Anda di halaman 1dari 9

DO ABOLICIONISMO UTÓPICO AO ABOLICIONISMO

CIENTÍFICO
Maria Vaz Dias, Marina Lima e Nathalie Fragoso

Quando se propõe tratar do abolicionismo


INTRODUÇÃO
científico, portanto, tem-se em mente
O título do artigo anuncia a referência, o método,
simultaneamente o impulso contra o sistema penal,
a pretensão. Em “do socialismo utópico ao
compartilhado por várias vertentes e cujos termos
socialismo científico”, Engels decompõe a conversão
desdobraremos abaixo, aliado à clareza sobre o seu
do socialismo em ciência, retoma os utópicos,
nexo funcional com a acumulação capitalista. Tem-se
revela-lhes as limitações e sintetiza o salto marxista
em mente o salto desde um apelo à abolição e ao
que legou a concepção materialista da história e a
abandono de um sistema penal em si problemático,
clareza sobre os fundamentos da produção
a uma crítica em que a inescapável necessidade de 1
capitalista (ENGELS, 2001).
abolição aparece junto à transformação da
As expressões utópicas da crítica à ordem sociedade que lhe deu ensejo.
burguesa, que então ainda amadurecia, eram
O abolicionismo emerge em meados da década
manifestações teóricas de sublevações incipientes
de 70, como um golpe contra a legitimidade do
de uma classe ainda em desenvolvimento. Embora
sistema penal e crítica dos próprios paradigmas da
antecipassem a denúncia e o repúdio a uma ordem
criminologia, a partir de variadas perspectivas
social em que o desenvolvimento das forças
teóricas e fundamentos metodológicos. Mathiesen,
produtivas convivia com a agudização da miséria,
Hulsman, Christie, Scheerer, Steinert são nomes que
não alcançaram demonstrar as características
ilustram o movimento em seu nascedouro e, embora
fundamentais do modo de produção que surgia, suas
não coincidam em seus pressupostos, estão todos
contradições, suas condições de superação.
imersos no debate sobre a abolição, seu objeto,
Não faltava a Owen, é bom ressaltar, em seus caminhos, extensão, métodos e impacto.
tratados ou na calculada intervenção sobre a
A abolição, antes de tudo, não se refere
melhoria das condições de reprodução da força de
exclusivamente ao direito penal, mas à totalidade do
trabalho empregada nas plantas que geria,
sistema penal, desde as instituições que operam o
pragmatismo. Faltava-lhe, assim como aos demais
controle, as leis, teorias e categorias que o legitimam
expoentes da utopia, perscrutar o caminho para o
ideologicamente e circunscrevem a percepção social
socialismo no âmbito do próprio desenvolvimento
a seu respeito, aos vínculos que mantém com o
capitalista, em suas contradições e no consequente
controle social global. A perplexidade aqui refere-se
antagonismo entre proletariado e burguesia.
à persistência e expansão do sistema que convive investigação dos processos históricos econômicos de
com a agudização das dores e perversidades que que resultaram os conflitos sobre os quais o sistema
produz, sem que realize os propósitos que anuncia. penal atua e a forma pela qual age. A crítica ou a
reforma, sem que esteja claro a concatenação real
A empreitada abolicionista percorre a
ao modo de produção – especialmente no que toca
demonstração da incapacidade do sistema penal e,
o tratamento destinado ao crime e à punição –,
em particular, da prisão, para cumprir sua função
sequer arranha a epiderme do problema. Nesses
declarada. Isto é, a proteção de bens jurídicos, o
termos, o repúdio, mesmo as alternativas, pouco
combate e a prevenção da criminalidade, a
produzem.
observância de garantias aos acusados e a segurança
pública à sociedade. A “eficácia invertida”, aliás, A passagem do abolicionismo utópico ao
aparece como um de seus traços constitutivos: a abolicionismo científico acontece, assim, quando se
contradição entre as funções declaradas e as logra compreender a punição em suas conexões
funções reais, que cumpre sem declarar. O sistema históricas e alimentar a percepção da necessidade
penal criminaliza os extratos sociais dominados, de sua superação.
reproduz desigualdades, produz sofrimento
desnecessário e o distribui de modo injusto. Viola SEGURANÇA, DIREITO PENAL E ESTADO
direitos, viola, aliás, os princípios que lhe instruem, POLICIAL: UMA RELAÇÃO ANTAGÔNICA.
subtrai o conflito aos agentes, negligencia as vítimas, Nesse caminho, é indispensável a consideração
não as protege, não as escuta. da função que cabe ao direito – e ao direito penal,
numa sociedade de classes. Para tanto, importam,
Aqui, pretendemos explorar não as aproximações
não somente o aspecto formal da estrutura jurídica,
entre os autores, mas uma divergência que aparece 2
mas a sua história real, paralela ao direito per se e
no vasto campo do pensamento abolicionista, no
produto da mediação real das relações de produção
que para alguns – e entre eles está a conhecida
da vida social (PASHUKANIS, 1988). Três são as
perspectiva hulsmaniana - o sistema penal aparece
premissas adotadas: (i) os fundamentos abstratos da
como supérfluo, desnecessário e passível de
ordem jurídica, como a liberdade, a igualdade e
abolição sem crises sistemáticas, e para outros é
mesmo a solidariedade, nada mais constituem que a
“pedra angular” da repressão. Sua abolição, segundo
forma mais geral – e talvez a mais inabalável – de
estes últimos, implicaria/demandaria
defesa dos interesses das classes ricas; (ii) há uma
necessariamente a transformação da sociedade
série de incrustações que as ideologias jurídico-
(SCHEERER, 1989).
filosóficas depositaram sobre a pena e o direito; (iii)
Para que que se estabeleça cientificamente, mais se aplica o direito penal como meio
sustentamos, é fundamental ao abolicionismo a aparentemente apto a solucionar conflitos, menos
investigação de seu objeto – o sistema de justiça aberta, livre e solidária é a sociedade.
criminal – em profundidade e a partir de sua
A legitimidade da lógica jurídica clássica repousa
existência efetiva, em sua estrutura e sua dinâmica
sobre a generalidade e abstração de suas normas,
(NETTO, 2011). Isto é, na articulação específica que
aplicáveis, em tese, igualmente a todos. Entretanto,
estabelece com a forma de produção da vida social,
numa ordem social materialmente desigual, não
onde surge, transforma-se e amadurece. Afinal, o
existem bens jurídicos gerais e comuns a proteger
mote primeiro do abolicionismo, adiantava
(CIRINO, 2008). Isso significa que o direito penal,
Mathiesen (SCHEERER, 1989), não é voltar-se à
enquanto instrumento de um Estado cada vez mais
elaboração de um novo sistema capaz de superar as
policialesco, só pode proporcionar uma ideia de
escandalosas falhas do sistema penal, mas à
segurança, uma ideia de justiça, uma ideia de relativamente estável, ou, como o é no mais das
garantia de liberdade. vezes, é a ele indiferente1.

Explicamos. A penalidade não reprime de fato Pior: a criminalização traz uma série de conflitos
delitos: os sistemas punitivos não podem ser adicionais, criando um espiral de violência artificial,
explicados unicamente pela armadura jurídica que que nos é visível, sem muito esforço, nos casos que
carregam (FOUCAULT, 2011); ao contrário, só podem envolvem o tráfico de drogas. Não há, assim, relação
ser analisados em concreto. A pena organiza a entre o recrudescimento do Estado Policial, o
marginalia, sendo seletiva desde a sua raiz: de um incremento das penas e a efetiva prática de crimes.
lado, são selecionados quais direitos devem ser Isso só seria aceitável se descobríssemos “criminosos
protegidos – sempre considerando as classes natos”, perspectiva etiológico-individual que já não
hegemônicas, como se espera; de outro, são pré- pode ser sustentada.
selecionados aqueles sujeitos que devem e serão
Falsificar a leitura de um fato não tem o condão
estigmatizados pela sanção penal – com especial
de fazer com que ele deixe de existir. Há que se
atenção aos refugos do mercado de trabalho e do
encontrar as determinações concretas dos fatos
consumo, (in)justamente, aqueles privados dos bens
históricos – como pretende a criminologia crítica e
jurídicos econômicos e sociais que a lei penal diz
um abolicionismo que se diga científico – antes de
salvaguardar.
tentar solucioná-los, para que não se chegue a
A pena recai sobre um sujeito determinado, conclusões equivocadas. Discursos penológicos
selecionado, estereotipado previamente pelas acríticos e apartados da realidade social não podem
agências de programação criminalizante. O aparente explicar concretamente um sistema punitivo. Na
fracasso da pena é, na verdade, seu sucesso. Seria realidade, o direito penal, instrumentalizado na 3
ingenuidade acreditar que de fato a lei penal é de pena, traz uma série de significações que
todos, feita por todos para todos. Ao contrário, a lei independem do crime e da dinâmica da
penal é feita por alguns e se aplica a outros, para criminalidade; sua função não passa pelo agir em
que se submetam, uma vez mais, às estruturas de benefício de toda uma sociedade e não há um
dominação. O Estado Penal produz e reproduz sujeito abstrato de direitos e de deveres sobre o
delinquência, o que faz da gestão do crime um qual a pena recai quando da prática de um crime:
negócio de fato produtivo. essa é só a parte legível do discurso.

Ademais, um fato social problemático, que Um direito penal pretensamente neutro reproduz
produz materialmente um dano social – cuja a ordem social. Em outras palavras, é a própria
existência pode se mensurar, a princípio, a partir da mediação jurídica que dá garantias à marcha, mais
violação ou não de um direito humano fundamental
1
–, não pode se resolver sem o enfrentamento de Veja-se a prática de homicídios, no Brasil, ao longo
suas reais determinações. Nesse sentido, em casos dos anos: a escalada no número de homicídios no país
teve início na década de 80, não apresentando queda
em que não se compreende a determinação significativa após a aprovação da Lei dos Crimes
subjacente, a resposta imediata acaba sendo, Hediondos, em 1990. De acordo com dados do
Ministério da Saúde, de 1986 até 1990 o crescimento
erroneamente, a própria criminalização. Não
do número de homicídios passou de 56%. Entre 1990 e
obstante, o que ocorre é que a resposta penal ou 1992, após a aprovação da lei, essa taxa caiu apenas
agrava o problema, como já dito, ou o torna 8%, voltando a crescer 7,7% já no ano seguinte. Em
1994, quando houve uma alteração na lei, incluindo os
homicídios em seu rol, não houve nem a queda
esperada para o ano posterior à aprovação: o número
de homicídios continuou aumentando e, entre 1994 e
2000, cresceu 39%, de forma linear.
ou menos livre, dessa reprodução (PASHUKANIS, O abandono da política criminal estatal, dessa
1988). Não existe “a” pena, por outro lado, nos maneira, deve ser visível e alcançável; a crítica, em
moldes tradicionais, uma vez que a forma da lei seu turno, deve permanecer radical, em teoria e na
penal, a concepção de delito – como a categoria em prática (COHEN, 1989). Cada uma das crenças sobre
si – e as ideias sobre como respondê-lo, são todas as quais se constrói o sistema penal deve ser
invenções históricas (STEINERT, 1989). desestabilizada, bem como seus discursos de
legitimação (SCHEERER, 1989). Papel do
O que existem são práticas punitivas específicas,
abolicionismo, destarte, é voltar-se ao evidente e ao
dentro de um dado marco histórico, no interior de
real, contrariando tudo o que é estável, usual,
um respectivo sistema de produção – que tende a se
ordenado; é manter uma atitude não positivista
utilizar de formas de punição que correspondam,
frente ao conceito de verdade posto.
por sua vez, às suas relações produtivas (RUSCHE;
KIRCHHEIMER, 2004), bem como, por conseguinte, a O abolicionismo teve e tem o poder de fomentar
interesses essencialmente de classe. Não por menos, uma variedade de enfoques alternativos 2 para o
a criminalidade, e muito particularmente a definição tratamento de conflitos particulares, em si mais
que dela faz o Estado, tem vínculo estreito com as adequadas que a demagoga proposição de soluções
relações de classe de uma dada sociedade (OLMO, fechadas, preparadas para serem aplicadas de cima
2004). para baixo. Não há, de fato, uma grande e única
solução à espreita: os problemas criminológicos são,
Sendo assim, a relação existente entre segurança,
em geral, complexos e demandam respostas
direito penal e Estado Policial é profundamente
também elaboradas. Por outro lado, é preciso
antagônica. Criminalizar nunca pode ser a solução,
enfrentar a limitação à generalização desses modos
ainda que, como se observa em movimentações 4
alternativos à justiça criminal numa sociedade de
recentes de grupos historicamente oprimidos, a
classes.
“bola da vez” seja uma causa aliada a interesses das
classes dominadas ou grupos oprimidos – como se O potencial mobilizador do abolicionismo só se
verá mais adiante. Pena não previne crime, não manifestará se a abolição do sistema penal se fizer
soluciona problemas sociais. Muito embora a acompanhar da abolição das questões sociais
emancipação não prescinda do abolicionismo, ele só inerentes à dinâmica do capitalismo. Conhecer o
poderá ser produto de uma sociedade mais “aberta,
livre e solidária”. 2
A resolução de conflitos tem condições para se dar de
forma “menos dolorosa”. Para tanto, há no percurso
O PAPEL DO IDEÁRIO ABOLICIONISTA
abolicionista possibilidades reais de atuação, como se
NA BUSCA DE UMA SOCIEDADE MAIS vê na linha de CHRISTIE, a partir da promoção de
"ABERTA, LIVRE E SOLIDÁRIA" verdadeiras táticas: (i) Proporcionar um maior grau de
Não há anseio emancipatório que possa ser conhecimento mútuo das pessoas envolvidas em
satisfeito pelo manejo do direito penal. Encarar o conflitos; (ii) Não dar poder às pessoas a quem se
delito como um fenômeno exterior aos conflitos e encomenda o manejo de um conflito; (iii)
contradições da sociedade – como pretende o Responsabilizar a polícia, a justiça e outras instituições
direito positivo, mas também algumas das perante a comunidade; (iv) Alimentar um sistema de
formulações abolicionistas – torna inócua qualquer valores apto a reconhecer a solidariedade, a igualdade,
perspectiva de mudança social. O que, ademais, é o respeito mútuo - em que a ideia de causar dor soasse

extremamente convidativo à permanência das coisas estranha (CHRISTIE, 1988).

como são.
problema para bem tratá-lo é tarefa dos de que instituições estatais repressivas possam,
abolicionistas: o alvo, aqui, não é o direito penal (e algum dia, solucionar os conflitos interpessoais e
tudo o que dele advém) como um problema em si, sociais.
mas como um produto do modo de produção do
É possível a superação da “obsessão” pela ideia
qual se alimenta e ao qual serve.
de culpa e de castigo, da busca incessante por
A substituição do direito penal por instâncias “culpados” que exonerem o Estado de suas
intermediárias, societárias ou comunitárias de atribuições não cumpridas, mas isso só seria
resolução de conflitos, demonstradas, aliás, tanto plenamente possível em uma organização social que
possíveis quanto capazes de amenizar os efeitos não a nossa. O ideário abolicionista pode, no
perversos que o sistema penal engendra, não é, por entanto, expondo o sistema penal como um grande
outro lado, um esforço descartável: é também tarefa reforço às mazelas da desigualdade, prezar por uma
do abolicionismo fazer oposição à apropriação do política de contenção de danos – desde que nunca
delito pelo Estado – que não conhece a situação de desassociada da crítica radical.
conflito, tampouco sentiu por ela. De fato, as
Veja-se como é possível tratar conflitos sem que
respostas previstas pelo direito penal serão sempre
se acuda única e exclusivamente à exclusão social
ineficazes tanto quanto se pretenda, por meio de
total. Igualmente, é possível olhar mais para a
proibições gerais e formalmente homogêneas,
vítima, hoje completamente apartada, nos moldes
resolver problemas que, no mais dos casos, seriam
do processo penal, da busca por uma solução de seu
avaliados e resolvidos de maneira distinta da
próprio conflito. Novos focos abrem espaço para que
qualificação vertical e uniforme disposta pelo Estado
a criatividade dos agentes eventualmente envolvidos
repressivo.
em uma situação indesejável sirva à efetiva 5
Em contrapartida, a mera substituição de uma reparação da vítima e à formulação de acordos livres
forma por outra, que fique claro, preserva a força e (desde que eticamente aceitáveis)3; não somente,
significação da forma substituída. É dizer, é erro aumenta-se em muito as chances de uma atuação
estratégico a tentativa de encontrar liberdade, preventiva em face dessas mesmas situações, o que
solidariedade e justiça no sistema penal burguês. Do é impossível para o direito penal. O papel do ideário
mesmo modo, será sempre insuficiente a proposição de uma criminologia crítica e abolicionista é
de alternativas positivas para as instituições e continuar sempre desmistificando as atividades da
práticas repressivas já existentes. Isso se explica na justiça penal e seus efeitos sociais adversos – e
medida em que, mesmo que propostas reformistas sangrentos. Estudar estratégias para a abolição da
fossem implementadas com sucesso na estrutura
social atual, estas se veriam, com o passar do tempo, 3
Há que se lembrar de que o abolicionismo, em
inevitavelmente modificadas em sua lógica. nenhuma de suas vertentes, propões soluções prontas,
Reformas ao sistema vigente poderiam levar, mas aponta saídas que não são hoje nem consideradas.
temerosamente, à transformação de mudanças O que pretende, ao clamar pela abolição das reações
potencialmente estruturais em outras apenas reducionistas e agressivas associadas ao sistema de
marginais que, em verdade, não alterariam a ordem justiça penal, é possibilitar um sem número de outras
prevalecente (MATHIESEN, 1974). definições e respostas a situações problemáticas, como
sistemas informais, compensatórios, conciliatórios,
O sistema penal é e continuará sendo, ainda que
terapêuticos ou mesmo educativos de reação
“reformado”, a expressão do poder monopólico do
(HULSMAN, 1997).
Estado. É necessário barrar a tradicional ideia de
autolegitimação de leis classistas, bem como a noção
justiça penal, incluindo as necessidades das pessoas seletividade de sua atribuição, mediante a seleção
diretamente interessadas, é atitude central. Há que de bens e de comportamentos dos indivíduos entre
se ter em mente, contudo, que a sua abolição, se os que infracionam, onde repousará sua
requerida em apartado do sistema social em que se legitimidade?
produz, poderá resultar em mera utopia.
Se, diante da estrutural incapacidade para
E mais: para a construção de uma sociedade mais alcançar seus fins oficiais e do cinismo já descoberto
aberta, livre, justa e solidária, não se pode confiar em reputar-lhe qualquer potencial de promoção de
em “reformas” vindas de cima: afinal, se a lei penal integração ou adesão a valores quaisquer que sejam,
não só é perigosa, mas também inútil, devemos mediante a imposição da segregação, do isolamento
pensar sempre em recorrer aos seus artifícios o e do estigma, onde se esconderá o lastro da
mínimo possível, até que nunca mais tenhamos que confiança em seus métodos?
a ela recorrer – superado o modo de produção social
Se o estudo de sua história, surgimento e
que a sustenta. Por uma antipolítica criminal radical!
transformação, permite notar a variada e mediada,
porém persistente, associação do sistema penal à
DIREITO PENAL, PROTEÇÃO DE BENS
preservação e reforço das relações de produção
JURÍDICOS, DESIGUALDADE
capitalista, em que se agarra a esperança?
Tomemos o Brasil como exemplo. Em dezembro
de 2014, havia 622 mil pessoas presas. Estima-se A teoria materialista da pena associou as formas
que, durante o ano, cerca de 1 milhão de pessoas de penalidade às dinâmicas no mercado de trabalho,
passaram pelo sistema carcerário brasileiro. Um demonstrando como o cárcere serviu, inicialmente,
número eloquente, cuja tendência é de crescimento. para formar proletários e impor o trabalho.
Demonstrou ainda o recurso às grades, com o 6
O perfil dos selecionados e selecionadas (cerca
avanço neoliberal, para a concentração de uma
de 33 mil são mulheres) em tudo confirmam a tese
população supérflua, sua neutralização e
da seletividade: são jovens, negros, de baixa
intimidação. Segundo o princípio do less eligibility, a
escolaridade e renda, segundo os dados oficiais do
condição do proletariado marginal determina os
Infopen. O envolvimento com o comércio ilegal de
rumos da política criminal. À força de trabalho
entorpecentes é a causa de encarceramento mais
excedente e ao agravamento de suas condições
significativa para homens e a majoritária para as
econômicas associa-se historicamente o
mulheres.
recrudescimento penal, o agravamento das
Superlotação, precariedade, violência, condições de cumprimento de pena, a funcional
consolidação da prisão como resposta deterioração da questão prisional.
preponderante ao conflito com a lei e abuso de sua
Esta é a vocação dos mecanismos de repressão
modalidade preventiva. A reação ao “crime”, a
oficiais numa sociedade de classes. Por essa razão,
política criminal oficial dirigida ao enfrentamento da
causa perplexidade a autores como Maria Lúcia
“criminalidade” reitera a pena, aplicada em
Karan que estes mesmos mecanismos sejam
condições degradantes, como estratégia de controle
reputados caminhos possíveis para o enfrentamento
social.
de atos nocivos praticados contra a coletividade
Retomemos, então, Baratta (BARATTA, 2014). Se pelas classes dominantes ou como tática
a criminalidade é um bem negativo distribuído emancipatória de grupos oprimidos (KARAN, 1996).
desigualmente, conforme a hierarquia plasmada no
O desejo e o aplauso a prisões, diz ela, a vontade
sistema socioeconômico; se conhecemos a dupla
da extensão da reação punitiva a condutas e agentes
tradicionalmente imunes, desvela falta de clareza brancos. No caso das mortes decorrentes de ação
sobre o sistema penal e a sua funcional policial, constata-se um índice de morte de negros
concentração sobre os membros das classes quase três vezes o registrado para a população
subalternizadas. Frequentemente, aliás, imbuída de branca em São Paulo e uma taxa de prisões em
natural revolta ao perceber como os representantes flagrante duas vezes e meia a verificada para os
das classes dominantes defendem-se melhor de sua brancos. É o que mostra um estudo da Universidade
investida, setores da esquerda reclamam ou Federal de São Carlos (SINHORETTO, SILVESTRE,
endossam a supressão de garantias processuais- SCHLITTLER, 2014). Diante da eloquência deste
penais. quadro, Ana Luiza Flauzina aponta no sistema penal -
na vigilância ostensiva, no encarceramento
Não nos servem, diz KARAN. Não pode haver
desproporcional e nas mortes – um dos
concessões à tradicional função reprodutora do
instrumentos de continuidade de uma política de
sistema. Antes, servimos. A resposta criminalizante é
extermínio da população negra brasileira. Sua
a primeira e menos controvertida providência
análise, aliás, desempenhada no âmbito da
tomada pelo Estado numa sociedade de classes,
criminologia crítica e atenta às particularidades
mesmo em favor daquelas que domina, e alguns
latinoamericanas e brasileiras, denuncia a
episódios da vida nacional constituem indícios
insuficiência da perspectiva que enumera a raça
eloquentes deste fato. Temos logrado uma proteção
como uma das categorias no rol das muitas
simbólica - buscada como forma de estabelecer
assimetrias perpetuadas pelo sistema, quando,
princípios gerais e promover conceitos de justiça e
segundo a autora, o racismo tem configurado um
retribuição - desmentida em sua eficácia pelos fatos.
elemento estruturante de sua atuação e a principal
Tomemos, por exemplo, a atenção conferida pelo âncora da seletividade (FLAUZINA, 2006). 7
poder legislativo à questão racial. Data de 1989,
Outro exemplo emana das respostas estatais às
após um ano de tramitação, a aprovação da lei que
demandas contra a violência experimentada por
criminalizou a discriminação racial - a qual, embora
mulheres. Ao observarmos os dados acerca da
não disponhamos de levantamentos oficiais, é,
aplicação da Lei Maria da Penha, temos que até
segundo especialistas, pouco aplicada. O Estatuto da
2006, quando entrou em vigor, o número de mortes
Igualdade Racial (2010) e a Lei de Cotas (2012)
violentas entre as mulheres, apesar de apresentar
levaram um tempo consideravelmente superior para
taxas aparentemente estáveis, vinha crescendo.
aprovação e, no caso da última, sofreu reiterados
Entre 2000 e 2006, houve um crescimento de 7,4%.
questionamentos, inclusive judiciais quanto à sua
No ano seguinte, essa taxa caiu 6%. Contudo, já no
constitucionalidade. Somente recentemente, em
ano subsequente o número de mortes violentas
2012, foi apresentado e ainda tramita, com
voltou a apresentar crescimento, sendo que, em
dificuldade, o projeto de lei que extingue os “autos
2008, o número de mortes foi ainda maior que em
de resistência”, altera a tipificação das mortes
2006. De 2007 a 2011, essa taxa chegou a um
decorrentes de intervenção policial e obriga-lhes a
crescimento de 19,6%. Aprovada a lei, percebe-se, a
investigação.
proteção de mulheres em situação de violência tem
Enquanto isso, o Mapa da Violência divulgado em um longo caminho a percorrer. Tão mais profícuo
2015 informa-nos que jovens negros são as maiores será, quanto mais acuradas forem as percepções de
vítimas da violência no Brasil: em 2012, em média, suas causas, com as quais o sistema penal não
morreram proporcionalmente 285% mais jovens que dialoga.
não jovens por assassinato praticado com armas de
fogo e, proporcionalmente, 142% mais negros que
É preciso enfrentar esses dados e responder-lhes. possível projetar a extinção de um sistema que logra
A busca do amparo no sistema penal e reforço de somente a propagação de dor e de ciclos
legitimidade de seus remédios é, em termos tautológico-circulares de violência, seletividade,
estratégicos, contraproducente a todas as forças estigmatização, segregação e reincidência.
sociais que se identifiquem com o propósito da
Uma fase de transição em que, através do
emancipação.
conflito fundamentado, de forma mediata – e
fugindo dos imediatismos de casos concretos
CONCLUSÃO
celebrizados pela mass mídia, por lobbys e pressões
Demonstradas as premissas, explanado o
sociais –, caminhe para a desmistificação de
reducionismo das restantes hipóteses e cumprido o
consensos fabricados e para a libertação de
método proposto, parece-nos reiterada a
oprimidos.
necessidade de transformação social e reafirmada a
inocuidade da assunção de reformismos como Destarte, em jeito de conclusão, defendemos que
horizonte da crítica, dada a perda de referência à o abolicionismo não só não é utópico, como constitui
totalidade do sistema e ao problema-base ou raiz. O o mote de um profícuo processo para obtenção da
movimento abolicionista, na sua cientificidade, transformação social que convocamos.
constitui um processo rumo à criação de uma
sociedade mais aberta, livre, justa e solidária. REFERÊNCIAS
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica
Um processo cuja condição última de efetivação
do Direito Penal. 6. Ed., Rio de Janeiro: Revan, 2011.
está na construção daquela abertura social, que faria
com que o Direito Penal e todos os mecanismos do CASTRO, L. A. Criminologia da libertação. Rio de
Janeiro: Revan, ICC, 2005. 8
Sistema de Justiça Criminal sobejassem, ante a sua
desnecessidade. Não obstante, a desnecessidade só CELIS, J. B.; HULSMAN, L. Penas Perdidas: o Sistema
se instala progressivamente com a redução também Penal em Questão. 2. Ed., Niterói: Leam Editora,
progressiva de desigualdades sociais, com a 1997.
integração das minorias e com o desenvolvimento CHRISTIE, T.; DE FOLTER, R. S.; HULSMAN, L.;
de formas de organização e regulação alternativas. MATHIESEN, T.; SCHEERER, S.; STEINERT, H.
Abolicionismo Penal. Buenos Aires: Ediar Sociedad
É preciso, por isso, considerar aqueles que Anónima Editora, 1989.
apontam para a necessidade de pensar a transição, a
DUSSEL, E. D. Filosofia da Libertação. Piracicaba:
progressiva descriminalização e/ou despenalização
Edições Loyola, 1977.
de condutas que não violem bens jurídicos com
dignidade penal (em última ratio), essenciais para ENGELS, F. Do Socialismo Utópico ao Socialismo
todos, em concreto. Uma fase de transição que Científico. Buenos Aires: Editorial Agora, 2001.
permitiria a progressiva alteração das respostas FLAUZINA, A. L. Corpo Negro Caído no Chão: o
tradicionais do sistema de Justiça Criminal Sistema Penal e o Projeto Genocida do Estado
relativamente à prática de factos criminógenos. Uma Brasileiro. 145 f. Dissertação (Mestrado em Direito) -
transição que alimente o necessário processo de Universidade de Brasília, Brasília, 2006.
transformação social, atentando às origens radicais FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão.
do problema e não apenas ao crime enquanto 39 Ed., Petrópolis: Vozes, 2011.
fenômeno abstrato; que torne clara a inocuidade do
FOLTER, R. Sobre la fundamentacion metodologica
sistema de justiça criminal em relação aos seus
del enfoque abolicionista del sistema de justicia
fundamentos e pretensas finalidades; que torne
penal: Una comparacion de las ideas de Hulsman,
Mathiesen y Foucault. In: SCHEERER; HULSMAN;
STEINERT; CHRISTIE; DE FOLTER, Mathiesen.
Abolicionismo penal. Traducción del inglés por
Mariano Alberto Ciafardini y Mrita Lilián Bondanza.
Buenos Aires: EDIAR, 1989. p. 13-4.

KARAN, M. L. A Esquerda Punitiva. In Discursos


Sediciosos, nº 1. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
1996, pp. 79/92.

MATHIESEN, T. The Politics of Abolition. Oslo:


Robertson, 1974.

NETTO, J. P. Introdução ao Estudo do Método de


Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

OLMO, R. A América Latina e sua Criminologia. Rio


de Janeiro: Revan, 2004.

PASHUKANIS, E. B. Teoria Geral do Direito e


Marxismo. São Paulo: Acadêmica, 1988.

RUSCHE, G; KIRCHHEIMER, O. Punição e Estrutura


Social. 2. Ed., Rio de Janeiro: Revan, 2004.

SANTOS, J. C. Direito Penal: Parte Geral. 3. Ed.,


Curitiba: ICPC, 2008.
9
SCHEERER, S. Hacia el abolicionismo. In: SCHEERER;
HULSMAN; STEINERT; CHRISTIE; DE FOLTER,
Mathiesen. Abolicionismo penal. Traducción del
inglés por Mariano Alberto Ciafardini y Mrita Lilián
Bondanza. Buenos Aires: EDIAR, 1989. p. 13-4.

SINHORETTO, J.; SILVESTRE, G.; SCHLITTLER, M. C.


Desigualdade racial e segurança pública em São
Paulo: letalidade policial e prisões em flagrante.
[Sumário Executivo]. São Carlos, 2014.

Anda mungkin juga menyukai