luana e sobrinha Tainá, pela amorosidade.
Ao meu tio Luís Guilherme, por sempre se alegrar com minhas conquistas.
À minha avó Nazica (in memoriam), por ter acreditado que um dia minha estrela brilharia.
À minha tia Marly, pelo incentivo que deu, por longos anos, aos meus estudos.
Às amigas Graça e Berna, por se importarem e por sempre estarem tão perto.
Às amigas Angela, Dora, Denise, Elziana e Maria, pela alegria recíproca em partilhar de seus
êxitos.
Aos amigos Alessandro Galvão e Alessandra Martins, pelo apoio e pela cumplicidade. (Um
brinde ao café, que nos une!).
Aos primos Vanessa e Roberto, por terem me acolhido em sua casa, em Fortaleza, nos primeiros
meses de curso.
À Rita Bentes, amiga de todas as horas.
À Maysa Paulinelli, pela gentil disponibilidade em me ajudar a ter acesso a materiais teóricos
fundamentais à produção desta tese.
A Katyane e Valdinar, pela generosa ajuda que contribuiu para a realização do anseio de ser
orientada por uma grande mestra da Linguística Textual.
Aos colegas de Protexto, pelo acolhimento e pelos profícuos momentos de discussão e de
reflexão teórica, em especial, a Tarciclê, Suelene, Edmar, Rafael, Isabel, Kleiane, Maiara e
Mayara, pela carinhosa proximidade.
À Marizinha, pela generosa e afetuosa disponibilidade para me acolher em Fortaleza.
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Aos colegas da Pós-Graduação em Linguística da UFC, todos admiráveis, em especial a


Laurenci, Raudete, Ana Paula, Marilde e Jeane, pela amizade.
Ao Eduardo Xavier, Secretário do PPGL/UFC, e à Wanessa, pela disponibilidade sempre
cordial para atender às minhas demandas discentes.
Aos professores do PPGL/UFC, por compartilharem de seus conhecimentos.
Aos professores José Américo Saraiva, Mariza Brito, Suzana Cortez e Valdinar Custódio Filho,
por gentilmente terem aceitado participar da banca de defesa, e às professoras Isabel Azevedo
e Maria da Dores, por terem aceitado o convite para serem suplentes.
À minha orientadora, Profa. Dra. Mônica Magalhães Cavalcante, pela disposição para orientar
esta pesquisa e balizar minhas reflexões e, principalmente, por compartilhar, sem reservas, de
seus conhecimentos e de sua enorme sabedoria.
À Espiritualidade de Luz, pela assistência em todas as horas.
À Universidade Federal do Pará, instituição que me acolhe há muitos anos, na qual teve início
minha vida acadêmica, e que me concedeu liberação integral para cursar doutorado na UFC.
Aos autores e pesquisadores, linguistas e filósofos, que me interpelaram, de modo
incontornável, por meio de seus textos, com suas ideias sobre linguagem, argumentação,
textualização, discursivização, e, principalmente, sobre (con)viver no espaço da troca
linguageira genuinamente humana.
A Ruth Amossy, pelo serviço que tem prestado, de maneira mais imediata, às ciências da
linguagem e, por meio desta, à própria Democracia.
A todos que participaram, em alguma medida e de algum modo, desta conquista, o meu muito
obrigada!
7

“Em uma sociedade dividida, na qual o conflito


de opiniões permanece como regra, caso se
deseje preservar seu pluralismo e sua
diversidade, a polêmica pública proporciona
um meio de lutar por uma causa e de protestar
contra o que é percebido como intolerável, de
efetuar reagrupamentos identitários,
provocando trocas mais ou menos diretas com
o adversário, e de gerir os desacordos, bastante
profundos, sem lhes permitir degenerar em
ruptura do corpo social e em violência
fratricida”. (AMOSSY, 2014, p. 227-228).
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RESUMO

Nas sociedades democráticas pluralistas, tal como a brasileira, são muitas as questões polêmicas
que atravessam as interações sociais humanas. A Linguística Textual, que se ocupa da descrição
e da análise dos processos de textualização pelos quais a unidade texto se constitui nas mais
diversas situações sociais e das estratégias por meio das quais os interactantes negociam e
coconstroem sentidos, não poderia deixar de fora de seu escopo investigativo os procedimentos
textuais pelos quais os sujeitos argumentam e se posicionam em relação a temas polêmicos.
Nossa questão central, portanto, é: o que o estudo das estratégias textuais de persuasão tem a
nos revelar sobre o funcionamento da argumentação no discurso, em especial, no que diz
respeito a temas polêmicos? Para respondê-la, estabelecemos um diálogo com a abordagem da
argumentação no discurso, proposta por Ruth Amossy (2002, 2005, 2006, 2007, 2011a, 2016,
2018a[2006], 2018b). É dela a noção de argumentação que estamos assumindo, a título de
pressuposto teórico, segundo a qual a argumentação consiste na tentativa de influenciar, pelos
recursos da linguagem, os modos de ver, de pensar e de sentir do interlocutor. Nessa
perspectiva, a argumentação (inter)discursiva é vista através de um continuum que engloba os
mais variados modos de argumentatividade, ou modalidades argumentativas (AMOSSY, 2006,
2008, 2011a, 2018a[2006]), dentre as quais encontra-se a modalidade polêmica (AMOSSY,
2014, 2017[2014]). Os critérios que utilizamos para a seleção dos dados analisados foram,
primeiro, o critério genérico do pertencimento dos textos a gêneros que relevam da esfera
midiática, e, segundo, o critério temático que diz respeito ao fato de todos eles tratarem de
questões polêmicas. Esses critérios nos levaram a uma amostra composta por textos dos gêneros
notícia, reportagem, entrevista jornalística televisiva, entrevista jornalística escrita e charge.
Para a análise, selecionamos os seguintes parâmetros textuais: gênero do discurso,
intertextualidade, composicionalidade (que se desdobra em categorias mais específicas: plano
de texto e sequências textuais – narrativa, descritiva, argumentativa, explicativa e dialogal) e
referenciação. Por meio desses parâmetros, analisamos a inscrição da argumentatividade
discursiva em textos que tratam de questões polêmicas, isto é, os meios de textualização pelos
quais os locutores assumem ou deixam entrever o seu posicionamento em relação a um tema
polêmico e o seu pertencimento, no plano actancial, a um dos polos sociais que debatem sobre
esse tema. Os resultados mostram que é possível apreender a argumentação (inter)discursiva
por categorias de textualidade e que, portanto, a interface entre LT e AD que estamos a propor
é profícua e amplia as possibilidades de estudo tanto de uma como de outra disciplina.
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Palavras-chave: Argumentação no discurso. Estratégias textuais de persuasão. Textualização.


Modalidades argumentativas. Polêmica.
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RESUMÉ

Dans les sociétés démocratiques pluralistes, comme le Brésil, il y a de nombreux questions


polémiques qui transversent les interactions sociales humaines. La Linguistique Textuelle, qui
s’occupe de la description et de l'analyse des processus de textualisation par lequel l'unité de
texte se constitue dans les plus diverses situations sociales et des stratégies à travers lesquelles
les interactants négocient et construisent ensemble les sens, il ne pourrait pas laisser de côté de
son champ d'application les procédures textuelles pour lesquelles les individus argument et se
positionnent par rapport aux questions polémiques. Notre question centrale c’est donc: ce que
l'étude des stratégies de persuasion textuelles a nous révéler sur le fonctionnement de
l'argumentation dans le discours, notamment en ce qui concerne les thèmes polémiques? Pour
la répondre, nous avons établi un dialogue avec l'approche de l'argumentation dans le discours,
proposé par Ruth Amossy (2002, 2005, 2006, 2007, 2011a, 2016, 2018e [2000], 2018b). Et
c’est celle notion d'argumentation que nous prenons, comme hypothèse théorique selon laquelle
l'argumentation est une tentative d'influencer par les ressources du langage, les façons de voir,
de penser et de sentir de l'interlocuteur. Dans cette perspective, l'argumentation (inter)
discursive est vue à travers un continuum qui englobe les plus différents modes de
argumentativité ou modalités argumentatifs (Amossy, 2006, 2008, 2011a, 2018), parmi lesquels
il y a le modalité polémique (Amossy 2014, 2017 [2014]). Les critères utilisés pour sélectionner
les données analysées ont étés, en premier plain, le critère général d'appartenance des genres de
textes qui relèvent la sphère des médias, en deuxième plain, les critères thématiques en ce qui
concerne le fait qu'ils traitent tous des questions polémiques. Ces critères nous ont conduits à
un échantillon composé par de textes de genres de nouvelles, de reportage, d ‘interview
journalistique de télévision, d ‘interview journalistique écrite et des charges. Pour l'analyse,
nous avons sélectionné les paramètres de texte suivants: le genre du discours, l'intertextualité,
la compositionnalité (qui se déroule dans des catégories plus spécifiques: plan du texte et des
séquences textuelles - narratifs, descriptif, explicatif et dialogique) et référenciation. À partir
de ces paramètres, nous analysons l’inscription de l’argumentativité discursive dans les textes
qui traitent des questions polémiques, c’est a dire, les moyens de textualisation par lequels les
locuteurs assument ou laissent entrevoir sa position par rapport à un sujet polémique et leur
appartenance au régime actantiel, l'un de pôles sociaux qui débat sur ce sujet. Les résultats
montrent qu'il est possible constater que l'argumentation (inter)discursive par les catégories de
textualité et, par conséquent, l'interface entre le LT et l’AD que nous proposons est productif et
élargit les possibilités d'études dans les deux disciplines.
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Mots-clés: L’argumentation dans le discours. Stratégies de persuasion textuelles.


Textualisation. Modalités argumentatifs. Polémique.
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Imagem 1 – Entrevista De frente com Gabi com Fábio de Melo ............................ 68


Esquema 1 – A LT como subdomínio da AD .......................................................... 101
Esquema 2 – Relação entre os níveis/planos da AD e os níveis/planos da ATD .... 103
Esquema 3 – Os lugares da LT e da AD no campo das ciências da linguagem ...... 104
Esquema 4 – Interface entre LT e AD no estudo da referenciação ......................... 105
Imagem 2 – Reportagem da Forbes ......................................................................... 122
Imagem 3 – Entrevista De frente com Gabi com Silas Malafaia ............................. 135
Esquema 5 – Esquema quinário da sequência narrativa .......................................... 143
Esquema 6 - Esquema narrativo completo ............................................................... 146
Imagem 4 – Entrevista com Silas Malafaia publicada na revista IstoÉ ................... 149
Esquema 7 – Sequência argumentativa típica .......................................................... 153
Quadro 1 – Organização da entrevista por bloco e tema ......................................... 155
Esquema 8 – Protótipo da sequência explicativa ..................................................... 162
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LISTA DE ABREVIATURES E SIGLAS

LT Linguística Textual
AD Análise do Discurso
AAD Abordagem (ou análise) da argumentação no discurso
FD Formação discursiva
SBT Sistema Brasileiro de Televisão
ATD Análise textual dos discursos
PTO Plano de texto ocasional
PTF Plano de texto fixo
PPF Plano pré-formatado (por um gênero)
MP Macroproposição
MPn Macroproposição narrativa
MP.arg. Macroproposição argumentativa
MP.expl. Macroproposição explicativa
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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ......................................................................................... 15
2 ABORDAGEM DA ARGUMENTAÇÃO NO DISCURSO .................. 22
2.1 A nova retórica ........................................................................................... 22
2.2 A análise da argumentação no discurso .................................................. 38
2.3 A polêmica como modalidade argumentativa ......................................... 50
3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ............................................ 75
3.1 Método de abordagem ............................................................................... 75
3.2 Delimitação do universo e da amostra ..................................................... 76
3.3 Técnica de coleta de dados ........................................................................ 77
3.4 Procedimentos de análise .......................................................................... 78
4 REDEFINIÇÕES TEÓRICAS PARA UMA INTERFACE ENTRE
LT E AAD ................................................................................................... 81
4.1 Gêneros do discurso na AD e argumentação .......................................... 84
4.2 Gêneros do discurso e textos: aspectos conceituais ................................ 95
4.3 Gêneros e outros critérios de análise: problematização teórica e
metodológica ............................................................................................... 100
5 CRITÉRIOS TEXTUAIS DE ANÁLISE DA ARGUMENTAÇÃO
NO DISCURSO .......................................................................................... 111
5.1 Intertextualidade ....................................................................................... 113
5.2 Composicionalidade ................................................................................... 128
5.2.1 O plano de texto .......................................................................................... 128
5.2.2 A sequencialidade ....................................................................................... 140
5.2.2.1 A sequência narrativa .................................................................................. 142
5.2.2.2 A sequência descritiva ................................................................................. 147
5.2.2.3 A sequência argumentativa ......................................................................... 152
5.2.2.4 A sequência explicativa ............................................................................... 161
5.2.2.5 A sequência dialogal ................................................................................... 166
5.3 Referenciação ............................................................................................. 171
6 CONCLUSÃO ............................................................................................ 191
REFERÊNCIAS ......................................................................................... 196
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ANEXO A – TEXTO (03): REPORTAGEM DA REVISTA EXAME


SOBRE SILAS MALAFAIA .................................................................... 201
ANEXO B – TEXTO (05): ENTREVISTA DE SILAS MALAFAIA
AO PROGRAMA DE FRENTE COM GABI [CD] ................................ 207
ANEXO C – TEXTO (06): ENTREVISTA DE SILAS MALAFAIA
À REVISTA VEJA ..................................................................................... 208
ANEXO D – TEXTO (08): ENTREVISTA DE SILAS MALAFAIA
À REVISTA ISTOÉ ................................................................................... 211
ANEXO E – TEXTO (12): REPORTAGEM DO PORTAL G1
SOBRE O IMPEACHMENTE DE DILMA ROUSSEFF E OS 13
ANOS DO PT NA PRESIDÊNCIA DO BRASIL ................................... 222
ANEXO F – TEXTO (13): NOTÍCIA DA CARTA CAPITAL SOBRE
O IMPEACHMENT DE DILMA ROUSSEFF ....................................... 236
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1 INTRODUÇÃO

A favor ou contra a descriminalização do aborto? Reduzir ou não a maioridade


penal? Descriminalizar ou não a maconha? E as outras drogas? Agro pode até ser pop, por estar
na mídia, mas... e os agrotóxicos? Eles fazem mal à saúde humana e ao meio ambiente ou são
inofensivos a ambos? Pensando nisso, qual a melhor forma de agricultura: o agronegócio ou a
agroecologia? Homossexualidade é natural e admissível ou é um comportamento desviante que
deve ser corrigido? E a exposição Queermuseu, promovida pelo banco Santander, é o quê: arte
ou apologia a práticas sexuais transgressoras e perversas?
Essas são apenas algumas das mais diversas questões que recentemente estiveram
ou que continuam a estar na pauta de conversas e de discussões entre cidadãos brasileiros. Nas
conversas cotidianas face a face ou nas interações mediadas por dispositivos tecnológicos, o
fato é que estamos acostumados a lidar, há bastante tempo, com questões que nos dividem, que
nos fazem argumentar, com veemência, em favor de um ou de outro modo de ver, de viver, de
se comportar e de se relacionar com os outros e com o mundo. Ser a favor da descriminalização
do aborto, e defender essa opinião, é vislumbrar um certo modo coletivo de viver que se opõe
àquele no qual o aborto é concebido como um ato crime. Nossas opiniões, ou simplesmente
nossos pontos de vista, em relação a temas polêmicos revelam os projetos de sociedade que
temos em mente e os princípios que nos levam a tomar partido, por isso a polêmica diz respeito,
grosso modo, a uma maneira de argumentar sobre questões políticas.
Oriundo da Linguística Textual (doravante, LT), este trabalho se dedica, em linhas
gerais, a refletir sobre e a demonstrar como certas estratégias de textualização servem à
expressão de posicionamentos e de diferentes formas de argumentatividade discursiva, em
relação a algumas questões polêmicas contemporâneas atinentes ao contexto sociopolítico
brasileiro. Para isso, firmaremos um diálogo com a abordagem da argumentação no discurso,
na qual nos basearemos para refletir sobre a argumentação inerente aos discursos e sobre as
diferentes maneiras pelas quais ela é marcada em textos.
É no âmbito da Análise do Discurso francesa contemporânea de viés não marxista
que a linguista Ruth Amossy situa sua abordagem (ou análise) da argumentação no discurso
(doravante, AAD), cuja finalidade consiste em investigar a argumentação com base em
postulados e instrumentos analíticos advindos tanto das retóricas clássica e nova como das
ciências da linguagem, mais especificamente, da linguística do discurso (AMOSSY, 2002,
2005, 2006, 2011a, 2016). Para essa autora, a argumentação é inerente à atividade discursiva e
os “discursos” (na verdade, os textos) podem manifestar diferentes modos de
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argumentatividade. Um desses modos, o de oposição mais radical entre discursos, é aquele


materializado sob a forma da modalidade polêmica. A AAD de R. Amossy tem contribuído,
vigorosamente, com sua proposta de articulação da retórica com a linguística do discurso, para
as reflexões que temos empreendido sobre as estratégias de organização textual das quais os
locutores se utilizam para negociar sentidos e pôr em prática seus projetos argumentativos.
Constatamos que, até agora, poucos trabalhos pertencentes à LT se ocuparam de
descrever a inscrição da argumentação retórico-discursiva em textos, em uma análise pautada
em parâmetros de textualização, e que nenhum deles se debruçou, mais especificamente, sobre
a argumentatividade implicada no tratamento de questões polêmicas, seja na modalidade
polêmica, seja em outras modalidades argumentativas. No campo mais amplo das ciências da
linguagem, o que se tem fartamente sobre argumentação são estudos que se esteiam sobre a
Teoria da Argumentação na Língua (TAL), de Ducrot, e que se aproximam bastante daquilo
que foi feito por Koch (2009[1984]) e outros pesquisadores na década de 1980: por meio de
uma reflexão sobre o funcionamento da língua, especialmente no que diz respeito aos
operadores argumentativos, são realizadas análises interpretativas da orientação argumentativa
dos textos. Nessa perspectiva, a argumentação consiste em um fato de língua, ou seja, ela é
inerente às significações ensejadas pela semântica do sistema linguístico, que direciona o texto
para determinada conclusão.
Em outro veio de análise da LT, os trabalhos de pesquisa sobre argumentação se
debruçaram predominantemente sobre a sequência textual argumentativa. Esses trabalhos,
baseados na tipologia de sequências textuais proposta por Jean-Michel Adam, ganharam fôlego
com a expansão da ideia de que a noção de gênero textual contribuiria para a melhoria do ensino
e da aprendizagem escolares da língua materna (e das estrangeiras). Após a publicação da
primeira edição dos Parâmetros Curriculares Nacionais para a educação básica (BRASIL,
1991), no fim da década de 1990, que preconizavam a seleção de gêneros textuais orais e
escritos como objetos de ensino de língua portuguesa, diversas produções científicas passaram
a ocupar-se da descrição do funcionamento sociodiscursivo e da organização textual desses
instrumentos e muitas delas consideravam a argumentação como sendo um atributo dos gêneros
nos quais predomina o “tipo textual argumentativo”. Exemplar bastante difundido no meio
acadêmico sobre a relação entre gêneros e tipos/sequências textuais é o capítulo Gêneros
textuais: definição e funcionalidade (MARCUSCHI, 2010), de Luiz Antônio Marcuschi,
publicado na coletânea Gêneros textuais e ensino, no início dos anos 2000.
Outras pesquisas em LT, que versam sobre fenômenos textuais como a
referenciação e a intertextualidade, em geral, apenas tangenciam a questão da argumentação em
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textos, tratando da orientação argumentativa em termos de função discursiva dos processos


referenciais e das relações intertextuais, conforme os possíveis efeitos de sentido operados por
esses processos. No eixo da referenciação, são exemplos desse movimento: o trabalho de Silva
(2013), que investigou as formas e as funções das introduções referenciais e encontrou, dentre
as funções, o papel de “orientar o ponto de vista desde o título e ao longo do texto”; e a pesquisa
de Sá (2007), que se ocupou das funções cognitivo-discursivas das anáforas encapsuladoras,
dentre as quais encontra-se a de “orientação argumentativa”. No eixo da intertextualidade,
citamos o trabalho de Forte (2013), que analisou as funções textual-discursivas de processos
intertextuais por copresença e que identificou, dentre outras funções, a de “argumento de
autoridade”.
No âmbito da Análise do Discurso (AD) francesa, há também, no exterior e no
Brasil, uma vasta produção acadêmico científica sobre a relação entre linguagem e categorias
retóricas, especialmente sobre ethos e pathos. A obra Images de soi dans le discours: La
construction de l’ethos, organizada por R. Amossy e publicada originalmente em 1999, na
Suíça, foi traduzida para o português e publicada no Brasil em 2005 (Imagens de si no discurso:
a construção do ethos) (AMOSSY, 2013). O livro Ethos discursivo, organizado por Ana Raquel
Motta e Luciana Salgado, é uma compilação de textos de pesquisadores brasileiros e
estrangeiros que tratam especificamente de ethos e se destaca pela diversidade de temas
escolhidos pelos autores para discutir a construção da imagem do locutor nos discursos. Fora
essas obras, há muitos artigos, dissertações e teses pertencentes à AD, no Brasil, que versam
sobre meios retóricos de persuasão e que lhes dão, obviamente, tratamento condizente aos
pressupostos discursivos que assumem.
Sem negarmos a importância de toda a produção acadêmica e científica que trata
aspectos da argumentação em suas mais variadas dimensões (na língua, em textos, em
discursos), nosso trabalho propõe-se a recobrir, ao menos em parte, uma lacuna que persiste
nos estudos do texto: aquela que diz respeito à relação entre fenômenos textuais e argumentação
retórico-discursiva. Quando falamos em argumentação retórica, não nos restringimos à sua
concepção de argumentação como meio de persuasão, isto é, de condução dos interlocutores à
adesão de uma tese elaborada por um locutor (tal como ocorre na supracitada obra de Ingedore
Koch). Mais que isso, pensamos na substancialidade que categorias das retóricas clássica e nova
– tais como acordo prévio (e os elementos que o promovem, como valores e tópicos), ethos,
pathos e logos – têm para a engrenagem linguageira que viabiliza a persuasão.
Situando esta discussão no escopo de uma LT ainda preocupada com o refinamento
dos estudos sobre gêneros, intertextualidade, composicionalidade e referenciação, o intuito de
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estabelecer uma interface com a AAD se justifica na medida em que pode ser um veio de análise
proveitoso para se pensar sistematicamente, e a um só tempo, a constituição textual e discursiva
da argumentação retórica em suas diferentes modalidades. Estamos pensando, de maneira mais
ampla, na continuidade do movimento de retroalimentação teórica e disciplinar que há muito
vem ocorrendo entre LT e outras disciplinas ou áreas de conhecimento e que tem promovido
avanços importantes para os estudos do texto, o que exemplificamos com a contínua revisão do
conceito de texto, a partir de trabalhos sobre sociocognição e sobre multimodalidade
(CAVALCANTE; CUSTÓDIO FILHO, 2010). De maneira mais específica, optamos por
assumir postulados da perspectiva discursiva retoricamente orientada de R. Amossy para
refletirmos sobre como os fenômenos textuais da referenciação, da composicionalidade e da
intertextualidade, e a opção por um dado gênero do discurso servem de estratégias de persuasão
no trato textual de questões polêmicas. Assim, iniciaremos por apresentar a perspectiva teórica
de argumentação que nos interpela; por isso, o capítulo 2 foi intitulado de “Abordagem da
argumentação no discurso”.
No capítulo 3 – “Procedimentos metodológicos”, expomos e justificamos nossas
escolhas operatórias, das quais a seleção do corpus nos parece ser a mais precípua. Os textos
sobre os quais nos debruçaremos para analisar as estratégias textuais de persuasão pertencem à
esfera midiática e relevam de diferentes gêneros, tais como entrevista jornalística (televisiva e
escrita), notícia e charge. E todos os textos escolhidos tratam de questões polêmicas
contemporâneas inscritas no contexto sociopolítico brasileiro. Esses gêneros têm uma
importância fundamental no funcionamento da polêmica, conforme veremos em momento
oportuno.
Os dois capítulos que se seguem ao metodológico foram elaborados com o objetivo
de responder às seguintes questões: como se dá, a nosso ver, a relação entre texto e discurso e
entre gênero e argumentatividade? Qual o papel da intertextualidade na argumentação
interdiscursiva e na textualização de questões polêmicas? Como o plano de texto permite
entrever, em um nível composicional macrotextual, a argumentatividade e os posicionamentos
relativos a questões polêmicas? É possível evidenciar marcas da argumentação discursiva pela
análise de sequências textuais prototípicas? E mais: sendo a sequência argumentativa, por
definição, passível de inscrever a polêmica em textos, como ela pode ser utilizada em gêneros
que não são tipicamente argumentativos? Sobre a referenciação, como um mesmo referente é
construído, no âmbito do logos, nas teses antagônicas que constroem uma polêmica? Como
podemos identificar, pela análise dos processos referenciais, o apelo ao pathos? De que maneira
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os processos referenciais participam da construção do ethos de um locutor que aborda uma


questão polêmica?
O capítulo 4, designado “Redefinições teóricas para uma interface entre LT e AD”,
tem um caráter reflexivo-teórico decorrente da necessidade que tínhamos de delimitar o escopo
de nossa pesquisa e de clarificar os termos do diálogo interdisciplinar que estamos
estabelecendo. A categoria do gênero do discurso é a responsável pelo engendramento dessa
etapa da tese. Gêneros do discurso são objetos importantes para a AD, pois ela se instituiu como
uma disciplina que relaciona a linguagem aos quadros institucionais e aos lugares sociais em
que é usada (AMOSSY, 2006). Os estudos sobre gêneros do discurso realizados no âmbito da
LT reconhecem que o estatuto discursivo e pragmático desses instrumentos (ou seja, seu sentido
e sua funcionalidade) estão atrelados à configuração social e institucional mais ampla, que
constrange os sujeitos a fazerem uso de formas padronizadas de interação. Contudo,
compreendemos que a relação entre texto e discurso é um tanto mais complexa do que aquela
em que o texto é visto como materialidade do discurso. Nesse sentido, consideramos relevante
problematizar a questão da relação entre texto e discurso, por meio de uma reflexão sobre como
texto, discurso e gênero se imbricam de modo a compor diferentes maneiras de argumentar.
No capítulo 5 (“Critérios textuais de análise da argumentação no discurso”), nossas
análises buscam demonstrar como os parâmetros da intertextualidade, da composicionalidade
e da referenciação, próprios da LT, são relevantes a um estudo da argumentação no discurso.
Quanto à intertextualidade, pensamos ser o fenômeno textual responsável por instaurar a
polêmica em uma dada circunstância enunciativa, já que a polêmica pressupõe uma oposição
radical de discursos em relação a um tema de interesse público e a existência de um conjunto
de textos sobre ele.
A composicionalidade, como já mencionamos, geralmente serve ao estudo da
argumentação em textos por meio da análise da sequência argumentativa. Por definição, essa
unidade de organização textual é passível de deixar marcas da modalidade polêmica no cotexto.
Contudo, outras categorias de composicionalidade, como a categoria de análise macrotextual
denominada plano de texto, assim como as outras sequências textuais prototípicas (narrativa,
descritiva, explicativa e dialogal), podem evidenciar estratégias pelas quais os locutores tentam
persuadir seus interlocutores em interações sobre temas polêmicos.
Quanto à referenciação e sua relação com meios retóricos de persuasão, há de se
fazer jus a trabalhos como os de Cavalcanti (2014) e de Miqueletti (2014), que analisaram
construções de ethe a partir da “referenciação”. No entanto, há de se observar o objetivo e a
circunscrição teórica desses trabalhos, para que se tenha uma visão mais precisa das diferenças
20

entre eles e esta proposta de análise. Em primeiro lugar, aquelas duas pesquisas inserem-se
estritamente no escopo da Análise do Discurso francesa, para a qual uma das categorias
analíticas basilares é a de formação discursiva. Isso significa que, em ambos os trabalhos, de
Cavalcanti e de Miqueletti, considera-se que os efeitos que o locutor pretende produzir sobre o
auditório (via ethos), na verdade, são tecidos, ao menos em parte, por meio de pistas deixadas
no texto por coerção da formação discursiva na qual esse locutor se encontra inscrito. Para a
AD francesa, o sujeito não é dotado de vontade, não é livre para fazer escolhas, de modo que o
ethos constitui-se parte integrante da formação discursiva na qual está inserido, diferentemente
do sujeito pensado pela LT, para a qual o locutor pode atuar como um estrategista e projetar
pretensamente, em seu texto, uma imagem de si que ele supõe ser favorável ao seu projeto de
persuasão, apesar de submeter-se a certas regras estabelecidas pelas práticas discursivas
enquadradas em gêneros. A segunda diferença reside na concepção de referenciação adotada
naqueles estudos em AD: para as autoras, a referenciação é um processo discursivo ainda
bastante centrado em formas lexicais, ou seja, em expressões referenciais. A LT já deu passos
significativos em relação ao reconhecimento de que os processos referenciais não se
concentram em expressões lexicais ou pronominais, de vez que a construção de objetos de
discurso é um processo textual e discursivo dinâmico para o qual convergem não apenas essas
expressões, como também outros recursos linguísticos e extralinguísticos, havendo a
possibilidade, inclusive, de um referente ser retomado em um texto sem que haja menção
anafórica a ele (CUSTÓDIO FILHO, 2012). Outra particularidade de nosso trabalho está em
estabelecer relação entre os processos de referenciação e apelo ao logos, ao ethos e ao pathos
em textos que tratam de questões polêmicas. O que nos intriga em torno dessa relação diz
respeito aos elementos que incidem sobre a construção de referentes, de modo a imprimir nos
textos impressões de razoabilidade, de credibilidade e de sensibilidade, com vistas à persuasão
de um auditório que se encontra em meio a discussões polêmicas, fundadas em valores e
projetos de sociedade razoáveis, mas profundamente dissonantes.
O intento da pesquisa que ora propomos não é discutir à exaustão as questões
apontadas, muito menos recobrir todos os interesses que os estudos sobre a argumentação no
discurso e sobre as estratégias de textualização possam motivar, mas, sim, dar início a um
diálogo que nos parece produtivo para a compreensão da tessitura argumentativa/retórica em
textos e discursos enquadrados em certos gêneros de discurso. Optamos por fazer um recorte
teórico da abordagem proposta por Ruth Amossy, centrando, por vezes, nossa atenção na
modalidade argumentativa polêmica. É provável, no entanto, que várias outras inquietações
decorram da AAD como um todo ou mesmo do recorte que escolhemos, ensejando, por
21

exemplo, uma discussão sobre relações possíveis ou não de se estabelecer entre categorias,
instrumentos e postulados da LT, da AD e da retórica (antiga e nova).
22

2 ABORDAGEM DA ARGUMENTAÇÃO NO DISCURSO

A reorientação dos estudos retóricos para articulá-los com a Análise do Discurso de


linha francesa tornou-se uma causa pela qual sua proponente, a linguista Ruth Amossy, tem
militado desde que a obra L’argumentation dans le discours foi publicada pela primeira vez,
nos anos 2000. Declaradamente, essa proposta de articulação teórica e metodológica ambiciona
apreender a argumentação retórica em suas dimensões propriamente discursivas, valendo-se,
para tanto, principalmente dos postulados da retórica, clássica e nova, e dos instrumentos
metodológicos advindos, de modo mais amplo, das ciências da linguagem e, de modo mais
específico, da Análise do Discurso de linha francesa contemporânea. Várias publicações, entre
livros e artigos, têm sido destinadas a apresentar os termos dessa articulação, justificada pela
ausência de instrumentos linguísticos no tratamento da argumentação pela nova retórica de
Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca.
Apesar da irrefutável pertinência da nova retórica tanto para o ressurgimento dos
estudos retóricos (que haviam passado por um longo período de eclipse, da Idade Média a
meados do século XX1) como para a compreensão dos meios pelos quais se opera a persuasão,
a dimensão linguageira da argumentação é nela abordada em termos manifestadamente
emprestados da gramática tradicional (AMOSSY, 2002). Sem deixar de reconhecer que a
perspectiva perelmaniana de argumentação considera a linguagem em situação, não o sistema
linguístico, Amossy defende que se pode redefini-la como um dos ramos da linguística do
discurso, “sob a condição, é claro, de dotá-la dos instrumentos e procedimentos necessários ao
estudo concreto da linguagem argumentativa” (AMOSSY, 2002, p. 153, tradução nossa).
Os termos dessa integração entre retórica e ciências da linguagem serão expostos e
problematizados nas subseções a seguir. Iniciaremos por apresentar, brevemente, aquilo que é
fundamental e nuclear para a compreensão de toda a proposta de Amossy: a nova retórica. Em
seguida, discutiremos sobre os demais fundamentos teóricos e metodológicos da análise
argumentativa do discurso e apontaremos as reflexões, mais recentes, sobre a polêmica no
escopo dessa abordagem.

2.1 A nova retórica

1
Para um conhecimento panorâmico, mas bem fundamentado, dos estudos de procedência retórica, sugerimos a
leitura de Paulinelli (2014).
23

A nova retórica é uma das mais proeminentes teorias que compõem o vasto campo
dos estudos sobre argumentação. O modificador “nova” indica que essa teoria, desenvolvida
por Chaïm Perelman, não só recupera a retórica clássica, como a amplia. Reagindo à ideia
cartesiana de razão, Perelman situa a argumentação no âmbito de uma racionalidade
contingente e negociada, coloca a noção de acordo no núcleo de sua teoria e descreve as técnicas
discursivas dos raciocínios retóricos.
Há basicamente dois modos de raciocinar: um por demonstração, outro por
argumentação. No primeiro, a razão se assenta em verdades, parte de premissas
necessárias/incontestáveis e sua natureza é analítica; no segundo, ela se assenta no verossímil,
parte de premissas prováveis e sua natureza é dialética. À lógica formal cabe o estudo daquela
forma de raciocinar, enquanto esta outra é objeto da dialética e da retórica aristotélicas2.
Relegada, pela tradição filosófica que perdurou séculos, à posição de simples técnica de
persuasão por expedientes ilegítimos, equiparada à sofística, a retórica foi duramente acusada
de guiar os interlocutores a vencerem uma lide a qualquer custo, importando tão somente a
derrota do adversário. Em tal perspectiva, ignorou-se o fato de que, ainda que não se imputando
o trabalho de desvelar verdades incontestáveis, essa disciplina filosófica adotara preceitos
éticos condizentes com os da demonstração analítica, a fim de que se pudesse refutar as
tentativas de argumentar por silogismo erístico (raciocínio que admite o recurso a engodos
aparentemente lógicos).
Essa rejeição à retórica e ao raciocínio dialético, no entanto, não decorre de um
simples embate circunscrito ao campo filosófico. Como forma de orientação do pensamento, a
dialética constituía uma ameaça a núcleos de poder erigidos em torno de duas grandes
autoridades históricas – a igreja e a ciência –, que também originaram pensamentos doutrinários
baseados na homogeneidade da razão. Apesar de ter sido depositário da cultura antiga, inclusive
da retórica (cf. REBOUL, 2004), o cristianismo rejeitou a dialética pela ameaça que lhe
imputaria o reconhecimento da existência de premissas variadas, apoiadas nas opiniões dos
homens (cf. COELHO, 2005); e o racionalismo o fez sob a chancela do método científico, que
goza de um estatuto de objetividade supostamente capaz de provar racionalmente suas teses.
Da retórica, o cristianismo conservou os conhecimentos relativos às figuras, por sua

2
Reboul (2004) distingue a dialética da retórica, definindo esta como a arte e a técnica de persuadir pelo discurso,
enquanto aquela consiste em uma disputa puramente verbal, um jogo, em que dois adversários tentam vencer pela
imposição de sua tese, sem transgressão das regras lógicas. A dialética é, portanto, um meio, entre outros, utilizados
pela retórica para persuadir.
24

importância hermenêutica: a compreensão das alegorias recorrentes nos textos religiosos exigia
a utilização de recursos fornecidos pela arte de persuadir.
Outra corrente de pensamento que contribuiu para o declínio da retórica foi o
romantismo. Enquanto no âmbito científico, com Descartes, considerava-se como sendo falso
tudo o que fosse verossímil, na filosofia, como o fez Locke, também se exaltava a verdade e
considerava-se que ela decorria da experiência sensível. Dessa tese filosófica nutre-se o
romantismo, corrente para a qual a retórica, lançando mão de meios verbais de persuasão,
distanciaria os sujeitos da experiência e, consequentemente, da sinceridade (REBOUL, 2004).
Nos anos 40 do século XX, como uma reação ao pensamento racionalista cartesiano
que perdurou por três séculos na filosofia ocidental, o jusfilósofo belga Chäim Perelman, em
colaboração com Lucie Olbrechts-Tyteca, retoma os estudos clássicos da argumentação
aristotélica, e eles publicam, em 1958, o afamado Tratado da argumentação. A partir dessa
obra, o ânimo da retórica e da dialética gregas é reavivado e seu escopo é ampliado (daí, nova
retórica), imprimindo à arte da persuasão um requinte teórico e técnico capaz de fornecer
explicações lógicas para questões jurídicas, políticas, entre outras, que se assentassem no
razoável, tais como os juízos de valor, que escapam às certezas do cálculo. Tendo, portanto,
como preocupação central os raciocínios subjacentes aos discursos oriundos das ciências
humanas, a nova retórica concentra seus esforços no estudo do logos.
Na retórica clássica, são três os meios de que um locutor lança mão com a finalidade
de persuadir um auditório: pela argumentação racional, isto é, por estratégias discursivas que
constituem os argumentos e as provas a sustentarem uma opinião (logos) – parte dialética da
retórica; pela construção de uma imagem discursiva de si, estrategicamente evocada para
agregar credibilidade às suas opiniões (ethos); e pela construção discursiva de emoções que o
locutor pretende suscitar no auditório (pathos), a fim de envolvê-lo afetivamente a ponto de
levá-lo a aderir aos raciocínios lógicos apresentados. Para que uma argumentação seja retórica,
então, é preciso que razão e sentimento estejam juntos, sendo que ethos e pathos correspondem
aos meios afetivos de se buscar o assentimento do auditório à tese formulada no âmbito da
razão, isto é, do logos.
A nova retórica privilegia o logos e destina espaço considerável, no Tratado, à
descrição das “técnicas argumentativas”. Apesar de alguns argumentos estarem intimamente
ligados ao pathos, eles são descritos de modo a priorizar sempre seus traços lógicos, revelando
os percursos escolhidos pelo orador para chegar às suas conclusões.
O traço, digamos, mais primário da lógica retórica reside na natureza dos dados
(fatos e elementos que os constituem) a serem utilizados para a composição dos argumentos:
25

são dados semiotizados, uma vez que a única via possível da argumentação são as línguas
naturais, e estas constituem os instrumentos que permitem ao homem compartilhar da realidade,
mas não de uma realidade ontológica e apriorística, mas de uma realidade negociada e
discursivizada. Assim, os dados extraídos dessa realidade também não têm existência empírica,
a menos que considerados à revelia do processo de semiotização pelo qual os apreendemos.
Apesar de reconhecermos que as coisas do mundo têm, sim, uma dimensão empírica, o que
ocorre quando falamos dessas coisas? Inevitavelmente, semiotizamos tudo o quanto está ao
nosso redor e, na impossibilidade de apreendermos esses objetos em sua totalidade, ou seja, de
concebê-los de todas as formas possíveis à mente humana, eles passam por um inevitável
processo de seleção.
A argumentação é seletiva, isto é, ela supõe a escolha tanto dos próprios dados como
da forma (técnica) de torná-los presentes. De acordo com Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005,
p. 132), “o papel da seleção é tão evidente que, quando alguém menciona fatos, deve sempre
perguntar-se o que estes podem servir para confirmar ou para invalidar”. A apresentação dos
elementos escolhidos confere-lhes uma presença, que atua diretamente na sensibilidade do
auditório (prova disso é o ditado “O que os olhos não veem o coração não sente”). Mencionando
Piaget, os autores afirmam ser a presença um dado psicológico

que exerce uma ação já no nível da percepção: por ocasião do confronto de dois
elementos, por exemplo, um padrão fixo e grandezas variáveis com as quais ele é
comparado, aquilo em que o olhar está centrado, o que é visto de um modo melhor ou
com mais frequência é, apenas por isso, supervalorizado. Assim, o que está presente
na consciência adquire uma importância que a prática e a teoria da argumentação
devem levar em conta. (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 132).

No discurso argumentativo, o orador torna um elemento presente quando, por


considerá-lo importante ao seu projeto argumentativo, o faz entrar no circuito mental do
interlocutor ou valoriza um elemento já introduzido, aumentando o efeito de presença.
Interessante notar como a forma de apresentar os dados e seus elementos influencia nesse efeito;
apresentá-lo sob a forma de um juízo de valor, tal como em “Fulano é mau caráter”, produz
efeito retórico significativamente distinto da forma “Fulano recebeu cinco mil reais de propina
para não multar a empresa X”, que expressa um juízo de fato. O juízo de valor corresponde a
um julgamento subjetivo, a uma avaliação pautada em impressões individuais ligadas a valores
morais. O juízo de fato corresponde a uma percepção objetiva da realidade, supostamente
destituída da influência de impressões pessoais. Enquanto a forma de um juízo de fato insiste
em suas condições de verificação, por sua aparente objetividade, as de juízo de valor apelam
para impressões e sentimentos de caráter expressamente subjetivo. Do ponto de vista discursivo,
26

a forma do juízo de fato é não mais do que uma estratégia por meio da qual o orador transfere
para seu interlocutor a responsabilidade do juízo de valor decorrente da afirmação de fato. Essa
seletividade dos dados e de sua forma de apresentação implica na parcialidade da argumentação
e é coerente com seu principal pressuposto: a existência de um contato intelectual que atenda a
certas condições prévias.
É imprescindível, em argumentação, considerar as condições psíquicas e sociais de
sua realização, já que seu objetivo é levar outros espíritos à adesão de uma tese. Para
argumentar, algumas dessas condições devem ser ponderadas, afinal, é preciso estimar a adesão
dos interlocutores à opinião que lhes será apresentada, estimar seu consentimento. Caberia,
então, perguntarmo-nos, entre outras coisas: a quem nos dirigiremos? Trata-se de uma só pessoa
ou de um conjunto de pessoas? De que características psíquicas e sociais essas pessoas estão
investidas (idade, papel social, nível de escolaridade, grau de compartilhamento de
conhecimentos técnicos e/ou teóricos com o locutor, gênero ou sexo etc.)? Qual a importância
de estabelecermos contato com essas pessoas ou, ainda, qual o grau de importância que nossa
argumentação teria para com elas? Essas questões são atinentes a algumas das condições
prévias à argumentação e sua importância reside no fato de que é inviável persuadir a totalidade
dos seres humanos. É inócua a tentativa de sermos ouvidos por todos, porque nem todos estão
dispostos a, eventualmente, aceitar nosso ponto de vista. Dentre os que ouvem, duas são as
possibilidades de reação a uma argumentação: aceitar, ao menos parcialmente, a tese levantada
ou miná-la com contra-argumentos que a refutem veementemente. Em retórica, não se admite
a simples eliminação, por força física, do adversário da arena discursiva – isso é violência, e a
argumentação retórica constitui justamente uma alternativa civilizada a esse tipo de resolução
de conflitos. No episódio ocorrido em Paris em 2015, do atentado terrorista coordenado e
executado por extremistas do Estado Islâmico a jornalistas do semanário francês Charlie Hebdo,
por exemplo, não houve nem haveria possibilidade de se entabular uma discussão retórica com
os executores do crime a respeito do islamismo e, mais especificamente, sobre o modo com que
o jornal encarava a devoção dos extremistas ao profeta Maomé. Trata-se de um grupo que se
autodeclara religioso, mas que é de origem e de atuação essencialmente política; ele “faz uso
de narrativa religiosa para alcançar objetivos políticos” (CALFAT, 2015, p. 15). Amplamente
concebido como intolerante, esse grupo fundamentalista é conhecido pela violência e crueldade
de suas ações. A condição básica para a argumentação, no caso das divergências entre Estado
Islâmico e Charlie Hebdo, portanto, não poderia ser preenchida, pois não há, da parte dos
extremistas, uma disposição para ouvir um ponto de vista que lhe seja contrário ou diferente.
27

Por outro lado, há condições prévias que tocam ao próprio orador. Ele precisa,
geralmente, preencher certos requisitos para se fazer ouvir. Assim, não é qualquer pessoa que
pode tomar a palavra mediante um auditório formado por especialistas durante um evento
científico; nem todos podem defender ou acusar, legitimamente, um réu durante um julgamento.
Em alguns casos, as qualidades convencionalmente exigidas não dizem respeito à função
socioprofissional, mas à idade (em certas circunstâncias, é preciso ser adulto para tomar a
palavra) ou à aparência física (estar limpo, bem arrumado). É a própria sociedade que estabelece
as possibilidades e as normas do contato entre os espíritos, definindo quem pode e/ou deve falar
e também, consequentemente, a quem devemos dirigir a palavra em certas ocasiões. Quanto
mais institucionalizada a interação, mais definidos são os parâmetros do contexto atinentes ao
preenchimento das condições prévias da argumentação. Em alguns casos, como no de uma
interação entre orador e auditório em contexto científico, a própria instituição científica
“fornece o vínculo indispensável entre o orador e seu auditório. O papel do autor é apenas
manter, entre ele e o público, o contato que a instituição científica possibilitou estabelecer”
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 20). A importância do contato entre orador
e seu auditório, no entanto, extrapola as condições prévias da argumentação e subjaz à
totalidade do processo argumentativo. É sempre em função do auditório que se quer persuadir,
que se constrói um texto.
O auditório é, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 22, grifo dos
autores), “o conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua argumentação”.
Determinar que conjunto seria esse requer do orador uma imagem presumida dele, que permita
construir-lhe uma imagem mais ou menos sistematizada, com base naquilo que o orador
conhece de suas preferências, de seus posicionamentos ideológicos, de seus interesses. Não são
as características empíricas que importam a um projeto argumentativo retórico; são as
características psicossociais.
Reboul (2004, p. XIX) aborda essa questão de maneira bastante didática, atribuindo
a capacidade de perceber as características do auditório à função hermenêutica da retórica3:

Ora, para ser persuasivo, o orador deve antes compreender os que lhe fazem face,
captar a força retórica deles, bem como seus pontos fracos. Esse trabalho de
interpretação é feito por todos de modo mais ou menos espontâneo. Até a criancinha
mostra ser um excelente hermeneuta, por exemplo, quando percebe que a ameaça dos
pais é aterradora demais para ser executada, ou quando interpreta uma frase do adulto
no sentido que lhe convém.

3
Para esse autor, hermenêutica é a arte de interpretar textos (REBOUL, 2004).
28

A relevância do auditório é tão central na retórica clássica que os gêneros


aristotélicos foram definidos em função dos papéis exercidos por ele em cada um: o de
deliberar, no gênero deliberativo, o de julgar, no gênero judiciário, e o de tão somente apreciar
o embate discursivo, no gênero epidíctico. Redutora, essa classificação genérica põe em foco o
auditório e sua função decisiva para o empreendimento argumentativo, mas não é, nem de
longe, suficiente para nortear questões relativas àquelas características psicossociais que se
fazem tão importantes a um projeto persuasivo. Ela ignora, entre outras coisas, o fato de que
todo auditório é constitutivamente heterogêneo – quando não em termos de diversidade de
elementos, em termos de elementos em si diversificados em decorrência do pertencimento deles
a núcleos sociais variados. Um argumento pode não parecer persuasivo a uma juíza que exerça
também um papel social de mulher engajada em lutas voltadas à igualdade de sexo ou de gênero,
mas pode parecer plausível a uma juíza que também seja mãe conservadora e de espírito
patriarcal. Daí o valor retórico do auditório como construção do orador, ou seja, como uma
projeção a mais próxima possível daquilo que o auditório representa do ponto de vista
psicossocial, a fim de que o orador possa adaptar-se a ele e, assim, condicioná-lo por meio do
discurso.
Considerando a natureza heterogênea dos auditórios, convencer a totalidade dos
seres humanos, mediante a gama tão vasta de heterogeneidade que ela apresenta, não seria
possível se o orador concebesse essa totalidade sob perspectiva factual, ou seja, como uma
totalidade de fato. Mas é possível se ele a considerar pela ótica da presunção: o orador imagina
que um raciocínio será unanimemente aceito porque acredita apresentar um fato objetivo e uma
conclusão verdadeira, que não poderiam ser questionados por aqueles que se submetem à luz
da razão. Seria legítimo, portanto, não levar em consideração aqueles que não estejam de acordo
com o raciocínio apresentado, simplesmente excluindo-os desse auditório supostamente
universal (trata-se do recurso à desqualificação do recalcitrante, cf. PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, 2005). Do ponto de vista da totalidade de fato, esse acordo unânime
não seria possível, pois a lógica retórica não se pauta por demonstrações e não tem a pretensão
de ser convincente nessa perspectiva. A convicção é uma prerrogativa dos raciocínios lógicos
objetivos que se pretendem universais, verdadeiros e inquestionáveis, e ela estabelece um
vínculo direto com a inteligência. Assim, todo ser de razão pode ser convencido da
universalidade de uma conclusão verdadeira, mas nem todo ser de razão pode ser persuadido.
A persuasão está ligada a uma razão que não prescinde da ação ou, no mínimo, de
uma disposição para a ação. Para persuadir, é preciso que as conclusões sejam consideradas não
como necessárias, mas como razoáveis a um conjunto determinado de sujeitos que
29

compartilhem de premissas verossímeis. Para tornar mais clara a distinção entre esses dois tipos
de raciocínios, recorremos às definições de “racional” e de “razoável” apresentadas por Amossy
(2011b, s/p):

O racional exprime-se por meio de um raciocínio do tipo hipotético-dedutivo cuja


validade não depende de um quadro comunicacional qualquer e que segue um
procedimento rigoroso que culmina com uma verdade penosa. O razoável tem, ao
contrário, uma parte ligada ao senso comum. Ele representa aquilo que parece
plausível a uma dada comunidade em função de suas crenças e de seus valores – o que
lhe parece dever ser aceito por todo ser de bom senso. Enquanto o racional é
necessário e válido em si mesmo, ou seja, independentemente das circunstâncias e dos
agentes humanos, o razoável surge, ao contrário, como contingente e negociável no
interior de uma interação social.

A argumentação, que se assenta no razoável e que busca persuadir a “uma dada


comunidade”, não tem a pretensão, portanto, de conquistar a adesão da humanidade inteira, isto
é, do auditório universal, e sim de um conjunto mais ou menos restrito de seres humanos. Ainda
que um auditório restrito como esse seja, naturalmente, heterogêneo e diversificado, não
podendo o orador fazer dele uma ideia tão precisa a ponto de não incorrer em fracasso, tal
auditório é, por definição, particular, no sentido de que sua restrição permite-nos conhecer e
compreender com mais especificidade suas características, suas crenças, seus valores, suas
emoções. Levar em conta o auditório tem uma importância fulcral em retórica, porque toda a
argumentação, do início ao fim, pressupõe acordo dos interlocutores.
O acordo é, segundo Amossy (2016), a “pedra de toque” da lógica na nova retórica,
dado seu estatuto de condição prévia e substancial à argumentação e dada a sua relação com o
auditório projetado pelo orador. Perpassando todo o empreendimento persuasivo, o acordo “tem
por objeto ora o conteúdo das premissas explícitas, ora as ligações particulares utilizadas, ora a
forma de servir-se dessas ligações; do princípio ao fim, a análise da argumentação versa sobre
o que é presumidamente admitido pelos ouvintes” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,
2005, p. 73). É presumindo o que o auditório admite como plausível, em função das crenças e
dos valores vigentes na comunidade a que ele pertence, que o orador seleciona as premissas,
isto é, os dados e os aspectos destes que serão tornados presentes no texto, além da forma de
apresentá-los. O acordo pode dizer respeito, portanto, às premissas em si (as proposições
iniciais consideradas como aceitas pelo auditório), à escolha delas e ao modo de apresentá-las,
e existe a possibilidade de o auditório refutar as bases do acordo, ou em função do
desconhecimento do conteúdo presumido como sendo conhecido, ou em função do não
compartilhamento da perspectiva escolhida pelo orador, ou, ainda, em função do caráter
tendencioso de sua apresentação. Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) destinam, para cada uma
30

dessas dimensões do acordo, um capítulo inteiro. Como já tratamos acima, ainda que
brevemente, da seleção e da forma de apresentação dos dados, faremos uma exposição dos tipos
de objeto do acordo que podem servir de premissas.
Os objetos do acordo que podem servir de premissas foram divididos em duas
categorias: a do real, que se subdivide em fatos, verdades e presunções; e a do preferível, que
se subdivide em valores, hierarquias e lugares. Importa esclarecer que,

na argumentação, tudo o que se presume versar sobre o real se caracteriza por uma
pretensão de validade para o auditório universal. Em contrapartida, o que versa sobre
o preferível, o que nos determina as escolhas e não é conforme a uma realidade
preexistente, será ligado a um ponto de vista determinado que só podemos identificar
com o de um auditório particular, por mais amplo que seja. (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 74).

Um dado é considerado um fato quando atinente a uma realidade objetiva que se


presume como sendo assim pelo auditório universal. Declarando a impossibilidade de dar uma
definição de fato que pudesse recobrir uma classificação atemporal e descontextualizada de
dados considerados como tal, os autores do Tratado reafirmam a natureza especular do
auditório e destacam o caráter maleável do estatuto dos dados. Uma premissa é considerada um
fato quando é dispensável reforçar ou justificar a necessidade de adesão, uma vez que o acordo
sobre ele é universal e que, portanto, não há controvérsia. Isso significa também que, gozando
desse estatuto, o fato não precisa entrar no circuito argumentativo. Se, ao contrário, for preciso
convencer um auditório de que um dado é um fato e, por isso, ele passar a fazer parte da
argumentação propriamente dita, e não do acordo prévio, então, esse dado se despe do estatuto
de fato porque o acordo sobre ele não desfruta de um acordo universal. Como um acordo é
sempre suscetível de ser questionado, nenhum dado carrega consigo definitivamente o estatuto
de fato. A perda de prestígio pode ocorrer em consequência de duas reações do interlocutor:
quando ele mostra que não se trata de uma premissa e sim de uma conclusão (o fato não precisa
ser provado, e, sim, admitido) ou quando consegue mostrar a incompatibilidade do fato em tela
com outros fatos.
As verdades são mais abrangentes do que os fatos, no sentido de que estes dizem
respeito a objetos de acordo precisos, enquanto aquelas referem-se a “sistemas mais complexos,
relativos a ligações entre fatos, que (sic) se trate de teorias científicas ou de concepções
filosóficas ou religiosas que transcendem a experiência” (PERELMAN; OLBRECHTS-
TYTECA, 2005, p. 77).
As presunções também dependem de um acordo universal, no entanto,
diferentemente dos fatos, a adesão a elas carece, algumas vezes, de reforço argumentativo, e
31

argumentar em favor de um dado presumido não implica a perda de seu prestígio (o fato perde
seu estatuto de fato quando se torna objeto de argumentação, conforme discutimos
anteriormente). A presunção pressupõe um vínculo com o que é considerado normal, com
aquilo que a experiência humana permite considerar como recorrente e esperado,
principalmente em relação a comportamentos. A noção de normal, por outro lado, está
diretamente ligada a um grupo social de referência a partir do qual se estabelecem os parâmetros
de normalidade. São exemplos de presunção apontados no Tratado:

a presunção de que a qualidade de um ato manifesta a da pessoa que o praticou; a


presunção de credulidade natural, que faz com que nosso primeiro movimento seja
acolher como verdadeiro o que nos dizem e que é admitida enquanto e na medida em
que não tivermos motivo para desconfiar; a presunção de interesse, segundo a qual
concluímos que todo enunciado levado ao nosso conhecimento supostamente nos
interessa; a presunção referente ao caráter sensato de toda ação humana.
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 79).

No âmbito do preferível, os valores dizem respeito a objetos, seres ou ideais que


influenciam a ação ou a disposição para a ação de um auditório particular. Trata-se, portanto,
de “objetos de acordo que possibilitam uma comunhão sobre modos particulares de agir”
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 84). Vejamos um exemplo de como os
valores conferem força a uma argumentação.

Exemplo (1)
Gabi: ((risos)) agora:... você conCORda que a ideixa/... a igreja deixa de ganhar fiéis por causa da
oposição aos métodos de controle de natalidade como a pílula e a camisinha?
Fábio: eu/
Gabi: [e fora falar da saúde aí... que também...
Fábio: [é... que: ( )
Gabi: passa... pelo... pelo preservativo
Fábio: justamente... eu acredito que::... NÓS... no momento em que nós temos um:... uma postura...
é natural que a gente vá contrariar muita gente... ninguém está... a igreja não tem a pretensão
de agradar o mundo todo... e é mais uma/ uma distinção que a gente precisa fazer... a gente...
a partir do momento que nós escutamos a palavra do papa... ela... não tem a pretensão de ser
para TOdos... ela tem a pretensão de ser para aqueles que são liderados por ele... então...
é só a gente esclarecer bem... eu sou cristão católico?... então a palavra do papa pra mim
tem um peso... a palavra do papa me orienta... o papa não tem a pretensão de que ele diz
para o mundo inteiro... não... ele pode ser... como homem que é com a autoridade que tem com
o papel que ele tem como: como papa... ele até ser escutado por todos... é um homem que tem
uma liderança que está fazendo um discurso... que colabora fraternalmente... do ponto de vista
intelectual... com a comunidade huma:na
Gabi: uhm...
Fábio: mas agora aquelas regras são para os católicos
Gabi: ((puxa a respiração)) vou perguntar outra vez...
Fábio: pode perguntar
Gabi: essa igreja... não perde fiéis... sendo CON:TRA... o uso de camiSInhas... e... de... controle da
natalidade?
Fábio: eu não sei se ela chega a perder fiéis... eu acredito que:... MUitos fiéis... católicos... que vivem
o dia a dia de uma fé de um processo de fé... vai prestar atenção nisso... talvez outros... que
não tenha:... con/... não tenham convicções mais profundas... se dizem cristãos católicos e... e
32

façam essas práticas todas aí sem... sem levar em consideração... tudo depende Marília do
nível de envolvimento que a gente tem com a fé
Gabi: você tá dizendo... ((balbucia, como que tentando falar algo))
Fábio: o relativismo existe em todos os lugares... pode ser que algumas pessoas não cheguem nem a
se incomodar com essa palavra... que proíbe que restringe ou que:... neh... você pode ter um
discurso positivo sobre a camisinha por exemplo... eu acredito... eu... esse é meu ponto de
vista... eu tenho muito medo quando a gente acredita que a camisinha possa nos livrar de todos
os problemas da sexualidade... eu como padre... que acompanho os bastidores... eu vejo que o
que fere... não é a possibilidade de você contaminar com o vírus isso e aquilo... claro isso é
perigoso isso é isso é isso é: ((faz um movimento centrípeto e rápido com os dedos da mão
direita))... precisa ser considerado
Gabi: [é real
Fábio: é real
Gabi: isso é real
Fábio: mas... o grande problema da sexualidade... é quando... as pessoas vivem relações objetais
Gabi: você tá dizendo
Fábio: [quando não existe amo:r... quando...
Gabi: [quando não existe amor...
Fábio: quando não existe respeito... ((Marília bate uma palma)) quando o outro acabou sendo...
((Fábio ri timidamente))

O exemplo (1) é um excerto da entrevista que o padre católico Fábio de Melo


concedeu à jornalista Marília Gabriela, no programa televisivo De frente com Gabi, e que foi
ao ar em janeiro de 2014 pelo SBT. Nele, destacamos os trechos nos quais a fala do padre
invoca os termos do acordo prévio pautado em valores de natureza concreta (a Igreja) e abstrata
(o duradouro – em contraposição ao fugaz): a igreja católica não perde fiéis por se opor aos
métodos contraceptivos, porque os fiéis efetivamente católicos (auditório particular)
comungam dos valores relativos à Igreja como orientadora do bem viver (e à qual devem
obediência) e à sublimação do amor em relação ao desejo sexual. Assim, de acordo com a fala
do padre, o alcance da adesão dos interlocutores desse discurso católico não sofre diminuição
porque os valores subjacentes à tese de que não se deve usar métodos contraceptivos são
compartilhados por um auditório particular; não compartilhar desses valores, ou seja, não estar
de acordo quanto a eles, implica não na necessidade de mudar os valores, mas, sim, de
considerar os recalcitrantes como não fazendo parte desse auditório. Os valores são, então,
convocados para constituir um argumento para um ponto de vista a ser defendido.
Quanto às hierarquias, outro tipo de objeto de acordo baseado no preferível, elas
dizem respeito a relações de superioridade entre valores concretos (os homens são superiores
aos animais) ou valores abstratos (o justo é superior ao útil). Os critérios para o estabelecimento
das hierarquias podem se basear no princípio da anterioridade (a lealdade gera a confiança,
portanto, é superior a esta), ou no da quantidade (o respeito é mais valorizado do que a
fidelidade). A hierarquização dos valores será necessária sempre que dois ou mais valores sejam
aceitos para um empreendimento argumentativo, mas incompatíveis na circunstância em que
sejam invocados.
33

Os lugares (topoï) são esquemas argumentativos, “premissas de ordem muito


geral”, “rubricas nas quais se podem classificar os argumentos”, “depósitos de argumentos”
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 94). Fiorin (2015) aponta as duas
concepções mais correntes dessa categoria de acordo:

A primeira é de esquema argumentativo que pode ganhar os conteúdos mais diversos,


é uma matriz semântica, um molde discursivo. É essa a concepção que Aristóteles tem
do lugar comum. Por exemplo, ele fala do lugar do mais e do menos. Nesse lugar,
podem-se construir argumentos como: “Se os deuses não sabem tudo, menos ainda os
homens; aquela pessoa pode ter agredido seu vizinho, porque já agrediu seu pai; em
outras palavras, quem pode o mais pode o menos” (Retórica II, XXIII, 4, 1397b).
(FIORIN, 2015, p. 95).

A segunda definição é de argumento pronto (por exemplo: a leniência da justiça induz


ao aumento da violência). Nesse segundo sentido, o termo foi recebendo matizes
diversos conforme a época: argumento já preparado; conteúdos fixos manifestados
com figuras recorrentes; estereótipos, isto é, representações coletivas estáticas que
orientam nossa ação; clichê. [...] Os provérbios [...] são expressão de lugar-comum
nesse segundo sentido. (FIORIN, 2015, p. 96).

É dos lugares (no primeiro sentido do termo) que os argumentos retiram sua força,
pois eles permitem criar valores e hierarquias que o orador supõe serem compartilhados entre
os membros do auditório particular ao qual se dirige. Como os acordos dizem respeito,
necessariamente, à comunidade à qual se dirige o discurso, às suas crenças, aos seus valores, é
possível caracterizá-la conforme o seu grau de adesão a um dos elementos do par de lugares.
Então, um auditório que valorize mais o efêmero em detrimento do duradouro pode ser
caracterizado como romântico. Uma comunidade que valorize mais os padrões em detrimento
da diversidade será caracterizada como conservadora.
Perelman e Olbrechts-Tyteca não apresentam uma lista exaustiva dos lugares;
reúnem-nos de acordo com os traços que lhe são comuns, resultando na classificação deles em
lugares da quantidade, lugares da qualidade e outros lugares (da ordem, do existente, da
essência, da pessoa).
Os lugares da quantidade são os que se baseiam na quantidade para afirmar que
uma coisa é melhor, ou preferível, que outra. Os protestos que culminaram com a deposição de
Dilma Rousseff do cargo de Presidente do Brasil eram noticiados, pela mídia brasileira, com
destaque incessante ao número de seus participantes, sempre superior ao número de
participantes das passeatas pró Dilma. Essa comparação quantitativa sugeria que o
impeachment da presidente era uma demanda imposta pela maioria dos brasileiros. Os
opositores dessa tese faziam-lhe frente partindo da mesma premissa de que o mais é preferível
34

ao menos: Dilma fora eleita por maior número de votos, em eleição direta, logo, a maioria dos
brasileiros preferiria tê-la na Presidência.
É no lugar da quantidade que se assenta também a hierarquia que coloca o útil acima
do agradável. Se uma pessoa opta por comprar uma roupa em vez de flores, sob a alegação de
que aquela terá mais utilidade do que estas, ela está recorrendo ao lugar da quantidade. Em
publicidade, como ocorre no exemplo (2), o apelo a esse lugar é bastante proeminente, dada a
sua força persuasiva:

Exemplo (2)

Fonte: https://www.ortobom.com.br/Content/images/ortobom-logo-slogan.png Acesso em 03/05/2017.

Os lugares da qualidade são aqueles que, contestando a virtude da quantidade,


exaltam a qualidade das coisas. Assim, esses lugares resultam na valorização do único, do
singular, do que é raro e do que é difícil de realizar. O caráter de unicidade, de raridade dos
artigos de luxo agrega-lhes valor de mercado, pelo que se justificam os preços exorbitantes a
eles atribuídos. Grandes marcas de roupas e acessórios femininos chegam a cobrar, por uma
bolsa, o preço de um carro popular no Brasil, com a justificativa de que são fabricadas e
comercializadas somente três ou quatro peças (às vezes, apenas uma) daquele modelo.
O lugar do único como um dos lugares da qualidade também subjaz à ideia segundo
a qual as pessoas são insubstituíveis. É essa a premissa invocada por Augusto Cury no livro
Você é insubstituível, classificado como livro de autoajuda, cujo propósito é valorizar a vida e
elevar ou recuperar a autoestima, motivando o leitor a mudar sua percepção das relações
humanas e de si mesmo. Aliás, os textos de autoajuda se apoiam ora no valor do único (lugar
da qualidade), ora no valor do normal (lugar da quantidade), os dois pilares da argumentação.
Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) afirmam que todos os lugares poderiam ser
reduzidos aos da quantidade e da qualidade, mas reconhecem a importância de outros lugares
e, por isso, dedicam uma seção do Tratado à exposição dos lugares da ordem, do existente, da
essência e da pessoa.
35

Os lugares da ordem privilegiam o anterior em relação ao posterior, da causa sobre


o efeito, das leis sobre os fatos, do objetivo sobre o processo, etc. O lugar da determinação joga
com a premissa de que a ação é movida por um objetivo maior, que recobre e que (re)compensa
as intercorrências iminentes ao processo. O exemplo (3) também retira sua força de um lugar
da ordem e reafirma a superioridade da infância, dada a orientação determinante que esta fase
da vida exerce sobre as que a seguem:

Exemplo (3)

Fonte:
http://imgsapp2.correiobraziliense.com.br/app/noticia_127983242361/2016/10/19/553879/201610191500356265
52a.png Acesso em 03/05/2017.

Os lugares do existente afirmam a superioridade do que é tangível, atual e real sobre


o que é apenas possível, ou eventual, ou imaginário. O filme Malévola, produzido pela Walt
Disney Pictures, pode servir-nos de exemplo da valorização do real sobre o imaginário, o
romântico. O longa metragem tem como personagem principal a fada má do conto A Bela
Adormecida, no qual se baseia, mas se distancia deste em vários aspectos, dentre os quais
destacamos somente alguns, que nos parecem mais salientes: Malévola não é genuinamente má
– sua amargura decorre de uma decepção amorosa somada à iminente ameaça de destruição do
seu reino; o amor é um sentimento construído ao longo de uma convivência fraternal, não é
idealizado; é a amizade a expressão desse amor, não a relação romântica entre uma princesa
inerte e um príncipe desconhecido que aparece abruptamente no fim da história.
Os lugares da essência são aqueles que valorizam os representantes que encarnam
com mais intensidade uma essência, uma função, um padrão, em detrimento dos que se afastam
dessa essência ou a refugam. Na literatura, Mário de Andrade é considerado por muitos como
36

sendo “o papa do Modernismo brasileiro”, o que significa que aqueles que aceitam o epíteto
concordam que é Mário de Andrade o autor que melhor exprimiu, em sua obra, as características
atribuídas àquele movimento literário. Em nosso mundo contemporâneo, de interações virtuais,
os chamados memes expressam o alcance de adesão às premissas que se assentam na essência,
na medida em que são “viralizados” por meio de redes sociais e de aplicativos de troca de
mensagens. As pessoas que produzem e que compartilham, por exemplo, memes do pequeno
George, filho do príncipe William e da duquesa Kate Middleton, estão de acordo sobre a
representatividade que o garoto encarna da realeza.

Exemplo (4)

Fonte: http://ejesa.statig.com.br/bancodeimagens/3g/zh/7x/3gzh7xp7cd76aisk6uh12diqk.jpg Acesso em


03/05/2017.

Os lugares da pessoa exaltam o valor da dignidade, do mérito e da autonomia da


pessoa ou depreciam o que lhe é contrário, como ocorre em (5), em que a dignidade de Janaina
Paschoal é depreciada no segundo comentário de Elika Takimoto. Ao questionar a excessiva
cordialidade entre Lula e Temer (por ocasião da morte de Marisa Letícia, esposa do ex-
Presidente Lula), Janaina Paschoal apelou para o valor da dignidade, sugerindo que o
comportamento daquelas personagens seria reprovável. Elika Talimoto, por sua vez, refuta esse
discurso, argumentando que questionar o caráter alheio seria um meio de provar menos a falta
de dignidade dos outros e mais a própria.

Exemplo (5)
37

Fonte: Perfil @brasil-de-fato, no Instagram. Acesso em 03/05/2017.

A última parte do Tratado é nuclear da nova retórica e se dedica à exposição das


técnicas argumentativas, isto é, de esquemas de argumentos que se apresentam em textos de
gêneros variados, inclusive em textos literários, e que decorrem de processos de ligação e de
dissociação.
Os processos de ligação ocorrem em esquemas nos quais elementos distintos são
aproximados com vistas à sua construção, valorização ou desvalorização. Os processos de
dissociação ocorrem em esquemas nos quais elementos considerados um todo ou solidários em
um sistema de pensamento são separados, dissociados, de maneira a modificar esse sistema.
Os argumentos baseados em processos de ligação foram agrupados em três tipos:
1) Os argumentos quase lógicos são assim designados pela aparência
demonstrativa de que se revestem, sendo construídos conforme os
esquemas formais de raciocínio, por um esforço de redução de natureza não
formal. São exemplos de argumentos quase lógicos a tautologia, a regra de
justiça, os argumentos de reciprocidade, etc.;
2) Os argumentos baseados na estrutura do real estabelecem uma
solidariedade entre elementos que gozam do estatuto (contingente) de
realidade e de objetividade e elementos que se busca promover a esse
estatuto. Isso significa que o elemento considerado real pode ser tratado
como um fato, uma verdade ou uma presunção. O argumento do
38

desperdício, o argumento da direção e a interação entre o ato e a pessoa são


alguns dos argumentos desse tipo;
3) Os argumentos que fundamentam a estrutura do real não se baseiam no
modo de se conceber a realidade, mas no modo de organizá-la, de dar vazão
a ela – “São os argumentos indutivos ou analógicos, ou seja, aqueles em
que se generaliza a partir de um caso particular ou aqueles em que se
transpõe para outro domínio o que é aceito num campo particular”
(FIORIN, 2015, p. 186). O exemplo, a ilustração e a analogia são
argumentos que fundamentam a estrutura do real.
Aos esquemas de dissociação correspondem a ruptura (entre elementos que formam
pares derivados de uma associação forçada) e a dissociação (de elementos que compõem uma
unidade presumida como tal).
Como nosso propósito, com esta subseção, é apresentar uma noção geral da nova
retórica de Perelman e Olbrechts-Tyteca, a partir da qual possamos compreender os termos da
articulação entre essa teoria da argumentação e as ciências da linguagem, conforme proposta
por Ruth Amossy, não nos deteremos na explanação das técnicas. Sempre que forem pertinentes
à análise dos dados, traremos à baila as técnicas subjacentes à argumentatividade inscrita nos
textos. Passemos, então, à apresentação da AAD propriamente dita.

2.2 A análise argumentativa do discurso

A AAD consiste na redefinição da retórica como um ramo da Análise de Discurso


francesa, resultante da articulação entre esta disciplina e a retórica (clássica e nova), que tem
como preocupação central o estudo da argumentação e de suas estratégias de persuasão no
âmbito do discurso como dizer socialmente situado e constituído. Sem pretender tomar para si
o mérito de reconhecer que a argumentação é parte constitutiva do discurso, o intuito de Ruth
Amossy, ao propor essa abordagem, é delinear um quadro teórico e metodológico que permita
apreender a argumentação (até então, negligenciada pelos estudos do discurso) em seus quadros
discursivos e institucionais.
A argumentação, no interior da AD francesa contemporânea4, foi reconhecida por
Dominique Maingueneau como fator primordial da coerência discursiva, em sua obra L’analyse

4
Essa AD francesa é aquela cujas tendências – de viés não materialista, diferentemente da AD inspirada nos
preceitos de Pêcheux – surgiram na França entre os anos de 1980 e 1990 e cujo representante mais conhecido é
Dominique Maingueneau (AMOSSY, 2016).
39

du discours, de 1991, mas não prosseguiu para além desse reconhecimento (AMOSSY, 2016).
Uma das razões pelas quais a AD não deu marcha à análise da argumentação nos discursos
reside em incompatibilidades epistemológicas existentes entre ela e a retórica, em especial, no
que diz respeito às concepções de sujeito. Antes de tratarmos do conceito de argumentação na
proposta de Amossy, discutiremos sobre as concepções de sujeito em jogo nessa abordagem,
dada a substancialidade da categoria para a AD francesa, na qual se enraíza a AAD.
O sujeito da AD francesa, seja de viés mais ou menos ideológico, não governa o
seu dizer, não é senhor de si. De acordo com Mussalim (2006), a AD francesa é marcada por
três diferentes fases e, em cada uma delas, a concepção de sujeito sofreu alguma variação, em
decorrência das reformulações teóricas e metodológicas operadas no âmbito da disciplina em
cada uma dessas fases. Nas duas primeiras, há a proeminência da noção de ideologia e das
ideias segundo as quais os discursos seriam produzidos sob condições (posições ideológicas e
lugares sociais) mais estáveis e homogêneas (primeira fase) e as formações discursivas (FDs),
apesar de terem suas próprias identidades, seriam atravessadas por outras FDs (segunda fase).
Na terceira fase, a identidade das FDs é estruturada por relações interdiscursivas em seu próprio
interior, diferentemente de como a identidade é vista na fase dois, na qual cada FD é constituída
independentemente das outras e, só depois, é posta em relação com elas (MUSSALIM, 2006,
p. 120). As concepções de sujeito das duas primeiras fases, “apesar de diferentes, [...] são
influenciadas por uma teoria da ideologia que coloca o sujeito no quadro de uma formação
ideológica e discursiva”, tratando-se, portanto, de um “sujeito ideológico” através do qual a
ideologia se manifesta (MUSSALIM, 2006, p. 133-134). Na fase terceira, “tem-se um sujeito
essencialmente heterogêneo, clivado, dividido”, “compatível com uma noção de discurso
marcado radicalmente pela heterogeneidade” e com a ideia de primado do interdiscurso
(MUSSALIM, 2006, p. 134).
Salvaguardadas as diferenças entre essas concepções, há um traço conceptual que
lhes é comum e pelo qual podemos distinguir o “sujeito da AD” do “sujeito da retórica”:
enquanto o sujeito da AD não é dono de sua vontade, porque ou é coagido por forças ideológicas
e discursivas ou está submetido a uma inconsciência que lhe é constitutiva5, o sujeito da retórica
se mostra um sujeito soberano, que governa a si e a seu discurso, sendo capaz de utilizar
conscientemente a língua para condicionar e persuadir outros sujeitos. Em outras palavras, para

5
Parece-nos importante salientar, como o fez Mussalim (2006, p. 134-135), que a discriminação entre a vertente
que inclui as duas primeiras fases e a outra, associada à terceira fase, levou ora à focalização da noção de ideologia,
ora à da noção de inconsciente. Ambas as vertentes, no entanto, articulam essas duas noções, de modo que a
primeira, ao conceber um sujeito ideologicamente interpelado, também o concebe como inconsciente, enquanto a
segunda não deixa de considerar que o sujeito inconsciente é ideologicamente constrangido.
40

a retórica, o sujeito tem vontade própria e parece ter plena consciência do que faz ao selecionar
dados e construir raciocínios.
Sem ver nessa incompatibilidade epistemológica um impedimento para operar uma
articulação entre retórica (clássica e nova) e AD, Amossy (2005) defende que a retórica pode
ser reorientada por uma abordagem que a considere como um ramo da AD e que, assim, o
sujeito retórico seja ressignificado. No âmbito da AAD, o sujeito seria considerado, conforme
o papel social que desempenha, como elaborador de um projeto persuasivo constrangido por
fatores de ordem social, que definem a forma genérica e o pertencimento de sua fala a uma
significação social dotada de lugares comuns e de argumentos próprios. Nesse sentido, o
discurso e os modos de pensar e de dizer o mundo do locutor são necessariamente vistos como
uma resposta, ainda que implícita, às palavras alheias ditas anteriormente. Trata-se de uma
perspectiva dialógica de linguagem, pautada em Bakhtin, na qual “o sujeito aparece, então,
como atravessado pelo interdiscurso, investido da palavra do outro e imerso em uma circulação
discursiva generalizada que não possui exterioridade absoluta” (AMOSSY, 2005, p. 175).
O sujeito da análise argumentativa do discurso é involuntariamente determinado
pela fala social na qual está imerso, mas também é estrategista. Como diz Possenti (2009, p.
83), “se os sujeitos não inventam o jogo, não significa que não joguem”. Nessa condição, antes
de buscar levar seu interlocutor a aderir a uma opinião, ele mesmo adere (ainda que
inconscientemente) a uma doxa que está subentendida em seu projeto persuasivo e em sua fala,
e fora da qual não é possível dizer nem se dizer. Em vez de impedir o desenvolvimento da
argumentação, como alegam alguns analistas do discurso, Amossy (2005) vê essa condição
como um vetor importante para o empreendimento argumentativo, porque é a partir da inscrição
do sujeito nessa fala social e nessa doxa que ele busca orientar o olhar, o sentir e o pensar do
outro com o qual interage e busca, consequentemente, influenciar esse outro no sentido de, ao
menos, predispô-lo a uma determinada ação. Alinhando-se, nesse ponto, à sociocrítica, Amossy
(2005) acrescenta que o estatuto do locutor e o quadro institucional no qual ele profere sua fala
também têm importância para essa concepção de sujeito ao mesmo tempo livre e coagido,
porque seu discurso não somente é uma resposta a um já dito como também reflete uma
engrenagem social que o autoriza ou não a proferir um discurso, a depender da posição e do
grau de legitimidade de que desfruta esse locutor no contexto em que escolheu intervir.
Antes de resumirmos a concepção de sujeito da teoria da argumentação no discurso,
convém lembrarmos do sujeito delineado pela nova retórica, cujas características podemos
abstrair do que foi exposto na subseção anterior. O sujeito da retórica faz de seu discurso um
instrumento de persuasão, na medida em que o profere com vistas à adesão de um auditório à
41

tese que lhe é apresentada. A argumentação concebida como a tentativa de um locutor de levar
um auditório à adesão de sua tese pressupõe duas coisas: 1) que apenas o auditório é
condicionado em uma argumentação e 2) que o orador é o “dono” da tese, ou seja, que ele tem
pleno domínio sobre seu discurso, sua opinião, seu ponto de vista. Podemos resumir esses dois
pressupostos em um só: o orador não é condicionado (por isso, a AD o considera um sujeito
soberano, senhor de si). A AAD, como um ramo da AD francesa, reconfigura esse sujeito
retórico autônomo e plenamente consciente, concebendo-o como uma instância enunciativa
constrangida pela doxa que o circunda e tributária dos quadros institucionais nos quais ele se
situa (AMOSSY, 2005). A abordagem discursiva da argumentação, portanto, permite desvelar
a dimensão social dos discursos, dimensão que foi apenas muito rasteiramente sugerida pela
nova retórica quando tratou do acordo e da razoabilidade dos raciocínios argumentativos. Feito
o parêntese sobre o sujeito tal como concebido pela retórica, pela AD e pela AAD, voltemos à
concepção de argumentação nesta última abordagem.
Para Aristóteles e Perelman, argumentação e retórica são termos intercambiáveis
e designam a arte da persuasão e os meios verbais suscetíveis de levar os espíritos à adesão de
uma tese. Contrários a essa visão positiva da retórica, há posicionamentos como o de Platão,
para quem a retórica não passa de pura manipulação (AMOSSY, 2006). Neste modo de
concebê-la, em vez de persuadir, a retórica seria um meio de seduzir um auditório por meio de
um discurso cativante que primaria pelo ornamento; daí a associação do termo às figuras.
Diferentemente da retórica, a argumentação é que corresponderia à via pela qual se poderia
influenciar, de modo racional, um auditório.
Apesar de concordar que a ameaça da sedução demagógica é sempre iminente,
Amossy (2006) dá relevo à função positiva da retórica na vida da sociedade: como uma
alternativa ao uso da força bruta e à violência física, ela pode ser um meio democrático de tomar
decisões coletivas, ou mesmo individuais, e de expressar pontos de vista diferentes ou
conflituosos. Assim, a autora usa o termo “argumentação” como referente ao termo
“argumentação retórica”, em oposição a uma “retórica das figuras”, e adota, consequentemente,
a perspectiva retórica de razão que se assenta no plausível, no razoável e no verossímil para
estabelecer acordos ou para debater (ainda que sem a possibilidade, algumas vezes, de chegar
a um acordo) sobre questões pertinentes à vida social. Aliás, mais do que considerar a
argumentação retórica como um meio para levar um auditório a aderir a uma tese e, assim, se
chegar a um consenso, a autora advoga em favor de uma abordagem retórica reconfigurada pela
linguística do discurso de viés enunciativo e pragmático, que englobe “todas as modalidades
segundo as quais a fala tenta agir no espaço social” (AMOSSY, 2006, p. 3, grifo da autora).
42

Esse redimensionamento da retórica implica duas contribuições teóricas que imprimem


singularidade à AAD: primeiro, o reconhecimento da argumentação como algo intrínseco ao
funcionamento global do discurso e, em consequência desse princípio de inerência, a
consideração da polêmica como uma modalidade argumentativa que inscreve o dissenso no seio
da retórica. Começaremos por discutir sobre o caráter constitutivamente argumentativo dos
discursos e os pressupostos da abordagem proposta por Ruth Amossy. Somente depois de
fazermos isso, nos deteremos, na subseção seguinte, na discussão teórica sobre a polêmica no
interior dessa abordagem.
Em vários dos textos que integram o delineamento da AAD, Amossy (2002, 2006,
2007, 2008, 2011a) sublinha a proximidade da retórica (em especial, a perelmaniana) com a
“linguística do discurso”6 em suas vertentes enunciativa e pragmática, porque ambas concebem
a linguagem em termos de influência e de ação de um locutor sobre um alocutário. Para
Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 50, grifo nosso),

O objetivo de toda argumentação [...] é provocar ou aumentar a adesão dos espíritos


às teses que se apresentam a seu assentimento: uma argumentação eficaz é a que
consegue aumentar essa intensidade de adesão, de forma que se desencadeie nos
ouvintes a ação pretendida (ação positiva ou abstenção) ou, pelo menos, crie neles
uma disposição para a ação, que se manifestará no momento oportuno.

A busca por adesão que implica, no mínimo, uma predisposição para a ação confere
à argumentação retórica um caráter substancialmente pragmático, que é reforçado também pela
ideia de que o orador, antes mesmo de proferir seu discurso, projeta o auditório com suas
características sociais, culturais e ideológicas (idade, sexo, valores, crenças, costumes, etc.), em
função das quais mobiliza as estratégias de persuasão que lhe pareçam mais pertinentes. O
exercício mútuo de influências entre os participantes de uma interação e a tentativa de agir sobre
o outro e de levá-lo à (uma predisposição para a) ação são atribuídos, por Amossy, nos trabalhos
citados acima, às teorias enunciativas, pragmáticas e interacionistas de linguagem e, mais
especificamente, a Émile Benveniste e a Catherine Kerbrat-Orecchioni. A elas, Cavalcante
(2017) e outros integrantes do grupo Protexto acrescentam a abordagem teórica da Linguística
Textual. Esta tese encampa essa ideia de que a Linguística Textual praticada por alguns
pesquisadores no Brasil comunga desses pressupostos pragmático-enunciativos e interacionais,

6
Essa “linguística do discurso” de que fala Amossy é a mesma definida por Maingueneau e Charaudeau (2014, p.
169-172): não corresponde a uma disciplina que estuda o discurso, mas a “uma maneira de apreender a
linguagem” que considera aspectos ligados à enunciação, à interação, à interdiscursividade, à subjetividade, à
textualidade etc.
43

mas que adere à influência das formações discursivas sobre o sujeito, sempre situado sócio-
historicamente.
Declaradamente alinhada também à perspectiva dialógica de linguagem de Mikhail
Bakhtin e seu círculo, a AAD, assim como a Linguística Textual, adota a noção de
responsividade ativa como pressuposto teórico que reforça a ideia de que a argumentação é
inseparável do funcionamento discursivo, de vez que enunciar é, sempre e necessariamente,
responder a um já dito, seja para concordar com ele, seja para refutá-lo ou modificá-lo. Isso
significa que, para se posicionar em relação a um tema, para apresentar um ponto de vista sobre
ele, não é imprescindível que o já dito com o qual dialoga seja expresso nem claramente
identificável, pelo menos não em sua totalidade.

Nessa perspectiva dialógica, a argumentação está, pois, a priori no discurso, na escala


de um continuum que vai do confronto explícito de teses à co-construção de uma
resposta a uma dada questão e à expressão espontânea de um ponto de vista pessoal.
Por isso, cabe ao analista descrever as modalidades da argumentação verbal da mesma
forma que os outros processos linguageiros, e numa estreita relação com eles.
(AMOSSY, 2011a, p. 131).

A tomada do pressuposto dialógico levou Amossy a reformular o conceito de


argumentação da nova retórica, considerada como sendo a busca por “provocar ou aumentar a
adesão dos espíritos às teses que se lhes apresentam ao assentimento” (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 4, grifo dos autores), pelo conceito de argumentação como
sendo “a tentativa de modificar, de reorientar, ou mais simplesmente, de reforçar, pelos
recursos da linguagem, a visão das coisas da parte do alocutário. (...) [a] tentativa de fazer
aderir não somente a uma tese, mas também a modos de pensar, de ver, de sentir”. (AMOSSY,
2011a, p. 130, grifo nosso). Assim, nem todo discurso busca levar seu auditório à adesão de
uma tese (o que pressupõe um posicionamento declarado e claramente definido por parte do
locutor), mas todo discurso tende a orientar os modos de ver, de pensar e de sentir dos
interlocutores. Essa constatação, de base enunciativa e pragmática, resultou na distinção entre
visada argumentativa e dimensão argumentativa, que consistem em modos de organização (ou
modalidades) da argumentatividade no discurso.
Na visada argumentativa, há estratégia programada de persuasão, pois o objetivo
do locutor ao produzir um texto que comporte essa visada é levar o interlocutor a aderir à sua
opinião ou tese sobre o tema debatido. Os gêneros discursivos considerados como tipicamente
argumentativos, tais como o artigo de opinião, a ação judicial, a carta aberta, o debate eleitoral,
entre outros, contém uma visada argumentativa, porque, de maneira expressa e programada,
buscam arregimentar adeptos da opinião defendida no texto. A dimensão argumentativa é muito
44

mais ampla, pois consiste na “tendência de todo discurso a orientar os modos de ver do(s)
parceiro(s)” (AMOSSY, 2011a, p. 131). A existência de dimensão argumentativa requer tão
somente que um ponto de vista se manifeste sob o fundo de posições antagônicas ou
divergentes7, que não precisam ser expressamente formuladas, porque toda enunciação
pressupõe, como já o dissemos, a existência de um já dito ao qual ela responde.
É importante esclarecer que usaremos os termos “tese” e “ponto de vista”
distintamente, para nos referirmos, respectivamente, à opinião estrategicamente defendida por
um locutor com vistas à sua adesão pelo auditório e à expressão de um modo particular de ver
as coisas, que é inerente a todo e qualquer dizer. O ponto de vista é, em outras palavras, uma
perspectivização semiotizada de um dado. A dimensão argumentativa, portanto, abarca
inúmeros textos e variados gêneros discursivos, tais como o romance, o poema, o roteiro de
viagem, a notícia, o artigo científico etc.
Corriqueiramente, tanto no âmbito de teorias da linguagem como no do senso
comum, os discursos que Ruth Amossy considera dotados de visada argumentativa são aqueles
que se considera como sendo “argumentativos”, em oposição aos “não argumentativos”. No
Brasil, uma das práticas discursivas que difundem e solidificam a ideia segundo a qual a
declaração expressa e programada de uma opinião seria condição para a existência de
argumentação é a redação do ENEM. Dentre as orientações oficiais aos candidatos que se
submetem ao exame, está a de que ele “deverá defender uma tese – uma opinião a respeito do
tema proposto –, apoiada em argumentos consistentes” (BRASIL, 2016, p. 7). O Manual de
Redação do ENEM acrescenta, ainda, que o texto dissertativo-argumentativo

é o tipo de texto que demonstra a verdade de uma ideia ou tese. É mais do que uma
simples exposição de ideias. Nessa redação, o participante deve evitar elaborar um
texto de caráter apenas expositivo. É preciso apresentar um texto que expõe um
aspecto relacionado ao tema, defendendo uma posição, uma tese. (BRASIL, 2016, p.
15).

Sem desmerecermos as orientações oficiais relativas à produção de textos


argumentativos nem, tampouco, discordarmos do fato de que há textos nos quais a
argumentação se apresenta com mais explicitude e de maneira mais sistemática, alinhamo-nos
à perspectiva de Amossy, que substitui a oposição “argumentativo” versus “não argumentativo”
pela concepção de modalidades e modos de argumentatividade, e consideramos,
consequentemente, que nenhum texto é neutro do ponto de vista discursivo e argumentativo:

7
É consensual a ideia de que “contra fatos não há argumentos”; portanto, a divergência de pontos de vista é
condição para a existência de argumentação.
45

todo dizer reflete um posicionamento que se pretende fazer prevalecer sobre outro(s), ainda que
o debate seja tácito e latente. Apreender esse posicionamento, no entanto, requer a mobilização
de um conceito nuclear para as análises de discursos: o de interdiscurso.
O interdiscurso é, em sentido restrito, “um espaço discursivo, um conjunto de
discursos (de um mesmo campo discursivo ou de campos distintos) que mantêm relações de
delimitação recíproca uns com os outros”, e em sentido mais amplo, “o conjunto das unidades
discursivas (que pertencem a discursos anteriores do mesmo gênero, de discursos
contemporâneos de outros gêneros etc.) com os quais um discurso particular entra em relação
implícita ou explícita”. (MAINGUENEAU; CHARAUDEAU, 2014, p. 286). A relação,
implícita ou explícita, de um discurso com outros define tanto estes como aquele: o discurso
feminista, sua identidade como tal, apenas se define e delimita em relação ao discurso machista
ao qual aquele se opõe; ao mesmo tempo, é somente em função da emergência de um discurso
feminista que o discurso que lhe faz frente pode ser identificado como machista. É na
divergência, forjada no espaço da interdiscursividade, que ambos os discursos – machista e
feminista – se delimitam e se constituem como tais.
Tomemos o post abaixo como exemplo de texto desprovido de visada
argumentativa, mas cuja dimensão argumentativa pode ser recuperada pela via do interdiscurso.

Exemplo (6)

Fonte: Post recebido por WhatsApp


46

No texto do exemplo (6), não há a defesa de uma tese, mas a orientação do olhar do
interlocutor encontra-se sobre o pano de fundo de diferenças conceptuais e comportamentais
entre homens e mulheres, no que diz respeito ao corpo, estabelecidas social e culturalmente no
seio de uma comunidade considerada machista, que vê com naturalidade o tratamento do corpo
feminino como um objeto (no sentido pejorativo do termo) de admiração e desejo. Assim, o
público feminino (evocado nominalmente pelo vocativo em “E agora meninas”) é chamado a
contemplar as nádegas do ex-jogador de futebol David Beckham – referido no texto por marcas
não verbais (as fotos) e, metonimicamente, por meio de marcas verbais (pelas expressões
referenciais “relógio” e “David Becham” [sic]) – e a agir de modo parecido com os homens,
especificamente os brasileiros, que admiram os corpos das mulheres e que as veem como
objetos. Ao mesmo tempo em que o post que circulou por WhatsApp admite o pressuposto
dóxico de que o bumbum é “uma paixão nacional”, ele reage ao discurso machista que coloca
o corpo feminino na categoria de objeto e que, sendo assim concebido, dispensa o respeito para
ser admirado. O modo respeitoso com que o auditório é chamado a contemplar o
“relógio”/bumbum de David Beckham é evidenciado no texto pela expressão “um minuto de
silêncio”; o texto é também jocoso, na medida em que “disfarça” o real propósito de
compartilhar da admiração pelo bumbum do ex-futebolista, por meio da menção explícita ao
relógio dele. Temos, então, um texto que responde a discursos que lhe são anteriores e que
dizem respeito ao estatuto do corpo em uma sociedade na qual homens e mulheres tentam
impor, cada um, sua visão de mundo. Essa interdiscursividade faz com que o post de redes
sociais, como o WhatsApp, figure entre aqueles textos de dimensão argumentativa, pois ele
busca influenciar os modos de ver e de pensar do auditório, atualizando um tema de interesse
social sem, no entanto, defender explicitamente uma opinião sobre tal tema.
Essa distinção entre visada argumentativa e dimensão argumentativa dá o tom de
uma análise argumentativa preocupada com a elaboração de um quadro teórico e metodológico
que permita apreender a argumentação em suas dimensões propriamente discursivas, nos mais
variados corpora (AMOSSY, 2006). Esta é uma razão fundamental para que este pressuposto
seja adotado por pesquisadores da Linguística Textual, como o fazemos nesta tese. O foco da
abordagem de Amossy recai sobre os funcionamentos discursivos da argumentação, razão pela
qual é dado um lugar de destaque aos gêneros discursivos e aos recortes institucionais da fala
em situação. Para cumprir com esse papel, Amossy (2006) explicita os princípios conceituais
que caracterizam sua abordagem como sendo, ao mesmo tempo, linguageira, comunicacional,
dialógica e interacional, genérica, estilística e textual.
47

A AAD (AMOSSY, 2006, p. 31-32) é linguageira no sentido de que não se limita


ao desvendamento das operações lógicas e dos raciocínios subjacentes aos discursos, ocupando-
se também dos meios que a linguagem oferece para a construção do discurso argumentativo:
escolhas lexicais, quadros formais da enunciação, dêiticos, conectores, topoï (de Ducrot),
pressuposições, subentendidos. É uma abordagem comunicacional porque analisa o discurso
em relação ao auditório ao qual é dirigido e à circunstância comunicativa na qual ele é
produzido. Ela é também dialógica e interacional, porque concebe todo discurso como sendo
uma reação a um já dito que tem como fim agir sobre o outro, ao qual ele busca adaptar-se.
Trata-se de uma abordagem genérica, já que qualquer texto, seja ele de visada ou de dimensão
argumentativa, se inscreve em algum gênero do discurso, enquanto este, considerado pela
sociedade que o institucionaliza, determina os objetivos, os quadros enunciativos e uma
distribuição prévia dos papéis dos interlocutores. Caracteriza-se como uma abordagem
estilística, por considerar que o discurso argumentativo pode recorrer a figuras e a efeitos de
estilo para envolver o auditório, principalmente nos discursos de visada argumentativa. Por fim,
configura-se como uma abordagem textual, já que são os procedimentos de ligação entre
enunciados, formando um todo coerente, que comandam o desenvolvimento do discurso
argumentativo.
Quanto a este último princípio, o de uma abordagem textual, parece-nos pertinente
discutir em que termos o texto é considerado, no interior da AD e da AAD, como uma das vias
para a apreensão do discurso e de sua argumentatividade, tendo em vista que nosso propósito é
demonstrar como vários dos critérios adotados pela LT podem contribuir para uma análise da
argumentação no discurso, via textos.
Todas as disciplinas que respondem pela alcunha de “análise de (ou do) discurso”,
qualquer que seja sua orientação ou filiação teórica e metodológica (francesa, materialista,
crítica), estudam o discurso a partir de textos. Para a AD francesa pautada nos escritos de Michel
Pêcheux, o discurso é “efeito de sentidos entre os interlocutores” e sua apreensão só é possível
pela análise do funcionamento da língua, mas não da língua como um código transmitido por
um enunciador e apreendido por um destinatário, e sim do linguístico determinado por uma
exterioridade histórica e social que lhe é constitutiva (ORLANDI, 2015, p. 16). É somente na
relação entre o discurso e suas condições de produção que ele pode ser apreendido e analisado,
por isso,

A análise de discurso tem como unidade o texto. O texto não visto como na análise de
conteúdo, em que se o atravessa para encontrar atrás dele um sentido, mas
discursivamente, enquanto o texto constitui discurso, sua materialidade. Assim se
procura ver o texto em sua discursividade: como em seu funcionamento o texto produz
48

sentido. E entender isso é compreender como o texto se constitui em discurso e como


este pode ser compreendido em função das formações discursivas que se constituem
em função da formação ideológica que as determina. (ORLANDI, 2015, p. 19).

Na perspectiva desenvolvida por Dominique Maingueneau, o texto é considerado


“como uma forma de gestão do contexto, de modo que o dispositivo enunciativo não é algo
exterior ao enunciado, mas ao mesmo tempo o constitui e é constituído por ele” (MUSSALIM,
2016, p. 63). É o texto, portanto, que deve ser tomado como unidade de análise para a apreensão
do funcionamento discursivo na abordagem de Maingueneau, como na de Pêcheux,
diferenciando-se basicamente por não primar pelo conceito de ideologia, como este autor o
fazia, fortemente influenciado por Althusser.
Qual seria, então, a diferença entre o procedimento metodológico de análise da
argumentação operado pela AD (e pela AAD) e o operado pela LT, se ambas analisam textos?
A primeira distinção reside na centralidade desse objeto nas análises da LT, dada a
preocupação nuclear da disciplina em descrever e compreender as estratégias de textualização
pelas quais os interlocutores evidenciam seus propósitos comunicativos (CAVALCANTE,
2016). Na AD e, por consequência, na AAD, o texto é imprescindível à análise do
funcionamento discursivo (por isso, é unidade de análise), mas sua organização não é, em si
mesma, o objeto de suas investigações. Seu objeto de investigação é o discurso. Situando o
discurso no imbricamento entre texto e contexto, seu objeto de análise é, mais especificamente,
o dispositivo de enunciação pelo qual se estabelece a relação reciprocamente constitutiva entre
um texto e um lugar social/institucional determinado (AMOSSY, 2011a; MAINGUENEAU,
CHARAUDEAU, 2014). Assim, o analista do discurso extrai, da unidade texto, os elementos
(itens lexicais, dêiticos, semas etc.) que lhe pareçam pertinentes à apreensão de um discurso e
do interdiscurso no interior do qual ele emerge. Isso significa que a análise de um discurso pela
AD, diferentemente da análise de um texto pela LT, não se ocupa da compreensão do que faz
com que um texto seja um texto, isto é, não se preocupa em descrever e analisar o que confere
a um dizer sua unidade de coerência, mas sim em compreender como o linguístico e o social se
constituem mutuamente a partir da materialização dessa relação em textos.
A segunda distinção é de natureza conceptual: a AAD concebe texto como
“conjunto coerente de enunciados que formam um todo” e a textualização como o
desenvolvimento do texto comandado por “processos de ligação” (AMOSSY, 2006, p. 32).
Assim, o trabalho analítico da AAD adota geralmente categorias de análise que equiparam
textual a verbal (o que exclui o não verbal da unidade texto) e que se limitam aos “processos
de ligação” entre partes materializadas do texto (marcas lexicais, morfossintáticas e
49

morfossemânticas), ou seja, se limitam a aspectos pontuais do cotexto. Na LT, o conceito de


texto como um conjunto de frases ou de enunciados sequencialmente ligados já foi reformulado
há algum tempo, em consequência dos diálogos estabelecidos com outras teorias, especialmente
com as de base sociodiscursiva e sociocognitiva. Texto, para a LT na qual nos encontramos, é

uma abstração, um enunciado que tem uma unidade negociada e contextualizada de


coerência, além de ter início, meio e fim. Essa unidade de sentidos – objeto de análise
da LT – é abstraída das relações dialogais e dialógicas e define seus limites, como
texto, quando acontece como evento comunicativo único, irrepetível e conclusivo.
(CAVALCANTE, 2016, p. 114, grifo da autora).

As consequências metodológicas desse conceito nas pesquisas em LT têm sido:


a) não mais considerar os sentidos como resultantes de um processamento cognitivo
que exija a mobilização de conhecimentos estritamente linguísticos (o cotexto/a superfície
textual não diz tudo; ela quase sempre manifesta evidências que servem como gatilho para o
acionamento de conhecimentos de outras naturezas, como o enciclopédico, que não se
manifestam explícita e integralmente na superfície, mas que participam da construção da
coerência);
b) no rastro da consequência anterior, considerar a unidade de sentidos como não
sendo uma prerrogativa da língua, mas como resultante de uma negociação entre os parceiros
da interação, o que coloca os pesquisadores da LT na condição de serem, antes de analistas de
textos, leitores de textos;
c) considerar o contexto como fator intrínseco e inseparável do cotexto, pois é
somente nessa imbricação que se pode apreender a negociação e a construção dos sentidos. Por
isso, a LT situa-se metodologicamente entre pesquisas descritivas e pesquisas discursivas
(CAVALCANTE, 2016, p. 118).
Para a AAD, é o estudo da materialidade linguageira considerada no contexto de
sua enunciação que permite apreender a argumentação no discurso (AMOSSY, 2011a). Esse
estudo também permite que os meios de persuasão da retórica clássica – ethos, pathos e logos
– sejam retomados e analisados na ligação dos textos com a situação discursiva particular em
que as estratégias de persuasão são utilizadas. Neste ponto, ressaltamos a proficuidade da
interface que ora propomos entre a LT e a AAD, dado o interesse de ambas em investigar e
compreender a inscrição da argumentação, respectivamente, no texto e no discurso.
Nas palavras de Amossy (2011a, p. 134), a AAD:

1. Estuda os argumentos em língua natural, na materialidade do discurso, como


elemento integrante de um funcionamento discursivo global
50

2. Situa a argumentação, assim compreendida, em uma situação de enunciação


precisa, da qual importa conhecer todos os elementos (participantes, lugar,
momento, circunstâncias etc.)
3. Estuda a maneira como a argumentação se inscreve no interdiscurso, situando-se,
quanto ao que se diz, antes e no momento da tomada da palavra, no modo da
retomada, da modificação, da refutação, do ataque...
4. Leva em conta a maneira como o logos, ou o emprego de argumentos em língua
natural, alia-se, concretamente, ao ethos, a imagem de si que o orador projeta em
seu discurso, e ao pathos, a emoção que ele quer suscitar no outro e que também
deve ser construída discursivamente.

Essa abordagem da argumentação, portanto, é essencialmente discursiva, porque


relaciona, necessariamente, o uso da linguagem, materializado em textos, aos lugares sociais e
às restrições institucionais que lhe imprimem força e legitimidade. Nosso intento é estabelecer
um diálogo entre a LT e a AAD que permita apreender a argumentação no discurso, via textos,
de modo que os postulados retóricos e discursivos adotados pela AAD sejam articulados a
categorias adotadas pela LT para a análise da textualidade. O estabelecimento desse diálogo
recairá principalmente sobre a análise, pautada em elementos textuais, das diferentes maneiras
pelas quais é possível argumentar, desde aquela que prevê tão somente a manifestação orientada
de um ponto de vista até aquela em que duas teses se contrapõem radicalmente e à qual Amossy
chama de polêmica. É sobre a polêmica que nos debruçaremos a partir deste ponto.

2.3 A polêmica como modalidade argumentativa

Afirmamos anteriormente que Ruth Amossy concebe a argumentação, no interior


da AAD, como a tentativa de levar o alocutário não somente à adesão de uma tese, como
também a modos de ver, de sentir e de pensar. Assim, há textos que apresentam visada
argumentativa – que expressam uma tese com vistas à persuasão – e outros que comportam, tão
somente, uma dimensão argumentativa – que direcionam a percepção do(s) interlocutor(es)
para uma certa perspectiva das coisas. Tal concepção substitui a divisão de discursos entre
“argumentativos” versus “não argumentativos” pela noção de graus ou modos de
argumentatividade, que poderiam ser dispostos em um continuum, que iria da manifestação
orientada, mas não declarada, de um ponto de vista ao confronto rigoroso de opiniões ou teses,
passando pela construção negociada de uma resposta a um problema controverso. Estudar a
manifestação desses diferentes modos de argumentatividade no discurso requereu de Amossy
a elaboração de uma categoria teórica que permitisse esclarecer, nas análises, a implicação da
situação e do dispositivo de enunciação com o modo particular de verbalização do ponto de
51

vista ou da tese manifestada no e pelo discurso. A noção de “modalidade argumentativa” foi


elaborada para atender a essa demanda.
Modalidades argumentativas são estruturas globais de troca/interação
argumentativa, são “tipos de troca argumentativa que, atravessando os gêneros do discurso,
modelam a forma como a argumentação funciona num quadro tanto dialogal quanto dialógico”
(AMOSSY, 2008, p. 232). Essas diferentes maneiras de argumentar são caracterizadas com
base nos seguintes parâmetros: i) os papéis desempenhados pelos participantes no dispositivo
enunciativo (parceiros, adversários); ii) a maneira pela qual ocorre a tentativa de persuasão
(apaixonada, racional, colaborativa, instrutiva); e iii) o modo como o interlocutor é concebido
(ser de razão e/ou de sentimento, aluno ou discípulo, cúmplice ou rival etc.).
Amossy (2008) apresenta algumas possíveis modalidades argumentativas,
apontando gêneros discursivos que as privilegiam. São elas:
a) Modalidade demonstrativa: é aquela em que o locutor busca a adesão do(s)
interlocutor(es) apresentando uma tese/uma opinião, em um discurso
monogerido ou dialogal, com base em raciocínio apoiado em provas. São
exemplos de gêneros nos quais essa modalidade é recorrente: a redação do
ENEM, o artigo de opinião, o debate eleitoral, etc.;
b) Modalidade patêmica: é a modalidade caracterizada fundamentalmente pelo
apelo aos sentimentos8 do auditório para angariar sua adesão à tese ou ao ponto
de vista apresentado. Estes gêneros privilegiam a modalidade patêmica: o apelo
à ajuda humanitária, o poema lírico, a declaração de amor, entre outros;
c) Modalidade pedagógica: é a da transmissão de um saber por um locutor
autorizado a fazê-lo a um auditório que se encontra na condição de aprendiz. O
modo de manifestação dessa troca também pode ser, como nas modalidades

8
O adjetivo “patêmico” deriva de “pathos”, uma das provas aristotélicas da argumentação retórica, mas a
modalidade argumentativa “patêmica” não dever ser confundida com o próprio pathos nem com o que Amossy
denomina de “registro discursivo patêmico”. Na modalidade, temos uma estrutura de troca argumentativa
prototipicamente patêmica, em que o apelo (direto ou indireto) ao sentimento do auditório é constitutivo do gênero,
como é o caso do apelo à ajuda humanitária. O registro discursivo é o “tom particular mobilizado [...] para
assegurar o sucesso da fala persuasiva” (AMOSSY, 2008, p. 239). O pathos corresponde aos sentimentos do
auditório; tocar os sentimentos do auditório não requer, necessariamente, que o “tom” do discurso seja apaixonado.
Um locutor pode recorrer à razão para alcançar esse objetivo, como, por exemplo, ao afirmar “O PIB do Brasil foi
de mais de R$ 6 trilhões em 2016, o que daria uma média per capita em torno de R$ 30 mil/ano. A miséria, no
entanto, atinge mais de dez milhões de brasileiros...”. Recorrendo ao princípio da não contradição, por meio de
argumento reductio ad absurdum (O Brasil é um país rico/A distribuição igualitária de sua riqueza impossibilitaria
a miséria/O Brasil tem uma massa considerável de miseráveis), o locutor desse enunciado supõe que: i) o auditório
compartilha do valor da igualdade e, sendo assim, ii) ele ficará indignado ao saber que a distribuição de renda no
Brasil é muito desigual. O tom da afirmação não é patêmico, mas há um investimento no pathos, na medida em
que o reconhecimento da desigualdade socioeconômica extrema pode levar o auditório a sentir indignação.
52

anteriores, monogerido ou poligerido. Gêneros como o manual escolar, a aula,


a palestra, a história de literatura infantil, entre outros, são exemplos
prototípicos de ocorrência dessa modalidade;
d) Modalidade de coconstrução: é aquela em que os participantes levantam
conjuntamente uma questão e, da mesma forma, buscam resolvê-la, por meio
de uma interação dialogal. A reunião profissional, a reunião de colegiado, a
conversação familiar são exemplos de gêneros que privilegiam essa
modalidade;
e) Modalidade negociada: é o tipo de troca em que os participantes debatem sobre
um problema que os divide, mas para o qual estão dispostos a buscar e a
estabelecer um acordo, por meio de uma negociação das divergências. As
negociações comerciais, as trocas diplomáticas, as audiências de conciliação,
entre outros, são gêneros que privilegiam a modalidade negociada;
f) Modalidade polêmica: a última modalidade apontada por Amossy (2008) nessa
lista é a caracterizada pela confrontação de teses antagônicas, em que se tenta
desacreditar o opositor. Ela tornou-se objeto de investigação sistemática em
uma pesquisa sobre o discurso polêmico na esfera democrática, realizada por
Amossy e sua equipe, da qual derivou a obra Apologie de la polémique
(AMOSSY, 2014), em que nos basearemos para apresentar, mais detida e
detalhadamente, a concepção de polêmica no escopo da AAD.
A persistência da polêmica no espaço público das sociedades democráticas, apesar
de sua má reputação (ela é frequentemente condenada por ser considerada parcial, violenta e
apaixonada), e a falta de investigação mais profunda sobre seu papel social levaram Amossy a
uma explicação sobre o fenômeno que não o reduzisse à incapacidade dos cidadãos de gerir os
desacordos com racionalidade, nem ao afã das mídias por atrair e satisfazer seu público
oferecendo-lhe episódios de violência verbal como espetáculo. No intuito de imprimir
consistência ao estudo sobre a natureza dos debates conflituosos e sobre a manutenção da
democracia em sociedades pluralistas, a obra de Amossy (2014) analisa casos concretos de
trocas polêmicas e aponta aspectos relevantes para a compreensão do funcionamento e das
funções da polêmica no espaço público democrático.
A primeira e mais reconhecida característica da polêmica é o choque de opiniões
antagônicas. Enquanto, nas teorias retóricas, o desacordo é parte do circuito da argumentação,
mas como uma etapa a ser superada em prol do consenso para a tomada de decisões comuns,
na polêmica, ele é pujante, tornando remotas as possibilidades de se chegar a um acordo. Em
53

sociedades democráticas pluralistas, nas quais a liberdade de expressão é tomada como


princípio e é constantemente reivindicada em casos de profundas dissonâncias de opiniões, o
dissenso9 se manifesta abertamente, deixando entrever projetos de sociedade que são
inconciliáveis, e “a polêmica preenche funções sociais importantes, precisamente em razão do
que é geralmente criticado nela: uma gestão verbal do conflito realizada sob o modo da
dissensão” (AMOSSY, 2014, p. 12)10. Por permitir a coexistência no dissenso, sem que se
recorra à violência física, e por preencher funções das quais trataremos ao longo desta seção, é
que Amossy classifica sua obra como uma apologia da polêmica, mais do que um estudo desse
fenômeno.
Para compreendermos o funcionamento da polêmica, é preciso antes de tudo
relembrar o motivo pelo qual o acordo e o logos (como palavra e razão) são centrais na retórica.
O logos retórico assenta-se, por definição, não no racional, mas no razoável, que se liga em
parte ao senso comum e, por isso, “representa aquilo que parece plausível a uma dada
comunidade em função de suas crenças e de seus valores – o que lhe parece dever ser aceito
por todo ser de bom senso” (AMOSSY, 2011b, p. 3). Nessa perspectiva, a função das trocas
verbais é possibilitar a negociação das diferenças de opiniões a respeito de uma dada questão
política11 e viabilizar o estabelecimento de um consenso, mesmo que volúvel, com vistas à
solução de um problema comum e à superação das diferenças, sem recorrer à violência física.
Chegar a um consenso a respeito do que seria razoável em relação a certo problema de
sociedade requer o compartilhamento de premissas com o auditório ao qual o orador se dirige
e que tenta persuadir. Assim, o acordo entre orador e auditório é tanto condição prévia como é
subjacente ao empreendimento de persuasão, ao longo do qual o discurso constrói argumentos
que buscam conformarem-se às premissas que repousam nos valores e nas crenças que
governam as escolhas desses sujeitos. Sob o prisma retórico do logos como discurso razoável
destinado ao estabelecimento de um consenso, a polêmica é destituída de legitimidade em
termos de argumentação, na medida em que se funda no dissenso e, portanto, comporta opiniões
antagônicas difíceis de serem conciliadas e de levarem a uma decisão comum.

9
O dissenso/a dissensão é mais do que o desacordo; é “uma profunda, até mesmo violenta, diferença de opiniões”
(AMOSSY, 2014, p. 17, tradução nossa).
10
Daqui em diante, as citações de trechos da obra Apologie de la polémique (AMOSSY, 2014) serão retiradas da
tradução realizada por Mônica Magalhães Cavalcante, Mariza Paiva Brito et al., todos integrantes do Grupo
PROTEXTO, e que foi publicada em 2017 pela Editora Contexto com o título Apologia da polêmica.
11
O termo “política(o)”, na teoria de Ruth Amossy, assim como nas teorias retóricas, remete ao grego polis, sendo
usado no sentido de “tudo que diz respeito aos assuntos públicos e ao bem da comunidade” (AMOSSY, 2014, p.
19).
54

Amossy (2014) chama a atenção para a assimilação que Perelman e Olbrechts-


Tyteca fazem do “debate” à erística no trecho a seguir (que optamos por retirar da obra que
temos referido ao longo desta tese), para corroborar sua afirmação de que “A Nova Retórica se
esforça por desacreditar os tipos de interação que não são suscetíveis de conduzir a uma adesão
dos espíritos” (AMOSSY, 2014, p. 22):

o diálogo, tal como é focalizado aqui, não deve constituir um debate, em que
convicções estabelecidas e opostas são defendidas por seus respectivos partidários,
mas uma discussão, em que os interlocutores buscam honestamente e sem
preconceitos a melhor solução de um problema controvertido. Opondo ao ponto de
vista erístico o ponto de vista heurístico, certos autores contemporâneos apresentam a
discussão como o instrumento ideal para chegar a conclusões objetivamente válidas.
Supõe-se que os interlocutores, na discussão, não se preocupam senão em mostrar e
provar todos os argumentos, a favor ou contra, atinentes às diversas teses em presença.
A discussão, levada a bom termo, deveria conduzir a uma conclusão inevitável e
unanimemente admitida, se os argumentos, presumidamente com mesmo peso para
todos, estivessem dispostos como que nos pratos de uma balança. No debate, em
contrapartida, cada interlocutor só aventaria argumentos favoráveis à sua tese e só se
preocuparia com argumentos que lhe são desfavoráveis para refutá-los ou limitar-lhes
o alcance. O homem com posição tomada é portanto parcial, tanto por ter tomado
posição como por já não poder fazer valer senão a parte dos argumentos pertinentes
que lhe é favorável, ficando os outros, por assim dizer, gelados e só aparecendo no
debate se o adversário os aventar. Como se supõe que este último adote a mesma
atitude, compreende-se que a discussão seja apresentada como uma busca sincera da
verdade, enquanto, no debate, cada qual se preocupa sobretudo com o triunfo de sua
própria tese. (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, 41-42).

Os autores assumem a dificuldade em diferenciar “discussão” de “debate”,


principalmente pelo reconhecimento de que há situações em que os participantes desempenham
papéis institucionalmente regulamentados, como no caso do advogado, cuja obrigação
profissional de defender ou de acusar imputa-lhe o compromisso com uma tese que deve ser
mantida e defendida do início ao fim de um processo ou julgamento. Há que se diferenciar esse
quadro daquele em que “a falha [na busca por um acordo] pode eventualmente ser imputada à
atitude obstinada de um dos participantes, mais que a uma derrota geral dos procedimentos
racionais” (AMOSSY, 2014, p. 30-31). Ocorrências deste tipo, sem dúvida, existem, mas há
aquelas em que a insistência do desacordo não reside na simples obstinação de um debatedor
nem na condição imposta por regulamentação institucional. São os casos em que a divergência
radical de opiniões leva à instauração de uma polêmica. Acusada de irracionalidade justamente
por não conduzir a um consenso, a polêmica não é desprovida de razoabilidade; ao contrário,
ela consiste no confronto de posições antagônicas que sustentam teses contrárias, mas ambas
razoáveis, em conformidade com as regras de raciocínio da retórica. A diferença entre uma
polêmica, que mantém o dissenso, e a argumentação retórica que resulta em uma opinião
55

comum é que nesta há um acordo de base, enquanto, naquela, há desacordo profundo, no termo
de Robert Fogelin (cf. AMOSSY, 2014).
A ideia de desacordo profundo é crucial para compreendermos os traços definidores
da polêmica, porque ela remete ao avesso daquela condição prévia da argumentação retórica
que se funda em um acordo sobre valores, fatos, verdades e outras crenças partilhadas entre
aqueles que debatem com vistas a uma deliberação. Entre os sujeitos que discutem uma questão
polêmica, não há partilha de valores e de crenças, portanto a polêmica não preencheria as
condições necessárias à argumentação retórica, o que justifica esta afirmação de Fogelin (2005
[1985] apud AMOSSY, 2014, p. 30): “Minha tese, ou melhor, a de Wittgeinstein, é que os
desacordos profundos12 não podem ser resolvidos pelo uso de argumentos, porque eles minam
as próprias condições que autorizam a argumentação”.
Façamos uma exemplificação das ideias de acordo retórico e de desacordo
profundo, analisando textos. Primeiro, vamos ilustrar o acordo retórico e a argumentação que
se fundamenta nele. Para isso, selecionamos uma tirinha da personagem Mafalda, de Quino, em
que a menina busca “acalmar” sua mãe usando de uma argumentação pelo exemplo. O
argumento pelo exemplo consiste na invocação de casos particulares que levam a uma
generalização (uma conclusão geral a ser tomada como regra) ou a uma conclusão particular
(argumentação do particular ao particular, segundo PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,
2005).

Exemplo (7)

Fonte: https://marceloamil.files.wordpress.com/2011/01/001.jpg Acesso em 04/05/2017.

12
Amossy (2014) adere à noção de desacordos profundos como algo que inviabiliza o alcance de um consenso,
mas adota a denominação de dissensos, em distinção aos desacordos constitutivos da argumentação retórica, cf.
antecipamos na nota de número 10.
56

O raciocínio de Mafalda, que se apresenta sob a forma de um exemplo, pode ser


reformulado pelas proposições: “Minha mãe é uma mulher frustrada e medíocre” (expressa no
texto), “Minha mãe estudou pouco” (não expressa no texto), que levam, por indução, à
conclusão: “Logo, toda mulher que estuda pouco é frustrada e medíocre”. A mãe serve de
exemplo à conclusão de que a não dedicação aos estudos acarreta em fracasso e de que,
portanto, Mafalda deve estudar bastante (do ensino básico à universidade, etc.) para não repetir
o exemplo da mãe. A conclusão retira sua força do lugar da quantidade (estudar mais é
preferível a estudar menos); já estamos falando, aqui, de acordo prévio (ver a subseção sobre a
nova retórica). Além do apelo ao lugar da quantidade, o raciocínio de Mafalda também está
fundamentado na crença de que Educação e Conhecimento são valores partilhados com sua
mãe. É a projeção que Mafalda (como oradora) faz de sua mãe (na condição de auditório), como
sujeito que valoriza a Educação e o Conhecimento e que concorda que o mais é preferível ao
menos, que leva a menina a invocar as premissas apontadas acima e a pensar que foi persuasiva,
isto é, que alcançou com êxito o propósito de “acalmar” sua mãe.
A tese contrária à de Mafalda seria obtida pela relativização da regra geral, que
resultaria na conclusão: “Estudar pouco não acarreta necessariamente fracasso no futuro”
(negar por completo a relação entre o pouco estudo e o fracasso no futuro não seria razoável
em uma sociedade que valoriza Educação e Conhecimento). Para sustentar essa tese, um orador
poderia recorrer a exemplos de exceções, cujo efeito seria o de restringir o campo de aplicação
da regra geral. Um exemplo de exceção à generalização em tela seria o empresário Eike Batista,
que, segundo o site da revista Veja, afirmava não ter curso superior “com certa dose de orgulho,
uma prova de que sua aptidão empresarial era algo natural”13. A tese “Estudar pouco não
acarreta necessariamente fracasso futuro”, no entanto, funda-se nos mesmos termos do acordo
prévio subjacente à tese “Estudar pouco acarreta fracasso futuro”: para ambas, Educação e
Conhecimento são valores partilhados pelos sujeitos que estão implicados nesses
empreendimentos argumentativos, tanto é que, no caso de um exemplo que resulte em efeito
contrário, esse efeito deve ser justificado, como ocorre com Eike Batista. Ao atribuir sua aptidão
empresarial a uma capacidade particular, ele sugere que não se enquadra na regra geral, mas
não nega a premissa de que quanto menor for o grau de instrução de uma pessoa, menores são
suas chances de sucesso.

13
Disponível em <http://veja.abril.com.br/blog/radar-on-line/eike-batista-nao-tem-curso-superior/>. Acesso em
06 de maio de 2017.
57

Para ilustrar o desacordo profundo, selecionamos o exemplo (8), uma notícia sobre
a polêmica em torno da descriminalização do aborto, publicada no site do Senado brasileiro
sobre audiência pública realizada em abril de 2016.

Exemplo (8)
Descriminalização do aborto volta a causar polêmica em Comissão
Da redação | 28/04/2016, 18h59 – ATUALIZADO EM 29/04/2016, 10h04

A legalização do aborto até as doze primeiras semanas de gestação foi tema de mais um debate na Comissão de
Direitos de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH). Na audiência pública desta quinta-feira (28),
feministas e advogadas defenderam a regulamentação e o direito de escolha das mulheres, com base em sua
dignidade e autonomia. Militantes de grupos pró-vida, contrários ao aborto, rejeitaram enfaticamente a proposta,
a partir da visão de que a vida começa na concepção e desde esse momento deve ser protegida.

Esse foi o quinto debate realizado pela comissão para instruir a análise da Sugestão 15/2014, proposta de iniciativa
popular recebida pelo Senado, que contou com mais de 20 mil manifestações de apoio pelo sistema e-Cidadania.
Pelo texto, a interrupção voluntária da gravidez dentro das doze primeiras semanas deve ser garantida por meio do
sistema público de saúde.

A audiência foi solicitada pelo senador Magno Malta (PR-ES), que dirigiu a maior parte da reunião, aberta pelo
presidente da CDH, Paulo Paim (PT-RS).

Inconstitucionalidade
A advogada Eloísa Machado de Almeida lembrou decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) a respeito de temas
controversos como a questão das células-tronco e a extensão do aborto a grávidas de fetos anencéfalos. Segundo
ela, nesses casos ficou evidente o respeito aos princípios da dignidade humana e da autonomia, os mesmos que,
na sua avaliação, devem ser aplicados à questão do aborto. Por isso, concluiu que criminalizar a prática é
inconstitucional.

— Mas não basta deixar de criminalizar. É preciso que, por demanda constitucional, se garanta a criação de
políticas públicas de saúde que garanta esse direito a todas as mulheres que assim desejarem optar — afirmou.

A ativista feminista Leila Linhares, também advogada, observou que as cortes constitucionais internacionais, ao
tratar do aborto, estão tendendo à regulamentação da prática dentro de doze semanas. Observou ainda que o próprio
Código Penal brasileiro, de 1940, já mostra que a vida não é um valor absoluto, estando sujeito a regras de
ponderação.
58

Um exemplo dessa gradação de valores no código, segundo Leila, está na regulamentação do aborto em caso de
gravidez de risco ou quando resultar de violência. A seu ver, esse tipo de norma mostra que o que está em jogo
não é negar que o embrião tenha vida ou direito, mas sim que a saúde física e mental da mulher está acima disso.

Condenação
Para as ativistas “pró-vida”, os argumentos que relativizam o valor da vida do embrião são inaceitáveis. Para
Rosemeire Santiago, o melhor significado para a palavra “mulher” é a concepção da vida. Em São Paulo, ela dirige
o Centro de Reestruturação para a Vida, que apoia mulheres que passam por uma gravidez indesejada. O centro já
atendeu mais de 9 mil mulheres, 5 mil das quais com resultado positivo para a gravidez indesejada. Por conta do
trabalho feito, segundo disse, apenas 1% delas mantiveram a ideia de abortar.

Doris Hipólito, também [sic] contraria ao aborto, fundou e dirige no Rio de Janeiro as Casas de Amparo às
Gestantes do Rio de Janeiro. Ela mostrou na audiência um vídeo em que diversas mulheres contam de sua
desistência de abortar depois de buscar apoio da instituição, cujo trabalho envolveria atenção [sic] medica e
capacitação profissional para as mulheres. Assim como Rosemeire, Doris detalhou pormenores de modalidades de
aborto e descreveu tipos de sequelas que afirmou serem comuns entre as mulheres que recorrem ao ato.

— Nenhuma mulher é capaz de fazer um aborto se conhecesse a monstruosidade que é essa prática. A mulher que
tem informação não recorre a esse crime, a esse genocídio — disse.

Estudos

A médica obstetra Melânia Amorim trouxe dados de pesquisas que reforçam o ponto de vista sobre a necessidade
de descriminalização do aborto, como parte de uma política pública de saúde. Segundo ela, uma a cada cinco
mulheres aos 40 anos já terá feito pelo menos um aborto.

Para classes sociais desfavorecidas, segundo a médica, a alternativa tem sido recorrer a procedimentos com
profissionais que atuam clandestinamente, colocando sua saúde e vida em risco. No mundo, afirmou, 15% das
mortes maternas decorrem de abortos inseguros.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)

Fonte: http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/04/28/descriminalizacao-do-aborto-
volta-a-causar-polemica-em-comissao. Acesso em 06/05/2017.

Essa notícia, por tratar declaradamente de uma questão polêmica, expõe o confronto
entre duas posições antagônicas sobre a legalização e a descriminalização do aborto, uma
favorável e outra contrária à proposta de que “a interrupção voluntária da gravidez dentro das
doze primeiras semanas deve ser garantida por meio do sistema público de saúde”. O grupo
favorável à proposta é representado por feministas e advogadas que apontam a
“inconstitucionalidade” da restrição do direito de escolha da mulher quanto a dar ou não
prosseguimento a uma gestação indesejada. Dessa tese, podemos abstrair dois valores que a
fundam: a Justiça e a Liberdade; valores aos quais se apela para argumentar que criminalizar
e/ou restringir o aborto é inconstitucional porque essa prática é uma expressão dos princípios
constitucionais da autonomia e da dignidade humana. Para sustentar tal tese, o grupo pró-aborto
lançou mão, principalmente, de duas técnicas argumentativas: a regra de justiça, segundo a qual
o que vale para A deve valer para B, o que “requer a aplicação de um tratamento idêntico a
seres ou a situações que são integrados numa mesma categoria” (PERELMAN; OLBRECHTS-
TYTECA, 2005, p. 248); e o argumento de autoridade, “o qual utiliza atos ou juízos de uma
59

pessoa ou de um grupo de pessoas como meio de prova a favor de uma tese” (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 348). Quando Eloísa Machado de Almeida evoca decisões
anteriores do STF favoráveis ao uso de células-tronco e ao aborto de fetos anencéfalos, por
“respeito aos princípios da dignidade humana e da autonomia”, a advogada coloca esses temas
e o tema da descriminalização do aborto até a décima segunda semana de gestação na mesma
categoria de “temas controversos” e reivindica que todos recebam o mesmo tratamento jurídico,
ou seja, que o respeito aos princípios aventados por ela sejam aplicados também à questão
debatida na reunião da CDH. O argumento de autoridade é o da médica obstetra Melânia
Amorim, que apresentou dados os quais, segundo ela, corroboram a tese de que a criminalização
do aborto e a falta de assistência médica e hospitalar às mulheres que abortam clandestinamente
têm acarretado um número considerável de mortes pelo mundo. É a ciência que comprova, pela
voz de uma médica obstetra, a razoabilidade dessa tese.
O grupo representado por militantes pró-vida, por outro lado, funda seus
argumentos no valor da Vida, alegando que “a vida começa na concepção e desde esse momento
deve ser protegida”. A principal técnica utilizada por este grupo é a do argumento pragmático,
“que permite apreciar um ato ou um acontecimento consoante suas consequências favoráveis
ou desfavoráveis” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 303). Quando Doris
Hipólito detalha “pormenores de modalidades de aborto” e descreve “tipos de sequelas que
afirmou serem comuns entre as mulheres que recorrem ao ato”, ela tenta persuadir o auditório
pela ideia de que o aborto é um ato criminoso porque suas consequências são nefastas. A
solução para o impasse sobre o qual se debate seria, então, garantir o acesso à informação e ao
conhecimento, pelas mulheres, sobre as consequências dessa prática.
Conforme veremos adiante, “é na circulação dos discursos que se constrói a
polêmica como conjunto de confrontações verbais sobre uma questão social”, de modo que os
posicionamentos em torno dessa questão social controversa ocorrem sob o modo de “uma
disseminação incessante e até um pouco anárquica da fala polêmica” (AMOSSY, 2014, p. 105,
grifos nossos). Assim, no texto do exemplo (8), não se encontram todos os argumentos que
circulam em relação a essa questão polêmica. Em muitos outros textos sobre o mesmo tema,
encontram-se argumentos que se assentam não só na Vida, mas também no Cristianismo como
um valor no qual se esteia a tese de que o aborto não deve ser admitido em hipótese alguma.
Vemos, portanto, que o desacordo entre os dois grupos que debatem está na raiz de cada tese,
ou seja, está naquilo que as funda: os valores que se supõe serem partilhados pela sociedade na
qual a questão, de interesse público, está em vias de ser “resolvida” por força de lei. A ideia de
“resolver a questão” está colocada entre aspas porque, em se tratando de uma polêmica, a
60

controvérsia pode até se revestir de aparente resolução por força de lei, que impõe à sociedade
que todos ajam de uma mesma forma. Mas, na seara discursiva, o antagonismo persiste e a
polêmica se mantém viva, justamente porque os dois grupos que se enfrentam discordam entre
si desde a base de seus posicionamentos. Ainda que o grupo a favor do aborto declare que “o
que está em jogo não é negar que o embrião tenha vida ou direito”, mas que o direito à vida está
sujeito a regras jurídicas de ponderação, a vida é aqui tomada como um valor legalmente
instituído e, também desse ponto de vista, relativo. Diferentemente da Vida valorizada pelo
grupo contrário à legalização do aborto, para o qual a Vida é um valor dóxico14, isto é, um
objeto de acordo retórico e um valor absoluto para o auditório particular do qual se pleiteia
adesão. Também se trata de hierarquizações15 diferentes de valores: o grupo pró vida não chega
a negar a Justiça e a Liberdade, mas coloca a Vida acima desses valores. O grupo pró aborto
também não nega a Vida como valor, mas coloca a Justiça e a Liberdade no topo da sua ordem
de prioridades.
O dissenso como desacordo profundo é uma noção importante para compreender
que, em uma polêmica, a divergência de opiniões não está sujeita a solução, apesar de essas
opiniões serem construídas, sim, por argumentações razoáveis. Marc Angenot também
problematizou a existência de desacordos profundos, com a diferença de que, para ele, as
divergências inconciliáveis são a regra, enquanto que, para Fogelin, elas são a exceção. O título
da obra mais representativa de Angenot sobre os desacordos insuperáveis é Dialogue de sourds
(“Diálogo de surdos”), na qual a polêmica, fenômeno muito frequente o qual frustra os esforços
de persuasão, ganha centralidade e desencadeia dois questionamentos interessantes: por que
insistimos em argumentar e por que polemizamos? Segundo o autor, argumentamos por
necessidade de justificação e de posicionamento, sendo que a justificação é feita tanto para os
outros como para nós mesmos, a fim de validarmos nossas razões diante de um juiz espectral,
que seria uma espécie de “parâmetro de razoabilidade”. Quanto à insistência em polemizar,
Angenot a atribui ao interesse dos homens pelo pensamento antilógico ligado ao antagonismo

14
A doxa corresponde à opinião comum na qual se apoiam os pontos do acordo; trata-se de “um conjunto de
representações socialmente predominantes, cuja verdade é incerta” (MAINGUENEAU; CHARAUDEAU, 2014,
p. 176). “A doxa é, então, o espaço do plausível tal como o apreende o senso comum” (AMOSSY, 2006, p. 100).
Assim, nem todo valor juridicamente instituído desfruta de legitimidade dóxica e nem todo valor dóxico encontra
valor jurídico correspondente.
15
As hierarquias também são objetos de acordo retórico (ver subseção sobre a nova retórica).
61

erístico. Nessa perspectiva, então, a polêmica ainda “aparece como originada de uma forma de
pensamento desvalorizado” (AMOSSY, 2014, p. 33).
É nas Ciências Sociais, mais especificamente, na Sociologia e na Ciência Política,
que Amossy (2014) encontra uma significativa “revalorização do dissenso”, que a autora
considera essencial para seu objetivo de incluir a polêmica no seio da retórica. Dentre as
contribuições encontradas nesse campo, está a de Lewis Coser, para quem o conflito é
necessário às relações sociais, “na medida em que permite expressar a dissidência nas situações
de opressão” (AMOSSY, 2014, p. 34) e, assim, possibilita mudanças. Essa perspectiva
coaduna-se com a perspectiva marxista, que vê no dissenso uma força positiva imprescindível
à revolução e à evolução social.
Outra perspectiva importante à fundamentação da apologia da polêmica de Amossy
é a teoria da democracia deliberativa desenvolvida pela cientista política Chantal Mouffe.
Segundo esta cientista, a dissensão e o conflito são onipresentes na esfera democrática, por isso
esta é concebida como um “pluralismo agonístico” (AMOSSY, 2014).

Mouffe não se contenta em propor a preeminência do dissenso; ela denuncia também


a tendência a enaltecer o consenso e, mais ainda, a abordagem contemporânea que
exalta o consenso geral nascido da ilusão de que a esquerda e a direita deixaram de
ser categorias relevantes (2000b, p. 7). Em resumo, o consenso para Mouffe não é a
chave da democracia, e seu enaltecimento é um erro, quando não é uma manobra
política. (AMOSSY, 2014, p. 35).

A percepção errônea de consenso como fonte de harmonia e bem-estar social


impediria, assim, os sujeitos de se reconhecerem como sujeitos sociais, que se constituem a
partir de sua identificação com um grupo com o qual compartilham uma visão de mundo e de
sua oposição à visão de mundo do grupo oposto. É a exterioridade constitutiva de um “eles” em
relação ao “nós” que permite o estabelecimento de identidades coletivas e a emergência do
antagonismo no qual o “eles” é definido como um adversário que deve ser discursivamente
combatido pelo “nós”. Paradoxalmente, Mouffe concebe o “pluralismo agonístico” como uma
das condições de existência da democracia. Segundo ela,

Com efeito, o que permite a democracia é mesmo “o reconhecimento e a legitimação


do conflito” e “a recusa em reprimir pela imposição de uma ordem autoritária”. A
visão utópica da sociedade como uma unidade orgânica cede lugar a uma visão de
pluralidade de valores (2000, p. 103). Mouffe situa, assim, o conflito e o dissenso no
coração do processo democrático, como o seu próprio motor. Ao mesmo tempo, ela
se pergunta sobre o que permite a este processo funcionar sem cair em desordem e em
62

violência. É, segundo ela, a capacidade do dinamismo democrático para transformar


o inimigo em oponente (...). (AMOSSY, 2014, p. 36).

Às abordagens sociopolíticas aventadas, Amossy (2014) soma as de Pierre-André


Taguieff e Kendall Phillips, que propõem transpor, respectivamente, a nova retórica e a tradição
retórica americana, pelo reconhecimento de que o conflito funda e nutre as interações políticas
e públicas e de que a cultura do consenso acarreta graves problemas sociais, tal como o
apagamento das diferenças constitutivas das comunidades. É na esteira dessas abordagens que
Amossy (2014) defende uma retórica do dissenso, “na qual a polêmica deve ter lugar de
destaque” (AMOSSY, 2014, p. 39).
Para definir os termos dessa retórica do dissenso, a autora se apoia em filósofos
como Schopenhauer, que, segundo ela, aparece como pai fundador da polêmica em estudos
atuais. O que mais nos chama a atenção, no entanto, é a contribuição que a teoria das
controvérsias de Marcelo Dascal dá à compreensão da polêmica quando aponta o valor
heurístico do confronto de teses antagônicas: essa dissensão gera a compreensão e, até mesmo,
o saber (AMOSSY, 2014, p. 40). A abordagem retórica de Christian Kock também coloca o
dissenso no centro da vida pública e sustenta que o confronto de teses antagônicas permite ao
auditório avaliar os prós e os contras de cada tese e escolher livremente uma ou outra. Esse
valor heurístico das dissensões é fundamental à compreensão da polêmica, porque, de fato, uma
das funções da polêmica é permitir que, a partir do confronto de opiniões divergentes, os
sujeitos que assistem ao embate discursivo (e mesmo os que participam dele) compreendam
mais precisamente as ideias e as razões de cada lado, as motivações da divergência, a natureza
e o fundamento dos argumentos. Mais do que isso, a polêmica permite dar a conhecer os
projetos de sociedade vislumbrados pelos defensores e pelos opositores dessas opiniões.
Amossy dedica todo um capítulo de Apologia à definição da polêmica. No senso
comum e em algumas abordagens teóricas, o termo “polêmica” serve para designar um debate
acalorado e violento entre dois ou mais participantes de uma interação, que veem um ao outro
como um inimigo que deve ser vencido. A associação da polêmica à violência não ocorre à toa;
ela encontra fundamento na etimologia do termo, que remete ao grego polemikós, derivado de
pólemos (guerra). Essa associação da polêmica com a violência, no entanto, imprime-lhe um
caráter de negatividade ao qual reagiram alguns estudos em ciências da linguagem e em
argumentação retórica. Amossy recorre a alguns deles e a exemplos concretos de polêmicas
para sistematizar sua reflexão e fundamentar suas constatações sobre a polêmica.
De início, a autora observa que uma polêmica não gira em torno de qualquer tema;
é em torno de uma questão política (no sentido assumido pela teoria em tela, cf. nota de número
63

12) e, portanto, de interesse público, que se debate. Christian Plantin e Nicole Gelas já haviam
constatado isso e distinguido a natureza política e pública da polêmica do caráter privado das
discussões entre particulares. Além do caráter público, a polêmica é definida também por estar
ancorada na atualidade e circunscrita a uma dada realidade cultural. Segundo Amossy (2014,
p. 50-51),

Estreitamente ligada àquilo que preocupa o público num momento preciso, a polêmica
é efêmera e, frequentemente, tão rapidamente esquecida quanto cheia de razão no
momento em que ela eclode. É por isso que seu sentido e seus anseios deixam de ser
perceptíveis para além de sua duração, assim como, por outro lado, do espaço cultural
no qual ela emergiu. Ainda alcançamos a extensão das polêmicas que agitaram o início
dos anos 1930 em torno do testemunho da guerra de 1914? Não compreendemos
muito mais aquelas que se desenrolam em outras culturas quando ignoramos suas
normas, seus valores e seus problemas de sociedade.

A polêmica como debate da atualidade pressupõe uma profunda oposição de


discursos no seio de uma atividade verbal em que argumentos a favor de e contra uma tese são
colocados em confronto, permitindo uma apreciação por comparação. O mesmo acontece na
argumentação retórica: é preciso haver um desacordo e, pelo menos, duas alternativas de
resposta a uma mesma questão para que ocorra argumentação, que supõe igualmente que cada
tese seja justificada. Esse aspecto conceptual liga, irremediavelmente, a polêmica à
argumentação retórica, distinguindo-a, no entanto, da deliberação comum. Neste ponto,
retomamos a ideia de continuum já apresentada e ressaltamos que a modalidade polêmica se
situa em um de seus extremos, configurando-se como um modo de argumentar caracterizado
pela troca fortemente agonística, em que as possibilidades de acordo são mínimas. Os traços
que especificam a polêmica na esfera da argumentação retórica ajudam a defini-la com mais
exatidão.
Segundo Amossy (2014), os principais traços da modalidade polêmica são:
1. A dicotomização de teses;
2. A polarização social;
3. A desqualificação do Oponente.
A autora afirma que, ao contrário do que comumente se pensa, a violência verbal e
as emoções na polêmica não são traços primários, mas secundários, decorrentes dos três traços
principais, conforme veremos mais adiante.
A dicotomização situa o conflituoso na origem e no centro da modalidade polêmica,
pois esta seria “a manifestação discursiva sob forma de embate, de afrontamento brutal, de
opiniões contraditórias que circulam em praça pública. Enquanto interação verbal, ela surge
como um modo particular de gestão do conflito” (AMOSSY, 2014, p. 56, grifo da autora). A
64

dicotomização é mais do que uma simples oposição de discursos (que poderia ser superada com
vistas ao estabelecimento de um acordo); ela consiste no choque de duas opções antitéticas que
se excluem mutuamente e que só são passíveis de serem identificadas se compreendidas no
interior do contexto preciso em que se formam, pois as oposições que lhe dão vazão
(direita/esquerda; progressista/conservador etc.) não são absolutas.
Citando Dominique Maingueneau e Marcel Burger, Jérôme Jacquin e Raphael
Micheli, que reforçam a ideia de que a dicotomização radicaliza a oposição de discursos e de
pontos de vista, Amossy (2014, p. 58, grifo da autora) resume sua concepção de polêmica com
base no que constatou até este ponto: “a polêmica, que trata de questões de interesse público,
é uma gestão verbal do conflituoso caracterizada por uma tendência à dicotomização, que
torna problemática a busca de um acordo”.
O segundo traço da modalidade polêmica é o da polarização social, que consiste na
divisão dos sujeitos que participam de uma polêmica em grupos, conforme os papéis que
desempenham frente às teses e/ou frente ao próprio debate. Essa divisão ocorre no plano de
uma estrutura actancial, na qual se pode exercer, por ocasião de uma troca argumentativa, o
papel de Proponente (aquele cujo papel é defender uma das teses), o de Oponente (aquele cujo
papel é opor-se à tese defendida pelo Proponente e defender uma contra tese) e o de Terceiro
(aquele que assiste ao debate). Como a possibilidade de se chegar a um acordo em uma polêmica
é ínfima, Proponente e Oponente jamais se tornarão Parceiros de uma interação em prol de um
consenso. É, portanto, ao Terceiro que a argumentação polêmica efetivamente se dirige, na
tentativa de persuadi-lo e de levá-lo a tomar partido de uma ou de outra opinião.
Os actantes, na concepção da proposta da AAD, precisam ser distinguidos dos
atores. Enquanto os actantes constituem categorias abstratas que dividem os participantes de
um debate polêmico no plano de uma estrutura actancial, os atores são a instância empírica que
encarna os actantes e que se encontra no plano da enunciação. Na entrevista que Silas Malafaia
concedeu a Marília Gabriela no programa De frente com Gabi (a qual faz parte de nossos
dados), esses sujeitos são, do ponto de vista enunciativo, atores que encarnam, no plano
actancial, os respectivos papéis de Proponente da tese de que a homossexualidade é um
comportamento errado que deve ser corrigido e de Oponente dessa tese, que não apenas se opõe
a ela, mas que também defende a tese antagônica de que a homossexualidade é simples
expressão de diversidade e, assim sendo, não é errada e deve ser respeitada. Os dois debatem
com vistas a persuadir o Terceiro, ou seja, as pessoas que assistem ao programa. É pertinente
ressaltar que o Terceiro pode, a partir da audiência dessa entrevista, se engajar na polêmica,
tomando partido no debate e passando a figurar nele como Proponente ou Oponente. É o que
65

acontece quando as pessoas escrevem, nas páginas do YouTube em que os vídeos da entrevista
foram publicados, comentários se posicionando ou em relação às teses dicotômicas atualizadas
por Malafaia e Gabi ao longo da entrevista ou mesmo sobre a performance dos actantes na arena
discursiva engendrada pelo debate que eles encenam. Todavia, isso não significa que a
entrevista tenha inaugurado as questões polêmicas sobre homossexualidade e sobre a relação
entre dízimo e enriquecimento de certos pastores evangélicos, nem, tampouco, que tenha
inaugurado os papéis de Proponente e Oponente das teses antagônicas que os locutores
defendem e retrucam. Pelo contrário, Silas Malafaia e Marília Gabriela entram em um circuito
argumentativo sobre questões polêmicas que já existiam antes dessa entrevista, mas que foram
“atualizadas” (informação verbal)16 nessa situação específica por meio do debate inflamado
entre eles, que se posicionam de maneira conflituosa em relação a dois textos-fonte, convocados
para essa cena enunciativa pela jornalista: uma declaração do então presidente reeleito dos
EUA, Barack Obama, sobre a necessidade de os homossexuais serem tratados de forma
equânime e a matéria da revista Forbes sobre os pastores evangélicos mais ricos do Brasil.
Recuperar ab ovo essas questões polêmicas parece-nos mesmo inviável. Não seria
possível responder aos questionamentos: qual foi o primeiro texto que manifestou essa questão
conflituosa? Quem foram os primeiros atores a levantaram essas duas teses? Contudo, é
possível apreender, em cada situação específica de interação, como uma questão polêmica foi
presentificada e como a modalidade polêmica foi instaurada. Em nossas análises, buscaremos
demonstrar como a intertextualidade é, do ponto de vista da textualização, a responsável por
instaurar a modalidade polêmica em uma dada situação e por permitir revelar posicionamentos
sobre questões polêmicas em textos.
Voltando à caracterização da modalidade polêmica feita por Amossy (2014) e à
característica da polarização social, temos que é a divisão estabelecida no plano actancial que
opera essa polarização e divide os participantes de uma polêmica em “nós” e “eles”. A
polarização é, portanto, um fenômeno social, porque opera o reagrupamento de um público
extremamente diversificado em dois grupos mutuamente excludentes, diferentemente da
dicotomização, que é um processo discursivo que consiste em radicalizar teses opostas. A
polarização não implica a anulação das particularidades dos atores que se unem em torno de

16
Cf. comunicação de Mariza Angélica Paiva Brito intitulada “Atualização da polêmica em notícias da mídia
eletrônica”, por ocasião do Colóquio Argumentação e Polêmica, realizado na UFRN, em Natal, em fevereiro de
2018.
66

uma tese, mas, sim, a identificação dos actantes com a tese defendida pelo grupo do qual
participam e a repulsão à tese oposta.
O terceiro traço principal da polêmica é a desqualificação do outro. Para persuadir
o Terceiro, o Proponente não só justifica sua identificação à tese proposta e sua repulsão à
oposta, como também desqualifica o Oponente, visto como um adversário que representa o mal
e que deve ser discursivamente combatido. O adversário precisa ser deslegitimado para que sua
tese também o seja, pois “O descrédito lançado sobre as pessoas anula a força de seu
argumento” (AMOSSY, 2014, p. 62).
A desqualificação pode seguir duas vias: uma centrada no logos e outra no ethos. A
primeira consiste em desacreditar o adversário argumentando pela inadmissibilidade de sua tese
e lançando o descrédito sobre seu discurso. Para que esse jogo de refutação seja polêmico, é
preciso que o Proponente garanta que o discurso atacado possa ser reconhecido pelo auditório.
A segunda, que percebemos como estando centrada no ethos do Oponente, consiste em
desacreditar o adversário atacando diretamente sua imagem, representativa do grupo com o qual
ele se identifica. A desqualificação pode incidir sobre o grupo que ele representa ou sobre a
pessoa do Oponente (que, a nosso ver, sendo concebida como uma peça daquela estrutura
actancial de que falamos anteriormente, consiste também em uma desqualificação, ainda que
indireta ou implícita, do grupo ao qual ele pertence).
Já a violência verbal e o apelo ao pathos não são traços definitórios fundamentais
da modalidade polêmica, mas sim traços secundários. São a dicotomização de opiniões
conflituosas e a polarização social que autorizam a violência e que justificam o apelo aos
sentimentos do auditório, por conta do engajamento profundo dos sujeitos no debate, o que faz
com que o discurso polêmico se configure como um discurso, nas palavras de Kerbrat-
Orecchioni (1980 apud AMOSSY, 2014, p. 64, grifo desta autora), “muito fortemente marcado
enunciativamente”.
Vejamos como, em um trecho da entrevista de Fábio de Melo a Marília Gabriela,
no programa De frente com Gabi, a fala do padre dá indícios dessa forte implicação do sujeito
no discurso polêmico e como ela reflete a dicotomização e a polarização como promotoras da
violência verbal e do pathos. Trata-se de uma passagem na qual Marília Gabriela questiona o
67

entrevistado a respeito da relação entre a proibição do uso de métodos contraceptivos pela igreja
católica e a perda de fiéis a essa religião.

Exemplo (9)
Fábio: [...] eu acredito que::... NÓS... no momento em que nós temos um:... uma postura... é natural
que a gente vá contrariar muita gente... ninguém está... a igreja não tem a pretensão de agradar
o mundo todo... e é mais uma/ uma distinção que a gente precisa fazer... a gente... a partir do
momento que nós escutamos a palavra do papa... ela... não tem a pretensão de ser para TOdos...
ela tem a pretensão de ser para aqueles que são liderados por ele... então... é só a gente
esclarecer bem... eu sou cristão católico?... então a palavra do papa pra mim tem um peso... a
palavra do papa me orienta... o papa não tem a pretensão de que ele diz para o mundo inteiro...
não... ele pode ser... como homem que é com a autoridade que tem com o papel que ele tem
como: como papa... ele até ser escutado por todos... é um homem que tem uma liderança que
está fazendo um discurso... que colabora fraternalmente... do ponto de vista intelectual... com a
comunidade huma:na
Gabi: uhm...
Fábio: mas agora aquelas regras são para os católicos
Gabi: ((puxa a respiração)) vou perguntar outra vez...
Fábio: pode perguntar
Gabi: essa igreja... não perde fiéis... sendo CON:TRA... o uso de camiSInhas... e... de... controle da
natalidade?
Fábio: eu não sei se ela chega a perder fiéis... eu acredito que:... MUitos fiéis... católicos... que vivem
o dia a dia de uma fé de um processo de fé... vai prestar atenção nisso... talvez outros... que
não tenha:... con/... não tenham convicções mais profundas... se dizem cristãos católicos
e... e façam essas práticas todas aí sem... sem levar em consideração... tudo depende Marília
do nível de envolvimento que a gente tem com a fé
Gabi: você tá dizendo... ((balbucia, como que tentando falar algo))
Fábio: o relativismo existe em todos os lugares... pode ser que algumas pessoas não cheguem nem a
se incomodar com essa palavra... que proíbe que restringe ou que:... neh... você pode ter um
discurso positivo sobre a camisinha por exemplo... eu acredito... eu... esse é meu ponto de
vista... eu tenho muito medo quando a gente acredita que a camisinha possa nos livrar de todos
os problemas da sexualidade... eu como padre... que acompanho os bastidores... eu vejo que o
que fere... não é a possibilidade de você contaminar com o vírus isso e aquilo... claro isso é
perigoso isso é isso é isso é: ((faz um movimento centrípeto e rápido com os dedos da mão
direita))... precisa ser considerado
Gabi: [é real
Fábio: é real
Gabi: isso é real
Fábio: mas... o grande problema da sexualidade... é quando... as pessoas vivem relações objetais
Gabi: você tá dizendo
Fábio: [quando não existe amo:r... quando...
Gabi: [quando não existe amor...
Fábio: quando não existe respeito... ((Marília bate uma palma)) quando o outro acabou sendo... ((Fábio
ri timidamente))
Gabi: O DESE::JO... ((quase debruçada sobre a mesa, com a mão direita em riste sendo
movimentada em direção ao rosto de Fábio; um gesto de aproximação ao entrevistado,
similar a um gesto de ataque)) pela SUA FÉ... nos foi dado por QUEM?
Fábio: o desejo da fé?
Gabi: O DESE:JO... ((direciona as duas mãos ao peito, depois esfrega os dedos á frente)) O
DESEJO sexual...
Fábio: desejo sexual?
Gabi: [nos foi dado por QUEM?
Fábio: eh faz parte da nossa natureza huma:na
Gabi: a natureza humana...
Fábio: [que nos foi dada por quem nos criou
Gabi: QUEM nos criou?
68

Fábio: Claro
Gabi: QUEM nos criou?
Fábio: [o deleite... Deus...
Gabi: bom... ((recua, estufando o peito, abrindo os braços e sorrindo)) ENTÃO... estamos aqui no
meio dum nó GÓRdio

Vemos uma implicação explícita do padre com o seu dizer, marcada pela expressão
epistêmica “eu acredito” (proferida por duas vezes no excerto em tela) e pela assunção de
responsabilidade evidenciada pelo pronome possessivo de primeira pessoa na oração “esse é
meu ponto de vista”, justificadas por seu papel social e por sua função religiosa (“eu como
padre”). Estamos falando, aí, do plano enunciativo. No plano actancial, a divisão entre um “nós”
e um “eles” polariza os dois grupos que se enfrentam na polêmica sobre a oposição da igreja
católica aos métodos contraceptivos: o “nós” corresponde ao grupo dos que comungam da ideia
de que os métodos contraceptivos não devem ser utilizados e o “eles”, ao grupo dos que se
opõem a essa ideia. Nessa confrontação, o padre apela ao pathos para defender a tese favorável
à proibição dos métodos contraceptivos, declarando ter medo das consequências advindas da
ideia equivocada segundo a qual a camisinha serve para proteger e recorrendo ao valor “Amor”
como sendo compartilhado por esse “nós” com o qual ele se identifica. Marília Gabriela lança
mão de um argumento de transitividade (“Deus criou o homem”/“O desejo faz parte do
homem”/“Então, o desejo é criação divina”) e, pela via do logos, apela ao pathos, ao sentimento
de impenitência (“o homem não deve ter culpa ou medo por sentir desejo, já que o desejo é
criação divina e, portanto, não há erro em satisfazê-lo, ainda que sem amor”). Além disso, a
entrevistadora inquire o entrevistado com uma postura impetuosa, ao elevar o tom de voz e ao
aproximar-se fisicamente dele, como se o estivesse atacando (cf. imagem abaixo).

Imagem (1) – Pe. Fábio de Melo no De frente com Gabi

Fonte: Print de tela do vídeo da entrevista “De frente com Gabi” com Fábio de Melo.
69

Lembremos que esse é um episódio de uma interação polêmica e de que a


polarização ocorre em uma dimensão actancial. Como concordamos coam Amossy a esse
respeito, compreendemos que Marília Gabriela encarna o Proponente da tese de que o uso de
métodos contraceptivos deve ser livre e que ela “ataca” não propriamente a pessoa do padre
Fábio de Melo (apesar de sua expressão corporal), mas o Oponente que ele representa nessa
interação. As emoções e a impetuosidade que se manifestam nesse episódio são, todavia,
decorrentes da implicação dos atores Fábio de Melo e Marília Gabriela em seus discursos. É
preciso sublinhar, ainda: a) que nem todo discurso polêmico é violento ou agressivo; um
Proponente pode buscar “derrubar” seu Oponente simplesmente pelo jogo retórico de
valorização e desvalorização das teses; e b) que a violência verbal está submetida (ao menos
em parte) “à regulação de diversos gêneros (o debate televisivo, o fórum de discussão, as cartas
abertas e outros tipos de diálogo, mas também o panfleto, o artigo de opinião, a fala de reunião,
etc.) – e são as possibilidades e coerções desses gêneros que o modelam e lhe impõem os
limites” (AMOSSY, 2014, p. 68). É nesse sentido que a autora aponta a necessidade de a
violência e a regulação serem analisadas conjuntamente, considerando a tensão entre elas, que
autoriza (ou não) a manifestação da violência em uma polêmica.
Sobre o funcionamento (e as funções) da modalidade polêmica, Amossy (2014) faz
duas distinções que se impõem como necessárias na medida em que assume, por diversas vezes
e em vários dos textos relacionados à sua teoria da argumentação no discurso, a questão da
regulação social, cultural, institucional e genérica dos discursos (e, consequentemente, da
argumentação). Trata-se de uma primeira distinção mais ampla, que diferencia as formas de
diálogo da modalidade polêmica (termo tomado, neste ponto, no sentido clássico) de uma forma
polilogal. Começaremos por discutir sobre esta última modalidade da polêmica, a do polílogo.
De acordo com a autora,

a polêmica pública não se constrói sob o modelo do diálogo clássico [...]. No plano
dos discursos que circulam no espaço público (o plano da enunciação no qual é
permitido ouvir os atores), encontra-se uma disseminação incessante e até um pouco
anárquica da fala polêmica. É necessária a intervenção de uma reconstrução a
posteriori para que esses discursos múltiplos e diversificados se dividam claramente
em posições antagônicas em que se confrontem os contra e os a favor. Atinge-se,
assim, o plano actancial em que só pode acontecer um diálogo virtual entre duas
entidades abstratas – um Proponente e um Oponente. É aí que tomam forma e se
solidificam, ou até se cristalizam, os blocos de argumentos. Trata-se, como pôde ser
visto no caso da burca, de argumentos recorrentes, mais ou menos articulados entre
si, que constituem um arsenal do qual se valem todos aqueles que defendem uma
70

mesma causa. Esses blocos de argumentos configuram e resumem uma posição


estrutural. (AMOSSY, 2017[2014], p. 101-102).

Essa “reconstrução a posteriori”, muitas vezes, é feita pelo jornalista, que


reconstrói o debate em torno de uma questão polêmica, conforme veremos adiante. Outras
vezes, é o analista quem o faz, recuperando os argumentos levantados por um lado e outro e
reconstruindo o debate agonístico “virtual” que se constrói na circulação dispersa dos discursos
sobre uma questão política profundamente controversa. É o que Amossy (2017[2014]) faz ao
analisar os discursos, expressos em diversos textos, que se entrecruzaram no espaço público
israelense sobre a exclusão das mulheres. Os dois grupos que se pronunciaram a esse respeito
(laicos e religiosos moderados, de um lado, e ultraortodoxos, de outro), o fazem separadamente,
cada qual se dirigindo a interlocutores “que pensam como eles” e reforçando suas próprias teses,
de modo a não somente gerar um efeito de interincompreensão mútua, mas também uma
simetria no sentido de ambos os lados agirem do mesmo modo no que diz respeito à distribuição
de papéis e à gestão do conflito (AMOSSY, 2017[2014], p. 131).
Esta passagem resume bem a análise operada pela autora e nos ajuda a compreender
em que sentido ela opõe “diálogo” a “polílogo”:

Nos dois grupos, os discursos publicados nas mídias são retomados, repetidos,
acumulam-se e acabam por oferecer argumentos recorrentes que se estabilizam em
blocos de argumentos antagônicos. Uma estrutura agonística se desenha, assim,
opondo os raciocínios do Proponente aos do Oponente. Contudo, não há diálogo: este
só emerge quando ambos os grupos se dão ao trabalho de reconstruí-lo a partir da
difusão de enunciados que circulam no espaço público. Na realidade, não se trata de
uma troca de fala, de uma interação ao vivo, ou retransmitida, que permite um
confronto racional de pontos de vista. O diálogo – caso haja diálogo – permanece
virtual e, por isso, não engaja os locutores (que não são verdadeiros interlocutores)
em uma busca comum do razoável. (AMOSSY, 2017[2014], p. 131-132, grifo nosso).

A segunda distinção se dá no âmbito das formas do “diálogo”, sendo o termo


tomado aqui no sentido comum de uma troca/interação entre dois interlocutores, que implica,
portanto, a presença de Proponente e Oponente em um mesmo texto polêmico (ou fala
polêmica) (AMOSSY, 2014). As formas do diálogo polêmico são geralmente instanciadas por
gêneros que comportam visada argumentativa, ou seja, gêneros reconhecidamente destinados à
argumentação, à expressão de opiniões, tais como aqueles que Amossy (2008, p. 237) considera
privilegiarem a modalidade polêmica: “o panfleto, a controvérsia filosófica, os debates
midiáticos que confrontam adversários políticos”.
A formas do diálogo expressas em um texto, na modalidade polêmica, são duas:
discurso polêmico e interação polêmica. Um discurso polêmico se distingue de uma interação
polêmica no que diz respeito ao modo de gestão do conflitual, sendo aquele definido como um
71

“discurso” (a nosso ver, um texto) monogerido e esta como um “discurso” poligerido. A


interação polêmica consiste, então, em uma interação síncrona ou assíncrona, necessariamente
poligerida, na qual os atores que encarnam o Proponente e o Oponente se fazem presentes no
confronto, cada qual defendendo sua tese e refutando a tese alheia. Segundo Amossy (2014),
ela é, portanto, inteiramente dialogal. O discurso polêmico, por outro lado, é dialógico, “no
sentido de que dialoga com os discursos antecedentes, aos quais se opõe; mas ele não é dialogal,
já que não há interação direta com o adversário” (AMOSSY, 2017[2014], p. 72). Ainda que
a(s) voz(es) de ator(es) que encarna(m) o Oponente se faça(m) ouvir, quem orquestra a
manifestação das diferentes vozes em um discurso polêmico é somente um locutor, por isso
esse tipo de texto polêmico é monogerido. A interação polêmica e o discurso polêmico são as
formas de manifestação do fenômeno em tela, a polêmica; e “o conjunto das intervenções
antagônicas sobre uma dada questão em um dado momento” (AMOSSY, 2017[2014], p. 72)
constitui uma polêmica. Assim, “a polêmica se constrói através de todas as intervenções
públicas ou semipúblicas que tratam de uma questão social, e se manifesta na circulação dos
discursos” (AMOSSY, 2017[2014], p. 72).
Amossy (2014; 2017[2014]) exemplifica essas duas formas de manifestação da
polêmica em uma mesma troca a partir de casos concretos relativos à polêmica sobre a
regulamentação do porte da burca em espaços públicos na França. Para tanto, ela selecionou
um artigo de opinião publicado em uma revista francesa de esquerda, alguns posts, que integram
um fórum de discussão no site dessa revista e que respondem a esse artigo de opinião, e um
debate televisivo. No artigo de opinião, as teses antagônicas são geridas unicamente pela
jornalista que o escreveu, enquanto nos posts e no debate, os atores que participam de cada um
dos eventos e que encarnam o Proponente ou o Oponente falam por si, com a diferença de que,
nos posts, a troca de turnos não é necessariamente simultânea, podendo ser, portanto,
assíncrona, enquanto, no debate, ela é necessariamente síncrona17.
Apesar de comportar discursos monogeridos e interações poligeridas, a polêmica
não é estruturada como um diálogo, conforme já mencionamos, pois seu formato próprio é o da
circulação dos discursos: as vozes antagônicas são numerosas, se cruzam e se recobrem de
modo a escapar de uma organização prévia (AMOSSY, 2014, p. 210). A análise de seu
funcionamento exige do pesquisador que identifique as opções antitéticas, as recorrências e as
variações dos argumentos na profusão e na dispersão discursiva em que a polêmica emerge. É

17
Na próxima seção, em que apresentaremos os termos da interface a que nos propomos estabelecer, retomaremos
e problematizaremos essa distinção entre discurso polêmico e interação polêmica, reconfigurando-a conforme os
conceitos de texto e de discurso da LT.
72

o movimento metodológico, realizado pelo pesquisador, de organizar e de reconstruir, a


posteriori, esses dados em blocos de argumentos conflituosos que causa a impressão de que a
polêmica se estrutura como um diálogo entre duas partes.
As mídias desempenham um papel importante tanto na construção do debate pelos
participantes das polêmicas como na reconstrução delas pelos pesquisadores. Elas são, a um só
tempo, suporte e motor da profusão discursiva antagônica, veiculando e espetacularizando as
questões de debate, tornando-as, algumas vezes, retumbantes. Amossy destaca a atuação do
jornalista nesse processo:

O jornalista constrói a polêmica, no sentido de que ele constrói um diálogo virtual


entre partes que se pronunciam numa rica variedade de ditos e de escritos. Ele
seleciona, ordena e produz uma troca virtual entre os representantes dos prós e dos
contras – aqueles que tiveram entre si trocas diretas e aqueles que não tiveram. Ele
faz repercutirem as falas dos atores sociais que seleciona, dividindo-os em dois
campos opostos – o do Proponente e o do Oponente. Ele permite, assim, que o leitor
se reconheça na massa dos discursos que circulam no espaço público, estruturando
essa massa e fazendo com que ela faça sentido para o leitor. Nunca é demais, nessa
perspectiva, superestimar o papel do jornalista. Ele lança a polêmica, dando-lhe
publicidade, e lhe confere o estatuto de acontecimento; constrói, com a ajuda das
diferentes formas de discurso reportado, um diálogo virtual entre detentores de
posições em conflito; põe em evidência os blocos de argumentos que estruturam o
debate; e contribui para orientá-lo por meio de suas intervenções diretas ou indiretas.
(AMOSSY, 2014, p. 212).

Mas é preciso também ressaltar que, na encenação das oposições dirigida pelo
jornalista, ele pode manter-se distante das posições colocadas em confronto ou pode assumir a
responsabilidade do que dizem os enunciadores, os atores que se colocam como Proponente ou
Oponente na controvérsia. É a assunção de responsabilidade ou o distanciamento das falas dos
enunciadores que indicam se o jornalista também é, ou não, um polemista. De acordo com
Amossy, essas duas possibilidades de envolvimento em ou com uma polêmica são, em parte,
decorrentes do contrato de comunicação inerente a cada gênero: no artigo de informação, que
exige imparcialidade do locutor, o jornalista exerce o papel de intermediário, ligado à função
do gênero de fazer saber sobre um acontecimento; no artigo de opinião, espera-se que o
jornalista se engaje em um dos campos (Proponente ou Oponente) e seja, assim, um polemista,
pois essa postura está ligada à função do gênero de fazer saber um posicionamento.
Com ou sem envolvimento explícito do jornalista na polêmica, o fato é que as
mídias expõem problemas de sociedade, pondo em confronto as opiniões antagônicas e
dividindo os atores envolvidos nesse jogo. Esse movimento permite criar um efeito de
identidade, uma função importante da polêmica, porque é a identificação com um dos lados que
debatem que dá corpo à polarização social. Tal identificação permite o “encontro” de indivíduos
73

que compartilham de um mesmo ponto de vista e de um mesmo projeto de sociedade em relação


à questão de debate em pauta. Esse encontro não se dá, na maioria das vezes, no mundo real,
mas em um mundo virtual criado pelas novas tecnologias da comunicação. Nesse espaço,
alguns debatedores, sejam eles Oponentes ou Proponentes, não assumem uma identidade real;
agem como “avatares”, que se posicionam sob o véu de uma identidade virtual que lhes permite
expor suas opiniões favoráveis ou contrárias a uma tese, atacar violentamente o adversário ou
concordar com posicionamentos que a sociedade considera como não razoáveis, sem que isso
ameace sua identidade real. Trata-se, inclusive, de uma estratégia que visa, em alguns casos,
poupar os atores de consequências jurídicas decorrentes de uma responsabilização por atos
verbais considerados ilegais ou criminosos.
Vale a pena ressaltarmos que a identificação entre os atores, que conduz a um
reagrupamento actancial em Proponentes e Oponentes, diz respeito a uma certa causa. Ela não
significa anulação das diferenças constitutivas entre os atores cidadãos que se engajam no
debate:

Quando é naturalmente levada por uma mesma causa, a polêmica contribui com
frequência para criar a ilusão de unidade em torno de um princípio comum. Indivíduos
e grupos separados por muitas diferenças, que estão longe de concordarem com tudo,
se juntam em torno de uma mesma bandeira. [...] É apenas na unidade da divisão
actancial (Proponente/Oponente) que parece reinar uma perfeita similitude de visões.
Na realidade da troca, no plano da enunciação no qual agem atores-locutores, as
diferenças, até mesmo as divergências, subsistem. (AMOSSY, 2014, p. 224).

Outra função da polêmica é a de protesto. A defesa de uma tese em contraposição


a outra que lhe faz frente inscreve-se numa relação de força e ganha contornos de acusação e
de denúncia. Assim, a avidez com que os atores se posicionam em um debate polêmico constitui
um ato ao mesmo tempo de ataque e de resistência, ambos com vistas à mudança de status quo.
Essa tentativa de mudança, no entanto, não deve ocorrer por imposição de força física, caso
contrário, não se inscreverá mais no domínio da retórica do dissenso. Apesar de a violência
verbal ser um elemento que contribui para reforçar a dicotomização discursiva, a polarização
social e a desqualificação do outro no âmbito de uma controvérsia polêmica, ela deve
permanecer em sua natureza verbal, ocorrendo em conformidade com as normas
sociodiscursivas relativas aos enquadres contextuais e genéricos. Caso a violência verbal ou a
incitação à violência física transbordem os limites do discurso, desencadeando o emprego de
força bruta, a principal função da polêmica ficará ameaçada.
A função persuasiva da polêmica preenche a necessidade de arregimentar
partidários de uma ou outra tese. Para isso, busca-se persuadir principalmente o Terceiro, isto
74

é, busca-se influenciar o espectador do debate a agir ou a dispor-se para agir de determinada


maneira em relação ao tema conflituoso. O Terceiro vê-se compelido a tomar uma decisão
porque o resultado dessa batalha retórica pode acarretar consequências tanto para a coletividade
da qual ele participa como para sua individualidade.
Por fim, a função principal da polêmica é a de autorizar a coexistência no dissenso.
Nisso reside sua legitimidade democrática e retórica, pois uma sociedade democrática pluralista
na qual a diversidade e o antagonismo de opiniões é a regra, e não a exceção, supõe que atores
que compartilham, mas que também divergem bastante, em relação a princípios, valores,
opiniões e projetos de sociedade possam dividir o mesmo espaço sem transformá-lo em um
campo de barbárie.
Considerando o que apresentamos sobre o estudo empreendido por R. Amossy em
torno da polêmica no espaço público, compreendemos o propósito da autora de produzir uma
apologia da polêmica. Por todas as funções que essa modalidade preenche nas sociedades
democráticas pluralistas e pela complexidade de seu funcionamento, a modalidade polêmica
merece ser investigada e valorizada, apesar de suas imperfeições e limites (conforme reconhece
Amossy, 2014). É por isso que esta tese se propõe a dialogar com a teoria da argumentação no
discurso, a fim de analisar as estratégias textuais de persuasão implicadas na argumentatividade
discursiva em geral, mas, em especial, da modalidade polêmica. No próximo capítulo,
cuidaremos de apresentar os procedimentos metodológicos que adotamos com vistas ao alcance
de nosso objetivo.
75

3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Neste capítulo, apresentaremos o quadro metodológico pelo qual optamos para


empreender esta tese. Do método de abordagem ao procedimento de análise dos dados que
selecionamos para o estudo da textualização implicada na argumentatividade discursiva de
modo geral e na polêmica em particular, pensamos na contribuição que podemos dar, a partir
do nosso lugar de fala – a Linguística Textual –, à análise da argumentação no discurso.

3.1 Método de abordagem

As pesquisas recentes em LT têm dado saltos teórico-metodológicos significativos,


motivados, por exemplo, pela consideração de aspectos multimodais para a conceituação do
objeto texto e para as análises de fatores de textualização. A constituição desse quadro deve-se,
basicamente, à identificação de lacunas no interior de pesquisas anteriores, a partir das quais
hipóteses são formuladas e problematizadas de modo a estabelecer diálogos com temas de
outras disciplinas linguísticas ou não. Dando continuidade a esse método de abordagem, nossa
proposta de investigação também é identificada como de natureza hipotético-dedutiva, pois se
originou da observação de lacunas investigativas, apresentadas na Introdução, e da tentativa de
responder a alguns questionamentos.
Buscaremos, portanto, problematizar algumas questões que até este momento não
o foram por outros pesquisadores da LT:
a) como se dá, a nosso ver, a relação entre texto e discurso e entre gênero e
argumentatividade?
b) qual o papel da intertextualidade na argumentação discursiva e na textualização
de questões polêmicas?
c) como o plano de texto permite entrever a argumentatividade relativa a questões
polêmicas?
d) é possível evidenciar marcas da argumentação interdiscursiva pela análise de
sequências textuais prototípicas?
e) sobre a referenciação, como um mesmo referente é construído, no âmbito do
logos, nas teses antagônicas que constroem uma polêmica?
f) como podemos identificar, pela análise dos processos referenciais, o apelo ao
pathos?
76

g) de que maneira os processos referenciais participam da construção do ethos de


um locutor que aborda uma questão polêmica?
Pensamos que tais problemas de pesquisa poderão ser respondidos se levarmos em
conta as técnicas e os procedimentos de coleta e de análise de dados explicitados a seguir.

3.2 Delimitação do universo e da amostra

A escolha do universo a ser investigado nesta pesquisa está diretamente relacionada


a dois pressupostos da análise da argumentação no discurso, de Ruth Amossy: primeiro, de que
a argumentação interdiscursiva se manifesta em textos de diferentes maneiras, em diferentes
modalidades; segundo, de que a argumentação é tributária dos quadros genéricos e
institucionais nos quais os empreendimentos persuasivos se desenvolvem. Assim, optamos por
analisar textos publicados em ambiente virtual e pertencentes a diferentes gêneros de discurso
que relevam da esfera midiática18 – entrevista jornalística televisiva, entrevista jornalística
escrita, notícia, reportagem e charge –, a fim de descrever as maneiras como a
argumentatividade discursiva se manifesta em textos inscritos nesses gêneros e como a gestão
de questões polêmicas ocorre em diferentes tipos de interação: oral, escrita, síncrona,
assíncrona, monogerida, poligerida.
Outra motivação para essas escolhas é de ordem empírica e deve-se ao fato de
termos participado, na condição de interlocutor, de práticas sociais mediadas por textos desses
gêneros ao longo de anos. A experiência advinda da participação nessas práticas confere ao
nosso olhar sobre o objeto e sobre os dados desta pesquisa certas impressões de natureza
intuitiva que podem auxiliar, a nosso ver, no esperado refinamento das análises, em decorrência
das apropriações de natureza teórico-científica.
Quanto à amostra, selecionamos uma entrevista jornalística televisiva, do extinto
programa De frente com Gabi, que era exibido pelo SBT – emissora de sinal aberto – aos
domingos à noite. A entrevista escolhida foi exibida em 03/02/2013 e tem como entrevistado o
pastor evangélico Silas Malafaia. Essa entrevista foi escolhida em função de comportar a
modalidade polêmica, nos termos concebidos pela AAD. Selecionamos também duas

18
Entendemos que a esfera midiática é mais abrangente do que a esfera jornalística, incluindo os gêneros não
somente jornalísticos, mas também os publicitários e os do campo do entretenimento. Estamos considerando,
ainda, que o gênero charge pertence à esfera midiática porque seus textos são produzidos não necessariamente por
jornalistas e porque, atualmente, circulam de forma mais intensa no espaço das chamadas “mídias sociais”, que
agrega as redes sociais e aplicativos de troca de mensagens, nem sempre sendo publicados em jornais. Por isso,
optamos por considerar que o universo dos dados que analisamos pertencem à esfera midiática, não de modo a
tomá-la como correspondente à jornalística, mas de abrangê-la, e por relacionar o gênero charge à esfera midiática.
77

entrevistas jornalísticas escritas, ambas concedidas pelo pastor Silas Malafaia: uma publicada
na/pela revista Veja e a outra na/pela revista IstoÉ. Os exemplares do gênero reportagem escrita
somam dois textos: uma da revista Exame e outra do portal G1. Os textos do gênero notícia são
cinco: dois publicados no portal G1, um no portal do jornal O Globo, um no site Verdade Gospel
e um no portal da Carta Capital. E as charges analisadas somam três textos: uma do chargista
Duke, uma de Kayser e uma de Bruno Drummond. Dessa amostra, somente a entrevista de Silas
Malafaia a Marília Gabriela comporta a modalidade polêmica; todos os demais textos tratam
de questões polêmicas, mas o fazem por meio de outros modos de argumentar.
As notícias e as reportagens nos interessam porque, muitas vezes, (re)acendem
polêmicas em torno de questões sociais (cf. AMOSSY, 2014; 2017[2014]). Salientamos que a
entrevista jornalística escrita, em meio impresso ou digital, distingue-se da entrevista
jornalística televisiva em aspectos relevantes para a análise da argumentação, relativos, por
exemplo, aos modos de contextualização da interação imediata entre entrevistador e
entrevistado. Quanto ao gênero charge, nos chama à atenção a facilidade de compartilhamento
e o consequente alcance desses textos, impulsionados pela larga utilização de aplicativos de
mensagens instantâneas e das redes sociais. Trata-se, portanto, de um gênero que participa
ativamente da manifestação profusa de questões polêmicas.
A análise de gêneros jornalísticos e midiáticos cuja função reconhecida não é de
opinar/argumentar (como é o caso do artigo de opinião e do editorial) será importante para a
descrição de diferentes modos de argumentar. Veremos que, algumas vezes, textos destinados
a informar ou a fazer rir argumentam, de diferentes maneiras, em torno de questões polêmicas.

3.3 Técnica de coleta de dados

A técnica utilizada para a coleta dos dados foi a da documentação indireta, que
consiste em coletar dados já prontos e disponibilizados por fontes públicas (como no caso de
dados coletados de sítios abertos da Internet e de documentos públicos de livre acesso) ou
privadas (como cartas e fotografias pessoais, documentos individuais, etc.). A entrevista
jornalística televisiva, por exemplo, encontra-se disponível no sítio virtual YouTube
(www.youtube.com), cujo acesso é livre e gratuito. Os vídeos que integram essa entrevista
foram baixados em computador e gravados em CD. As duas entrevistas jornalísticas escritas,
as duas reportagens e uma das notícias, também capturadas da Internet, foram salvas em
arquivos PDF. Esses dados, pelo regime material de textualização (caso das entrevistas
78

televisivas) e pela extensão, foram anexados à tese19. Na medida em que se fez necessário,
alguns trechos da entrevista televisiva foram transcritos a fim de se operar uma análise mais
precisa sobre certos elementos textuais verbais. Todavia, tendo em vista o objetivo macro da
pesquisa, de analisar o funcionamento da argumentação interdiscursiva em textos, é
imprescindível que o leitor assista aos vídeos dessa entrevista para compreender as análises e,
assim, construir um posicionamento mais apropriado sobre elas.
Os demais textos que compõem nossos dados foram retirados da Internet e
integralmente incorporados ao corpo da tese.

3.4 Procedimento de análise dos dados

Esta pesquisa comporta duas grandes etapas, correspondentes aos capítulos 4 e 5,


voltadas à operacionalização de nossa proposta. A primeira grande etapa operacional consiste
não propriamente em uma análise de dados, mas no delineamento teórico e na exemplificação
analítica da abordagem que estamos a propor. Desse modo, o capítulo 4 está voltado para o
alcance de nosso objetivo específico de relacionar texto, discurso, gênero e argumentação. Ele
serve também de base para avaliar se textos pertencentes a outros gêneros, e não somente
àqueles que R. Amossy considera privilegiarem a modalidade polêmica, apresentam traços
dessa modalidade, ainda que de modo enviesado.
O primeiro passo dessa etapa (seção 4.1) consiste, então, em discutir sobre o lugar
que a AD e a AAD reservam à noção de gênero do discurso e sobre como os estudos
circunscritos no escopo dessas abordagens utilizam desse critério em suas análises. Nosso
segundo passo (seção 4.2) consiste em apresentar a concepção de gênero com a qual iremos
trabalhar. Como, para a LT, as noções de gênero e de texto se implicam mutuamente, tanto do
ponto de vista conceitual como do operacional, fazemos uma exposição da concepção de texto
que encampamos e justificamos nossa escolha. Uma consequência importante dessa opção
metodológica é a demonstração: i) dos limites que separam e particularizam a LT e a AD como
disciplinas que compõem o vasto leque disciplinar das ciências da linguagem; e ii) do que torna
possível, apesar das reservas conceituais e metodológicas mútuas, um diálogo (profícuo) entre
as duas disciplinas. O terceiro e último passo (seção 4.3) dessa etapa insiste na ideia de que o

19
Ao leitor que não tiver acesso à versão impressa desta tese (com o CD anexo), sugerimos assistir aos vídeos
seguindo os links abaixo:
 Entrevista com Silas Malafaia: Parte 1 https://www.youtube.com/watch?v=WqBtf3ttMug; Parte 2
https://www.youtube.com/watch?v=ku2Oggblm0A; Parte 3 https://www.youtube.com/watch?v=f91j93-
C5gw; Parte 4 https://www.youtube.com/watch?v=B37mTIZ7fPQ.
79

gênero é a categoria-mor de análise da argumentatividade em textos. Isso porque, para nós, da


LT, texto e gênero são noções operatórias essencialmente interligadas, não sendo possível,
portanto, conceber textualidade sem pensar em constituição de gêneros. Além dessa insistência,
o que nos move a dar esse último passo do capítulo 4 é uma inquietação em torno da Análise
Textual do Discurso, de Jean-Michel Adam (abordagem, aliás, que convocaremos por ocasião
das análises realizadas no capítulo seguinte), no interior da qual as relações entre texto e
discurso e entre LT e AD se configuram de maneira um pouco distinta da que projetamos para
nosso trabalho. Encerramos essa etapa ilustrando nossa proposta de interface.
Em função do caráter mais teórico do capítulo 4, os textos que utilizaremos para
ilustrar nossas reflexões e as concepções que adotamos serão considerados como exemplos
(Exemplo (1), Exemplo (2), etc.) e serão assim designados, dando continuidade ao processo
de exemplificação teórica iniciado no capítulo 2. A fim de diferenciar esse exemplário dos
dados que vamos examinar no capítulo 5, optamos por identificar estes dados pela denominação
de textos (Texto (1), Texto (2), etc.). Obviamente, essas denominações pelas quais os dois
grupos de textos convocados para esta tese são identificados (exemplo e texto) servem tão
somente a uma distinção ligada aos nossos procedimentos teóricos e metodológicos, já que
todos esses objetos são textos.
A segunda grande etapa operacional, correspondente ao capítulo 5, consiste nas
análises das estratégias de persuasão utilizadas em diferentes modos de argumentatividade, com
base em três elementos textuais: intertextualidade, composicionalidade (que inclui plano de
texto e sequências textuais) e referenciação. Abrimos essa etapa com a defesa de que as
estratégias textuais consistem em estratégias argumentativas ou estratégias persuasivas; para
tanto, explicamos porque concebemos argumentação e persuasão como termos análogos do
ponto de vista da textualidade. Em seguida, iniciamos os passos analíticos propriamente ditos.
O primeiro passo (seção 5.1) busca mostrar como é possível compreender o
funcionamento da argumentatividade interdiscursiva a partir do parâmetro da intertextualidade.
Buscamos demonstrar também nessa seção como esse fenômeno textual instaura, em uma
situação concreta de interação, uma questão polêmica.
O segundo passo (seção 5.2) está voltado à análise de critérios composicionais –
plano de texto e sequências. Primeiro (subseção 5.2.1), buscamos evidenciar como o plano de
texto permite inscrever e deixa entrever, em um nível composicional macroestrutural,
posicionamentos em torno de um tema polêmico. Depois (subseção 5.2.2), elucidamos as
maneiras pelas quais as cinco sequências textuais (narrativa, descritiva, argumentativa,
explicativa e dialogal) permitem agir sobre as representações, crenças e/ou comportamentos
80

dos interlocutores de alguns textos, de modo a tentar influenciar o interlocutor, mesmo que de
soslaio, em meio a debates polêmicos.
O último passo do capítulo 5 (seção 5.3) traz a análise que embasa nossa hipótese
de que os processos referenciais conferem robustez aos meios de prova retóricos e incidem, de
maneira incontornável, sobre as três características primárias da polêmica: a dicotomização de
teses, a polarização social e a desqualificação do Oponente. Como a primeira característica da
polêmica é a dicotomização de teses, iniciamos pela identificação das teses dicotômicas e de
alguns argumentos que sustentam cada uma delas. Trata-se de um procedimento analítico
recomendado por Amossy (2014): para analisar o funcionamento de uma polêmica, o
pesquisador precisa organizar e reconstruir os dados em dois blocos de argumentos – os
favoráveis e os opostos a certa tese. Como esses argumentos geralmente encontram-se dispersos
nos numerosos discursos que circulam socialmente, sem organização prévia, é necessário
organizá-los de modo a fazer parecer que se trata de um diálogo entre os dois lados que debatem.
É pertinente destacar a contribuição que o jornalista nos dá para a execução de tal tarefa: ele,
quando trata de uma questão polêmica em seu texto, seleciona e organiza os prós e os contras,
construindo um diálogo virtual entre os debatedores e colaborando, assim, com o trabalho de
reconstrução da polêmica pelos pesquisadores.
Feita a (re)organização dos argumentos das teses dicotômicas em blocos,
identificaremos os elementos presentificados nos textos pelos (contra)discursos e os raciocínios
subjacentes a eles, buscando evidenciar a lógica que justifica as (re)categorizações realizadas.
Essa descrição do logos via análise dos processos referenciais nos permitirá descortinar os
desacordos profundos que dão vazão às polêmicas e os sentimentos aos quais os locutores
recorrem para arregimentar adeptos de suas teses, apelando ao pathos e criando um efeito de
identidade que contribui para a polarização social. Esse último passo (e última seção de análise)
é encerrado com uma análise que relaciona os processos referenciais à sedimentação discursiva
do ethos prévio institucional de jornalista, à construção do ethos discursivo do locutor e à
elaboração discursiva da cena de enunciação em uma reportagem.
Feita a exposição de nossos procedimentos metodológicos, passemos à
operacionalização da interface que estamos a propor.
81

4 REDEFINIÇÕES TEÓRICAS PARA UMA INTERFACE ENTRE LT E AAD

A análise argumentativa do discurso insiste no princípio de que a argumentatividade


atravessa o discurso em seu todo, ou seja, de que essa atividade é inerente ao funcionamento
discursivo. Outro princípio em que se esteia a abordagem proposta por R. Amossy é o de que
“A argumentação deve ser estudada no nível de sua construção textual, a partir dos
procedimentos de ligação que comandam seu desenvolvimento” (AMOSSY, 2018a, p. 41).
Tendo em mente esses princípios, propomos que a AAD agregue elementos textuais aos seus
parâmetros de análise, atualmente centrados em categorias de ordem pragmática (como os
implícitos, pressupostos e subentendidos) e linguística (termos lexicais de modo geral,
modalizadores, conectores e construções sintáticas). Categorias de ordem textual, tais como
intertextualidade, plano de texto, sequências textuais, referenciação, dentre outras, podem
ampliar as possibilidades de desvelamento da argumentatividade em situações concretas de uso
da linguagem, contribuindo, assim, para o estudo dos funcionamentos discursivos de modo
geral e, especificamente, das modalidades argumentativas. Nosso intuito, portanto, é contribuir,
com os critérios analíticos da LT, para a investigação das estratégias por meio das quais a
argumentatividade interdiscursiva de modo geral, e a modalidade polêmica, em particular, pode
se inscrever em textos.
Antes de darmos início à efetiva operacionalização de nossa proposta – esmiuçando
o modus operandi de análises textuais da argumentatividade interdiscursiva com base nos
critérios da intertextualidade, da composicionalidade e da referenciação –, consideramos
pertinente fazer uma breve reflexão teórica a respeito de como vislumbramos estabelecer uma
interface entre a LT e a AD (na medida em que a AAD se constitui como um ramo desta) e de
como o critério analítico do gênero se institui, a um só tempo, como textual e discursivo,
viabilizando o diálogo entre as duas disciplinas. Tomaremos, portanto, a noção de gênero do
discurso como o primeiro (e o principal) critério a discutirmos por ocasião dessa interface.
Quatro motivações justificam nossa escolha pela centralização desse critério: primeiro, o lugar
de destaque que os gêneros têm na abordagem de Amossy e na AD francesa, em função da
constitutiva relação de um texto com um contexto discursivo; segundo, o fato de termos
selecionado, para nossa proposta de análise, textos que relevam de diferentes gêneros da esfera
midiática; terceiro, porque acreditamos que a polêmica seja um fenômeno sociodiscursivo
ligado a diferentes maneiras de argumentar, ainda que de modo latente ou enviesado, como
ocorre na notícia e na reportagem, porque a polêmica não se estabelece em um único texto, mas
na relação entre textos; quarto, porque entendemos que texto e gênero são conceitos operatórios
82

que se imbricam, não sendo possível, portanto, pensar em textualização sem pensar em
constituição de gêneros. Assim, acreditamos que iniciar esta discussão pelo critério do gênero
do discurso nos permitirá situar os textos e os discursos em um quadro discursivo e genérico a
partir do qual poderemos compreender a relação entre o tipo de interação, a construção da
coerência, a macroestrutura textual e os diferentes modos textuais de argumentatividade.
A incursão teórica que faremos terá início pela AD e pela AAD, buscando
apresentar o modo como elas concebem gênero do discurso e como essa noção é mobilizada
para o estudo da argumentação. Em seguida, apresentaremos a abordagem teórica e
metodológica de Jean-Michel Adam para o estudo dos textos, a Análise Textual dos Discursos
(doravante, ATD), filiada à LT, e problematizaremos sobre o lugar que essa abordagem confere
ao discurso, à AD, aos gêneros e à argumentação em sua perspectiva.
Para delinearmos os termos do diálogo que ora estamos propondo, optamos por
problematizar a ATD em razão, primeiro, de se tratar de uma abordagem inscrita no espaço
disciplinar da LT (é, portanto, uma abordagem especificamente textual); segundo, de ela
pressupor que “Todo enunciado possui um valor argumentativo” (ADAM, 2011, p. 122). Isso
significa que a ATD foi escolhida não por ser uma abordagem teórica e metodológica de estudo
de gêneros, mas sim porque: a) sua preocupação maior em descrever e explicar os modos de
textualização implica escolhas teóricas e terminológicas que ligam, constitutivamente, textos a
gêneros do discurso, de modo que a textualidade é vista como sendo unida à discursividade
pelo sistema de gênero de uma certa formação sócio-histórica (cf. ADAM, 2017, p. 36); b) ela
considera os gêneros do discurso como categorias que, complementarmente às categorias
(protó)tipos de sequências e gêneros de texto, constituem a classificação das realizações
textuais e discursivas (ADAM, 2017, p. 37); c) ela permite, por ser uma abordagem de
orientação discursiva, integrar os três componentes de gêneros do discurso apontados por
Bakhtin (estrutura composicional, conteúdo temático e estilo) e os componentes enunciativo e
interacional/pragmático considerados pelos estudos do Círculo; e d) ao integrar o componente
interacional/pragmático ao semântico (em um plano configuracional de estabelecimento da
coerência), ela considera que toda proposição-enunciado é dotada de uma orientação
argumentativa, ou seja, orienta o interlocutor, argumentativamente, em direção a um objetivo
de ação definido pela sequência de atos ilocucionários e pelo ato ilocucionário global ao qual
se pode resumir essa sequência.
Sendo a proposição-enunciado a unidade textual e enunciativa mínima, produto de
uma enunciação realizada por um enunciador e dirigida a um coenunciador (ADAM, 2011, p.
108), podemos dizer que um texto constituído de várias proposições-enunciados (como ocorre
83

em grande número de vezes) comporta numerosas orientações argumentativas, nem sempre


antagônicas, mas necessariamente diversas. A orientação argumentativa pode ser indicada tanto
por atos de discurso como por conectores argumentativos e/ou por um léxico axiologicamente
marcado (ADAM, 2017, p. 42). Ainda que um texto não seja articulado por conectores
argumentativos, todo e qualquer texto comporta, em sua estruturação
configuracional/pragmática, uma visada ilocutória ou uma orientação argumentativa global que
norteia a (re)construção da intencionalidade implicada em sua interpretação. Usamos o termo
intencionalidade, e não intenção, para marcar a ideia segundo a qual não se trata de captar o
objetivo traçado pelo locutor do texto, mas, sim, de construir, por um processo de negociação
interpretativa que se dá ao longo da interação sociocognitiva e discursiva, o(s) propósito(s) de
um texto.
Sobre os objetivos (explícitos ou não) de um texto, é importante lembrarmos, ainda,
com Adam (201720, p. 43, grifo em negrito de nossa responsabilidade) que

narrar, descrever, argumentar e explicar são quatro formas de ação verbal,


muito correntes e dominadas muito cedo pelas crianças, que as teorias
clássicas dos atos de fala não permitem, todavia, descrever. Todo texto visa
(explicitamente ou não) agir sobre as representações, crenças e/ou
comportamentos de um destinatário (individual ou coletivo). Se consideramos
que o objetivo interativo dos enunciados assertivos é compartilhar uma crença,
convencer um destinatário da consistência de uma representação discursiva,
então podemos dizer que uma assertiva nem visa se adequar a um determinado
estado de mundo real (definição clássica), nem visa empenhar-se para que o
mundo seja visto pelo destinatário de acordo com a crença proferida pelo
locutor-enunciador. As asserções narrativas, descritivas, argumentativas e
explicativas factuais ou ficcionais constroem representações
esquemáticas do mundo com o objetivo final, como nas diretivas, de um
objetivo de ação: compartilhar uma crença com a finalidade de induzir a um
certo comportamento (sonhar, rir, chorar, indignar-se, revoltar-se, agir, etc.).

Considerar os enunciados assertivos como orientados, em última instância, à ação


é, a nosso ver, aproximar a noção de orientação argumentativa da concepção de argumentação
da nova retórica, para a qual, mais do que aumentar ou suscitar a adesão dos espíritos às teses
que se lhes apresentam ao assentimento, o objetivo de toda argumentação é desencadear neles
a ação pretendida ou, pelo menos, criar neles “uma disposição para a ação, que se manifestará
em momento oportuno” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 50). A ideia de que
todo texto possui uma orientação argumentativa, então, nos é bastante pertinente porque
converge, ao menos em parte, para o pressuposto da AAD segundo o qual a argumentação é

20
A tradução desta obra foi realizada pelo Protexto.
84

inerente ao discurso, de modo que todo discurso comporta, portanto, uma dimensão
argumentativa.
A reflexão que vamos empreender neste capítulo será destinada, primeiramente, à
definição dos termos de uma análise da argumentatividade pautada em elementos textuais, mas
seu foco recairá, em seguida, sobre os gêneros do discurso como fator de regulação da
textualidade e das formas como a dimensão argumentativa, ou a orientação argumentativa,
podem se inscrever em textos de gêneros da esfera midiática.

4.1 Gêneros do discurso na AD e argumentação

Os estudos em AD francesa que adotam a noção de gênero como critério de análise


da discursividade centralizam sua atenção nas restrições e coerções sociais, históricas e
institucionais que determinam as condições de produção dos discursos, nas operações de
manutenção e de subversão dessas condições. O gênero de discurso, nessa perspectiva, é o
dispositivo de enunciação que liga um texto ao seu contexto de enunciação:

No meu entender, o interesse específico que governa a disciplina “análise do discurso”


é de apreender o discurso como entrecruzamento de um texto e de um lugar social,
quer dizer que seu objeto não é nem a organização textual nem a situação de
comunicação, mas aquilo que os une através de um dispositivo de enunciação
específico que provém ao mesmo tempo do verbal e do institucional. Aqui, a noção
de “lugar social” não deve ser apreendida de maneira imediata: pode se tratar de um
posicionamento num campo discursivo (político, religioso...). Em qualquer um dos
casos, o analista do discurso é obrigado a atribuir um papel central à noção de gênero
de discurso, que, por natureza, leva ao fracasso de toda exterioridade simples entre
“texto” e “contexto”. Assim, pensar os lugares independentemente das palavras que
autorizam (redução sociológica), ou pensar as palavras independentemente dos
lugares dos quais elas são parte beneficiária (redução linguística), isso seria ficar
aquém das exigências que fundam a análise do discurso. (MAINGUENEAU, 2008b,
p. 143).

Os gêneros não são considerados pela AD francesa, portanto, como modelos de


enunciados que são preenchidos, independentemente de contexto, pelo locutor ao produzir um
texto. Admitindo as relativas regularidades composicionais, temáticas e estilísticas dos
enunciados que pertencem a um mesmo gênero, os analistas do discurso consideram o gênero
um critério por meio do qual é possível apreender as condições (MAINGUENEAU, 2008a)
pelas quais os discursos se materializam em textos, dentre as quais estão, principalmente: a
finalidade socialmente reconhecida do gênero instanciado em textos; os papéis assumidos pelos
interlocutores e a legitimidade social e institucional desses papéis; o lugar da enunciação, não
como espaço físico e externo, mas como parâmetro constitutivo do discurso; a temporalidade
85

do discurso (ele pode ocorrer periodicamente ou não, pode ter uma duração mais ou menos
prevista, um tempo de validade etc.); um modo de existência material; e, por fim, uma
organização textual, seguindo planos mais ou menos rigorosos de estruturação, cujo estudo cabe
à Linguística Textual (MAINGUENEAU, 2008a)21.
Tomemos como parâmetro a esfera religiosa para exemplificar, com base nessa
perspectiva discursiva, como os gêneros do discurso consistem em dispositivos enunciativos
que ligam, constitutivamente, um texto a um contexto. As igrejas (os templos), como lugares
legítimos de circulação de gêneros da esfera religiosa, tais como missa, culto, adoração,
batismo, casamento religioso, crisma etc., autorizam essas formas de ação linguageira, de
acordo com as regras instituídas em âmbito tanto social como institucional. Assim, em uma
igreja católica, a ocorrência de uma missa eucarística implica o estabelecimento de papéis e
funções bem delimitados e reconhecidos tanto pela própria Igreja como pela sociedade como
um todo (padre, fiéis, coroinha etc.), a finalidade da interação (celebrar a eucaristia), o tempo
do acontecimento (em geral, em torno de uma hora) e uma organização textual bastante
ritualizada (rito inicial, liturgia da palavra, liturgia eucarística, ofertório etc.). O lugar da missa,
no entanto, pode ser outro, que não a igreja/o templo: pode ocorrer em uma praça pública, no
pátio de uma escola, no barracão de um centro comunitário, mas, ainda assim, ser uma missa.
O significado da transgressão é que muda: “pode-se tratar de legitimar um espaço normalmente
ilegítimo (mostrando que a Igreja deve abrir-se ao mundo)” (MAINGUENEAU, 2008a, p. 66).
A transgressão também pode dar-se no sentido inverso, de o espaço da igreja/templo ser
ocupado para atender a outras finalidades que não lhe são típicas, como de oferecer educação
escolar, por meio do gênero aula, que institui papéis relacionados ao campo escolar (professor,
alunos, diretor, coordenador pedagógico), com uma organização textual e discursiva própria,
com um tempo de acontecimento igualmente próprio.
Pensando essas condições por um prisma argumentativo, podemos dizer que abrir
as portas de um templo religioso para uma interação típica de outra esfera/campo social pode
ter um significado retórico importante para uma Igreja, pois sugere que a Educação é
considerada por ela um valor e que está preocupada em participar ativamente de sua garantia.
O gesto de concessão do espaço que não é considerado propriamente educacional supõe o
partilhamento de uma doxa e pode visar à persuasão do auditório particular daquela instituição
religiosa, no sentido de reforçar sua crença na imagem que essa Igreja constrói ou busca
construir de si junto a seus fiéis e à sociedade. Vemos que tanto a manutenção como a subversão

21
Problematizaremos mais adiante esse modo de perspectivizar a relação entre discurso e texto.
86

de um status quo em um dado campo é intrínseca (e não exterior) ao discurso, pois é pela via
do gênero instanciado em textos que esses movimentos (em especial, a distribuição de papéis)
podem ser instituídos e reconhecidos.
Além das condições de êxito mencionadas acima, Maingueneau (2008a) relaciona
o gênero àquilo que ele denomina cena de enunciação e a estas três metáforas às quais recorre
para analisar as coerções operadas pela noção de gênero: contrato, papel e jogo. A ideia de um
contrato instituído pelo gênero, fundador do ato de linguagem, confere à enunciação uma
normatividade que requer a cooperação dos coenunciadores, tanto para seguir as regras
previstas nesse contrato – que entendemos serem quase sempre tácitas e derivadas do
conhecimento intuitivo sedimentado pelas experiências sociodiscursivas dos sujeitos – como
para sofrer as sanções previstas em caso de transgressão. Cada gênero também determina as
possibilidades de papéis a serem desempenhados pelos coenunciadores, conforme as
circunstâncias de enunciação. Um trabalhador no desenvolvimento de sua função exerce o papel
de policial, de professor, de engenheiro, conforme o contrato de trabalho formalmente
estabelecido; diferentemente, o mesmo sujeito empírico pode exercer o papel de pai de família
em outros contextos de interação e, no exercício desses diversos papéis, não é concebido como
sujeito empírico, mas como sujeito enunciativo e discursivo. A ideia de jogo entrecruza as
metáforas do contrato e dos papéis, com um adendo: “contrariamente às regras do jogo, as
regras do discurso nada têm de rígido: elas possuem zonas de variação, os gêneros podem se
transformar. Além disso, o gênero de discurso raramente é gratuito, ao passo que o jogo exclui
as finalidades práticas, visando apenas ao lazer” (MAINGUENEAU, 2008a, p. 70). No nosso
entender, a concepção de gênero como implicando um jogo também remete à ideia de que os
coenunciadores, enquanto “jogadores”, fazem especulações em torno das reações do(s) outro(s)
com o(s) qual(is) interagem e dos efeitos que podem decorrer de certas escolhas linguísticas,
textuais e discursivas, o que os leva a se comportarem, em parte, como estrategistas que se
submetem ao contrato e a outras coerções de natureza genérica (e, consequentemente,
institucionais e sociais), mas que também transformam em alguma medida a situação da qual
participam.
Quanto à categoria denominada cena de enunciação, Maingueneau (2008a) parte
do princípio de que “Um texto não é um conjunto de signos inertes, mas o rastro deixado por
um discurso em que a fala é encenada.” (p. 85, grifo do autor). A cena de enunciação comporta
três dimensões: cena englobante, cena genérica e cenografia. A cena englobante diz respeito ao
tipo de discurso ao qual pertence um texto (religioso, político, científico, literário etc.), o que
situa os coenunciadores em um contexto de fala que indicia os papéis representados e a
87

finalidade da interpelação. Essa cena, no entanto, não é suficiente para definir o quadro espaço-
temporal mais específico no qual os papéis são definidos em razão de finalidades mais precisas;
um discurso de tipo político, por exemplo, ganha contornos mais nítidos quando se manifesta e
interpela o coenunciador por meio de um debate televisivo, ou de uma peça publicitária
publicada em outdoor ou, ainda, de um panfleto distribuído em via pública. Assim, é a cena
genérica que institui com mais precisão as circunstâncias da enunciação, isso porque é com
gêneros que lidamos constantemente. São essas duas cenas, a englobante e a genérica, que
definem o “quadro cênico” do texto.
Alguns textos, a depender do grau de suscetibilidade de cada gênero, também
podem apresentar uma outra cena, a que Maingueneau (2008a) chama de cenografia, que é
engendrada pelo próprio discurso, e não pelo quadro cênico (que envolve o tipo e o gênero do
discurso). Maingueneau ressalta o papel nuclear do leitor/ouvinte (ou melhor, a imagem dele
previamente implicada em cada gênero) na construção dos enunciados e considera que há uma
variação de suscetibilidade genérica quanto à manifestação de cenografias variadas. Assim
como nem todos os gêneros são suscetíveis a uma manifestação de estilo individual, nem todo
gênero autoriza o desenvolvimento de cenas enunciativas variadas. É o caso, por exemplo, de
certas correspondências oficiais e das ordens militares, que não permitem afastamento de
modelos preestabelecidos. Diferentemente desses, há gêneros que abrem espaço a variações de
estilo e de cenografias. Vamos arriscar22 uma exemplificação de como a fala é encenada no
texto do exemplo (10) a seguir.

Exemplo (10)

Das duas, uma


(Gilberto Gil)

Das duas, uma


Ou será pluma
Ou será pedra e pesará
Se forem hábeis e sábios e sãos
Serão amáveis e tempo terão
Pra fazer da vida a dois
Dois chumaços de algodão
E os frágeis cristais
Das aventuras
Encontrarão proteção e, quem sabe, quebrarão jamais

22
O verbo “arriscar” nos parece apropriado a este contexto enunciativo, qual seja, o de escrevermos, em uma tese,
sobre uma disciplina cujos pressupostos interpretamos a partir de nosso lugar, que é a Linguística Textual.
88

Se porventura
A vida dura
Lhes for madrasta e voraz
Sejam capazes, audazes e bons

Façam das pazes noturnos bombons


E os percalços naturais
Farão parte da canção
Serão tropeços
E recomeços
Um a cada vez, cada mês
E vocês se acostumarão
Fonte: https://www.letras.mus.br/gilberto-gil/1687138/ Acesso em: 09/01/2018.

O texto do exemplo (10) é a letra da canção Das duas, uma, composta por Gilberto
Gil, e que compõe o repertório do álbum Banda dois, do mesmo compositor e intérprete. A cena
enunciativa desse texto envolve a cena englobante que poderíamos, talvez, denominar de lítero-
musical brasileira (COSTA, 2001), a cena genérica de uma canção e a cenografia de um
aconselhamento23. Essa cenografia é indiciada, entre outros aspectos linguísticos, pela escolha
da conjunção condicional se (Se forem hábeis e sábios e sãos/Serão amáveis e tempo terão...),
do imperativo (Sejam capazes, audazes e bons/Façam das pazes noturnos bombons) e do futuro
do indicativo (E os percalços naturais/Farão parte da canção/Serão tropeços/E recomeços/Um
a cada vez, cada mês/E vocês se acostumarão), que ajudam a construir, não só a cenografia de
um aconselhamento, mas também uma “personalidade do enunciador” (MAINGUENEAU,
2008a) ou um ethos. Neste caso, o ethos de um pai experiente, sábio e prudente, que adverte a
filha sobre o que pode e deve ser feito na situação de uma vida a dois iminente, recomendando-
lhe agir de um modo e não de outro e prevendo a ocorrência de “percalços naturais” a um
casamento. O ethos na AD de Maingueneau também está relacionado a gêneros do discurso,
mas não vamos nos deter nessa questão, neste ponto de nosso trabalho, porque trataremos de
ethos mais adiante.
Vemos, por essa breve explanação a respeito de como a AD francesa de Dominique
Maingueneau aborda a questão dos gêneros de discurso, que a ênfase nos estudos do analista
recai sobre “aspectos ‘extralinguísticos’, o que diferencia seu trabalho daqueles que priorizam
o estudo dos gêneros levando em conta, sobretudo, suas características formais”
(CAVALCANTI, 2013, p. 436). Indubitavelmente, a AD, com o estudo dos “aspectos

23
Essa canção foi composta para Maria, uma das filhas de Gilberto Gil, por ocasião de seu casamento. Essa
informação é dada pelo próprio compositor, quando termina de executar a referida canção, em uma das faixas do
DVD Banda dois.
89

extralinguísticos” (aspectos de ordem ideológica, institucional, cultural, social, histórica) que


incidem sobre a vida da linguagem, oferece um arsenal teórico deveras interessante à LT, já
que nossa concepção de texto não se reduz à superfície linguística e se estende à dimensão
discursiva da produção linguageira. Todavia, os conceitos e as categorias analíticas da AD são,
por um processo discursivo e científico convencionalmente esperado, vistos por nós pelas lentes
do lugar que ocupamos na esfera acadêmico-científica.
Pelas lentes da LT na qual já declaramos nos situar (aquela representada pelos
estudos operados pelo Grupo Protexto), o texto não é mera “estrutura” superior à frase
(MAINGUENEAU, 2015, p. 37) ou simplesmente “uma sequência de frases que forma um todo
coerente” (MAINGUENEAU, 2017, p. 110). A nosso ver, o texto é uma abstração de coerência,
uma totalidade cuja ocorrência é singular, pois consiste em um evento da vida da linguagem. O
texto, por esse prisma, não se resume a uma organização linguística, não é apenas superfície
(lembremos da metáfora do iceberg utilizada por Ingedore Koch [KOCH, 2002]); a coerência
textual, os possíveis sentidos de um texto são construídos no decorrer de uma interação entre
sujeitos sociais que mobilizam contextos sociocognitivos tanto para produzi-lo como para
compreendê-lo. O processamento textual, por essa perspectiva sociocognitiva e interacional,
concebe um equilíbrio entre o social e o individual: os textos não só materializam as condições
sociais de existência e de uso da linguagem como também produzem essas condições.
A lupa pela qual enxergamos a cena enunciativa de Dominique Maingueneau,
portanto, nos faz vê-la não apenas como sobredeterminada pelo discurso, mas também como
sendo instituída pelo texto em uma determinada enunciação. Em outras palavras: o texto é, para
nós, a um só tempo, “o rastro deixado por um discurso em que a fala é encenada” (cf.
MAINGUENEAU, 2008a) e a unidade da comunicação discursiva que produz essa encenação.
No exemplo (10) acima – a canção Das duas, uma –, o texto não somente materializa o discurso
conselheiro como também institui a cenografia de um aconselhamento, assim como institui o
ethos de um enunciador sábio e experiente. O texto não só materializa o discurso de tipo lítero-
musical e as condições do gênero canção, mas também instaura, por ocasião de sua enunciação,
a cena englobante lítero-musical e a cena genérica da canção. Essa forma de ver a relação entre
discurso e texto – como sendo uma via de mão dupla – é a que orientará nossas análises.
Retornaremos a ela mais adiante. Por ora, é pertinente afirmar que a noção de cena enunciativa
será interessante para discutirmos a respeito das coerções discursivas que incidem sobre o nível
composicional dos gêneros e dos textos (e sobre como a textualização institui cenas
enunciativas).
90

A partir daqui, passaremos a nos ocupar, também brevemente, do modo como a


análise argumentativa do discurso de Ruth Amossy aborda a argumentatividade pelo critério do
gênero do discurso.
Segundo Amossy (2011a, 2018), considerar o gênero de discurso no qual a
argumentatividade se manifesta, seja em sua visada, seja tão somente em sua dimensão
argumentativa, confere à análise da argumentação uma dimensão social e institucional que
ultrapassa as análises retóricas que repertoriam universais argumentativos. A nova retórica
considera o social na medida em que assume o pressuposto de que a argumentação se baseia
em crenças, valores e sentimentos socialmente construídos, assentando-se, por isso, no
razoável. O logos retórico, então, é o lugar de uma razão negociada, contingente. A descrição
das técnicas argumentativas feita por Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) indica que, de modo
geral, a nova retórica preocupa-se com o estudo das ligações operadas por um raciocínio
razoável e com sua classificação, ou seja, com os esquemas de raciocínio subjacentes à
argumentação, tratando de abstraí-los das realizações linguageiras concretas. A análise retórica,
portanto, não se ocupa dos funcionamentos linguageiros propriamente ditos; essa é uma
preocupação, de acordo com Amossy (2011a, 2018), dos estudos sobre argumentação
realizados no âmbito das ciências da linguagem. A análise da argumentação no discurso
pretende ir “além da esquematização que restitui um raciocínio abstrato”, a fim de “ver como
funciona, efetivamente, a estratégia de persuasão em uma situação de comunicação dada”
(AMOSSY, 2011a, p. 132). Como detalharemos adiante, uma dessas estratégias de persuasão
diz respeito à opção por um determinado gênero do discurso.
No âmbito da AAD, a razão atemporal da retórica é reconfigurada por princípios
conceituais escolhidos por Amossy para caracterizar sua proposta: trata-se de uma abordagem
linguageira, comunicacional, dialógica e interacional, genérica, estilística e textual. São esses
princípios que motivam uma reorientação dos estudos retóricos pela AAD de Amossy.

Para a autora, verificar a estrutura dos argumentos e os efeitos que as técnicas


argumentativas surtem só faz sentido se o fizermos considerando a rede
interdiscursiva e o contexto comunicacional em que eles operam. Por isso, sua
proposta consiste em identificar, com base em traços linguísticos, quais os esquemas
abstratos correspondentes aos tipos de argumento empregados (por analogia, por
consequência, pela regra de justiça etc.). Mas, diferentemente de como procede a
Nova Retórica, sua Teoria da Argumentação no Discurso cuida de explicar como os
argumentos são colocados em discurso, ou como um dado discurso confere força aos
argumentos selecionados, e vice-versa. (CAVALCANTE, 2016, p. 116).

Colocar os argumentos em discurso implica situá-los em um quadro discursivo, que


envolve o campo ao qual pertence e o gênero no qual se inscreve a troca verbal (AMOSSY,
91

2006, p. 2015). São os quadros discursivos e institucionais que determinam as finalidades da


fala, a distribuição dos papéis e a gestão da troca verbal; e, conforme vimos com Maingueneau
(2008a, 2008b), são os gêneros que refletem a ligação de um texto a um lugar social, daí a sua
pertinência para os estudos em AD. Segundo Amossy (2006, p. 217, tradução livre),

O gênero de discurso é um modelo discursivo que compreende um conjunto de regras


de funcionamento e de restrições. Os gêneros são reconhecidos e valorizados pelas
instituições segundo princípios variáveis de hierarquização. Eles permitem socializar
a fala individual, emoldurando-a nas formas consagradas e repertoriadas que
determinam um horizonte de expectativas. Tem-se observado frequentemente que,
sem a mediação dos gêneros, a interlocução seria impossível: eles autorizam, de fato,
a boa recepção de um discurso, orientando de cara a sua escuta ou a sua leitura.

É tendo em mente essa concepção de gênero de discurso que Amossy (2006, 2011a)
classifica e divide discursos de dimensão argumentativa (notícia, artigo científico, reportagem,
autobiografia, histórias de ficção, carta pessoal, conversação cotidiana) e de visada
argumentativa (anúncio publicitário, discurso eleitoral, pregação religiosa, manifesto político
ou literário). Quanto às modalidades argumentativas, Amossy (2008) as define segundo traços
genéricos e as exemplifica com gêneros que privilegiam cada modalidade. Assim, negociações
comerciais, trocas diplomáticas, audiências de conciliação são gêneros que privilegiam a
modalidade negociada; manual escolar, aula, palestra, história de literatura infantil privilegiam
a modalidade pedagógica; debate eleitoral, artigo de opinião, fórum de discussão privilegiam a
modalidade polêmica.
A divisão entre dialogal e dialógico envolve, de igual modo, distinções genéricas
que Amossy (2006) considera fundamentais para a argumentação no discurso, porque
“representam um princípio de classificação das interações” (p. 218) que leva em conta distintas
formas de reações por parte dos interlocutores. Estabelecendo correspondência entre essa
divisão e a divisão aristotélica entre dialética (dialogal) e retórica (dialógica), a linguista
distingue as “interações reais face a face” (que ocorrem na presença do outro e que contam com
as reações imediatas dele, podendo o locutor adaptar-se a essas reações, enfrentar
imediatamente as oposições ou negociar significações) das “interações virtuais” (mais
planejadas, que ocorrem sem a presença efetiva do interlocutor e, consequentemente, sem a
intervenção imediata dele). As duas categorias dessa divisão balizam o modo como Amossy
(2006) aborda a questão do gênero na análise da argumentação em “dois textos”24: uma carta

24
O anexo 7 do livro L’argumentation dans le discours (2006), ao qual estamos nos referindo aqui, reúne pequenos
fragmentos de entrevistas televisivas eleitorais. Entendemos, então, que a autora está considerando o anexo como
sendo “um texto”. Convém esclarecermos, no entanto, em consonância com os pressupostos que adotamos da LT,
que não se trata de um texto, mas de vários textos (cada entrevista correspondendo a uma unidade de coerência,
92

aberta intitulada À la “Mère inconnue” du “Soldat inconnu”25, escrita por Madeleine Vernet
e publicada, em 1920, no jornal La Mère éducatrice (fundado pela própria Vernet); e entrevistas
televisivas eleitorais (na verdade, fragmentos delas) com Jacques Chirac e Jean-Marie Le Pen,
realizadas por ocasião das eleições presidenciais na França em 2002. Essa análise evoca
categorias retóricas e discursivas (auditório, ethos, doxa, interdiscurso etc.) e põe em relevo
aspectos que a autora considera estarem relacionados aos gêneros: a inscrição do auditório na
carta aberta e o tratamento das faces nas entrevistas televisivas eleitorais. Para efeito de
ilustração de como Amossy procede nesse estudo, relataremos brevemente a análise da carta
aberta.
A análise que Amossy (2006) faz da carta de Madeleine Vernet inicia com uma
descrição do gênero, com foco na relação que ele estabelece entre o autor de uma carta aberta
e seu auditório. De acordo com a autora, a questão do auditório encontra-se “no coração” desse
gênero. Consistindo em um texto que se apresenta no formato de uma carta, podendo vir a
público por meio de um jornal, de uma revista, de um panfleto, de um sítio na Internet (todos
esses meios implicando acesso em larga escala), a carta aberta busca intervir em assuntos
públicos, suscitando ou reavivando um debate em torno de temas por vezes polêmicos. É o que
ocorre com o texto de Vernet: reagindo à cerimônia de homenagem aos combatentes que
morreram pela França na Primeira Guerra Mundial, cerimônia realizada sob a forma de enterro
solene de um soldado cuja identidade é desconhecida, em 11 de novembro de 1920, sob o Arco
do Triunfo, essa carta é publicada em 14 de novembro do mesmo ano para exprimir um
posicionamento pacifista e para buscar arregimentar mulheres em torno do mesmo
posicionamento e da luta por direitos sociais dos quais são excluídas (elas não tinham, por
exemplo, direito a voto nessa época), tentando predispor esse auditório feminino à ação política.
A destinatária inscrita na carta em tela – a “mãe desconhecida do soldado desconhecido” – é
uma leitora fictícia, mas simbólica, pois, ao dirigir-se a ela, a autora institui o seu verdadeiro
destinatário, que é o público composto, mais imediatamente, pelas leitoras da revista La Mère
éducatrice (mulheres mães e professoras dedicadas à educação de crianças) e, mais
amplamente, pelas mulheres da França. É nesse sentido que a carta aberta se caracteriza como
um gênero cujo endereçamento é duplo. Ainda que o destinatário seja uma pessoa real
(geralmente uma figura que desempenha funções institucionais de destaque em uma sociedade),
o auditório a ser persuadido é o terceiro, o público ao qual a leitura do texto é aberta.

isto é, a um texto), e que o referido anexo fragmenta e compila, a propósito do objetivo analítico da autora, esse
conjunto de textos.
25
À “mãe desconhecida” do “soldado desconhecido”.
93

Em À la “Mère inconnue” du “Soldat inconnu”, a instância de alocução tem um


valor de representatividade importante. Ao interpelar uma leitora anônima (“Eu não sei quem
você é, mulher pobre ignorada, seu nome é desconhecido para mim”) e sofredora (“em meus
olhos, você é apenas aquela que chora nas sombras, chamando às vezes pela carne de sua
carne”), a autora da carta institui a imagem simbólica da maternidade (real ou potencial) sofrida
e da própria mulher (vista por uma perspectiva biológica, a mesma que é usada como critério
para a exclusão social das mulheres na França). Amossy salienta que o desejo de participação
das mulheres em decisões políticas não entra em efetiva contradição com os valores tradicionais
da família também defendidos por mulheres em círculos femininos progressistas naquela
década. De acordo com Amossy (2006, p. 224, tradução livre),

A maternidade serve aqui, como em muitas outras ocasiões, como um link entre essas
duas postulações contraditórias. É porque dá vida que a mulher deveria se opor
espontaneamente à violência bélica e fazer valer sua vontade de paz na arena política.
Que ela seja sincera ou estratégica, a essencialização da feminilidade é mobilizada
para defender a causa pacifista e dar às mulheres o direito de falar. É nesse contexto
que as leitoras, mesmo feministas e engajadas na causa pacifista, podem se identificar
com a figura da Mãe e disso tirar sua força. Além disso, é o papel da Mater dolorosa
cujo filho foi sacrificado por e para a comunidade que lhes confere o direito de intervir
no debate público sobre a guerra. É por isso que a autora da carta aberta pode supor
que a leitora de La Mère éducatrice poderá e quererá, ela também, se reconhecer na
figura emblemática da Mãe desconhecida do soldado desconhecido.

Quanto às estratégias retóricas utilizadas na carta, Amossy identifica a construção


de um ethos a partir do qual a locutora se projeta como um “eu” sábio e doutrinador que
esclarece o “tu” ignorante, vítima da guerra, e que perdoa seu erro (é a ignorância que o impede
de enxergar os malefícios do patriotismo). Nesse jogo, a autora da carta também busca incluir,
por meio de um “nós”, a parcela mais instruída e engajada de leitoras da revista na instância de
alocução. Além de erigir em torno de si uma imagem de mãe crítica, que julga (mas também
perdoa) a ignorante “mãe desconhecida do soldado desconhecido” e condena a ideologia
patriótica, a autora da carta demonstra empatia e convoca seu auditório a compartilhar de seu
posicionamento pacifista. É recorrendo ao pathos que ela busca conscientizar seu auditório
ainda não engajado na causa pacifista a insurgir-se contra a guerra. As repetições, em especial
da “fórmula encantatória” “mãe desconhecida do soldado desconhecido”, os efeitos rítmicos e
os clichês, segundo Amossy, são recursos verbais que contribuem para envolver o auditório no
sofrimento provocado pela ausência e pela perda (potencializado pelo desaparecimento do
corpo do filho) e, consequentemente, para levar a uma identificação com a dor da mãe. Por
meio de argumentos-tipo dos discursos socialista e antimilitarista, Vernet liga doutrina e pathos
94

no propósito de unir as mulheres na revolta ativa contra a guerra e na reivindicação de seus


direitos e de medidas de paz.
Essa análise da carta aberta nos serve de exemplo do modo como Amossy (2006)
procede no estudo da argumentação pelo critério do gênero de discurso.
A consideração dos gêneros do discurso para a análise da argumentação participa
também de uma distinção formal relativa ao funcionamento da polêmica: trata-se da distinção
que Amossy (2014) faz entre discurso polêmico e interação polêmica. Conforme expusemos
em capítulo precedente, a autora considera o discurso polêmico como sendo um dispositivo
dialógico, mas não dialogal, de manifestação da polêmica, porque envolve somente uma das
partes em presença (sem “interação direta” com o adversário); a interação polêmica, por outro
lado, seria tanto dialógica como dialogal, pois envolve pelo menos dois locutores adversários
engajados em uma discussão oral ou escrita, síncrona ou assíncrona. A exemplificação de
ambos os “dispositivos” ou “modalidades” é operada por três gêneros que Amossy considera
representativos dessas formas de manifestação da polêmica: o artigo de opinião (discurso
polêmico), o debate televisivo e o post em fórum de discussão (interações polêmicas).
Consideramos que tal distinção feita por Amossy (2014) é importante na medida
em que essas formas de manifestação da polêmica implicam diferentes possibilidades de
defesas e refutações de pontos de vista e/ou de opiniões. Todavia, preferimos não adotar a
categorização da autora, por entendermos que discurso e interação são elementos constitutivos
da comunicação discursiva, independentemente da forma de manifestação/materialização do
discurso e do modo como ocorre a interação. Por isso, optamos por conceber os traços
assinalados por Amossy (presença de um ou mais debatedores, sincronia ou assincronia) como
aspectos relacionados aos tipos de interação mais ou menos previstos para a instanciação de um
gênero por um texto: um debate televisivo requer, sempre e necessariamente, que pelo menos
dois locutores desempenhem o papel de debatedores e que a troca seja síncrona; um artigo de
opinião, em geral, prevê que o papel de articulista seja desempenhado por somente um locutor;
um comentário geralmente responde a uma publicação principal ou a outro(s) comentário(s), e
essa troca é assíncrona. Essas variações interacionais nos levam a considerar as condições e
possibilidades de engajamento em uma polêmica: quando somente um locutor materializa uma
polêmica em um texto escrito, em uma interação assíncrona, mobilizando vozes de outros
enunciadores e situando-as em uma encenação de debate, ele pode fazê-lo de modo a implicar-
se na argumentação (como é de se esperar em um artigo de opinião) ou pode criar um efeito de
distanciamento (como ocorre, algumas vezes, em textos do gênero notícia). Falamos em “criar
um efeito de distanciamento” e não em “distanciar-se (de fato)” porque entendemos que toda
95

enunciação implica escolhas do locutor em relação ao seu dizer e que essas escolhas são
estratégicas, isto é, são feitas em função da influência que o locutor supõe poder exercer sobre
seu(s) interlocutor(es).
Tanto na AD como na AAD (que Amossy propõe seja um ramo daquela disciplina),
vemos que o gênero do discurso não é tomado como objeto em si a ser estudado. Os analistas
não se propõem a descrever o funcionamento de gêneros, mas, sim, os tomam como critérios
de análise da discursividade, de como os discursos investem ou subvertem as regras discursivas
próprias dos gêneros. Feitas essas breves considerações sobre as categorias utilizadas pela AD
e pela AAD para analisar a argumentatividade pelo critério do gênero, passemos à nossa
proposta.

4.2 Gêneros do discurso e textos: aspectos conceituais

A concepção de gênero com a qual operaremos em nosso estudo é a de Mikhail


Bakhtin, para quem os gêneros são, basicamente, os “tipos relativamente estáveis de
enunciados”. Como esse conceito acarreta algumas outras implicações teóricas e metodológicas
relacionadas ao estudo da textualidade que pretendemos empreender, partiremos de um trecho
inicial do texto Gêneros do discurso, para discutir sobre nossas escolhas conceptuais e
analíticas.

O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e


únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana.
Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido
campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela
seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua, mas, acima de
tudo, por sua construção composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo
temático, o estilo, a construção composicional – estão indissoluvelmente ligados no
conjunto do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um
campo de comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas
cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de
enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso. (BAKHTIN, 2016, p. 11-12,
grifos em itálico constam na obra; grifo em negrito é nosso).

O conceito de enunciado figura como núcleo do pensamento bakhtiniano sobre


linguagem, tomado como unidade dialógica e elo do processo de comunicação humana. O
enunciado em Bakhtin equivale, sob vários aspectos, a texto, tal como o concebemos na LT
atual e, portanto, o texto na perspectiva bakhtiniana de linguagem é a unidade concreta e viva
da comunicação discursiva. É concreto e único/irrepetível por sua relação imediata com a vida
e com a circunstância de sua enunciação – que pressupõe a língua atualizada no e pelo uso, em
96

um contexto discursivo, e não a língua como sistema –, e é individual porque proferido por um
sujeito que responde pela autoria do enunciado, um sujeito de discurso que fala a partir de um
lugar e de um tempo tomados por uma perspectiva também social, semiótica e discursiva, não
somente empírica. É por isso que “Como representação cronotópica, texto é evento que se
desenrola entre discursos e em enunciações precisas” (MACHADO, 1996, p. 90, grifos da
autora). Ele é proferido por um determinado sujeito (na teoria bakhtiniana, denominado autor)
que integra um campo/esfera social e que “joga” com as regras desse campo. Assim, o
enunciado é individual, mas reflete as condições de um dado campo da comunicação humana
na medida em que se manifesta sob a forma de um gênero do discurso, sendo também, portanto,
de caráter intersubjetivo e social.
Como evento cronotópico, o texto/enunciado é concreto. Mas, do ponto de vista da
coerência, isto é, da construção de uma unidade de sentido ou de um propósito comunicativo,
texto é abstração. A coerência, como princípio de interpretabilidade (CAVALCANTE, 2012),
não é algo que se encontre na materialidade/superfície textual, no chamado cotexto (contexto
estritamente linguístico de um texto); ela é construída e negociada ao longo de um processo
sociocognitivo realizado por sujeitos imersos em uma situação comunicativa e influenciados
por fatores de ordem não só linguística, mas também ideológica, sócio-histórica, institucional
e cultural. As palavras, frases e articulações coesivas, por essa ótica de base sociocognitivista e
interacionista, oferecem um horizonte de possibilidades a partir do qual se pode construir
sentidos prováveis, não definitivos. Isso porque cada sujeito que interage por meio da
linguagem mobiliza uma série de conhecimentos derivados de suas experiências, a um só
tempo, individuais e sociais – conhecimentos linguísticos, conhecimentos de mundo,
conhecimentos interacionais – que convergem para edificação de sentidos em uma dada
circunstância enunciativa.
Para a LT na qual nos situamos, portanto, o texto não é (nem mesmo a grosso modo)
uma sequência de frases26, não é a unidade linguística máxima, superior à frase. Trata-se de
uma “unidade processual” que exorbita as análises de nível morfossintático (MARCUSCHI,
2008, p. 72), trata-se de “um evento comunicativo em que convergem ações linguísticas, sociais
e cognitivas” (BEAUGRANDE, 1997 apud MARCUSCHI, 2008, p. 72). Assim, o texto
implica, fundamentalmente, o contexto também sócio-histórico e ideológico de uma dada
interação, ou seja, implica o discurso.

26
A concepção de texto como sequência de frases situa-se na fase inicial das pesquisas em LT e já foi há muito
superada no interior dessa disciplina. Sobre as fases investigativas da LT, ver Fávero & Koch (2005) e Bentes
(2008).
97

Entendemos, assim como Bakhtin (2016), que a relação entre o individual e o social
(também histórico, institucional, cultural e ideológico) é engendrada pelos gêneros do discurso,
cujos traços linguageiros – conteúdo temático, estilo e construção composicional – refletem nos
textos as condições e finalidades específicas dos variados campos da atividade humana. É
somente quando consideramos o papel dos gêneros na imbricação entre texto e discurso que
conseguimos conceber o texto como um evento, ou, em outras palavras, “O enunciado
(produção de discurso) como uma totalidade individual singular e historicamente único [sic]”
(BAKHTIN, 2016, p. 106). Pensemos neste texto do exemplo (11):

Exemplo (11)

Hino Nacional Brasileiro


Compositores: Letra – Joaquim Osório Duque Estrada; Música – Francisco Manoel
da Silva

I
Ouviram do Ipiranga às margens plácidas
De um povo heroico o brado retumbante
E o sol da Liberdade, em raios fúlgidos
Brilhou no céu da Pátria nesse instante

Se o penhor dessa igualdade


Conseguimos conquistar com braço forte
Em teu seio, ó Liberdade
Desafia o nosso peito a própria morte!

Ó Pátria amada
Idolatrada
Salve! Salve!

Brasil, um sonho intenso, um raio vívido


De amor e de esperança à terra desce
Se em teu formoso céu, risonho e límpido
A imagem do Cruzeiro resplandece

Gigante pela própria natureza


És belo, és forte, impávido colosso
E o teu futuro espelha essa grandeza

Terra adorada
Entre outras mil
És tu, Brasil
Ó Pátria amada!

Dos filhos deste solo és mãe gentil


Pátria amada
98

Brasil!

II

Deitado eternamente em berço esplêndido


Ao som do mar e à luz do céu profundo
Fulguras, ó Brasil, florão da América
Iluminado ao sol do novo mundo!

Do que a terra mais garrida


Teus risonhos, lindos campos têm mais flores
Nossos bosques têm mais vida
Nossas vidas em teu seio mais amores

Ó Pátria amada
Idolatrada
Salve! Salve!

Brasil, de amor eterno seja símbolo


O lábaro que ostentas estrelado
E diga o verde-louro desta flâmula
Paz no futuro e glória no passado

Mas, se ergues da justiça a clava forte


Verás que um filho teu não foge à luta
Nem teme, quem te adora, a própria morte

Terra adorada
Entre outras mil
És tu, Brasil
Ó Pátria amada

Dos filhos deste solo és mãe gentil


Pátria amada
Brasil!

O texto do exemplo (11) somente se constitui enquanto tal a cada vez em que é
enunciado. Isso porque a coerência, sua unidade de sentido, é um dos fatores de textualidade,
ou seja, é um dos traços de constituição textual. Mas, conforme já afirmamos, a coerência não
se abstrai tão somente dos encadeamentos entre partes do texto; ela sempre é abstraída a partir
de um contexto de enunciação e engloba, principalmente, as inferências que um sujeito
necessita fazer para construir sentidos. Assim, a materialidade semiótica do Hino Nacional
Brasileiro (sua letra e sua música) já foi e continuará a ser repetida várias vezes, em diversas
situações, mas, a cada vez que esse hino é enunciado, a coerência que se constrói para ele é
única e singular; seu sentido, para cada sujeito que o enuncia, também é sui generis.
99

Um dos tipos de conhecimentos acionados por ocasião do processamento de um


texto é aquele denominado (socio)interacional27, que diz respeito ao saber “como proceder nas
mais diversas situações comunicativas e como lidar com os variados gêneros e com os contextos
em que são usados” (CAVALCANTE, 2012, p. 23). Todos os brasileiros sabemos, graças a
nossas mais variadas experiências socioculturais, em que situações costumamos entoar o Hino
Nacional de nosso país: em abertura e/ou encerramento de competições desportivas diversas,
em cerimônias oficiais solenes, em eventos militares etc. Há algumas décadas, era de praxe
cantar o Hino Nacional nas escolas brasileiras. Também sabemos, talvez muito mais
intuitivamente, que a entoação do Hino tem como finalidade exaltar a Pátria, que se trata de
uma composição oficial, que não se deve cantá-lo de qualquer jeito.
O conhecimento (socio)interacional também engloba, segundo Koch (2006[2002]),
o conhecimento superestrutural:

O conhecimento superestrutural, isto é, sobre esquemas textuais, permite reconhecer


textos como exemplares adequados aos diversos eventos da vida social; envolve,
também, conhecimentos sobre as macrocategorias ou unidades globais que
distinguem os vários tipos de textos, sobre a sua ordenação ou sequenciação, bem
como sobre a conexão entre objetivos e estruturas textuais globais. (KOCH,
2006[2002], p. 49).

Apesar de os brasileiros compartilharmos, mais ou menos, desses conhecimentos


(socio)interacionais e de outros conhecimentos armazenados na memória, cada entoação do
Hino Brasileiro, em cada situação em que ocorre, é cantada (ou lida) e compreendida de modo
singular por cada sujeito que interage com essa composição – por isso, pensamos, com
Cavalcante (2016), que texto seja uma abstração de coerência.
O recorte sociocognitivo que cada sujeito empreende para (re)construir a coerência
de um texto, portanto, está intrinsecamente ligado à noção de pertencimento do texto a um
gênero e a todas as consequências decorrentes dessa ligação constitutiva. Podemos pensar a
relação entre texto e gênero enfocando dois fenômenos que, empiricamente, são inseparáveis,
mas que, por operações teóricas e metodológicas diferentes, podem ser separados para
responder a interesses científicos distintos: a discursividade e a textualidade. Conforme
esclarecemos em outras passagens desta tese, nosso intuito não é ignorar as condições e os
efeitos discursivos decorrentes do uso de certas estratégias argumentativas textuais ligadas aos
gêneros do discurso (aliás, isso seria entrar em declarada contradição com a opção teórica que

27
O acionamento de conhecimentos se dá simultaneamente ao longo do processamento (produção ou
compreensão) de um texto; a divisão entre tipos de conhecimentos, ou de estratégias sociocognitivas, envolvidos
nesse processo tem motivação, portanto, de ordem teórica e metodológica, não de ordem prática.
100

fizemos). Todavia, até mesmo por uma questão de coerência com nossa filiação disciplinar,
buscaremos colocar a textualidade na posição de figura das nossas reflexões sobre os usos
argumentativos da linguagem na manifestação de questões polêmicas. Essas reflexões serão
feitas sobre o pano de fundo dos enquadres discursivos que, a um só tempo, condicionam e
derivam das configurações textuais da argumentação interdiscursiva.
Antes de analisarmos mais criteriosamente a textualidade da argumentação no
discurso, revisitaremos a ATD, de Jean-Michel Adam, a fim de problematizar alguns aspectos
pontuais dessa abordagem e de propor um rearranjo da relação que esse autor estabelece entre
a LT e a AD e entre texto e discurso. Em outras palavras, proporemos que nosso diálogo com
a AD se dê de modo um tanto diferente do previsto pela ATD, acarretando na inclusão de outras
categorias de análise para além daquelas que o autor aponta. Passaremos a nos ocupar, a seguir,
da justificação para a escolha das categorias que utilizaremos para realizar nossas análises e da
exemplificação prévia de nosso modus operandi.

4.3 Gêneros e outros critérios de análise: problematização teórica e metodológica

A abordagem denominada Análise Textual dos Discursos (ATD), elaborada por


Jean-Michel Adam, no campo da LT, inscreve-se “na perspectiva de um posicionamento teórico
e metodológico que, com o objetivo de pensar o texto e o discurso em novas categorias, situa
decididamente a linguística textual no quadro mais amplo da análise de discurso28” (ADAM,
2011[2008], p. 24). Nos termos dessa afirmação, a LT seria integrada à AD de modo a figurar
como um subdomínio deste último campo, que Adam considera ser mais amplo, e a ATD seria
a “disciplina” integradora desses “campos” (ADAM, 2010). E qual seria a questão que Adam
supõe ser de interesse comum à LT e à AD e que justificaria tal associação? A questão nuclear
dos gêneros do discurso.
Partindo do pressuposto de que um texto não é uma simples sucessão de frases
(ideia defendida já em 1976 por Halliday e Hasan) e que não consiste em uma unidade
gramatical, mas semântica, Adam renuncia à separação entre texto e discurso – separação que
ele mesmo havia preconizado em seus textos publicados ao longo da década de 90 do século
passado – e passa a considerar texto como sendo um objeto empírico bastante complexo, cuja
descrição requer que se recorra ao domínio do discurso, e a textualidade “como conjunto de
operações que levam um sujeito a considerar, na produção e/ou na leitura/audição, que uma

28
A análise de discurso a que se refere o autor diz respeito à versão francesa contemporânea delineada por
Dominique Maingueneau, a mesma da qual a AAD seria, de acordo com R. Amossy, um ramo.
101

sucessão de enunciados forma um todo significante” (ADAM, 2011[2008], p. 25). Com base
ainda na distinção entre “gramática transfrasal” e “linguística textual” proposta por Eugenio
Coseriu, Adam declara sua proposta:

Se a primeira pode ser considerada como uma extensão da linguística clássica, a


linguística textual é, em contrapartida, uma teoria da produção co(n)textual de sentido,
que deve fundar-se na análise de textos concretos. É esse procedimento que nos
propomos desenvolver e designar como análise textual dos discursos. (ADAM,
2011[2008], p. 23, grifo do autor).

O esquema 1 abaixo representa o modo como Adam concebe a integração da LT à


AD. Ao mesmo tempo em que situa a LT no interior da AD, como um subdomínio desta, ele
afirma postular “uma separação e uma complementaridade das tarefas e dos objetos da
linguística textual e da análise do discurso” (ADAM, 2011[2008], p. 43).

Esquema 1 – A LT como subdomínio da AD.

Análise dos discursos

DESCONTINUIDADE
OPERAÇÕES DE SEGMENTAÇÃO
GÊNEROS
& Períodos
LÍNGUA(S) Plano Proposições
INTER- PERITEXTO e/ou Palavras
em uma de texto
DISCURSO sequências
INTERAÇÃO

OPERAÇÕES DE LIGAÇÃO
Formações CONTINUIDADE
sociodis-
cursivas LINGUÍSTICA TEXTUAL

Fonte: Adam (2011[2008], p. 43).

De acordo com esse esquema 1, o objeto da LT – o texto – é regido por


determinações de tipo “ascendentes”, que operam de modo a: i) ligar/encadear níveis textuais
elementares (palavras e proposições) até que se alcancem níveis mais complexos de
constituição textual (períodos, sequências e plano de texto) e, assim, sejam construídas unidades
semânticas; e ii) segmentar unidades textuais, em um movimento de descontinuidade que
permite individualizar níveis elementares e composicionais. Ambas as operações são
indispensáveis à análise textual dos discursos por conta da concepção de textualidade que ela
adota e que já apresentamos acima (conjunto de operações pelas quais uma sucessão de
enunciados se torna um todo significante). Notemos que as operações definidas pelas
102

determinações textuais (situadas à direita no esquema) não ultrapassam os limites do objeto


texto nem os do campo da LT.
As relações estabelecidas no âmbito da análise dos discursos, por outro lado,
incluem aquelas situadas à direita no esquema (o que é coerente com a proposta do autor de
definir a LT como subdomínio da AD), mas considera que há um movimento de regulações
“descendentes” sofridas pelos enunciados por imposição das situações de interação em lugares
sociais, das línguas e dos gêneros. Essa esquematização do lugar da LT na AD sugere que o
textual não prescinde do discursivo. Pelo contrário, admite que a textualidade é condicionada
por fatores discursivos, em um movimento unidirecional que parte do sociodiscursivo em
direção ao textual e que supõe a existência de coerções discursivamente instituídas, mas que
não supõe o inverso – que os textos também instituam discursos.
De acordo com Cavalcante (2016, p. 109),

[Na ATD] O espaço analítico da LT dialogaria com a Análise do Discurso apenas na


medida em que pressupõe princípios caros à AD, como a noção de interdiscurso. Mas,
embora a Análise Textual dos Discursos pressuponha que as unidades de análise do
texto sofram o condicionamento das relações interdiscursivas, ela não se ocupa em
explicá-las como finalidade última, e o investimento maior dessa perspectiva teórica
do texto se encontra nos níveis ou planos da análise textual sempre relacionados aos
gêneros do discurso.

Esse esclarecimento sobre a ATD aponta para duas orientações que vamos assumir
e que, portanto, nos interessa discutir brevemente. A primeira diz respeito ao objetivo da LT e
da ATD no interior da AD: descrever e definir as unidades e as operações de textualidade, em
todos os níveis de complexidade. A realização desse papel implica assumir pressupostos
advindos da AD (relacionados ao que se encontra à esquerda no esquema 1), mas não implica
assumir, como sua finalidade última, a análise da dinâmica propriamente discursiva que incide
sobre a textualidade ou sobre a linguagem em uso – esse papel caberia à AD. A segunda
orientação (estreitamente relacionada à primeira) diz respeito ao estabelecimento de um
diálogo, que Adam propõe, entre dois lugares teóricos e metodológicos distintos, que seriam
integrados pela análise textual. Conforme apresentamos anteriormente, a proposta de Adam é
que a ATD seja considerada uma disciplina do campo da LT e que a LT seja incorporada à AD
como um ramo desta. A ATD, então, toma de empréstimo pressupostos caros à AD para,
primeiramente, retificar a renúncia que Adam fazia da separação entre texto e contexto e,
seguidamente, incluir níveis e categorias da ordem do discurso na descrição da textualidade,
conforme podemos visualizar no esquema 2, abaixo.
103

Esquema 2 – Relação entre os níveis/planos da AD e os níveis/planos da ATD


NÍVEIS OU PLANOS DA ANÁLISE DE DISCURSO

FORMAÇÃO INTERAÇÃO AÇÃO DE


SOCIO- SOCIAL LINGUAGEM
DISCURSIVA (VISADA,
N2 N1 OBJETIVOS)

(N3)
INTERDISCURSO
Socioletos
Intertextos

GÊNERO(S)

TEXTO

Textura Estrutura Semântica Enunciação Atos de


(proposições composicional (representação (responsabili- discurso
enunciadas (sequências e discursiva) dade (ilocucionário)
e períodos) planos de (N6) enunciativa) e e orientação
(N4) textos) coesão argumentativa
(N5) polifônica (N8)
(N7)

NÍVEIS OU PLANOS DA ANÁLISE TEXTUAL

Fonte: Adam (2011[2008], p. 61).

Os condicionamentos discursivos (representados, principalmente, pelas noções de


formação sociodiscursiva e de interdiscurso), por essa perspectiva, incidem sobre o texto via
gêneros do discurso. Por um movimento de sobredeterminação, os textos sofrem coerções
sociodiscursivas (daí a ideia de “descendência” que já apresentamos, segundo a qual um texto
“descende” dos discursos) e, simplesmente, materializam essas condições de natureza social,
institucional, histórica e ideológica, preestabelecidas pelos quadros discursivos e genéricos das
situações enunciativas. Antes de passarmos às categorias analíticas que escolhemos, é de
fundamental importância problematizarmos as questões relativas ao diálogo, que nos dispomos
a estabelecer, entre a Linguística Textual e a Análise do Discurso e à relação entre texto e
discurso, cuja discussão já iniciamos em outro ponto deste capítulo.
A interface entre LT e AD que ora defendemos pretende, diferentemente do que
propõe J.-M. Adam (2017), manter a separação e a individualização das duas disciplinas.
Concebemos, assim, as duas como sendo disciplinas, dentre outras, do campo das ciências da
linguagem, cujos objetos e objetivos não se confundem e, portanto, devem permanecer
separadas, cada qual resguardando seus interesses de investigação e mantendo o seu repertório
104

de conceitos e de categorias de análise. O lugar de cada uma delas poderia, a nosso ver, ser
assim esquematizado:

Esquema 3 – Os lugares da LT e da AD no campo das ciências da linguagem

Campo das ciências da linguagem

Referenciação Cena de enunciação

Intertextualidade Gêneros do discurso


Topicalidade
Posicionamento Interdiscurso
Gêneros do discurso

Hipertextualidade Tipos de discurso Simulacro

Sequencialidade e
planificação textual Formação sociodiscursiva

Linguística Textual Análise do Discurso

Fonte: Elaboração própria.

Obviamente, esse esquema reduz a complexidade tanto quantitativa como


qualitativa das disciplinas que pertencem ao campo das ciências da linguagem à LT e à AD e a
alguns de seus conceitos e categorias, mas nosso intuito é diferenciar nossa perspectiva daquela
da ATD representada pelo Esquema 1, lançando mão de uma organização esquemática parecida
com a de J.-M. Adam. Do nosso ponto de vista, ao manter-se como uma disciplina autônoma
do campo mais vasto das ciências da linguagem, a LT conserva a possibilidade de estabelecer
interfaces variadas, tal como tem ocorrido no Brasil com os estudos realizados e liderados por
pesquisadores do Grupo de Trabalho (GT) de Linguística Textual e Análise da Conversação da
ANPOLL (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística), que
abordam a argumentação em textos por variados vieses teóricos e disciplinares
(CAVALCANTE, 2016): pelo da Semântica, pelo da Pragmática, pelo da Semiolinguística,
pelo da (Nova) Retórica, pelo da Análise da Conversação29.
Em um diálogo no qual a LT toma de empréstimo categorias discursivas da AD
para descrever e analisar processos referenciais como estratégias argumentativas ligadas à
textualidade, pensamos que pode haver uma interseção entre as duas disciplinas, de modo que
as categorias textuais ocupem a posição de figura em tal investigação e que as categorias

29
Em Capistrano Júnior; Lins e Elias (2017) e em Souza; Penhavel e Cintra (2017), vemos interessantes
possibilidades de interfaces da Linguística Textual com outras disciplinas das ciências da linguagem.
105

discursivas ocupem a posição de fundo. Enquanto nos preocupamos em estudar, por exemplo,
a construção de referentes (referenciação) como representações sociocognitivas e discursivas
de entidades estabelecidas nos textos, apontando as estratégias por meio das quais isso ocorre,
de forma a viabilizar a construção da unidade e da coerência textuais e a imprimir no texto uma
orientação argumentativa, os estudos dos analistas preocupam-se em desvelar os
posicionamentos dos sujeitos, marcados na materialidade discursiva (no “texto”) pelas
nominalizações e anaforizações e determinados pelas formações sociodiscursivas. Uma
interface nos termos que estamos apresentando poderia ser assim esquematizada:

Esquema 4 – Interface entre LT e AD no estudo da referenciação

Posicionamento

Referenciação

Linguística Textual Análise do Discurso


(em gêneros
do discurso)

Formações
discursivas

Fonte: Elaboração própria.

Também no que diz respeito às concepções de texto e de discurso, pensamos em


uma reconfiguração da proposta de J.-M. Adam. Em vez de um movimento “descendente” e
unidirecional, que coloca o texto como sendo sobredeterminado pelo discurso e no qual o texto
figura como a materialização de coerções exercidas pelas formações sociodiscursivas, pelo
interdiscurso e pelas práticas discursivas institucionalizadas (gêneros), tal como vimos no
Esquema 2, concebemos a relação entre texto e discurso como sendo bidirecional e simbiótica.
Concordamos, então, que o texto materializa condições sócio-históricas e que é por intermédio
dos sistemas de gêneros que textualidade e discursividade se unem, mas entendemos igualmente
que, assim como “não há textos sem gênero(s)” (ADAM, 2017, p. 36), não há gêneros sem
textos, já que o conceito de gênero do discurso que encapamos (o bakhtiniano, segundo o qual
se trata de “tipos relativamente estáveis de enunciados”, cujos elementos linguageiros que
permitem tipificar esses enunciados são de ordem, principalmente, textual – estrutura
composicional, estilo e conteúdo temático) pressupõe uma relativa estabilidade que só é
possível de ser aferida se houver eventos comunicativos que a indiciem, ou seja, é preciso haver
textos para que tenhamos gêneros. Ainda que se trate de gêneros cujos enunciados que os
instanciem sejam inumeráveis, cada um desses enunciados imprime nesses gêneros algum traço
106

discursivo que talvez possamos considerar “peculiar”, pois os gêneros, assim como as
condições sociais e históricas que eles codificam, são dinâmicos e mutáveis.
Compreendemos o texto não somente como materialização do discurso, mas
igualmente como parte ativa de sua instauração, por considerarmos, com a AD, a
impossibilidade de fazer corresponder um discurso a um texto e por concordarmos com suas
razões para isso:

É que um discurso nunca equivale a um texto, seja porque deve “haver” mais de um
discurso em um mesmo texto (por efeito do interdiscurso), seja principalmente,
porque um discurso se materializa tipicamente em uma dispersão de textos (conforme
assinalou Foucault). (POSSENTI, 2009, p. 73).

Na medida em que a noção de discurso para a AD francesa está atrelada à ideia de


que os sentidos não são dados pelo sistema, mas são (re)construídos socialmente, no interior de
um interdiscurso, e de que o discurso consiste em uma “dispersão de textos, cujo modo de
inscrição histórica permite se definir como um espaço de regularidades enunciativas”
(MAINGUENEAU, 2008c, p. 15), temos, então, a um só tempo, o texto materializando
discursos (as condições discursivas afetam a linguagem e delimitam as possibilidades textuais)
e instituindo discursos (a textualidade participa da constituição da linguagem e da edificação
de discursos e de formações sociodiscursivas). Assim, tomaremos aqui como pressuposta a
ideia de que a relação entre texto e discurso é bidirecional, simbiótica, de determinação mútua
e, portanto, a ideia de que a argumentatividade tanto é constitutiva do discurso como se instaura
no texto. Vejamos o que ocorre, nesse sentido, com o texto do exemplo abaixo.

Exemplo (12)

Fonte: Site Folha da Manhã http://clicfolha.com.br/charge/330/login Acesso em 08/07/2018.


107

Essa charge de L. F. Cazo faz parte de uma polêmica (inter)discursiva, que tem se
intensificado nesta década, a respeito da legalidade do uso de agrotóxicos em grandes lavouras
brasileiras e do impacto deles na saúde do povo consumidor de seus produtos. Nessa polêmica,
duas teses dicotômicas se confrontam: uma tese “pró-agroecologia”, que consiste, basicamente,
na defesa de um modelo agrícola que se baseia na relação de proximidade entre o homem e a
terra e que pressupõe uma cultura sustentável, um manejo da terra livre de agrotóxicos; e uma
tese “pró-agronegócio”, que defende a redução radical do contato do homem com a terra e um
manejo altamente industrializado – o que implica o uso de recursos químicos tanto para
diminuir o risco de perdas na produção como para acelerá-la –, além de ter como foco o lucro
(não a sustentabilidade). Do ponto de vista discursivo, podemos dizer que o posicionamento
assumido nessa charge se situa em uma formação sociodiscursiva (FSD) contrária ao
agronegócio.
O espaço do interdiscurso no texto de Cazo é marcado pela presença de outras FSD,
além daquela contrária ao agronegócio: a do jornalismo de informação baseada em fatos e
verdades (indiciada, no texto, pelo título “Brasileiros consomem 7 litros de agrotóxico por
ano...”), a de valorização da beleza (evidenciada pelo comentário: “Estão tão bonitas”, e pela
expressão da dúvida motivada pela beleza das frutas: “Nem sei qual escolher”) e a do
maniqueísmo (representada no texto pelas personagens reconhecidamente boa e má do conto
Branca de Neve e os sete anões). A interdiscursividade também contribui para a definição do
quadro genérico dessa charge, na medida em que é somente na relação dela com os outros textos
desse gênero, ou seja, com as inúmeras outras charges já produzidas, e com textos de gêneros
jornalísticos (principalmente, dos gêneros notícia e reportagem) que se delimitam os papéis dos
interlocutores, o seu propósito enunciativo, sua temporalidade etc. Do ponto de vista textual, o
autor da charge lança mão de estratégias ligadas ao gênero que implicam: a) a própria opção
por esse gênero para expressar um posicionamento; e b) mais especificamente, a estrutura
composicional da charge, a intertextualidade que lhe é constitutiva e a referenciação.
Quanto à sua composição, temos, em perspectiva macrotextual, um plano de texto30
convencional, recorrente em textos desse gênero, que consiste na organização multimodal de
seu conteúdo em forma de um quadrinho. A composição mesotexual é marcada por um

30
As noções de plano de texto e de sequência textual serão apresentadas com mais acuidade no capítulo seguinte.
Por ora, a fim de garantir uma compreensão razoável sobre o que estamos discutindo, importa dizer que um plano
de texto é a estrutura macrotextual “responsável pela segmentação visível-legível do texto escrito em partes
(capítulos, seções, parágrafos)” (ADAM, 2017, p. 24, tradução do Grupo Protexto) e que a sequência é um
“‘esquema de texto’ situado entre a estruturação frástica e periódica microtextual das proposições e aquela
estruturação, macrotextual, dos planos de textos” (ADAM, 2017, p. 25, tradução nossa).
108

sequenciamento plurissequencial (que mistura sequências textuais diferentes; neste caso,


narrativa e dialogal) e por um encaixamento, em que um período narrativo encaixante comporta
um período dialogal encaixado. Estabelecendo uma relação intertextual, o chargista opera um
recorte do conto Branca de Neve e os sete anões; mais exatamente, ele escolhe a cena em que
a madrasta da princesa lhe oferece uma maçã bonita, mas envenenada.
Do nosso ponto de vista (textual, de orientação sociocognitiva), esse excerto do
conto, apesar de ser apenas um dos eventos que se sucedem na narrativa típica em que ele ocorre
(os demais eventos, assim como sua sucessão, são reconstruídos por um certo interlocutor no
momento da leitura do texto), corresponde a uma sequência narrativa encaixante com sequência
dialogal encaixada (a troca conversacional entre as personagens). Esse diálogo, inserido na
narrativa à qual a charge se reporta, decorre de um outro enquadre intertextual: o das notícias e
das reportagens que divulgaram a informação de que “brasileiros consomem 7 litros de
agrotóxicos por ano”. O conjunto de notícias e de reportagens que replicam essa informação é
relativamente vasto, com algumas variações quantitativas (alguns textos falam em 5 litros;
outros, em 7,5 litros). Todos os textos que a divulgam como sendo razoável, no entanto,
apresentam dados que reforçam a tese de que o agronegócio brasileiro, com seus métodos
agrícolas que utilizam de defensivos tóxicos considerados de alto risco para a saúde humana,
apesar de ser mais produtivo e mais lucrativo, oferece perigo considerável à população que
consome seus produtos. Ao convocar a mesma informação das notícias e reportagens para a
charge (mantendo, inclusive, a estrutura sintática dos títulos), o locutor do texto do exemplo
(12) tece sua crítica sobre a cultura agrícola conhecida por garantir grande produção de vegetais
naturais e transgênicos “bonitos”, o que aumenta a atração dos consumidores por tais produtos,
mas que oferece risco à saúde e à vida desses consumidores.
Outra estratégia que reforça o posicionamento do locutor da charge, indiciando sua
oposição ao agronegócio, é a construção dos referentes no texto, a começar pelos referentes
“brasileiros” e “agrotóxicos”. Se consideramos que a história de Branca de Neve é
(re)enquadrada no contexto da crítica ao agronegócio, podemos dizer que os brasileiros (ou o
povo brasileiro) é representado na narrativa por Branca de Neve, já que é essa personagem
quem consome um produto agrícola (uma maçã) na história reportada e também é ela que, na
charge, se sente atraída pelas frutas oferecidas pela madrasta. O referente “brasileiros”, então,
é recategorizado como vítima de um certo sistema agrícola e como um sujeito bom, desprovido
de maldade, que ingenuamente aceita a oferta de frutos envenenados. O referente que foi
introduzido no texto pela designação de “agrotóxico”, por outro lado, é recategorizado como
“veneno” (presente nas frutas), o que reforça a imagem negativa do referente já instaurada em
109

sua introdução (o mesmo referente é categorizado por expressões nominais como “pesticida” e
“fitossanitário” e é recategorizado como um produto químico inofensivo à saúde humana em
textos que materializam e instituem uma FSD pró-agronegócio). A construção desse referente
também incide sobre a construção do referente “bruxa” (colocado no texto pela imagem da
personagem do conto). Considerando que, no texto fonte, a bruxa é a representação do mal e da
ambição e é a responsável pelo envenenamento da maçã ingerida por Branca de Neve, ela
representa (e introduz) nessa charge a imagem do grande agricultor, que é o responsável por
produzir, em grande escala, produtos agrícolas “envenenados”.
Por um prisma técnico-retórico, as representatividades instituídas por esse texto
constituem, subliminarmente, argumentos de transitividade (um argumento quase-lógico, por
isso, dissemos “subliminarmente”) que refletem uma transferência do tipo “a R b, c R b, logo,
a R c”. Poderíamos especificar esse esquema, abstraindo-o dos sentidos que construímos para
o texto, por meio das seguintes reduções formais:
i. Brasileiros [a] consomem [R] frutas envenenadas [b].
Branca de Neve [c] consome [R] fruta envenenada [b].
Logo, Brasileiros [a] têm relação [R] com Branca de Neve [c].
ii. A bruxa da Branca de Neve [a] oferece fruta envenenada [b] para alcançar
seus objetivos.
Os grandes agricultores brasileiros [c] oferecem frutas envenenadas [b] para
alcançar seus objetivos.
Logo, a bruxa da Branca de Neve [a] têm relação [R] com os grandes
agricultores brasileiros [c].
No caso da primeira redução, as premissas partem do valor admitido da ingenuidade daqueles
que se deixam enganar pelas aparências, enquanto, na segunda redução, o valor admitido é o da
ambição dos que almejam obter vantagem por meios insólitos.
Vale lembrar que, segundo Amossy,

Não há discurso sem enunciação (o discurso é o efeito da utilização da linguagem em


situação), sem dialogismo (a palavra é sempre, como diz Bakhtin, uma reação à
palavra do outro), sem apresentação de si (toda fala constrói uma imagem verbal do
locutor), sem o que se poderia chamar “argumentatividade” ou orientação, mais ou
menos marcada do enunciado, que convida o outro a compartilhar modos de pensar,
de ver, de sentir. Em suma, todo discurso supõe o ato de fazer funcionar a linguagem
num quadro figurativo (“eu” – “tu”); está imerso na trama dos discursos que o
precedem e o cercam; produz, de bom ou de mau grado, uma imagem do locutor e
influencia as representações ou as opiniões de um alocutário. Nesse sentido, o estudo
da argumentação e do modo como ela se alia aos outros componentes na espessura
dos textos é parte integrante da análise do discurso. (AMOSSY, 2018a, p. 12, grifos
nossos).
110

Por isso, reiteramos nossa tese de que a LT tem a contribuir, com seus parâmetros
de análise, com a abordagem da argumentação no discurso. Os parâmetros da intertextualidade,
da sequencialidade e da referenciação (e vários outros não diretamente focalizados aqui), de
que lançamos mão para descrever o funcionamento textual da charge acima dão prova disso.
Se R. Amossy coloca como tarefa de sua proposta o estudo das “modalidades múltiplas e
complexas da ação e da interação linguageiras” (AMOSSY, 2018a, p. 11) e o desvelamento dos
funcionamentos discursivos da linguagem situada, do modo como esses funcionamentos se
aliam à retórica nos mais variados textos, pertencentes aos mais variados campos da atividade
humana e aos mais variados gêneros, então, a LT pode estabelecer uma interface profícua com
a AD no sentido de analisar a argumentatividade inscrita nos textos. Buscamos, no capítulo que
a este segue, analisar essas modalidades, via critérios de textualização, em textos jornalísticos
e midiáticos que tratam de questões polêmicas da atualidade.
111

5 CRITÉRIOS TEXTUAIS DE ANÁLISE DA ARGUMENTATIVIDADE POLÊMICA

Neste capítulo, buscaremos operacionalizar nossa proposta de interface com a


AAD, analisando a inscrição da argumentatividade retórico-discursiva em textos, a partir de
três parâmetros de textualidade: intertextualidade, composicionalidade e referenciação.
Trataremos de argumentação aqui tendo em mente a concepção delineada por R. Amossy, para
quem argumentar consiste não somente na tentativa de fazer com que um auditório adira a uma
tese, mas também na busca por orientar suas maneiras de ver, de pensar e de sentir, visando,
em última instância, exercer nesse auditório uma influência orientada para uma ação
(AMOSSY, 2011a, 2006, 2002).
Apesar de sustentar, por princípio, que a existência de uma questão retórica que
permita respostas antagônicas é condição sine qua non para haver argumentação, Amossy
(2018a, p. 42, grifos nossos) pondera que

a situação de debate pode permanecer tácita. Nem a questão retórica nem a(s)
resposta(s) antagônica(s) têm a necessidade de serem expressamente formuladas. [...]
haja vista que toda palavra surge no interior de um universo discursivo preexistente,
ela responde necessariamente a indagações que perseguem o pensamento
contemporâneo e torna-se objeto tanto de controvérsias em sua forma plena como de
discussões atenuadas. Todo enunciado confirma, refuta, problematiza posições
anteriores, quer tenham sido expressas de modo preciso por um dado interlocutor, ou
de modo difuso no interdiscurso contemporâneo. Tal é a consequência inevitável da
natureza dialógica da linguagem.

Sob a perspectiva da interdiscursividade, portanto, todo dizer comporta,


irreversivelmente, uma dimensão argumentativa, conforme sustenta R. Amossy, com base no
princípio dialógico bakhtiniano de linguagem. Sob o ponto de vista da textualidade, todavia,
que princípios ou fatores conceituais nos levam a sustentar que a argumentação retórica lhe é
constitutiva, já que nem sempre as controvérsias são expressamente formuladas? Refletiremos
sobre isso recorrendo, primeiramente, à distinção entre convencer e persuadir retomada pela
nova retórica, a fim de, em seguida, esclarecermos o que nos motiva a avigorar a tese de que os
termos estratégias de argumentação e estratégias de persuasão podem ser tomados, do ponto
de vista da textualidade, como equivalentes (informação verbal)31.
Dedicando uma seção do Tratado à distinção entre persuadir e convencer, Perelman
e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 30) afirmam: “Para quem se preocupa com o resultado, persuadir
é mais do que convencer, pois a convicção não passa da primeira fase que leva à ação. [...] Em

31
Cf. conferência de Mônica Magalhães Cavalcante intitulada “Argumentação e estudos do texto”, por ocasião
do Colóquio Argumentação e Polêmica, realizado na UFRN, em Natal, em fevereiro de 2018.
112

contrapartida, para quem está preocupado com o caráter racional da adesão, convencer é mais
do que persuadir”. Herdeira da antiga retórica, comumente denominada arte da persuasão, a
nova retórica dá prosseguimento à ideia clássica de que

O objetivo de toda argumentação [...] é provocar ou aumentar a adesão dos espíritos


às teses que se apresentam a seu assentimento: uma argumentação eficaz é a que
consegue aumentar essa intensidade de adesão, de forma que se desencadeie nos
ouvintes a ação pretendida (ação pretendida ou abstenção) ou, pelo menos, crie neles
uma disposição para a ação, que se manifestará no momento oportuno.
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 50, grifo nosso).

Essa noção retórica de que a argumentação se constrói, mais do que em função de


provar a validade lógica de um raciocínio (objetivamente válido e, portanto, dirigido a um
auditório universal), em função da ação que se pretende desencadear nos ouvintes é
declaradamente corroborada por estas passagens: “Propomo-nos chamar persuasiva a uma
argumentação que pretende valer só para um auditório particular e chamar convincente àquela
que deveria obter a adesão de todo ser racional” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,
2005, p. 31) e

A distinção que propomos entre persuasão e convicção explica indiretamente o


vínculo que se costuma estabelecer, ainda que confusamente, de um lado entre
persuasão e ação, do outro entre convicção e inteligência. Com efeito, o caráter
intemporal de certos auditórios explica que os argumentos que lhes são destinados não
constituem um apelo à ação imediata. (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005,
p. 32).

Tal ideia retórica de argumentação, que atrela a racionalidade à influência que se


pretende exercer sobre o auditório, com uma finalidade última de (predisposição à) ação, aflui
para a ideia pragmática, da linguística do discurso, segundo a qual a eficácia da fala se define
em termos de ação (cf. AMOSSY, 2002). Noção também convergente com o que pressupõe
Adam (2011, 2017), ao incluir no nível da textualidade uma estruturação configuracional /
pragmática, implicada no objetivo (explícito ou implícito) de agir sobre o interlocutor
(individual ou coletivo), sobre suas crenças, representações e/ou comportamentos. Assim, na
esteira dessas proposições retóricas, discursivas e textuais, diremos que nem todo texto busca
construir e/ou validar raciocínios e, portanto, nem todos vão em defesa de uma tese ou opinião;
mas todo texto tem um propósito de influência, e de influência à ação, seja esta imediata ou
vindoura. Todo texto, então, busca persuadir o outro de algum modo e em alguma medida, e é
isso que nos leva a sustentar que a argumentatividade é inerente a qualquer texto.
Conforme já afirmamos, a LT não é uma disciplina que se ocupe da argumentação
como objeto privilegiado de estudo. Nosso objeto de estudo é o texto e, portanto, buscamos
113

inscrever a argumentação em uma abordagem que nos permita desvelar as estratégias textuais
postas em jogo por interlocutores que, numa dada circunstância interacional, negociam sentidos
e buscam exercer influências mútuas. Em função disso, propomos que as estratégias textuais
sejam consideradas, também, como estratégias argumentativas ou estratégias persuasivas, de
modo que estes dois termos são considerados, aqui, como intercambiáveis.
Trataremos, neste capítulo, de desvelar algumas estratégias persuasivas
mobilizadas em textos que operam diferentes modos de argumentatividade e que inscrevem, de
maneira oblíqua ou precisa, a polêmica na superfície textual. A título de exemplo de como
elementos textuais podem contribuir para uma análise da argumentação no discurso,
selecionamos três desses elementos: a intertextualidade, a composicionalidade e a
referenciação, dos quais passaremos a nos ocupar daqui em diante.

5.1 Intertextualidade

O critério de análise textual com o qual vamos operar nesta seção para analisar a
inscrição da argumentatividade retórico-discursiva em textos é o da intertextualidade. Para
tanto, apresentaremos o conceito que adotamos desse fenômeno textual em nossa perspectiva e
rediscutiremos aspectos importantes da polêmica, como a dicotomização de teses, a partir da
descrição de relações intertextuais em textos que comportam tão somente dimensão ou
orientação argumentativa e em texto que comporta também visada. Em seguida, advogaremos
em favor da ideia de que a intertextualidade é um critério fundamental para pensarmos o
tratamento de questões polêmicas em textos que instanciam diferentes modos de argumentar.
Tendo em mente o conceito de texto que adotamos32, a intertextualidade consiste
em um fenômeno de natureza textual pelo qual se estabelece relação entre textos, seus
conteúdos, gêneros e estilos. Tal concepção “assume o (co)texto como unidade de análise, do
qual se devem aferir marcas tangíveis, relacionadas a conteúdos, formas e/ou estilos de outros
textos ou autores, capazes de indiciar o fenômeno” (CARVALHO, 2018, p. 9) e conserva a
distinção que reconhecidos estudiosos brasileiros da linguagem em perspectiva bakhtiniana33
fazem entre intertextualidade e dialogismo.

32
Para relembrar: texto, para nós, é abstração de coerência no sentido de que o cotexto (a superfície material) lhe
é parte integrante, mas não representa a integridade textual, que se consolida no momento em que um texto é
sociocognitivamente processado (produzido ou compreendido), e é unidade concreta da comunicação social no
sentido de que se trata de um evento singular, com início e fim.
33
Sugerimos consultar Maciel (2017), para se ter uma ideia mais precisa do alcance dessa distinção entre alguns
pesquisadores brasileiros.
114

Enquanto o dialogismo, por ser um fenômeno constitutivo da linguagem, não é


necessariamente marcado nos textos, a intertextualidade é um fenômeno identificável na
superfície textual, passível de ser evidenciado, mesmo quando a fonte corresponde a um
conjunto disperso de textos, como é o caso em que a relação se estabelece por alusão ampla a
um conteúdo tratado em textos variados e cujas fontes não são especificadas. Encampamos,
assim, a noção de intertextualidade descrita por Carvalho (2018):

Em nosso entendimento, a intertextualidade pode se estabelecer por remissões de


diversos tipos, tais como ao léxico, a estruturas fonológicas, a estruturas sintáticas, ao
gênero, ao estilo, dentre outras. Nessa perspectiva, importa, antes, a copresença de
textos, parâmetros genéricos ou de estilo(s) de autor(es), que pode ou não ser
reconhecida pelo interlocutor.
Admitimos, então, o diálogo intertextual em duas situações possíveis e não
excludentes, isto é, que podem se manifestar numa mesma performance textual: i)
quando há diálogo entre textos específicos, ou porque existem partes de um texto
presentes em outro, ou porque um texto sofreu modificações e se transformou em
outro, ou, ainda, quando um texto cumpre a função de comentar outro, casos a que
chamamos intertextualidade estrita; e/ou ii) quando não há a retomada de um texto
específico, mas se verifica a imitação entre gêneros do discurso ou entre estilos de
autores ou quando um texto alude a conteúdos explicitados em textos diversos,
situações a que chamamos intertextualidade ampla. (CARVALHO, 2018, p. 9-10).

A intertextualidade não se confunde, portanto, com a interdiscursividade.


Considerada por Fiorin (2006, p. 181) como equivalente ao dialogismo, “na medida em que é
uma relação de sentido”, e por Cavalcanti (2015, p. 47) como uma “assunção convergente com
o princípio bakhtiniano do dialogismo”, a interdiscursividade também é um fenômeno
constitutivo, que independe de haver evidências explícitas ou implícitas de um texto-fonte, ou
de um conjunto deles, na materialidade textual para ocorrer. Independentemente das diferenças
que há entre os fenômenos da interdiscursividade e do dialogismo34, o que interessa para nós,
neste momento, é que ambos são fenômenos intrínsecos à atividade linguageira e, portanto, nem
sempre identificáveis, diferentemente da intertextualidade, que é um recurso textual
necessariamente marcado no cotexto e cujo modo de inscrição material é sempre e
necessariamente definido por coerções genéricas.
Ratificamos o princípio de que as seleções intertextuais, em conformidade com o
que já declaramos no capítulo anterior, só podem ser descritas e analisadas em relação aos
gêneros nos quais elas se manifestam. Isso nos interessa de perto, porque estamos lidando com

34
Desobrigamo-nos a discutir sobre as particularidades epistemológicas implicadas nos dois conceitos, dado o
nosso objetivo de operacionalizar uma análise retórica e discursivamente orientada da argumentatividade em
textos, não de levantar uma problematização teórica e metodológica em torno dos parâmetros de análise que
escolhemos. Apesar de um movimento não excluir, necessariamente, o outro, importa-nos, aqui, definir cada
critério e justificar nossas escolhas conceituais somente na medida em que nos parece imprescindível fazê-lo para
garantir uma compreensão suficiente de nossa proposta de abordagem por parte do leitor.
115

gêneros das esferas jornalística e midiática, cuja organização dos textos que as compõem nos
permite prever, em certa medida, a manifestação da intertextualidade. As charges, por exemplo,
são necessariamente intertextuais porque respondem a notícias ou a reportagens que figuram
nos veículos de comunicação num dado momento. As notícias e reportagens também são
gêneros cujos textos se configuram a partir de textos outros; elas se reportam a entrevistas, a
depoimentos, a publicações científicas, a declarações públicas ou privadas, a documentos
históricos etc. Nesses gêneros, ou em outros, e em quaisquer textos que lancem mão de tal
fenômeno, o fato é que a intertextualidade corresponde a uma estratégia textual de persuasão,
com vistas a influenciar os interlocutores e a orientar seus modos de ver e de pensar.
Os processos intertextuais, portanto, são sempre motivados pela orientação
argumentativa que o locutor pretende dar ao texto. Independentemente de comportar ou não
visada argumentativa, qualquer texto, ao estabelecer relação implícita ou explícita com outro(s)
texto(s), deixa entrever a assunção de um posicionamento a respeito do tema tratado. No caso
de apresentar visada argumentativa, como necessariamente ocorre em gêneros tais como o
artigo de opinião e o debate político, a função argumentativa da intertextualidade se mostra
mais evidente, na medida em que os textos-fonte são sempre convocados pelo locutor para
reforçar sua tese. Em se tratando de vozes oponentes, o locutor as convoca para contra
argumentá-las; em se tratando de vozes proponentes, ele as sustenta e busca, por vezes,
sedimentá-las pela apresentação de outros argumentos.
No caso da modalidade polêmica, ela pode apresentar-se em textos desprovidos de
visada argumentativa, desde que se estabeleça uma relação intertextual passível de ser
evidenciada por marcas que indiciem remissões a textos específicos (intertextualidade estrita)
ou que aludam a um conjunto disperso de textos (intertextualidade ampla).
A polêmica em torno do uso de agrotóxicos na agricultura nos oferece bons
exemplos da possibilidade de abstrairmos traços da modalidade polêmica em textos somente de
dimensão argumentativa, desde que os confrontemos com outros textos sobre o mesmo tema.
Essa polêmica foi acirrada no cenário político brasileiro em 201835, por consequência da
aprovação, pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados, do relatório favorável à proposta
apresentada pelo atual Ministro da Agricultura, Blairo Maggi, de ampliar o uso legal de
substâncias tóxicas, que, pelo projeto do ministro, passam a receber a denominação legal de
“defensivos agrícolas” ou “produtos fitossanitários”. O Projeto de Lei nº 6.299/2002, e seus 30

35
As manifestações contrárias às alterações na Lei dos Agrotóxicos somavam 6.751 publicações com a hashtag
“pldoveneno” (#pldoveneno) e 1.779 publicações com a hashtag “pacotedoveneno” (#pacotedoveneno), até o dia
14 de setembro de 2018, na rede social Instagram.
116

apensos, que altera a Lei dos Agrotóxicos de nº 7.802, de 1989, torna menos rígida a aprovação
de novos produtos (que, atualmente, é realizada conjuntamente por órgãos sanitários e
ambientais, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária/Anvisa e o Ministério do Meio
Ambiente), restringindo tal função ao Ministério da Agricultura e flexibilizando as atuais regras
de licenciamento (passando, por exemplo, a proibir somente os produtos classificados como de
“risco inaceitável para os seres humanos ou para o meio ambiente”). Em resposta a esse projeto
de lei, e às propostas semelhantes que já tramitavam há anos no Congresso, houve muitas
manifestações contrárias, expressas em textos de variados gêneros, dentre os quais encontramos
o texto (01) seguinte.

Texto (01) – Charge de Duke

Fonte: http://www.luizberto.com/2018/07/02/duke-61/ Acesso em 14/09/2018.

A charge acima, quando vista isoladamente, de fato não apresenta uma tese, ou seja,
não comporta visada argumentativa. Como todo texto, ela expressa um ponto de vista sobre a
questão (socialmente polêmica) do uso de agrotóxicos na agricultura brasileira. Pressupomos,
com Amossy (2018a, 2011a, 2006, 2005) que a dimensão argumentativa, ou argumentatividade,
é intrínseca a todo discurso; como todo texto materializa e institui discurso, temos em (01) um
texto com dimensão argumentativa. Se considerarmos que a modalidade polêmica corresponde
a uma gestão verbal do conflituoso, cuja primeira marca é “uma oposição de discurso”
apresentada “no seio de uma confrontação verbal”, sendo que “a noção de confrontação verbal
designa, de partida, a ação de colocar (dois discursos) em presença e, portanto, em relação,
permitindo assim uma apreciação por comparação” (AMOSSY, 2017[2014], p. 49), diríamos,
então, que essa charge de Duke, analisada isoladamente de outros textos, não apresenta um
117

modo polêmico de argumentar, mas um ponto de vista sobre uma questão polêmica. No entanto,
se partirmos do pressuposto de que ele alude a um conteúdo (sobre o uso excessivo de
agrotóxicos nas lavouras brasileiras) explicitado não em um texto-fonte determinado, mas em
um conjunto disperso de textos-fonte, com os quais ele estabelece relação intertextual ampla,
podemos afirmar que o ponto de vista expresso pela charge se alinha à tese de que os
agrotóxicos são usados no Brasil de modo a prejudicar a saúde dos consumidores de produtos
agrícolas e que seus efeitos se assemelham aos de substâncias de amplo espectro tóxico (como
as drogas), gerando prejuízos à saúde humana. Logo, o ponto de vista representado na charge é
contrário ao do agronegócio, já que o uso de agrotóxicos é assimilado a esse modo de
agricultura.
Devemos passar a considerar, portanto, que a polêmica só se dá na
intertextualidade. Sob essa condição, poderíamos considerar que alguns textos sem visada
argumentativa possam apresentar, ainda que de modo enviesado, aqueles traços definidores da
modalidade polêmica, que só podem ser alcançados sob perspectiva intertextual. No caso do
texto (01), o título “AGROTÓXICOS” é constituído por um item lexical recorrente nos textos
que se opõem à utilização de substâncias tóxicas nas plantações no Brasil e aos quais a charge
alude, ao contrário dos itens lexicais utilizados nos textos que defendem a utilização desses
produtos: “pesticidas”, “herbicidas”, “produtos fitossanitários” ou “defensivos agrícolas”, cujas
significações silenciam a ideia segundo a qual essas substâncias poderiam causar malefícios à
saúde dos consumidores de alimentos agrícolas e ao meio ambiente. A alusão a textos que se
opõem à utilização de agrotóxicos delineia um ponto de vista que, no debate mais amplo e mais
difuso entre textos, robustece a opinião antagônica à tese pró-agrotóxicos e, a reboque, à tese
pró-agronegócio (defendida pelo PL nº 6.299/2002 e pelo relatório aprovado pela Comissão
Especial da Câmara dos Deputados Federais).
Ao alinhar seu ponto de vista a uma opinião em meio a uma polêmica, o locutor da
charge também se assume parte de um dos lados que se opõem pelo fenômeno da polarização
social, necessariamente ligado à dicotomização de teses. Seu discurso ou posicionamento o
coloca no grupo daqueles que se encontram do lado oposto ao dos que defendem a aprovação
do referido projeto de lei, o uso quase indiscriminado de substâncias tóxicas nas plantações e o
agronegócio. Além disso, ao sugerir que os efeitos provocados pelos agrotóxicos no organismo
humano se equiparam aos de uma droga de elevado teor tóxico (o que pode ser inferido tanto
pela pergunta de uma das personagens como pelo aspecto físico e visual da outra), o locutor
não só assume um posicionamento e se integra a um dos polos sociais nesse debate como
também desqualifica, indiretamente, os Proponentes da tese pró-agrotóxicos.
118

Conforme discutimos no capítulo 2, a desqualificação do outro pode dar-se tanto


pela desqualificação de sua tese como pela de sua imagem, neste caso, com argumento ad
hominem. Na charge de Duke, o locutor desqualifica a tese pró-agrotóxicos, ao lançar mão de
um argumento por comparação.
O argumento por comparação consiste no cotejo de objetos e na avaliação deles um
em relação ao outro (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 274). No texto em tela,
os agrotóxicos são comparados a drogas pesadas, cujo grau de intoxicação produzido no
organismo humano é elevado. Tal comparação é evidenciada pelos sentidos das formas verbais
fumou e cheirou, que, relacionadas entre si pelo conectivo ou, remetem a ações implicadas no
consumo de drogas (sentido inferível pelo acionamento, a um só tempo, de conhecimentos
linguísticos e de mundo). Essa comparação desqualifica a tese contrária (presente em textos
variados), segundo a qual os “defensivos agrícolas” não oferecem risco potencial à saúde
humana, apenas combate pragas, insetos e ervas daninhas, e, em desqualificando a tese oposta,
desqualifica o próprio Oponente.
Obviamente, por estarmos lidando com sentidos construídos a partir de relações
intertextuais engendradas, principalmente, por marcas lexicais, as características da modalidade
polêmica só podem ser inferidas no momento em que se (re)constrói os possíveis sentidos desse
texto, e não podem ser imediatamente identificadas nele.
Outro texto cuja argumentatividade polêmica escolhemos para analisar à luz do
parâmetro da intertextualidade é a notícia abaixo, sobre possível votação, em 2018, da Proposta
de Emenda Constitucional nº 33/2012, que trata da redução da maioridade penal no Brasil.

Texto (02) – Notícia sobre votação da PEC nº 33/2012


Maioridade penal deve voltar à pauta no Senado este ano
Projeto mais avançado prevê que maiores de 16 possam responder como adultos
por atos violentos
POR RENATA MARIZ

04/01/2018 4:30 / ATUALIZADO 04/01/2018 11:14


119

Após aprovação na Câmara, proposta de redução da maioridade penal segue para o Senado - Marcos Alves/20-07-2015 / Agência O Globo

BRASÍLIA — A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) sobre redução da maioridade penal com
tramitação mais avançada no Congresso pode voltar à pauta no primeiro trimestre deste ano, segundo
acordo costurado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. O projeto adota uma tese
intermediária: não diminui o marco temporal indiscriminadamente, mas cria a possibilidade de o
Ministério Público pedir a suspensão da condição de menor de idade no caso de maiores de 16 anos e
menores de 18 anos que cometem crimes violentos. Se a Justiça autorizar, o indivíduo responderá como
adulto.
LEIA MAIS: Cresce o apoio à redução de maioridade penal em crimes graves
Pesquisa do Datafolha divulgada ontem mostrou que o apoio da população à redução da idade penal,
apenas no caso de crimes graves, subiu de 26% em 2015 para 36%, em 2017. Apesar de ser ano de
eleição, quando os parlamentares deixam os trabalhos legislativos em segundo plano e costumam evitar
temas polêmicos, o relator da matéria, senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES), acredita que o projeto será
votado em 2018. Ele afirma que, além da pressão popular, há um compromisso do presidente da CCJ,
senador Edison Lobão (PMDB-MA), de retomar o assunto entre fim de fevereiro e início de março.
— Não creio que a eleição atrapalhará, porque é uma questão urgente, que precisa ser enfrentada pelo
Congresso. E há inclusive parlamentares que têm esse tema como bandeira, sendo favoráveis ou
contrários — afirma Ferraço.
O senador analisou conjuntamente todas as PECs que tratavam do tema da redução da maioridade penal
no Senado — inclusive a que passou pela Câmara em 2015, na gestão do ex-deputado Eduardo Cunha,
que reduzia a maioridade para 16 anos no caso de crimes graves. Ferraço apresentou relatório favorável
ao projeto de autoria do senador licenciado Aloysio Nunes (PSDB-SP), atual ministro das Relações
Exteriores, mas na forma de um novo texto. Segundo o senador, se aprovada na CCJ, a proposta segue
para o plenário da Casa, para ser [sic] votado em dois turnos, antes de ser [sic] remetido à Câmara, onde
precisa passar por mais duas votações.
Pela proposta de Ferraço, apenas o promotor especializado da infância e juventude poderá propor ao
Judiciário que o menor seja julgado como se fosse maior de idade. O texto elenca os crimes cabíveis
para tal pedido, como reincidência da prática de roubo qualificado, homicídio doloso, lesão corporal
seguida de morte, latrocínio, estupro, entre outros. Laudo técnico deverá atestar a capacidade de o
adolescente compreender a própria conduta. Além disso, a PEC estabelece que os condenados cumpram
a pena em estabelecimento separado dos maiores de 18 anos.
— É uma flexibilização diante do cenário de radicalização que temos hoje, de um lado quem acha que
deve tudo continuar como está, e do outro quem defende redução total da idade penal. O projeto dá o
recado necessário: se praticar esse tipo de crime será julgado como adulto.
Fonte: https://oglobo.globo.com/brasil/maioridade-penal-deve-voltar-pauta-no-senado-este-ano-22252407 (grifos
em itálico são de nossa responsabilidade). Acesso em 11 de setembro de 2018.
120

A notícia, como um gênero desprovido de visada argumentativa, ou seja, como um


gênero jornalístico ao qual não se atribui o propósito comunicativo de argumentar, de defender
uma opinião, mas sim de informar e de expor “a verdade dos fatos” (lema recorrente entre os
meios de comunicação que se declaram isentos), não está à margem do princípio de que a
dimensão argumentativa é inerente a qualquer discurso. O texto (02), por exemplo, ao informar
os leitores da publicação virtual do jornal O Globo sobre a possibilidade de o Senado votar,
novamente, a PEC nº 33/2012, não emite uma opinião sobre essa questão polêmica que há
muitos anos divide o país, mas deixa entrever, por certas escolhas de ordem textual, um ponto
de vista segundo o qual reduzir a maioridade penal seria uma decisão razoável.
O tópico central da notícia, “votação, pelo Senado, de PEC sobre redução da
maioridade penal”, traz à tona um tema que é considerado, no próprio texto, como sendo um
tema polêmico: a redução da maioridade penal. Temas polêmicos costumam ser tratados em
textos jornalísticos como a notícia e a reportagem de modo a dar voz aos dois lados que
debatem. Nosso conhecimento sobre esses gêneros, sobre sua gestão tópica, nos permite afirmar
que, apesar de se tratarem de gêneros quase sempre monogeridos, quando o tópico principal é
considerado um assunto polêmico, o jornalista busca colocar em cena Proponentes e Oponentes,
suas opiniões e as vozes que lhes dão corpo no debate público. Essa notícia, diferentemente do
que em geral ocorre, não dá voz aos opositores da PEC e do relatório. Nosso interesse aqui, no
entanto, não é sobre a topicalidade, e sim sobre a intertextualidade.
A notícia em tela refere-se a dois outros textos específicos – a Proposta de Emenda
Constitucional nº 33/2012 e o relatório sobre ela – e informa a possibilidade de essa PEC e seu
respectivo relatório serem votados no Senado em 2018. Apesar de classificar o tema da PEC
como polêmico, o locutor afirma que a proposta a ser votada “adota uma tese intermediária:
não diminui o marco temporal indiscriminadamente, mas cria a possibilidade de o Ministério
Público pedir a suspensão da condição de menor de idade no caso de maiores de 16 anos e
menores de 18 anos que cometem crimes violentos”. Todavia, como concordamos, com
Amossy (2014, 2017[2014]), que as teses, em uma polêmica, são dicotômicas, entendemos que
a tese do projeto citado não é “intermediária” (dando a entender que seus termos poderiam
conciliar as duas opiniões contrárias acerca da questão), mas sim favorável à redução da
maioridade penal, ainda que proponha condições à penalização judicial dos menores de 18 anos.
O locutor, portanto, ao contextualizar, no primeiro parágrafo da notícia, o acontecimento
vindouro (a votação da PEC e do relatório que lhe é favorável no Senado em 2018), estabelece
uma relação intertextual de concordância com a fala de Ricardo Ferraço que encerra a notícia:
“É uma flexibilização diante do cenário de radicalização que temos hoje, de um lado quem acha
121

que deve tudo continuar como está, e do outro quem defende redução total da idade penal. O
projeto dá o recado necessário: se praticar esse tipo de crime será julgado como adulto”. A
notícia não só estabelece uma relação com a afirmação do Proponente dessa opinião de que
estabelecer condições para a diminuição da maioridade “despolariza” o debate, como imprime-
lhe um efeito de verdade, na medida em que descreve, sem dar margem a contestação, a tese da
proposta como sendo “intermediária”.
Outra seleção intertextual que deixa entrever um posicionamento no debate
polêmico sobre a redução da maioridade penal no Brasil é a menção a um resultado de pesquisa
do Datafolha, que é tomado como um fato:

Pesquisa do Datafolha divulgada ontem mostrou que o apoio da população à


redução da idade penal, apenas no caso de crimes graves, subiu de 26% em
2015 para 36%, em 2017. Apesar de ser ano de eleição, quando os
parlamentares deixam os trabalhos legislativos em segundo plano e costumam
evitar temas polêmicos, o relator da matéria, senador Ricardo Ferraço (PSDB-
ES), acredita que o projeto será votado em 2018. Ele afirma que, além da
pressão popular, há um compromisso do presidente da CCJ, senador Edison
Lobão (PMDB-MA), de retomar o assunto entre fim de fevereiro e início de
março.

Apoiando-se no lugar comum da quantidade, o locutor cita o resultado da pesquisa


para lançar mão da premissa de que a população apoia a redução da maioridade penal e que,
portanto, aprovar a PEC é preferível a impugná-la. Essa premissa, por sua vez, é tomada como
uma causa para o andamento da votação do relatório favorável à proposta de redução: a “pressão
popular” e o interesse geral, com o qual o senador Edison Lobão se comprometeu, são
motivações evidentes da necessidade de agilizar a votação do relatório. Segundo Fiorin (2015,
p. 151), “A causalidade supõe um encadeamento dos fatos, em que um acontecimento
antecedente produz um dado efeito” e “Nesse tipo de argumento, tomam-se fatos que se
relacionam temporalmente (antecedente e consequente) e atribui-se a eles uma relação causal”
(p. 159).
Nossa discussão, até este ponto, foi sobre a possibilidade de as relações intertextuais
servirem de parâmetro a uma análise da modalidade polêmica em textos sem visada
argumentativa. A partir daqui, faremos um deslocamento de foco e discutiremos uma ideia mais
abrangente, segundo a qual a intertextualidade seria fundamentalmente o vetor dessa
modalidade. Iniciaremos essa reflexão relembrando uma proposição de Amossy (2014), com a
qual concordamos: a de que uma polêmica tal como a concebemos releva do trabalho discursivo
das mídias e, em especial, do jornalista, que não só veiculam os antagonismos discursivos, mas
122

que lhes conferem, muitas vezes, proporções imensuráveis ao já profuso e disperso universo
das trocas polêmicas sociais. Aliás, o fato de adotarmos essa proposição de R. Amossy justifica
em grande parte nossa opção por gêneros das esferas midiática e jornalística para descrição e
análise nesta proposta de interface que ora buscamos delinear. Entendemos que a polêmica
contagia a sociedade a ponto de se manifestar em muitas interações cotidianas, em trocas face
a face ou virtuais, que flagramos com facilidade no contexto de nossas vivências mais
espontâneas, mas cuja captura científica seria dificultosa. As enunciações institucionalizadas,
como aquelas que se dão pelo modo da notícia, da reportagem, da entrevista e da charge, por
outro lado, além de serem de mais fácil captura, são capazes de retratar com bastante precisão
a complexidade dos debates diversificados e profusos que ocorrem nesse universo imensurável
das interações sociais humanas. Isso porque os textos midiáticos e jornalísticos não só
organizam os antagonismos discursivos, como também contribuem, muitas vezes, para a
potencialização das polêmicas, a exemplo do que ocorreu com a seguinte reportagem publicada
pela revista Forbes.

Imagem (2) – Reportagem da Forbes 36

Fonte: Print da reportagem da Forbes sobre os pastores mais ricos do mundo, disponível no site da revista:
https://www.forbes.com/sites/andersonantunes/2013/01/17/the-richest-pastors-in-brazil/#4c5ad9885b1e Captura
de tela feita em 17/09/2018.

36
Os pastores mais ricos no Brasil
Anderson Antunes, colaborador
A religião sempre foi um negócio lucrativo. E se você for um pregador evangélico brasileiro, as chances de
alcançar uma bolada celestial são realmente muito altas nos dias de hoje. Embora o Brasil continue sendo o maior
país católico do mundo, com cerca de 123,2 milhões de sua população de aproximadamente 191 milhões definindo-
se como seguidores da Igreja do Vaticano, os números mais recentes do censo apontam para um forte declínio
entre os católicos romanos, que agora representam 64,6% da população do país - abaixo dos 92% em 1970.
[Na legenda da foto maior:] "Bispo" Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus: o pastor mais
rico do Brasil. (Tradução nossa).
123

A reportagem parcialmente capturada pela imagem acima reacendeu o debate em


torno da relação entre pagamento de oferta e de dízimo por fiéis no contexto de algumas igrejas
evangélicas no Brasil e o enriquecimento de pastores dessas igrejas. Essa questão é uma
polêmica porque radicaliza a oposição de opiniões em torno dela, divide a sociedade em grupos
que apoiam e que condenam a obrigatoriedade do dízimo e seus desdobramentos (como o
enriquecimento de líderes religiosos e a denominada Teologia da Prosperidade), e implica a
tentativa de desqualificar os opositores, a fim de desqualificar sua tese e seus argumentos e,
assim, arregimentar apoiadores da tese proposta. Ao categorizar a religião como um “negócio
lucrativo” e ao associar o sucesso das igrejas evangélicas à propagada “Teologia da
Prosperidade”, que, de acordo com o texto, alimenta “a crença de que o progresso material
resulta do favor de Deus”, o jornalista condensa os argumentos levantados pelos Proponentes
da tese de que certos líderes evangélicos concebem a fé como um negócio bastante rentável e
de que usam, portanto, de má fé (o trocadilho é de nossa responsabilidade) para enriquecerem.
A partir desse texto, muitos outros foram produzidos e publicados, tanto pela grande mídia
como pela mídia que tem como público específico os fiéis ou simpatizantes das igrejas
evangélicas, criando um efeito de divisão actancial característico da polêmica, que separou a
sociedade em Proponentes e Oponentes de teses dicotômicas. São exemplos de reações à
publicação da Forbes, e de posicionamentos em relação ao tema tratado por ela, os textos (03)
e (04) a seguir.

Texto (03) – Reportagem revista Exame


BRASIL, EXAME Hoje

Silas Malafaia: os mandamentos de um CEO da fé


O pastor carioca é o último dos grandes pregadores evangélicos a entrar em São Paulo, o maior mercado do país
Por Jardel Sebba
13 dez 2016, 13h16 - Publicado em 13 dez 2016, 13h15
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Malafaia: plano de abrir 1.000 igrejas pelo Brasil na próxima década; nesse fim de semana, ele estreou em São Paulo (./Agência Brasil)

Reportagem publicada originalmente em EXAME Hoje, app disponível na App Store e no Google Play.

O que era para ser um banquete virou apenas a entrada. Desde sábado, o pastor Silas Malafaia promove celebrações
para inaugurar a primeira sede de sua igreja, a Assembleia de Deus Vitória em Cristo, em São Paulo. Mas o espaço
estreado na Mooca, zona leste paulistana, ainda não é a igreja definitiva. Depois de um ano pesquisando o mercado
e sondando as oportunidades, ele fechou negócio em um imóvel a quatro quilômetros dali, onde começou uma
reforma para levantar uma igreja para 6.000 pessoas.
No meio do caminho, mudou de rumo. Apareceu o imóvel na Mooca, ele resolveu reformá-lo rapidamente para
transformar em igreja provisória, para 3.600 pessoas, e redimensionou o projeto da sede original para 10.000
pessoas. Aquela, a primeira, abre dentro de três anos. Esta, a provisória, abre neste fim de semana. “Desde a
assinatura do aluguel, levamos 45 dias para aprontar o lugar, rebaixar o piso, instalar o som, as salas de estudo, as
cadeiras, numa conta simples só com essas coisas gastamos 2,5 milhões de reais”, revelou Malafaia a EXAME
Hoje.
O pastor carioca é o último dos grandes pregadores evangélicos a entrar no maior mercado do país. Ao lado da
Igreja Universal do Reino de Deus, do bispo Edir Macedo, da Igreja Mundial do Poder de Deus, do apóstolo
Valdemiro Santiago e da Igreja Internacional da Graça de Deus, do missionário R.R. Soares, Malafaia vem fechar
na cidade o grupo de principais líderes religiosos da fé que mais cresceu no país nos últimos anos.
(...)
O crescimento dos evangélicos se deve principalmente ao neopentecostalismo, ou a terceira onda pentecostal,
surgida na década de 1960 no Rio de Janeiro com o nascimento da Igreja Universal do Reino de Deus. O tele-
evangelismo, o combate às religiões de matriz africana, a teologia da prosperidade (que, em breves linhas, celebra
a riqueza como vitória), entre outros, compuseram uma política agressiva de crescimento que tirou fiéis da Igreja
Católica e elevou em muito o nível de tensão entre as religiões cristãs no país.
(...)
Aumentar o dízimo para depois dividir
Parte do projeto de crescimento dos evangélicos esteve ligado também a uma certa flexibilização de conceitos. No
catolicismo, qualquer mudança é lenta. Mesmo vivendo um momento progressista sob o comando do Papa
Francisco, o sexo, segundo a igreja, ainda se destina somente à procriação. Do outro lado, Edir Macedo proclama
em sua biografia oficial, O Bispo (Douglas Tavolaro com Christina Lemos, Larousse, 2007) que “sexo é para ter
prazer” e que “a cama é a base de uma aliança no altar”.
E o projeto de expansão é também um projeto financeiro, uma vez que cada um deve, segundo a Bíblia, dar a
décima parte do que ganha à igreja, e fazer outras ofertas de acordo com seus propósitos. Logo, numa conta
simples, mais fiéis trazem mais recursos que trazem mais igrejas que trazem mais fiéis. A expansão da Vitória em
Cristo não é diferente.
Hoje a congregação tem 120 igrejas em seis estados brasileiros, mas a chegada a São Paulo marca um novo
planejamento. “Meu projeto é abrir mil novas igrejas nos próximos dez anos pelo Brasil”, me diz Malafaia. “Claro
que terei um olhar especial para o Estado de São Paulo, mas quero abrir igreja em tudo quanto é canto, do Amapá
ao Rio Grande do Sul, não importa se é lugar de bacana ou não”, enfatiza, em seu tom de voz característico, alguns
tons acima.
125

Nem todo mundo no meio evangélico enxerga nele uma liderança absoluta. “A vinda de Malafaia para São Paulo
é muito mais política e empresarial do que eclesiástica”, pontua Marcelo Rebello, presidente da Associação
Brasileira de Empresas e Profissionais Evangélicos (Abrepe). “Em sua campanha para se tornar um líder
reconhecido, é notória a importância de estar na cidade com o maior PIB do país, onde estão os principais
concorrentes. É uma grande vitrine e acho até que demorou para ele tomar esta decisão”, conclui Rebello. Político,
empresarial e eclesiástico, Silas Malafaia é, sob todos esses aspectos, um bem-sucedido CEO da fé cuja forma de
comandar seu, digamos, negócio traz ensinamentos. Selecionamos oito lições empresariais que podem ser
apreendidas do líder da Vitória em Cristo:
1.Modernize-se sem abandonar as tradições
(...)
2. Seja sempre mais ambicioso
(...)
3. Saiba esperar as oportunidades
(...)
4. Conheça e cuide de seus comandados
(...)
5. Diferencie-se pela qualidade
(...)
6. Não fale em dinheiro
A revista Forbes publicou, em 2013, que Malafaia era o terceiro pastor evangélico mais rico do país (atrás,
claro, de Edir Macedo e Valdemiro Santiago), com patrimônio estimado em 150 milhões de dólares. Irritado, ele
mostrou na TV sua declaração de Imposto de Renda, na qual constava um patrimônio de cerca de R$ 4,5 milhões,
e está processando a revista. Em sua concepção, sempre que se fala em dinheiro e em pastores evangélicos, há a
intenção de sugerir algo ilícito. “A ideia que se passa sempre é a de que a igreja evangélica é formada de imbecis
e analfabetos comandados por malandros. Por que ninguém fala dos bilhões que a Igreja Católica manda todos os
anos para o Vaticano?”, pergunta, aproveitando para classificar a questão sobre faturamento como uma “pergunta
babaca”. Malafaia ainda garante que fez um propósito de abrir mão de salário em sua igreja por sete anos – o prazo
vence em março do ano que vem.
7. Deixe claro que é o cargo que precisa de você, e não o contrário
(...)
8. Cause impacto
(...)
Amado e odiado, bem ou mal, estamos falando bastante dele nos últimos anos. E isso, aliado, claro, a toda a visão
empresarial destilada aqui, está levando Silas Malafaia mais longe. Hoje a Mooca, amanhã, quem sabe, o mundo.
Fonte: http://exame.abril.com.br/brasil/silas-malafaia-os-mandamentos-de-um-ceo-da-fe/. Acesso em
15/06/2017. (Grifos em itálico e fonte azul são de nossa responsabilidade).

Texto (04) – Notícia do sítio virtual Verdade Gospel

Gospel

18/01/2013 - 799 comentários em Pr. Silas desmente ‘safadeza’ da Forbes sobre sua renda
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Pr. Silas desmente ‘safadeza’ da Forbes sobre sua renda

A sucursal brasileira da revista norte-americana Forbes publicou uma reportagem onde enumera os cinco pastores mais ricos do
Brasil. Em primeiro lugar está o bispo Edir Macedo (Igreja Universal do Reino de Deus), cuja renda divulgada pela revista é
de aproximadamente US$ 950 milhões.
Em segundo lugar aparece o nome do apóstolo Valdemiro Santiago (Igreja Mundial do Poder de Deus), com uma fortuna
estimada em US$ 220 milhões, de acordo com a Forbes.
Na terceira colocação surge o nome do pastor Silas Malafaia, cuja fortuna é estimada em US$ 150 milhões, de acordo com
a revista.
O Líder e fundador da Igreja Internacional da Graça de Deus, missionário R. R. Soares, ficou em quarto lugar com um
patrimônio estimado em US$ 125 milhões.
Na quinta posição ficou o casal Apóstolo Estevam Hernandes Filho e bispa Sonia Hernandes, ambos líderes e fundadores
da Igreja Renascer em Cristo, com fortuna de aproximadamente US$ 65 milhões.
A Forbes informou que os dados obtidos para esta reportagem foram concedidos através do Ministério Público e pela Polícia
Federal.
Pr. Silas responde

Existe um jogo muito bem organizado para denegrir pastores evangélicos a fim de que a
sociedade tenha uma ideia de que pastor é um malandro usurpando dinheiro de imbecis e
idiotas a fim de se locupletar.
Como sou psicólogo, aprendi que para a mente humana acreditar em alguma coisa são
necessárias várias repetições. Se você não tem consistência na sua mente sobre a
verdade, uma mentira várias vezes repetida para você, passa a ser uma verdade no seu
processo mental. E é este o jogo: construir um preconceito da sociedade em relação a
pastores e as igrejas evangélicas.
Estão com um medo danado do nosso crescimento.
Agora deixa eu desmentir essa “safadeza” inescrupulosa da Forbes Brasil em relação a minha renda:
1- Eu sou o pastor que nunca neguei informação a nenhum veículo de mídia, tanto é que meu patrimônio, receita da Associação
Vitória em Cristo, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, da Editora Central Gospel, já foram publicadas por diversas
entrevistas que dei, entre as quais, as páginas amarelas da revista Veja.
2- Não tenho medo, nem o que esconder do meu patrimônio, porque tudo o que possuo foi constituído de maneira legal, tanto
diante da lei dos homens, quanto das leis de Deus. E mais, há 25 anos não recebo salário de pastor, não que seja errado ou
pecado. A Bíblia diz que digno é o obreiro do seu salário. Foi uma decisão de foro íntimo da minha relação pessoal com Deus.
3- Se juntarmos a receita da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, QUE NÃO É MINHA, mais a receita da Associação Vitória
em Cristo, QUE NÃO É MINHA, com mais o faturamento da Editora Central Gospel, que é minha propriedade, e mais as ofertas
voluntárias que recebo por palestras dadas, somando tudo isto, não dá a metade do que eles anunciaram como receita pessoal
minha. É só para vocês verem a safadeza e a cachorrada desses inescrupulosos.
4- Tudo o que tenho de patrimônio pessoal e renda, estão declarados na Receita Federal. Não tenho nada a temer ou a dever.
Dizer que a informação da minha renda foi dada pelo Ministério Público do Brasil e pela Polícia Federal é uma afronta a essas
instituições sérias, porque eles não têm autoridade legal para fornecer nenhum tipo de informação como esta. Mais uma vez para
provar a mentira desses safados, mediante a [sic] isto, entrarei com uma ação judicial contra a Forbes Brasil.

Fonte: http://www.verdadegospel.com/pr-silas-desmente-safadeza-da-forbes-sobre-sua-renda/.
Acesso em 15/06/2017.
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Os textos (03) e (04) citam a reportagem da revista Forbes sobre os pastores mais
ricos do Brasil, mas o fazem para posicionar-se diferentemente no debate. Enquanto a
reportagem da revista Exame – texto (03), anexo A – corrobora a visão da Forbes de que a fé é
um negócio (a começar pela inscrição da reportagem em uma revista de negócios, passando
pelo modo como ela categoriza Malafaia: “um CEO da fé”, dentre muitas outras qualificações
a ele atribuídas nessa reportagem), a notícia publicada no site VERDADEGOSPEL.COM –
texto (04) – cita a matéria da Forbes, mas a qualifica sutilmente como uma mentira, ao optar
por intitular sua notícia da seguinte maneira: “Pr. Silas desmente ‘safadeza’ da Forbes sobre sua
renda” (grifo nosso). Temos, então, no primeiro texto, um exemplo de alinhamento à tese
proposta pela revista Forbes e, no segundo texto, um exemplo de discurso que se alinha à tese
oposta à da revista. Em torno dos argumentos levantados pela Forbes e em torno dos contra-
argumentos mobilizados pelo pastor, cria-se a divisão actancial entre Proponentes e Oponentes,
respectivamente, das teses de que os pastores enriquecem por meio das ofertas e do dízimo e
de que as ofertas e os dízimos não são fonte de enriquecimento “ilícito”.
Essa dinâmica argumentativa condiz com o que afirma Amossy (2014, p. 51, grifo
nosso):

A primeira marca da polêmica como debate da atualidade é uma oposição de discurso.


O antagonismo das opiniões apresentadas no seio de uma confrontação verbal é a sua
condição sine qua non. Lembremos que a noção de confrontação designa, de partida,
a ação de colocar (dois discursos) em presença e, portanto, em relação, permitindo
assim uma apreciação por comparação. [...] É, portanto, a atividade consistindo em
trazer argumentos em favor de sua tese e contra a tese adversa que constrói a palavra
polêmica. [...] Estamos bem no campo da retórica argumentativa. Argumentamos,
com efeito, quando surge um desacordo sobre uma determinada questão e quando
duas respostas opostas são dadas sobre uma mesma questão, obrigando cada uma das
partes a justificar os fundamentos da sua posição.

Os exemplos que mobilizamos para demonstrar como a polêmica em tela foi


aquecida pela matéria publicada pela revista Forbes, dando margem a inúmeros outros textos
sobre o mesmo tema, conferem força à nossa tese de que a polêmica é instaurada, numa certa
situação enunciativa, por uma relação intertextual. Concordamos, por isso, com Cavalcante
(2017), para quem “a polêmica emerge sempre de uma relação intertextual”:

Sem dúvida, a polêmica é um modo de gestão do conflito entre discursos opostos.


Mas, se Amossy afirma que ela se dá a partir de casos concretos e que é efêmera, é
porque ela emerge de textos, de eventos concretos, únicos e irrepetíveis.
Somente na relação entre textos é que se pode compreender o conflito entre discursos.
(CAVALCANTE, 2017).
128

Essa ideia já encontrava guarida na própria conceituação de polêmica por Amossy


(2014), quando a autora afirma que a noção de confrontação verbal implica a colocação em
presença de opiniões antagônicas. Como pudemos verificar nos textos (03) e (04), que
explicitamente citam a matéria da Forbes e assumem, respectivamente, posição favorável ao
conteúdo do texto-fonte e posição oposta a tal texto, o modo polêmico de argumentar em um
dado contexto se concretiza por meio de relações intertextuais. Assim também ocorre com
aqueles textos nos quais o antagonismo não se dá a ver explicitamente, mas que, por alusão
ampla a conjuntos dispersos de textos, estabelecem relações discursivas antagônicas, indiciam
divisões actanciais e desqualificam o oponente, ainda que tudo isso seja feito de maneira
enviesada. Reafirmamos, assim, nossa tese de que a intertextualidade instaura a polêmica em
uma dada circunstância enunciativa e que, em recuperando as relações intertextuais
estabelecidas, é possível entrevermos a modalidade polêmica em textos desprovidos de visada
argumentativa.

5.2 Composicionalidade

O segundo critério de análise da argumentatividade em textos se desdobra em duas


categorias de natureza composicional: o plano de texto e a sequencialidade. São categorias
elaboradas no âmbito da Análise Textual dos Discursos (ATD) de Jean-Michel Adam, a respeito
da qual apresentamos uma reflexão no capítulo anterior. Iniciaremos por discutir como é
possível a argumentatividade dá-se a ver no e pelo plano de texto e, consequentemente, pelas
estratégias que ele permite inscrever. Logo depois, exemplificaremos a inscrição estratégica
dessa modalidade em nível mesotextual, por meio da descrição do funcionamento de cada uma
das cinco sequências textuais apontadas por J.-M. Adam – narrativa, descritiva, argumentativa,
explicativa e dialogal – em textos de gêneros vários.

5.2.1 O plano de texto

Desde a escolha do tema, passando pelo modo como esse tema será desenvolvido
(o que inclui a escolha do gênero, dentro dos limites que a relativa estabilidade deste impõe, e
das sequências textuais que se interligam), até a conclusão do texto como unidade acabada, o
locutor projeta seu(s) interlocutor(es) e os efeitos que seu dizer poderá desencadear junto a eles.
É pressupondo, com Adam (2011), que “Todo enunciado possui um valor argumentativo” (p.
122) e que “O reconhecimento do texto como um todo passa pela percepção de um plano de
129

texto, com suas partes constituídas, ou não, por sequências identificáveis” (p. 256) que nos
propomos a examinar como a modalidade polêmica se inscreve em nível macrotextual.

Os planos de texto desempenham um papel fundamental na composição macrotextual


do sentido. Correspondem ao que a retórica colocava na disposição, parte da arte de
escrever e da arte oratória que regrava a ordenação dos argumentos tirados da
invenção. O plano oratório clássico compreende, inicialmente, um exórdio (cujo
objetivo é interessar o auditório), seguido de uma proposição (causa ou tese resumida
do discurso), com sua divisão (anúncio do plano). O desenvolvimento tem como parte
principal a confirmação (que prova a verdade avançada na proposição), a qual pode
ser precedida por uma narração (exposição dos fatos) e seguida por uma refutação
(rejeição dos argumentos contrários). A peroração (conclusão que comove o
auditório) completa esse conjunto. (...).
Esse modelo retórico, no entanto, não dá conta da variedade dos planos de texto
possíveis”. (ADAM, 2011, p. 257-258, grifos do autor).

Um plano de texto corresponde “à maneira como aquele texto foi organizado de


forma a cumprir os propósitos do produtor” (MARQUESI; ELIAS; CABRAL, 2017, p. 14) e
reflete sua estrutura composicional, sempre orientada, mais ou menos, por convenções ligadas
aos gêneros do discurso. De acordo com Adam (2017, p. 24, tradução do Protexto), o plano de
texto é “responsável pela segmentação visível-legível do texto escrito em partes (capítulos,
seções, parágrafos)” e é “o fator unificador e obrigatório das estruturas composicionais” (p. 63).
Os planos de texto que apresentam um grau mais elevado de submissão às convenções
composicionais dos gêneros, ou seja, que apresentam uma planificação mais previsível, dotada
de constantes composicionais, são classificados como planos de texto fixos (PTF), enquanto os
planos que apresentam um grau mais elevado de deslocamento em relação aos gêneros, ou cujas
regularidades genéricas são constitutivamente vagas, são considerados planos de texto
ocasionais (PTO) (ADAM, 2011). Adam (2017, p. 64) recategoriza os planos de textos fixos e
os planos de texto ocasionais, respectivamente, como “planos pré-formatados por um gênero”
e “planos não pré-formatados, próprios a um único texto”. Apesar de reconhecer que os
enunciados realizados diferem consideravelmente uns dos outros e que, portanto, a
heterogeneidade se sobrepõe às regularidades composicionais, sendo a homogeneidade, então,
“um caso relativamente excepcional” (ADAM, 2017, p. 61), o autor conserva a distinção entre
PTF e PTO, supondo que certas planificações são próprias a um único texto, sem serem pré-
formatadas por um gênero.
O fato de os planos de texto terem sido, na própria proposta teórica de J-M. Adam,
estreitamente ligados aos gêneros levou Catelão e Cavalcante (2017) a revisitarem a noção de
plano de texto, e a distinção entre PTF e PTO. Os autores propuseram uma redefinição dos
critérios de descrição do “plano pré-formatado por um gênero – PPF” (ADAM, 2017), não
130

como contraposta à noção elaborada por Adam, mas como uma categoria mais abrangente que,
ao mesmo tempo, inclui os planos de texto mais ou menos “fixos” e permite verificar a
dominância prototípica dos gêneros, de modo a contemplar os três elementos que os
caracterizam: tema, estilo e estrutura composicional.
Catelão e Cavalcante (2017, p. 408) também concordam que

Nem todo texto é necessariamente composto por estruturas ordenadas ou fixas de


sequências. O texto de um dado gênero pode ter uma estrutura bastante flexível, sendo,
muitas vezes, os elementos pragmáticos os responsáveis pela opção por uma estrutura
linear convencional ou por um percurso com encadeamento textual totalmente
ocasional. Esse aspecto pode ser ilustrado pelos gêneros publicitários, que parecem
permitir um encadeamento diversificado. Além deles, os gêneros literários trazem
bons exemplos de alta maleabilidade: poemas, como o soneto, podem apresentar
formatos fixos, porém, outros formatos de poema lírico não seguem nenhuma regra e
podem afastar-se criativamente de uma estrutura prototípica de poema.

Se os autores afirmam que os gêneros publicitários “parecem permitir um


encadeamento diversificado” e que o poema lírico é um gênero que pode apresentar tanto
“formatos fixos” como podem não seguir regras composicionais fixas e podem “afastar-se
criativamente de uma estrutura prototípica de poema”, é porque a flexibilidade composicional
dos gêneros é previsível pelo próprio regime de textualização desses gêneros. A exemplo de
gêneros publicitários, como comercial de TV, anúncio impresso e outdoor, a maleabilidade
composicional permite esperarmos sequencialidades diversas, a depender da cenografia
escolhida pelo locutor para representar a própria empresa comercializadora do produto ou
serviço e o interlocutor – consumidor potencial do produto ou serviço propagandeado. Há,
então, textos publicitários em que predomina, no nível da planificação, a narração (caso do
comercial do veículo Captur, da marca Renault, em que a personagem protagonista é uma
sereia37), outros em que predomina a descrição (a exemplo de outro comercial daquele mesmo
veículo da Renault, em que o foco é no design do produto38), já em outros, predomina a
argumentação, como na peça publicitária do exemplo (13).

Exemplo (13)39

37
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=mexpZ0kspGc Acesso em 20/09/2018.
38
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=sOV-IIkoDok Acesso em 20/09/2018.
39
O mundo precisa de uma revolução em fontes de energia renováveis. Mas para que o máximo de proveito seja
conseguido, nossos hábitos também precisam mudar. Medidas simples podem iniciar esse processo na sua vida:
• Utilizar, de uma só vez, a capacidade máxima de roupa de sua máquina de lavar.
• Esperar acumular uma quantidade razoável de roupa para passar tudo de uma só vez.
• Evitar usar máquina de lavar e secar, ferro e chuveiro, entre 18h e 21h, que é o horário de pico de energia.
• Escolher as lâmpadas com selo Procel, que gastam menos energia.
131

Fonte: https://vitaminapublicitaria.com.br/sustentabilidade-em-pecas-graficas/ Acesso em 20/09/2018.

Pensamos, com Catelão e Cavalcante (2017), que um PPF possa abrigar traços
recorrentes tanto em planificações “fixas” como nas ocasionais (não se atendo a suas
singularidades, em coerência com o próprio conceito de gênero que adotamos: tipos
relativamente estáveis de enunciados) e deva levar em consideração não somente sua
organização composicional, mas, também, os outros dois elementos definidores de um gênero:
o conteúdo temático e o estilo. Assim, o traço recorrente nos anúncios exemplificados acima e
em muitos outros diz respeito ao conteúdo temático: todos os textos desse gênero têm como
tema o produto ou o serviço oferecido por uma empresa. O estilo e a composicionalidade, por
outro lado, são traços variáveis, que se submetem, mais ou menos, às coerções de ordem
discursiva sedimentadas pelas práticas sociais.

As diferentes situações sociodiscursivas guiam (e ao mesmo tempo são guiadas por)


tipos relativamente estáveis de textos, os gêneros. Os planos pré-formatados dos
gêneros são convencionalmente construídos e também descontruídos ou
reconstruídos pelo interlocutor de formas variadas. A pressão pragmática é tão
importante para essa reconstrução que pode nos levar a seguir exatamente um
“protótipo” estruturalmente pré-definido. Certos gêneros são mais resistentes a
mudanças estruturais, devido ao tipo de prática social a que estão associados, como é
o caso de alguns gêneros das esferas acadêmica, jornalística, jurídica entre outras. Por
outro lado, encontramos comumente outros casos em que esses planos pré-formatados

O fato é que você pode começar hoje mesmo a renovar seus hábitos. E o benefício dessa mudança multiplicada
por milhões, já aparece no dia seguinte.
Para saber mais exemplos do que você pode fazer acesse: www.bancodoplaneta.com.br.
132

são alterados (também intencionalmente) para formas inesperadas (mesmo sendo


consideradas do mesmo gênero) para assim se adequarem a outro tipo de
interlocução, justamente com o objetivo de marcar uma intenção singular. Essas
alterações, evidentemente, só são possíveis, sem levar à estranheza, porque as próprias
convenções composicionais, temáticas e estilísticas do gênero do discurso permitem
isso. (CATELÃO; CAVALCANTE, 2017, p. 408, grifos nossos).

Reivindicamos, com os autores, que a oposição entre PTF e PTO seja substituída
pela noção de PPF ou de plano de gênero e que este seja relativizado conforme o grau de
prototipicidade da tríade tema, composição e estilo. “Assim sendo, optamos por reservar à
etiqueta ‘plano de texto ocasional’ uma decisão individual sobre os arranjos composicionais,
temáticos e estilísticos que um determinado plano pré-formatado (ou fixo) do gênero
comportasse”. (CATELÃO; CAVALCANTE, 2017, p. 408). Isso implica a previsão de que o
inusitado, no nível da planificação textual, só possa ser admitido nos limites de um horizonte
de expectativas determinado pelos próprios gêneros e pelas esferas das quais eles relevam,
horizonte esse que permite ou um afastamento da prototipicidade ou um menor grau de
prototipicidade, de modo que escolhas ocasionais não provoquem mudança de quadro genérico.
Lembrando, com Amossy (2006, 2018a), que a argumentatividade é tributária do
gênero e do domínio discursivo nos quais ela ocorre, destacamos a seguinte afirmação da autora,
que nos parece convergir para o que estamos sustentando aqui:

É preciso, evidentemente, considerar o fato de que numerosos textos empregam as


formas genéricas de modo complexo ou transgressivo. O modo de indexar-se a um
gênero ou de se realizar em vários modelos genéricos tem uma importância
determinante para o impacto argumentativo do discurso. Notamos que a lógica do
campo ao qual pertence o discurso marca os limites atribuídos às variações ou
infrações, condicionando sua força persuasiva. O campo político, por exemplo, impõe
uma observância mais estrita de suas regras e convenções do que o campo literário,
onde a inovação e o efeito de ruptura agregam valor à escrita. (AMOSSY, 2006, p.
217, tradução nossa).

Ao tratar dos quadros genéricos e institucionais dos discursos, Amossy (2006,


2018a) situa a carta aberta e a entrevista televisiva eleitoral no campo político e examina
estratégias discursivas e retóricas mobilizadas na produção de textos específicos desses
gêneros, conforme mencionamos no capítulo anterior. Retomaremos essas análises,
brevemente, nesta subseção, a fim de dar uma ideia mais precisa de como pensamos em agregar
o plano de texto, ou plano pré-formatado por um gênero, às ferramentas de análise da
argumentatividade em textos.
A organização textual (o plano de texto) da carta aberta de Madeleine Vernet é
considerada por Amossy (2006, 2018a) como uma estratégia retórica por meio da qual a
133

locutora constrói seu ethos, o auditório particular da carta, sua relação com ele e busca a adesão
desse auditório às ideologias socialista e antimilitarista. De acordo com a analista, nessa carta,

O “tu” ao qual se dirige um “eu” que demonstra, a um só tempo, autoridade e empatia


se encontra [...] na posição de um indivíduo imerso na ignorância que deve, pouco a
pouco, ao longo da argumentação, tomar consciência de sua situação e tomar sua sorte
nas mãos. É essa relação com o auditório direto que determina o desenvolvimento
argumentativo do discurso, que é dividido em várias partes que constituem tantas
etapas de desvelamento e de aprendizagem: (1) um exórdio em que a mater dolorosa
apostrofada aparece como uma vítima sofredora e ignorante; (2) uma narração que
reconstitui seu calvário desde a partida de seu filho até a certeza de seu
desaparecimento e do sacrifício feito "à pátria"; (3) uma refutação na qual são
denunciados aqueles que causaram seu infortúnio, explorando a ideologia patriótica e
abusando do seu poder; ela é acompanhada de uma história pessoal onde o “eu”
reforça sua denúncia pela relação da cerimônia do soldado desconhecido, bem como
pela história da perda de seu próprio filho na infância que ela não lamenta mais ("Mas
quando eu soube o que seria feito com seu filho morto, ó mãe desconhecida do soldado
desconhecido, eu quase me regozijei com o pensamento de que o meu nunca será um
soldado"); (4) uma peroração que exige a paz universal e convoca a mãe enlutada a
se juntar a essa reivindicação pública. A ordem do discurso é, como vemos, das mais
clássicas. (AMOSSY, 2006, p. 226, tradução nossa).

Concordamos que tal organização constitui uma estratégia argumentativa, uma


planificação textual ligada à esfera sociodiscursiva e ao gênero na qual se constitui e, assim,
estamos de acordo também com Adam (2011, p. 259), para quem, “Apesar da inegável
diversidade do gênero, a forma epistolar apresenta algumas constantes composicionais”, tais
como abertura (com termos de interpelação e indicações de lugar e de tempo), exórdio, corpo
da carta, peroração e fechamento (fórmula de cortesia e assinatura). Em se tratando
especificamente da carta aberta, é um gênero epistolar da esfera política, que tem como
finalidade discursiva geral tratar de um assunto político (no sentido que é dado ao termo político
na abordagem de R. Amossy e que explicitamos nesta tese em capítulo precedente).
Necessariamente materializada em suporte de pública e ampla circulação, sua finalidade
discursiva mais particular pode ser de instruir, de protestar ou de alertar não um destinatário
específico, mas um público mais vasto, de modo a arregimentar partidários da ideologia direta
ou indiretamente defendida. Esse propósito peculiar ao gênero carta aberta motiva uma variação
naquele plano de texto de gêneros epistolares de modo geral proposto por Adam; não temos,
necessariamente, as indicações de tempo e de lugar na abertura. A carta de Vernet, por exemplo,
é aberta pelo título (À “mãe desconhecida” do “soldado desconhecido”) que, de imediato,
interpela a instância de interlocução do texto, mas a abertura não apresenta indicações de tempo
e de lugar. A data é indicada ao fim da carta. No fechamento, não há presença de fórmula de
cortesia; há a assinatura da signatária, Madeleine Vernet, e a indicação da data (14 de novembro
de 1920). As outras partes do plano desse texto seguem, de fato, conforme afirma Amossy
134

(2006, p. 226), a ordem retórica clássica, com uma sequencialidade prototipicamente


argumentativa. Esse texto apresenta, então, uma planificação que faz amálgama dos planos
epistolar e retórico, conforme o exemplo de um cartaz político citado Adam (2011, p. 261), que
se apresenta com um plano parecido.
Em relação ao gênero entrevista eleitoral televisiva, Amossy (2006, 2018a) aponta
alguns traços das interações analisadas (com base em trechos das entrevistas realizadas com
dois dos candidatos à presidência da França nas eleições de 2002: Jacques Chirac e Jean-Marie
Le Pen), que podemos, pensamos nós, alinhar a um plano pré-formatado por esse gênero.
A autora, antes de tudo, chama à atenção o fato de que tal gênero ocorre por uma
interação dialogal face a face entre interlocutores que respondem um ao outro oralmente, o que
acarreta mudanças importantes, em relação à carta aberta, na “ordem do discurso”, na
construção do ethos e na dupla alocução do texto; enfim, na argumentatividade de modo geral.
O foco da análise empreendida por Amossy incide sobre a coconstrução do ethos de
presidenciável dos candidatos e sobre a doxa que serve, a um só tempo, para apoiar e para
fortalecer seus discursos. Tangencialmente, ela toca na questão da preservação das faces
envolvida no jogo de poder subjacente ao gênero. Tendo em vista o objetivo do gênero
entrevista eleitoral televisiva, que é oferecer aos eleitores uma imagem do candidato e de seu
programa de governo, o tema geral do gênero diz respeito a assuntos de interesse político
nacional que instam os candidatos a proporem ações e/ou soluções em torno deles. A
personagem central dessas interações é o entrevistado, cuja imagem é coconstruída pelas
perguntas do entrevistador, que elege os temas a serem tratados e que orienta a direção
argumentativa do discurso. As respostas do entrevistado, por outro lado, podem modificar essa
direção inicial, com vistas à (re)construção de um ethos que lhe favoreça na corrida eleitoral.

Se a construção do ethos é, evidentemente, central na entrevista eleitoral em que o


candidato busca produzir uma imagem favorável de si, é preciso entender, entretanto,
que ela apenas pode ser elaborada com base em uma doxa compartilhada. Não se trata
apenas da ideia que o eleitor possa fazer de um bom presidente, mas também de seus
valores e de suas crenças mais enraizadas. (AMOSSY, 2018a, p. 259).

A análise de Amossy põe em evidência, como vemos, as estratégias retóricas e


discursivas mobilizadas pelos interlocutores diretos das entrevistas. Sugerimos que a noção de
plano de gênero possa servir de parâmetro a descrições e análises das estratégias persuasivas
mobilizadas no modus operandi da argumentatividade polêmica em textos dialogais da esfera
jornalística, com ou sem visada argumentativa. Partiremos do pressuposto de que o grau de
135

prototipicidade em gêneros dessa esfera é considerável e, por isso, o posicionamento do locutor


se revela de modo bastante sutil em gêneros desprovidos de visada argumentativa.
Com o propósito de ilustrarmos essa nossa proposta e, ao mesmo tempo, a
aproximarmos da abordagem da AAD, faremos análise de textos que se filiam ao universo
genérico das entrevistas. O primeiro texto – texto (05), anexo B, ao qual remete a imagem (3)
– é a entrevista que Silas Malafaia concedeu à jornalista Marília Gabriela, exibida em
03/02/2013 pelo canal aberto SBT. O segundo texto é a entrevista que Silas Malafaia concedeu
à Veja (texto (06), anexo C) e que foi publicada na edição da revista do dia 06/06/2012. Sobre
ambos os textos, buscaremos sistematizar os traços recorrentes de tema, estilo e composição
que caracterizam, respectivamente, um plano dos gêneros entrevista jornalística televisiva e
entrevista jornalística escrita. Essa sistematização nos permitirá pôr em evidência as estratégias
de planificação das quais os locutores se utilizaram para empreender seus projetos de persuasão.

Imagem (3) – Entrevista de Silas Malafaia ao programa De frente com Gabi

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=ku2Oggblm0A Acesso em 17/04/2017.

Classificaremos a entrevista do texto (05) (anexo B) como entrevista jornalística


de programa televisivo. Por essa designação, pretendemos destacar a particularidade desse
texto, e do gênero do qual ele releva, em relação à entrevista eleitoral televisiva: o seu objetivo
é duplo e consiste em entreter e fazer saber/informar ou sobre alguém (uma personalidade
considerada socialmente importante e/ou interessante – um(a) cantor(a), um(a) empresário(a)
de sucesso, uma atriz ou ator, etc.) ou sobre um assunto, também considerado de interesse do
público, em relação ao qual o entrevistado é considerado um especialista (um médico, um
historiador, um psicólogo etc.). Tanto no caso de o tema da entrevista jornalística televisiva
136

sobrelevar uma personalidade como no de sobrelevar um assunto de interesse público, a escolha


do entrevistado é feita a partir de uma projeção que se faz da audiência espectadora do
programa, de seus interesses, de suas preferências etc. Isso significa que, do ponto de vista
retórico, o auditório dessas entrevistas é o público espectador, porque a troca entre os
interlocutores imediatos dessas interações (entrevistador e entrevistado) tem em vista a
audiência à qual os dois oferecem suas performances, construídas com base em um contrato
comunicativo que, independentemente de ser formal ou tácito, supõe o oferecimento de um
“espetáculo” a esse público. Assim, o objetivo de fazer saber só é alcançado se a entrevista for
exitosa em seu objetivo de entreter. Entendemos, todavia, que, quando o tema principal da
entrevista é a figura do entrevistado, o objetivo de entreter se sobrepõe ao de informar, e que,
quando o foco é no assunto tratado por um especialista, ocorre o inverso: o objetivo de informar
é que se sobrepõe ao de entreter.
O estilo das entrevistas jornalísticas televisivas também é variável. Em geral,
quando o entretenimento se antepõe à informatividade, o estilo tende a ser mais subjetivo e
menos formal. Quando o centro da troca é a informação, o estilo pode tender a ser mais
impessoal e mais formal. Nas entrevistas do programa De frente com Gabi, a heterogeneidade
de estilos parece buscar atender não somente aos imperativos temáticos das entrevistas, mas
também ao ethos prévio de intelectual da jornalista, que ela sedimenta por meio de uma
linguagem que se situa entre um estilo mais popular e acessível e em um estilo mais rebuscado40.
No que tange à estrutura composicional, uma característica comum a todas as
entrevistas41 é sua sequencialidade coordenada, em que a primeira sequência é descritiva e a
segunda é dialogal, com efeito de dominante desta. Esse aspecto organizacional está ligado à
predominância de um tipo de interação na qual os interlocutores imediatos alternam os turnos
de fala, que se constituem basicamente em pares dialógicos do tipo pergunta-resposta, sendo,
portanto, poligerida. Podemos afirmar, então, que nesse gênero há dominância de sequência
dialogal, com encaixamento nela de outras sequências, o que é típico de gêneros
conversacionais. Prototipicamente (ou seja, levando em conta as recorrências em um conjunto
de textos do gênero e não as singularidades de cada texto), o plano do gênero entrevista
jornalística televisiva poderia ter sua estrutura composicional descrita assim: abertura pelo

40
Há, nessas entrevistas, uma outra evidência da tentativa de sedimentar esse ethos prévio: os óculos da jornalista
(ou a reconhecida coleção deles). Não iremos nos debruçar nesse aspecto visual por entendermos que ele escapa
aos nossos propósitos investigativos, mas reconhecemos que, sem dúvida, é pertinente a uma análise mais
aprofundada sobre as possíveis estratégias de (re)construção de imagens de si.
41
Sobre a entrevista jornalística escrita, consideramos que sua produção é, antes de tudo, dialogal e síncrona. Por
um processo de retextualização é que ela se acomoda ao regime de materialidade escrito, o que acarreta
particularidades no uso de certas estratégias persuasivas, como veremos adiante.
137

entrevistador, que corresponde praticamente ao exórdio retórico, cuja finalidade seria dar a
conhecer o entrevistado e fazer com que o auditório se interesse por aquilo que ele tem a dizer
(por isso, trata-se de uma sequência descritiva) – nesta etapa do texto, o telespectador é o
interlocutor ao qual o entrevistador se dirige diretamente, pelo gesto de olhar e de falar voltado
para a câmera; início da conversa, com segmento fático por meio do qual o entrevistador
instaura o entrevistado na interação como interlocutor imediato; conversa propriamente dita ou
núcleo transacional de base (ADAM, 2011, p. 249) – com estrutura pergunta-resposta-
avaliação – sobre, direta ou indiretamente, a pessoa do entrevistado ou sobre o(s) assunto(s)
no(s) qual(is) ele é especialista; encerramento da conversa, novamente marcado por segmento
fático. Quando se trata de um programa em que um único interlocutor (uma pessoa ou um
grupo) é entrevistado, a entrevista se divide em blocos e, ao final de cada bloco, há a chamada
de intervalo e, no retorno ao bloco seguinte, uma breve reapresentação do entrevistado. Essa
variação marca o plano da entrevista de que ora estamos tratando.
Um dos fatores que o plano desse gênero tem de estratégico é a previsão de uma
sequencialidade encaixada diversificada, o que permitiu que a entrevista de Marília Gabriela
com Silas Malafaia ganhasse ares de debate sem, contudo, causar um estranhamento que levasse
o público espectador a deixar de reconhecê-la como uma entrevista. A predominância da
sequência encaixada argumentativa e o modo pelo qual a entrevistadora se engajou na troca
argumentativa, engendrada tanto por suas perguntas como pelas avaliações que fez das
respostas do entrevistado, instituíram uma cenografia de debate, por meio da qual, mais do que
cumprir com o papel de jornalista de colher informações sobre Silas Malafaia, Marília Gabriela
toma partido nas questões controversas e, assim, constrói com o entrevistado um cenário
discursivo em que as opiniões são dicotomizadas, gerando uma divisão actancial entre
Proponentes e Oponentes e recorrendo a mecanismos de desqualificação do adversário.
Apesar de a temática do gênero permitir que sejam tratadas questões polêmicas em
entrevistas jornalísticas televisivas, constatamos que é a estrutura composicional/sequencial
prevista para o gênero, com sequência dialogal encaixante e sequências encaixadas
diversificadas, que garante à entrevista de Marília Gabriela com Silas Malafaia a polemicidade
dessa interação. No jogo entre perguntas, respostas e avaliações, a predominância de sequências
argumentativas inscreve nesse texto a cenografia de um debate sem, contudo, fazer com que
esse texto deixe de ser enquadrado no gênero (e na cena genérica) da entrevista jornalística
televisiva.
O texto (06) (anexo C) também faz parte do universo genérico das entrevistas, mas
pertence, mais propriamente, ao gênero que vamos denominar de entrevista jornalística escrita
138

(que pode ser publicada em meio impresso ou digital). Por essa categorização, estamos nos
referindo às entrevistas informativas publicadas em revistas ou em sites de informação, tais
como Veja, IstoÉ, O Globo, etc. Um plano desse gênero poderia comportar as seguintes
características recorrentes:
 Conteúdo temático: o tema pode girar em torno da própria personalidade
entrevistada ou pode dizer respeito a assuntos que estão em voga na
sociedade (política, economia, ciência, entretenimento, etc.) e que se supõe
serem de interesse do público leitor do veículo de comunicação que publica
a entrevista;
 Estilo: geralmente, a linguagem dessas entrevistas é clara e acessível, mas
formal, sem resvalar para o requinte;
 Estrutura composicional: macrotextualmente, essas entrevistas comportam
um título principal, um título auxiliar, um lide (trata-se de uma
introdução/um exórdio, que contextualiza a conversa entre entrevistador e
entrevistado e que apresenta características supostamente relevantes do
entrevistado), e a troca conversacional ou núcleo transacional (perguntas-
repostas[-avaliação]). Mesotextualmente, há sucessão de sequência
descritiva e sequência dialogal, com dominância da dialogal. A sequência
dialogal também é encaixante, pois comporta, presumivelmente, sequências
encaixadas diversificadas.
Nessa planificação, enquadramos a entrevista que Silas Malafaia concedeu à Veja.
O título principal (“O Brasil não é homofóbico”) dispara, de início, uma questão polêmica no
Brasil, com a qual o ethos prévio do entrevistado está implicado. O título auxiliar (“O pastor
diz que não acerta as contas de quem gasta mais do que ganha e condena as leis contra a
homofobia, que considera iniciativa de ativistas gays de olho nos cofres públicos”), também
elaborado com base nas declarações controversas do entrevistado, reforça o radicalismo de seus
posicionamentos e sedimenta seu ethos prévio de “personalidade polêmica”. O lide não fica de
fora dessa tentativa de consolidar uma certa imagem. Dentre os períodos descritivos que o
constituem, chamamos este à atenção: “De Rolex de ouro no pulso e cabelos implantados, o
pastor recebeu VEJA na sede da sua igreja, a Assembleia de Deus – Vitória em Cristo, no bairro
da Penha, na Zona Norte do Rio de Janeiro”. É comum a estrutura dessas entrevistas comportar
também uma imagem não verbal do entrevistado logo no início, como é o caso desta, em que
Silas Malafaia é retratado, sob um fundo escuro, de traje social (camisa social branca, calça
social escura e gravata vermelha), sorrindo e segurando uma bíblia. São vários os elementos
139

que constituem essa imagem visual, mas o jornalista escolhe descrever verbalmente o
entrevistado por somente dois deles: o Rolex de ouro no pulso e os cabelos implantados. Essa
escolha é estratégica na medida em que imprime uma orientação argumentativa ao texto, pois,
diferentemente daqueles outros elementos visuais que citamos, “o Rolex” e “os cabelos
implantados” são referentes que indiciam uma personalidade inusitada em comparação ao
estrato socioeconômico majoritário das pessoas no Brasil e no mundo (e que pode ser
representado por aqueles fiéis que “ganham 1000 reais, mas querem gastar 1100”...). O relógio
da marca Rolex, cujo valor bastante elevado (ainda mais sendo de ouro) faz parte do
conhecimento de mundo de pelo menos uma significativa parcela de leitores da revista, é
símbolo de riqueza e de distinção social, e o implante de cabelos (cujo alto custo, de 20 mil
reais, é revelado pelo próprio entrevistado, na resposta à última pergunta da entrevista) aludem,
a um só tempo, aos estereótipos de homem rico e de líder religioso desonesto, que enriquece às
custas da fé dos fiéis (a maioria desabastada) de sua igreja.
Nessa entrevista escrita, a argumentatividade polêmica se inscreve, de maneira
enviesada, por meio do plano do gênero (de suas partes constituintes e de sua sequencialidade
típicas). Ao descrever o entrevistado por certos traços aparentes de sua imagem visual, o
jornalista, que representa a revista, alude a um estereótipo que deixa entrever o ponto de vista
segundo o qual certas lideranças evangélicas fazem da religião um negócio rentável, que garante
a elas um nível econômico de vida muito distante daquele das pessoas e dos trabalhadores
comuns. O mesmo ponto de vista se deixa entrever na pergunta “Essa ênfase dos pastores em
arrecadar dinheiro dos fiéis não é muito suspeita?”, pela qual o jornalista insta Malafaia a se
posicionar sobre a questão polêmica da relação entre enriquecimento de pastores evangélicos e
cobrança de ofertas e dízimos dos fiéis. Mais do que instar o entrevistado a uma resposta, o
entrevistador modaliza sua opinião em torno da polêmica que agita as esferas jornalística e
midiática brasileira. A própria estrutura de pergunta consiste em uma modalização do
argumento, que, reforçado pelo “não”, dissimula o raciocínio segundo o qual “a relação entre
fé e dinheiro é muito suspeita” (premissa maior não expressa), “há uma ênfase dos pastores na
arrecadação de dinheiro” (premissa menor expressa), “a atitude dos pastores, portanto, é muito
suspeita” (conclusão).
Consoante o que defendemos no capítulo anterior, essas análises reforçam o
princípio de que a argumentatividade, para a LT, assim como para a AD, está diretamente
relacionada aos gêneros e às esferas das quais eles relevam. Todavia, diferentemente da AAD,
temos buscado, nesta seção, demonstrar como, além de categorias discursivas e linguísticas, há
140

parâmetros de textualização que podem servir à descrição e a à análise da argumentatividade.


Pensamos, assim, com Catelão e Cavalcante (2017, p. 412), que

De acordo com Adam (2017), é possível olhar para os gêneros não apenas como tipos
de práticas discursivas que integram formações sociodiscursivas ou domínios
(jornalístico, religioso, literário, acadêmico etc.), mas também considerá-los a partir
de agenciamentos pré-formatados de proposições e macroproposições, classificáveis
em cinco relações macrossemânticas básicas, adquiridas por impregnação cultural:
narrativo, descritivo, argumentativo, explicativo e dialogal. Haveria, por esse prisma,
gêneros do narrar, do descrever, do argumentar, do explicar e do dialogar. Essa
possiblidade de agrupamento de gêneros por uma perspectiva composicional é o que,
a nosso ver, pode tornar viável a relação indiscutível que existe entre sequência
textual, plano de texto e gênero do discurso.

Passaremos, nas subseções seguintes, a analisar as estratégias mesotextuais de


inscrição da argumentatividade polêmica em textos das esferas jornalística e midiática.

5.2.2 A sequencialidade

Não seria possível compreender o nível mesotextual da estruturação composicional


sem conhecer a unidade elementar dos textos. Iniciaremos, portanto, a tratar de sequencialidade
pela categoria da proposição-enunciado.
Por razões que não convém expormos aqui, Adam (2011, p. __) considera a frase
“uma unidade de segmentação (tipo)gráfica pertinente”, mas insuficientemente definida mesmo
do ponto de vista sintático para figurar como unidade de análise textual. Rejeitando, então, a
noção de frase como unidade mínima da análise textual, Adam propõe que a microunidade de
análise seja a proposição-enunciado e explica sua opção por tal categoria:

Temos necessidade, metalinguisticamente, de uma unidade textual mínima que


marque a natureza do produto de uma enunciação (enunciado) e de acrescentar a isso
a designação de uma microunidade sintático-semântica (a que o conceito de
proposição atende, finalmente, bastante bem). Ao escolher falar de proposição-
enunciado, não definimos uma unidade tão virtual como a proposição dos lógicos ou
a dos gramáticos, mas uma unidade textual de base, efetivamente realizada e
produzida por um ato de enunciação, portanto, como um enunciado mínimo. (ADAM,
2011, p. 106).

Produto de um ato de enunciação, a proposição-enunciado (também denominada


proposição ou microproposição) é, ao mesmo tempo, uma microunidade sintática e uma
microunidade de sentido, que pode ser representada pelas letras p e q. Essa noção implica um
objeto de discurso (sujeito ou tema) que se liga a um dizer sobre ele, por meio de um predicado
verbal (enunciado verbal) ou não (enunciado nominal) (ADAM, 2011, p. 109). É importante
141

destacar que há três dimensões complementares que incidem sobre o funcionamento dessa
categoria:

Toda proposição-enunciado compreende três dimensões complementares às quais se


acrescenta o fato de que não existe enunciado isolado: mesmo aparecendo isolado, um
enunciado elementar liga-se a um ou a vários outros e/ou convoca um ou vários outros
em resposta ou como simples continuação. Essa condição de ligação é, em grande
parte, determinada pelo que chamaremos orientação argumentativa (ORarg) do
enunciado. As três dimensões complementares de toda proposição enunciada são: uma
dimensão enunciativa [B] que se encarrega da representação construída verbalmente
de um conteúdo referencial [A] e dá-lhe uma certa potencialidade argumentativa
[ORarg] que lhe confere uma força ou valor ilocucionário [F] mais ou menos
identificável. (ADAM, 2011, p. 109).

Na perspectiva da ATD, portanto, o termo enunciado não tem o mesmo sentido que
na filosofia bakhtiniana de linguagem, da qual tratamos outrora e para a qual esse termo
equivale à concepção de texto que adotamos. À categoria da frase, Adam (2011, p. 107) reserva
o conceito tipográfico pelo qual ela é identificada: “unidade gráfica cujos limites são
assinalados por uma maiúscula e um ponto”. Junto à frase, Adam (2011) colocava o parágrafo
e a estrofe, até então consideradas unidades gráficas pelas quais se poderia identificar as partes
de um plano de texto. Em Adam (2017), o parágrafo passa a figurar no nível mesotextual, como
um tipo de agrupamento de frases tipográficas, mas também de proposições elementares, junto
ao período, sendo ambos considerados como unidades textuais fragilmente tipificadas.
O período, o parágrafo e a sequência são unidades textuais, com níveis diferentes
de complexidade, que resultam do agrupamento sintático e/ou semântico de proposições-
enunciados. O período corresponde aos “conjuntos mais ou menos complexos de enunciados
que entram na composição textual” e que levam em conta “tanto as conexões lógico-gramaticais
quanto as rítmicas” (ADAM, 2011, p. 106-107); são unidades textuais “frouxamente
tipificadas” (p. 204). O parágrafo consiste no agrupamento de períodos simples e de frases. Já
as sequências consistem em unidades mais complexas e tipificadas, que agrupam um número
determinado de macroproposições. As macroproposições (MP) resultam do agrupamento
sequencial de proposições, são unidades textuais que reúnem propriedades sintáticas (são uma
espécie de períodos complexos, mas que se ligam a outras macroproposições e que só se
definem em relação a estas) e semânticas (que só adquirem sentido nas relações que
estabelecem entre si) que se situam entre o período e a sequência.
Em uma sequência, as macroproposições se agrupam e compõem combinações pré-
formatadas de proposições. Adam (2011, 2017) denomina essas combinações de narrativa,
descritiva, argumentativa, explicativa e dialogal – que correspondem aos cinco tipos básicos
de relações macrossemânticas –, adquiridas por impregnação cultural (por meio das práticas de
142

produção e de compreensão textuais) e “transformadas em esquemas de reconhecimento e de


estruturação da informação textual” (ADAM, 2017, p. 50, tradução do Protexto). Elas são
apreendidas desde a infância, de maneira incidental, em consequência da oportuna apropriação
da língua.
Retomando a noção de orientação argumentativa, recoberta pela ideia de que todo
texto, em seu nível configuracional/pragmático, visa agir sobre as crenças, representações e/ou
comportamentos de seu interlocutor (individual ou coletivo), buscaremos analisar, nesta
subseção, como as sequências textuais permitem inscrever, explícita ou implicitamente, a
argumentatividade em textos jornalísticos e midiáticos.

5.2.2.1 A sequência narrativa

De acordo com Adam (2011[2008], p. 225, grifos do autor),

Em sentido amplo, toda narrativa pode ser considerada como a exposição de “fatos”
reais ou imaginários, mas essa designação geral de “fatos” abrange duas realidades
distintas: eventos e ações. A ação se caracteriza pela presença de um agente – ator
humano ou antropomórfico – que provoca ou tenta evitar uma mudança. O evento
acontece sob o efeito de causas, sem intervenção intencional de um agente.

Essa definição – que não consideramos sem importância, pois nos parece recobrir,
de fato, uma “ideia ampla” sobre a narrativa, segundo a qual ela consiste na exposição de
fatos/acontecimentos – deixou de fora outros componentes constituintes que Adam (2009,
2017) passou a considerar como indispensáveis à narração. São eles:
i. pelo menos um ator antropomórfico (A) constante, individual ou coletivo (ADAM,
2009, p. 125), critério que Adam (2017, p. 120) designa “unidade temática”, no sentido
de que a narração envolve no mínimo um ator-sujeito de estado ou operador (S), do qual
releva a ideia de “implicação do interesse humano”;
ii. predicados (qualitativos ou funcionais) X e X’ definindo A, respectivamente, antes e
depois do início e do fim de um processo (ADAM, 2009, p. 126), ou seja, predicados
(de estar, de ter ou de fazer) transformados, que definem o sujeito (S) no instante t (início
da sequência) e depois no instante t + n (fim da sequência) (ADAM, 2017, p. 121);
iii. uma sucessão temporal mínima: antes (t) > depois (t + n) (ADAM, 2009, p. 126), ou
uma sucessão de acontecimentos que se desenvolve no tempo, mas que só pode ser
considerada constitutiva da narrativa se for conduzida por uma tensão que organize os
acontecimentos em função da situação t + n (ADAM, 2017, p. 119);
143

iv. uma transformação de predicados X em X’ por um processo, e no desenvolvimento


dele (início, meio e fim) (ADAM, 2009, p. 126, grifo nosso), isto é, uma unidade acional
que forma o todo da narrativa. O processo é dominado pela tensão que engendra a
transformação realizada ou sofrida por um sujeito e corresponde aos momentos (m) 2,
3 e 5 da narrativa, descritos abaixo, que representam, juntos, a unidade da ação (cf.
ADAM, 2017, p. 123):
m1 = Antes do processo (ação iminente = t)
m2 = Início do processo (começar a, dispor-se a)
m3 = Durante o processo (continuar a)
m4 = Fim do processo (acabar)
m5 = Depois do processo (realização recente = t + n);
v. uma lógica singular em que o que vem depois aparece como tendo sido causado pelo
que veio antes (ADAM, 2009, p. 126). Isso significa que, mais do que a sucessão de
acontecimentos, são a causalidade e o estabelecimento da intriga que definem uma
sequência como sendo narrativa (ADAM, 2017);
vi. um fim sob a forma de avaliação final/”moral” explícita ou dedutível (ADAM, 2009, p.
126), “que dá o sentido configuracional da sequência” (ADAM, 2017, p. 132).
Uma trama narrativa, portanto, não consiste tão somente em uma sucessão de ações.
É necessário haver um processo pelo qual uma situação (inicial) t seja transformada em uma
situação (final) t + n. Para que isso ocorra, os seis critérios de narrativização elencados acima
devem estar integrados. O esquema (5) representa a estruturação básica da sequência narrativa,
composta por cinco macroproposições narrativas (MPn), que equivalem aos cinco momentos
descritos no critério de número iv.

Esquema 5 – Esquema quinário da sequência narrativa

Limites do processo

Núcleo do processo

Situação Nó Re-ação ou Desenlace Situação


inicial (Desencadeador) Avaliação (Resolução) final
(Orientação) MPn2 (m2) MPn3 (m3) MPn4 (m4) MPn5
MPn1 (m1) (m5)
Fonte: Adam, 2017, p. 128.
144

Mediante esse esquema e com base também no próximo (Esquema 6), retomemos
nosso objetivo de descrever a argumentatividade em torno de questões polêmicas por
parâmetros de textualização, mais especificamente, nesta seção, pelas categorias de análise que
J.-M. Adam denomina sequências textuais. Selecionamos uma notícia na qual as sequências
narrativas orientam o modo de ver do leitor em direção à tese favorável à descriminalização da
maconha, mais uma questão polêmica que tem pululado em textos das esferas jornalística e
midiática no Brasil. Apontaremos, no exemplo a seguir, as macroproposições que caracterizam
uma sequência como narrativa, acrescentando às macroproposições do Esquema 5 a MPn0
(Entrada-prefácio ou Resumo) e a MPnΩ (Encerramento ou Avaliação); em seguida,
refletiremos sobre como essa narrativa orienta argumentativamente a notícia para uma
avaliação favorável à tese de descriminalização da maconha para fins medicinais.

Texto (07) – Notícia42


Justiça autoriza curitibana com tumor a cultivar maconha para uso
medicinal próprio
Paciente diz que sofreu por anos com dores e espasmos até conhecer tratamento com
cannabis. Plantas utilizadas por ela não têm THC, substância que causa efeitos psicoativos.
Por Erick Gimenes, G1 PR — Curitiba
13/07/2018 05h00 Atualizado há 2 meses

Uma curitibana conseguiu na Justiça Estadual do Paraná o direito de cultivar e manusear maconha
medicinal para uso próprio contra sintomas causados por um tumor benigno no cérebro. A decisão é
do fim de junho. [MPn0]
A doença se manifestou em 2010 e, segundo a paciente, arruinou a qualidade de vida dela — houve
pioras na mobilidade e na visão, fortes dores de cabeça, fraqueza muscular profunda, perda de
consciência, espasmos musculares e alterações hormonais.
“Chegou ao ponto de não mais poder dirigir, não mais poder trabalhar, não mais poder fazer as
atividades básicas. Por mais que às vezes a gente acredite que poderia ser sanado pelo tratamento
convencional, não teve o sucesso esperado”, conta a mulher, que prefere não se identificar. [MPn1]
O tratamento convencional, ao qual ela recorreu inicialmente, envolve a prescrição de oito
medicamentos diferentes. A paciente seguiu a recomendação à risca por mais de quatro anos, mas
diz ter sentido uma série de efeitos colaterais e progressiva ineficiência das doses. [MPn2]
Por isso, decidiu buscar tratamentos alternativos. [MPn3] Foi aí que encontrou, em artigos científicos
publicados na internet, a indicação do uso do óleo de cannabis para o alívio das dores e dos
espasmos. Com o consentimento de seus médicos, passou a utilizá-lo como apoio à terapia que já
estava em curso. [MPn4]
"Houve uma melhora imediata, principalmente na parte de espasmos musculares e de sono.
Imediatamente quando você começa a utilizar o óleo, você já sente a diferença na qualidade de vida
absurda. Eu sempre digo que não é o óleo só, mas é um olhar multidisciplinar do paciente, onde
também tem o olhar do médico e do tratamento com o óleo conjunto", afirma. [MPn5]
A planta utilizada no óleo é rica em canabidiol (CDB), substância com efeito anti-inflamatório,
analgésico e neuroprotetor, e não tem tetra-hidrocarbinol (THC) — ou seja, não há efeitos
alucinógenos.

42
O recurso às cores está sendo utilizado para facilitar a identificação e a visualização das macroproposições
narrativas que constituem essa notícia.
145

Sem autorização legal, inicialmente, a paranaense relata que teve que viver a clandestinidade e o
medo de ser presa para produzir o óleo.
"É tão difícil quando você está na sua pior fase da doença, porque você passa por duas etapas: você
estar doente e você ter que organizar isso dentro da sua vida, porque você quer ter o acesso ao que
te faz bem, a um óleo de uma planta que é importantíssimo para várias doenças", diz a paciente.
Ela conta que, pouco depois, conseguiu autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa) para importação do óleo de maconha pronto. [MPn1] O custo, no entanto, era inviável: ao
mês, a medicação custa em média R$ 2 mil por mês. [MPn2]
A paciente então buscou a Justiça [MPn3] e conseguiu um habeas corpus que permite a produção
própria e impede a polícia de investigar, repreender ou atentar contra a liberdade dela. [MPn4]
"O juiz ponderou o direito à vida da paciente, que é um direito constitucional garantido. Ela não pode
jamais ser considerada traficante de drogas, porque ela busca acesso à saúde. É obrigação do
Estado. Se o Estado não tem como possibilitar esse direito a ela, então ela tem os meios legais. A
Justiça está possibilitando o exercício de um direito pleno", comenta o advogado da paranaense,
Anderson Rodrigues Ferreira.
Conforme a decisão, deve-se seguir rigorosamente um método aprovado por técnicos e pelo juiz
responsável — entre outros cuidados, há o limite de cultivo de até 1 metro quadrado da planta.
A produção do óleo é feita artesanalmente pela própria paciente, na casa dela, com o uso de uma
panela comum de cozinha e os devidos cuidados de luz e adubo. [MPn5]

Anvisa permite uso


A Anvisa permite o uso da maconha medicinal no Brasil, contanto que siga regras definidas pela
própria agência mediante dados que comprovem segurança e eficácia.
No país, já existe inclusive o registro do medicamento Mevatyl®, à base de THC e canabidiol,
indicado para um tratamento sintomático relacionado à esclerose múltipla.
De acordo com a Anvisa, a cannabis e suas substâncias são regulamentadas por duas convenções
internacionais da Organização das Nações Unidas (ONU): a Convenção de 1961 sobre Substâncias
Entorpecentes, que mantém a planta Cannabis proibida e sob controle e supervisão, com exceção
para fins médicos e científicos, e a Convenção de 1971 sobre Substâncias Psicotrópicas, que proíbe
o uso do canabinóide Tetrahidrocanabinol (THC), também excetuando fins científicos e propósitos
médicos muito limitados, por meio de estabelecimentos médicos e pessoas autorizadas pelas
autoridades governamentais.
A agência nacional ressalta que essas convenções foram internalizadas em leis e decretos vigentes
no país. No entanto, afirma que ainda é necessária regulamentação específica do Congresso para o
plantio com fins de pesquisa e uso medicinal.

Projeto de lei nacional


Um projeto de lei apresentado na Câmara Federal pelo deputado Paulo Teixeira (PT-SP), na
terça-feira (10), sugere o controle, a fiscalização e a regulamentação do uso da cannabis no país.
O texto sugere a liberação de até 40 gramas de maconha não prensadas por mês, tanto a usuários
recrativos quanto a pacientes como a curitibana.
Quanto ao uso medicinal, a proposta obriga prescrição médica e só permite o fornecimento de
insumos ou da planta por ONGs devidamente autorizadas pela Anvisa.
O projeto de lei aguarda despacho do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-
RJ), para ir a plenário. [MPnΩ]
Veja mais notícias do estado no G1 Paraná.

Fonte: https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/justica-autoriza-curitibana-com-tumor-a-cultivar-maconha-para-
uso-medicinal-proprio.ghtml Acesso em 26/09/2018.

Temos, correspondendo aos trechos destacados, duas sequências narrativas


coordenadas: uma que tem como nó (como desencadeador de uma transformação) os efeitos
colaterais provocados pelos medicamentos convencionais e a ineficácia progressiva destes para
o tratamento de um tumor que acomete o cérebro do sujeito da narrativa, levando-o a buscar
146

por tratamentos alternativos (re-ação) e a encontrar o óleo de cannabis (desenlace); outra que
tem como nó o alto custo para importação do óleo de cannabis pronto e a proibição, pelas leis
brasileiras, do cultivo e da manipulação da planta, fatores que motivaram uma ação judicial (re-
ação) que culminou com a emissão de um habeas corpus que lhe confere o direito de cultivar a
planta e de produzir artesanalmente o óleo para consumo medicinal (desenlace). Como se trata
de uma notícia, gênero no qual o relato de um acontecimento por um sujeito que não está
investido do papel de jornalista deve ser enquadrado na enunciação deste, as duas sequências
narrativas coordenadas são enquadradas por dois movimentos macroproposicionais adicionais:
um de abertura e um de fechamento, que sinalizam, respectivamente, a entrada na trama a ser
narrada e o seu encerramento. A macroproposição de entrada (MPn0) resume o acontecimento
noticiado e fornece informações sobre o sujeito (a curitibana que tem um tumor cerebral e que
conseguiu na justiça o direito de plantar e de consumir maconha para tratar da doença),
preparando o espaço para a narrativa, enquanto a macroproposição de encerramento (MPnΩ)
permite inferir uma avaliação implícita, segundo a qual existe uma disposição favorável ao uso
da maconha medicinal por parte da Anvisa e uma inclinação à legalização regulamentada do
uso da maconha, para fins medicinal e recreativo, tendo em vista a formalização de um projeto
de lei que tramita na Câmara dos Deputados. A esse texto, portanto, foi aplicado o Esquema 6,
que foi elaborado por Adam com o intuito de enquadrar uma sequência narrativa em um cotexto
dialogal (ADAM, 2011, 2017) que requer a marcação da alternância dos sujeitos implicados
em uma troca (como é o caso da passagem da contextualização da notícia para o relato do
acontecimento noticiado e o inverso – volta à contextualização da notícia).

Esquema 6 – Esquema narrativo completo


Trama narrativa
Entrada- Encerramento ou
prefácio ou Avaliação final
Resumo MPn0 (Moral) MPnΩ

Sequência
Situação inicial Situação final
(Orientação) MPn1 MPn5

Nó Desenlace
(Desencadeador) (Resolução)
MPn2 MPn4
Re-ação ou
Avaliação
MPn3
Fonte: Adam, 2017, p. 142.
147

A situação final (MPn5) da primeira sequência narrativa dessa notícia (ou seja, o
fato de a utilização do óleo, sob acompanhamento médico, ter resultado em “uma melhora
imediata, principalmente na parte de espasmos musculares e de sono”, com uma diferença
absurda na qualidade de vida da paciente com tumor cerebral) orienta o olhar do interlocutor
para uma visão positiva sobre a descriminalização do uso medicinal da maconha, já que o
produto tem demonstrado um desempenho altamente eficaz no tratamento desse tipo de doença
neurológica. A MPn5 da segunda sequência (“Conforme a decisão, deve-se seguir
rigorosamente um método aprovado por técnicos e pelo juiz responsável — entre outros
cuidados, há o limite de cultivo de até 1 metro quadrado da planta. / A produção do óleo é feita
artesanalmente pela própria paciente, na casa dela, com o uso de uma panela comum de cozinha
e os devidos cuidados de luz e adubo”) contribui para condensar o ponto de vista favorável à
descriminalização da maconha para uso medicinal, na medida em que descreve os métodos de
plantio e de manipulação da planta como algo bastante simples e pouco oneroso.
A sequencialidade narrativa pode, como vimos, orientar o ponto de vista do
interlocutor na medida em que apresenta a este uma certa representação do mundo, que não é a
única representação possível, mas sim a que pode ser mais persuasiva em relação aos objetivos
pragmáticos do texto.

5.2.2.2 A sequência descritiva

A sequência descritiva, diferentemente das outras quatro sequências, não é


caracterizada por um agrupamento pré-formatado de proposições em macroproposições. Adam
(2011, 2017) a define, no nível da estruturação composicional, em termos de macro e micro-
operações que geram períodos compostos por proposições descritivas. Em qualquer gênero do
discurso, os segmentos descritivos são regidos não por uma linearidade intrínseca, pré-
formatada, mas pelo plano de texto, que garante a transição das proposições descritivas à
textualização (sequências) e, consequentemente, a própria construção da coerência de um texto.
A textualização de segmentos descritivos, conforme Adam (2017, p. 80), pode ser operada
também por organizadores textuais, que favorecem a passagem de um encadeamento linear de
proposições descritivas (enumerações que funcionam como um tipo de grau zero do
procedimento descritivo) à sequência (composição textual). O plano de texto e os organizadores
são, assim, os responsáveis por impedir uma anarquia descritiva e assegurar a estruturação, a
progressão e a hierarquização de uma sequência descritiva.
148

No nível configuracional/pragmático, Adam (2011, p. 217) considera a descrição


como sendo genuinamente indissociável da expressão de um ponto de vista:

Inerente ao exercício da fala, a descrição é, de início, identificável no nível dos


enunciados mínimos. Vimos que a teoria ilocucionária localiza a parte descritiva dos
enunciados no conteúdo proposicional (p), sobre o qual se aplica um marcador de
força ilocucionária F(p). A atribuição mínima de um predicado a um sujeito constitui
a base de um conteúdo proposicional. [...] Do caráter indissociável de um conteúdo
descritivo e de uma posição enunciativa que orienta, argumentativamente, todo
enunciado, decorre o fato de que um procedimento descritivo é inseparável da
expressão de um ponto de vista, de uma visada do discurso.

Sobre esse aspecto configuracional, também encontramos em Adam (2017, p. 76)


uma afirmação importante, segundo a qual a orientação argumentativa de uma descrição
“resulta da lógica de sua inserção em um texto particular (narrativo, argumentativo ou outro)”.
Essa afirmação é feita para reforçar a tese de Vaporeau (1884), citada por Adam, de que a
descrição inserida em uma narrativa não consiste em um mero ornamento desinteressado, mas,
sim, em um recurso utilizado para atingir um determinado objetivo.
Conforme já expusemos, com base em Adam (2011, 2017), a ordenação de períodos
descritivos em sequências descritivas é definida pela organização linear global dos planos de
textos, não por um agrupamento pré-formatado de macroproposições. Por isso, consideramos
importante que as sequências descritivas sejam analisadas, necessariamente, a partir da visão
global que se tem do funcionamento de um gênero do discurso. No gênero entrevista jornalística
escrita, por exemplo, de cujo plano de texto já tratamos na subseção 5.2.1, as sequências
descritivas aparecem, prototipicamente, no início dos textos (no título principal, no título
auxiliar e no lide), antes do núcleo transacional (perguntas-repostas[-avaliação]) que caracteriza
a sequência dialogal do gênero. Vejamos como isso ocorre em mais uma entrevista concedida
por Silas Malafaia, desta vez à revista IstoÉ (texto (08), anexo D).

Imagem (4) – Início da entrevista com S. Malafaia publicada na IstoÉ


149

Fonte: https://istoe.com.br/270456_JA+RECEBI+R+2+MILHOES+DE+UM+FIEL+/ Acesso em 22/11/2017.

A referida entrevista tem como título principal (primeira parte do plano de texto do
gênero) um segmento descritivo composto pelo nome do entrevistado (Silas Malafaia) e por
uma frase tipográfica atribuída a ele (“Já recebi R$ 2 milhões de um fiel”). Toda descrição
implica, sempre e necessariamente, um referente (humano ou não humano), cujos atributos são
descritos. É por isso que Adam (2011, 2017) classifica a tematização como a principal
macrooperação descritiva. “Uma sequência descritiva se marca por um nome. Propus chamar
de TEMA-TÍTULO esse pivô nominal, nome próprio ou nome comum que serve de base a uma
predicação (Tema-Rema) e resume a descrição à maneira de um título (ADAM, 2017, p. 89-
90). Especificamente, temos, neste caso, uma operação de pré-tematização (ou ancoragem),
por meio da qual o referente principal (ou tema-título) é denominado de cara e abre, assim, um
período descritivo, composto também por uma operação descritiva de qualificação, por meio
da qual é atribuída ao todo do referente uma propriedade. Interessante notarmos que essa
qualificação não é atribuída por uma proposição enunciada pelo entrevistador (locutor
privilegiado da entrevista), mas pelo próprio entrevistado. Trata-se de uma proposição
“processual”43, por meio da qual o processo de receber (milhões de reais em oferta de um fiel)
é assimilado ao próprio sujeito paciente da proposição, de modo que se pode inferir que Silas
Malafaia é milionário. Diríamos, na esteira dessa interpretação, que essa proposição também
qualifica, indiretamente, Malafaia como um milionário que se beneficia da fé alheia, pois o
agente do processo em tela é qualificado como “um fiel”. Integradas, essas qualificações
retratam, implicitamente, o referente Silas Malafaia pelo protótipo do pastor desonesto, que se

43
Achamos pertinente, a esta classificação proposicional, a tipologia semântica dos verbos inscrita no escopo da
linguística funcional, para a qual o “Processo é o tipo semântico do verbo que ‘expressa um evento ou sucessão
de eventos que afetam um sujeito paciente’ ([BORBA, 1996] p. 58). Esse tipo de verbo exprime um acontecer,
como descreve o exemplo Rosa ganhou uma rosa”. (LUCENA, 2010, p. ___).
150

beneficia de uma imagem sacerdotal determinada pelo papel social que ele desempenha em sua
igreja. O título da entrevista deixa entrever, assim, de partida, o ponto de vista que se alinha à
tese de que pastores evangélicos se beneficiam financeiramente da fé de seus fiéis. Isso significa
que o jornalista assume, de esguelha, um posicionamento em uma polêmica.
O título auxiliar da entrevista (Apontado como o terceiro pastor mais rico do Brasil,
líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo anda de jato executivo, afirma faturar R$ 45
milhões por ano com a sua editora e diz que evangélico não é babaca) reforça o ponto de vista
representado no título principal. A proposição descritiva “Apontado como o terceiro pastor
mais rico do Brasil” alude à reportagem “The richest pastors in Brazil”, publicada pela revista
Forbes. Ao fazer um apelo intertextual, o jornalista e a revista se eximem da responsabilidade
pela qualificação atribuída a Malafaia, mas orientam argumentativamente o olhar do
interlocutor para a representação construída pela reportagem da Forbes, aludida na entrevista,
para esse referente. As duas proposições seguintes reforçam essa representação. A proposição
“líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo anda de jato executivo” descreve Malafaia por
uma operação de retematização (“líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo”), pela qual é
atribuída uma nova denominação ao tema-título da descrição, e por uma operação de
qualificação (“anda de jato executivo”), que descreve Malafaia por uma ação que lhe é habitual,
tornando-a uma propriedade dessa pessoa (ADAM, 2011, p. 222).
O segmento “afirma faturar R$ 45 milhões por ano com a sua editora e diz que
evangélico não é babaca” é composto por duas proposições descritivas introduzidas por verbos
dicendi. De acordo com Monteiro (2016), os verbos afirmar e dizer estão entre os verbos
dicendi recomendados por manuais jornalísticos para evitar a “editorialização da notícia”. Esse
período, no entanto, apesar dos verbos dicendi supostamente “neutros”, reforçam a opinião de
que Malafaia é milionário e sutilmente sugere que, de fato, como sendo um evangélico, ele é
esperto (e não babaca) para fazer fortuna.
A sequência descritiva da entrevista em tela inclui, ainda, o lide – o exórdio do
texto, que continua a apresentar características do entrevistado consideradas importantes (para
despertar o interesse do leitor e levá-lo, assim, a ler a entrevista, e/ou para influenciar o modo
de ver e de pensar do leitor) e que descreve a situação em que se deu a entrevista. Essa descrição
da situação, interessa notarmos, é um aspecto composicional que diferencia a entrevista
jornalística escrita da entrevista jornalística televisiva. Na medida em que o contexto da troca
entre entrevistador e entrevistado na televisiva é dado pelo próprio regime de materialidade do
gênero, na entrevista escrita, esse contexto somente se torna acessível ao leitor por meio da
descrição feita pelo jornalista. Logo, o plano de texto deste gênero autoriza a expressão do
151

ponto de vista do jornalista, dado a ver pela descrição, sobre uma possível relação de
contiguidade (macrooperação descritiva de relação) que assimila um referente a uma situação
espacial e/ou temporal. É relacionando o referente Silas Malafaia à situação espacial em que se
encontra por ocasião da entrevista que o jornalista reforça, mais uma vez o ponto de vista que
se alinha à tese de que Malafaia é muito rico: “De Angra dos Reis, local escolhido para curtir
15 dias de férias em meio a passeios de lancha e banho de mar próximo às ilhas da região,
Silas Malafaia, 54 anos, pregou a orelha no celular e, por quase duas horas, abriu o verbo”.
Estar em Angra dos Reis, a cidade de hospedagem mais cara do Brasil, segundo ranking
divulgado pela revista Exame em 201644, assim como passear de lancha (o referente lancha é
seletivamente presentificado aqui por mais uma relação de contiguidade entre ele e o referente
Angra dos Reis), denotam que Malafaia goza de um status socioeconômico incomum. As
proposições que se seguem a esse período ampliam a tese mencionada e reforçam a
representação estereotipada de que o pastor não só é muito rico (ou milionário) como
enriqueceu às custas dos fiéis de sua igreja: “O líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo
estava bravo depois de ser apontado pela revista americana ‘Forbes’ como o terceiro pastor
evangélico mais rico do País, com um patrimônio avaliado em aproximadamente R$ 300
milhões. Ele pretende acionar judicialmente a publicação e provar que a sua renda pessoal
não chega a 2,5% do valor publicado. Um dos mais antigos tele-evangelistas do País,
Malafaia é um ex-conferencista que se tornou pastor há apenas dois anos e meio e já
administra 120 templos pelo Brasil. Nascido em Jacarepaguá, zona oeste do Rio, casado há
32 anos e pai de três filhos, o sacerdote conta que a maior oferta que um fiel deu em sua
igreja foi de R$ 2 milhões e a sua editora fatura R$ 45 milhões por ano”.
A última proposição do lide (É dele, ainda, a voz mais estridente contra o projeto
de lei que criminaliza a homofobia) descreve Malafaia por duas operações de aspectualização:
uma de fragmentação, pela qual o objeto da descrição é analisado por meio de algo que faz
parte dele: a sua voz, e outra de qualificação, que classifica a voz do pastor como “a mais
estridente” dentre aquelas que se opõem ao projeto de lei que criminaliza a homofobia. Trata-
se, aqui, de outra questão polêmica na qual Silas Malafaia tem se posicionado publicamente, há
muitos anos, de forma incisiva: a que divide os que aceitam a homossexualidade como algo
natural e os que se opõem a essa tese. Essa polêmica (assim como os discursos em torno dela)
se diluiu recentemente entre duas questões mais específicas: uma em torno da legalização de

44
Disponível em https://exame.abril.com.br/brasil/os-33-destinos-mais-caros-para-se-hospedar-no-brasil/ Acesso
em 16/10/2018.
152

terapias de “reversão sexual” (a chamada “cura gay”) e outra em torno da criminalização da


homofobia (mencionada pela entrevista).
A análise de segmentos dessa entrevista jornalística escrita mostra que um juízo de
valor pode estar subjacente a uma sequência descritiva aparentemente isenta (porque não apela
explicitamente para impressões subjetivas) e ser (re)construído pelo analista, desde que ele
perceba os jogos pelos quais são atribuídos predicados a um sujeito. Nesses jogos, pudemos ver
que os apelos intertextuais dão a impressão de distanciamento e de imparcialidade por parte do
locutor em relação aos dizeres invocados para apresentar o entrevistado; lembremos, no entanto,
de que “todo procedimento descritivo é inseparável da expressão de um ponto de vista, de uma
visada do discurso” (ADAM, 2011, p. 217). Isso nos leva a defender que a sequência textual
descritiva, apesar de ser considerada frágil do ponto de vista sequencial, é uma categoria textual
forte do ponto de vista argumentativo/retórico, de modo que sua presença em um texto
(legitimada, obviamente, pelas possibilidades de um plano do gênero) pode contribuir
fortemente para a eficácia do projeto de persuasão do locutor, especialmente nos gêneros em
que sua opinião não deve (por força de restrições institucionais/discursivas) ser expressa
explicitamente.

5.2.2.3 A sequência argumentativa

Antes de iniciarmos a caracterização propriamente dita da sequência argumentativa


e de seguirmos para a análise, faremos, como Adam (2017), a distinção entre o fenômeno
discursivo e pragmático da argumentação e a unidade composicional tipicamente
argumentativa. R. Amossy, sempre que delineia sua abordagem da argumentação no discurso,
também diferencia os dois modos de argumentar, aos quais voltamos recorrendo a esta
afirmação da autora:

De fato, a dimensão argumentativa marca a lacuna que separa uma concepção restrita
de uma concepção ampla ou estendida da argumentação (é evidente que, aqui, o termo
“restrito” não tem nenhum significado pejorativo). Cada qual repousa sobre uma visão
diferente da prática da argumentação e da disciplina que lida com ela. Ambas são
naturalmente legítimas e cada uma delas tem suas vantagens e seus inconvenientes
[...]. A concepção restrita limita a argumentação ao desenvolvimento de um discurso
que usa de argumentos para provar a legitimidade de uma tese; ela a estuda em sua
singularidade, diferenciando-a de tudo o que não releva dela de modo estrito. Nesse
sentido ela é, então, excludente. A concepção estendida é inclusiva: ela engloba a
argumentação entendida no sentido estrito e a coloca no seio de suas
preocupações, mas coloca-a no centro de um continuum que contém, em um de seus
extremos, a polêmica como confrontação violenta de teses antagônicas e, no outro,
uma orientação das formas de pensar e de ver, de questionar e de problematizar, que
não se efetua pela via de um raciocínio formal. (AMOSSY, 2018b, p. 19-20).
153

Para nós, diferentemente de como faz Amossy, a diferença entre “concepção


restrita” e “concepção ampla” de argumentação não reside na distinção entre discursos de
visada argumentativa e discursos de dimensão argumentativa, mas, sim, entre textos de
dimensão argumentativa e textos de visada argumentativa. Isso porque admitimos, com Adam
(2011, 2017) e com Amossy (2005, 2006, 2018b), que há, por um lado, a argumentação como
traço constitutivo do discurso humano (definida como o compartilhamento de opiniões, de
crenças e de valores, que orienta o ponto de vista do interlocutor para uma dada direção, com a
finalidade de influenciar seus pensamentos, sentimentos e ações) e há, por outro, a
argumentação como o uso de procedimentos argumentativos (verbais) formalizáveis, tal como
a sequência argumentativa prototípica. Em outras palavras, a primeira concepção toma a
argumentação como um princípio da atividade linguageira, enquanto a segunda a toma como
uma forma específica de dizer (e de buscar influenciar por argumentos).
Adam (2017) afirma que a argumentação como fenômeno constitutivo da
linguagem “pode ser abordada quer no nível do discurso e da interação social, quer no nível da
organização pragmática da textualidade” (p. 150). Nesta proposta de interface entre LT e AAD,
estamos optando por privilegiar o primeiro modo de abordagem, sem deixar de reconhecer a
segunda (já que recorremos parcialmente a ela e que adotamos, ao menos em parte, a noção de
orientação argumentativa). Para a análise da argumentação como forma particular de
argumentar, vamos recorrer à sequência argumentativa prototípica delineada no âmbito da ATD
e assim esquematizada:

Esquema 7 – Sequência argumentativa típica

Tese Dados Conclusão (C)


anterior + Fatos (F) Então, provavelmente (nova) tese
MP.arg.0 MP.arg.1 MP.arg.3

Sustentação A menos que


MP.arg.2 Restrição (R)
(Princípios MP.arg.4
bases)
Fonte: Adam (2017, p. 169).

A passagem de um encadeamento periódico argumentativo, no qual se tem


proposições ligadas entre si por conectores, para um encadeamento sequencial prototípico é
garantida, primeiramente, com base no que defende Ducrot (1980 apud ADAM, 2011, 2017):
a defesa ou a refutação de uma tese (objetivo dos textos argumentativos) implica partir de
154

premissas supostamente verdadeiras e incontestáveis (MP.arg.1) que não se pode admitir sem
que se aceite uma certa conclusão (MP.arg.3 – Conclusão), que consiste na tese defendida ou
na negação da tese que lhe é contrária ou, ainda, na negação de argumentos que dão sustentação
à tese contrária. Continuando a seguir a visão de textualidade argumentativa descrita por
Oswald Ducrot, Adam inclui a MP.arg.2, que resulta da previsão de “passos argumentativos”
entre as premissas e a conclusão. Tais passos “assumem a aparência de encadeamentos de
argumentos-provas correspondendo seja aos suportes de uma lei de passagem (princípios-Pp
& base-B), seja a microencadeamentos de argumentos ou a movimentos argumentativos
encaixados” (ADAM, 2017, p. 168).
Em seguida, para completar a sequência, Adam (2011, 2017) se apoia no princípio
dialógico de que a defesa de uma tese implica situá-la em relação a uma antítese/contra tese, o
que permitiu ao autor considerar as restrições implicadas na textualidade argumentativa e situá-
las em dois pontos do esquema sequencial: ali onde se encontram as macroproposições zero
(MP.arg.0) e quatro (MP.arg.4).
É importante apresentar o agrupamento que Adam (2011, 2017) faz dessas
macroproposições em dois níveis, conforme a funcionalidade das MPs em textos:
 justificativo (MP.arg.1 + MP.arg.2 + MP.arg.3) – “nesse nível, o
interlocutor é pouco levado em conta. A estratégia argumentativa é
dominada pelos conhecimentos colocados” (ADAM, 2011, p. 234; 2017, p.
169);
 dialógico ou contra argumentativo (MP.arg.0 e MP.arg.4) – “nesse nível,
a argumentação é negociada com um contra-argumentador (auditório) real
ou potencial. A estratégia argumentativa visa a uma transformação dos
conhecimentos” (ADAM, 2011, p. 234; 2017, p. 169).
Como os gêneros que escolhemos para compor nossa amostra não são tipicamente
argumentativos, veremos como a sequência argumentativa pode compor, estrategicamente, a
textualização de uma entrevista jornalística televisiva de modo a inscrever a modalidade
polêmica nesse texto. Conforme vimos na subseção 5.2.1, o plano de texto da entrevista
jornalística televisiva permite a opção por cenografias um tanto diversas, tal como a de um
debate, porque sua composicionalidade é marcada pela dominância de sequência dialogal
encaixante (típica de gêneros conversacionais) com previsão de uma sequencialidade encaixada
diversificada, o que permite a utilização de sequência(s) argumentativa(s). Foi o que ocorreu
com a entrevista que Silas Malafaia concedeu à jornalista Marília Gabriela no Programa De
frente com Gabi.
155

Essa entrevista teve grande repercussão na sociedade brasileira, em especial nos


meios digitais, por conta justamente de seu caráter polêmico, ou seja, por comportar um debate
inflamado sobre questões controversas, motivado por um desacordo profundo entre
entrevistadora e entrevistado, no qual cada um deles defende uma tese e refuta a outra, que lhe
é antagônica. Indício dessa repercussão é a quantidade de visualizações que a primeira
postagem do vídeo da entrevista no YouTube (em 04 de fevereiro de 2013, pelo perfil
denominado “Legor Digital”, um dia após a exibição dela pelo canal aberto de televisão SBT)
soma até hoje: 7.163.740 (sete milhões, cento e sessenta e três mil, setecentos e quarenta)
visualizações. Os comentários sobre o vídeo/a entrevista somam, até agora, 114.961 (cento e
catorze mil, novecentos e sessenta e um)45.
Já dissemos, no capítulo metodológico, que uma compreensão das análises que
estamos fazendo de dados em vídeo depende da visualização integral desses dados por parte do
leitor, pois nos propomos a analisar textos como unidades de sentido. Então, remetemos o leitor
ao sítio virtual em que se encontra a entrevista (links no capítulo de metodologia) ou ao anexo
(B). Por uma questão de restrição genérica (estamos escrevendo uma tese, um gênero cujo
regime de materialização escrito não comporta a incorporação, no corpo do texto, de textos
audiovisuais), faremos uma descrição breve da referida entrevista e passaremos à análise de
trechos dela, a fim de demonstrarmos como a sequência argumentativa inserida no diálogo entre
entrevistadora e entrevistado permite evidenciar a inscrição da modalidade polêmica nesse
texto.
A entrevista foi dividida em três blocos, entre os quais se dividiram os temas
enriquecimento de pastores evangélicos, homossexualidade, relação entre política e religião,
formação de novos pastores, religião/igreja como negócio e prática de esporte. O quadro abaixo
organiza esses temas conforme o(s) bloco(s) em que foram tratados e indica o tempo de duração
de cada bloco.

Quadro 1 – Organização da entrevista por bloco e tema


Bloco Tema(s) Duração
1º Enriquecimento de pastores evangélicos 18’01”
2º Homossexualidade 18’16”

45
Dados recolhidos em 19/10/2018, às 10h15, da página do vídeo no YouTube:
https://www.youtube.com/watch?v=Myb0yUHdi14.
156

3º Política e religião; formação de novos pastores (como ocorre e quais 5’44”


as condições para ingressar na função); religião/igreja como negócio
(não) vantajoso.
4º Prática de esporte; “bate-bola, jogo rápido”: divórcio, casamento, 3’17”
morar junto, judaísmo, islamismo, parada gay/homossexualidade,
Silas Malafaia.

Os dois primeiros blocos, como vemos, são bem mais longos do que os dois últimos.
É justamente nesses dois blocos que a entrevista assume fortemente um caráter de debate e se
constitui pela forma polêmica de argumentar. No primeiro bloco, a entrevista é iniciada por
uma afirmação (em caráter de questionamento) atribuída a um texto-fonte – a matéria da revista
Forbes –, que instaura o começo de uma interação polêmica:

(1)
Marília Gabriela: vamo começar... pelo assunto mais atual... pela Forbes... que é... recentíssimo...
a revista publicou... que o senhor está em terceiro lugar entre os pastores evangélicos mais ricos do
Brasil... com uma fortuna pessoal avaliada em cento e cinquenta milhões de dólares que dá em
NÚ::meros brasile:iros ... trezentos milhões de reais... e o senhor contestou essa informação

Essa afirmação de Gabi, apresentada sob a forma de um fato (a revista publicou


uma informação sobre a fortuna pessoal do pastor e este a contestou), dá início à primeira
sequência argumentativa do texto e faz aparecer, de soslaio, a tese de que o pastor ficou
milionário por receber ofertas e dízimo dos fiéis liderados por ele, tese a qual todas as tomadas
de fala do entrevistado nesse bloco tentarão derrubar, a fim de sustentar uma tese contrária.
Esse trecho (1) corresponde, portanto, à MP.arg.0 (tese anterior), que é reformulada adiante por
Malafaia, de modo a dar explicitude à tese que ele refuta e de garantir, assim, a compreensão
do que o motiva a querer processar a revista Forbes (trata-se, portanto, de buscar justificar sua
decisão):

(2)
Silas Malafaia: quando eles falam isso... o que é que subentende?... o ser humano é um ser
inteligente... que raciocina... que pensa... esse cara tem trezentos milhões?... tá roubando de gente
[...] tá metendo a mão... é eu gosto de ser... desculpa... eu sou muito franco... esse cara tá com essa
grana toda porque tá metendo a mão em alguma coisa...

Lembramos, com Adam (2011), que o esquema da sequência argumentativa resulta


da abstração de uma lógica argumentativa que não necessariamente se materializa nos textos
na ordem linear descrita pelo esquema. A MP.arg.3 (conclusão ou (nova) tese), por exemplo,
pode aparecer já no início de uma atualização da sequência e ser repetida ao final, enquanto a
157

tese anterior, assim como a sustentação, pode estar apenas implícita. No caso da atualização em
tela, como a tese anterior não aparece explicitamente no início da sequência, o entrevistado a
retoma logo depois de, no início de sua fala, apresentar dados e fatos (MP.arg.1) que contrariam
a tese (anterior) da revista:

(3)
Silas Malafaia: deixa eu te falar Gabi... eh::... safado... sem vergonha... bandido... caluniador tem
em tudo que é lugar... pastor padre jornalista... tem em tudo que é lugar... quando a Forbes faz uma
declaração dessa... não é uma declaraçãozinha qualquer... eu vivo de quê?... eu vivo de que pessoas
acreditem em mim para darem ofe:rtas... não é verdade?... porque eu sou um pouco diferente de
outros pastores... as ofertas que eu recebo é mais de gente que não é da minha igreja... eu sou pastor
de igreja há dois anos e meio... (...) então eu... há trinta anos eu sou conferencista e tenho programa
de TV e reCEbo verbas de pessoas que não me conhecem de perto (...)oitenta por cento são
evangélicos e vinte por cento é gente de tudo que é religião [MP.arg.1]... então quando eles falam
isso... o que é que subentende?... o ser humano é um ser inteligente... que raciocina... que pensa...
esse cara tem trezentos milhões?... tá roubando de gente (...)[tá/... tá metendo a mão... é eu gosto de
ser... desculpa... eu sou muito franco... esse cara tá com essa grana toda porque tá metendo a mão
em alguma coisa [MP.arg.0]... aí vamo lá... onde é que tá a mentira e a safadeza?... primeiro... minha
declaração do imposto de renda... eu vou fazer porque você tem credibilidade... tô sendo honesto...
se eu tivesse num outro progra:ma... um outro jornalis:ta... mas como você é uma jornalista de
MU:ita credibilidade... então exclusivamente aqui pra você... aqui... e no meu programa de TV...
porque eu não devo nada não tenho nada a temer... eu tenho aqui um espelho de bens do meu imposto
de renda... tá aqui... coisa sigilosa que ninguém dá... ninguém abre... eu tô aqui com ele... o meu
imposto de renda... depois você pode olhar ao final ((passando o dedo sobre o papel, como que
apontando o lugar onde se encontra aquilo de que está falando))... onde diz sobre o patrimônio que
eu tenho... é qua-tro mi-lhões de reais... desses quatro milhões de reais... tem dois milhões do capital
da editora Central Gospel... que você é obrigado a declarar o capital... né... quando você abre uma
empresa... qual é o capital dessa empresa... então isso entra no imposto de renda... então eu tenho...
ssss... uma casa... seis apartamentos... três onde meus filhos moram... três que eu comprei em
comodato de construção... que ainda faltam trinta prestações em Vila Velha de um construtor
evangélico... eu tenho um apartamento em Boca Raton que tá aqui a declaração de bens do Banco
Central... ela tá aqui ((puxando um dos papéis de um maço e colocando-o em separado, próximo à
entrevistadora))... comprei por... ((fazendo o gesto do mais ou menos com as mãos)) cento e quarenta
e::... nove mil dólares pra pagar em trinta anos... se eu pegar esse patrimônio A-tu-a-lizado... que
você na declaração de imposto de renda você põe o dia que você comprou... mas se eu pegar isso e
A-TU-A-LI-ZAR o valor que vale a minha ca::sa... que aqui tá por oitocentos mil porque foi quanto
eu comprei... eu vou ter aqui de patrimônio A-TU-A-LI-ZA-DO... de valores de hoje... quatro
milhões e meio ((sinaliza o “mais ou menos” com as duas mãos))... ok?... aqui tem quatro milhões
porque (...) [MP.arg.1].

Os dados aventados por Malafaia oscilam, nesse segmento (3), entre provas técnicas
(provas retóricas, ou seja, sustentadas pelo próprio discurso, tal como em “safado, sem
vergonha, bandido, caluniador tem em tudo quanto é lugar: pastor, padre, jornalista”) e não
técnicas (provas materiais, que ultrapassam o discurso retórico e que correspondem, por
exemplo, a documentos: é o caso da papelada manuseada pelo entrevistado e que, segundo ele,
consiste em sua declaração de imposto de renda). As provas não técnicas têm o papel de reforçar
a irrefutabilidade dos dados e/ou fatos (retoricamente apresentados como tais) e,
consequentemente, a das premissas.
158

No segmento (3), também há uma proposição enunciativa, repetida outras vezes ao


longo do primeiro bloco, responsável por sinalizar a contra (ou nova) tese sustentada por
Malafaia: “onde é que tá a mentira e a safadeza?”. O entrevistado contesta o conteúdo da
reportagem da Forbes citado por Marília Gabriela (de que ele é o terceiro pastor mais rico do
Brasil, com fortuna avaliada em aproximadamente 300 milhões de reais), alegando que: i) ele
não tem uma fortuna estimada em trezentos milhões de reais e ii) os quatro milhões que ele tem
não foram adquiridos por meios antiéticos (ele não tirou proveito da fé de seus seguidores para
enriquecer). A conclusão inferível a partir dos dados e fatos apresentados (que se manifestam
não somente nesse, mas em vários outros segmentos do texto) justifica a decisão do pastor de
processar a revista.
O período “minha declaração do imposto de renda... eu vou fazer porque você tem
credibilidade... tô sendo honesto... se eu tivesse num outro progra:ma... um outro jornalis:ta...
mas como você é uma jornalista de MU:ita credibilidade... então exclusivamente aqui pra
você... aqui... e no meu programa de TV... porque eu não devo nada não tenho nada a temer”
poderia ser decomposto em duas frases tipográficas explicativas, a partir das proposições
enunciadas:
1) “SE eu vou fazer isso [mostrar minha declaração de imposto de renda], É
PORQUE você é uma jornalista de muita credibilidade”;
2) “SE eu vou fazer isso [mostrar minha declaração de imposto de renda], É
PORQUE eu não devo nada, não tenho nada a temer”.
Nesse período, há também duas proposições enunciadas descritivas que
correspondem a operações de qualificação (aspectualização):
1) “tô sendo honesto”;
2) “você tem credibilidade”/“você é uma jornalista de muita credibilidade”.
Encaixadas em uma sequência argumentativa, esses segmentos (periódicos e
proposicionais) explicativos e descritivos integram o bojo da MP.arg.1, apelando ao logos, por
meio de um argumento por vínculo causal e de um argumento de interação entre o ato e a
pessoa. O vínculo causal pode ser do tipo que, sendo dado um acontecimento, tende-se a
descobrir a existência de uma causa que pôde determiná-lo (PERELMAN; OLBRECHTS-
TYTECA, 2005, p. 299), tal como ocorre nas proposições explicativas acima: o fato de Marília
Gabriela ser uma jornalista de credibilidade e o fato de Silas Malafaia não ter nada a temer
motivaram um acontecimento pontual da entrevista, qual seja, o de mostrar sua declaração de
imposto de renda. Esse argumento consiste em uma ligação de sucessão. Já o argumento
baseado na interação entre o ato e a pessoa consiste no estabelecimento de uma ligação de
159

coexistência na qual os atos de uma pessoa influenciam na concepção que se tem ou que se faz
dessa pessoa, ou na qual a ideia que se faz da pessoa influencia na interpretação de seus atos.
De acordo com Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 341, grifos nossos),

Muitas vezes, a ideia que se faz da pessoa, em vez de constituir uma conclusão, é mais
o ponto de partida da argumentação e serve, seja para prever certos atos
desconhecidos, seja para interpretar de um certo modo os atos conhecidos, seja para
transferir para os atos o juízo formulado sobre o agente.

As qualificações que o discurso de Malafaia fazem incidir sobre a imagem de


Marília Gabriela (você é uma jornalista de (muita) credibilidade) e dele mesmo (tô sendo
honesto) correspondem, a nosso ver, a ideias feitas sobre essas pessoas que servirão como ponto
de partida de uma argumentação voltada, respectivamente, para prever os atos vindouros
(portanto, desconhecidos) da jornalista, criando nela uma disposição para tratar dos dados que
lhe serão apresentados com a reivindicada isenção jornalística, e para transferir para os atos de
Malafaia o juízo (de homem probo) que ele mesmo formulou de si.
Esses raciocínios retóricos, promovidos por segmentos explicativos e descritivos,
conferem sustância à argumentação empreendida pelo locutor.
O segmento macroproposicional (3) parcialmente transcrito acima é bastante longo,
por isso não foi transcrito aqui na íntegra. O turno de fala no qual ele consta durou quase quatro
minutos, com algumas tentativas fracassadas da entrevistadora de interrompê-lo. Antes de
terminar esse turno de fala, em meio à apresentação de dados e fatos, o entrevistado afirma:

(4)
Silas Malafaia: há vinte e cinco anos eu não tenho salário de pastor... eu sou pastor há trinta anos...
tive salário por cinco anos... não que seja pecado ou errado... é bíblico... a bíblia fala até que o
pastor tem que ganhar muito bem... pela bíblia... que ele tem que ser muito bem tratado... MAS HÁ
VINTE E CINCO ANOS que eu não tenho salário de pastor... HÁ VINTE E CINCO ANOS eu vivo
de quê?... como conferenci:sta... eu talvez seja o pastor que ma:is... eh oferta ganho quando... prego
fora... porque tô na televisão essa coisa toda... e da minha editora

O segmento em destaque corresponde a um período proposicional argumentativo


equivalente a uma MP.arg.2 do tipo “os pastores recebem salário, CERTAMENTE, MAS isso
é bíblico”. A asserção “não que seja pecado ou errado... é bíblico... a bíblia fala até que o
pastor tem que ganhar muito bem... pela bíblia... que ele tem que ser muito bem tratado”
recategoriza os pastores como líderes religiosos honestos, pois é o princípio expresso por “isso
é bíblico” que faz o argumento passar da premissa “os pastores recebem salário” à conclusão
não-C (os pastores evangélicos não são desonestos).
Após quase quatro minutos, Marília Gabriela retoma o turno de fala e,
declaradamente, contesta a opinião de Silas Malafaia segundo a qual a revista Forbes publicou
160

uma mentira sobre ele com o objetivo de “colocar um bloqueio na sociedade, que tudo que é
pastor, o que ele tem, foi roubado dos fiéis, que é um bando de otários” (tese à qual o pastor se
contrapõe veementemente).

(5)
Marília Gabriela: eu vou contestar um pouco... a revista Forbes é uma revista que trata basicamente
de fortu:nas... não é novo... é associado a::... a religião... a religião... a/ a todas as religiões...
digamos... não tô isentando a católica... as religiões são associadas a fortunas... no caso da evangélica
associada ao DÍzimo pago pelos fiéis... e aí... levanta-se a questão... sempre... tem sempre esse
mistério do dinhe:iro em torno da religião evangé:lica que vem do dí:zimo et coetera e tal... que...
sustenta a igreja... [...] agora... no caso... esse intere:sse... por essa:s... forTU:nas... eh:::... que
aparecem... eh... nas pessoas associadas à religião porque não seriam do interesse da Forbes? ela
TRAta de O:utras fortunas... ela trata de fortunas de muita gen:te... ela cita... o Eike como ci/ o Eike
Bati:sta ela cita todo mundo por que que não citaria os brasileiros associados à religião? e mais...
eles s/ a/ a/ a revista se defendeu citando fontes... ela disse Ministério Pú:blico...
Silas Malafaia: menti:ra
Marília Gabriela: Polícia Federa:l
Silas Malafaia: menti:ra
Marília Gabriela: e imprensa
Silas Malafaia: menti:ra

No segmento (5), Marília Gabriela contesta (MP.arg.4) a opinião de Malafaia (que,


agora, passa a figurar como tese anterior à qual a jornalista irá se opor), defende a revista Forbes
e o ponto de vista inscrito na reportagem publicada por ela, mencionando fatos (as religiões são
associadas a fortunas... no caso da evangélica associada ao DÍzimo pago pelos fiéis; a revista
cita fontes) e apoiando-se na ideia segundo a qual há sempre um mistério em torno do dinheiro
que vem do dízimo na religião evangélica (sustentação). Logo, a revista, de acordo com a
jornalista, não está mentindo nem está tentando manipular a opinião pública sobre Malafaia
(conclusão). Malafaia, por outro lado, refuta de imediato o argumento de que a Forbes se apoiou
em fontes oficiais e legítimas e, no segmento textual seguinte, refuta tanto o ponto de vista da
revista como a tese defendida por Marília Gabriela (MP.arg.4): “a Forbes pode falar da fortuna
de qualquer um... mas fale dos que têm”.
Pela descrição e análise que fizemos, podemos concluir, em relação ao modo como
essa entrevista atualiza o esquema de sequência argumentativa, que: i) o texto comporta
macroproposições de todos os tipos que fazem parte do esquema (tese anterior, dados/fatos,
sustentação, restrição e conclusão); e ii) se, via de regra, o esquema prototípico “não está
estruturado numa ordem linear obrigatória” (ADAM, 2011, p. 234), no gênero entrevista
jornalística televisiva, essa não estruturação linear obrigatória se impõe de maneira impetuosa,
já que ele se materializa em interações orais, face a face, síncronas e poligeridas, em que cada
interlocutor imediato pode reagir instantaneamente a uma enunciação do outro, em um
movimento complexo e sinuoso que releva da busca por tentar defender uma tese e refutar outra
161

que lhe é contrária. Uma visualização integral da entrevista nos leva ainda a mais uma conclusão
relativa à sua composicionalidade sequencial argumentativa: ela comporta não uma, mas várias
sequências argumentativas, dado o caráter polêmico dessa interação, e essas sequências
argumentativas são atravessadas por segmentos composicionais de outras naturezas,
principalmente, descritivos e explicativos, que cumprem funções argumentativas que os levam
integrar macroproposições argumentativas prototípicas no todo de cada sequência.
Esse primeiro bloco, objeto de nossa análise, e o segundo bloco, no qual não nos
deteremos por enquanto, mas cuja visualização é importante para compreender o que estamos
afirmando, são os que materializaram e instanciaram, por meio das sequências argumentativas
típicas, de modo mais contundente as características primárias da modalidade polêmica. Nas
falas dos interactantes imediatos (entrevistadora e entrevistado), visualizamos com nitidez as
teses dicotômicas (no primeiro bloco, pastores evangélicos enriquecem enganando seus fiéis
versus pastores evangélicos não enriquecem enganando seus fiéis; no segundo bloco,
homossexualidade é algo natural versus homossexualidade é um comportamento desviante); a
polarização (Gabi é uma debatedora que encarna o papel actancial de Proponente das primeiras
teses e de Oponente das segundas, ao mesmo tempo em que Malafaia encarna o papel actancial
de Proponente das segundas teses e de Oponente das primeiras); e ambos tentam, mais ou menos
intensamente, desqualificar o Oponente, seja “desmascarando-o” ao denunciar, por meio da
contra-argumentação, a inconsistência de suas teses e/ou de seus argumentos, seja atacando
diretamente a imagem do outro, por meio de argumento ad hominem (“você já tá pré-julgando
Silas... você é Deus você tá julgando e PRÉ-julgando” – 2º bloco, na discussão polêmica sobre
homossexualidade). A sequência argumentativa é, portanto, a unidade composicional que
instancia, com mais explicitude, a visada argumentativa e a modalidade argumentativa
polêmica, dado seu caráter, por definição, argumentativo.

5.2.2.4 A sequência explicativa

A explicação, de acordo com Adam (2017), se caracteriza pela tentativa de fazer


compreender um fato, um fenômeno, ou de elucidar uma questão. Assim como a argumentação,
a explicação pode oscilar entre “texto explicativo” e “discurso explicativo”; para superar essa
oscilação, é necessário distinguir a dimensão pragmática de procedimentos explicativos da
textualidade prototípica de uma sequência explicativa (ADAM, 2017, p. 183).
A primeira fase de uma explicação consiste, segundo Gülich (1990) e Gaulmyn
(1986) (apud ADAM, 2017, p. 197, grifo nosso), na “Constituição de um objeto a explicar
162

(reconhecido e aceito, que pode estar presente na situação ou ser linguageiro) e dos papéis de
sujeito que explica e de sujeito ao qual se destina a explicação e/ou que a recebe”. A segunda
fase, de acordo com as autoras citadas por Adam, é o “núcleo explicativo”, enquanto a terceira
e última fase é o fechamento da sequência, responsável por sancionar a explicação dada. Esta
fase corresponde a um “suposto consenso obtido ao final da explicação”.
O reconhecimento dessas fases levou Adam (2011, 2017) a propor a seguinte
estrutura sequencial de base:

Esquema 8 – Protótipo da sequência explicativa


Sequência explicativa prototípica
0. Macroproposição explicativa 0 Esquematização inicial
1. POR QUE X Macroproposição explicativa 1 Problema (pergunta)
(ou COMO?)

2. PORQUE Macroproposição explicativa 2 Explicação (resposta)


3. Macroproposição explicativa 3 Ratificação-avaliação
Fonte: (ADAM, 2017, p. 197).

As MPs explicativas 1 e 2 são obrigatórias e são introduzidas, respectivamente,


pelos operadores [POR QUÊ(?)] e [PORQUE]. Segundo Adam (2017), a esquematização
inicial (MP.expl.0) é facultativa e a ratificação (MP.expl.3) pode ser apagada por efeito de
elipse. O autor destaca, contudo, que algumas atualizações desse protótipo, mais do que elipsar
a MP.expl.3, simplesmente não a comportam. É esse o caso do texto (09).
O texto (09) é uma charge produzida pelo cartunista Kayser e publicada, em janeiro
de 2012, pelo próprio autor, na página denominada Blog do Kayser. Trata-se, explicitamente,
de uma resposta do cartunista a duas matérias publicadas, no mesmo período, por duas revistas
de informação de grande circulação nacional: as revistas Veja e Época.

Texto (09) – Charge de Kayser


163

Fonte: http://blogdokayser.blogspot.com/search/label/Agrot%C3%B3xico Acesso em 04/10/2018.

Considerando que a MP.expl.0 é aquela em que se faz “uma descrição que corresponde
a uma esquematização inicial destinada a introduzir o objeto problemático” (ADAM, 2011, p.
245), o segmento desse texto multimodal que equivale à esquematização inicial é este:

Esse trecho da imagem, que ocupa a posição de figura na charge, retrata um homem
jovem, que coloca veneno em sua comida e que cantarola a música “Ai, se eu te pego”. Por se
tratar de um gênero multimodal que prevê uma planificação textual curta e simples, é essa a
maneira pela qual o “objeto problemático” (neste caso, um comportamento excêntrico) é
introduzido no texto. É esse objeto que é tematizado pela questão com POR QUÊ(?)
(MP.expl.1) que se encontra elíptica no texto, mas que podemos reconstruir a partir da
explicação dada no segundo balão: POR QUE ele tá assim?
O outro trecho, que se encontra na posição de fundo, contém a MP.expl.2 – a
explicação ao problema ou questão intrigante:
164

O texto não utiliza explicitamente o conector [PORQUE], mas um teste sintático é


capaz de demonstrar que se trata, nesse segmento, de uma MP.expl.2. O conteúdo do balão
explica o motivo da excentricidade do comportamento da personagem em foco e poderia ser
estruturada, com base em um modelo periódico do tipo [SE p, É PORQUE q], por esta
proposição: “SE ele tá assim, É PORQUE leu, na revista Veja, que agrotóxicos não fazem mal
à saúde e, na Época, que o Michel Teló é a tradução da cultura brasileira”. O acontecimento
representado no quadrinho como um todo também poderia ser formalmente reduzido ao
seguinte período explicativo: “SE fulano anda consumindo veneno junto à alimentação e
cantando ‘Ai, se eu te pego...’, É PORQUE ‘ele leu, na Veja, que agrotóxicos não fazem mal à
saúde e, na Época, que o Michel Teló é a tradução da cultura brasileira...’”.
A ausência de um segmento periódico que ratifique a explicação (MP.expl.3) revela
que essa charge é uma atualização incompleta da sequência explicativa prototípica. Já a
ausência dos operadores [POR QUÊ(?)] e [PORQUE] indicia o caráter elíptico da maioria dos
textos explicativos (ADAM, 2017, p. 200).
Sobre a dimensão pragmática da explicação, lembramos que, conforme assinala Adam
(2011[2008], p. 243), “A asserção das proposições p e q não tenta adequar-se a um estado do
mundo; ela tenta que o mundo seja visto pelo leitor-ouvinte potencial de acordo com a crença
proposta pelo enunciador”. A isso, o autor ajunta:

Como o objetivo último do compartilhamento de crenças é um objetivo de ação, a


explicação aparece como um ato intermediário entre o objetivo ilocucionário primário
da asserção (partilhar uma crença ou um conhecimento) e o objetivo último do ato
(convencer para fazer agir). (ADAM, 2011[2008], p. 243).

Do ponto de vista técnico-retórico, o locutor desse texto baseia sua argumentação, em


um plano de fundo (que considera somente a fala que consta no segundo balão), no argumento
de reciprocidade, que supõe a existência de uma simetria entre atos, entre acontecimentos ou
165

entre seres, de modo que essa relação simétrica realize uma assimilação de situações
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 250-251). Ainda de acordo com Perelman e
Olbrechts-Tyteca (2005, p. 253),

Por vezes a identificação de situações resulta de que dois atos, mesmo sendo distintos,
concorreram para um mesmo efeito [...]. Duas condutas complementares, no sentido
de que constituem ambas uma condição necessária à realização de um determinado
efeito, podem dar azo à utilização do argumento de simetria.

É o que o locutor dessa charge faz quando escreve, no segundo balão: “Tá assim desde
que leu, na Veja, que agrotóxicos não fazem mal à saúde e, na Época, que o Michel Teló é a
expressão da cultura brasileira...”. Ao atribuir à conduta excêntrica da personagem que ocupa a
posição de figura no quadrinho a motivação de ter sido influenciada por informações veiculadas
por dois grandes veículos de comunicação46, o locutor do texto coloca as duas publicações como
sendo duas condutas que se assimilam (de modo que a tese de que Michel Teló é a expressão
da cultura brasileira é uma tese tão tola quanto a de que agrotóxicos não fazem mal à saúde)
para produzir um mesmo efeito: manipular (e imbecilizar) seus leitores.
A atitude da personagem que cantarola a música pela qual Michel Teló se tornou um
cantor internacionalmente conhecido, enquanto coloca veneno em sua comida, representa um
apelo ao ridículo como meio de persuadir o leitor da charge. Trata-se de buscar sancionar pelo
riso, pelo humor, a ideia de que uma regra de comportamento (não se deve consumir veneno, a
menos que se queira adoecer ou morrer) foi transgredida por um comportamento excêntrico,
mas não perigoso o suficiente para que seja reprimido com rigidez. É, então, por meio do apelo
ao ridículo e do argumento de reciprocidade que o locutor dessa charge deixa entrever seu
posicionamento na polêmica em questão: ele exprime, de maneira enviesada, o ponto de vista
contrário à utilização de agrotóxicos nas plantações, prática assimilada ao agronegócio no
Brasil. Ao fazer isso, ele também assume um dos lados da polarização social desencadeada pelo
antagonismo de teses – é um Oponente à tese de que agrotóxicos não fazem mal à saúde – e
ridiculariza quem aceita essa tese como razoável (desqualificação do outro).
Essa análise corrobora, mais uma vez, a ideia de J-M. Adam de que todo texto
comporta, no nível configuracional/pragmático, uma orientação argumentativa. E robustece,
também, nossa tese de que é possível entrever a modalidade polêmica pela descrição de seu
funcionamento textual com base em outras categorias além daquela da sequencialidade

46
É possível acessar o conteúdo da matéria da Veja no site https://pt.slideshare.net/VivianblasoBlaso/a-verdade-
sobre-os-agrotoxicos-veja-04012012.
166

argumentativa prototípica, cuja essência formal e funcionalmente argumentativa já nos permitia


prever o instanciamento da modalidade polêmica.

5.2.2.5 A sequência dialogal

Convém iniciar esta subseção operacional fazendo, como Adam (2017), uma
diferenciação entre os sentidos estrito e amplo do termo diálogo. Em sentido estrito, ele designa
a forma de uma troca comunicativa direta entre, ao menos, dois locutores. Em sentido amplo,
ele equivale à constitutiva responsividade do discurso e subjaz ao princípio dialógico da
linguagem, assim definido pelo Círculo de Bakhtin, ao qual já nos remetemos aqui. Neste
sentido, trata-se do dialogismo. Naquele outro, trata-se, especificamente, de um modo de
composição textual: a sequência dialogal.
Por definição, uma sequência dialogal seria poligerida, já que consiste em uma troca
conversacional entre, pelo menos, dois locutores. Contudo, para Adam (2011, 2017), essa forma
de coconstrução textual é passível de ser representada na escrita, em textos monogeridos, pois
corresponde antes a um modo de textualização do que a um modo de gestão e materialização
de enunciados. Assim, Adam (2017, p. 218) denomina de diálogo “tanto o produto textual das
interações sociais orais, como os turnos alternados entre personagens de um texto de ficção”.
Sob essa perspectiva,

O texto dialogal pode ser definido como uma estrutura hierarquizada de sequências
chamadas geralmente de “trocas”. Dois tipos de sequências devem ser distinguidas:
- as sequências fáticas de abertura e de encerramento de uma interação,
- as sequências transacionais que constituem o corpo da interação. (ADAM, 2017, p.
224).

O texto dialogal, portanto, é a maior unidade dialogal e é constituído de sequências,


que, por sua vez, são constituídas de trocas. A troca, unidade dialogal de base, consiste em um
encadeamento de intervenções de três tipos: intervenção inicial, intervenção reativa e
intervenção avaliativa (este último tipo é facultativo). Quando a sequência-troca contém duas
intervenções, dos dois primeiros tipos, ela é binária; quando tem três, dos três tipos descritos,
ela é ternária. As intervenções correspondem àquilo que, nos estudos em análise da
conversação, são designados turnos de fala.
As sequências de abertura e de encerramento correspondem, basicamente, a
fórmulas e expressões de cumprimento e de saudação, sendo, portanto, fortemente ritualizadas.
Isso faz com que as sequências fáticas sejam perceptivelmente mais estruturadas do que as
167

sequências transacionais. Adam (2017, p. 224) observa que, assim como as demais sequências,
o esquema dialogal prototípico não tem caráter normativo, mas sim descritivo, pois busca
“extrair o núcleo duro – prototípico por excelência – do encadeamento das sequências
dialogais”. E mais: “Sob a pressão da interação verbal, ele é, certamente, mais do que os
[esquemas prototípicos] precedentes, sujeito a elipses e realizações cuja incompletude é
evidente” (ADAM, 2017, p. 224). É o que acontece no texto (10):

Texto (10) – Charge “Gente fina”, de Bruno Drummond

Fonte: http://www.muza.com.br/2009/07/veja-charge-sobre-o-preconceito-e.html Acesso em 17/10/2018.

Nessa charge, temos um diálogo representado pelos turnos alternados das falas das
personagens que figuram no quadrinho. O fato de se tratar de um gênero genuinamente
monogerido imprime nesse texto uma diferença significativa quanto à argumentatividade
implicada no sequenciamento dialogal. Enquanto em gêneros poligeridos, tais como a entrevista
jornalística televisiva e a entrevista eleitoral televisiva, os dois lados que interagem podem
reagir/responder de imediato aos posicionamentos um do outro, argumentando e contra-
argumentando de maneira instantânea, nos gêneros monogeridos, como o artigo de opinião e a
charge, somente um dos lados administra os argumentos favoráveis e contrários relativos a uma
dada questão retórica. Na AAD de R. Amossy, o reconhecimento desses dois modos de gestão
(mono e poligerido) da argumentação levou a autora a distinguir, na análise da modalidade
168

polêmica, interação polêmica de discurso polêmico (AMOSSY, 2014, 2017[2014])47. Vamos


retomar brevemente essa distinção para delinearmos com mais precisão nosso ponto de vista
sobre ela.
Partindo do pressuposto de que os discursos (e a própria argumentação) sofrem
regulações de natureza institucional e genérica, Amossy (2017[2014], p. 72) define interação
polêmica como a forma de manifestação da polêmica caracterizada pela presença, síncrona ou
assíncrona, de pelo menos dois adversários engajados “em uma discussão falada ou escrita, em
que um tenta levar a melhor sobre o outro. O discurso é aqui inteiramente dialogal”, no sentido
de que se trata de um texto poligerido. O discurso polêmico, por outro lado, é definido como a
forma monogerida de se engajar em uma polêmica, pois somente um actante se faz presente,
sendo dialógico, mas não dialogal (AMOSSY, 2014, 2017[2014]).
Sob a perspectiva textual na qual nos situamos, não adotamos essa distinção por
duas razões: primeiro, porque, conforme justificamos no Capítulo 5, compreendemos discurso
e interação como elementos constitutivos do uso da língua, independentemente da forma de
manifestação/materialização do discurso e do modo como ocorre a interação; segundo, porque
reservamos à denominação texto dialogal a definição supramencionada que lhe é atribuída por
Adam (2017), de modo que um texto dialogal pode ser tanto monogerido (como é o caso da
charge) como poligerido (como nas entrevistas televisivas). Consequentemente, o texto (10) é,
para nós, um texto dialogal na medida em que ele é organizado, do ponto de vista
composicional, por uma estrutura sequencial de trocas, mesmo sendo monogerido. O locutor
da charge orquestra as vozes das personagens e, fazendo isso, orquestra também as vozes dos
actantes (proponentes e oponentes) que intervém na polêmica corrente no Brasil em torno da
homossexualidade.
A charge de Bruno Drummond pode ser composicionalmente descrita da seguinte
forma: ela não manifesta sequências fáticas de abertura e de término da interação (não constam,
nesse diálogo, expressões de saudação, cumprimento ou despedida, tais como Bom dia! ou Até
mais!); ela se constrói sobre uma sequência transacional que segue o padrão prototípico ternário
intervenção inicial + intervenção reativa + intervenção avaliativa. Lembramos que um texto
dialogal (e suas sequências) não consistem em uma sucessão de monólogos, mas em uma
conconstrução de um único texto. Isso significa que o princípio da unidade em que nos
apoiamos para definirmos texto segue inabalável no escopo da ATD, para a qual a descrição e
a análise de textos em suas partes constituintes não suplanta tal princípio. Faremos, a seguir,

47
Já apresentamos essa distinção no Capítulo 2.
169

uma divisão mais detalhada das intervenções que compõem a sequência transacional da charge
com vistas à explicação do funcionamento da polêmica com base na categoria textual específica
com a qual estamos lidando, não com a finalidade de demonstrar como unidades textuais
menores carregam consigo, individualmente, uma dada orientação argumentativa.

Seq. transacional – intervenções reativas


Seq.transacional – intervenção inicial

Seq. transacional – intervenção


avaliativa

A intervenção inicial, representada pela frase tipográfica “Mário, precisamos ter


uma conversa sobre o Mariozinho”, proferida pela (provável) mãe de “Mariozinho”, e a
primeira intervenção reativa, “O que esse menino aprontou dessa vez, Ruth?”, proferida pelo
pai, nada têm de aparentemente polêmicas. É a segunda intervenção reativa, expressa pela frase
tipográfica “Ele foi visto com amigos numa Parada Gay” que instaura, nessa interação
representada, a questão polêmica a ser tratada: a homossexualidade. Nesse ponto da interação,
há uma mudança na atitude de Mário, até então despreocupado e, até mesmo, acostumado com
o fato de o filho ter “aprontado”: ele se volta de frente para a esposa e, incisivamente, a
questiona sobre a informação que ela lhe deu (“Parada Gay?! O Mário Júnior? Com que
amigos?”). O questionamento feito por Mário focaliza justamente o termo que lança a polêmica
nesse contexto – “Parada Gay”, e a preocupação com o que isso pode significar é reforçada pelo
recurso da pontuação (?!). O pai incrédulo passa a questionar Ruth transformando suas
afirmações em perguntas (“o Mário Júnior? Com que amigos?”, “coleguinhas da academia?”),
com uma euforia sinalizada pelo comportamento físico e pelo discurso de incompreensão
(“Fazendo o que, meudeusdocéu? Fazendo o quê?!!?”). Mediante a resposta de Ruth a este seu
170

último questionamento (“Espancando covardemente um homossexual”), Mário recobra sua


tranquilidade inicial, abalada pela possibilidade de seu filho ter-se “tornado” homossexual,
voltando a fazer o que estava fazendo quando Ruth o interpelou, e exprime sua avaliação sobre
a informação dada por Ruth por meio da intervenção “Porra, Ruth, que susto”. Vemos que,
apesar de se tratar de uma proposição composta por interjeições, não foi usado o ponto de
exclamação; essa ausência indicia a mansidão com que ela foi proferida, bem diferente do tom
alterado com que os questionamentos foram feitos pelo mesmo Mário. Estamos considerando
que a expressão facial de Ruth e seu gesto de levar o dedo indicador à boca, na última imagem
da personagem, correspondem a uma porção textual não verbal com valor de intervenção
avaliativa, que registra a maneira com que ela interpreta o posicionamento de Mário.
Nessa charge, Mário representa um proponente da tese de que homossexualidade é
um comportamento sexual desviante, que precisa ser repreendido, enquanto Ruth representa o
oponente dessa tese: para ela, o comportamento desviante é a violência e é este comportamento
que deveria ser repreendido pelos pais. Indícios de que essa é a opinião de Ruth estão no
modalizador “covardemente”, em “Espancando covardemente um homossexual”, e em sua
reação físico-facial à atitude avaliativa do marido. O pertencimento desses personagens a um
extrato socioeconômico privilegiado é evidenciado por alguns protótipos que se apresentam
tanto verbalmente como visualmente: o nome do filho ser o mesmo do pai, acrescido do nome
Júnior, assim como o uso desse nome na forma diminutiva (“Mariozinho”); o título da charge
(Gente fina), que remete a um ideal de comportamento grã-fino culturalmente associado à
riqueza; e os atributos físicos e visuais das personagens – o homem branco, peludo, de barriga
protuberante, e a mulher de cintura finíssima, com cabelos alinhados, vestida elegantemente
com vestido na altura dos joelhos e salto alto.
O título da charge, que, na verdade, denomina não essa charge, mas uma série de
textos desse gênero produzidos por Bruno Drummond e publicados na revista O Globo, nos dá
indício do posicionamento do locutor sobre a questão polêmica da homossexualidade, instalada
pela terceira intervenção geral da sequência. Do ponto de vista do locutor, a “gente fina”,
especialmente o homem grã-fino, prefere ter um filho violento a ter um filho homossexual.
Grosso modo, o valor da Família, entendida por uma visão tradicional, segundo o qual homem
é homem e mulher é mulher, subjaz à opinião de que homossexualidade é um comportamento
reprimível, enquanto a Liberdade é o valor sustentado pelos argumentos dos que se opõem a
essa tese. Ao representar a “gente fina” como machista e homofóbica (o que leva o pai a
conceber o ato violento do filho como normal, enquanto uma possível homossexualidade do
filho seria um fato perturbador), o locutor exprime, implicitamente, o ponto de vista que se
171

alinha à tese de que a homossexualidade é simplesmente um reflexo da liberdade sexual e que,


portanto, (tentar) reprimi-la não é um ato razoável.
A sequência dialogal corresponde, neste texto, a uma estratégia textual de persuasão
porque permite ao locutor fazer sua crítica ao pensamento correntemente associado às “pessoas
de bem” por meio da representação de um diálogo entre personagens desse grupo social. Esse
tipo de sequência é um dos recursos textuais de engajamento do locutor em uma questão
polêmica, pelos quais podemos entrever a dicotomização de teses (a homossexualidade é um
desvio sexual reprimível versus a homossexualidade é uma condição humana natural e deve ser
respeitada), a polarização social (o que defendem a primeira tese – Proponentes – e se opõem à
segunda – Oponentes, e vice-versa) e a desqualificação do Oponente (os que defendem a
primeira tese são homofóbicos, pois acham errado ser homossexual, mas acham certo cometer
violência física contra homossexuais).
Outro recurso textual ao qual a sequencialidade se une na charge em tela para
intervir em uma polêmica é a referenciação, fenômeno no qual nos deteremos na seção a seguir.

5.3 Referenciação

A referenciação é um dos eixos temáticos que mais despertam interesse entre


pesquisadores da LT. Não à toa, já que a partir dela se pode descrever e analisar outros
fenômenos textuais, como o da progressão e manutenção temática, o da organização tópica e,
mais amplamente, o da coerência textual. Na esteira dos muitos outros estudos inscritos nessa
disciplina que relacionaram referenciação e argumentação, reiteramos nosso intuito de propor
uma análise que relacione textualidade e argumentatividade polêmica.
A concepção de referência tal como consensualmente se adota hoje nos estudos em
LT assenta suas bases, principalmente, nas visões teóricas de Mondada (1994), Mondada e
Dubois (2003[1995]) e Apothéloz e Reichler-Béguelin (1995) sobre a referência. Contrapondo-
se à concepção até então predominante sobre a referência, segundo a qual a linguagem
funcionaria como um espelho do mundo, ou seja, que representaria objetivamente a ontologia
das coisas e dos seres do mundo real, esses autores propõem reconsiderar tal ideia, pela adoção
do pressuposto de que as categorias são constitutivamente instáveis, além de sua natureza, e da
natureza de seus processos de estabilização, ser cognitiva e discursiva (não ontológica).
Mondada e Dubois (2003, p. 20) exprimem assim essa reconfiguração teórica da
referência, que passam a denominar referenciação:
172

passando da referência à referenciação, vamos questionar os processos de


discretização e de estabilização. Esta abordagem implica uma visão dinâmica que leva
em conta não somente o sujeito ‘encarnado’, mas ainda um sujeito sociocognitivo
mediante uma relação indireta entre os discursos e o mundo. Este sujeito constrói o
mundo ao curso do cumprimento de suas atividades sociais e o torna estável graças às
categorias – notadamente às categorias manifestadas no discurso. Isto significa que,
no lugar de fundamentar implicitamente uma semântica linguística sobre as entidades
cognitivas abstratas, ou sobre os objetos a priori do mundo, nós nos propomos
reintroduzir explicitamente uma pluralidade de atores situados que discretizam a
língua e o mundo e dão sentido a eles, constituindo individualmente e socialmente as
entidades.

Essas entidades – não sendo objetos do mundo nem objetos cognitivos abstratos,
mas resultantes de relação indireta entre os discursos e o mundo, estabelecida por sujeitos
sociocognitivos em interações contextualizadas – são de natureza discursiva e cognitiva. Disso
resulta que, nessa perspectiva, os referentes são denominados e tratados como objetos de
discurso. Os fatores que definem esses objetos, portanto, não são extensionais, mas
socioculturais e pragmáticos, que condicionam contextualmente os designadores linguísticos
(cf. APOTHÉLOZ; REICHLER-BÉGUELIN, 1995).
Nos estudos em LT, o impacto dessa mudança de percepção se reflete diretamente
no modo com que os referentes e os textos são analisados. Tradicionalmente, a referência era
tratada, simplesmente, em termos de remissão a um “elemento de referência” (KOCH, 2012).
As análises consistiam em identificar e classificar os tipos de remissões ocorridas em um texto:
situacional ou textual; se textual, anafórica ou catafórica. Também havia a preocupação em
identificar e classificar as formas gramaticais que operavam a chamada coesão referencial:
formas remissivas gramaticais presas (artigos definidos e indefinidos, pronomes adjetivos etc.),
formas remissivas gramaticais livres (pronomes pessoais e 3ª pessoa, pronomes substantivos
etc.) e formas remissivas lexicais. O exemplar mais amplamente conhecido dessa abordagem
inicial da referência no Brasil é o livro de Ingedore Koch intitulado A coesão textual, cuja
primeira edição data de 1989.
Dando um salto teórico-metodológico, trabalhos como os de Koch (2005),
Marcuschi (2005), Cavalcante (2003, 2005) e Cavalcante e Santos (2012), entre muitos outros,
refletem a tônica dos estudos em referenciação no Brasil. Esses trabalhos têm em comum,
basicamente, duas características: primeiro, pautam-se nos mesmos princípios da concepção de
referenciação desenhada por Mondada e Dubois e Apothéloz e Reichler-Béguelin; segundo,
ocupam-se da classificação e/ou da análise dos chamados processos referenciais (não mais dos
tipos de remissões, nem tampouco das formas gramaticais que operacionalizam esses tipos).
173

Os princípios nos quais ancora essa abordagem da referenciação e que conferem


dinamicidade a ela são três: 1) a instabilidade das representações do real; 2) os sentidos como
resultantes de uma negociação entre os interlocutores; e 3) a natureza sociocognitiva da
referência. Nas definições de Mondada e Dubois (2003) e de Apothéloz e Reichler-Béguelin
(1995) para referenciação e objetos de discurso, anteriormente expostas, veem-se diluídos esses
princípios, compartilhados por esses autores e por todos os pesquisadores que adotam essa visão
mais dinâmica do fenômeno. Quanto ao fato de ocuparem-se dos processos referenciais, Koch
(2005), Marcuschi (2005), Cavalcante (2003, 2005) e Cavalcante e Santos (2012) concordam
que a referenciação, muito mais do que simples remissão com o objetivo de estabelecer coesão
aos textos, consiste em uma atividade discursiva que é estratégica no sentido de que deriva de
escolhas de um sujeito sociocognitivamente motivado, ou seja, que opera sobre o material
linguístico de modo a concretizar sua proposta de sentido.
Os trabalhos que operam nessa linha, representativos do viés mais discursivo,
sociocognitivo e dinâmico da referência, e considerados por Custódio Filho (2011, 2012) como
pertencentes à primeira tendência dos estudos em referenciação, foram de extrema importância
para o enriquecimento teórico e analítico dos processos referenciais (introdução referencial,
anáfora direta, anáfora indireta, encapsulamento, recategorização e dêixis) e de suas funções,
permitindo a realização de mais um passo em direção ao refinamento do tema pelos estudos da
segunda tendência.
Os estudos alinhados à segunda tendência (CUSTÓDIO FILHO, 2011, 2012)
diferenciam-se dos estudos da primeira tendência não do ponto de vista teórico, mas do
metodológico. Compartilhando dos mesmos princípios da referenciação, eles consideram
outros elementos textuais e discursivos, para além das expressões referenciais, e elementos
extratextuais (aparato cognitivo e aspectos sociais, históricos e circunstanciais) como
convergentes à construção dos referentes/objetos de discurso. O movimento de análise,
portanto, é mais difuso e ainda mais dinâmico do que aquele adotado nos trabalhos da primeira
tendência.
Ilustrativo da segunda tendência é o trabalho de Custódio Filho (2011), cujo intento
foi mostrar de que modo diferentes elementos (para além de uma cadeia coesiva) se integram
para a construção dinâmica de um referente e dos sentidos de um texto. A análise do exemplo
(14), a seguir, foi proposta pelo autor a título de vislumbre de uma perspectiva inovadora para
o tratamento da referência.

Exemplo (14)
174

Que vergonha ver a atual prefeita censurar o uso de imagens de Ciro e Lula, grandes companheiros
de Patrícia, no horário eleitoral! Será que essa prefeita tem vergonha de ver que Patrícia foi vice-
líder de Lula no Senado??? Será que ela não se contenta em ver Lula longe dela, tal qual em 2004,
quando o presidente estava com Inácio Arruda??? Antes era uma defensora da democracia, agora,
no poder, se vestiu com as piores armas do autoritarismo e da censura! Liberdade de expressão JÁ!
Patrícia é MULHER de RESPEITO e quer apenas ter o direito de mostrar a sua biografia, pena que
a prefeita se [de]sespera com o passado histórico dela!
(Texto recebido por e-mail.).
Fonte: Custódio Filho (2011, p. 168).

A respeito desse texto, Custódio Filho afirma que se trata de uma reação do autor
ao episódio eleitoral ocorrido em 2008, em Fortaleza (CE), no qual a coligação de apoio à
reeleição da prefeita Luiziane Lins (PT) vetou judicialmente as propagandas da outra candidata,
Patrícia Sabóia (PDT), por esta aparecer ao lado do então presidente Lula e do então deputado
Ciro Gomes. A imagem construída em torno de Luiziane é de uma concorrente autoritária e
desleal, configurando-se essa imagem como uma recategorização referencial, por dizer respeito
à forma como esse objeto de discurso é construído no/pelo texto.
Em relação à imagem de “autoritária”, não há uma expressão referencial que a
designe como tal. O que se encontra explicitamente no texto é uma relação de predicação
operada pela oração “se vestiu com as piores armas do autoritarismo”. Esse tipo de relação não
fora devidamente tratada pelos estudos da primeira tendência, dada a preocupação bastante
centralizada nas expressões referenciais. Quanto à representação de “concorrente desleal”,
sequer há uma relação desse tipo estabelecida no texto, em que um item lexical, do tipo
“autoritarismo”, torne explícita a representação construída. De acordo com Custódio Filho
(2011, p. 169),

Ocorre que, mais uma vez, a representação é construída a partir [sic] inferências
engatilhadas pelas predicações. Assumindo-se que a prefeita 1) censura o uso de
imagem dos grandes companheiros de Patrícia; 2) tem vergonha de ver que Patrícia
foi vice-líder de Lula no senado; 3) não se contenta de ver Lula longe dela; e 4) se
desespera com o passado histórico de Patrícia, é possível estabelecer uma
compreensão global em que se percebe claramente a intenção do enunciador em
apresentar a candidata Luiziane como desleal.

Vemos que essa análise é bem mais difusa do que aquelas nas quais são
consideradas basicamente as relações anafóricas entre as expressões referenciais e os referentes
erigidos em torno delas. No caso da ilustração em pauta, as relações são mais diversas, por
considerar diferentes partes do cotexto e implicações contextuais, relacionadas ao aparato
sociocognitivo necessário ao processamento do texto e às especificidades da interação.
Voltando à nossa proposta de interface, buscaremos realizar uma análise que se
alinhe à segunda tendência dos estudos em referenciação, de modo a considerar a evolução dos
175

referentes ao longo do texto e a não limitar a construção referencial às expressões lexicais.


Diferentemente de como se procede em AD, em que as análises da referenciação focalizam as
expressões lexicais associadas às formações discursivas, pressupomos que, além disso, o
referente evolui por meio de uma dinâmica textual e discursiva complexa e difusa e que essa
construção é negociada pelos participantes da interação.
Nossa análise recairá particularmente sobre a polêmica. O primeiro traço da
modalidade polêmica que vamos relacionar com os processos referenciais é o choque entre
teses antagônicas. Vimos, no capítulo 2, ao expormos a polêmica tal como concebida no escopo
da AAD, que essa modalidade argumentativa carrega consigo os princípios retóricos segundo
os quais um orador constrói o auditório ao qual se dirige na medida em que argumenta com
base nos valores, crenças e verdades (o acordo da nova retórica) que supõe serem admitidas por
esse auditório. A diferença entre a retórica tradicionalmente destinada ao acordo e a retórica do
dissenso reside no fato de que, naquela, o desacordo é uma etapa a ser superada com vistas ao
estabelecimento de um acordo, enquanto nesta outra o acordo é improvável, até mesmo
impossível, porque as divergências entre os dois lados que debatem são inconciliáveis desde o
ponto de partida da argumentação: a doxa, ou o acordo, que são os princípios compartilhados.
A razão retórica é aquela negociada por meio da fala (da linguagem); o logos retórico consiste,
portanto, em uma racionalidade contingente, apoiada sobre aquilo que se supõe ser aceito por
aqueles que se engajam em uma interação argumentativa. Em uma argumentação polêmica, as
teses antagônicas também se apoiam, como demonstrou Amossy (2014, 2017[2014]), em
pressupostos dóxicos, mas pressupostos que são, em si mesmos, inconciliáveis, daí que o
desacordo polêmico é considerado profundo (trata-se de uma dissensão) e impede a chegada a
um acordo. Tentaremos evidenciar, pela descrição e análise de alguns textos, o modo como os
processos referenciais refletem o exercício de razoabilidade em uma retórica do dissenso.
Entendemos, primeiramente, que a noção de presença evocada por Perelman e
Olbrechts-Tyteca (2005), que mencionamos na seção 2.1 (“A nova retórica”), pode refinar
nosso entendimento sobre a relação entre referenciação e desacordos profundos subjacentes às
teses dicotômicas em argumentações polêmicas. Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 131,
grifo nosso) afirmam que

Os acordos de que dispõe o orador, nos quais pode apoiar-se para argumentar,
constituem um dado, mas tão amplo e suscetível de ser utilizado de modos tão
diversos, que a maneira de prevalecer-se dele apresenta uma importância capital.
Portanto, antes de examinar o uso argumentativo desse dado, é indispensável chamar
a atenção sobre o papel da seleção prévia dos elementos que servirão de ponto de
partida para a argumentação e da adaptação deles aos objetivos desta última.
176

Entendemos que esses elementos que constituem os dados e que são selecionados
pelo orador, tendo em vista seu projeto argumentativo, podem ser concebidos em termos de
referentes (ou objetos de discurso), tal como nos estudos em referenciação realizados pela LT.
Assim, os referentes são selecionados e presentificados de certo modo de acordo com o projeto
de persuasão do interlocutor. Ou, ainda, alguns referentes podem ser deliberadamente
suprimidos da presença em função de cada projeto argumentativo. É o que faz a imprensa
jornalística quando, da seleção dos fatos, omite certos elementos que poderiam conduzir a
compreensão do auditório a uma direção que não convém à sua empreitada persuasiva.
Vejamos uma possibilidade de proceder dessa forma no que diz respeito à polêmica
que dividiu os brasileiros, mais intensamente, entre os anos de 2015 e 2016, mas que continua
a dividir opiniões: a deposição de Dilma Rousseff da Presidência do Brasil. Nessa polêmica,
dois termos lexicais são correntemente usados para marcar as opiniões dicotômicas:
impeachment e golpe. Vejamos em que tipos de acordo e em que tópicas se baseiam cada uma
das teses (e seus argumentos) e quais são os dados e elementos selecionados nos textos para
tratar dessa questão. Assim, buscaremos mostrar como os processos referenciais evidenciam
posicionamentos antagônicos.
Na questão polêmica em tela, estão, de um lado, os proponentes da tese de que a
destituição foi justa e legítima, por Dilma ter assinado três decretos autorizando abertura de
créditos suplementares sem autorização do Congresso e por ter realizado “pedaladas fiscais”
(atraso no repasse de dinheiro a bancos estatais, para, segundo os críticos, “maquiar” a
economia, dando a impressão de que as contas públicas estavam equilibradas), cometendo,
assim, crime de responsabilidade. Para os proponentes dessa tese, tais ações de Dilma são dados
que eles consideram como sendo fatos, ou seja, são dados incontestáveis que asseguram o
caráter igualmente incontestável de sua conclusão: Dilma foi responsável por prejuízos ao fisco
e à economia do país, devendo, portanto, ser impedida de continuar seu mandato. Além dos
fatos, esses proponentes apoiam sua tese em uma tópica relacionada a lugares próprios da esfera
jurídica (tais como o princípio de legalidade e de supremacia do interesse público) e ao lugar
comum da quantidade (princípio democrático segundo o qual a vontade da maioria deve ser
atendida). Essa tese também apela a valores que seus proponentes presumem serem
compartilhados pelo auditório, para o qual argumentam em favor da deposição: a Economia, o
Fisco, a Lei e a Honestidade. Transgredir esses valores, de acordo com o raciocínio desse grupo
actancial, não é razoável. Em outras palavras, Dilma deve ser responsabilizada criminalmente
por seus atos porque transgrediu os princípios da Economia (ao atrasar, em meses, o pagamento
ao Banco do Brasil do valor relativo a subsídios do Plano Safra, realizou operação de crédito
177

e, assim, prejudicou a economia e o fisco do país), do Fisco (ao assinar decretos de abertura de
créditos suplementares que aumentaram as despesas do governo e, assim, impactaram a meta
fiscal aprovada para 2015), da Lei (ao fazer o que fez, a então presidente infringiu a lei
orçamentária daquele ano e a lei de responsabilidade, além da Constituição) e da Honestidade
(na medida em que ela e seu partido teriam se envolvido em escândalos de corrupção).
Os oponentes dessa tese são proponentes da tese que lhe é contrária: a destituição
de Dilma foi injusta e ilegítima, pois a crise econômica instalada no Brasil não decorreu de atos
irresponsáveis ou corruptos da então presidente, mas de interesses políticos escusos. Neste polo
actancial, dados e elementos que foram tangencialmente aventados pelos defensores da tese
acima, são trazidos à tona e contribuem para ressignificar os acordos que sustentam e que
condensam aquela outra tese, imprimindo-lhes uma outra visada. Para os defensores desta tese
contrária à destituição, Dilma foi deposta antes por motivações políticas do que por
irresponsabilidade econômica e fiscal, tendo sido vítima, portanto, de um golpe parlamentar e
midiático. Na opinião deles, a alegada infração fiscal de abertura de créditos suplementares não
incorreu em aumento de despesas previstas na lei orçamentária, pois o que ocorreu foi um
remanejamento de verbas previamente autorizadas pelo Congresso, não tendo gerado, então,
impacto negativo na meta fiscal. Já as “pedaladas fiscais” são questionadas pelo grupo pró-
Dilma em três frentes: primeiro, eles alegam que o atraso no pagamento das parcelas aos bancos
não consistiria propriamente em operação de crédito; segundo, que essa prática teria sido
realizada em governos anteriores, sem que tenha sido considerada crime; terceiro, que Dilma
não teve participação nessa prática48. Essa opinião sobre o impedimento de Dilma se apoia no
valor da Igualdade (as “pedaladas” foram realizadas por outros gestores públicos, sem que eles
tenham sido considerados criminosos; Dilma deveria ser tratada da mesma forma) e argumenta
pela perda do estatuto de fato atribuído aos dois dados em tela, o que é feito ao mostrar a
incompatibilidade deles com outros fatos, cujos dados foram e continuam a ser silenciados (ou
suprimidos de presença) por parte das mídias.
Nos textos a seguir, veremos como a presença ou a supressão de presença de certos
referentes em textos jornalísticos podem perspectivizar o acontecimento gerador dessa
polêmica de modo a não tomar, necessariamente, uma posição explícita no debate, mas a
orientar a visão desse acontecimento por parte do leitor.

48
Em junho de 2016, uma perícia técnica realizada pelo Senado constatou que não houve ato comissivo de Dilma
no que diz respeito às “pedaladas fiscais”, conforme aponta, dentre muitos outros textos jornalísticos, esta notícia
publicada no site do G1: http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/06/pericia-ve-acao-de-dilma-em-decretos-mas-
nao-identifica-nas-pedaladas.html.
178

Em 2012, a notícia abaixo foi publicada no site de notícias G1, da Rede Globo de
jornalismo, na qual se afirma que a crise econômica da Grécia repercutia negativamente no
mercado internacional, inclusive no Brasil (os grifos em itálico são de nossa responsabilidade).

Texto (11) – Notícia sobre a crise econômica na Grécia


Edição do dia 14/05/2012
14/05/2012 21h19 - Atualizado em 14/05/2012 21h19

Crise econômica na Grécia reflete no mercado financeiro


O país está atolado em dívidas, pode decretar uma moratória e abandonar a Zona do Euro.
A moeda americana fechou cotada a R$ 1,990.
A instabilidade na Grécia se refletiu no mercado financeiro. As bolsas de valores caíram na Europa, nos
Estados Unidos e no Brasil. E o dólar subiu.
Sem o acordo político, a crise na economia da Grécia continua sem solução. O país está atolado em dívidas,
pode decretar uma moratória e abandonar a Zona do Euro. Em Bruxelas, ministros de Finanças foram a
público dizer que a Espanha não será a bola da vez. O país tenta colocar em prática a segunda reforma, em
menos de três meses, para sanear os bancos.
As bolsas de valores europeias foram ladeira abaixo. De Atenas a Londres, o mercado financeiro fechou
no vermelho.
Nos Estados Unidos, Dow Jones também fechou em baixa por causa da Europa e do prejuízo de US$ 2
bilhões do maior banco de investimento do país, o JP Morgan. A Bovespa caiu mais de 3%.
“A grande questão é se a Grécia vai ser obrigada ou não no fim das contas a abandonar a moeda única e se
outros países entrarão nesse processo, ou seja, se os países fragilizados nessa crise europeia como Portugal,
Irlanda, Espanha ou países maiores como Itália passarão a ser questionados do ponto de vista da sua
solvência e de um risco de ruptura de sua trajetória do euro”, analisa o economista Fernando Fix.
Com as incertezas na Europa, investidores no Brasil começaram a comprar dólar. E com o aumento da
procura, a cotação da moeda americana, subiu. No início da tarde desta segunda-feira (14), ela chegou a
ser negociada acima dos R$ 2, o que não acontecia desde julho de 2009.
A moeda americana fechou cotada a R$ 1,990 com alta de 1,73%. No ano, o dólar subiu 6,47% e começa
a preocupar economistas.
“O real desvalorizado, acima de dois, pode trazer efeitos inflacionários, encarece a importação de produtos
que são fundamentais no processo produtivo no Brasil, insumos, máquinas e equipamentos”, explicou
Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central.
O ministro da Fazenda Guido Mantega disse que o governo não está preocupado.
“O dólar alto beneficia a economia brasileira. Significa que a indústria brasileira pode competir melhor
com os produtos importados que ficam mais caros e pode exportar mais barato para o exterior, portanto,
não preocupa”, afirmou Mantega.

Fonte: http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2012/05/crise-economica-na-
grecia-reflete-no-mercado-financeiro.html. Acesso em 30/05/2017.

Notícias como essa, sobre a crise econômica mundial (iniciada em 2008, nos
Estados Unidos), europeia e, principalmente, grega, faziam parte do cotidiano jornalístico
televisivo ao longo dos anos que se seguiram a 2012, até o momento em que se começou a
ventilar, nos campos político e midiático brasileiros, a possibilidade de Dilma Rousseff sofrer
impeachment, após ser reeleita à Presidência do Brasil em 2014.
Em 2016, ano em que Dilma Rousseff foi deposta, o mesmo site de notícias
publicou uma reportagem (texto (12), anexo E) na qual se faz uma retrospectiva dos 13 anos de
179

governos petistas de Luís Inácio Lula da Silva e de Dilma. Vejamos como uma das seções da
reportagem trata da crise econômica no governo da ex-Presidente da República (grifos nossos):

Texto (12) – Reportagem sobre o impeachment de Dilma Rousseff e os 13 anos de


PT na Presidência do Brasil

A CRISE

No primeiro mandato de Dilma, a economia cresceu em média 2% ao ano, contra 3,5% da média
mundial, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI). De 2002 a 2014, a média anual de
crescimento foi de 3,4%. A queda mundial dos preços das commodities reduziu o valor das
exportações brasileiras. Endividada e pressionada pela inflação persistente, a população passou a
consumir menos.
Em janeiro de 2013, Dilma anunciou a redução da tarifa da conta de luz, dizendo que "fracassaram"
as previsões daqueles que "são do contra". O governo baixou ou extinguiu encargos sobre a tarifa e
renovou contratos de concessão de geração e transmissão de energia pagando menos pelo serviço.
Em junho, mais de 1 milhão de pessoas foram às ruas em manifestações que tomaram o país. O
protesto, que começou contra o reajuste de R$ 0,20 em tarifas de ônibus, cresceu e ganhou outras
bandeiras, como o fim da corrupção e da violência policial, melhorias no transporte, na saúde e na
educação e os gastos excessivos com a Copa do Mundo.
Em setembro, a mesma “Economist” se perguntava se o Brasil “estragou tudo”. Em 2014, a vitória
de Dilma sobre o tucano Aécio Neves no segundo turno refletiu a disputa mais apertada para
presidente desde 1989, quando o país voltou a ter eleições diretas. "Não acredito que estas eleições
tenham dividido o país ao meio", declarou Dilma no discurso de vitória.
Apesar dos avanços na área social, como a redução da pobreza em 63% entre 2004 e 2014, e a
diminuição da desigualdade de renda, o desequilíbrio das contas públicas e dificuldades para
aprovar medidas de ajustes propostas pelo então ministro da Fazenda Joaquim Levy, levaram a
economia a ganhar contornos de crise.
O PIB do Brasil encolheu 3,8%. A retração, em relação a 2014, foi a maior da série histórica IBGE,
iniciada em 1996, e a terceira maior da história (atrás das quedas de 1981 e 1990, de 4,3%). A
redução das tarifas imposta pelo governo comprometeu o equilíbrio financeiro das companhias
elétricas. E contribuiu para os aumentos mais fortes nas contas de luz, assim como a falta de chuvas.
O governo decidiu repassar aos consumidores todos os custos com os programas e ações no setor
elétrico. O país fechou 2015 em queda.
Fonte: http://especiais.g1.globo.com/politica/politica/processo-de-impeachment-de-dilma/2016/da-esperanca-a-
crise-os-13-anos-do-pt/. Acesso em 31/05/2017.

Vemos, no segundo trecho destacado em itálico, que a crise econômica brasileira


após a reeleição de Dilma é atribuída à má gestão de seu governo. Não se vê menção a elementos
relativos ao fato de que havia uma crise econômica instalada em nível mundial há alguns anos
antes do segundo mandato da presidente e de que essa instabilidade reverberava até em países
em desenvolvimento, como o Brasil. Assim, referentes como “crise econômica na Europa”,
“Grécia”, “bolsas de valores em queda nos EUA”, “instabilidade financeira mundial”, entre
outros, não foram presentificados nesse extrato da reportagem, onde se explica o que motivou
a deposição de Dilma Rousseff. Apesar de afirmar que “A queda mundial dos preços das
commodities reduziu o valor das exportações brasileiras”, o locutor da reportagem acaba por
180

atribuir a responsabilidade da crise econômica brasileira, agravada em 2015, à inabilidade


gestora de Dilma e de sua equipe, silenciando outros dados implicados nesse acontecimento
político e econômico, e confere, assim, força à tese de que o processo de deposição da presidente
foi legítimo.
Outros dados evocados na/pela reportagem para informar sobre o processo do PT
na presidência que desembocou na destituição de Dilma são os protestos iniciados em junho de
2013, mencionados no trecho acima, mas que ganham na reportagem uma seção específica
intitulada “LAVA JATO E PROTESTOS” (ver anexo D). Trata-se de mais dados que reforçam
a tese pró-impeachment, na medida em que sugere que o processo de deposição decorreu
também da vontade do povo (indignado e intolerante com a corrupção), tratando-se também de
apoiar-se em uma tópica que insiste nos princípios de razoabilidade da democracia e da
honestidade.
Outros elementos evocados na/pela profusão discursiva jornalística e midiática em
torno dessa questão polêmica no Brasil deixaram de ser ou não foram intensamente
presentificados nesse texto (12), mas o foram em outros. É o que constatamos pela leitura da
notícia Senado aprova impeachment e destitui Dilma (texto (13), anexo F), publicado no site
da revista Carta Capital. Nessa notícia, são valorizados (tornados mais presentes) elementos
que a reportagem do G1 mencionou tangencialmente, tais como “juiz Sérgio Moro” e,
principalmente, “Eduardo Cunha” (recategorizado no texto como “ferrenho opositor do
governo [Dilma]” e como principal articulador do impeachment). Enquanto a reportagem do
G1 torna mais presentes dados e elementos que reforçam o ponto de vista segundo o qual a
destituição de Dilma foi motivada por razões legais e democráticas, mencionando fatores
políticos (especialmente, a corrupção), econômicos e fiscais que levaram o Brasil à crise, a
notícia da Carta Capital prioriza a presença de referentes erigidos em torno de pessoas e de
grupos que fizeram parte da cena política em tela e de elementos/dados que orientam para uma
visão desprestigiosa dos fatos elencados pelos proponentes da tese pró-impeachment. A notícia
da Carta também faz menção a fatores elencados pela reportagem do G1 – “Durante todo o ano
de 2015, com a economia em frangalhos e a enorme repercussão dos casos de corrupção
envolvendo o PT na Lava Jato, Dilma enfrentou diversos protestos (...)” –, mas atribui ao ego
de Eduardo Cunha, ao seu desejo de não perder privilégios políticos e à sua tentativa fracassada
de não ser responsabilizado por certos crimes políticos, o principal motivo para o impeachment.
O referente de “Eduardo Cunha”, expresso no título da primeira seção dessa notícia,
consiste em uma anáfora indireta. As anáforas indiretas,
181

embora não retomem exatamente o mesmo objeto de discurso, e aparentemente


introduzam uma entidade ‘nova’, na verdade remetem ou a outros referentes expressos
no cotexto, ou a pistas cotextuais de qualquer espécie, com as quais se associam para
permitir ao coenunciador inferir essa entidade. (CAVALCANTE; CUSTÓDIO
FILHO; BRITO, 2014).

Diferentemente das anáforas diretas (ou correferenciais), caracterizadas pela


retomada de um mesmo referente, as anáforas indiretas não retomam exatamente um mesmo
referente, mas remetem a entidades ou a eventos que, já expressos no texto, servem para ancorar
outros referentes com os quais se associam. É o caso do referente instaurado no texto pela
expressão referencial nominal “Eduardo Cunha”, pois as expressões e predicações que
instauram e transformam o referente “processo de impeachment de Dilma” – tais como
“impeachment”, “processo de base jurídica frágil”, “processo cujo resultado estava definido há
meses”, “batalha política na qual os vencedores buscaram um motivo qualquer para legitimar a
destituição da presidenta” – consistem em pistas cotextuais que engatilharam a aparição do
referente de “Eduardo Cunha”. Essas pistas manifestadas pela presença do referente “[processo
de] impeachment” só serão compreendidas, pelo interlocutor desse texto, como indiretamente
associadas ao referente de “Eduardo Cunha”, se o contexto sociocognitivo da interação
(principalmente, no que diz respeito ao conhecimento enciclopédico sobre esse acontecimento
histórico) for o mais próximo possível daquele projetado pelo locutor da notícia. Em outras
palavras: para recuperar a relação entre o referente “processo de impeachment” (cujas
predicações atribuídas a ele no texto o recategorizam como “processo politicamente
tendencioso”) e o referente de “Eduardo Cunha”, o interlocutor precisa ter informações prévias
sobre esse acontecimento histórico e político.
Expresso no título da primeira seção – “Eduardo Cunha, o artífice do golpe”, o
referente “Eduardo Cunha” é, ele próprio, imediatamente recategorizado. Recategorização é o
processo pelo qual um referente evolui, se transforma, ao longo de um texto, por meio do
acréscimo de informações sobre ele. Trata-se, resumidamente, de “um contínuo processo
cognitivo-discursivo de transformação dos referentes ao longo de um texto” (CAVALCANTE;
CUSTÓDIO FILHO; BRITO, 2014, p. 156). Ao longo da notícia, principalmente na seção
citada, ele é recategorizado como desonesto, chantagista e vingativo, pois estava “acossado
pelas investigações da Operação Lava Jato” e sob ameaça de ter seu mandato cassado pelo
Conselho de Ética da Câmara, por quebra de decoro parlamentar. Por não ter sido atendido pelo
PT em suas demandas, e por contar com o apoio de figurões do seu partido (o então PMDB),
também interessados em frear as investigações da Lava Jato, Cunha teria engendrado a
182

destituição de Dilma, destituição que o locutor dessa notícia (re)categoriza como tendo sido um
golpe parlamentar e midiático.
Os principais referentes desse texto (13), no entanto, são aqueles que se sobressaem
em função de seu tópico principal: o impeachment de Dilma Rousseff. O referente
“impeachment [de Dilma]” foi introduzido no/pelo título da notícia. A introdução referencial
consiste na instauração de um referente novo na superfície textual, que não tenha sido
“engatilhado por nenhuma entidade, atributo ou evento expresso no texto” (CAVALCANTE;
CUSTÓDIO FILHO; BRITO, 2014, p. 58). Ao longo do texto (13), o referente “impeachment
[de Dilma]” é recategorizado como um acontecimento injusto, que prescindiu da ética política
e que se sobrelevou à legalidade. Várias pistas cotextuais, além da expressão referencial
“golpe”, indiciam o acréscimo de novas predicações a esse referente, de forma a recategorizá-
lo: no lide, o adjunto adnominal “um processo de base jurídica frágil e questionado por ampla
parcela da sociedade” põe em xeque a tópica, pautada nos princípios de legalidade e de apoio
popular, em que se apoiam os defensores do impeachment; no corpo do texto, o “impeachment”
recebe inúmeras predicações que reforçam o caráter tendencioso do processo que lhe deu
exequibilidade. São alguns indícios dessa interpretação, dentre outros, as seguintes porções
textuais: a oração adjetiva “[processo]cujo resultado estava definido há meses”, os sintagmas
nominais avaliativos “em tese” versus “na prática”, o período argumentativo (recheado de
seguimentos avaliativos) “o que se viu foi um processo coberto por um verniz de legalidade,
promovido pelo cumprimento das regras procedimentais previstas na Constituição, mas
definido por uma batalha política na qual os vencedores buscaram um motivo qualquer para
legitimar a destituição da presidenta”, o complemento verbal do seguimento “Neste contexto,
a Câmara e o Senado (...) apenas formalizaram a realidade política formada nas páginas de
jornais e gabinetes” (grifo nosso).
A utilização de nomes, de modificadores e de verbos de teor axiológico e avaliativo
(“processo de base jurídica frágil”, “o artífice do golpe”, “ferrenho opositor do governo”,
“[Cunha] buscou encurralar Dilma Rousseff”), além do nome “presidenta” – cuja forma
flexionada decorre de um discurso pretensamente marcado do ponto de vista ideológico, dão ao
texto (13) um tom explicitamente polêmico, por indiciarem claramente o posicionamento do
locutor (contrário ao impeachment) e a tentativa de desqualificar seu Oponente, ao colocar em
dúvida a presunção de legitimidade do processo de destituição, substituindo-a pela ideia de que
o processo foi movido, na verdade, por valores escusos ao discurso de honestidade e legalidade
assumido pelos correligionários do grupo pró-impeachment. É esse posicionamento que motiva
183

e justifica o uso do termo golpe para denominar o evento político ocorrido e para sinalizar a
dissensão profunda que há entre as duas opiniões antagônicas em torno dele.
Outro traço da polêmica que vamos analisar por meio da descrição de processos
referenciais é o pathos. Nós o entendemos no sentido clássico, também encampado pela AAD,
como o efeito emocional a ser produzido no auditório. Entendemos ainda, consoante o que
defende a AAD, que o apelo a ele pode não ocorrer expressamente, mas indiretamente, como
consequência da imbricação constitutiva de logos e de pathos (AMOSSY, 2006). A esse
respeito, Amossy (2006) sustenta que é papel da AAD desvelar os meios linguageiros pelos
quais o orador busca suscitar e construir discursivamente emoções. De nossa parte, buscaremos
contribuir para o alcance desse objetivo por meio da descrição de processos referenciais que
engendrem tal imbricação.
Na caracterização da polêmica (AMOSSY, 2014, 2017[2014]), o pathos não é
considerado um traço primário, mas secundário, dessa modalidade argumentativa porque,
diferentemente da concepção vulgar de polêmica como discussão apaixonada, Amossy
verificou que nem todos os textos polêmicos apresentam um registro (ou um tom) discursivo
patêmico. O apelo ao pathos se dá, algumas vezes, indiretamente, em decorrência da própria
dicotomização de teses e da polarização social. Veremos, especificamente, como o texto (12),
aparentemente imparcial, apela indiretamente ao pathos por meio de processos referenciais que
(re)constroem referentes como “Brasil governado pelo PT”, “PT”, “Lula” e “Dilma”, ao mesmo
tempo em que se alinha à tese de que o impeachment foi justo e se inscreve, no plano actancial,
no polo dos proponentes dessa tese.
A reportagem do G1 aborda o tema da destituição de Dilma Rousseff fazendo uma
retrospectiva da governança petista. Mais do que uma retrospectiva, essa reportagem faz uma
espécie de balanço, aparentemente imparcial, porque seu registro é predominantemente
objetivo, dos governos petistas. Esse balanço inicia já no título, que é composto de dois
sintagmas nominais coordenados (“Da esperança à crise” e “os 13 anos do PT”). O sintagma
“Da esperança à crise”, ao ser focalizado, antecipa a recategorização que incide sobre o
referente introduzido em seguida pela expressão “os 13 anos do PT”, acrescentando a este
objeto de discurso: i) um sentimento que alude ao pronunciamento de Lula após sua vitória nas
urnas em 2002 e que, conforme sugere o texto, marca o início da governança petista na
presidência; e ii) uma informação sobre o quadro econômico negativo em que se encontrava o
país na ocasião em que o PT deixou o poder. A governança petista é recategorizada, de partida,
de modo a orientar argumentativamente o texto para o ponto de vista segundo o qual, se a
suposta esperança inicial, em oposição ao medo (segundo Lula), foi o sentimento que motivou
184

a chegada do PT ao poder, o corolário do partido foi a crise na qual esse mesmo PT “da
esperança” mergulhou o Brasil.
No lide, a expressão nominal “Luiz Inácio Lula da Silva” instaura no texto um
referente que não é novo, pois já havia sido engatilhado pelo referente de “PT” expresso no
título; trata-se, então, de uma anáfora indireta. O ponto de vista construído pelo título é
reforçado, no lide, por dados que, a princípio, sugerem que havia realmente motivos para se ter
esperança, pois a partir da chegada do PT ao poder (na figura de Lula presidente), o Brasil
parecia bastante próspero, tendo vivido anos “de crescimento econômico com criação de
emprego, ampliação de programas sociais e redução da pobreza”. Contudo, a partir de 2005, os
“escândalos de corrupção” envolvendo o alto escalão do partido começaram a pôr em suspeição
aquela impressão de prosperidade (às custas de quê estamos prosperando?), e, como
consequência disso, começa a ruir a certeza de que o PT seria o melhor para o país (certeza
antes motivada por aqueles fatos socioeconômicos). Esses “escândalos de corrupção”, somados
à ideia de que a “recessão”, a “inflação acima da meta”, o “rombo nas contas públicas” e a
“redução de programas sociais” são heranças do PT para o Brasil, constituem os dados que
servem de premissa ao raciocínio, latente nesse texto, segundo o qual o PT foi o grande
responsável pela crise política e econômica que quebrou o país e que essa (ir)responsabilidade
do partido para com a nação justifica, a um só tempo, a destituição de Dilma e a perda de poder
pelo partido.
O corpo do texto esmiúça a trajetória do partido na presidência, sucintamente
relatada no lide. A planificação da reportagem, com a divisão em seções intituladas conforme
o subtópico principal tratado em cada uma delas, e a evolução do referente de “Brasil governado
pelo PT”, por meio de retomadas anafóricas diretas e indiretas, são fatores de textualidade que
contribuem, a um só tempo, para a progressão do tema principal da reportagem e para a
consolidação do ponto de visa do locutor, que o título já permitiu entrever, conforme descrição
realizada acima.
Os títulos das seções expressam os principais acontecimentos que marcaram “os 13
anos do PT”: da chegada ao poder ao impeachment, passando por decisões econômicas que
denotavam responsabilidade fiscal, por atitudes políticas que foram consideradas como
escândalos (ainda no governo Lula), pelo governo Dilma, pela crise econômica vivida no
segundo mandato da então presidente, por denúncias no âmbito da operação Lava Jato que
culminaram na intensificação de protestos, além de denúncias contra Lula. O referente
introduzido no lide pela expressão “o Brasil governado pelo PT” segue sendo direta e
indiretamente retomado e transformado ao longo da reportagem.
185

Na seção intitulada “A chegada ao poder”, o referente mais proeminente é o de


“Lula”, que retoma diretamente o objeto de discurso de “Luiz Inácio Lula da Silva” instaurado
no lide. No primeiro parágrafo, ele é recategorizado como candidato derrotado por três eleições
consecutivas (as de 1989, 1994 e 1998). Em seguida, por meio da expressão “o PT”, Lula é
indiretamente apresentado como opositor de medidas econômicas implementadas por Itamar
Franco e Fernando Henrique Cardoso/FHC (seus antecessores na presidência do país). Apesar
de o referente “Brasil no segundo mandato de FHC” ser descrito como um país em crise
econômica, o fato de Lula e o PT se oporem às medidas econômicas de FHC desencadeou o
aumento do dólar e o “medo”, nos “operadores de mercado”, de que Lula os prejudicasse. Foi
esse fato, segundo a reportagem, que motivou uma estratégia de marketing que transformou a
imagem prévia de Lula como “combativo militante” em “conciliador”, tendo sido essa nova
imagem (mais agradável ao mercado) expressa pelo lema “Lulinha paz e amor”. A expressão
“ex-torneiro mecânico” mantém o referente em tela e o recategoriza, por acréscimo de uma
informação relativa à profissão exercida por Lula antes de ingressar na política.
Da segunda seção em diante, muitas predicações são atribuídas ao referente de
“Lula”, todas relativas à sua atuação política e a maioria consolidando a imagem de político
progressista, que conjugou desenvolvimento econômico (com inflação baixa, risco econômico
baixo, valorização das commodities, incentivo ao consumo, superávit primário elevado) e bem-
estar social (com redução expressiva da pobreza, baixo índice de desemprego e viabilidade de
acesso a bens móveis e imóveis). Ao referente de “PT”, por outro lado, são acrescidas
informações ligadas a casos e a episódios de corrupção envolvendo representantes do partido.
O referente da expressão “escândalos de corrupção”, que foi introduzido no lide, é retomado no
título da segunda seção e a partir daí ganha proeminência ao longo de todo o texto. Expressões
referenciais como “escândalos políticos”, “o primeiro [escândalo]”, “escândalo do mensalão”,
“escândalo dos ‘aloprados’”, entre outros, e as predicações atribuídas a eles, assim como
anáforas indiretas ancoradas no referente “a alta direção do partido”, tais como “ex-assessor da
Casa Civil Waldomiro Diniz”, “ministro José Dirceu” e “ministro Antonio Palocci”,
contribuem para conferir ao referente de “PT” um atributo bastante negativo, que poderia ser
expresso por uma expressão do tipo “partido corrupto”, ou “partido da corrupção”.
A partir da terceira seção, o referente de “Dilma”, que já havia sido retomado na
seção anterior, ganha saliência na reportagem. O governo da ex-presidente é representado nessa
seção como tendo sido, igualmente às gestões de Lula, marcado por conquistas econômicas,
por escândalos políticos protagonizados por integrantes da “cúpula petista” e pela tentativa de
Dilma de enfrentar a corrupção.
186

Na seção seguinte, intitulada A crise, o referente expresso nesse título evolui com a
menção à “queda mundial dos preços das commodities”, que “reduziu o valor das exportações
brasileiras”, à alta inflação e ao endividamento, que levaram a população “a consumir menos”.
A tentativa de Dilma de diminuir o impacto da crise intervindo na política de preços do setor
energético não foi o suficiente para conter a insatisfação popular com seu governo. É o que
indiciam os novos referentes instaurados no texto, que orientam para uma visão negativa da
gestão de Dilma: “manifestações [realizadas por mais de 1 milhão de pessoas]”, logo em
seguida recategorizado pela expressão referencial “o protesto” e por predicados que
acrescentam informações relacionadas aos motivos dessas manifestações/protestos – “reajuste
de R$ 0,20 em tarifas de ônibus”, “fim da corrupção e da violência policial”, “melhorias no
transporte, na saúde e na educação” e “gastos excessivos com a Copa do Mundo”. A expressão
“outras bandeiras”, ao mesmo tempo em que encapsula a porção textual enumerativa que se
segue a ela, recategoriza-a, sugerindo que os manifestantes foram movidos por preceitos éticos,
como a Honestidade. A tópica que subjaz ao discurso instituído por esse e por outros trechos
desse texto (especialmente o que corresponde à seção seguinte, intitulada Lava Jato e protestos)
é a de que o povo não tolera desonestidade. Na continuidade dessa seção, o texto informa ainda
sobre a crise vivida na segunda gestão de Dilma e provocada pela própria presidente e sua
equipe econômica, fatos sinalizados no texto por referentes tais como “desequilíbrio das contas
públicas”, “dificuldades para aprovar medidas de ajustes [fiscais]”, “economia em crise”,
“terceira maior retração do PIB brasileiro da história”, “economia do país em queda”.
Na seção Lava Jato e protestos, o referente de “Operação Lava Jato” é novamente
retomado e recategorizado como “operação que revelou um escândalo de corrupção na maior
empresa do país, a Petrobras” e como “a maior investigação da história do país, englobando
corrupção na Petrobras e envolvendo empreiteiras e políticos”, inclusive Lula e Dilma,
acusados em delação premiada por Delcídio Amaral. O termo lexical “escândalo(s)” é utilizado,
somente nessa seção, três vezes, o que sugere a dimensão retumbante que os casos de corrupção
envolvendo integrantes do PT tomou. Esse termo também contribui para justificar a relação
entre os casos de corrupção e os protestos e para confrontá-los com o cenário econômico
marcado por alta inflação, aumento do desemprego, recorde do déficit primário, crise energética
e crise na saúde (esta causada pelo “avanço do mosquito Aedes aegypti”).
A penúltima seção (Denúncias contra Lula) retoma o referente de “Lula”, agora de
modo a reorientar sua imagem inicial, ligada à esperança, em direção à imagem do PT como
partido corrupto. A ideia de que “o maior símbolo do PT” havia sido “denunciado pelo
Ministério Público pela suposta compra de um apartamento tríplex em Guarujá (SP), mantido
187

no nome da construtora OAS” liga Lula à corrupção praticada pelo PT e consolida, pelo
altíssimo grau de representatividade de Lula em relação a seu partido, a ideia de que o PT é um
partido altamente corrupto. A tentativa de Dilma de nomear Lula seu ministro da Casa Civil,
com o intuito de lhe garantir foro privilegiado, acabou por aumentar a impopularidade da então
presidente. Nessa seção, são tornados presentes elementos representados pelos referentes de
“juiz Sergio Moro”, “pedaladas fiscais” e “Eduardo Cunha”, mas eles não são valorizados
no/por esse texto.
De acordo com Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 132), “A presença atua de
modo direto sobre a nossa sensibilidade”. A recorrência, no texto (12), de retomadas do
referente de “escândalos de corrupção” (relacionados ao PT, a Lula, a Dilma e a outras pessoas
ligadas ao partido), introduzido no lide da reportagem, confere aos elementos e dados
selecionados no texto uma presença intensa que supervaloriza a ideia segundo a qual o PT é um
partido corrupto. Ao tornar vivamente presente o elemento que corresponde ao objeto de
discurso “corrupção” no decorrer de todo o texto, desde a chegada do PT ao poder até o
impeachment, e ao associar o referente de “protestos” (realizados por milhares de brasileiros
nas ruas do país) aos casos de corrupção envolvendo o partido, o locutor demonstra presumir
que a Honestidade seja um valor compartilhado pelo povo brasileiro, mas que não o é pelo PT,
e presume também as disposições afetivas desse auditório. Sendo assim, por mais que os
presidentes petistas tenham realizado consideráveis feitos econômicos e sociais para o Brasil,
o fato de suas gestões terem sido atravessadas e marcadas por atos de corrupção deve levar o
interlocutor desse texto, intolerante à falta de honestidade e à corrupção, a sentir indignação,
repulsa, ou até mesmo ódio pelo PT e por seus representantes. O apelo ao pathos, portanto, dá-
se de maneira imbricada com o apelo ao logos nessa reportagem. É o apelo a certos valores,
princípios, e a uma certa tópica que tornam o auditório suscetível a essas emoções; e essas
emoções, vistas como um traço sentimental comum entre os proponentes da tese pró-
impeachment, ajudam a constituir um dos polos sociais que se confrontam nessa polêmica.
A referenciação participa da inscrição da afetividade no texto (12). Os processos
referenciais funcionam, portanto, como pathémata, ou seja, como elemento textual suscetível
de provocar emoção no auditório (AMOSSY, 2006, p. 196). Diferentemente das marcas mais
patentes de afetividade na linguagem, que expressam a emoção do locutor, a exemplo do que
fazem os termos axiológicos e metadiscursivos, os processos referenciais revelam o fato de que
a seletividade inerente à argumentação confere aos dados uma presença estrategicamente
manifestada na superfície do texto. Lembrando que “a representação mental de qualquer objeto
de discurso requer não somente a informação do contexto, mas a convocação de uma série de
188

conhecimentos gerais ou específicos e de estereótipos culturais” (CAVALCANTE;


CUSTÓDIO FILHO; BRITO, 2014, p. 68), entendemos que a construção de referentes em um
texto consiste em um dispositivo de textualização que contribui fortemente para uma
argumentatividade que se pretenda razoável (na medida em que se acomoda à ideia que o orador
faz de seu auditório) e capaz de suscitar sentimentos no interlocutor sem, contudo, apresentar-
se necessariamente como engajada e/ou subjetiva.
O terceiro meio de prova retórico, que ajuda a conferir eloquência ao discurso, é o
ethos. Acreditamos que, em um texto que manifeste, de modo latente ou patente, a modalidade
polêmica, o ethos, tal como visto pela perspectiva discursiva retoricamente orientada aqui
convocada, exerce um papel preponderante em relação a dois dos traços primários dessa
modalidade argumentativa: a dicotomização de teses e a polarização social. A imagem que o
orador constrói de si influencia na defesa de uma das teses antagônicas na medida em que pode
conferir uma maior ou menor credibilidade aos raciocínios. Quanto à polarização social, o ethos
pode vir a interferir em uma espécie de imagem coletiva (uma imagem de nós) de um dos grupos
actanciais, na medida em que o locutor de um dado texto pode vir a ser considerado como porta-
voz desse grupo.
O texto (12) constrói os referentes selecionados de modo a expressar um juízo de
fato sobre os acontecimentos relatados. Os processos de introdução e de recategorização dos
referentes nesse texto, como vimos, não sofrem a interveniência de expressões axiológicas ou
valorativas ou de outras marcas que explicitem um juízo de valor. O estilo de linguagem
utilizado não carrega traços de subjetividade, ou seja, não deixa marcas expressas da presença
do eu (ou do nós) que ali fala, nem marcas explícitas de assunção de responsabilidade sobre o
que diz (como índices de metadiscurso). Isso significa que o locutor se exime de emitir um juízo
de valor sobre os governos petistas, sobre o próprio PT e sobre seus principais representantes,
Lula e Dilma. O texto descreve os acontecimentos que marcaram a trajetória petista no poder
como sendo fatos (logo, os apresenta como sendo dados inquestionáveis), de modo a
materializar no texto a crença segundo a qual o discurso jornalístico faz uma representação fiel
e verdadeira dos acontecimentos do mundo. Segundo Benetti e Hagen (2010), é essa crença que
sustenta o capital simbólico da credibilidade, do qual o campo jornalístico é o detentor
privilegiado, e que incide fortemente sobre o ethos prévio do jornalista.
Na AAD, o ethos discursivo (ou oratório) é distinguido do ethos prévio (ou imagem
prévia de si). Enquanto o ethos consiste na imagem de si que “o locutor constrói,
deliberadamente ou não, em seu discurso” (AMOSSY, 2006, p. 79, grifo da autora), para
conferir força persuasiva a seu dizer, o ethos prévio diz respeito a elementos de identidade que
189

são preexistentes à materialização e à instituição de um discurso em um texto em uma situação


enunciativa específica. Esses elementos podem ser “a ideia que o público faz do locutor antes
de sua tomada da palavra, ou a autoridade que lhe confere sua posição ou seu status”
(AMOSSY, 2006, p. 79). No primeiro caso, trata-se de um estereótipo, ou representação
coletiva, sobre o locutor que circula socialmente; no segundo, de uma representação
institucional (ou institucionalizada) sobre o papel social do locutor, sobre seu status, sobre seu
poder. Em ambos os casos, a imagem prévia do locutor condiciona parcialmente seu discurso e
deixa evidências da existência dela no texto.
Ao selecionar certos referentes e ao (re)construí-los ao longo do texto sem a
interveniência explícita de marcas linguísticas de subjetividade, essa reportagem parece
apresentar “a verdade dos fatos”. Quando um texto apresenta dados sob a forma de um juízo de
fato, ele joga para o interlocutor a responsabilidade pelo juízo de valor que será (re)construído
por ocasião de sua compreensão daqueles fatos. Essa maneira aparentemente imparcial de
apresentar os dados constrói, mais do que uma representação do mundo ou da realidade, uma
representação discursiva da própria instância de locução. O locutor do texto (12), então, cria de
si uma imagem (um ethos discursivo) que condiz com aquela pré-definida institucionalmente
no/pelo campo jornalístico: a imagem do jornalista como profissional comprometido com “a
verdade dos fatos” (ethos prévio institucionalmente representado). Esta imagem prévia compõe
os “dados situacionais” cuja recuperação depende do conhecimento, por parte do interlocutor,
da situação de troca engendrada pelo texto e pelo discurso. Mais que isso,

Essa consideração [dos dados situacionais] necessita, quando se interroga sobre a


força da fala, de um conhecimento do campo – político, intelectual, literário, etc. – do
qual participa o locutor. Tal conhecimento permite determinar em que medida sua fala
produz autoridade, se ele está autorizado a se apropriar dos assuntos que aborda e do
gênero que seleciona (AMOSSY, 2006, p. 81).

Esses conhecimentos situacionais somados aos elementos textuais nos permitem


identificar a cena enunciativa instituída pelo texto (12). A cena englobante é a do discurso
jornalístico, que indicia o papel do locutor e a finalidade de seu dizer: o jornalista está buscando
levar conhecimentos factuais ao leitor. A cena genérica é a da reportagem, pois esse texto
jornalístico trata de um assunto que se supõe ser de interesse do leitor, com base em uma análise
detalhada de dados/fatos. A cenografia é de um relato informativo, em oposição a um relato
opinativo, pois a fala é encenada de modo a não demonstrar explicitamente o engajamento do
locutor com o seu dizer. A nosso ver, essa encenação ajuda a construir um ethos de jornalista
190

imparcial e isento, sendo reflexo da materialização de coerções discursivas, institucionais e


genéricas, ao mesmo tempo em que é instituída pelo texto.
Os processos referenciais (obviamente não apenas eles) contribuem fortemente para
a construção tanto dessa encenação como desse ethos discursivo, na medida em que a
referenciação é o mecanismo textual que confere presença e que revela a seleção dos dados e
elementos de uma argumentação. Como a argumentação é constitutiva do discurso e é atributo
de todo texto, a escolha de certos referentes e o modo de construí-los revela a parcialidade,
latente ou patente, que atravessa qualquer texto. O texto (12), apesar de seu estilo objetivo de
linguagem, não escapa a esse princípio: seus processos referenciais refletem um mecanismo
retórico de persuasão que insiste na importância da imagem prévia ou discursiva do orador para
o alcance de seu projeto argumentativo e que busca, estrategicamente, influenciar os leitores na
tomada de posicionamento por uma ou por outra das teses que circulam socialmente sobre a
questão mais específica do impeachment de Dilma Rousseff e a questão mais ampla dos
governos presidenciais petistas.
191

6 CONCLUSÃO

Nosso principal objetivo, com esta pesquisa, era demonstrar como a LT poderia
contribuir, com seus parâmetros de análise, para o estudo da inscrição da argumentatividade
retórico-discursiva em textos. Para dar início a tal empreitada, iniciamos por apresentar a
abordagem com a qual escolhemos estabelecer uma interface: a análise argumentativa do
discurso (AAD), de Ruth Amossy, filiada à AD francesa contemporânea. Tal abordagem se
mostrou condizente aos nossos interesses de pesquisa, primeiro, porque a LT é “uma disciplina
que sempre, e por diferentes conduções metodológicas, incluiu a argumentação como um
pressuposto inegável e como uma motivação para a análise de diversas estratégias de
organização textual” (CAVALCANTE, 2016, p. 106-107), e, segundo, porque pretendíamos
abordar certas estratégias de textualização sob uma perspectiva argumentativa que nos
permitisse pensá-las também por um prisma retórico (e não por um prisma linguístico, como o
faz a TAL, de Ducrot). A AAD, conforme expusemos no segundo capítulo, assume postulados
das retóricas clássica e nova e os articula a pressupostos e categorias advindos de uma
linguística do discurso de viés enunciativo e pragmático, o que faz dela uma abordagem
discursiva “retoricamente orientada” da argumentação (cf. CAVALCANTE, 2016).
Encontramos nessa abordagem, então, um pertencimento teórico-metodológico capaz de
atender aos nossos anseios de investigação e de oferecer espaço às contribuições que a LT pode
dar aos estudos da argumentação.
No âmbito da AAD, uma modalidade argumentativa nos chamou particularmente à
atenção: a polêmica. Apesar de nosso trabalho de análise não ter se voltado à comprovação dos
traços caracterizadores da polêmica em textos, muito do que Ruth Amossy sistematizou sobre
esse fenômeno sociodiscursivo nos serviu de fundamento para as análises que fizemos das
estratégias de textualização por meio das quais os locutores dão a ver seus posicionamentos
mediante questões polêmicas.
Para além do nosso objetivo principal, o percurso operacional que empreendemos
nesta tese teve início com uma reflexão sobre os termos da interface entre LT e AD que estamos
propondo e sobre a relação entre texto, discurso e gênero com a qual trabalhamos. Mostrar
como as duas disciplinas e seus conceitos mais caros se relacionam em nossa proposta requereu
uma revisita à ATD de Jean-Michel Adam, não para nos contrapormos a ela, mas para, a partir
dela, esclarecermos nosso modo de conceber texto frente a uma perspectiva que o colocava na
posição de mera materialidade do discurso. Não era, a princípio, nosso intento realizarmos uma
reflexão um tanto sistemática a esse respeito, mas, pelo fato de estarmos lidando com duas
192

abordagens, uma discursiva (a AAD) e outra textual (a ATD), que pressupunham uma relação
unidirecional entre discurso e texto, em que aquele sobredetermina este, fez-se impreterível
aparar as arestas conceituais que nos inquietavam. Assim, buscamos esclarecer e justificar nossa
perspectiva textual, na qual a relação entre texto e discurso é bidirecional e simbiótica, e em
que o texto não só materializa discursos como também os institui em uma dada circunstância
enunciativa.
Em seguida, passamos às análises propriamente ditas das estratégias de
textualização pelas quais os locutores de textos que tratam de questões polêmicas expressam
suas opiniões ou pontos de vista. As estratégias foram divididas na análise, uma em cada
(sub)seção do capítulo 5, por uma necessidade operacional cujo objetivo era mostrar, de
maneira individualizada e focada, como cada estratégia funciona como vetor de
argumentatividade retórico-discursiva nos textos. Na prática, contudo, essas estratégias se
imbricam de modo a complexificar o funcionamento textual da argumentação discursiva.
A intertextualidade, por exemplo, é o fenômeno textual que faz emergir a polêmica
em uma dada circunstância enunciativa. Seja na forma de “diálogo”, seja na forma de
“polílogo”, a polêmica como modo de gestão do conflito entre discursos antagônicos somente
pode ser apreendida na relação entre textos. No caso da entrevista de Silas Malafaia a Marília
Gabriela, que se enquadra na modalidade “dialogal” poligerida denominada por Amossy (2014,
2017[2014]) de interação polêmica, foram dois textos-fonte que instauraram os debates
inflamados entre esses locutores sobre duas questões profundamente controversas: a relação
entre dízimo e enriquecimento de pastores evangélicos e a homossexualidade. No caso de textos
monogeridos nos quais não há confronto expresso entre teses dicotômicas, é na forma de
polílogo, ou seja, de um conjunto de textos que tratam de um assunto controverso e que se
entrecruzam no espaço público democrático das sociedades pluralistas, que é possível
reconstruir o debate polêmico. Nessa modalidade, os arrazoados em torno das teses
controversas sobre um assunto profundamente controverso somente são possíveis de serem
recuperados e reconstruídos na relação entre textos.
A composicionalidade como estratégia persuasiva também foi seccionada por uma
motivação metodológica voltada ao alcance dos objetivos de mostrar, especificamente, como
as categorias de plano de texto e de sequências operam na orientação argumentativa dos textos.
Na análise da entrevista de Silas Malafaia a Marília Gabriela, por exemplo, vimos que é o plano
de texto (ou plano pré-formatado pelo gênero), que prevê a dominância de uma sequência
dialogal encaixante e de sequências encaixadas variadas, que autoriza a inscrição de um debate
polêmico encenado pelos locutores. Trata-se, portanto, de um texto polêmico, de uma
193

“interação fortemente agonística” (AMOSSY, 2017[2014], p. 52) muito bem argumentada por
ambos os locutores, em que as partes implicadas trazem suas razões e as fazem valer refutando
as do adversário (AMOSSY, 2017[2014], p. 51). Essa troca fortemente agonística e bem
arrazoada se inscreve na entrevista, dentre outros recursos textuais (como a intertextualidade e
o plano de texto), por meio de sequências argumentativas.
A noção psicológica de “presença”, evocada pela nova retórica e que tomamos de
empréstimo, nos permitiu enxergar o fenômeno da referenciação por um prisma
especificamente argumentativo. Vimos como textos cujo propósito é informar, e não opinar,
dão a ver seus projetos de persuasão na medida em que selecionam e presentificam alguns
elementos e dados argumentativos (suprimindo de presença outros) que são erigidos, nos textos,
por meio dos processos referenciais. Considerando esses elementos como referentes (ou objetos
de discurso), pudemos abstrair dos textos os tipos de acordo e as tópicas nas quais os locutores
dos textos se baseiam para se posicionarem, veladamente, em torno de questões controversas.
A relação dos processos referenciais com a construção do logos se deu, portanto, em nossas
análises, no sentido de buscarmos mostrar como os processos referenciais evidenciam
posicionamentos antagônicos e indiciam a polarização social.
Sobre a relação entre processos referenciais e pathos, nossa análise mostrou como
a presença também incide sobre o efeito emocional que o locutor de um texto pretende produzir
no auditório. Na medida em que o apelo ao pathos não se deu expressamente em uma
reportagem sobre o impeachment de Dilma Rousseff da Presidência do Brasil, tomamos como
pressuposto a tese de Amossy (2006) de que há uma imbricação constitutiva de logos e de
pathos, de modo que os raciocínios expressos ou subjacentes aos textos conduzem, ainda que
indiretamente, a uma argumentação que investe na disposição afetiva do interlocutor para
assumir certo posicionamento. Vimos que a recorrência do referente de “escândalos de
corrupção” ao longo da reportagem, relacionada aos referentes Lula, Dilma e PT, indicia os
valores que o locutor presume serem compartilhados pelos interlocutores (honestidade e retidão
moral) e indicia, a reboque, as emoções às quais esses locutores são suscetíveis (indignação
contra e ódio pelo PT e seus representantes). A suposição de que essas emoções são um traço
sentimental comum entre os proponentes da tese pró-impeachment colabora para o fenômeno
da polarização social em torno dessa polêmica. Os processos referenciais se mostraram,
portanto, como pathémata, ou seja, como recurso textual suscetível de provocar emoções no
auditório.
Quanto ao ethos, vimos como a construção de referentes na reportagem sobre o
impeachment de Dilma Rousseff conduziu à expressão de juízos de fato, ou seja, os
194

acontecimentos foram relatados de modo a não expressar a implicação do locutor com o seu
dizer. Os processos de introdução e de recategorização de referentes ocorreram de modo a não
sofrerem a interveniência de marcas de subjetividade, de marcas axiológicas ou valorativas, que
explicitassem um juízo de valor. Essa condução argumentativa materializou na reportagem a
ideia comumente admitida de que o discurso jornalístico faz uma representação fiel e verdadeira
dos acontecimentos do mundo. É essa ideia que subjaz ao ethos prévio de jornalista como
profissional comprometido com a verdade dos fatos, e foi por meio das escolhas referenciais,
entre outros recursos, que o ethos discursivo do locutor da referida reportagem se mostrou
condizente com essa imagem institucionalizada, incidindo também sobre a constituição da cena
de enunciação materializada e instituída pela reportagem.
Destacamos que todas essas estratégias textuais (intertextualidade,
composicionalidade e referenciação) são passíveis de serem mobilizadas, em cada texto, em
função dos gêneros discursivos nos quais os textos se enquadram. Consideramos, portanto, que
o gênero do discurso é o critério de textualização mais abrangente, que engloba e atravessa
todos os outros.
Nosso trabalho não exauriu, obviamente, o tema que nos propomos a discutir. Tanto
as reflexões teóricas como as análises que empreendemos podem (e assim o esperamos) ensejar
vários outros investimentos acadêmicos, especialmente no âmbito disciplinar da LT. A primeira
perspectiva de investigação que inscrevemos no horizonte desta tese, e da AAD, diz respeito à
argumentatividade inscrita em outros gêneros, que relevem de outras esferas discursivas além
da jornalística e da midiática. Seria interessante verificar como a argumentação retórico-
discursiva se inscreve, via elementos de textualização, em gêneros que, segundo Amossy
(2008), privilegiam as modalidades patêmica (apelo à ajuda humanitária, defesa perante os
jurados, discurso lírico) e pedagógica (manual escolar, literatura infantil, romance de tese).
Outra perspectiva de pesquisa diz respeito a um dos critérios de textualidade que
selecionamos para nossas análises: a intertextualidade. Os trabalhos produzidos no âmbito da
LT sobre esse fenômeno, conforme apontamos logo no início desta tese, reconhecem a
argumentação como uma de suas funções discursivas e, em geral, relacionam as seleções
intertextuais ao argumento de autoridade. A análise que fizemos da charge de Cazo, no capítulo
4, mostrou que as seleções intertextuais nesse texto contribuíram para a construção de
argumentos de transitividade. Supomos, a partir disso, que estudos da intertextualidade sob
perspectiva retórico-discursiva podem mostrar como as relações intertextuais atuam na
construção do logos, estando ligadas não somente aos argumentos de autoridade, mas também
a outras técnicas argumentativas descritas pela nova retórica.
195

Por fim, consideramos importante que estudos em LT sobre as estratégias


persuasivas aqui evocadas, além de outras, continuem a ser empreendidos na perspectiva de
uma interface com a AAD que estabeleça relações específicas entre essas estratégias e a
modalidade polêmica. Duas motivações nos fazem pensar na continuidade desse diálogo: uma
relacionada a demandas circunscritas à esfera sociodiscursiva mais imediata na qual nos
engajamos – a acadêmica; outra relacionada a uma demanda advinda da esfera política, bem
mais abrangente, no contexto sociodiscursivo atual do Brasil.
Diferentemente de como fizemos nesta tese, é possível proceder um estudo no qual
as características definidoras da polêmica sejam descritas em termos de textualidade. Em outras
palavras, é possível comprovar os traços caracterizadores da polêmica por meio de critérios
textuais. A relação entre modalidade polêmica e intertextualidade também nos parece merecer
uma atenção mais detida, de modo a sistematizar, a partir das análises de outros textos sobre
outras questões polêmicas, os termos da relação entre os fenômenos, respectivamente,
sociodiscursivo e textual. É nesse sentido que a continuação do diálogo entre LT e AAD se
impõe no contexto acadêmico.
No contexto político brasileiro que estamos atravessando, permeado de tensões
ideológicas que têm reavivado o espectro do autoritarismo e da intolerância e que têm ameaçado
abertamente a Democracia e seu valor mais fundamental, a Liberdade, fazer eco à apologia da
polêmica é de suma importância para a própria continuidade do livre exercício reflexivo de que
se valem as ciências humanas para (re)construir seus arcabouços teóricos. É, acima de tudo, por
sua principal função, a de permitir a coexistência no dissenso, que a polêmica pública merece
persistir na agenda dos estudos sobre o funcionamento da linguagem.
196

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201

ANEXO A – TEXTO (03): REPORTAGEM DA REVISTA EXAME SOBRE SILAS


MALAFAIA
202
203
204
205
206
207

ANEXO B – TEXTO (05): ENTREVISTA DE SILAS MALAFAIA AO PROGRAMA DE


FRENTE COM GABI

(CD)
208

ANEXO C – TEXTO (06) – ENTREVISTA DE SILAS MALAFAIA À REVISTA VEJA


209
210
211

ANEXO D – TEXTO (08): ENTREVISTA DE SILAS MALAFAIA À REVISTA ISTOÉ


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ANEXO E – TEXTO (12): REPORTAGEM DO PORTAL G1 SOBRE O


IMPEACHMENT DE DILMA ROUSSEFF E OS 13 ANOS DE PT NA PRESIDÊNCIA
DO BRASIL
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ANEXO F – TEXTO (13): NOTÍCIA DA REVISTA CARTA CAPITAL SOBRE O


IMPEACHMENT DE DILMA ROUSSEFF
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